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o milagre secreto

E Deus o fez morrer durante cem anos


e depois o animou e lhe disse:
— Quanto tempo estiveste aqui?
— Um dia ou parte de um dia — respondeu.
Alcorão, II, 261

Na noite de 14 de março de 1939, num apartamento da


Zeltnergasse de Praga, Jaromir Hladik, autor da tragédia
inacabada Os Inimigos, de uma Defesa da eternidade e de um
exame das fontes judaicas indiretas de Jakob Boehme, sonhou
com uma longa partida de xadrez. Não a disputavam dois
indivíduos, mas duas ilustres famílias; a partida tinha sido
travada havia muitos séculos; ninguém era capaz de nomear o
esquecido prêmio, mas se murmurava que era enorme e
talvez infinito; as peças e o tabuleiro estava numa torre
secreta; Jaromir (no sonho) era o primogênito de uma das
famílias hostis; nos relógios ressoava a hora da inadiável
jogada; o sonhador corria pelas areias de um deserto chuvoso
e não conseguia recordar as figuras nem as leis do xadrez.
Nesse ponto despertou. Cessaram os estrondos da chuva e dos
terríveis relógios. Um ruído compassado e unânime, cortado
por algumas vozes de comando, subia da Zeltnergasse. Era o
amanhecer; as vanguardas blindadas do Terceiro Reich
entravam em Praga.

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I

A história de Pernambuco oferece-nos exemplos de heroísmo


e grandeza moral que podem figurar nos fastos dos maiores
povos da antigüidade sem desdourá-los. Não são estes os
únicos exemplos que despertam nossa atenção sempre que
estudamos o passado desta ilustre província, berço tradicional
da liberdade brasileira. Merecem-nos particular meditação, ao
lado dos que aí se mostram dignos da gratidão da pátria pelos
nobres feitos com que a magnificaram, alguns vultos infelizes,
em quem hoje veneraríamos talvez modelos de altas e varonis
virtudes, se certas circunstâncias de tempo e lugar, que
decidem dos destinos das nações e até da humanidade, não
pudessem desnaturar os homens, tornando-os açoites das
gerações coevas e algozes de si mesmos. Entra neste número
o protagonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na
carreira do crime, menos por maldade natural, do que pela
crassa ignorância que em seu tempo agrilhoava os bons
instintos e deixava soltas as paixões canibais. Autorizavamnos
a formar este juízo do Cabeleira a tradição oral, os versos dos
trovadores e algumas linhas da história que trouxeram seu
nome aos nossos dias envolto em uma grande lição.

A sua audácia e atrocidades deve seu renome este


herói legendário para o qual não achamos par nas crônicas
provinciais. Durante muitos anos, ouvindo suas mães ou suas
aias cantarem as trovas comemorativas da vida e morte desse
como Cid, ou Robin Hood pernambucano, os meninos,

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