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Tese de Doutorado
FLORIANÓPOLIS
2008
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FLORIANÓPOLIS
2008
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DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a meu pai (in memoriam), que já não é mais
um ser entre as coisas que as nossas escalas explicam. Deve
estar na dimensão do quase nada pulverizado em quase tudo.
Ele gostava de Astronomia e de Mitologia, acompanhava a
evolução tecnológica, como um sequioso Prometeu. Alguns o
chamavam de “Professor Pardal” por sua criatividade e
inventividade. Do “mundo da vida” vinham suas idéias que
viravam engenhocas, algumas delas, como suas forminhas de
chumbo para fazer pirulitos; outras, como os aparelhos
odontológicos que inventou, foram aperfeiçoadas e requeriam a
eletricidade para funcionar.
Aqui e agora, estaria muito orgulhoso de minha conquista!
Estaria vibrando em macro, micro e nano entusiasmo!!!
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AGRADECIMENTOS
Ao professor Hector Ricardo Leis, que tão prontamente aceitou orientar-me, muito
atencioso e demonstrando interesse pelo assunto desta tese. Sempre me concedeu muita
solicitude quando dele precisei, e agradeço seu empenho em abrir-me caminho para os
primeiros passos na produção escrita. Devo-lhe meu ingresso neste maravilhoso Doutorado.
Ao meu querido e eterno mestre, professor Norberto Jacob Etges, por ter sido, ainda
que indiretamente, o maior responsável pela escolha deste assunto, ao ter propiciado, em
minha formação intelectual e acadêmica no Curso de Mestrado, os primeiros contatos com a
“nanotecnologia” e sempre ter exigido de mim o rigor necessário na busca pelo
conhecimento, além de ser um grande companheiro sempre que solicitei sua ajuda;
Aos profissionais que se dispuseram a contribuir com este estudo, aceitando meu
convite para serem entrevistados de uma maneira tão especial, tão generosa, espontânea,
carinhosa e nobre, que a mim causou surpresa e entusiasmo. Admirando a forma digna com
que me trataram, quero registrar minha admiração eternal por eles:
Às professoras Joana Maria Pedro, Miriam Pillar Grossi, Luzinette Simões Minella,
Tamara Benakouche e, particularmente, ao Professor Rafael Raffaelli. Todos eles tornaram
minha pesquisa possível e são também co-articipantes desta tese. Acima de tudo, porque com
suas aulas enlaçaram-me para sempre à vontade de conhecer suas áreas de atuação, outros
autores, novos temas e termos, enfim, ao novo que faltava em minha formação intelectual, a
ter maisamplidãopara prosseguir fazendo-me a mim mesma e ao mundo o que me cabe nesse
latifúndio.
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Ao professor Doutor Arsênio José Carmona Gutiérrez que, com a mais indescritível
generosidade, emprestou-me livros valiosos de sua biblioteca particular, para que eu pudesse
dar início a leituras fundamentais e aos ensaios de produção escrita.
Aos queridos colegas de turma, Adilson Francelino Alves, Carla Schubert Sengl,
Cláudia Hausman Silveira, Cristina T. da C. Rocha, Edonilce da Rocha Barros, Elisa Gomes
Vieira, Maria Carolina Andion, Maria da Graça A. Faccio, Olga Regina Z. Garcia, Silmara
Nery Cimbalista e Tito Sena, pelo companheirismo em sala de aula, estudos conjuntos, trocas
de idéias e também nossos laços rizomáticos nas festas. Destaco outros colegas, de outras
turmas que guardei com carinho em minha lembrança: Katja Plotz Froís, Sandra
Makowiecky, Ana Lúcia S.V.Guimarães, Paulo Roberto Sandrini e Ronaldo de Oliveira
Corrêa.
À minha mãe por seu companheirismo, paciência, apoio, amparo, cuidado, troca de
conhecimentos e debates na área de Matemática, na qual é graduada, pelo socorro nas
gravações de CDs, nas digitações, no enfrentamento de meus momentos de estresse profundo,
e dos estados depressivos e necessidade de silêncio.
À minha família, às minha irmãs Cláudia e Miriam, pelos favores prestados nas horas
de correria e por terem me suportado em meus momentos difíceis, em função de todo esforço
despreendido na realização deste estudo.
Aos amigos que acompanharam mais de perto minha extenuante travessia: prima
Terezinha, César, Dalal, prima Juçara, Vilma, Silvane e às colegas do Ensino Médio da
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Ao Professor José Carlos Cechinel por quem tenho o maior carinho e a quem devo
muitos, por sua confiança, amizade e reconhecimento durante minha atuação no Centro de
Educação a Distância – CEAD/UDESC, no período entre 2001 e 2005.
SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................................................ 13
ABSTRACT ........................................................................................................................ 14
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 15
LISTA DE SIGLAS
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE TABELAS
RESUMO
TESE DE DOUTORADO
MARISE BORBA DA SILVA
A ciência dos nanoelementos vem provar relações profundas que sustentam a transição do
físico e orgânico para patamares de existência ainda mais sutis, verificados na fronteira entre
o material e o imaterial, o orgânico e o inorgânico, a Terra, o interplanetário e o universo, a
vida e a não-vida. Lidar com nanopartículas é defrontar-se com a ambivalência de elementos
de dimensão nanométricos que, em certas doses, podem ser letais e em doses menores são
essenciais à vida. O imponderável dos nanoelementos abala automaticamente a mentalidade e
o sistema de raciocínio que mede a importância das coisas pelo tamanho, pelo peso, ou pela
sua tradução comercial em cifras, na dimensão macro e micro. Nanoelementos, de peso
insignificante, intocáveis pelos cinco sentidos, entram na contabilidade básica dos seres vivos
e são preocupação recente para o que pode representar casos de vida ou de morte para o ser
humano, sobretudo. Analisam-se, pois, acontecimentos vinculados à nanotecnologia na visão
de natureza que está se constituindo e nas questões articuladas a ensaios éticos, que voltam a
pulsar sempre que se lida com o “novo”. Propõe-se a necessidade da análise multi e
interdisciplinar dos dilemas gerados em meio às imbricações doutrinárias com base na relação
técnica-ética, posto que muitos pensamentos permeiam esta novidade em suas implicações
para a espécie, indivíduos e humanidade. Indaga-se se a visão progressista com que se
concebe a “nano”, como a técnica mais radical do momento, é compatível e capaz de alterar o
próprio curso da vida, já que tem sido argumentado que se trata da “última revolução
tecnológica” e que esta afeta a essência de toda natureza humana. As idéias apresentadas
tentam situar um patamar mediador entre determinismos biológicos e culturais, que possa
contribuir para o debate sobre a liberdade de decidir os rumos que estão sendo tomados, já
que os produtos da técnica tornaram-se complexos e diversificados demais para serem
apreendidos em tempo hábil, antes de se tornarem ultrapassados. Imagina-se o que pode
acontecer em relação ao fascinante e surpreendente “mundo do infinitamente pequeno”!
Problematizam-se algumas posições particulares advindas de diferentes vozes e lugares,
interlocuções empenhadas em avaliar o contexto de avanço da nanotecnologia em seus efeitos
reais e potenciais, para dispor-se de um leque mais amplo, nos dias atuais, pois já se fala do
século XXI, como o “século nanotecnológico”.
ABSTRACT
DOCTORAL THESIS
MARISE BORBA DA SILVA
The science of the nanoelementos comes to prove deep relations that support the transition of
the physicist and organic one for landings of existence still more subtle, checked in the
frontier between the material and the immaterial thing, the organic thing and the inorganic
thing, the Land, the interplanetary thing and the universe, the life and the non-life. To deal
with nanoparticles is to face the ambivalence of elements of dimension nanometrics what, in
certain doses, can be lethal and in less doses they are essential to the life. The imponderable
thing of the nanoelements shakes automatically the mentality and the system of reasoning that
measures the importance of the things for the size, for the weight, or for his commercial
translation in ciphers, in the dimension macro and micro. Nanoelements, of insignificant
weight, untouchable by five senses, enters in the basic accountancy of the lively beings and is
a recent preoccupation for what it can represent cases of life or of death for the human being,
especially. There are analysed events linked to the nanotechnology in the vision of nature that
is if constituting and in the questions articulated to the ethics, which pulsate again whenever if
it deals with the “new”. The necessity of the analysis is proposed multi and interdisciplinary
of the dilemmas produced amid the crossing doctrinary on basis of the relation
nanotechnology -ethics, although many thoughts permeate this novelty in his implications for
the sort, individuals and humanity. It is inquired if the progressive vision with which one
conceives I her "sleep", like the most radical technique of the moment, is compatible and able
to alter the course itself of the life, since it has been argued what one treats as the “ last
technological revolution ” and what this one affects the essence of any human nature. The
presented ideas try to situate a landing mediator between determinism biological and cultural,
what could contribute to the discussion on the freedom of deciding on the courses that are
being taken, since the products of the technique became complexes and diversified too much
to be apprehended in reasonable time, before becoming outdated. Imagine what can happen
regarding fascinatingly and surprising “world of the small infinity”! It surpasses the man,
again, in the figure of “homo viator”: a walker inside the world that he himself created,
changing into a citizen of the universe, so able to explore the exterior space, the "flesh" of the
Land and the bottom of the sea how much the recess of his mind itself from a pointed
geometrical creativity molecular-atomic. Someone are put in problem some particular
positions resulted from different voices and places, interphrases pawned in valuing the context
of advancement of the nanotechnology at his real and potential effects, to be prepared of a
more spacious fan, in the current days, so is already spoken of the century XXI, like the
“century nanotechnological”.
INTRODUÇÃO
Retroviagem
Adiada a chegada
o mar é só vertigem
o porto está distante.
Seculares são os questionamentos sobre a relação entre natureza e cultura, entre ser
humano e técnica, entre homem e animal, antigas inquietações que perseguem a humanidade.
Mas os dois últimos séculos inauguraram uma forma de pensar a natureza (nature), o
ambiente (nurture), a vida e o humano, radicalmente transformada, devido a diversas
mudanças provenientes da oposição entre natureza e cultura, da intervenção de uma sobre a
outra e das simultâneas singularidades originadas da estupenda participação humana nestes
processos. Novamente inquieto, o inconformado animal humanizado que formou só por si,
um reino, o Reino Hominal, assume, mais uma vez, a figura do “homo viator”: um
caminhante dentro do mundo que ele mesmo criou, transmutando-se em um cidadão do
universo, tão capaz de explorar o espaço exterior, o “miolo” da Terra e o fundo do mar quanto
o recôndito de sua própria mente a partir de uma aguçada criatividade geométrica atômico-
molecular.
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Mestrado em Educação, linha de pesquisa Educação e Trabalho (1992-1994), da Universidade Federal de
Santa Catarina, em Florianópolis. O interesse por nanotecnologia floresceu, sobretudo, a partir de 1993,
mediante os estudos realizados com o Professor Norberto Etges, na disciplina Educação e Trabalho, e com a
leitura de obras de Pierre Lévy (1956-) que abordavam de forma passageira o advento da nanotecnologia.
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No século XVI, um dos aspectos das vastas transformações acontecidas foi o início da reivindicação de
autonomia da ciência em relação à retórica. Uma ilustração marcante e inaugural desse movimento se deu no
século XVII com a proposta da Royal Society of London, no sentido de erigir a clareza, compreendida como a
supressão de ornamentos supérfluos preconizados pela retórica, em padrão de estilo original pelo qual deveriam
pautar-se os relatos científicos, a partir de então. Resulta que, mais do que uma cisão profunda, gera-se
verdadeira desconfiança mútua entre humanidades e ciência, que foi ganhando contínuo aprofundamento ao
longo dos séculos XVIII e XIX, motivando o ensaio famoso de C. P. Snow “The two cultures and the scientific
revolution”, publicado em 1959.
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são indagações que dão já o que pensar e muito trabalho, indicando que há muito ainda por
saber do que teremos hoje e pela frente com o desenvolvimento das tecnologias.
Conta também que já temos um longo período de enfrentamentos e catástrofes para
registrar, em estreito vínculo com o viver às custas dessa relação mal resolvida em nossa
cabeça - natureza-criação/cultura -, que já vêm sucedendo desde tempos mais primitivos,
acentuando-se nos tempos modernos e se tornando mais e mais agudizados nos dias
contemporâneos. Indicam alguma coisa que parece escapar à nossa compreensão inteligente,
ao domínio humano. Estes acontecimentos sucessivos foram mostrando a razão por que nós, e
nenhum outro ser além de nós, reclamamos como objeto principal para reger nossas vidas a
própria submissão a normas, regras e leis, mesmo que muitas delas pudessem frustrar nossos
sonhos e desejos. Tais questões seguem ainda sendo contempladas, e, nos últimos séculos,
alguns teóricos têm se esforçado para abordá-las de forma mais literal e sistemática, com
menos apelo ao romântico, ao personalizado e ao sentimento calcado em questões morais.
Mas este é um vasto debate, sobretudo, levando em conta uma escala de mundo de domínio
técnico, que perdeu a ligação com a escala do mundo sensível, com o mundo do vivido.
O tema aqui abordado não foi uma escolha fácil, afinal, não basta defini-lo
simplesmente e começar a escrever sem que se provoque algum tipo de perda de precisão nas
informações, ainda mais quando se trata de algo tão específico se comparado a outros
assuntos com maior amplitude temática. Em casos assim, quando está em jogo uma inovação
técnica com rápida difusão, tanto no plano do conhecimento como no das aplicações e
serviços, enfatizamos que esta é uma oportunidade ímpar para interrogarmo-nos sobre a
nanotecnologia, sobre seu sentido, sua evolução, suas implicações éticas e, se possível,
devolver e instigar tais interrogações ao debate público.
Como pensou Hans Jonas (1995), com as tecnologias modernas de última geração, são
introduzidas ações de magnitude muito diferente, com objetos e conseqüências tão novos que
o marco da ética anterior não pode mais abarcá-los dada a essência da técnica moderna que
transformou de tal modo a natureza em algo que antes não era. Por esta razão, levando em
conta uma alegação tão contundente, abordamos como tema desta pesquisa a relação entre
nanotecnologia, natureza, natureza humana e ética. O tema nos remeteu necessariamente
a revisitar algumas das principais correntes de pensamento que têm governado o rumo dos
posicionamentos, comportamentos e atitudes tomados em torno ao vínculo natureza, técnica e
ética. Isto não significa dizer que fizemos todo o caminho atrás da origem das grandes
correntes doutrinárias existentes, de seus principais filósofos e autores representantes que
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delas sofreram fortes influências, tampouco aprofundamos a história da ética, porque não é
nosso objetivo e porque concordamos com a filósofa Mary Midgley (1995) quando diz que
perguntar de onde provém a ética não é a mesma coisa que perguntar de onde vêm os
meteoritos. Preocupou-nos, desde o início, a) dispor da possibilidade de refletir e avaliar os
acontecimentos que ocorrem em nosso redor, vinculados à nanotecnologia, b) analisar se eles
recebem ou não uma outra explicação e, portanto, c) apontar novos questionamentos e
conduções éticas colocados atualmente, já que por ética se entende o decidir entre humanos, e
o que interessa à ética é como viver bem a vida humana, a vida que transcorre entre humanos.
Algo nunca antes percorrido ou explorado teoricamente pela pesquisadora - por
exemplo, a necessidade de examinar o uso eventual de capacidades para as quais não se
dispunha antes, referentes à própria manipulação biológica e atômica para fins humanos,
alguns já bem definidos e outros de que nada se sabe ainda com garantia - foi gerando novos
caminhos para a delimitação do problema. Um fator determinante foi ter acompanhado os
avanços crescentes da biotecnologia, das tecnologias de informação, da nanotecnologia e das
ciências cognitivas, que têm contribuído para projetar a civilização em direção a uma
sociedade do conhecimento e cujo alcance parece ir além da interdisciplinaridade ou da
multidisciplinaridade, mas até uma verdadeira mudança “na natureza da ciência e da
tecnologia”, com todo tipo de implicações possíveis para a economia, a sociedade e a cultura.
Podemos indicar alguns exemplos dessas inovações, como as recentes notícias de que
o Brasil é o país com maior aumento no uso de computadores, divulgadas pela BandNews3, a
invenção por um grupo de pesquisadores da Embrapa da “língua eletrônica”, como foi
batizado o sensor gustativo para avaliação de bebidas (como a água, vinho e café). Este
equipamento é cerca de dez mil vezes mais sensível que o paladar humano e representa um
avanço no controle da qualidade para a indústria alimentícia, vinícolas, estações de tratamento
de água, possivelmente, também para a indústria farmacêutica, com destaque nacional e
internacional, notícia inclusive na prestigiada revista Nature (a língua eletrônica já está no
mercado desde 2006, avaliando a qualidade do famoso cafezinho). Temos ainda as grandes
repercussões e sucessos que as pesquisas nanotecnológicas começaram a ganhar mundo afora,
haja vista a entrega recente do Prêmio Nobel de Física de 2007, em 9 de outubro deste mesmo
ano, em Estocolmo4, a Albert Fert e Peter Grünberg, respectivamente um francês e um
3
Brasil é o país com maior aumento no uso de computadores. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/ciencia/mat/2007/10/09/298070123.asp>. Acesso em 12 de outubro de 2007.
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Trabalho reconhecido pela radical miniaturização de discos rígidos dos computadores a serem capazes de
armazenar cada vez mais informação, que contou também com a participação do gaúcho Mario Baibich.
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alemão, por seu trabalho com nanotecnologia, motivos bastante fortes para dinamizar novas
indagações.
Também chamou nossa atenção a notícia bombástica, em novembro de 2007, de que
cientistas anunciaram a clonagem, pela primeira vez, de embriões de um macaco extraindo
células-tronco desta cópia. Certamente foram muitas as interrogações. Para surgir o primeiro
macaco clonado, é só uma questão de tempo? Poderão, a partir daí, avançar os feitos da
ciência para fazer surgir o primeiro ser humano clonado? Será que é este o caminho que a
ciência está seguindo? Houve ainda a divulgação de recentes experimentos com células-
tronco5, no dia 21 de novembro desse mesmo ano, algo que mostrou a impressionante
especialização e sofisticação científica e tecnológica de nosso tempo. Acrescentamos a
realização de pesquisas por dois grupos de cientistas, uma equipe japonesa e uma norte-
americana, que conseguiram transformar células da pele humana em células-tronco. Abriu-se
um caminho sem precedentes e potencialmente ilimitado para a substituição de tecidos ou
órgãos com problemas, com a criação de células-tronco a partir do código genético do próprio
paciente, eliminando assim os riscos de rejeição além de acelerar as pesquisas sobre
tratamento de câncer, mal de Alzheimer, doença de Parkinson e recuperação de partes do
corpo lesionadas. Este procedimento destacou-se dos realizados por meio das técnicas atuais
com as quais se obtêm células-tronco pela manipulação de embriões, cuja defesa da utilização
e clonagem de embriões humanos é, em última análise, segundo referenciado na mídia, para a
Igreja Católica Apostólica Romana, um ato homicida e nazista; logo, trata-se de técnicas
cercadas de considerações éticas, portanto, implicadas com princípios de existência humana.
Segundo foi noticiado, em termos técnicos o que os dois físicos fizeram, de forma independente um do outro, foi
um modo de construir materiais mais sensíveis a campos magnéticos, mediante o fenômeno chamado
“magnetorresistência gigante”. Este se vale das propriedades novas e pode-se dizer ‘esotéricas’ no sentido de
serem estranhas, obscuras, ainda, no nosso dia-a-dia, que os materiais assumem na escala nanoscópica (dos
bilionésimos de metro e milionésimos de milímetro). Foi uma das primeiras aplicações do campo nascente da
nanotecnologia. Ver: Pesquisa com nanotecnologia vence Prêmio Nobel de Física. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/ciencia/mat/2007/10/09/298070123.asp>. Acesso em 12 de outubro de 2007. Ver
também: Princípio que permitiu o iPod leva Prêmio Nobel. Disponível em:
<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=477488>. Acesso em 12 de outubro de 2007.
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As células-tronco são consideradas como a esperança de cura para algumas das doenças consideradas as que
mais matam, as que geram malformações congênitas no corpo humano (como craniofaciais, a exemplo das
fissuras lábio-palatinas ou lábio leporino etc.), as neurofibromatoses (que geram tumores nos nervos) e as
afecções neuro-degenerativas (como as doenças de Parkinson, Huntington e Alzheimer). Embora por anos e anos
se venha praticando o descarte de embriões, o acesso às células-tronco embrionárias, mesmo para fins de
pesquisa, é limitado em razão de considerações éticas sobre a utilização e a clonagem de embriões humanos.
Além disso, tem a questão dos órgãos transplantados obtidos a partir de células-tronco embrionárias serem
rejeitados pelo paciente.
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enquanto “forma”, vai se constringindo perante suas próprias interações com o ambiente, sem
que se conceda prioridade a qualquer um dos termos da relação, mediante o artifício técnico
que resultou do processo de evolução bio-cultural. Ou seja, por sua atividade técnica
inventiva, com a nanotecnologia o homem transcende as condições da existência que lhe
foram impostas, tanto naturais quanto as subseqüentes culturais e os resultados da mútua
interferência que uma vai exercendo na outra, por sua inteligência diferenciada como um
processo de comunicação próprio capaz de combinar os mais distintos elementos e mesmo
estranhos entre si, até mesmo inconciliáveis, contribuindo para a mudança de nossa visão de
natureza.
Na realização deste estudo, buscamos fundamentos em pensadores que se dedicaram e
dedicam ao estudo da relação técnica e ética para nos subsidiarem na trajetória secularmente
‘espinhosa’ que é discutir as aparentemente eternas inquirições sobre o Homo: com suas
características biológicas próprias à espécie humana, sem contato com a história do mundo
humano; com os impasses sobre a sua natureza incompleta ou como uma “tábua rasa”, desde
ao nascer, na qual nada está escrito, só adquirindo conhecimentos através da experiência que
lhe vem unicamente dos sentidos; em relação à influência da natureza biológica humana à
natureza social de nossa espécie e vice-versa; no que diz respeito ao viver do homem como
um estranho dentro do seu próprio mundo social e às manifestações da natureza humana, mais
importantes ou não do que a tecnologia; enfim, problemáticas que, como as citadas
anteriormente, dizem respeito à natureza, ao modo de viver, aos seres em geral.
Por tais razões é que visitamos autores modernos: Thomas Hobbes (1588-1679); René
Descartes (1596-1650); Baruch de Spinoza, (1632-1677); John Locke (1632-1704); Gottfried
Leibniz (1646-1716); Giambattista Vico (1668-1744); David Hume (1711-1776); Jean-
Jacques Rousseau (1712-1778); Immanuel Kant (1724-1804) e o considerado último pensador
moderno, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). E também os contemporâneos:
como John Stuart Mill, (1806-1873); Karl Marx (1818-1883); William James, (1842-1910);
Friedrich Nietzsche, (1844-1900); Edmund Husserl (1859-1938); José Ortega y Gasset (1883-
1955); Martin Heidegger (1889-1976); Alexandre Koyré (1892-1964), Arnold Gehlen (1904-
1976); Claude Lévi-Strauss (1908-1902) Willard Van Orman Quine (1908-2000); Donald
Herbert Davidson (1917-2003 John Rawls (1921-2002); Thomas Kuhn (1922-1996); Michel
Foucault (1926-1984); Karl-Otto Apel (1922); Hilary Putnam (1926); Jürgen Habermas
(1929); Richard Rorty (1931-2007); Gianteresio Vattimo (1936); Richard Dawkins (1941);
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Daniel Dennett (1942); Peter Albert David Singer (1946-); Pierre Lévy (1956), além de
outros.
Para responder ao que surgiu no contexto de nossa preocupação em avaliar quais as
implicações mais amplas e específicas que a nanotecnologia pode ter sobre a natureza humana
e sociedade, e visualizarmos a partir daí questões de fundo ético que afetam a vida,
buscamos, simultaneamente, idéias centrais que fundamentassem a hipótese principal desta
tese, recorremos a autores como: Antonio Negri - mais conhecido como Toni Negri (1933-),
Edoardo Boncinelli (1941-), Umberto Galimberti (1942-), Giorgio Agamben (1942-), Félix
Duque Pajuelo (1943-), Peter Sloterdijk (1947-), Laymert Garcia dos Santos (1948.), Roberto
Esposito (1950), Werner Jaeger (1888-1961), Steven Arthur Pinker (1954-), e outros de igual
expressividade.
Ecolhemos estes autores sobretudo porque não apenas oferecem seu ponto de vista
filosófico, psicológico e biológico, mas também modelos de exposição clara e concisa de
problemas similares ao nosso - nanotecnologia. Por acréscimo, eles se alicerçam em
referências adequadamente selecionadas, apresentam abordagem de problemas de modo claro
e acessível e idéias, que defendem ou criticam, com argumentos ou objeções explicitamente
formulados e não apenas sugeridos. No que diz respeito à relação entre nanotecnologia e
ética, arte e técnica, abordando mais diretamente o uso pragmático, ético e moral da razão,
buscamos nos orientar em autores, cujas obras oportunizam uma leitura histórica da tradição
baseada no confronto de argumentos e concepções. Citamos como exemplos, Habermas,
Rorty, Rawls e Putnam, a nos delinearem um quadro com a ação humana se transformando
em ação eticamente “boa” ou eticamente “má”. Além desta contribuição, consideramos a
expressão “carência biológica” apresentada por Galimberti (2003, p. 119), particularmente
especial e inusitada para nós, julgando que seja um argumento procedente da “insuficiência
biológica” de Arnold Gehlen.
Desde o primeiro instante, para avançarmos nesta pesquisa, toda esta
fundamentação foi indispensável, mas consideramos necessário que nos reportemos à visão
de natureza que hoje temos e que pensemos a ética na sua realidade atual, numa reflexão
mais rigorosa, pautando-nos tanto no objetivo de conhecer, acompanhar e avaliar melhor
seus princípios reguladores e orientadores quanto na conduta dos cientistas, dos tecnólogos e
dos consumidores dos seus produtos. Também necessitamos estar atentos a que, no seio do
viver ético, tanto insurgem aberturas impensadas, à luz do lucro, como surgem formas
veladas de inquisição que ensombram o desenvolvimento da investigação científica e
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percurso feito com a delimitação de seis capítulos. Estes correspondem a quadros teóricos e
de referência quanto ao conteúdo particular de cada um e em relação uns aos outros. Com
eles ampliam as oportunidades de compreensão multi e interdisciplinar sobre a
nanotecnologia, bem como as potencialidades da pesquisa, e o seqüenciamento mais
adequado das idéias apresentadas. Buscamos igualmente desenvolver novas possibilidades
analíticas e teóricas que auxiliem a investigação nas ciências sociais e humanas, para que
assumam em suas abordagens uma tecnologia, aparentemente tão esotérica, estranha e
distante, de forma não menos comum daquelas que já dominamos. Visamos, também, nesses
capítulos: a) atender aos objetivos e questões da tese; b) favorecer a compreensão reflexiva
dos métodos e instrumentos metodológicos utilizados; c) estruturar as estratégias de
abordagem; d) promover a delimitação dos instrumentos de coleta, análise e interpretação dos
dados; e) dar maior suporte à discussão sobre os resultados das análises feitas.
No primeiro capítulo, tratamos de aspectos gerais que revelam espaços abertos à
divulgação científica da nanotecnologia, apresentando elementos marcantes de sua
introdução, além de algumas abordagens sobre suas características e sua recepção na
sociedade.
No segundo capítulo, discorremos sobre a necessidade de definir a nanotecnologia, ou
nanotecnologias, como querem alguns dos que a abordam e a pesquisam. Considerando que a
palavra nanotecnologia está intimamente relacionada ao muito pequeno, observa-se de
antemão que as coisas do mundo “nano” não tratam de algo naturalmente e simplesmente
assimilado por todos nós.
No terceiro capítulo, procuramos colocar a nanotecnologia em sua relação com a
natureza e com a natureza humana, verificando as possibilidades de mudanças em relação à
vida em si, à nossa vida em particular. Lembramos que os materiais, cujos aspectos e
propriedades básicas fazem parte do mundo de nossa experiência, trabalhados na escala de
medidas própria da nanotecnologia, passam a ganhar outras e novas propriedades e a
apresentar um comportamento peculiar, acenando uma aproximação muito íntima entre techne
e arte. A nova materialidade nanotecnológica, então, ao que nos parece, representa verdadeiro
desafio à idéia que temos de realidade, de valor, de comportamento humano, de
comportamento moral, de ética etc., perante novos acontecimentos que se apresentam e que
fazem alguma diferença em nosso modo de viver e do valor da vida, imediatamente
considerados. Abordam-se caminhos seguidos pelos avanços do conhecimento científico e das
tecnologias, que ocasionam profundas mudanças e acontecimentos, responsáveis até mesmo
30
pela natureza interdisciplinar das N&N (Nanociência e Nanotecnologia) e pelos eventos que
marcaram e influenciaram o seu desenvolvimento. Quaisquer projetos neste domínio
implicam, necessariamente, na congregação de competências diversificadas, não apenas da
Matemática (geometria, álgebra, outras), mas também requerem uma base da Física, da
Química, da Biologia e da Filosofia, em que se reconhecem conteúdos bem definidos quanto à
importância que suas teorias têm para a nanotecnologia.
No quarto capítulo, levamos em conta as implicações da separação e, posteriormente,
da oposição radical entre natureza e cultura, que teve início no século XVIII. Ela dificultou o
entendimento da significação das ações históricas, do domínio da natureza e da criação
cultural, acontecimento que se refletiu nas grandes polêmicas que existem nas discussões
atuais em torno da própria nanotecnologia. A partir do século XIX alguns dos efeitos dessa
dicotomia são bastante problemáticos à vida, pois a própria técnica trouxe consigo a
impressão quase generalizada de que corresponde a uma espécie de processo sem nenhuma
conexão com a vida, pelo qual seríamos arrastados e cuja natureza escaparia, na verdade, aos
desígnios e finalidades estabelecidos pelo homem. É algo que alguns filósofos descreveram
como a realização impensada de uma potência libertada pela metafísica ocidental, mas não
controlável pela sua ética, pela sua moral, ou por qualquer outra filosofia prática.
No quinto capítulo, buscamos expor o que existe em torno da relação nanotecnologia,
natureza humana, ética e sociedade, cujas implicações possam afetar as instâncias legais,
políticas e econômicas. Mediante esta análise, identificamos distintas correntes éticas
influentes do pensamento moderno e contemporâneo, que trazem elementos especialmente
relacionados à inserção da nanotecnologia na sociedade, vinculando-os às fontes de tensão e
aos dilemas éticos existentes face às novas modalidades de controle técnico e suas
possibilidades. Acreditamos que isto se constitua numa indagação central para muitos
estudos, a ser aprofundada e repensada, ponto em que colocamos o maior leque possível, que
pudemos elaborar de pensadores da técnica e da ética. Fazemos uma breve revisão de idéias
que tratam da ética e buscamos traçar o caminho de sua influência até o presente momento, a
exemplo do que representam os expressivos debates que envolvem Habermas, Rorty, Apel e
Putnam que estão interessados nisso e acerca das influências do pragmatismo americano, com
relação ao desenvolvimento da técnica e sua aplicabilidade.
No sexto e último capítulo apresentamos uma forma de abordagem estruturada para
descobrir e avaliar o que as pessoas pensam e sentem em relação à nanotecnologia e algumas
de suas implicações, a fim de contribuir parcialmente para futuros e mais amplos debates
31
6
Destacamos aqui as obras: REGIS Ed (1997). Nano: a ciência emergente da nanotecnologia (refazendo o
mundo molécula por molécula). Rio de Janeiro: Rocco; LAMPTON, Cristopher. (1994). Divertindo-se com
Nanotecnologia: construindo máquinas a partir de átomos. São Paulo: Berkeley.
35
7
A palestra aconteceu no auditório do Centro de Convenções da Federação das Indústrias do Estado de Santa
Catarina (FIESC), em 25 de outubro de 2003.
36
8
Kin Eric Drexler é físico, autor de Engines of Creation (1986) e o Fundador e Presidente do Foresight Institute,
e introduziu o termo ‘nanotecnologia’ em 1986. Nos anos 80, o conceito de nanotecnologia foi por ele
popularizado através do livro citado, "Engines of Creation". Drexler foi o primeiro cientista a doutorar-se em
nanotecnologia pelo MIT.
9
Nesse Fórum, bastante significativo para referenciar também este estudo, estavam presentes os convidados
internacionais: Renzo Tomellini (chefe de Nanociência e Nanotecnologia da União Européia), Simone H.C.
Scholze da Division of Ethics for Science and Technology (UNESCO), Kenneth Gould (St. Lawrence
University-USA), Silvia Ribeiro (EtcGroup, Canadá), Pat Mooney (EtcGroup, Canadá) e os convidados
nacionais: Sedi Hirano (Diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas-USP), Paulo Roberto
Martins (Coordenador), Silvia Guterres (NANOBIOTEC - Faculdade de Farmácia-UFRGS), Petrus Santa Cruz,
da RENAMI (no lugar de Oscar Manoel Loureiro Malta, coordenador da Rede de Nanotecnologia Molecular e
de Interfaces - RENAMI/DF/UFPe) e esta pesquisadora (aluna do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar
em Ciências Humanas - UFSC). Não compareceram ao evento os convidados Mike Treder (Center for
Responsible Nanotecn-CRN), Eronides F. Silva Junior (coordenador da Rede NANOSEMIMAT- DF/UFPe) e
Tânia E. Magno da Silva (aluna do Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente, da Universidade Federal
de Sergipe-UFS).
10
Atividade esta inscrita pelos órgãos RENANOSOMA, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP/SP e SINSESP. Essa atividade foi coordenada pelo professor Paulo Roberto Martins do IPT e Coordenador
da Rede RENANOSOMA.
37
uma reflexão de maior alcance. Mas, foi substancial ter presenciado o embate de idéias e a
troca de análises entre os palestrantes Petrus D’AmorimSantacruz de Oliveira (à época,
professor da UFPE, pesquisador do CNPq e representante da Rede NANOSEMIMAT e
RENAMI - e Sílvia Ribeiro, pesquisadora mexicana do ETC Group - Action Group on
Erosion, Technology and Concentration), uma organização da sociedade civil com sede no
Canadá.
Sílvia Ribeiro fez duras críticas à nanotecnologia, em sua fala, a respeito de questões
como a das patentes, alegando o vínculo irrestrito da nanotecnologia a grupos de interesses, às
conseqüências da penetração da nanotecnologia na alimentação e agricultura, ao câncer de
pele dos trabalhadores rurais por conta das nanopartículas, os impactos sobre o meio
ambiente, como as nanopartículas aplicadas nos campos via pesticidas e as que já estão
presentes em aditivos alimentares, sem que nenhum governo tivesse desenvolvido ainda um
regime que regulamente a nanoescala. Por sua parte, Petrus D’Amorim Santacruz fez sua
réplica, alegando que era necessário conhecimento de causa, fundamentação científica séria,
para poder alegar a ocorrência de certos riscos e conseqüências maléficas, e que não se
deveria deixar questões como essas em aberto, principalmente, quando se tem à disposição
um debate em que deve existir transparência. O professor brasileiro complementa dizendo que
raciocínios falaciosos com relação, por exemplo, à própria nanotecnologia, como no caso da
confusão feita entre lipossomas e nanopartículas, são impróprios, considerando que a
população deveria sim estar mais esclarecida, e que lhes cabia o papel de contribuir para a
transparência da informação. Este embate foi, de fato, um momento que, para a pesquisadora,
mostrou claramente uma arena relacionada à questão ética. Frente ao desenvolvimento que é
apontado para a nanotecnologia, por ser uma temática muito complexa não só pelas
características que lhes são próprias, senão também por tratar-se de um tipo de conhecimento
marcado por uma grande amplitude científico-tecnológica, vislumbrando grandes
modificações na vida em geral, podemos assegurar que a nanotecnologia precisa de grande
debate público e em termos éticos há tudo por dizer. Por nossa trajetória até aqui, marcada
pelo acompanhamento de algumas posições e seus desmembramentos, notamos que existe
efetivamente um considerável cenário de incertezas e vazios existentes, de modo geral, no
conhecimento da nanociência e a nanotecnologia.
Outro fator de interesse para este trabalho, que deve ser registrado, foi a atuação da
pesquisadora, em 2006, como consultora da disciplina de Ciências junto à Secretaria
Municipal de Educação de Florianópolis, na retomada dos trabalhos de elaboração do Plano
38
Curricular para a área de Ciências Naturais, em seu Projeto de Qualificação dos Profissionais
da Educação Básica. Esta atividade contribuiu de modo expressivo para que fossem discutidas
as principais bases teóricas necessárias à familiarização com a nanotecnologia, bastante nova
para a grande maioria dos educadores, bem como as diferentes fontes de informações e a
necessidade de incorporar ao estudo outros conteúdos, sobretudo, referentes à física clássica e
à física quântica, em comparação com a mais recente manipulação do átomo através da
nanotecnologia11. Já havíamos chegado a esta constatação na Dissertação de Mestrado em
Educação12, em que analisamos e apresentamos às mais expressivas posições epistemológicas
que se manifestam no seio das Ciências Biológicas e influenciam o ponto de vista de
estudiosos e educadores nas suas abordagens referentes à organização material do ser vivo. A
pesquisa introduziu um território vasto de questões a explorar, uma vez que tratou da situação
epistemológica da Biologia, à época, uma ciência intimamente envolvida com o quadro
teórico de outras ciências. Era, pois, reconhecido que a discussão em torno do contexto
biológico suscitava, necessariamente, uma análise à luz da crítica epistemológica para colocar
as Ciências Biológicas e o ensino de suas teorias no lugar que lhes compete, já que, enquanto
ciências naturais, têm em comum a investigação da natureza e dos desenvolvimentos
tecnológicos, compartilhando linguagens para a representação e sistematização do
conhecimento de fenômenos ou processos naturais e tecnológicos, campo do conhecimento a
ser melhor situado em seu caráter formativo comprometido com a vida. Mas é importante
declarar que o desafio agora é bem maior, pois, por seu caráter multidisciplinar e
interdisciplinar, por exigência teórica de abordagem, a nanotecnologia vem demonstrando um
potencial inusitado de revolucionar amplamente vários campos tecnológicos e científicos,
vários conceitos já estabelecidos e incorporados na cultura científica, e vários setores
produtivos.
Entendemos como Hans Jonas (1995) que questões - a exemplo das pertinentes à
nanotecnologia - que nunca foram antes matéria de legislação, penetram no campo das leis;
11
O aquecimento das discussões e a possibilidade de abordar conhecimentos novos e tão complexos, trazendo à
tona algumas questões implicadas desde o macrocosmo até a mais ínfima partícula, na escala nanométrica, foram
fundamentais. Além desta feliz oportunidade, a maior plenitude desses momentos foi a de poder começar nas
escolas públicas municipais um trabalho de introdução de bases conceituais referentes a estes avanços científicos
e tecnológicos, desde as séries iniciais. Tais ocasiões, contando com o envolvimento de aproximadamente 90
professores, enriqueceram a compreensão de questões acerca do objeto de pesquisa e pertinentes à formulação de
hipóteses. Também contribuíram para a pesquisadora manter-se atenta aos novos elementos que emergiam
durante o processo partindo de pessoas com bacharelado e especialização em ciências naturais, como é o caso da
pesquisadora.
12
Intitulada Posições epistemológicas legitimadoras de determinadas formas de abordagem do conteúdo das
Ciências Biológicas12, com a defesa em 14 de dezembro de 1994.
39
‘vida’, de ‘humano’, de ‘natureza humana’, além das implicações pertinentes aos seres que
habitam o mesmo nosso planeta, ainda chamado Terra. Talvez, um primeiro passo seja
amenizar a distância que existe entre as particularidades conceituais da nanotecnologia, ainda
distantes da compreensão da grande maioria das pessoas em sua linguagem cotidiana, o que se
espera que aconteça levando esta preocupação para outras áreas; outro passo é desmistificar
alguns “absurdos” sobre a nanotecnologia e também delimitar de forma mais clara quais são
de fato as implicações de ordem ética que estão envolvidas com a nanotecnologia.
Vale fazer notar que o termo “ética”, em muitos dicionários, é encontrado como
disciplina filosófica que tem por objeto de estudo os julgamentos de valor na medida em que
estes se relacionam com a distinção entre o bem e o mal. Observamos que o termo medida já
aparece na própria definição, e também o termo valor, que de modo geral, estão sempre
associados à ética.
Em termos éticos, nos remetendo ao uso das células-tronco adultas, no caso das
fabricadas a partir da pele humana (procedimento equiparável ao de transplante de tecido no
próprio corpo em que se retiram as células-tronco da própria pessoa e se injetam no lugar
onde o tecido está danificado), façamos aqui uma evasiva. Podemos dizer que a obtenção de
células-tronco a partir da pele humana não representa problemas, pelo menos imediatamente,
e foi o que realmente presenciamos por parte da sociedade, com a divulgação dessa pesquisa
na mídia. Mas não se pode descartar a hipótese de que esta reação receptiva se dê até o
momento em que o uso das células da pele não afete a resposta de quando tem início a vida
humana. Como ficaria se o homem estabelecesse parâmetros para medir o que é vida, com um
salto qualitativo para baixo ou ainda mais da escala do nanômetro, a poder chegar um dia ter a
coragem e a ousadia de dizer que a vida está na nanopartícula, no átomo! Quem tem afinal a
resposta decisiva para a pergunta: Quais são os parâmetros para determinar quando começa
uma vida? O que é vida? O que determina a natureza humana?
Observamos que existem muitos argumentos à nossa disposição para ficarmos
oscilantes entre a “tecnofobia” e a “tecnofilia”, mais precisamente, a ficarmos enredados no
maniqueísmo quanto ao domínio técnico-científico. Com referência aos últimos pontos,
seguindo os passos de Galimberti, nos deparamos com a ética do viandante, do ser humano
de hoje, que não conhece seu futuro, refletindo o estado da ética na idade da nanotécnica.
Como estão sendo calculados os benefícios das pessoas e comparados o prazer e a felicidade
de pessoas diferentes, em relação ao usufruir do saber fazer nanotécnico? Qual é o grau de
intensidade dessas motivações? Ao fazer correspondências com as coisas em escala
41
nanométrica, uma nanopartícula de óxido de ferro, por exemplo, usada por pesquisadores
alemães, para o tratamento de tumores cerebrais multirresistentes, o que este alcance
representa para nós sem o apoio de uma medida-referência usual? Neste caso, temos que
pensar que o que predomina não é uma aproximação mediante a utilidade imediata, objetiva
e naturalista com a partícula nanométrica, ao nível exclusivo do ‘fazer’; em verdade, o
‘compreender’ torna-se obsoleto e sem sentido perante esta nanopartícula, ocorrendo até
mesmo a perda de uma perspectiva teleológica (orientação finalista). Somos acometidos de
certa instabilidade quanto ao que passa a representar o mundo do intangível, aquele que
escapa de certa finalidade (télos) que se pretende atingir, e que, portanto, é algo
imediatamente livre de valores; sentimos dificuldades em estabelecer um critério (princípios,
modos de ser, valores etc.) para distinguir as ações corretas e as incorretas a serem
legitimadas por um consenso entre nós e outros indivíduos, a respeito do destino dessa ‘coisa
nanométrica’, que como nós não podem atribuir valores. Do mesmo modo, teríamos também
dificuldades à falta de regras efetivas em que se fundamentasse a nossa ação, utilizando
regras subjetivas de ação; não saberíamos discernir entre o correto e o incorreto por não
dispormos de uma referência, uma “lei”, que pudesse ser observada e seguida por todos os
demais, a decidirmos que por dever, a comparação de utilidades é sempre irrelevante:
algumas ações simplesmente não devem ser feitas, quaisquer que sejam as conseqüências, e
pronto!
Nesse aspecto, nos perguntamos também sobre a possibilidade de ser bem sucedida a
prática da ética do discurso, elaborada por Apel, e, posteriormente, aprofundada por seu
compatriota, Habermas, para determinar as regras do que é correto a partir de uma
comunidade ideal de comunicação, em que todas as pessoas apresentassem normas de ação
capazes de legitimação por consenso (entre os participantes do discurso comunicativo). Para
Costa (2005), Apel argumenta que é necessário distinguir atitudes individuais de condições
universalistas para a vida em grupo, considerando que cada pessoa deve procurar o que é
melhor para si, que é o indivíduo quem faz sua própria escolha profissional, por exemplo. O
filósofo enfatiza que vivemos num espaço livre para a individualidade, o que nos faz ter que
pensar em responsabilidade conjunta das sociedades, não específica, em que a busca de
princípios morais é uma questão de todos os seres humanos. Habermas (1983) defende a
exigência de uma reflexão acerca do agir comunicativo que possa ser capaz de esclarecer
normas de ação, sem recorrer a dogmas religiosos ou metafísicos para sua fundamentação e
ainda dissolva a tensão entre a positividade do direito (sua faticidade) e sobre a legitimidade
42
que se lhe pode associar (sua validade). Com sua posição referente à reflexão ética e moral,
partindo da distinção entre três possíveis usos da razão prática, ou seja, o uso pragmático, o
uso ético e o uso moral, o filosofo esclarece que:
A ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas sim, um procedimento rico
de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo. O Discurso prático é
um processo, não para a produção de normas justificadas, mas para o exame da validade de
normas consideradas hipoteticamente (1989: p. 148).
tendência interdisciplinar é muito grande e que não é de agora que vem se construindo. A
nanotecnologia vale lembrar, segundo Celso Pimenta de Melo e Marcos Pimenta (2004, pp. 9-
21), está presente na natureza há bilhões de anos, desde quando os átomos e moléculas
começaram a se organizar em estruturas mais complexas que culminaram na origem da vida.
É importante localizar, portanto, historicamente, a introdução da tecnologia na sociedade,
desde os primórdios da história da humanidade, quando o homem utilizava os materiais que a
natureza lhe oferecia para satisfazer as suas necessidades, até chegarmos hoje a grande
diversidade de problemas tecnológicos caracterizados pelo ramo de pesquisa denominado
nanotecnologia. Problemas de cálculo e de álgebra estão na base dos princípios e aplicações
da Nanotecnologia. Também o mundo sempre viveu da “prática avidez humana” pela certeza,
explicação, segurança e a constante tentativa de fugir de tudo o que pudesse ameaçar a perda
de controle racional e técnico, empurrando o homem a orientar-se segundo a perspectiva do
cálculo, sentindo-se assim seguro, fazendo com que ciência e técnica se transformassem e
reinventassem a si próprias, e servindo a projetos civilizatórios, redefinindo rumos e
estratégias.
Com as técnicas desempenhando importante papel na constituição e manutenção da
sociedade do controle e os usos das novas tecnologias, certamente objeto de disputa no que
tange à grande disposição mundial das redes e à sua regulação quanto ao uso dos poderes e
contrapoderes, as tecnologias da informação podem por uma parte conduzir para a
manutenção de situações de exclusão e produzir as subjetividades que lhe são adequadas, mas,
por outra, se incorporadas de maneira criativa, com livre acesso e com qualidade hiper-real da
informação e capazes de emancipar a capacidade cognitiva, podem abrir espaços para o novo,
extrapolando o controle.
Nestes casos, tão novos ainda e bastante polêmicos, em que se chocam tantas
questões complexas como os avanços científicos e tecnológicos na área de Genética, com
ênfase no vasto campo da Biologia Moderna, em Genética Molecular, da Biotecnologia e no
que se refere à Nanotecnologia e à emergente Bioeconomia13, se põem em relevo implicações
de natureza ética e social, como: os próprios princípios éticos para as pesquisas médicas em
seres humanos, a relação sujeito de direito e corpo, o direito de privacidade, os interesses
econômicos na vinculação do conhecimento científico com o mercado cada vez maior, e
13
As indústrias alimentar, farmacêutica, química, da saúde, da energia e da informação estão se agregando de
forma nunca antes imaginada, observando-se que as fronteiras entre negócios tradicionalmente distintos já estão
se integrando, grande convergência esta que está gerando o que promete ser a maior indústria do planeta, já
denominada Bioindústria.
44
outras mais. O que se pode dizer de concreto, é que muitas dessas questões foram trazidas
pelo homem moderno, e quanto a isso e quanto ao mérito de tais dilemas não há dúvida. Não
podem mais ficar esquecidas, ignoradas displicentemente ou propositalmente questões
relevantes que dizem respeito aos conceitos científicos e técnicos envolvidos, fundamentais
para analisar as referências mais imediatas ao debate público, sobre as influências das
tecnologias na vida em geral, no Planeta inteiro, no universo, que vêm sofrendo modificações
com o tempo por força da intervenção técnica.
È importante registrar que, rastreando a literatura especializada no assunto,
observamos muitas dificuldades de terminologia nela encontrada, que decorrem do fato de
que o assunto nanotecnologia é novo ainda, mas cujo corpo de conhecimentos tem sido
submetido a uma evolução bastante rápida. Desse modo, é possível encontrar algumas
expressões assumindo um significado diferente, em relação àquelas já utilizadas para outras
técnicas, ou, ainda, algumas delas se referindo a termos não totalmente reconhecidos ou
completamente desconhecidos na vida comum. Por isso há que se criar mecanismos para
facilitar os meios de se ter acesso a algumas considerações mais claras a respeito da nano.
Apresentam-se assim pontos fortes a reafirmarem a tarefa de pensar em como fazer para
estreitar os laços entre as Ciências Naturais, as Ciências Sociais e Humanas e as Ciências da
Engenharia e Tecnologias. Do mesmo modo, trata-se da necessidade de introduzir alguns
conceitos essenciais e espinhosos por sua amplitude e complexidade, acerca da
nanotecnologia, que possam transitar em meio a elas, aproximando-as mais.
Por nossa caminhada até aqui, afirmamos com segurança que a falta de informações é
a grande causa da falta de base para tratar da nanotecnologia de uma forma mais familiar,
mesmo para discutir as questões sociais e éticas, as ambientais, as que dizem respeito à saúde
humana, entre outras, a que se possa traçar um panorama mais abrangente sobre os assuntos
do campo ético na pesquisa nanotecnológica e seu relacionamento com os mundos dos seres
humanos, a saber, como refere Koyré (.1980), o “mundo do mais ou menos” e o “mundo da
ciência”.
É importante, também, desde o começo, ter bem precisa a diferença entre ética e
moral, pois enquanto a primeira implica liberdade para podermos optar e, portanto, requer
responsabilidade, a segunda nos remete ao fato de que toda cultura e cada sociedade institui
uma moral, isto é, valores concernentes a uma série de conceitos e padrões de comportamento
em relação ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido, e à conduta correta, válidos para
todos os seus membros. Isso é importante lembrar, porque discutir a ética nos leva a poder
45
optar, implica em decidir por valores, posicionamentos, o que não tem sido muito expressivo
em relação ao desenvolvimento da técnica nas sociedades e em relação aos avanços que
ciência e tecnologia trouxeram à vida, a todos os seres, ao ser humano.
46
2. O QUE É NANOTECNOLOGIA
14
FEYNMAN, Richard P. “Memória: há mais espaço lá embaixo”. In. Revista Parcerias. CGEE, Brasília, n 18,
ago. 2004, p. 137-155.
47
escala humana, cujas proporções variam desde um centímetro até os vários quilômetros da
linha do horizonte, pois se trata da escala em que percebemos o mundo. Acrescentamos
ainda que a tecnologia de ponta que conhecemos funciona na microescala, equivalendo a
medidas com um pouco mais de um micrômetro.
Nós sabemos a importância da quantificação e que ela é bastante antiga. É inegável o
quanto é indispensável a medida na vida do ser humano, bem como o desenvolvimento dos
métodos de medida e as diferentes ordens de grandezas criadas, em sua relação com a ciência
e com o cotidiano.
Muito do que aqui se dirá a respeito do que é a nanotecnologia já foi e tem sido
devidamente explorado pela literatura recente. O termo nanotecnologia deriva do grego
"nannos" (νάνος), significando anão; quando é utilizado como um prefixo para algo diferente
de uma unidade de medida, como em "nanociência", nano é relacionado à nanotecnologia, ou
na escala dos nanômetros. Nesse caso, o termo nano é uma medida de grandeza usada na
ciência para designar um bilionésimo do metro, algo 50 000 vezes menor que a espessura de
um fio de cabelo. Para efeito ainda de comparação ilustrativa, a escala atômica e molecular de
uma estrutura química molecular varia de 0,1 a 1 nano. Os objetos de estudo da
nanotecnologia costumam ser medidos em nanômetros. Enquanto um milímetro, que já é
muito pequeno, “pode ser enxergado numa régua” (Gonçalves, 2003), um micrômetro (1 µm
= 1 x 10-6) corresponde a um milionésimo do metro e a um milésimo do milímetro. Mas um
nanômetro (1 nm = 1 x 10-9 m), extraordinariamente, equivale à bilionésima parte de um
metro, ou seja, a um milionésimo de milímetro ou, ainda, a um milésimo de mícron. O
nanômetro, cujo símbolo é "nm", mede, na escala de comprimento, os menores dispositivos
construídos pelo homem, em que se encontram átomos e moléculas formados, naturalmente,
numa escala nanométrica.
Para radicalizar mais um pouco, na tentativa de melhor colocar a nanotecnologia em
seu lugar e para conferir um maior destaque a estas questões, consideramos que vale a pena
recordar os parâmetros de medida. Podemos afirmar com bastante convicção, que eles não são
muito “visualizados” em nossas ações corriqueiras, a não ser nos casos específicos em que
deles precisemos para uma questão de ordem prática ou de um estudo que exija conhecê-los.
No Sistema Internacional de Medidas (SI) são usados múltiplos e divisões do metro,
conforme é indicado na Tabela 1.
48
ORDEM DE GRANDEZAS
Múltiplos e sub-múltiplos do metro
Unidade Símbolo Relação com o metro Fator pelo qual a unidade é multiplicada
Figura 1: Escala do nanômetro (nm): 1 nanômetro é o mesmo que uma bilionésima parte de um metro (1 nm =
1x10-9 m) e equivale a um milionésimo de milímetros. A nanotecnologia trabalha no nível molecular e manipula
materiais com dimensões geralmente entre 0,1 e 100 nanômetros. Leis da física que existem no mundo na escala
em que estamos familiarizados, como a gravidade, por exemplo, nessa dimensão adquirem menor importância.
Na escala nanométrica, também determinados materiais passam a se comportar diferentemente, com base nos
princípios da física quântica, distinta em vários pontos da física clássica. Assim é que propriedades térmicas,
ópticas, magnéticas e elétricas, podem ser atingidas quando certos materiais são submetidos ao processo de
miniaturização em nanopartículas, mantendo-se a mesma composição química. Do mesmo modo, reações
químicas também podem ocorrer entre diferentes elementos químicos em proporções muito menores, uma vez
que as partículas nanométricas apresentam uma área superficial específica de contato muito maior.
Fonte: Blog Conta Natura - Biologia: divulgação, política de ciência, personalidades, crítica Disponível em: <
http://contanatura.weblog.com.pt/arquivo/2006/07/nanotecnologia.html>. Acesso em 20 de março de 2007.
Criado pelo cientista japonês, Norio Taniguchi, em 1974, o termo nanotecnologia era
praticamente desconhecido na academia fora de suas áreas de abrangência mais direta, como
50
15
Greg Bear é autor dos livros Rainha dos Anjos (1990) e Marte se Move (1993).
16
Vale lembrar que cada ordem de grandeza representa uma potência de dez.
52
ou ao medo de determinada tecnologia de que a nossa escala humana não tem a “noção”.
É natural que a incerteza de natureza epistemológica nos acompanhe, afinal nem
sempre temos consciência dessa forte limitação às nossas previsões, de modo que a incerteza
é indispensável à vida humana tal como a consideramos em sua relação com o risco, não visto
apenas como um problema técnico de segurança, mas, sobretudo, como um produto social e
do modo como se organizam os valores da sociedade.
Lembramos que, no que se refere às nanopartículas e à sua observação, considerando
que o tamanho de um átomo é da ordem de um décimo de nanômetro, o trabalho com
nanotecnologia remete-se às aplicações tecnológicas de objetos e dispositivos que tenham ao
menos uma de suas dimensões físicas menor que, ou da ordem de algumas dezenas de
nanômetros, ou que uma de suas dimensões seja muito menor do que as outras duas (MELO;
PIMENTA, 2004). Do que pudemos apreender, então, além do fato de que também os efeitos
17
PASA, André. E-mail recebido em 2 de março de 2007, às 04,29h.
53
possibilidades sejam exibidos, capazes de alterar arranjos que a natureza teria produzido ou
mesmo o próprio homem. O modo conforme os átomos e as moléculas se organizam em
nanoescala determina, assim, novas propriedades mecânicas, ópticas, magnéticas etc. da
matéria, que são a base de sua aplicação tecnológica.
Figura 3: Microscópio de Força Atômica (AFM ou MFA). É possível fazer uma comparação entre o tamanho
da mão da pesquisadora e o do próprio microscópio.
Fonte: Acervo da autora. Ano: 2006.
Nesta conquista de uma riqueza de detalhes jamais antes atingida, exerceu importante
papel o microscópio de varredura por tunelamento eletrônico (scanning tuneling microscope –
STM), com altíssima resolução, no início dos anos 1980, no laboratório da IBM em Zurique
(Suíça). Criado pelo físico alemão Gerd Binnig e pelo físico suíço Heinrich Rohrer19, foi um
equipamento considerado conceitualmente tão simples quanto tecnologicamente importante
valeu aos seus inventores o Prêmio Nobel de Física de 1986. Na verdade, ele oportunizou a
mudança do modo de visualizar e de manipular os materiais, como o fazem instrumentos já
disponíveis em muitos laboratórios de pesquisa, denominados “microssondas eletrônicas de
varredura”, desenvolvidos a partir do microscópio de Binning e Roher.
Nessa nova situação, o que pode ser de certo modo original são o controle e o grau de
precisão que exigem as técnicas usadas em análises teóricas, preparação e caracterização de
materiais em escala nanométrica (como é o caso de pensar a miniaturização de dispositivos na
escala molecular). Uma das possibilidades de trabalhar as interações moleculares significa,
pois, passar a atuar na manipulação da matéria de modo semelhante ao que se faz com as
moléculas biológicas, já que a maioria dos fenômenos em biologia molecular ocorre em
nanoescala. Coisas observadas neste microscópio nada diriam especialmente para o leigo
como realidades invisíveis que são e podem, por isso mesmo, gerar uma situação de conflito
interpretativo sobre o sentido que podem assumir, face à necessidade de manter a qualidade
19
Ambos do laboratório da IBM em Zurique, Suíça, ganhadores de prêmio Nobel pelos seus méritos como
pesquisadores.
56
distante”20. Com métodos de medição próprios do ‘muito pequeno’, adequados para grandes
profundidades, com a chamada técnica de fluorescência de raios X e mediante os estudos dos
sedimentos extraídos com a perfuração, foram obtidos dados indicativos de que houve um
período de intensa estiagem, entre cerca de 800 e 1000 d.C., período este inferido por David
A. Hodell e seus colegas geólogos. Estes argumentos, reforçados pela análise dos sedimentos
do lago Yucatã, têm sido efetuados de forma persuasiva durante anos de estudos pelo
arqueólogo Richardson B. Gill, em favor do que teria provocado o colapso da grande
civilização maia21.
No segundo caso, o que chama a atenção para alguma coisa ímpar na observação do
esperma de um ouriço-do-mar, pode passar despercebido até mesmo para biólogos, embora se
trate de um procedimento simples e corriqueiro do seu cotidiano, mas isso poderia não
acontecer com alguns expectadores leigos, ao observarem os espermatozóides na lâmina de
microscopia. Eles poderiam dizer: “Magnífico, estupendo! Parecem pequenos diamantes”! E
isso de fato aconteceu com a pesquisadora, em sua primeira observação dessas células,
quando em prática de laboratório, durante a freqüência do curso de bacharelado em Ciências
Biológicas. O interessante é que na visão macro, neste esperma é marcadamente visível uma
secreção homogênea, associada a algo biológico; não há como supor que seja sua composição
material que possa dirigir a atenção movida por um interesse estético. A própria forma
biológica se empobrece quando não se aguça mais e mais o olhar para descobrir a riqueza dos
fenômenos da natureza orgânica (e inorgânica) e penetrar cada vez mais a fundo nas
particularidades e nos detalhes do pequeno, da vida e de suas condições.
Quanto à possível aproximação entre pixels e nanotubos, nada tem de extraordinário.
Ora, vários pixels, termo que vem da abreviação do termo em inglês “pictures elements”, ou
elementos da fotografia (digital), em sua “junção” formam uma imagem inteira.
O pixel é então o que se considera o menor elemento em um dispositivo de exibição
(como por exemplo, um monitor de um computador), ao qual é possível atribuir-se uma cor.
Esta unidade mínima de captura de luz, verdadeiras fotocélulas que conseguem transformar
luz em sinais elétricos, sensibiliza um sensor de captura digital que, a exemplo do olho
humano, é composto de milhões de pequenos sensores que capturam os pixels, logo, os
20
PETERSON. Larry C.; HAUG Gerald H. O declínio dos Maias. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/sciam/conteudo/materia/materia_105.html. Acesso em: 21 de janeiro de 2007.
Documentário: Apocalipses da Antigüidade – III - O colapso dos Mayas. Discovery. 20 de janeiro de 2007. 20
horas.
21
Ibid.
58
menores pontos que formam uma imagem digital. Cada um desses pontos possui a informação
que determina sua cor. Na verdade, este conjunto de pontos é organizado no formato de uma
matriz, sendo que esta matriz é que forma a imagem e determina a resolução desta imagem.
Assim, é mediante este “mapa” constituído de muitos deles que se forma a imagem inteira.
Atribui-se que os pixels têm o formato quadrado, correspondendo ao formato desses
minúsculos sensores que capturam a luz. Explicando melhor, como cada pixel é capturado por
um pequeno sensor quadrado, tem, portanto, o formato quadrado. Isto explica o que acontece
quando ampliamos demais uma fotografia, nós a vemos realmente num aspecto de grãozinhos
também quadrados. Com efeito, pode-se definir uma imagem fotográfica digital como uma
ilusão de ótica pelo agrupamento muito coeso desses pixels, conjunto esse percebido como
uma imagem sem arestas pela vista humana. Se agruparmos bastante esses pixels, a fotografia
parecerá melhor e mais nítida; se espalharmos esses pixels (ampliando a foto), a imagem
parecerá pior e menos nítida. Assim quanto mais ampliarmos a foto, melhor veremos os pixels
e pior a qualidade da imagem, e desse modo, quanto mais sensores existem num dispositivo,
maior é a quantidade de pixels formada, maior é a resolução e também maior é o tamanho
com que uma imagem pode ser ampliada sem que apareçam os contornos quadrados dos
pixels que, se surgem para nosso olhar, fazem decair a qualidade do que vemos.
Devido ao limite visual humano, com a perda visual da qualidade da imagem - ou seja,
com menos pixels, percebemos que estamos sendo visualmente "iludidos". Em outras
palavras, quando o assunto é pixels, tamanho é documento, sim! Da mesma forma como
quando se fala em nanotubos de carbono, conhecidos pelo mundo científico há cerca de 15
anos, tamanho é documento, sim! É ai que podemos encontrar a relação entre um e outro. Isto
está bem claro na reportagem Antenas de nanotubos de carbono para telefones celulares e
TVs, do site Inovação Tecnológica22: “Conjuntos de nanotubos também poderão processar
dados de imagens em cada pixel, permitindo a melhoria das imagens de televisores”. Cada
pixel é construído com nanotubos de carbono, que possuem dimensões nanométricas23. Numa
combinação sofisticada e eficiente de uma série de dispositivos avançados com pixels e
nanotubos de carbono integrados ao microscópio, incorporar-se-ão tratamentos de imagens
pela combinação de detectores mais sensitivos, obtendo-se imagens de dimensões
22
Revista Diversa. Universidade Federal de Minas Gerais. Ano 5 - nº. 10 - outubro de 2006. Disponível em:
<http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=010160040205>. Acesso em: 10 de março
de 2006.
23
Para maiores detalhes a este respeito, sugerimos a leitura do artigo Nanotecnologia: Viagem ao país dos
"nanos". Disponível em: < http://www.ufmg.br/diversa/10/nanotecnologia.html>. Acesso em 10 de novembro
de 2006.
59
24
Indicamos um importante artigo a este respeito: Novas e originais nanoestruturas: origâmis de DNA, consta
no site do LQES (Laboratório de Química do Estado Sólido): Disponível em:
<http://lqes.iqm.unicamp.br/canal_cientifico/lqes_news/lqes_news_cit/lqes_news_2006/lqes_news_novidades_7
56.html>. Aceso em: 20 de novembro de 2007.
60
compatíveis com o meio ao qual estarão expostas, apresentam uma área de contato muito
maior.
Todos os trabalhos de pesquisa dependem de instrumentos muito especializados para
operarem na escala do nanômetro, como o luminômetro25, mostrado na Figura 4, aparelho
com o qual a pesquisadora entrou em contato pela primeira vez. De acordo com a professora
Tânia B. C. Pasa26, entrevistada na UFSC, nos anos de 2006 e 2007, as lipossomas ou
vesículas em escala nanométrica produzidas artificialmente, têm uma biocompatibilidade
muito grande. Neste aspecto, para a professora Maria Helena Andrade Santana (2005), da
Unicamp, as cápsulas feitas de lipídios são outra forma de administrar fármacos com
eficiência, como se fossem “bolinhas de gordura em torno do fármaco”. Usando lipídios
semelhantes a nossa membrana celular, adicionando ligantes específicos a cada lipossoma,
permite-se sua conexão a receptores de células que se pretende atingir, sendo possível ‘imitar’
a membrana e ‘burlar’ o sistema imunológico, colocando o fármaco em seu interior e
direcionando-o para onde for desejado. Entre os benefícios do nanofármaco, pois, estão a
diminuição da dose recomendada e o aumento da potência do princípio ativo e do tempo de
duração do efeito terapêutico.
Figura 4: Luminômetro.
Fonte: Acervo da autora.
25
O luminômetro é um aparelho de última geração que é utilizado para a medição e quantificação de luz. Faz a
leitura dos microorganismos encontrados na superfície da amostra a ser analisada, mostrando se está no nível
aceitável ou não. Aplicações potenciais podem ser citadas: estudos da membrana celular e tecnologia de
produção de membranas “artificiais” biocompatíveis (nanotecnologia molecular), para otimizar as características
da membrana (a fotografia mostrada foi obtida em visita da pesquisadora ao Departamento de Farmácia da
UFSC, no ano de 2006).
26
Tânia Beatriz Creczynski Pasa pertence ao Centro de Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação em
Farmácia, da UFSC, trabalha com pesquisa relacionada à nanotecnologia (sistemas biomiméticos) que envolve
estudos com lipossomos e membranas lipídicas imobilizadas em suportes sólidos, materiais que podem ter
aplicação no desenvolvimento de estruturas para a liberação controlada de fármacos e de biosensores. As
nanopartículas lipídicas, semelhantes às células, em geral são produzidas com matéria-prima de origem sintética
ou extraída de soja ou ovo. Os lipossomas podem transportar fármacos e entregá-los preferencialmente na região
acometida pela doença. Enfatizamos que a participação desta professora foi essencial à realização desta pesquisa.
61
Isto é, a nanotecnologia, por manipular átomos, representa o limite final para o projeto e
30
O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), com sede em Campinas, que trabalha com a luz síncrotron
(intensa radiação eletromagnética produzida por elétrons de alta energia num acelerador de partículas), para
descobrir novas propriedades físicas, químicas e biológicas existentes nos componentes básicos de todos os
materiais, ou seja, átomos e moléculas, é considerado o único deste gênero, existente no Hemisfério Sul. Desde
1987, o LNLS vinha intentando realizar o ambicioso projeto de colocar o Brasil no seleto grupo de países
capazes de produzir luz síncrotron, objetivo já alcançado. Segundo informa no site do respectivo laboratório,
desde julho de 1997, centenas de pesquisadores, do Brasil e do Exterior, já utilizam a fonte brasileira de luz
síncrotron para fazer pesquisas que visam desbravar novas fronteiras de conhecimento sobre os átomos e as
moléculas. Para maiores informações, ver: Isto é o LNLS. Disponível em:
<http://www.lnls.br/lnls/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=13&sid=1>. Acesso em: 2 de janeiro de 2006.
63
31
Pesquisadores do IFGW que ganharam capas em
publicações científicas também recorrem a modelos de 100 anos atrás: Darwin inspira soluções em
nanotecnologia. Disponível em:
<http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/maio2004/ju250pag09.html>. Acesso em: 21 de julho de
2005.
66
Figura 5: Modelização de um nanotubo. Os nanotubos foram descobertos em 1991 pelo pesquisador japonês
Sumio Iijima. Estas estruturas formam um dos quatro estados organizados do carbono, juntamente
com a grafite, o diamante e os fulerenos (moléculas que apresentam a forma de uma bola de futebol).
Os nanotubos de carbono são 100 mil vezes mais finos que um fio de cabelo e invisíveis até para
microscópios ópticos. Mas possuem a maior resistência mecânica dentre todos os materiais
conhecidos, não quebrando nem deformando quando são dobrados ou submetidos à alta pressão.
Fonte: (imagem trabalhada pela autora). Portal Laboratórios Virtuais de Processos Químicos. Disponível em:
http://vega.eq.uc.pt/siteJoomla/index.php?option=com_content&task=view&id=124&Itemid=2. Acesso
em: 20 de novembro de 2007.
O pesquisador considera ainda que: “Estamos a meio caminho entre esses dois
mundos, oferecendo aos teóricos a oportunidade de desenvolver novas ferramentas. A
biologia tem sido bom lugar para se inspirar”. Vale acrescentar que, nesta mesma reportagem,
consta que
O modelo da gravinha para as nanomolas, que Alexandre da Fonseca adaptou rapidamente,
apresentou diferenças de apenas 5% entre os dados experimentais da biologia e o que foi
calculado no computador. “Imitando a natureza para desenhar alguns materiais, acabamos por
resolver um problema de propriedades elásticas de baixa dimensionalidade”.
Podemos falar aqui do grafite, a exemplo do que conhecemos nos lápis que usamos
para escrever (Ver Figura 7), que é constituído por folhas de grafeno (estruturas planas de
carbono, da espessura de um átomo, em que cada carbono se liga a três vizinhos, resultando
numa imagem semelhante a uma colméia de abelhas, com seus hexágonos. A sobreposição
das folhas de grafeno, como se fossem um maço de papéis, forma o grafite. No fulereno32
(terceira forma mais estável do carbono, após o diamante e o grafite) mais conhecido, o C60,
as ligações atômicas estão organizadas em superfícies curvas semelhantes a uma bola de
futebol. Os nanotubos também resultam da organização dos átomos de carbonos em folhas,
como no grafite; mas em lugar de ficarem empilhadas, cada folha se enrola num cilindro. O
tubo que resulta de uma só folha, é chamado de nanotubo de parede única. Quando várias
folhas se enrolam de maneira concêntrica, tem-se o nanotubo de parede múltipla.
32
Atribui-se a descoberta dos fulerenos, em 1985, aos pesquisadores norte-americanos, Harold Kroto,
inglês, e Richard Smalley e Robert Curi.
70
Figura 7: Grafite Faber Castell – Lápis com nanopartículas organometálicas adicionadas, com mais resistência,
maciez e intensidade na cor33. No lápis, o Carbono, sob a forma de grafite, é macio, maleável e frágil.
Mas o nanotubo do Carbono (que ocorre nas conhecidas formas de grafite, como a dos bicos de lápis e
lapiseiras) é duro como aço.
Fonte: Acervo da pesquisadora.
33
INICIATIVAS DO MCT EM NANOTECNOLOGIA - PROGRAMA NACIONAL DE
NANOTECNOLOGIA. II WORKSHOP NANOTECNOLOGIA AEROESPACIAL. 16 a 17 de outubro de 2006.
SÃO JOSÉ DOS CAMPOS. Disponível em:
<http://www.ieav.cta.br/nanoaeroespacial2006/pdf_arquivos/1610%201130%20MCT%20-
%20Nanotecnologia.pdf.
71
na área da implantodontia (Ver Figuras 8, 9 e 10), em que as pessoas procuram cada vez mais,
além da saúde bucal, um sorriso mais perfeito.
Figura 8: In-Ceram: Massa cerâmica de infiltração livre da utilização de metal, à base de nanopartículas de
porcelana, que pode ser de zircônia ou alumina. Ela possui melhoria de resistência, acabamento,
forma, contorno, polimento, qualidade, cimentação não adesiva, baixo grau de condutividade térmica,
translucidez, pouco peso, estética etc. Minimiza ou mesmo exclui os problemas convencionais das
próteses metalo-cerâmicas, tais como: bordas metálicas visíveis, retração da gengiva, deficiências nas
ligas de metal e cerâmica, corrosão, intolerância aos metais, entre outros. Antes, as coroas eram feitas
de macro e micropartículas.
Fonte: Acervo da pesquisadora. Colaboração do odontólogo e implantologista, Jatir Moraes.
Figura 9: Dente antes da instalação de implante com In-Ceram (sistemas cerâmicos mais utilizados para a
construção de coroas).
Fonte: Acervo da pesquisadora. Colaboração do odontólogo e implantologista, Jatir Moraes.
72
Figura 10: Coroa de In-Ceram (porcelana). Mesmo dente anterior, confeccionado com acabamento de In-Ceram,
cujas propriedades óticas e mecânicas são melhores. Uniformidade gengival e fechamento de espaço.
Fonte: Acervo da pesquisadora. Colaboração do odontólogo e implantologista, Jatir Moraes.
Esses são apenas alguns aspectos referentes ao assunto que estamos a tratar e que nos
fazem constatar que há idéias atuais que lembram as de tempos remotos, como as dos velhos
alquimistas que trabalhavam com os elementos, não pelo que representavam as substâncias
em si, mas sim por suas propriedades materiais que poderiam ser retiradas ou acrescentadas às
substâncias mediante seus princípios mutáveis e imutáveis, suas propriedades ativas e
passivas. De toda forma, é importante ressaltar que essa associação contribuiu para a
formulação teórica do caminho seguido, mas se trata de uma aproximação invocada não para
afirmar empiristicamente que “onde há poeira, há ácaros!”, mas para que na presente pesquisa
se produza um trabalho reflexivo e apto a servir de importante meio para a viabilização de
novas idéias, novas discussões e novos fóruns temáticos sobre o assunto ‘nanotecnologia’.
Neste aspecto particular, perante a praticidade e o modo descomplicado com que
Feynmann se colocou para apresentar a nanotecnologia, desde que começou a divulgá-la,
sugerindo que os átomos poderiam ser organizados, conforme a necessidade, desde que não
houvesse violações às leis da natureza, materiais com propriedades inteiramente novas
poderiam ser criados, ainda neste capítulo buscamos ilustrar algumas definições gerais
encontradas, importantes e pronunciadas por pessoas que entendem bem do assunto, para
preparar o terreno às nossas considerações sobre as respostas de nossos pesquisados.
73
Richard W. Siegel34, outro dos pioneiros nos estudos nanotecnológicos, assim entende:
Eric Drexler (Apud REGIS, 1997) 35, autor de Engines of Creation (1986), considera
que a nanotecnologia diz respeito às construções “átomo por átomo”. Segundo sua proposta,
as coisas seriam feitas manipulando-se os átomos e moléculas individualmente, trabalhando
com estes um a um, posicionando-os de forma precisa, alinhando-os um por um,
repetidamente, até que um número suficiente deles ficasse acumulado formando uma entidade
de grande escala, útil, como, por exemplo, um automóvel ou uma nave espacial. A
nanotecnologia é a capacidade projetada de fazer coisas do ‘fundo para cima’, usando técnicas
e ferramentas que estão, hoje, sendo desenvolvidas para colocar cada átomo e molécula num
lugar desejado, baseando-se na manipulação de átomos individuais e moléculas na construção
de estruturas complexas, com especificações atômicas. Drexler introduziu o termo
nanotecnologia em 1986. Considerou o termo “nano” como um prefixo que quer dizer um
bilionésimo de alguma grandeza, e que se falarmos do padrão de medida metro, tratamos,
então, do nanômetro, algo muito pequeno, aproximando-se das dimensões dos átomos que
formam toda a matéria que conhecemos, dando-nos a idéia comparativa de que um simples fio
de cabelo tem o diâmetro de aproximadamente 30.000 nanômetros e de um átomo, que possui
em média 0,2 nanômetros.
Algo dessa compreensão se encontra em Richard Palmer36, Diretor do Birmingham's
Nanoscale Physics Research Laboratory, ao dizer que:
34
Diretor do Centro de Nanotecnologia de Rensselaer. Pioneer of Nanotechnology-Nanomaterials, Nobel Prize
in 1996. Nanostructure Science and Technology.
35
Kin Eric Drexler é o Fundador e Presidente do Foresight Institute.
36
Mac Farlane John. O que é nanotecnologia? Trad. Karen Shishiptorova. Universia Science. Disponível em:
<http://www.universiabrasil.net/nextwave/ver_materia.jsp?materia=209&subcanal=1>. Acesso em: 02 jun.
2005.
74
Polemizando algumas concepções, Bill Joy (2000) afirma que nanotecnologia é uma:
37
National Science Foundation NSET Workshop report Societal Implications of Nanoscience and
Nanotechnology. Edited by Mihail C. Rocco and William Sims Bainbridge, Mach 2001, Arlington, Virginia,
USA. Disponível no endereço: www.wtec.org/loyola/nano/NSET.Societal.Implications. Este Relatório aborda a
nanotecnologia em sua relação com a indústria, a medicina, a sustentabilidade, a exploração espacial, a
segurança, como também suas implicações sociais, recomendações, potencialidades, implicações educacionais,
éticas, legais e culturais.
75
miniaturização, mas a uma escala qualitativamente nova. São “coisas na escala de nanômetro”
ou “coisas na escala atômica”, sem ser uma resposta completa, pois, como uma nova
disciplina de engenharia, nanotecnologia deve significar mais que a capacidade de construir
coisas com precisão de átomo-escala. Em síntese, conforme este documento, a nanotecnologia
é uma nova corrente, uma ‘Nova Coisa’ em ciência, uma área que promete novo
entendimento da natureza e do uso em construir as tecnologias que mudarão o mundo.
No rumo dessas considerações do Relatório da Fundação Nacional de Ciência, parece
seguir a concepção expressada pelo Center for Responsible Nanotechnology-CRN38, para o
qual nanotecnologia:
Nesta direção, Mike Treder39, Diretor Executivo do CRN, diz que em nanotecnologia:
38
“O que é a nanotecnologia? Por que é preciso um uso responsável?” Center for Responsible Nanotechnology-
CRN. Disponível em
<<http://www.euroresidentes.com/futuro/nanotecnologia/nanotecnologia_responsavel/introducao_nanotecnologi
a.htm>. Acesso em: 12 jul. 2004.
39
Treder, M. Apud Carlos Brazil. “Debate sobre nanotecnologia depende de abertura e cooperação”. Seminário
Internacional Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente debate desdobramentos da nova tecnologia.
Universia. Publicado em 19/10/2004. Disponível em
<<http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?id=5490>>. Acesso em: 15 jan. 2005.
40
Money, P. Apud Renata Aquino. “FSM: Nanomonstros fazedores de hambúrguer dão gosto amargo à
nanotecnologia”. Magnet. Disponível em <<http://www.magnet.com.br/bits/cosmonet/2003/01/0037>>. Acesso
em 04 abr. 2005.
76
[...] los conceptos del diseño con la precisión, durabilidad y velocidad. [...] la
nanotecnología es, básicamente, un experimento mental, un juego de la imaginación
que muestra cómo construir mundos liberando la mente de la corrosión de la
inmediatez y de los modelos y prácticas utilizadas a diario.
41
Merkle, R. Entrevista concedida a John Macfarlane. Disponível em:
<<http://www.universiabrasil.net/nextwave/ver_materia.jsp?materia=209&subcanal=1>>. Acesso em: 04 abr.
2005. Ralph Merkle é pesquisador de nanotecnologia do Centro de Pesquisa Xerox em Palo Alto. Ele também é
editor executivo do periódico Nanotechnology e o diretor do Foresight Institute, uma organização sem fins
lucrativos cujo propósito é fornecer orientação sobre tecnologias emergente.
42
Ibid. Richard Palmer é professor de física experimental da Birmingham University e diretor do Nanoscale
Physics Research Laboratory.
43
Ibid. Aristides Requicha é professor de ciência de computação e de engenharia elétrica, e diretor do
Programmable Automation Laboratory e do Laboratory for Molecular Robotics da University of Southern
California em Los Angeles.
44
Alejandro Gustavo Piscitelli é professor de Processamento de Dados, Telemática e Informática, na Faculdade
Latinoamericana de Ciências Sociais, em Buenos Aires.
77
Cylon Gonçalves da Silva (2003, p. 7)46, numa abordagem mais etimológica para
explicar a nanotecnologia, considera que:
45
PROGRAMA NACIONAL DE P&D EM NANOCIÊNCIAS E NANOTECNOLOGIAS. Documento
preliminar para discussão, do Grupo de Articulação criado pelo MCT/CNPq a partir da reunião realizada em
Brasília, CNPq, 22/11/2000. Brasília, Abril 2001. Disponível em: <http://www.cnpq.br/noticias/nano.doc>>.
Acesso em: 12 dez. 2002.
46
Cylon Gonçalves da Silva é professor emérito da Unicamp e Secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e
Desenvolvimento do MCT Ex-Diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron.
47
Henrique Eisi Toma é professor do Instituto de Química da USP e Pesquisador do CNPq.
78
Idéias afins também encontramos em Paulo César Morais49. Sua abordagem, porém,
versa sobre a geração de produtos e a exploração comercial e limites da pesquisa brasileira:
48
Eronides F. da Silva Jr. é professor do Departamento de Física, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
49
Membro do Núcleo de Física Aplicada do Instituto de Física da UnB (Universidade de Brasília).
50
Disponível em: <<http://www.comciencia.br/reportagens/nanotecnologia/nano15.htm>>. Acessado em 15
mar. 2004.
51
Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/nanotecnologia/nano18.htm>. Acesso em: 2 mar.
2005.
79
52
Secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia/MCT, entre 2003 a janeiro de 2004. Disponível
em: <http://www.unicamp.br/unicamp/canal_aberto/clipping/abril2003/clipping030429_folha.html>. Acessado
em: 12 jun. 2005.
53
Disponível em: <http://www. comciencia.br/entrevistas/nanotecnologia/leite.htm>. Acessado em 25 jun. 2004.
54
Disponível em: <http://www.comciencia.br/carta/nanotecnologia.htm>>. Acessado em: 25 mai. 2004.
80
suposições, que foram enriquecidas com o esforçado e extenuante estudo que fizemos, com
base no conhecimento propiciado pelos campos e conceitos da física e da matemática,
conforme mostramos no próximo capítulo.
81
para explicarmos o que significa este campo, utilizamos uma analogia feita por Feynman,
Nobel de física em 1965:
[...] se estivermos em uma piscina e uma rolha estiver flutuando bem perto, poderemos
deslocá-la “diretamente” impelindo a água com outra rolha. Se olhássemos apenas para as duas
rolhas, tudo que veríamos seria que uma se deslocou imediatamente em resposta ao
movimento da outra – há um certo tipo de “interação” entre elas. Claro está que o que
realmente fazemos é mexer a água, e esta mexe então a outra rolha. Poderíamos formular uma
“lei” de que, se impelíssemos a água um pouco, um objeto próximo na água se deslocaria. Se
estivesse mais distante, é claro que a segunda rolha mal se moveria, pois deslocamos a água
localmente. Por outro lado, se agitarmos a rolha, um novo fenômeno estará envolvido em que o
movimento da água desloca a água ali, etc. e ondas se afastam; assim, pela agitação, há uma
influência de muito maior alcance, uma influência oscilatória que não pode ser entendida com
base na interação direta. Portanto, a idéia de interação direta deve ser substituída pela
existência da água ou, no caso elétrico, pelo que denominamos campo eletromagnético
(FEYNMAN, 2004, p. 60).
É isso que torna a física difícil – e muito interessante. É difícil porque o modo como as coisas
se comportam em uma escala pequena é totalmente “antinatural”; não temos experiência direta
com isso. As coisas não se comportam como nada que conhecemos, e esse comportamento só
pode ser descrito analiticamente. É difícil e requer muita imaginação (Ibid).
Disso resulta que, diferentemente da física clássica, não prevalece mais a idéia de que
uma partícula tenha uma localização e velocidade definida, não se podendo determinar onde
algo está e nem a velocidade com que se move, pois estas partículas estão em constante
ziguezague, embora as incertezas de posição e de velocidade sejam complementares. Além
disso, acrescenta Feynman: “não é possível prever exatamente o que acontecerá em qualquer
83
[...] a natureza, como a entendemos hoje, comporta-se de tal modo que é fundamentalmente
impossível fazer uma previsão exata do que acontecerá exatamente em uma dada experiência.
Trata-se de algo terrível; na verdade, os filósofos afirmaram antes que um dos requisitos
fundamentais da ciência é que, sempre que se estabelecem as mesmas condições, deve ocorrer
a mesma coisa. Isto simplesmente não é verdade, não é uma condição fundamental da ciência.
O fato é que a mesma coisa não acontece, que só podemos encontrar uma média,
estatisticamente, do que acontece.
Não resta dúvida de que esse ponto é bastante paradoxal, porque desmonta muito do
que foi concebido a respeito de que duas ou mais experiências se repetiriam do mesmo jeito,
ainda que em lugares diferentes, produzindo os mesmos resultados. E é o fato de pensar que
certos acontecimentos se repetem do mesmo modo em ambientes distintos (ou pelo menos se
pensava que assim o seria) que gera a formulação de alguma lei geral; ou seja, a maçã que
caiu na cabeça do cientista e matemático inglês Sir Isaac Newton, com a física clássica, em
sua teoria da gravitação universal, cai do mesmo modo em todas as cabeças, em qualquer
lugar? Para entender o mundo moderno e o contemporâneo, é preciso ir além da física clássica
de Isaac Newton e conhecer mais sobre a física quântica de hoje. É preciso saber mais sobre o
princípio da incerteza (que não deve ser entendido como uma relação de incerteza, mas de
indeterminação ou indefinição) proposto por Heisenberg (seguindo a onda filosófica anti-
realista positivista da época, tentando escapar da questão da dualidade onda-partícula, levando
em conta que Bohr havia procurado justificar, por meio de argumentos diversos, a ruptura
com a perspectiva realista típica da ciência), que segundo Feynman (Ibid, p. 144) descreve
uma característica básica da natureza. Sobre isto, a que fique melhor esclarecido, já que a
mecânica quântica foi um palco imenso de polêmicas, enfatizamos o que diz o professor
Silvio Seno Chibeni (2001), da Unicamp (SP):
Uma grandeza só terá significado físico se pudermos atribuir valores a ela. É isso que permitirá
colocar a noção em correspondência com os fenômenos, com a leitura de aparelhos de medida.
Neste ponto surge a primeira e mais fundamental dificuldade interpretativa na MQ: Dados um
estado quântico e uma grandeza física quaisquer, em geral o formalismo quântico
simplesmente não atribui um valor à grandeza! (Dissemos "em geral" porque há exceções.) O
problema é agravado pelo fato de que mesmo quando o estado não fornece o valor de uma
grandeza física, medidas dessa grandeza sobre o objeto são inteiramente possíveis e dão
valores bem definidos. Parece, então, que a teoria está falhando em uma de suas funções
essenciais, a predição dos fenômenos, dos resultados de medida. Como interpretar essa
situação?
E é com base nisso, que existem duas posições possíveis: a) a primeira já vista de
Heisenberg, Bohr e outros mais, para quem os valores dessas grandezas, a que se refere o
professor Silvio Seno Chibeni, não existem, ou não estão definidos antes que se efetue a
84
medida, de modo que a medida é que criaria ou tornaria definidos os valores, mas sem ser
propriamente uma medida, no sentido usual do termo, e, sim, a mera revelação de uma
propriedade preexistente do objeto investigado; b) a outra versão da teoria quântica, devida a
Schrödinger, que queria mostrar que a mecânica quântica é uma teoria incompleta (argumento
hoje conhecido pelo nome pitoresco de “gato de Schrödinger”), e ao também chamado
“argumento de EPR” (Einstein, Podolsky e Rosen). Ambas as posições buscam indicar que a
descrição quântica das propriedades dos objetos é incompleta. Para nós, a questão se torna
mais complexa quando Feynman (2004, p.149) argumenta que o princípio da incerteza
“protege” a mecânica quântica, ao modo de Heisenberg, defender que se fosse possível medir
com precisão o momento e a posição, isto implicaria no próprio desmoronamento da
mecânica quântica. O físico considera que
A teoria completa da mecânica quântica, que usamos agora para descrever os átomos e, na
verdade, toda a matéria, depende da correção do princípio da incerteza. O imenso sucesso da
mecânica quântica reforça nossa crença no princípio da incerteza. Mas se fosse descoberta uma
forma de “derrotar” o princípio da incerteza, a mecânica quântica forneceria resultados
inconsistentes e teria de ser descartada como uma teoria válida da natureza (Feynman, p. 144).
E diante de muitas tentativas que foram feitas com qualquer precisão maior para
descobrir formas de medir a posição e o momento de algo, sem que isso se tenha conseguido,
Feynman conclui que a mecânica quântica segue preservando sua “perigosa”, mas correta
existência. Considerando o que caracteriza a mecânica quântica, a nanotecnologia é a
capacidade potencial de criar coisas a partir do “mais pequeno”, em que a física, a química e a
biologia se aglutinam para criar a “nanociência”. Usando as técnicas e ferramentas que estão
sendo desenvolvidas nos dias de hoje para colocar cada átomo e cada molécula no lugar
desejado, de certo modo faz com que quase qualquer estrutura seja consistente com as leis da
física e da química permitindo especificá-la com detalhe atômico, é de onde flui a ciência da
nanotecnologia (MACFARLANE, [s.d]).
O campo da nanociência e nanotecnologia vem recebendo uma atenção especial em
várias áreas do conhecimento, como Física, Química, Biologia e Engenharia. Este grande
interesse pode ser atribuído ao fato de que sistemas físicos apresentam novos comportamentos
quando manipulados em escalas nanométricas, segundo o professor Henrique Eisi Toma
(2004), do Instituto de Química da USP, que têm sua maior expressão nos sistemas
biológicos, onde sistemas moleculares organizados compõem as nanomáquinas que sustentam
a vida. O químico argumenta que, entrando nesse mundo, percebe-se que as máquinas mais
evoluídas se tornarão tão pequenas quanto as moléculas enquanto que a eletrônica será
transportada para uma dimensão mil vezes menor que a atual. Inspiradas nesses sistemas
85
podem ser exploradas novas estratégias em nanotecnologia. Richard Feynman disse muito
incisivamente que
Os princípios da física, pelo que eu posso perceber, não falam contra a possibilidade de
manipular as coisas átomo por átomo. Não seria uma violação da lei; é algo que, teoricamente
pode ser feito mas que, na prática, nunca foi levado a cabo porque somos grandes demais55
Ainda que reconheçamos que a mecânica quântica é uma forma completamente nova
de ver o mundo em relação à física clássica, a matemática e a física básica estiveram sempre
muito entrelaçadas como instrumentos poderosíssimos na pesquisa científica e para os
avanços que foram dados com os “elementos de realidade” dessa nova forma (quântica) e seu
status, dando origem a novos caminhos que proporcionam uma visão de natureza bem
diferente da dos gregos e dos medievais. Também conta muito o que a física hoje alcançou
para o conhecimento de seu próprio campo e o conhecimento em geral, e a dar sua
contribuição à matemática para que consigamos resolver melhor um velho impasse que existe.
Trata-se de quando nos debatemos a tentar saber como é possível que a matemática, também
uma elaboração do pensamento humano, mas que é independente da experiência, seja tão
admiravelmente apropriada para os objetos da realidade. Apontamos a direção que Paul Dirac
(Apud FLEMING, 2002) concede à matemática um indispensável papel, alegando que um
livro na nova física, se não puramente descritivo do trabalho experimental, deve ser
essencialmente matemático. Mesmo assim, a matemática é só um instrumento e há que
aprender a manter as idéias físicas na mente de alguém sem referência à forma matemática.
Conforme está expresso no prefácio do livro de sua autoria, “Principles of Quantum
Mechanics”, publicado em 1930, que aborda a Mecânica Quântica por ele desenvolvida, Dirac
(Ibid., 2002) diz que
A book on the new physics, if not purely descriptive of experimental work, must be essentially
mathematical. All the same the mathematics is only a tool and one should learn to hold the
physical ideas in one's mind without reference to the mathematical form.
Já bem definido por Galileu, a física não é matemática, nem faria sentido, pois
naquela época a física era uma coisa só. Antes mesmo do filósofo de olhos de luneta, o papel
essencial da linguagem matemática, considerando aí a geometria e a aritmética, era o de um
instrumento eminentemente organizador:
55
“Introdução à nanotecnologia. O que é a nanotecnologia?” (2000). Centro de Nanotecnologia Responsável:
CRN. Disponível em:
<http://www.euroresidentes.com/futuro/nanotecnologia/nanotecnologia_responsavel/introducao_nanotecnologia.
htm>. Acesso em: 13 de abril de 2006.
86
Isaac Newton, inventando a física teórica, deu à matemática um novo papel na física.
Enquanto, antes dele, a linguagem matemática tinha principalmente um papel organizador, a
partir de Newton passou a ter um poder preditivo: passa-se a usar a matemática para investigar
a totalidade das previsões de uma teoria. No entanto, mesmo aí, física não é matemática (Ibid.).
informações de geração à geração). Ao fazer esta abordagem sinalizou aos físicos que chegara
o momento de considerarem no seu trabalho os problemas biológicos, alegando que os seres
vivos podiam equivaler a sistemas físicos.
Mas há algo que nos chama a atenção na discussão sobre O que é vida - que
trouxemos à tona e que queremos vincular com o percurso traçado para dar conta de uma
questão que é tão importante em seu aspecto singular quanto àquela da nanotecnologia. É que,
ao tratar da ordem a partir da ordem, ter por preocupação, também, o tema da ordem a partir
da desordem e a questão de Por que são os átomos tão pequenos”, reacende o retrato
matemático e físico que emerge dos cálculos implicados nas relações entre átomos, tamanho
do átomo e dimensões do gene, partículas, agregado de milhares de átomos e precedente
análise das propriedades dos átomos. Suas considerações sobre a problemática do
enfrentamento da célula face à existência de genes, por exemplo, com tamanho estimado em
cerca de mil átomos, como no caso das alterações resultantes de mutações ocorridas na mosca
da fruta, foi culminar em trabalhos com a estrutura do DNA (Ver Figua 11) e na biologia
molecular.
Figura 11: Esqueleto estrutural do DNA: Consiste em duas cadeias helicoidais, enroladas uma ao redor da outra,
formando uma dupla hélice que gira ao longo de um mesmo eixo imaginário, mostrando-se os
parámetros de uma geometria perfeita, a inspirar as nanomáquinas. Todos os seres vivos são
constituídos então de verdadeiras nanomáquinas moleculares (DNA, RNA, ribossomos etc.), que
funcionam em escala atômica e coordenam os átomos e as moléculas, de maneira extremamente
precisa, com muito mais sucesso. A equipe do professor Ron Naaman, do Instituto Weizmann,
Alemanha, construiu Nanotransistores com DNA e nanotubos de carbono (Disponivel em:
<http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=010165041229>. Acesso em
12 de outubro de 2007). Vale lembrar que as propriedades de um átomo de carbono são as mesmas,
independente de ele estar dentro de uma molécula ou de um nanotubo.
Fonte: (imagens trabalhada pela autora) Structural Biology Lab. Disponível em
<www.sinica.edu.tw/~wanglab/research_sac7d.htm>. Acesso em: 12 de novembro de 2006.
56
Na epistemología, um axioma é uma “verdade evidente”, que não admite demonstração mediante a intuicão
racional e sobre a qual se sustenta o resto do conhecimento, ou sobre a qual se constroem outros conhecimentos.
Nem todos os epistemólogos estão de acordo que os axiomas existam dessa maneira. Na matemática, um
axioma não é necessariamente uma verdade evidente, mas uma expressão lógica utilizada em uma dedução para
se chegar a uma conclusão. Em matemática se distinguem dois tipos de axiomas: axiomas lógicos e axiomas no-
lógicos.
90
hoje o filósofo que individualmente mais contribuiu para o progresso das ciências exatas. E
isto só foi conseguido mediante a álgebra como princípio unificador.
São já esforços matemáticos com o intuito de mostrar como se comporta uma
definição de “verdade” aplicada a proferimentos, a argumentos e a proposições, que melhor
descreve o espaço real em que nós existimos, melhor dizendo, nossa “versão” de natureza.
Geometrias de novas dimensões, as consideradas “não-euclidianas”, começaram a expressar-
se a partir da Teoria da Relatividade (na visão relativista, o velho espaço de três dimensões
tem de ser substituído por um novo espaço-tempo, de quatro dimensões e, além disso, a
geometria desse espaço-tempo não é euclidiana, e sim minkowskiana) e da Mecânica
Quântica, a dizer-se que elas contemplam a possibilidade de transformarem radicalmente a
concepção do homem em relação ao mundo.
Citamos algumas geometrias que foram construindo a vida e o mundo: Geometria
Minkowskiana (de Hermann Minkowski), Geometria Fractal (de Benoît B. Mandelbrot);
Geometria Hiperbólica (creditada a Carl Friedrich Gauss, Johann Bolyai, Nikolai Ivanovich
Lobachevsky e Jules Henri Poincaré57); Geometria Elíptica ou Riemanniana (de Georg
Friedrich Bernhard Riemann); Geometria Algébrica; Geometria Analítica; Geometria dos
“fulerenos” ou “buckybolas”. Com relação a esta última, assinalamos que os fulerenos
lembram as cúpulas ou domos geodésicos (abóbada hemisférica ou esferóide), criados pelo
arquiteto Richard [“Bucky”] Fuller, que são estruturas que se baseiam no fato de que quando
três triângulos se combinam de modo a formar uma pirâmide, cuja própria base é também um
triângulo, forma-se um tetraedro. Se forem juntados vários tetraedros para formar uma esfera,
cortando-se a esfera ao meio, forma-se um hemisfério e se revela, assim, uma “cúpula” ligada
intimamente à nanotecnologia. Os fulerenos são o modelo de nanomaterial, geometria muito
semelhante à das cúpulas de Fuller, de extraordinária resistência e de leveza excepcional,
importante para a arquitetura, com o objetivo de criar abrigos versáteis, leves e flexíveis, ou
máquinas de habitar capazes de se modificarem conforme as necessidades de quem as habita
(como mostra a Figura 12).
57
Poincaré inventou um “mapa” transportando todo um plano do espaço hiperbólico para dentro de um círculo,
bastante prático para ajudar na visualização do plano hiperbólico, mapa esse que foi usado por Maurits Cornelis
Escher, em algumas de suas gravuras.
91
Figura 12: American Pavilion, criação do arquiteto Richard Buckminster Fuller, localizado em Quebec, Canadá,
que nos remete à Arquitetura no NanoSpace. O Pavilhão norte-mericano (da Exposição Mundial
de 1967) hoje em dia é denominado de “Biosfera”, uma aplicação exemplar da estrutura
designada por cúpula geodésica, ou domos geodésicos, conceitos desenvolvidos pelo trabalho de
Fuller.
Fonte autorizada: Wikipédia (imagem trabalhada pela autora). Disponível em: <pt.wikipedia.org/ - 70k>.
Acesso em 13 de janeiro de 2008.
Nos remetendo aos fractais, lembramos que o termo “fractal” foi introduzido em 1975.
A geometria fractal estuda as formas e figuras que possuem recursividade e dimensão
fracionária, denominando uma classe especial de curvas definidas recursivamente, que
produzem imagens reais e surreais, de modo que uma estrutura geométrica ou física apresenta
uma forma irregular ou fragmentada em todas as escalas de medição. Logo, a geometria
fractal é o ramo da matemática que estuda as propriedades e comportamento dos fractais, em
subconjuntos complexos de espaços métricos. Quando os objetos estudados são subconjuntos
gerados por transformações geométricas simples, do próprio objeto, nele mesmo, fala-se em
geometria de fractais determinísticos. O objeto é composto por partes reduzidas dele próprio.
Os belos trabalhos de Escher, sem conhecimento específico prévio, mas através do
estudo sistemático e da experimentação, são apoiados em conceitos matemáticos,
relacionados principalmente com a geometria. O Moebius Strip II (como é mostrado na
Figura 13) é inspirado na concepção da fita do matemático e astrônomo alemão August
Ferdinand Moebius, que é uma superfície de duas dimensões com um lado só e foi o embrião
de um ramo inteiramente novo da matemática conhecido como “topologia”, o estudo das
propriedades de uma superfície que permanecem invariantes quando a superfície sofre uma
deformação contínua. Formigas percorrem uma faixa contínua com o formato do número oito.
Acompanhando seu percurso, percebe-se que elas estão sempre do mesmo lado da faixa:
92
entender a nanotecnologia, para termos uma idéia pelo menos que nos dê um indício de onde
ela vem, em que átomos de carbono formam pentágonos e hexágonos à semelhança de uma
bola de futebol, podemos dizer que os conceitos geométricos estudados por Fuller
sobreviveram ao seu criador de forma inesperada. Exemplificamos com a estrutura biológica
dos vírus, dos quasicristais (interessantes quando o assunto é a diminuição do atrito)58 e dos
buckminsterfullerenos, demonstrando que este arquiteto soube interpretar os fundamentos
geométricos da natureza, indo muito além do que, talvez, ele mesmo pudesse prever.
1. 2.
Figura 14: Fulereno (Buckminsterfullerene). O Fulereno mais conhecido é uma molécula C60, como no quadro 1,
cujos 60 átomos de carbono estão dispostos nos vértices de um icosaedro truncado. Esta forma, que
apresenta 12 pentágonos e 20 hexágonos como faces, tem a forma familiar de uma bola de futebol
(Bucky Ball). Já a molécula C20, no quadro 2, não tem hexágonos, somente os 12 pentágonos. Uma
molécula C20 é o menor Fulereno, que não tem hexágonos, apresentando somente os 12 pentágonos.
Além dessa minúscula Bucky Ball, foram geradas pelos pesquisadores duas outras formas, os
“isômeros”, do C20, uma em forma de anel e outra com um formato que lembra uma tigela.
Fonte: Schlumberger. (imagens trabalhadas pela autora). Disponível em:
http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.seed.slb.com/pt/scictr/watch/fullerenes/images/c60.jpg
&imgrefurl=http://www.seed.slb.com/pt/scictr/watch/fullerenes/begin.htm&h=198&w=200&sz=13&
hl=pt-
BR&start=4&um=1&tbnid=71HXyNt_jZ9veM:&tbnh=103&tbnw=104&prev=/images%3Fq%3Dfule
reno%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26rlz%3D1T4ADBF_pt-BRBR236BR237%26sa%3DN. Aceso
em 12 de janeiro de 2008.
58
Da mesma forma que os cristais normais, os quasicristais consistem em átomos que se combinam para formar
estruturas geométricas, como triângulos, retângulos, pentágonos etc., que se repetem em um padrão. Mas, ao
contrário do que acontece nos cristais, seu padrão não se repete a intervalos regulares. As ligas metálicas
quasicristalinas, uma vez que entre suas propriedades, combinam-se as propriedades de resistência à abrasão e ao
calor das resinas antiaderentes com a condutividade térmica própria dos metais, são usadas em grande número de
aplicações industriais, a exemplo das conhecidas panelas antiaderentes.
59
Sueli Costa e Maria Alice Grou. Observando a Natureza. Campinas: Unicamp. 2004. 1 fita de vídeo, 15min.
94
compartimentos hexagonais para alojarem o mel; em outros modelos, como o que inspira
soluções para problemas como encontrar o formato ideal para uma região de plantio. São
geometrias no mundo, bastante interessantes quanto à observação das formas da natureza, que
trabalham a abstração do conceito de semelhança e discutir as conseqüências dos diferentes
fatores de crescimento para comprimentos, áreas e volumes quando ampliamos figuras.
Figura 15: Favos de abelhas. As abelhas têm seus favos em formato hexagonal, ou seja, a natureza está toda
“modelada” matematicamente. Relaciona o pentágono com flores como jasmim-estrela, por exemplo,
estrela do mar, flor de seda etc.
Fonte: Acervo da autora.
60
Documentário - Comandante Fuller e a Nave Espacial Terra: Viver intensamente a baixo custo. (2006).
Disponível em: <http://www.oasrs.org/conteudo/agenda/noticias-detalhe.asp?noticia=101>. Acesso em: 12 de
dezembro de 2007.
61
On Nanomedicine, Geriatric Care, Brain Injury: Nobel Laureate Keynote Speaker. Disponível em:
<http://www.medicalnewstoday.com/articles/51350.php>. Acesso em: 12 de dezembro de 2007.
95
2)
3)
1)
Figura 16: Arte e técnica na nano. A arte e a técnica se entremeiam na nanotecnologia: 1) Arte de Mary Ann on-
Frenk's, inspirada nos domos geodésicos de Richard Buckminster Füller (Buckminster), que
compreendeu a metafísica e a cósmica da geometria, inspirou o trabalho de Mary Ann Thompson-
Frenk, uma artista de Dallas, cujo trabalho tende a ter uma coloração espiritual, na alta mulher de 7 pés
de altura (2,1 m) moldada com palitos formados em cúpulas geodésicas.
Fonte: Foto do jornalist, John Ater. Disponível em: <http://www.thompsonfineartsinc.com/>. Acesso em: 15 de
janeiro de 2008. 2.
2) O emprego das técnicas de Origami (acervo da autora) oferece informações geométricas, fundamentais na
construção de modelos, para ter-se uma idéia de um conjunto de novos tipos de moléculas de carbono,
os “fulerenos”. Os fulerenos inspiraram a grande simplicidade e versatilidade dos “origamis” de DNA
do pesquisador Paul W.K. Rothemund, especialista en nanotecnología do California Institute of
Technology, Pasadena, Califórnia, o convertendo em uma revolução dentro da arquitetura à nanoescala.
3). Físicos da International Business Machines (IBM) conseguiram fazer um pequeníssimo logotipo
dessa empresa reunindo 35 átomos de xénon depositados sobre uma superfície de prata. Fonte: Blog De
Rerum Natura: http://dererummundi.blogspot.com/2007/05/breve-histria-da-nanotecnologia.html.
Acesso em 14 de janeiro de 2008.
96
62
Sir Harold Kroto, Prêmio Nobel da Química 1996: ciência versus cultura pop. Artigo publicado no jornal
Nova em Folha, edição nº 37, Abril 2006. Disponível em:
<http://sol.sapo.pt/blogs/isabelmetello/archive/2007/09/21/Sir-Harold-Kroto_2C00_-Pr_E900_mio-Nobel-da-
Qu_ED00_mica-1996_3A00_-ci_EA00_ncia-versus-cultura-pop.aspx>. Acesso em: 12 de dezembro de 2007.
97
63
Intrínseca, métrica, conexão, curvatura e torção.
98
64
Uma intrigante questão colocada na física é a questão do “calibre”, ou o gauge (pronuncia-se guêidje). Por
“calibre” ou “gabarito” pode-se entender algo como um instrumento ou medida que se usa como referência, para
comparar valores obtidos por meio de alguma ferramenta. Pode-se dizer que algumas teorias podem ser
"ajustadas" com outros calibres, sem que elas deixem de ser válidas. Quando falamos em calibrar um pneu, por
exemplo, é através do calibrador que a pressão do ar no interior do pneu é regulada. A pergunta por “quanto
calibrar?”, nesse caso, ao que se pode responder 27, deve-se ao procedimento subseqüente que é colocar a
mangueira com pressão na válvula do pneu e consultar o manômetro que indicará a pressão em libras por
polegada quadrada. Daí que a tradução mais correta do termo gauge seria “gabarito”, pois, não necessariamente
o que se vai fazer será medido em libras.
99
se que os campos do eletromagnetismo, da força fraca e da força forte são, na verdade, uma
imensa superposição de muitas e muitas (infinitas) partículas.
Quatro interações fundamentais descrevem todos os fenômenos naturais que
observamos - duas são observáveis no mundo macroscópico (gravitacional e a
eletromagnética), e duas, apenas em escala subatômica (nuclear forte e nuclear fraca). A força
gravitacional e a eletromagnética são as interações fundamentais que se fazem sentir no
mundo macroscópico, inclusive em escala humana. As outras duas - a força nuclear forte e a
força nuclear fraca -, não se revelam em escala macroscópica. Aparecem apenas em escala
subatômica - na verdade, como o nome indica, nas escalas nuclear e subnuclear, portanto a
distâncias tão pequenas ou ainda menores que o décimo do trilionésimo do centímetro, o que
corresponde ao centésimo de milésimo da escala atômica ou à milionésima parte da
nanoescala. Essa descrição de partículas e forças é o modelo padrão das partículas
elementares.
A importância das teorias de gauge está em um ponto de vista formal matemático, ao
se fornecer uma estrutura unificada para se descrever as Teorias Quânticas de Campos
associadas ao eletromagnetismo; daí a importância moderna de simetrias de gauge que
aparecem na Teoria Quântica Relativística. Falar em simetria é um marco essencial porque,
além de procurar-se ressaltar e elucidar o papel central das simetrias na construção de
modelos e teorias para as interações fundamentais, trata-se de um conceito relacionado que
nos lembra: a) a simetria na biologia (divisão imaginária de um ser vivo em partes
semelhantes externamente, a dizer-se que existem animais e plantas assimétricos, com
simetria radial, simetria bilateral etc.); b) a simetria aplicada em manifestações artísticas e no
artesanato, devido ao fato de que a arte teve durante muito tempo e mesmo ainda hoje,
referente à área artística, uma forte inclinação mimética, buscando imitar a natureza, onde a
simetria aparece de diversas formas; e c) a simetria está até mesmo na literatura, como nos
palíndromos e, por isso ela é chamada de palíndromo! Os palíndromos (o termo palíndromo
vem das palavras gregas palin – trás, e de dromos - corrida) são vocábulos ou expressões que
podem ser lidos em qualquer direção sem se alterarem, como uma imagem espelhada, a
exemplo de “ovo”, “Roma me tem amor” etc.
Historicamente, essas idéias foram observadas primeiramente no contexto do
eletromagnetismo clássico e, mais tarde, no contexto da Relatividade Geral. Vale lembrar que
os aspectos geométricos e as propriedades quanto-mecânicas das teorias de gauge
apresentam-se como elementos essenciais na busca por uma Teoria Unificada da Natureza,
100
onde o espaço, o tempo e a matéria se entrelacem numa teoria unificada, uma teoria final que
responda às perguntas sobre a estrutura da matéria que forma o universo e as forças da
natureza. Lembramos que o próprio Einstein gastou os últimos 20 anos de sua vida buscando
tal teoria para explicar o universo. Para Lee Smolin (Apud, SERPA, 2006, p. 74):
A unificação de forças é o santo graal da física desde Johannes Kepler (unificação das órbitas
celestes), passando por Isaac Newton (unificação da gravidade e movimento orbital) James
Maxwell (unificação da luz, eletricidade e magnetismo) e Einstein (unificação da energia e
matéria).
65
MURRIELLO, Sandra Elena. PESQUISA DE OPINIÃO: O que os italianos pensam da nanotecnologia?
Disponível em: < http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v59n1/a10v59n1.pdf>. Acesso em 02 de janeiro de 2008.
103
particularmente com referência às suas possíveis aplicações médicas. Uma das questões que o
autor dessa pesquisa apurou foi a existência de uma nova preocupação: “de quem é a
responsabilidade sobre o controle de uso dessa inovação”? Neste ponto, o pesquisador
enfatiza que o problema central diz respeito ao questionamento às instituições e aos
processos, fazendo da questão central de debate um tema que considera controverso e urgente:
a governança da tecnologia. Pensamos que a mesma pergunta vale para o Brasil, em que
essa discussão sobre a governança parece ainda distante, sendo válido o questionamento sobre
se o público brasileiro se sente com direito a opinar sobre o assunto.
Dada a natureza interdisciplinar da Nanociência e Nanotecnologia (N&N), quaisquer
projetos neste domínio implicam necessariamente na congregação de competências
diversificadas não apenas matemáticas, como temos visto, mas que disponham de uma boa
base destas, da Física, da Química, da Biologia e da Filosofia, em que se reconheçam
objetivos bem definidos em suas articulações. Só assim se poderá realmente afirmar que a
nanotecnologia abala as fronteiras, antes nítidas, entre as várias ciências, o que já vem sendo
mostrado nas considerações tecidas anteriormente. A grande questão de foco aqui, que nos
parece não deixar que uma área se sobreponha à outra, é que elementos de características
distintas têm determinadas propriedades quando isolados e adquirem novas propriedades
quando misturados. Na grande maioria dos materiais é isso que acontece; logo, a “mistura”
vai além das partes individuais e de suas especificidades próprias. Mas é bem provável que no
domínio do nano, as boas idéias estarão nas fronteiras das diversas especialidades, sendo
necessário sempre o especial cuidado em distinguir o trigo do joio neste intricado cenário, em
que a mitificação pode se transformar em mistificação, o que se espera conseguir com o
Microscópio de Força Atômica e seus aperfeiçoamentos como uma boa oportunidade.
Independentemente da área, existe um entusiasmo generalizado em vários laboratórios
do mundo inteiro na preparação de determinados materiais com propriedades únicas devido a
efeitos de dimensão, lembrando que com o termo nano, ainda que se refira a objetos de
dimensões bilionésimas, o objetivo perseguido é conseguir coisas grandes. Lembramos que,
conforme esclarecem Melo e Pimenta (2004), são dois os procedimentos gerais para se obter
materiais e dispositivos na escala nanométrica: a) o chamado procedimento “de baixo para
cima” (bottom-up), em que é possível construir o material a partir de seus componentes
básicos (átomos e moléculas) do mesmo modo que uma criança monta um castelo conectando
as peças de um Lego, e b) o procedimento chamado “de cima para baixo” (top down),
utilizando as chamadas técnicas de litografia, que corresponde a uma série de etapas de
104
Por sua vez, a pesquisa com base na teoria quântica, cuja semente já estaria situada,
conforme amplamente divulgado no meio científico e na mídia, no século IV d.C., na taça de
Lycurgus66 (Ver Figura 17) do período Romano, mas efetivamente deflagrada por Einstein,
segue e vai apontando novos rumos, que estão em pauta nas grandes discussões atuais,
algumas das quais já indicamos anteriormente: Teoria de Supercordas, Gravitação Quântica
de Laços; Teoria Quântica de Campos em Espaços Curvos; Triangulação Dinâmica e Cálculo
de Regge; Geometria Não-Comutativa, Formulações em Superfícies Nulas, Modelos de
Espuma de Spin; Conjuntos Causais e “Twistors”.
66
Os sopradores de vidro romanos produziam vidros com nanopartículas metálicas, nomeadamente com
ouro e prata, sendo um dos exemplos mais famosos de artefato a taça de Lycurgus. Esta taça era feita de vidro do
tipo sódico-cálcico (composição ainda utilizada nos dias de hoje, típica dos vidros de janelas) com
nanopartículas de ouro e prata, com 20 nanos em baixo relevo no material de vidro e rubi. A beleza desta taça de
vidro reside no fato de que reflete uma cor esverdeada, enquanto que simultaneamente a luz transmitida é
avermelhada. Tal efeito verificado nessa famosa peça romana, que hoje é fonte de inspiração para muitos
cientistas nanotecnológicos, só foi conseguido através da incorporação de nanopartículas metálicas.
105
mundo e modificar a si mesmo. Desta arte-habilidade de moldar o mundo, que começou com
a techne, mediante a oposição entre ‘natureza’ e ‘homem’, com o trabalho da ciência e da
técnica alicerçando esta cisão, foi resultando o “motor” que forjou as primeiras manifestações
de poder, uma vez que a chance do sucesso era exatamente usar das ferramentas e das
potencialidades do trabalho para aumentar a produção dos meios de vida e em conseqüência,
ampliar ao máximo as chances de sobrevivência.
Em princípio, a idéia de cosmos encontra-se - embora sem o sentido rigoroso que teve
mais tarde - na concepção de um acontecer natural governado pela dike eterna, de
Anaximandro. Podemos, assim, caracterizar a concepção do mundo de Anaximandro como a
íntima descoberta do cosmo. A idéia do cosmos mostra, com simbólica evidência, a
importância da primitiva filosofia natural para a formação do homem grego.
O conceito de cosmos constituiu até os nossos dias uma das categorias essenciais de
toda concepção do mundo, embora nas modernas interpretações científicas tenha
gradualmente perdido o sentido metafísico original. Assim como em Sólon o conceito ético-
jurídico da responsabilidade deriva da teodicéia para a epopéia, também em Anaximandro a
justiça do mundo recorda que o conceito grego de causa, fundamental para o novo
pensamento, coincidia originalmente com o conceito de culpa e foi transferido da imputação
jurídica à causalidade física. Esta transposição espiritual está ligada à transposição análoga
dos conceitos de cosmos, dike e tisis, originários da vida jurídica, para o acontecer natural. O
fragmento de Anaximandro permite-nos obter uma visão profunda do desenvolvimento do
problema da causalidade a partir do problema teológico. A sua Dike é o princípio do processo
de projeção da polis no universo.
Dado que se serviram da ordem da existência humana para tirar conclusões a propósito
da physis e sua interpretação, a sua concepção continha em germe, desde o início, uma futura
e nova harmonia entre o ser eterno e o mundo da vida humana com os seus valores. É uma
tese antiga: Todo o ente que contribuir para o resultado verificado deve ser responsabilizado,
alterando-se a relação entre a “idéia sobre cosmos” e a de “justiça do mundo. O apelo dirigido
aos homens para ganharem consciência da responsabilidade na ação e oferecerem um modelo
com a sua conduta política e moral deste tipo de ação, como um testemunho da seriedade
ética, já aparece, portanto, na obra de Sólon, pilar fundamental na formação de Atenas, cujos
versos representaram a expressão clássica do espírito da cidadania ática. O que nos chama a
atenção é a relação que é possível fazer desde aí, entre a medida, a justiça, o saber político, e o
nexo entre violação do direito e perturbação da vida social (Ibid, p. 179). Para Sólon, a
109
injustiça se mantém por breve tempo, pois cedo ou tarde sobrevém a dike. Sólon concede
novo sentido aos problemas da vida humana simples e aos da vida política, a manifestar o
autêntico sentido da vida grega, como o mesmo com que segue o movimento geral da
natureza, no seu crescimento, apogeu e decadência (Ibid, p, 188). “Tudo o que é natural é
simples, depois de conhecido. O mais difícil, porém, é chegar à percepção inteligente da
medida invisível, ao fato de todas as coisas terem seus próprios limites”. Segundo Jaeger,
parece que estas palavras de Sólon nos são dadas para apreendermos “a medida exata da sua
própria grandeza”. Jaeger (Ibid) complementa ainda dizendo algo, que é para nós
extremamente importante, neste estudo, e que nos remete diretamente ao assunto do qual
tratamos - a nanotecnologia: “o conceito de medida e de limite, que ganhará importância tão
fundamental na ética grega, revela claramente a aquisição de uma nova forma de viver, por
meio da força do conhecimento interior”.
Tantas e tantas indagações sobre a técnica, antigas, seculares, recentes, estão nos
colocando em contato com elementos da cultura e da arte, num aparente extremo de sua
libertação, que consiste nos muitos e infinitos sentidos com que surgem e que aproximam as
diferentes formas de ‘profano’ e ‘sagrado’, admitem o ‘dissonante’, o ‘finito’, o ‘bem’ e o
‘mal’, o ‘belo’ e o ‘feio’, a ‘dor’ e o ‘prazer’, tudo isto que existe no homem.
Embora nos seja notório que no mundo dos átomos não há ética nem etnia, mas
estética e geometria, este estado de acontecimentos humanos que vem de longe mexeu tempo,
espaço, dimensões, natureza e vida, Nos mostra que, além do aquecimento imperativo no
campo do poder e dos interesses costumeiros, ocasionais e difusos, ou organizados e
permanentes, ocorre um desenraizamento de grande amplitude no sentido étnico, no estético e
no ético, que é necessário compreender para o melhor convívio social e para embasar futuras
propostas de ação social com base na origem, natureza e fundamentos das questões que
marcam indiscutivelmente novos tempos. Só para citar alguns exemplos desse
desenraizamento, enfatizamos: a perda da conexão com os elementos sensoriais e culturais
que remetem o ser humano à memória de sua origem; um sobrevir de dimensões temporais e
espaciais que geram organizações rítmicas, temporais e espaciais inéditas; o instituir de novas
disposições estéticas - excessivamente abstratas e absurdas algumas e de identidades sui
generis para os nossos olhos; o acontecer de atos nem sempre regidos pelo respeito e por uma
responsabilidade pelo humano, muitas vezes terrivelmente conflitivos e nem sempre
reconhecidos no âmbito dos assuntos humanos; e muito mais situações similares a estas.
110
Uma ilustração deste desenraizamento, nós pudemos evidenciar com o que nos foi
apresentado em uma reportagem vista em 2006, no Canal de TV (Discovery Channel), sobre
jovens que se tatuavam, reeditando o mais radical de todos os estilos que a pesquisadora
conhecia: o branding, um modo de gravar “a ferro e fogo” na carne, numa temperatura
altíssima, usando-se um símbolo em brasa para marcar profundamente a pele. Para estes
jovens, quando questionados sobre a possibilidade da dor, alegaram que no ato de se tatuar
dessa forma a dor não incomodava, mas apenas o cheiro da carne queimada. Mais do que isso,
com estas marcas cravadas particulares, primavam pela diferenciação pessoal como algo a
ser, acima de tudo, cultivado como uma espécie de “selo”, em que se reconhecem, se
identificam e se diferenciam, fazendo-se eles mesmos, sobretudo, por viverem em meio a
contextos sociais cada vez mais regidos por uma lógica indiferenciada e impessoal (a lógica
do “rebanho”, como aludiu Nietzsche). Ora, isto significa ou não a expressão particular da
constituição de uma identidade psíquica e pessoal única?
Além da busca por novas experiências e busca pelo prazer, colocando entre a dor e o
prazer uma tênue linha de distinção, chegou então até nossos tempos formas mais radicais de
body modification. Outros procedimentos que podem ser citados são: afiar dentes, cortar a
língua ao meio, implantar chifres, perfurar o corpo por jóias de tamanhos variados, cores e
formas e fazer a scarification. Tal como o branding, uma prática extremamente dolorosa (a
mesma utilizada nas marcações do gado) e que pode causar inúmeros problemas de
cicatrização, a scarification, também conhecida como "a arte do quelóide", corresponde a
fazer cortes profundos na pele, o suficiente para que esta se abra e seja depositada em seu
interior, no caso de pessoas muito claras, tinta utilizada para se fazer tatuagens. Nas pessoas
de pessoas escuras, é colocado um alcalóide cinzento no interior do corte. Existem alguns
indivíduos que se tatuam cortando a pele com uma faca aquecida, para que já ocorra a
cauterização a cauterização durante o corte. Vale destacar que não se utiliza anestesia durante
estes processos, que devem ser bastante dolorosos, como é possível imaginar. Segundo
KLESSE (1999, p.15), “tatuagem, piercings múltiplos, branding, cutting e escarificações são
algumas das mais radicais, permanentes modificações corporais nesse contexto 67.
Também lembramos das próteses, das parafernálias cheias de pinos e parafusos (ver
Figuras 18 e 19), usados no corpo em caso de acidentes, por exemplo, entre muitos outros
67
KLESSE, Christian, “Modern Primitivism’: Non-Mainstream Body Modification and Racialized
Representation”, in: Body & Society, Vol. 5 (2-3), London: Sage Publications, 1999, pp. 15-38.
111
“estranhos dispositivos técnicos”, que chamaria de bodyphilos, dada sua afinidade com o
corpo.
Figura 18 Figura 19
Figura 18: Body Art. Piercing na língua.
Figura 19: Mediciana e prótese. Pinos metálicos nas pernas, devido a um acidente.
Fonte: Acervo da autora.
É preciso ter firme que uma techne autêntica, como diz Jaeger (ibid, p. 1021), exige
um princípio harmônico a que se pudessem reduzir todos os fenômenos concretos como
faziam os filósofos com os seus sistemas. Nisto se pode investir para que confluam todas as
áreas do conhecimento, a que se trabalhe a verdadeira interdisciplinaridade, tendo todos os
envolvidos, em comum, buscar extrair seus ensinamentos do conhecimento objetivo da
própria natureza, mas não como um amontoado de informações desconexas e dados
estatisticamente fechados por um lado, a respeito do “corpo” e por outro da “alma”. Há que
situar-se o “ser” por inteiro e o princípio normativo para suas condutas, precisamente com o
aspecto ético e político, para as quais Platão chamou a atenção na abordagem do homem
(JAEGER, p. 1028). Princípio de ação que faça com que tenhamos algo de comum com os
outros, e cujo ethos seja compreendido não apenas pelos profissionais peritos, mas por todos,
para que se avance em relação ao monumental processo de formação do homem helênico e do
iluminista, referentes à conservação do grande homem “são” e “melhorado”, no sentido de
cuidar e manter a “saúde da vida” e “compreensão da natureza” naquilo que simplesmente é.
desde a mecânica quântica com seu criativo precursor, Karl Werner Heisenberg, na sua idéia
que ficou mais conhecida como “Principio da Incerteza”, afetando os conceitos de medição,
de precisão, alegando que o problema não está na “medição” e sim no que diz respeito à
“natureza particulada da matéria”, adveio a visão de natureza “incerta” e “indeterminada” e
caiu por terá a relação causa-efeito. Ficou faltando assim uma tentativa sistemática para
definir o conceito de “natureza”, levando-se em conta toda a história do espírito no mundo e o
do curso da vida até agora e na posteridade (Ibid, p. 1035).
113
Nuvens não são esferas, montanhas não são cones, continentes não são círculos,
o som do latido não é contínuo e nem o raio viaja em linha reta.
(Benoît Mandelbrot, em seu livro The Fractal Geometry of Nature, 1983).
Toda vez que desejo falar com Pitágoras, por exemplo, vou à praia e ando por algum tempo — e daí Pitágoras
fala comigo.
Richard Buckminster Fuller
(1895–1983)
Tanto Koyré (1980; 1997; 2006), como muitos outros autores usaram a mesma
expressão “matematização da natureza” tanto para o momento platônico (de Pitágoras, Platão
e Aristóteles, quanto para o momento galileano (Galileu, Descartes e Newton), variando
apenas a potencialização da racionalidade promovida por esta matematização, dentro de uma
perspectiva atual de gênese e desenvolvimento da ciência moderna. Quando Platão colocou
um princípio de medida, um princípio de congruente, ou concórdia no primeiro lugar, foi
porque sua idéia também era um tipo de medida ou forma definitiva para configurar e dar
limite à matéria indeterminada, e o princípio de proporção foi colocado depois daquele porque
o bem só pode ser apreendido através da beleza. Na academia platônica desenvolveu-se a
geometria que, embora inspirada nas técnicas egípcias de medir terrenos, é uma teoria das
formas perfeitas das quais as coisas participam. Os geômetras da Academia desenvolveram os
teoremas pelos quais as propriedades das figuras geométricas eram demonstradas de forma
racional. Posteriormente Euclides, já na Escola de Alexandria, demonstrou que esses teoremas
eram todos dedutíveis uns dos outros a partir de certos axiomas, evidentes por si mesmos,
formados com noções primeiras. Assim surgiu a geometria como modelo de uma teoria
axiomática.
A geometria não-euclidiana levou à existência de um espaço diferente do que era
acreditado desde Euclides, e as noções de reta, plano e distância num espaço não-euclidiano
são completamente diferentes e não podem ser observadas diretamente como a geometria
euclidiana. Devido a essa questão da não-existência concreta (no sentido de que possa ser
“tocada”) da geometria não-euclidiana, esta demorou a ser aceita entre os matemáticos.
Contudo, Einstein, a partir de seu projeto de geometrizar a gravitação na teoria da relatividade
geral recorrendo às geometrias não-euclidianas - mediante às quais começou a aumentar o
114
68
O espaço euclidiano, baseado em propriedades dos números inteiros e que envolve muitos problemas que são
facilmente compreendidos mesmo por não-matemáticos, era imutável, simétrico e geométrico, representando a
metáfora do saber na Antiguidade clássica, que se manteve incólume no pensamento matemático medieval e
renascentista, pois somente nos tempos modernos puderam ser construídos modelos de geometrias não-
euclidianas depois da contestação feita por Riemann, Lobatchewski e Bolyai, considerados os criadores das
geometrias não-euclidianas. Num plano, em que o espaço é euclidiano, a curvatura é nula; numa esfera, é
positiva e num espaço hiperbólico, é negativa.
115
modelo, diferente do newtoniano para o qual a gravidade era uma “força de atração”.
Hoje, os cientistas norte-americanos, Charles R. Keeton e Arlie O. Petters (2006)
publicaram uma pesquisa que demonstra como detectar a quarta dimensão do espaço.
Somando-se o tempo, passaríamos então a "ver" nosso universo em cinco dimensões. A teoria
é, na verdade, um novo modelo para o entendimento da força da gravidade, uma alternativa à
Teoria da Relatividade Geral de Einstein. Einstein já creditara a idéia revolucionária de
quantização de energia (teoria quântica), mas em sua teoria da relatividade construída, tendo
por base a estrutura do eletromagnetismo de Maxwell, os fenômenos são constituídos ainda de
coisas formadas por matéria e energia. “A ciência, em outros termos, é um sistema de
relações. Ora, como acabamos de dizer, é apenas nas relações que a objetividade deve ser
buscada; seria inútil procurá-la nos seres considerados como isolados uns dos outros
(POINCARÉ, 1995: p. 165).
No caso do observador, sua intervenção é necessária, mas não é vital sua
comprovação, uma vez que valem as leis físicas objetivas que são constantes para todos. Não
que para Einstein tudo seja relativo, mas, na sua teoria geral, prevalecem as grandezas
invariáveis próprias dos fenômenos e não vinculadas ao ponto de vista do observador, o que é
uma condição suficiente para atribuir como “realidade” uma magnitude física sem pretender
uma definição rigorosa de realidade física. O sistema observado, pois, teria determinado valor
compatível com o valor exato de uma respectiva magnitude Em todos os casos, em tal teoria
continua o “mistério” das “variáveis ocultas” prescrito aos fenômenos que envolvem
partículas macroscópicas e na textura elástica da relação espaço-tempo, onde o papel da
mente humana não é fundamental.
A Geometria Euclidiana é apropriada para descrever “fenômenos ordenados e
artefatos da civilização” (CARVALHO et al. [s.d.]), mas, quando nos deparamos com formas
irregulares, imperfeitas, como as nuvens, os ramos das árvores, os alvéolos pulmonares, entre
outros, esta geometria é inadequada, sendo necessário buscar objetos da “Geometria da
Natureza”, chamada de “Geometria Fractal”. Se observarmos uma folha de samambaia,
atentamente, ‘olhos fractais’, verificamos que a folha se repete dentro de si própria, ou seja, é
como se a mesma fosse “composta por grande número de folhas estatisticamente semelhantes
e menores. Seguindo o mesmo raciocínio, podemos dizer que a rugosidade de uma cordilheira
está estatisticamente reproduzida num simples pedaço de rocha” (Ibid. p. 10). Há, pois, uma
questão de auto-semelhança que é a simetria através de escalas, o que significa para GLEICK
(1993) uma recorrência, “um padrão dentro de outro padrão”, e outra é a dimensionalidade
116
69
Citam-se como exemplos Richard Dawkins, Daniel Dennett69 e Susan Blackmore, sendo considerados
espécies de “cães de guarda de Darwin”, sobretudo, Dawkins.
117
Serra faz alusão ao fato de que o misticismo pitagórico e também o de Kepler, numa
comparação da autora, estariam ambos assentados em propriedades de objetos científicos, do
mesmo modo como a mecânica quântica faz. Para os pitagóricos, a mística criada em torno
dos números teria sido a motivação para o estudo das suas propriedades, estudo este
inseparável de especulações geométricas, harmônicas, físicas e cosmológicas. Embora nos
tempos contemporâneos exista real e indiscutível interesse pelo aspecto matemático dos
números tanto na física quântica quanto na nanotecnologia, é preciso salientar que com a
nanotecnologia ocorre semelhante virtude motivacional quanto às novas propriedades
moleculares e atômicas observadas e produzidas mediante as relações possíveis entre elas. No
entanto, consideramos que a tecnologia em dimensão de nanoescala se apresenta distanciada
desse misticismo pitagórico. Seu caráter é incompatível com interpretações especulativas,
como as que têm sido encontradas na problemática do indeterminismo quântico ainda com
algumas obscuridades na história das idéias. Isso ocorre, talvez, porque a ciência
nanotecnológica não apresenta tanta arbitrariedade no que se refere à demarcação da fronteira
entre objeto, sujeito e dispositivos instrumentais, algo que é bastante vinculado à raiz do que
veio a ser chamado de "problema da medição". Avançamos no que segue sobre a importância
de caracterizar a medição e a observação.
Para nós, é bastante pertinente considerar certo fundamento na constatação anterior
sobre as discussões em torno da relação do sistema quântico e da nanotecnologia com o
observador. Von Neumann admitia a necessidade da presença de um observador inteligente
ou consciente na ‘observação’; neste aspecto, considerava que o resultado de uma medição
poderia implicar em indeterminação se não fosse conhecido de maneira exata “o estado do
observador antes da medição. Para Von Neumann (Apud PESSOA, 1992, p. 183): “É
concebível que tal mecanismo pudesse funcionar, porque o estado de informação do
observador em relação ao seu próprio estado poderia ter limitações absolutas, pelas leis da
natureza”. Essa tese do conhecimento limitado foi igualmente preocupação de Heisenberg
para quem as relações de indeterminação (imprevisibilidade na mecânica quântica-MQ) se
deveriam, segundo Jammer (Idem. p. 184), “ao inevitável distúrbio da observação no objeto”.
No caso do sistema quântico, correspondente ao sistema composto de um objeto e um
118
Nota-se, por essa via, que no estudo tornou-se necessário considerar as implicações da
nanotecnologia também para a representação sensorial, a objetificação do vivido e a
apreensão subjetiva e fenomenológica dos indivíduos, enfim para a experiência que estes
fazem do mundo e de si mesmos, no sentido de apreenderem um outro modo de atuação na
convivência com uma tecnologia oriunda da natureza particulada e de acompanharem melhor
as interferências desta para a transformação de algumas fronteiras envolvidas nas relações que
119
estabelecem.
Os aspectos dos processos envolvidos na representação de conceitos e de certas
propriedades e dimensões da matéria, como os de olhar/visualizar/enxergar/representar as
operações intelectuais, relacionadas com manipulação, transformações e comunicação de
idéias, conceitos, métodos e modelos, e os processos que estabelecem relações entre o
representar, o abstrair, o intervir e o afetar e de que modo eles são feitos, podem ser um
diferencial quando a dimensão invisível dos processos mentais ganha alguma visibilidade,
tornando-se mais próximos de dimensões invisíveis do mundo ‘mudo’ do que denominamos
matéria física. Muda-se o rumo das decisões perante o fato de que uma dimensão antes
inacessível seja aos sentidos, à ação ou à compreensão e à relação de qualquer tipo - como o
que representa para nós algo que equivale à bilionésima parte do metro - se oferece à
visibilidade, à experimentação ou à significação, tornando-se a intimidade da matéria
parcialmente manipulável, experimentável, acessível, habitável.
No caso do observador, sua intervenção é necessária, mas não é vital sua
comprovação, uma vez que valem as leis físicas objetivas que são constantes para todos. Não
que para Einstein tudo seja relativo, mas, na sua teoria geral, prevalecem as grandezas
invariáveis próprias dos fenômenos e não vinculadas ao ponto de vista do observador, o que é
uma condição suficiente para atribuir como “real” uma magnitude física sem pretender uma
definição rigorosa de realidade física. O sistema observado, então, teria determinado valor
compatível com o valor exato de uma respectiva magnitude. Porém observamos que ainda
prevalece o “mistério” das “variáveis ocultas” prescrito aos fenômenos que envolvem
partículas macroscópicas e na textura elástica da relação espaço-tempo, onde o papel da
mente humana não é fundamental.
Na medida em que, conforme essa teoria, o mundo é pensado por valores que resultam
das propriedades atribuídas às coisas sem referência a um observador, mas à matéria e às suas
manifestações, nossa vida passa a ser regulada pelo que afeta nossos sentidos, numa
adequação à realidade física e à realidade construída a partir das relações entre propriedades
de objetos. Poincaré (1995, p. 165) já dizia que a ciência é um sistema de relações, e é
somente nas relações que a objetividade deve ser buscada, sendo inútil procurá-la nos seres
considerados como isolados uns dos outros.
Nossos valores, nossa ética, nossa moral são, pois, dependentes desse modo de “ver”
as coisas, localizadamente ou relativas ao nosso quadro cotidiano de espaço-tempo, às nossas
percepções de enormes agregados dos fenômenos e determinadas pelas posições relativas que
120
70
Construída a partir da teoria relativística de gravitação quântica, a assim chamada escala de Planck,
representa a menor escala da física quântica com que se mede as principais grandezas físicas (tempo, massa,
energia e comprimento), numa referência às unidades de medida definidas no início do século passado pelo
físico alemão Max Planck, considerado o criador da física quântica. Planck conseguiu estabelecer uma espécie
de métrica da natureza a partir de três grandezas constantes do Universo, em que as unidades de medida não
variam de um país para outro, como acontece com o metro usado no Brasil, ou a milha adotada para medir
comprimento nos países anglo-saxões. Alguns físicos definem a escala de Planck como sendo da ordem de
fenômenos extremamente rápidos e energéticos que ocorrem em espaços extremamente diminutos. Para que se
tenha uma idéia de quão extremos são esses fenômenos nessa escala - ainda inexplorada pelos aceleradores de
partículas dada a grande quantidade de energia exigida - a energia de uma única partícula atômica como o
elétron, por exemplo, corresponderia a de um carro viajando à incrível velocidade de 7 mil quilômetros por hora.
Se este veículo existisse, poderia dar a volta no planeta em menos de seis horas. Para saber mais, ver: A cidade
proibida: equipes brasileiras colaboram no esforço de reunir a física do infinitamente pequeno à do infinitamente
grande. Disponível em: http://www.revistapesquisa.fapesp.br/index.php?art=3095&bd=1&pg=1&lg= Acesso
em: 02 de janeiro de 2008.
121
em escala nanométrica. Vale acentuar que as leis clássicas da física geralmente não se
aplicam na escala de interesse da nanotecnologia, e que os fenômenos que ocorrem à escala
atômica devem ser descritos de acordo com a física quântica, elucidando que em escala
nanométrica os corpos podem seguir trajetórias distintas em relação ao que é previsto pela
teoria física clássica, assumindo o comportamento como onda ou partícula. Isso decorre do
fato de que a energia só pode ser emitida ou absorvida pela matéria em unidades discretas,
denominadas quanta (quantum, no singular).
Torna-se possível aos físicos uma nova consciência, por suas novas capacidades de
criar com a nanotecnologia, ativando mais o mundo da energia que constitui a existência
física, e que a natureza põe à disposição para aqueles que têm a capacidade de compreendê-la
em suas formas energéticas às portas de uma nova dimensão de realidade. Os
nanotecnologistas podem intervir mais profundamente na vida e “fabricar” o real, por
disporem de cálculos mais extremados de análise, com base na própria disponibilidade da
consciência nanotecnológica que lhes é atribuída na contemporaneidade, para definir a exata
localização das partículas do mundo, não mais como “localizadas” e “imexíveis”, mas sim
como se fossem uma “nuvem de probabilidades”. Se antes, com a Teoria da Relatividade
podíamos definir a localização exata de algo num tempo dado, passar a não fazê-lo dessa
forma, mas dispor de infinitas possibilidades de fazê-lo, de dizer que está em tal ou qual lugar
e de poder fazê-lo, o que é mais importante, é bastante perturbador! Pensamos que a grande
questão da física não está essencialmente no fato de agora passarmos a ser observadores,
capazes de “representar”, “intervir” e “escolher” com a nossa consciência, mas, sem termos
dela a medida, ou seja, o “quanto” desses processos exatamente calculado na realização de
qualquer ato, qualquer operação, num mundo que tínhamos como estável, de certo modo
muita coisa visível e audível, mas, sobretudo, tangível pelo cálculo, pela razão exata, e não
por tendências.
Novamente se põe o dedo na chaga da “variável oculta”, quando o homem se depara
com esse “quantum” que é algo que pode ser medido ou contado, mas que diz respeito ao
mais íntimo da matéria, da energia, do mundo e de nós mesmos. O que é espantoso, sem uma
previsão de cálculo exato, capaz de sossegar a razão da finitude matemática e a geometria,
tomadas em sua forma, tanto contemplativa quanto prática. Num sentido antropológico,
podemos dizer que se põe uma estreita relação como jamais houve entre o homem e o mundo
íntimo de si mesmo.
Denominar este momento do pensamento de razão, intuição, mimetismo, mítico,
122
místico, mágico, artístico, holístico e religioso, não é de nosso alcance, tampouco queremos
garantir, neste acontecimento, uma separação do pensamento racional, como vem sendo
preocupação de muitos pensadores da mecânica quântica. Já é um ganho que possamos falar
em indeterminismo e incertezas, incompletude da TR e subjetivismo na descrição da
realidade, embora estejamos presenciando o aumento da relação entre a física quântica e o
misticismo, o que acaba tornando mais aguda a “solução sem saída” das “variáveis ocultas”.
Temos ainda as soluções das “variáveis não locais” – como as de Bohm e Hiley e a
“interpretação de muitos universos” de Everett, bastante discutidas atualmente, ambas de
caráter “não-local” como característica nova, fundamental e estranha idéia.
Esses impasses, pensamos, evidenciam as diferentes interpretações possíveis da física
quântica que vamos encontrar em físicos, tanto os filiados à Interpretação de Copenhague
(década de 1920 e 1930), quanto os adeptos ao Paradoxo EPR71 de Albert Einstein, Podolsky
e Rosen, e os que se refugiaram em outras soluções, como as que citamos antes, das
“variáveis ocultas não-locais”. Vale registrar que no fenômeno quântico, o que é bastante
evidenciável na relatividade geral, a ênfase não recai no instrumento de medição, mas, sim, na
“consciência” do observador no ato de medição, sendo esta o lugar onde se produz a rede.
Atingir este patamar pode ser frustrante no sentido da dificuldade em estabelecer o
tamanho exato do “certo” ou do “errado” de uma ação, mesmo por aproximações da razão em
uma demonstração matemática, ou pela intuição em uma operação imediata da inteligência
sem recorrer à demonstração, mas a uma imagem ou símbolo. No entanto, é importante pensar
o quanto este evento contribui para uma maior aproximação entre as ciências, sobretudo, para
as exatas, uma vez que os peritos requerem avanços do conhecimento de um fato ou
fenômeno à compreensão do “porquê” deles, e a se dizerem não apenas testemunhas,
representadores ou intervencionistas numa dada situação que exige conhecimento da
existência dela, mas, por apelarem à consciência, capazes de conhecerem seu próprio
conhecimento, seja por razão ou intuição – a respeito das coisas.
Se a razão objetivista marcadamente fixou nas almas e corpos que tudo é na medida
do objeto físico e em suas manifestações, determinando a medição do raciocínio e da intuição
no conhecimento dos princípios e fenômenos, as questões mudam com a não-localidade
quântica (de que Einstein teria exigido uma explicação causal e não aleatória). Esta, ao
71
A dimensão das partículas atômicas e subatômicas tornou relevantes o “princípio da incerteza” do físico
alemão, Karl Heisenberg e a “dualidade onda-partícula”. O princípio de Heisenberg ou da Incerteza concebe que
quando há precisão de medida de uma quantidade (acurácia) observável, simultaneamente aumenta a incerteza
mediante a qual outras quantidades possam ser conhecidas, que se caracterizam, sobretudo, pela supremacia
concedida à razão matemática, à física e à experimentação.
123
conceber toda a realidade determinada pela consciência, em lugar das coisas, combinando
elementos objetivos e subjetivos (face a tendências dos objetos), privilegia o idealismo
subjetivista ao supor o conhecimento como dependente de cada observador e por atribuir
“razão” ao sujeito mediante propriedades potenciais existentes na consciência, antes mesmo
da observação no ato da medição.
“Incompletude”, “indeterminação”, “incerteza”, “variáveis ocultas não-locais” e
outros termos afins, próprios ao campo da mecânica quântica, conferem, de fato, maior valor
ao observador e à sua percepção, diferentemente do que acontece no mecanicismo clássico,
que está fundamentado na razão absoluta e no relativismo moderno, assentado também na
razão. Mas pensar a realidade, trazendo-a à consciência, significa que se sabe o que se está
fazendo e se tendo uma compreensão de seu conteúdo. Não é tanto o corpo que sente, mas sim
a consciência, talvez pudéssemos dizer ao modo de Arendt (1993), como uma espécie de
alargamento ímpar dos campos do saber, que passam a conferir à ciência um estatuto
universal, possibilitando ao homem gerar e implementar processos cósmicos para a natureza,
fora da percepção comum das coisas, mas nem por isso distante do mundo da vida, a
desencadear e ativar certos campos de energia e integrá-los nos já existentes.
Os órgãos dos sentidos já não precisam mais estar tão presentes para mediar as
percepções e sensações do mundo exterior, e o ser humano se sobreleva como que de um
estado de hipnose num universo de coisas a que esteve submetido por muito tempo sem as
entender, e que tornaram a vida uma mera repetição de hábitos, gestos e crenças solidamente
instalados. O sobressalto vai além da necessidade de reavaliar a realidade (ou o que
acreditamos que ela seja), de reconsiderar pontos de vista, revalorizar a maneira de pensar, a
própria maneira de viver; invade-nos uma dimensão até então pertencente ao sagrado: mexer
na criação da vida!
Esse intento é o mesmo que a tentativa de invasão na dimensão em que situamos a
grandeza de nossa vida, assinalando os avanços que nos são sugeridos, a propiciarem
simultaneamente a emergência de uma nova maneira de conceber natureza e cultura, homem
e universo, subjetivação e objetivação, a vida, enfim, e aplicar este novo modo ao
aprendizado de diferentes caminhos, porque certamente nossas pegadas já não são medidas
com as mesmas dimensões que dominamos até agora. Estaremos com a nanotecnologia a
provocar uma reviravolta na passagem do finitismo ao infinitismo, que se cumpriu e de
diversas maneiras, sobretudo, durante o século XVII, provocando a substituição do mundo
geocêntrico dos gregos e do mundo antropocêntrico da Idade Média por um universo
124
72
Em muitas considerações de peritos sobre as conquistas da nanotecnologia, há referência a que devamos a)
utilizar métodos semelhantes à vida, a exemplo do que acontece com a elaboração das proteínas, células, tecidos
e órgãos, dirigidos pelos genomas e efetuados por “nanomáquinas” como os ribossomas, b) e seguir uma via
semelhante. Assim, na fabricação de coisas, manipulando átomos não com as nossas mãos, mas com
nanomáquinas construídas por outras máquinas, construídas para os ínfimos submundos, tornados mais próximos
de nós, ou por aí acima, até o nível controlado diretamente por nós, juntando os átomos e moléculas de forma
apropriada ao projeto desenhado mediante a nanotecnologia. É um modo de construção tipo brinquedo Lego,
bem diferente, oposto às tecnologias desbastadoras, desperdiçadoras, utilizadas até o presente pela humanidade.
125
vida. Isso indica que é necessário um esforço no sentido de rever as noções gerais da moral
pautada nas regras práticas da conduta, mediante uma transformação interior e despertar da
consciência, ao modo de Blaise Pascal (1978), quando alegou que o melhor livro de moral é a
nossa consciência, a termos que muito freqüentemente consultá-lo.
Culmina, assim, que modernidade, contemporaneidade e a já comemorada pós-
modernidade emergiram, desde sempre, como espaços afinados com a maneira de conceber a
natureza em sua plenitude potencial infinita em mãos de nosso também infinito poder de agir
nela. Cabem, pois, ante essas reflexões sobre as possibilidades da nanotecnologia de
promover uma reviravolta cosmológica, como indicamos antes, as considerações de Michel
Foucault (Apud MIRANDA, 2002) que falou da necessidade de definir as condições nas quais
o ser humano ‘problematiza’ aquilo que é, aquilo que faz e o mundo onde vive. E se a
experiência é a estruturação de certos problemas e das respostas históricas que mereceram,
“problematizar” significa, portanto, reabrir problemas aparentemente solucionados, que se
inscreveram na nossa vida e ganharam efetividade e a inseri-los em novos
confrontamentos. Uma das notícias interessantes que dá fundamento a esta necessidade de
“abrir a caixa preta” é a do lançamento do telescópio espacial GLAST (Gamma-ray Large
Area Space Telescope), em agosto de 2007, que veio como ferramenta-meio fundamental para
novas medidas. Lembramos que a palavra "dimensão" vem do latim dimetiri, e significa
"medir completamente".
Se for comprovada uma nova dimensão, quando se tem afirmado a Nanociência como
o “mundo em nova dimensão”, a exemplo do próprio título do livro “O mundo nanométrico: a
dimensão do novo século”, do professor Henrique Toma (2004), seu impacto não se
restringirá apenas à física, à química, à biologia, à engenharia de materiais etc., mas à vida
como um todo. Ela irá confirmar que há uma quarta dimensão no espaço, o que irá criar uma
alteração, também, filosófica em nosso entendimento do mundo natural. Sem dúvida, isso
significa, por si só, mudança na forma de pensar o espaço e preparar-se para ver a ciência
dando os primeiros passos rumo ao conhecimento de um outro universo, intuído por muitos,
mas até agora fugidio e insistentemente se escondendo até mesmo de nossos sensores mais
apurados A esse respeito pensamos como Foucault (1984), que se trata mais do que analisar
comportamentos ou idéias, ou sociedades e suas ‘ideologias’, mas chegar às problematizações
através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado e as práticas a partir das
quais elas se formam. Conforme diz Lampton (1994, p. 118):
E quais são algumas das maneiras de fazer isto? Quem sabe? A tecnologia apresentou novos
modos de vida no passado e certamente fará isto novamente no futuro. Drexler sugeriu que
126
podemos desejar investir na colonização do espaço, para que as formas de vida terrestre
possam se expandir além do planeta, quase da mesma forma como se expandiram no planeta
até agora. Obviamente, isto pode não ser viável. Mas é o tipo de solução que deve ser
examinada melhor, se a nanotecnologia alterar o modo real como os seres humanos vivem – e
morrem.”
127
[...] numa palavra, o homem sabe que é miserável. Ele é, pois, miserável,
de vez que o é, mas é bem grande de
vez que o sabe.
(Pascal)
como um marco na biologia do século de XX. De outro ponto de vista, existe a observação,
igualmente irrefutável, daqueles que se ocupam da idéia de que o homem, sem deixar de ser
um ser natural, começa a se diferenciar da natureza à medida que vai se “descolando” dela.
Nesse modo de pensar, o homem vai se diferenciando, se transformando e
transformando a natureza, superando ao mesmo tempo sua condição biológica com o
surgimento da consciência. Enquanto conquista a consciência de ser e é também portador de
uma alma, ao viver desde os primeiríssimos anos de sua vida em um universo cultural em
primeira instância lingüístico, se diferencia de outros animais, destacando-se assim de
qualquer outro animal conhecido. Quanto a esta segunda posição, observamos em nossas
leituras que, nem Ridley (2004), zoólogo e jornalista britânico que retoma o debate sobre a
essência humana ao desafiar o suposto antagonismo entre a influência dos genes e a do
ambiente, e tampouco Armesto-Fernández, historiador que alerta para a importância de
repensar nossa relação com outros animais e com o ambiente, concedem à linguagem a
supremacia que tem sido dada à mesma como elemento capaz de estabelecer fronteira entre
humanos e outros animais. Bem antes, Cassirer (1993, p. 46) também já considerara que a
linguagem sempre se viu enlaçada em termos ditirâmbicos76, na autêntica expressão e prova
inegável daquela ‘razão’ que coloca o homem superior às bestas e a uma espécie de
antropoidolatria que se tributa a si mesma. De outro aspecto - e é uma impressão nossa - o
zoólogo e o historiador citados parecem compartilhar alguns pontos com o físico e biólogo
Boncinelli no que se refere também à consciência, no dizer deste último, “o lugar e o estado
que consideramos este Sancta Sanctorum da nossa interioridade”77, o que representa talvez o
problema dos problemas para qualquer análise mais séria e direta sobre lugar destacado que o
ser humano ocupa no reino animal. Os dualistas existenciais, por sua vez, ao situarem
distintamente o homem como ser de consciência em que esta exerce papel causal
determinante e é evocada como princípio último na explicação do comportamento, juntamente
76
CASSIRER, Ernst. Las ciencias de la cultura. México: Fondo de la Cultura Econômica, 1993.
Pensamos que faz referência a um sentido dionisíaco de querer criar algo para além de si, com o êxtase e
gestualidade dionisíaca e ditirâmbica lábia e delírio, próprios do ser humano, descontente de si mesmo, em
querer expressar-se não como indivíduo, senão como ser humano genérico. Numa passagem de O nascimento da
tragédia, Nietzsche analisa o efeito que o coro ditirâmbico dionisíaco provoca em seus partícipes, Afirma que é
um coro de transformados, cujo passado civil e posição social estão para eles inteiramente esquecidos, tornando-
se os servidores intemporais de seu deus, passando a habitar fora do tempo e de todas as esferas sociais
(NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Companhia das Letras, São Paulo, 1996).
77
BONCINELLI, Edoardo. Necessidade e contingência da natureza humana. Disponível em:
<http://www.interthesis.cfh.ufsc.br/interthesis7/01_v4n1_interthesis.pdf>. Acesso em 03 de setembro de 2007.
130
78
Qualidades fenomenais das experiências humanas, como sentimentos, sensações e emoções conscientes etc.
De modo geral, os qualia têm sido referidos como o conhecimento adquirido pela experiência humana e estão
cientificamente e comumente relacionados ao conceito de consciência, trazendo questionamentos sobre o
problema da relação corpo-mente, ou a que diz respeito ao material e ao espiritual.
131
É inegável que se trata de um ato bastante dificultado, por termos sido convencidos
pela visão representacionista de que cada um de nós é separado do mundo (e, em
conseqüência, das outras pessoas), o que acabou desencadeando fortes entraves em relação a
aceitar o “amor” como uma ação, uma atitude, em que o outro é aceito como legítimo outro,
no que diz respeito ao sentido da alteridade. Por seu lado, ao considerar a nova forma de
acercar-se da experiência cotidiana, Varela, recorrendo à fenomenologia, pretende situar-se na
contramão do que habitualmente foi estabelecido para examinar o comportamento humano e,
em particular, o comportamento ético, considerando que promover a diferença entre
comportamento ético e juízo moral, que demande interações e um despertar recíproco de
mudanças de estado por efeito da comunicação, em que a vida do dia-a-dia seja um contínuo
tecer de tramas comportamentais, que se coordenem reciprocamente, nos conduz
necessariamente a una nova forma de nos acercarmos da experiência cotidiana. Para muitos
de nós, acostumados a desprezar esta experiência e a supervalorizar o saber teórico e as
decisões da ciência, com sua proposta de acercar-se da experiência vivida, objetivando a volta
às coisas mesmas (processo que se inicia, de modo geral, a partir da confrontação direta com
os fatos imediatos que percebemos), Varela abre caminhos para que possamos jogar com
novas possibilidades em nossa existência. Mas, este retorno ao mundo da vida, tal como é
experimentado em sua imediatez, só se dá desde que tenhamos em conta as ações de nossa
vida, desde que entendamos as ações em sua totalidade ou nas manifestações de
comportamento que avaliamos, em que apareçam as ações éticas e sua imbricação em outras.
Aproximar os processos conciliando os dois termos da dicotomia naturezaxambiente,
é ainda uma contínua caminhada pela frente, e a tentativa parece não cessar nunca,
permanecendo ainda vivo o desafio de mostrar (o que nem sempre se consegue de maneira
clara e precisa como se gostaria) uma mútua co-determinação. Já tentamos isso antes, no
Mestrado, nos utilizando dos estudos que estão ainda recentes de Humberto Maturana
Romecín e Francisco Varella, em seus trabalhos fundamentados em bases biológicas sobre a
vida como um processo de conhecimento, sobre a diferença entre homem e os animais e sobre
o fosso que separa a ciência (o universo da objetividade) da experiência humana (o domínio
da subjetividade).
Na conhecida obra, A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão
humano (MATURANA; VARELA, 2005), tais autores proclamam que o conhecimento não
se limita ao processamento de informações oriundas de um mundo pré-dado, anterior à
experiência do observador, que simplesmente se apropria desse mundo para fragmentá-lo e
132
explorá-lo. Os seres vivos (e o homem é um dos tantos dentre eles), lembram estes autores,
são autônomos, autoprodutores, ou seja, capazes de produzir seus próprios componentes ao
interagir com o ambiente, vivendo no conhecimento e conhecendo no viver. Por essa razão,
nos tornamos, ao longo do nosso desenvolvimento histórico e evolutivo, seres sociais, pela
intensificação do convívio que se tornou possível mediante a “emoção de amar”, emoção esta
que se tornou banalizada com o tempo, mas que segundo os autores se configura como
condição sine qua non para a sobrevivência da espécie.
No discurso dos dois biólogos em questão, está claro que o “corte” cartesiano
profundo (filosofia dualista mecanicista de Descartes) entre o racional e o emocional também
banalizou a vida em si, uma vez que a razão passou a ser considerada apenas mais uma
“modalidade especial” da emoção. Este modo de pensar produziu ainda conseqüências
práticas e éticas como, por exemplo, as que reforçaram a crença de que o mundo é um objeto
à mercê da exploração do homem, tendo em vista sempre benefícios próprios, egoístas,
individualistas. A fragmentação mente-corpo culminou consequentemente na separação
sujeito-objeto, e este rompimento é para os autores, a principal característica da concepção
representacionista. Hoje – segundo Maturana e Varela, o representacionismo ainda perdura
para que continuemos convencidos de que somos separados do mundo e de que este existe
independentemente de nossa experiência.
A esse respeito, nos vem à mente um dado histórico, comentado por Hannah Arendt
em sua obra, As origens do totalitarismo (1998, pp 222-223), em relação aos “bôeres”, que
foram os primeiros colonizadores europeus em sua maioria descendentes de holandeses. Os
boeres ficaram perplexos com os negros, quando iniciaram a colonização da África do Sul no
século 17. Na verdade, o contato com os nativos sempre chocava os brancos europeus79, mas
não era propriamente a cor da pele o que tornava os negros tão diferentes para eles, e sim o
fato de que viviam de tal modo “misturados” à natureza, indiferenciados, como se fossem
parte da mesma, pois, ao contrário dos europeus, não haviam criado um âmbito humano
específico, separado do mundo natural. Essa ligação tão íntima dos negros com o ambiente,
sob o ponto de vista dos bôeres, transformava estes nativos em seres estranhos, como se eles
não pertencessem à espécie humana. Ora, europeus, brancos, representantes de uma cultura
que se concebia separada do mundo natural, os colonizadores não podiam admitir esse modo
79
MARIOTTI, Humberto. “Diálogo: a competência do conviver”. Comitê Paulista para a Década da
Cultura de Paz: um programa da UNESCO. Disponível em:
<http://www.comitepaz.org.br/download/Di%C3%A1logo%20-%20Humberto%20Mariotti.pdf>. Acesso em: 05
de setembro de 2007.
133
de viver. Pode ter resultado daí que, por serem representados como ‘parte da natureza’, os
negros tenham sido vistos apenas como mais um recurso natural a ser explorado. É possível
supor igualmente que da mesma maneira, Cristóvão Colombo teria pensado em relação aos
indígenas da América, ao deparar-se com eles, considerando-os como parte da fauna e da
flora; seus ornamentos, sua singularidade, portanto, eram belezas naturais, nada tendo a ver
com a condição de serem humanos.
Considerando essa e outras circunstâncias com o mesmo viés dualista, tem sido
concebido em literaturas que tratam deste assunto, que deste raciocínio simples pode ter
surgido um outro, mais grave: se algum “ser”, seja qual ele for, qualquer coisa, faz parte da
natureza, faz parte da fauna e da flora, podem e devem ser explorados. Este modo de pensar é
atribuído não à visão grega da natureza, mas à visão judaico-cristã em que a natureza, o
universo, perde o caráter sacral (adoração à natureza) e ganha o de exótico, passando a ser
motivo de temor. Esta ultima circunstância histórica teria favorecido: a) a visão mecanicista,
positivista e cartesiana do mundo (como o conceito de homem-máquina que contribuiu para
a formação de uma concepção fragmentada do universo), em que os seres humanos se auto-
intitulam ‘senhores da natureza’, separados dela (antropocentrismo) e superiores, e b) a visão
organicista, fisiológica e determinista, em que o ser humano não se concebe compreendido
fora do contexto biológico e ecológico, tratando-se de uma visão de homem como um sistema
fechado e isolado, movido pelo impulso de buscar a sua própria sobrevivência, que
compreende o todo e a conexão necessária entre as partes: corpo, mente, sociedade e natureza.
O ânimo de caráter utilitarista e extrativista que ainda persiste em nossos dias,
sustentado em certos tipos de atos tidos como certos ou errados, independentemente das
conseqüências que possam ter, é um exemplo do que traz em si a marca do cometimento
colonial, catequizador e domesticador dos processos civilizatórios. Pode-se afirmar que é um
caso do tipo de ‘alteridade’ que foi gerado quando o branco europeu, sob as idéias do projeto
iluminista de melhorar o homem, com suas raízes no humanismo da Renascença e no
deísmo80 da Inglaterra do século XVII. O iluminismo acreditava na emancipação da
humanidade pela ‘razão’, erigida como o grande guia (natureza e ciência a serviço do homem)
para iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade, impregnada de crenças religiosas e
misticismo, que, segundo os iluministas, bloqueavam a evolução do homem. O homem
passou a ser o centro de tudo e passou a buscar respostas para as questões que, até então, eram
80
Os deístas acreditavam em Deus, mas que este Deus agiria indiretamente nos homens, através das leis
naturais.
134
justificadas somente pela fé, vendo-se como o ‘humano civilizado’, responsável pelo domínio
da natureza, através de domínios e conquistas à imagem de si mesmo para manter elementos
que não conflitassem com a cultura européia. O projeto iluminista foi então a ocasião para o
desbanque da escuridão da magia e da superstição pela aplicação da ciência natural aos
costumes e valores sociais, momento onde a nova posição do homem diante do mundo tomou
um impulso inusitado graças a postulação da idéia de uma natureza humana duplamente
independente: de um lado, independente de Deus; de outro, uma natureza inteiramente
diferenciada da sociedade. Separam-se natureza (biológico), fé (Deus, religião) e cultura
(homem). Separam-se orgânico e inorgânico na natureza e no homem. Surge um domínio
inesgotável, a ser infinitamente explorado pelas novas técnicas que despontam como o ‘fruto
finalmente amadurecido, concreto das idéias científicas e que foram responsáveis por um
conjunto de extraordinárias transformações materiais e morais no seio da sociedade. Agora
existiam ‘natureza’ e ‘sociedade’ e, na sociedade, religião e política se colocavam como
esferas separadas. Não é de estranhar, pois, que um dos resultados do Iluminismo tenha sido a
idéia de que o Paraíso poderia ser construído neste mundo e não mais encontrado após a
morte num outro mundo: os habitats, os nichos, o oikos - a “casa”, o “lugar onde se vive”, o
“meio ambiente”, o “ecossistema” - passaram a ser cultuados em detrimento da interação
entre orgânico e inorgânico, bios e socius, natureza e homem, homem e seres irracionais etc.
Essas idéias foram fundamentalmente responsáveis pelo quadro de valores do
capitalismo, do mundo e dos indivíduos por ele constituídos, dando seguimento,
aprofundando e consolidando novas perspectivas no plano político e social, cujas implicações
mostraram e mostram ainda hoje o quanto o conhecimento e o domínio da natureza, como
condições básicas da liberdade humana, comprometeram nossa capacidade de pensar a vida
em sua integridade e a natureza em sua complexidade. Ambas – natureza e vida – passaram a
submeter-se à visão de alguma coisa como composta de dois elementos, totalmente
fragmentados, mas não por isso tão somente, o que é pior: quando não totalmente
indissociáveis, elementos justapostos, inimigos inconciliáveis.
Assim, se o colonizador europeu se projetou no ‘outro’, desconhecendo-lhe ou mesmo
negando-lhe a identidade, para o colonizado não apareceu, portanto, a possibilidade de ser ele
mesmo ‘outro’, visto que apareceu apenas como matéria a ser conquistada, colonizada,
modernizada, civilizada, às custas da dualidade mente/corpo subjacente ao modelo mental
fragmentador, que se traduz na separação entre o eu e o mundo, interioridade e exterioridade,
135
mínimo divisar uma difusa mancha no lugar onde o país está. A imensidão do universo e a
escala gigantesca das estrelas é impressionante. O conjunto de imagens da NASA, na Figura
2, permite perceber até que ponto uma coisa gigantesca se pode tornar um mísero ponto no
espaço. E tudo é apenas uma questão de perspectiva de escala de grandeza, pois, tão
impressionante como esta vastidão imensa que na escala humana não alcançamos, é o fato de
nela viverem pequenos e ínfimos seres, a sermos incapazes de compreender a significante
posição que a sua espécie ocupa no Cosmos e a insignificante pretensão que tem sido ditada
pela escala das dimensões humanas, perante o grande demais e o pequeno demais,
inconcebíveis sem equipamentos especiais que alcancem os objetos e fenômenos que existem
na escala de certos materiais que permitem que eles possam ter sentido para nossa vida.
81
Em Nietzsche se expressa uma vontade objetiva de ultrapassar que não tem fim, no curso de uma finalidade
sem fim, em que a satisfação buscada no ato de ultrapassamento é a partida e não a finalidade, fazendo sua
crítica à limitação da visão teleológica que compreende o universo como tendo sempre um fim último a ser
alcançado. Para o filósofo, introduzir a verdade é uma determinação ativa, como algo que deve ser criada e que
dá nome a um processo que tende ao infinito, e não como devir consciente de algo, pois este seria ‘em si’ firme e
determinado, seria visar o retorno do mesmo; trata-se do próprio vir de novo, mas do que passa como expressão
do diverso. Esta seria a relação nietzscheana da verdade com a vida, não enquanto relação de adequação, cópia,
ascensão, mas como criação, como transfiguração.
138
criada, o que dá nome a um processo constante de acolher e rejeitar algo, para que a própria
existência possa se desenvolver. Em decorrência disto, o conhecimento não tem por objetivo
atingir uma verdade, nem tem nenhuma afinidade com o mundo, o que faz Nietzsche
introduzir nas considerações acerca do conhecimento humano um pragmatismo avant la
lettre, precedente, a serviço dos desejos humanos, à sua ânsia de liberdade, como um objetivo.
A verdade não é, pois, correspondência a uma realidade preexistente, mas é o apontar para
alguma coisa que se em algum momento vier a existir, o será como uma criação inteiramente
humana. Nietzche, porém, no que diz respeito aos feitos científicos, critica as ciências
positivas, por sua visão quantitativa da vida, sua intromissão na moral, e relação com o
estado. Numa clara reivindicação da vida, critica diretamente toda moral imposta como norma
de conduta, tudo o que se dirige contra os instintos da vida e também a ordem moral do
mundo, concebendo que esta ordem provém do homem, o qual possui metas e leis, que são
parciais e humanas. A questão ética implícita nesse modo nietzscheano de conceber a verdade
corresponde à vontade de expansão e de superabundância de vida, em que os valores
dominantes não são mais do que algo “humano, demasiado humano”.
Husserl e Heidegger romperão com a dicotomia ser-mundo. Husserl estabelece a
necessidade de observar os fenômenos tal e como estes se apresentam, despojados de toda
explicação, juízo e introspecção, alicerçando as bases da fenomenologia contemporânea. Em
Heidegger (1996), este empenho é levado ao extremo, o que o fez perguntar pela
fenomenologia do que pergunta, ou seja, pergunta, novamente, pelo “ser”, mas observa que o
“ser” está no mundo, que não há “ser” sem mundo. Argumenta que o “ser” se encontra
lançado ao mundo, que não pode descer dele nem dele despojar-se. Para o filósofo, o “ser” e o
“mundo” (a natureza) são um só e mesmo fenômeno (Ibid). Com isso, além de dissolver as
categorias de ser-mundo, dissolve igualmente as categorias de sujeito-predicado, de sujeito-
objeto, por onde abre a porta para que seja balançada a estrutura que sustenta a dicotomia
teoria-prática.
Muito depois do pragmatismo vitalista de Nietzsche (que considera a vida, e
especialmente a vida humana, como a realidade primordial ou central, em que o bom é tudo o
que favoreça a vida), esta corrente vai ser o primeiro broto importante e original do
pensamento norte-americano. O nome “pragmatismo” está unido, sobretudo ao nome de
William James (1842-1910), que foi o primeiro a usar por escrito esta denominação, no ano
de 1898, porém a recebera de Charles Sanders Peirce (1839-1914), o legítimo iniciador da
doutrina, que nasceu originalmente como um método no interior da filosofia deste, explicitado
139
e catalogado depois como filosofia por James que se tornou seu máximo expositor e
sistematizador. Vamos ter como continuadores desta corrente, por uma parte, na linha que faz
convergir com o pragmatismo norte-americano, especialmente na tradição de Dewey; por
outra parte, na linha da filosofia pos-nietzscheana de Wittgenstein e Heidegger que retomam o
impulso poético como caminho de reflexão e, finalmente, faz convergir com a crítica de
filósofos como Quine e Davidson ao essencialismo e ao dogma do representacionismo.
Logo, não é difícil constatar que o fazer, o saber e a elaboração dos horizontes de vida
do homem sejam conformes a uma determinada filosofia e compreendidos como
representação. Esta representação não é intelectual, mas uma imagem idealizada (o sujeito
representacionista converte o mundo em imagem, o “ente” é somente na medida em que é
estabelecido pelo homem que o representa), a compreendermos melhor o velho modelo
colonizador do Ocidente ele mesmo representante de uma matriz cultural.
A prática cotidiana do representacionismo, tal e como se vive, hoje, cotidianamente,
pode assumir para nos a forma de lição. Sem dúvida, o representacionismo se constituiu no
paradigma dominante da cultura e do pensamento ocidental ao longo da história, fazendo-se
expressivo nas grandes discussões presentes no pensamento em curso que giraram em torno
do caráter espiritual ou material da realidade, de como esta muda ou permanece, de quais são
as fontes de seu dinamismo, da sua consistência, da realidade última etc. A cultura e o
pensamento ocidental deram por legitimamente assentada a existência da dualidade “ser-
realidade”, como duas naturezas diferentes. Ao considerar, portanto, o quanto foi imperante o
modo de pensar afirmado na existência de uma realidade externa, objetiva, distinta, diferente
e independente de quem conhece, como nas tantas dualidades com as quais convivemos em
termos de pensamento e ação e, no que diz respeito ao conhecimento, à cisão teoria-prática,
cabe de partida proceder a mais séria e tenaz interpretação crítica possível dos debates,
contrastes e posições sustentadas no representacionismo, com conhecimento de causa
suficiente para fazer a crítica a este paradigma e aos seus efeitos quanto à qualidade das
opiniões, profecias, idéias e conhecimentos sobre a nanotecnologia, nos mais diversos setores
das sociedades. Também consideramos que esta preocupação deve levar em conta o que é
próprio do representacionismo que está na base do academicismo, nos modos individual e
solitário de sustentar posições, o que é comum na educação latino-americana. Não é tampouco
no âmbito do representacionismo nem do extremismo da absoluta solidão cognoscitiva ou
solipsista, de julgar-se como o único sujeito de experiências (com os argumentos de que em
140
nossas ações. Por exemplo, se se está com uma perna fraturada, não se está disponível para
andar, para quase nada. Do mesmo modo, se se instala em nos o juízo de que a
nanotecnologia é um mal, é perigosa, é o fim do mundo, dificilmente teremos qualquer outro
valor para decidir sobre a mesma que não seja o de refutá-la. Para Maturana e para os muitos
dos pensadores que se coadunam com as suas idéias, nós humanos não vivemos na
linguagem. Em rigor, vivemos conversando, vivemos em conversações. E no dizer de
Maturana, as conversações são o trançado permanente da linguagem com a emoção.
Fenomenologicamente, si observamos o que os humanos fazemos, veremos que basicamente,
estamos quase sempre conversando. Estamos coordenando ações. Ditas ações apontam para
coordenações humanas e geralmente também envolvem o uso de objetos como úteis a mão,
como ferramentas que se manejam com destreza e que servem para que melhor coordenemos
outras ações. Nesta interpretação, a linguagem é ação. Nesta fenomenologia, aprender é
dispor das distinções lingüísticas que nos possibilitam entrar em novas conversações mediante
as quais ampliamos nossas possibilidades de coordenar ações. Se observarmos o fenômeno do
“conhecer”, faz pleno sentido a afirmação de que as ciências e as artes podem ser
consideradas “linguagens especializadas”, no sentido de que denotam coordenação de ações e
em um âmbito preciso: o das matemáticas, o da literatura, o da física etc.
Nesta perspectiva, as exigências tecnológicas novas e emergentes cobram um sentido
novo. Por exemplo, o domínio dos aparelhos para estudos de materiais à escala nanométrica,
se tornaram indispensáveis para criar simulações e mundos virtuais nos quais se façam
visíveis os fenômenos em sua complexidade, e se opere com eles trabalhando em equipes, ou
para que cada um possa desenvolver sua atividade específica, ou simplesmente para que cada
um faça o estudo que deseja ou simplesmente para ter o que conversar sobre os temas
complexos da vida do século XXI, como sobre a biotecnologia, células-tronco, clonagem,
colonização extraterrestre, nanotecnologia etc., que não são alheios às matemáticas, à
literatura ou a ciência, nem constituem “letra morta” senão conversação viva e ativa,
aprendizagem da realidade; da (realidade) que elaboramos e na qual estamos mergulhados
convivendo e conversando com os seres humanos.
142
transforme o ser de si mesmo, tomando a isto como ponto de partida de uma moral do
sujeito ético da ação; neste caso, também Foucault nos oferece com sua ética uma teoria
coerente acerca da natureza dos juízos de valor. E Husserl com sua fenomenologia da
existência e seus desdobramentos concretos, afetivos e existenciais.
Por acaso, parece que vivemos hoje o confronto de duas grandes concepções éticas:
uma subjetiva e outra objetiva; uma natural, que já observamos em capítulos anteriores que
marcou profundamente a formação humanista ocidental, e uma outra a priori, como ponto
de partida da maior parte das teorias éticas posteriores a Kant; ambas, ao mesmo tempo em
que são mutuamente críticas, não o são uma elucidativa da outra? Cabe indagar se por acaso
as éticas atuais, como as teorias da técnica, da justiça, e da comunicação, por exemplo, não
se alimentam nestas duas fontes? Temos ainda a acrescentar que Nietzsche e Max Scheler
coincidem em atribuir a gênese dos juízos de valor, que integram o ethos da modernidade,
ao ressentimento provocado pela consciência de inferioridade dos fracos, à força da religião
cristã e da burguesia. António Damásio que interpreta a maneira como pensamos a relação
entre os nossos sentimentos e as nossas emoções, apontando que falta ainda muito que fazer
na investigação do problema mente-corpo, e que a compreensão dos conflitos internacionais
poderia ser melhorada se houvesse uma compreensão mais correta do que a que se passa no
mundo das emoções. E Maturana e Varela, com suas obras voltadas para a discussão dos
fundamentos biológicos do conhecimento e do autoconhecimento.
Sem ser preciso nos remeter a tantos outros pensadores expressivos, afirmamos que,
para nós, essas dificuldades se prendem, sobretudo, às heranças do representacionismo e do
solipsismo, nas suas formas estanques, que nos afastaram da importante questão da
“compreensão do si” para alcançarmos a “compreensão do outro”. Não sabemos se convém
o termo, mas diríamos da aceitação do “estrangeiro”, do “estranho”, que invade nossa
realidade, como parece ser o caso da forma de defrontar-se com a invasão de tantas
tecnologias, que, por suas características tão exotéricas, muitas delas são vistas como objetos
“alienígenas”, sem que se tenha qualquer idéia de que planetas vieram. Interferimos que,
perante tais questionamentos e impasses, as contribuições de Maturana e Varela são
importantes, porque conferem alguma autoridade a cada pessoa sobre o que pensa a respeito
da natureza, do homem, da ciência, da nanotecnologia. Assim, faz sentido que a certeza no
chamado conhecimento puramente objetivo seja inviável, porque, mesmo que muitas
doutrinas de pensamento tivessem defendido isso, ambos os autores não concebem o
145
observador separado dos fenômenos que observa, nem como um deus no topo de um “tripé”
que observa de fora um fenômeno: trata-se de um observador atuante, em ação.
Se tomarmos como certo os postulados de que o conhecimento opera como um
sistema determinado, desde o interior, mediante suas próprias estruturas, e que isto traz
como conseqüência que o observador não pode dar explicações da realidade, se não somente
as que tenham sido produzidas por suas próprias operações e que ocasionam uma mudança
estrutural determinada em sua estrutura temos um contraponto. Existindo tantas explicações
quanto observadores que participam nelas, teremos a oportunidade de abarcar a realidade e
de estabelecer fatos simples ou complexos, seremos capazes de saber se uma dessas tantas
explicações se corresponde com uma realidade comum (e objetiva, além disso); de saber se
o processo de estabelecimento do próprio fato científico incide sobre um observador em
forma distinta com respeito a outro, em virtude de que, em cada um deles, transcorrem
operações singulares, que ocasionam mudanças estruturais singulares de sua própria singular
estrutura.
O que pudemos inferir até aqui, e assinalar é que se somos determinados pelo modo
como se interligam e funcionam os “fragmentos”, para não dizer partes ou divisões, de que
somos feitos, ou seja, pela nossa condição de natureza, a visão que cada um de nós pode ter
de alguma coisa, só pode desencadear em nós o que essa condição possibilita. Neste ponto,
Maturana e Varela entram na questão da “verdade”, com sua argumentação lógica de que a
partir de uma visão dividida e limitada às custas da tradição cartesiana, não podemos chegar à
“verdade” e mostrá-la aos outros, como sendo a “verdade” que julgamos ser a mesma para
todos. Isso é válido para a forma como as tecnologias estão sendo entendidas na sociedade.
Os autores também destacam, com relação a esta forma de operar do organismo e na
descrição das suas condutas, a importância do papel da linguagem humana, cuja
recursividade se institui como um sistema infinitamente produtivo de contínuas relações e do
que chamam acoplamentos estruturais. Quiseram-nos mostrar com o conceito de autopoiesis
(que de algum modo nos reporta a techné e à poéisis dos gregos, no sentido do fazer bem
feito e do revelar), que não vivemos de meros contatos com o mundo nem a processar cópias
dele ou submetidos, simplesmente, aos seus bombardeios de todos os lados e tipos, como
alvos das pressões do ambiente, mas que existe uma autêntica congruência de
comportamentos entre vários sistemas ou unidades. Deduzimos que estes modos de operar
são, além de consensuais, recorrentes e recursivos, porque se trata de uma congruência que se
repete de modo contínuo e sistemático e porque os resultados desse processo são novamente
146
85
Para Nietzsche, criação (ou latência) não é o que se tem pressuposto como desejo de poder, nem como o
querer subjetivo do homem, mas como aquilo que quer na vontade, que deseja conquistar, uma vontade de
durar, permanecer vivo. Enfim, criação é no homem o impulso para fora de si, de autoconservação da vida para
se satisfazer no objeto, ao mesmo tempo em se que realiza a experiência da satisfação e da insatisfação, isto é, da
satisfação com a reprodução infinita da necessidade e da insatisfação enquanto desejo permanente. Nessa gama
de movimentos, tanto o que se chama de bem como o que se chama de mau, são condições pragmáticas da vida e
da luta pela afirmação da mesma. Para Nietzsche, então, tudo o que diz respeito ao corpo está naquilo que ele de
fato é cada um dos nossos movimentos corporais, conscientes ou não, são exatamente tudo aquilo que o corpo é:
vontade, desejo, impulso em direção à procura do prazer e à fuga da dor. Isto é importante para situarmos o papel
das células-tronco, da nanotecnologia, por exemplo, hoje bastante aliadas à cura da dor, ao prazer, ao alívio do
mal.
147
lingüísticas, que podem ser designadas como saber prático. Ao menos não se recai no curso
determinista da finalidade em tal mecanismo, mas com as características que a experiência
humana vivida determinou (DELEUZE,1976), e que as novas ciências da mente e também a
filosofia ocidental precisam abarcar como possibilidade de “transformação da experiência do
homem” tanto em si mesmo como em relação aos demais seres. Estamos de acordo com
Varela (2000), ao considerar que a experiência cotidiana precisa enriquecer-se com os
conceitos e análises que as ciências cognitivas têm alcançado, o que aproxima o “mundo da
vida” de Husserl (defende o retorno ao mundo vivido, oculto pela impregnação dos resultados
científicos e com suas influências projetadas sobre a experiência sensível), cuja tarefa precisa
se tornar clara, do “mundo do mais-ou-menos”, do impreciso de Koyré (1980), e que a vida
cotidiana permita um desfrutar do tempo vivido não tão restrita ao universo da precisão.
Desse modo, é possível que muitas das questões que à simples vista se apresentam
como científicos e técnicos, em especial com relação à nanotecnologia, assunto que estamos
explorando neste estudo, não sejam mais tratados separadamente de outras importantes
preocupações intensamente éticas, que, por sua vez, reclamam uma compreensão
distintamente nova, e do mesmo modo, profunda a respeito da dignidade da vida humana. Daí
o ponto central em que se insere a ética: quando o mundo da vida – em nossos ditos
macromundo, micromundo e mais recentemente, nanomundo - é pensado como a nossa
história corporal e social, tomando a direção da sua origem e desenvolvimento em curso,
depois que a vista foi impressionada pela filosofia abstrata, traço tão comum à filosofia
ocidental (alheação tanto na racionalidade clássica, classificando a experiência como
conhecimento inferior, como na racionalidade moderna), em que a experiência é objetivada,
controlada, calculada e convertida em experimento, a ética merece ser colocada em situações
fundamentalmente novas. Nossos gestos, nossas posturas corporais, as manifestações e
respostas imediatas de nosso corpo são atos de natureza propriamente ética em que nos
desenvolvemos cotidianamente, representando o tipo mais comum de conduta ética que
manifestamos em nossa vida normal, o que nos permite dizer que tanto a ética como o
conhecer habitam o corpo e, pela mesma razão, estão entrelaçados.
Segundo Varela, com relação ao reconhecimento da importância da experiência
humana, esta foi uma tarefa que ficou pendente nas ciências ocidentais. Entretanto, sem perda
de tempo devemos começar a pôr em evidência que nossos corpos não são tão somente
estruturas físicas, mas também estruturas vividas e experienciais, o que se pode fazer
seguindo por caminhos teóricos acerca da vida e da mente e, por outra parte, de nossa
148
86
Varela destacou-se como estudioso de relevância mundial no campo da neurociência cognitiva, abrindo vias
exploratórias através do que denominou neurofenomenologia, onde aparece a influência de Maurice Merleau-
Ponty, as contribuições da fenomenologia e do pragmatismo, e também o vínculo que faz entre a fenomenologia
e as tradições da sabedoria oriental.
149
Searle, em poucas palavras, chamou a atenção para o fato de que o fator causal da
percepção integra a própria experiência do sujeito que percebe. Isso quer dizer que a causação
perceptual não é apenas por nós indiretamente conhecida, inferida a partir do que sabemos
acerca do mundo, mas é diretamente dada na própria experiência perceptual. Para Searle, o
conteúdo da intencionalidade sensorial é causalmente auto-referencial, o que passou
despercebido para toda a tradição representacionista - da “teoria das idéias” de Locke e
Descartes às atuais filosofias da mente e neuropsicologia cognitiva. Segundo o filósofo, John
Searle (2000), a confiança ocidental na racionalidade humana foi abalada no século XX em
virtude de alguns resultados surpreendentes a que chegou a ciência, particularmente a Física.
Searle e Dreyfus estabeleceram debates em torno da noção de intenção-em-ação e da
adequada caracterização a ser oferecida das capacidades, habilidades e práticas que
constituiriam o pano de fundo dos comportamentos intencionais.
Para Merleau-Ponty, consciência e corpo são tidos como inseparáveis. Há uma
consciência perceptiva complementar à consciência representativa, não se podendo separar o
sujeito e o objeto, como fazem as ciências naturais e as ciências sociais de base positivista.
Como Husserl, Merleau-Ponty enfatiza o conceito de ser-no-mundo, buscando compreender a
experiência do mundo vivido e sua expressão pelo corpo próprio. Para o filósofo, o corpo
encarna a possibilidade de compreensão dos gestos e das palavras, cuja apreensão está na
reciprocidade de comportamentos vividos na dimensão social, mas cujo sentido da linguagem
expressiva foi expropriado da palavra pelas concepções empirista e idealista, fundadas na
dicotomia cartesiana. Concebe que a expressão de linguagem modifica e transcende o
fenômeno dado na percepção, transcendendo-se a si mesma, já que seu movimento consiste
sempre em nos atirar além, nas fronteiras entre o visível e o invisível, sondando as relações
entre um mundo e outro. Desse modo, inclui-se a experiência vivida num escopo mais
abrangente, chamando a atenção para o poder de conhecer de que dispomos pela experiência
vivida, algo que a ciência ocidental não conheceu por supervalorizar os meios e fins das
parafernálias tecnológicas e desprezar as práticas de atenção-consciência presentes nas
culturas orientais milenares.
Como já mencionado antes, no sub-capitulo 3.1, estas foram e são freqüentemente
consideradas práticas (ou experiências) místicas, metafísicas, religiosas e transcendentais, por
afirmarem uma íntima proximidade da consciência com a realidade, apegada ao mundo, capaz
de tocar o até então “incognoscível”, em novas bases de ação, pelas vias convencionais do
aparato sensorial.
150
87
Enação é um neologismo que corresponde à tradução do termo inglês enactio. Vem do verbo enact, que
significa “efetivar” ou “atuar”, daí ter sido traduzido também como atuação. O termo é proposto por Varela para
substituir a “representação” como categoria cognitiva privilegiada, valorizando a especificidade conceitual.
Trata-se de uma categoria híbrida de “pensamento” e “ação”, assim como na tese de Bergson da
indissociabilidade entre percepção e ação, a percepção é uma categoria híbrida de “matéria” e “memória”,
rejeitando qualquer pretensão de hierarquia entre seus componentes.
88
Vale lembrar que o termo enação, proposto por Varela, relaciona-se diretamente com a compreensão
da cognição (Maturana e Varela, 1997), e, para o autor, depende da experiência de ter um corpo e suas
151
enativo, surge junto ao mundo que conhece e não pode afirmar sua primazia a respeito do
conhecimento. Assim vemos que todas as tecnologias surgem com o homem e o mundo,
simultaneammente, como expressão da vida em curso, em suas “bricolagens” e
“parangolagens”, sem clichê, mas no sentido com que vemos a capa da vida, que não
desfralda plenamente seus tons, cores, formas, texturas, as impregnações dos seus suportes
materiais, senão a partir dos movimentos, da sua dança inquieta e constante, da sua
criatividade, do seu percurso construtivo, divertido e trágico, ao mesmo tempo, sem esquemas
predeterminados, que nos dá sentido ao momento presente, criando laços de amizade, de
amor, de afetividade, fazendo redes e nos fazendo livres; livres porque queremos.
Retomando o caso da visão representacionista, ao conceber que somos separados do
mundo e que o mundo, existe independentemente de nossa experiência, não apenas a teoria
foi convertida numa atividade pura do pensamento, e o teórico, em um mero e desinteressado
expectador limitado a descobrir o mundo tal como “é”, mas também criou um profundo fosso
que separou a ciência da experiência humana. Ou seja, os objetos de estudo da ciência (o
universo da objetividade) se tornaram um “aí ativo”, colocados frente ao sujeito (o domínio da
subjetividade), um elemento passivo no ato do conhecimento. O conhecimento não opera por
representação do mundo exterior, mas está intrinsecamente atrelado ao mundo em relação de
co-especificação mútua: sujeito que conhece e objeto conhecido especificam-se mutuamente,
ou se co-especificam. Consideramos que o representacionismo, com a sua concepção de
mente como “espelho da natureza”, também produziu conseqüências práticas e éticas a
exemplo do que aconteceu com muitas outras posições teóricas. No sentido de serem as
representações mentais concebidas como entidades de existência independentes com respeito
a algo e que ocupam o lugar de alguma outra coisa, de um outro conteúdo, restou ao ser
humano interagir bem mais com representações de coisas e de pessoas do que com objetos e
com seus semelhantes. Deste modo, as representações alcançaram o poder de guiar
comportamentos ou modos de ser, carregando um conteúdo e culminando em um
comportamento como o que subjaz à pretensão de que continuemos convencidos de que
somos separados do mundo, e de que o mundo existe independentemente de nossa
capacidades sensório-motoras enquadradas num grande contexto cultural e biológico. Percepção e ação são
inseparáveis, operam juntas, e o mundo é recriado por seus acoplamentos estruturais. Assmann (1996) traduziu
enação como “fazer emergir”, a partir do espanhol enacção e do inglês enaction. A cognição emerge da presença
do corpo, da experiência vivida e da capacidade de se movimentar do ser humano, não podendo ser separada de
sua linguagem, de sua história. As ações do corpo, neste lugar, fazem de cada participante um agente de enação.
O sistema cognitivo cria, pois, seu próprio mundo, que resulta de aspectos internos preexistentes os quais,
mutuamente ou em co-determinação, definem eles mesmos o mundo a ser criado por seu acoplamento estrutural.
152
89
Podemos citar: o sociólogo e filósofo Edgar Morin; o filósofo Karl Otto Apel; o sociólogo Zygmunt Bauman;
o filósofo e sociólogo Jurgen Habermas; o entomologista e biólogo Edward Osborne Wilson; o filósofo John
Rogers Searle; o filósofo, sociólogo e teólogo Hugo Assmann; o filósofo e político italiano Gianni Vattimo; o
filósofo, matemático e físico teórico Gérard Fourez; o físico e filósofo Alan Francis Chalmers; o sociólogo
Boaventura de Sousa Santos); o físico e biólogo Edoardo Boncinelli; o filósofo e psicanalista Umberto
Galimberti; o filósofo Giorgio Agamben; o médico e neurocientista António Damásio; o filósofo da política,
Roberto Esposito; o sociólogo, Laymert Garcia dos Santos; o sociólogo do conhecimento Yves Lenoir; o
psicólogo e lingüista Steven Pinker, entre outros.
153
para seguir em frente, não fosse um trabalho feito por humanos. Trata-se de uma experiência
noutra concepção, no sentido de que fala Walter Benjamin (1984, p. 25), como aquela na qual
somos tocados, de onde saímos transformados. Por isso é que esses autores, que estão
reformulando a discussão, vêm se apoiando em conceitos capturados das ciências naturais e
nos conhecimentos da genética e das neurociências, relacionando-os, de maneira consistente,
com trabalhos pertinentes, mas de outras disciplinas, como psicologia, sociologia,
antropologia, primatologia, lingüística e biologia evolucionista, entre outras.
É neste rumo que o neurologista António Damásio90, na abordagem da natureza do
homem e das regras da vida social, argumenta sobre a necessidade da inclusão das ciências
sociais e humanas ao lado das neurociências e das ciências cognitivas, dizendo que: “Para isto
é preciso empregar uma abordagem experimental ampliada: além das neurociências e das
ciências cognitivas, deve-se levar em conta as ciências sociais e humanas.” Edward O. Wilson
(1999) também considera que a biologia pode preencher o hiato entre as ciências da natureza
e as ciências humanas. Por sua vez, Norbert Elias denuncia a cisão entre ciências humanas e
naturais como produto do desenvolvimento de um conhecimento estanque e particularizado.
Como conseqüência disso, fica mais difícil captar as múltiplas relações estabelecidas entre
homem e tempo. Parece que a ciência ainda carece de instrumentos para captar eventos de
forma processual e interdisciplinar. Elias faz comparações dos modos como diferentes
civilizações determinam o tempo, estabelece funções universais para o modo como esse
coordena as experiências humanas entre natureza e sociedade. Este sociólogo diz ainda que
A tendência de cada grupo de cientistas de considerar seu próprio domínio como sacrossanto e
como uma fortaleza para proteger intrusos com um fosso de convencionalismos e ideologias
comuns àquela especialidade, obstrui qualquer intenção de relacionar as distintas áreas
científicas mediante um marco de referência teórico comum. Tal como estão as coisas, é difícil
derrubar essas barreiras, quando nos ocupamos do problema do tempo (ELIAS, 1989, p. 110).
Não se pode negar que estas são tarefas árduas, pois, como pondera Ridley (2004, p.
384): “Em vez de um progresso majestoso para o esclarecimento, o século XX tornou-se um
choque de idéias, uma guerra de cem anos entre as forças da natureza e as forças da criação”.
E como estamos tratando de avanços da técnica, em especial, falando de nanotecnologia,
afirmamos uma posição deste autor de que a linguagem e a tecnologia alteraram
drasticamente o destino da espécie, mudando a cada ano, a cada dia. O salto cultural dado,
mas tardio para Ridley (Idem, p. 284) em relação à evolução humana, como num zás foi
90
Entrevista concedida por António DAMÁSIO. Revista: Viver Mente & Cérebro Scientific American Ano
XIII Nº 143, dez. 2004 (www.vivermentecerebro.com). Disponível em:
<http://www.psiquiatriageral.com.br/cerebro/entrevista_antonio_damasio.htm>. Acesso em: 12 de nov. de 2007.
154
mudando o mundo, a vida, sem esperar que os genes a alcançassem. À maneira do pensar
proustiano, os dias, talvez, continuem iguais para um relógio, mas não para o ser humano.
Ridley (Idem, p. 289), em sua tentativa de examinar os critérios sobre a relação entre natureza
e cultura, iluminada por uma linguagem leve, argumentar, que os genes são uma espécie de
“dentes de engrenagem” e não “deuses no céu”, fazendo, por isso mesmo, muito mais que
simplesmente portar talentosas informações, como numa caixinha de surpresa. Os genes estão
abertos à experiência, absorvem-na, intercambiam com ela e até a norteiam; “reagem” a
fatores ambientais e acoplam-se aos mesmos, enfim, nos fazem perceber que o sucesso da
natureza e da cultura não são excludentes, um não implica na derrota do outro. “Não se
‘observa' do mesmo modo um neutrino, um micróbio, uma cratera sobre a Lua, uma nota de
música, um gosto de açúcar ou um pôr-do-sol” (FOUREZ, 1995: 41).
Com base nesses novos posicionamentos, ponderemos que a nanotecnologia deverá
também marcar outras conquistas e transformações na sociedade, assim como outras
inovações anteriores representaram avanços sociais e assinalaram o tempo de determinada
sociedade. Se pensarmos ao modo de Heidegger (BRUSEKE, 2005) a respeito do significado
do “morar”91, que para nós acontece sempre no mundo como um “morar-junto”, junto com
as coisas e com os outros (um dos pilares da ética finitista de Heidegger, que implica grandes
conseqüências para o comportamento social), numa espécie de resguardar-se, “lugar” e
“morar” - o que nos faz pensar no rumo das mudanças que com a nanotecnologia estão
despontando, como a capacidade ampliada de “espaço” na hora de armazenar informações,
que pode encolher a níveis absurdos o tamanho do suporte para gravá-las - , ganham outros
contornos, e consideramos que, no sentido ético, também. Pensando em “lugar” e “espaço”
com a nanotecnologia se torna possível a configuração e a mensuração de grandezas físicas de
diversas naturezas, como as que se referem à idéia de universo que temos e às conquistas
espaciais.
Na vida tem sido assim, temos de fazer coisas a todo o momento, e cada vez que
precisamos tomar uma decisão ou temos que fazê-las, uma dura realidade se impõe a nós,
segundo alerta Galimberti (1999b, p. 38-9): a de que vivemos na ilusão de que controlamos o
futuro, enquanto que é a técnica a forma mais alta de racionalidade e determinante dos rumos
da humanidade. O filósofo considera que não é mais a ética que escolhe o fim e instrui a
técnica a encontrar os meios, mas é a técnica que, assumindo como fim os resultados dos seus
91
BRÜSEKE, Franz Josef. Ética e técnica? Dialogando com Marx, Spengler, Jünger, Heidegger e Jonas
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/asoc/v8n2/28604.pdf>. Acesso em: 12 de outubro de 2006.
155
procedimentos, condiciona a ética obrigando-a a tomar posições sobre a realidade, não mais
natural, mas artificial, que a tecnologia não pára de construir e tornar possível,
independentemente se a posição tomada seja ou não ética.
Sublinhamos, quando Galimberti fala que o agir se subordina ao fazer pelos ditames
da técnica, que na visão pragmatista-kantiana, assim nos parece, existe um desacreditar da
antecipação de uma teoria ética dogmaticamente construída, senão que concebe que cada um
tem o poder de pensar por si mesmo, com respeito à pergunta sobre como viver. É importante,
então, que busquemos pensar em como podemos impedir que os homens façam tudo o que
puderem desenfreadamente fazer, mas sem a ‘moral da intenção’ inaugurada pelo
cristianismo, nem em termos da razão pura prática de Kant 92, ambas (também conhecidas por
deontológicas) sustentadas no lema máximo da ética que é o bem comum e em reflexões
éticas, aptas a asseverar que o homem é o fim último e o maior de todos os valores. Ambas
são ainda baseadas no dever e implicam ações que devemos executar ou não e num agir
moralmente, que equivale a cumprir o nosso dever, sejam quais forem as conseqüências que
daí surgirem. Por sua parte, a ética cristã, sem renunciar ao formalismo, pretende uma
sociedade justa que pode ser realizada somente no respeito pela dignidade transcendente da
pessoa humana, o que representa o fim último da sociedade, em que o Deus legislador é que
decide o certo e o errado. É a caridade que reúne todos os homens e que faz de todos irmãos
entre si dos seus semelhantes. Kant, por sua vez, imputando à razão a capacidade para criar
leis morais de aplicação universal, substitui o Deus legislador da ética cristã pela razão
humana universal. Ou seja, é a razão universal que dita a lei moral. É certo que existem coisas
que são universais à forma humana, atributos pertencentes à nossa essência de seres pensantes
e comunicantes, mas existem também diferenças entre indivíduos. Para ambas, ética cristã e
kantiana, a razão é que comanda o bem, as paixões deveriam ser domadas pelo intelecto por
meio da vontade. Somente conhecendo-se o bem é possível levar uma vida virtuosa e
organizar a sociedade. Esta é a base da santidade cristã e do imperativo categórico kantiano.
92
Em que o imperativo é a fórmula de determinação da ação, e nesse caso ele é categórico por determinar a ação
como objetivamente necessária por si mesma, sem qualquer objetivo ulterior que não o respeito à lei prática. A
razão prática tem a capacidade de dar-se suas próprias leis, e a autonomia deriva de que aquele que obedece à lei
obedece apenas a si próprio, ou seja, é livre. Acaba prevalecendo o “Age apenas segundo uma máxima tal que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2002a, p. 59), sem se preocupar com a
condição individual na qual cada um se encontra perante esse dever. Todos os imperativos derivam do dever e
querer que seus efeitos façam parte da natureza, e não na responsabilidade (política) do saber, conforme a qual
os indivíduos conduzem suas ações de forma a atender a uma racionalidade dos fins pretendidos, orientando-se
para o uso dos meios necessários para alcançar determinado fim.
156
Para Galimberti, uma vez que ele se fundamenta no princípio subjetivo do querer sem
propriamente levar em consideração a conseqüência objetiva da ação, porque só quer
salvaguardar a “boa intenção” de que devemos tratar os outros homens sempre como um fim
em si, e não como um meio para qualquer outra coisa, a ética cristã não está à altura do “faro
técnico”. Em outro modo de dizer, a ética cristã não está a altura do fenômeno da ciência
tecnológica, que construiu uma sociedade pragmática e imediatista para decidir as questões
importantes do dia-a-dia. Por ficar de fora uma ética universal e ao mesmo tempo
responsável, não se poderá, então, com a moral cristã e a moral kantiana avançar na discussão
das questões pertinentes à nanotecnologia, que são de interesses de todos, isto é, da
responsabilidade social. Por isso, segundo nos foi possível constatar mediante a preocupação
de Galimberti, elas não constituiriam as dimensões eticamente relevantes.
A ética de responsabilidade, depois de Weber, vai ser retomada com intensidade por
Hans Jonas, com seu Princípio da Responsabilidade, para proceder a uma avaliação crítica da
ciência e da tecnologia moderna. Ela busca mostrar a necessidade do ser humano de agir com
parcimônia e humildade diante do extremo poder transformador da técnica, sobretudo, do que
considera “técnicas extra-humanas”. À luz de seu Princípio da Responsabilidade,
considerando atualmente a importância e contingência dos problemas pertinentes ao domínio
técnico da biotecnologia, da nanotecnologia e da já denominada nanobiotecnologia, que são
inegáveis, revigoram-se as discussões sobre a questão ética, que está sendo catalisadora para
um reexame dos valores humanos e para o reencaminhamento das preocupações acerca de
uma responsabilidade para com o bem comum. Este momento em que parecemos sair de um
torpor paralisante, por ausência de referências distintas das que tínhamos até então, exige uma
nova leitura das relações que se estabelecem entre o ser humano, a ciência, a tecnologia e a
natureza, que torne possível tomar posições éticas que respondam a algumas das interrogações
lançadas, a propósito das novas possibilidades de intervenção da nanotecnologia em vários
domínios da vida.
Apel (Ibid.), que também contribui com suas reflexões sobre a relação entre ciência,
técnica e ética, assinala que existe um novo paradoxo: a carência de uma ética universal
afirmada pela necessidade de manter a sobrevivência da vida humana e da biosfera, diante do
avanço do uso destrutivo da tecnologia. Para o filósofo, há o problema de natureza
gnosiológica quanto à impossibilidade de solucionar racional e consensualmente os problemas
que surgem, segundo o filósofo, tem comprometido as normas morais nas relações entre os
grupos humanos, principalmente nas instituições conservadoras, reclamando uma ética que
157
como uma das principais chaves de reflexão ética, da forma de viver, conforme muitos dos
obstáculos que temos colocado, com relação à dualidade natureza-cultura. A vida humana tem
sido assim, incluindo sempre algumas medidas como o aumento da responsabilidade, do
poder, do cuidado, da vigilância etc., para a definição de decisões a tomar e distinguir as
respostas a determinadas perguntas persistentes ainda em nosso tempo, que se vinculam ao
que é bem e mal, à distinção entre o certo e o errado, a exemplo das que indagam se o melhor
é o “mais forte”, se o “maior” é o “menos perigoso”, se é “melhor” sofrer uma injustiça que
praticá-la.
Nas nossas expectativas conseqüencialistas, em geral, condicionados que fomos a
esperar por um “fim” em toda ação humana, e indiscutivelmente sempre primando pelos
finais felizes, fomos sacudidos em nossa forma de pensar ao prenúncio dos anúncios de um
fim iminente. Começou-se a falar na ligação de efeito destrutivo entre a biotecnologia e a
nanotecnologia e a dimensão de um mundo pós-humano face a manipulação da existência
com a morte do orgânico pelo domínio dos artifícios técnicos (FIMIANI et al., 2004), na
técnica como condição de “fim da história”, de supressão de tudo e “fim do ambiente
universo”, no “fim do homem” (GALIMBERTI, 2003), na negação contemporânea da
natureza humana, e também na refutação da cultura como moldadora exclusiva da mente.
Nada é muito prazeroso nem há promessas de felicidade. Constatamos, então, no rumo dessa
ordem de “tragédias” conseqüencialistas, a necessidade de tomarmos uma tarefa ética: a de
averiguar posições teóricas, abordagens críticas e pontos de vistas distintos, e suas influências
identificadas com as principais correntes de pensamento, tendo em conta que muitos dos que
estão à frente do debate em torno da nanotecnologia, agem como agentes de transformação e
contribuem para elucidar ou não alternativas de mudança. À medida que avançamos por esse
caminho, somos sendo bombardeados por uma série de questões que, se estavam
adormecidas, abruptamente despertaram como que de um período hibernal, sequiosas por
respostas. Perguntas como: O que é a vida? O que é a realidade? Quem somos nós? O que
nos faz humanos? O que é a vida?, e temáticas como “técnica e biopoder”, “dilemas éticos,
morais e culturais ocasionados pela técnica moderna”, o “futuro da natureza humana”,
“dicotomia natureza e cultura”, entre outros, colocaram para a nanotecnologia a necessidade
de uma ética.
Conforme já evidenciamos, as pesquisas em nanotecnologia estão sendo apontadas
como mais um dilema moral, já que seu uso pode trazer “conseqüências” profundas para a
humanidade e para o planeta, como um dos destinos que vem sendo traçado para a
159
93
A consciência da morte é a mesma entrelaçada à vida e é inerente ao ser humano. Observações sobre os
bonobos, chimpanzés que vivem na floresta da Costa d'Avorio, na África, são um exemplo de sentido da dor e de
cura pelo corpo de um companheiro morto (Christophe Boesch ed Hedwige Boesch-Ammerman, 1989).
161
Figura 20: Pós-Humana? Mãos da pesquisadora, em que aparecem os resultados do uso com o mouse do
computador (provavelmente incorreto e descuidado), que se pode observar na envergadura do
dedo mínimo da mão direita e na calosidade perto do punho, no mesmo braço, pela forma de
apoio da mão no uso do mouse.
Fonte: Acervo da autora, 2007.
A aproximação com a arte, como techne, nos parece estar bem presente na trajetória
que a nanotecnologia vem desenvolvendo, sobretudo como é evidenciado em trabalhos de
artistas plásticos, a exemplo de Eduardo Kac e Nancy Nisbet. O primeiro, natural do Rio de
Janeiro, é considerado um dos pioneiros em arte digital e biotecnológica, incluindo, em suas
obras, experimentações com materiais biológicos e, recentemente, vem se dedicando à arte
transgênica, unindo a engenharia genética à criatividade artística. A segunda, artista
canadense que trabalha com arte visual e fotografia pesquisa os relacionamentos mediados
pela tecnologia. Especificamente, Nancy investiga identidade: como algo pode mudar quando
é representado online, e como o online pode mudar identidade corporal. Seu trabalho mais
expressivo é marcado pela implantação cirúrgica de dois microchips de “identidade” em suas
mãos (uma inspiração a partir da guerra dos Estados Unidos e aliados contra o Iraque e seu
clima de terror). Os microchips servem como marcadores de duas identidades distintas,
rastreando cada versão enquanto online. Este projeto investigativo inclui a consideração das
mudanças entre identidades de trabalho e jogo, e também se aproxima de edições tecnológicas
culturais de vigilância e privacidade, incorporando temas compartilhados com sociologia,
psicologia e antropologia. Muito do trabalho da artista é considerado político, tecnológico e
pessoal, especificamente, abordando os meios de comunicação em suas misturas de edições
de poder, economia, e vigilância e suas influências culturais em divertimento/lazer, identidade
e comunidade.
Discutir o novo sujeito, se é “homem-máquina”, “pós-orgânico”, “pós-moderno”,
“trans-humano”, “cyborg” e outras classificações do gênero, busca lançar a necessidade ético-
162
política de discutir na verdade o homem, a natureza e a cultura, que sirvam para oportunizar
reflexões sobre o uso utilitário da vida, como podem fazê-lo as imagens apresentadas na
Figura 21. As estratégias incluem a atenção aos temas da cura, do cuidado de si e do auto-
domínio, ao governo da paixão, assim como aceleram ou radicalizam interrogações para
repensar o ser humano e construir práticas, eticamente e politicamente intencionais, de um
novo laço social.
Julgamos que tais considerações procedem para que nos situemos ante a pergunta
sobre a importância de uma reformulação que o assunto técnica moderna exige face ao
relacionamento existente entre a nanotecnologia e a técnica, com apelos associados à oposição
persistente ainda entre o bem e o mal, vencedor e perdedor. É importante ressaltar que ter
chegado a este patamar de considerações, nos trouxe à tona questionamentos que não haviam
emergidos no início da pesquisa e que acabaram surgindo quando a pesquisadora identificou o
problema que desejaria pesquisar, bastante relacionado ao vínculo existente na sociedade
entre nanotecnologia, benefícios e riscos e questões éticas pertinentes.
Figura 21: O homo da mecânica. Exposto no monumento em frente ao Terminal Rita Maria, em
Florianópolis/SC, e o modelo que vislumbra o invólucro pós-orgânico em vitrine de loja. Olhando para
ambos, cabem as perguntas: É natureza ou técnica? É natureza ou cultura?
Fonte: Acervo da autora.
163
Alguns subsídios para o alcance de tal orientação parecem estar claramente expressos
em referências comumente feitas quando em alusão a uma sociedade nanotecnológica em
evidência. Julgamos ser o caso do que é dito sobre o desenvolvimento da nanotecnologia a
partir de sua inserção na série de ondas de inovação como verdadeira ‘revolução tecnológica
invisível’ em cujo caráter subjaz ainda a recorrência ao darwinismo evolucionista. Pode ser
que se trate de uma válvula de escape, com vistas a justificar a edificação de uma nova razão,
indispensável para o avanço de soluções nanotecnológicas, o que é bastante evidente nos
pesquisadores envolvidos com tecnologias contemporâneas e futuristas ao apresentarem uma
relação inusitada com a biologia no que se refere à manipulação da matéria viva e mineral, ao
nível molecular (ANDERAOS, 2006). Diz Cylon Gonçalves Silva (2003, p. 12):
A Biologia Molecular é umas das tecnologias que, hoje, se encontram sob o “guarda-chuva” da
nanotecnologia. A vida é a primeira, e ainda imbatível, nanotecnóloga. A maneira pela qual
organismos vivos integram processos nanotecnológicos, da escala atômica ao DNA, do DNA à
célula, desta aos órgãos dos organismos multicelulares e destes aos indivíduos (possivelmente,
também, em um nível ainda mais elevado, dos indivíduos às espécies), são de fazer inveja a
qualquer aspirante nanotecnólogo humano. Darwin, com a teoria da evolução por
descendência, descobriu a maneira pela qual os processos nanotecnológicos da vida interagem
com o meio ambiente e entre si para produzir a imensa variedade do mundo orgânico. A forma
pela qual um organismo vivo se replica e se desenvolve, a partir de uma “semente” de
dimensões nanometricas, que ainda estamos aprendendo a conhecer, consiste em um
paradigma de manufatura distinto daquele das nossas fábricas da Revolução Industrial.
Falar de uma “técnica”, situada num limiar para além do bem e do mal e longe dos
dilemas referentes aos meios-fins instrumentais, é para nós o mesmo que não poder conhecer
por que existe o mal e o bem no mundo, nem como a nanotecnologia põe-se (ou não) como
problema em sua relação com o mal ou numa outra dimensão conceitual. Ora, a noção de
“bem” e a noção de “mal”, seus significados e representações, é uma questão sempre presente
que ganha, na contemporaneidade, novos e desafiadores contornos. Afinal, o homem alcançou
uma noção de escala nanométrica das coisas ou uma referência da sua magnitude, que remete
ao próprio esforço tecnológico de ‘miniaturização ao extremo’ da existência ou ao científico
de ‘reorganização’ da vida a partir da intimidade da matéria, ao nível atômico, com o intuito
de modificá-la. Acrescentamos com veemência, a escolha do tema representou uma
oportunidade ímpar, uma ocasião formidável para interrogarmo-nos sobre a nanotecnologia,
sobre o seu sentido, a sua evolução, as suas implicações e, se possível, para devolver e
instigar tais interrogações ao debate público.
Isto abre espaços para sabermos com mais clareza, por exemplo, o que queremos dizer
quando dizemos: as nanopartículas são perigosas, ou as nanopartículas não são perigosas?
164
Vem para cada um de nós o momento em que devemos nos pronunciar sobre esse “é
perigosa” e esse “não é perigosa”, que não se referem a alguma certeza, nem a alguma
capacidade específica que já se têm pronta, mas que, contudo, nos empenham e nos põem em
jogo inteiramente. Estes dizeres “é perigosa” e “não é perigosa”, são afirmações que ainda
nada significam se não nos põem imediatamente frente à experiência talvez mais exigente – e,
todavia, imprescindível – a de que nos seja dada a condição de medirmo-nos e medir todas as
conseqüências desse nosso dizer. Nietzsche (2001) tentou ultrapassar a questão bem x mal
reduzindo a distinção à questão do conhecimento, pois o conhecimento não está no mesmo
nível do instinto, numa visão nietzscheana, é traduzido por impulso, vontade, mostrado como
uma força mais possibilitadora na definição do homem. Para o filósofo, foi com Sócrates que
se estabeleceu a distinção entre dois mundos, quando opôs essencial e aparente, verdadeiro e
falso, fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores
“superiores” como o divino, o bem, o verdadeiro, o belo, num sentido moral. A partir daí
gerou-se a hipertrofia da razão pela inversão de valores, abalaram-se as estruturas morais e
relativizaram-se as estruturas do bem. Em seu espírito livre quanto à sua natureza criativa,
muito mais vital, espiritualizada e verdadeira para Nietzsche que a rousseauriana e a
goetheana, o homem munido tecnicamente é tanto mais forte e menos ordinário e preguiçoso,
ao não renegar aquilo que tem de impulsivo, perigoso, destrutivo, repulsivo e condenável.
Explicando mais, o homem rousseauriano, é o homem da natureza, de razão prática; o homem
natural representa a humanidade naturalizada, renovada e revitalizada, através da
emancipação das amarras da sociedade e da restauração dos básicos instintos. Rousseau
distingue o homem como deveria ser (instintivo, independente e ocioso por natureza), do
homem em que se transformou pela evolução dos tempos devido a mudanças exteriores e ao
progresso natural do homem (civilizado, agitado, trabalha até a morte, cheio de vícios...). Já o
homem goetheano, surge como potência individual, tensionado pela atividade vital, intensa na
luta por sua por sua felicidade e integração social; é a imagem da humanidade contemplativa,
cultivada e sofisticada, capaz de capaz de conter os rudes impulsos sensíveis, mas separada do
envolvimento ativo na vida. É, pois, o fio condutor, mas não mais o centro da vida, um, entre
tantos outros agentes, e o produto final não deriva de sua ação exclusiva, nem indiretamente.
Goethe teria inspirado Darwin, quanto a conceber a diferença fundamental entre o homem e
os outros animais como de índole espiritual, quando o cientista descobriu o osso intermaxilar
no crânio humano, que indicaria um parentesco entre o homem e os outros animais. Para
Goethe, a ideia do homem como um ser racional capaz de conhecer o ser racional do mundo,
165
constiuição dele mesmo, como nas suas moléculas, no seu DNA, no seu cromossoma, em
seres com que convive etc.), mas que dependem inteiramente não apenas do fato de que o
objeto apareça também para os outros e seja por eles reconhecido, mas que o seja para si
mesmo, o que pode chegar a constituir-se.
Neste aspecto, segundo Varela (Apud GUZMÁN [s.d]), a consciência inteligente
requer que, até nos atos mais espontâneos, o experto em ética seja capaz de fazer-se
consciente e de reelaborar esta consciência. Inclusive, é necessário que o faça para ser
também capaz de dar justificações a posteriori para seus atos, transitando por um lado, entre a
sabedoria como uma expressão meramente espontânea na qual não intervém a razão (e o
cosmos possa não ser visto como um depósito de matéria inerte, disposta a bel-prazer à
simples manipulação) e noutro extremo, com o pensar que se deve guiar tão somente pelo
cálculo racional acerca de objetivos e meios.
Não podemos esquecer como bem nos lembra Galimberti (2003, pp. 474-487), que a
técnica como acostumamos a pensá-la segundo critérios de funcionalidade e de eficiência –
mero instrumento à nossa disposição – se tornou faz tempo a natureza em nosso entorno,
constitui hoje todo o ambiente em que vivemos, estando nós subordinados aos requisitos das
necessidades do aparato técnico em seu caráter absoluto, logo, que já decide por nós. Ainda,
no rumo do pensamento deste filósofo a técnica por si mesma não tende a ser uma meta, não
promove um sentido, não abre cenários de salvação, não redime nem revela verdade alguma,
ela funciona. E por funcionar, de modo geral muito bem, acrescentamos, tanto é que suas
operações passaram a alcançar um nível mundial, Galimberti nos alerta de que é preciso, em
face desse “poder” que detêm as chaves para quase tudo da vida, rever os conceitos de
identidade individual, liberdade, salvação, verdade, significado, finalidade, e também os de
natureza, ética, política, religião, história, que até então se nutriam de um ideal humanístico e
agora, devem ser reconsiderados, desclassificados ou refundados em suas raízes.
Ora, no meio destes perigos da nossa época, quem então doravante consagrará seus serviços
de sentinela e cavalheiro à idéia de humanidade, ao tesouro do templo sagrado e inatingível
que as várias gerações pouco a pouco acumularam? Quem erguerá ainda a imagem do homem,
se todos só percebem neles o verme do egoísmo e um medo sórdido, e se desviam tanto dessa
imagem, que acabam caindo na animalidade, ou seja, numa rigidez mecânica? (NIETZSCHE,
1990, p.168).
quê? Não é nada fácil para o homem, pois, dizer não a si mesmo. Para tanto, é preciso que ele
observe a si mesmo enquanto observa a nanotecnologia. Esse passo é fundamental, pois
permite compreender que há um liame profundo entre o observador e o observado (entre o ser
humano e o mundo), não havendo nem hierarquia nem separação. Sem esse reconhecimento
tácito dos outros, o homem não é capaz nem mesmo de ter fé no modo pelo qual aparece, já
que a vida do ser humano é um esforço constante de definição de si – face a si próprio, face
aos outros, face ao mundo. O homem sente necessidade de compreender o que se passa à sua
volta, do átomo à galáxia, ainda que nunca chegue a ver, com os seus olhos nus, aquele nem
esta. Esta limitação do homem é, no fundo, uma condição necessária para se transcender
enquanto ser situado, para especular além dos dados que lhe são fornecidos.
A irrupção da nanotecnologia, em seu poder atômico-molecular, pode representar, por
isso mesmo, uma espécie de evento mutante que desestrutura conceitos como os de indivíduo,
identidade, liberdade, sentido, e também os de natureza, ética, política, religião e história,
entre outros, cujas novas posições ficam inconciliáveis com as que dispomos hoje, além de
reavivar o vínculo entre política e vida, que se tornam de tal modo entrelaçadas e, segundo
Esposito (2004), desatar esse nó que as une é ainda impossível. Constatamos que a ‘vida’ e a
‘morte’ vêm a depender, de modo evidente, de um saber técnico, que é o da medicina com
seus suportes técnicos, biológicos, químicos, nucleares, engenharísticos, estatísticos,
farmacêutico etc. Ambas, ‘vida’ e ‘morte’, passando gradualmente de uma dimensão natural a
uma outra, e se é a tecnologia clínica, que decide, divide, analisa e segue seguindo as novas
técnicas, onde está o poder de decisão?
Se existe uma grande precisão no modo de mexer na estrutura mais íntima da natureza,
da vida, advindo novo conhecer - ou seja, o nanotécnico -, muda ao mesmo tempo a extensão
do conhecimento do ser humano urgindo uma nova politização dos mesmos conceitos de
‘vida’ e de ‘morte’, uma vez criado um mundo com características determinantes que não
podemos nos esquivar de habitar. Com esses caracteres, a nova técnica nasce não como
expressão “do espírito humano”, mas com uma nova face ‘abiológica’ que supre e cura a
própria insuficiência biológica do humano. À diferença do animal, que vive no mundo
estabilizado do instinto, para ir além da deficiência de seu aparato instintual, o homem só
pode sobreviver graças à sua ação, recorrendo aos procedimentos técnicos. A técnica, por
isso, pode estar mudando o que entendemos como “a essência do homem”, não só por aquilo
que ele conquistou fora do seu biológico e instintual que o categorizam como um ser
sobrevivente e foram se tornando limitados na medida em que o ser humano começor a mexer
168
e a remexer em si mesmo, por fora, em seu interior, no muito distante de sua escala (com o
poder de alcance espacial extraplanetário e o intracorpóreo da técnica moderna). Também a
técnica, pelos procedimentos técnicos mais avançados, pode estar mudando nossa visão
quanto ao que pensamos sobre termos nos tornado capazes de alcançar culturalmente uma
estabilidade maior que o animal possui em relação à natureza e mais: termos sido capazes de
destruir a natureza, como uma criança quando quebra em pedaços um brinquedo, mas também
de reconstruí-la, recriá-la, continuá-la.
Refletir sobre o mal que pode estar relacionado à nanotecnologia é também prospectar
os atos dos homens e as relações que se estabelecem com a nova técnica não apenas neste
âmbito restrito, mas, em uma escala maior de relações, que é a correspondente a tudo o que
diz respeito ao Universo e a todos os seres que nele convivem. Esta é uma razão pela qual o
problema da justificação dos atos humanos, enquanto problema social e político, é tão
importante quanto impossível de ser deixado em desleixo, neste século.
À medida que se diversificam as técnicas, com a manipulação de objetos e materiais
em escala molecular, que surgem junto com outras tecnologias das áreas de fronteira/, como a
biotecnologia, a tecnologia da informação e as tecnologias originadas a partir das ciências
cognitivas, a nanotecnologia tem sido apontada como uma das tecnologias que abre caminho
para novos paradigmas de pesquisa cientifica. Uma vez que visa também suprir falhas e
aperfeiçoar a espécie humana e frente às conseqüências da aproximação destes benefícios,
numa referência ao fato de que, por meio de sua aplicação se poderá corrigir muitas
disfunções e em decorrência aprimorar funções consideradas normais, apesar de que isto
possa representar inéditos e vertiginosos triunfos da vida, resistências são registradas.
Mas surgem também objeções éticas utilitárias quanto aos imensos riscos da
manipulação da matéria pela nanotecnologia; não só tem sido ventilada a hipótese de uma
suposta liberação do Homo sapiens da herança de seu passado evolucionário, como se fala no
fim da espécie. Pensamos, porém, que os embates surgem do mesmo modo que acontece
quando existe a condição da novidade técnica em si, à falta de referências ou quando as
normas da obrigação se dissipam e certos valores se depreciam, esfumam-se no ar, ficando-se
à beira de um ‘não saber para onde ir’, diante de tantos desmoronamentos de coisas com que a
vida já se acostumou. Outros clamores há a respeito desta questão, face ao quadro que
demonstra uma explosão hedonista da técnica, com todas as promessas da nanotecnologia, de
conquista de prazer, luxo, facilidades, supérfluos, desejos ávidos e descontrolados, a imporem
a urgência do repensar ético, porque já não se trata de um simples instrumento, um mero
169
prolongamento da mão humana, mas de algo que está para fazer germinar um mundo à parte,
a arquitetura de uma outra e estranha realidade, contando as teses que se baseiam nas mais
recentes pesquisas, da biotecnologia à nanotecnologia e suas previsões que utilizam modelos
matemáticos capazes de projetar para o futuro as mesmas taxas de miniaturização de componentes
eletrônicos e tudo o que é prório de um ser, a ser transformado em dispositivo técnico, a exemplo
da ‘língua eletrônica’ e do ‘nariz eletrônico’, mostrados ns Figura 22.
Figura 22: Língua eletrônica e nariz eletrônico. No primeiro campo, a imagem da “língua eletrônica”. Fonte:
EMBRAPA/SBPC/Labjor (Brasil). Disponível em:
<http://www.comciencia.br/reportagens/nanotecnologia/nano03.htm>
Acesso em: 22 de março de 2007. No segundo, o denominado “nariz eletrônico”, um sistema olfativo
semelhante ao nariz humano, apontado até como melhor do que o mesmo. O nariz eletrônico tem por
base os receptores olfativos naturais, e seu uso reserva-se a uma ampla gama de setores, da medicina à
agricultura, passando pela indústria e pela proteção ao meio-ambiente.
Fonte: INOVAÇÃO TECNOLÓGICA. Disponível em:
<http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=010165060518>. Acesso em: 18
de maio de 2007.
A manipulação técnica molecular sinaliza para uma nova organização do mundo, uma
maneira de ser, um universo, e não somente um conjunto de procedimentos decorrentes de um
conhecimento das leis científicas. Este procedimento faz apelo a uma reformulação da ética
em torno de novos princípios e a uma nova teoria da responsabilidade, porque não é um
simples acontecimento que possa ser inspirado em valores ditados por uma tradição
dominada, incapaz de responder a muitas indagações de ordem mais recente, como as que
exigem respostas imediatas: o aborto, a eutanásia, o descarte de embriões congelados, a
própria nanotecnologia. Em geral, para tais assuntos a justificativa moral é a que gira em
torno de princípios ético-morais que conflitam entre si e divergem abertamente, gerando uma
disputa acirrada pela hierarquia deles. Em nossa caminhada, tanto ouvindo palestras como
ministrando aulas, e também lendo artigos publicados, a respeito da nanotecnologia, nos
deparamos muitas vezes com questões de forte teor de receio, como nas perguntas: A
170
idealísticos do bem e do mal, ambos como idéias diametralmente opostas e aqueles que em
geral têm alicerçado até agora a própria compreensão das coisas, para nós é importante
apreender de forma mais clara como o mal e o bem, o certo e o errado, o risco e o beneficio
ou a vantagem, engendrados a partir da nanotecnologia e com suas implicações no campo
ético, está sendo administrada, calculada, gerida, regrada e normalizada com referência à
conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista da sociedade, em especial,
colhendo nossas informações de cidadãos brasileiros.
A partir da análise de concepções éticas contemporâneas em que gravita
preponderantemente a ética que se ocupa de temas como a nanotecnologia, e em suas
respectivas comparações, revendo um pouco da sua história particular confrontando com a
realidade de hoje, nos foi possibilitado reafirmar a necessidade de alargar e abrir espaços de
discussão que possam nos capacitar mais adequadamente a integrarmos as nanotecnologias
com a compreensão de suas condições potenciais e limitativas, já que é considerada
atualmente a mais radical ação humana, na infindável perseguição do obrar da existência.
O questionamento ético da nanotecnologia consiste numa problematização, que é um
de seus fundamentos, e tem conduzido diretamente a discussões filosóficas, sociológicas e
políticas contemporâneas, por não ter esta técnica surgido repentinamente, mas, ao contrário,
se constituído em relação a uma série de desenvolvimentos tecnológicos precedentes.
Lembramos que impasses dessa ordem também ocorreram após a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), em que tomou corpo a “ética para a tecnologia”, incluindo cientistas e filósofos,
que passaram a se preocupar com os efeitos, nem sempre favoráveis, do uso das modernas
tecnologias. A aplicação da energia nuclear, a constatação da contaminação ambiental, as
inovações e manipulações biotecnológicas e as tecnologias contemporâneas de informação e
comunicação, deram e ainda dão lugar à reflexões, a análises e a considerações que têm tido
ampla repercussão em torno à possível “negação contemporânea da natureza humana”
(PINKER, 2004), derivada do modo mais radical de pensar o problema da técnica que
efetivamente rege o mundo, os indivíduos, a identidade, a liberdade, a natureza, a ética, a
política, a religião e a história (GALIMBERTI, 2003).
Estamos cientes de que já faz algum tempo que os avanços tecnológicos, como
também os científicos, requisitam freqüentemente intervenções na vida humana no sentido de
regulamentar as pesquisas, como está acontecendo com as células-troncos, com os
transgênicos, no campo da biotecnologia e, mais recentemente, da nanotecnologia. Estamos,
porém, vivendo um momento em que não existem normas de regulamentação precisas e claras
172
para avaliar o que representam os novos produtos em escala nanométrica, nem está
devidamente elucidado se, em relação ao futuro, poderá ou não existir espaço próprio para
outras técnicas de dimensões surpreendentes.
Não obstante se reconheça que a pergunta pela vida representa na história da
humanidade um antigo, longo e interminável questionamento, desde há muito determinada
por um valor que diz respeito ao ser humano e ao significado de sua existência, justamente na
condição em que se interpenetram profundamente técnica e natureza, no âmago molecular e
de forma cada vez mais indiferenciada, passou a se constituir alvo inédito de preocupação
nada menos que a inteira biosfera do planeta como também o mais minúsculo ser que o olho
nunca alcançou e a mão nunca tocou. Jonas (Idem) nos alerta que é preciso repensarmos os
princípios básicos da ética, procurando não apenas o bem humano, mas também o bem de
coisas extra-humanas, ou seja, é necessário alargar o conhecimento dos ‘fins em si mesmos’
para além da esfera do homem e fazer com que o bem humano inclua o cuidado dessas coisas.
Isto pode significar que as decisões éticas e morais sobre a nanotecnologia, tanto quanto as
políticas, não podem mais depender basicamente da capacidade expressa em conceitos
bastante sensíveis, do mesmo modo como se avaliou as biotecnologias e os transgênicos, com
base em avaliações superficiais geralmente de origem social e estreitamente vinculadas a
alguma impressão sensorial que os cidadãos e seus representantes inicialmente têm de avaliar
as oportunidades e os riscos que podem ser gerados. Um grande desafio que está sendo
colocado a toda comunidade científica mundial é o de diferenciar a bio e nanotecnologia,
quanto ao que ambas pesquisam, aos benefícios reais que a naotecnologia poderá trazer bem
como a ocorrência de danos e riscos potenciais, aé mesmo para sabermos se é aplicável o
mesmo Princípio da Precaução ou de Responsabilidade da primeira à segunda e em relação à
fusão de ambas – a nanobiotecnologia - apenas devido ao temor a conseqüências
desconhecidas e como se fossem de mesma magnitude. De fato, os produtos da
nanotecnologia estão chegando em número cada vez maior ao mercado sem debate público
que tenham ampla participação e sem uma regulamentação precisa. De modo geral, segundo
Langdon Winner (Apud SANMARTÍN in MEDINA et al, 1992), a avaliação imediata de
riscos relaciona-se normalmente também ao imediato cálculo do produto de probabilidade de
que se produzam conseqüências não desejáveis pelo custo de utilidade dessas conseqüências,
que podem ser perniciosas à vida humana, à saúde, ao bem-estar.
Consideramos que na avaliação de riscos de conseqüências sociais (nos costumes, na
vida cotidiana, etc.), geralmente intervêm distintos fatores subjetivos que são próprios de uma
173
individualidade, amplitude e indefinição que precisam ser consideradas, pois pode estar
ausente um ponto de referência mais estável, sendo difícil estabelecer como o único um
procedimento de avaliação. Mas existem as situações em que estão em jogo valores de
referência objetiváveis, por exemplo, no caso dos denominados impactos ambientais, a saúde,
o equilíbrio ecológico, entre outros, que podem ser avaliados mediante critérios objetivos
previamente estabelecidos. Não podemos esquecer que entre os aspectos culturais figuram
com expressiva força não somente a crença no progresso, os objetivos que devem ser
alcançados, os direitos que não devem ser feridos e os valores amplamente compartilhados
que devem ser respeitados, mas, deve ser ressaltada a imagem negativa que as inovações
quase sempre têm perante as pessoas, criando temores fundados nas crenças ou na ignorância
real da verdadeira natureza da nanotecnologia. Sobre isto, Sanmartín in Medina et al (1992,
p. 263) nos chama a atenção ao dizer que o problema das crenças é bastante complexo (o é até
hoje como foi preocupação nas abordagens de Peirce, James e de outros pensadores afins), e
que estas não devem ser consideradas boas ou más; elas existem, não há como fazer técnica
adequada sem respeito a elas mesmas, pois são fatores culturais que o autor considera de
primeira magnitude muitas vezes.
Diante das fortes e freqüentes críticas às oposições natureza-cultura ou ao nosso
condicionamento pelo modelo mental linear, fica um tanto contraditório, incoerente, inócuo e
cansativo remeter-se sempre ao que pressupõe a aceitação ou a negação, o fechamento ou o
deslumbramento em torno das inovações tecnológicas, sem falar nas posturas salvacionistas e
na classificação das mesmas como elemento causador de uma revolução ou de uma catástrofe
qunado na realidade apresenta efeitos difusos e pode ser menos abrangente do que aparenta
ser.
Sanmartín in Medina et al (1992, p. 260) coloca muito bem que a questão de centrar-
se nos impactos últimos lhe recorda um dito de Winner (1987, p. 49), de que querer avaliar
impactos é o mesmo que levantar-se do solo depois que um rolo compressor passou sobre nós
e procurássemos medir, então, os efeitos de sua passada. Uma avaliação estratégica, para
Sanmartín, equivaleria a avaliar a tecnologia valorizando os riscos e impactos, mas propondo
soluções organizativas, enquanto medidas que não afetem o instrumento senão sua prática, e
também propondo redesenhos tecnológicos. Pode-se dizer que boa parte da mitologia antiga,
grega, romana ou oriental, enfatizou os perigos em que incorria o ser humano ao tentar
ultrapassar os limites fixados com leis de ferro da Natureza, amparada que era pelos deuses.
Basta lembrar a lenda de Ícaro, o jovem filho de Decalião, que tentou voar e terminou
174
tragicamente, ou ainda a tão conhecida história do titã Prometeu que, desconsolado com a
ignorância e miséria dos homens, roubou o fogo sagrado dos céus para ajudá-los a sair do
embrutecimento em que se encontravam. Os exemplos são inúmeros e até hoje são sempre
lembrados quando a ciência avança sobre áreas que consideramos melindrosas ou sagradas.
No entanto, os homens curiosos e cientistas ousados, mesmo arriscando suas vidas, jamais se
negaram a ir em frente. Tiveram que enfrentar a incompreensão das autoridades, o fanatismo
e a superstição do povo comum, a revolta do clero e por vezes o calabouço, o exílio, a pobreza
forçada ou a fogueira por terem defendido concepções que hoje consideramos absolutamente
aceitáveis e naturais, mas que no tempo em que foram proferidas foram consideradas
heréticas ou demoníacas. E, no contexto atual, isso passa pela atenção às formas como a
técnica está perdendo a sua inscrição milenar de ‘instrumento’. Muito da crise atual tem a ver
com a dissolução da instrumentalidade e a emergência de um descontrole no interior da
experiência, a que se responde com mais tecnologia.
175
Tivemos uma visão, nos capítulos anteriores, do quanto o conceito de cosmos foi
mudando e se consagrando como uma das categorias essenciais de toda a concepção de
mundo, até nossos dias acabando por perder seu sentido original nas interpretações científicas
modernas. Lembramos que o princípio segundo o qual a ciência natural descreve seus objetos
é o da “causalidade”, empregado para unificar fenômenos dados na experiência e o princípio
segundo o qual a ciência jurídica descreve seu objetivo é o da “imputação”.
O termo “causa” etimologicamente é originário das questões jurídicas. Mover uma
causa contra alguém ou a algo é imputar-lhe uma acusação ou responsabilidade, o mesmo que
atribuir-lhe a produção de um efeito ou conseqüência em geral, danosa. Anaximandro, a quem
se atribui a medição das distâncias entre as estrelas e o cálculo de sua magnitude, cujo mundo
é construído segundo rigorosas proporções matemáticas, chegou a um conceito jurídico
cósmico, o apeíron - o ilimitado, o quantitativamente infinito e qualitativamente
indeterminado. O apeíron é um princípio abstrato que mostra a audácia em ultrapassar as
fronteiras da aparência sensível, por não se fixar diretamente em nenhum elemento palpável
da natureza; o princípio da physis (a natureza) é o apeíron, o ilimitado. O filósofo elaborou a
grande máxima: “Onde estiver a origem do que é aí também deve estar o seu fim, segundo o
decreto do destino. Porque as coisas têm de pagar umas às outras castigo e pena, conforme a
sentença do tempo” (BORNHEIM, 1991). Anaximandro formulou, assim, com as suas
176
palavras mais uma norma universal do que uma lei da natureza, no sentido moderno, para
presidir o processo regulador do cosmos.
Não é de estranhar, então, que as grandes polêmicas vinculadas às questões que
envolvem muitos dos pensadores atuais têm sido suscitadas em torno das inquietações
provocadas pelas teorias erigidas sob a noção de “causação”, que atualmente se mostram
insuficientes para explicar o que é o domínio mental.
Ainda que aleguem os dois níveis, descritivos e fenomênicos, não conseguem manter a
eficácia entre tais domínios, para muitos críticos, sobretudo, por um esvaziamento ontológico,
importante na filosofia em relação ao princípio de identidade94, de ordem metafísica, que tem
sido tema para alguns dos mais calorosos debates na filosofia por tratar, em última instância,
da questão do que um “ente é”, condição necessária da possibilidade de elementos que estão
nele contidos de maneira implícita, correspondentes às primeiras verdades e fundamento de
todas as outras.
Temos, então, como fundamentais na “lógica tradicional”: o princípio da identidade95
e o axioma da não-contradição96, ambos originalmente formulados pelo pré-platônico
Parmênides de Eléia (530-460 a.C.), o axioma do terceiro excluído ou lógica binária97, que é
ainda a mais utilizada em nosso cotidiano, e o princípio de razão suficiente98.
Platão, com sua lógica dialética, pautada no raciocínio lógico-dedutivo, parte do
conhecimento empírico, sensível, da opinião do vulgo e dos sofistas, para chegar ao
conhecimento intelectual, conceptual, universal e imutável. Sócrates, limita a pesquisa
filosófica, conceptual, ao campo antropológico e moral; já a filosofia de Platão tem o caráter
científico, tem um fim prático e moral, e é concebida como a grande ciência que resolve o
problema da vida. Este fim prático realiza-se, pois, intelectualmente, através da especulação,
94
Ou seja, é como no enunciado A = A, o que significa que, se A é dado, então, por uma necessidade intrínseca
do próprio pensamento, este deve ser idêntico a si mesmo. No campo lógico, temos ainda o axioma da não-
contradição em que A não é não-A, e o axioma do terceiro excluído para o qual não existe um terceiro termo T
(T de “terceiro incluído”) que é ao mesmo tempo A e não-A.
95
A é A. Este princípio implica a veracidade das idéias, ou melhor, aquilo que é, como por exemplo: a pedra é
uma pedra, a mesa é uma mesa, de modo que não se pode afirmar que uma semente é um futuro fruto, mas que
uma semente é uma semente, e pronto.)
96
Que nos diz que ou uma coisa é ou não é, no sentido de que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo
tempo e sob o mesmo aspecto: A não é não-A.
97
Entre A e não A não existe outra posição lógica, no sentido de que toda proposição dotada de significado é
verdadeira ou falsa, ou seja, entre duas proposições contraditórias, só uma pode ser verdadeira; assim, só
existem dois modos de ser, é ou não é, sim ou não, verdadeiro ou falso.
98
Segundo este princípio, nada existe que não tenha uma causa e que não possa ser conhecida, como na
pergunta: Por que o que é, é como é e não de outro jeito? Implica que deve haver um motivo, uma razão
suficiente para ser o que é ao invés de ser diferente.
177
do conhecimento da ciência. Com sua dialética de oposição entre essência e aparência, Platão
coloca o problema acerca do valor objetivo dos conceitos, estendendendo tal indagação ao
campo metafísico e cosmológico, isto é, a toda a realidade, rejeitando a experiência como
fonte de conhecimento. A forma mais antiga do racionalismo, então, encontra-se em Platão.
Aristóteles é o criador da lógica, como ciência especial, sobre a base socrático-
platônica. Sob o ponto de vista metafísico, o objeto da ciência aristotélica é a forma, como
idéia era o objeto da ciência platônica. A filosofia aristotélica é conceptual como a de Platão,
mas parte da experiência; é dedutiva, mas o ponto de partida da dedução é extraído, mediante
o intelecto da experiência. As ciências platônica e aristotélica são, portanto, ambas objetivas,
realistas: tudo que se pode aprender precede a sensação e é independente dela. No sentido
estrito, a filosofia aristotélica é dedução do particular pelo universal, explicação do
condicionado mediante a condição, logo, o primeiro elemento – o particular - depende do
segundo – o universal. A lógica aristotélica, portanto, bem como a platônica, é essencialmente
dedutiva, segue-se a ordem da realidade, onde o fenômeno particular depende da lei universal
e o efeito da causa. Objeto essencial da lógica aristotélica é precisamente este processo de
derivação ideal, que corresponde a uma derivação real.
Ainda que a lógica aristotélica, bem como a platônica, sejam essencialmente
dedutivas, demonstrativas, apodícticas, Aristóteles coloca limitação à dialética platônica e fala
em seu processo característico, clássico: o silogismo ou a lógica formal, numa referência ao
conjunto de três juízos ou proposições que permitam obter uma conclusão verdadeira (que
basicamente nos diz: Se A implica B e B implica C, logo, A implica C). Seu método é
demonstrativo no sentido do qual, de duas premissas dadas, deduz-se uma conclusão, porém
os objetos que são conhecidos por experiência, e não só pelo puro pensamento, devem seguir
um método indutivo, no qual o silogismo, i.e., a forma de pensar, de conhecer e de organizar o
raciocínio sem ao menos analisar as questões de conteúdo, é o resultado final conseguido pelo
conhecimento. Aristóteles concebe a idéia de identidade, então, como um primeiro princípio
não só do conhecimento, mas também da “realidade”, sustentando que se trata do mistério
primitivo de ser e da exigência da subordinação da mente à realidade.
A busca por conciliar “mente e realidade”, é a mesmo que procurar a unidade entre
“natureza e cultura”, “homem e natureza”. No plano da filosofia do ser particularizado,
inovou Descartes um dualismo que abriu caminhos para a modernidade, asseverando a
existência de somente duas espécies de substâncias criadas: extensão e pensamento. Assim, na
análise dos objetos pensados, prevalecem apenas estas duas noções, como as mais simples e
178
irredutíveis entre si. Dada essa diretriz dualista, a cosmologia cartesiana, obviamente, vai se
desenvolver em um plano firmemente separado do da psicologia, opondo claramente o
“corpo” (como extensão) e a “alma” (como pensamento). A “alma” teria como essência o
pensamento (que não seria apenas uma operação de uma faculdade que, por sua vez, fosse
sustentada por uma substância), e as sensações seriam pensamentos confusos. No modo de
conceber certesiano, os animais são considerados por não terem pensamento - não tendo alma,
portanto - não passando de máquinas bem construídas. As relações causais entre “alma” e
“corpo” são situadas conforme Platão: as mesmas que existem entre duas substâncias
completas, de natureza irredutível e especificamente distintas. Descartes não dispunha de
elementos claros para explicar como a “alma” podia agir sobre o “corpo”, e, vice-versa. É
possível dizer que limitações como estas criaram a necessidade de surgirem novas explicações
futuras.
A inspiração racionalista de Descartes direcionou uma corrente considerável de
pensamentos até 1770, quando surge Kant que, embora tentasse escapar da influencia
cartesiana, conservou-lhe ainda as raízes, representadas pelo conceptualismo racionalista.
Ambos os pensadores, vale enfatizar, constituíram duas etapas sucessivas da direção
conceptualista moderna, surgindo o empirismo de Francisco Bacon que estará à frente de
outro grupo de pensadores e vai se expressar no enciclopedismo e positivismo. Enquanto o
racionalismo de origem cartesiana vê na razão, no pensamento, a fonte principal do
conhecimento humano, o modelo empirista do conhecimento opõe-se radicalmente ao
modelo racionalista, cujo princípio essencial reside na afirmação de que as idéias
fundamentais para o conhecimento são idéas inatas. A oposição firme a esse princípio é que
marca precisamente o ponto de partida do empirismo, que considera a experiência como
fonte de todas as nossas ideias.
Kant, concebendo que as idéias fundamentais para o conhecimento existem a priori no
entendimento, com suas idéias sustentadas no apriorismo, na percepção, como tentativa de
mediação entre o modelo racionalista e o modelo empirista, lutou para vincular a realidade
física e suas leis naturais com os atos humanos e com a forma do homem exercer a sua
liberdade. Num momento posterior, surge o monismo de Espinosa e se manifesta o poderoso
racionalismo (ainda de cunho cartesiano) de Wolff e Leibniz, da filosofia alemã, que, que
finalmente derivou para o apriorismo de Kant.
Fizemos assim, um breve roteiro de cerca de dois séculos e meio do cartesianismo, que
consagrou-se como a principal corrente filosófica do primeiro período da filosofia moderna,
179
estabelecida, vemos no memso uma forte implicação para abordar a nanotecnologia em seu
legítimo patamar. No dualismo cartesiano, lembremos, na explicação da “causalidade
mecanicista”, não há lugar para substâncias sem dimensão espacial, numa referência ao nosso
campo de ação. Descartes considerou a mente como entidade imaterial e, portanto, de maneira
independente do corpo material, capaz de sobreviver à morte deste. A mente é dada como o
sustentáculo de todas as nossas propriedades mentais e a promotora das distintas formas de
comportamento de nosso corpo. É o contrário do monismo proposto por Spinoza, segundo o
qual o mental e o físico são dois modos distintos da substância única que ele chama de Deus
(ou Natureza), e com que mais identificamos nosso pensamento, direcionado a explicar o que
se concebe em relação à nanotecnologia, quanto ao que lhe é cobrado pela oposição natureza-
cultura. Com relação à fenomenologia, também nos colocamos em condições de respeitar o
pensamento de Husserl que desenvolveu de início uma ciência da experiência, cuja tarefa
consiste em fazer a articulação entre o “mundo vivido” em senso comum e a sua elucidação
através da ciência. Vemos hoje - o que antes não acatávamos - que há muito sentido nessa
imbricação que este filósofo faz e sofríveis interpretações a respeito de suas idéias, que
afetaram nossa capacidade de melhor entendê-las.
Temos um panorama rápido de algumas implicações agumentativas do pensamento, ao
longo da história, que podem nos ajudar a definir de forma mais clara um panorama geral que
explicite ao domínio público como estão se colocando as decisões éticas fundamentais, que
ajudem tanto para a física quântica e, sobretudo para a nanotecnologia, considerando suas
relações de magnitude com as supostamente válidas para a técnica que na nossa condição
humana dominamos. Para que possamos fazer uma comparação, nos é fundamental perscrutar
epistemologicamente a respeito do caminho que a técnica veio percorrendo, para que
alcancemos uma idéia mais segura do tipo de relação que o homem possivelmente terá com a
nanotecnologia. Julgamos que o percurso anterior que traçamos sobre alguns aspectos lógicos
que evoluíram desde o mundo antigo até os tempos da física quântica, como o que percurso
que iniciamos agora, refletirão ao mesmo tempo direcionamentos teóricos e éticos
constituídos, bem como bases para o redirecionamentos necessários, pondo em relevo nossa
falta de “experiência” em conviver com a extensão das magnitudes com que a grande maioria
de nós não aprendeu a lidar na vida diária.
Para o efeito deste propósito, seguimos de mais perto o pensamento de autores, alguns
já mencionados neste estudo, cujos contributos teóricos nos foram extremamente pertinentes
face ao conjunto de questões que aqui abordamos, a que consigamos formular idéias mais
182
objetivos. Para Virílio e Baudrilard, a internet representa um meio ideal para a emergência de
uma cultura de superexcitados que estariam substituindo os antigos super-homens
(BAUDRILLARD, 1997)99.
O que a princípio ocupou nossa atenção, com relação ainda aos argumentos de Lévy
(p. 57.), é que não conseguíamos estabelecer um vínculo entre a sua “engenharia do laço
social” e o que a engenharia dos materiais e a nanotecnologia vinham a possibilitar. Pairava
no ar a mesma dificuldade de saber “o quê e como fazer” para estreitar os laços entre as
ciências sociais e humanas e as ciências da engenharia e tecnologias na abordagem do
assunto. Do mesmo modo, pensar em nanotecnologia seria necessariamente ter que
introduzir alguns conceitos essenciais e espinhosos por sua amplitude e complexidade,
acerca do mundo e de nós mesmos.
Começamos com Lévy mais para aquecer as considerações que seguem, pois, não
foram poucos os pensadores que lidaram desde tempos mais remotos com a questão da
técnica e, junto com ela, da condição humana e da ética, sobretudo com as problemáticas
advindas com a modernidade100, construindo seu paradigma de conhecimento sob as
transformações provocadas pelas radicais mudanças que se desenvolveram a partir da física
newtoniana. Destacamos alguns deles, mais no sentido de sondar seu textos do que fixá-los
em alguma parte seu lugar (como é bem mais comum e fácil de fazer), que denunciaram os
‘malefícios’ da ideologia moderna tecnicista. É preciso visitá-los, nem que eles pela
profundeza de suas obras nos confundam, tais como:
1) Nietzsche foi quem iniciou o movimento de fustigação dos ideais modernos,
apaixonado pelo incompleto, pelo que expressa a multiplicidade, não de forma dialética mas
na forma ilimitada da “diferença”, que é uma forma própria de pluralismo, nem múltiplo nem
unitário, mas um tipo de descontinuidade, que, conforme nos sugere Pelbart (1989), para
Blanchot, é o grande ponto de virada na história do pensamento que Nietzsche realizou, rumo
contrário dos que pretendem hegelianizá-lo. Daí em Nietzsche existir uma concepção ética,
francamente contrária à racionalista (por isso, muitas vezes chamada de irracionalista), que
contesta a razão o poder e o direito de intervir sobre o desejo e as paixões, identificando a
liberdade com a plena manifestação do desejante e do passional do homem descentrado,
tra(du)zido de volta ao eterno texto básico da natureza. Já no começo do séc. XIX,
99
Outras obras, como bibliografia sugerida são: BAUDRILLARD, Jean. Televisão/revolução: O caso Romênia.
In: PARENTE, A (org.). Imagem máquina: A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, e
VIRILIO, Paul. O espaço crítico e as perspectivas do tempo real. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
100
Segundo Bruseke (2003, p. 324), começou no século XVII e terminou no limiar do século XX.
184
período propriamente dito da história, mas um modo de ser a favor ou contra a modernidade,
não uma referência ao modo de ser pós-moderno.
7. Habermas, por sua vez, reformulou a Teoria Crítica (buscando romper com o
distanciamento e a neutralidade para a maior participação ativa e crítica dos sujeitos) visando
fazer uma retomada da modernidade e de seus valores, de modo a procurar compreender o
que a levou a se desviar tão drasticamente dos caminhos traçados em seu projeto e da
possibilidade de uma auto-realização emancipada.
Vivemos hoje tempos que não são de total tranqüilidade, como não foram os destes
precursores de grandes idéias que realizaram profundas transformações na sociedade.
Também nos encontramos em muitas situações como as que devem ter afrontado, frente às
quais ainda titubeamos como na confusão entre o que é ético e o que é moral, o que é juízo e o
que é valor, implicados nas grandes decisões o que é bom e o que é ruim, o que é certo e o
que é errado, por exemplo, como em relação às questões ligadas ao aborto, à eutanásia, à
corrupção, ao preconceito, ao uso de transgênicos, entre outras, que requerem o
reconhecimento por parte das teorias morais.
Os parâmetros que nos orientam podem ser vários, e quando dicotomias se fazem
radicalmente presentes, podem surgir conflitos de valores. Além disso, existem as velhas e
cansativas abordagens da ética que pouco avançaram, quando as complexidades tornam as
regras simples de difícil aplicação. Mas temos pontos de vista éticos hoje predominantes,
sendo que nos é muito arriscado classificá-los ligeiramente dada sua riqueza de confluências,
em que se confrontam concepções éticas distintas que, sem apelar a autoridades, mas a partir
do critério da razão, busca definir compromissos éticos nas discussões da questão moral,
quanto à identificação do locus primário do valor moral, da ética geradora de moral
convencional, a saber: a) éticas de caráter deontológico101, com a fonte do bem centrada nas
ações corretas ou boas (boas porque seguem as regras ou normas de ação moral, enquanto o
mal está presente nas ações incorretas ou más, aquelas que violam as regras morais); b) éticas
conseqüencialistas ou teleológicas102, cuja normatividade centra-se nas conseqüências das
nossas opções, que constituem o único padrão fundamental da ética, afirmando que uma ação
moralmente correta é aquela que produz bons resultados, a exemplo do que é preconizado
pelo relativismo ético ou relativismo cultural; e c) intenções que podem ter tanto um cunho
101
Que se refere às disposições de caráter, às virtudes individuais e sociais do agente (Aristóteles e Kant
cultivavam a virtude), das quais emerge a sua intenção e boa vontade, e ao tipo de ação que a intenção produz.
102
Que corresponde a toda e qualquer teoria ética, segundo a qual o fator decisivo da ação moral não é a
intenção, abstratamente considerada, o procedimento, a norma, a causa eficiente, mas o que importa é o
resultado, a conseqüência da ação.
187
103
Como o que tem sido apresentado como a direção tomada por John Rawls, ao vincular a ética de princípios de
Kant com o utilitarismo, para desenvolver princípios de ética sobre os quais homens racionais possam manter
uma necessária cooperação entre si e servindo a uma satisfação máxima dos interesses gerais.
188
aquelas ações que têm a propriedade de fazer evoluir um valor perseguido. Os adversários, ou
seja, os ‘não-conseqüencialistas’ consideram que a relação entre valores e agentes não pode
ser instrumental, pois é exigido dos agentes ou ao menos lhes é permitido que suas ações
exemplifiquem um valor determinado, mesmo quando resultam em uma realização inferior ao
valor idealmente desejado.
Os conseqüencialistas desejam a maior felicidade possível para o maior número
possível de pessoas e, a exemplo dos utilitaristas clássicos, embora não sejam eles os únicos
(existem os egoístas e os altruístas éticos104), não partem de regras morais, mas de objetivos.
Eles avaliam as ações na medida em que estas favorecem ou não esses objetivos,
considerando que uma ação representa um ‘bem’ caso esta seja capaz de favorecer um
incremento igual ou maior da felicidade de todos os envolvidos, relativamente a uma ação
alternativa, ou pode representar um ‘mal’ caso assim não aconteça. As conseqüências de uma
ação variam de acordo com as circunstâncias em que é praticada. Um conseqüencialista
utilitarista, que tanto ama o prazer quanto ama ao próximo, nunca pode ser acusado de falta
de ‘realismo’ nem de uma adoção rígida de ideais que desafiam a experiência prática. Para o
utilitarista, mentir será um mal em algumas circunstâncias e um bem noutras, dependendo das
conseqüências.
No estudo da moralidade e da orientação da conduta ética, referente à nanotecnologia,
não podemos deixar de lado a questão da objetividade da ética na perspectiva do realismo
ético e moral e situar, também, alguns conceitos relacionados aos considerados obstáculos à
ética por muitos autores que escrevem sobre a mesma, como o niilismo, o relativismo, o
subjetivismo ético e o emotivismo.
Em termos de características fundamentais da ética niilista, para nós o niilismo
representa um pensamento complexo, bastante difícil de compreender por inteiro,
considerando que não teremos esta compreensão dificilmente sem o fazermos centrada na
herança deixada pela cultura ocidental, entendendo-se, aqui, ocidental, como o que foi
constituído pela cultura greco-judaico-cristã com sua moral e infiltração do dualismo
antropológico (matéria/espírito, corpo/alma, emoção/razão etc.). Afinal, o dualismo ainda
está presente em nosso mundo hoje, mas sublinhamos que existe ainda diferença entre ética e
104
BORGES, M.; DALL’AGNOL, D.; DUTRA, D. (2002). O que você precisa saber sobre Ética. Rio de
Janeiro: DP&A Editora. No egoísmo ético, cada um age em defesa de seus interesses próprios sem a menor
consideração pelos demais, teoria contraditória, pois em seus objetivos têm dificuldades para estabelecer níveis
eficazes de cooperação social; no altruísmo ético, uma ação é moralmente correta quando produz um bem maior
para os outros, independentemente do bem ou mal que possa trazer para o agente que a realiza, cabível somente
para uma sociedade de pessoas igualmente altruístas.
190
ontologia dualista, dado que a ética envolve o fazer o bem ou o mal, enquanto a ontologia
envolve o estudo do “ser” onde o corpo é mau e alma é boa.
Olhando alguns exemplares e artigos pertinentes à Filosofia, aparecem como nomes
representativos do niilismo Górgias de Leontino (480-375 a.C., aproximadamente), Arthur
Schopenhauer (1788-1860) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Mas já falamos neste estudo
sobre a contribuição de Nietzsche para nossa melhor compreensão da modernidade e seus
limites, como inspirador para o trabalho de grandes pensadores, a exemplo de Heidegger e
Foucault, a situarmos de uma forma não banalizada o seu niilismo e tampouco a razão
porque é dada a Nietzsche a caracteristica de niilista. Mas, em princípio, o niilismo é a idéia
de negação de toda a verdade objetiva e concepção de existência humana desprovida de
qualquer sentido, e somente uma oportunidade para sensações e experiências, renegando as
verdades morais e as hierarquias de valores. Assim, marcado que é pela indiferença à vida,
o niilista é guiado pela visão de mundo e dos valores últimos, faltando-lhe um projeto de
futuro, uma utopia, a lhe provocar um comportamento infantil e escapista, sendo que o
efêmero da vida detém o primado. Por exemplo, um niilista pode dizer que com a
nanotecnologia repete-se o extravagante “sonho alquímico”, durante séculos objetivado na
tentativa de preparação do “homúnculo” (do latim, homunculus, pequeno homem).
Desde que as operações corretas fossem realizadas, segundo a crença alquímica, um
105
ser humano poderia ser artificialmente produzido, em miniatura . Para Robson Fernandes
de Farias (2006, p. 49): “Embora nos pareça hoje em dia risível essa ‘receita’, torna-se
evidente o paralelo com as modernas técnicas de fertilização in vitro e de clonagem, nas quais
procura-se obter um ser vivo ‘artificial’. Segundo este autor (2006, p. 49), a preparação
alquímica de um homúnculo é detalhadamente descrita numa das passagens do Fausto de
Goethe:
Com amoroso som palpita o vidro,
Já límpido, já turvo: a obra perfaz-se!
Delicado de formas já diviso
Um airoso homenzinho menear-se.
Que mais queremos nós, que mais o mundo?
Eis revelando o arcano! Ouvi atento
O som! – Torna-se voz, torna-se fala!
A alquimia é a fundação e o pilar da medicina,
Sem a qual nenhum médico pode ser médico.
105
Denominação usada também pelo alquimista Paracelsus, para designar uma criatura que tinha
aproximadamente 12 polegadas de altura, cuja “receita” poderia ser criada por meio de sêmen humano posto em
um frasco hermeticamente fechado, a ser enterrado em esterco de cavalo durante 40 dias e, posteriormente,
magnetizado e seguido de outras operações até que o homúnculo estivesse inteiramente pronto. Outro nome a um
ser criado artificialmente é Quimera.
191
a possibilidade de sua aceitação e aplicação. O niilismo acaba gerando tanto o politeísmo dos
valores quanto a inutilidade das proibições.
No mundo governado pela técnica moderna, com toda sua infinita multiplicidade de
valores, estão bem introduzidas – e não apenas elas - as idéias do niilismo, do realismo moral
e do irrealismo, e todas têm muito a seu favor e muito em contrário, pois é bastante aceitável
que quase toda posição de fundo ético ou moral contenha dificuldades e controvérsias. É,
pois, de se esperar que a introdução do perigo e do mal relacionados às nanotecnologias
tenham dado amplo espaço para algumas idéias de riscos que a mesma representa em si. A
idéia da prática moral, no mundo contemporâneo, pode estar em grande medida, como sugere
o niilista moral, em sérios apuros face aos presságios de todos os lados de que nada mais é de
todo bom ou de todo mau.
Se bem que sejam muitos os filósofos que se sentiram atraídos pelo subjetivismo,
poucos se tornaram niilistas. Olhando em alguns exemplares e artigos pertinentes à Filosofia,
apareceram os nomes representativos dos niilistas Górgias, Schopenhauer e Nietzsche. A
razão pode parecer um tanto óbvia, se considerarmos o quanto é difícil para alguém se
acredita realmente que nada é bom ou mau, que dissesse que, presumivelmente, a corrupção
na política não é boa nem má, que o abuso sexual em família não é nem bom nem mau, que a
tortura a presos políticos não é nem boa nem má, que não há nem bem nem mal dizer
aposentar-se antes dos 50 anos no Brasil é indício de vagabundagem, que o grave atraso do
vôo de um avião não é nem bom nem mal, que o assassinato dos pais pelos filhos não é nem
bom nem mal; e assim sucessivamente, por qualquer outra coisa similar que se mencione. Se
se dissesse seriamente tudo isto, não somente como parte de uma discussão filosófica, mas na
informalidade das falas, não seria alarmante? Para quem o disser, significa que,
presumivelmente, não se opõe à corrupção na política, à violência, à tortura, ao assassinato, à
irresponsabilidade, ao deboche perante o caos aéreo, ao descaso com o cidadão que trabalha e
ao que trabalha como um “escravo” desde criança, à desfaçatez do “dá-se um jeitinho” ou a
qualquer outra coisa. Pensemos no estranho que isto representa, quando não importa a alguém
que semelhantes coisas lhes sejam feitas, nem lhe importaria fazer aos outros.
Estas situações ilustrativas, com base nas análises de James Rachels (1995), podem
também nos fazer pensar que deve existir um vínculo mais profundo entre o subjetivismo e o
niilismo, pois, não pode ser também uma expressão do subjetivismo afirmar que na realidade
nada é bom ou maul? Nesse caso, a resposta depende apenas do que se entenda por bom e bem
ou mau e mal na realidade. Se entendermos o bom ou o mau, independentemente do que cada
193
um sente, nesse sentido então o subjetivismo, nega do mesmo modo que o niilismo, que exista
algo bom ou mau. Se isto for o mesmo que está compreendido como niilismo moral, o
subjetivismo ético implica então um niilismo moral. Entretanto, vale a pena assinalar que o
subjetivista não está comprometido com o niilismo moral em seu sentido original: o
subjetivista não se sente obrigado a dizer que não se importa com nada, ou que nada é bom ou
mal. Podemos falar agora então do subjetivismo ético.
O subjetivismo ético nega que os fatos morais existam independentes de nossos
sentimentos. Ao realizar juízos morais, as pessoas não fazem nada mais do que expressar seus
desejos ou sentimentos pessoais. De acordo com esta posição, não existem “fatos” morais.
Vejamos o subjetivismo ético no caso de uma sociedade que aceita o “valor” da
nanotecnologia. Adotem a atitude que adotarem, seus cidadãos não terão, no entanto, a clareza
necessária sobre se sua escolha representa a verdade em termos de como devem se comportar
perante o uso dela. Considerando que a ética é uma reflexão sobre a moral, o reconhecimento
do benefício da nanotecnologia para o ambiente e para a vida humana está também
estreitamente vinculado ao reconhecimento de que seu uso apresenta riscos e isso pode ser
moralmente incorreto. Lembramos que para Nietzsche, a busca do conhecimento e da verdade
só tem sentido para fazer vivível a vida; mas, para fazer vivível a vida se faz necessária uma
verdade mais alta que a pretendida verdade cuja busca se atribui ao uso pragmático, social e
mentiroso do intelecto, a realizar-se no homem a busca por algo em que este alcance maior
lucidez, de tal modo determinado a fazer possível a sociedade. Então, no sentido da verdade
em Nietzsche, dizer que a nanotecnologia é para o bem ou para o mal, parece canalizar para
ações conjuntas com o estabelecimento de termos que visem uma convivência social e uma
linguagem constituída - fato social por excelência – com amplos espaços para
questionamentos e diálogos, criados e mantidos até o ponto que seja afastada a origem
arbitrária do ‘invento’ em questão. Nesse caso, há que se exercer o labor de lucidez,
incrustado na palavra ‘criação’, sobre a importância desse invento. Somente assim, se poderá
interpretar e avaliar porque uma sociedade aceita ou se opõe às pesquisas em nanotecnologia,
se o faz apenas porque crê que a mesma implicará benefícios ou riscos (que afetarão à ética e
serão, pois, imorais) ou por quais outras razões.
Uma possibilidade consiste em que podemos concordar com essa sociedade e
confirmar que, por exemplo, no caso do uso de ‘nanopartículas’ na fabricação de
medicamentos para a cura de determinadas doenças, uma vez que para alguns estes
194
do sistema de quem emite o juízo de valor, incluindo as negativas, a questão prática mais
importante do relativismo ético. Cada um tem que ter por bem o que considera que é bom
para si, sem ter que submeter-se a critérios objetivos que, ao final das contas, seriam estranhos
às capacidades de sua própria liberdade. Postula o relativista ético que os valores são algo
privado, inclusive puras referências sentimentais e irracionais. O relativismo moral, segundo
entendemos, é uma resposta comum aos dilemas mais profundos que enfrentamos em nossa
vida ética atual. Alguns destes dilemas são muitas vezes expressamente públicos e políticos,
como a aparentemente insuperável desaprovação da organização não-governamental
canadense, Action Group on Erosion, Technology and Concentration (Grupo de Ação em
Erosão, Tecnologia e Concentração - Grupo ETC), ETC107, em relação às aplicações da
nanotecnologia na agricultura. Esta organização lançou na Cúpula de Johannesburgo, em
setembro de 2002, a idéia de uma moratória para pesquisas nanotecnológicas e, em 30 de
janeiro de 2003, publicou um documento de 84 páginas intitulado The Big Down: Atomtech -
Technologies Converging at the Nano-scale (que se pode traduzir como “O Imenso mínimo:
Atomotécnica - Tecnologias que convergem para a Nanoescala”)108, no qual está presente
entre outras constatações a de que a nanotecnologia já é uma realidade, inclusive de mercado
(estimado em US$ 45 bilhões anuais, devendo chegar a incrível US$ 1 trilhão em 2015). O
ETC publicou ainda o relatório “Down on the Farm: The Impact of Nano-scale Technologies
on Food and Agriculture”109, em novembro de 2004. Nesta reportagem, cujo título
corresponde em castelhano à La invasión invisible del campo, é feita uma abordagem sobre o
impacto das tecnologias de escala nanométrica na alimentação e na agricultura.
Como responder então à diversidade cultural entre sociedades? Se uma sociedade,
como por exemplo, a brasileira, condena a nanotecnologia enquanto a norte-americana em
boa parte a aceita, não temos bases para escolher entre ambas as perspectivas antagônicas, a
não ser que o decidamos por nós mesmos. Mas com que compromisso, com que critérios
éticos de validação das condutas, com que certa teoria moral se defende tais e tais regras, que
estejam fora dos pilares da visão moral antropocêntrica que opera na dicotomia entre homem
e natureza a que fomos acostumados, pois nos embala desde o berço renascentista e que
também acalentou o experimentalismo e o individualismo? Como fazer a ruptura com a
107
O acesso ao ETC está disponibilizado pelo endereço eletrônico: <http://www.etcgroup.org>.
108
Disponível em: <http://www.etcgroup.org/en/materials/publications.html?ppage=2&limit=15&
language=notSpanish&keyword=Biological+Warfare>. Acesso em: 2 de outubro de 2007.
109
Disponível em: <http://www.etcgroup.org/documents/ETC_DOTFarm2004.pdf>. Acesso em: 2 de outubro de
2007.
196
concepção moral tradicional à qual Kant se filia ao estabelecer a posse da razão como critério
necessário para o ingresso na comunidade das ações em relação às quais os agentes morais
têm dever de considerar os interesses daquele que for afetado por elas, sem estarmos
exaltando a nós mesmos outra vez? É possível superar o antropocentrismo, sem correr o risco
de anular qualquer dualidade em relação ao ser humano e a natureza? Como falar em
naturalismo que afirma a unidade entre a sociedade e a natureza, entre a ciência do homem e
da natureza, sem contrariar radicalmente a corrente de pensamento culturalista que tem por
conta, acima de tudo, a influência que o social exerce sobre os indivíduos? Para melhor nos
situarmos, falemos um pouco dessas duas vertentes, afinal, ainda temos nosso olhar sobre o
mundo marcado pelo costume, hábito ou idéia consolidada de pensar as coisas em termos de
oposições bi-polares, assim como o binômio naturalismo versus culturalismo. Ética e
moralmente, serão estas duas correntes de pensamento vertentes tão antagônicas e
inconciliáveis?
O naturalismo, entendido mais ou menos o que pudemos apreender de autores
estudados, uma vez que são muitas as variantes desta corrente de pensamento, além de que
existe uma diversidade interpretativa nas distintas em áreas e, também, aconteceram muitos
avanços com as novas escolas de reflexão moral, tem como característica no seu sentido
filosófico a tentativa unificadora de considerar a natureza enquanto totalidade de realidades
físicas existentes. Afirma, assim, que as leis naturais estendem seu âmbito de validade ao
denominado reino do espírito, sendo tais leis tudo o que precisamos para explicar os
fenômenos mentais. Tal posição reduz os fenômenos mentais aos fenômenos biológicos, os
quais, por sua vez, são reduzidos aos fenômenos físicos. No seu sentido científico, para o
naturalismo, a natureza constitui o conjunto da realidade e somente pode ser compreendida
através da pesquisa científica. Esta corrente de pensamento é um dos princípios básicos em
torno dos quais se organiza toda a ciência, sustentando que as causas e os fenômenos
sobrenaturais devem ser eliminados, que tudo o que acontece deve ter uma causa
compreensível que se baseia em evidência empírica e submete-se a leis físicas e à causalidade.
O naturalismo afirma que as relações de causa-efeito (como na física, na química e também
na biologia) são suficientes para explicar todos os fenômenos; as concepções teológicas que
possam sugerir qualquer intenção e necessidade metafísica no estudo da realidade, ainda que
não seja por isso que devam ser invalidadas, não são tomadas em consideração. As ciências da
cognição em geral, e particularmente, a psicologia evolucionista, adotaram o paradigma do
estudo naturalista do homem. Lembramos que os fenômenos biológicos são estudados de
197
acordo com as categorias que constituem o discurso biológico e os paradigmas nos quais se
desenvolve hoje a ciência biológica. Por outra parte, se integra assim com o discurso ético.
Para produzir dita integração com o discurso biológico, deve-se ter em conta algo mais que o
discurso científico em si: a racionalidade científica, a valoração científica, já que são pelo
menos estes discursos (o científico e o ético) os que se encontram na bioética. Para a Biologia,
os indivíduos ou espécies têm uma razão de ser (finalidade, teleologia) e, por exemplo, seria
eticamente negativo distorcer esta teleologia. Se isto é o que entendemos à natureza, ocorrerá
o mesmo. Esta situação merece ser abordada interdisciplinarmente, com o objetivo de criar
um marco referencial comum. É, pois, sumamente importante a clarificação dos conceitos que
definem o discurso biológico, espécie, natureza, pessoa humana, ser humano, teleologia etc.
O naturalismo ético identifica as propriedades morais com propriedades naturais.
Deste modo, a ética deixa de ser epistemologicamente problemática, uma vez que podemos
conhecer os fatos éticos através dos meios sensoriais comuns pelos quais conhecemos os fatos
naturais, pois os fatos éticos são apenas fatos naturais. O bem pode analisar-se ou explicar-se;
pode reduzir-se a outra coisa ou identificar-se com outra propriedade. Na realidade, os
naturalistas pensam que o bem, uma propriedade única e sui generis, não existe (e o mesmo
vale, naturalmente, para a maldade, a retidão e seu contrário). Se isto é verdadeiro, as
propriedades morais não colocariam dificuldades filosóficas especiais. Uma vez que o
naturalismo nega qualquer transcendência ou destino sobrenatural para a humanidade, os
valores devem encontrar-se dentro do âmbito social. Os valores, logo, são relativos aos
valores vitais ou da vida, aqueles valores de que é portadora a vida (vigor vital, a força, a
saúde etc.) no sentido naturalista desta palavra, isto é, o Bios. Foram estes os valores que se
reputaram como os mais elevados de todos na sua escala axiológica, como os únicos mesmo,
correspondendo ao que se chama também biologismo ético ou naturalismo. Em alguns
aspectos do naturalismo, seja pela via do apriorismo, seja pela do empirismo utilitarista,
promoveu-se com o pragmatismo mais recentente um giro completo, sem lugar para o
retorno ao naturalismo ético.
Na ética naturalista, a ordem moral baseia-se na ordem natural, em costumes,
inclinações ou em alguma forma de utilitarismo, pensamento segundo o qual o útil é bom,
uma posição defensiva que implica em que cada um deve esforçar-se em desenvolver um bom
caráter porque a posse de bons critérios morais pela maioria das pessoas maximiza a utilidade
geral. O utilitarismo é uma teoria naturalista sobre os fundamentos da moralidade. Na
verdade, este dado referencial pode ser indicado por aquilo que se denomina princípio da
198
utilidade, destacando que para autores do século XVIII, como David Hume (1711-1776) e
Immanuel Kant (17 24-1804), por exemplo, o termo “princípio” se referia a algo que está
realizado na mente de uma pessoa.
David Hume (1711-1776) é considerado o grande introdutor do termo “utilidade” em
nosso vocabulário moral, utilidade esta fundamentada em sentimentos humanos apenas e sem
apelo a comandos morais divinos, o que resultou em uma crítica ferrenha à sua doutrina por
ser concebida sem Deus. Na concepção de Hume (1995), que diferenciava dos fisiocratas por
postularem uma ordem de mundo providencial, harmoniosa, imutável e beneficiosa, tudo
aquilo que estava além do conhecimento humano era muito mais afeto à natureza do homem
que à natureza do mundo. O homem é uma criatura mais de percepção sensível e prática, que
de razão. Vale salientar que Hume praticava a observação e para ele os conhecimentos surgem
da experiência sensível, sendo um empírico defensor de que as oportunidades para realizar
experimentos genuínos eram muito limitadas dentro do âmbito das ciências sociais,
confiando, por isto mesmo, muito mais na introspecção e nas lições da história. Foi, talvez,
tendo como ponto central o estudo dos valores e interesses, pertinentes ao ser humano, diante
do conceito comum do bem e do mal, um dos precursores a fazer uma aguda distinção entre o
que é (o que as coisas são, como são e por que são) e o que deveria ser, entre juízo de fato e
juízo de valor (afirmações emitidas baseadas em crenças, valores, princípios ou percepções de
cada indivíduo), quer dizer, entre as “afirmações positivas” e as “normativas”, distinção esta
que haveria de tornar-se algo fundamental nas modernas ciências sociais. Hume via a
experiência enquanto a associação de idéias por costume e hábito, sendo esta a essência da
inferência causal. Uma vez que existe limitação na observação humana e é assim que o
observador passa de uma impressão para uma idéia, regularmente associada com ela, não
significa que um evento primeiro seja a causa do outro, concluindo Hume que pode haver
uma relação entre um e outro evento, mas não uma causalidade. Marcou com isso sua ética,
admitindo que o homem deve recusar todo sistema ético que não está fundamentado nos fatos
e na observação, indicando que o problema moral e o princípio moral coincidem com a
agradabilidade ou a utilidade de alguma coisa, gerando dúvida na sua aprovação ou
desaprovação, logo, os juízos morais expressam essencialmente nossos sentimentos, reações
emotivas perante uma utilidade que é, de certo modo, um fim para alcançar a felicidade. Para
Hume, as qualidades estimáveis são a virtude de algo e esta virtude é primária; por sua vez, os
atos pertinentes adquirem mérito somente na medida em que manifestem um caráter virtuoso,
ou seja, somente serão atos bons desde que tenham uma relação estreita com os motivos
199
virtuosos. Neste aspecto, considerado cada caso em particular, as qualidades de alguma coisa
são valorizadas seja pela sua utilidade ou por sua agradabilidade, tanto para os que a possuem
como para os outros, de modo que o sentimento de aprovação surge da consideração
simpática face aos efeitos aprazíveis do motivo em jogo.
Entendemos assim que, na visão de Hume, com base em seu sistema moral, o que
pode produzir a aprovação da nanotecnologia e suas aplicações está necessariamente
vinculado ao fato de que as mesmas objetivem a felicidade das pessoas em geral e do próprio
eu, o que não quer dizer que seja exigida uma fórmula apropriada à realização de uma
felicidade maior para o maior número possível de indivíduos. Importa que suas qualidades
sejam aprovadas conforme sua utilidade, ou os efeitos aprazíveis que são capazes de
proporcionar. Os atos, as decisões, os procedimentos todos realizados em torno à
nanotecnologia, não podem permanecer indiferentes ao bem-estar dos indivíduos, nem serem
julgados facilmente por si mesmos, sem a consideração ulterior de que é um bem o que
promove a felicidade dos outros e um mal o que tende a conduzi-los à miséria. O interesse
pessoal não é o único móvel do homem; há, além disso, um bem comum: o bem-estar e a
felicidade individual, proporcionados pela nanotecnologia e suas aplicações devem estar
estreitamente unidos ao bem-estar e à felicidade coletiva. A teoria utilitarista de Hume se
colocou como a precursora imediata das concepções utilitaristas clássicas dos mais
expressivos representantes do pensamento utilitarista, embora tenha um certo caráter
hedonista enquanto uma versão que identifica o bem-estar com o prazer e a ausência de
sofrimento. Vemos a correspondência com um utilitarismo altruísta, de modo que, nesse
caso, o que responde pela maior parte da moralidade envolvida com a nanotecnologia é a
preocupação com os outros, devendo a justiça todo o seu mérito à utilidade pública no sentido
de acompanhar se os atos respondem ou não à inclinação e à utilidade para a vida social; daí
sua importância.
No seio do utilitarismo estão as éticas teleológicas (ou materiais), rivais das éticas
deontológicas (estudo do que convém, em termos de ação) segundo as quais o centro do valor
moral está nas regras morais.
Na obra, Crítica da razão pura, Kant aborda os limites do conhecimento humano,
buscando superar o ceticismo de Hume, colocando a razão pura, e não a prática, como o
centro da criação filosófica. Todo nosso conhecimento começa com a experiência, mas nem
por isso todo ele procede dela; nesse caso, se entende por conhecimento a priori (formas
como intuição, espaço e tempo, inerentes, não aos objetos, senão ao sujeito que os intui) todo
200
universal, no sentido de que o que for decidido fazer seja bom não apenas para si próprio, mas
para todos os outros. Se não for uma ação egoísta ou só pensada em função do eu unicamente,
então terá uma dimensão ética, nesse caso, os imperativos podem ser indispensáveis para a
convivência na sociedade, sobretudo, quando esta não tem as condições de decidir por si
mesma, de caminhar com suas próprias pernas. Uma liderança moral é um bom negócio,
representando a tarefa superior de supervisionar as atividades que possam gera riscos e
prejudicar a terceiros. O bom é que, desde a ética em qualquer situação, possamos perguntar-
nos por que devemos cumprir essas normas, de onde vem a sua legitimidade, tratando-se de
buscar o fundamento dessas normas.
Sob o prisma da visão kantiana, analisemos o caso de uma determinada organização,
por exemplo, que intenta lutar contra a aplicação na agricultura de produtos que contenham
nanopartículas, uma vez que estas parecem apresentar uma toxicidade diferente das versões
maiores do mesmo composto, criando um fundo para gerir os recursos que se destinarão aos
mecanismos de combate ao uso de insumos agrícolas que incorporem nanotecnologia. Ajudar
os agricultores a não serem acometidos pela toxicidade das nanopartículas é uma boa ação,
suposta numa intenção boa de lhes facilitar melhoria da qualidade de vida. A intenção pode
ser boa, no entanto pode ter conseqüências desastrosas se a organização tiver como intenção a
de impor seus interesses e monopólio pelos clássicos produtos, porque a mesma possui
investimentos no mercado da agricultura ocupada diretamente com a venda ou troca de
sementes viáveis para o cultivo. Caso existam interesses próprios a defender e a intenção de
tirar algum proveito desses interesses, a ação dessa organização é diretamente correspondente
à mesma das empresas que vendem produtos com base em transgênicos ou tecnologias
nanoscópicas para uso na alimentação e na agricultura. Em um e outro caso, não é diferente
do que fazem os EUA, ao investirem no fomento de violência e guerras para proteger seus
interesses econômicos, com bons propósitos ao servir determinado país com armamentos,
mantimentos e o que demais seja preciso.
O que se conclui, é que a pessoa pode agir de acordo com o dever, mas pode muito
bem agir movida por interesses egoístas. É o mesmo caso da atitude de qualquer comerciante
que é honesto para com os seus clientes apenas para ter mais lucros, que promove campanhas
em prol do ambiente, quando, por exemplo, vende coisas que afetam o mesmo. Ora, ele não
engana ninguém, não rouba, nem viola as leis. Exteriormente, a sua ação está de acordo com o
que deve ser feito. Mas, ao fazer tudo isso a fim de promover o seu próprio negócio, este
202
comerciante não age moralmente bem. A sua ação é praticada apenas como um meio para
atingir um fim pessoal.
Uma ação pode ser então conforme ao dever e, no entanto, não ser moralmente boa. O
fato de uma determinada organização atuar contrariamente à aplicação de produtos à base de
nanoparticulados na agricultura e ajudar a proteger os trabalhadores contra riscos
significativos que possam ser apresentados mediante a aplicação dos mesmos, é feito porque
dá prazer a esta organização ajudar, porque para seus membros a virtude, por si só, é parte
integrante de sua felicidade, de sua paz de espírito e de sua ausência de dor ou de culpa. É
porque isso é o certo, não porque se é bom! Afinal, não existe um prazer em dar tapinhas nas
costas das pessoas e mostrar-lhes ajuda e proteção para assegurar-se de que se é um cidadão
compromissado e legal? A virtude, para alguns, dá ibope! Mas nada é dito sobre o modo
como concretamente se deve fazer para tratar os outros como “fins em si”, do tipo, como fazer
para proteger o agricultor da toxidade das nanopartículas. Na ética kantiana não há legislador,
em geral, são sugeridas posturas universais aplicáveis a todas as situações, no sentido de que
todos as percebemos como obrigatórias.
É uma ética interessante para a discussão dos grandes princípios, pois tem que ver com
as expectativas de comportamento recíproco, ou seja, quanto ao que eu espero dos demais e o
que os demais esperam que façamos, mas é vazia de conteúdo, tornada uma coisa estéril, de
escassa validade na nossa conduta cotidiana por ser incapaz de ser aplicada nas questões
importantes dada sua incapacidade de nos dar respostas concretas sobre como devemos
deliberar e agir em situação contextual, já que não nos indica regras concretas do agir,
pautando-se em princípios formais, abstratos que não resolvem problema moral algum, não
ordenam o que fazer, mas que são a referência para o modo de agir. O imperativo carrega em
si as marcas de noções religiosas fundamentais (a idéia de céu e inferno, de recompensa e
castigo), como no modo: Seja misericordioso com as pessoas, com a humanidade, te
entranhes de misericórdia perante seu sofrimento!
Em resumo, o certo e o bem (que fazem o indivíduo desenvolver-se) e o errado e o
mal (que impedem o indivíduo de ter esse desenvolvimento), foram conceitos que sofreram
profundas modificações no seu significado ao longo do tempo, mas com sua tese do
imperativo categórico, ninguém mais que Kant levou tão longe essa mudança de significado.
Sua ética, de caráter deontológico, centrado no dever e na racionalidade, o valor moral da
ação reside na intenção e não nas conseqüências do ato (lembrando que o enfoque
conseqüencialista é uma forma particular de utilitarismo em que a ação moralmente correta é
203
a que tem como conseqüência um bem maior para as pessoas envolvidas). O filósofo, no seu
idealismo transcendental, não concede nenhuma garantia de que nosso saber sobre o cosmos
corresponda com a realidade, pois que anseia por conhecer aquilo que as coisas são “em si
mesmas” sem introduzir para nada a experiência. Deste modo, Kant afeta a pergunta em torno
de como é possível o conhecimento da realidade das coisas que conhecemos tal como resultam
em sua organização pelas formas próprias de nosso intelecto e com as intuições próprias de nossa
sensibilidade, abrindo precedentes para a época do relativismo e do dever ser moral.
Com respeito à naturalização da moral, Aristóteles e Hume são dois autores
especialmente considerados. Platão, Aristóteles e Kant crêem firmemente que existem
verdades morais universais que são independentes de convenções sociais particulares.
Aristóteles chama a consciência moral e seus princípios de “razão prática”. Kant ressuscita
essa denominação aplicando à consciência moral o nome de razão prática, sendo apontado
como o contraponto racionalista a um projeto de naturalização da moral, defendendo um
subjetivismo que afeta o conhecimento matemático e o saber sobre o mundo físico, como os
únicos conhecimentos certos que o homem pode ter. Uma determinada ação poderá ser boa ou
má, dependendo das circunstâncias e das conseqüências. Já a felicidade foi uma das questões
abertas em Aristóteles que define o bem do homem como um estar bem e fazer o bem,
defendendo o exercício das virtudes como a parte central de nossa vida. Seu sistema ético
ganha seu sentido neste exercício, que proporciona a escolha de uma boa ação como resultado
imediato. Para o filósofo, os meios para atingir um fim pedem juízo, e por isto mesmo é que
as virtudes entram em ação, sendo necessárias como capacidade para proceder ao julgamento,
à opinião (considerando que particularmente, uma opinião correta pode ser o verdadeiro), e
atingir assim a ação correta, o fazer correto, no lugar certo, no momento certo e da forma
mais correta, ação esta que por si só revela o caráter da pessoa.
Vale dizer que Kant (2000) tem como um dos conceitos centrais na sua doutrina moral
também o de felicidade. Para ele só é moral tudo aquilo que contribui por todos os meios para
que se realize o soberano bem possível no mundo, ou seja, a felicidade geral no universo,
associada à mais pura moralidade e conforme com ela. O pensador usa a palavra
“pragmático” para referir-se e caracterizar os conselhos de prudência que diferem das regras
de destreza e dos mandamentos da moral (fundamentação da metafísica dos costumes), sendo
que o seu princípio da primazia da razão prática é já uma antecipação do pragmatismo. Mas
foi a reflexão sobre a obra kantiana, Crítica da razão pura, que levou inicialmente Peirce a
formular a doutrina de que as confusões da metafísica podem ser deslindadas se tiver-se em
204
ações inerentes ao progressivo desenvolvimento humano, rumo a uma sociedade formada não
apenas por fatos reais, mas, sobretudo, constituída por ideais morais. Durkheim tenta
fundamentar porque a Sociologia requer hoje do pragmatismo e, sobretudo, porque é vital
que este se abra agora para a Sociologia o que é fundamental, supomos, para definir o lugar
central que ocupa a ação para explicar a gênese social das categorias mentais.
O que vemos, é que Dewey, Durkheim110 e Pierce compartilham com Darwin a
responsabilidade com o sentido da vida e das ações, inerente ao progresso humano, que
também subjaz ao pragmatismo, no mesmo rumo naturalista evolucionista.
De acordo com Peirce, que articulou problemas modernos da ciência, a verdade e o
conhecimento, conhecemos as coisas pelo leque das conseqüências que seu desempenho
causa na experiência possível. Peirce reformula o ceticismo cartesiano com o falibilismo111,
recorre ao suporte do evolucionismo como uma possibilidade de avançar em relação ao
nominalismo e ao associacionismo, ataca o mecanicismo determinista e a crença numa
necessidade causal, e elabora uma interpretação evolucionista do cosmos e do lugar do
homem, com a articulação que faz entre novidade-continuidade.
Tentando desvencilhar-se nos últimos anos da denominação “pragmatismo” devido
às más interpretações que deram a esta corrente, Peirce prefere cunhar sua filosofia como
pragmaticismo. O filósofo norte-americano, atento aos procedimentos que regem as
atividades do organismo humano e seguindo o modelo de funcionamento biológico dos
sistemas cognitivos manifesta uma clara preferência pelo modo de operar da ciência,
considerando sua capacidade de predizer resultados e forma evoluída de investigação, daí a
razão do seu cunho valorativo com relação ao pensamento científico na certificação de uma
verdade de uma idéia ou objeto.
A verdade, portanto, pode ser ‘medida’ através da investigação científica conforme
seu caráter vinculado à utilidade e com este aspecto marcando o realismo do pensamento
peirceano como a tentativa de escapar das armadilhas, tanto do idealismo quanto do
110
Também constamos que outra figura destacada neste vínculo com o pragmatismo, foi o filosofo e sociólogo
Georg Herbert Mead (1863-1931), mediante a psicologia social, que traria com Dewey a proposta do que
referencia como “evolução emergente”. Esta evolução é compreendida no sentido da capacidade de modificação
que têm os atores, através de inovações não planejadas, dos estandartes culturais que aparentemente são os
determinantes últimos da conduta social. Desse modo, a liberdade do agente social se estabelece não apenas com
respeito às normas e valores senão, também, frente à necessidade de mudança das estruturas dentro das quais
ambos se realizam, correspondendo a “emergência” à irrupção do não planejado, mas possível de acontecer e
que aparece como um componente da ação que foi pensada por Mead.
111
Doutrina inicialmente desenvolvida por Karl Popper nos anos 30 do século XX. Karl Popper que admite o
reconhecimento do erro como possibilidade do conhecimento científico, quebrando o paradigma de validade
inquestionável do conhecimento adquirido. Assim, qualquer crença individual pode estar errada, isto é, aberta à
dúvida, como uma conseqüência necessária do reconhecimento da limitação e finitude do ego humano.
206
regras para usar e interpretar as coisas, sendo a interpretação sempre uma imputação de
potencialidade para algumas conseqüências.
James, por sua vez, vai assumir assume o método pragmático de Peirce em sua teoria
pragmatista da verdade, segundo a qual a verdade é uma virtude de algumas de nossas
crenças, sendo verdadeiras as crenças que se adequam à realidade. Esclarece, porém, que o
pragmatismo aceita esta definição, porém discutindo, no entanto, o que deve entender-se por
“adequação” e por “realidade”. Assim, para James o conceito de realidade deve incluir fatos
concretos, gêneros abstratos de coisas e suas relações intuitivamente percebidas entre elas e,
também, de todo o corpo de verdades de que já dispomos, encaminhando uma nova
concepção pragmatista mediante uma aproximação com os modelos filosóficos do senso
comum, concebendo que “adequação” pode ser entendida como instância metafísica, fora do
alcance da experiência, mas é conduzida pela realidade.
Não é para nós nem um pouco fácil, ainda, dizer o que é o pragmatismo, desde
Peirce, de um modo que satisfaça a todos e a cada um de nós, mesmo porque atualmente esta
corrente se difunde e amplia com o reconhecimento inevitável do impacto imediato da
experiência e da significação da ação sobre a teoria. É igualmente difícil falar sobre a ética
pragmática. Normalmente, a encontramos associada à idéia de que alguma coisa somente é
verdadeira se funciona, se tem pleno êxito, o que nos remete à tendência de afirmar que o
conhecimento é um instrumento a serviço da atividade e que todo pensamento possui uma
finalidade prática. Nesse caso, a função do pensamento é guiar a ação, e a verdade deve ser
examinada preeminentemente por meio das conseqüências práticas, sendo esta uma
proposição que consiste em afirmar que é útil e bom tudo aquilo que é exitoso, que funciona
bem e que traz satisfação. Aponta-se aqui a crítica comumente feita aos pragmatistas de que
tal posição não é ética, pois, a sugestão do pragmatismo é a de obter vantagem, de apostar-se
em decisões que tragam as melhores vantagens. Em síntese, o traço característico das teorias
pragmatistas reside na centralidade que estas concedem às práticas no que diz respeito à
gênese e estrutura da normatividade cognitiva, deslocamento até as práticas este que significa
uma definitiva ruptura com a epistemologia clássica, tendo como tal aquela que fundia suas
raízes no ideal de ausência de pressuposições do cartesianismo.
Enquanto que para os deontologistas, os problemas são levantados em torno da
dificuldade que eles têm em dizer exatamente o que são os deveres e os direitos
concomitantes, havendo muito pouco consenso a respeito disso pendendo os impasses para o
208
o prejuízo de alguns pode ser justificado pelo benefício de outros, desde que os outros estejam
em maior número (cálculo de maximização do bem). Isso quer dizer que quando os interesses
do outro têm que ser considerados, recorre-se ao cálculo de maximização do bem e de
minimização do mal, uma vez que se instaura o conflito justamente pelas divergentes
necessidades de cada um. Assim, é procedente o uso de cálculos na regulagem das ações
desde que os benefícios sejam mais elevados no usufruir de alguma situação prazerosa ou
para minimizar uma situação penosa, otimizando assim o bem-estar do conjunto dos seres
humanos.
Para Bentham, o princípio da utilidade consiste em encarar a felicidade, o prazer ou o
bem apenas no seu aspecto quantitativo, cabendo à razão calcular a quantidade de prazer
implicada, levando em conta a especificidade de cada ação, a que se possa determinar se deve
ou não ser efetuada. A qualificação dos efeitos tem como base a utilidade, sendo o bom tudo
aquilo que traz prazer e mau o que causa dor, sofrimento, acrescentando-se que, sob o ponto
de vista social, bom e justo correspondem ao que tende a aumentar a felicidade geral em que o
prazer e a dor combinam com motivação da ação correta. Bentham, fundamentado então na
ética hedonista, denota a prevalência da necessidade de fundar uma moral racional, mediante
um cálculo de tipo matemático, agregando uma escala de valores aos atos e mensurando seus
objetivos. Na moral utilitarista (utilidade, motivo e causa da ação, fontes do prazer,
intencionalidade etc.), os interesses do indivíduo concordam com os da sociedade.
Para exemplificar a questão utilitarista, analisemos uma situação, bastante recente, no
que diz respeito ao uso da língua eletrônica, nome dado ao dispositivo (um sensor gustativo),
desenvolvido pela Embrapa Instrumentação Agropecuária - EMBRAPA (São Carlos/SP)112,
projeto considerado mais famoso de nanotecnologia desenvolvido no Brasil. Trata-se de uma
ferramenta mais sensível que a língua humana para degustação e análise de bebidas, entre
elas, a água, vinho e café com rapidez, precisão, simplicidade e a um custo baixo.
A língua eletrônica é capaz de verificar a qualidade da água com precisão ímpar, a
detectar se existem contaminantes, pesticidas, substâncias húmicas e até metais pesados. As
bebidas são analisadas por degustadores e a avaliação de água é feita por análise química em
laboratório e são processos muitas vezes demorados, sendo possível fazer testes contínuos na
linha de produção em tempo real e em segundos, já que se trata de um equipamento que
permite medidas contínuas e de maior precisão. É evidente que essa ação produzirá um bem
112
Unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, em parceria com a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
210
por possibilitar a eficiência na diferenciação sem dificuldade dos padrões básicos de paladar,
doce, salgado, azedo e amargo, em concentrações abaixo do limite de detecção do ser
humano, ilustrando que para algumas pessoas é algo totalmente desprovido de importância,
pois, questionam por que não continuamos dispondo de nossos próprios sentidos para fazê-lo,
se dão conta disso, sem ser por esse fator de caráter sentimental, a introdução da língua
eletrônica no mercado pode produzir também certo sofrimento, um certo prejuízo para os
técnicos degustadores de bebidas alcoólicas, intimamente relacionados com a viticultura e os
testes para avaliação do paladar de bebidas em geral.
Para o bem ou para o mal, a nanotecnologia tornará produtos obsoletos e produzirá
desemprego, ao menos num primeiro momento. Quanto ao mal, este pode ser reduzido se as
empresas reembolsarem as perdas e até ampliar as funções desempenhadas pelos
degustadores. Mas, fazemos notar então que, uma vez que o prazer resulta mediante os ajustes
feitos, pode se tornar muito maior que o sofrimento causado aos trabalhadores; nesse caso, o
comércio de línguas eletrônicas torna-se, quando medido por seus prováveis efeitos, uma boa
ação, em nossa reflexão sobre este caso.
Podemos sentir indignação diante de uma injustiça, sermos movidos por uma
necessária responsabilidade e também pela solidariedade nas relações que mantemos com os
outros, e neste aspecto nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral, nossa
consciência moral, que nascem e existem, portanto, como parte de nossa vida intersubjetiva.
Podemos dizer que bem e mal, são interpretados respectivamente como prazer e sofrimento,
em que o homem toma como fundamento de suas ações morais as condições de possibilidade
para o seu próprio existir como espécie.
Se Peirce se sentiu particularmente atraído pelo fato de que a teoria evolucionista de
Darwin era alimentada e enriquecida pela observação positiva, a possibilitar que provar-se-ia
“mortal” perante outras doutrinas, como o empirismo de John Stuart Mill, este foi um
incansável defensor da liberdade e da racionalidade em seu desejo de modificar o mundo
através de reformas sociais e políticas113. Mill faz sua critica à perspectiva kantiana, por
desconfiar da importância que a mesma atribui ao motivo da ação em detrimento das
conseqüências da ação, mas, nos parece, não avança no que tange à defesa dos direitos
humanos para fora da questão calculativa da felicidade e em relação ao que faz a diferença
nos cálculos, quanto à multiplicação da felicidade como sendo o objeto da virtude, embora
113
Mill foi deputado por breve período, tentou promover a igualdade das mulheres e defendeu o uso livre de
métodos contraceptivos, iniciativa esta que o levou à prisão.
211
hoje em dia estudiosos de Mill estejam considerando que o mesmo avançou bastante quanto à
importância que o mesmo concede a considerações orientadas pelo horizonte da justiça e do
direito. A máxima felicidade para toda a humanidade surge como o objetivo principal da sua
filosofia utilitarista e nisso consiste sua ética. Assim é que Mill tentou atenuar os impasses
que o utilitarismo calculista hedonista que Bentham acentuou, buscando redefinir a posição
do mesmo, corrigindo-a e reformulando o princípio de utilidade.
Mill elaborou a crítica ao método que Bentham designou para definir a quantidade ou
valor das condutas, denominado “cálculo”, muito próximo, na verdade, de uma fórmula
matemática, acautelando-se, porém, com relação a esta fonte matemática a partir da qual se
constituiu a engenhosa classificação das qualidades específicas de ações, com valorações
designadas a cada ato praticado pelos membros da sociedade. Passou assim a admitir que um
exame atento e fundamental da felicidade, do prazer, do bom e do bem não poderia
desconsiderar, de modo algum o aspecto qualitativo, a ser reconhecido tanto quanto o
quantitativo. Deste modo, a razão utilitária deveria proceder não apenas através do cálculo,
mas igualmente de modo a fazer distinção, dentre as várias modalidades de prazer, os que
fossem julgados mais desejáveis e valiosos.
A novidade em Mill está em que este concebe a existência de prazeres superiores e
inferiores, significando que para ele podemos dispor de prazeres intrinsecamente melhores do
que outros. Em termos simples, há prazeres que, devido à sua natureza, têm mais valor do que
outros, como os relacionados aos prazeres do pensamento, da imaginação, dos sentimentos
nobres (os da amizade, da honestidade, do amor e afins) e da virtude, indispensáveis à
formação do caráter humano e resultantes, sobretudo, da relação mantida com a experiência
de apreciação da beleza, da verdade, do amor, da liberdade, do conhecimento e da criação
artística. Nesta direção, segue sua pretensão em afirmar o homem, os seus direitos e
liberdades fundamentais, acreditando que cada indivíduo se encontra em processo de
evolução, vendo neste desenvolvimento a única esperança para a humanidade, em sua mais
rica diversidade, esperança esta que não considerava impossível de alcançar, de modo algum.
Por isso o ser humano é um ser de constante progresso moral e dotado de elevadas faculdades
intelectuais e morais.
Na sua afirmação de que toda a racionalidade prática é governada pelo princípio do
interesse, Mill admitia que a única razão a justificar a interferência na vida individual é a
possibilidade de que existam riscos de danos a terceiros, acautelando a sociedade a interferir
de forma legitima e autorizada na imposição de restrições à liberdade individual somente com
212
vistas a prevenir danos aos demais. O que importa no espaço público é julgar as ações a partir
de suas conseqüências sobre o interesse geral. Desse modo, acentuava em toda a sua obra a
possibilidade de regeneração do homem insistindo em que a maioria dos grandes males
positivos da humanidade é, em si mesma, eliminável e que os assuntos humanos continuaram
aperfeiçoando-se, chegando a reduzir-se a estreitos limites. Podemos exemplificar o
utilitarismo de Mill quando nos deparamos com afirmações como a de que de tudo o que se
conhece da ciência, os efeitos benéficos superam de longe os maléficos, e, no caso da
nanotecnologia, a sociedade tem que conhecer os riscos, mas também os benefícios que ela
traz, sua parte bonita, sua maior eficiência e fazer de tudo para que não se interrompa a
evolução tecnológica.
É bem possível que certos indivíduos possam preferir alguma soma de sacrifícios,
esforços, dor ou privação no seu caminho para atingir metas mais elevadas, alcançando
alguma coisa de valor que está acima e além de seus prazeres e desejos imediatos, pois lhe
vale sofrer um mal, a dor, se o agir produz maior prazer, o bem, maior bem para o maior
número de pessoas. Há muitos exemplos de sofrimentos pessoais na luta individual por algum
objetivo mais alto, como no caso de uma liderança em guerrilha, que enfrenta torturas e os
meios mais adversos de sobrevivência por uma causa cuja natureza corresponde a uma
felicidade individual e, por conseqüência, acabar produzindo a maior felicidade do grupo, da
comunidade, visando ao interesse comum. Há que se levar em conta que há uma renúncia a
um prazer passageiro e a um conforto, tendo em vista a conquista de uma meta duradoura e,
logo, um maior prazer. O indivíduo aumenta sua utilidade geral ao suportar uma inutilidade
transitória, uma menor quantidade de dor, digamos, compensa-lhe a troca por uma maior
quantidade de prazer, uma prosperidade de amplo alcance, mais global, mais definitiva.
Salientamos que, com o passar do tempo, o utilitarismo vem comportando várias e
distintas compreensões e desdobramentos, mas, nos parece ainda, não deixou de perseguir a
concepção de felicidade e de ética, conforme a ações meditadas, medidas, e que confluam a
um fim último. Em síntese, referido pelos filósofos como sistema “teleológico”, numa alusão
a um sistema ético que determina a moral com base no resultado final, o utilitarismo
prevalece ainda até nossos dias. Ambos, utilitarismo e pragmatismo, são dados como os
resultados práticos de um juízo ou de uma teoria cuja pedra de toque para apreciar seu valor é
a sustentação de que “verdade é utilidade”. È, por certo, o preço que se tem ainda a pagar face
à superação da vida instintiva pelos critérios racionais teleológicos do homem, que continua
ávido de apetites por satisfazer, cheio de “desejos”, exigindo uma correta relação entre estes,
213
114
Rawls inspira-se em Locke, Rousseau e Kant. São obras contratualista, as de Locke, Hobbes e Rousseau.
115
Concepção que considera os indivíduos livres, iguais e capazes de formularem e de procurarem realizar sua
216
maioria ficam de fora muitas instituições básicas da sociedade, configurando-se nesse ficar de
fora um ato carregado de injustiça. a exemplo das denominadas “minorias” como a familiar, a
econômica (o mercado) e a política (a constituição), sendo esta última a mais importante. A
obra de Rawls, de caráter anglo-saxônico, é, pois, destacada como um marco próprio das
democracias liberais modernas caracterizadas pelo pluralismo, sustentando a grande pergunta
do liberalismo político acerca de como pode existir, durante um tempo prolongado, uma
sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais, quando os mesmos permanecem
profundamente divididos por doutrinas razoáveis, religiosas, filosóficas e morais? Assim,
Rawls com sua teoria filosófica da justiça fundamentada no contratualismo e tendo como base
por os direitos e as obrigações políticas, cujo objeto são, em primeiro lugar, essas instituições
enquanto as estruturas pilares das sociedades avançadas (CAMPS, 1990), justifica a
desigualdade social e econômica sempre que se maximiza a utilidade dos piores situados na
sociedade.
Rorty enfatiza que as condições sociais de produção científica determinam em larga
medida a evolução da ciência, cuja tese epistemológica surge englobada em um projeto
filosófico mais amplo do pragmatismo: abandona o estudo de Peirce e recupera o
pragmatismo de Dewey, na verdade, um neopragmatismo. Rorty foi criticado por suas idéias
acerca do fim da filosofia e por seu pretenso relativismo. Considerado, principalmente, um
discípulo de Dewey, também é fortemente inspirado pelos grandes nomes de Hegel,
Nietzsche, Heidegger, Foucault e Derrida, sobrevivendo na sua teoria pragmatista a idéia
perceiana de “tychism”, ou seja, uma espécie de teoria darwinista de adaptação biológica e
cultural com base na evolução das espécies, que ele aplica nas ciências humanas como se
fosse uma seleção natural que conduziria à melhoria da humanidade e de seus projetos.
A análise histórica do pensamento científico em Rorty nos reporta, de certo modo, à
tese de Kuhn, segundo a qual a evolução da atividade científica se pauta por longos períodos
de continuidade (a "ciência normal") interrompidos esporadicamente por momentos de
ruptura (as "revoluções científicas"). Quanto a Kuhn, é sublinhado o fato de que o filósofo
tentou evitar um ‘evolucionismo teleológico’ em direção a um fim designado por
concepção de bem, aceitando a tolerância às diversas formas de vida. Logo, uma posição plural defende uma
sociedade aberta a todos os tipos de concepções culturais possíveis, que devem coexistir de forma harmônica
assim como deve haver a existência de pluralidade de doutrinas morais, de modo que todos aceitem e saibam que
os outros igualmente aceitam os mesmos princípios de justiça. Bastante característico da sociedade moderna,
quanto do dito estado democrático de direito, uma vez que, através da Constituição, procura harmonizar as
diferenças existentes no convívio social e, também, abarcar direitos e garantias que preservem e assegurem os
diversos grupos sociais.
217
“correspondência com a realidade”, analisando que deve ser superada a concepção de que o
que muda nas revoluções científicas é a forma de interpretação dos fatos ou a maior
aproximação da realidade, não surgindo o conhecimento da confrontação com os fatos, mas
de uma transformação da nossa própria forma de apreensão da realidade. Segundo Filipe
Carreira da Silva (2006), tanto para Kuhn como para Rorty, as condições sociais de produção
científica determinam em larga medida a evolução da ciência. Para tal como Kuhn defende
em “nós não decidimos [...] que a Terra não era o centro do Universo. [...] Em vez disso, [...]
os europeus deram consigo próprios a falar de um modo que tomava como certas estas teses
interligadas. [...]. Não deveríamos, nestas matérias, procurar quaisquer critérios de decisão
dentro de nós, nem no mundo” (Apud SILVA, 2006).
Silva complementa que, tanto para Kuhn como para Rorty, a evolução da ciência é
determinada em larga medida pelas condições sociais de produção científica, ainda que para
Rorty essa tese epistemológica advenha “englobada em um projeto filosófico mais amplo em
que a recuperação do pragmatismo clássico americano (nomeadamente, na sua versão
deweyana) surge como alternativa à filosofia analítica” (Idem). Rorty teria subscrito a noção
kuhniana de ciência normal enquanto uma atividade de resolução de ‘enigmas’, sugerindo
que o que os cientistas normalmente nada mais fazem senão usar os mesmos métodos que nós
usamos em todas as nossas atividades humanas. De Kuhn, Rorty também traz a importância
do vocabulário usado em cada teoria (lembrando que a ciência extraordinária ou
revolucionária é, pelo menos na primeira versão do argumento de Kuhn, extremamente rara, e
cada vocabulário é responsável pela incomensurabilidade que as separa), bem como a noção
de “resolução de enigmas” como atividade científica fundamental.
Ao mesmo tempo que Rorty faz sérias e pertinentes críticas ao individualismo, que
marca o pragmatismo clássico (que já não caracteriza tanto o neopragmatismo atual, a versão
pragmatista mais recente), pode-se descrever que as ideias deste pensador se movem por dois
interesses fundamentais: um deles, a sua tentativa de afastar-se da herança kantiana e, com
ela, a preocupação epistemológica; o outro, o de abandonar uma filosofia que para muitos já
não cumpre os objetivos a que se propôs, em favor de uma “pós-filosofia” despreocupada
com a objetividade exacerbada, dando lugar à preocupação com a “solidariedade”. Rorty
associa a solidariedade à esperança social e também a uma esperança comum, objetivando
que o mundo de cada um não seja egoisticamente mantido, sendo então mais otimista quanto
ao destino comum da humanidade e não quanto à perseguição pela meta de “partilhar uma
verdade”.
218
O filósofo ainda chama a nossa atenção para o fato de que em certos casos, se um
indivíduo tem certo manejo dos princípios de um determinado corpo teórico, seja o da lógica
clássica ou da álgebra linear, por exemplo, pode acontecer que à primeira vista ele julgue um
problema como aporético (que encerra uma contradição) ou impossível de provar seu valor.
Ao parar para desenvolver um problema, no entanto, vive a experiência de ter o que pensava
não ter solução. Nesta experiência, o indivíduo se dá conta de que existe um princípio, um
parâmetro ou regra que não conhecia antes e que lhe é dado pela teoria em questão com ainda
mais coerência e validade, ou que a partir desta experiência se pode desenvolver uma teoria
inovadora com respeito às já existentes. Este tipo de conhecimento experimental-experiencial
tem ainda a virtude de que não envolve a comparação com entidades metafísicas ou
“estruturas lógicas do mundo”, senão que é verdadeiro em virtude de que faz parte da solução
prática de um problema que se supunha não ter solução, e isto vale para a lógica, a
matemática, a física, a ética, e toda outra ocupação, teórica ou prática, que se pode enfrentar
com problemas cuja solução não está dada pelo corpo teórico sobre o qual se apóia
normalmente.
Em seu pluralismo, não relativista, Putnam segue o rastro de Rorty e de Kuhn. Khun
não concebia o mundo como uma “espécie de real”, independente do ser humano, de modo
que as coisas do mundo aconteceriam independentemente das interpretações humanas, a
colocar-se a ciência como uma atividade não de “descoberta”, mas de construção. Nesse
aspecto, considerando que o critério de escolha entre teorias científicas não pode ser algo
objetivo, ou de “fora” é que, segundo Putnam (1999, p. 212):
Quando a teoria entra em conflito com o que é tomado como facto, por vezes, desistimos da
teoria e, por vezes, desistimos do "facto"; quando a teoria entra em conflito com a teoria, a
decisão não pode ser sempre tomada na base dos factos observáveis conhecidos (a teoria da
gravitação de Einstein foi aceite e a teoria alternativa de Whitehead foi rejeitada anos antes de
alguém pensar que uma experiência pudesse efectuar a decisão entre as duas).
116
Na epistemologia ou teoria do conhecimento, justificação é um tipo de autorização a crer em alguma coisa,
Quando o indivíduo acredita em alguma coisa verdadeira, e está justificado a crer, sua crença é conhecimento.
Assim, a justificação é um elemento fundamental do conhecimento. Lembramos que os coherentistas da
justificação são aqueles que defendem duas idéias centrais que os distinguem dos fundacionistas, ou seja, a de
que não existem crenças básicas que sirvam de fundamento às demais crenças, e de que toda a justificação entre
as crenças não é linear, quer dizer, a justificação não é unidirecional, que vai das crenças básicas às demais
crenças.
224
explicação da sociedade atual, a partir da sua genealogia, situando o sujeito-corpo que se acha
imerso nessa sociedade, como determinado por ela, a partir das normas e regras que exercem
influência sobre os mesmos, num indicativo que não podemos apartar-nos do poder-
manipulação. Foucault vê o sujeito interconectado com a sociedade a partir das relações de
poder que se exercem e que padece, sob sua episteme específica. Entende que a história é a
determinante das instituções-norma da atualidade, e que a possibilidade de transformar as
instituições somente se pode dar a partir da não-norma, uma forma de contracultura que
busque criar novas regras de jogo.
Importante acrscentar que Habermas veio a discordar em alguns pontos de Foucault e
observou que a modernidade deveria criar sua normatividade a partir de si mesma. Ambos os
filósofos concordaram quanto à problemática conjunção da ética e da política na
modernidade, divergindo quanto à sua fundamentação em torno da relação entre verdade,
poder, ética e a genealogia da modernidade. Habermas dirá que a “genealogia do saber” em
Foucault está “fundamentada em uma teoria do poder”, enquanto que muitos críticos
entendem de outro modo este debate entre Habermas e Foucault. Consideram que o que
Foucault faz em suas obras é questionar se ainda permanecemos ancorados em uma visão
tradicional do funcionamento do “Poder”, o que é importante verificar caso se queira construir
novos postulados para uma intervenção “teórica” ou efetiva racional, construídos como
“crítica social”. Ressaltam ainda que com seu trabalho, Foucault busca elucidar as análises de
certas instituições do poder quanto à maneira como funcionam determinadas práticas
governamentais, suas racionalidades políticas, seus discursos, os modos mediante os quais se
regulam discursivamente as práticas, como se constituem em sua efetividade histórica
(consciente das especificidades históricas que nos ligam ao nosso movimento histórico) na
imanência social que projetam, de que maneira os fenômenos relativos à população são
integrados no interior dessas racionalidades governamentais, entre outras preocupações,
abrindo, assim, espaço para o problema da biopolítica.
Agamben (2005) é um autor que se inspira em Foucault e busca explorar as zonas de
indiferenciação, onde “soberania” e “técnica” se imbricam, abarcando a passagem do “poder”
ao “biopoder” e as questões éticas embutidas nas práticas científicas, que considera terem se
tornado cada vez mais prementes, afetando as fronteiras biopolíticas e problematizando a
própria condição de vulnerabilidade da vida. Desse modo, direciona nosso pensar para algo
que normalmente não o fazemos, pelo menos fora da Academia ou das práticas resultantes da
passagem nela, que não entram nessas questões: a maneira e por que meios são hierarquizados
225
117
COSTA, Flavia. “Entrevista com Giorgio Agamben”. In: Revista do Departamento de Psicologia/UFF.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-80232006000100011&script=sci_arttext>. Acesso
em: 12 de janeiro de 2008.
.
226
dúvida, algo se move, mas também que, em meio a tantas teorias e explicações provisórias e à
tão propalada publicidade de pensamentos efêmeros, parece ouvir-se a proclamação de um
novo imperativo categórico.
Assinalamos que existem ainda outros e muitos outros tantos nomes da mesma
maneira expressivos, que abordaram de algum lugar e modo aspectos importantes
relacionados à temática de nosso interesse neste estudo e que o diálogo interdisciplinar
deveria tornar possível uma reflexão mais interessada sobre a vigência da realidade e iniciar
muitas conversas, mais serenas entre a técnica e a ciência por uma parte e a ética por outro,
tendo em conta que a mesma fundamentação da instância ética determina a orientação quase
que profética de todo pronunciamento moral. Consideramos que esta é uma forma de
podermos avançar em uma contemporaneidade enriquecida a cada dia com cada vez mais e
mais elementos, como nos diz Bruseke (2003, p. 335), “[...] vivendo num mundo onde as
coisas e os homens perambulam pelos lugares sem poder estabelecer uma relação de sentido
com estes”. Sobre essa necessidade de ampliar e enriquecer nossos conhecimentos e nossa
rede de relações
228
A percepção que têm as pessoas em geral, sobre a nanotecnologia, é algo ainda pouco
definido. Temos dito sempre que nossa capacidade de lidar com algo que escapa à nossa
percepção imediata de início sempre implica em alguma coisa estranha para nós, por isso
mesmo nós nos fizemos muitas perguntas o tempo inteiro, enquanto realizávamos esta
pesquisa. De antemão, pudemos ter uma idéia do que representou o primeiro contato com a
mesma, para muitas pessoas com as quais pudemos conversar a respeito. Pudemos apenas
constatar a enorme distância da grande maioria dos cidadãos brasileiros da nova técnica,
sobretudo em seus parâmetros mensuráveis usuais para poderem confrontar na sua vida entre
si magnitudes da ordem do nano, tão ínfimas, melhor dizendo, “invisíveis” até para os
sentidos mais apurados.
Na biologia, na física e na química, tanto internacionalmente como no Brasil, não
observamos interlocuções expressivas que favoreçam aproximações às implicações da nano
em novos modos de viver. Muito menos, em relação ao viver ético na convivência com a
técnica. E este é um acontecimento que já veio para ficar, mas somente uma minoria apenas
de pessoas deste imenso universo tem idéia do que isso representa. Consideramos que uma
tarefa tem sido lidar com a variedade incrível de seres vivos e objetos inorgânicos, de um grão
de areia a uma galáxia, de um vírus a uma baleia; mas lidar com tipos de elementos diferentes
que constituem a intimidade da natureza, necessários para produzir o mundo em que vivemos,
com, por exemplo, é da ordem do esotérico, não nos sendo, certamente, familiares do mesmo
229
modo que nos situamos com relação ao mosquito da dengue, ou a uma constelação; a situação
muda completamente. Ficamos impactados diante de novos comportamentos dos corpos com
os quais lidamos cotidianamente a partir do conhecimento emanado pelo comportamento de
propriedades dessas pequenas unidades “invisíveis” da matéria, os átomos e as moléculas (as
moléculas são átomos do mesmo tipo ou de tipos diferentes, fortemente ligados entre si,
formando novas entidades, com propriedades físico-químicas distintas). Nossos métodos
convencionais não nos permitem gerar informação detalhada sobre a dinâmica molecular;
permitem-nos no máximo circularmos no âmbito de uma microgênese social, por onde ainda é
possível transitarmos. Talvez agora compreendamos melhor o que Pierre Lévy queria dizer
quando falava que chegar a uma sociedade nanotecnológica implicaria em ações finas, em
outros modos de ações coletivas, o que certamente faria Foucault se ocupar agora, em vez da
microfísica do poder, da nanofísica do poder - um patamar bem mais distinto de redesenho da
sociedade, com uma transformação histórica nos mecanismos operatórios práticos para modos
sutis na constituição dos dispositivos construtores de relações, que exige ações coletivas
inteligentes.
É importante destacar que nos foi possível observar que as idéias, que estão sob as
práticas de pesquisa vinculadas à nanotecnologia e à fabricação de produtos a partir dela,
inquietam tanto os estudiosos das ciências naturais quanto os das sociais, e também a alguns
administradores e a cidadãos que têm acompanhado e alcançado os avanços desta pesquisa.
Mas para a sociedade em geral, não está devidamente claro a que esta tecnologia veio e qual
é o pensamento que subjaz ao trabalho dos responsáveis pela pesquisa nanotecnológica,
tampouco os objetivos subjacentes às exigências de sua prática de investigação científica e
ao serviço dos seus mantenedores. Existem simultaneamente coerências e divergências entre
discursos técnicos ou intelectuais e as práticas, que contêm em si as principais características
das correntes de pensamento e abordagens que, por repercussão, sintetizam também
importantes tensões e contradições que permeiam as ciências sociais, pondo-lhes a complexa
tarefa de enfrentar os desafios que a nanotecnologia delineia, cuja ordem não se deixa
perceber facilmente para os cientistas sociais enquanto tal no nível da superfície, ou seja, no
plano dos seus discursos e pensamentos nem das suas práticas cotidianas. Foi com esta
preocupação que abordamos no Capítulo 5 sobre o desenvolvimento tecnológico e a
fundamentação ética.
É compreensível que possamos ficar um tanto impactados, mas não podemos é ficar
indiferentes nem imobilizados diante do novo. Foucault (1996), já falou do caráter de toda
230
estabelecer com mais precisão a prevalência das posições, principalmente quanto às formas e
formatos do saber brasileiro e da posição-sujeito de conhecimento neles investida. Mais do
que simplesmente estabelecer fronteiras conceituais, estabelece-se uma relação de
contigüidade com o mundo vivido, que se possa mostrar que muitas das ações que se dizem
“políticas” de fato, muitas vezes, não o são, pensando como Castoriadis (1987, p. 290), que
diz entender por política não intrigas de corte, nem tampouco, acrescenta, as lutas entre
grupos sociais na defesa de seus interesses ou posições; para o autor, trata-se de uma atividade
coletiva cujo objetivo é a instituição da sociedade enquanto tal. A condução exploratória, por
sua vez, é apropriada para situações ainda pouco examinadas entre as comunidades, a
exemplo da nanotecnologia, de modo que as investigações desta natureza aproximam o
pesquisador do fenômeno a ser explorado para que se familiarize melhor com as
características e peculiaridades do mesmo, e possa assim obter percepções, idéias
desconhecidas e inovadoras a respeito.
Na análise do material, levamos em conta o que consideramos mais expressivo aos
nossos propósitos, em cada resposta, sendo recortados os elementos mais significativos dos
discursos enunciados, assinalando que optamos por apresentar as respostas sem alterar o
conteúdo das mesmas, mantendo-as tais como as recebemos. Estes dados se constituíram em
fragmentos que trabalhamos e buscamos interpretar, fazendo também comparações entre as
respostas dos pesquisados, de forma a se estabelecerem possíveis similaridades e diferenças
entre suas posições.
Estruturamos desde o início um roteiro ideal de perguntas que satisfizessem nossos
propósitos e fosse adequado ao perfil curricular do participante, pensando justamente na
organização do trabalho, nos critérios de escolha de nossos pesquisados e na amostragem
final. O questionário apresentado, anexo, ao final da tese, foi aplicado pela pesquisadora
utilizando o e-mail. Compreendendo oito perguntas, o mesmo versou sobre temas relativos à
problemática nanotecnologia-vida-ética e foi estruturado com questões semi-abertas (com
respostas possíveis fornecidas ao pesquisado), relacionadas aos objetivos da pesquisa,
formuladas de modo a possibilitar que os questionados nos dessem a conhecer a sua forma de
inserção na respectiva problemática e manifestassem aspectos relativos às mesmas e como as
percebem, relacionadas à sua prática.
Para elegermos as questões que constamos no questionário, tivemos o auxílio teórico
de Negri, Galimberti e Agamben, por terem preocupações que particularmente chamaram a
nossa atenção, quando se referem:
232
convidando-as a participar deste trabalho. Dessas 100, foram justamente 23 as que aceitaram
participar e com cujas respostas trabalhamos nesta pesquisa. Muitos dos que não participaram,
demonstraram boa vontade em atender ao convite da pesquisadora, mas por razões que lhes
dizem respeito, não deram retorno.
O critério básico que usamos para encaminhar nossas escolhas, lembrando aqui o que
já dissemos na Introdução, na apresentação breve deste capítulo, foi o de consultar os que
denominamos “pesquisadores-experimentadores”, diretamente envolvidos com a pesquisa em
nanotecnologia, e os “pesquisadores da área não-nano”, incluíndo aqui as pessoas que estão
empenhadas em abordar o assunto nanotecnologia, fazendo perguntas, levantando questões
existenciais mais profundas, apresentando suas proposições sobre as implicações da “nano”
para a sociedade, à natureza, ao homem, à vida em geral, o que não deixa de ser uma parcela
representativa do público “expert” no assunto. Esclarecemos que concedemos grande
importância também à participação dos que denominamos “público informado sobre o tema
nano” e “público não-informado sobre o tema nano”, levando em conta ainda a intenção que
temos de democratizar as informações (pesquisas, inovações, conceitos de nanociência e
nanotecnologia, por exemplo). Assim, reconhecemos a necessidade de nos pautarmos numa
linguagem que represente, com a máxima fidelidade, o fenômeno científico pesquisado e o
torne compreensível a públicos não especializados.
Nossa tentativa foi não nos limitarmos simplesmente à reprodução de falas, à
transcrição de textos e relatos fragmentados do material, mas demonstramos muito cuidado
para não desvirtuar determinados posicionamentos, nem ignorar qualquer resposta por mais
que nos pareça uma abordagem superficial a respeito do que queremos saber e nos
colocarmos da melhor maneira possível no lugar de quem disse o que disse, para saber porque
foi dito dessa ou daquela maneira, pois o texto de divulgação científica para o público leigo
pede muito mais. Nessa análise de resultados, estamos produzindo como resultado final não a
ciência, mas um discurso sobre ela, mais precisamente, um discurso a partir de discursos, por
isso mesmo a qualidade desse discurso depende, em grande medida, do que provém da
formação e do envolvimento dos pesquisados com o assunto. Quanto à pesquisadora, sabe que
produz um resultado de seu próprio olhar sobre todos os elementos envolvidos na realidade
investigada, mas é algo mais que um simples relato, ou pelo menos deveria ser, das
observações e entrevistas feitas na direção de uma interpretação de fatos, de fenômenos
científicos, de interesses diversos, apoiados na sua visão particular de mundo e na de seus
colaboradores.
234
teoricamente pode ser feito, mas que nunca tinha sido levado a cabo na prática, porque
“somos grandes” demais para arranjar os átomos da maneira que gostaríamos.
Neste aspecto particular, perante a praticidade e o modo descomplicado com que
Feynmann se coloca para apresentar a nanotecnologia a partir de agora, trabalharemos com os
resultados obtidos através das respostas que nossos pesquisados deram às perguntas
formuladas no questionário que lhes enviamos e que tinham vínculo com tudo o que já
tratamos e vamos especialmente tratar, ao indagarmos a sociedade sobre a nanotecnologia e
suas implicações.
Para preservarmos a identidade dos entrevistados, porque nos comprometemos a não
os identificarmos e para nós mesmos nos sentirmos mais à vontade ao trabalhar com suas
respostas, vamos indicar os vinte e três participantes com as seguintes abreviaturas, ADTR,
AMOS, BDSP, BJRS, BSEE, CCHI, CUNE, DCSB, ECAM, ECED, GSEN, LPMB, MDEN,
MFBR, FMMG, MSSP, NFIM, PDFM, PLUM, OSCI, RASB, RPSI e TDFC.
Iniciando então as discussões que queremos entabular sobre a relação entre
nanotecnologia e ética, achamos importante destacar que, mediante o estudo das respostas de
nossos entrevistados, constatamos o que já havíamos detectado com a pesquisa bibliográfica:
temos pessoas com pensamentos diferentes sobre a relação ética e nanotecnologia. De modo
geral, a nanotecnologia concebida como “meio” e a maior parte dos entrevistados pensa que o
problema a resolver está na ética, e não na técnica. Mas, ainda que encontremos algumas
posições ressaltando este aspecto, outras avançam em desconfiar disso e manifestam a visão
de que alguma coisa mudou ou pelo menos a técnica já não é vista de uma forma radicalmente
instrumental, a serviço de fins meramente utilitários.
Iniciamos nossos comentários com a pergunta que fizemos sobre se a nanotecnologia
implica em aumentar ou diminuir as desigualdades sociais. Segundo ECTE, na sua condição
de filósofo e sociólogo, quando discorre sobre essa possibilidade, considera ser este um ponto
de vista “falacioso”. E argumenta:
- Primeiro, porque parte de uma ideologia identitária. Platão à frente do Modelo da
Idéia. Tudo deve pautar-se ao modelo do igual, do Uno, do mesmo [...] Já não é nem mesmo
filosofia, é uma deontologia a apontar os dedos para os simulacros, as más cópias e a todos
os que desconfiam de certas formas de comunitarismo igualitário que não é capaz de aceitar
a diferença, ou simplesmente, diferenças econômicas ou sociais, o estrangeiro, o movimento
feminista, o movimento do negro, de novos tipos de família, e assim por diante.
Complementa que:
236
Além disso, no discurso atual presente nas universidades brasileiras, que se iguala ao
das midias que reduzem tudo a realidades duais de oposição, esta pergunta: ”desigual ou
igual” não permite a modulação do diferente, ou como diz Derrida, do mesmo que é diferente
ao mesmo tempo[...].
Apontanto a ênfase do caráter normativo nos modos de pensar desta natureza que não
indaga por aquilo que é, mas por aquilo que deve ser, considera que estes remontam à ética
platônica que só percebe a ética relacionada com o bem e em que existe uma estreita unidade
da moral e da política, ponto de vista paral o qual a distinção igualdade-desigualdade é
moralmente relevante. A moral platônica já não é adequada para a época da revolução
tecnológica, o mesmo valendo para o imperativo categórico kantiano-utilitarista que resulta
muito estreito para nosso tempo de revolução cognitiva, em que a mentalidade emergente é
muito distinta. Terms como norma e obrigação, moral e dever, já não podem ser
compreendidos como o foram em épocas de convicções mais estáveis.
Quase de modo similar, CESP que é também um cientista das humanas diz que em
princípio não vê relação entre nanotecnologia com as desigualdades sociais, alegando não
saber bem o que é “desigualdade”, tanto no “singular” quanto no “plural”. CESP
complementa, registrando a posição da nano como meio, dizendo que:
- A desigualdade é uma questão política, econômica e cultural. A tecnologia é um
instrumental que poderá permitir, por exemplo, o acesso a bens em face do barateamento,
assim como permitir acesso às informações. A tecnologia, para ter influência política de
modo a interferir nas desigualdades sociais, precisa ser secularizada.
E exemplifica dizendo:
- Países como a China, Cuba, Irã, Coréia do Norte [...] utilizam-se na Internet, mas
criaram enormes barreiras para que os cidadãos comuns tenham acesso. Mesmo aqui no
Brasil, grupos religiosos e grupos políticos que temem as novas tecnologias, fazem com que
as desigualdades perdurem.
BJRS, também vinculado às humans, mas cuja realidade da prática profissional está
ligada à mídia, nos parece, entende também que a nanotecnologia não diminui ou aumenta
desigualdades sociais, o que existe são diversos interesses em jogo, cabendo à sociedade unir
as forças aos objetivos da “nanotecnologia”, tais como política e economia, até mesmo, em
questões de poder militar, o que para nós caracteriza, como nos argumentos anteriores, uma
posição ética no sentido de que não formulam juízo valorativo, mas sim explicam as razões e
proporcionam a reflexão sobre a nanotecnologia como meio para determinados fins. No caso
particular em que BJRS alega que as implicações sociais vinculadas à nanotecnologia
dependem de procedimentos (normas, regras procedimentos, que configuram, digamos, um
237
código de moral), entramos no campo da moral como dever, que pressupõe regras de ação e
imperativos que se manifestam concretamente nas diferentes sociedades enquanto resposta às
suas necessidades, consistindo precisamente em regulamentar as relações entre os indivíduos
e entre estes e a nano, contribuindo para a estabilidade da ordem social. O argumento tem
caráter normativo, pois reclama a existência de procedimentos para que sejam alcançados os
objetivos ou motivações pertinentes ao que a nano se propõe. Estes procedimentos – humanos
– são os meios que indicariam a melhor forma de atingir o fim almejado pela nano, enquanto
técnica.
No modo de conceber de MSSP, que já há algum tempo debate questões pertinentes à
nanotecnologia em sua atuação no campo da Sociologia, é possível observar que o modo de
pensar pauta-se em padrões deontológicos apriorísticos que ignora o reconhecimento da
necessidade de uma ruptura com as teorias éticas convencionais para a formulaçaõ de uma
ética compatível com a nanotecnologia:
- No que toca às mudanças incrementais advindas da nanotecnologia, esta sociedade
global já tem experiência anterior para realizar uma regulação, fundada em valores éticos e
morais que possam não repetir os erros localizados no processo de introdução dos
transgênicos. Quanto às mudanças revolucionárias advindas da nanotecnologia, estas não
têm precedentes históricos em nossas sociedades. Aqui as dificuldades de regulação
fundamentadas em valores éticos e morais que tornem os homens melhores serão de difícil
discussão e realização.
Este aspecto levantado pelo entrevistado nos lembrou um pouco a campanha brasileira
pelo desarmamento. Também sua fala, bem como a de outros entrevistados, deixa clara a
evidência de propósitos humanos presentes, e não da técnica por si mesma, a exemplo de um
machado sair sozinho de seu lugar e incidir sobre a cabeça de alguém, sem que o fosse por
controle remoto. Entram meios e fins em jogo, entram pensamentos, idéias, vontades, desejos,
238
determinados por eleições condicionadas pelas consequências. ADTR, que tem alguma
aproximação com embates em torno do papel da tecnologia em relação ao ambiente, na sua
atuação ligada com o campo do Direito, nos parece reclamar a discussão ética também
relacionada à normatividade, ao ponderar que:
- Falar de natureza humana é algo extremamente complexo, pois sempre vai depender
das ideologias a que uma pessoa se apega e das experiências de sua vida. O meu viver é para
alcançar o equilíbrio, mesmo que o considere utópico. Infelizmente, nesta encruzilhada, sou
pessimista em relação ao homem. Há muitas pessoas boas, que fazem o certo e vivem bem,
porém o “mal” tem mais poder e domina. Então, vale a pena viver em paz com a consciência
[...] retomo o conceito expressado pelo princípio da precaução e milito em falarmos nesse
instante sobre a questão da “tolerabilidade dos riscos”. Considerando que, hoje, as decisões
sobre qualquer assunto, sobre questões ligadas ao meio ambiente devem ser pautadas pelos
sentidos de probabilidade dos fenômenos, a necessária certeza sobre os acontecimentos caiu
por terra.
O entrevistado completa seu posicionamento acrescentando, algo que para nós trouxe
certa dificuldade de compreensão quanto ao que quer expressar, ao dizer que, em função do
que pensa: - todo controle e submissão à sociedade dos novos rumos da pesquisa deve ser
preservado. Nós entendemos que seja uma referência à participação maior da sociedade no
controle das pesquisas, mas aqui nos vem um quadro de dificuldades que precisam ser
superadas para realizar este processo, oferecido pela própria distância da universidade e da
pesquisa em relação à população, outra herança da oposição natureza-cultura. MDEN, que
além de sua formação nas ciências naturais também trabalha diretamente com a aplicação da
nanopartícula em sua atuação profissional, relacionada à saúde, considera que:
- [...] se for bem entendida em sua filosofia, a utilização para fins pacíficos só poderá
trazer benefícios para a humanidade. Porém, é necessário criar órgãos que administrem de
forma coerente e ética cientifica o uso destas tecnologias [...] é uma questão de domínio de
informação sobre a tecnologia, depende dos interesses políticos e econômicos que vão estar
atrelados a esta tecnologia. Quanto aos riscos e vantagens, também dependem de quem vai
estar por trás disto, de quem vai estar com este poder nas mãos e de quem vai controlar. É
como se fosse uma corrida armamentista nuclear. Muitos valores vão mudar e tudo vai
depender de estratégias que vão gerar conflitos éticos e sociais. Vejo como uma questão
existencialista, uma questão de valores. Vejo como uma questão de foro íntimo de cada ser.
Da formação e concepção de mundo de cada pessoa. Cada uma vai entender de uma forma e
usar da maneira que melhor entender. É uma questão de concepção antropológica e
filosófica.
tendo garantias do controle sobre o resultado disso, como no caso de uma contaminação do
meio ambiente, de aplicações militares ou de maior controle sobre o comportamento humano.
RPSI, ligado também às ciências humanas com desempenho no campo da Psicologia, que não
se trata somente desta questão, mas também de outras a partir de outras técnicas:
- Mais uma vez, o emprego dessa tecnologia para fins militares – sem nenhum
controle social – poderia nos levar a mais um possível desastre, como a guerra
bacteriológica, ameaça muito mais tangível. A questão dos limites éticos é fundamental, não
só para a nanotecnologia, como para qualquer outra tecnologia. A meu ver, toda pesquisa
para fins militares é eticamente reprovável, pois não só não contribui para a melhoria das
condições de vida humana, como desvia importantes recursos de pesquisas socialmente
relevantes. Assim, não é a nanotecnologia que pode gerar uma contribuição ética, pois ela é
apenas a ferramenta e não a mão.
O entrevistado nos apresenta a idéia de que tudo o que se reporta aos fins militares é
perigoso, é o mal, ao mesmo tempo em que enfatiza o bem que a técnica, como meio,
representa.
CCHI na sua visão educacional, campo em que atua e no qual tem formação
específica, expressa já uma desconfiança do papel da nano como mero meio, argumentando
que, com relação à mesma que surge com alguma particularidade nova:
- [...] é uma característica humana inicialmente resistir e ter medo do desconhecido,
como foi com outras descobertas da ciência. Num primeiro momento, o ser humano resistirá,
num segundo, vendo que traz benefícios aceitará. Vide exemplo dos cosméticos que trazem
inúmeros benefícios à pele de mulheres com mais de 40 anos - foram aceitos até mesmo sem
saber que continham partículas nanotecnológicas. Da mesma forma aconteceu, acontece e
acontecerá com os alimentos transgênicos. É provável que se possa utilizar a nanotecnologia
como um meio para determinados fins que não se possa ter controle [...] e será que um dia se
terá controle sobre o uso dos avanços tecnológicos? De uma forma geral, não acredito que a
nanotecnologia poderá contribuir para tornar os seres humanos melhores sob o ponto de
vista moral e ético. Infelizmente, sob o ponto de vista legal, sempre existirão aqueles que
utilizarão a nanotecnologia para fins escusos não beneficiando nem seres humanos muito
menos a sociedade em geral.
Seguindo por uma trilha mais cautelosa, RASB, que trabalha diretamente com
tecnologias de informação, se mostra receptiva à nanotecnologia como meio, mas quanto ao
“grey goo” tem um viés que segue uma deontologia utilitarista, considerando com seriedade
as conseqüências das implicações morais com base em resultados imediatos, quando ainda é
cedo para assegurar com antecedência as conseqüências dos atos sociais implicados à
nanotecnologia. RASB diz:
- Não tenho conhecimento suficiente para ter uma resposta concreta. Mas, tudo o que
é feito artificialmente, que não existe naturalmente na natureza pode ter um efeito contrário
que não foi previsto anteriormente. Todo cuidado é pouco quando se trata de nanotecnologia.
240
O homem está diante de uma tecnologia que pode revolucionar todos os setores da economia.
Além do que, o homem diante da ciência sempre quis brincar de Deus, sempre buscou recriar
artificialmente o que a natureza criou espontaneamente. E, agora ele está com a tecnologia
certa para fazer o que ele bem entender, portanto depende do próprio ser humano o destino
que essa tecnologia terá. Na minha opinião, o grande problema não é a nanotecnologia em
si, mas o uso que o homem vai fazer dela. Muito pelo contrário, o homem com o poder da
nanotecnologia nas mãos tende a ser mais autodestrutivo. Pois, poucos vão ter acesso a essa
nova tecnologia, e aqueles que detiverem seu poder se sentirão donos do mundo e se acharão
no direito de usar a nanotecnologia em seu próprio benefício. Para obter mais lucro, mais
poder político e econômico. A história já provou que o homem, quando tem poder
tecnológico, usa este poder contra o próprio ser humano, haja vista as guerras ocorridas
desde o começo da civilização.
MFBR, com atuação no campo da física, contra a hipótese do “grey goo”, pondera que
- Existem vírus cuja dimensão física encaixa-se no domínio do que entendemos como
“NANO”, ou seja, é uma estrutura material nanométrica produzida pela natureza e
organizada a partir de moléculas biológicas conhecidas. Estas nanopartículas (os vírus) são
capazes de auto-replicarem e o fazem quando encontram células (tecidos, órgãos,...)
hospedeiras favoráveis. Portanto, entendo que estamos falando de algo que já conhecemos.
Neste contexto, entendo que a nanotecnologia pode permitir a produção de novas estruturas
supra-moleculares com a capacidade de auto-replicação em um ambiente adequado para tal.
O grey goo, realmente, desde que entramos em contato pela primeira com a
significação deste fenômeno, nos reportou à ficção, porque já sabíamos de antemão que o
DNA é capaz de auto-replicação desde que a vida é vida, e temos uma riqueza de diversidade
no mundo, a custa de muita auto-replicação, e não de aberrações. Neste sentido, assinalamos o
argumento de LPMB, que diz não acreditar que ocorra esta auto-replicação das
nanomáquinas, a menos que moléculas como DNA introduzidas nos organismos sejam
definidas como nanomáquinas.
Acentuamos o ponto de vista de BJRS, que defende um ponto de vista indeterminista
que de certo modo restringe os limites acerca do grau de precisão da nanotecnologia almejado
pelas explicações da própria nanociência, abrindo espaço para posições relativistas, quando
expõe que:
- O problema está quando este mesmo homem, por meio das suas descobertas frente
241
ao seu tempo, desconhece os resultados destes avanços para o fator natureza; quando isso
ocorre, tanto para o homem, como para a natureza, as conseqüências são cruéis para ambos
os lados [...] Neste caso, lembro do filme “BLADE RUNNER”, bem como, outros que
abordam tal questão por meio da denominada ficção científica, tal qual, o escritor de renome
mundial, JÚLIO VERNE; porém, todas as conquistas do homem frente ao seu tempo podem
acrescentar avanços e retrocessos em todas as áreas afins aos seus objetivos como
pesquisador e/ou cientista. A indeterminação faz parte da determinação neste caso, bem
como, o contrário disto e daquilo, assim, as nanopartículas podem desenvolver e precipitar
uma indeterminação por meio da determinação, mas, tal determinação pode levar a uma
indeterminação da tecnologia.
Para ECTE, em relação a este debate sobre o grey goo, é interesssante a relação que
faz sobre os efeitos do consequencialismo trágico nos modos existentes na sociedade de
pensar a técnica, ao reconhecer que:
De todo modo, questões como esta nos remetem sempre à pergunta pelo papel da
técnica. Um ponto de vista também interessante sobre mitos, medos e afins, nos vem de
NFMG, com um acenar para mudanças paradigmáticas inerentes à nanotecnologia. O
entrevistado diz que:
- É difícil antever se as modificações serão radicais, mas elas ocorrerão, trazendo
principalmente, mas não exclusivamente, benefícios [...] Mudar a concepção do
funcionamento da natureza pode ser muito bom. Por exemplo, há pouco mais de 100 anos a
concepção da natureza proibia o homem de andar de avião [...] Vírus são essencialmente
nano-máquinas que se auto-replicam. Ou seja, os riscos de “grey goo” não são maiores que
os riscos de uma epidemia de um vírus ainda desconhecido.
MFBR, por sua vez, em sua resposta, nos demonstra uma preocupação mais voltada à
pergunta “o que é ética” do que à “o que é técnica”:
- A nanociência e a nanotecnologia representam sim uma oportunidade para reflexão
científica, ética e moral por parte da sociedade. Difícil julgá-las como um instrumento para
242
tornar os homens melhores ou piores, mesmo porque teríamos que ter um entendimento mais
aprofundado sobre o que significa ser melhor ou pior.
Com sua posição, TDFC nos transporta, de certo modo, às questões em torno do
homem “pós-humano”, “pós-moderno”, “pós-orgânico” e outras denominações mais. Do
mesmo modo, nos transporta à questão da relação da nanotecnologia com os debates em torno
à adaptação do homem ao meio ou do meio ao homem.
CESP, com sua visão otimista é receptivo à nano, expõe:
- Finalmente, novas tecnologias (as nanotecnologias inclusive) têm sido utilizadas em
intervenções com o objetivo vencer a eterna luta contra a morte. Esta luta no mundo
ocidental tem um significado especial. Oswald Spengler escreveu há mais de meio século que
o ocidental vive numa corrida para o infinito onde a morte, no meio do caminho é um corte,
uma interrupção, que precisa ser vencida. Será que nesta luta haverá uma fusão entre o
orgânico e o inorgânico? Não sei.
- Mas será que antes disto ainda teremos uma pico, uma femto ou uma
attotecnologia? [...] Natureza humana! O “ser humano” é sinônimo de “ser social” (ou “ser
cultural”). Esta hibridação homem-máquina será mais bem compreendida como a máquina
em auxílio à manutenção da vida. Os exemplos são muitos e a mídia não cansa de apresentá-
los. Os enxertos, marca-passos, as cirurgias de mudança de sexo e os tratamentos,
adequação de um gênero a outro etc., demonstram que a “natureza humana” é passível de
intervenções. O corpo, diz Mary Douglas (uma antropóloga inglesa), é a metáfora da
sociedade, e por isto procura-se, sempre, adequá-lo a padrões estéticos. Ou para adequações
psicológicas, como já acontece nas cirurgias de mudança de sexo.
CESP nos coloca diante do que a pesquisadora mesma sente, quando contempla uma
escultura moderna e se pergunta: “Onde está a técnica ali? E a arte?” Ora, o que pensamos é
que ambas estão de tal modo imiscuídas, que olhar para um automóvel incrementado de
aparatos muito avançados, que chama a atenção de qualquer pessoa que passa na rua, ou pegar
na mão um Ipod nano, último modelo, causa esta sensação de perplexidade e dúvida. ECTE
vai mais fundo na desestruturação de nossas dicotomias quando expõe que:
- [...] a fusão do orgânico e do inorgânico que a ciência está realmente produzindo,
vem exatamente ao encontro da VIDA: VIDA é a própria atividade criadora da natureza da
qual somos estruturas formadas. Somos fusão produzida e estruturada pela e com a
Natureza. Portanto, com Deleuze vou além da concepção de vida como a autopoiése de
Maturana e Varela. Para este último, a FORMA é a vida. Para mim, a vida é anterior à
FORMA, ainda que esta seja autopoiética, auto-organizativa. Logo, não há contradição nesta
fusão do orgânico e do inorgânico, mas antes, pelo contrário, há encontros...
Outra posição que chamou nossa atenção foi a de PLUM. Nesta, há o reconhecimento
da nano como meio, mas uma posição que nos lembra Ortega uma vez que o entrevistado
concebe a nano em suas inter-relações entre vida, técnica e mundo, a que focalizemos a
atenção não estritamente sobre a vida humana como a única perspectiva mais radical desde a
qual se deva dar sentido à colocação do problema da técnica, mas é preciso reconhecer que a
técnica representa um inevitável substrato ontológico em que tem o ser humano está imerso.
244
O homem, desde sua mais radical realidade, obedece a uma razão ontológica pelo fato de ser
um “ser” estranho ao “ser” do mundo; por esta razão, não se adapta totalmente a circunstância
e, à diferença do animal - cujo ser se adapta totalmente à natureza (o que nos remeteu às
posições de Hegel e de Gehlen, para o qual a partir da substituição da força orgânica pela
anorgânica, o homem alargou seu campo de intervenção, autonomia e potencial de
desenvolvimento) - o ser humano aparece como um ser estranho ao ambiente e ao mesmo
tempo misterioso. Segundo o entrevistado, a nano traz
– [...] benesses, reveses, facilidades e dificuldades que esta impele ao longo de sua
implementação e uso. Sem dúvida, quem tiver os recursos necessários, quer sejam
financeiros, intelectuais, sociais, irá fazer uso das novas tecnologias, dentre elas das nano.
Mesmo que venham a ser consideradas seres híbridos, mutantes ou sei lá eu! Pode ser até
que isto confira algum “status” para o portador... Eu considero o uso de nanopartículas
muito semelhante ao uso de óculos, perna mecânica, implante capilar, seio de silicones,
implante dentário etc. Estas adaptações e complementações artificiais do corpo sempre
existiram e continuarão a existir [...] O que dizer dos piratas da perna-de-pau? Do homem de
olho de vidro? Dos implantes cocleares e da possibilidade de voltar ou começar a ouvir? De
um transplante de rosto? E me parece que são dois. Tudo isto são adaptações do homem ao
meio, para que possa transitar melhor à frente das adversidades e facilidades que ele lhe
impõe. As tecnologias evoluem, as ferramentas são outras, mas as necessidades de adaptação
vão continuar a existir.
Do ponto de vista das ciências sociais, MSSP ao nosso modo de ver explica o ser
humano na fusão orgânico-inorgânico concebendo a técnica como meio de adaptação,
mantendo a oposição entre homem e natureza. Entende que:
- A fusão de orgânico e inorgânico proporcionada pelo progresso técnico, se trata de
uma nova fase do desenvolvimento capitalista em que as barreiras entre o orgânico e o
inorgânico são abolidas, ou pelo menos destruídas de forma significativa para que o capital
se aposse de áreas em que ele não construía mercadorias – portanto não se reproduzia – e
agora o faz, ampliando assim seu universo de reprodução ampliada. Este processo envolve
condições objetivas e também subjetivas: a) a posição crítica se refere a que o controle da
introdução da nanopartícula não se encontra com a sociedade, mas sim com os grandes
capitais, materializados nas empresas multinacionais e Estados que são seus representantes;
b) se trata de uma adaptação do homem e do meio à reprodução ampliada do capital. Porque
este é o cerne do sistema capitalista. Homem e natureza subordinados ao capital via o
trabalho morto materializado em tecnologias.
Em todas as exposições se percebe uma relação muito íntima entre a nano e a vida.
OSCI, que tem atuação na pesquisa científica contribui neste sentido, talvez algo que não
poderemos pensar se fizermos uma comparação entre o que representou a passagem do
bucólico e pastoril para o mundo industrializado. Coisas grandes e pequenas aconteceram.
Para o entrevistado, tem havido boa sinergia nas nossas interações dos pesquisdores da nano
com os diferentes grupos das diferentes redes, mas, do ponto de vista geral, ainda existem
dificuldades nas atividades em rede, sobretudo porque se trata de um tipo de organização da
pesquisa que exige uma forte vontade de interagir com outros grupos e de efetivamente
trabalhar dentro de uma perspectiva multidisciplinar. OSCI acredita que a pesquisa na área
nano pode contribuir expressivamente na solução de problemas que afetam diretamente os
246
Ficamos imaginando muita coisa que hoje acontece no mundo, coisas descomplicadas
para falarmos aqui, como do casamento entre um japonês nato e uma mulher brasileira, a
brincadeira de uma criança alemã com uma criança natural de Luanda, o contato entre um
urso polar e pulgas e carrapatos, a questão da própria transgenia e da clonagem, a união de um
alemão com uma mulher da tribo Padung, da tribo das mulheres-girafas, que usam anéis
dourados ao longo do pescoço comprido, e em outras relações. Pensamos nas palavras do
entrevistado ECTE, quando fala agora que a diferença se mostra como tal ela deliciosamente
assusta e galvaniza nossos sentimentos e nossos pensamentos mais secretos. Lembramos
também de OSCI, ao dizer que:
- No que se refere às questões sociais, ambientais e, acrescentamos éticas [...] há
muito que fazer. A questão da informação qualificada é fundamental neste processo [...] a
nanotecnologia - graças a um forte apelo mediático -, teve seu universo povoado por
nanorobôs, nanomáquinas, nano-X, etc., aos quais são atribuídas às mais diversas funções,
sendo grande parte delas altamente especulativa. Certamente esse tema assusta, se colocado
para o grande público, sem qualquer explicação prévia, clara, ponderada e, sobretudo,
abalizada. A dificuldade de compreensão transforma tudo numa “grande interrogação” que,
no limite, pode até mesmo levar ao medo. O que geralmente nunca se diz é que coisas que lhe
estão muito próximas, que fazem parte do seu cotidiano, as quais, muitas, inclusive consome,
são produtos que já se apropriaram desta tecnologia e que, certamente, nada têm a ver com
as “criaturas” que muitas vezes são mostradas em vários veículos de comunicação.
De certo modo, somos reportados aqui a pensar nas posições em que é assumida a
idéia de natureza humana e a implicação da nanotecnologia como possibilidade de alteração
da mesma – uma natureza pós-humana, pós-orgânica... -, complementando que não
encontramos em nossos pesquisados uma idéia tão radical quanto à do co-fundador e principal
247
cientista da Sun Microsystems Bill Joy (Apud SANTOS, 2003, p. 273), em seu argumento de
que “estamos no limiar de aperfeiçoamento do mal extremo” com as novas tecnologias,
equivalente, segundo Santos (Ibid.), “à perda total do controle pelos humanos e a ameaça à
espécie”. Quando formulamos a questão para nossos pesquisados sobre como definiriam a
“natureza humana”, uma vez que muitos críticos que escrevem ou discursam sobre a
nanotecnologia afirmam que esta tecnologia representa o fim da mesma, ECTE coloca que
afirmações deste tipo se relacionam com a oposição entre “natureza” e “natureza humana”,
que “são criações da filosofia ocidental essencialista”. No seu modo de analisar esta condição
consequencialista, ele diz que:
- [...] são oposiçõs irredutíveis [...] qualquer costura aí se tornou impossível depois
da ruptura da fysis e do nomo, da natureza e da cultura, do homem e do animal... Impensável
logicamente qualquer evolução [...] sempre de novo aquela oposição binária: ou isto ou
aquilo [...] oposições binárias corpo versus alma, corpo “onde os impulsos humanos
condenáveis e perigosos” tramam nossa destruição, natureza versus cultura, identidade
supostamente eterna versus desigualdade/devir, não dão conta do que se passa ao nosso
redor.
tamanho nanométrico e que por isso exige técnicas especiais de estudo, às vezes até muito
onerosos. Mas é importante dizer que muitos desses estudos já eram realizados antes, sem
que esse nome “nanotecnologia” tenha sido utilizado. Esses estudos só são possíveis hoje
pelo avanço das tecnologias de detecção ao nível atômico etc.
E complementa:
DCSB, que atua diretamente com o setor da economia na empresa não vai longe, nos
fazendo repensar a relação homem-natureza e a nos perguntar: “O homem é natureza, é parte
dela, ou não é natureza?”. O entrevistado, em questão, afirma que concebe a nanotecnologia:
Como uma reengenharia radical do homem que tende para a necessidade de
modificar o corpo e de desenhar sua própria identidade do jeito que quer. A nanotecnologia é
uma prova de que o homem tenta adaptar a natureza de acordo com suas necessidades [...]
Creio que seja a adaptação do meio ao homem. O uso de células-tronco é uma forma de
corrigir possíveis imperfeições existentes na natureza. Adaptações da natureza às
necessidades do homem.
BDSP, falando do lugar das ciências sociais, conclama para estas discussões as idéias
de Latour, para quem a técnica é representada por meio de um saber-fazer e a cognição deixa
de ser o agente central de uma ação para ser um dos atores envolvidos numa rede dada -. Ela
entende que: - “A natureza humana é uma construção social, histórica. Como a noção de
natureza em geral. Vide Latour. Para ele existe são naturezas. E quanto à questão da
249
implicação da nanotecnologia com adaptações, questiona se não podem ser as duas coisas,
num processo interativo.
Uma posição que ressalta o papel do homem na natureza, mais do que necessidades de
adaptar o meio a si, é a que apresenta de forma muito tranquila PDFM, que como físico
trabalha há um bom tempo diretamente com a nano e suas aplicações. Ele recomenda um
balanço favorável entre os riscos e benefícios envolvidos, no sentido de um utilitarimo
altruísta, em que a nova técnica seja capaz de maximizar os benefícios, afirmando que não vê
– [...] uma evolução muito diferente da observada no século passado, com o surgimento da
energia nuclear e o advento dos computadores, por exemplo [...] Diz ainda que é
extremamente favorável ao desenvolvimento da nanotecnologia (na nossa visão, concebendo-
a como ferramenta). Para o pesquisador: - Os benefícios serão imensos! Os riscos também.
Tudo estará dependente de como nações, principalmente as desenvolvidas, conduzirão esta
questão!
Com o desenvolvimento das ciências físicas, que foi simultâneo ao desenvolvimento e
avanço das instrumentalidades, cada vez mais sofisticadas e eficazes, esperávamos mais
posicionamentos sobre a importância específica e a tarefa da nanotecnologia frente às
condições da vida e da ação, diante do quadro de muitos produtos que invadem a vida e que
não deveriam ser - ao menos pensamos - indiferentes aos assuntos humanos. Este foi um bom
motivo para consideramos que devemos dedicar atenção especial a tal situação e também
porque julgamos que experiência, natureza e instrumentação foram separados de modo
injustificável pela tradição, corte, em grau semelhante à cisão natureza-homem ou à natureza
cultura, oposições que trouxeram consigo um sem número de problemas já apontados nos
capítulos anteriores.
Ante tais retornos, apontamos alguns tipos acentuados de problemas em evidência: 1)
problemas práticos, que são os problemas e as pressões da vida cotidiana: 1) problemas
teóricos, que são os problemas dos quais se ocupa a ciência e a técnica; 2) problemas de
valor, que compreendem as circunstâncias nas quais é preciso saber o que é a coisa e o que se
deve fazer em relação a ela; 4) e os chamados problemas de fato, em que há um esforço por
descrever algo.
Pudemos verificar que com relação à nanotecnologia, como em cada tipo de problema
com que se deparam os seres humanos, para sua resolução, é empregado um padrão comum
que não está inscrito em nenhum código normativo ideal, senão que é o resultado empírico
que tem acompanhado e feito a espécie humana ao largo de sua constituição, lembrando que
250
os mecanismos que regem o processo evolutivo continuam sendo discutidos, como também é
objeto de debate a sua sustentação nas leis que encontramos nas teorias biológicas. Existem
novas reflexões sobre o conhecimento humano, como estratégia de resolução de dilemas da
vida, mas de modo geral não se remetem às raízes biológicas, capazes de abrir outro caminho
para a compreensão do significado das ciências naturais, a que, por conseguinte, abram
também para definir o das ciências humanas e sociais. Pensamos que esta realidade talvez nos
tenha mostrado uma oportunidade de abandonar de modo definitivo velhas perguntas
substituindo-as por outras novas, mediante acordos com a natureza, a vida e a cultura humana,
que tenham relação com a capacidade de decisão sábia, consciente e solidária dos seres
humanos, os verdadeiros protagonistas com falas e ações deste poder da natureza.
Consideramos que conhecer mais sobre nanociência, sobre nanotecnologia, neste
aspecto, de um modo que se possa debater com mais fluidez as questões em torno a estes
campos, discutir conceitos de forma descomplicada e encontrar formas de fazer coisas
parecidas na vida cotidiana com os modos próprios dos cientistas e parecidos com os produtos
que estão na sociedade, é um bom passo para a partida. São procedimentos simples, ágeis,
colaborativos, imediatos (quanto à urgência do momento) e, ao modo de falar pragmatista,
eficazes em sua contribuição como instrumentos capazes de redefinir ou recolocar questões
novas sobre a vida, a técnica, a ética e sobre os seres humanos, que hoje são objeto de
discussão em todas as áreas do conhecimento, cujas preocupações já seguem além da ética do
‘grande’, do ‘concebível’, do ‘mensurável’, do ‘palpável’.
Não se trata aqui de investigar a origem e o desenvolvimento de posicionamentos e
mais posicionamentos, enquanto tais, que têm sido examinados sempre que surgem dilemas
afrontando a normalidade, já bastante perscrutados por muitos autores atuais nos debates que
abarcam a relação técnica-ética. É importante que se examine a capacidade que alguns deles
possam ter de iluminar problemas específicos à relação nanotecnologia-ética, no modo como
se vincula com interesses e manifestações que hoje se apresentam como problemas de todos
os homens.
Acreditamos que obtivemos algum sucesso revisitando as idéias manifestadas quanto à
capacidade de tomar decisões e quanto ao caminho a seguir para responder a algumas
perguntas que, de certo modo, foram bastante freqüentes neste estudo. Reportando-nos
constantemente a tais perguntas - porque diante de algo tão inusitado não conseguimos deixar
de fazê-las e porque não temos ainda a lucidez para entender se muitas delas já têm ou não a
resposta - pensamos como Agamben (2002, pp. 273-287), que as questões problemáticas se
251
tornam mais claras se as reformularmos como perguntas sobre o significado das palavras.
Nesta direção, nos parece que Agamben caminha a partir do campo “poder” aberto por
Foucault, acolhendo caminhos apontados por este filósofo e por Benjamin de interrogar
tematicamente a relação entre “vida nua” (vida sem nenhum valor) e “política” que governa
subliminarmente as ideologias da modernidade.
Agamben tenta forçar que o político seja extraído de sua ocultação e, ao mesmo
tempo, restitua o pensamento à sua vocação prática, abordando as relações biopolíticas
existentes entre a “vida nua” e a “soberania” na história política ocidental. A partir dessas
relações, esclarece de que forma o advento da pólis assinala, pelo princípio ontológico de
exceção constitutivo da “soberania”, a inclusão por exclusão da zoé na pólis, da “vida nua” no
ordenamento jurídico, a contribuir nas discussões que giram em torno a problemas que
continuam atuais e a que sejam solucionados.
Precisamos pensar que, com a emergência da nano muda de forma significativa o
modo de viver nas sociedades contemporâneas e nas relações entre todos os atores envolvidos
nos mais diversos campos de trabalho. Basta aqui apenas lembrar que a chamada “terceira
idade” hoje é também do tempo do computador e pessoas desta faixa etárias estão cada vez
mais tendo acesso a informática e à Internet.
Precisamos pensar a técnica de outro modo diferente do que a temos pensado, no
sentido da reconciliação do homem com a natureza, da natureza consigo mesma, do homem
consigo mesmo. Temos certa dificuldade em dizer o que a técnica é, mas, mais do que pensar
que o homem triunfa sobre a natureza, é possível dizer que a técnica seja este processo mesmo
da natureza aperfeiçoar-se, uma vez que se vê forçada a fazê-lo no sentido de cuidar de si
mesma, do que criou e cria, no sentido da vida seguir em frente.
Necessitamos compreender o significado dos questionamentos em torno à relação
entre a nanotecnologia e as preocupações éticas, sobretudo, para ampliar nossa capacidade de
reconsiderar as oposições binárias que estão acompanhando as interpretações a respeito desta
tecnologia. Quase sempre implícitas nos efeitos da técnica sobre o homem, esta tendência
perturbou em demasia, a que se queira sair da velha discussão entre natureza e natureza
humana, natureza e cultura, técnica do bem e do mal e entender igualmente o que pode
significar a anulação surpreendente dessa bi-polaridade, pois a exclusão de quaisquer
dimensões importantes da condição humana produz, por certo, conseqüências éticas
importantes, dentro e fora do âmbito das teorias científicas.
252
CONSIDERAÇÕES FINAIS
118
Os titãs são denominados deuses menores, não primordiais, porque se referem, nos estudos mitológicos, aos
antigos deuses que antecederam o reinado de Zeus. Originalmente, eram filhos dos primitivos senhores do
universo, Gaia, a Terra, e Urano, o Céu. Trata-se, contudo, de uma série de divindades muito antigas, da segunda
geração dos deuses gregos, descendentes de Urano, que, por uma razão ou outra, continuaram a ter uma certa
vigência dentro da mitologia grega clássica, destacando-se na sua ascensão ao poder, por ousarem enfrentar o
próprio Zeus e os deuses olímpicos, ou seja, os supremos entre os deuses, e que sucederam os titãs. Apenas para
enriquecer tais esclarecimentos, observamos que as divindades em geral estão presentes nas obras de Homero, o
que nos possibilita conhecer seus hábitos, características e costumes, além de nos transportar ao Olimpo ou à
morada divina, fazendo-nos de algum modo, ter uma idéia do cotidiano dos seres ditos imortais.
253
nós observamos ou com o qual nós interagimos, ou um habitante interno e retido às suas
fronteiras; nós podemos não apenas observar todo esse sistema e a relação do exterior/interior,
mas também intervir, criar, recriar, afetar e mudar, concebendo as novas imbricações em
termos de uma necessidade também estética associada à medição. As marcas destas incisões
são bastante evidentes, por exemplo, em anúncios do surgimento de novos produtos, mais
úteis, práticos, leves e econômicos do que os que conhecemos resultantes das pesquisas em
nanotecnologia. Chamamos a atenção que aqui a invisibilidade está relacionada à arquitetura
da leveza do menor, como uma propriedade detentora de um ‘novo poder’ a expressar um
novo ângulo da profundidade da natureza, como na obra de Kandynsky (Figura 23).
num “circuito sem fim”. Isto foi, de certo modo, fascinante para nosso estudo!
Confirmamos Jonas quando nos faz ver, que na atividade da ciência está o homem, e
esta segue sempre mais e mais impulsionada por sua aspiração ao conhecimento.
Seguramente, como o filósofo nos faz ver, esse “eros teórico”, antes voraz pela verdade, é
agora arrojado pela tecnologia que o incita a expandir-se por todos os poros. Mas se disso
resultou o desenvolvimento acelerado de um conjunto de atividades de pesquisa que se
mostram cada vez mais sutis, mais finas, fazendo com que os objetos sejam muito mais
diversificados e ricos em modos de funcionamento, o que consideramos relevante e deve ser
celebrado sem presunção, é que nosso pensamento já consegue mergulhar num campo de
dimensões que antes não alcançávamos fora do campo da imaginação. Ora, isto representa um
desafio de porte até mesmo para o mais fértil sonho, mas ao mesmo tempo ameniza o que
aparenta ser extraordinariamente inalcançável e fictício na nanotecnologia, colocando rumos
para podermos acompanhar algo que queremos que seja mais do que uma quinta ou última
revolução, queremos um revolucionar, como diz Jonas (Idem, p. 24), de “nuestra propria vida
en su aplicación práctica a través de la técnica”.
No que se refere a dificuldades encontradas na delimitação das coisas nano, em seus
contornos particulares, questionamentos existentes em relação à nanotecnologia, assumem
importância para que se possa avaliar as relações que existem entre os desafios de um mundo
que começa a ser povoado por coisas “fabricadas” de outra forma. Já se pressupõe que as
implicações serão mais relevantes de algum modo, mudarão – e já têm mudado
significativamente - o jeito de viver em sociedade, o modo de viver de cada um, os valores e
princípios de vida, principalmente, no que se refere às significações que as tecnologias em
escala nanométrica acabam por constituir à existência, como se saíssemos de uma terra de
gigantes para um mundo de pigmeus. Convivemos inegavelmente com um grande
desenvolvimento tecnológico sem precedentes, que se por uma parte tem propiciado uma vida
mais confortável para o ser humano, acesso tornado possível para muitos de nós, por outra
leva a uma organização de mundo em que as próprias relações inter-humanas não são mais
pensadas sem a mediação tecnológica. Lembramos que se antes não tínhamos fácil condição
de acompanharmos os acontecimentos do mundo, hoje já ficamos sabendo de tragédias por
enchentes, de assassinatos, de tráfico de crianças, da miséria de muitos povos, enfim, pelo
rádio, televisão ou jornal, sem falar em internet, quase que simultaneamente. Muitos povos
considerados desprovidos em termos de recursos para pesquisa e avanço da ciência - o que
representa um grande questionamento para alguns economistas -, produzem tecnologia de
256
ponta e fazem frente até ao próprio armamento norte-americano sem que se saiba com
garantia como eles desenvolveram tecnologias e atividades de investigação.
Não fosse a tecnologia necessária, não tivesse mesmo um potencial mediador, teria
sentido falar tanto como se fala atualmente em “inclusão digital”, um apelo que cada vez mais
ultrapassa e se estende até abranger o mundo inteiro? É o que está acontecendo em muitos
países, como no Brasil. Este grau de coisas, que emergiu já com a modernidade, preocupou
demasiadamente a Hans Jonas (1995, p. 40) em seu imperativo, formulado como age de tal
forma que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida
autêntica sobre a terra. Entretanto, tendo ciência de que o homem não pode viver sem
explicar o mundo, supomos que também não consegue ainda viver sem medidas e à falta de
consciência ordenadora das coisas, quando sente uma responsabilidade nova.
Uma vez que falamos em responsabilidade, nos reportamos aos processos de
precaução que se manifestam quando se trata de alertar para os perigos do emprego de uma
técnica, sem que haja responsabilidade para com sua influência. Não é nossa pretensão definir
de uma vez o campo dos perigos, riscos, vantagens e desvantagens da nanotecnologia como se
a mesma coisa que indicarmos determindas conseqüências apenas pelo odor ou por nossas
impressões visíveis. Neste sentido, como lembra Duque (1986, p. 243), nossa época “não é
em absoluto a era atômica”, época que muito valeu para a ciência mecanicista, tampouco é
seguro afirmar qualquer coisa a respeito do viver num mundo em que novas propriedades
serão geradas a partir da intimidade da matéria, e em que se avançou em relação às
representações do universo da forma euclidiana tridimensional, como fomos habituados a
pensar desde a infância.
A rigor, talvez possamos dizer que nunca nos defrontamos tanto, como na
contemporaneidade, com a aproximação finitude-infinitude. Tampouco, já não se afirma mais
com solidez que as coisas e fenômenos são formados apenas por matéria, enquanto referência
a objetos físicos, nem que matéria e energia são coisas opostas ou o que moldam o nosso
Universo, embora sefale agora emo em “ondas” e “partículas”!
Diante do clima de imprecisões que vivemos, é um grande desafio procurar respostas
para a pergunta: O que é que faz tudo ser o que é? Em momentos assim, precisamos contar
com razão, com imaginação e com o inimaginável. Shakespeare já disse que existe mais
“mistério” entre o céu e a terra do que podemos imaginar. Esse “mistério” tem incitado o
homem a agir, a buscar sempre um “facho de luz” para não se sentir vencido perante o
desconhecido!
Nos valeu muito termos termos buscado ampliar certos horizontes para os seres
257
prática implica. Temos, afinal, a viagem intrínseca ao nosso dia-a-dia, extraindo daí o saber
da ciência. A moral é, pois, um caminho do homo viator, mais um dos processos de auto-
realização do ser, daquilo que estamos constantemente “chamados a ser”, a existir. Existir, em
sua etimologia - ex sister - é “sair de um lugar para outro”, isto é, somos alguém que caminha,
portanto, tendo um horizonte, com um sentido. Inerente à nossa “caminhada” vital temos além
dos companheiros de estrada objetivos, rumos, horizontes, sonhos, utopias etc. uma nova
tecnologia que aperfeiçoou a natureza e a aproximou mais de nós mesmos, possibilitando ao
homem caminhar dentro de si mesmo e no extramundo.
Seres humanos viajantes que somos, já capazes de ver melhor em nós mesmos um
fragmento de escala nanométrico da natureza - que nós nunca deixamos de ser -, podendo
olhar dentro de nós, mergulhar na nossa maior intimidade, nos parece que dá em resultado
uma ocupação ética com o mais sutil da vida, com as mais finas ações, e talvez esta seja a
ética da nano. Evidentemente, da escolha do caminho depende a grandeza ou a mesquinhez do
ser humano. Esta viagem que elimina fronteiras entre macro, micro e nano (e outras mais...), é
agora dada com passos mais precisos para a travessia da própria vida, com seus percalços e
tropeços, e por isso a ética dos passos para lidar com a técnica do cristal da vida é algo de
muito precioso com que devemos nos preocupar.
Por isso, para nós, a diferença fundamental que há agora na idéia de homo viator, é a
de que o ser humano não é tão somente um mero passante pelo mundo: homem e mundo,
objeto e sujeito da travessia, coisas estanques; mas se atravessam e vão concretizando novos
mundos e novos seres ao longo desta travessia em que ambos se fazem, se desfazem, se
refazem e mudam as concepções de natureza.
Com o avanço das ciências físicas e das ciências humanas, temos então que
reinterpretar o que a tradição do homo viator nos foi legando. Reinterpretar supõe uma nova
linguagem, nova terminologia, novo olhar, novo modo de pensar, de dizer, de fazer. Max
Scheller, um admirador de São Francisco, entendia que o ser humano sofre de uma empatia
estruturante enquanto um “ser-para-os outros”. “Um sendo em busca do Ser” (Heidegger).
Scheller se considera um “homo viator”, um viajante do “sumo bem”. Sofremos todos de uma
empatia, um sentir comum (emphatein) que nos impulsiona para a busca do outro, e vice-
versa. Habilita-nos a sermos nós mesmos, peregrinos por nossa livre auto-realização ética e
heterônoma. No começo do século XXI, ainda seguem valendo as palavras que Max Scheler
escreveu há quase uma centúria: «En la historia de más de diez mil años somos nosotros la
primera época en que el hombre se ha convertido para sí mismo radical y universalmente en
259
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ANEXOS
279
ANEXO A
QUESTIONÁRIO
1. Considerando o que já ouviu falar ou sabe a respeito, o que é para você “nanotecnologia”?
5. É cada vez mais crescente a fusão entre o orgânico e o inorgânico, “a Era das Mesclas, de
hibridações de natureza e artifício, de carne e mente...”119, o que nos faz pensar em formas de
vida mistas: biológicas e mecânicas. Como você melhor identifica, então, a natureza humana:
como uma luta pela natureza ou a favor dela; como a vontade do homem em se diferenciar do
animal irracional; como a própria luta do homem contra a "sua" natureza de ser humano;
como uma reengenharia radical do homem que tende para a necessidade de modificar o corpo
e desenhar sua própria identidade do jeito que quer; como uma nova relação de
responsabilidade com a natureza; como um alívio para todos os impulsos humanos
condenáveis e perigosos contra os quais lutamos, ou como um necessário equilíbrio entre
homem e natureza?
comportamento humano. O que você pensa sobre isso: as nanopartículas teriam mesmo o
poder tecnológico de nos precipitar a tal indeterminação?
8. O que você pensa a respeito dos limites éticos e legais, face aos novos conflitos, para o
desenvolvimento científico e nanotecnológico? Tudo leva a crer que ele exige, além dos
acordos sobre princípios éticos, intervenções reguladoras. Você considera que a
nanotecnologia poderá contribuir para tornar os homens melhores do ponto de vista moral e
ético?
Nome completo:
Titulação:
Profissão atual:
Endereço:
Telefones:
E-mails:
Muito obrigada por participar desta pesquisa! Com certeza, suas contribuições valerão para
que se possa definir com mais clareza e conhecimento de causa o rumo da nanotecnologia em
nossa sociedade! Serão especiais, porque estamos tratando de um assunto que é ainda pouco
compreendido, e para que possamos não ficar restritos ao âmbito do otimismo ou do
pessimismo mais radicais.