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Saúde do Trabalhador em

tempos de desconstrução:
caminhos de luta e resistência
Organização
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos
Heleno Rodrigues Corrêa Filho
Paulo Henrique Scrivano Garrido
Carlos Fidelis da Ponte
Carlos dos Santos Silva
Heleno, Fadel, Paulo Garrido e
os Carlos Fidelis e Silva, em hora
oportuna, trazem à luz textos
curtos testemunhas de reflexões,
lutas e resistências em torno do
campo da Saúde do Trabalhador
dos tempos que passaram a fluir
na segunda década do século
XXI. Fruto de parceria entre o
Conselho Nacional de Saúde, a
Asfoc – Sindicato Nacional dos
Trabalhadores da Fiocruz, e o Cebes
– Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde, junta sindicalistas, militantes,
pensadores, atores sociais e políticos
do mundo do trabalho, da ação
sindical e da reforma sanitária.
Une-os horizontes de um Brasil
justo, soberano e próspero; e a
certeza de que trevas sempre são
passageiras. Escritos e compilados
como inspiração e convocação
para a luta. Luta antiga com agenda
renovada e prazo indeterminado,
cujas conquistas nunca estiveram
disponíveis sem seu vigor.
Boa leitura!

José Noronha
Diretor do Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde
Saúde do Trabalhador em
tempos de desconstrução:
caminhos de luta e resistência
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES)
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2020 – 2021) Victória S. L. Araújo do Espírito Santo Maria Edna Bezerra Silva
Presidente: Lucia Regina Florentino Souto Suplentes Maria Eneida de Almeida
Vice-Presidente: Lívia Angeli Silva Iris da Conceição Maria Lucia Frizon Rizzotto
Diretor Administrativo: Carlos Fidelis da Ponte Jamilli Silva Santos Matheus Falcão
Diretora de Política Editorial: Lenaura de Vasconcelos Matheus Ribeiro Bizuti Rafael Damasceno de Barros
Costa Lobato Sergio Rossi Ribeiro
Diretores Executivos: CONSELHO CONSULTIVO
Alane Andrelino Ribeiro Claudimar Amaro de Andrade Rodrigues SECRETÁRIO EXECUTIVO
Ana Maria Costa Cornelis Johannes van Stralen Carlos dos Santos Silva
Heleno Rodrigues Corrêa Filho Cristiane Lopes Simão Lemos
Maria Lucia Freitas Santos Isabela Soares Santos EDITORA EXECUTIVA
Vinícius Ximenes Mourici da Rocha Itamar Lages Mariana Chastinet
José Carvalho de Noronha
CONSELHO FISCAL José Ruben de Alcântara Bonfi EDITORAS ASSISTENTES
Ana Tereza da Silva Pereira Camargo Lívia Millena B. Deus e Mello Carina Munhoz
Claudia Travassos Lizaldo Andrade Maia Luiza Nunes

EDITORES CIENTÍFICOS CONSELHO EDITORIAL DO CEBES


André Gustavo Bittencourt Villela – Tribunal Regional do Trabalho, Niterói (RJ), Brasil Ademar Arthur Chioro dos Reis – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo
Bruno Chapadeiro – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo (SP), Brasil
(SP), Brasil Alicia Stolkiner – Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina
Carlos dos Santos Silva – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Rio de Janeiro Angel Martinez Hernaez – Universidad Rovira i Virgili, Tarragona, Espanha
(RJ), Brasil Breno Augusto Souto Maior Fonte – Universidade Federal de Pernambuco, Recife
Carlos Fidelis da Ponte – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil (PE), Brasil
Debora Lopes de Oliveira – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Carlos Botazzo – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil
Janeiro (RJ), Brasil Cornelis Johannes van Stralen – Unversidade Federal de Minas Gerais, Belo Hori-
Diego de Oliveira Souza – Universidade Federal de Alagoas, Arapiraca (AL), Brasil zonte (MG), Brasil
Eduardo Bonfim da Silva – Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Debora Diniz – Universidade de Brasília, Brasília (DF), Brasil
Saúde e dos Ambientes de Trabalho, Brasília (DF), Brasil Diana Mauri – Università degli Studi di Milano, Milão, Itália
Eguimar Felício Chaveiro – Universidade Federal de Goiás, Goiânia (GO), Brasil Eduardo Luis Menéndez Spina – Centro de Investigaciones y Estudios Superiores
Elizabeth Costa Dias – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG), en Antropologia
Brasil Social, Mexico (DF), México
Geordeci Souza – Conselheiro Nacional de Saúde, Brasília (DF), Brasil Elias Kondilis – Queen Mary University of London, Londres, Inglaterra
Heleno Rodrigues Corrêa Filho – Universidade de Brasília, Brasília (DF), Brasil Eduardo Maia Freese de Carvalho – Fundação Oswaldo Cruz, Recife (PE), Brasil
Hermano Albuquerque de Castro – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil Hugo Spinelli – Universidad Nacional de Lanús, Lanús, Argentina
Ildeberto Muniz de Almeida – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Jairnilson Silva Paim - Universidade Federal da Bahia, Salvador (BA), Brasil
Filho, Botucatu (SP), Brasil Jean Pierre Unger – Institut de Médicine Tropicale, Antuérpia, Bélgica
Jandira Maciel da Silva – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte José Carlos Braga – Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), Brasil
(MG), Brasil José da Rocha Carvalheiro – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Jorge Mesquita Huet Machado – Fundação Oswaldo Cruz, Brasília (DF), Brasil Kenneth Rochel de Camargo Jr – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
Lia Giraldo da Silva Augusto – Fundação Oswaldo Cruz – Instituto Aggeu Magalhães, de Janeiro (RJ), Brasil
Recife (PE), Brasil Ligia Giovanella – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Luciene de Aguiar Dias – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil Luiz Augusto Facchini – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas (RS), Brasil
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil Luiz Odorico Monteiro de Andrade – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza
Maria Cristina Strausz – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil (CE), Brasil
Maria Helena Barros de Oliveira – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil Maria Salete Bessa Jorge – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza (CE), Brasil
Paulo Gilvane Lopes Pena – Universidade Federal da Bahia, Salvador (BA), Brasil Mario Esteban Hernández Álvarez – Universidad Nacional de Colombia, Bogotá,
Paulo Henrique Scrivano Garrido – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil Colômbia
René Mendes – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil Mario Roberto Rovere – Universidad Nacional de Rosario, Rosário, Argentina
Rosangela Gaze – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ), Brasil Paulo Marchiori Buss – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Simone Santos Oliveira – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira – Universidade Federal do Pará, Belém (PA), Brasil
Rubens de Camargo Ferreira Adorno – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP),
Brasil
Sonia Maria Fleury Teixeira – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Sulamis Dain – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Walter Ferreira de Oliveira – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis
(SC), Brasil
Saúde do Trabalhador em
tempos de desconstrução:
caminhos de luta e resistência
Organização
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos
Heleno Rodrigues Corrêa Filho
Paulo Henrique Scrivano Garrido
Carlos Fidelis da Ponte
Carlos dos Santos Silva

Rio de Janeiro
2021
© Direitos autorais, 2021, da organização, de Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos, Heleno Rodrigues Corrêa Filho, Paulo Henrique Scrivano Garrido, Carlos
Fidelis da Ponte & Carlos dos Santos Silva

Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, da editora.

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Coordenação editorial
Mariana Chastinet
Normalização
Carina Munhoz
Luiza Nunes
Revisão ortográfica e gramatical
Wanderson Ferreira da Silva
Revisão final
Mariana Chastinet
Capa, projeto gráfico e diagramação
Rita Loureiro
ALM Apoio à Cultura – www.apoioacultura.com.br
Ilustrações
Marcelo Tiburcio Vanni
Maria Carolina Reis

S255

Saúde do trabalhador em tempos de desconstrução: caminhos de luta e resistência.


/ Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos [et al.]. (Organizadores). – Rio de Janeiro: Cebes, 2021.

314 p.; il..


DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.01
ISBN: 978-65-87037-02-8

1. Saúde do trabalhador 2. Vigilância em saúde do trabalhador 3. Política de saúde do


trabalhador I. Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos II. Heleno Rodrigues Corrêa Filho III.
Paulo Henrique Scrivano Garrido IV. Carlos Fidelis da Ponte V. Carlos dos Santos Silva.
CDD 613.62

CDD 362.1

Carina Munhoz de Lima CRB-7 7205


Sumário
Prefácio 7
Lucia Regina Florentino Souto, Carlos Fidelis da Ponte & Paulo Henrique Scrivano Garrido

Introdução – Saúde do Trabalhador em tempos de desconstrução:


caminhos de luta e resistência 8
Heleno Rodrigues Corrêa Filho, Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos & Carlos dos Santos Silva

1 – A voz do sindicalismo 11
Coordenação: Paulo Henrique Scrivano Garrido & Carlos Fidelis da Ponte

2 – O marco regulatório desregulado 43


Coordenação: Maria Helena Barros de Oliveira & André Gustavo Bittencourt Villela

3 – Gestão democrática e controle social no SUS: dilemas, avanços e


desafios da luta pelo direito à saúde dos trabalhadores 73
Coordenação: Debora Lopes de Oliveira & Geordeci Souza

4 – Produção de conhecimento até quanto e para quem? 103


Coordenação: Maria Cristina Strausz & Jandira Maciel da Silva

5 – A institucionalidade fragmentada do campo da saúde do trabalhador 135


Coordenação: Elizabeth Costa Dias & Paulo Gilvane Lopes Pena

6 – Trabalho em saúde e os santos de casa 169


Coordenação: Jorge Mesquita Huet Machado, Luciene de Aguiar Dias & Simone Santos Oliveira

7 – A necessária integração trabalho-ambiente: problemas emblemáticos


e lições aprendidas 199
Coordenação: Hermano Albuquerque de Castro & Lia Giraldo da Silva Augusto

8 – De volta ao passado: o futuro do trabalho 227


Coordenação: Diego de Oliveira Souza & Bruno Chapadeiro

9 – Leve do altar do passado o fogo, não as cinzas 251


Coordenação: Ildeberto Muniz de Almeida & René Mendes

10 – Saúde e trabalho em situação extrema de crise sanitária e econômica 277


Coordenação: Rosangela Gaze & Eguimar Felício Chaveiro

Sobre os Autores 311


7

Prefácio
Lucia Regina Florentino Souto
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.02

Carlos Fidelis da Ponte


Paulo Henrique Scrivano Garrido

Asfoc e Cebes apresentam o Almanaque da Saúde criminosa de oxigênio, na volta da fome, na crescente
do Trabalhador, um manifesto de luta em defesa da população abandonada nas ruas, no desemprego de
vida e da saúde que, como se referem com sensi- mais de 14% de nossa população, no estarrecedor
bilidade os coordenadores na introdução, procura número de mais de 40% de trabalhadores precários.
traduzir a Alma do vasto campo de conhecimento da O projeto de concentração de riqueza, de des-
Saúde do Trabalhador. truição de políticas públicas estratégicas, como a
Trata-se de uma contribuição que, indubitavel- saúde como direito universal, segurança alimentar,
mente, será um marco no debate público de temas direitos trabalhistas – com políticas de ódio e de-
estratégicos para construção da possibilidade de outro gradação da democracia –; impõe-nos a afirmação
mundo aqui e agora de dignidade, respeito, solida- de outros caminhos. São eixos estratégicos para a
riedade, amizade e amor. promoção do bem-estar como direito de garantir
Em tempos desafiadores, de mudança de época e uma agenda de radicalização da democracia parti-
em um contexto de emergência sanitária, política, econô- cipativa com: justiça tributária, reforma tributária
mica, cultural, ambiental sem precedentes, é retumbante progressiva e taxação de grandes fortunas; renda
o fracasso do projeto ultraneoliberal para dar respostas básica universal; reforma agrária e transição ecoló-
às necessidades mais básicas da humanidade. gica; geração de trabalho e renda; direito a políticas
O anseio por uma vida digna é confrontado públicas universais de acesso à saúde, educação e
diariamente por um projeto da necropolítica e do cultura; ambiente saudável.
racismo estrutural que pretende nos impor como ob- Como em outros momentos, as inúmeras ex-
jetivo um padrão de desenvolvimento que aprofunda periências exemplares que povoam o nosso Brasil
as desigualdades em níveis explosivos. serão a potência transformadora de um povo criativo
As consequências se manifestam em milhares de e corajoso que sabe o valor da democracia, da solida-
morte evitáveis de brasileiras/os pela Covid-19, na falta riedade, da vida e da dignidade.

Banksy – Love Is In The


Air or Rage, The Flower
Thrower, 2005
Street art
Ash Salon Street, Bethlehem,
Margem Oeste, Jerusalém.
8

DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.03

INTRODUÇÃO
Saúde do Trabalhador em tempos de desconstrução:
caminhos de luta e resistência
Heleno Rodrigues Corrêa Filho
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos
Carlos dos Santos Silva

Durante mais de 40 anos, o Brasil foi palco de demolidas. Seja em matéria de legislações protetivas
uma luta árdua para a construção do campo da saúde da saúde, seja nas questões ligadas à institucionalidade
do trabalhador. Inserido na saúde coletiva e reconheci- das ações, nas instâncias de manifestação da sociedade,
do como área executiva da saúde pública, pelas linhas nas intervenções sobre o mundo do trabalho ou, ainda,
inovadoras e generosas da Constituição Federal de na destituição de uma cultura de proteção à vida no
1988, trabalhadores e trabalhadoras passaram a ser trabalho, o cenário é de terra arrasada.
cobertos pelo manto de proteção da saúde, tecido pela A remodelação do mundo do trabalho calcada
universalidade, integralidade, igualdade, equidade, na desconstrução de direitos conquistados, a duras
cidadania, participação e reconhecimento do trabalho penas, vislumbra perspectivas sombrias de abandono
como direito humano. da saúde como direito no trabalho. Isso só aguça a
Muitos foram os que participaram dessa constru- vontade maior de resistir e lutar daqueles que po-
ção. Profissionais das mais diversas áreas do conheci- demos chamar de ‘povo da saúde do trabalhador’.
mento, sindicalistas, juristas, legisladores, militantes O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Ce-
dos movimentos de defesa da justiça e da vida, homens bes), desde 1976, parceiro de primeira hora desta
e mulheres, jovens e velhos, todos unidos por um fio empreitada, em conjunto com o Sindicato dos Servi-
condutor comum: a defesa intransigente da saúde, dores de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em
da dignidade, do direito à voz e da transformação do Saúde Pública (Asfoc-SN) e com o Conselho Nacional
mundo do trabalho. de Saúde trazem nesta publicação, simbolicamente,
Todavia, com todas as conquistas do período, a consignação dessa renovada vontade de continuar
ainda assim, continuamos a conviver com uma tragédia lutando e resistindo.
brasileira. Talvez a maior de todas. Foram dezenas de Como organizadores, buscamos ouvir o má-
milhões de trabalhadores acidentados e enfermos pelo ximo de pessoas que participaram e participam
trabalho legalmente reconhecidos pelas estatísticas daquilo que se pode chamar de missão. Para mui-
oficiais no período. Mais de uma centena de milhares tos, até mais: projeto de vida. Nem todos os que
de mortos e centenas de milhares de incapacitados deveriam estar aqui foram alcançados. Problemas
permanentes para o trabalho marcam tristemente a diversos, ainda mais em tempos de pandemia,
dimensão da tragédia. isolamento social e multiplicidade de atividades,
Por isso a tenacidade e a perseverança de todos foram fatores impeditivos. No entanto, todos os
os que participaram e persistem na luta e na resistência que fizeram ou ainda fazem parte desse ‘povo’
pela saúde do trabalhador. Não fora isso, com certeza, estão por aqui, de alguma forma.
a tragédia seria ainda maior. Alguns dos que empu- Sem as exigências de publicações acadêmi-
nharam a bandeira da luta e da resistência pela saúde cas clássicas, foram compilados nesta publicação
no trabalho ficaram pelo caminho; outros, veteranos, textos de variados matizes. O objetivo é claro:
continuam desde sempre, e outros, mais jovens, vêm despojarmo-nos de uma linguagem muitas vezes
se incorporando e abrindo portas e janelas para o hermética, de compreensão limitante para gran-
chamamento dos que virão a se incorporar. de parte dos que deveriam ter acesso a eles. São
Entretanto, não bastasse a tragédia ainda em algumas dezenas de pequenos textos – ensaios,
curso, nos últimos quatro anos – e, especialmente no experiências pessoais, relatos, sínteses de artigos
atual governo brasileiro –, muitas das conquistas em científicos – compondo um mosaico de inúme-
prol da saúde do trabalhador foram e continuam sendo ros temas e de vários autores, unidos por um único
9

propósito: debater a desconstrução da saúde dos saúde; além da crise do sindicalismo, às voltas com
trabalhadores e trabalhadoras brasileiras e apontar a recriação de identidade e representatividade, são
caminhos para a renovação da luta e da resistência. também abordados. A histórica fragmentação institu-
Buscando alcançar um público que nem sem- cional do campo da ST; e o formato de produção de
pre é habitual nas publicações acadêmicas, tais conhecimento, especialmente na academia, no SUS
como sindicalistas, cipeiros, trabalhadores em e com os aos trabalhadores, estão presentes. Outro
geral, estudantes das mais variadas graduações tema é a relação trabalho-ambiente; e a relação entre
e pós-graduações e, enfim, associações e movi- movimentos, frentes, fóruns e iniciativas de ST, de
mentos sociais, o resultado é o que chamamos certo modo ainda sem uma pauta comum de luta e
carinhosamente de ‘Almanaque de Saúde do Traba- resistência. Finalmente, o debate sobre a atual con-
lhador’. Os registros, carinhosamente apelidados juntura pandêmica que colocou o País em situação
de almanaque, aludem à ideia de ALMA. É o que se extrema de crise sanitária, econômica e essencialmente
pretende: traduzir a alma da saúde do trabalhador. política. A ideia de ALMAnaque pretende deixar um
Nele, buscamos aproximar o máximo de te- gosto de querer mais com esta publicação. Os antigos
máticas que dizem respeito ao mundo do trabalho almanaques, da época dos mais veteranos da ST, eram
e, de alguma forma, propiciar um conhecimento geralmente editados anualmente. Quem sabe esta
básico e, principalmente, suscitar a reflexão capaz edição não desperte essa velha tradição?
de subsidiar a luta e a resistência. O dinamismo do mundo do trabalho requer
Entre as questões aqui trazidas, temos a articula- um olhar atento de pesquisadores e trabalhadores
ção da Saúde do Trabalhador (ST) com a conjuntura sobre as novas modalidades de opressão, exploração
econômica e sanitária do Sistema Único de Saúde e expropriação da saúde, cujas consequências ainda
(SUS); o debate de propostas para sair da crise atual não são bem dimensionadas no repertório de adoe-
do mundo do trabalho; a interação entre as categorias: cimento. O destaque fica com o sofrimento mental
trabalho – produção – direitos humanos – movimen- acelerado, do qual só saberemos suas repercussões
tos sindicais e sociais, tendo como eixo transversal mais profundas ao fim desta geração de trabalhadores
a questão saúde. Também aparecem análises sobre precarizados e desistentes.
as consequências da retração e recessão econômica Esperamos que usufruam e divulguem este tra-
sobre a vida e saúde dos trabalhadores, desconstru- balho artesanal a muitas mãos; e podem ter certeza,
ção de direitos trabalhistas, previdenciários e outros todos e todas que o manusearem, que têm nas mãos
que afetam a ST; precarização, uberização, indústria uma obra feita com muito amor, carinho e muita
4.0 e reconfiguração do mundo do trabalho. Temas indignação pela forma como a saúde do trabalhador
como a gestão participativa do SUS e o trabalho em é tratada em nosso país.
1
A voz do sindicalismo
Coordenação
Paulo Henrique Scrivano Garrido & Carlos Fidelis da Ponte
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.04
13

A Asfoc e o sindicalismo com voz


Paulo Henrique Scrivano Garrido
Mychelle Alves Monteiro
Carlos Fidelis da Ponte
Marcos Besserman Vianna

A tentativa de calar a voz do sindicalismo, tema Os sindicatos surgiram para defender os traba-
deste bloco da presente publicação, retrata, de certo lhadores contra a burguesia e consagrar os direitos
modo, a conjuntura atual brasileira e até mesmo global. do proletariado. Consequência de tantos anos de
No entanto, nós da Asfoc-SN (Sindicato dos Servi- luta, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
dores de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em reconheceu, em seu art. 23, que: “Todo ser humano
Saúde Pública) temos voz; e nossa voz ecoará cada vez tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar
mais elevada. Desde 1976, quando éramos Associação para proteção de seus interesses”1. 1. FUNDO DAS NAÇÕES
UNIDAS PARA A INFÂNCIA. De-
dos Servidores da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc), e Os direitos sindicais fazem parte, portanto, dos claração Universal dos Direitos
Humanos. 1948. Disponível em:
atuando como entidade sindical nacional a partir de direitos humanos; e como tal, são universais, inalie- https://www.unicef.org/brazil/
1986, temos buscado a voz que seja ouvida tanto na náveis e​​ pertencem a todos os trabalhadores e suas declaracao-universal-dos-direi-
tos-humanos. Acesso em: 15
defesa dos direitos dos nossos trabalhadores quanto organizações sindicais. Embora o universalismo possa nov. 2020.

na organização de movimentos políticos e sindicais, ser questionado – já que surgiu em uma economia
em busca de objetivos comuns de luta. Uma de nossas baseada na espoliação, desde o colonialismo até o ul-
principais bandeiras – a Saúde do Trabalhador e am- traneoliberalismo dos dias atuais, dirigida pela aliança
bientes e condições saudáveis de trabalho – retrata a do poder empresarial com o poder estatal –, o direito
iniciativa desta publicação, juntamente com o Centro humano universal é o objetivo a ser perseguido. E nele,
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). além do direito ao trabalho e à sindicalização, estão
No mundo de hoje, os interesses dos indivíduos embutidos o acesso à terra, à água, aos alimentos,
e das empresas se tornaram tão diversos, o trabalho aos recursos naturais, à saúde e, enfim, à vida plena.
com tantas circunstâncias particulares, que cabe per- O sindicalismo sem voz é aquele que se curva
guntar: será que ainda existe base para a negociação a governos que retiram direitos dos trabalhadores,
coletiva, cujos principais protagonistas são os sindi- impedem ao máximo sua organização e infiltram, nos
catos? Questionar o papel e até a própria existência aparelhos de Estado, mecanismos de contenção de
dos sindicatos, se realmente são os representantes e suas demandas e negação de justiça às suas causas.
defensores dos interesses da classe trabalhadora, se Modalidades similares ao fascismo elegem trabalhado-
retratam os interesses de todos os trabalhadores em res em luta por direitos como seus inimigos mortais,
suas ações prioritárias ou os interesses de alguns traba- do serviço público ou privado, e, principalmente, os
lhadores em detrimento de outros – por exemplo, os seus sindicatos.
desempregados –, são pontos de reflexão importantes. O ultraneoliberalismo pregado em vários países,
Desde a Revolução Cognitiva, não existe um único inclusive no Brasil, é dependente destes modelos de
estilo de vida natural para o Homo Sapiens. Há apenas governo: totalitarismos de extrema-direita. São caracteriza-
escolhas culturais, dentro de um conjunto assombroso dos por nacionalismo militarista, desprezo pelo processo
de possibilidades. Como todas as ações e ideias huma- democrático, crença em uma hierarquia social natural
nas desde então, os direitos sindicais também não são (contradizendo a Revolução Cognitiva) e, muitas vezes,
obra da natureza nem fruto da espontaneidade, tam- subordinação dos interesses individuais e coletivos da
pouco foram oferecidos pelos Estados ou pelos patrões. sociedade à vontade de ditadores ou espécies de Messias.
Foram conquistas alcançadas pelos trabalhadores e suas A hegemonia política atual, aliada ao capital
organizações representativas, por meio de lutas difíceis, financeiro, expressa-se em um ataque devastador
resultado histórico de muito sofrimento e sacrifício. sobre as conquistas sociais e trabalhistas consignadas
Diante da exploração dos detentores dos modos em períodos recentes. Essa articulação ultraneoliberal,
de produção na sociedade industrial, os trabalhado- com o sentido de recompor o paradigma da acumu-
res organizaram-se em sindicatos para combater a lação capitalista, resulta na devastação da economia
burguesia, para defender a classe e para criar uma brasileira, em um sistemático desmonte do Estado
sociedade mais justa. voltado para a proteção social.
14

É nesse contexto que o trabalho, elemento cen- como fenômeno temporário e transitório, que, no
tral da vida, e os trabalhadores são engolidos pela quadro do capitalismo, poderia ser substituído pelo
estratégia de acumulação e da sempre crescente restabelecimento do antigo regime democrático-bur-
concentração de renda. Reduzem-se fortemente os guês, seria aceitar reformas trabalhistas que minam
investimentos públicos e estatais, privatiza-se em larga o direito à negociação coletiva e o direito à greve,
escala, aprovam-se uma reforma da previdência e uma reformas impostas no âmbito de pacotes de ajuste es-
reforma trabalhista, invariavelmente para a obtenção trutural e de austeridade, em que os acordos coletivos
de novas fontes de extração de mais-valia. Para tal, existentes são simplesmente desconsiderados. Seria
necessita da flexibilização dos direitos e contratos aceitar que não existe mais papel para os sindicatos.
trabalhistas, o que demanda uma agressão perversa Os sindicatos têm como missão e dever defender
por cima da organização e da resistência sindicais. os direitos trabalhistas e colaborar estreitamente com
A pandemia da Covid-19 certamente é agravada por os movimentos de direitos humanos, tais como os de
essa política voltada exclusivamente para o lucro de corpo- raça, gênero e associações pela justiça ambiental. Têm
rações milionárias que são as principais contribuintes do agora um papel fundamental na defesa da liberdade de
assustador dilema climático que enfrentamos no planeta. expressão, na conquista de políticas orientadas para
No entanto, os interesses das empresas multinacio- o combate à pobreza e à exclusão, na luta para que
nais, dos fascistas e ultraneoliberais não coincidem com todas as pessoas, especialmente os mais necessitados,
os objetivos do clima e da justiça social, com o respeito usufruam do acesso universal a serviços públicos
pelos direitos e liberdades fundamentais das pessoas. de qualidade, tenham acesso e efetivem os direitos
O fascismo, mesmo nas suas formas disfarçadas, humanos fundamentais.
é um inimigo deliberado das organizações sindicais: Com toda certeza, os sindicatos hoje, e mais
prega e opera para a extinção do movimento sindical, do que nunca, são fundamentais, como espaços de
para a destruição dos sindicatos de classe, para a diálogo e participação política aberta. Indispensáveis
aniquilação do movimento sindical independente. se queremos frear a barbárie da dissolução dos direitos
Não é um fenômeno local, temporário ou transitório, humanos e a destruição ambiental. Os direitos huma-
mas representa um sistema de dominação de classe nos devem substituir os direitos corporativos, para que
da burguesia capitalista, que, na democracia demo- possamos construir uma sociedade em que todas as
crática burguesa nos EUA ou no Brasil, não poderia pessoas, independentemente de sua condição, tenham
mais ampliar o desrespeito aos direitos humanos e dignidade. Estamos todos irmanados no trabalho e
à sustentabilidade ambiental. Considerar o fascismo na defesa de uma sociedade mais justa.

Saúde e segurança no trabalho: um direito


essencial em risco
Álvaro Egea
Canindé Pegado
Carmen Foro
João Carlos Juruna Gonçalves
José Reginaldo Inácio
Wagner Gomes

Para tratar da questão da saúde e segurança no em 1978; isso porque uma das grandes vitórias
trabalho, enfocamos a evolução dessa matéria nos daquele movimento foi a conquista da negociação
últimos 40 anos, mais especificamente entre as grandes direta. Dessa forma, por meio das convenções
conquistas de 1979 e a recente onda de retrocessos, coletivas, que abriram a possibilidade de diálogo
iniciada pela reacionária reforma trabalhista em 2017. e negociação, os sindicatos passaram a reivindicar,
A escolha do ano de 1979 está relacionada além de valorização salarial, melhoria das condi-
com as greves iniciadas em São Bernardo do Campo ções e do ambiente de trabalho.
15

A questão da saúde e segurança e a organização de e o inciso XXVIII, do mesmo artigo, que prevê seguro
Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipa) contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador,
cresceram muito nesse contexto, tanto que o ano de sem excluir a indenização a que este está obrigado,
1979 foi considerado o marco inicial da luta contem- quando incorrer em dolo ou culpa.
porânea pela saúde e segurança do trabalhador.

Foto: Raphael Korn-Adler/Acervo SinMed


Isso levou os sindicatos a contratarem médicos
do trabalho e técnicos de segurança para assessorar
os trabalhadores, além de preparar quadros para essa
função, fazendo com que os próprios trabalhadores
passassem a fiscalizar as condições de trabalho e as
eleições para as Cipa.
Quando os sindicatos puderam negociar essas
questões, inúmeras denúncias de problemas de saúde
nas empresas surgiram, deixando claro que os índices
de acidentes de trabalho eram alarmantes e que o
reduzido número de fiscais do Ministério do Trabalho
era preocupante.
Naquele ano de 1979, consagrando o reforço da
pauta sanitária dentro dos sindicatos, foram realizadas
as duas primeiras Semanas de Saúde do Trabalhador Lula discursa na greve
(Semsat). A primeira, concebida por médicos liga- Desde meados da segunda década do século dos médicos em 1981.

dos ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ocorreu XXI, entretanto, os avanços civilizatórios conquistados
entre os dias 14 e 19 de maio, em São Paulo, com a pelos brasileiros sofrem graves ameaças. Vivemos uma
participação de 1.800 trabalhadores, 49 sindicatos fase de flagrantes retrocessos, inaugurada com a refor-
e 6 federações de trabalhadores e trabalhadoras. O ma trabalhista de 2017, no governo de Michel Temer.
principal tema de discussão foi a silicose e as doenças Essa reforma reacionária propôs a extinção de
pulmonares causadas por poeira. Foi naquela semana direitos fundamentais, como, por exemplo, a prote-
que surgiu a ideia de o movimento sindical criar um ção às mulheres grávidas ou lactantes em ambientes
departamento para estudar as questões relacionadas insalubres, uma aberração que, felizmente, não se
com a saúde e segurança dos trabalhadores, como consolidou, pois foi derrubada por uma ação direta
um ‘Dieese da Saúde’, ideia que foi concretizada de inconstitucionalidade da Confederação Nacional
em agosto de 1980, com a fundação do Departamento dos Trabalhadores Metalúrgicos, em maio de 2019.
Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos A flexibilização da jornada de 8 horas diárias,
Ambientes de Trabalho (Diesat). com a possibilidade do cumprimento de 12 horas de
Esse processo, desde as greves de 1978, a assi- trabalho seguidas, mesmo em ambientes insalubres,
natura de convenções coletivas, as Cipa representadas e a redução do intervalo mínimo de descanso para
pelos sindicatos e todo o movimento em torno da 30 minutos são outras grandes perdas contempladas
saúde e segurança no trabalho, começou a melhorar naquele atentado aos direitos dos trabalhadores. Sub-
o ambiente de trabalho. metidos a uma grande pressão e sobrecarga em suas
A Constituição de 1988 equiparou os traba- funções, os trabalhadores e as trabalhadoras estão mais
lhadores rurais aos trabalhadores urbanos, criou o suscetíveis a processos de adoecimentos, acidentes,
seguro-desemprego, reduziu a jornada de trabalho afastamentos, e mortes relacionadas com o trabalho.
de 48 horas para 44 horas semanais, ampliou a licen- Além dessas questões específicas que atingem os
ça-maternidade e a licença-paternidade, instituiu o trabalhadores e as trabalhadoras no seu dia a dia, a reforma
abono de férias e os direitos trabalhistas a empregados impôs um prejuízo generalizado, não apenas no que se
domésticos, entre outras coisas. refere à saúde e à integridade física e mental, mas também
No que tange à matéria aqui tratada, a Cons- na questão financeira e na garantia do cumprimento de
tituição, além de declarar que a saúde é direito de todos os direitos previstos pela Consolidação das Leis
todos, dispõe sobre a saúde de segurança no Trabalho Trabalhistas (CLT) e recomendados pela Organização 1. BRASIL. Constituição da
no art. 7º, inciso XXII1, que estabelece como direito Internacional do Trabalho (OIT). Trata-se do ataque de- República Federativa do Brasil.
1988. Disponível em: http://www.
essencial a redução dos riscos inerentes ao trabalho, liberado aos sindicatos por meio daquilo que, na prática, planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/constituicao.htm. Acesso
por meio de normas de saúde, higiene e segurança; constituiu a suspensão do financiamento sindical. Com em: 15 nov. 2020.
16

isso, várias atividades sindicais foram diminuídas dras- A alegação apresentada para tais alterações é
ticamente ou até encerradas pelas entidades, como a o estímulo à economia. Os argumentos escondem,
fiscalização, os espaços de orientação e formação dos todavia, que todo o peso da produção de valor recai
trabalhadores e os ambulatórios médicos e de assistência nos ombros do trabalhador que, por sua vez, como a
à saúde prestada pelos sindicatos. realidade brasileira deixa claro, não compartilha dos
No governo Bolsonaro, a partir de 2019, a classe ganhos que permeiam esse processo.
trabalhadora continuou sendo atacada e tendo seus di- Por fim, neste inusitado contexto de pandemia
reitos sabotados. A saúde e segurança do trabalhador foi da Covid-19, escancarou-se a importância do Estado, e
prejudicada logo nos primeiros dias do governo com a não do mercado, como regulador da sociedade, con-
extinção do Ministério do Trabalho e Emprego que era tradizendo o discurso liberal que baseou as políticas
responsável pela fiscalização do cumprimento dos direitos reducionistas dos últimos anos. O cenário da reforma
trabalhistas. Esse Ministério foi incorporado ao Ministério trabalhista não poderia ser pior para o trabalhador
da Economia, simbolizando que o trabalho agora estaria durante a pandemia. Não poderia ser pior porque
subordinado ao comando da economia. enfraqueceu (e praticamente proibiu) a ação dos sin-
E não parou aí. Em meados de 2019, o governo dicatos quando os trabalhadores mais precisam dele.
iniciou uma ação no sentido de revisar todas as Normas No entanto, mesmo com todas as dificuldades que
Regulamentadoras (NR), que orientam os procedi- enfrentamos, nós dos sindicatos desempenhamos um
mentos de segurança e saúde obrigatórios a serem grande papel durante a chamada ‘coronacrise’, forta-
implementados pela empresa nos locais de trabalho. lecendo a relação entre as entidades sindicais e as suas
A representação dos trabalhadores na Comissão bases. A presença sindical é constantemente acionada
Tripartite Paritária Permanente (CTPP) tem buscado resistir pelos trabalhadores para negociar acordos de redução de
às propostas de flexibilização das normas de segurança e jornada e salário, além de protocolos para evitar os male-
proteção ao trabalho construídas ao longo de décadas. fícios da pandemia. Isso mostra como os sindicatos são
Essas normas remontam, novamente, ao ano fundamentais em uma sociedade movida pelo trabalho.
de 1978, quando foram aprovadas pela Portaria nº Essa história da luta pela saúde e segurança do
3.214, no dia 8 de junho. Elas são elaboradas e revi- trabalhador, desde 1979 até a atual situação de retro-
sadas em grupos temáticos e depois nas comissões cessos e retirada de direitos, nos deixa um alerta. Um
temáticas tripartites, e têm como um dos principais alerta que foi muito bem descrito pelo o ex-senador
objetivos a padronização dos procedimentos de italiano e jornalista José Luiz Del Roio, para a revista
segurança e saúde do trabalho. Originalmente eram do Centro de Memória Sindical sobre os 100 anos da
36 NR. Já foram revisadas, por exemplo, as normas greve de 1917. Segundo ele:
NR1, que fala sobre saúde e segurança, NR2, que
o que os trabalhadores conquistaram, eles nunca podem
2. CINTRA, A. A greve de 1917 regulamentava a fiscalização dos estabelecimentos considerar conquistas definitivas. E se o Estado for oligár-
nos comentários do ativista
político José Luiz Del Roio. por um fiscal do trabalho antes de sua abertura quico, escravocrata, eles estarão sempre disponíveis a fazer
Disponível em: https://radiopeao-
brasil.com.br/greve-de-1917-nos-
para funcionamento (que foi revogada), e NR12, voltar para trás as conquistas operárias. Sempre! A história
-comentarios-do-ativista-politico- que trata da segurança no trabalho com máquinas está marcada por isso, sobretudo num país como o Brasil,
-jose-luiz-del-roio/. Acesso em:
15 nov. 2020. e equipamentos. com uma elite escravocrata de origem e de mentalidade2.

1“ greve geral da
república, 1917.
Fonte: https://medium.com/@
lessa27/greve-5cad8f95ec9c
17

O chão da fábrica
Ilquias Araujo Lopes do Nascimento

Opa! Meu nome é Ilquias Araujo Lopes do Nunca escrevi algo para ser lido por tanta dife-
Nascimento, sou brasileiro, 46 anos, Pernambuca- rente gente, nunca escrevi um artigo, aliás, nem sei
no de Recife por nascimento, Carioca de vida. Sou se o que sigo escrevendo o é; mas saibam, escrevo
trabalhador da área metalúrgica há, pelo menos, 12 com o coração e com as experiências do que tenho
anos. Já atuei em algumas empresas ditas pequenas, vivido profissionalmente.
a que chamamos marotamente de ‘gatas’. As gran- O trabalhador brasileiro vem sendo condenado a
des empresas também fazem parte dessa caminhada, conviver diariamente com acidentes, duvidosas condições
nem por isso as grandes deixam de ser cruéis, pois, de trabalho, assédios, covardias de todos os tipos, prati-
quanto maior a empresa, menos visível é a injustiça cadas pelo empresariado, que explora e adoece grande
aos olhos da justiça. parte dos que fazem a roda do processo produtivo girar.

A Pandemia no chão de fábrica

Rio, 23 de março de 2020. A Covid-19 chegou.


Sabemos do nosso compromisso, contratos a cumprir, responsabilidades com nossos clientes e com a empresa, além da
garantia dos nossos empregos, sabemos o tamanho de nossa responsabilidade. Não raro, alcançamos resultados produtivos
nunca antes imaginados nesta área, sabemos também o nosso valor. Não queremos perder nossos empregos mas, que fique
claro o nosso descontentamento em estarmos expostos ao corona vírus diariamente devido ao trabalho, sem nenhuma recomen-
dação ou direcionamento. Muitos de nós convivem com pessoas do grupo de risco, expostos, somos prováveis transmissores.
Somos avós, pais, mães, tios, tias, sobrinhos sobrinhas, primos, amigos, enfim, somos trabalhadores e trabalhadoras que pro-
duzem o sucesso desta empresa mas, antes de tudo, somos seres humanos. Temos direito à proteção, principalmente no trabalho.

Ass. Trabalhadores e trabalhadoras.

O pequeno texto acima foi escrito por mim, motiva- Além disso, há também os habituais acidentes
do por tantas dúvidas dos companheiros e companheiras que deixam sequelas físicas e psicológicas. Um
de trabalho, para mostrar nosso posicionamento diante da pequeno exemplo é o que as empresas praticam
inércia corporativa. A proposta era colher o maior número com o trabalhador operacional. Um clássico de
possível de rubricas por todo o parque fabril. Contudo, prática covarde é o acontece com o trabalhador
a realidade em um mar de; pelo menos; 600 trabalhado- que sofre acidente com ferimento nas mãos: ao
res e trabalhadoras, a adesão foi de 5%. Todos estavam invés de ser afastado conforme preconiza a lei, é
insatisfeitos, mas poucos ousaram aderir à causa. Não remanejado para um outro local, geralmente longe
quiseram nem mesmo defender-se. Traduzindo: medo. dos companheiros, que sabem do ocorrido – mas
Esse é o estado atual de um chão de fábrica. Esse estes, também, temem dizer algo, reagir. A maioria
tem sido o estado do chão de fábrica na maioria das dos acidentes não é comunicada pelas empresas
fábricas neste país. Neste período de pandemia, ainda e, também, não é comunicada pelo próprio tra-
há empresas que teimam em compartilhar Equipamen- balhador ao seu sindicato, por desinformação ou
tos de Proteção Individuais (EPI). Há empresas que, por medo.
no papel, parecem um lugar perfeito para o bem-estar O estado das coisas no chão da fábrica durante
do trabalhador, mas, na verdade, são verdadeiras a pandemia é de medo, não o medo de perder a vida,
prisões. Sugam toda a dignidade e o respeito próprio nem mesmo de levar o vírus para casa, para os seus.
do trabalhador e da trabalhadora. Seu maior medo é de perder o emprego.
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As entidades sindicais têm sua parcela de culpa. A É preciso uma fala simples, direta.
política partidária dentro de um sindicato afeta cruel- É preciso dar peso à raiz do que realmente
mente o trabalhador, que não faz a mínima ideia de que deve ser um sindicato.
os conflitos internos em seus sindicatos afetam direta- É preciso dar valor aos trabalhadores e tra-
mente a classe que está dentro das fábricas sentindo balhadoras.
na pele o chicote de couro legítimo do capital. O que É preciso que o sindicato faça o seu papel de
deveria ser o ponto de união dentro de uma entidade prover o conhecimento que o trabalhador necessita
sindical, tem ficado em segundo plano: o trabalhador e, para defender-se das maldades do capital voraz.
principalmente, sua saúde. A partidarização de sindica- É preciso que o trabalhador saiba que o que se
tos é uma corda no pescoço das próprias entidades em considera benefício, como a participação no lucro,
que o enforcado é o trabalhador. Essa disputa partidária por exemplo, é gerado por ele próprio.
interna nas entidades sindicais é como um Alzheimer É preciso que o trabalhador e a trabalhadora
que faz os membros que a dirigem esquecerem qual saibam que ele e ela são as peças mais importantes
o seu verdadeiro propósito e dever ali. nesta roda louca em que, muitas vezes, perde-se
O que precisa urgentemente ser feito? a vida.
É preciso fazer com que o trabalhador entenda que É imprescindível que o trabalhador e a trabalha-
adquirir Covid-19 no trabalho é um acidente de trabalho. dora brasileiros conheçam seus direitos.
O sindicato precisa assumir seu verdadeiro papel É preciso que o trabalhador e a trabalhadora
ao lado do trabalhador. brasileiros conheçam o Sistema Único de Saúde (SUS).
É preciso mudar a forma de comunicação É preciso dar voz e garantias ao trabalhador.
com o trabalhador. É preciso ser honesto, perseverar, reagir!

A crise do sindicalismo e a transição


1. Texto baseado na Coluna
Opinião do Blog: Multiplica-
dores de vigilância em saúde
trabalhador. Coluna Opinião Saú-
necessária1
de-Trabalho-Direito. Disponível
em: https://www.multiplicado-
Luizinho (do Eisa) Oliveira
resdevisat.com/. Acesso em: 09
nov. 2020.

Para começar... Chama a atenção, em primeiro lugar, a busca


No Brasil, com seu passado escravocrata, os de unidade dos setores mais ativos e conscientes do
trabalhadores sempre penaram para construir seus meio operário: a compreensão de que era necessário
sindicatos. A primeira lei a tratar da organização dos unificar as distintas categorias baseada na solidarie-
trabalhadores em sindicatos é de 1908, mas proibia a dade operária. A unidade foi alcançada, vieram as
participação dos trabalhadores imigrantes que constitu- greves, os movimentos contra a carestia, o apoio à
íam, naquela época, mais de 90% da força de trabalho. luta dos trabalhadores.
O capital e seus representantes nunca permi- Até os anos 1930, a atuação dos sindicatos
tiram o acesso dos dirigentes sindicais aos locais de era tratada como ‘caso de polícia’. Getúlio Var-
trabalho. As condições de vida e trabalho da grande gas, precisando do apoio operário ao seu projeto,
maioria dos trabalhadores nos anos 1920 era de ex- legalizou os sindicatos ao mesmo tempo que os
trema precariedade. As jornadas de trabalho eram de cooptou. ‘Não é preciso matá-los, é possível do-
12 horas a 16 horas sem descanso remunerado, sem má-los’, ironizava. Ao longo da década de 1930,
férias anuais, sem contrato de trabalho, uso de mão o governo criou um grande número de leis que
de obra infantil. Os donos das empresas eximiam-se regulamentaram as relações capital/trabalho: traba-
de qualquer responsabilidade em caso de doenças lho feminino, férias, carteira de trabalho, jornada
profissionais, acidentes no trabalho. Até o final dos de 8 horas etc. A ideologia de que esses direitos
anos 1920, a luta era comandada predominantemente foram concedidos de mão beijada pelo Estado
pelo pensamento anarquista. brasileiro não condiz com a verdade.
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Vários deles já haviam sido conquistados por participação nas políticas sociais, a economia cresceu
uma série de longas lutas. Foram frequentes as lutas e, pela primeira vez na história, a classe operária foi
por aumentos de salários e melhores e condições de beneficiada e os sindicatos aumentaram.
trabalho com a ocorrência de um sem número de gre- Os avanços chegam até o governo ‘Dilma’. Para
ves. Ficou claro para Vargas que os trabalhadores e os as elites atrasadas brasileiras, isso era intolerável; e
sindicatos não estavam tão domados assim. Veio a CLT. o avanço foi detido com o golpe de 2016. Assume o
O movimento sindical brasileiro se reorganizou ilegítimo Temer. Seu governo partiu com todo ódio
a partir de 1945, criando várias organizações de re- pra cima dos sindicatos com a ‘deforma trabalhista’,
presentação que tinham como objetivo a rearticula- que tinha como uma de suas finalidades o ataque aos
ção sindical. Entre 1950 sindicatos. A ‘deforma’ foi
e 1962, vários encontros Os sindicatos devem levar ao mundo a um presente do Temer
sindicais foram realizados convicção que os seus esforços, longe de ao empresariado, capi-
e foi fundado o Coman- tão-mor do golpe contra
do Geral dos Trabalha- serem egoístas e ambiciosos têm antes Dilma. Por último, veio
dores (CGT) e outras por objetivo a emancipação total das Bolsonaro que, já na sua
organizações operárias. massas oprimidas. campanha eleitoral di-
O CGT fixou raízes no zia que os operários no
sindicalismo brasileiro. Karl Marx Brasil tinham direitos
O governo JK foi um pe- demais. Eleito, tornou-se
ríodo de crescimento econômico sem ganhos para os uma obsessão para este desgoverno destruir os sindica-
operários; a classe operária cresceu e foi expressiva a tos. Demos nossa resposta promovendo mobilizações
participação sindical na vida nacional. Os sindicatos contra essas atitudes antissindicais.
participaram ainda de grandes jornadas políticas e de
greves nacionais pleiteando uma melhor distribuição Nota sobre a CLT
das riquezas originadas da chegada das multinacionais. Os que hoje destroem a CLT seguem os que
A ditadura militar de 1964 desferiu um duro golpe repetem como papagaios a ladainha de que ela é
no sindicalismo. Os sindicatos sofreram intervenção, fascista, tendo sua origem na Carta del Lavoro do
diretorias foram destituídas e cassadas e, em seus luga- fascismo italiano.
res, foram impostos descarados pelegos ou agentes da Esse comportamento, já visto nos governos neo-
polícia, sedes sindicais invadidas, depredadas e seus liberais de FHC e de Temer, sentencia que um governo
dirigentes foram presos. A luta sindical enfrentou o democrático (?) não pode conviver com a anomalia
autoritarismo e a completa ausência de liberdades. O chamada CLT. Então teriam sido fascistas os governos
retorno das mobilizações só ocorreu a partir de 1977, desde quando a CLT passou a existir no Brasil? Seria
com grandes campanhas salariais e greves em todo o fascista a Constituição que trouxe direitos trabalhistas?
País. A partir daí, os trabalhadores assumem mais uma A CLT garante aos trabalhadores a carteira de
vez um papel relevante na luta pela redemocratização. trabalho, repouso semanal remunerado, 13º salário,
Durante o governo Sarney, marcado por planos vale-transporte, licença-maternidade, garantia de em-
econômicos de arrocho salarial, os trabalhadores prego à gestante, Fundo de Garantia do Tempo de
responderam com greves e mobilizações que foram Serviço (FGTS), acréscimo de 50% nas horas extras,
desaguar na atuação dos sindicalistas na Assembleia estabilidade no emprego em caso de acidente do
Nacional Constituinte, em que lutaram para manter trabalho, adicional noturno, aviso prévio, seguro-de-
direitos já conquistados e por novas conquistas. Após semprego etc. Isso é fascismo?
duros embates com o empresariado, vanguarda do Vale lembrar que a CLT consolidou as leis do tra-
atraso, conseguimos que direitos não fossem retirados balho que já existiam no Brasil conquistadas, anterior-
e ainda fossem ampliados. mente, em um processo de reivindicações e embates
Chegamos ao governo neoliberal e de reestru- entre empregados e empregadores. Comparar a CLT
turação produtiva de Fernando Henrique Cardoso com a Carta del Lavoro é uma manipulação ardilosa,
(FHC), de triste memória para os operários. Depois capaz de enganar pessoas com pouco conhecimento.
de mais de 20 anos de uma árdua luta contra a dita- Mentira deslavada que tem sido repetida milhares ve-
dura militar e contra a ofensiva neoliberal, em 2002, zes por políticos, juristas e até por alguns sindicalistas
um líder operário – ‘Lula’ – chegou à presidência incautos. A Carta del Lavoro, de 1927, tinha 30 artigos
do Brasil. Nesse governo, os trabalhadores tiveram de princípios, a CLT, de 1943, continha 921 artigos.
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Apoiados nela, os sindicatos se consolidaram como assembleias virtuais, acionamento judicial para ga-
representantes dos trabalhadores, zelando pelo seu rantir o emprego dos trabalhadores enfermos e os
cumprimento e por mais conquistas. que estão na linha de frente contra a Covid-19. Com
Empresários vivem acusando a CLT de atrapalhar a pandemia, os patrões logo solicitaram ao governo
seus negócios e atravancar o progresso. Para comba- a suspensão dos contratos de trabalho, redução de
tê-la, nas eleições, jogam rios de dinheiro para que salários e outras medidas para aliviá-los.
seus representantes aprovem leis que garantam total É nessa hora que os trabalhadores olham para
liberdade para explorar a mão de obra dos operários. um lado e para outro e caem na real de que só podem
A CLT é o anteparo para evitar que a ganância e a mesmo é contar com o sindicato para defendê-los
crueldade dos empresários não sejam efetivadas. Vem contra a ganância patronal e a leniência do governo.
daí o ódio deles e a luta incansável para extingui-la. Foi o movimento sindical que propiciou acordos mais
O ano de 2017 foi, seguramente, o pior momento da justos, evitando demissões e cortes salariais astronô-
CLT. A reforma trabalhista do golpista Michel Temer micos. Atuando no parlamento, conseguiu aumentar
fez tudo para esvaziar o papel da negociação coletiva o auxílio emergencial, mesmo que abaixo do salário
(sindicatos). Soma-se a isso o esvaziamento extraordi- mínimo proposto. Enquanto os empresários têm o
nário da justiça do trabalho, a única que era gratuita apoio do governo para proteger seus negócios e jo-
no País, já que agora, quando o trabalhador perde o gar o sacrifício nas costas dos trabalhadores, como a
processo, é dele as custas judiciais. Há ainda a retirada redução de salários até 70%, suspensão de contratos,
abrupta da contribuição sindical asfixiando a saúde demissões, não recolhimento de encargos sociais,
financeira dessas entidades. No Brasil, falar mal da entre outras, os sindicatos disponibilizam suas se-
CLT acabou se tornando uma estratégia de políticos des, colônias de férias para acolhimento de pessoas
vendidos ao capital especulativo para serem ungidos e recolher doações, fruto da solidariedade operária
pelo famigerado mercado. O atual Ministro da Eco- para minimizar o sofrimento dos menos favorecidos.
nomia – Paulo Guedes – com discurso submisso ao Apanhados de surpresa, os sindicatos não hesitaram,
poder do dinheiro não perdeu tempo mesmo depois arregaçaram as mangas e foram à luta. Tornaram-se
da CLT. Após a profunda reforma que quase aniquilou catalizadores das manifestações que se juntaram à
os direitos trabalhistas, ele não abre mão de presentear sociedade civil no combate à pandemia da Covid-19
os gananciosos empresários com uma nova reforma. orientados pelas recomendações científicas nacionais
É uma competição para definir quem é o mais cruel. e internacionais; e, não, pelos arroubos do presidente
A Carteira Verde e Amarela escancara a porta para os Bolsonaro, adorado pelos donos de funerárias.
patrões precarizarem inescrupulosamente o trabalho. Que da pandemia fiquem aprendizados para os
Os defensores das malditas reformas diziam que viriam trabalhadores: a importância de um sindicato forte
empregos em abundância. E o que vimos? O apogeu e atuante. E para os dirigentes sindicais, a convicção
da geração de vagas continuou sob a égide da CLT: de que, mesmo em condições adversas e do ataque
isso os deixa furiosos. dos inimigos, é possível lutar na defesa dos direitos
Companheiros(as), nunca façam coro com os dos trabalhadores e mostrar a eles que a nossa solida-
inimigos da CLT. Se ela é atacada, é porque há algo riedade operária é o que nos diferencia do egoísmo
nela de nosso interesse. que marca a trajetória dos exploradores.
O maior legado deste momento para os dirigen-
Ação sindical em tempos de pandemia tes sindicais será fazer do acúmulo do aprendizado um
Diante do cenário atual causado pela Covid-19, impulsionador para a retomada da atividade sindical.
que expôs de forma brutal os nossos problemas crôni- Bem, sabemos que em condições ditas normais os
cos – habitacional, saneamento básico, sucateamento empresários se lixam para a saúde dos trabalhadores.
do SUS, educacional, transporte, trabalho, emprego Por isso, é preciso ir além do local de trabalho, indo
e renda –, é do movimento sindical que vêm a re- aos locais de moradia, de estudo e lazer. É preciso uma
sistência e a luta pela preservação dos direitos dos efetiva aproximação de outros movimentos que lutam
trabalhadores pela vida. por melhores condições sociais, culturais e direitos
São os sindicatos que, desde o início, têm sido democráticos. Investir pesado na formação e comuni-
um dos segmentos mais ativos. Estão nas portas das cação acolhendo as novas tecnologias e aperfeiçoando
fábricas, bancos, unidades de saúde, pressionando as tradicionais. Apostar em campanhas permanentes
por melhores condições de trabalho, disponibilizan- de sindicalização e ressindicalização. É urgente uma
do canais para denúncias e informações, realizando mudança de como os sindicalistas dialogam com as
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bases. Os operários estão com dificuldades concretas. O sindicato tem o desafio de estar aberto a
Os partidos não vão atendê-los nas suas necessidades novas pautas que atendam aos jovens, negros, mu-
mais prementes, nem os patrões, tampouco os pas- lheres, igualdade de gênero e entender a necessidade
tores. A quem eles vão recorrer senão aos sindicatos? de ir além do econômico e trazer para o centro do
Entretanto, para isso ocorrer, os sindicatos precisam debate temas como proteção ao meio ambiente,
reconquistar a credibilidade das categorias e que nas novas tecnologias, violência contra as crianças e as
atividades amplas envolvam também os desemprega- mulheres. Abrir o sindicato às atividades esportivas
dos, os aposentados, os jovens e os moradores dos e culturais, criar grupos de leitura, ter bibliotecas
entornos dos sindicatos e das empresas. abertas à comunidade, promover cursos de pré-ves-
O sindicalismo será renovado se a restruturação tibular. Dar apoio aos trabalhadores tanto emprega-
responder àquilo que é a essência do velho sindica- dos quanto desempregados, sem distinção, acolher
lismo: luta porque é solidário, é solidário porque se aposentados, participando de suas lutas. O projeto
associa à justiça e igualdade e se associa porque tem do novo sindicato deve colocar os trabalhadores em
identidade de classe e de luta. movimento para que descubram o sentido da luta e
renovem a solidariedade.
Finalizando... Companheiros, entendemos que a mudança de
Apesar das dificuldades enfrentadas, o movimen- postura não é algo fácil, mas, aos dirigentes sindicais,
to sindical não sucumbiu, mas vive seu pior momento não resta outra alternativa senão a de se reinventar.
e precisará se reinventar para seguir em frente. Terão os líderes sindicais de ir ao encontro das massas
O dirigente sindical não deverá desanimar, afinal, trabalhadoras sofridas e tão necessitadas da atuação
é somente por meio do outro que a humanidade do único órgão que elas têm para representá-las,
ganha existência. Sem o outro não há alegria, beleza, organizando-as. É chegada a hora do tão apregoado
encanto ou amor. Os seres humanos estão destinados trabalho de base ser retomado. Agindo assim, com
a esse encontro que também acontece na dor e no certeza, o sindicalismo terá longa vida.
sofrimento e, principalmente, na luta. Urge que os As injustiças, as desigualdades, a exploração, o
sindicatos abram as portas para que a solidariedade desrespeito, a desumanidade, os baixos salários, saúde
possa emergir como valor e criar possibilidades de precária, tudo isso está aí nas fábricas, nas empresas e Passeata da greve dos
outros modos de vida em sociedade; e a tolerância, no campo. Como na Música de Ivan Lins: “Começar petroleiros, 1983.
Fonte: https://www.cut.org.br/
assim, possa ser restituída. de Novo Vai Valer a Pena”. noticias/greve-geral-de-1983-faz-
37-anos-e-destaca-desafios-da-
organizacao-sindical-a8a7
22

Uma luta de 50 anos contra o peleguismo


Márcio Ayer
Daniele Moretti
Daphne Braga

O sindicalismo é o lugar no qual se constitui o cunho político e ideológico, com uma atuação que
movimento de trabalhadores assalariados, reunidos visasse à garantia e ao alargamento dos direitos da
em sindicatos e visando à proteção dos seus interesses. categoria comerciária, construindo uma relação de
Ao mesmo tempo, também é uma doutrina política, confiança entre a base e o Sindicato.
na qual os trabalhadores agrupados devem ter um Em 2016, o País sofreu com o golpe contra uma
papel ativo na condução da sociedade. presidenta eleita democraticamente e impedida de
O Sindicato dos Trabalhadores Empregados no permanecer no cargo sem que nada tivesse sido com-
Comércio (SECRJ), hoje mais conhecido como Sin- provado. Em 2017, no governo do presidente substituto,
dicato dos Comerciários, foi fundado em 29 de julho Michel Temer, a reforma trabalhista foi implementada.
de 1908 com o nome de União dos Empregados do Tal reforma, de forma extremamente nociva aos trabalha-
Comércio (UEC). O SECRJ surgiu da união de um dores, trouxe ao coletivo perdas de direitos e impactos
grupo de 40 trabalhadores comerciários em busca na vida e na saúde dos trabalhadores.
de melhores condições de trabalho, época em que Entre os pontos principais da reforma, um deles,
1. BRAGA, D. Trabalhadores o sindicalismo no Brasil dava os primeiros passos1. o certeiro, veio para diminuir a voz e o espaço de luta
Comerciários. 2019. Disser-
tação (Mestrado em Saúde Na sua história, o SECRJ protagonizou várias dos sindicatos. A extinção do imposto sindical trouxe
Pública). Escola Nacional de
Saúde Pública Sergio Arouca,
conquistas, como a redução da jornada de trabalho, a rouquidão da voz potente dos trabalhadores que,
Fundação Oswaldo Cruz, 2019. lei de férias, lei dos dois terços, lei do aviso prévio aglomerados nas Assembleias, fizeram coro nos últimos
e a semana inglesa, que garantia ao comerciário o quatro anos, no SECRJ. A intenção foi realmente acabar
direito de folga aos sábados a partir do meio-dia e com as entidades e a representação dos trabalhadores,
aos domingos. Além da criação do dia do comerciário já que a reforma também propôs a negociação direta
e da obrigatoriedade de assistência do Sindicato nas entre patrão e empregado, como se ambos estivessem
rescisões dos contratos de trabalho dos empregados no mesmo patamar de correlação de forças.
com mais de um ano de casa. Temer também reviveu um decreto de 1948,
No ano de 1966, durante a ditadura militar, Lui- que fez com que os trabalhadores dos mercados e
zant Mata Roma assumiu a direção do Sindicato, em gêneros alimentícios fossem considerados de ativi-
que permanece até sua morte, em 2006. Após a morte dades essenciais, e mais uma perda foi computada
do pai, Otton Mata Roma assumiu como presidente. aos comerciários, pois a condição de feriado com
O patrimônio da entidade foi sucateado, e os servi- remuneração de 100% do dia trabalhado foi perdida.
ços assistenciais destinados aos comerciários foram Como se não bastasse a reforma trabalhista,
reduzidos. O Sindicato foi perdendo sua legitimidade, ainda sofremos outra, a dura reforma da previdência,
uma vez que atuava a serviço dos patrões, e não mais já no governo Bolsonaro. Uma reforma draconiana,
dos trabalhadores. principalmente quando temos em mente que uma
Após várias denúncias, a administração da enti- reforma deveria trazer algo melhor. A reforma da
dade passou a ser investigada pelo Ministério Público, previdência dificulta o acesso à aposentadoria para
que determinou uma intervenção judicial a partir de milhões de brasileiros e abre as portas para a discus-
outubro de 2014. Nesse período, a antiga diretoria são da privatização do sistema de proteção social. O
foi afastada. As investigações constataram fraudes na corte nos investimentos públicos com a aprovação
administração e um rombo milionário nas contas do da PEC 95, no governo Michel Temer e mantida por
Sindicato, além do enriquecimento ilícito da família. Bolsonaro, congelou recursos do orçamento, incluin-
Com o intuito de devolver o Sindicato à catego- do áreas vitais como saúde e educação por 20 anos,
ria, a intervenção convocou uma eleição, que ocorreu tudo isso prejudicando milhares de brasileiros e os
em julho de 2015. Uma nova chapa, formada por colocando em vulnerabilidade social. Só em 2019, a
trabalhadores comerciários, assumiu então a diretoria saúde perdeu R$ 20 bilhões, uma vez que o aumento
do Sindicato. A nova diretoria enfrentou inúmeros da receita do governo federal não foi acompanhado
desafios pela frente. O principal deles foi resgatar o pelo crescimento nos investimentos na área.
23

Diante disso, o SECRJ tem com um grande de- salariais, ou seja, insegurança para o trabalhador. A
safio buscar diálogo mais estreito com a categoria e luta do Sindicato continua para garantir os empregos
trazer os trabalhadores para as discussões no âmbito e salários para as pessoas do grupo de risco, porque,
coletivo de luta e consciência de classe, uma vez que, se não for por força da lei, nenhum patrão garantirá
mesmo acuados, com medo de perder emprego e com salário aos seus empregados em afastamento por
a voz rouca, os trabalhadores estão na luta por dias serem de grupos de risco.
melhores e com mais saúde nos ambientes de trabalho. Não por acaso, quando a pandemia ceifa milhares
O ano de 2020 trouxe não somente a pandemia de vidas no País e no mundo, esse teto de gastos (EC
do novo coronavírus como também o distanciamento 95) volta a ser discutido. Não só para que o governo
social e muitos problemas subsequentes que fizeram libere novos investimentos em 2020, mas também
com que os comerciários buscassem alternativas coleti- para enfrentar os reflexos que ainda serão sentidos
vas, com o intuito de responder às questões advindas no próximo ano. É preciso aumentar os investimentos
do ‘tsunami mundial’. O SECRJ formou comissões públicos para diminuir os impactos da doença, ampliar
com os diretores sindicais que foram aos supermer- o atendimento e criar mecanismos de proteção social.
cados, shoppings e outros comércios para registrar Hoje o Brasil conta com mais de 12,8 milhões de
e garantir melhores condições para os comerciários. desempregados. Neste momento, 33% dos comerciários
A crise provocada pela pandemia demonstrou o estão na informalidade, o que representa cerca de 5
papel relevante que o SUS desempenha. Um sistema milhões de trabalhadores que vivem em uma situação
em constante construção, que demanda uma atenção de precariedade e insegurança, sem carteira assinada,
especial para enfrentar os desafios atuais e que merece uma nova modalidade que se chama uberização, cres-
um olhar cuidadoso, contra setores que defendem a cendo e sem nenhum direito, trabalhando por conta
diminuição da sua presença e até mesmo a sua extinção. própria, sem qualquer proteção da previdência social.
Diferentemente dos trabalhadores de saúde que Esse desemprego, a falta de trabalho com carteira as-
estão na linha de frente e são essenciais por escolha sinada, com cada vez mais pessoas na informalidade
e juramentos, os comerciários do setor de gêneros se refletem no seguro-desemprego. Os pedidos de
alimentícios não tiveram opção de serem essenciais, seguro-desemprego cresceram em 2020, e só em maio
foram colocados lá por decreto. Os comerciários que, foi 53% maior, comparado com maio do ano passado.
desde o início da pandemia, se viram obrigados a ir Falta uma maior participação do poder público,
para o serviço todos os dias sem sequer terem os EPI com proteção ao emprego e à renda. Retomar obras
disponibilizados pelas empresas, já que, no início da paradas para gerar emprego e aquecer a economia,
pandemia, não existia consenso entre os órgãos de aumentando o consumo da população. Ao mesmo
saúde sobre o uso das máscaras em espaços de grande tempo, expandir o auxílio emergencial para mais
circulação, como, por exemplo, os supermercados. trabalhadores, ampliando a proteção social, e manter
O Sindicato dos Comerciários acionou os patrões o benefício por mais tempo, no mínimo enquanto
por meio da Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) durar a calamidade pública.
extraordinária para que os trabalhadores pudessem usar Estamos vendo e aprendendo com esta pandemia
máscaras, pois havia criado uma Central de Denúncias que sem o nosso SUS, hoje as mais de 117 mil mortes
Covid, para acompanhar os problemas enfrentados por Covid no País – e que sabemos serem números
diariamente pelos trabalhadores do front. As notícias subnotificados –, seria o dobro. Os trabalhadores, suas
foram as piores possíveis, sobre adoecimentos e óbitos. organizações sindicais e centrais sindicais devem estar
Porém, ainda negado pelo sindicato patronal. A alegação à frente dessa luta contra a redução de investimentos.
era a mais cruel, visto que não havia obrigatoriedade A pandemia continua em curso, sem uma data
do uso de máscaras pelo Ministério da Saúde. Essa para o fim, causando, a cada dia, mais vítimas; e os
negação esfrega na nossa cara que somos invisíveis e trabalhadores comerciários estão no front e seguem
impotentes na construção de medidas de proteção à em frente pela luta em defesa da vida. Outrossim, a
saúde e à vida dos trabalhadores. Após um mês, o uso Vigilância em Saúde do Trabalhador, garantida consti-
de máscaras passou a ser obrigatório; mas aí, quem tucionalmente desde 1988, busca vigiar e conhecer o
perdeu foram os trabalhadores, os familiares, porque a trabalho para intervir e transformá-lo com a participa-
vida para o patrão era apenas uma matrícula cancelada. ção dos trabalhadores que vivenciam o adoecimento
A legislação deixa um limbo sobre quem pagará e a morte pelo trabalho ou até mesmo no trabalho.
às pessoas do grupo de risco, quando expirar o prazo O saber compartilhado entre academia, serviços e
dado pelo governo sobre o pagamento das verbas trabalhadores organizados é a chave mestra.
24

Além do sindicalismo: outra expressão da luta


pela saúde no trabalho na Colômbia.
As associações de trabalhadores doentes
1. Texto traduzido e adaptado
por Luiz Carlos Fadel de
pelo trabalho1
Vasconcellos.
Mauricio Torres-Tovar

Introdução conjunto de trabalhadores e ex-trabalhadores doentes


As transformações no mundo do trabalho decor- do trabalho, a que lhes foram negados o reconheci-
rentes de mudanças legais, tecnológicas e gerenciais mento e o nexo de suas patologias, levando-os a se
introduzidas nos processos produtivos, nas últimas organizarem em Associações para exigir seus direitos.
décadas, aprofundaram as condições de precariedade As Associações: criação de um ator coletivo
ocupacional, com profundos impactos na saúde e na
vida dos trabalhadores. Na Colômbia, desde 2006, começou a surgir um
Voltamos a condições de trabalho próximas às da conjunto de associações de trabalhadores e ex-trabalha-
revolução industrial, em que os dias de trabalho eram dores doentes do trabalho. Essas Associações têm uma
muito intensos e prolonga- ampla cobertura nacional,
dos e na qual as exposições O capital, portanto, não leva em abrangendo uma série de
a um conjunto de condições regiões importantes da Co-
físico-químicas, biológicas e conta a saúde e a vida útil do lômbia que incluem a Cos-
mecânicas, juntamente com trabalhador, exceto quando a ta do Caribe, o Nordeste, o
o tipo de organização do sociedade exige que ele os leve em Eixo do Café, o Centro e o
trabalho, produziram altas Sudoeste, com diversos pro-
taxas de acidentes, doenças consideração. cessos produtivos, ligados
e mortes no trabalho. Karl Marx aos setores econômicos de
Na prática, conquistas mineração-energia, agrone-
fundamentais do movimento sindical, como os três oitos gócio, alimentos, construção, tabaco, manufatura, manu-
2. TORRES-TOVAR, M., et al. (oito horas para o trabalho, oito para o sono, oito para a tenção, hoteleiro, segurança e saúde2.
Asociaciones de trabajadores y
extrabajadores enfermos. Derro- casa, a família e o lazer), perdem-se no trabalho extenso, A compreensão por parte desses trabalhadores do-
ta… Revista Cultura y Trabajo,
Medellín, n. 92, p. 82-91, 2016.
pagamento por atividade e prestação de serviços, além das entes de que seus danos à saúde se devem às condições
novas tecnologias de comunicação que mantêm os traba- de seu trabalho, aliada à rejeição e não reconhecimento
lhadores permanentemente conectados ao seu trabalho. de suas doenças pelas empresas, levou-os a se unirem e
Há, então, uma epidemia de patologias derivadas do se organizarem na forma de associações. Na configuração
trabalho como expressão das condições de superexplo- dessas associações, a dinâmica organizacional dos traba-
ração e flexibilidade impostas pelas novas formas globais lhadores e ex-trabalhadores é variável. Ora organizam-se
de trabalho, que favorece novos padrões de acumulação onde não existe sindicato, ora surgem com a ajuda do
capitalista característicos do neoliberalismo, tornando sindicato, outras vezes surgem em situação de disputa com
ainda mais impressionantes as contradições entre ca- o sindicato e, ainda, outros sindicatos assumem a luta dos
pital e trabalho, acumulação e dano, ganhos e falta de enfermos, não dando margem à criação de associações.
seguridade social. As Associações emergem sob duas perspectivas e
Essas condições de trabalho e seus impactos na uma condição. Por um lado, a rejeição ao sindicato, em
saúde e na vida dos trabalhadores, historicamente, desen- virtude do desinteresse no problema dos trabalhadores
cadearam a ação coletiva dos trabalhadores para preservar doentes; por outro lado, sem entrar em disputa com o
sua saúde. sindicato, pois mantinha-se a opção de permitir associar
Na Colômbia, no início do século XXI, o confron- trabalhadores, ex-trabalhadores e até mesmo paren-
to capital-trabalho tem se expressado por um amplo tes de trabalhadores. A condição tem a ver com a
25

regulamentação, já que os trabalhadores demitidos


não podiam mais ser sindicalizados e os sindicatos
não tinham um marco regulatório para abordar as
questões de saúde e previdenciárias.
Diante dessa dinâmica coletiva, pode-se dizer
que a criação das associações na Colômbia é um novo
processo organizacional, mais aberto e flexível, em
contraste com os sindicatos, como forma histórica
organizacional dos trabalhadores.
Nessa experiência, a ocorrência da disputa com
sindicatos das empresas levou a confrontos entre as
duas formas organizacionais, mas também a acordos.
Os confrontos são uma expressão da falta de Se considerarmos que cada período histórico Uma fábrica durante a
define as formas de organização dos trabalha- Revolução Industrial.
relevância dentro da agenda sindical sobre a ques- Fonte: http://www.
tão da saúde dos trabalhadores e os problemas dos dores, perguntamos: quais são as características marketing facts.nl

trabalhadores doentes. Podem estar revelando um do período atual por ter configurado as formas
estranhamento entre trabalhadores doentes e sadios, organizacionais das Associações de Trabalhadores
sendo estes ‘saudáveis’ os que dirigem os sindicatos. e Ex-trabalhadores Doentes?
Revela-se um problema que demonstra a ausência de Uma possível resposta é que o contexto atual
identidade de classe social, capaz de possibilitar a cons- de formas flexíveis de trabalho, precariedade com
trução de unidade organizacional e unidade na luta. seus efeitos sobre a saúde, baixa estabilidade no
Em geral, a questão da saúde dos trabalhadores trabalho, perda de direitos trabalhistas e desem-
na Colômbia tem sido pouco preponderante nos prego, as associações poderiam responder melhor
sindicatos, federações e centrais dos trabalhadores, como forma organizacional do que a partir dos
com exceção de alguns casos (Union Sindical Obreira sindicatos, dada a abertura tanto aos trabalhadores
– USO, Sintracarbón e Sintracerromatoso). e ex-trabalhadores quanto aos desempregados e
pensionistas. Eis aí uma questão em que os sindi-
Relações entre associações e sindicatos catos não fizeram progressos significativos.
A revisão de aspectos da dinâmica das duas Por sua vez, a experiência organizacional das
formas organizacionais revela algumas vantagens, associações é um apelo à dinâmica sindical, como
desvantagens, semelhanças e diferenças. propõe Vogel3, no sentido de que a luta pela saúde dos 3. VOGEL, L. El decisivo papel
de la representación… Belgium:
As associações são menos formais, menos trabalhadores pode ajudar a transformar os próprios Eur. Trade Union Institute, 2017.
hierárquicas, mais flexíveis, menos burocráticas do sindicatos e dar-lhes formas mais democráticas, preo-
que se vive dentro dos sindicatos, o que poderia ser cupando-se em representar melhor os trabalhadores
considerado uma condição de vantagem para a con- com condições de trabalho mais precárias.
vocação de parceiros. Em relação à liderança, seu Pode-se argumentar que a luta operária vai muito
comportamento tende a ser muito semelhante, são além das lutas sindicais, e o movimento dos trabalha-
muito personalizadas, o líder costuma concentrar dores ultrapassa os limites do movimento sindical.
decisões, com o agravamento de que, nas associações, Nesse contexto, a experiência das associações também
o mecanismo de assembleia para a tomada de decisões se torna parte da história dos processos organizacio-
é inexistente na prática. nais e das lutas trabalhadoras pela saúde.
Uma característica particular da liderança das
associações é a valorização do conhecimento, com- Conclusões: avançar na criação de formas de
preendendo ser necessário o domínio dos aspectos trabalho não tóxicas
técnicos da medicina e do direito no trabalho que A experiência de trabalhadores e ex-trabalhado-
realizam, o que levou alguns líderes a se constituírem res doentes do trabalho exige que a sociedade discuta
como autodidatas e, posteriormente, em alguns casos, como configurar o trabalho para que processe saúde
formarem-se advogados. Por outro lado, as associações, e bem-estar, e não doenças e mortes.
ao contrário dos sindicatos, não têm jurisdição (esta- A experiência dessas associações na Colômbia
bilidade) sindical, o que leva os líderes a se tornarem revela três realidades.
membros de um sindicato para evitar a demissão, como Primeiro, as mudanças no mundo do trabalho,
de fato vem ocorrendo com vários deles. nas últimas décadas, seja na organização e gestão,
26

seja nas formas de vínculo, têm intensificado e pro- lho e seguridade social dos trabalhadores. Por sua
longado o trabalho, estabelecendo um cenário laboral vez, sua organização pode ser lida como um apelo
tóxico, no qual o enfrentamento capital-trabalho leva à sociedade para discutir a forma como trabalhamos
à desapropriação do próprio trabalho, da proteção à hoje, dadas as suas características de intensificação
saúde do corpo e da vida do trabalhador. da insegurança, subordinação e alienação, moldando
Segundo, revela o fracasso da proteção à saúde uma forma de trabalho neoescravista que deve ser
no mundo do trabalho. combatida e superada.
Terceiro, na disputa política estabelecida no Finalmente, as associações desafiam os sindica-
campo da segurança e da saúde ocupacional, um tos, discutindo sua falta de protagonismo na defesa
aspecto fundamental é o controle e a hegemonia das da saúde dos trabalhadores e questionando se hoje
informações técnicas e científicas sobre a nocividade eles são a melhor forma de representação dos tra-
das condições de trabalho, conflitante com o conhe- balhadores. O fato exige que o movimento sindical
cimento dos trabalhadores doentes e de médicos e reflita seriamente sobre essas questões e as considere
acadêmicos independentes. para colocar a Saúde do Trabalhador como questão
Essas associações representam processos de relevante na agenda e na estrutura sindical.
construção de identidade, buscam mecanismos de É fundamental avançar em um caminho que não
apoio e desenvolvimento de ações de direito e fato opõe parcerias com os sindicatos, mas no qual sejam re-
e pressionam empregadores, atores estatais e previ- alizados processos de articulação organizacional e ação,
denciários para garantir os direitos de saúde, traba- capazes de fortalecer as lutas pela saúde no trabalho.

Sindicatos, crise e desemprego


Rene Vicente dos Santos

A pandemia que assola o mundo, neste momento, A crise econômica causada pela pandemia alterou
afetará a humanidade de várias formas seja nos costumes severamente a capacidade de sustento (subsistência)
e comportamentos, seja no campo econômico. de quase 1,6 bilhão de trabalhadores na economia
Estudo da OIT aponta para uma diminuição drástica informal (o grupo mais vulnerável do mercado de
das horas trabalhadas no mundo em 6,7%, o que equivale trabalho) de um total de 2 bilhões de trabalhadores
a algo em torno de 195 milhões de postos de trabalho com informais no mundo. Estima-se uma perda de até 60%
uma jornada integral de 8 horas diárias para o segundo dos seus ganhos segundo dados da OIT. No Brasil, já
semestre de 2020. A juventude será a mais afetada diante nos encontrávamos em uma situação de estagnação
dessa crise. Especialistas apontam para a necessidade de econômica e em um processo de desindustrialização
construção de políticas públicas para a juventude porque acelerado que se aprofundaram com a pandemia,
são os jovens os primeiros atingidos, sofrendo redução levando milhares de trabalhadores e trabalhadoras
nos horários de trabalho devido à menor experiência ao desemprego, desalento e subutilização da força
profissional e no acesso a bons empregos com pagamentos de trabalho conforme dados apresentados na Pes-
estáveis. Três em cada quatro jovens trabalham no setor quisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
informal, na agricultura, pequenos cafés ou restauran- (PNAD) – 12,9 milhões de pessoas desempregadas
tes, setores que possuem formas atípicas de emprego, com alta taxa de informalidade (40%) que, somada
part-time, tarefas temporárias e plataformas digitais. Em ao desemprego, coloca pela primeira vez em décadas
pesquisa recente de APP realizada com 280 entregadores metade da População Economicamente Ativa (PEA)
em 29 cidades brasileiras, 83% dos entrevistados, em fora do mercado de trabalho formal.
quatro capitais, relatam que 60% dos entregadores têm Diante desse quadro de extrema perplexidade, a
jornadas diárias acima de 9 horas, 8% afirmam que ficam Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil
nas ruas mais de 15 horas por dia e 78% trabalham de (CTB) tem buscado a unidade de ação, nas demais
seis a sete dias da semana. Muitos dessa juventude pe- centrais na defesa dos direitos trabalhistas consagrados
dalam quilômetros por dia correndo risco de vida e sem na Constituição Cidadã de 1988 e no fortalecimento
nenhuma proteção legislativa. do movimento sindical.
27

São muitos os ataques sofridos pela classe Precisamos canalizar os


trabalhadora, como a PEC 95, que congela gastos recursos financeiros institucio-
sociais por 20 anos, a nefasta reforma trabalhista de nais de que dispomos, nossas
Michel Temer (Lei nº 13.467/17), que altera mais de reservas internacionais do te-
100 artigos da CLT e cerca de 200 dispositivos, que souro, dos fundos poderosos
os arautos da reforma a propagavam como obsoleta alocados em bancos públicos,
e ultrapassada e necessária. Sancionada em julho de além de utilizar as prerrogati-
2017, entrou em vigor em novembro do mesmo ano. vas constitucionais e legais do
Na ocasião o então ministro da economia Henrique Banco Central no que se refere
Meirelles dizia: “O governo federal acredita que a à emissão monetária na busca
nova lei trabalhista, que começa a vigorar em 11 de superar a crise.
de novembro, vai tornar viável a geração de mais O Brasil necessita de um
de seis milhões de empregos no Brasil”. gesto de grandeza, direcionado
Como pudemos atestar, a referida reforma não à ampla unidade nacional em
gerou empregos e somente precarizou as condições de defesa da vida, do emprego e
trabalho de milhares de trabalhadores e trabalhadoras! renda, do desenvolvimento in-
Não contentes com o retrocesso, o ataque aos dustrial e dos direitos sociais.
movimentos sindicais continuou e se ampliou com Infelizmente, o governo federal
o governo Bolsonaro, desmontando o Ministério do tem sido ineficiente e adota uma agenda liberal de Cartaz de Elifas Andreato
para o fundo de greve dos
Trabalho, dificultando o acesso à Justiça do Trabalho, desmonte dos aparelhos públicos que poderiam metalúrgicos.
não reconhecendo as instâncias tripartites de nego- nos ajudar a sair da crise provocada pela crise Fonte: http://memorialdademocra-
cia.com.br/
ciação permanente e editando Medidas Provisórias econômica e sanitária.
que aprofundam a precarização. Preso a dogmas fiscalistas e ao discurso neo-
Diante desse conjunto de ataques e desestrutu- liberal, impõe à sociedade uma dificuldade cada
ração do movimento sindical, a CTB luta pela amplia- vez maior na realização de investimentos públicos
ção das forças progressistas na defesa intransigente que promovam a recuperação sustentável da eco-
da democracia e adoção de um plano nacional de nomia e do consumo das famílias. Superar esses
desenvolvimento, com retomada do crescimento desafios é o grande desafio do movimento sindical
econômico, distribuição de renda e soberania. Que cumprindo o seu papel de organizar os trabalha-
o governo aponte um plano nacional de obras pú- dores e apontar um projeto de construção de uma
blicas, como saneamento básico, cujo deficit é de 35 pátria soberana e fraterna na qual prevaleçam os
milhões de brasileiros sem acesso à água tratada e interesses do povo brasileiro.
mais de 100 milhões sem acesso ao sistema de esgoto. ‘Tocar a vida’ e arranjar ‘uma forma de se
Trata-se de um setor com alta capacidade de geração safar’ do novo coronavírus foram os conselhos do
de emprego, impulsionando a construção civil, assim presidente Jair Bolsonaro ao ser questionado sobre
como a questão habitacional e, de imediato, de outras a proximidade de o Brasil atingir 100 mil mortos
cadeias de comércio. No terreno das políticas sociais, pela pandemia. A partir de 7 de agosto de 2020, a
é necessária a extensão do auxílio emergencial até CTB e outras centrais sindicais realizaram atos, em
dezembro, uma vez que o Projeto de Lei nº 13.892/20 todo o Brasil, para denunciar as 100 mil mortes
aprovado atende cerca de 50 milhões de brasileiros pelo novo coronavírus. “A realidade revela, lamen-
atenuando os efeitos da crise que vivemos. tavelmente, que a simples gripezinha, como foi
Aliado ao pacote de investimentos públicos, classificado o coronavírus pelo governo federal,
devemos buscar políticas efetivas de apoio às micro e atingiu a proporção de um desastre econômico,
pequenas empresas na busca de proteger os empregos social e político muito maior”, definiu Adilson
de milhões de pessoas, já que elas são responsáveis Araújo, presidente da CTB, indignado. Os atos se
por 47,7% dos empregos formais de trabalho (Rais- espalharam pelo Brasil com o mote ‘Defesa da
2018)1. As centrais sindicais têm atuado e participado vida, do emprego e pelo Fora Bolsonaro’. “O 1. BRASIL. Ministério da
Economia. Relação Anual de
de maneira unitária fundamental pressionando o governo do Jair Bolsonaro e do Paulo Guedes ne- Informações Sociais. Disponível
em: http://www.rais.gov.br/
Congresso Nacional, dialogando com governadores gam a ciência, contrariam os protocolos de saúde sitio/index.jsf. Acesso em: 01
e no Senado Federal, combatendo a falsa dicotomia e são incapazes de criar empregos para a classe dez. 2020.

segundo a agenda liberal de que, para gerar empregos, trabalhadora, penalizada pela crise econômica
devemos abrir mão de direitos trabalhistas. e pela pandemia”, completou o dirigente.
28

Hegemonia e poder: transformações


tecnológicas e práxis sindical
Kleber Rangel Silva
Ronaldo Teodoro

‘Parque industrial’1, de Patrícia Galvão, economia moderna, o informacional, promovendo


a Pagu, foi publicado na década de 1930 e é uma crescente alienação do trabalho em escala global.
considerado o primeiro romance proletário Os dois contextos históricos nessas obras infor-
brasileiro. Apresenta como temática central a mam o desafio de propor/construir/articular uma atu-
luta de classes entre burgueses e proletários, ação sindical inovadora e reveladora das mudanças no
com ênfase no universo do trabalho feminino mundo do trabalho diante das formas contemporâneas
nas fábricas de São Paulo do início do século de reprodução (e reinvenção) do capital regido por
XX, período em que se iniciou, de modo mais dispositivos tecnológicos digitais móveis conectados
estrutural, a industrialização do País1. O livro em rede e politicamente orientados por algoritmos.
retrata a dinâmica política e social da época, Entre os enredos de Pagu e Ken Loach se reco-
estabelecida no ambiente de trabalho fabril. nhece o que a mutação tecnológica repõe à organi-
Entre as diversas profissões exercidas pelos zação dos trabalhadores, limitando as possibilidades
personagens, estão presentes os seguintes de suas lutas. Na prática, a crítica política que apre-
ofícios: dos policiais, dos imigrantes nos ca- sentamos consiste na oposição às sínteses produzidas
1. GALVÃO, P. Parque fezais de São Paulo, dos operários fabris das indústrias e emanadas do plutocrático Fórum de Davos. Na sua
industrial. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2018. de tecidos e costura, de caixeiro, personagens em última edição, no ano de 2020, esse Fórum reforçou
2. ANTUNES, R., et al. situação de lumpemproletários, exercendo a prostitui- a avaliação dominante de que as novas tecnologias
Infoproletários: degradação real
do trabalho virtu al. São Paulo:
ção e a cafetagem; e até o universo do ‘não trabalho’, criam oportunidades de trabalho e são uma tendência
Boitempo, 2015. representado por alguns personagens da burguesia1. incontornável em um mundo em gestação diante da
3. YOUGER, J. The future Acrescido a esse processo de transformação produtiva, qual é preciso desenvolver o instinto de adaptação a
of work according to WEF
Davos 2020: 5 Minute Summary. encontra-se a organização dos trabalhadores e a cons- essas supostas demandas incontroláveis3.
Forbes, 2020. Disponível em:
https://www.forbes.com/sites/ tituição do movimento sindical brasileiro. Ken Loach, As transformações tecnológicas conduzem ao
jonyounger/2020/02/01/the-futu-
re-of-work-according-to-wef-da-
cineasta britânico e conhecido por filmes críticos ao entendimento de que a onda de mercantilização dos
vos-2020-quick-summary/#27e- estágio atual do capitalismo globalizado, apresenta, em direitos do trabalho é um movimento inscrito na velha
4a52b5b2c. Acesso em: 10
nov. 2020. seu mais recente longa-metragem intitulado ‘Você não correlação de forças entre os interesses do capital e os
estava aqui’, o processo de precarização das relações interesses das camadas trabalhistas. Essa formulação
de trabalho mediadas por plataformas digitais e suas abre caminhos concretos para a luta sindical, em
consequências na contemporaneidade, processo cha- que se destaca a necessidade de articulação com as
mado genericamente de ‘uberização’. O filme retrata, lutas internacionais do trabalho – no caso brasileiro,
entre outras coisas, a rotina do personagem Ricky prioritariamente com os vizinhos latino-americanos –,
Turner, que se vê cada vez mais envolvido em uma e o alargamento dos sentidos corporativos das lutas
rotina de trabalho extenuante, que o priva do lazer, por direitos, requalificando as negociações coletivas
do descanso e do convívio com a família. A esposa de do trabalho e aproximando o trabalhismo dos movi-
Ricky é Abby Turner, que também se desdobra como mentos de emancipação das mulheres e dos negros.
cuidadora de idosos, sendo paga por visita, e assim Um aspecto importante consiste em compreender
como o marido, não possui rendimentos fixos. O casal como a desidratação da clássica representação sindical,
mora em uma casa alugada e possui dois filhos. Antunes organizada e orientada por categorias laborais, está di-
(2015)2, em seu livro ‘Infoproletários – degradação retamente ligada ao avanço das formas terceirizadas e
real do trabalho virtual’, cunhou os conceitos de ‘in- intermitentes de vínculo trabalhista, da ‘pejotização’ dos
foproletariado’ ou ‘ciberproletariado’, que associam contratos de trabalho e outras formas radicais de explo-
o uso de novas tecnologias à imposição de condições ração disfarçadas de emprego. A comunhão entre esses
de trabalho semelhantes às do século XIX, em um dois mundos do trabalho é identificada nas intervenções
dos setores considerados como mais dinâmicos da que Temer e Bolsonaro promoveram na CLT.
29

A afirmação protoescravocrata de Bolsonaro produtivas e de classes no


(2018) – “ou se tem direitos, ou empregos” – esclarece País, precisamente porque,
com didatismo a convergência entre o impulso das ao refundar o local de mili-
reformas e a promoção das formas de exploração tância, reorienta o alcance
mediadas por aplicativos e plataformas digitais. da organização sindical.
Essa situação nos remete à linha argumentativa Ao lado da luta por
de Marcel van der Linden (2013)4, que, ao captar filiados, o sindicalismo
os múltiplos entrelaçamentos entre os segmentos aponta para uma reno-
formalizados e informalizados do trabalho, identifica vação de atividades com
na exploração capitalista a transversalidade das esferas enraizamento nos territó-
domésticas, fabris e dos ‘ciberproletarizados’, nas rios populares, no local
quais distintas especificidades históricas convergem de moradia e vivência dos
à exploração universal do trabalho. trabalhadores. Aponta
Em 2018, foram registradas 1.453 paralisações para a consciência de que
grevistas no Brasil5. As demandas mais frequentes e a demanda por salários,
que serviram para mobilizar os sindicatos e suas bases postos e condições de
foram a reivindicação de salários atrasados (37,9%), o trabalho são lutas públi-
reajuste de pisos salariais (37%) e a assistência médica cas e, portanto, fundidas às
privada, alimentação e auxílio-transporte (20,4%). No pautas redistributivas por
segmento formalizado, as mulheres pretas seguiam moradias, cultura, mobi-
ganhando, em média, 44,4% do salário de homens lidade, educação e saúde
brancos6. Chama a atenção a modificação do perfil de universais. Por ora, trata-se de possibilidades de 4. LINDEN, M. Trabalhadores
do mundo: Campinas: Unicamp,
trabalhadores do setor metalúrgico, nos últimos anos, radicalização republicana, em que o princípio 2013.
que se tornou mais ocupado por homens negros5. corporativo classista se funde com a dimensão 5. DEPARTAMENTO INTER-
SINDICAL DE ESTATÍSTICA E
Concomitantemente, as lutas sindicais se tornaram pública da opressão capitalista, aprofundando ESTUDOS SOCIOECONÔMI-
mais de contenção que de avanço de direitos. a potência disruptiva do vínculo político a ser COS. Balanço das greves de
2018. Estudos e Pesquisa. São
Com as transformações tecnológicas em curso, a construído entre as lutas de classe, raça e gênero. Paulo, n. 89, 2019.

intensificação da apropriação de riquezas produzidas Onde houver capitalismo, haverá desigualdade, 6. INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
pelo trabalho abre caminho à retomada do desafio e os conflitos serão reinventados, bem como as for- Desigualdades Sociais por Cor
ou Raça no Brasil. Est. Pesq. Inf.
clássico do trabalhismo socialista: avançar da orga- mas de enfrentamento. A inspiração marxiana dessa Demog. e Socioeconômica, Rio
nização por local de trabalho para o conjunto da afirmação confronta as teses dos circuitos conserva- de Janeiro, n. 41, 2019.

sociedade, organizando a classe trabalhadora inde- dores vinculados ao capitalismo internacional. É nesse 7. SAMPAIO, C. Sindicatos
apoiam greve dos entregadores
pendentemente da forma de contratação laboral. A contexto de ascenso conservador que prosperam as e categoria celebra “cons-
cientização”. Brasil de fato.
superação do corporativismo classista, rumo a uma teses do trabalho precarizado como um desdobramen- Disponível em: https://www.
identidade pública, com as dores dos muitos mundos to incontrolável das transformações do capitalismo brasildefato.com.br/2020/07/01/
estamos-fazendo-historia-come-
do trabalho que guiam a luta sindical, torna necessário contemporâneo. O movimento de disruptura dos mora-presidente-de-sindicato-de-
-entregadores-do-df. Acesso em:
o alargamento das estratégias de luta e organização. parâmetros minimamente democráticos de regulação 10 nov. 2020.

A ampliação política da luta sindical ficou de- do trabalho que o capitalismo neoliberal promove
monstrada na aproximação de correntes sindicais pode ser assumido pelo campo sindical como es-
com as duas greves nacionais dos trabalhadores por tímulo a uma resposta proporcionalmente radical.
aplicativo7, conhecidas como #BrequeDosApp, que As dramáticas transformações em curso impõem o
foram alçados à categoria de trabalhadores essenciais aprendizado de novas formas de luta das mulheres e
no contexto da pandemia de Covid-19. Essa aproxi- dos homens que vivem do trabalho.
mação desloca os sentidos da representação sindical No contexto da pandemia em que se aprofun-
avançando para além da defesa única dos seus associa- dam as iniquidades, e no qual o País é atravessado
dos, extrapolando sua importância para o conjunto das por uma profunda dificuldade econômica, torna-se
distintas realidades do trabalho, apesar da sua forma premente que a luta dos trabalhadores e trabalhadoras
de contratação e vínculo. A projeção dessa represen- proporcione uma unidade da ação política, em uma
tatividade para além da contratação formal é uma esfera pública ampliada, para além de uma linguagem
importante reação às transformações das estruturas corporativa de direitos.
30

Trabalho informal, mulheres e saúde


Madalena Margarida da Silva Teixeira

Historicamente, o papel social atribuído às mu- homens e de mulheres, fortalecendo a discriminação


lheres limitava-se ao espaço familiar. Na busca por de gênero, classe e raça/etnia.
emancipação política e autonomia econômica, elas A crise econômica brasileira deslocou o traba-
começaram a sair desse espaço e adentrar o mundo lho formal para o informal. De forma perversa, 82%
do trabalho. À medida que seu papel social foi sen- desses novos postos de trabalho foram ocupados por
do alterado, com a saída do mundo doméstico para mulheres negras, grande parte delas no emprego
o espaço público, inúmeros desafios foram encon- doméstico, e as demais no trabalho por conta própria
trando. Contudo, a rotina doméstica não ficou para (ambulantes e cuidadoras). Essa situação faz com que
trás, e sua jornada de trabalho foi se ampliando na elas trabalhem em turnos irregulares, misturando
busca por investimento em si mesmas como pessoas tarde e noite em dias diferentes, prejudicando seu
e profissionais. A inserção das mulheres no mundo ritmo biológico, ocasionando um aumento signifi-
do trabalho deu-se de diferentes formas e, na maioria cativo de transtornos mentais e doenças crônicas. As
das vezes, associadas a atividades tidas como ‘traba- mulheres vivenciam um processo de adoecimento
lho de mulher’ nas áreas dos cuidados com a saúde, causado pelo trabalho (produtivo/reprodutivo) que
educação, setor de serviços e trabalho doméstico em já é ocultado e tratado como doença de mulheres,
outras casas, por exemplo. e sem nexo causal epidemiológico com o trabalho,
Segundo dados da PNAD Contínua 2019, o que estarão duplamente agravados pela conjunção
número de mulheres no Brasil é superior ao de ho- da precariedade do trabalho com as formas recentes
mens (51,8% de mulheres e 48,2% de homens). Ao de intensificação do trabalho impostas pelas novas
observamos o dia a dia delas, percebemos que sua tecnologias e processos produtivos.
participação no mundo do trabalho tem aumentado Com a pandemia, as condições de vida das mu-
e garantido sua autonomia econômica. No entanto, lheres foram agravadas com o aumento do desem-
sua inserção não refletiu significativamente a redução prego e da sobrecarga de trabalho. De acordo com
das desigualdades. dados da PNAD Covid-19 mensal (Instituto Brasileiro
As mulheres estão mais presentes nos setores de Geografia e Estatística – IBGE), divulgada em julho
produtivos que apresentam menor remuneração e de 2020, as mulheres foram as mais afastadas pela
piores coberturas sociais; e ganham, em média 22%, pandemia (18,3%) em relação aos homens (11,1%).
menos que os homens segundos dados do Depar- Segundo pesquisa realizada por gênero e número a
tamento Intersindical de Estatística e Estudos So- Sempreviva Organização Feminista (SOF) com 2.641
cioeconômicos (Dieese). A maior parte delas está mulheres (2020), 50% das mulheres brasileiras pas-
inserida em postos de trabalho informais, sem carteira saram a cuidar de alguém durante a pandemia; 41%
profissional, ou está em empregos sem remuneração das mulheres disseram que continuaram trabalhando
ou para autoconsumo. com manutenção dos salários e afirmaram trabalhar
No mundo do trabalho, as mulheres de depa- mais na quarentena; 40% das mulheres afirmaram que
ram com a realização de atividades laborais de forma a pandemia e a situação de isolamento colocaram a
1. INSTITUTO BRASILEIRO DE precária, pois as transformações ocorridas no mundo sustentação da casa em risco1. Destas, 55% são negras;
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA
(IBGE). Disponível: https://www. do trabalho, a partir dos processos de globalização 58% das mulheres desempregadas são negras; 61%
ibge.gov.br/. Acesso em: 01
dez. 2020.
e reestruturação produtiva, impõem uma agenda de das mulheres que estão na economia solidária são ne-
flexibilização dos processos e das relações de trabalho, gras; 8,4% das mulheres afirmaram ter sofrido alguma
em que elas são as mais penalizadas e têm suas con- forma de violência no período de isolamento e 91%
dições de vida afetadas de forma significativa. Nesse das mulheres acreditam que a violência aumentou.
contexto de flexibilização e precarização das condições A precariedade das condições de trabalho e a
de trabalho, o capital aprofunda e se apropria das inserção no trabalho informal, sempre associadas ao
desigualdades socialmente construídas e levam as trabalho feminino, com a crise do coronavírus, tive-
mulheres a ocuparem postos de trabalho que, muitas ram essa realidade ampliada e intensificada. Mesmo
vezes, colocam em risco sua saúde, fortalecendo a di- quando a insegurança, a instabilidade e o desemprego
visão sexual do trabalho. Ou seja, o que é trabalho de atingem toda a classe trabalhadora, o trabalho mascu-
31

lino tende a estabilizar-se, enquanto o feminino tende ‘Rosie the


a manter-se incerto e irregular, levando as mulheres Riveter’, poster
de propaganda
a uma maior dependência econômica. Essa situação americana da 2ª
tem implicações no processo de adoecimento físico e guerra mundial,
psíquico das mulheres e queixas recorrentes de dores de autoria de J.
Howard Miller.
de cabeça e em várias partes do corpo, acidentes no Fonte: https://upload.
wikimedia.org/wikipedia/
local de trabalho, exposição a ambientes insalubres commons/1/12/We_Can_
e alterações de sono. Do_It%21.jpg

Para finalizar, algumas considerações: 1) as mu-


lheres são maioria no trabalho informal e, portanto,
estão expostas a precárias condições de trabalho; 2)
as questões acima contextualizadas evidenciam os
desafios enfrentados pelas mulheres no seu dia a dia
e explicam, em parte, seu processo de adoecimento
físico e mental; 3) quando consideramos as precárias
condições de trabalho, associadas à intensa jornada de
trabalho que mistura os tempos de trabalho produtivo
e reprodutivo, entendemos por que as mulheres ado-
ecem mais que os homens por doenças cardiocircula-
tórias, osteomusculares, mentais (ansiedade, tristeza,
depressão), tornando-as as maiores consumidoras
de medicamentos para a dor e a saúde mental; 4)
a pandemia escancarou a pobreza feminina, trouxe Diante dessa situação, é preciso que os sindicatos
para o debate nacional o fardo das tarefas domésticas façam e ampliem o debate sobre a importância da
e a difícil conciliação das mulheres em irem para o luta por melhores condições de trabalho e salário,
mercado de trabalho e o cuidado com a família. bem como pela igualdade de direitos e de oportuni-
É preciso que o governo brasileiro priorize as dades no mundo do trabalho, associado a um debate
mulheres nos processos de formulação, implementa- para a importância de repensar o trabalho doméstico
ção e avaliação de políticas públicas e, em particular, (reprodutivo), não enquanto um trabalho único e ex-
das políticas de emprego, inclusão social e redução clusivo das mulheres, mas como de responsabilidade
da pobreza. de todas e todos.

Estamos condenados a perseverar!


José Amadeu Antunes Alvarenga

Tinha 11 anos, início da década de 1960. Dignos Camaradas (muitos foram chacinados
Com meu pai Janguista e minha mãe Brizolista, pelos fascistas), que inspirariam nossa geração à
participei de um ato do Movimento de Mulheres resistência, nas décadas de 1960 e 1970, à ditadura
em apoio à Greve dos Bancários, chamado ‘Não udeno-milico assassina, que veio logo depois, em
toquem nos nossos maridos’. Eram os tempos de 1964.
ascensão do movimento sindical, governo popular No final da década de 1970, O Movimento
Jango Goulart, ebulição social e política. Entretan- da Anistia nos alentava; do Movimento Estudantil
to, no Rio de Janeiro, um bandido golpista, líder da emendamos a militância sindical. O contato com
reação entreguista, governador Lacerda, mandava os operários nos ensinava Brasil. Nos engajamos
a polícia baixar o cacete. na reconstrução do Movimento dos Trabalhado-
No caminhão, parceiros de meu pai, na vida, nas res, criamos a Central Única dos Trabalhadores
batalhas sindicais, lideranças comunistas e trabalhistas, (CUT), em Praia Grande, 1981, que representava
que me davam livros, e referência na vida. a esperança de Sindicalismo, liberto dos jagunços
32

interventores e seus cúmplices pelegos. A Central A desarticulação do trabalhador, a campanha


Geral dos Trabalhadores (CGT), criada em 1962, orquestrada contra o Partido dos Trabalhadores
pela vanguarda dos trabalhadores, esgotava-se, as- (PT) e seus aliados, sem provas, em grande parte,
saltada por capangas da ditadura. A CUT guerreira mas as ilicitudes inadmissíveis de alguns poucos
liderou os trabalhadores em greves e atos, exigindo traidores eram divulgadas à farta. Enquanto isso,
respeito e conquistando direitos, revolucionando, os crimes da direita eram escondidos, conjugados
cumprindo a sina libertadora, de 1980 até meados com a sanha do neoliberalismo inumano, aliado a
do final do milênio, quando sinais de burocrati- políticos bandidos, criminosos togados vendidos,
zação da cúpula Sindical ameaçava a organização milícias fascistas e fundamentalistas, determinando
da luta. Contrariando expectativas, a eleição de a tomada do governo brasileiro por uma gang e
Lula, líder sindical na década de 1980, embora capangas.
dialogando, como era óbvio, com os trabalhadores, Agora enfrentamos uma trágica pandemia,
incentivou o imobilismo. Em muitos momentos, o que mata nossa gente, sob o sorriso assassino dos
sindicalismo se curvou ao interesse do governo em iníquos, safados, covardes senhores da opressão e
detrimento das causas do trabalhador. Os debates da exploração, que destroçam nossas instituições
e ações em defesa da Saúde do Trabalhador foram públicas de pesquisa.
postergados. Embora não sofrêssemos retrocesso, Verdugos nazistas, que ceifaram vidas brasi-
não avançávamos o necessário. leiras, principalmente idosos e segmentos mais
Quando forças reacionárias, bandidos, ne- pobres. Com todos os problemas que precisamos
oliberais, com a capangagem da criminosa mídia resolver, o SUS (que os safados pretendem des-
vendida, golpearam a Presidente Dilma, não en- truir) salvou milhões de vidas.
contraram firme resistência organizada. Além do Mas é na crise que os verdadeiros revolucio-
mais, setores próximos aos trabalhadores comete- nários se revelam. Temos o desafio de reconstruir
ram ‘mal feitos’, usados pela direita inimiga, para o Brasil liberto, justo, equânime, digno do desafio
generalizar, mentindo, aproveitando-se da nossa de acolher e transformar a vida sofrida de milhões
gente inculta. O facínora Temer e sua cambada as- de brasileiros. E nós, que acreditamos nesse Bra-
saltaram de imediato os direitos dos trabalhadores. sil, estamos condenados a perseverar. Perseverar
Em 2018, ‘além da queda, o tombo’. é preciso!
Foto: Mídia Ninja
33

Conversando com a rapaziada


Neste espaço, várias vozes do sindicalismo expressam, brevemente, suas falas sobre a luta sindical, o contexto da des-
construção de direitos dos sindicatos e trabalhadores e, ainda, questões da pandemia.

Sobram mortes e mutilações pela indiferença e descaso


Gilberto Almazan – Secretário-Geral
Carlos Aparício Clemente – Diretor

O desmonte é nacional, mas os trabalhadores e a média para os casos de morte foi de 38 anos. Em
sentem na carne o desmantelamento do Estado e o 2014, em um acidente emblemático com amputação
enfraquecimento do movimento sindical. Dá para das duas mãos de um trabalhador recém-contratado
imaginar uma queda de 27 para 5 auditores fiscais pela metalúrgica Huffix, a fiscalização só compareceu
em uma Gerência Regional do Trabalho, responsá- após 81 dias do fato e no dia seguinte à vinda do Su-
vel por acompanhar 15 municípios e 87 mil empre- perintendente Estadual à região, confirmando que o
sas? Os ataques promovidos pelo Estado aceleram Ministério estava sucateado. Em 2018, ocorreu a morte
o enfraquecimento do movimento sindical quando de um trabalhador nas dependências da metalúrgica
prejudicam o financiamento de sua estrutura e de Mercúrio, funcionário de um prestador de serviço,
suas lutas, entre outros; e, mesmo com a pandemia em seu terceiro dia de trabalho, cuja fiscalização foi
da Covid-19, permite ‘acordos individuais’ impostos encerrada em 2019, sem a investigação das causas do
pelos patrões. Em recente estudo de acidentes graves acidente. Nessas poucas palavras, é possível ter noção
1. SINDICATOS DE METALÚR-
e fatais realizado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de da correlação existente entre o desmonte do Ministério GICOS OSASCO E REGIÃO.
Osasco e Região1, foram analisados 105 acidentes, no do Trabalho, seu sucateamento, seu fechamento e Ciclo de debates. Disponível
em: http://www.sindmetal.org.br/
período entre 2008 e 2018, em que 20% deles foram posterior submissão ao Ministério da Economia no wp-content/uploads/2020/08/pes-
quisaacidentesgravesfatais.pdf.
fatais. A média de idade dos acidentados foi 36 anos, atual governo. Acesso em: 10 nov. 2020.

Estado de acidente: condição de pactos de risco à saúde laboral


José Reginaldo Inácio
Secretário de Educação

As ‘coloridas lentes jurídicas’ impedem que o oportuno frisar que não nos detemos à análise do
trabalhador (e diversos de seus líderes) perceba o papel histórico do movimento sindical na luta contra o
1. INÁCIO, J. R., et al. Trabalho,
tamanho da injustiça existente em sua exposição a ‘estado de acidente’, mas, sim, em identificar, em parte saúde e direitos sociais.
condições que degradam e comprometem sua sani- das suas ações, as variáveis ou os possíveis limites que Disponível em: https://books.
google.com.br/books?id=AJhm-
dade física e mental. Isso acontece quando legalmente possam influenciar na sujeição do trabalhador a tais DwAAQBAJ&pg=PT209&lp-
g=PT209&dq=%E2%80%9C-
se institui que é possível tal exposição a um ‘estado situações ou condições relatadas. Além do mais, sob Desafiador+por+colocar+ca-
minhos+opostos:+de+um+la-
de acidente’; porque o direito, a lei, não somente nenhuma hipótese, na atualidade se pode perder de do+a+perpe+tua%C3%A7%-
concedem, mas sustentam essa possibilidade. vista que “a situação em que a humanidade se encontra C3%A3o+da+barb%C3%A1rie+-
social+e+de+outro+a+possibili-
Todavia, é evidente que não se pode ignorar o é desafiadora para o conjunto da sociedade”1 – no- dade+da+emancipa%C3%A7%-
C3%A3o+humana,+que+exi-
papel histórico do sindicalismo e de suas lutas para tadamente para a classe trabalhadora. “Desafiadora ge+rupturas+radicais+com+a+a-
tual+ordem+social+dominante&-
alterar as condições de morbidade e letalidade no por colocar caminhos opostos: de um lado a perpe- source=bl&ots=O0GqVAApOE&-
ambiente de trabalho. Aliás, se no momento atual tuação da barbárie social e de outro a possibilidade sig=ACfU3U17hGNSak0KVenfA-
t6bqA3ul0HN6g&hl=pt-BR&sa=-
analisamos tal situação, deve-se ao protagonismo dos da emancipação humana, que exige rupturas radicais X&ved=2ahUKEwjcm4eyp5nvAh-
VMFLkGHZ1ZAVAQ6AEwAHoE-
sindicalistas nesse enfrentamento. Contudo, aqui, é com a atual ordem social dominante”1. CAIQAw#v=onepage&q&f=false.
Acesso em: 10 nov. 2020.
34

Categoria bancária sob ameaça


Adriana Nalesso
Presidenta Bancários RJ

A reforma trabalhista aprovada em 2016, du- de avanços. O governo orientou os bancos públicos
rante o governo Michel Temer, teve forte impacto a se retirarem da mesa de negociações objetivando
sobre a categoria bancária. Um de seus efeitos mais o enfraquecimento da mesa única entre públicos e
nocivos foi o fim da ultratividade, que passou a ser privados, assim como retirar direitos dos bancários
um instrumento de sutil coerção da classe patronal. da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil.
Esse conceito jurídico prorrogava automaticamente o Mantivemos nossa estratégia de mesa única, e o os
acordo vigente entre trabalhadores e patrões até a con- bancos públicos retornaram à mesa de negociação.
clusão de novo acordo coletivo. Sem a ultratividade, Todavia, todos esses direitos voltam a ser ameaçados
o aumento à pressão para a aceitação de um acordo na campanha de 2020, quando novamente somos
desvantajoso e a possibilidade de perdas de direitos pressionados pelo fim da ultratividade, e eles colocam
são uma ameaça concreta. Durante a Campanha Na- em pauta a retirada de direitos duramente conquista-
cional de 2018, os sindicatos enfrentaram negociações dos, assim como, apesar de lucrarem mais de R$ 24
desgastantes com grandes intervalos e dificuldades bilhões durante a pandemia, propõem reajuste zero.

O sindicalismo no tempo de Covid-19 e reforma trabalhista


Paulo Ernani Lima de Oliveira
Diretor

Infelizmente, as sociedades organizadas brasilei- e as centrais sindicais não tiveram a força necessária
ra e mundial não estão preparadas para esta pande- e suficiente para se contrapor a esse projeto da clas-
mia. No Brasil, em especial, o problema é mais grave se dominante e da elite. No dia a dia do sindicato,
após a eleição de um governo neoliberal evangélico, recebemos muitos trabalhadores que só agora estão
que está destruindo todas as organizações sociais, percebendo o que é a reforma trabalhista, o que re-
principalmente as organizações dos trabalhadores, presenta a falta de financiamento de sua entidade e
os sindicatos e os movimentos sociais. Foi vendido, a importância desses recursos para a luta sindical.
pelos meios de comunicação de massa, que a reforma Muitos dos trabalhadores atingidos pela reforma es-
trabalhista iria criar empregos e que a flexibilização tão se sindicalizando; e se alguma coisa esta reforma
dos direitos trabalhistas seria bom para o trabalhador. trouxe, foi a necessidade de reinvenção da forma de
Essa propaganda foi comprada pelo trabalhador. O seu financiamento e a comunicação dos sindicatos
nosso sindicato, outros tantos de outros companheiros com suas bases.

Mulheres na luta sindical


Regina de Fátima de Souza
Cassia Gonçalves Santos da Silveira
Coordenação-Geral

Fundado em 31 de outubro de 2000 pela união fenorte), o Sindicato dos Trabalhadores das Universi-
de três associações de servidores (Associação de Ser- dades Públicas Estaduais do Estado do Rio de Janeiro
vidores da Uerj – Asuerj; Associação dos Servidores (Sintuperj) é a entidade sindical que representa os
do Hospital Universitário Pedro Ernesto – Ashupe; e servidores técnico-administrativos das Universidades
Associação dos Servidores do Norte Fluminense – As- Públicas Estaduais Uerj (Universidade do Estado do
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Rio de Janeiro), Uenf (Universidade Estadual do Norte 2006, e a reformulação no ano de 2014) e o da Uenf
Fluminense) e Uezo (Fundação Centro Universitário (no ano de 2006). Atualmente, a Coordenação Geral
Estadual da Zona Oeste). Em 20 anos de atuação, o do Sintuperj é composta por duas mulheres, Regina de
sindicato obteve conquistas importantes para os tra- Fátima de Souza e Cassia Gonçalves Santos da Silveira,
balhadores, como sua carta sindical, no ano de 2019, o que demonstra a importância da representatividade
e os planos de cargos da Uerj (o primeiro no ano de da mulher no meio sindical.

Crise do sindicalismo
Miriam Amaral Queiroz
Diretora de Saúde do Trabalhador

A crise do sindicalismo brasileiro está intima- dical, que retira todo poder econômico das entidades.
mente ligada ao avanço da extrema-direita no mundo Algumas seguem sobrevivendo com as contribuições
inteiro. Nesse cenário, o avanço tecnológico reduz de alguns filiados, ou de alguns bens que os sindicatos
postos de trabalhos ao invés de se traduzir em direi- acumularam nos últimos anos. As entidades federadas
tos aos trabalhadores. A concentração de renda nas foram as que mais sofreram, foram dizimadas, na
mãos de poucas pessoas se torna outro agravante. verdade, pois não contam nem com as contribuições
No Brasil, depois de 13 anos de um governo popular, dos filiados. O fluxo financeiro era composto pelo
o País, em 2016, sofre um Golpe que retira a nossa percentual repassado do imposto sindical. Contudo,
Presidência – um governo eleito democraticamente. no mundo do trabalho, nada é estático: durante a
O golpe mira diretamente nos trabalhadores e nas pandemia que passou a assolar o mundo, trouxe
suas organizações de classe, para que, ao investirem um novo comportamento dos trabalhadores. Muitos
contra os direitos historicamente conquistados pelos passaram a compreender que só organizados teremos
trabalhadores, estes não tivessem força política, social condições de fazer um enfrentamento na envergadura
e econômica para se defender. Esse processo imprimiu que o sistema capitalista exige. Na fragilidade diante
às organizações sindicais um desgaste mundial, com dos assédios criminosos cometidos pelos patrões,
perdas de filiados e desprestígio por parte de algumas passaram a se albergar nos sindicatos com algumas
categorias de trabalhadores. Um dos piores ataques às novas filiações. Ou seja, mesmo enfraquecidos com
organizações de classe foi a exclusão do imposto sin- as últimas perdas, ainda estamos no ‘jogo’.

Somos maiores e seguimos juntos


Sebastião José – Presidente
Angela Maria Lourenço – Diretora

A categoria dos trabalhadores em empresas de essencial. Se parar, inviabiliza todo o sistema de cir-
transporte rodoviários de passageiros urbano, inter- culação de pessoas e, em consequência, desestrutura
municipal, interestadual, fretamento, turismo, escolar, a economia. Sem ônibus, metrôs e trens, não vamos
cargas, logísticas e diferenciados no município do Rio nem voltamos. Por isso, a categoria não pode parar.
de Janeiro representados pelo Sintrucad-Rio enfrenta, No Rio de Janeiro, 160 motoristas, cobradores, fis-
nesta pandemia da Covid-19, um dos momentos mais cais e demais integrantes da categoria perderam suas
difíceis de sua longa e vitoriosa história. A categoria vidas para a Covid-19. Gente que contraiu a doença
rodoviária, com medo de ser contaminada e morrer trabalhando. Muitos, em ônibus cheios. Outros, em
pelo novo coronavírus, não pode parar. O transporte ambientes sem a higienização devida. Contudo, todos
público não para. Por isso, ela também não. Embora em um sistema de transporte que não pode parar. O
o Brasil viva de costas para o setor, ele é um serviço Sintrucad-Rio está consternado com a perda de mais
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de 120 mil vidas ceifadas pela pandemia e externa a risco, o que gera sobrecarga de trabalho e extensas
sua solidariedade e sentimento profundo aos que per- jornadas laborais, com ampliação preocupante do
deram seus entes queridos para o vírus, em particular, estresse, cansaço físico e psicológico dos profissionais.
aos enlutados da família rodoviária. Além do terrível O Sintrucad-Rio assinou quatro termos aditivos com o
sofrimento pelas mortes, a categoria teve empresa sindicato patronal Rioônibus, garantindo, na medida
fechada nesses últimos meses, a Transportes Estrela. do possível, direitos e emprego durante a pandemia.
Ademais, 1.300 profissionais do transporte urbano de Estamos em estado de guerra, e neste momento, a
passageiros perderam seus empregos nas 25 empresas tática é a resistência. Resistência hoje é manter o
que restam no segmento; no transporte escolar, foram máximo das conquistas da CCT que representa toda
600 desempregados, e o setor está funcionando com a história de luta do movimento sindical dos rodo-
apenas 10% de sua frota. Este último, devido ao fecha- viários. Sabemos historicamente que, em momentos
mento de escolas, tem enorme possibilidade de novas de crise, quem sofre mais são os trabalhadores, o
demissões. O transporte de turismo e fretamento elo econômico mais fraco. Proteger o ganha-pão do
demitiu 400 profissionais e está operando com 50% rodoviário continua sendo o nosso grande objetivo.
da frota, com fortes indícios de novas demissões. A O governo federal precisa liberar recursos para todos
categoria tem demandado para as empresas os EPI os trabalhadores para completar sua renda ou garantir
e não é atendida no ritmo e exigências das normas uma renda mínima para enfrentar essa crise. Uma
adequadas de Segurança e Proteção do Trabalho. O coisa é certa: somos maiores que este vírus e vamos
setor está atuando em sistema de rodízio, devido ao juntos, com muita luta, virar este jogo, unidos e com
necessário afastamento dos profissionais do grupo de pensamento positivo.

Sindicatos na pandemia
Luiza Dantas
Diretora do Sintsaúde-RJ/CUT
Coordenadora da CISTT-RJ

Quando a pandemia do novo coronavírus che- dos Trabalhadores no Combate as Endemias e Saúde e
gou ao Brasil, já encontrou os sindicatos combalidos, Preventiva no Estado do Rio de Janeiro (Sintsaúde-RJ),
acometidos por algumas comorbidades graves. Muitos por sua trajetória de lutas, por sua relação íntima com
dirigentes contaminados pela onda de fascismo que sua base e por ter recusado o imposto sindical com
se estabeleceu no Brasil e já distantes de suas bases ações políticas e jurídicas bem definidas e exitosas,
foram tomados por severa letargia. tem, ao contrário dos demais, aumentado o número
Abatidos pela reforma trabalhista, já respiravam de filiados, não sendo afetado por essas mazelas.
com muita dificuldade. Aquele imposto sindical que, No entanto, o desafio está posto: cresce uma
por várias décadas, fora injetado compulsoriamente legião de trabalhadores informais, terceirizados, ube-
em suas veias garantindo a saúde das entidades sindi- rizados, adoecidos, acidentados, desempregados e
cais acabou e, com isso, em alguns casos, deixam de sem representação sindical. A união dos sindicatos e
respirar, fecham suas portas e se acomodam em pastas a reorganização do macrossetor econômico surgem
nas estantes de escritórios jurídicos, outros demitem como remédio para organização sindical capaz de
funcionários, vendem patrimônio ou, mergulhados em fortalecer as entidades e construir a resistência dos
dívidas, não conseguem nem reagir aos ataques fre- trabalhadores. Voltamos à receita do nosso velho
quentes aos direitos da classe trabalhadora. O Sindicato mestre alemão.
37

Mundo enfrenta duas pandemias


Joel da Conceição Ferreira Nascimento – Metalúrgico
Presidente da CTB-Maranhão

Os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil, dife- Federações e as Centrais vêm lutando contra essa
rentemente do restante dos trabalhadores do mundo, espoliação que teve início em 2016 com o governo
enfrentam duas pandemias: uma devora as vidas, e a Temer. Já realizaram vários atos nas ruas que duraram
outra retira direitos. O governo federal institui uma até a pandemia. Seguindo as recomendações sanitárias
agenda neoliberal com viés fascista regressiva a tudo da quarentena e distanciamento social, a resistência
o que os trabalhadores(as) conquistaram ao longo da se deu pelas redes sociais e ações com os parlamen-
vida com muita luta e sangue. Hoje estamos vendo tares em cada estado. Os efeitos das crises (sanitária,
o retrocesso na legislação de nosso país patrocinado econômica e política) para a Saúde do Trabalhador e
pela elite brasileira, e o capital estrangeiro que quer da trabalhadora têm sido devastadores: aumento de
sugar os recursos naturais e a mão de obra barata. suicídio, doenças mentais e acidentes de trabalho,
Não saciados, querem a alma em nome de uma maior principalmente dos entregadores que usam motos e
rentabilidade para os seus acionistas. Nunca aceitaram bicicletas. Estes não têm conseguido ter acesso aos be-
os avanços da legislação trabalhista e suas pretensões nefícios previdenciários. Os Centros de Referência em
individuais; e mais: os grupos econômicos têm, além Saúde do Trabalhador (Cerest) têm ação de vigilância
de Bolsonaro, a maioria do parlamento e o judiciário na preservação da vida e no cumprimento das normas
que completa uma ação coordenada pelo Executivo sanitárias. O movimento sindical tem a convicção que,
com reformas trabalhistas, previdenciária sindical, nesta batalha, tem que haver uma união de todos os
emendas constitucionais e várias Medidas Provisórias, segmentos organizados da sociedade para enfrentar
todas retirando direitos. O governo, não satisfeito, esta onda de desmonte dos direitos e das empresas
constitui no Ministério da Economia um Grupo de públicas do nosso país. A Central dos Trabalhadores
Trabalho para aprofundar as desregulamentações dos do Brasil – Maranhão – tem, aproximadamente, 16
direitos, a ponto de propor o fim dos exames médicos Sindicatos filiados; entre eles, dos Pescadores, dos
admissionais e demissionais. Todavia, os trabalhadores Trabalhadores Rurais e ainda vários Urbanos.
e trabalhadoras não estão parados. Os Sindicatos, as A luta continua!

São muitas as frentes de luta. Estamos em todas!


Rosmari Barbosa Malheiros
Secretaria de Meio Ambiente Contag e CTB Nacional

Estudos recentes mostram que, em todo o mun- de empregos, a dificuldade de escoar a produção,
do, os números da subnutrição voltaram a subir depois o acesso ao crédito rural, vemos a população rural
de décadas de declínio. No Brasil, milhões de pessoas padecer e depender da ajuda do governo federal.
vivem na pobreza ou abaixo da linha da pobreza, Ocorre que ela chegou de forma pontual e precária,
sem acesso à alimentação saudável, ou que passam por meio do auxílio-emergencial, pois as famílias do
fome. Estamos voltando ao mapa da fome no Brasil, campo estão fora do acesso desse benefício, uma vez
sendo que, no campo, esse quadro é mais preocu- que o Presidente da República vetou 14 artigos do
pante, uma vez que as comunidades rurais, as áreas PL nº 735/2020 de políticas de apoio à agricultura
de assentamento e as comunidades tradicionais têm familiar. Assim, a população rural teve que se manter
dificuldades de acesso às políticas públicas, inclusive da agricultura de subsistência, insuficiente para gerar
às de saúde. Se somarmos o quadro precário de des- renda de comercialização.
nutrição e pobreza às consequências da pandemia, Parte da população rural passou a depender
fica evidente que essa realidade só se aprofunda, só do amparo das Organizações Não Governamentais
piora, o que já está acontecendo. Com o isolamento (ONG) e das Prefeituras com a distribuição de cestas
social, a quarentena, a perda do trabalho, de renda, básicas. Há movimento solidário entre redes de apoia-
38

dores que se organizaram para adquirir a produção tos seguros e de qualidade, promoção da saúde e
dos assentados da reforma agrária e comunidades da alimentação adequada e saudável. Por fim, dizer
rurais e distribuir à população e outras entidades, que tanto a Organização das Nações Unidas para a
mas esse movimento não atendeu a todas as famílias Alimentação e a Agricultura (FAO) como a Organiza-
campesinas, e muitas estão desassistidas. Pela falta ção das Nações Unidas (ONU) apontam a agricultura
de políticas públicas emergenciais e eficazes neste familiar como essencial no período da pandemia, e no
momento, que amparasse com segurança e agilidade pós-pandemia, pois nós temos a clareza que de que a
a população carente, do campo e da cidade, é que fez produção agroecológica garante a soberania e a segu-
surgir e ampliar essa rede assistencialista – e não é rança alimentar. Pena que o atual governo trabalha
algo que se gostaria ou imaginasse, mas o Betinho já na contramão desse contexto, faz um desmonte
dizia, “quem tem fome tem pressa”. Neste contexto do Ministério do Meio Ambiente, desmobiliza os
de pandemia, mantivemos a luta pelo fortalecimento órgãos de fiscalização como o Instituto Brasileiro
da agricultura familiar por meio de debates, reuniões, do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renová-
articulações com gestores locais; e no campo, incenti- veis (Ibama), incentiva a degradação ambiental por
vando agricultores familiares a continuar plantando, meio do falso discurso do progresso e privilegia
apoiando iniciativas dos quintais produtivos, enfim, o grande capital representados por madeireiros,
promovendo condições para que todos e todas possam latifundiários e pelo agronegócio. Mantemos a
se alimentar com dignidade. A alimentação é indis- postura de defesa da agricultura familiar e do meio
pensável para a sobrevivência humana e, no Brasil, é ambiente, e temos atuado em várias frentes de luta,
direito previsto na Constituição Federal, requerendo debatendo internamente com nossa categoria essa
a adoção de políticas e estratégias sustentáveis de pauta, bem com como no Congresso Nacional e
produção, distribuição, acesso, consumo de alimen- com entidades parceiras.

Fortalecimento da ação política sindical


Stênio Dias Pinto Rodrigues
Diretor Sindsprev-RS

A saúde é um bem imaterial indisponível, e o nização das lutas de resistência pela afirmação da
movimento sindical em defesa da vida no trabalho pauta orientada pelos direitos e garantias no trabalho,
1. BRASIL. Constituição da
já adotou o lema ‘Saúde não se vende’. Entretanto, esculpidas no art. 5º da Constituição Federal de 19881.
República Federativa do Brasil. apesar do conceito ampliado de saúde dialogar com Outra pauta foi o da luta em defesa da democracia,
1988. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/consti- a pauta de reivindicação sindical, sua compreensão cidadania e dos direitos da classe trabalhadora, que
tuicao/constituicao.htm. Acesso
em: 15 nov. 2020. enquanto tema articulador de luta é ainda um desa- tem enfrentado derrotas sucessivas diante da instala-
fio aos dirigentes sindicais. Muitas iniciativas foram ção do autoritarismo no Brasil. Comprometido com
desenvolvidas, como a vigilância dos ambientes de os interesses do capital internacional e desconstrução
trabalho do SUS, a participação em vários fóruns dos direitos dos trabalhadores e das representações
institucionais de saúde, trabalho, previdência, meio sindicais, o governo desestrutura a organização do
ambiente, conselhos gestores dos Cerest e Comissões movimento sindical (pelo fim da contribuição), com-
Interinstitucional de Saúde do Trabalhador (Cist) nos promete a representação associativa e contributiva
Conselhos de Saúde. O movimento sindical, ao longo e estabelece negociação direta entre trabalhadores
da década de 1980, travou muitas lutas em defesa do e empregadores, sob a égide do regulado versus o
estado de direito, democratização e pelo fim da dita- legislado. Certamente, a principal ofensiva à classe
dura militar. Nos anos 1990, ocorreu abrandamento trabalhadora foi a reforma trabalhista e sindical, que
das lutas sociais e políticas que retornaram no governo propiciou às relações de trabalho retrocederem às
de Fernando Henrique Cardoso, período de ofensiva conquistas históricas dos trabalhadores, remontan-
do capital aos direitos dos trabalhadores. O avanço do ao período da primeira Revolução Industrial. O
da globalização e do capital financeiro, concentrado complexo contexto político, econômico e social de
nas grandes corporações internacionais, recoloca a 2020 exige dos sindicatos ação política de lutas con-
centralidade do trabalho e da ação sindical na orga- tínuas diante da retirada crescente de direitos e da
39

desconstrução das políticas de proteção social desde com a pandemia que evidencia a divisão de classe e
o golpe de 2016. Essas medidas acompanharam o a enorme desigualdade entre a classe trabalhadora.
contínuo desfinanciamento das políticas públicas Explicita a dimensão da desproteção social e desvela
apoiadas pela visão de modernização da administração a insustentável exploração dos recursos naturais. O
pública ditadas pelo mercado e a impossibilidade desafio imposto por esta agenda regressiva é o for-
de garantir o direito universal à seguridade. Esse talecimento da ação política sindical para organizar,
ideário tem como alvo a precarização do trabalho e representar e proteger esses trabalhadores e barrar o
a exploração dos trabalhadores (um novo ciclo de retrocesso das relações de trabalho e desconstituição
informalidade e ‘uberização’). A barbárie se intensifica de direitos sociais.

Crise sindical pós-reforma trabalhista


Raimunda Leone
Fitmetal – Diretora Finanças
União Brasileira de Mulheres – Diretora

Com a aprovação do PL nº 6.787/2016, em 26 mercado de trabalho1. Antes da reforma trabalhista,


de abril, na Câmara dos Deputados, foram alterados a estrutura sindical contava com aproximadamen-
em torno de 200 dispositivos da CLT, e ainda foram te 300 mil trabalhadores em todo Brasil, de acordo
revistos alguns pontos específicos de algumas leis. com o Dieese, sendo que, deste contingente, 115 mil
Também foram derrubadas algumas súmulas do Tri- eram trabalhadores diretos, e os demais, prestadores
bunal Superior do Trabalho (TST) que continham de serviços. Em função das mudanças provocadas
concepções favoráveis aos trabalhadores. Essa foi pela reforma trabalhista, a organização sindical foi
uma das maiores modificações já feitas na CLT, que atingida em cheio com as alterações do seu modelo 1. DEPARTAMENTO INTER-
SINDICAL DE ESTATÍSTICA
acabou alterando os seguintes pontos: a) anulação dos de financiamento que se expressava no chamado E ESTUDOS SOCIOECONÔ-
MICOS. Reforma Trabalhista:
conceitos que salvaguardam os trabalhadores diante imposto sindical, que estava garantido no art. 580. riscos e perdas impostos pelo PL
do patrão – com todas essas alterações, o trabalhador Esse era o desconto de um dia de trabalho de todos 6.787/2016 aos trabalhadores
e ao movimento sindical. Dis-
fica mais vulnerável e enfraquecido e menos protegido os trabalhadores com carteira assinada. Agora, com ponível em: https://www.dieese.
org.br/outraspublicacoes/2017/
em relação ao emprego; b) diminuição do poder nas as mudanças na legislação, os trabalhadores deverão reformaTrabalhistaSintese.pdf.
Acesso em: 01 dez. 2020.
negociações e contratações coletivas do sindicato – autorizar por escrito o desconto ao sindicato a que
2. ISTOÉ. Após reforma
essas mudanças abriram brechas para a implementação pertence. Todas essas mudanças têm trazido dificul- trabalhista, sindicatos encolhem
dos chamados acordos individuais e até mesmo os dades para a maioria dos sindicatos, que perderam e demitem para sobreviver.
Disponível em: https://istoe.com.
verbais não formalizados documentalmente, esta- sua principal receita, tiveram que demitir em massa br/apos-reforma-trabalhista-sin-
dicatos-encolhem-e-demitem-pa-
belecendo vários pontos na relação trabalhista, tais seus trabalhadores e reduzir suas estruturas para não ra-sobreviver/. Acesso em: 01
dez. 2020.
como a não necessidade da presença dos sindicatos sucumbirem2. Contudo, as perdas também se deram
3. FOLHA DE PERNAMBUCO.
nas homologações de rescisões contrato de trabalho; com a diminuição do quadro de associados, conforme Brasil perdeu 3 milhões de
c) anuência para redução de direitos estabelecidos apontam os dados da PNAD. Depois da reforma, os sindicalizados após reforma
trabalhista, diz IBGE. Disponível
por lei, adotando-se o conceito do negociado acima sindicatos perderam cerca de 3 milhões de associados, em: https://www.folhape.com.br/
economia/brasil-perdeu-3-milho-
do legislado; d) amplificação das chamadas contrata- como foi divulgado pelo IBGE em agosto. Em 2016, es-de-sindicalizados-apos-refor-
ma-trabalhista/152431/. Acesso
ções atípicas dos trabalhos autônomos, dentro de um eram 13,5 milhões de sócios, e em 2019, 10,5 milhões, em: 01 dez. 2020.
conjunto de variedade de contratações já presentes no com redução de cerca de 3 milhões3.
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Valorizando conquistas históricas na área de saúde e segurança do trabalho


João Donizeti Scaboli
Diretor de Saúde do Trabalhador

Nunca a palavra ‘prevenção’ fez tanto sentido. em Memória das Vítimas de Acidentes e Doenças do
Vivemos dias de crise diante da pandemia que só Trabalho. O Departamento de Saúde do Trabalhador
agrava a estagnação econômica, a fragilidade dos está sempre em estado de alerta para que não haja
serviços públicos, a pobreza e o desemprego. Em retrocesso no mundo do trabalho. Em 2006, a Fequim-
meio a isso, resgatamos o sentido do termo ‘prevenir’ far e Sindicatos filiados, com representantes patronais
que vem do Latim ‘Praevenire’, ‘antecipar, perceber do setor industrial farmacêutico, assinaram o ‘Pacto
previamente’, literalmente ‘chegar antes’. Quem ‘chega de Inclusão para PCDs (Pessoas Com Deficiência),
antes’ possui a chance de evitar adversidades, tomando no Setor Farmacêutico’, como cumprimento da Lei
medidas necessárias para preservar uma situação ou de Cotas. Outra iniciativa foi a construção tripartite
um contexto. O que temos feito para nos prevenir? A da Convenção Coletiva de segurança em máquinas
Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas injetoras e sopradoras no estado de São Paulo, no
e Farmacêutica do Estado de São Paulo (Fequimfar), setor plástico, documento renovado anualmente. Nas
com 33 Sindicatos filiados, acumula uma experiên- CCT, existem cláusulas que tratam da nanotecnologia
cia de 62 anos de importantes ações na defesa da e do direito de saber, ‘garantindo que os membros
classe trabalhadora. São 195 mil trabalhadores das da Cipa e do Serviço Especializado em Engenharia de
indústrias químicas, petroquímicas, plásticas, farma- Segurança e em Medicina do Trabalho (SESMT) sejam
cêuticas, usinas de produção de etanol, instrumentos informados quando da utilização de nanotecnologia
musicais e brinquedos. Das conquistas que servem no processo industrial’. Outro objetivo é fortalecer
de referência para outros setores, destacam-se as a troca de experiência entre Cipa e SESMT do setor
lutas pela Participação nos Lucros e Resultados (PLR) químico no estado de São Paulo, com cinco encontros
nas convenções coletivas e redução da jornada de estaduais, reunindo centenas de trabalhadores do
trabalho. Em 1985, a Fequimfar e Sindicatos filia- estado. Retomando o momento atual, o SUS tem sido
dos conquistaram a redução da jornada de 48 horas peça fundamental no combate ao novo coronavírus,
para 44 horas semanais nos segmentos químicos e amparando milhões de brasileiros vulneráveis e su-
hoje, no setor farmacêutico, a realidade é a jornada jeitos a condições precárias de vida. Se não fosse o
de 40 horas semanais para todos os trabalhadores. SUS, a mortalidade do novo coronavírus seria ainda
Ressaltam-se também direitos ao jovem trabalhador, mais elevada. Como membros do Conselho Nacional
proteção à gestante, promoção da igualdade racial, de Saúde representando os usuários pela Força Sin-
além de vitórias na Saúde do Trabalhador. De forma dical, abraçamos ações em defesa do SUS. Por essa
similar: Projeto Verão Sem Aids – Valorizando a Vida, longa história de luta, o Departamento de Saúde da
com reconhecimento internacional; a ação que com- Fequimfar reafirma sua missão de enfrentar desafios
pleta 25 anos em 2020 – o banimento do benzeno e defender a democracia, direitos e vida saudável para
na fabricação do etanol; e a Saúde do Trabalhador cada um dos trabalhadores. Lembrando que a saúde
resgatada em sua importância, como o dia 28 de abril é o bem maior daqueles que trabalham!

O sindicalismo e sua voz na atualidade


Nilton Freitas
Representante Regional da ICM para América Latina e Caribe

A Internacional de Trabalhadores da Construção e engenharia, materiais de construção, floresta e ma-


e da Madeira (ICM) é uma federação sindical inter- deira. Na América Latina, está presente em 22 países, e
nacional presente em 130 países, representando 13 no Brasil, possui 72 sindicatos afiliados, de 5 centrais
milhões de trabalhadores dos setores de construção sindicais: CUT; Força Sindical; Nova Central Sindical de
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Trabalhadores (NCST); União Geral de Trabalhadores mia, construir um futuro verde e com justiça social. A
(UGT); e Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB). A solidariedade sindical internacional direcionou signi-
reforma trabalhista neoliberal foi impiedosa e incisiva ficativos recursos financeiros à proteção e assistência
ao promover a ‘negociação individual’ em detrimen- direta aos trabalhadores de nossos setores e suas
to da representação sindical; a homologação sem a famílias, em particular, dos trabalhadores migrantes.
assistência do sindicato; ao criar o trabalhador ‘autos- Dezenas de empresas e governos foram chamados a
suficiente’ que negocia diretamente com o patrão; e, garantir salários e empregos. Centenas de sindicatos
principalmente, eliminar abruptamente e sem período receberam informações e subsídios para fortalecer
de transição a contribuição sindical compulsória, suas negociações com os patrões e os governos de
expressiva parcela do orçamento de grande número seus países, estados e municípios. No Brasil, a ICM,
de entidades, principalmente as menores e de setores por meio dos seus afiliados, levantou a bandeira ‘Vida
vulneráveis – rural e serviços. O impacto é visível: a Antes do Lucro!’, por meio de campanhas de Seguran-
taxa de sindicalização caiu de 16,1% (2012) para 11,2% ça e Saúde no Trabalho (SST) e negociação coletiva
da PEA (2019). Na Construção Civil, a redução foi mais para garantir aos trabalhadores e trabalhadoras da
drástica, caindo de 8,9% para 4,2% (PNAD Contínua). construção, materiais de construção, madeira e silvi-
Sem ‘poder estrutural’, os sindicatos ficaram vulnerá- cultura o direito básico do trabalho seguro. Com esse
veis aos efeitos do novo coronavírus sobre a economia objetivo, um grupo de especialistas sindicais com a
e o trabalho, o que pode significar a falência definitiva assessoria de um Cerest e da Fundacentro elaborou
de muitas entidades. A ICM foi rápida em reconhecer uma ‘Proposta de Recomendações de Políticas de SST
essa realidade. O Comitê Mundial da ICM considerou para a Prevenção e Controle do Covid-19 na Indústria
a complexidade da crise e propôs aos sindicatos uma da Construção’, encaminhada ao Ministério Público
unidade, baseada nos pontos: trabalho mais seguro, do Trabalho (MPT). É confortante reconhecer que os
priorizando a saúde e segurança dos trabalhadores; sindicatos cumprem um papel relevante na proteção
proteger salários e assegurar empregos; advogar por dos direitos dos trabalhadores e na edificação de
direitos econômicos, políticos e trabalhistas dos mi- sociedades mais justas e equitativas, também mais
grantes; incorporar a equidade de gênero na recu- sustentáveis do ponto de vista econômico, social,
peração econômica e assumir a violência de gênero ambiental e político. Também é reconfortante saber
como questão trabalhista; reconhecer a liderança do que o mesmo processo ocorreu em países da América
setor florestal e sua cadeia de valor na recuperação Latina no decorrer dos anos 1990 e que os sindicatos,
econômica; responsabilizar as multinacionais pelas ainda que fragmentados e limitados, muitas vezes,
condições de trabalho e exigir que contribuam signifi- aos muros de uma empresa, resistem. Conhecer e
cativamente para a recuperação econômica; defender entender esses processos é fundamental para garantir
a solidariedade global e a cooperação internacional que o sindicalismo mantenha a sua voz – e de forma
para a soberania e recuperação global; no pós-pande- altiva – na atualidade.

40 anos de história pela saúde da classe trabalhadora


Precisamos (re)pensar e agir juntos para resistir
Eduardo Bonfim da Silva – Coordenador Técnico
Daniele Correia – Equipe Técnica

O Diesat completou 40 anos em 2020 desen- nais de saúde debatiam as vulneráveis condições de
volvendo ações no campo da pesquisa, estudos e trabalho, os altos índices e não reconhecimento de
formações que subsidiem dirigentes sindicais na luta acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, além
do campo da Saúde do Trabalhador. A criação do da ineficaz assistência à saúde dos trabalhadores. A
Diesat é resultado da organização dos trabalhadores e classe trabalhadora fundamentou suas reivindicações
do germinar do novo sindicalismo na década de 1970. criando o Diesat, em 14 de agosto de 1980, como en-
Em 1979, foram realizadas as primeiras Semsat, em tidade intersindical atuante nas questões relacionadas
que diferentes sindicatos, trabalhadores e profissio- à saúde e trabalho. Seu surgimento é caracterizado
42

por um contexto de pouca transparência, por parte ricana da Saúde (Opas), do ‘Projeto de Articulação e
do governo e empresários, quanto à real situação das Qualificação do Controle Social’, capacitando mais
condições de trabalho e saúde no Brasil, com estatís- de 1.642 atores em oficinas de formação do controle
ticas oficiais que apontavam 1,5 milhão de acidentes social em Saúde do Trabalhador. O cenário atual de
e adoecimentos pelo trabalho. Havia uma crescente desemprego em massa e de informalidade das pos-
subnotificação dos acidentes de trabalho pelo regime sibilidades que existem de trabalho apresenta um
militar, com o objetivo de mascarar as estatísticas. grande desafio ao movimento sindical na sua vocação:
Esse processo acentua-se pela fragilidade do sistema representar a classe trabalhadora no enfrentamento
previdenciário de informações, problema que persis- dos interesses de lucro do capitalismo. Sabemos que
te até hoje. O Diesat é responsável pelas primeiras a história é cíclica e se repete. Mesmo em condições
pesquisas e estudos sobre a saúde dos trabalhadores, de aparência distintas, ela se repete na sua estrutura,
produzidas com a participação ativa dos sindicatos no seu nervo. Na década de 1990, nos apresentou
e trabalhadores. Ao longo de sua existência, vários o desemprego. Agora é hora de acharmos juntos a
trabalhos e ações importantes do Diesat tornaram-se melhor maneira de enfrentarmos novamente este
um marco referencial e histórico na luta dos traba- cenário que vulnerabiliza ainda mais a classe trabalha-
lhadores por melhores condições de trabalho. Toda a dora, em suas condições de vida material e imaterial,
produção, bem como sua estrutura, está à disposição acrescido pelo contexto da pandemia. Se não temos
das entidades filiadas e da sociedade civil, de forma a mais os contratos de trabalho, como vamos nos sentar
subsidiar as ações por melhores condições de saúde da à mesa de negociação para negociar aumento real de
classe trabalhadora. Tais ações, ao longo da história, salário, PLR, benefícios, planos privados de saúde? Se
impulsionaram o surgimento dos Programas de Saúde não tivermos mais os contratos de trabalho, como
do Trabalhador, embriões dos atuais Cerest (Rede vamos amparar, em termos jurídicos e de assistência
Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador à saúde, os/as trabalhadores/as?
– Renast/SUS). Produz a ‘Revista Trabalho & Saúde’, O que se apresenta é um desafio de projeto de
com temas relevantes para a classe trabalhadora, e sociedade, de novas formas de sociabilidade, com
atua na formação de base em Saúde do Trabalhador políticas sociais que amparem a classe trabalhadora
realizando cursos para entidades filiadas com métodos enquanto o jogo cruel e desumano do capitalismo
integrativos e conteúdo customizado ou personalizado continua a rodar. Por políticas sociais, nos referimos
de acordo com as demandas do público-alvo. Desta- a lutar pela Seguridade Social! Pela Previdência Pú-
ca-se na relação interinstitucional o assessoramento blica, pelo SUS, por Assistência Social. É o lócus de
do Fórum Nacional das Centrais Sindicais em Saúde luta de classes que temos, meus caros! Porque, seja
e Segurança do Trabalhador/São Paulo e do Fórum nos trabalhos formais, informais e na falta dele, a
Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora/ classe trabalhadora está adoecendo! As estatísticas
Brasília (DF), desenvolvendo e apoiando seminários, oficiais da Previdência Social declaram que milhões
materiais de formação e publicações. Participou das de trabalhadores/as formais estiveram em processo
Conferências Nacionais de Saúde (CNS) como mem- de adoecimento e morreram em decorrência do tra-
bro das XV e XVI CNS; das I, II, III e IV Conferências balho. E ratificamos, este é o cenário de uma parte
Nacionais de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora dos trabalhadores/as formais, que ainda há subno-
(CNSTT); e da I CN de Vigilância em Saúde. É membro tificações. Não temos como mensurar o cenário de
da Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador adoecimentos na informalidade e em decorrência
e da Trabalhadora (CISTT) do Conselho Nacional de da falta de trabalho e, consequentemente, de falta
Saúde e de Conselhos Estaduais de Saúde. O Diesat de condições de sobrevivência. Propomos aglutinar
é mantido por seus filiados – sindicatos, federações, forças, centrar pautas únicas para dar peso àquilo
confederações de trabalhadores – e pelos recursos que reivindicamos. O Diesat é o espaço criado pelo
provenientes de estudos, pesquisas, cursos e asses- movimento sindical para apoiar e sustentar tecnica-
sorias realizadas. Dentre as experiências formativas, mente as ações políticas no que se refere à saúde e
destaca-se a execução, com a Organização Pan-Ame- trabalho. Vamos juntos, juntas e juntes?
2
O marco regulatório
desregulado
Coordenação
Maria Helena Barros de Oliveira & André Gustavo Bittencourt Villela
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.05
45

Lutas e resistências aos retrocessos ilegais


Raquel Rodrigues Braga
Maria Helena Barros de Oliveira

A história do pensamento, ao longo das civiliza- imunizar a humanidade de um vírus, mostrou também que
ções e conforme as opções políticas, sob a ótica eurocên- a desigualdade social, pelo trato do neoliberalismo com
trica e verdades absolutas, desconstruiu o mundo das os trabalhadores, faz dessa junção, modelo econômico/
ideias, na concepção platônica, passou pelo confronto pandemia, uma tragédia humanitária.
entre positivistas, naturalistas e marxistas para descam- A saída não está no capitalismo camaleônico, nas
bar na hegemonia capitalista, na qual a prevalência das vestes do neoliberalismo deste século XXI, uma vez que
relações econômicas ratificam e produzem saberes nunca atendeu a contento às exigências sociais básicas.
artificiais que limitam e controlam o que se conceberá Ao contrário, o modelo econômico tem interferido nos
e concederá como direitos humanos, inclusive com a sistemas jurídicos com prescrições ilegais cujo resultado
fragmentação proposital de pautas que racionalmente é o profundo agravamento das desigualdades sociais.
poderiam ser encaminhadas em conjunto. A partir do corte orçamentário de áreas funda-
O que foi construído contemporaneamente mentais e da alteração legislativa, a prescrição em todas
acerca dos direitos humanos passou pelo objetivo as partes do mundo é suprimir os direitos: trabalho,
precípuo de conter as próprias lutas que os originaram moradia, seguridade social e saúde. A velocidade do
e, por isso, as bases foram sedimentadas em precisas quadro de desmonte atravessa países e instituições,
referências: um indivíduo abstrato (descontextualiza- sem que a sociedade civil organizada reaja proporcio-
do); sujeito competitivo; a falácia do universalismo nalmente à feroz supressão de direitos. Essa resposta,
derivado de concepções metafísicas ou jusnaturalista; demorada e pouco expressiva tem sido dificultada por
a farsa da igualdade formal que ignora as diferenças diversos fatores, inclusive, ameaças fascistas utilizadas
concretas e condições de existência; e o caráter alta- para conter a insurgência.
mente ficcional de contrato social. E o que isso significa? O Neoliberalismo do século
O século XX aguçou as perplexidades contempo- XXI não quer o Estado mínimo capaz de suprimir direitos
râneas. O Estado capitalista, degradado politicamente essenciais, mas necessita do Estado forte e sustentado por
nessas duas décadas do século XXI, não bastasse ter ideologias de priscas eras: concessões aos movimentos
forçado uma compreensão de direitos humanos em religiosos fundamentalistas; reforço do medo, terrorismo;
1. CARBALLIDO, M. G. Los
única visão, como nos adverte Gándara Carballido1, e autoritarismo de estado ultracentralizado, militarizado/ derechos humanos en el siglo
sobre a mirada decolonial, mesmo para os que não policial para criminalização de indivíduos e movimentos XXI: una mirada desde el pen-
samiento crítico. Buenos Aires:
partilhassem da mesma ótica de mundo, altera a regra sociais que se rebelam contra a nova ordem mundial. Clacso, 2019.

do jogo que ele mesmo criou, eliminando bens e O diagnóstico é de Dulce Fariña2 “ao dissecar o 2. DULCE FARIÑAS, M. J.
Globalización, ciudadanía y dere-
direitos mínimos obtidos até aqui. modelo econômico neoliberal e os efeitos da globali- chos humanos. Madri: Dykinson,
2004. Cuadernos Bartolomé de
Longe de a sociedade ocidental dar conta das suas zação como prescrição ideológica da transformação las Casas, n. 16. Disponível
mazelas, a pauta desregulatória, de objetivo velado, ao do capital produtivo em especulativo, agudizando a em: https://books.google.es/
books?hl=es&lr=&id=cGC_2BK-
eliminar ou reduzir drasticamente o orçamento social, desigualdade social”. FE-EC&oi=fnd&pg=PA1&ots=-
aX9kwvkg1M&sig=Cl7Vld8kKm-
priorizando o capital financeiro, tem produzido efeitos A ruptura dos pactos civilizatórios, em nome de j7xhoB4XNMI6_ITfU#v=onepa-
ge&q&f=false. Acesso em: 14
práticos indeléveis: extinguiu o emprego regido pelo uma pretensa crise, baseada em argumentos ultrapas- jan. 2021.
contrato de obrigações recíprocas, empregado/empre- sados, que vão do terrorismo ao avanço tecnológico,
gador, pacto que data de mais de dois séculos; precari- admite e pratica a eliminação dos ‘inimigos’, como
zou as condições de trabalho; eliminou os sistemas de opção política. Além disso, os inimigos variam confor-
saúde e de habitação; elevou o custo dos alimentos, me as circunstâncias: indesejáveis, ralé, sindicalistas,
acentuando a fome no planeta; inviabilizou as políticas defensores do direito do trabalho e da seguridade e
educacionais e culturais; e expandiu a desigualdade de lutadores sociais em geral. 3. CASARA, R. Estado pós-de-
um lado e a concentração da renda de outro. O neoliberalismo tem como opção política velada mocrático: neo-obscurantismo e
gestão dos indesejáveis. Rio de
A desregulação já era, por si, responsável pelo trágico a eliminação dos que se encontram fora da margem, Janeiro: Civilização Brasileira,
2017, p. 93.
quadro em relação aos trabalhadorxs, mas a crise sanitária do padrão, indesejáveis ou ralé, termos cunhados,
4. SOUZA, J. Ralé brasileira:
trouxe o quanto há de caótico. Se revelou que a tecnologia, respectivamente, em duas obras contemporâneas de quem é e como vive. Belo
asséptica, com toda a sua modernidade, não foi capaz de Casara3(93) e Souza4(1). Horizonte: UFMG, 2009.
46

demonstrar as especialidades da noção articulada de


autonomia e fichamento da norma legal7.
Essa ótica da desigualdade material (econômica e
social) oriunda do modelo hegemônico, eurocêntrico,
assimétrico, branco, patriarcal, machista, católico ou neo-
pentecostal é determinante para entender a aplicação da
norma em distintos efeitos, válida e dotada de eficácia para
a elite e, no mais das vezes, meramente declaratória para
os segmentos humanos destinatários dos preconceitos:
pobres, mulheres, povos originários, afrodescendentes,
demais etnias, população LGBTQIA+, grupos religiosos
e outras inserções objetificadas para o menosprezo.
Desmitificar essa objetificação nos interessa na
perspectiva e concepção contemporâneas de ‘Direitos
Humanos’, que atende aos próprios privilegiados ao se
verem diante de algum grau de injustiça. Desse modo,
Banksy Nesse contexto, é importante ratificar o sistema
Street art quando a elite retira os segmentos menosprezados
Brooklyn, NY, EUA. jurídico declaratório dos direitos humanos, fazendo da esfera de proteção, mas deseja estar nela incluída,
Fonte: https://eand.co/
why-americans-dont-even-own- valer a sua eficácia para todos, ainda que se consi- necessita coisificar os oprimidos, como fez com os
themselves-1a9ffbe0fd35
derem os seus ambíguos efeitos, pesados a gênese escravos até o século XIX.
e a validade do instituto, como pontuado por Marx Ademais, esse desmascaramento é necessário,
5. MURAD, M. Sociologia e
Educação Física. Rio de Janeiro:
apud Murad5(72). mas não para abrir mão dos direitos e garantias que
FGV, 2012.
[...] a dificuldade não está em compreender que a arte obtivemos até aqui, mas para a ampliação deles na
6. LESSIG, L. Capítulo 11. In:
VIEIRA, J. R. Teoria do Estado: a
e a épica gregas se achem ligadas a certas formas do perspectiva de melhoria e extensão para todos. As-
regulação jurídica. Rio de Janei- desenvolvimento social, e sim no fato de que elas pos- sim, é nessa perspectiva que fazemos a defesa da
ro: Lumen Juris, 1995. p. 29.
sam, ainda hoje, proporcionar-nos um deleite estético, regulação jurídica com base no Estado de Direito
7. VIEIRA, J. R. Teoria do sendo consideradas, em certos casos, como norma e como um pilar de aperfeiçoamento das democracias
Estado: a regulação jurídica. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 1995. modelo insuperáveis.
avançadas. Legalidade e legitimação inseridas como
8. PIKETTY, T. Capital e Ideolo-
gia. Rio de Janeiro: Intrínseca,
Explicamos: A ressalva de gênese e validade elementos essenciais a assegurar a declaração dos
2019. Disponível em: https:// rechaça as narrativas de reforço à hierarquia social, direitos fundamentais, a impedir o retrocesso social
books.google.com.br/books?
id=XH7oDwAAQBAJ&pg=P- observando que as elites, políticas e econômicas, ao e os avanços da própria democracia.
T722&lpg=PT722&dq=aos+li-
mites+da+comunidade+pol%- situar os segmentos menosprezados em escala infe- Por outro lado, faz-se necessário assegurar o que
C3%ADtica+com+a+qual+se+i-
dentificam+e+%C3%A0s+ori-
rior, justificam a desigualdade social/política/jurídica se estabeleceu como conquista dentro do próprio apa-
gens+e+identidades+%C3%A9tni por algum traço supostamente inerente, sem base rato jurídico generalizante, contextualizando a norma
zo-religiosas+de+seus+ mem-
bros&source=b l&ots=EuwmAely- razoável, que os façam merecedores dessa posição desde a sua origem, de preferência com o resgate da
G4&sig=ACfU3U2Xm7rSD9cXSj-
jP4 3n7U7nY-Xumug&hl=pt-BR&sa de invisibilidade, desconsideração ou até eliminação. força dos movimentos sociais que a originaram e a
=X&ved=2ahUKEwid3_z
PipzuAhUoGLkGHVCbAuA-
Assim, não se discute o grau de incompletude da identidade perdida no corpo estatal regulatório de
Q6AEw AXoECAEQAg#v norma dentro da lógica de exclusão dos sistemas jurí- contenção das lutas.
=onepage&q&f=false. Acesso
em: 14 jan. 2021. dicos contemporâneos, minimizando indivíduos entre Thomas Piketty8, no livro Capital e Ideologia,
ganhadores e perdedores, além de reduzir a condição trecho dedicado ao Brasil, adverte que os conflitos
humana ao consumo e/ou acumulação. São vários os identitários têm dominado a pauta sobre os classistas.
paradoxos da modernidade, mesmo sob a ótica indi- A divisão identitária, garante o autor, não é invenção
vidualista, por exemplo, a eficiência regulatória para dos atores políticos, são questões de fronteira, referên-
a propriedade ante a débil proteção à privacidade6. cia “aos limites da comunidade política com a qual se
Assim, é crucial desvelar a estrutura jurídica identificam e às origens e identidades étnico-religiosas
formalista, positivista, abstrata e autopoiética que de seus membros”. A clivagem classista diz respeito
confere legitimação a si própria para reafirmar o siste- às questões de desigualdade socioeconômica e de
ma neoliberal, e estabelecer o contraponto, tomando redistribuição, em especial da propriedade.
como direitos humanos as exigências extraídas das Prossegue Piketty8:
realidades desiguais dos sujeitos que os reivindicam.
De modo geral, a clivagem classista só pode prevalecer se
A concepção de autopoesis, como está registrada, conseguirmos superar a clivagem identitária: para que o
constrói-se dentro de uma reflexão epistemológica de conflito político possa se concentrar nas desigualdades
47

de propriedade, de renda e de grau de instrução é pre- Desse modo, a defesa da regulação jurídica
ciso, em primeiro lugar, chegar a um acordo quanto às centrada no Estado de Direito é essencial. Impõe-se
fronteiras da comunidade.
conjugar os sistemas nacional e internacional, visando
Os Estados Modernos obrigados por lutas so- assegurar a declaração dos direitos fundamentais e
ciais, étnicas/ trabalhistas/identitárias criaram uma os avanços da própria democracia, o que impedirá o
estrutura jurídica de direitos e tutelas, entre os quais, retrocesso social. Torna-se indeclinável a preservação,
as integridades física e moral, o sistema de saúde, os no plano nacional, das harmonias e independência
benefícios sociais e econômicos, inseridos os deveres entre os poderes: executivo, legislativo e judiciário,
(respeito) e a liberdade. dotados de legalidade e legitimação, como muito bem
Uma arquitetura formal para assegurar direitos analisa e aprofunda Araújo9. 9. ARAÚJO, G. S. S. A
disfunção dos desenhos das
que produz efeitos reais, ainda que atenda com maior Outrossim, não há saída sem luta: luta em defesa instituições democráticas na
constituição federal e seus
força a uma parcela privilegiada e almeje a precípua dos direitos humanos, constituídos e sistematizados efeitos no ativismo judicial con-
intenção de conter as próprias lutas que a originou. com a promessa de conjugar a soberania nacional e a servador-midiático. In: PRONER,
C., (Org.), et al. Comentários a
A premissa é inconteste: a inexistência de popular; luta para a absorção das pautas específicas, um acórdão anunciado – o pro-
cesso Lula no TRF-4. São Paulo:
um sistema legal perfeito ante o desrespeito à ‘universais’, contemporâneas, individuais ou conjun- Outras Expressões, 2018.

clivagem identitária, a existência de classes sociais tamente consideradas, como forma desmistificadora
e a profunda desigualdade econômica entre elas. da narrativa estatal de autolegitimação; e luta contra
Contudo, não merece desprezo o avanço das nor- as tentativas de separar as esferas: público, privado,
mas sociais no século XX como consensos políticos cultural, religioso, político e econômico.
fruto de traumas que marcaram a humanidade, A inclusão da luta, sem trégua, por igualdade
sobretudo em face da infiltração da barbárie no jurídica é uma das ferramentas na batalha por igualdade
pensamento moderno com a racionalização dos social. A exigência pela criação de normas em prol dos
processos de extermínio, Auschwitz (1941) e o direitos humanos; pela manutenção das vigentes; pela
uso da bomba atômica (1945). recuperação das suprimidas; e por sua extensão para
O instituto da ‘cláusula pétrea’ foi criado na todos pode, paulatinamente, minimizar a desigualdade.
Alemanha, após a vitória sob o Nazismo na Segunda Em meio a essas diversas possibilidades de lu-
Guerra (1939/45), exatamente para evitar alterações tas, identificamos como uma importante estratégia
constitucionais casuísticas. O cenário originou a de resistência, contra o retrocesso, a união das pautas
Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, dos grupos oprimidos, respeitadas as especificidades
embasada em uma filosofia liberal ocidental, cuja raiz secularmente ignoradas ou violentamente reprimidas,
está fincada no direito natural e no status de cidadania dos povos originários, imigrantes, sem teto, sem ter-
como núcleo fundamental nos limites éticos mínimos ra, afrodescendentes, mulheres, LGBTQIA+ e outras
para a humanidade. sensibilidades sociais na defesa da democracia e, conse-
É fundamental fortalecer os ganhos trazidos quentemente, na luta e resistência contra os retrocessos.
por todos esses avanços, entretanto, é importante Revela-se uma iniciativa de grande potencial
destacar que não são suficientes. Nessa linha de ra- fazer uso da tecnologia da informação em redes,
ciocínio, é possível pensarmos como se deu com o espaço no qual os movimentos de resistência ganham
direito ao trabalho alçado ao status constitucional, corpo de resposta global ao capitalismo, unindo
México, 1917; Weimar, 1919; URSS, Constituciona- pautas específicas para o combate estrutural às ins-
lismo Socialista, 1936; o pós-guerra com a derrota tituições que o mantêm.
dos nazifascistas, Itália 1947; e Brasil, 1988. O regramento jurídico internacional é valoroso
Perdidos os freios impostos pela Guerra Fria recurso ao estabelecer patamares mínimos civilizatórios.
e a ameaça da proposta socialista de um mundo A Convenção Americana de Direitos Humanos, no Pacto
coletivizado, o modelo econômico nessa nova fase, de San José da Costa Rica, 1969, veda o retrocesso social
a partir do século XX, desdenha da democracia, em e essa violação é passível de denúncia à Comissão e à
um contínuo processo de acumulação, cada vez Corte Interamericanas de Direitos Humanos.
mais intenso e concentrado. Dentro da morfologia É importante relembrar que o Brasil, além de
do retrocesso e desfazimento dos avanços civiliza- ratificar o Pacto de São José da Costa Rica, elevou o não
tórios, abandona o Welfare State, transformando retrocesso social a patamar constitucional, nos termos
as constituições ( Weimar/México/Brasil-1988) em do art. 7º10: “São direitos dos trabalhadores urbanos 10. BRASIL. [Constituição
(1988)]. Constituição da
obstáculos e, assim, destruindo todo o esboço de e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Presidência da
Estado que as originou. condição social”, Título II, Dos Direitos e Garantias República, 1988.
48

Fundamentais, Capítulo II, Dos Direitos Sociais. Ou Podemos concluir que a luta política pelo
seja, não se concebe outros direitos se não visarem fim de toda a desigualdade não deve desprezar
à melhoria das condições sociais. a conexão entre o aparato jurídico e o Estado
Outro registro indispensável consiste na de Bem-Estar alcançados como indispensáveis à
Convenção de Viena, o art. 27 combinado com dignidade humana.
o 46.1, que protege as normas internacionais das A Reforma Trabalhista; a extinção do Ministério
ameaças internas, ao atestar que um Estado não do Trabalho; e o Ministério da Saúde, sem ministro
pode invocar o direito nacional para o descum- e com os cargos técnicos preenchidos por militares,
primento dos Tratados Internacionais, a menos em plena pandemia, são fatos que dispensam palavras
que se constitua em norma fundamental. Tratado para o Brasil atual, violador dos pactos civilizatórios.
ratificado pelo Brasil em 25 de outubro de 2009, O novo coronavírus bateu às portas da humani-
como esclarece Marcelo Ribeiro Uchôa, em Curso dade e arrancou do Presidente Macron uma declaração
11. UCHÔA, M. R. Curso
Crítico de Direito Internacional
Crítico de Direito Internacional Público11. surpreendente para um representante da centro-di-
Público. Rio de Janeiro: Lumen O que queremos demonstrar é que os Trata- reita e muito óbvia para nós, defensores dos direitos
Juris, 2019.
dos Internacionais ratificados pelo Brasil vedam sociais: “O que essa pandemia revelou é que a saúde
o retrocesso social, portanto, o País poderá se gratuita, nosso estado de bem-estar social, não são
ver diante da Corte Interamericanas de Direitos custos ou encargos, mas bens preciosos […] e que
Humanos pelas políticas e normas de retrocesso esse tipo de bens e serviços deve estar fora das leis
praticadas no País a partir de 2016. do mercado”.

Trabalho remoto – o dia seguinte


Giselle Bondim Lopes Ribeiro
Maria Helena Barros de Oliveira

É inquestionável que em um momento de pandemia A primeira coisa que se percebe é que o traba-
de uma doença com alto grau de letalidade, como é o caso lho remoto invade a privacidade e a intimidade do
da Covid-19, obrigando ao isolamento social como forma trabalhador. Instala-se dentro de sua casa, transfor-
de reduzir o contágio e mortalidade, o trabalho remoto, mando em ambiente corporativo, o que seria um
executado na própria casa dos trabalhadores, está sendo local de descanso, convivência familiar e refúgio
um alento, permitindo que parte expressiva dos serviços do próprio labor. Computadores, tablets, blocos
públicos e da atividade econômica tenha continuidade. de papéis e canetas passam ter lugar cativo, junta-
Vendo os aspectos positivos, a possibilidade de mente com cadeiras giratórias e mesas de trabalho.
trabalhar em casa neste momento permite que os pais Em um canto da sala ou do quarto, instala-se uma
permaneçam com os filhos, que já não podem ir à escola, estação de trabalho. A internet dos filhos passa a
e que a atividade doméstica seja executada pelos próprios ser desviada para o trabalho ou implementa-se um
membros da família, facilitando, ademais, que os empre- plano mais caro e potente de internet. O espaço de
gados domésticos sejam dispensados de trabalhar, sem conversas, risos e brincadeiras passa a ser cerceado
prejuízo de salário. Entretanto, virá o dia seguinte, quando pelo silêncio necessário à concentração. As imagens
a vida voltar ao normal; e, aqui e ali, já surgem matérias dos lares, muitas vezes simples ou desorganizados,
jornalísticas no sentido de que, após a pandemia, muitas invade as reuniões de trabalho, volta e meia incluindo
empresas implementarão de forma definitiva o trabalho movimentos de outros membros da família que não
remoto ou em domicílio, transferindo seus escritórios desejariam ser expostos. Essa invasão da privacida-
para as casas de seus empregados – e, nessa toada, já de e da intimidade do trabalhador viola o direito
anunciam a devolução de imóveis locados. Contudo, fundamental de inviolabilidade assegurado pela
1. BRASIL. [Constituição o trabalho remoto não deve ser a regra, mas sempre a Constituição da República a todos os cidadãos (art.
(1988)]. Constituição da
República Federativa do Brasil. exceção, pois os efeitos prejudiciais serão maiores do 5º, X)1. A questão do consentimento é delicada,
Brasília, DF: Presidência da
República, 1988.
que os benefícios, tanto para os trabalhadores como quando se sabe que o trabalhador é economicamente
para a sociedade. subordinado ao empregador, submetendo-se às suas
49

demandas para manter a fonte de subsistência. Essa branças excessivas ao empregado, com o envio de
decisão do trabalho remoto não está nas mãos do e-mails e de mensagens por meio de celular, além
trabalhador. da conexão remota por computadores em rede. Não
Isso, para o trabalhador pode até parecer, em será surpresa se, com o trabalho remoto, as empresas
um primeiro momento, que será bom. Afinal, dormir adotem formas de remuneração ligadas à produtivida-
uma ou duas horas a mais, não enfrentar o trânsito de, buscando mais e mais rendimento do empregado,
caótico das grandes cidades, perdendo horas no tra- seja a que custo for.
jeto casa-trabalho-casa são vantagens consideráveis. Dessa forma, se cada um trabalhará na hora que
Também é tentadora, para os pais, a maior convivência for mais conveniente, é razoável presumir que aqueles
com os filhos; e, por fim, as despesas com roupas e que se encontram em posição de comando emitam
calçados serão sensivelmente reduzidas. Entretanto, ordens e demandem atividades a qualquer momento,
indaga-se: existirá uma maior convivência com os invadindo até mesmo o horário destinado ao sono.
filhos, mesmo com a obrigatoriedade da jornada de Por mais que se ressalte a flexibilidade da jornada de
trabalho a ser cumprida? Todavia, as vantagens para trabalho, contextos de necessidade de funcionamento
o trabalhador cessam aí e não compensam a perda no horário comercial não deixarão de existir, sendo,
desse direito fundamental. por isso, esse contexto um complicador e até impe-
As casas não são ambientes adequados em ter- ditivo dessa flexibilidade desejada.
mos de saúde de trabalho, incrementando os riscos, A consequência disso é que o trabalhador, no
sobretudo os ergonômicos. Há normas de seguran- afã de manter o emprego ou aumentar os ganhos,
ça do trabalho relativas ao mobiliário, iluminação e contribuirá para o aumento de sua própria jornada,
temperatura que devem ser observadas e sobre as desrespeitando-se o limite máximo de 8 horas de tra-
quais o empregador não terá controle, aumentando as balho ou 44 semanais. Assim, se um indivíduo trabalha
chances de adoecimento dos trabalhadores. Atente-se mais horas que o permitido, isso, naturalmente, torna
para a impossibilidade de fiscalização, já precária desnecessária a criação de novas vagas de emprego.
nas empresas pela falta de pessoal. Coloca-se aqui Sem deixar de considerar que a intensificação e a
o problema da responsabilidade, sobre as possíveis extensão da jornada de trabalho geram adoecimento.
consequências na Saúde do Trabalhador a partir do A ausência de um local comum de trabalho tam-
processo e organização do trabalho, sair do âmbito do bém aniquilará os vínculos proporcionados pelo con-
empregador e recair para o trabalhador. O processo vívio pessoal, fazendo com que os trabalhadores não
deixa de ser coletivo e assume o caráter individual, possuam espírito de classe o que, certamente, atende à
com todas as consequências e significados que essa intenção capitalista de aniquilamento das organizações
individualidade traz em si. sindicais, mas que, sob outra ótica, também impede a
Haverá uma inevitável mistura das atividades da formação de equipes colaborativas e aderidas à empresa.
casa, cuidados de filhos e idosos com o trabalho, dimi- Trabalhadores que não se relacionam não transmitem
nuindo a concentração na atividade laborativa, possibi- conhecimento, não cooperam, apenas concorrem entre
litando maior número de erros e menor produtividade. si; e isso tornará a empresa um meio propício ao assédio
Essa junção das atividades também importará moral, com todas suas consequências.
em maior cansaço dos trabalhadores. Nesse aspecto,

Foto: Rita Loureiro/ALM Apoio à Cultura


as mulheres continuarão sendo as mais sacrificadas,
visto que, usualmente, já desempenham a maior parte
das tarefas domésticas, cumprindo o que chamamos
de ‘dupla jornada’.
O risco de doenças e acidentes de trabalho será
incrementado, onerando a previdência social. Com
essa mescla de atividades domésticas, existirá uma
natural dificuldade em identificar o que seria decor-
rente do trabalho ou da atividade doméstica.
O horário flexível, que esse tipo de arranjo pa-
rece permitir, também não se mostra favorável ao
trabalhador, pois, na ausência de normas rígidas que
impeçam a violação do horário máximo de trabalho
contratado, a tendência é que sejam efetuadas co-
50

A ausência de formação de vínculos entre colegas trabalhador possui de desconectar-se do trabalho,


de trabalho também pode ocasionar sofrimento mental de relaxar e não ser demandado fora de seu horário
aos trabalhadores cuja solidão pessoal é preenchida contratual. O trabalho remoto, por si só, já viola tal
pelo dia de trabalho e consequente convívio social. direito, pois o empregador passa a ser onipresente
O empregador, por seu turno, não pode acre- na vida do empregado.
ditar que deixará de arcar com o custo do ambiente Espera-se que possamos caminhar, de forma
de trabalho. Será ele que deverá custear não só os democrática, solidária e inclusiva para ações gover-
equipamentos necessários à atividade laborativa, como namentais que privilegiem o humano, iniciando por
também sua manutenção e troca periódica, além de cidades mais amigáveis, em que os locais de trabalho
toda a infraestrutura como energia e internet. Embora sejam próximos dos locais de residência e que os
a legislação atual seja vaga sobre o tema, é certo que meios de transporte sejam menos poluentes e mais
não autoriza a transferência do custo da atividade eficientes. Em síntese, o trabalho remoto não pode
empresarial para o empregado. Ademais, é próprio ser uma forma sofisticada e encoberta de aumento
do sistema capitalista que as despesas da atividade da exploração do trabalho humano.
empresarial sejam integralmente arcadas por aqueles Já as empresas devem estabelecer horários
que auferem o lucro. Essa soma dos custos individuais flexíveis que atendam às demandas e necessidades
acabará por ser mais onerosa do que a manutenção dos empregados e os retire do desconforto dos ho-
de um ambiente coletivo de trabalho. rários de tráfego intenso. É razoável, outrossim, o
Acrescente-se que a desmobilização de escritó- trabalho remoto facultativo, mas como exceção e
rios e empresas, com transferência para trabalho em apenas em parte dos dias da semana, impedindo
domicílio, importará não só em desalugar imóveis, que o empregado seja alijado do convívio com os
com a consequente perda dos rendimentos desse colegas. Também é desejável que o trabalhador tenha
capital (e tributação), como também no desempre- alguma margem de manobra para inserir atividades
go de inúmeros trabalhadores de baixa qualificação pessoais no que seria a jornada de trabalho quando
profissional, entre os quais serventes de limpeza, cumprida no ambiente empresarial.
porteiros, recepcionistas e seguranças, aumentando O que não se mostra desejável e coerente com
a massa de desempregados com um efeito dominó uma sociedade preocupada com a dignidade do
imprevisível. Acresçam-se a isso as atividades periféri- ser humano é que os trabalhadores, justamente os
cas que dependem dessa movimentação de pessoas, trabalhadores, acabem por ser privados do direito
como transporte urbano, restaurantes e lanchonetes. fundamental à privacidade e à intimidade, porque
Por fim, como extensão do direito à intimida- os governantes não conseguem administrar de forma
de, não se pode deixar de respeitar o direito que o inteligente e humana os espaços urbanos.

Trabalho pós-moderno
Fernanda Stipp
André Gustavo Bittencourt Villela
Rogério Lucas Martins
Maria Helena Barros de Oliveira

O desenvolvimento do ser humano enquan- se transformou profundamente e, com isso, a tríade


to espécie sempre dependeu da contenção de seus sobre a qual o desenvolvimento humano se funda
impulsos primitivos para que, de modo organizado, sofre enorme ruptura.
1. FOSSIER, R. O trabalho na pudesse prosperar, de acordo com Robert Fossier1. O mundo atual, denominado Vica, acrônimo
Idade média. Petrópolis: Vozes,
2018. Justiça, segurança e solidariedade formam a tríade criado no ambiente militar na década de 1990
sobre a qual o homem chegou à idade contemporânea. ( Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo), assenta-se
É inegável que, desde os anos 1990, muita coisa na rapidez com que as informações se dissipam,
se alterou, e não se pode negar que, provavelmente, fazendo com que o que ontem nos servia, hoje não
nossos netos chamarão nossa atualidade de idade se aplique mais. Assim, segurança e justiça passam
pós-contemporânea, em que a forma de comunicação a ser questionadas em seus próprios conceitos.
51

Foto: Socialismo Criativo


O que parece justo para uns é injusto aos olhos dos como a versão dominante do capitalismo e este se foi
vizinhos. Ética e verdade se prestam muitas vezes para sujeitando mais e mais à lógica do setor financeiro –, o
fundamentar julgamentos absurdos. Além disso, do alto mundo tem vivido em permanente estado de crise”. Se
de nossas razões, rapidamente, lemos a notícia nas redes nos últimos 40 anos tudo se transformou, é claro que
sociais, julgamos e repassamos, tudo em menos de cinco isso também iria ocorrer nas relações de trabalho. Se
segundos. Somos muito bons nisso; e nem temos dúvidas antes tínhamos com nitidez as figuras dos empregados
quanto ao que fazemos. O exercício do questionamento é e empregadores bem delineadas, hoje a ideia que se
muito lento para ser implementado e, consequentemente, vende é a da parceria, do empreendedorismo e a da
muito custoso. Portanto, implementamos o sistema penal liberdade de escolha.
geral mais ágil da humanidade e, também, o mais cruel. Agora o trabalhador é parceiro do detentor do
Agindo com tamanha rapidez, segurança é coisa capital. Não existe nas mídias e nos anúncios de vagas
do passado. Praticamente ninguém mais tem. Sentimos de trabalho àquela ideia antiquada da subordinação.
medo ao sairmos na rua, medo de ficarmos doentes, Ora, isso é passado. Assume a figura do trabalhador
medo da polícia, medo do pedinte, medo de quem uma nova nomenclatura, a de colaborador, sem que
vem em nossa direção, medo do que podem falar da isso tenha modificado o antigo e constante papel de
gente nas redes sociais. Medo! submissão ao empregador.
Por conseguinte, com tanto medo, a estabilidade O trabalhador pós-moderno assume o risco de
decorrente da segurança também anda em extinção. sua atividade. Paga a sua moto em 60 parcelas, custeia
Seja no emprego, no casamento ou no relacionamento a gasolina, não tem férias ou 13º salário, trabalha
com os filhos, a frase do Poetinha2 é mais do que atual para uma organização que muito provavelmente
‘Que seja eterno enquanto dure’3. usa um algoritmo para fiscalizar seu trabalho, e ele 2. Apelido dado por Tom Jobim
a Vinícius de Moraes.
Então, para garantir nosso desenvolvimento, da- sequer sabe para quem deve reclamar se suas horas
3. MORAES, V. Antologia
quela tríade, justiça, segurança e solidariedade, sobrou não forem devidamente contabilizadas. Entretanto, Poética. Rio de Janeiro: Vinícius
de Moraes, 1960. Disponível em:
apenas esta última para tentar salvar a nossa evolução, na verdade, embora ele se mate de trabalhar para https://digital.bbm.usp.br/bitstre-
sendo certo que sequer sabemos para onde estamos indo. tentar ter uma vida digna, ele pelo sistema da ‘melhor am/bbm/7026/1/45000008712_
Output.o.pdf. Acesso em: 14
O fato é que, se nas relações humanas comuns verdade’, trabalha o quanto quer e como quer, já jan. 2021.

a contenção dos impulsos primitivos do ser humano que é seu próprio patrão.
se faz necessária para o mínimo de harmonia, quando O homem já não é mais a medida de todas as
tratamos do mundo do trabalho sem essa contenção, coisas, como pensava Sócrates. As coisas, hoje, pare-
4. SANTOS, B. S. A Cruel
os interesses opostos ficam mais nítidos e a ‘melhor cem ser a medida do homem. Pedagogia do Vírus. Coim-
bra: Edições Almedina, 2020.
verdade’ passa a ser sempre a propagada pelo mais forte. Nessa toada, rumo ao liberalismo, o trabalhador Disponível em: https://ediscipli-
Como afirma Santos4 “desde a década de 1980 pós-moderno encontra um empoderamento midiáti- nas.usp.br/mod/resource/view.
php?id=3042154. Acesso em: 22
– à medida que o neoliberalismo se foi impondo co que não se enraíza na sua rotina. Como suposto jan. 2021.
52

chefe do seu próprio trabalho, não tem autonomia o pagamento dos dízimos. Condições de trabalho
deliberativa alguma. Encontra-se sozinho. e Saúde dos Trabalhadores não estavam na agenda
Já não existem sindicatos, foram ou estão sendo daqueles dias. Constata-se que essa realidade não
dissolvidos pela ideia do que seja categoria. Não exis- mudou, apenas se apresenta com outras vestimentas.
tem colegas de trabalho, mas concorrentes dispostos Contudo, aos vassalos, era garantida alguma
a ultrapassar as metas absurdas que andam tão em justiça, que poderia ser promovida tanto pelos se-
voga. A obrigatoriedade de superação de metas tem nhores feudais ou mesmo pelo pároco local. Já a se-
levando os trabalhadores à exaustão física e psíquica, gurança dos servos derivava do pertencimento destes
por mais das vezes. Não existe muitas vezes sequer ao feudo. Claro que estes se aproveitavam, como é
o local do trabalho, que passa a ser desempenhado da nossa natureza – não conter nossos impulsos, e
nos shoppings, lanchonetes, ruas e agora, mediante várias crueldades foram cometidas, como o direito da
festejos e com muita propaganda, dentro das casas, pernada (direito da primeira noite), penas de morte
por força da pandemia. aplicadas e mesmo de trabalhos forçados.
Não podemos nos enganar sustentando que No entanto, as tecnologias foram se desenvol-
a pandemia criou esta situação tão desigual. Claro vendo e, com a ida dos artesãos aos burgos, estes
que não. O mundo já tomava esse rumo. A diferença compreenderam que a união se faz necessária para a
é que estávamos indo para o abismo caminhando sobrevivência. Firmaram então as confrarias, situação
a passos largos, agora “vamos de Porsche a toda na qual os artesãos se fixavam todos na mesma rua,
velocidade”, como disse, em 2020, a professora onde um podia olhar pelo outro. Com essa ideia de
Lúcia Helena Galvão. fraternidade, os artesãos sobreviveram, trocavam
O mundo mudou, mas o homem, para garantir entre si ferramentas, garantiam um preço mínimo
sua sobrevivência, precisa se apegar no que restou de seus produtos, ajudando-se e protegendo-se mu-
da tríade – solidariedade. Pode parecer piegas, mas, tuamente. Surgiu ali, talvez, a primeira previdência
a essa altura, só o amor, pode nos salvar. social privada.
Estamos em situação análoga àquela em que Um brinde às confrarias! Porque elas nos dão
vivemos na idade média. Ali, tínhamos a vassalagem, esperanças. Não na tentativa de tentar impedir o ine-
situação na qual ao suserano interessava apenas e vitável, mas acreditando que o amor restabeleça o
tão somente o recolhimento dos tributos, e ao clero, sentimento de justiça e segurança.

Justiça do Trabalho: para quê?


Gustavo Tadeu Alkmim

Na entrevista para uma vaga na transportadora, um carro, imobilizado e machucado, manda um ‘zap’
diz o britânico Ricky: “quero trabalhar sozinho, sem para a empresa. A resposta é seca: “como está o pe-
chefe, dono do meu destino”. O preposto retruca: dido, ainda em condições de ser entregue?”. Mesmo
“Aqui, você não trabalha para a gente; trabalha Ernesto avisando que não podia se mover, a empresa
com a gente”. Ricky irá se endividar para pagar a van, exige: “é parte do procedimento, você precisa mandar
seu instrumento de trabalho. O seu expediente será uma foto para cancelarmos o pedido”.
de 14 horas por dia, 6 vezes por semana. O inevitá- As duas histórias poderiam acabar aí. Retratam
vel cansaço e o afastamento familiar gerarão crises o nosso tempo: a ganância, o deboche, o ser humano
pessoais, frustação e a sensação de injustiça. Após valendo menos que mercadoria. Quadro constran-
ser assaltado, aguardar horas no hospital público, gedor, mas que se tornou banal. Repete-se desde o
com recomendação médica de repouso, a transpor- nascedouro do capitalismo – sistema que traz, no seu
tadora, indiferente ao drama de Ricky, não aceitará a âmago, a sanha pelo lucro e a marca da desigualdade.
justificativa, descontará os dias, e ele ainda vai ficar Houve um tempo, no século passado, em que limites
devendo à empresa. foram ultrapassados – e o trabalhador reagiu: recla-
Ernesto é um trabalhador argentino. Tem 63 mou, organizou-se, posicionou-se, quebrou máquinas
anos. Entrega pizza usando sua bike. Atropelado por e empresas, derrubou governos, revolucionou, recuou
53

e avançou, fez greves, conciliou. Identificou os seus A par da obviedade da saída, porém, há quem
companheiros e camaradas. Unidos, sofrendo na carne não a veja. Ecoa-se, não de hoje, a reprodução de um
a exploração, identificaram seus exploradores. Viram- discurso: i) que relega o trabalho formal a coisa menor,
-se numa luta de classes. O sistema cedeu: legislou. ultrapassada, incompatível com os tempos atuais, e
Com isso, abrandou a luta. Contudo, o tempo traz que ii) garante ao trabalhador que ele é partícipe do
consigo a dinâmica dos fatos, mudando muita coisa sucesso empresarial. O discurso ganha ressonância por
de lugar; e o sistema tem uma inesgotável capacidade vários meios e modos (você é livre! é capaz! pode ser
de se metamorfosear. Passou, então, a apropriar-se de um vencedor!), e afasta, cada vez mais, o trabalhador
símbolos de outrora. A ansiada liberdade de ‘ser’ e da CLT. Vimos isso no bojo da malfadada Reforma
‘estar’ transformou-se na liberdade do indivíduo ser Trabalhista, assim como na legislação esparsa, que,
‘dono do seu próprio destino’, único responsável não raro, tem retirado de certas categorias o manto
por seu sucesso – e pelo seu fracasso. A luta mudou celetista. Grijalbo Coutinho1 cita alguns exemplos 1. COUTINHO G. F. O que
vai restar? Jornal GGN, 2020.
de lugar: passou a ser do sujeito com ele mesmo. Na contemplados com a pretensa imunidade trabalhista: Disponível em: https://jornalggn.
com.br/artigos/o-que-vai-restar-
vida. No trabalho. transportadores de cargas na sua relação com os mo- -por-grijalbo-fernandes-coutinho/.
Chegamos à segunda parte das histórias. Mesmo toristas (Lei nº 11.442/2007); proprietários dos salões Acesso em: 17 maio 2020.

com a autoestima em frangalhos, alquebrado e convales- de beleza e similares em relação de trabalho mantida
cente, Ricky sai porta afora, desobedecendo às ordens com cabeleireiros, manicures e outros profissionais
médicas e aos apelos da mulher e filhos, e parte com a do mesmo ramo (Lei nº 13.352/2016); tomadores de
sua van para mais um dia de trabalho. Quanto a Ernesto, serviços domésticos e os trabalhadores denominados
diante da repercussão do episódio, deu declarações diaristas que laboram até duas vezes por semana na
defendendo a empresa: “a dúvida é pertinente; mui- mesma residência (Lei Complementar nº 150/ 2015).
tos entregadores mentem”. Ambos reproduzem uma Acresçam-se hipóteses mais antigas: as cooperativas
narrativa de que é deles a responsabilidade pelo ‘risco de trabalho (Lei nº 8.949/94), as imobiliárias e incor-
do negócio’. Supõem-se parceiros da empresa. Nesta poradoras e seus corretores (Lei nº 6.530/78), além
condição, buscam alcançar metas inalcançáveis. Isolados dos representantes comerciais (Lei nº 4.886/65). Isso
não conseguem nomear o conflito, não identificam o sem falar na ‘pejotização’.
explorador – e entoam o mantra: são empreendedores, Há, ainda, o Projeto de Lei (PL) nº 3.748/2020,
colaboradores, não trabalham ‘para’, trabalham ‘com’; criando figura híbrida para os trabalhadores de apli-
não são subordinados, são parasubordinados. cativo, que o Rodrigo Carelli chama de “pegadinha”:
Aos dois personagens, tantos outros poderiam “o tempo em que a pessoa está ligada no aplicativo,
se unir. De motoristas por aplicativo a teletrabalha- aguardando, não é considerado. O PL, na verdade,
dores. Possuem traço comum: perderam o direito à mantém o sistema, apesar de conceder parcos direitos”2. 2. BARROS, C. J. Nem CLT,
nem autônomo: o projeto de lei
desconexão. Suas vidas estão à disposição do trabalho. São tendências que reforçam o discurso de que que quer ‘regrar’ a relação de
aplicativos com trabalhadores.
Vivem uma realidade que remete aos primórdios da o trabalhador não é empregado; é parceiro. A qua- BBC News Brasil, 2020.
Revolução Industrial, mas que é atual. rentena da Covid-19 alargou este quadro. Além dos Disponível em: https://www.bbc.
com/portuguese/geral-53411585.
Há quem diga que estamos diante de ‘novas’ entregadores delivery, tidos como ‘essenciais’, trouxe Acesso em: 13 jun. 2020.

relações de trabalho. No entanto, ao tirarmos o in- à cena o ‘teletrabalho’ – um labor que, feito em casa
vólucro da novidade, vimos mais do mesmo: a velha de forma virtual, ocupa o dia todo, avança madrugadas
exploração do homem pelo homem. Trazem em si e finais de semana, divide-se entre afazeres familiares
o elemento ‘subordinação’ – ainda que com outra e domésticos. O home office é, sem dúvida, um dos
roupagem. Ainda que metamorfoseado. Não é preci- grandes efeitos da pandemia. Envolve trabalhadores
so forçar a vista para verificar a presença dos velhos que, arcando com os custos materiais e emocionais,
pratos da balança ‘capital x trabalho’ grotescamente são supostos donos de seus horários – só que nunca
desequilibrados. Que se dê ao imbróglio, então, a se desconectam. Tidos como meros prestadores de
antiga saída estatal: a lei protetiva. E na nossa terra serviços, são, na expressão de Ricardo Antunes3, “es- 3. ANTUNES, R. Como se
trama a uberização total. Diário
Pindorama, esta lei já existe, não precisa ser inventada: cravos digitais”, filão descoberto pelos “laboratórios do do Centro do Mundo, 2020.
Disponível em: https://www.
a Consolidação das Leis Trabalhista (CLT). Por mais capital”, que pode ser assim resumido: exploração e diariodocentrodomundo.com.br/
que a tenham castigado, ela continua movida pelo espoliação acentuadas e nenhum direito do trabalho. como-se-trama-a-uberizacao-to-
tal-por-ricardo-antunes/. Acesso
princípio tutelar ao trabalhador, no que se inclui em: 13 jul. 2020.
Se a desmedida empresarial continuar ditando o tom,
todo e qualquer trabalho subordinado. Igualmente, o teremos mais informalização com informatização, ‘jus-
instrumento para fazer valer a lei também, há muito, tificada’ pela necessidade de recuperação da economia
existe: a Justiça do Trabalho. pós-Covid-19. E sabemos que a existência de uma monu-
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mental força sobrante de trabalho favorece sobremaneira provocar reação, como já aconteceu no passado. Além
essa tendência destrutiva do capital pós-pandêmico, disso, novas formas de aglutinação podem surgir na
[frisa Antunes]3.
busca por reivindicações coletivas (v. breque dos
O trabalho no mundo digital exige produtivi- entregadores). Todavia, a pauta neoliberal avança
dade, metas, números; e conduz à invisibilidade e incontinente. O que resta, então, à Justiça do Trabalho?
ao isolamento. A ação e a atuação coletiva não fazem Resta cumprir o seu ideal: dizer o Direito do Trabalho
parte do seu universo de possibilidades. O trabalhador na sua essência, ressaltando o seu princípio mais caro,
não vê o outro, seu colega; vive para si, por si e para o protecionista. A prática judicial que afirma que no
o trabalho. Sem as garantias protetivas do direito do trabalho subordinado não há parceria, há emprego,
trabalho. Sem garantia alguma. Culpa-se pelo fracasso. pode embaçar o discurso neoliberal – e a afirmação
São primos-irmãos dos motoristas e entregadores de desta prática é exclusiva do juiz do trabalho. Cabe a
plataforma digital. ele dizer que o rei está nu.
A Justiça do Trabalho precisa responder a estes Nos passos do pai, Klaus Mann escreveu um
trabalhadores – dizer-lhes da subordinação; esclarecer- grande livro, ‘Mefisto’6, em que narra a história de
-lhes que, se há lucro, há patrão, ainda que em forma de Hendrik, um ator obcecado pela fama. Para tanto,
algoritmo; lembrar-lhes que têm, sim, direitos. Miremos renuncia aos seus valores e princípios, e tolera o nazis-
nos exemplos dos nossos personagens. Ricky é fruto da mo ascendente na Alemanha hitlerista, indiferente às
4. VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI. ficção (filme ‘Você não estava aqui’, do Ken Loach)4, e perseguições a seus colegas de palco. Ali, ‘tolerância’
Direção: Ken Loach. Reino Uni-
do, Bélgica, França: BBC Films, Ernesto é filho da realidade – ambos são simbólicos. e ‘indiferença’ traduziam um pacto com o diabo. No
2020. Plataforma Streaming,
1h 40min.
Na entrevista para conseguir a vaga, Ricky debocha da final, pressionado, censurado e intimidado (mesmo
5. INSTITUTO BRASILEIRO DE
condição de empregado formal (“nem pensar”, diz ele); tolhida, a arte é resistência), Hendrik6 pronuncia a
GEOGRAFIA E ESTATISTICA. Ernesto preocupa-se mais com a saúde da empresa do frase derradeira: “O que querem de mim? Por que
Disponível em: https://www.
ibge.gov.br/. Acesso em: 02 que com a sua própria. Segundo dados do Instituto Bra- me perseguem? Por que são tão duros? Afinal, sou
dez. 2020.
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE)5, em março de apenas um ator!”.
6. MANN, K. Mefisto. São Pau-
lo: Estação Liberdade, 2000. 2020, eram 36,8 milhões de rickys e ernestos brasileiros O juiz do trabalho contemporâneo não tem o
(informais e sem direitos do trabalho). direito de ficar ‘indiferente’ à pretensa destruição do
O desemprego alcança números inconcebíveis Direito do Trabalho; não pode ‘tolerar’ o retrocesso
(quase 13 milhões), realçando com cores fortes a como se nada tivesse a ver com isso. Não tem este
desigualdade social – tão aceita e tão tolerada no direito. Precisa, sim, cumprir o ideal da Justiça do
nosso país. O discurso neoliberal está aí, no dia a Trabalho. Ou terminará como Hendrik: por que me
dia, pronto, acabado e difundido. O contraponto se perseguem e querem acabar comigo? Sou apenas um
faz necessário. Sim, a exploração exacerbada pode juiz do trabalho!

Diagnosticar é preciso: notas sobre saúde e


agrotóxicos na lavoura do fumo
José Roberto Pereira Novaes

O Paraná é o terceiro estado que mais utiliza As entrevistas aqui utilizadas foram realizadas
agrotóxico no Brasil. Amostras de água – superficial por uma equipe de filmagem que, entre 2018 e
e profunda – constatam a presença de agrotóxicos 2019, captava imagens na região para um documen-
proibidos em vários países do mundo. Se a população tário – ‘O Diagnóstico’. Dividido em três seções
está exposta, o trabalhador do fumo está muito mais. (A contaminação; A intoxicação; O diagnóstico),
É preciso ampliar o debate sobre o agrotóxico a partir de trabalhadores, médicos e advogados,
na lavoura de fumo e suas consequências no adoeci- demonstram-se a exposição a diferentes tipos de
mento dos trabalhadores, particularmente na região agrotóxicos e o nexo causal do adoecimento dos
do Paraná, com 4 dos 15 maiores municípios produ- trabalhadores e da população, para ser utilizado
tores do Brasil: São João do Triunfo, Prudentópolis, em ações educativas sobre os problemas da into-
Palmeira e Rio Azul. xicação crônica na região.
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A contaminação
A gravidade da situação se apresentou logo
na chegada da equipe de filmagem na região. Um
trabalhador limpava o mato da calçada e da rua da
cidade com herbicida – glifosato (Roundup) – veneno
proibido em vários países do mundo e liberado no
Brasil. O cheiro do veneno contaminava o ar, mas não
provocava incômodo entre transeuntes e moradores.
O que pensávamos ser um fato isolado, era corriqueiro
em outros municípios em que realizamos filmagens.
Esborrifar veneno para manter a cidade limpa
era sinal de modernidade, de progresso. O veneno
gradativamente substituíra a enxada. As desvanta-
gens dessa troca não eram (nem são) percebidas nas
cidades, mesmo diante de adoecimentos estranhos.
Na área rural, cenas se repetiram na lavoura do
fumo. Imagens e narrativas sobre a produção do fumo, [...] misture tudo isso num copo d’água e tome uma vez,
volume e diferentes tipos de agrotóxicos utilizados é uma coisa, agora tome banho, cozinhe, beba essa água
durante anos a fio. O que vai acontecer? Índice alto de
confirmam que ali o veneno substituiu as capinas, re- câncer é o que nós temos aqui. ... vai ter um alto índice
duziu o tempo de trabalho e passou a ser utilizado na de suicídio ... índice alto de tarja preta, um monte de
limpeza do mato do quintal e do jardim da moradia. gente tomando remédio para depressão. Hoje as pessoas
Para cuidar da ‘saúde da planta’, aciona-se um arsenal estão um pouco assustadas com essa realidade. Isso se
de herbicidas, fungicidas, bactericidas, inseticidas e deve ao trabalho que foi feito pelas ONGs, promotorias
outros, em grande quantidade. Os nomes passam a fazer de meio ambiente, do trabalho, que juntos estão vendo a
gravidade desse problema então dando visibilidade a ele1. 1. O DIAGNÓSTICO. Direção:
parte da linguagem cotidiana dos produtores: Confidor, UFRJ Direção: Beto Novaes.
Rovral, Infinito, Gamite, Roundup, Prime-Plus, Supla etc. Na produção de fumo, a situação se agrava pelo Rio de Janeiro: UFRJ, 2020.
Youtube, 45min.
Os produtores expostos à contaminação reclamavam volume aplicado, número de aplicações, falta de trei-
da qualidade dos Equipamentos de Proteção Individual namento, falta de informações, vulnerabilidade das
(EPI) – inadequação e retenção de calor. No filme, Lídia famílias no campo. Margaret Carvalho assinala: “[...]
do Prado afirma: “depois de uma pulverização a gente uma bomba relógio que já explodiu. A gente só está
dizia para o instrutor que o veneno passava, os pés ficavam tornando isso visível, mas isso já está acontecendo
encharcados, com forte cheiro de agrotóxico. O instrutor no campo e o fato de já estar respingando aqui nas
dizia que era suor. A gente continuava, não podia parar”1. cidades já mostra isso”1.
Máscaras impróprias contra poeira são, muitas
vezes, utilizadas. A ausência de proteção é assinalada A intoxicação
por pequeno produtor de fumo: Pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos em
Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná
É muito veneno usado na lavoura. Não tem dúvida que a
(Nesc/UFPR)2, em Rio Azul, revela alto índice de 2. MURAKAMI, Y., et al. Intoxi-
maioria está contaminada por veneno. Se você for fazer cação crônica por agrotóxicos
um exame, nós que lidamos com o veneno temos um contaminação por agrotóxico nos trabalhadores do em fumicultores. Saúde debate.

alto grau de contaminação, porque lidamos direto com fumo, que procuram hospitais da região com vômitos, 2017, v. 41, n. 113, p. 563-576.

o veneno. A maioria tem muita dor de cabeça, tontura, diarreia, dores de cabeça e abdominais evidenciando
vômito, doenças mais graves, câncer, que está matando a ‘intoxicação aguda por agrotóxico’. É fácil o diag-
mesmo. Agora, nesses dias morreu o meu primo e várias nóstico: os sinais e sintomas já são evidentes para
pessoas aqui no município morreram de câncer1.
os agentes de saúde. Episódios similares se repetem
A contaminação se espalha e atinge pessoas, durante e após a aplicação de agrotóxicos na lavoura.
solo, ar e a água que abastece as cidades. Pesquisas As crises brandas, dispensado o hospital, resolvem-
realizadas pela ONG Os Guardiões da Natureza, em -se com medicação e repouso, pois viraram rotina,
Prudentópolis, indicam contaminação da água por deixaram de gerar indignação e foram naturalizadas
agrotóxicos, além dos padrões legais nacionais, já como parte do modo de vida da população da região.
muito aquém dos de outros países. As consequências A dificuldade de diagnóstico aparece quando
se manifestam na saúde pública. Vânia dos Santos, a intoxicação é consequência de exposição maciça
advogada, esclarece: por longo período de exposição (10, 15, 20 anos)
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aos diferentes agrotóxicos. Quantidade e continuidade dades de maior produção de fumo no Brasil, nasceu
dificultam a compreensão do médico. O levantamento no campo e cresceu trabalhando na lavoura de fumo.
de hipóteses sobre as causas dos sintomas exige acesso Seus pais não tinham mão de obra suficiente. Os filhos
a informações e capacitação médica, raramente dispo- iam pequenos para o trabalho. A empresa compradora
níveis na rede de saúde. A pesquisa realizada pela UFPR do fumo contratava uma pessoa da família, mas toda
levantou hipóteses e comprovou que essas doenças a família tinha que trabalhar. O pai morreu quando
podem ser em decorrência da exposição ao agrotóxico, Lídia tinha 9 anos. Deixou a escola e o sonho de ser
mesmo que em doses pequenas, ao longo do tempo. professora para ajudar a mãe a criar os irmãos tra-
Assim, a ‘intoxicação crônica’ por agrotóxico tornou-se balhando na lavoura de fumo. Desde criança, lidou
o gatilho, um ‘nexo causal’, de adoecimentos. com agrotóxico. Não tinha ideia de que poderia fazer
Na lavoura do fumo, a exposição ao herbicida mal. Só sabia que matava quando ingerido, mas não
organofosforado é comprovada cientificamente como sabia que a aplicação poderia prejudicar a saúde das
responsável por problemas neurológicos, paralisias, pessoas. Desde criança, tinha sintomas de vômito,
perdas de força muscular, dor de cabeça, depressão e diarreia e dor de cabeça. A situação era mais grave
outros. Há pouco tempo, essa relação não era percebida, na época da colheita devido ao contato com a folha
identificada e notificada. Logo, não existiam estatísti- impregnada de agrotóxico e de nicotina. Algumas
cas oficiais na região fumageira do Paraná. Guilherme vezes, a mãe a levava ao posto de saúde municipal.
Albuquerque, médico, professor da UFPR, observa: Na adolescência, o quadro evoluiu para depressão:
A omissão e o ocultamento desse problema é gravíssi- [...] eu queria só morrer, não queria viver um dia mais.
mo [sic]. Pessoas adoecem, morrem, se suicidam, por Eu não tinha vontade nenhuma, nem de tomar banho,
causa da intoxicação crônica. Ficam surdas, ficam com nem de comer, nem de viver, de nada. Todo remédio
câncer, ficam tetraplégicas, por causa dessa intoxicação. que tomava dava reação, não funcionava. Foi um período
Isso não era sequer identificado, muito menos tratado, difícil, de muita culpa, por não poder ajudar minha mãe
controlado, prevenido1. na lavoura. Uma psicóloga foi essencial para minha
recuperação. Eu me revoltava quando eu não podia, eu
Elver Moronte, médico do trabalho, afirma que tentava e não conseguia, eu revoltava, eu tinha que reagir
os dados do Paraná mostram muitas pessoas expostas e e não conseguia. Depois de muita ajuda da psicóloga
poucas com o reconhecimento da intoxicação crônica1. saí da depressão, voltei a trabalhar1.
Pesquisas indicam que, para cada trabalhador
A sua vida financeira melhorou com o casamento
intoxicado, existem 50 não diagnosticados. Segun-
e com a chegada de duas filhas. Compraram estufas
do Vania dos Santos, um médico, em reunião com
elétricas para secagem do fumo. Entretanto, teve um
trabalhadores do fumo, assim explicou os efeitos do
ano em que o marido, na roça, teve uma convulsão
agrotóxico no organismo:
durante a aplicação do veneno. Foi internado e quase
O agrotóxico atua como se os nervos fossem fio de luz. morreu. O médico o proibiu de voltar a trabalhar e
Então, o que acontece? Os dois fios de luz se encontram de ter contato com agrotóxico. Ficou dois meses em
e não vai acontecer nada porque eles estão encapados. tratamento. Nessa época, Lídia assumiu o trabalho,
O agrotóxico vai desencapando esses nervos ... quando
e sua situação de saúde voltou a piorar:
... se desencapam ... dão choque. E nesse choque ...
provocam amortecimento nas pernas. Isso também vai Passei o Confidor Supra, a semana toda. Passei o veneno
passando imperceptível. Aí quando chega no estágio para os bichos e comecei a passar o Boral. Eu demorava
mais ... avançado ... vai entrar no sistema nervoso ... muito porque ele não podia tocar no fumo, tocou no
em depressão e ele vai tentar o suicídio por ingestão de fumo, ele queimava a folha. Daí meu marido falava, não
agrotóxico. Situação mais grave para quem trabalha no pode estragar a produção. Eu ia de um lado da carreira
fumo porque além desse problema da contaminação tem e voltava do outro, maior paciência. Eu pulverizei para
todo o estresse causado pelo cumprimento do contrato o bicho e quando fui fazer a última maquinada de Boral
assinado com a fumageira que coloca em risco a perda de eu passei mal. Daí eu comecei a ter dor na barriga. Eu
sua propriedade se a venda do fumo não for suficiente consegui sair de lá com o EPI e fui para casa. Tomei banho
para pagamento de suas dívidas1. e comecei a ficar roxa. Tinha muita dor de barriga e dor
de cabeça. Quando cheguei no postinho de atendimento
O diagnóstico minha pressão estava 22/14. Eu desmaiei. Me transferiram
A dificuldade diagnóstica de doenças decorrentes para o hospital, fiquei internada, voltei para casa com o
diagnóstico do médico dizendo ser estresse1.
de longo tempo de exposição e de uso de diferentes
tipos de agrotóxico pode ser observada nos caminhos Mesmo depois dessa crise, voltou a trabalhar.
percorridos por Lídia do Prado, protagonista do filme O quadro clínico se agravou com o aparecimento de
‘O Diagnóstico’. Moradora de Rio Azul, uma das ci- fraqueza muscular e caroços no pescoço. Os médicos
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suspeitaram de câncer. Encaminhada para exames no Ela também trouxe várias notas fiscais de compra de agro-
Hospital das Clínicas em Curitiba, apesar dos resultados tóxicos. Continham ali mais de vinte produtos diferentes,
com vários ingredientes ativos, produtos utilizados no
negativos, os médicos disseram que seu estado de saúde
cultivo do tabaco. A exposição dela era de muito tempo e
era preocupante. Depois, apareceram formigamento a muitos produtos. Ela estava muito aflita, porque tinha
nos braços, nas mãos e dores que corriam pelos ner- passado por muitos serviços de saúde e ninguém tinha
vos. As dores eram insuportáveis. Tomou morfina, e conseguido chegar num diagnóstico. Então, a partir do
várias vezes seu marido pegou-a tentando se matar. Foi relato dela, desses documentos que ela trouxe, eu fiz um
encaminhada novamente para o hospital em Curitiba, estudo sobre a toxicidade desses produtos que estavam
nas notas fiscais. E aí ela foi encaminhada para o Centro
agora para a neurologia. O quadro se complicou mais
Estadual de Saúde do Trabalhador1.
com o aparecimento de tremores nas mãos e fraqueza
nas pernas. Exames de rotina se repetiram. Os médicos A suspeita de intoxicação crônica por agrotó-
relacionaram a doença com o trabalho – exposição aos xico se fortaleceu, mas persistiam dificuldades em
agrotóxicos. Encaminharam-na para o setor de toxico- comprovar o nexo. Diante desse fato, os médicos
logia – Centro de Controle de Envenenamento – em convocaram uma junta médica com a Dra. Heloísa
busca de um diagnóstico. Nesse centro, foi atendida, Pacheco Ferreira, da UFRJ, referência nacional em
em 2009, por Yumie Murakami: toxicologia, que emitiu um laudo. Ei-lo.

A senhora LMP, 33 anos, residente em Rio Azul, Paraná, com histórico de exposição ocupacional e ambiental aos
agrotóxicos, organofosforado, herbicidas e outros, nas plantações de fumo há mais de 20 anos. A mesma vem sendo acom-
panhada pela equipe médica do centro estadual de saúde do trabalhador, CEST Paraná, a qual solicitou essa reavaliação.
Destaca-se, entre suas atividades laborais, realizadas no cultivo de fumo, o uso de pulverizador costal e manual e bomba
de dispersão. O que ocasiona uma exposição direta e intensa aos agrotóxicos. Tendo já apresentado sintomas e sinais de
síndrome colinestica aguda, quando foi atendida de emergência. Evoluindo com tonteira e dificuldades para andar e fra-
queza nos membros inferiores, apresenta perda da força muscular em membro inferior, impossibilitando-a de deambular,
estando restrita a cadeiras de rodas. Apresenta ainda tremores e fasciculação em membros superiores e membros inferiores.
A evolução clínica e neurológica da paciente afastada de outras hipóteses diagnósticas, evidencia uma intoxicação crônica
decorrente disposição ambiental e ocupacional aos agrotóxicos, de reconhecido potencial neurotóxico. Quadro este que
a impossibilita de realizar suas atividades laborais e do cotidiano. Portanto recomenda-se o afastamento das atividades
laborais, por auxílio acidentário, recomenda-se também que a paciente continue em acompanhamento periódico das suas
condições de saúde, com fins terapêuticos e preventivos, objetivando a melhoria da sua qualidade de vida.
Curitiba, 14/09/2010.

Seu laudo é um marco para o prosseguimento gatilho – de um conjunto de doenças que se alastram
das lutas pelo direito à Saúde dos Trabalhadores do pelos campos e pelas cidades do País.
fumo. No cenário descrito, evidenciam-se a ausên- Em uma cadeira de rodas, sempre tomando
cia das autoridades na fiscalização das condições muitos remédios para aliviar a dor, Lídia participa
de trabalho no fumo e a ganância das empresas hoje de audiências públicas e de outros espaços
pelo lucro, baseado num pacote tecnológico que de debate dando seu depoimento pessoal e dis-
estimula o uso de agrotóxicos que, silenciosamen- seminando informações de pesquisas. Como ela
te, destrói corpos e mentes. afirma: “Eu não gosto de expor minha vida. Só
É importante notar o trabalho conjunto de pes- que o dia que eu decidi expor minha vida, eu fiz
quisadores, médicos, advogados e sindicalistas que, para que as pessoas entendessem que veneno faz
com os trabalhadores, demonstram ser possível identi- mal, veneno mata, se não mata, fica desse jeito
ficar o agrotóxico como nexo causal – o detonador, o que estou vivendo hoje...”.
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Tempos históricos do direito na história


política e social
Fábio Luiz Mobarak Iglessia

A cidadania moderna buscou, por intermédio compreender na máxima complexidade os eventos,


do direito, generalizar a todos. Comandos genéricos as singularidades, as repetibilidades, as estruturas,
e abstratos afastaram-se das dimensões da realidade preparando a partir daí seu leitor para reconstruir
criando um cidadão formal igual em obrigações e criticamente um passado, uma verdade possível e
direitos. O liberalismo pautou-se no descompasso racionalmente verificável.
entre o saber jurídico e a materialidade das relações Nesse ponto, a proposta é raciocinar sobre a
sociais, adequando a realidade ao grande modelo medida temporal do direito, ponderando as categorias
que desse segurança jurídica às práticas contratuais temporais de aceleração, retardação, abreviação e as
nacionais e internacionais. possibilidades de prognósticos pensadas na história
No civil law, a codificação seguiu essa ideia do direito a fim de aplicá-las na análise da história
de sociedade imaginada e de processo de normali- política e social. Como ensina Koselleck3(268), a história
zação pela lei, tudo alimentado por um projeto de sempre se perfaz no tempo, o qual está impregnado
progresso racional com sustentação na filosofia da de passado e de futuro, aqui temos um grande espaço
história. Na França, o Código Civil de Napoleão in- de experiências conhecidas e lembradas e as expecta-
veste no descolamento do direito da realidade no tivas, planos, esperanças de futuro que vivenciamos
intuito de criar um tempo novo e rejeita os diversos em cada presente. O direito não é apenas um estrato
sistemas jurídicos concorrentes firmados na tradição, de tempo, ele também tem vários estratos temporais
reafirmando a autoridade do sistema político repre- e diversos olhares e modos de lidar com a noção de
sentativo em desfavor da autoridade dos juristas. Já tempo e possibilidades de futuro.
o historicismo alemão pretende manter a tradição O ato de produção do texto legislativo, o texto
da construção jurídica de seus intelectuais, embora produzido e a função hermenêutica são inicialmente
tal perspectiva não afaste a codificação e não traga a interdependentes – muito embora o processo histó-
simples pretensão de salvaguardar a tradição plural rico possa alterar essa relação –, ligando os repre-
1. HESPANHA, M. A. Cultura e costumeira do direito germânico1. sentantes parlamentares e os detentores do saber
Jurídica Europeia. Coimbra:
Edições Almedina, 2011. As intenções, porém, estão sujeitas a diversas jurídico. Ademais, o discurso jurídico é a base óbvia
2. CITTADINO, G., et al. Direito possibilidades de futuro, e o direito vem das relações de sustentação das ações políticas, mesmo que tal
e política: um ensaio sobre o
tempo e o espaço. Revista de
sociais e a elas retorna no constante fluxo histórico. discurso seja formulado na simples base da dogmática
Estudos Constitucionais, Herme-
nêutica e Teoria do Direito, v. 8,
Podemos identificar no direito, de acordo com a teoria jurídica analítica e descontextualizada. Portanto, a
n. 2, p. 164-173, 2016. dos tempos históricos, diversos estratos temporais, criação de uma norma jurídica pelo órgão competente
3. KOSELLECK, R. Estratos do perspectivas, bem como projeções ao futuro. Como é o primeiro momento destinado a tornar o direito e a
tempo: estudos sobre história.
Rio de Janeiro: Contraponto: explica Cittadino, o indivíduo constitui e é consti- política, de maneira incindível, como possíveis sujeitos
PUC-Rio, 2014.
tuído pelo coletivo por intermédio da política, mas de uma ação com sentido acelerador da história3(156).
4. GOMES, A. C. Burguesia e
Trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: 7
a questão política necessita da força estabilizante A aceleração temporal sustentada no direito
Letras, 2014. do direito exercendo autoridade por intermédio de fica clara na experiência brasileira de implantação e
seu poder legitimador2. Pensar na legitimação, como implementação dos direitos trabalhistas e sociais. No
concebida por Max Weber, cremos, é refletir sobre século XIX, os princípios do liberalismo chocavam-se
essa constante dialética, interlocução entre ciência e com os novos princípios de proteção social, surgidos a
filosofia política e direito no transcurso dos processos partir de eventos alicerçados nas estruturas do desen-
históricos. Segundo Koselleck, estamos diante de uma volvimento industrial, principalmente da Europa4(14).
“[...] reflexão histórica, cujos resultados já não podem O interesse de classe por melhores condições de vida
ser encontrados nas fontes”3(221,222). Destarte, caberá e trabalho foi tornando-se um movimento global, já
ao historiador identificar os estratos de história anti- representado desde 1919 pela Organização Interna-
ga contidos no presente originário das perguntas e, cional do Trabalho (OIT) que ganhou força depois
também, no período objeto de investigação, buscando da crise do capitalismo em 1929 e posteriormente à
59

Segunda Guerra Mundial com a nova estrutura jurídica mente, a classe empresarial pensou até em aceitar a
internacional à qual foi acoplada. eficácia jurídico-dogmática da legislação trabalhista
O movimento de 1930 busca inaugurar um novo e, assim, a norma manteria sua possibilidade jurí-
tempo, vê o período anterior como a República Velha dica de aplicação, exigibilidade ou executoriedade; 5. FRENCH, J. A origem da
intervenção estatal nas relações
e traz um aparato legislativo destinado a provocar o porém, dar eficácia sociológica, empírica às normas industriais brasileiras, 1930-
1934: superando uma visão
progresso. Direitos sociais, desenvolvimentismo são trabalhistas era outra história. Talvez, em princípio, a ultrapassada da história operária
brasileira. Rev. Tomo. n. 3, p.
fomentados pela lei. O direito volta-se para um tempo questão fosse adotar normas simbólicas cujos efeitos 9-27, 2000.
vindouro, no entanto, ele é o instrumento de vários relevantes destinavam-se apenas ao sistema político, 6. NEVES, M. A constituciona-
segmentos sociais com diferentes projetos de futuro. e não propriamente ao jurídico6, o que atenderia até lização simbólica. 3. ed. São
Paulo: WMF Martins Fontes,
O Estado parecia ter sua proposta, ou seja, for- aos propósitos estatais. 2011.
mar um Estado nacional forte em meio aos conflitos
ideológicos e de interesses. A instituição de um re-
gime projetado como autoritário foi posteriormente
reformulado – em decorrência da mudança do rumo
político em 1945 – para preparar alguns agentes po-
líticos para a abertura democrática, mas igualmente
foi mantido o discurso de integração harmoniosa de
trabalhadores em uma suposta aliança policlassista5. A
história nos abre dois projetos de dominação e prog-
nósticos distintos construídos em presentes distintos.
Para formulá-los, acessaram-se estratos temporais di-
versos, novas experiências históricas, porém a estrutu-
ra jurídica trabalhista permaneceu basicamente aquela
implantada em decorrência do movimento de 1930
e consolidada em 1943; por outro lado, o discurso
político permaneceu alicerçado na outorga, na dádiva
voltada a edificar uma base social de sustentação de
poder. Podemos ver mais de um estrato: primeiro
Trabalho infantil na
acelerou-se a ‘modernização’ e a ‘cidadania social’, Os textos jurídicos detentores de força normativa indústria.
agora a sujeição a outra duração, a uma estrutura de geral, em regra, são destinados à aplicação repetida. Fonte: https://memoriasindical.
com.br/formacao-e-debate/
prazo mais longo passível a modificações de projetos O aspecto temporal do direito trata de estruturas ricardo-westin-ha-100-anos-
greve-geral-parou-sao-paulo/
oriundas de ações sociais. orientadas à duração de longo ou médio prazo, muito
Angela de Castro Gomes conta ter sido a legisla- embora possa conter, em alguns casos, regras de vi-
ção trabalhista votada contra a vontade do empresaria- gência temporária e de eficácia para temporalidades
do brasileiro4. Todavia, ela também narra o poder que específicas. Refletir sobre o direito, nessa vertente, é
eles tinham para controlar o ritmo da implementação também pensar acerca da ineficácia anômica como
da mudança, inclusive obstante a edição dos atos estrutura, como prática inserta na duração prolon-
normativos de regulamentação; isto é, o direito, antes gada na sociedade. Aqui se retoma a ideia da classe
um instrumento de aceleração, torna-se, por influência empresarial nas décadas de 1930 e 1940 de retardar
de outro sujeito histórico, um método de retardação a implantação das leis trabalhistas e, principalmen-
da proposta política. O empresariado igualmente te, sua efetividade, apostando talvez no ineficiente
possui projeções de futuro e muito provavelmente sistema de fiscalização e na falta de vontade política
reagiu não à mera implantação de direitos trabalhistas, para implementá-la. A anomia fixa-se então como
mas somente quando havia a real necessidade de descumprimento planejado e repetido da lei e atra-
implementá-los, demonstrando a circulação de ideias vessa o tempo, como exposto nos dados divulgados
e condutas da classe patronal vinculadas à ineficácia em 2017 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ):
do sistema jurídico, exatamente porque a lei não ‘Rescisão do Contrato de Trabalho e Verbas Rescisórias’
equivale à efetiva transformação social. representou 11,51% do total de processos ingressados
Entretanto, para compreender os prognósticos na Justiça em 2016, sendo novamente o assunto mais
da classe empresarial, é necessário acessar o espaço recorrente no Poder Judiciário brasileiro. No total,
de experiência por eles utilizado, saindo da teoria do foram 5.847.967 de novos processos, enquanto, em
tempo e saturando o direito de realidade. Possivel- 2015, o número ficou em 4.980.359 (11,75%).
60

De acordo com Lélio Bentes, ministro do Tribunal Su- de transformá-lo em realidade, usando, entre outros
perior do Trabalho (TST), essa persistente situação, na meios, o aparato institucional estatal, especialmente
medida em que revela o descumprimento dos direitos
os Tribunais para fazê-lo8. As estratégias podem ser
mais elementares decorrentes da relação de emprego,
demonstra que o problema não está na legislação tra- renovadas seguindo as novas experiências acumuladas
balhista. O problema está na falta de cumprimento da no processo histórico e a reinterpretação daí decor-
Constituição. rente do saber acumulado. Destarte, sempre na fina
Segundo ele, isso reforça a importância do papel da interdependência da história do direito, do político
Justiça do Trabalho como o último bastião que os tra- e do social, os eventos podem ser analisados para
balhadores têm para se socorrer. Quando o trabalhador iluminar “a mudança estrutural que exclui a repetibi-
perde seu emprego e não recebe as verbas rescisórias, lidade de algumas pretensões de poder, para colocar
fica comprometida a própria relação de sobrevivência,
7. SAKAMOTO, L. Direitos não em vigor e fixar a nova regulação de procedimentos
dele e de sua família7.
pagos na demissão foi o tema
mais demandado na Justiça
jurídicos independentes”3(328).
em 2016. Racismo Ambiental. Em estratos do tempo, o autor afirma que a his- O direito possui diversos planos: ele se volta ao
2017 set. 5. Disponível em:
https://racismoambiental.net. tória do direito não consegue existir sem articular-se passado quando é formulada uma decisão judicial, faz
br/2017/09/05/ direitos-nao-pa-
gos-na-demissao-foi-o-tema-
com a história do político e com a história social, parte fundamental dos projetos políticos de futuro de
mais-demandado-na-justica- em-
-2016-por-leonardo-sakamoto/.
econômica etc. É exatamente diluindo as fronteiras diversos agentes sociais e cria condições nas quais as
Acesso em: 25 ago. 2020. que surge a classe trabalhadora como sujeito históri- singularidades podem se realizar e, portanto, há estratos
8. CORRÊA, L. R. A tessitura co na reafirmação e conquista de direitos sociais na presentes atuando sincronicamente. Desse modo, ele
dos direitos: patrões e emprega-
dos na Justiça do Trabalho, 1953 sociedade brasileira. Ele estava presente nos fortes ou a história do direito são apenas parte das condições
– 1964. São Paulo: LTr, 2011.
movimentos de reivindicação de 1917 a 1920, e tam- que dão sustentação à ação humana, pois a análise dessa
bém irá se mobilizando cada vez mais, como empirica- ação abre-se aos diversos ritmos dos diversos campos,
mente demonstrado em pesquisas historiográficas de isto é, estratos dentro de estratos destinados a iluminar
fôlego, para se apropriar do sistema normativo a fim a construção do conhecimento histórico.

A ‘modernização’ das normas


regulamentadoras e o impacto na vida dos
trabalhadores e da sociedade
Cristina Kaway Stamato

A reforma trabalhista iniciada com a promul- insalubres; e, a partir de julho de 2019, o governo
gação da Lei nº 13.467/2017 iniciou um desmonte federal iniciou um cronograma de revisão das Nor-
nas relações sociais de trabalho, legalizando con- mas Regulamentadoras (NR), com promessas de
dições de evidente prejuízo e precarização das modernização, simplificação e desburocratização
relações de trabalho. delas, visando ‘facilitar’ a vida do empresariado
Nesta esteira do discurso neoliberal, com a e gerar novos empregos.
aposta de um Estado mínimo, surge o discurso da No entanto, essa modernização não retrata um
necessidade de modernização e flexibilização das ambiente mais salubre e seguro para a classe trabalha-
relações de trabalho, como único caminho a fomentar dora, mas apenas uma estratégia do capital para poder
o crescimento econômico. As novas normas têm o aprofundar o acúmulo de riqueza das empresas em de-
claro intuito de assegurar segurança jurídica para os trimento à vida do trabalhador. O discurso oficial sobre
empresários, ainda que isso resulte em aumento dos a modernização do trabalho se baseia no argumento
1. MIGALHAS. Bolsonaro altera
normas de segurança e saúde índices de desigualdade social e aumento do número de que as inovações tecnológicas contribuem para a
no trabalho. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/
de acidentes de trabalho. redução dos riscos à Saúde dos Trabalhadores: “Não
quentes/307762/bolsonaro-al- A reforma trabalhista iniciada em 2017 já auto- podemos conviver com regras anacrônicas, bizarras,
tera-normas-de–o. Acesso em:
14 jan 2021. rizou a exposição de grávidas e lactantes a ambientes que nos atrapalham, nos inibem”1.
61

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil


Depois de muitos
protestos da oposição,
o plenário da Câmara
dos Deputados aprovou
em 26/04/2017, por 296
votos a favor e 177 votos
contra, o Projeto de Lei
(PL) 6.787/16, que trata
da reforma trabalhista.

As tais regras bizarras mencionadas na fala Um exemplo do perigo da reforma – A NR-20


do Secretário do Trabalho Rogério Marinho são A armazenagem de inflamáveis em edificações
as NR, criadas em 1977, relativas à segurança do é sempre um altíssimo risco para os trabalhadores,
trabalho. Essas normas vêm sofrendo constantes mas também para quem circula no prédio. O calor
atualizações e modificações, por uma comissão e a fumaça tóxica se alastram com velocidade. Em
tripartite formada por representantes dos traba- dezembro de 2019, foi editada a Portaria 1.360, apro-
lhadores, patrões e governo. Quer a sua criação, vando a nova redação da NR-20 que dispõe sobre
quer a sua atualização são frutos de demandas reais a prevenção e controle dos riscos no trabalho com
e estatísticas de doenças e acidentes de trabalho. agentes inflamáveis e combustíveis.
A partir de 2019, o processo de revisão das A versão inicial da NR-202 vigente até 5 de março 2. BRASIL. Ministro de Estado
NR está sendo feito em tempo recorde, sem a aná- de 2012, vedava a disposição de tanques inflamáveis
do Trabalho. Portaria nº 3214
de 08 de junho de 1978. Aprova
lise de dados reais e amadurecimento das novas aéreos no interior de edifícios, exceto sob a forma as Normas Regulamentadoras
– NR – do Capítulo V, Título II,
propostas apresentadas. Em nome da desburocra- enterrada (20.2.7) e com capacidade máxima de 250 da Consolidação das Leis do
Trabalho, relativas a Segurança
tização e simplificação, diversas NR, aprimoradas litros (20.2.13) por recipiente (o que equivale a pou- e Medicina do Trabalho. Diário
e atualizadas ao longo de muitos anos, correm co mais de um tambor, sem limitar a quantidade de
Oficial da União. 9 Jun. 2020.

o risco de se tornar letra morta ou ter a eficácia tambores, mas com diversas restrições de segurança
3. BRASIL. Ministro de Estado
do Trabalho. Portaria nº 308 de
comprometida em nome da modernização. litadas na norma. A partir de 6 de março de 2012, a 29 de fevereiro de 2012. Altera
a Norma Regulamentadora nº
No entanto, essa ‘modernização’ dá origem a nova redação da NR-203 permitiu o armazenamento 20 – Líquidos Combustíveis
novos padrões de riscos e de adoecimento e é um no interior de edifícios até o limite de 3 mil litros em
e Inflamáveis, aprovada pela
Portaria MTb nº 3.214, de 8 de
contrassenso, eis que a precarização das condições até três reservatórios, desde que atendidos todos os
junho de 1978. Diário Oficial da
União. 1 Mar. 2012.
de trabalho e a simplificação das NR podem gerar requisitos e critérios ali estabelecidos. 4. BRASIL. Ministro de Estado
efetivo aumento de despesas do governo federal na Com a nova alteração da NR-204, destaque para do Trabalho. Portaria nº 1.360
de 09 de dezembro de 2019.
concessão de auxílio-doença por acidente trabalho o novo Anexo III (Tanques de Líquidos Inflamáveis Ret. – Aprova a nova redação da
(B91), pela redução da capacidade laborativa (B94) no Interior de Edifícios), esse limite foi aumentado
Norma Regulamentadora nº 20 –
Segurança e Saúde no Trabalho
e aposentadoria por invalidez (B92), sem contar para 10 mil litros: (2.1.d – deve respeitar o máximo
com Inflamáveis e Combustíveis,
altera o Anexo II da Norma
que principal objetivo dessas normas é assegurar de até 5 mil litros por tanque e por recinto, bem Regulamentadora nº 28 – Fiscali-
zação e Penalidades e dá outras
a proteção da vida e Saúde do Trabalhador e, por como o limite de 10 mil litros por edifício.). O que providências. Diário Oficial da
via indireta, a vida de todos nós. As recentes alte- essas alterações impactam na saúde e segurança do
União. 10 Dez. 2019.

rações da NR-20 também nos afetam, que também trabalhador e o que interessa em nossas vidas privadas?
transitamos por instalações prediais e estamos A utilização de redes de computadores sofisticadas (sis-
submetidos a risco de vida. temas bancários, empresas de telefonia, empresas de
62

telemarketing, por exemplo) ou a imprescindibilidade o § 1º do art. 193 da CLT6 assegura o pagamento do


da energia elétrica para funcionamento de aparelhos adicional de periculosidade de 30% do salário do
e equipamentos essenciais para manutenção da vida trabalhador exposto a situações perigosas. No caso
(hospitais e laboratórios, por exemplo) exigem a desses acidentes, não é apenas o fogo em si que
presença de um gerador para os casos de falta ou mata ou fere, mas principalmente a fumaça tóxica
oscilação da rede elétrica. que é inalada e mata pela intoxicação química e
Todos esses geradores são abastecidos com óleo queimaduras no trato respiratório. Lembremos
diesel, mas a partir da Portaria nº 1.360 que modificou do caso da Boate Kiss e do Centro Técnico do
a NR-20, foi aumentado o limite de armazenamento Flamengo.
para tanques inflamáveis no interior de edifícios (Ane- Por outro lado, no cenário atual, temos cente-
xo III) para absurdos 10 mil litros por edifício. Ou seja, nas de prédios comerciais que utilizam geradores
no caso de uma instalação com mais de um prédio, alimentados por óleo diesel, mas pouquíssimos
cada um poderá alocar 10 mil litros de inflamável. Eis que, de fato, observam os requisitos de segurança
o artigo 2.1.d do referido Anexo III: instituídos pela NR-207. Sem contar que, nas edifi-
deve respeitar o máximo de até 5.000 (cinco mil) litros cações de hoje, temos prédios muito altos, que vão
por tanque e por recinto, bem como o limite de 10.000 além da altura das escadas dos bombeiros, janelas
(dez mil) litros por edifício, sendo este limite aplicável a que não abrem, mobiliário com muito material
cada edifício, independente da existência de interligação plástico e outros materiais que, se queimados,
entre edifício por meio de garagens, passarelas, túneis, emitem monóxido de carbono e cianetos, alta-
entre outros4.
mente venenosos e letais.
Em setembro de 2019, um curto-circuito no Sim! Temos uma extensa relação de prédios
gerador do Hospital Badim no Rio de Janeiro causou comerciais, com número significativo de emprega-
um acidente de grandes proporções. Esse gerador dos e pessoas que circulam no prédio diariamente,
era abastecido com óleo diesel e estava instalado no que em seu interior guardam grandes volumes de
subsolo do prédio. O acidente incendiou parte das óleo diesel, fora dos padrões de armazenamento,
instalações, mas a fumaça tóxica se alastrou para todo sendo que, em alguns casos, há geradores e ar-
o prédio de seis andares. Como consequência, dos mazenamento de combustível em vários andares
103 pacientes internados, 20 morreram em decorrên- do prédio, potencializando em cascata os riscos
cia da intoxicação, sem contar inúmeros pacientes e de explosão.
trabalhadores do hospital que tiveram que ser aten- O roteiro é sempre o mesmo: vem a tragédia
didos para tratamento de queimaduras, intoxicação e e a posterior constatação que não houve fisca-
pneumonia química. Para ter uma ideia da dimensão lização sobre as condições de manutenção do
dos números, o Hospital Badim tinha quatro tanques estabelecimento.
de 250 litros de óleo diesel e não se sabe se todos Some-se a esse quadro uma fiscalização precá-
estavam cheios, muito embora no sítio do grupo da ria, mas, por óbvio, a questão não se resume ape-
Rede D´Or São Luiz haja um link específico chamado nas à fiscalização, até porque, em diversos casos,
5. REDE DOR SÃO LUIZ. Rela- ‘sustentabilidade’, com a informação que, no ano de somente após a vistoria do Corpo de Bombeiros é
tório de Sustentabilidade. Rio de
Janeiro: Rede Dor, 2018. 2018, o grupo utilizou 62.682 litros de óleo diesel5. feita a instalação dos geradores e dos tanques de
6. BRASIL. Decreto Lei nº 5.452 Ainda que todos os quatro tanques estivessem cheios, diesel e, por esse motivo, não raras vezes temos
de 01 de Maio de 1943. Aprova
a Consolidação das Leis do
o Badim teria no subsolo mil litros de óleo diesel. A processos nos quais o tanque de diesel não consta
Trabalho. Diário Oficial da União. nova redação da NR-20 autoriza 10 mil litros de infla- na planta registrada no Corpo de Bombeiros nem
2 Maio 2020.
máveis no interior da edificação! Então não é preciso nas plantas da Prefeitura.
7. Tanques enterrados,
ser um engenheiro de segurança para dimensionar as
exigência de Projeto e de
Análise Preliminar de Perigos/
consequências desse acidente caso o Hospital Badim
O que as perícias judiciais e os processos
Riscos elaborado por profissional
habilitado, sistema de contenção
de vazamentos, tanques devem
tivesse se adequado à NR-20 atual e trocado os quatro trabalhistas têm considerado a esse respeito?
ser abrigados em recinto interno, tanques de 250 litros, por dois de 5 mil litros como Embora os diversos acidentes com incêndio
fechado por paredes resistente
ao fogo por no mínimo duas está no novo anexo III. Poucos se salvariam. de óleo diesel tenham demonstrado a extensão dos
horas e porta tipo corta-fogo,
danos, parte dos peritos judiciais que atuam na Justiça
possuir aprovação pela autorida-
de competente, possuir sistemas A estocagem de óleo diesel no interior dos do Trabalho tem adotado uma postura muito conser-
automáticos de detecção e com-
bate a incêndios, treinamento de edifícios e a fumaça química tóxica vadora, no sentido de considerar uma área perigosa
empregados, além de outros.
Os acidentes com fogo (calor e fumaça) po- apenas se utilizando do conceito de proximidade
8. NR-16 – Atividades e Opera-
ções Perigosas. dem produzir vítimas fatais, não por outro motivo, da área de risco, utilizando-se apenas a NR-168. Em
63

outras palavras, concedendo o adicional de periculo- O respeito à vida e a responsabilidade social


sidade apenas ao trabalhador que trabalhe próximo corporativa
ao tanque de diesel, sem considerar quem trabalha
nos andares superiores. É imperioso que os empresários exerçam, de
Os peritos não consideram que os prédios ver- fato, a sua responsabilidade social, tão necessária para
ticais climatizados têm janelas fechadas e bloqueadas frear os ímpetos da racionalidade econômica com
formando um bloco monolítico no qual a fumaça foco na maximização do lucro. A responsabilidade
tóxica se espalha rapidamente. Nem sempre há sistema social corporativa é uma conduta que vai da ética
de ventilação adequada; e raríssimos casos com trei- nos negócios às ações desenvolvidas na comunidade,
namento de fuga e rotas seguras para todos. Ademais, passando pelo tratamento dos funcionários e relações
como os recentes acidentes fatais demonstraram, não com acionistas, fornecedores e clientes.
é necessariamente o fogo que queima e mata, mas, A Reforma Trabalhista trouxe precarização das
sim, a fumaça tóxica inalada que causa o maio número relações de trabalho, afastando a entidade sindicato
de vítimas fatais ou causam sequelas irreversíveis. da relação entre patrões e empregados; e, entre outras
Não por outro motivo que o Tribunal Superior tantas nefastas alterações, criou a figura dos honorários
do Trabalho editou a Orientação Jurisprudencial nº de sucumbência na Justiça do Trabalho, dificultando
385/ SDI-I, assegurando o pagamento do adicional o ajuizamento de ações trabalhistas com pedido do
de periculosidade ao empregado que desenvolve adicional de periculosidade.
suas atividades em edifício (construção vertical) com O atual modelo econômico, sob o manto de
armazenamento de líquido inflamável no prédio, em ‘modernizar as relações de trabalho’ e assim gerar
quantidade acima do limite legal, seja em pavimento mais empregos e facilitar a vida do empresário, está
igual ou distinto daquele em que estão instalados precarizando as condições de saúde e segurança do
tanques para armazenamento. trabalhador; e, no caso da NR-20, esse risco extrapola
O Tribunal Superior do Trabalho, em centenas a relação capital-trabalho, colocando a vida de todos
de julgados, já vinha decidindo que, na eventualidade nós em risco.
de incêndio ou explosão, o risco é acentuado para Ficamos horrorizados e perplexos com cada
todos os que trabalham em edificação vertical, pouco acidente, mas depois esquecemos e voltamos para a
importando se o empregado trabalha próximo ou nossa rotina, sem, às vezes, nos darmos conta de que
distante do tanque de armazenamento, pois, para os podemos estar trabalhando em cima de uma bom-
andares mais altos, haverá maior dificuldade de fuga ba-relógio que pode explodir a qualquer momento.
ou ações de salvamento. Você já se perguntou se no seu prédio comercial há
Recentemente, tivemos um caso no Rio de um gerador movido a óleo diesel?
Janeiro, em que, após a realização de uma perícia Será que, após o mundo estar sendo submetido
técnica, foi constado o irregular armazenamento à atual pandemia, ainda seremos os mesmos ou esta-
de óleo diesel no subsolo de um centro adminis- remos mais atentos àquilo que impacte diretamente
trativo de um banco. Os tanques do diesel sequer a nossa saúde, nossa vida e sobrevivência?
constavam nas plantas registradas no Corpo de Esperamos que o bom senso norteie nossas
Bombeiros. Em decorrência da atuação do sin- ações. Não é pedir muito. Ao contrário das palavras
dicato, o referido banco efetuou a regularização de Rogério Marinho, as normas de proteção de Saúde
do ambiente, e poucos meses após, um estabele- do Trabalhador não são um atraso para o País e nem
cimento comercial, vizinho ao prédio, sofreu uma são bizarras. Bizarro é ter que conviver com repetidas
explosão de gás. Qual teria sido a consequência tragédias, em violação da integridade física e mental
para as centenas de trabalhadores que ali trabalha- dos trabalhadores, que atingem toda a sociedade. E
vam caso essas mudanças não tivessem sido feitas? a NR-20 é apenas um (mau) exemplo!
64

Onde não havia norma para ser desconstruída:


a saúde dos professores e outros
profissionais de educação no contexto da
pandemia de Covid-19
Carlos dos Santos Silva

Em março de 2020, a Organização Mundial da A desvalorização da saúde como direito cons-


Saúde (OMS) decretou pandemia pelo novo coro- titucional (Constituição Cidadã de1988) e a omissão
navírus (Sars-Cov-2), como alerta para que todos os do dever de Estado de prover a saúde de brasileiros
países assumissem ações para deter a disseminação da e brasileiras acirram, hoje no País, uma crise sanitária
doença, cuidar adequadamente dos pacientes e adotar sem precedentes, colocando em risco social e econô-
ações emergenciais para captar casos suspeitos, conta- mico a população mais vulnerabilizada, submetida a
tos, testar e tratar a todos para recuperação da saúde. condições desfavoráveis de vida. A distribuição geo-
Há seis meses (fevereiro de 2020), o Brasil re- gráfica dos casos de Covid-19 dá clara visibilidade às
gistrou seu primeiro caso de Covid-19. Entretanto, desigualdades e injustiças no Brasil.
a reação do governo brasileiro foi de descrédito na A concepção neoliberal e conservadora do capital
gravidade da situação desconsiderando a importância defendeu como prioridade o retorno das atividades
de formular e liderar um plano estratégico de enfren- econômicas, nem sempre essenciais (abertura de sho-
tamento da pandemia no País. ppings, salões de cabelereiros, restaurantes e outros
Ao contrário da maioria dos países, a gestão serviços), apostando mais na retomada econômica do
federal foi pródiga em criar conflitos com outros ní- que na relevância da saúde das pessoas.
veis da gestão: estados, municípios e Distrito Federal, A falta de planejamento da ação contra a pan-
levando-os ao isolamento e descompasso no combate demia levou ao descontrole do acompanhamento da
e controle da doença em seus territórios. morbidade, atendimento e tratamento de doentes e
A falta de governança compartilhada contribuiu resultou na enorme mortalidade causada pela Co-
para informações e medidas desencontradas de pre- vid-19. A divulgação não transparente de dados, com
venção, suporte e tratamento, favorecendo que a tentativas inclusive de manipulação, contrapôs-se ao
doença se alastrasse por todo território nacional, tendo que defendiam cientistas, epidemiologistas, outros
hoje mais de 4 milhões de casos confirmados com a especialistas e a própria razoabilidade da vigilância
perda da vida de mais de 125 mil pessoas. em saúde, quando esses são essenciais para a tomada
de medidas de controle da pandemia.
Charge de Henfil – Reprodução Facebook

As decisões e as atitudes contrárias às recomen-


dadas da OMS e o desprezo pelas experiências de
países com melhores resultados de enfrentamento
da pandemia incitam, consequentemente, à maior
dificuldade em buscar alternativas para questões que,
agora, apresentam-se muito complexas. Entre essas,
o retorno das aulas presenciais nas escolas de ensino
fundamental, médio, creches e educação infantil:
‘Como e quando permitir o retorno das atividades
escolares com segurança e saúde?’.
Para responder à pergunta, por sua complexi-
dade, novamente se exige um planejamento efetivo
em que participem todos os envolvidos. Há vários
aspectos a considerar a partir do significado do que
65

representa a interrupção, por quase um semestre, da de saúde mental; estresse; cansaço; desânimo pe-
frequência às aulas de crianças e adolescentes que têm rante ambientes desfavoráveis à vida com qualidade;
na escola espaço de socialização, formação, educação submissão a situações de violência – inclusive aquela
e, na maioria das vezes, de proteção social. produzida por alunos –; locais de trabalho em co-
A interrupção das aulas gerou muitas fragili- munidades de conflitos repetidos, quer por tráfico,
dades aos alunos. Submetidas ao isolamento social, quer por milícias; alergias; problemas de voz; lesões
as crianças em casa interromperam seu processo de na coluna vertebral, entre outros. Situações essas
socialização com seus pares, fundamental ao bom agravadas pelo estresse gerado pela pandemia, não
desenvolvimento. Para compensar a falta das aulas só de contrair a Covid-19 como também de eventual
presenciais, (res)surgiu proposta de aulas a distância. receio de transmiti-la aos familiares.
Novidade para muitos alunos e professores, tecnica- O reinício das aulas presenciais tem sido tema
mente não familiarizados com ela, mas também pelo de debates entre políticos, autoridades, especialistas,
restrito acesso digital à rede, às mídias sociais e ao profissionais da saúde, professores e suas representa-
equipamento tecnológico – desafio principalmente ções organizativas, além de muita preocupação de pais
para a maioria de alunos empobrecidos das periferias e alunos. Muitos prefeitos e governadores tentaram
das cidades ou nas favelas. resolver a questão por meio de decretos que marca-
Na dinâmica caseira do isolamento social, a so- vam datas para as escolas retomarem as atividades.
brecarga familiar com processos de aprendizagens, Quase todas sem êxito, contestadas quando não por
antes compartilhadas com a escola, direcionou tarefas professores, pelas comunidades ou por cientistas
aos pais e às mães, carreando, também, maior tensão e pesquisadores de universidades, revogadas pelo
nas relações com seus filhos. poder judiciário.
Houve relatos e notificações de maus-tratos e Aparentes impasses mostraram divergência de
violências contra crianças e adolescentes, compro- opiniões e de interesses quanto à abertura de escolas
metendo sua saúde mental em decorrência do con- privadas e das escolas públicas. Sindicatos de donos
finamento social. O fechamento das escolas levou à de escolas privadas defenderam a retomada das aulas
restrição alimentar e nutricional de muitas crianças o quanto antes para manutenção de seus negócios e
e adolescentes, sobretudo daqueles de áreas mais lucros, colocando esses valores acima da saúde e dos
empobrecidas que têm nas instituições escolares, por riscos de adoecimento de alunos e professores. A con-
vezes, a única oportunidade de fazer uma refeição ao cepção de saúde que prevalece nesses casos é a de saúde
dia. A interrupção do convívio do aluno com a escola como mercadoria, e não como um direito de todos
neste tempo de pandemia há de acarretar aumento Ao considerar, portanto, que o retorno às au-
da evasão escolar, pois, se antes esse vínculo era dado las tenha que ocorrer de forma segura e diante do
como muito tênue, ele tenderá, agora, a se romper controle da pandemia, é possível pensar que essa
mais facilmente. Crianças e adolescentes fora da escola retomada exija três procedimentos imprescindíveis:
estão mais sujeitos à situação de rua, à entrada precoce a) informação precisa e clara; b) liderança de gestão
no mercado o trabalho, quando não cooptados por participativa descentralizada; e c) investimentos in-
atividades ilícitas em suas comunidades. cluindo financeiros, tanto na saúde (Sistema Único
Esse panorama tão desfavorável à saúde de crianças de Saúde – SUS) como na educação.
e adolescentes os expõe mais, quando, apesar da necessi- A despeito de ser uma decisão de colaboração
dade de isolamento, seus pais e mães, como trabalhadores, intersetorial entre saúde e educação1, cabe ao setor 1. SILVA, C. S. Saúde na escola.
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019.
têm que sair de casa para manter o emprego (quando não saúde (serviços, vigilância epidemiológica e sanitá-
desempregados) e trazer comida para casa. ria) apurar os indicadores técnico-científicos sobre
No contexto do retorno às aulas, é preciso olhar a manifestação da pandemia nos diferentes locais,
com cuidado para os profissionais da educação, em compondo informação confiável a ser divulgada com
especial: professores, trabalhadores e trabalhadoras transparência e de forma sistemática para gestores,
que estão submetidos aos riscos da pandemia de políticos e a sociedade, ressignificando-os com os par-
Covid-19. Seguindo em isolamento social, viram a ceiros do setor educação e com a comunidade escolar.
sua jornada de trabalho aumentar com a demanda Esses indicadores, considerando cada localidade,
das aulas a distância, para muitos um novo desafio. são: número de casos confirmados; curva média de
Novas tensões, maiores riscos de adoecimento evolução; número de mortes por Covid-19; índice
e agravos à saúde decorrentes da relação de trabalho de isolamento social; índice de transmissibilidade;
de professores, como: acometimento das condições testagem fidedigna; disponibilidade e taxa de ocu-
66

pação de leitos, inclusive de tratamento intensivo, Em um tempo de desconstrução de direitos


bem como a capacidade de atendimento pelo SUS. e revogação de legislações protetivas, o retorno às
À educação, caberá definir a reabertura das escolas aulas não possui, ainda, um regulamento sanitário
identificando condições estruturais das instituições robusto, pactuado como deve ser feito no SUS em
diante das exigências de prevenção, com apoio peda- conjunto com a área da Educação, que proteja a saúde
gógico e acolhimento de professores e alunos diante das crianças e dos trabalhadores da educação. Menos
do que se passa com a pandemia. pior que ainda não haja, a ponto de sofrer mais uma
A análise dos dados deve ser realizada por terri- emenda restritiva ou supressiva, como foi feito na
tório, pois varia nos grupos populacionais distribuídos Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que levará a
pelo País. Assim, a decisão de reabertura das escolas perdas da ordem de R$ 35 bilhões no SUS, em 2021.
será regionalizada com o coletivo de autoridades, Iniciativas como a Recomendação nº 056, de 26 de
2. CONSELHO NACIONAL lideranças, profissionais e, principalmente, das co- agosto de 20202, do Conselho Nacional de Saúde,
DE SAÚDE. Recomendação
nº 056, de 26 de Agosto de munidades escolares. sobre o fortalecimento da Atenção Básica em Saúde,
2020. Recomenda a adoção
de medidas de fortalecimento Destaca-se a relevância de liderança de gestão no enfrentamento da pandemia são bem-vindas, mas
da Atenção Básica em Saúde,
no enfrentamento à pandemia
compartilhada que envolva desde os políticos do insuficientes. Recentemente, a Portaria nº 2.141, de
de COVID-19. Diário Oficial da estado e município, as comunidades locais até os 14 de agosto de 20203, habilita municípios e Distrito
União. 27 Ago. 2020.
conselhos de saúde e educação. A governança interse- Federal a receber incentivo financeiro para implemen-
3. BRASIL. Portaria nº 2.141 de
14 de Agosto de 2020. Habilita torial é mais promotora de saúde e democrática, pois tação do Programa Saúde na Escola no segundo ano
Municípios e Distrito Federal ao
recebimento do incentivo finan- escuta os interessados diretos, líderes comunitários, do ciclo 2019/2020. O Senado, cedendo a apelos da
ceiro para implementação das
ações do Programa Saúde na
gestores regionais, professores, agentes comunitários sociedade, aprovou o Fundo de Manutenção e De-
Escola no segundo ano do ciclo de saúde, jovens de movimentos sociais e outros. senvolvimento da Educação Básica e de Valorização
2019/2020 e destina recursos
financeiros para os municípios É o planejamento efetivo e seguro que assegura as dos Profissionais de Educação (Fundeb), com mais
e Distrito Federal aderidos ao
Programa Crescer Saudável decisões mais acertadas. de R$ 77 bilhões até 2026, revertendo proposta do
que alcançaram as metas do
Programa. Diário Oficial da
É fundamental retornar as aulas com garantia de governo federal que pretendia zerar recursos em 2021.
União. 15 Ago. 2020. investimentos e maior aporte financeiro na educação Algumas experiências sinalizam resultados e
e na saúde. Na educação, para melhorar o ambiente servem de aprendizado.
físico escolar e apoiar professores pedagógica e O Amazonas, primeiro estado a retornar às aulas
psicologicamente. Na saúde, para fortalecer o SUS de ensino médio (10 de agosto de 2020) enfrentou
em todos os níveis e, principalmente, a atenção no dia seguinte à paralisação de professores com o
primária em aumento de abrangência e atuação apoio do sindicato, pela sua ausência da decisão, falta
nas comunidades escolares. Para ambas, é relevante de informações ou receio de adoecer pela Covid-19.
a formação de profissionais que compreendam e Estavam certos porque, após 15 dias, a Fundação
enfrentem a pandemia individual e coletivamente de Vigilância em Saúde do Estado divulgou que 342
durante e após seu curso. professores testaram positivo, reivindicando, então,
Há condições que precisam ser ajustadas e apro- suspensão total das aulas.
priadas, como exigências para a volta às aulas: boas A cidade de São Paulo realizou inquérito soro-
condições físico-ambientais das escolas, acesso à agua, lógico para avaliar a circulação do novo coronavírus
banheiros, boa ventilação, distanciamento entre os na rede pública municipal de ensino, apontando que
alunos em todos os espaços, disponibilidade de EPI 16,1% de alunos de 4 a 14 anos já haviam contraído a
para professores e demais trabalhadores, álcool em Covid-19; e, dos infectados, 64,4% foram assintomáti-
gel, máscaras, termômetro e produtos de higiene. cas e 25,9% vivem com idosos com mais de 60 anos.
A escola deverá identificar a razão dos faltosos e os Dados que subsidiaram novo adiamento de retorno
positivos para Covid-19, monitorando a possibilidade das aulas previsto para setembro.
de suspender suas atividades. A Prefeitura de Salvador anunciou recentemen-
Ao retornarem às aulas, os alunos trarão com te que a educação infantil não retornará às aulas
eles forte carga emocional e muitas histórias vividas este ano. O estado do Maranhão fará uma avaliação
de ansiedades, medos, apreensões e até de luto diagnóstica conjunta de Língua Portuguesa e Mate-
pela perda de familiares e amigos. Retornarão mática, incluindo para o ensino médio exames de
ao cotidiano da escola em diferentes níveis de outros componentes curriculares para atualizar as
aprendizagem. São novos desafios ao trabalho do condições dos alunos.
professor de reconhecer e aplicar novos recursos A observação dessas (in)decisões aponta que o
pedagógicos. retorno às aulas será seguro quando a transmissão da
67

doença estiver controlada. Prolongar o fechamento de estabelecê-los, são lerdos, titubeantes e, quiçá,
das escolas implica, por uma vida cidadã e de direitos, mal-intencionados. Em matéria de superação da crise
providenciar estruturas de suporte e mecanismos de na questão da escola, uma coisa é certa: saúde das
proteção a crianças e adolescentes, desamparadas pela crianças e Saúde do Trabalhador caminham juntas
ausência da escola em suas vidas, bem como suporte como nunca. Pensar em normativas de retorno às
psicológico e pedagógico a elas e aos professores. A aulas, e sua continuidade com as incertezas que nos
opção em Portugal foi abertura de uma escola em cada esperam, é pensar sobre o princípio científico da
localidade, para atender a grupos mais vulneráveis, precaução com as inteligências da saúde escolar e
como alunos vítimas de violência, do empobrecimento da Saúde do Trabalhador irmanadas, como até hoje
e da fome e suprir suas necessidades, minimizando ainda não tiveram a oportunidade de fazer.
riscos e agravos do isolamento social. Se a crise da educação já era grave antes da pan-
Só é possível pensar esse retorno com acolhi- demia, ela se agravou muito agora (Organização das
mento emocional e afetivo tanto aos gestores, profes- Nações Unidas – ONU), e não se pode perder a opor-
sores como aos alunos, respeitando seus segmentos: tunidade deste momento, de ‘redesenhar’ a educação
ensino médio, fundamental e educação infantil. Tudo e avançar no caminho para sistemas progressistas, mais
o que vem sendo tentado demonstra que, na con- justos, igualitários e democráticos. Uma educação
juntura atual, os governos e, em especial, o governo freiriana, de qualidade e para todos, tal como a saúde
federal são hábeis e ágeis na hora de desconstruir de um SUS para todos, ambos como direitos humanos
as regras que nos garantem direitos, mas, na hora e, principalmente, de cidadania é o que esperamos.

Contrarreforma do trabalho e previdência


e os impactos na Saúde dos Trabalhadores:
desafios da classe trabalhadora
Maria Juliana Moura Corrêa
Stenio Dias Pinto Rodrigues

Antecedentes em escala mundial, transformando as cidades em


As transformações no mundo do trabalho, do territórios transnacionais.
sistema de produção capitalista do modelo fordista/ O ciclo expansionista substitui o velho capitalismo
taylorista para a acumulação flexível, estabeleceram de livre concorrência pelo novo capitalismo de domi-
uma nova matriz de reestruturação produtiva – a nação do capital em geral e do capital financeiro em
terceira revolução industrial, pelo desenvolvimento especial. Fase esta que aprofunda as contradições entre
da microeletrônica, informática e novas tecnologias de os povos e estabelece o domínio do sistema financeiro,
comunicação, que introduziram profundas mudanças nas grandes corporações e no mercado globalizado. 1. HARVEY, D. Condição
pós-moderna. São Paulo:
societárias e uma nova era das relações de trabalho. Es- Nessa perspectiva, a globalização consiste em um Loyola, 2008.

sas mudanças intensificaram a produção, do trabalho sistema internacional de dominação e subordinação2. 2. MÉSZÁROS, I. Para além do
capital. São Paulo: Boitempo,
livre associado ao esgotamento dos mecanismos de Sendo assim, um imperativo ao desenvolvimento eco- 2002.

autorregulação do mercado, estabelecendo as bases nômico das nações, impondo agenda de ajustes fiscais
para a superação da fase da economia concorrencial e e de reestruturação produtiva para alcançar cada vez
sua passagem para a economia monopolista. Também, maiores rendimentos. Além disso, a proposta de supera-
criou espaço social para regime de acumulação flexível ção das crises financeiras desencadeia um novo ciclo de
na concorrência mundial capitalista1. As características expansão, centrada na internacionalização das atividades
da sociedade contemporânea globalizada alteraram produtivas, com reorganização produtiva das regiões,
de forma acelerada os sistemas políticos e de valores, liberdade do mercado e do capital financeiro mediante a
o que possibilitou mobilidade produtiva e financeira desregulamentação das economias, redução dos direitos
68

trabalhistas e do Estado. Engendram-se projetos político como argumento da necessidade das reformas, é o de
e econômico de destruição das instituições públicas, no aumentar a margem de lucro dos grandes investidores
sentido de estender os investimentos privados a todas as e desmontar a regulamentação trabalhista que garante
atividades econômicas rentáveis. um conjunto de conquistas aos trabalhadores.
3. FLORES O. V., et al. A. Críti-
ca de la globalidad: dominación
Nas políticas econômicas fundamentadas no Nessa perspectiva, a circulação e a reprodução
y liberación en nuestro tiempo. ideário neoliberal, repousa a imposição de novo pa- ampliada do capital ‘tomam conta do mundo’, agra-
Cidade do México: Fondo de
Cultura Económica, 2000. drão de acumulação com a concentração do capital vando a condição da classe operária pela redução dos
4. IANNI, O. A sociedade glo- internacional. A condição política para o êxito desse salários e superexploração da força de trabalho4. No
bal. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999. projeto é a derrota ou, pelo menos, o enfraquecimento tocante a esse aspecto, Marx5 apontava o fato de que a
5. MARX, K. O capital. Rio de das classes trabalhadoras e das suas organizações mais-valia não se expressa apenas pelo pagamento da
Janeiro: Civilização Brasileira,
2005.
reivindicatórias e partidárias. força de trabalho abaixo do seu valor – exploração dos
Consequentemente, agravam-se as desigualdades trabalhadores; mas também pelo pagamento do salário
sociais, produz-se a descapitalização de longo prazo de mercado, no qual os capitalistas podem lançar mão
das economias locais, ameaçando a soberania do de estratégias para ampliar sua taxa de lucro: estender
Estado, visto que há um crescente endividamento a duração da jornada de trabalho mantendo o salário
externo e um pesado jogo de influências políticas (mais-valia absoluta); mas ampliando a intensidade
das empresas multinacionais. do trabalho e os ritmos de produção; ou, ainda, au-
A compreensão dessas estratégias neoliberais e mentando a produtividade do trabalho por meio de
da teoria do valor do trabalho, na perspectiva marxia- mecanização e tecnologia (mais-valia relativa).
na, evidencia a origem do processo de exploração dos No Brasil, com base nesses fundamentos, instalou-se
trabalhadores e estabelece elementos constitutivos da um regime centrado no ideário neoliberal que apresentava
imposição de desgastes à saúde, inseridos na questão como resposta aos problemas a austeridade fiscal e a reti-
social, enquanto resultante do processo contraditório rada de direitos trabalhistas e previdenciários, entendidos
do modo de produção e reprodução social no sistema como privilégios, processo que nega a luta histórica da
capitalista. Como resultado dessa subordinação à pro- classe trabalhadora por direitos sociais.
dução e reprodução do mundo do trabalho, dados os Em 2017, a aprovação da Reforma Trabalhista
condicionantes histórico-estruturais da dependência fraturou a CLT e suprimiu direitos sociais que impac-
entre nações ricas e pobres e seus rebatimentos, as tam na Saúde do Trabalhador e segurança no meio
atuais expressões da questão social têm o efeito de ambiente do trabalho. Entre as medidas, normatiza a
intensificar a velha desigualdade social que caracte- terceirização irrestrita, flexibiliza a carga horária para
rizou a luta da classe trabalhadora pela vida e pela até 44 horas semanais e reduz o tempo de descanso,
saúde desde os primórdios da revolução industrial. introduzindo o trabalho remoto com intensificação
da produção e sem remunerar ou quantificar as horas
Ideário neoliberal na agenda das extras. Conjunto de medidas que instaura a despro-
contrarreformas: desafios à classe trabalhadora teção do trabalhador pela negociação individualizada
O pressuposto fundamental da globalização neo- quando sobrepõe o negociado sobre o legislado.
6. INSTITUTO BRASILEIRO DE liberal é a obtenção de rendimentos cada vez maiores Segundo o IBGE6, os efeitos da Reforma Sindical
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
Efeitos da Reforma Sindical. em curto prazo. Flores e Mariña já alertavam, desde e Trabalhista de 2017 atingiram diretamente a orga-
Disponível em: https://www.
ibge.gov.br/. Acesso em: 08 20003, sobre a adoção de estratégias de redução de nização sindical com redução de 3 milhões de traba-
ago. 2020.
barreiras aos investidores – os ‘megaespeculadores’, lhadores que deixaram de ser sindicalizados devido
que buscavam eliminar os ‘excessos’ das instituições à desobrigação da contribuição sindical, que reduziu
estatais e da legislação trabalhista, que foram cons- para 11% a taxa de sindicalização, de 2016 a 2019.
tituídos a partir das leis e dos contratos coletivos de Além da Reforma Trabalhista, Sindical, a Reforma
trabalho, em uma lógica liberal interpretada como da Previdência fechou uma tríade de reformas que
uma ameaça à meta de rentabilidade das empresas. aprofunda a desigualdade social e entre a classe tra-
Esse ideário tem sido disseminado por grandes balhadora, quando altera as disposições em lei sobre
instituições multilaterais globais que orientam os a concessão de aposentadorias, pensões e benefícios,
planos de ajuste econômico com as seguintes re- com redução da cobertura e aumento dos tempos de
comendações: a) menos intromissão do Estado e contribuição e idade, além da eliminação do sistema
mais privatização; b) menos barreiras, menos cargas solidário, canalizando os altos salários à capitalização,
tributárias; c) mais abertura econômica e comercial. O com consequências diretas à proteção social, nela
objetivo dessas medidas, defendidas em muitos países, incluída a Saúde dos Trabalhadores.
69

Considerações finais sobre unidade dos ruas e espaços públicos para protestar contra a perda de
movimentos sindicais e sociais nas lutas por direitos e liberdade de expressão, e defender a democracia
e as políticas públicas.
direitos Além desses, outro movimento de contrapoder na
Refletir sobre os desafios da classe trabalhadora exige luta pela Saúde dos Trabalhadores foi engendrado pelas
a análise a partir da perspectiva histórico-dialética, pela po- associações das vítimas do amianto, que conquistaram
tencialidade de desvelar as contradições contemporâneas ação de banimento do amianto no Brasil, no Supremo
da atual fase do capitalismo; assim como compreender a Tribunal Federal (STF), em 2017.
afirmativa de Saramago7 de que o caos é uma ordem por Ação coletiva, com ampla participação, também foi 7. SARAMAGO, J. O homem
duplicado. São Paulo: Companhia
decifrar, especialmente em um cenário no qual as relações construída na greve geral contra a reforma trabalhista, das Letras, 2008.
humanas são desprovidas de razão e ética. demonstrando a imperiosa necessidade do movimento
No entanto, especialmente, impõe aos movimentos sindical se reformular integrando as lutas societárias e
sindicais o necessário rompimento com o atual padrão da defesa das políticas sociais, em conjunto com a socie-
do capitalismo no sentido de superar ações que levaram dade e as diversas associações compromissadas com a
a acomodação e burocratização, com alternativas enges- emancipação social.
sadas na melhoria das condições do trabalho por dentro Assim, estruturar ação política dos trabalhadores
das estruturas e da regulação normativa, ditadas pelas em prol da defesa da saúde no trabalho, em cenário de
engrenagens do capital, e que são incompatíveis com a regressão de direitos, requer a construção de um pro-
defesa da Saúde do Trabalhador. Consequentemente, é cesso organizacional de unidade entre os movimentos
impossível implementar estratégias de ‘trabalho decente’, sindicais, associações de adoecidos/ acidentados do
quando a ordem sócio técnica do trabalho se estrutura trabalho e dos movimentos sociais na defesa da Saúde
pela servidão e dissociabilidade destrutiva no espaço de do Trabalhador.
trabalho, conforme define Antunes8, que se concretiza Os desafios atuais da classe trabalhadora se 8. ANTUNES, R. O privilégio da
servidão: o novo proletariado de
pela via da precarização e sua capacidade de subordinar inserem no âmbito de uma agenda civilizatória de serviços na era digital. São Paulo:
Boitempo, 2018.
os trabalhadores e desregulamentar a proteção à saúde. lutas sociais unificados por temas que levem à coesão
Em contrapartida, o período pós-2015, marcado social, a ser construída coletivamente. Entre eles, a
pela crise política, econômica e social e por forte aparato retomada do tema da democracia e saúde e o modelo
da repressão, extermínio de lideranças e criminalização de seguridade social, formulado na Constituição de
dos movimentos sociais no País, foi também marcado por 1988. Nessa perspectiva, o sistema universal enquanto
expressivas manifestações da população que ocuparam as instrumento de produção em saúde e de cidadania.

Foto: Flickr Commons

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Dreams CANCELLED
Street art
Boston, EUA.
70

As Medidas Provisórias no contexto


Covid-19
Eduardo Bonfim da Silva
Geordeci Souza
Olga Rios

As Medidas Provisórias (MP) são normas com todos os conselhos, comitês, comissões, grupos e
força de lei, editadas pelo Presidente da República outros tipos de colegiados ligados à administração
em situações de relevância e urgência. Apesar de pública federal que tenham sido criados por de-
produzirem efeitos jurídicos imediatos, elas pre- creto ou ato normativo inferior, incluindo aqueles
cisam de aprovação do Congresso Nacional para mencionados em lei, caso a respectiva legislação
1. BRASIL. Decreto nº 9.759,
de 11 de Abril de 2019. Extingue serem incorporadas definitivamente à legislação. não detalhe as competências e a composição do
e estabelece diretrizes, regras
e limitações para colegiados da
As MP valem por até 120 dias. Se não forem colegiado. Segundo o governo, seriam extintos em
administração pública federal.
Diário Oficial da União. 12
aprovadas pela Câmara e pelo Senado nesse pe- torno de 700 colegiados. No dia 13 de junho de
Abr. 2019. ríodo, ou se forem rejeitadas, perdem a validade. 2019, o STF, na Ação Direta de Inconstitucionali-
2. BRASIL. Ação Direta de Depois de ser votado no plenário, o texto da MP, dade (ADI) 6.1212, concedeu uma liminar (decisão
Inconstitucionalidade 6121 de 22
de Abril de 2019. Relator: Min. se for alterado, passa a se chamar Projeto de Lei provisória) limitando o alcance do decreto que
Marco Aurélio, Reqte.(s) Partido
dos Trabalhadores. Diário Oficial
de Conversão (PLV ) e precisa ser enviado ao Pre- extinguia todos os colegiados ligados à administra-
da União. 23 Abr. 2019. sidente da República para sanção ou veto. O veto ção pública federal, como conselhos e comitês em
3. BRASIL. Medida Provisória pode ser total ou parcial. Todos os vetos têm de que há participação da sociedade civil. A decisão
nº 873, de 1º de março de 2019.
Altera a Consolidação das Leis ser votados pelo Congresso. Para rejeitar um veto, provisória resguardou tão somente os colegiados
do Trabalho, aprovada pelo
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de é preciso o voto da maioria absoluta de deputados previstos em lei. A decisão final é aguardada até
maio de 1943, para dispor sobre
a contribuição sindical, e revoga
(257) e senadores (41). Se a MP for aprovada sem os dias de hoje.
dispositivo da Lei nº 8.112, de alterações, é promulgada pelo Congresso. A extinção dos colegiados de participação
11 de dezembro de 1990. Diário
Oficial da União. 2 Mar. 2019. De 1º de janeiro a 10 de agosto de 2020, foram social representa um retrocesso social. Não custa
4. BRASIL. Medida Provisória publicadas pelo Presidente da República 78 MP; e, lembrar que esses Colegiados têm o condão cons-
nº 905, de 11 de novembro de
2019. Institui o Contrato de desse total, 63 (ou 80,7%) destinam-se ao combate dos titucional de garantir a participação da socieda-
Trabalho Verde e Amarelo, altera
a legislação trabalhista, e dá ou-
efeitos da crise decorrente da Covid-19. São medidas de na escolha de prioridades da agenda política,
tras providências. Diário Oficial que liberam crédito extraordinário, destinam linhas bem como na formulação de políticas públicas, e
da União. 12 Nov. 2019.
de crédito, criam programas trabalhistas e concedem consolidam a institucionalização da participação
auxílio a setores específicos. da sociedade civil, constituindo-se um espaço de
No total das MP publicadas, constata-se o se- desenvolvimento da democracia deliberativa. Não
guinte balanço: 42 estão em tramitação; apenas 16 haverá transparência na aplicação dos recursos
foram convertidas em lei e 21 perderam a validade, ou públicos sem a participação social.
seja, caducaram. É importante ressaltar que os textos Em outra ação antidemocrática, o governo
que caducaram tiveram força de lei por 120 dias, mas tem promovidos sucessivos ataques às entidades
depois as regras simplesmente deixaram de valer. sindicais e aos direitos da classe trabalhadora. Um
O fato de não conseguir converter suas me- exemplo cristalino foi a edição da MP 873/20193,
didas em leis, de fato, pode estar relacionado que revogava a obrigação dos empregadores e
com a fragilidade de negociação do governo no da administração pública de descontar em folha
Congresso. Isso porque é preciso o aval de de- as contribuições dos empregados e servidores
putados e senadores antes do esgotamento do públicos para suas entidades sindicais; exigindo
prazo necessário. uma inexequível autorização individual expressa
Desde a posse, o governo Bolsonaro tem e impondo a cobrança por boleto bancário. Em 28
intensificado o ataque à participação social dura- de junho de 2020, teve sua vigência encerrada, em
mente conquistado na Carta Magna de 1988. Em função de não ter sido convertida em lei.
11 de abril de 2019, o governo editou o Decreto Em seguida, o presidente editou a MP
nº 9.759/2019 1 que determinava a extinção de 905/20194 (11 de novembro de 2019), que criava
71

a Carteira de Trabalho Verde e Amarela. Essa MP também para acabar com a relação de trabalho no 5. BRASIL. Medida Provisória nº
927, de 22 de Março de 2020. Dis-
estabelecia um novo tipo de contratação válido Brasil, enfraquecendo ainda mais os direitos dos põe sobre as medidas trabalhistas
para enfrentamento do estado de
para jovens de 18 a 29 anos e para desempregados trabalhadores e reduzindo seu salário. calamidade pública reconhecido
pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20
acima de 55 anos. A proposta implicava perdas tra- Ademais, como não bastasse, o Presidente de março de 2020, e da emergência
balhistas e previdenciárias, além de retirar direitos publicou a MP 946/20207 – que extinguiu o Fundo de saúde pública de importância
internacional decorrente do
consagrados e beneficiar os patrões com redução PIS-Pasep (Programa de Integração Social – Pro- coronavírus (covid-19), e dá outras
providências. Diário Oficial da União.
de encargos. A MP 905/2019 acabou caducando no grama de Formação do Patrimônio do Servidor 23 Mar. 2020.
dia 20 de abril de 2020, ou seja, não foi analisada Público), instituído pela Lei Complementar nº 26, 6. BRASIL. Medida Provisória
nº 936, de 1 de Abril de 2020.
pelo congresso dentro do prazo legal. de 11 de setembro de 1975 – e transferiu o seu Institui o Programa Emergencial
No entanto, o pacote de maldades continuou patrimônio para o Fundo de Garantia do Tempo de Manutenção do Emprego e da
Renda e dispõe sobre medidas
durante a pandemia. Primeiro houve a publicação de Serviço. Durante debates no congresso, várias trabalhistas complementares
para enfrentamento do estado de
da MP 927/20205 que tratava de medidas trabalhis- emendas foram aprovadas comprometendo os calamidade pública reconhecido
pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20
tas para enfrentamento do estado de calamidade interesses do governo, tendo o seu líder, no dia de março de 2020, e da emergência
pública. Ocorre que não garantia emprego nem da sessão plenária, apresentado requerimento de saúde pública de importância
internacional decorrente do corona-
renda, e ainda flexibilizava as regras de proteção solicitando a retirada de pauta, tendo ele sido vírus (covid-19), de que trata a Lei nº
13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e
à Saúde do Trabalhador. Surgiu com o pretexto aprovado. No dia 4 de agosto de 2020, a MP ca- dá outras providências. Diário Oficial
da União. 2 Abr. 2020.
de ‘garantir empregos’, mas o que estava claro em ducou encerrando assim sua vigência.
7. BRASIL. Medida Provisória nº
seus dispositivos era a edição de mais normas que São sucessivos os ataques governamentais 946, de 7 de Abril de 2020. Extingue
enfraqueciam as entidades sindicais, tirando-as do aos direitos dos trabalhadores e suas entidades o Fundo PIS-Pasep, instituído pela
Lei Complementar nº 26, de 11
processo negocial; e o aprofundamento da preca- de classe, desconstituindo, assim, o pacto social de setembro de 1975, transfere o
seu patrimônio para o Fundo de
riedade do trabalho e uma clara transferência dos consolidado em nossa constituição. Garantia do Tempo de Serviço, e dá
outras providências. Diário Oficial da
prejuízos econômicos da crise da Covid-19 para a União. 8 Abr. 2020.
classe trabalhadora, especialmente para os mais
pobres. Em 19 de julho de 2020, a MP 927/2020
caducou e, assim, teve sua vigência encerrada.
Depois, foi publicada a MP 936/20206, que
instituiu o Programa Emergencial de Manutenção
do Emprego e da Renda e dispôs sobre medidas
trabalhistas complementares para enfrentamento
do estado de calamidade pública. Essa MP, além
de não garantir a remuneração integral ao traba-
lhador, já que o cálculo foi baseado no benefício
do seguro-desemprego (80%), ainda colocou o
trabalhador frente a frente para negociar com
seu empregador, sem nenhuma proteção duran-
te o processo negocial. Aproveitando-se da crise
gerada pela pandemia do novo coronavírus, o
governo colocou em risco o trabalho de milhões
de brasileiros propondo essa MP, que autorizou a
suspensão do contrato de trabalho e/ou redução da
jornada/salário por até 90 dias; e ainda permitiu a
negociação de redução de salário sem a participa-
ção dos sindicatos, ação referendada pela maioria
do STF no julgamento da ADI 6.363 – decisão
que põe em risco as garantias dos trabalhadores
e põe de lado a função social dos sindicatos como
entidades representativas de inúmeras categorias
profissionais do País. A MP 936/2020 foi convertida
na Lei nº 14.020/2020, de 6 de julho de 2020.
Pasmem, o Congresso conseguiu piorar o que já
não era bom; e o mais grave, manteve os sindicatos
fora de das negociações. Ou seja, contribuíram
Banksy
Street art
Bristol, Inglaterra.
Fonte: Reprodução Facebook
3
Gestão democrática e controle
social no SUS: dilemas, avanços
e desafios da luta pelo direito à
saúde dos trabalhadores
Coordenação
Debora Lopes de Oliveira & Geordeci Souza
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.06
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Participação social e o direito à saúde 1

1. Este texto está pautado no


Maria Inês Souza Bravo artigo das autoras: Participação
Juliana Souza Bravo de Menezes Popular e Controle Social na
Saúde. BRAVO, M. I. S., et al.
(Org.). Saúde na atualidade: por
um sistema único de saúde estatal,
O SUS é nosso, ninguém tira da gente, universal, gratuito e de qualidade.
Rio de Janeiro: UERJ, Rede
direito garantido não se compra e não se vende! Sirius, 2011. Disponível em: https://
www.adufrj.org.br/wp-content/
uploads/2013/03/Revista_cader-
nos_de_Saude_PAGINA.pdf.
Acesso em: 14 nov. 2020.
O brado acima é conhecido por quem vem Vianna3 (2009), ao mapear a produção acadêmica 2. A Frente Nacional contra a
participando dos atos em defesa da política pública recente no Brasil sobre o tema da participação, sinaliza Privatização da Saúde, criada em
2010, é composta por diversas
de saúde brasileira, pois tem sido incansavelmente que a maior parte dos estudos analisados compreende entidades, movimentos sociais,
fóruns de saúde, centrais sindicais,
cantado por militantes dos diversos Fóruns de Saúde a participação social como componente essencial sindicatos, partidos políticos e
existentes nos estados brasileiros e da Frente Nacional para a preservação do direito universal às políticas de projetos universitários e tem por
objetivo defender o Sistema Único
contra a Privatização da Saúde2. seguridade social, construção da cidadania e fortaleci- de Saúde (SUS) público, estatal,
gratuito e para todos, e lutar contra
Este texto pretende oferecer subsídios para o mento da sociedade civil3, relacionando diretamente a privatização da saúde e pela
Reforma Sanitária formulada nos
fortalecimento da participação popular na atual con- à concepção da participação como parte do processo anos 1980.
juntura. Vai ressaltar como mecanismo importante de democratização do Estado4. 3. VIANNA, M. L. T. W. Participa-
os Conselhos de Saúde oriundos do processo de A participação social tem como uma de suas ção em saúde: do que estamos
falando? Sociologias. v. 11, n.
redemocratização da sociedade brasileira dos anos expressões a ideia da sociedade controlando o Estado, 21, 2009.

1980 e inscritos na Constituição de 1988, bem como ou seja, a proposta é transformar o Estado superando 4. A concepção adotada de
sociedade civil é na perspectiva
os Fóruns em defesa das Políticas Públicas. o seu caráter autoritário e socialmente excludente, gramsciana, sendo considerada
como o espaço no qual se
A sociedade brasileira, na década de 1980, ao por meio da presença e organização de segmentos organizam os interesses em
mesmo tempo que vivenciou um processo de democra- importantes na democratização desse espaço. A fis- confronto, sendo o lugar onde se
tornam conscientes os conflitos e
tização política superando o regime ditatorial instaurado calização – ideia tão presente na participação social e contradições. É na sociedade civil
que se encontram os ‘aparelhos
em 1964, experimentou uma profunda e prolongada no controle democrático das políticas sociais – nasce privados de hegemonia’ que são os
partidos de massa, os sindicatos,
crise econômica que persiste até os dias atuais. mais com o intuito de impedir o Estado transgredir do as diferentes associações, os
As decepções com a transição democrática ocor- que induzi-lo a agir, pois o Estado precisa ser vigiado, movimentos sociais, ou seja, tudo
que resulta de uma crescente
reram, principalmente, com seu giro conservador após contido, corrigido em suas práticas habituais5. socialização da política. A socie-
dade civil gramsciana nada tem
1988, não se traduzindo em ganhos materiais para a Com o processo de democratização do País, a ver com o que hoje se chama
de ‘terceiro setor’, pretensamente
massa da população. novos sujeitos coletivos entram em cena estabele- situado para além do Estado e do
Um aspecto importante a ser ressaltado, nesse pe- cendo nova relação Estado-sociedade qualificando o mercado. Esta nova concepção de
sociedade civil que tem sido muito
ríodo, foi o processo constituinte e a promulgação da processo de participação. É nesse contexto que surge difundida é restrita, despolitizada
e tem equívocos teóricos. SEME-
Constituição de 1988, que representou, no plano jurídico, a ‘participação social’ que tem como questões centrais RARO, G. Gramsci e a Sociedade
Civil. Petrópolis: Vozes, 1999.
a promessa de afirmação e extensão dos direitos sociais a universalização dos direitos sociais, a ampliação
5. Gramsci é o precursor da
em nosso país diante da grave crise e das demandas de en- do conceito de cidadania e a nova compreensão do concepção de Estado ampliado,
frentamento dos enormes índices de desigualdade social. papel do Estado. com a elaboração da teoria
marxista ampliada do Estado.
A Constituição Federal introduziu avanços Historicamente, a categoria ‘controle social’ foi Diversos autores, a partir de suas
elaborações, têm contribuído para
que buscaram corrigir as históricas injustiças sociais entendida apenas como controle do Estado ou do o debate e produção dessa pers-
pectiva, analisando as sociedades
acumuladas secularmente, incapaz de universalizar empresariado sob as massas. É nessa acepção que quase capitalistas avançadas em que se
direitos tendo em vista a longa tradição de privatizar sempre o controle social é usado na sociologia, ou seja, evidenciou a maior complexidade
do fenômeno estatal, podendo-se
a coisa pública pelas classes dominantes. no seu sentido coercitivo sobre a população. Entretanto, destacar: BRAVO, M. I. S. Serviço
Social e Reforma Sanitária: lutas
Com relação à descentralização do poder federal o sentido de controle social inscrito na Constituição é Sociais e Práticas Profissionais.
São Paulo: Cortez/UFRJ, 1996.
e da democratização das políticas públicas, importan- o da participação da população na elaboração, imple-
tes dispositivos foram definidos no sentido da criação mentação e fiscalização das políticas sociais6. 6. CARVALHO, A. I. Conselhos
de Saúde no Brasil: participação
de um novo pacto federativo, sendo o município Essa última concepção de controle social tem cidadã e controle social. Rio de Ja-
neiro: IBAM/Fase, 1995. Carvalho
reconhecido como ente autônomo da federação, como marco o processo de redemocratização da so- trabalha a evolução do conceito
controle social, identificando
transferindo-se para o âmbito local novas compe- ciedade brasileira com o aprofundamento do debate quatro momentos diferenciados: o
tências e recursos públicos capazes de fortalecer o referente à democracia. Estado controlando a sociedade; a
sociedade apenas completando o
‘controle social e a participação da sociedade civil’ A noção de democracia é concebida por diversos Estado; a sociedade combatendo o
Estado; e a sociedade participando
nas decisões políticas. autores como um processo histórico e está relacio- das decisões do Estado
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7. INGRAO, P. As massas
e o poder. Rio de Janeiro,
nada com a soberania popular. Nessa concepção, a espaços que podem auxiliar os defensores da política
Civilização Brasileira, 1980. democracia representativa é considerada uma vitória pública, na defesa dos seus direitos. Concebe-se o
8. PAULO NETTO, J. dos movimentos organizados da sociedade civil, en- controle social, não somente como uma luta legal por
Democracia e Transição
Socialista: escritos de teoria e tretanto, é percebida como uma vitória parcial uma um direito adquirido, mas como a potencialidade e
política. Belo Horizonte, Oficina
de Livros. 1990. vez que, na sociedade capitalista, existe a hegemonia criatividade dos usuários na elaboração da política, já
9. Existem outros mecanismos
da classe capitalista dominante, havendo um limite que são estes os que realmente sabem, por perceberem
que também, se acionados,
podem e devem ser entendidos
interno, pois as principais decisões econômicas são no cotidiano, como deve ser uma política pública e
enquanto espaços de exercício tomadas pelo poder privado. Para Ingrao7, a demo- quais as falhas atuais dos serviços.
do controle democrático, a
saber: o Ministério Público, os cracia precisa ser ampliada, havendo necessidade de A partir dos anos 1990, assistiu-se ao redireciona-
órgãos de defesa do consumidor,
como o Procon; os meios de
democracia direta, de base, articulada à democracia mento do papel do Estado, já no contexto do avanço das
comunicação e os Conselhos de
profissionais.
representativa para se concretizar a democracia pro- teses neoliberais. A afirmação da hegemonia neoliberal no
10. BARROS, E. O controle
gressiva, ou seja, a democracia de massas. Paulo Netto8 Brasil, com a redução dos direitos sociais e trabalhistas,
social e o processo de considera que a democracia de massas – com ampla desemprego estrutural, precarização do trabalho, desmon-
descentralização dos ser-
viços de saúde. Brasília, DF: participação social – deve conjugar as instituições te da previdência pública, sucateamento da saúde e da
Ministério da Saúde, 1994.
parlamentares e os sistemas partidários com uma educação, tende a debilitar os espaços de representação
rede de organizações de base: sindicatos, comissões coletiva e controle democrático sobre o Estado, conquistas
de empresas, organizações profissionais e de bairro, da Constituição de 1988.
movimentos sociais urbanos e rurais, democráticos. Na atualidade brasileira, considera-se fundamen-
tal envolver os diversos sujeitos sociais preocupados
com as políticas públicas defendendo a ampliação dos
direitos sociais e as conquistas obtidas na Constitui-
ção de 1988. Ressalta-se, como fundamental nesse
processo, a efetiva participação da sociedade civil,
e mecanismos importantes dessa resistência são os
Conselhos e Conferências concebidos como espaços
de tensão entre interesses contraditórios na luta por
melhores condições de vida.
A existência de Conselhos no Brasil não é uma ex-
periência recente, conforme ressaltam diversos autores,
cabendo destacar: Raichelis11 e Gohn12. Destacam-se as
práticas operárias do início do século XX e as comissões
de fábrica, estimuladas pelas oposições sindicais nos
anos 1970 e 1980, como também a ampliação dos
movimentos sociais nesse período e sua luta contra o
autoritarismo, implantado no País após 1964.
Os Conselhos de Saúde são uma inovação na
gestão e apontam para a democratização da relação
Estado-Sociedade a partir da inserção de novos sujeitos
sociais na construção da esfera pública13.
As concepções presentes sobre os Conselhos têm
sido problematizadas por diversos autores. Gohn14
11. RAICHELIS, R. Esfera
pública e os conselhos de O controle social é um direito conquistado pela ressalta que os Conselhos, como instrumento da de-
assistência social: caminhos
da construção democrática. São Constituição Federal de 1988, mais precisamente do mocracia, estiveram e estão presentes no debate entre
Paulo: Cortez, 1998. princípio ‘participação popular’, e são garantidas setores liberais e de esquerda.
12. GONH, M. G. Conselhos
populares e participação popular.
duas instâncias formais, que são também espaços de A diferença é que eles são pensados como instrumen-
Serviço Social & Socieda- luta: o ‘conselho de saúde’ e a ‘conferência de saúde’. tos ou mecanismos de colaboração pelos liberais; e
de, n. 34, 1990.
Destaca-se, entretanto, que esses não são os como vias ou possibilidades de mudanças sociais, no
13. BRAVO, M. I. S., et al. (Org.)
Política Social e Democra- únicos espaços de ação para o exercício do controle sentido de democratização das relações de poder, pela
cia. São Paulo: Cortez; Rio de
democrático apesar de, sem dúvida, serem mecanismos esquerda14(107).
Janeiro: UERJ, 2001.

14. GONH, M. G. Conselhos


fundamentais, já que estão previstos em lei federal9,10. Algumas reflexões são possíveis de serem fei-
Gestores e Participação
Sociopolítica. 2. ed. São
Essas instâncias podem e devem ser parceiras tas a partir da revisão da bibliografia e da pesquisa
Paulo: Cortez, 2003. na luta pelo controle social. Ou seja, são instituições/ realizada por Bravo 14 com relação aos limites e
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possibilidades dos Conselhos, tendo por referência Nesse contexto, é fundamental, na contracor-
a concepção deles enquanto um dos espaços de rente, a defesa da democracia e da participação da
luta pela conquista da hegemonia. sociedade nas políticas públicas.
Considera-se que esses mecanismos são impor- Nos anos 2000, foram criados e/ou estimulados
tantes para a democratização do espaço público e não outros mecanismos de participação para pressionar os
podem ser nem supervalorizados, nem subvalorizados. Conselhos e fortalecer a luta por saúde, considerada
Algumas questões, entretanto, precisam ser enfrenta- como melhores condições de vida e de trabalho. Des-
das para a ampliação de seu potencial de ação, a saber: tacam-se como significativos a Frente Nacional contra
falta de respeito pelo poder público das deliberações a Privatização da Saúde e os Fóruns/Frentes estaduais
dos Conselhos, assim como das leis que regulamen- de Saúde existentes em diversos estados brasileiros.
tam seu funcionamento; burocratização das ações e Considerando que o Sistema Único de Saúde (SUS)
dinâmica dos Conselhos que não viabilizam a efetiva é fruto de lutas sociais e patrimônio do povo brasileiro,
participação dos representantes; posicionamento não se pode apenas ficar observando sua destruição nos
dos Conselhos de forma tímida em relação à agenda diversos estados a partir da implantação da lógica do lucro.
neoliberal; falta de conhecimento da sociedade civil Fiéis às lutas e aos princípios da Reforma Sanitá-
organizada sobre os Conselhos, bem como ausência ria brasileira que concebeu a saúde como direito de
de articulação mais efetiva dos representantes com todos e dever do Estado e ampliou a concepção de
suas bases; contribuição ainda incipiente deles para a saúde para melhores condições de vida e trabalho, ou
democratização da esfera pública; chantagem institu- seja, ênfase nos determinantes sociais, a Frente Nacio-
cional do poder executivo ao acenar para o prejuízo nal contra a Privatização da Saúde se posiciona contra
para a população, caso as propostas apresentadas a privatização da saúde e em defesa da saúde pública
sejam contestadas pelos conselheiros e falta de so- estatal e universal, procurando articular as lutas no
luções jurídicas mais ágeis quanto à necessidade de campo da saúde a um outro projeto de sociedade.
enfrentamento com o executivo. Outro aspecto a ser Ressalta-se que, na atual conjuntura de crise es-
ressaltado é a articulação da luta por direitos com o trutural do capitalismo, de barbarização da vida social,
movimento por transformações no plano econômico, com mudanças regressivas em todas as dimensões da
superando a visão politicista da política social. vida social e com um horizonte ainda mais desfavorável
A concepção de Estado participativo é muito à classe trabalhadora, o desafio que está colocado é
recente e se problematiza quando se tem uma conjun- ampliar a luta coletiva, fortalecendo as lutas sociais e a
tura, que desmobiliza a participação popular e defende organização das classes subalternas, na defesa da eman-
o Estado mínimo – ausente nas políticas públicas e cipação política, tendo como horizonte a emancipação
sociais, como preconiza o projeto neoliberal. humana, e um novo projeto societário anticapitalista.

Controle social no SUS: mecanismos formais


– Conselhos e Conferências, e outros
mecanismos de controle social
Ronald Ferreira dos Santos

A democracia participativa se desenvolve a partir estatuto de nossa legalidade abre a nossa Constituição
da democracia representativa e entende que a parti- Federal de 19881, quando, no parágrafo único de seu 1. BRASIL. Constituição (1988).
Constituição da República
cipação do povo se dá não somente pela escolha de art. 1º, torna pétreo “Todo o poder emana do povo, Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal, 1988. Dis-
seus representantes, mas também por outras formas que o exerce por meio de representantes eleitos ou ponível em: http://www.planalto.
de participação no governo, por meio de plebiscitos, diretamente, nos termos desta Constituição”. Essa gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em: 14
referendos, audiências públicas, Conselhos e Con- forma de democracia tenta aproximar o governo do nov. 2020.

ferências de políticas públicas. Essa formalidade ou Estado com seus governados, de maneira a entender
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melhor seus anseios e necessidades e fazer um governo o Estado de Direito significa o acesso ao direito à
que atenda a essas demandas. Essa forma de entender cidadania por meio de políticas públicas. Dessa for-
a democracia, incorporada pelo SUS no Brasil, permite ma, ao não respeitar a soberania da vontade popular
um maior diálogo e controle das políticas públicas. de uma eleição majoritária e ao instituir a Emenda
Com a Emenda Constitucional (EC) nº 20 de Constitucional nº 95 de 20163 (EC 95), que congela
2. BRASIL. Emenda Constitu-
cional nº 20, de 15 de dezembro
19982, a ofensiva neoliberal retirou a expressão “Par- os gastos públicos por 20 anos, romperam com nosso
de 1998. Modifica o sistema de ticipação da Comunidade [...]” do inciso VII do art. contrato social.
previdência social, estabelece
normas de transição e dá outras 194 da Constituição, que tratava do caráter demo- Tal investida precisa ser compreendida dentro
providências. 1998. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ crático e descentralizado da gestão administrativa da das disputas de rumos, não só do Brasil, mas também
ccivil_03/constituicao/emendas/
emc/emc20.htm#:~:text=%-
seguridade social, deixando explícita a Participação do mundo, não apenas do nível nacional, mas, sobretu-
C2%A7%201%C2%BA%20 da Comunidade apenas no inciso III do art. 198 que do, do nível local, do território onde vivemos – como
%2D%20%C3%89%20veda-
da%20a,f%C3%ADsica%2C%20 estabelece as diretrizes do SUS. dizem, “do global ao local” –, pois, o que está em
definidos%20em%20lei%20
complementar. Acesso em: 14 O Brasil desenvolveu algumas boas experiências disputa é como vivemos e como morremos, quem vive
nov. 2020. de democracia participativa, como a participação social e quem morre, e a disputa entre a vida e a morte.
3. BRASIL. Emenda Constitu-
cional nº 95, de 15 de dezembro
ratificada pelo SUS, reconhecendo-a como parte estru- As consequências dessas disputas podem ser o
de 2016. turante da sua política. O SUS, mais que uma política avanço civilizacional ou uma tragédia humanitária,
Altera o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, pública de saúde, é um modelo de desenvolvimento pois seus desdobramentos impactam diretamente
para instituir o Novo Regime
Fiscal, e dá outras providências.
social e político. Outras experiências também são em vidas humanas. A escolha é: todos têm direito
2016. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
relevantes, como as das áreas da educação, assistên- à vida? Alguns podem ser elimináveis? O conheci-
tuicao/emendas/emc/emc95.htm. cia social, alimentação, ambiental, moradia, reforma mento humano, a ciência e a tecnologia impactarão
Acesso em: 14 nov. 2020.
agrária e direitos trabalhistas, e estão dentro da lógica nas relações de produção da vida; no avanço ou
da compreensão de democracia além da mera repre- na tragédia, no local e no global. É possível ver
sentação, mas nenhuma delas conseguiu construir o espectro da morte cobrir vastos territórios pelo
uma rede de participação da comunidade na gestão mundo: hoje é a pandemia que abate vítimas ino-
participativa da política como o SUS. centes, principalmente os mais vulneráveis, mas é
Para entendermos o conceito de ‘participação bom lembrar das gaiolas com crianças na fronteira
social’ incorporado pelo SUS, é preciso termos presen- dos Estados Unidos; dos novos navios negreiros
te a luta pelo direito humano à saúde protagonizada no Mediterrâneo; a xenofobia e a intolerância ga-
pelo Movimento da Reforma Sanitária e, também, a nhando força no Brasil e no mundo; é a violência
compreensão de democracia participativa. Reconhecer como solução de conflitos; é uma brutal e cruel
a participação social como uma das diretrizes do SUS concentração de riqueza no mundo. Diante disso,
significa entender que a população local, por meio a defesa da vida passa a ter um caráter civilizatório
dos Conselhos e das Conferências de Saúde, con- na contemporaneidade.
tribui para a consolidação do SUS, desde a troca de Fui eleito presidente do Conselho Nacional de
informações, de debates, experiências, proposições e Saúde (CNS) em dezembro de 2015, o ano se encerra
deliberação até a socialização e a avaliação da política no Brasil em um ambiente bastante conflagrado na
pública. Ou seja, a população torna-se sujeito ativo política, um cenário de fortes ameaças à democracia
da política pública de saúde, e não mera receptora e aos direitos do povo, a Presidenta da República está
ou expectadora. Em outras palavras, o SUS incorpora encerrando o seu primeiro ano do segundo mandato
a concepção de que a participação da comunidade é com muitas dificuldades de governar, em virtude
fundamental para a ampliação da democracia e para de uma feroz oposição no Legislativo, nos meios de
a efetivação das políticas públicas de saúde. comunicação e na sociedade; na saúde, também se
A Constituição Federal de 1988 vem sendo ataca- operam nesse período grandes movimentações, tem-se
da desde sua promulgação, o que impôs barreiras para concluída a etapa nacional da XV Conferência Na-
efetivação de políticas públicas que dessem materiali- cional de Saúde, eleição e renovação da composição
4. BRASIL. Emenda Constitucio- dade aos seus apontamentos, como o direito à saúde do CNS, fechamento do Plano Nacional de Saúde
nal nº86, 17 de março de 2015.
Altera os arts. 165, 166 e 198 e ao bem-estar social. Todavia, os mais duros ataques (PNS) 2016/2019 e aprovação da EC 864, que reduz
da Constituição Federal, para
tornar obrigatória a execução
ao Estado Democrático de Direito, preconizado pela o financiamento para a saúde.
da programação orçamentária Constituição Federal de 1988, foram feitos justamente Nesse contexto, os primeiros meses do ano de
que especifica. 2015. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ ao seu caráter democrático e de direito. 2016 foram decisivos no processo de resistência na
ccivil_03/constituicao/emendas/
emc/emc86.htm. Acesso em: 14 O Estado Democrático diz respeito à soberania, à defesa do SUS, principalmente pelas inciativas do
nov. 2020.
vontade popular e ao respeito às minorias, enquanto CNS; entre elas, o planejamento estratégico do CNS
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para o período 2016/2019, que atualizou a missão do No período seguinte, foi possível dar materiali-
CNS e aprovou uma agenda prioritária. dade à construção coletiva da gestão participativa do
Definiu-se como Missão do CNS: Defender o SUS. Produzimos muito, alguns dos bons exemplos,
SUS público, universal e de qualidade, mobilizando a além da potência que foram, ainda precisam repercutir
sociedade brasileira em defesa do Estado Democrático muito, nos ajudar a acumular mais forças. Realizamos a
e do direito à saúde, e participar da formulação e I Conferência Nacional Livre de Comunicação e Saúde,
monitoramento da política nacional de saúde, for- a II Conferência Nacional de Saúde das Mulheres, a
talecendo o caráter deliberativo do controle social. Conferência Nacional Livre de Juventude e Saúde e a
Outrossim, a agenda política do CNS5, tendo I Conferência Nacional de Vigilância em Saúde, esta 5. CONSELHO NACIONAL DE
SAÚDE. Reunião Extraordinária
como elementos mobilizadores o modelo de atenção última presenteou o SUS, depois de 30 anos, com a do 62ª. 2018, Brasília, DF, 2018.
Disponível em: http://conselho.
pactuado na Constituição de 1988 e o seu financia- Política Nacional de Vigilância em Saúde. saude.gov.br/atas-cns. Acesso
mento, assim ficou definida: 1) Acompanhamento Os desafios são muito grandes: o debate da saúde em: 13 jan. 2021.

do PNS, do Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) como direito, que considere a soberania nacional e os
e dos relatórios de gestão; 2) Ação conjunta com interesses do nosso povo e da nossa nação, precisa
as organizações que atuam no CNS; 3) Fortalecer transformar-se em Soluções que permitam fazer do
e qualificar o processo de trabalho da Mesa Dire- Direito a garantia do acesso a ações e serviços de
tora, Pleno e Comissões do CNS; 4) Aperfeiçoar a saúde. Por meio das representações dos usuários,
Política de Educação Permanente do Controle So- profissionais de saúde, gestores e prestadores, o
cial; 5) Qualificar a participação do controle social CNS foi buscar, na década de 1980, inspiração para
na formulação e avaliação das políticas de saúde; ampliar sua contribuição na luta em defesa da vida e
6) Apoiar a implementação da Política Nacional de do Direito à Saúde e para construir um processo de
Educação Permanente no SUS; 7) Defender demo- resistência à onda de retrocessos, assim, convocamos
cracia participativa e representativa; 8) Fortalecer a sociedade brasileira para realizar a nossa ‘8ª + 8’,
e promover a articulação com os demais órgãos de a XVI Conferência Nacional de Saúde.
controle social do SUS; 9) Lutar por financiamento

Foto: Acervo CNS


suficiente e alocação eficiente dos recursos financeiros
do SUS para garantia do modelo de atenção à saúde,
conforme pactuado na Constituição Federal de 1988;
10) Promover a participação dos Conselhos de Saúde
na regionalização e na gestão do SUS regional; 11)
Definir estratégias específicas em relação à população
indígena; 12) Promover a valorização do trabalhador
da saúde e a desprecarização das relações de trabalho
no SUS; 13) Ordenar e regular a formação profissional
em saúde, considerando que a ordenação é uma ação
estratégica do controle social; 14) Contribuir para
a implementação da Política Nacional de Saúde do
Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT); 15) Instituir
uma Política de Comunicação Social do CNS em defesa
do SUS e do direito à saúde; 16) Apoiar a pesquisa e o Para além do resgate histórico, 33 anos após a reali-
desenvolvimento tecnológico na área da saúde e sua zação da VIII Conferência Nacional de Saúde, o controle
incorporação pelo SUS, com a garantia da proteção social tinha e tem a centralidade de seus debates em
do sujeito de pesquisa, controle social; 17) Defender uma agenda muito próxima daquela de 1986. É por essa
a Política Nacional de Assistência Farmacêutica. razão que o tema central e os eixos escolhidos para a
Tanto nas deliberações da XV Conferência XVI Conferência Nacional de Saúde foram os mesmos,
Nacional Saúde de Saúde quanto no planejamento ou seja, o tema central é ‘Democracia e Saúde: Saúde
estratégico do CNS reafirmou-se a necessidade de como Direito e Consolidação e Financiamento do SUS’.
qualificação e fortalecimento dos Conselhos de Saú- Os Eixos temáticos foram: I – Saúde como direito; II –
de e do sistema de Conselhos como uma demanda Consolidação dos princípios do Sistema Único de Saúde
urgente. Essa demanda foi consignada no relatório da (SUS); e III – Financiamento adequado e suficiente para
referida Conferência, e ratificada especificamente na o SUS. Entretanto, diferentemente de 1986, a arquitetura
Resolução nº 507 do CNS, de 16 de março de 2016. institucional do Estado Democrático de Direito está regis-
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trada na Constituição Brasileira, e o caráter de inovação da defesa da vida na centralidade de todo do planeta; e,
participação social na saúde está reconhecido legalmente no nosso país, a tragédia ganha dimensões catastróficas,
e no cotidiano do sistema de saúde. já passamos de 100 mil vidas perdidas, o desemprego
Com mais de 95% de votos, os delegados e delega- amplifica o sofrimento do povo. Ao assumir, a partir da
das a XVI Conferência Nacional de Saúde apontaram na XVI Conferência Nacional de Saúde, a defesa da vida, do
aprovação do Documento apresentado pela Comissão planejamento democrático, da ética pública e do controle
Organizadora os rumos e os desafios que o controle social como eixos organizativos da política de saúde, em
social terá no próximo período. Tendo como referência linha com as orientações da Organização Mundial da
que Democracia é Saúde e Saúde é Democracia, conclama Saúde (OMS), o CNS tem atuado com todas as forças
todos e todas para a construção de uma jornada de lutas democráticas para viabilizar o Plano Nacional de Enfren-
em defesa das liberdades democráticas, dos direitos sociais tamento da Pandemia da Covid-19, aplicar dinheiro novo
e do SUS, contra todas as formas de privatização, pelo no SUS, fortalecer a atenção primaria e a vigilância em
acesso universal, financiamento adequado, carreira de saúde, e ampliar o diálogo e a mobilização social. São
estado para as trabalhadoras e os trabalhadores da saúde propostas para as quais o controle social quer dar a sua
e fortalecimento da participação popular. contribuição na tarefa de fazer prosperar o Pacto Pela
Em 2020, o Brasil enfrenta, talvez, o mais dramático Vida, que precisa ampliar muito o lastro político e social
momento social, político e econômico de sua história, de sustentação. Vida, Solidariedade, Saúde e Ciência, SUS,
a pandemia do novo coronavírus colocou a saúde e a Meio Ambiente, Democracia.

Conferências Nacionais de Saúde do


Trabalhador e da Trabalhadora
Eduardo Bonfim da Silva
Geordeci Souza
Olga Rios

As Conferências de Saúde têm amparo legal no paldadas social e politicamente. Propostas que se
art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.142, de 28 de dezembro tornariam base para o estabelecimento de um novo
modelo de saúde. O evento explicita em seu rela-
de 1990. Esse instrumento estabelece a participação
tório as diretrizes para a reorganização do sistema.
da comunidade na gestão do SUS e divide os espaços O impacto da Conferência foi tal, que ela ganhou o
1. BRASIL. Lei nº 8.142, de de participação social em: I – a Conferência de Saúde nome alternativo de Constituinte da Saúde2.
28 de dezembro de 1990.
Dispõe sobre a participação
e II – o Conselho de Saúde1.
da comunidade na gestão Nesse diapasão, a lei ainda estabelece que a A partir da VIII Conferência Nacional de Saúde,
do Sistema Único de Saúde
(SUS) e sobre as transferências Conferência de Saúde reunir-se-á a cada quatro anos também mobilizou a realização de conferências temá-
intergovernamentais de recursos
financeiros na área da saúde e com a representação dos vários segmentos sociais, ticas, e a primeira foi de Saúde do Trabalhador (ST),
dá outras pr ovidências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF,
para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes realizada de 1º a 5 de dezembro de 1986.
31 dez. 1990. Disponível em: para a formulação da política de saúde nos níveis As Conferências Nacionais de Saúde do Trabalha-
http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l8142.htm. Acesso correspondentes, convocada pelo Poder Executivo dor (CNST) representaram uma política de governo
em: 08 nov. 2020.
ou, extraordinariamente, por esta ou pelo Conselho atenta às demandas da sociedade. Representaram,
2. BRASIL. Ministério da Saúde.
Para entender o controle social de Saúde (CS)1. também, um exercício para um trabalho conjunto
na saúde. Ministério da Saúde,
Conselho Nacional de Saúde.
Ocorreram até 2020, 16 conferências nacionais, envolvendo órgãos governamentais e não governa-
Brasília, DF: Ministério da sendo que a primeira Conferência que de fato teve a mentais. Esse processo bem-sucedido norteou as po-
Saúde, 2013.
participação efetiva da sociedade foi a VIII Conferência líticas e as ações a serem priorizadas e a concretização
3. BRASIL. Portaria Interminis-
terial MPS/MS/TEM nº 800, de Nacional de Saúde, realizada em 1986. de propostas inovadoras, em especial no âmbito da
3 de maio de 2005. Disponível
em: http://ftp.medicina.ufmg. formação, capacitação e implementação de políticas
Pela primeira vez na história do país, a sociedade
br/osat/legislacao/Porta-
ria_800_22092014.pdf. Acesso civil foi convocada e participou de forma ampla de e ações no âmbito da ST.
em: 11 dez. 2020.
um debate sobre políticas e programas de governo. Abaixo, quadro 1 com as informações de cada
Também pela primeira vez, obteve-se propostas res- conferência relacionada com a ST.
81

Quadro 1. Descrição das Conferências Nacionais de Saúde do Trabalhador, temas centrais, eixos, propostas aprovadas e data da Conferência

Ano Tema central Eixos Propostas Nortes da conferência


aprovadas
1989 Saúde como Diagnóstico da situação de saúde dos trabalhadores 48 Formulação de propostas e mobilização da sociedade,
I CNST Direito do especialmente dos trabalhadores, garantindo conquistas
Novas alternativas de atenção à saúde dos trabalhadores 27
Cidadão e na Constituição Federal de 1988, tais como os direitos
Dever do Política Nacional de Saúde do Trabalhador 18 dos trabalhadores (art. 7º) e a inserção da área de
Estado Saúde do Trabalhador (art. 200).
1994 Construindo Princípios 8 Realizada durante o processo revisional da Constituição
II CNST uma Política foi uma oportunidade de mobilização para garantir as
Organização das ações de Saúde do Trabalhador 22
de Saúde do conquistas já obtidas e direcionamento para criação
Trabalhador Participação e controle social 8 e publicação de uma política para a área de Saúde
do Trabalhador, a partir da contribuição dos diversos
Informação 4
segmentos representados.
Recursos humanos para a Saúde do Trabalhador 4
Financiamento 3
Legislação 7
Desenvolvimento, meio ambiente, saúde e trabalho 3
Política agrária e Saúde do Trabalhador rural 3
Gerais 6
2005 Trabalhar sim! Como garantir a integralidade e a transversalidade da ação do 159 Convocada pelos três ministérios pilares da Saúde do
III CNST Adoecer não! Estado em Saúde dos (as) Trabalhadores (as)? A discussão Trabalhador: Saúde, Trabalho e Previdência Social foi
visava avaliar as políticas públicas nacionais, em especial a desencadeada pela publicação da primeira versão da
Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalho (PNSST). PNSST3 .
Também, propor modos integrados de ação entre as diversas O tema central ‘Trabalhar sim! Adoecer não!’, procurou
instâncias públicas vinculadas à saúde, em especial, a otimiza- resgatar a positividade do trabalho e desconstruir a
ção da integração das ações interinstitucionais e dos recursos relação trabalho/sofrimento comum no imaginário social.
financeiros e técnicos, como estratégias do direito constitucio-
nal da universalidade, integralidade e equidade.
Como incorporar a Saúde dos(as) Trabalhadores(as) nas 101
políticas de desenvolvimento sustentável no país? Tal eixo
propôs a reflexão sobre as transformações no mundo do
trabalho e a necessidade de um paradigma capaz de satisfazer
as demandas do presente sem comprometer o futuro das novas
gerações. Como opção política, implica inverter prioridades e
criar, coletivamente, alternativas de desenvolvimento que sejam
includentes, harmônicas com o ambiente e compatíveis com
a saúde; ainda, aperfeiçoar os mecanismos regulatórios dos
conflitos ambientais e de saúde pelo Estado
Como efetivar e ampliar o controle social em Saúde dos(as) 81
Trabalhadores(as)? Este eixo contemplou a proposição e
avaliação das formas de incorporar a participação popular na
formulação das políticas públicas. Fundamenta-se na partici-
pação ativa dos trabalhadores que vivem e experimentam os
processos de defesa da saúde no trabalho e assumem a posi-
ção de agentes coprotagonistas da investigação e da produção
do conhecimento com o objetivo de transformar a relação do
trabalho com o processo saúde-doença.
2014 Saúde do Tra- O desenvolvimento socioeconômico e seus reflexos na Saúde 20 Momento ímpar da Saúde do Trabalhador, pela opor-
IV CNSTT balhador e da do Trabalhador e da Trabalhadora tunidade de apresentar e discutir a implementação da
Trabalhadora, PNSTT com os diversos atores e hierarquias, reforçan-
Fortalecer a participação dos trabalhadores e das trabalhado- 25
Direito de do a dinâmica participativa SUS.
ras, da comunidade e do controle social nas ações de Saúde
Todos e Todas
do Trabalhador e da Trabalhadora
e Dever do
Estado Efetivação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da 121
Trabalhadora (PNSTT), considerando os princípios da integrali-
dade e intersetorialidade nas três esferas de governo
Financiamento da Política Nacional de Saúde do Trabalhador, 53
nos municípios, Estados e União
Fonte: Brasil1.
82

As quatros Conferências Nacionais de Saúde do pectiva histórica, permite concluir que houve muitos
Trabalhador e da Trabalhadora (CNSTT) totalizaram avanços nesse campo de conhecimentos e práticas.
721 propostas, 93, 68, 341 e 219, respectivamente. Porém, ao considerar a dinâmica de transformação do
Os passos pós-conferências consistem na de- mundo do trabalho, e, nesse contexto, problematizar
finição de agendas de articulação entre represen- criticamente a relação saúde-trabalho, pode-se apontar
tantes da gestão, prestadores, usuários, sociedade as lacunas que ainda persistem para a produção do
civil e movimentos sociais para a viabilização das cuidado integral nos diversos pontos de atenção da
propostas aprovadas. rede de atenção à saúde, e contribuir de maneira
O processo de mobilização da sociedade por decisiva para a garantia do direito à Saúde do Traba-
meio da realização das CNSTT, analisadas em pers- lhador e da Trabalhadora.

Comissão Intersetorial de Saúde do


Trabalhador e da Trabalhadora
Eduardo Bonfim da Silva
Geordeci Souza
Olga Rios

A Comissão Intersetorial de Saúde do Traba- pais, e nesse mesmo instrumento legal em seu inciso
1. BRASIL. Lei nº 8.080/GM, lhador e da Trabalhadora (CISTT) foi criada pela VI, art. 13, estabelece a obrigatoriedade de instalação
de 19 de setembro de 1990.
Dispõe sobre as condições
Lei Orgânica da Saúde nº 8.080, de 19 de setembro de CISTT1,2.
para a promoção, proteção
e recuperação da saúde, a
de 1990, com a finalidade de articular as políticas e A CISTT no âmbito nacional foi instalada pela
organização e o funcionamento programas de interesse para a saúde, cuja execução Resolução do CNS nº 11, de 31 de outubro de 19913,
dos serviços correspondentes
e dá outras providências. Diário envolva áreas não compreendidas no âmbito do SUS. e conforme regimento do CNS, passa pelo processo
Oficial da União. Brasília, DF,
20 Set. 1990. Disponível em:
É subordinada ao CNS, e sua composição é integrada de recomposição a cada mandato do CNS, o que cor-
https://conselho.saude.gov.br/
legislacao/lei8080_190990.
pelos Ministérios e órgãos competentes e por entida- reram nos anos de 19994, 20075, 20136, 20167, 20188
htm#:~:text=%C2%A7%20 des representativas da sociedade civil1 e 20199. Desde então, vem trabalhando efetivamente
1%C2%BA%20O%20dever%20
do,sua%20promo%C3%A7%- Conforme estabelecido pela Constituição Federal no assessoramento do CNS, fornecendo subsídios para
C3%A3o%2C%20prote%-
C3%A7%C3%A3o%20e%20
do Brasil de1988 e pela Lei Orgânica nº 8.080/90, o deliberação sobre a formulação da estratégia e controle
recupera%C3%A7%C3%A3o.
Acesso em: 09 dez. 2020.
SUS é descentralizado, com direção única em cada da execução de políticas públicas de saúde na área da ST.
esfera de governo. Nesse sentido, foram criados os No quadro 1, apresentamos as resoluções e
2. BRASIL. Constituição (1988).
Constituição da República Conselhos de Saúde nos âmbitos estaduais e munici- recomendações do período de 2013-2020.
Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal, 1988. Dis-
ponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em: 14
nov. 2020.
Quadro 1. Resoluções e recomendações no período de 2013-2020
3. CONSELHO NACIONAL DE
SAÚDE. Resolução nº 11, de 31 Documento Data R.O.* D.O.U** Assunto
de outubro de 1991. Disponível
em: https://conselho.saude. Recomendação 05/05/20 R.E.64ª Recomenda medidas de transparência na divulgação dos dados estatísticos e
gov.br/resolucoes/reso_91.htm. 033/2020 notificações compulsórias dos agravos em Saúde do/a Trabalhador/a devido à
Acesso em: 18 jan. 2021. Covid-19.
4. CONSELHO NACIONAL DE
SAÚDE. Resolução nº 296, de
Recomendação 05/05/20 R.E.64ª Recomenda medidas prioritárias para trabalhadoras e trabalhadores dos serviços
02 de setembro de 1999. Dispo- 032/2020 públicos e atividades essenciais, nas ações estratégicas do Ministério da Saúde.
nível em: http://conselho.saude.
gov.br/resolucoes/reso_99.htm. Recomendação 24/03/20 R.E.64ª Recomenda ao Ministério da Economia, aos Presidentes da Câmara dos Deputa-
Acesso em: 18 jan. 2021. 016/2020 dos e do Senado Federal e ao Presidente do Supremo Tribunal Federal a adoção
5. CONSELHO NACIONAL DE de providências em razão da edição da Medida Provisória nº 927/2020.
SAÚDE. Resolução nº 387, de
14 de junho de 2007. Disponível Recomendação 17/05/19 317 Ao Ministério da Economia e ao Ministério Público do Trabalho: Que se obedeça
em: http://conselho.saude.gov. 022/2019 ao processo democrático, participativo e paritário fundamental para evolução das
br/resolucoes/reso_07.htm.
Acesso em: 18 jan. 2021.
normas regulamentadoras, com a realização de debates e de Audiências Públicas.
83

6. CONSELHO NACIONAL DE
Documento Data R.O.* D.O.U** Assunto SAÚDE. Resolução nº 483, de 7
de agosto dez 2013. Disponível
Recomendação 15/03/19 315 Ao Presidente e demais parlamentares do Congresso que procedam à devolução em: http://conselho.saude.gov.br/
007/2019 da MP 873 ao Poder Executivo. resolucoes/2013/Reso483.pdf.
Acesso em: 20 nov. 2020.
Recomendação 15/02/19 314 Que o Comitê de Gestão e Avaliação de Respostas a Desastres: 7. CONSELHO NACIONAL DE
002/2019 • Crie mecanismos de composição efetiva das instâncias de controle social nas SAÚDE. Resolução nº 530, de
discussões engendradas; 8 de julho de 2016. Disponível
em: http://conselho.saude.gov.br/
• Apresente um plano de ações de políticas públicas e sociais interministeriais de resolucoes/2016/Reso530.pdf.
proteção social às populações afetadas pelos desastres ocorridos, que articule Acesso em: 20 nov. 2020.
as responsabilidades do nível municipal, estadual e federal, com o respectivo
8. CONSELHO NACIONAL
acompanhamento por este CNS; DE SAÚDE. Resolução nº 576,
• Apresente oficialmente ao público os documentos e relatórios enviados aos de 21 de fevereiro de 2018.
órgãos reguladores e ao Poder Judiciário com as medidas adotadas para mitigar Disponível em: http://conselho.
saude.gov.br/resolucoes/2018/
crimes dessa natureza; Reso576.pdf. Acesso em: 20
• Que realize planejamento para aumento de recursos humanos nos diversos nov. 2020.
ministérios e órgãos fiscalizadores; e 9. CONSELHO NACIONAL DE
• Que coordene e incentive a agenda interministerial, envolvendo os Ministérios: SAÚDE. Resolução nº 633, de 11
da Saúde, do Desenvolvimento Regional, do Meio Ambiente com participação de outubro de 2019. Disponível
em: http://conselho.saude.gov.br/
do CNS, para tratar preventivamente de segurança e saúde de calamidades e resolucoes/2019/Reso633.pdf.
trabalhadores de barragens. Acesso em: 20 nov. 2020.a

Recomendação 13/12/18 312 Ao Contran e ao Denatran:


58/2018 1. Que suspendam administrativamente, a obrigatoriedade do exame toxicológico
‘de larga janela’.
2. Que realize amplo debate com a sociedade, em torno dessa matéria.
3. Que articule a proposição de Projeto de Lei substitutivo ao PL nº 6.187/2016
contendo proposição de revogação do exame nos termos dispostos na Lei nº
13.103, de 02 de março de 2015.
Resolução 08/11/18 311 19/12/18 Aprova o relatório da Câmara Técnica CISTT/CNS.
603/2018
Recomendação 11/10/18 310 À Sua Excelência Alexandre de Moraes, Ministro do STF que aprecie com brevida-
040/2018 de as razões apresentadas na ADI nº 5.322/2015, que questiona a constitucionali-
dade da Lei nº 13.103/2015.
Recomendação 07/06/18 306 À SVS/MS: Que renove a parceria com o Diesat dando continuidade ao projeto
021/2018 das oficinas de formação, renovando os objetivos e metas e atualizando os valo-
res de financiamento e repasse de acordo com a necessidade.
Recomendação 07/06/18 306 Ao MS: Que realize estudo a fim de verificar a viabilidade e possibilidades de
022/2018 inclusão dos motoristas de táxi/aplicativos/ônibus nas campanhas de vacinação.
Recomendação 07/06/18 306 Ao Presidente da Câmara dos Deputados: Que suspenda os trâmites do projeto
19/2018 de lei PL 6187/2016 que amplia os exames toxicológicos para as categorias A e B.
Recomendação 10/05/18 305 Ao STF: Que declare a inconstitucionalidade dos artigos da Lei nº 13.467, de 13
014/2018 de julho de 2017 referidos nas 21 (vinte e uma) ADI, que questionam diversos
itens da chamada nova CLT.
Recomendação 27/04/18 304 À Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei nº 6.299/2002,
013/2018 que: 1. Modifique o texto divulgado no site da Câmara dos Deputados, a fim de
garantir as competências do setor da saúde na avaliação de agrotóxicos; 2. Man-
tenha os critérios de avaliação para os aspectos de carcinogenicidade, mutageni-
cidade, teratogenicidade, distúrbios hormonais e danos ao sistema reprodutivo. Ao
Presidente da Câmara dos Deputados: Que não permita que projetos como esse.
Resolução 15/09/17 297 Cria a Câmara Técnica (CT) da CISTT/CNS, com o objetivo de discutir um novo
555/2017 modelo de organização dos Cerests com vistas à correção das assimetrias exis-
tentes entre as diversas regiões e em atendimento às realidades locais.
Recomendação 10/11/17 299 Que à SVS/MS, MMA, à Defesa Civil e à SES de Minas Gerais: que realizem
056/2017 ações de vigilância em saúde.
Recomendação 10/11/17 299 Que à CGSAT/DSASTE/SVS/MS: A efetiva implementação de um canal de comu-
053/2017 nicação eficiente e transparente entre a Coordenação, o controle social e a Renast
em todo Brasil e a imediata revogação da Portaria MS nº 2.022/2017.
Recomendação 15/09/17 297 Que à SIT/MT: Republique a Instrução Normativa nº 133/SIT/MT, de 21 de agosto
040/2017 de 2017.
Recomendação 12/05/17 293 Que o CFM: Revogue o Parecer CFM 3/17.
016/2017
84

Documento Data R.O.* D.O.U** Assunto


Recomendação 12/05/17 293 Que o Congresso Nacional retire de tramitação da PEC 287/2017 e o PL
014/2017 6.787/2016 e instale uma CPI apurando a real situação da Seguridade Social, em
especial o déficit da Previdência Social.
Recomendação 17/02/17 290 Que o presidente do INSS revogue o Despacho Decisório nº 45/Dirsat/INSS, de
002/2017 07 de novembro de 2016.
Recomendação 06/08/15 272 Que o Senado Federal vote e aprove sem ressalvas o PLC nº 130/2011.
013/2015
Recomendação 11/06/15 270 Que a Presidenta da República vete os incisos II e III do § 5º, propostos para al-
008/2015 teração do art. 60 da Lei nº 8.213/1991, contidos no PL de Conversão nº 04/2015,
referente à MP nº 664/2014.
Recomendação 07/05/15 269 Que a rejeição pelo Senado Federal do PL nº 4.330/2004, e o veto integral do
006/2015 PL nº 4.330/2004 pela Presidenta da República, em caso de aprovação pelo
Congresso Nacional.
Recomendação 28/01/15 265 Ao Governo Federal e ao Congresso Nacional, que revogue as MP 664 e 665.
001/2015
Recomendação 06/02/14 253 Que o governo federal revogue os artigos 52, 53 e 54 da Lei Federal nº
001/2014 12.873/2013, o Decreto Presidencial nº 8.133/2013, e a Portaria nº 1.109/2013 do
MAPA.
Resolução 11/09/14 261 11/11/14 O CNS autoriza excepcionalmente a realização das etapas macrorregionais e
499/2014 estaduais em períodos posteriores ao determinado regimentalmente, para partici-
pação da etapa nacional da 4ª CNSTT.
Resolução 27/11/13 251 24/12/13 Aprova o Regimento Interno da 4ª CNSTT.
494/2013
Resolução 07/11/13 251 21/01/14 Determina que os Conselhos de Saúde nos âmbitos Estadual, Distrital e Municipal
493/2013 promovam a criação da CISTT.
* Reunião Ordinária; ** Diário Oficial da União.

Tabela 1. Quantitativo de resoluções e recomendações da CISTT nacional por ano

ANO RESOLUÇÕES RECOMENDAÇÕES TOTAL POR ANO


2013 3 0 3
2014 1 1 2
2015 0 4 4
2016 1 0 1
2017 1 6 7
2018 3 7 10
2019 1 4 5
2020 0 3 3
TOTAL 10 25 35

A agenda de trabalho permeou outras diversas a troca de experiências entre as CISTT, ampliando a
ações importantes. Destacam-se: participação social na PNSTT no Brasil.
– A realização da IV CNSTT, no ano de 2014, – O aumento de pautas discutidas no Pleno do
visando discutir a implementação da PNSTT, publi- CNS de ST, além do mês maio que passou a ser a pauta
cada em 2012. mais importante com discussão de tema específico na
10. CONSELHO NACIONAL
DE SAÚDE. Recomendação – Realização de 9 Encontros Nacionais (CIST- reunião ordinária.
CNS nº 034, de 09 de dezembro
de 2009. Disponível em: http://
TÃO) nos anos de: 2007, 2009, 2010, 2012, 2013, 2015, – Foi a primeira Comissão do CNS, que pu-
conselho.saude.gov.br/recomen-
dacoes/reco_09.htm. Acesso em:
2016, 2017 e 2018, com o objetivo de realizar um blicou uma Recomendação (Rec/CNS nº 034, de 09
19 jan. 2021. diagnóstico das CISTT existentes no País e promover de dezembro de 200910), fomentando a criação de
a criação de CISTT municipais; conhecer e fortalecer CISTT nos estados e municípios dentro dos respectivos
85

Conselhos de Saúde, reiterando os princípios do – A participação das CISTT estaduais nas reuni- 11. BRASIL. Ministério da
Saúde. Resolução nº 493/GM,
SUS e do controle social. Essa recomendação foi ões da CISTT nacional, com o objetivo de interação, de 07 de novembro de 2013.
Que os Conselhos de Saúde nos
atualizada pela Resolução nº 493, de 09 de novem- informação e fomento para o aumento da criação da âmbitos Estadual, Distrital e Mu-
nicipal promovam a criação da
bro de 201311,12, estabelecendo novos parâmetros Rede de CISTT em todo o País. Comissão Intersetorial de Saúde
na organização e nas prerrogativas da Comissão, – O mapeamento do perfil de componentes das do Trabalhador – CIST, por meio
de resolução para assessorar ao
dentre outros, destacamos: CISTT Estaduais com o total de 506 participantes – 350 Plenário do referido Conselho
resgatando e reiterando os
Funcionamento dentro dos Conselhos de titulares e 156 suplentes; 267 entidades/organizações de princípios do SUS e do controle
social, seguindo as orientações.
Saúde. representação; identificou-se que não consta em suas Diário Oficial da União, Brasília,
Coordenação por conselheiros de saúde. composições membros dos sindicatos de trabalhadores DF, 9 Dez. 2020. Disponível em:
https://conselho.saude.gov.br/
Venceu a barreira do regimento próprio da da saúde no Amapá, Maranhão, Minas Gerais, Pernam- resolucoes/2013/Reso493.pdf.
Acesso em: 08 nov. 2020.
CISTT. buco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grane do Sul e Santa
12. CONSELHO NACIONAL DE
Criação de CISTT mediante resolução. Catarina; foi identificado também em suas composições SAÚDE. Resolução nº 493, de
7 de novembro de 2013. Dispo-
Publicação da cartilha – Conheça a CISTT. a ausência de membros dos Centros de Referência em nível em: http://www.conselho.
Continuidade dos Encontros Nacionais Saúde do Trabalhador (Cerest) nas CISTT do Amapá, saude.gov.br/resolucoes/2013/
Reso493.pdf. Acesso em: 20
(CISTTÃO). Maranhão, Mato Grosso do Sul, Piauí, Rio de Janeiro, nov. 2020

Emergiu a realização de CISTTÕES Estaduais. Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins13. 13. DEPARTAMENTO INTER-
SINDICAL DE ESTUDOS E
Fomentação da criação do plano de trabalho/ – O significativo aumento de CISTT, saindo de PESQUISAS DE SAÚDE E DOS
AMBIENTES DE TRABALHO.
atividade/ação. 12 estaduais e 74 municipais em 2007, e passando O Controle Social em Saúde do
Conhecimento do papel CISTT x Cerest. para 161 municipais e 26 estaduais e 1 do Distrito Trabalhador e da Trabalhadora:
Práticas territoriais. São Paulo:
Identificação dos atores envolvidos na CISTT. Federal no ano e 2019, conforme gráfico 1 abaixo: DIESAT, 2020.

Gráfico 1. Evolução da criação das CISTT e total de CISTT municipais

161
148
CISTTs criadas no ano
131
Total acumulado de CISTTs criadas
111
98

79

54
43
38
31
22 25
19 20 17
15 13 13
11 9 11
5 8 3 4 7 7 5
1 1 1 2 1 3
1995 1998 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Fonte: Diesat 202013.

A Resolução nº 493/2013, nos trouxe ainda e não compreendidas no âmbito do SUS;


uma série de objetivos e finalidades que antes es- – Propor às instituições e entidades envolvidas
tavam implícitos no alcance normativo das CISTT. que, no âmbito de suas competências, atuem no sen-
Esse ato favoreceu ao avanço da construção de no- tido de eliminar ou reduzir os riscos à ST;
vas CISTT e fortaleceu as já existentes que passaram – Propor e acompanhar a implantação de me-
a desenvolver um papel mais relevante dentro do didas que objetive a melhoria dos serviços de ST
controle social. Vejamos então, os avanços que a público e privado;
resolução passou a disciplinar: – Integrar as diversas instâncias envolvidas nas
– Acompanhar e fiscalizar os serviços e as ações rea- ações em ST em torno de um projeto comum, visando
lizadas pelos Cerest, observando seus planos de trabalho; à efetivação dos princípios do SUS;
– Participar da construção ou sugerir ações no – Avaliar/analisar os projetos e plano de saúde
Plano de Trabalho dos Cerest; apresentados pela Secretaria de Saúde por meio
– Articular políticas e programas de interesse de seus técnicos, focando nas ações relacionadas
para ST cuja execução envolva áreas compreendidas à ST, recomendando ao pleno do CS alterações,
86

complementações que se fizerem necessárias, bem Apesar dos avanços significativos da CISTT/CNS, seja
como sua aprovação ou rejeição; por meio da realização dos CISTTÕES, seja pela realiza-
– Acompanhar a implantação/implementação dos ção de conferências nacionais, os desafios apresentados
projetos e planos de saúde, recomendando ao CS que pela conjuntura são cada vez maiores para efetivação do
fiscalize e tome as providências cabíveis caso verifique controle social e a consolidação da PNSTT.
questões que não estejam de acordo com o aprovado; Há de destacar que os desmontes da segu-
– Contribuir para a promoção da Sensibilização ridade social, em especial, da legislação de pro-
e Educação Permanente dos gestores/prestadores, teção à Segurança e Saúde do Trabalhador, são
trabalhadores e usuários do SUS sobre a importância elementos de imensa preocupação para toda a
da discussão sobre ST; e sociedade diante do enfretamento necessário a ser
– Contribuir para dar conhecimento à sociedade encampado pelo controle social e o movimento
em geral da legislação em ST não só do SUS. sindical brasileiro.

Controle social em Saúde do Trabalhador:


construção e reconstrução da utopia
Fatima Sueli Neto Ribeiro
José Amadeu Antunes Alvarenga
Arnaldo Marcolino Silva Filho
Ilquias Araujo Lopes do Nascimento

O controle social entender, inclusive as demais políticas públicas como


Este ensaio parte de concepções técnico-social educação, moradia etc. Instâncias garantidas pela
do tema, mas se consubstancia no relato vivido e Constituição Federal.
pensado dos autores. Sem o compromisso teórico, A área da ST, mesmo antes da regulamentação
reflete as emoções da vivência. Cada autor segundo do SUS, já se articulava com o movimento sindical.
seu olhar, gênero, etnia e singularidade. A participação do saber operário em todas as etapas
Controle social nos remete às estratégias do de planejamento, execução e avaliação das ações da
poder instituído em determinar nossos gostos, nossas área faz parte do conceito da ST, sem o trabalhador o
opções de lazer etc. A partir dos anos de 1980, passou campo é outra coisa. Na vivência do controle social,
a ser entendido como a estratégia do cidadão controlar a responsabilidade dos atores da ST é a de manter a
o Estado, popularizado a partir do Movimento da indignação contra a exploração e a opressão.
Reforma Sanitária. Para tanto, faziam-se necessários: O Consest/RJ
um lócus privilegiado para planejar as ações que o
Algumas experiências foram emblemáticas. Lide-
estado deveria executar; poder para vetar ou aprovar
rado pelo Programa Estadual de Saúde do Trabalhador
recursos; e o debate contínuo entre as forças que
do SUS, o Conselho Estadual de Saúde do Trabalhador
compõem os principais interessados em saúde. Esse
no Estado do Rio de Janeiro (Consest) foi criado em
espaço foi denominado CS.
1990, antes mesmo do Conselho Estadual de Saúde,
Participação social reside na capacidade de a
com representantes das Secretarias Estaduais de Saúde
participação garantir diálogo, mas não a intervenção.
e de Ação Social, Delegacia Regional do Trabalho,
Controle social pode ser entendido como a participa-
pensadores engajados da Fundação Oswaldo Cruz
ção dos diferentes atores sociais com a finalidade de
(Fiocruz), Universidade do Estado do Rio de Janeiro
aprimorar conhecimento sobre a política de saúde,
(Uerj), Universidade Federal Fluminense (UFF), Uni-
participar de sua implementação e de sua defesa.
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), militantes
As políticas públicas precisam ser controladas, pois
sindicais, municípios e Departamento Intersindical
nenhum direito conquistado é definitivo, precisa
de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes
ser retroalimentado. Trata-se de uma estratégia para
de Trabalho (Diesat); com a finalidade de traçar dire-
87

trizes, acompanhar a execução e avaliação das ações Programas de ST na vigência do PAS durante os
no campo da ST, por dentro da máquina pública de governos Maluf/Pitta – 1993 a 20004.
saúde, definindo a política para a área. A Plenária de Conselhos Gestores realizou a I e
1. VASCONCELLOS, L. C. F., et
A sua singularidade se deu: no protagonismo de a II Conferência Municipal em ST em 1997 e 1999, al. A construção e a instituciona-
um colegiado interinstitucional e intersindical; sua além de diversas outras iniciativas de abrangência lização da saúde do trabalhador
no sistema único de saúde. In:
composição bipartite: poder público e representantes nacional. A sua característica principal é a completa VASCONCELLOS, L. C. F., et al.
(Org.) Saúde, Trabalho e Direito:
dos trabalhadores; ausência de financiamento e sua independência do poder público, seja em financia- Uma trajetória crítica e a crítica
de uma trajetória. RJ: Educam,
atuação que previa transformações nos processos mento, organização ou inserção nas estruturas formais, 2011. p. 423-452.
produtivos, mudanças tecnológicas, protagonismo do já previstas no SUS. A sua legitimidade se estende a 2. RIBEIRO, F. S. N., et al.
poder executivo e promoção da saúde1,2. A proibição todas as ações nacionais que demandavam partici- Saúde do Trabalhador no
Brasil nos anos 1990 e 2000, do
do jateamento de areia no estado do Rio de Janeiro pação social. período da audácia ao desbrio.
Revista Em Pauta, v. 23, n. 11, p.
em 1991 e em 2004 em todo País é um exemplo. Com momentos mais potentes ou mais estru- 39-63, 2013.
O Consest trouxe para a sociedade a visibili- turantes, ainda permanece atuante, articulada com 3. SILVA FILHO, A. M., et al.
A Plenária Municipal de Saúde
dade das ações técnicas do Estado, garantindo sua vários movimentos sociais, Movimento Negro, Sem do Trabalhador de São Paulo.
real isenção. Firmou-se como referência no saber Teto, além do SUS na Rua, e mantém a estrutura au- In: VASCONCELOS NETO,
R., et al. Caderno de Relatos
companheiro das ações, denunciando e enfrentando daciosa e ímpar de atuação externas às instâncias do de Experiências em Saúde do
Trabalhador. Rio de Janeiro:
o patronal, em alguns momentos, o próprio Estado poder público em atividades do verdadeiro controle Fiocruz,2018. p. 21-26
quando cúmplice da violência contra o trabalhador. social do Estado brasileiro. 4. SANTOS, A. P. M. B. Imple-
A descontinuidade do Consest foi atribuída ao mentação de uma comunidade

retraimento dos sindicatos, esvaziamento técnico, Fórum Intersindical Saúde-Trabalho-Direito ampliada de pares: o Fórum
Intersindical de formação em
saúde – trabalho – direito para a
ausência de articulação intrasetorial com as vigilân- Entre 2005 e 2012, o vácuo de organização do ação em saúde do trabalhador.
2017. Dissertação (Mestrado
cias, o modelo Rede Nacional de Atenção Integral à movimento social no campo de ST no estado do Rio de em Saúde Pública) – Escola
Saúde do Trabalhador (Renast) que não levou em Janeiro foi ressentido e incomodando os que viveram Nacional de Saúde Pública Ser-
gio Arouca, Fundação Oswaldo
conta esta estratégia e o papel de uma coordenação a pujança de ações do Consest. Cruz, Rio de Janeiro, 2017.

estadual que não valorizava as ações de vigilância e sem

Foto: Rita Loureiro/ALM Apoio à Cultura


respaldo ao controle social. Em 2010, foi substituído
pela Comissão Intersetorial de Segurança e Saúde do
Trabalhador, em um modelo ainda mais conservador
do que a Comissão proposta pela Renast, seguindo
o modelo tripartite, sem autonomia e submetida ao
Conselho Estadual de Saúde.
A Plenária Municipal de Saúde do Trabalhador
do Município de São Paulo
No período de vigência do Plano de Assistência
à Saúde (PAS) da Prefeitura de São Paulo, foi imple-
mentado um processo de experiências privatizantes
da gestão pública, sob a forma enganadora de coope-
rativas de trabalho. Nesse período, toda a estrutura
local de saúde foi desmantelada, mas, pelo modelo
articulado com os sindicatos dos trabalhadores, foi A experiência democrática e resolutiva do Con-
possível que a área de ST se configurasse como um sest suscitou a criação do Fórum Intersindical, que se
nicho de resistência ao modelo anti-SUS3. iniciou com demanda por formação pelo Sindicato
A forte presença do movimento sindical que dos Metalúrgicos (RJ) em 2012, e que foi maturado
se organizou no final dos anos 1980 em um Fó- no grupo de pesquisa Direitos Humanos e Saúde,
rum InterSindical na Zona Norte do Município composto de diversas instituições que se reuniam
de São Paulo agregou os Conselhos Gestores dos semanalmente. O curso intersindical foi ampliado
Programas de ST, e passou a se chamar Plenária para outros sindicatos e deslanchou a partir de 2015.
dos Conselhos Gestores e se organizar em con- A composição do Fórum Intersindical ocorre com
junto com técnicos dos Centros de Referência em representações de sindicatos e associações de traba-
ST e grupos interessados na área. Essa instância lhadores, Cerest e universidades, para debater, resistir
de controle social garantiu a continuidade dos e transformar a aviltante realidade do trabalho.
88

Santos4 descreve o Fórum como uma comu- Ao fim e ao cabo


nidade de pares para a democratização de saberes, Essas experiências suscitam reflexões. A com-
formação e discussão das relações saúde-trabalho- posição do CS reúne entre os usuários os sindica-
-direito e para a ação em ST. Consolidou-se a partir tos e movimento social, mesclando experiências e
da participação dos atores interessados e constitui organizações distintas. Entender as demandas dos
uma fonte de conhecimento, gerado pela troca de usuários e se unir na luta comum aproximam atores
saberes; estabelecendo vínculos; possibilitando diferentes em uma mesma direção; mesmo que sig-
a transformação dos atores na relação entre seus nifique renunciar às próprias demandas pela luta dos
participantes. outros componentes. Nesse processo, estruturam-se
São conhecimentos transmitidos de uma forma metas comuns. O movimento de mulheres, negros
rica e simples de comunicação, que exercem influência e demandas de territórios locais foram bandeiras
na vida e nas relações interpessoais no ambiente de que fortaleceram o CS do município de São Paulo e
trabalho. Fica impossível não perceber as injustiças retroalimentaram a Plenária na direção de ocupar os
e o descumprimento das obrigações das empresas, espaços de controle social.
nada mais passa desapercebido. Um balanço inicial permite identificar três aspec-
Desenvolve-se em diversas frentes, unindo o tos fundamentais para o CS: a premência da unificação
espaço acadêmico e social, articulando ações conjuntas das centrais sindicais em metas comuns; as lutas por
e gerando textos populares. Cabe a preocupação da saúde do movimento social devem ser unificadas com
continuidade desse modelo de articulação e produção as demandas sindicais; e os movimentos não precisam
teórica para além do esforço dos organizadores atuais. de ‘formação’ para organizar as suas demandas, eles
O modelo vigente têm suas próprias prioridades, e o SUS deve acolher
estas demandas, e não se organizar em modelos de
No plano nacional, a Comissão Intersetorial de
atenção diferente delas. Cabe lembrar que a burgue-
Saúde do Trabalhador (Cist) foi uma das primeiras
sia tem no Estado, enquanto órgão de dominação
comissões formadas após a instalação do CNS com
de classe por excelência, o aparato privilegiado no
objetivo de assessorá-lo, todavia, sem poder delibe-
exercício do controle social.
rativo ou resolutivo. Vasconcellos e Ribeiro1 discutem
A luta ao final é pela defesa do SUS. Os sucessos
que embora a Cist se configure como um espaço rico
foram notados nas experiências em que o movimen-
de reflexão política, é restrito pela baixa repercussão
to sindical se associou aos movimentos sociais e na
de suas análises e representação de suas bases. A re-
aliança com profissionais de saúde. São instâncias que
lação hierárquica com o Conselho dificulta, inclusive,
se auxiliam e configuram a ocupação técnica e social
a sua transparência. Apenas nos períodos em que a
do CS, significa aprender com o outro. A força reside
presidência foi exercida por Olga Estefania (1995-
nessa ação conjunta, contrariando muitas forças, mas
1999) a Cist divulgava para a sociedade os debates e,
fazendo alianças bem maiores.
assim, exercia a sua transparência e discussão social.
O desigual efeito da pandemia de Covid-19 entre
No site que abriga a Cist atualmente consta apenas
os grupos sociais vem sendo ocultado em estatísticas
a sua composição.
generalistas. As dificuldades com equipamentos neces-
Uma crítica crescente ao formato de Con-
sários para casos graves ofuscam a ausência de medidas
selhos refere que a instância de controle social
para atenção básica. A apologia da vacina como estraté-
vem sendo considerada como parte do processo
gia salvadora do modelo desigual, reconhecido como
de burocratização do governo. Essa passagem de
‘normal’, tornou a sua busca uma panaceia que tem
movimentos reivindicatórios para instâncias bu-
desrespeitado os protocolos em nome da ganância do
rocráticas de participação consultiva tem reflexos
lucro que essa vacina-mercadoria vai render; enquanto
importantes para ações contundentes em todos os
as causas ligadas à destruição ambiental e à ausência
níveis de atenção.
de atenção integral são completamente silenciadas.
Ainda que esteja claro que a defesa do SUS pelo
As medidas de ST se restringem a Equipamentos de
movimento sindical é uma necessidade e foi imperio-
Proteção Individual (EPI), porquanto mudanças de
so na construção do controle social, esta defesa e a
organização do trabalho dos profissionais de saúde
ocupação dos espaços de CS não são uma realidade
5. LACAZ, F. A. C., et al. não entram no debate.
Movimento da Reforma Sanitária atual. Lacaz (2019)5 descreve o verdadeiro divórcio
e Movimento Sindical da Saúde Mesmo as medidas de prevenção são elitistas
do Trabalhador: um desencontro entre o caminhar do movimento da reforma sanitária
indesejado. Saúde debate, v. 43, por pressupor que todos possuem casas, espaços para
n. 8, p. 120-132, 2019. e o movimento sindical de ST.
isolamento, estudantes com acesso à internet, traba-
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lhadores que não precisam trabalhar etc. Enquanto o aceitar-se como intelectuais de retaguarda, atentos
desemprego explode, as corporações globais levaram às necessidades e às aspirações dos cidadãos co-
ao limite a uberização do trabalho, alcançando profis- muns, e saber partir delas para teorizar e organizar
sionais liberais, professores e todas as categorias que se a sociedade e o SUS.
interpõem entre a burguesia e o proletariado. Ricardo ‘Todo Poder Emana do Povo’ é um princípio
Antunes alerta que o receituário para pós-pandemia constitucional que deve inspirar a lutar por um Brasil
das corporações é um obituário da classe trabalhadora. justo, harmonioso, equânime, respeitando todas as
Neste novo contexto histórico, o neoliberalis- formas de Vida.
mo associado ao capital financeiro e ao patriarcado O horizonte é uma construção e reconstrução
tentam superar a crise por meio da intensificação diária. Pequenos avanços oxigenam a luta. A cons-
das tecnologias de informação e de novos modelos tância de movimentos perde e ganha participantes,
de organização social perigosos para o trabalhador, a sobrevida do SUS reside também em despertar para
porquanto ignora a distopia e propaga a facilidade e a outros caminhos.
modernidade pautadas no isolamento progressivo dos Cabe reiterar o papel da educação para cida-
trabalhadores (trabalho em domicílio), quebra das re- dania, um instrumento de transformação importan-
lações humanas presenciais necessárias em atividades te. Outrossim, o conhecimento que faz progredir e
como saúde e educação, contraposto por consultas enxergar o outro, a ter, perceber e sentir na pele
remotas e aulas a distância. Esse isolamento dificulta o que é empatia, ver além do ego, além do salário
a identificação de valores comuns, a formação de no final do mês. Esse conhecimento é fundamental
grupos e a organização de movimentos de resistência. para que gerações futuras não deixem de lutar por
Assim, a pandemia evidencia que um novo modo saúde, principalmente no trabalho.
de vida é imperativo para nosso tempo. Alternativas Às centrais sindicais, cabe a função de organizar
ao capitalismo tóxico devem ser outro modo de viver, a sociedade e atuar associados aos profissionais de
de produzir, de consumir e de conviver. saúde, posto que são os que tornam a política de
A dimensão dos danos decorrentes do traba- saúde realidade.
lho reverbera em todas as estruturas do SUS, mas Mais do que nunca, o protagonismo do controle
independentemente da patologia e de como será social exige envolvimento, compromissos, utopia; e
acolhida no SUS, é o trabalho que causou os agravos; a decisão de defender essa utopia sem flexibilizar
e essa transversalidade dos danos ainda está por ser princípios. É uma estrada que cobra pedágios altos,
construída e reafirmada diariamente. A ênfase da seja no plano familiar, na permanente angústia da
estrutura do SUS em patologias e ciclos de vida, e luta e nas pequenas vitórias. Não é fácil, não é leve,
não em determinantes, não auxilia nas ações e na mas faz a vida valer a pena.
vigilância. Este pode ser um caminho para recriar o
SUS, sob as prioridades e demandas ditadas pelos Dedicatória
movimentos sociais, e não pela lógica acadêmica de Este texto é dedicado à memória de alguns com-
especialidades médicas. panheiros que foram fundamentais para o material
Boaventura Santos lembra que o tempo dos descrito: Jorginho, Salvador, Marcel Caldas, Celina,
intelectuais de vanguarda acabou. Estes devem Ângela, Paquetá e Lobão.
90

Controle democrático e Saúde do


Trabalhador: a experiência do Conselho
Gestor do Cerest – Polo Duque de Caxias-RJ
Cláudia Gouveia dos Santos
Debora Lopes de Oliveira

A Saúde do Trabalhador não se faz sem os tra- Seguindo essa premissa, essa história é entre-
balhadores! laçada com os sindicatos, seus movimentos, suas
Eis o nosso ponto de partida para discutir a demandas e seus saberes. Aprendemos mais que
experiência do Conselho Gestor do Cerest Duque ensinamos com os químicos, petroquímicos, petro-
de Caxias, que abrange os municípios de Duque de leiros, metalúrgicos, bancários, comerciários, alfaiates
Caxias, Magé, São João de Meriti e Queimados, per- e costureiras, profissionais da saúde e da educação,
tencentes à Região da Baixada Fluminense, que integra informais, e com tantos que por ora não conseguimos
a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Assim, a nominar. Aprendemos que é no coletivo que a ST se
forma como as ações de ST se desenvolveram no dá: ela é luta, é peleja cotidiana, que exige articulação
município expressa a sua implicação com o princípio e força para avançar. Aprendemos a importância de
da participação social tendo no trabalhador o sujeito os trabalhadores ocuparem os espaços do controle
histórico central. A contextualização dessa experiência social por dentro e por fora do estado.
permite entender a criação desse Conselho no marco Como visto, a história da ST em Duque de Caxias
de uma estratégia de gestão democrática da política de é anterior à Renast, aspecto determinante na escolha
ST gestada em um determinado território no contexto do município como polo para a implantação do Cerest
da implantação da Renast. de abrangência regional.
A ST em Duque de Caxias, enquanto campo de A Renast e a habilitação do Cerest Regional co-
intervenção na saúde pública, tem início em meados dos locaram um novo desafio no horizonte: criar uma
anos de 1990 como desdobramento das ações realizadas estratégia de controle social que pudesse abarcar a
pelo Programa Estadual de Saúde do Trabalhador (PSTrab) participação dos trabalhadores na gestão do Cerest. Se
e do Consest que foram cruciais para a construção desse antes as ações eram desenvolvidas no âmbito munici-
campo no âmbito do SUS no estado do Rio de Janeiro, pal, com a Renast, o contexto se torna mais complexo
dando visibilidade e criando estratégias políticas para por vários aspectos; entre eles, a inexistência de um
o enfrentamento da ‘questão da ST’, como parte das ente regional de controle social. Quanto a isso, foi
expressões da questão social gestadas na relação entre preciso ter criatividade e ousadia para romper com o
1. BRASIL. Ministério da Saúde.
capital e trabalho. O processo de estruturação dessas instituído e pensar uma alternativa que conjugasse os
Lei nº 8142, de 28 de dezembro
de 1990. Dispõe sobre a partici-
ações ocorre sob o signo do protagonismo dos trabalha- esforços para instituir uma prática coerente com os
pação da comunidade na gestão dores, evidenciada na estreita relação que se estabeleceu princípios que norteiam a ST de forma regionalizada.
do Sistema Único de Saúde
(SUS) e sobre as transferências entre os técnicos envolvidos nas ações e os trabalhadores A instituição da Renast configura-se por trazer
intergovernamentais de recursos
financeiros na área da saúde e
representados pelos sindicatos. Uma relação horizontal, em seu escopo de atuação a garantia de estruturas
dá outras providências. Diário
Oficial da União. Brasília, DF, 28
na qual o’ saber operário’ foi fundamental para a des- de controle social. Além dos mecanismos de controle
Dez. 1990. Disponível em: http:// construção de um saber tecnicista, acrítico e apartado social previstos na Lei nº 8.142/901 – Conselhos e Con-
www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8142.htm. Acesso em: 08 dos reais interesses dos trabalhadores. Dessa forma, a ferências –, a Renast, em suas portarias, estabeleceu
nov. 2020.
participação dos trabalhadores se torna a ‘pedagogia do que tal controle deveria se dar por meio de mecanis-
2. BRASIL Ministério da Saúde.
Portaria nº 1679, 19 de setembro
agir em ST’, uma perspectiva derivada de uma construção mos, como: Conselho Gestor do Cerest e da CISTT2.
de 2002. Dispõe sobre a coletiva que reconhece no trabalhador o seu eixo central. A proposta dos Conselhos gestores está inserida
estruturação da Rede Nacional
de Atenção Integral à Saúde do Assim, se a ST não se faz sem trabalhador, aqueles que no contexto de constituição de um novo modelo
Trabalhador no SUS e dá outras
providências. Brasil, DF, 19 de estão atuando no campo precisam compreender que o de assistência à saúde, que vem em contraposição a
setembro de 2002. Disponível
em: http://bvsms.saude.gov.br/
agir em ST exige uma escolha pelo lado do trabalhador, um modelo marcado pela rigidez, pelo tecnicismo e
bvs/saudelegis/gm/2017/Matri- visão que só é possível quando essa ação é gestada de pelo o autoritarismo, característicos da hegemonia
zesConsolidacao/comum/13614.
html. Acesso em: 08 nov. 2020. forma democrática. médico-curativo, guiado por interesses mercantis e
91

centralizador de poder. Na construção desse novo de Meriti e Queimados com o intuito de fomentar a
modelo, é dada importância aos atores sociais envol- participação dos sindicatos, entidades, associações
vidos com as questões da saúde em nível regional, e os Conselhos de Saúde dos municípios tanto no
em que o conceito de território adquire importância debate quanto na estruturação do Conselho Gestor.
enquanto território econômico, político, cultural e A eleição dos conselheiros ocorreu em uma plenária
epidemiológico. chamada pelo Conselho Municipal de Saúde de Duque
Nesse contexto, a redefinição das práticas de de Caxias realizada no Sindicato dos Petroquímicos
ST e a organização do serviço devem se realizar em de Duque de Caxias (Sindiquímica) em 14 de julho,
consonância com a especificidade e conhecimento da e a I Conferência Regional de Saúde do Trabalhador
realidade local – tanto no referente ao perfil produtivo ocorreu em 26 e 27 de setembro do mesmo ano no
e quadro epidemiológico quanto à configuração dos município de Queimados, em que foi instituído ofi-
sujeitos políticos. O planejamento das ações sanitárias cialmente o Conselho Gestor.
deve ocorrer no nível local, em uma relação horizon- Conforme definido no Regimento Interno do
talizada entre os diversos sujeitos sociais (direção da Conselho Gestor do Cerest3 – Polo Duque de Caxias 3. CENTRO DE REFERÊN-
CIA EM SÁUDE DUQUE DE
unidade, profissionais de saúde e trabalhadores), por –, cabe a este discutir, identificar, acompanhar, ava- CAXIAS. Regimento Interno
do Conselho Gestor de Duque
meio da construção de um espaço no qual a diferen- liar, deliberar e fiscalizar a formulação e execução de Caxias. Duque de Caxias.
ça ao nível do saber coloca as questões da ST num das ações do Cerest nos limites da sua competência. 2005. Disponível em: https://
transparencia.duquedecaxias.
patamar de discussão mais democratizado. A composição é paritária formada por 16 membros, rj.gov.br/arquivos/fundos_mu-
nicipais_20181023131224.pdf.
Dessa forma, o Conselho Gestor é responsável englobando todos os municípios da área de abran- Acesso em: 08 nov. 2020.
pelo controle direto das ações do Cerest. Ele é um gência, sendo 50% representantes do segmento dos
órgão colegiado que possui caráter permanente, deli- usuários (entidades e movimento dos trabalhado-
berativo e fiscalizador. É composto de forma paritária res, preferencialmente); 25% de representantes do
por representantes da segmento dos gestores/
direção do Cerest, dos Atenção, Tudo é perigoso prestador de serviços
trabalhadores de saúde Tudo é divino maravilhoso (coordenação dos PSTs
e dos trabalhadores da dos municípios e, no
área de abrangência da Atenção para o refrão caso do município sede,
unidade. É preciso estar atento e forte pela Direção do Cerest);
A equipe do Progra- Não temos tempo de temer a morte. e 25% de representantes
ma de Saúde do Trabalha- (Caetano Veloso e Gilberto Gil) dos trabalhadores de saú-
dor (PST) do município de (Sindicatos/Associa-
de Duque de Caxias, responsável pela implantação ção dos trabalhadores de saúde), que no município
do Cerest, em parceria com o setor de Reabilitação sede, cabe aos trabalhadores do Cerest. O mandato
Profissional do Instituto Nacional do Seguro Social dos conselheiros é de dois anos, quando é realiza-
(INSS) – Agência Duque de Caxias –, contava com um do o Encontro Regional de Saúde do Trabalhador
Fórum dos Trabalhadores Formais e Informais, que e a homologação dos representantes eleitos nos
reunia diversas instituições e entidades envolvidas municípios, por meio da realização de Encontros
com a questão da ST (sindicatos, associações, INSS, Municipais de Saúde do Trabalhador. A publicação
Subdelegacia Regional do Trabalho, universidades, dos representantes eleitos é feita mediante Boletim
entre outros). Com o propósito de discutir coletiva- Oficial do município-polo, por intermédio do Con-
mente a estratégia de controle social, a questão foi selho Municipal de Saúde.
compartilhada nesse espaço, o debate apontou para Cabe destacar que a articulação com o Conselho
a necessidade da criação de uma instância de caráter Municipal de Saúde de Duque de Caxias permitiu
deliberativo e de abrangência regional que pudesse legitimar as demandas dos trabalhadores e ofereceu
se configurar como um espaço de gestão democrática sustentação as ações do PST e posteriormente do
regional no âmbito das ações do Cerest. A proposta Cerest por meio do Conselho Gestor. No decorrer
foi estruturada a partir da experiência local dos Con- desse processo, as CISTT municipais passam a ser
selhos Gestores de Unidade atrelados ao Conselho uma estratégia importante para o controle social na
Municipal de Saúde de Duque de Caxias. ST; dessa maneira, houve o incentivo para que cada
Em 2005, foi realizado do I Seminário sobre o município organizasse a sua CISTT no âmbito dos
Controle Social Regional na Saúde do Trabalhador Conselhos Municipais de Saúde como mais uma forma
dos municípios de Duque de Caxias, Magé, São João de fortalecer as ações.
92

A experiência do Conselho Gestor do Cerest nos Apesar das dificuldades apresentadas, consi-
permite afirmar que a constituição de Conselhos delibera- dera-se que a experiência do Conselho Gestor do
tivos e paritários representa um avanço na democratização Cerest do Polo Duque de Caxias tem possibilitado
da relação Estado– sociedade, visto que contribuem para um aprendizado democrático, no sentido de constru-
uma nova concepção de esfera pública caracterizada pelo ção de uma nova cultura política, com a prevalência
reconhecimento do direito de todos à participação da vida do compromisso da gestão da unidade com a trans-
pública com vistas à socialização da política e do poder. parência da coisa pública, com o cumprimento das
No caso da ST, conforme aponta Vasconcellos4, o deliberações do Conselho, com a participação dos
4. VASCONCELLOS, L. controle social, diferentemente de outras áreas da saúde conselheiros na formulação e planejamento das ações
C. F. Saúde, trabalho e
desenvolvimento sustentável: pública, vincula-se à própria concepção da área, sua ori- de ST na região, com o fomento à participação dos
apontamentos para uma política
de Estado. 2007. Tese (Doutora-
gem, vida e trajetória. Isso significa dizer que a participação trabalhadores através dos sindicatos e associações.
do em Saúde Pública) – Escola
Nacional de Saúde Pública,
das representações dos trabalhadores é condição indis- Algumas das estratégias que podem contribuir para
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de pensável para sua existência. Qualquer distanciamento o fortalecimento do controle social no âmbito do Cerest:
Janeiro, 2007.
entre o pensar e o agir político inviabiliza o processo. a articulação do Conselho Gestor com os Conselhos Mu-
Diversos são os desafios que limitam o potencial nicipais de Saúde por meio do investimento nas CISTT
democratizante dos Conselhos Gestores: os ideários municipais; fortalecimento das CISTT municipais; forma-
neoliberais de contrarreforma do Estado, de desregu- ção permanente dos conselheiros de saúde e membros
lamentação dos direitos sociais e trabalhistas, desem- das CISTT para um agir comprometido com os princípios
prego estrutural e o aumento do trabalho precarizado; do SUS e da ST.
a inibição da esfera pública e o ataque ao patrimônio A gestão democrática da política de saúde, e nela
público – universal da saúde –; Além, das dificuldades imbricada a ST, requer que possam ser buscadas es-
oriundas da falta de reconhecimento do campo da ST tratégias de fomento à participação dos trabalhadores
enquanto ação do SUS, o que tem impossibilitado a nas instâncias de controle social, porém, isso só será
efetivação da Política de Saúde do Trabalhador. realidade quando houver uma incorporação orgânica
Nesse cenário, as principais dificuldades enfrentadas da ST no SUS sustentada pelos interesses da classe
pelo Conselho Gestor do Cerest são: a inexpressiva parti- trabalhadora. A experiência demonstra que as diversas
cipação dos movimentos dos trabalhadores nos espaços formas de controle social podem e devem coexistir e
do controle social do SUS, que em parte está associada confluir para o fortalecimento das ações. Nesse sentido,
ao fato de, no movimento sindical, a questão de a saúde é preciso romper com as disputas pelo terreno político
estar secundarizada na agenda de reivindicações. Por do controle social e avançar na construção coletiva de
outro lado, observa-se que, em parte dos municípios, alternativas à barbárie social, ao desmonte dos direitos
os Programas Municipais de Saúde do Trabalhador não sociais e trabalhistas que incidem sobre a forma de viver
investem na mobilização e no diálogo com o movimento e morrer da classe trabalhadora.
dos trabalhadores; a fragilidade das CISTT, nos municí- Este texto é uma homenagem aos trabalhadores(as)
pios que abrangem o Polo Duque de Caxias; a falta de que fazem parte da história da ST em Duque de Caxias e
compromisso dos gestores municipais da sede e da área do Conselho Gestor do Cerest. Em especial, à memória
de abrangência com as ações de ST. do nosso companheiro Salvador Alves de Oliveira.

O controle social e a participação social como


expressão da luta de classes
Daniele Correia
Eduardo Bonfim da Silva

O exercício de controle social toma forma nos a partir do Estado exercendo o controle sobre
diversos segmentos da sociedade brasileira com o conjunto da sociedade, compreendendo o
dual significado ao longo da história. Em perío- exercício das funções clássicas de dominação do
dos ditatoriais, o controle social se materializava Estado burguês. A partir da década de 1980, a
93

redemocratização do Estado brasileiro traz um A criação do Diesat, entidade intersindical, é


novo e inverso significado ao cunho controle resultado da organização dos trabalhadores e do novo
social, apreendido como participação social sindicalismo da década de 1970; em que foram reali-
institucionalizada nas políticas públicas. zadas as primeiras Semanas de Saúde do Trabalhador
Em linhas gerais, no cenário democrático, o (Semsats), nas quais diferentes sindicatos, trabalha-
controle social apresenta-se como um mecanis- dores e profissionais de saúde debatiam as péssimas
mo estabelecedor de participação da sociedade condições de trabalho, os altos índices de acidentes
na formulação, execução e gestão dos recursos e doenças profissionais, o não reconhecimento de
de planos, programas e projetos que atendam às doenças relacionadas ao trabalho, além da desumana
expressões da questão social. As esferas da saúde assistência à saúde aos trabalhadores.
foram pioneiras nas ações de controle social em O Diesat articula-se com as instâncias do controle
consequência da efervescência política do final da social e da participação social no sentido de fortale-
década de 1970. Nesse período, o Movimento da cimento de ações no campo da ST e da política de
Reforma Sanitária congregou movimentos sociais, saúde brasileira. Ações estas que se tornaram marco
intelectuais e partidos de esquerda na luta con- referencial e histórico de atuação na luta dos traba-
tra a ditadura com vistas à mudança do modelo lhadores por melhores condições de trabalho e vida.
‘médico-assistencial privatista’ para uma mudança Destacamos algumas ações contributivas.
estrutural na sociedade a partir de um sistema Na década de 1980, é conhecida a consolidação
nacional de saúde universal. Por saldo concreto, das ações do Diesat, período que suscitou o surgi-
temos o advento do SUS. mento de secretarias de saúde em vários sindicatos
Institucionalizada em 1990 nas Leis Federais em todo o Brasil, influenciando profundamente a
nº 8.080/901 e nº 8.142/902, o controle social, nele pesquisa nas universidades, o trabalho de formação 1. BRASIL. Presidência da
República. Lei nº 8.080, de 19 de
contido parte da participação social, objetiva avaliar sindical, utilizando o método do modelo operário setembro de 1990. Dispõe sobre
as condições para a promoção,
e propor diretrizes para a política de saúde nas três italiano, princípio que dá protagonismo ao trabalhador proteção e recuperação da
esferas de governo e por meio dos Conselhos que ao identificar e avaliar os fatores e os efeitos nocivos saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços
são instâncias colegiadas de caráter permanente e da sua própria condição e realização do trabalho. correspondentes e dá outras
providências. Diário Oficial da
deliberativo, com composição paritária entre os re- Desde seu surgimento, realizou as Semsats com União. 19 Set. 1990. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/
presentantes dos segmentos dos usuários, que con- participação maciça de sindicatos e profunda análise ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso
gregam setores organizados, na sociedade civil e nos dos temas estudados e debatidos no que tange às em: 08 dez. 2020.

demais segmentos (gestores públicos, filantrópicos e questões de trabalho e saúde, com conclusões que 2. BRASIL. Presidência da
República. Lei nº 8.142, de 28 de
privados e trabalhadores da saúde), e que objetivam forneceram subsídios para a ação sindical. A partir dezembro de 1990. Dispõe sobre
a participação da comunidade
o ‘controle social’. dessa atividade, publicou-se o primeiro livro, ‘De que na gestão do Sistema Único de
Saúde (SUS) e sobre as transfe-
Desse modo, o controle social pressupõe parti- adoecem e morrem os trabalhadores’, publicado em rências intergovernamentais de
cipação da sociedade e envolve a capacidade que os 1986 sobre a saúde dos trabalhadores com enfoque recursos financeiros na área da
saúde e dá outras providências.
movimentos sociais organizados na sociedade civil sindical – abordando aspectos físicos, contamina- Diário Oficial da União. 28 Dez.
1990. Disponível em: http://
têm de interferir na gestão pública, orientando as ções, poeiras, acidentes, previdência, trabalho infan- www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8142.htm. Acesso em: 08
ações do Estado e os gastos estatais na direção dos til, gênero e saúde mental –, sendo referência para dez. 2020.
interesses da maioria da população. Podemos inferir universidades, inclusive no âmbito internacional.
que o controle social acontece no frigir da disputa Nesse mesmo ano, o Diesat integrou a comissão
entre as classes sociais em uma dada correlação de organizadora da I Conferência Nacional de Saúde do
forças na disputa por um projeto de sociedade. É im- Trabalhador com questões sintetizadas no temário
portante as classes subalternizadas criarem consensos central – Saúde como Direito, Reformulação do
de consciência de classe, protagonizando mudanças Sistema de Saúde e Financiamento do Setor, pro-
estruturais da lógica de sobreposição de interesses piciando um avanço significativo no rumo de uma
da classe dominante para o conjunto social. nova Política Nacional de Saúde.
O controle social e a participação social nas Nos anos 1990, com a crise financeira e conse-
instâncias do campo da ST são de suma importância quência das políticas neoliberais e da abertura eco-
e representam uma arena de disputa em que se apre- nômica implementados no Brasil, desencadeia-se o
ende o processo saúde-doença articulado ao processo aumento do desemprego e da informalidade, além de
de produção e reprodução social. Desse modo, tratar processos de terceirização. Como resultado, houve
da saúde dos trabalhadores é tratar da expressão do diminuição do número de trabalhadores sindicalizados
conflito capital versus trabalho. nos sindicatos e, automaticamente, perda de filiados
94

no Diesat, levando à redução de atividades. Além Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da


disso, as centrais sindicais passam a construir suas Trabalhadora (PNSTT)
próprias estruturas de assessoria; e, ainda assim, o
Diesat influenciou no surgimento dos PSTs, que se 1. Conceituando Saúde do Trabalhador e da Tra-
tornaram, a posteriori e com a legislação do SUS, os balhadora, diferenciando das abordagens de medicina
Cerest, dentro da rede do SUS. do trabalho e da saúde ocupacional.
2. A PNSTT como elemento estratégico de atu-
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

ação do controle social.


3. A Vigilância em Saúde do Trabalhador como
estratégia para aferição dos processos saúde-doença.
O papel do controle social na Saúde do
Trabalhador
1. O histórico do controle social no Brasil.
2. As instâncias do controle social na ST.
3. Objetivos, finalidades e atribuições da CISTT.
A articulação dos sujeitos políticos locais foi
precedente e fundamental para a realização das ofi-
cinas, de modo a já configurar uma parte do processo
formativo uma vez que a interlocução local para as
ações em ST compunha também o objetivo desse
projeto. As atividades tiveram como prerrogativa
Mesa da 4ª Conferência Por meio do Diesat, surgiu o movimento nacional métodos que privilegiaram a construção e o uso de
Nacional de Saúde
do Trabalhador e da
em defesa da seguridade social pública e de qualidade, conhecimentos, ao invés de apenas a transmissão de
Trabalhadora. impedindo a iniciativa do governo FHC de privatizar o informações teóricas. Desse modo, os atores sociais
Seguro de Acidente de Trabalho (SAT). Desde então, tornam-se sujeitos ativos de seu processo de formação
foram retomados os ciclos de eventos contando com a enfatizando a qualificação com situações-problema
colaboração de especialistas e membros do Conselho que demandem a utilização de saberes adquiridos, em
Científico, que colaboraram com o debate sobre as pro- um outro tipo de relação teoria-prática, utilizando-se
fundas mudanças ocorridas e a perda de direitos dos da pedagogia expositiva dialogada.
trabalhadores, perspectivas para a saúde dos trabalhadores Essa metodologia possibilitou uma aproximação
no Brasil, o aumento e subnotificação do número de do contexto social de seus territórios, suas determina-
acidentes de trabalho, a preocupação sobre a previdência ções sociais, bem como dos processos produtivos que
social pública e o financiamento da seguridade social. incidem no processo saúde-doença, a fim de traçarem
Entre as recentes ações do Diesat em consonân- um plano de trabalho possibilitando delinear potencia-
cia com o controle social, destacamos o ‘Projeto de lidades, fragilidades e necessidades para fim de ações
Articulação e Qualificação do Controle Social em Saú- futuras. Nos permite também reconhecer a atuação
de do Trabalhador e da Trabalhadora’ com a parceria do controle social institucionalizado no campo da ST,
da CISTT/CNS e da Coordenação Geral de Saúde do ao passo que muitos participantes não compunham
Trabalhador (CGSAT)/Ministério da Saúde, apresen- as CISTT. Por outro lado, provoca esses atores a uma
tando-se como mecanismo de qualificação da atuação transformação a partir da criação das CISTT.
do controle social, de todos os entes federativos, para Outro marco atual, é a atuação no Programa
execução profícua da PNSTT. Nacional de Banimento do Amianto (PNBA) com o
Os encontros se utilizaram de problematização Ministério Público do Trabalho (MPT), juntamente
de conteúdos e tempestade de ideias com objetivos. com a Associação Brasileira dos Expostos ao Amian-
to (Abrea) na realização de importantes seminários
Processos produtivos e os impactos à Saúde do internacionais socializando a luta contra o uso do
Trabalhador e da Trabalhadora amianto e suas implicações à saúde. Trazendo uma
1. Os processos produtivos do território e seus abordagem sociojurídica que deu subsídios ao ba-
impactos à Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. nimento do amianto no Brasil, ocorrido em 2017, e
2. O campo da Saúde do Trabalhador e da Tra- uma abordagem da ST, suscitando a preocupação do
balhadora enquanto prática contra– hegemônica e diagnóstico, assistência à saúde pelo SUS e a vigilância
de luta entre capital e trabalho. em saúde dos expostos.
95

Embora o processo tenha caminhado para a Os processos produtivos cada vez mais in-
judicialização, por meio de um longo e árduo proces- formalizados, em um cenário de contrarreforma
so que chegou ao Supremo Tribunal Federal para a trabalhista e da previdência social, com o SUS
inconstitucionalidade do uso do amianto, constatamos sendo asfixiado diuturnamente, nos traz o desafio
que o propulsor das conquistas foi a organização dos de mantermos vivas as ações de controle social e
trabalhadores, em uma efetivação de controle social de participação em ST, em uma prática que cons-
e de participação social. trua novas relações sociais e de trabalho que não
Consideramos ser de extrema relevância a con- adoeça e mate a classe trabalhadora.
tinuidade do processo formativo no campo da ST. Há Por fim, destacamos que o controle social acon-
ainda muito a avançarmos na apropriação conceitual, tece no frigir da disputa entre as classes sociais. A
técnica e política do campo, para efetivarmos ações classe trabalhadora, quando protagonista, transforma
que incidam sobre os conflitos de interesse postos na e sobrepõe a lógica dos interesses da classe dominante
relação entre capital e classe trabalhadora. para o conjunto social.

A CUT em defesa do SUS e de suas políticas


públicas
Madalena Margarida da Silva Teixeira

O Brasil é uma das democracias mais jovens no seu funcionamento e dificultam sua proposta de ga-
mundo, e tem passado por um momento histórico no rantir atenção à saúde gratuita, equânime e integral
qual seus sistemas de representatividade política e da à população em detrimento da retirada de direitos,
própria gestão pública estão sendo questionados e a que favorece e privilegia a crescente participação
população tem exigido cada vez mais atitudes íntegras dos planos de saúde na lógica da mercantilização e
em relação à administração pública. privatização da saúde, tendo o direito à saúde como
A Constituição Federal de 19881, conhecida como mercadoria. 1. BRASIL. Constituição (1988).
Constituição da República
Constituição Cidadã, garantiu a participação e o con-
trole social da administração pública brasileira, além
Atuação da CUT no controle social do SUS e de Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal, 1988. Dis-

de expressar avanços nos mecanismos de participação suas políticas públicas ponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em: 14
do processo decisório nos âmbitos municipais, esta- Atuar na defesa do SUS como direito humano nov. 2020.

duais e federal, de modo a possibilitar a interlocução à vida é dever de toda a sociedade e representação
da sociedade com o estado por meio da ocupação dos dos interesses da classe trabalhadora nos espaços de
espaços criados para esses fins. controle social das políticas públicas, em particular do
O controle social das políticas públicas de saúde SUS. Tem sido realizada por diversas organizações da
2. BRASIL. Lei nº 8.142, de
foi defina pela Lei nº 8.142/902, resultado da luta sociedade civil organizada, entre elas, a Central Única 28 de dezembro de 1990.
Dispõe sobre a participação
pela democratização dos serviços de saúde, que re- dos Trabalhadores (CUT). A CUT, desde que foi criada da comunidade na gestão
presentou e representa uma vitória significativa para no início dos anos 1980, tem atuado para que seja do Sistema Único de Saúde
(SUS) e sobre as transferências
a sociedade3. Com base nesse marco legal, foram garantida à população um serviço de saúde público, intergovernamentais de recursos
financeiros na área da saúde e
criados os Conselhos e as Conferências de Saúde integral e de qualidade, que implique a melhoria das dá outras providências. Diário
Oficial da União. Brasília, DF. 31
como espaços para o exercício do controle social do condições de vida e de trabalho. Dez. 1990. Disponível em: http://
SUS. Nesses espaços, a população expressa suas ne- Na luta por uma política pública, integral e www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8142.htm. Acesso em: 08
cessidades de ações, programas e políticas públicas de gratuita, a CUT tem-se constituído uma referência nov. 2020.

saúde a serem desenvolvidas e implementadas pelos importante e tem atuado para o fortalecimento da 3. BRASIL. Ministério da
Saúde. Conselho Nacional de
municípios, estados e governo federal, no sentido de participação da classe trabalhadora nos espaços de Saúde. Diretrizes nacionais
para o processo de educação
atender suas demandas e necessidades de atenção à controle social, orientando, promovendo e fortalecen- permanente no controle social
saúde, desde atenção básica até a alta complexidade. do a atuação das entidades filiadas na defesa do SUS, do SUS. Brasília, DF: Ministério
da Saúde, 2006. Disponível em:
Desde sua institucionalização em 1990, o SUS compreendendo que este é um modelo de atenção https://conselho.saude.gov.br/
biblioteca/livros/diretrizes_miolo.
tem passado por inúmeros ataques que inviabilizam à saúde que traz em si um projeto de sociedade, um pdf. Acesso em: 06 ago. 2020.
96

modelo de desenvolvimento, que se expressa em público, gratuito e de qualidade, bem como ampliar
valores e princípios civilizatórios como igualdade, e fortalecer os espaços de controle social em todas
integralidade e democracia, articulando cuidados as esferas de governo.
individuais e coletivos em toda dimensão da vida das A CUT, além participar dos Conselhos de Saúde
pessoas, configurando-se na maior política pública de e suas comissões, tem contribuído para organização,
inclusão social em curso no País. articulação e realização de diversas Conferências
de Saúde, mobilizando trabalhadores e trabalha-
Foto: Acervo CNS

doras para participar das etapas nacional, munici-


pais e estaduais. Como exemplo: XV Conferência
Nacional de Saúde com o tema ‘Saúde pública de
qualidade para cuidar bem das pessoas: direito do
povo brasileiro’ realizada em 2015; II Conferência
Nacional de Saúde das Mulheres em 2017, com o
tema central ‘Saúde das mulheres: Desafios para
a integralidade com equidade’, a qual teve como
objetivo propor diretrizes para a Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde das Mulheres; I Conferên-
cia Nacional Livre de Comunicação em Saúde, que
discutiu estratégias de democratização do acesso a
informações sobre o SUS, considerando a relevância
dos direitos à saúde e à comunicação, identificados
Marcha na 16ª A voz da classe trabalhadora representada pela
Conferência Nacional de como pilares da democracia; I Conferência Nacional
CUT se faz presente em diversos espaços do controle
Saúde. de Vigilância em Saúde e XVI Conferência Nacional
social, a exemplo dos Conselhos de Saúde e suas sub-
de Saúde, realizada em agosto de 2019, tendo como
comissões, em que os(as) representantes da CUT tem
tema ‘Democracia e Saúde’; Conferências livres
defendido a revogação da EC 95 e aprovação da PEC
em saúde da mulher e vigilância em saúde. Atuou
01/15 que amplia em 10% a receita corrente bruta para
intensamente também na realização das Marchas
a saúde; o fortalecimento do SUS e seu financiamento;
em Defesa do SUS.
a ampliação e fortalecimento do controle social do
A CUT, durante o seu XII Congresso realizado
SUS; a garantia do direito humano a vida; contra a
em 2015, reafirmou a luta pelo SUS dizendo que
privatização dos serviços de saúde; pelo fim da gestão
privada dos serviços públicos de saúde; pela melhoria O movimento de luta pelo SUS é histórico e segue re-
sistindo bravamente aos diversos ataques neoliberais,
das condições de trabalho e de estrutura do serviço
como referência por uma sociedade igualitária, equâ-
público de saúde; pela valorização dos trabalhadores nime, integral e que assegura o controle social através
da saúde pública; contra a transferência de recurso da participação da comunidade, portanto não podemos
público da saúde para o setor privado dos planos de permitir a ingerência do capital estrangeiro na saúde
saúde e seguros, seja de forma direta ou indireta; pública brasileira. Saúde não é mercadoria. Devemos
pela implementação e fortalecimento de políticas seguir resistindo na defesa de um SUS 100% estatal,
4. CONCUT. 13º Caderno de universal, e de qualidade para todo o povo brasileiro5.
Resoluções. 2019. Disponível
de atenção à Saúde dos(as) Trabalhadores(as) entre
em: https://sp.cut.org.br/acao/
caderno-de-resolucoes-do-
outras bandeiras de luta. Em 2019, durante o XIII Congresso realizado
-13-concut-1e15. Acesso em: 09 O controle social é um processo de participação em 20194, a CUT reafirmou seu compromisso na
dez. 2020.
democrática que precisa ser garantido, protegido e defesa e pelo fortalecimento do SUS, ampliação da
5. CONCUT. 12º Caderno
de Resoluções. 2015. fortalecido. Nesse sentido, considerando o atual ce- participação das trabalhadoras e dos trabalhadores
Disponível em: https://www.
cut.org.br/acao/12-congres- nário em que o SUS enfrenta inúmeros ataques com nos Conselhos de Saúde e suas subcomissões, nas três
so-nacional-da-cut-12-concut-
-13-a-16-10-2015-8405. Acesso
a falta de financiamento e um governo alinhado com esferas de gestão. Para isso, a Central definiu em seu
em: 09 dez. 2020. os interesses do capital, faz-se necessário reafirmar plano de lutas que irá promover e realizar parceria
a importância do SUS e de suas políticas, sensibili- para formação de conselheiras/os de saúde, nas três
zando a população e a classe trabalhadora sobre seu esferas de gestão, bem como construir uma estratégia
importante papel para a garantia do direito humano à CUTista para atuação nos espaços de controle social
vida por meio do acesso a todos os serviços de saúde das políticas públicas de saúde.
97

A política de saúde na atualidade: novos 1. BRAVO, M. I. S., et al. A

contornos da contrarreforma1 saúde nos governos Temer e


Bolsonaro: lutas e resistências.
SER Social, v. 22, n. 46, 1. 2020.
Disponível em: https://periodicos.
Maria Inês Souza Bravo unb.br/index.php/SER_Social/
issue/view/1915/400. Acesso em:
Juliana Souza Bravo de Menezes 08 dez. 2020.

Este texto tem como objetivo analisar a política sidência da república em 2016. As classes dominantes
de saúde na atualidade, de modo a apontar os novos não identificavam o PT como autêntico representante
contornos da contrarreforma que tem sido implemen- do projeto do grande capital, sendo necessária uma
tada em ritmo acelerado. alternativa que garantisse o fortalecimento da orto-
Os processos de privatização e de retrocessos nas doxia neoliberal.
políticas sociais não começam nos governos de Temer Assume de maneira ilegítima Michel Temer, re-
e Bolsonaro, mas se aprofundam neste contexto. Tais presentando os setores mais conservadores e reacio-
retrocessos se inserem no quadro social, econômico nários da sociedade brasileira. O governo de Temer
e político sintonizado com processos observados tratou-se de uma restauração conservadora de um
mundialmente, e se concretizam com as mediações projeto político ultraneoliberal, assumidamente pró-
relacionadas com as condições de inserção do Bra- -capital, que visava resolver os impasses de acumulação
sil no cenário político-econômico mundial e ao seu e favorecer os interesses da classe dominante do País e
particular desenvolvimento histórico. aprofundar sua dependência do capital internacional.
Desde a década de 1990, segundo Behring A partir de 2019, com o governo Bolsonaro, tem-
(2003)2, vivencia-se no Brasil o processo de contrar- -se o aprofundamento das contrarreformas iniciadas 2. BEHRING, E. R. Brasil em
Contra-Reforma: desestrutura-
reforma do Estado, resultando em inflexões no campo no governo anterior, verificando-se a aceleração e a ção do Estado e perda de direi-
das políticas sociais, impactando a saúde pública e o intensificação das políticas que contribuem com o tos. São Paulo: Cortez, 2003.

conjunto da Seguridade Social. Essas mudanças estão desmonte do Estado brasileiro. 3. HARVEY, D. Condição pós-
-moderna: uma pesquisa sobre
em consonância com as orientações de transformações O peso da crise da acumulação é transferido as origens da mudança cultural.
São Paulo: Loyola, 1993.
no mundo do trabalho, por meio da reestruturação para os trabalhadores. Dessa forma, tem-se a retirada
4. CHESNAIS, F. A mundiali-
produtiva3 e de redefinição das funções e responsa- dos direitos conquistados pela classe trabalhadora zação do capital. São Paulo:
Xamã, 1996.
bilidades do Estado com vistas à inserção do Brasil por meio de lutas históricas, como as contrarrefor-
na economia mundializada4. mas (Trabalhista, da Previdência Social, Terceirização
Ao analisar o contexto atual de crise estrutural Irrestrita, Novo Regime Fiscal – que congela por 20
do capital, pode-se afirmar que a saúde tem sido um anos os gastos públicos, entre outras), bem como
espaço de grande interesse de grupos econômicos em ameaças às liberdades democráticas.
sua busca por lucros e em seu movimento para impor Pode-se considerar como três características bási-
a lógica privada nos espaços públicos. Dessa forma, o cas do atual governo: extremo liberalismo econômico;
caráter público e universal da saúde, tão defendido temor das mobilizações e desprezo pela participação
pelo Movimento de Reforma Sanitária dos anos 1980 da maioria, ou seja, pela democracia com ataques às
e pelos lutadores da saúde, vem sendo ameaçado. instâncias de participação e controle social.
A eleição do Partido dos Trabalhadores (PT) para No início do mandato do governo Bolsonaro, as-
Presidência da República trouxe discussões, contradi- sumiu o Ministério da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
ções e dilemas postos desde as respectivas campanhas Filiado ao Partido Democratas (DEM), foi secretário
eleitorais e que se agudizaram no decorrer dos manda- municipal de saúde de Campo Grande (MS) e depu-
tos, na medida em que foram apresentadas propostas tado federal por dois mandatos.
de contrarreformas e ajustes no mesmo sentido das Durante cerimônia de transmissão do cargo de
verificadas em governos anteriores neoliberais. Ministro da Saúde, o novo titular da pasta afirmou
O projeto de conciliação de classes utilizado pelo que “queremos e vamos cumprir um desafio cons-
PT, que favoreceu os interesses do grande capital, titucional. Saúde é um direito de todos e dever do
implementando algumas escassas e tímidas refor- Estado. Não tem retrocesso, não tem volta da nossa
mas sociais, encerrou o seu ciclo com o processo de máxima constitucional. Mas não existem verdades
impeachment e afastamento de Dilma Rousseff da pre- absolutas a não ser as constitucionais”, publicado
98

5. G1. Cada centavo eco-


nomizado na Saúde irá para
em reportagem do G1 de 2 de janeiro de 20195. De- de Saúde Brasileiro’, apresentado na Câmara dos
assistência da população, diz fendeu o princípio da equidade e enfatizou que este Deputados no dia 4 de abril de 2019, em audiência
novo ministro. G1, 02 jan. 2020.
Disponível em: https://g1.globo. não pode ser relativizado em favor de um conceito de pública requerida pelo ex-ministro de Temer, Ricardo
com/politica/noticia/2019/01/02/
novo-ministro-da-saude-luiz-hen- integralidade que inspira ações judiciais individuais Barros. Uma das premissas do Banco Mundial é de
rique-mandetta-assume-cargo-
-em-cerimonia-em-brasilia.ghtml.
que desrespeitam os direitos coletivos. Ao mesmo que “há espaço para o SUS obter melhores resultados
Acesso em: 18 jan. 2021. tempo, disse que deseja “um sistema privado forte” e com o nível atual de gasto público”, como se não
“solidário”. Afirmou ainda que o ministério da saúde houvesse necessidade de maior financiamento ou de
tem um orçamento muito grande e “cada centavo” revogação da EC 95. Defende a cobertura universal de
economizado ao longo de sua gestão irá para a as- saúde, em substituição ao termo universalidade como
sistência à saúde da população, tendo como foco a princípio do SUS, e deixa nítida, a cada recomenda-
atenção básica. ção, a concepção de cobertura universal como um
Se, por um lado, a afirmação de que não haverá pacote básico de serviços e estratégia de focalização,
retrocessos na máxima constitucional do direito de todos afastando a perspectiva da atenção básica ampla de
e dever do Estado na saúde pode ser avaliada positiva- acesso universal
mente, por outro, a defesa de um setor privado forte e O Ministério da Saúde passou por mudanças na
a não proposição de mais recursos orçamentários para sua estrutura, sendo criadas duas Secretarias: Atenção
o SUS são preocupantes, pois não contribuem para o Primária à Saúde e Tecnologia da Informação – De-
fortalecimento do SUS e seu componente público e estatal. partamento de Saúde Digital. Essa última Secretaria
A seguir, serão colocadas diversas propostas que com o objetivo de estimular teleconsultoria, tele-
foram apresentadas e executadas pelo Ministério no início diagnóstico, tele-educação. Foi extinta a Secretaria
da gestão. de Gestão Estratégica e Participativa e suas pautas
A revisão da política de saúde para a população indí- foram transferidas para um departamento de ges-
gena, o que foi alvo de críticas por parte de representações tão interfederativa vinculado à Secretaria Executiva.
indígenas; a carreira de Estado para médicos, e não para Avaliamos que o fim de tal Secretaria significa uma
os demais trabalhadores da saúde; a informatização das perda de espaço da participação social. Já a Secretaria
informações do setor de saúde no País; o fortalecimento de Atenção à Saúde foi reformulada, priorizando a
das Santas Casas e um ‘choque de gestão’ nos seis hospitais especialização e a criação de um Departamento de
federais e nos três Institutos vinculados ao Ministério da Certificação e Articulação com Hospitais Filantrópicos
Saúde, localizados no Rio de Janeiro. e Privados, estabelecendo contratualização com o setor
Outra medida foi a reformulação do Programa Mais privado. Também foi reestruturado o Departamento
Médicos com o discurso de torná-lo ‘mais técnico e menos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), Aids
político’. O que de fato aconteceu foi o desmonte dele e Hepatites Virais, que passou a se chamar Departa-
com a saída dos médicos cubanos deixando amplas regiões mento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções
brasileiras descobertas de assistência médica. Sexualmente Transmissíveis, juntando ao departamen-
Com relação à Política de Saúde Mental e à Política de to doenças como hanseníase e tuberculose. Tal junção
Álcool e Drogas, em abril de 2019, Bolsonaro anunciou o vem sendo criticada por entidades ligadas à luta no
Decreto nº 9761/2019, que estabeleceu uma ‘nova’ Política âmbito das IST, as quais temem retrocessos ou perda
Nacional de Drogas, que tem como objetivo a construção de espaço da estratégia brasileira contra o HIV/Aids,
de uma sociedade protegida do uso de drogas lícitas e ilí- que é referência mundial, e ressaltam que não houve
citas a ser alcançada por meio da promoção da abstinência diálogo com os movimentos sociais.
e do fortalecimento de Comunidades Terapêuticas como Merece destaque a proposta apresentada pelo
lócus de cuidado, tratamento e promoção da saúde, entre presidente Jair Bolsonaro na solenidade comemorativa
outros aspectos. A citada política desconsidera a Política dos 100 dias de governo, ocorrida em 11 de abril de
de Redução de Danos e o modelo de atenção em saúde 2019. O Decreto nº 9.759/2019, que extingue diver-
que privilegia serviços substitutivos como os Centros de sos conselhos e colegiados da administração pública
Atenção Psicossocial (Caps), na perspectiva da reforma federal, estabelecendo novas diretrizes para estes.
psiquiátrica e da saúde pública e estatal consubstanciada Bolsonaro declarou nas redes sociais que foi uma
no SUS. forma de “economia, desburocratização e redução
A preocupação com a chamada eficiência dos do poder de entidades aparelhadas politicamente
hospitais está presente na proposta de Reforma do usando nomes bonitos para impor suas vontades,
SUS explicitada no documento do Banco Mundial ignorando a lei e atrapalhando propositalmente o
denominado ‘Propostas de Reformas do Sistema Único desenvolvimento do Brasil”, conforme reportagem da
99

Folha de São Paulo. O governo não valoriza a existência A situação da pandemia no País tem se agravado 6. Tais informações estão
disponíveis em: https://covid19.
de Conselhos e outros colegiados de participação devido à ação do Presidente da República que, com grupos who.int.

social e exercício do poder popular que objetivam de empresários, tem incentivado a população a desobe- 7. FRENTE NACIONAL
CONTRA A PRIVATIZAÇÂO
aproximar a população do poder decisório sobre polí- decer às medidas de distanciamento e isolamento social DA SAÚDE. Vida acima dos
lucros: Enfrentar a pandemia é
ticas sociais e públicas, de modo que as decisões não recomendadas pela OMS8. O governo federal tem empre- possível e necessário já! 2020.
sejam delegadas exclusivamente a técnicos e gestores. endido esforços para estabelecer uma falsa normalidade Disponível em: https://www.fa-
cebook.com/108112879306321/
No que se refere à participação social, em que em nome do lucro, negando a ciência e banalizando as posts/3034693216648258/?s-
fnsn=wiwspwa&extid=lFy7i-
pesem as medidas regressivas apontadas acima, houve milhares de mortes que ocorreram no País. Pe34I2OnjGg. Acesso em: 09
ago. 2020.
avanços na convocação e organização da XVI Confe- Na atualidade, diversos prefeitos e governadores
8. WORLD HEALTH ORGANI-
rência Nacional de Saúde, espaço democrático de também vêm flexibilizando o distanciamento social. O ZATION. Disponível em: https://
avaliação sobre a situação de saúde e de proposição sistema de saúde vem mostrando seu limite de atendimen- covid19.who.int. Acesso em: 14
ago. 2020.
de diretrizes para a política nacional de saúde. Nessa to. Ainda que o vírus atinja diferentes estratos sociais, os
Conferência, também denominada de 8ª + 8, o tema dados mostram que a tragédia é maior para aqueles com
Democracia e Saúde retomou a perspectiva histórica menor poder aquisitivo da classe trabalhadora.
e a mobilização popular presente na VIII Conferência Apesar do atual contexto de dificuldades e com-
Nacional de Saúde. Esse avanço, entretanto, decorreu plexidade, lutas, resistências e mobilizações estão
da articulação do CNS com diversos movimentos ocorrendo. Mesmo não podendo se reunir e fazer
sociais e de sua autonomia ante o governo. O go- manifestações, alguns atos criticando a política do
verno, entretanto, teve muito pouca participação no governo ocorreram respeitando o distanciamento
financiamento da Conferência. social, bem como os panelaços que expressam um
Em março de 2020, a OMS declara que a disse- descontentamento. Movimentos de esquerda vêm,
minação do novo coronavírus (Covid-19) em todos os em várias lives, denunciando o governo, e textos têm
9. Esta Frente é um importante
continentes se caracteriza como uma pandemia. Em sido veiculados nas mídias sociais. Na saúde, antes mecanismo de articulação dos
movimentos contra-hegemô-
14 de agosto de 2020, o mundo chega a 20.730.456 de mesmo da pandemia, a Frente Nacional contra a Pri- nicos na saúde. Tem o caráter
anticapitalista e suprapartidário,
casos confirmados, e a doença causou 751.154 mortes. vatização da Saúde9 e seus diversos Fóruns estaduais e tem articulado a ela 23 Fóruns
O Brasil, nessa data, ultrapassa 104.201 mortes por têm cumprido um importante papel crítico. de Saúde estaduais, além de
entidades, movimentos sociais,
Covid-19 e 3.164.785 casos, sendo o segundo país Nesta conjuntura de barbárie social e retirada de centrais sindicais, sindicatos,
partidos políticos e projetos
mais afetado no mundo, perdendo apenas para os direitos, permanece como tarefa necessária e funda- universitários, que objetivam
defender o SUS público, estatal,
Estados Unidos6. mental a luta contra todas as formas de privatização gratuito e para todos, além de
Até o momento, o governo teve dois ministros na da vida, procurando articular as lutas no campo da lutar contra a privatização da
saúde e pelos princípios da Re-
pasta da saúde: Luiz Henrique Mandetta, médico e com saúde a um novo projeto societário. forma Sanitária dos anos 1980.

vínculo com a Unimed e com as Filantrópicas, teve sua


gestão no período entre janeiro de 2019 e abril de 2020;
e Nelson Teich, médico e empresário do setor. A troca
do primeiro pelo segundo se deu devido à divergência
no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Teich teve
uma passagem relâmpago no Ministério (de 17 de abril a
15 de maio de 2020), afastando-se da pasta também por
discordar acerca do uso da cloroquina. Após a saída de
Nelson Teich, Eduardo Pazuello assume, interinamente,
o Ministério da Saúde.
A subnotificação, a ocultação dos dados da pan-
demia e a militarização do Ministério da Saúde são
problemas que provocam o total descontrole da Co-
vid-19 no País. Desde a saída dos dois ministros da área
técnica da saúde, o comando do Ministério da Saúde
se encontra militarizado. Com um ministro interino,
General do exército à frente da pasta, vem avançando
em uma política que promove o negacionismo, a
censura e o obscurantismo. Não existe um comando
nacional para o combate à pandemia no Brasil, nem
mesmo um Plano com diretrizes orientadoras7.
100

O papel do Conselho Nacional de Saúde na


luta pelo direito à Saúde dos Trabalhadores
CNS – Mesa Diretora Gestão 2018/2021

Usuários: Fernando Zasso Pigatto, André Luiz de Oliveira, Moysés Longuinho Toniolo de Souza e Vanja Andréa Reis dos Santos

Profissionais de saúde: Elaine Junger Pelaez e Priscilla Viégas Barreto de Oliveira

Gestores e prestadores de serviços: Neilton Araújo de Oliveira e Jurandi Frutuoso Silva

Discutir saúde da trabalhadora e do trabalhador Cabe apontar, então, a previsão constitucional


em uma conjuntura de globalização mundial afetada da participação da comunidade na deliberação da
pelo neoliberalismo econômico e financeirização política pública de saúde3, o que se dá institucio-
de mercados e da força de trabalho coloca-nos as nalmente por meio da incidência ativa e atuante em
contradições que envolvem a relação entre capital e Conselhos e Conferências de Saúde, conforme Lei nº
trabalho e as determinações no processo saúde-doen- 8.142/19904. Essa prerrogativa fortalece a atuação de
ça, com inúmeros desafios para garantia da dignidade trabalhadoras e trabalhadores nas ações da saúde da
e condições justas e efetivas de saúde para essa classe trabalhadora e do trabalhador, bem como a presença
social que representa a base da economia. da comunidade nesses diálogos e deliberações, por
No contexto atual, no qual o trabalho com meio de sua organização coletiva.
toda sua dinamicidade se configura em organiza- A partir do marco da participação social, com a
ção social e estabelece suas bases ideológicas e VIII Conferência Nacional de Saúde, a pauta da saúde
políticas estruturais, todo o ‘mundo do trabalho’ da trabalhadora e do trabalhador tem sido assumida
– visível e invisível – foi estruturado com base no pelo CNS em sua organização, e assim pôde incor-
1. BRASIL. Constituição (1988).
Constituição da República
argumento capitalista de que, para o progresso de porar o assunto em suas resoluções, recomendações
Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal, 1988. Dis-
nossa sociedade, era necessário ter trabalho com e moções aos governos que passaram.
ponível em: http://www.planalto. condições específicas de garantia da dignidade hu- Ademais, por meio da sua CISTT, conduz a dis-
gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em: 14 mana, para que as pessoas conseguissem alcançar cussão sobre a Rede de Cerest, importante estratégia
nov. 2020.
os ideais de desenvolvimento socioeconômico da de acompanhamento dessa área específica da Vigilân-
2. SILVA, S. P. Democracia,
políticas públicas e instituições
humanidade, enquanto civilização. cia em Saúde, trazendo importantes análises para o
de deliberação participativa: No entanto, o debate da saúde da trabalhadora e conjunto da CISTT nos Conselhos Estaduais e Muni-
Visões sobre a experiência
brasileira. Texto para Discussão, do trabalhador no decorrer da história ganhou corpo cipais de Saúde. Todo esse campo de atuação permite
2018. Disponível em: https://
www.ipea.gov.br/portal/index. e avançou político-legalmente com a inserção em po- o aprimoramento da PNSTT, com base no diálogo
php?option=com_content&-
view=article&id=32202. Acesso
líticas públicas, com a adoção do conceito ampliado do controle social do SUS objetivando a proteção da
em: 08 dez. 2020. de saúde na perspectiva do direito universal. Essa classe trabalhadora nos aspectos da sua dignidade e
3. Constituição Federal de 1988, perspectiva se alinha ao crescimento de coletivos de direitos sociais adquiridos ao longo do tempo.
Seção II Da Saúde, art. 198.
As ações e serviços públicos trabalhadoras e trabalhadores civilmente organizados Dessa forma, e também por intermédio da estru-
de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e e ampliação da participação social na defesa da saúde tura da Comissão Intersetorial de Recursos Humanos
constituem um sistema único,
organizado de acordo com as
e proteção social e do trabalho, o que reflete e é e Relações de Trabalho (CIRHRT), o CNS desenvolve
seguintes diretrizes: (...) III – refletido por uma ampla mobilização de diferentes o tema do Trabalho & Saúde, com centralidade na
participação da comunidade.
setores da coletividade. formação, como área estratégica de sua discussão, visto
4. BRASIL. Lei nº 8.142, de
28 de dezembro de 1990. Nesse sentido, o movimento que firmou as bases que dedicar um foco para a dignidade e qualidade das
Dispõe sobre a participação
da comunidade na gestão da redemocratização brasileira nos anos 1970 e 1980 relações de trabalho nos ambientes de saúde torna-se
do Sistema Único de Saúde
(SUS) e sobre as transferências
foi primordial para o “aprofundamento democrático fundamental em períodos de emergência em saúde,
intergovernamentais de recursos que formatou as bases institucionais para uma maior mas principalmente no cotidiano da prática da saúde,
financeiros na área da saúde e
dá outras providências. Diário participação sócial”1(10) com a população presente de em todas as linhas de cuidado e suas complexidades.
Oficial da União. Brasília, DF. 31
Dez. 1990. Disponível em: http:// forma legítima, podendo atuar na definição da exe- No entanto, é importante colocar que o con-
www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8142.htm. Acesso em: 08
cução de políticas públicas em atenção às demandas trole social é exercido em um espaço de disputas,
nov. 2020. reais e concretas da população2. que reproduz as questões conjunturais de políticas
101

neoliberais em curso no Brasil que viabilizam projetos Condições dignas de vida; pleno emprego; trabalho 5. SIMIONATTO, I., et al. Estado
e sociedade civil em tempos de
de esvaziamento do Estado, e que na saúde se dão por estável e bem remunerado; oportunidade de lazer; or- contrarreforma: lógica perversa
ganização livre, autônoma e representativa de classe; para as políticas sociais. Textos
meio de contrarreformas, que, segundo Simionatto e & Contextos, v. 10, n. 2, p. 215-
informação sobre todos os dados que digam respeito 226, 2011.
Luza5(218), “caracteriza-se pela eliminação ou redução direitos. Portanto, no plano do direito, o DIREITO À SAU- 6. COHN A., et al. Relatório
das conquistas das classes subalternas, perspectiva DE precisa expressar, também, DIREITO AO TRABALHO, da 1ª Conferência Nacional de
inerente ao neoliberalismo e às condições postas DIREITO À INFORMAÇÃO, DIREITO À PARTICIPAÇÃO, Saúde do Trabalhador. Brasília,
DF: CNST, 1989. Disponível em:
pelo capitalismo na atualidade”. DIREITO AO LAZER7(2). http://renastonline.ensp.fiocruz.
br/recursos/relatorio-1a-conferen-
Desde a década de 1990, essas contrarreformas Especialmente este ano, diante do grave con- cia-nacional-saude-trabalhador.
Acesso em: 21 ago. 2020.
envolveram não somente aspectos econômicos, mas texto de crise sanitária mundial e, particularmente, 7. CONFERÊNCIA NACIONAL
também uma reconfiguração da relação entre Esta- alinhada à crise política no Brasil, a pandemia do DE SAÚDE DOS TRABALHA-
do e Sociedade, com ataque sistemático aos direitos novo coronavírus trouxe ainda mais desafios à de-
DORES Relatório Final. Brasília,
DF: 1989. Disponível em: http://
conquistados pela classe trabalhadora, como favore- fesa da saúde da classe trabalhadora. Não bastasse o renastonline.ensp.fiocruz.br/sites/
default/files/arquivos/recursos/1a_
cimento do empresariado, valorização da filantropia, subfinanciamento crônico do SUS que se consolida conf_nac_saude_trabalhador.pdf.
Acesso em: 18 jan. 2021.
juntamente com a privatização, terceirização – e hoje em desfinanciamento (principalmente com a institui- 8. Ver em: http://conselho.
até quarteirização –, parcerias público-privadas, funda- ção da EC 95/2016), a contrarreforma trabalhista e a saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/
ções, sendo todos esses dispositivos utilizados como contrarreforma previdenciária que atacam de morte
1074-carta-aberta-do-cns-as-au-
toridades-brasileiras-no-enfrenta-
formas de enfrentamento da questão social5. direitos, além de golpear os aspectos que envolvem a mento-ao-novo-coronavirus

Outrossim, diante dessas questões que se colo- saúde e segurança de trabalhadoras e trabalhadores.
cam, resgatando o mote da VIII Conferência Nacional O CNS não ficou alheio a esse contexto; e, além
de Saúde que coloca a Saúde como Direito do Povo de campanhas, notas públicas e Recomendações a
e Dever do Estado, além do entendimento da deter- diferentes instâncias, entidades e órgãos, divulgou,
minação social na saúde, o CNS tem o importante em 23 de março de 2020, a Carta Aberta a autoridades
papel político de produção e promoção de argu- brasileiras no enfrentamento ao novo coronavírus8
mentos e propostas, como canal institucionalizado que já elencava um conjunto de ações necessárias à
de interlocução entre sociedade e poder público, a atenuação do temerário cenário que se configurava,
partir de convergências construídas em meio ao seu que incluiu atuação na classe trabalhadora, visando
caráter conflitivo. o zelo pela Seguridade Social e pela vida das pessoas.
No âmbito da Saúde da Trabalhadora e do O CNS, portanto, tem assumido com veemên-
Trabalhador, desde a I CNST, realizada de 1º a 5 de cia a defesa intransigente de condições de vida que
dezembro de 1989, que se discutia a perspectiva de viabilizem o acesso à saúde, no seu conceito amplo,
uma PNSTT em um foro de debates eminentemente com acesso à educação de qualidade, moradia digna,
político, uma vez que a saúde da trabalhadora e do saneamento básico, água potável, entre outros direi-
trabalhador envolve fatores sociais, econômicos e tos. Contrário a tudo que represente a precarização
políticos, “no âmbito de uma proposta abrangente da vida e dignidade de todas as pessoas, o CNS tem
de Política Nacional de Saúde”7(2), o que significava, se colocado na luta por uma sociedade mais justa,
de acordo com o Relatório Final da I CNST solidária e equânime.

Foto: Acervo CNS


102

Essa luta também representa a defesa de finan- brasileira em defesa do Estado Democrático e do direito
ciamento adequado do SUS, que se configure como à saúde, e participar da formulação e monitoramento
da política nacional de saúde, fortalecendo o caráter
público-estatal, de acesso universal e atenção integral.
deliberativo do controle social7.
O que não representa uma visão romântica, mas, sim,
a partir da compreensão dos limites impostos em Por fim, é preciso reafirmar fortemente que os
uma sociedade capitalista que vê na precarização da direitos sociais constitucionalmente incorporados não
vida e superexploração das pessoas a manutenção surgiram naturalmente ou por acaso. Foram resultado
da ordem social. de muito ‘sangue, suor e lágrimas’ de pessoas que
Dito isso, é importante resgatar a missão do CNS, doaram literalmente suas vidas para garantir o que
debatida e construída coletivamente, e apresentada ficou estabelecido. Fruto da construção pela demo-
no Planejamento Estratégico Participativo 2019-2021, cracia, que sempre teve em seu bojo a disputa entre a
aprovado pelo pleno do CNS na 323ª Reunião Ordi- resistência popular e as reações conservadoras, o que
nária ocorrida em 8 de novembro de 2019: coloca a participação social em um caminho marcado
por tensões, conquistas, retrocessos e transformações
Defender o Sistema Único de Saúde público, integral, gra-
tuito, universal e de qualidade, mobilizando a sociedade – e que precisa se colocar constantemente como
espaço de Resistência e Enfrentamento.
Foto: Acervo CNS
4
Produção de conhecimento
até quanto e para quem?
Coordenação
Maria Cristina Strausz & Jandira Maciel da Silva
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.07
105

Produção de conhecimento até quanto e para quem?


Maria Cristina Strausz
Jandira Maciel da Silva

‘O céu é o limite!’. Com este antigo ditado popular, No âmbito da pós-graduação, após anos de cons-
abrimos este Bloco, buscando desenvolver algumas re- trução de um sistema de valorização do acesso a partir
flexões em torno da provocativa pergunta que o intitula. da autorização de novos programas, a Coordenação de
Assim, partimos da premissa de que não existe limite de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
qualquer natureza para a produção de conhecimento alterou, em 2019, o seu sistema de classificação dos
em Saúde do Trabalhador (ST), esta compreendida periódicos. Esse novo sistema é baseado no chamado
como campo da saúde coletiva, historicamente com- Qualis Único, que estabelece uma única classificação
prometida com a luta pela saúde da classe trabalhadora. de referência para cada periódico. Isso gerou o re-
Assumimos esta premissa, considerando as seguintes baixamento da classificação de vários periódicos da
questões: 1) a centralidade do trabalho, espaço só- área de saúde coletiva. A forma monocrática como
cio-histórico de construção do sujeito individual e foi determinado o novo sistema acabou por gerar
coletivo, na determinação do processo saúde-doença diversas manifestações, tanto por parte de programas
dos indivíduos e das coletividades; 2) a permanente de pós-graduação como entre os editores científicos
reestruturação dos processos de trabalho, que cada a de revistas do campo da saúde coletiva e da própria
cada dia intensifica a superexploração sobre a classe tra- Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e
balhadora, determinando o surgimento de novos riscos o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)1. 1
RIZZOTTO, M. L. F, et al.
The new Capes’ criteria for the
e de novos padrões de sofrimentos e de adoecimentos; Uma vez que o peso maior da avaliação dos pro- classification of journals and the
repercussion in the field of public
3) a necessidade de continuarmos avançando na conso- gramas está na produção científica, o resultado direto health. Saúde debate. v. 43, n.
122, p. 649-656, 2019.
lidação do reconhecimento do processo saúde-doença desse rebaixamento se refletirá em dois cenários:
e sua relação com o trabalho; 4) os desmontes das 1) enfraquecimento dos programas por subfinan-
políticas de proteção social, aumentando vulnerabili- ciamento, podendo levar ao descredenciamento; ou
dades e desigualdades em saúde; e 5) a necessidade de 2) redução do número de docentes credencia-
produzir conhecimentos implicados com as demandas dos nos programas, a partir do estabelecimento de
e necessidades dos(as) trabalhadores(as). pontos de corte para credenciamento cada vez mais
Em relação à produção do conhecimento, a ST é altos, a fim de manter uma nota elevada, com reflexos
um campo de diálogo de saberes, que articula diferentes no número de matrículas e, consequentemente, a
áreas, em uma dimensão que vai à raiz da determinação elitização da educação.
social com os aportes da sociologia, da economia, da Do ponto de vista dos periódicos da área de
política, das várias áreas do direito, das engenharias, saúde coletiva, estes têm como características, entre
das ciências sociais e da saúde. Em função dessa confi- outras, a divulgação de estudos e pesquisas, análises,
guração interdisciplinar, considerando o campo acadê- reflexões e relatos de experiências que contribuem
mico, sua produção científica é divulgada por meio dos para a formulação, planejamento e avaliação de po-
periódicos não só do campo da saúde coletiva, como líticas para o Sistema Único de Saúde (SUS). A nova
enfermagem, psicologia, serviço social, epidemiologia, forma de avaliação poderá comprometer a própria
como também por intermédio das diversas disciplinas sobrevivência das revistas que se mantiverem em seus
que compõem o campo da ST – ergonomia, engenha- propósitos de contribuir para a difusão de conheci-
ria de produção, sociologia, entre muitas outras. Há mento científico produzido e dirigido ao setor saúde2.
também uma vasta produção em livros publicados por Por isso mesmo, a produção do conhecimento
editoras que possuem validação científica. em ST não deve ser restrita aos periódicos científicos,
Como área do conhecimento científico em saúde, a mas, sim, direcionada à classe trabalhadora, por meio
ST foi institucionalizada no âmbito da pós-graduação em de uma linguagem acessível e de meios de comuni-
saúde coletiva, com formação crescente de especialistas, cação abrangentes.
mestres e doutores. Seus estudos buscam compreender A produção compartilhada de saberes tem sido
o processo saúde-doença a partir da investigação do pro- uma forma de incorporação do saber da experiência
cesso de trabalho como processo social, que privilegia a dos(as) trabalhadores(as) ao saber técnico-científico
subjetividade dos atores envolvidos. e vice-versa, como uma via de mão dupla.
106

A produção técnica desenvolvida no âmbito das C – Produção técnica derivada da formação:


instâncias de ST do SUS tem sido fundamental, no – A formação como estratégia para ação de Vi-
sentido de fornecer orientações à Rede Nacional de gilância em Saúde do Trabalhador: até quando?
Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast). Por Ana Maria Cheble Bahia Braga e Simone
A produção derivada da formação em ST, na Santos Oliveira;
forma de projetos de intervenção ou planos de ação, – A importância da formação em saúde do tra-
tem sido uma prática pedagógica importante para o balhador na implantação da política nacional
desdobramento da formação nos serviços. de saúde do trabalhador e trabalhadora no
A incorporação das tecnologias de informação e Tocantins: relato de experiência do Centro
comunicação propiciaram outras possibilidades para de Referência em Saúde do Trabalhador (Ce-
a construção de redes e intercâmbio de experiências e rest-TO), por Gisele Akemi Carneiro e Magna
informações técnico-científicas para a ST, como: Blog Dias Leite.
Multiplicadores de Vigilância em Saúde do Trabalhador D – Produção Técnica da Renast:
( Visat), Renast online, Programa Integrado em Saúde – A produção de conhecimento para estruturar
Ambiental e do Trabalhador (Pisat), Fórum de Aci- a prática da Vigilância em Saúde do Traba-
dentes de Trabalho, Webcesteh, Observatório de SST, lhador ( Visat) no estado de São Paulo, por
Observatório em Saúde do Trabalhador – Osat/BH. Simone Alves do Santos;
Finalizamos dizendo que a pandemia de Co- – Alguns apontamentos sobre a produção de
vid-19 nos trouxe a oportunidade de expandir as conhecimento sobre saúde do trabalhador no
trocas de saberes, a partir de webinares, lives, e outros âmbito da rede de serviços do SUS, por Andrea
recursos de internet, abertos a participação ampliada Garboggini Melo Andrade; Jacira Azevedo
de estudiosos, profissionais e movimentos sociais e Cancio; Leticia Coelho da Costa Nobre; Rita
sindicais. Uma grande contribuição tem sido o Sis- de Cássia Peralta Carvalho e Suerda Fortaleza
tema de Informações Geográficas – SIG Saúde do de Souza.
Trabalhador da Rede Rute, que tem em propiciado E – Comunicação e difusão do conhecimento em ST:
a comunicação a distância entre todos esses atores – A experiência do Programa Integrado de
que atuam em ST. Saúde Ambiental e do Trabalhador,Pisat/ISC/
Neste Bloco, apresentamos 11 textos que trazem UFBA, na produção de informação epidemio-
diferentes abordagens da produção do conhecimento lógica sobre agravos à saúde relacionados ao
em ST, organizado da seguinte forma: trabalho, por Vilma de Souza Santana e Cleber
A – Produção de conhecimento e gênero em Cremonese;
tempos de pandemia de Covid-19 – texto de Lucia- – A comunicação e a difusão do conhecimento
na Gomes, Regina Helena Simões Barbosa e Eliana em saúde do trabalhador a partir daexperi-
Guimarães Félix; ência do blog Multiplicadores de Visat, por
B – Produção compartilhada de conhecimento, Isabella Maio e Luciene Aguiar;
em que foram trazidas três experiências: – Plataforma Renast online: uma ferramenta
– Partilha de saberes e renovação da tradição para apoio à formação e integração da Rede
operária na reedição do MOI, por Katia Reis, Nacional de Atenção Integral à Saúde do Tra-
Gideon Borges, Letícia Masson, Renato Bon- balhador, por Augusto Campos.
fatti e Mariana Nada; São muitas as formas de produção de conheci-
– A produção do conhecimento em Saúde do mento no campo da ST e não poderíamos esgotá-las
Trabalhador no setor mineral, por Murilo da aqui. Esses são exemplos importantes de articulação
Silva Alves, Georgina Maria Véras Motta, Marta entre trabalhadores(as), academia e serviços para
de Freitas e Livia de Oliveira Borges; que se atinja a finalidade maior da ST, que é a incor-
– Reflexões sobre a produção de conhecimento poração dos(as) trabalhadores(as) como sujeitos da
para ação no campo da Saúde do Trabalhador: produção de conhecimento para a transformação dos
experiência com pescadoras artesanais no Brasil, seus processos de trabalho.
por Carlos Minayo Gomez e Paulo G. L. Pena. Desejamos a todos uma boa leitura.
107

Produção de conhecimento e gênero em tempos


de pandemia de Covid-19
Luciana Gomes
Regina Helena Simões Barbosa
Eliana Guimarães Félix

As exigências crescentes em torno da produtivi- da esfera pública, é designado aos homens; e o mundo
dade acadêmica, que vêm impulsionando docentes, doméstico, a esfera da reprodução social, às mulheres. 1. SANTOS, A. F. T. Entre a
cooptação e a repressão: capital e
pesquisadoras e pesquisadores a um ritmo intenso À reprodução social, cabe reproduzir os trabalha- trabalho nas reformas educacionais
latino-americanas. In: GOMES, C.
de trabalho, somadas a condições de trabalho cada dores, tanto no sentido biológico quanto em termos de (Org.). Temas do Ensino Médio: Rio
de Janeiro: EPSJV; Fiocruz, 2004.
vez mais precarizadas, são uma questão anterior à esforço diário para que possam se recuperar o suficiente p. 49-64.
pandemia. Tal situação, que repercute na saúde física para trabalhar novamente no outro dia. Diz respeito à 2. RIZZOTTO, M. L. F. O Banco
e psíquica de docentes universitários, é vivenciada de compra ou confecção de alimentos e roupas, cuidados Mundial e as políticas de saúde no
Brasil nos anos 90. Tese (Doutorado
forma diferenciada por homens e mulheres. com a saúde, moradia, sono, cuidado infantil ou de em Saúde Coletiva). Campinas:
Unicamp, 2000.
Especialmente na última década do século XX, idosos, limpeza, recreação – tudo o que é essencial para
3. SIMÕES-BARBOSA, R. H.
as políticas científica e educacional que orientam os sustentar os trabalhadores e seu trabalho10,11. A ‘teoria da práxis. Trab. Educ.
processos de trabalho e a produção científica nas ins- O capitalismo se apropriou do patriarcado para Saúde, Rio de Janeiro, v. 8 n. 1, p.
9-26, 2010.
tituições públicas de ensino e pesquisa passaram a ser otimizar seus interesses mercantis, o trabalho de re- 4. LUZ, M. T. Prometeu acorren-
incentivadas, inclusive por meio de financiamento, por produção foi designado às mulheres, em nome da tado. Physis, Rio de Janeiro, v.
15, 2005.
agências internacionais, como Banco Mundial, que têm “natureza”, transformando-o em um ato de amor
5. SOUZA, K. R., et al. Cadernetas
como um de seus objetivos conectar as instituições e do dever materno7 e, portanto, não precisaria ser de saúde e trabalho: diários de
professores de universidade
educacionais, e de saúde, ao mercado e, mais ampla- remunerado, já que nem era visto como trabalho. pública. Cad. Saúde Pública, v. 34,
mente, transformar educação em mercadoria, negocia- Foram as lutas feministas dos anos 1970 que postu- n. 3, 2018.

da, inclusive, na Organização Mundial do Comércio1,2. laram a inseparabilidade entre as esferas produtiva 6. RAMÍREZ-GÁLVEZ, M. Apre-
sentação. Algumas considerações
No trabalho acadêmico, esses processos insta- e reprodutiva, exigindo que o trabalho doméstico sobre a cultura da avaliação.
Mediações, v. 14, n. 1, 2009.
lam e promovem acirrada competição entre pares e fosse considerado trabalho e, como tal, remunerado8.
7. HIRATA, H. Novas configurações
fragmentação dos processos de produção do conheci- As mulheres passaram a integrar, crescentemen- da divisão sexual do trabalho.
Cadernos de Pesquisa, v. 37, n.
mento, tornando os grupos de pesquisa cada vez mais te, a força de trabalho remunerada, o que não signi- 132, p. 509-609, 2007.
especializados, corporativos e concorrentes entre si3. ficou uma maior igualdade de gênero; ao contrário, 8. FEDERICI, S. O ponto zero da
Os efeitos danosos dessa política, inclusive sobre a a força de trabalho feminina foi apropriada pelos revolução. São Paulo: Elefante,
2019.
saúde dos próprios pesquisadores, vêm sendo perce- segmentos produtivos mais precarizados e mal pagos12,
9. GIFFIN, Κ. M. Nosso corpo nos
bidos e analisados4,5. Nesses processos de trabalho, os sendo que permaneceram como responsáveis pelo pertence. Cad. Saúde Pública. v.
2, 1991.
pesquisadores são incentivados a serem ‘protagonistas’ trabalho doméstico, acumulando duplas ou triplas
10. GORDON, R. O futuro pode
na viabilização do trabalho de pesquisa, o que inclui jornadas de trabalho. ser feminino, mas a pandemia é
obter e gerenciar financiamentos externos6. Contudo, há um recorte de classe e raça nessa patriarcal. In: ROQUETA, M., et
al., (Org.). Coronavírus, gênero e
Quando a pandemia de Covid-19 se anunciou, situação, pois as mulheres dos segmentos médios e a luta de classes. Brasil: Terra sem
Amos, 2020.
nos vimos diante de um ‘mercado do conhecimento’ altos sempre delegaram as funções domésticas para
11. BHATTACHARYA, T. Teoria
que vem causando inúmeros problemas de saúde física mulheres pobres, a maioria negras, configurando a da reprodução social e porque
precisamos dela para entender a
e psíquica, além de um sofrimento difuso inominá- consubstancialidade entre classe, gênero e raça13. crise do coronavírus. In: Roqueta
vel, proveniente de um mal-estar relacionado com a Esse acúmulo de trabalho, produtivo e reprodutivo, M., et al. (Org.). Coronavírus, gênero
e a luta de classes. Brasil: Terra sem
competitividade entre pares. Porém, é imprescindível é sustentado pela ideologia de gênero, que naturaliza Amos, 2020.

considerar os diferenciais de gênero presentes nesse o trabalho doméstico como trabalho feminino. Esses 12. BRITO, J. Enfoque de gênero e
relação saúde/trabalho no contexto
problemático processo de trabalho e que provocam valores (ainda) estão profundamente arraigados na de reestruturação produtiva e pre-
carização do trabalho. Cad. Saúde
diferentes impactos entre homens e mulheres. maioria das sociedades humanas. Pública, Rio de Janeiro. v. 16, n. 1,
Para analisar criticamente essa questão, propomos No que diz respeito às hierarquias profissionais, p. 195-204, 2000.

os conceitos de divisão sexual do trabalho e da dialética nas profissões de maior prestígio social e que exigem 13. KERGOAT, D. O trabalho, um
conceito central para os estudos
entre as esferas da produção e da reprodução na socie- alto grau de escolaridade e longo processo de for- de gênero? In: MARUANI, M.,
(Org.). Trabalho, logo existo. Rio de
dade capitalista3,7-9. Nesse modo, o mundo da produção, mação, como a carreira de professor universitário/ Janeiro: FGV Editora, 2019.
108

pesquisador, as mulheres passaram a adentrá-las mais

Foto: Reprodução Facebook


recentemente, sendo que, hoje, já compõem uma par-
cela importante dessa profissão altamente valorizada.
Porém, observa-se, assim como ocorre entre outras
14. PLATAFORMA LATTES.
Por liderança e sexo. Disponível
categorias profissionais, que os homens ocupam em
em: http://lattes.cnpq.br/web/dgp/ maior número os cargos de direção e na liderança de
por-lideranca-e-sexo. Acesso
em: 20 ago. 2020. grupos de pesquisa no País14.
Os critérios de avaliação desse tipo de trabalho, no
contexto da atual divisão sexual do trabalho, não foram
alterados e adaptados para as necessidades de vida das
mulheres, como a gravidez, o puerpério e o período de
licença maternidade. Mulheres com filhos pequenos têm
uma atribulada rotina de trabalho, que envolve o cuidado
em suas várias facetas, desde as tarefas de rotina até os
complexos aspectos afetivo-relacionais, que envolvem
criar, educar e preparar os filhos para o enfrentamento
da vida. Conciliar todas essas demandas com o trabalho
intelectual, que exige disciplina, foco e concentração, não As novas rotinas impuseram novos papéis que pre-
é fácil para a maioria das mulheres que corajosamente se cisaram ser assumidos, além de sobreposição de tarefas,
dedicam a essa exigente carreira profissional. como acompanhar filhos pequenos nas aulas remotas
Recente pesquisa desenvolvida com professoras e criar estratégias para estimular as crianças a enfrenta-
universitárias do Rio de Janeiro revelou esses conflitos. rem esse desafio, o que exige criatividade para propor
Nessa profissão, a carreira materna e o trabalho doméstico atividades que as deixem menos entediadas e ansiosas ,
entram em confronto com a acadêmica, especialmente manter a rotina dos cuidados cotidianos, desde preparar
quando os filhos são pequenos5. Ademais, a pesquisa a comida, alimentar, dar banho, brincar, educar, colocar
apontou para as dificuldades de realização profissional para dormir, dar carinho e amor, ficar em permanente
das professoras, que se desdobram para responder a todas estado de alerta, monitorando suas atividades e aten-
as demandas e se desgastam, física e psiquicamente, ao dendo a suas necessidades, no mesmo espaço e tempo
perceberem que não conseguem alcançar a contento em que desempenham as atividades de trabalho, como
todos os seus objetivos. Como consequência, torna-se ministrar aulas, participar de reuniões virtuais, orientar
frequente muitas mulheres se cobrarem, e se culparem, alunos, fazer pesquisa, produzir artigos etc. O peso do
pelo pouco tempo dedicado aos filhos5. trabalho doméstico e o de cuidados de crianças, que antes
No contexto da pandemia do novo coronavírus, podiam ser compartilhados com empregadas domésticas,
era esperado que a situação de confinamento social babás, escola, creche, ajuda de familiares ou amigos, agora
15. FLAHERTY, C. No Room agudizasse os aspectos da sobrecarga de trabalho, voltam-se para as mulheres, em jornadas muitas vezes
of One’s Own. Inside higher ed,
2020. Disponível em: https:// agravados pela fusão entre o ambiente de trabalho e intermináveis e marcadas por interrupções frequentes
www.insidehighered.com/
news/2020/04/21/early-journal-
a vida doméstica, sabidamente gerador de tensões e por parte das crianças, que precisam de atenção e que,
-submission-data-suggest-co- desgastes. Os registros de violência contra as mulhe- em um espaço confinado, não se adequam facilmente a
vid-19-tanking-womens-resear-
ch-productivity. Acesso em: 20 res no período da pandemia revelam preocupante cumprir protocolos de tarefas e horários.
ago. 2020.
aumento desses índices, que já eram inadmissíveis Reflexos dessas paradoxais e extenuantes jornadas
16. KITCHENER, C. Women
academics seem to be submitting anteriormente. O convívio forçado em um ambiente têm sido identificados, entre as pesquisadoras, por meio
fewer papers during coronavirus.
The Lily -Washington Post.
confinado certamente contribui para o aumento dos da redução da submissão de artigos às revistas científicas.
24 abril de 2020. Disponível conflitos, especialmente aqueles relacionados com a Já nos primeiros meses da pandemia, editores de revistas
em: https://www.thelily.com/
women-academics-seem-to-be- divisão sexual do trabalho. científicas americanas de diversas áreas de conhecimento
-submitting-fewer-papers-during-
-coronavirus-never-seen-anythin- Com o isolamento social, passou-se ao trabalho identificaram padrões incomuns de gênero, em que as mu-
g-like-it-says-one-editor/. Acesso
em: 01 maio 2020.
remoto, o que significou mudanças não só no pro- lheres submeteram até 50% menos artigos, comparando
17. PARENT IN SCIENCE. Pro-
cesso de trabalho, que precisou ser completamente com o ano anterior, ao passo que houve aumento nas sub-
dutividade acadêmica durante adaptado ao meio digital, aos novos prazos, ao do- missões feitas por homens, com a mesma comparação15,16.
a pandemia: Efeitos de gênero,
raça e parentalidade. Levanta- mínio de tecnologias de comunicação e internet, Em levantamento sobre a produtividade acadêmica
mento do Movimento Parent in
Science durante o isolamento da como também à necessidade de ajustes profundos brasileira, realizado pelo Movimento Parents in Science17,
Covid-19. Disponível em: https://
www.parentinscience.com.
nas rotinas, sobrepondo o tempo do convívio familiar durante os meses de abril e maio de 2020, com a partici-
Acesso em: 01 ago. 2020. ao tempo do trabalho. pação de, aproximadamente, 15 mil cientistas, entre dis-
109

centes de pós-graduação, pós-doutoranda(o)s e docentes/ Esse quadro reforça a necessidade premente de


pesquisadores, concluiu-se que a produção mais afetada adotar o enfoque crítico de gênero para analisar o
foi a das mulheres com filhos em idades até 12 anos, sen- mundo do trabalho, o que implica, no que diz respeito
do um pouco mais alta para as mulheres negras do que ao trabalho acadêmico, rever os critérios de avaliação
para as brancas. Os homens com filhos nessa faixa etária na carreira docente/pesquisador(a), para que essas
também foram afetados. Outrossim, em caminho oposto, disparidades não se ampliem.
a submissão, por homens, especificamente aqueles sem Na pandemia, voltamos a clamar pelo debate que
filhos, foi a menos afetada, o que permite supor que a reconheça as várias dimensões do trabalho das mulheres,
pandemia do novo coronavírus agudizou as desigualdades revalorizando-se o trabalho do cuidado, fundamental
de gênero no trabalho acadêmico. para a preservação da vida humana e sem o qual nossa
Todos esses dados evidenciam o quanto o trabalho sobrevivência não seria possível. Impõe-se, neste momento
de reprodução social se tornou mais intenso e penoso pandêmico, a problematização do trabalho sob a ótica
para as mulheres na pandemia, a ponto de estar impac- da produtividade e do lucro, que exclui a valorização
tando concretamente na sua produção acadêmica – o que de outras dimensões da vida fundamentais para o ‘viver
possivelmente se desdobrará em repercussões negativas bem’18. É preciso ampliar/ultrapassar o entendimento 18. CARVAJAL, J.P. Uma ruptu-
ra epistemológica com o feminis-
na sua carreira e em consequências para a saúde, em dessas questões para transformá-las em políticas públi- mo ocidental. In: HOLLANDA, H.
especial a saúde mental. Já se sabe que a intensificação do cas de proteção e de intervenção sobre o trabalho das B. (Org.). Pensamento feminista
hoje: perspectivas decoloniais.
trabalho de pesquisadores pode resultar em palpitações, mulheres. É fundamental transformar a divisão sexual RJ: Bazar do Tempo, 2020.

angústia, desânimo, irritação, cansaço, frustração, vontade de trabalho, incluindo os homens no trabalho doméstico
constante de chorar e sentimento de culpa por não terem em uma perspectiva de companheirismo e igualdade.
tempo para a família, especialmente os filhos5. Contudo, Se concordamos com Federici8, de que é inconciliável a
neste momento da pandemia, pode-se supor que, diante superação das desigualdades de gênero sob o capitalismo
da mobilização subjetiva para realizar a conciliação do patriarcal e racista, devemos integrar e fortalecer as lutas
trabalho acadêmico com o trabalho doméstico, do esforço dos povos para superar este sistema social cada vez mais
cognitivo, físico e afetivo que é empreendido e, ainda incompatível com a sobrevivência humana.
assim, não conseguir se manter no patamar de produção Encerramos este breve ensaio com a convicção
anterior, deva causar frustração, desânimo, irritabilidade, de que os vigorosos movimentos de mulheres que
culpa em relação ao tempo que não se dedicou aos filhos vêm se manifestando na última década, reivindicando
ou à família, o que pode levar à sensação de menos-va- outro mundo possível baseado na igualdade, frater-
lia e insegurança. Desse modo, se nada for mudado, o nidade e solidariedade, é inadiável. Estamos diante
trabalho pode tomar um rumo patogênico e, no limite, de impasses sociais e ambientais que exigem nosso
levar à desestabilização e à descompensação psíquica16. firme engajamento.

Construção do conhecimento em Saúde do


Trabalhador: partilha de saberes e renovação
da tradição operária na reedição do MOI
Gideon Borges dos Santos
Katia Reis de Souza
Letícia Pessoa Masson
Renato Bonfatti
Mariana Nada

Um dos mais interessantes desafios na cons- beres sobre a relação trabalho, saúde e ambiente
trução do conhecimento em Saúde do Trabalhador elaborados a partir da experiência protagonizada
é fazê-lo numa perspectiva participativa. Entre os pelos trabalhadores e aqueles produzidos pelas regras
obstáculos a serem vencidos, a equivalência dos sa- científicas e acadêmicas tem-se colocado como questão
110

fundamental. Evidentemente, esse princípio não é o Diversos pesquisadores brasileiros foram con-
único pressuposto para apoiar práticas de atenção, vidados para elaborar manuscritos, com base em ex-
formação e Visat, posto que a teoria deve estar bem periências de pesquisa inspiradas na obra e sobre as
acompanhada de uma ação que promova mudanças possibilidades e desafios da construção de conheci-
significativas no processo de trabalho. Ademais, desse mento em ST na perspectiva participativa. “A ideia era
ponto de vista metodológico, envolver trabalhadores e que os textos encomendados relatassem experiências e
cientistas na construção de um projeto comum exige reflexões inspiradas pelo MOI, bem como levantassem
também recursos apropriados e esforço coletivo de questões relacionadas ao nosso tempo e à realidade
maneira que o protagonismo dos trabalhadores não brasileira”2(12). A Hucitec Editora, em conjunto com
seja insidiosamente envolvido pela tradição cientifica. os organizadores, prontamente viabilizou o que foi
Destarte, na contramão da hegemonia positivista necessário para a realização desse empreendimento.
de produção de conhecimento de hierarquizar saberes Em síntese, promoveram-se espaços de diálogo e formas
acadêmicos e aqueles produzidos a partir das expe- de comunicação (virtuais e presenciais) para integração
1. ODDONE, I., et al. Ambiente riências dos trabalhadores, a obra de Ivar Oddone1 entre os autores (nacionais e internacionais) por meio
de trabalho. 2. ed. revista e
ampliada . SP: Hucitec, 2020. e colaboradores é exemplar. O livro ‘Ambiente de de diferentes estratégias pedagógicas, a saber: oficina
v. 1. 291 p.
trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde’, cuja de autores brasileiros com a participação de autores
reedição brasileira foi recentemente lançada pela Hu- internacionais; trocas sucessivas de mensagens entre
citec Editora, oferece ao leitor pistas luminosas sobre organizadores e autores do Brasil, Itália, Portugal e
o protagonismo dos trabalhadores na construção do França durante todo o processo de reedição do livro;
conhecimento. revisão dos textos, em perspectiva colaborativa, entre
Nessa linha de interpretação, importa destacar organizadores e autores; e ciclos de debates organizados
uma palavra-chave frequente no livro que resume por grupos de autores dos capítulos.
muito bem, do ponto de vista concreto e simbólico, Todos os novos capítulos foram produzidos por
o valor do seu patrimônio teórico e metodológico. grupos de autores, envolvendo uma razoável diversida-
Trata-se da “experiência”, a criação de um sentido, ao de de experiências, formações, inserções profissionais
mesmo tempo, histórico, existencial e epistemológico, e contato com a obra de Oddone e colaboradores e
que, ao lado de outras palavras, tais como “diálogo”, uma rica interlocução sobre os temas abordados.
“coletivos”, “socialização”, entre outras, configuram Os textos, embora bastante diferentes, conectam-se
um repertório potencialmente pedagógico do campo de modo interessante e estão ancorados direta ou
2. SOUZA, K. R., et al. Apre- da ST em defesa da vida2(13) indiretamente em pesquisas e ações com trabalha-
sentação da segunda edição
brasileira e agradecimentos. Do ponto de vista do conteúdo, o livro nos dores e seus territórios de trabalho e de vida e visam
In: ODDONE, I. et al. Ambiente
de trabalho. 2. ed. revista e
ensina o processo pelo qual os trabalhadores se compreender e contribuir para a transformação das
ampliada. SP: Hucitec, 2020. v. defendem das adversidades, riscos de agravos e situações nocivas de trabalho. Trazem, ainda, pistas
1. p. 1-13
mortes provocados pelo trabalho, em uma pers- sobre reflexões epistemológicas, possibilidades meto-
pectiva coletiva da saúde. Quanto ao traço metodo- dológicas e sobre os desafios enfrentados no País para
lógico, a obra descreve um modelo de experiência colocá-las em prática. Frisam, assim, a partir do MOI:
democrática que cria sentidos comuns e condições 1 – a importância da elaboração de uma lin-
práticas para participação, envolvimento e ade- guagem em comum com esses protagonistas, que
são dos trabalhadores no processo de produção possibilite a construção de um conhecimento novo
de conhecimento sobre o trabalho e a saúde, na sobre a relação saúde-trabalho;
perspectiva não apenas de sua compreensão, mas 2 – a importância de que essa construção possi-
também de sua transformação. bilite um desenvolvimento mútuo e formativo desses
Sem dúvida, o livro ‘Ambiente de trabalho: a protagonistas e dos próprios pesquisadores e da ciência;
luta dos trabalhadores pela saúde’ ou, simplesmente 3 – a importância de reconhecer o outro e seu
MOI — Modelo Operário Italiano —, modo como saber como legítimos.
ficou conhecido no Brasil, aproximou-nos de uma A ideia central era pôr em prática o postulado
experiência que concilia teoria e prática; objetividade existente no próprio aporte do MOI, segundo o qual
e subjetividade e suscita a partilha de saberes entre o conhecimento é socialmente construído e os seus
intelectuais, trabalhadores e estudantes, integrando as produtos, como textos e livros, devem ser coletiva-
esferas da ciência e do trabalho, apontando também mente validados. Assim, foi fundamental o contato
para a incorporação da discussão sobre território e inicial com uma das autoras da primeira edição do livro
meios de vida, de forma mais ampla2(12). na Itália, Alessandra Re, que nos empolgou com seu
111

entusiasmo, ao saber do projeto de reedição do livro tica. Saúde e democracia são práticas que guardam
em língua portuguesa e, com Marianne Lacomblez, semelhanças entre si porque ambas se definem pela
escreveu um belíssimo prefácio, além da leitura cuida- participação de todos, e não apenas pelo plantel de
dosa e contribuição aos manuscritos. No prefácio, as especialistas. De maneira semelhante à democracia, o
autoras trouxeram ricas informações sobre o contexto estabelecimento das condições adequadas de saúde
da emergência do movimento e da elaboração do Mo- e segurança é algo que depende também de uma
delo, como o contato entre as experiências italiana e reflexão aprofundada sobre o ambiente e processos
brasileira a partir de 1979, acrescidas de novas reflexões de trabalho, que todo trabalhador tem o direito de
e reafirmações de pontos decisivos da obra, como, por reclamar para si.
exemplo: a importância da construção de uma lingua- Embora consigamos enxergar diversos limites
gem de interface para o diálogo entre especialistas e no uso e na apropriação de conceitos e ferramen-
trabalhadores; e da análise das atividades de trabalho tas do MOI em nossa realidade, podemos destacar
e sua validação com os trabalhadores. do seu capital simbólico e social alguns princípios
Yves Schwartz3 foi convidado a elaborar o posfá- e expressões que diferenciam a ST de outras áreas, 3. SCHWARTZ, Y. Posfácio.
In: ODDONE, I. et al. Ambiente
cio e brindou-nos com um texto primoroso, em que como a saúde ocupacional e a medicina do trabalho. de trabalho. 2. ed. revista e
ampliada. SP: Hucitec, 2020. v.
faz uma ‘costura’ dos oito novos textos, alinhavada por São eles: “Não-delegação”; “Saúde não se vende, se 1. p. 1-13
uma questão que o intriga: por que o MOI encontrou defende”; enraizamento sindical nos locais de tra-
terreno fértil no Brasil, apesar de condições e história balho; democracia; elaboração de mapas de riscos
tão diferentes do contexto europeu? Assim, explora com a participação dos trabalhadores; integração
a singular apropriação feita no País comentando e entre o ambiente interno de trabalho (o chão de
apresentando ao leitor, à maneira de um mosaico, as fábrica) e o território externo, do seu entorno, para
contribuições trazidas por esses textos para ajudá-lo fortalecimento de uma “consciência ecológica”; e a
a encontrar pistas para a questão. Por fim, aponta a formação de trabalhadores para contestação crítica da
releitura do MOI como um auxílio na luta pela de- nocividade de seus postos de trabalho de modo que o
mocracia em nossas sociedades. ponto de vista de quem trabalha tenha protagonismo
O que se observa atualmente no cenário brasi- na reformulação das suas condições de trabalho2(13).
leiro é uma clara ameaça aos princípios democráticos Um desafio contemporâneo é a mais absoluta
capilarizada pelo afastamento do cidadão nas decisões incapacidade dos indivíduos de enfrentar e conviver
políticas do País. Além disso, de modo equivalente, com aquilo que se mostra divergente pela ausên-
acentuam-se perdas de direitos e seguridade sociais, cia efetiva de espaços de criação social, nos quais
flexibilização e precariedade das relações de trabalho, a sociedade possa refletir e dissolver seus próprios
desemprego, informalidade que, em decorrência da problemas. O MOI nos ensina a revitalizar espaços de
extensão da vulnerabilidade imposta aos trabalhado- trabalho mais democráticos como disposição humana
res, ampliam os agravos e as mortes pelas situações para agir em conjunto e refletir sobre temas da ST.
adversas de trabalho. Esta foi, de fato, a perspectiva adotada na reedição do
Outrossim, em que pesem os esforços dos movi- livro: reapresentar e recontar sua história, imbuídos
mentos populares no presente, verificam-se retroces- do espírito participativo, de maneira que o nosso
sos sociais e políticos sem precedentes na história da projeto, pela forma e conteúdo, pudesse expressar a
democracia do mundo ocidental, como a chegada ao lição ensinada por Oddone e colaboradores.
poder de governos de extrema-direita e o crescimento Importa, portanto, considerar a preservação
de grupos neofacistas no mundo. Também por isso da história e da memória de luta dos movimentos de
defende-se a atualidade do MOI, considerando seu trabalhadores levada a efeito com a (re)edição do MOI.
caráter emancipatório e sua vocação para multiplicar É fato que existe uma memória de aprendizado do
atores, autores e ampliar cenários de lutas sob o pro- passado a partir da própria experiência coletiva que
tagonismo dos próprios trabalhadores2(13). precisa ser contada e renovada. Sem dúvida, o MOI
No MOI, encontram-se importantes parâme- pode ser interpretado como memória de experiências
tros políticos-metodológicos contra essas ameaças, de produção compartilhada de conhecimento sobre
pois, quando o trabalhador participa do processo a relação trabalho e saúde. Trata-se de uma história
de construção do conhecimento, ele não apenas social, em seu sentido mais amplo, parte importante
viabiliza a criação de um conceito ampliado de saúde do movimento internacional de lutas da classe traba-
como também, ao fazê-lo, fortalece o dispositivo vida lhadora. Para Hobsbawn4, existe uma conexão entre 4. HOBSBAWN, E. J. Mundos
do trabalho. São Paulo: Paz e
comum e fortalecimento da experiência democrá- as lutas empreendidas pela classe operária e as ideias Terra, 2015.
112

nelas implícitas que precisam se tornar patrimônio com a teoria, de modo que a história operária floresça
teórico e base política de novas ações vitais. Segundo como nunca.
o mesmo autor, existe uma relação orgânica entre Então, vida longa à tradição operária internacional e
teorias construídas pelo movimento operário e a todo seu espírito revolucionário de produção de conhe-
ação política, como partes indissociáveis. Essa ação, cimento alinhado com a ação e a transformação social2(13).
como afirma o Manifesto de Marx, é fundamental à Por fim, assegura-se com Hobsbawn4 a impor-
5. HOBSBAWN, E. J. Sobre
História. São Paulo: Companhia conformação da mudança histórica e social5,6. tância dos processos históricos de produção de co-
das letras, 2005. O MOI, como parte da historiografia dos mo- nhecimento que possibilitem a emancipação e a trans-
6. MARX, K., et al. Manifesto
comunista. São Paulo: Boitempo,
vimentos operários, confirma o preceito filosófico formação subjetiva das pessoas para que acreditem
2010. presente no materialismo histórico de que a histó- que aquilo que desejam e sonham somente pode ser
7. MARX, K. O Capital. São ria operária se preocupa tanto em mudar quanto alcançado com a construção de mudanças sociais. Isso
Paulo: Boitempo, 2013.
em interpretar o mundo4,7. Assim, o aporte do MOI se daria por meio de uma participação política mais
possibilita criar um mundo no qual os trabalhadores ampla e de lutas coletivas ensejadas no cotidiano,
possam ensejar sua própria história, em conciliação tal qual o MOI e seu legado no Brasil possibilitam.

Produção compartilhada de conhecimento:


a produção do conhecimento em Saúde do
Trabalhador no setor mineral
Murilo da Silva Alves
Georgina Maria Véras Motta
Marta de Freitas
Livia de Oliveira Borges

Na mineração, assim como nas demais atividades permite a defesa da saúde, como campo político do
econômicas, a ST vivencia significativa vulnerabilização trabalhador. Entre as articulações, destacamos a da
1. ANTUNES, R. O privilégio da
servidão. SP: Boitempo, 2018.
diante da reestruturação produtiva, flexibilização Confederação Nacional dos Trabalhadores do Setor
e perda dos direitos trabalhistas, precarização das Mineral (CNTSM) em parceria com a Federação Interna-
2. SANTOS, B. S. Para um novo
senso comum. v. 1. São Paulo: condições de trabalho, novos modos de adoecer, cional dos Mineiros (FIM)3, que elaboraram o primeiro
Cortez, 2000.
sustentados na apropriação do conhecimento pelo curso específico sobre segurança, higiene e saúde na
3. A FIM se fundiu com a Inter-
national Federation of Chemical, patronato e pelo Estado, e a fragmentação sindical1,2. mineração na Escola Sindical 7 de Outubro4, em 1994.
Energy, Mine and General Workers’
Unions (ICEM), em 1995.
Com o intuito de se contrapor a essa realidade, sur- Embora o principal resultado tenha sido a parti-
4. Diante da necessidade de lutar
gem as alianças. Movimentos populares e sindicais, cipação dos sindicatos na elaboração da nova NR 22 –
contra as péssimas condições de trabalhadores, agentes institucionais e profissionais Segurança e Saúde Ocupacional na Mineração –, a cria-
trabalho e de vida e reorganizar o
movimento sindical e popular em de saúde têm-se mobilizado para construir alterna- ção de secretarias de ST, realização de treinamentos e
Minas Gerais, algumas entidades
sindicais progressistas, com tivas de enfrentamento por meio da produção de campanhas, como a do Índice de Acidentes e Doença
o apoio e a solidariedade de
movimentos de base, intelectuais e
conhecimento, visando a proteção, segurança e ST, Zero (IADZ), inclusão de itens de segurança e saúde
os metalúrgicos italianos, criaram, instrumentalização de modos de resistência, forma- nas convenções coletivas, bem como as parcerias com
em 1983, a Escola Sindical 7 de
Outubro, a primeira escola sindical ção e intervenção possíveis, buscando alternativas entidades nacionais e internacionais, universidades
da CUT. Ao longo dos seus quase
40 anos, a Escola Sindical fortalece no trabalho e no campo social, em que o saber do e órgãos públicos para desenvolvimento de pesqui-
o sindicalismo cidadão, formando,
qualificando e requalificando os
trabalhador seja incorporado. sas e formação foram e continuam sendo resultados
trabalhadores e trabalhadoras dos Entre as experiências está a articulação dos mo- da inclusão do tema ST no cotidiano do sindicato.
meios urbano e rural, e os militan-
tes dos movimentos sociais para vimentos sindicais/populares e a universidade, que O debate sobre o Marco Regulatório da Mineração
desenvolver suas potencialidades
e lutar por melhores condições reconhece o potencial emancipador das resistências aproximou as entidades sindicais e os movimentos
de trabalho e por uma sociedade
justa, democrática, sustentável
(saberes, conhecimento, estratégias, táticas e modos sociais para discutirem a saúde dos trabalhadores e
e solidária. de fazer) infiltradas no campo real do trabalho e que das populações impactadas pela mineração.
113

O Movimento pela Soberania Popular na Mineração


(MAM) realiza uma dessas articulações com reuniões
regionais e nacionais dos professores, pesquisadores/as,
estabelecendo parceria com as comunidades atingidas
pela mineração. Desenvolve cursos de formação, inclui
os trabalhadores na produção compartilhada como o
‘Dicionário crítico da mineração’, assim como atividades
em parceria com outros movimentos, como os sindicais
e o Grupo de Trabalho de Mineração do Projeto Brasil
Popular (GT-mineração/PBP), que propõe a construção
de um novo modelo de política mineral. Uma dessas ini-
ciativas foi a oficina realizada em 2019 pelo GT-mineração/
Minas do PBP, com a participação de militantes, traba-
lhadores, membros da comunidade e de universidades
e que contemplou um eixo sobre saúde e mineração,
com propostas voltadas à saúde e condições de vida nos
territórios afetados pela mineração: promoção de saúde,
ações específicas de saúde para a população do entorno
de áreas mineradas e ações específicas em ST5.
O projeto ‘Conexões de saberes sobre o Trabalho/
UFMG’ é um dos exemplos de pesquisa e extensão das
universidades com o movimento sindical no setor mine-
ral, desenvolvendo dispositivos de conhecimento a partir
da experiência do trabalho real, por meio de saberes O debate sobre a frágil relação trabalhador/ C. Portinari – Ferro, 1938
Carvão sobre papel kraft
investidos nas renormalizações, essenciais para a ST. mineração/territórios apresenta reflexões e propos- 280 cm x 248 cm
Outro exemplo é a parceria do Laboratório de Estudos tas de ações conjuntas em prol da ST, manifestos Palácio Gustavo Capanema,
Rio de Janeiro.
sobre Trabalho, Sociabilidade e Saúde da Universidade também em eventos simbólicos de cooperação e
Federal de Minas Gerais (LETSS/UFMG) e os Cerest/BH e solidariedade de classe que retomam o saber co-
de Contagem que desenvolveram ações de apoio técnico letivo nas lutas, como o Dia do Trabalho e o Dia
a esses profissionais para o acolhimento à população Internacional em Memória às vítimas de acidente e
afetada pelo rompimento da barragem de Fundão em doenças do trabalho.
Mariana/MG, voltadas aos atendimentos e registros de Existem várias dessas experiências no Brasil, po-
adoecimentos psíquicos no Centro de Atenção Psicos- rém, seria impossível elencá-las todas. A construção
social (Caps) de Mariana, pareando conhecimentos no compartilhada do conhecimento pode ocorrer de
atendimento a partir da Visat. formas variadas, permite compreender o processo e
Temos, ainda, a constituição de observatórios, fó- as condições de trabalho-saúde e estabelecer condi-
runs, ações coletivas que auxiliam a elaboração dessa ções para a realização de mudanças organizacionais,
rede compartilhada de saberes, como o Fórum Sindical políticas e sociais.
e Popular de Saúde e Segurança do Trabalhador e da Muitos desses saberes do ‘fazer’ são utilizados 5. As propostas do relatório
final da oficina intitulado
Trabalhadora de Minas Gerais (FSPSST), constituído por como proteção na identificação antecipada de riscos, ‘Comunidades atingidas e terri-
tórios afetados pela mineração:
representações sindicais, instituições governamentais, pes- e o compartilhamento do vivido com a análise do realidades e resistências’ foi
quisadores da área, grupos de pesquisa de universidades trabalho é parte do conhecimento-emancipação2. publicado no livro ‘Mineração:
realidades e resistências’ da
e militantes, que têm articulado o debate social a partir da A experiência do trabalhador como ponto central editora Expressão Popular.

construção de vínculos entre diversos movimentos sociais. nessa construção de saberes, herança do Movimento 6. ODDONE, I., et al. Redécou-
vrir l’expérience ouvrière. Paris:
De suas atividades, constam, por exemplo, o Seminário Operário Italiano no Brasil, e das construções co- Editions sociales, 1981.
sobre saúde mental e trabalho para a Conferência Estadual letivas dos movimentos sindicais6, nas abordagens 7. BORGES, L. O., et al.
Psicossociologias do trabalho.
de Saúde/MG, assim como a Conferência Municipal de psicossociológicas, é elemento dos processos de In: BORGES, L. O., et al. (Org.),
Saúde do Trabalhador/BH, ações de pesquisa e extensão intervenção para emancipação dos trabalhadores Psicossociologias do trabalho:
temas contemporâneos. Curitiba:
realizadas com o LETSS/UFMG. no real do trabalho7. Editora CVR. [2021]. No prelo.
114

Reflexões sobre a produção de conhecimento


para ação no campo da Saúde do Trabalhador:
experiência com pescadoras artesanais no brasil
Carlos Minayo Gomez
Paulo Gilvane Lopes Pena

Este artigo discorre sobre um trabalho de forma- doenças e acidentes do trabalho (vide: documentário
ção realizado com pescadores artesanais em diversos ‘Mulheres das Águas’, https://www.youtube.com/wat-
territórios brasileiros, sob as premissas do campo da ch?v=P62sFliw7K8). Cabe lembrar que os pescadores
ST. A perspectiva metodológica adotada entende que artesanais são enquadrados como segurados especiais
a transmissão de conhecimentos tem como finalidade no sistema previdenciário e, com isso, têm direito
a transformação da realidade abordada. Esses conhe- ao Seguro de Acidentes do Trabalho (SAT) e aos res-
cimentos são o resultado da interlocução entre o pectivos benefícios, sendo necessário a emissão de
saber sistematizado no meio acadêmico e os saberes Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), como
provenientes das experiências de vida, trabalho e a qualquer assalariado segurado. No entanto, desco-
saúde dos próprios pescadores. nhecem esse direito e não têm acesso aos serviços do
Essa categoria tradicional tem por base um riquís- SUS em condições de executarem procedimentos de
simo patrimônio cultural de saberes sobre a natureza, nexos e emissão de CAT para aqueles inscritos como
porém, desconhece a noção de doenças e acidentes segurados especiais3.
do trabalho enquanto problemas de saúde relacio- Diante desse quadro, desenvolvemos um am-
nados com o trabalho. Trata-se de uma das grandes plo processo de formação e educação em saúde das
categorias profissionais do País, conforme o último trabalhadoras na pesca artesanal no País, por meio
dado institucional disponível, indicando a existên- de projeto com a Universidade Federal da Bahia, o
cia de 853.231 pescadores artesanais registrados em Ministério da Saúde (MS), o Movimento de Pescadores
1. NOGUEIRA, L. S. M. Segu-
rança e saúde dos pescadores
20121, embora possa alcançar 1,5 milhão de pessoas e Pescadoras Artesanais (MPP) do Brasil e a Comissão
no estado do Pará. São Paulo: vivendo da pesca, conforme estimativas extraoficiais. da Pastoral da Pesca, no período de 2014 a 2018. A
Fundacentro, 2017.
O processo de trabalho em que esses trabalha- metodologia referenciou-se nas premissas da educação
2. PENA, P. G. L., et al. Saúde dos
pescadores artesanais e desafios dores estão inseridos se caracteriza pelo não assala- popular nas atividades de pesca litorânea em mar aber-
para a Vigilância em Saúde do
Trabalhador. Ciênc. Saúde Colet., riamento, em regime produtivo de economia familiar to, lagos e rios, além da mariscagem. Teve como foco a
v. 19, n. 12, p. 4689-4698, 2014. de subsistência, com uso de embarcações de médio e formação de agentes multiplicadoras nos territórios e a
3. BRASIL. Previdência
Social. Manual de instruções para
pequeno porte, a remo, vela ou motorizados. Com esse participação nas instâncias do controle social do SUS.
preenchimento da comunicação domínio técnico e cultural, asseguram a capacidade de Foram realizadas oficinas em 11 estados do País, com
de acidente do trabalho – CAT.
1999. Disponível em: http://www. autoemprego, embora tenham sua produção explorada a participação de 450 mulheres, sendo 40 para cada
contagem.mg.gov.br/arquivos/
comunicacao/preenchimentode- pela figura do atravessador. Existe uma divisão social do oficina, com duração de uma semana. Aconteceram no
cat-inss[1]-20191210033146.pdf.
Acesso em: 30 ago. 2020.
trabalho em que predominam os homens na pesca em Pará na região Norte; em todos os estados do Nordeste;
mar aberto, sendo que, nas atividades de mariscagem, em Minas Gerais, no Espírito Santo e no Rio de Janeiro
predominam as mulheres, inclusive com a presença do na região Sudeste; e no Rio Grande do Sul, em Santa
trabalho precoce de crianças e adolescentes2. Catarina e no Paraná na região Sul.
As condições de vulnerabilidade social e econô- As atividades em cada oficina discutiam temas
mica em que vivem esses trabalhadores os obrigam como: significado da noção da saúde para as pesca-
a se expor a graves riscos de doenças e acidentes doras; conceitos e práticas de vigilância em saúde e
relacionados ao trabalho, porém, invisíveis nas esta- a Visat; processos de trabalho na pesca artesanal e
tísticas dos serviços públicos de saúde e previdência riscos para a ST; doenças e acidentes relacionados
social. Soma-se a isso, a precariedade de acesso aos ao trabalho da pesca; direito à saúde e à assistência
serviços de saúde do SUS, o que redunda na ausência integral no SUS; direitos previdenciários relacionados
de diagnóstico, tratamento, reabilitação e encami- ao SAT e ao segurado especial; SUS/Controle Social;
nhamento previdenciário para os acometidos por Política Nacional de Saúde Integral das Populações
115

do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCFA) e – Atuar no reconhecimento das doenças e


Saúde da Mulher. Na última parte de cada oficina, acidentes do trabalho nos serviços do SUS e da
houve a elaboração, pelas próprias pescadoras, de Previdência Social.
Plano de Ação que conduziu a atuação no âmbito – Fortalecer ações e proposições para assegurar
local, regional e nacional para o enfrentamento dos condições de proteção ao ambiente e ao território de
problemas discutidos e referenciadas na melhoria das pesca artesanal de forma sustentável, como condição
políticas públicas. essencial para fomentar sua saúde.
A metodologia, como já foi referido, baseou-se O processo pedagógico se encaminhou à for-
nos princípios da educação popular que enfatiza a mação das pescadoras participantes com vistas a se
necessidade de articular saberes tradicionais com tornarem multiplicadoras das ações transformadoras.
conhecimentos técnicos e legais para fundamentar as A perspectiva estratégica foi a formação para ação
ações de melhoria das condições de vida, trabalho e transformadora das organizações do trabalho, como
saúde. A ideia foi aportar teoria aos fatos e às experi- base pedagógica intrínseca à relação entre pensamento
ências de vida e de trabalho das pescadoras, fundindo e ação, teoria e prática, sendo as pescadoras ‘sujeitos
e ampliando os seus saberes de forma sistematizada, insubstituíveis’ da melhoria de suas condições de vida.
em que as reflexões pudessem resultar em ações con- As atividades educativas em saúde foram realiza-
cretas no cotidiano do mundo da pesca. O objetivo foi das processualmente, envolvendo inicialmente: 1) o
qualificar as lideranças de mulheres pescadoras para levantamento das condições de vida, trabalho e saúde
que atuassem na construção de políticas de saúde, no na pesca artesanal; 2) a sistematização, discussão e
âmbito da saúde integral das populações do campo, difusão de experiências das pescadoras artesanais na
florestas e das águas, em particular na sua relação melhoria das condições de trabalho, ambiente e saú-
com o funcionamento do SUS, com a participação de; e 3) a sua participação em instâncias de controle
na gestão da saúde, na saúde do trabalhador e da social do SUS, assim como nas práticas organizacionais
trabalhadora e direitos previdenciários. em defesa dos interesses das populações das águas.
O pressuposto fundamental foi o conceito am- As políticas públicas constituíram referências
pliado de saúde, definido na VIII Conferência Nacional para a reflexão sobre as demandas apresentadas
de Saúde (CNS), em 1986, como resultante das con- pelas pescadoras na formulação das suas proble-
dições de alimentação, habitação, educação, renda, máticas, como: 1) a PNSIPCFA; 2) as políticas de
meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, saúde, em especial, a Política Nacional de Saúde
liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT); 3) a
de saúde. Esses direitos têm como condicionantes as política previdenciária; 4) as políticas relativas à
formas de organização social da produção. saúde da mulher; 5) os aspectos legais e normati-
O foco principal do curso proporcionou apor- vos que envolvem essas políticas; e 6) as políticas
tes teóricos e metodológicos para que as pesca- relacionadas à economia solidária.
doras e pescadores artesanais tenham condições Os resultados foram expressivos, e podem ser
de agir organizadamente visando à melhoria de resumidos da seguinte forma:
suas condições de vida, trabalho e saúde, sob as 1. Do ponto de vista do conhecimento, pela
seguintes perspectivas estratégicas: primeira vez nessa profissão, ressignificou-se parte de
– Subsidiar reflexões e fortalecer práticas do modalidades de sofrimento, adoecimento, mutilações
movimento das mulheres pescadoras, especialmente e mortes naturalizadas no mundo da experiência,
com a finalidade de capacitá-las para ações de gestão para qualificá-las na noção de doença ou Acidente
participativa e controle social do SUS. de Trabalho (AT). Essa categoria de agravos era des-
– Desenvolver subsídios educacionais para for- conhecida até então, e essa mudança desvelou direi-
talecer a garantia do direito à saúde das trabalhadoras tos para esses trabalhadores, como direito à saúde;
artesanais visando à: promoção de condições dignas direitos previdenciários relativos ao SAT; notificação
de trabalho; prevenção de doenças e de acidentes de agravos ocupacionais; emissão da CAT e direito à
do trabalho; e garantia de diagnóstico, tratamento e participação no controle social do SUS por meio das
reabilitação de portadores de doenças do trabalho e conferências de saúde.
sequelas desses agravos. 2. No âmbito da ação, entre outras, pela primeira
– Proporcionar conteúdos teóricos e legais para vez, pescadoras artesanais se elegeram delegadas para
dar suporte às ações que visem à efetivação dos direitos participarem da XVI CNS, em 2019, e conseguiram
previdenciários dos pescadores e pescadoras. aprovar duas proposições relativas à saúde dos tra-
116

balhadores pescadores artesanais no País. Além do 5. Organizaram atividades para agir contra a
mais, diversas lideranças de pescadoras e pescadores subnotificação e o não reconhecimento das doenças
artesanais começaram a participar de conselhos muni- e acidentes do trabalho em ações como: formação de
cipais de saúde de regiões com territórios pesqueiros, grupos nas comunidades de pescadores para orien-
sendo que três delas chegaram aos conselhos estaduais tarem o preenchimento de CAT específica para o
de saúde, e uma delas foi indicada para o Conselho segurado especial na Previdência Social; solicitação
Nacional de Saúde, como suplente. do registro no Sistema de Informações de Agravos de
3. Sistematizaram informações sobre o processo Notificação (Sinan) para atendimentos de acidentes
de trabalho, atividades, jornadas de trabalho e riscos nos serviços de urgência do SUS e de doenças do
para saúde. Surpreenderam-se ao calcularem suas trabalho nas Unidades de Saúde da Família; recurso
exaustivas jornadas de trabalho, que variavam de 80 ao Cerest para suporte de nexos e registros. Frequen-
horas a 110 horas por semana, envolvendo atividades temente, afogamentos, intoxicações causadas por
na captura do pescado ou marisco, deslocamen- animais aquáticos peçonhentos, acidentes em barcos,
to, transporte, beneficiamento e comercialização, entre outros, eram tratados e registrados como agravos
produção e manutenção de artefatos para pesca, comuns, e não ocupacionais.
além da exaustiva jornada dos trabalhos domés- 6. Relataram a ocorrência de gravíssimos aci-
ticos para as mulheres. Ademais, não dispunham dentes com motores de barco, provocando escalpela-
de férias remuneradas, descanso semanal, e era mento de mulheres pescadoras nos estados da Bahia,
frequente o trabalho na infância e tardio, mesmo de Pernambuco e de Santa Catarina, portanto, muito
após a aposentadoria. Tais condições se expressavam além do que era conhecido na literatura anteriormente
em extremas vulnerabilidades para os processos de como um fenômeno da região Norte.
agravos relacionados ao trabalho. 7. O câncer de pele foi referido nas oficinas como
4. Iniciaram ações para desvelar a invisibilidade importante risco para pescadores artesanais, especial-
epidemiológica relacionada às doenças e acidentes mente para as pessoas de pele branca. Existe a prática
4. BARRETO, M. C., et al. do trabalho nessa categoria, tanto para o SUS como de uso de chapéus e roupas longas em algumas regi-
Prevalence and Work-Related
Factors Associated with Lower para a Previdência Social, a exemplo da existência de ões, mas não é uma medida de prevenção suficiente.
Back Musculoskeletal Disorders in
Female Shellfish Gatherers. Inter-
quadro epidêmico de Lesões por Esforços Repetitivos Há necessidade de distribuição de protetor solar para
national Journal of Environmental
Research and Public Health, v. 16,
(LER) ou Distúrbios Musculoesqueléticos (DMS) em pescadoras e pescadores expostos cotidianamente
p. 857-872, 2019. pescadores artesanais/marisqueiras disponível na ao sol, como parte de políticas públicas voltadas à
5. FALCÃO, I. R., et al. Prevalên- literatura4,5. A ausência dessas informações ocorria proteção da saúde desse grupo de trabalhadores,
cia dos distúrbios musculoesque-
léticos nos membros superiores não apenas pela falta de acesso aos serviços de saú- uma vez que eles não possuem condições financeiras
e pescoço em pescadoras arte-
sanais/marisqueiras em Saubara,
de dessa categoria de trabalhadores extremamente a aquisição desses produtos.
Bahia, Brasil. Ciênc. Saúde Colet.,
v. 20, p. 2469-2480, 2015.
vulnerável, em lamentável estado de pobreza, mas, 8. As oficinas desvelaram fatos desconhecidos,
sobretudo, pela ausência de investigações nos ser- como o risco de intoxicação crônica pelo chumbo.
viços de saúde que estabelecessem nexos entre o Trata-se do hábito ocupacional dos pescadores uti-
processo de adoecimento e as condições de traba- lizarem a técnica tradicional de preparar e colocar
lho, considerando tecnologias médicas, sociais e diversos pesos e dispositivos de chumbo na rede de
epidemiológicas. pesca, denominado tarrafa, e, no momento de lançar
na água, prendem o chumbo entre os dentes.
Foto: Pedro Devani/Secom Acre

9. Também, verificaram que as regiões alagadi-


ças, manguezais, rios e lagos levam os pescadores a
uma exposição excessiva às picadas de mosquitos,
podendo, em momento de desespero, levá-los ao
uso de óleo diesel e querosene na pele como repe-
lente. Tais relatos resultaram na demanda ao SUS de
distribuir repelentes para pescadores, principalmente
diante do crescimento das epidemias da dengue,
chikungunya e zika.
10. O resultado principal de cada oficina cons-
tituiu na elaboração e consolidação de um Plano
de Ação, em sintonia com a Articulação Nacional de
Pescadoras (ANP), visando à inserção da saúde na
117

agenda política. O Plano de Ação consolidado en- em saúde pública, muitas desconhecidas pelos
volveu práticas de políticas de saúde e produção de sistemas de vigilância epidemiológica do SUS.
material educativo. As propostas mais relevantes do Assim, as experiências aqui retratadas fundamen-
ponto de vista da formação e da transformação das tam a importância da produção de conhecimentos
práticas destacadas em cada momento das oficinas compartilhados para ação, seja para pescadoras e
serviram para organizar o planejamento das ativida- pescadores artesanais, seja para outras categorias
des, particularmente nas comunidades de pescadoras não assalariadas, como agrícolas, artesãs, tradi-
envolvidas na dinâmica do projeto. cionais ou não, que necessitam de políticas de
O elenco de atividades acima sintetizado cons- saúde eficazes para garantirem o direito universal
tituiu-se em informações da mais alta prioridade à atenção à saúde.

A importância da formação em Saúde do


Trabalhador na implantação da Política
Nacional de Saúde do Trabalhador e
Trabalhadora no Tocantins: relato de
experiência do Cerest-TO
Gisele Akemi Carneiro
Magna Dias Leite

A ST no Tocantins há 18 anos foi estruturada plexidade do campo da ST. Com essa finalidade,
principalmente pelos processos formativos do campo foram destinados investimentos para formação
da ST. Este breve relato apresentará os cursos que nos níveis de qualificação e aperfeiçoamento, es-
qualificaram os técnicos do Cerest-TO, a rede SUS e pecialização e mestrado.
o controle social do estado entre 2006 e 2019, os pro- Pretende-se, aqui, apresentar reflexões sobre os
jetos de intervenção exitosos e os principais desafios cursos de formação como estratégia de implementação
na implementação da PNSTT no estado. da PNSTT, no sentido de demonstrar os desafios e
A promoção da formação e a capacitação em perspectivas no âmbito da Visat, da Atenção Integral
ST para profissionais de saúde do SUS é descrita e da participação do controle social.
na PNSTT como competência à direção nacional,
estadual, municipal do SUS, assim como cabe ao Formação e implementação da Visat
Cerest o apoio à projetos de intervenção e pes- A Visat objetiva a promoção da saúde e redução
quisas científicas em parcerias com universidades, da morbimortalidade da população trabalhadora,
escolas e/ou centro formadores. por meio da integração de ações que intervenham
Pode-se afirmar que o marco dos processos nos agravos e seus determinantes decorrentes dos
formativos no Tocantins se deu em 2006 com o Cur- modelos de desenvolvimento e processos produtivos1. 1. BRASIL. Ministério da Saúde.
Portaria nº 3.252, de 22 de
so Básico em Vigilância em Saúde do Trabalhador O processo de formação em Visat promove a dezembro de 2009. Aprova as
diretrizes para execução e finan-
(CBVisat) que abordou as questões metodológicas descentralização de ações e amplia a capacidade do ciamento das ações de Vigilância
em Saúde pela União, estados,
e a prática das ações. Contudo, para desenvolver SUS em desenvolver intervenções sanitárias sobre Distrito Federal e municípios e
projetos de intervenção, vigilância e implantação os relacionados ao trabalho. O curso CBVisat (2006, dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 23
de serviços, fez-se necessário o investimento em 2010) e multiplicadores (2014/2015), ambos da Dez. 2009

outros cursos de formação na área, que propor- Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da
cionassem competências e compreensão da com- Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) prepararam
118

a equipe do Cerest-TO, Vigilância Sanitária ( Visa) Formação para o controle social em ST


estadual e sindicatos para realizar inspeção sanitária Formação para controle social em ST propor-
em ST e promover cursos/capacitações no estado. cionou a transformação social dos atores locais (pú-
No período de 2009 a 2011, foram realizados blico e controle social), o fortalecimento da Visat, o
cinco cursos (40 horas) de Formação em Visat para empoderamento (emancipação) dos atores sociais, a
Visa municipais. Nestes, participaram 71 fiscais de participação nos conselhos de saúde e Comissão In-
48 municípios. Posteriormente, de 2014 a 2016, rea- tersetorial de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
lizaram-se quatro cursos (40 horas) CBVisat, com 56 (CISTT). Priorizou-se, na maioria dos cursos e pesqui-
fiscais em 34 municípios. Considera-se como resultado sas, a participação do controle social, com destaque
importante a inserção das Visa municipais em todas as para CBVisat, Curso de ST para Controle social da
ações de Visat (inspeção) realizadas pelo Cerest-TO, Ensp/Fiocruz em 2010 (45 alunos) que tiveram como
estruturação das Visa com equipamentos/mobiliários objetivo a preparação do controle social para desen-
repasse de recursos por meio de projeto. Destaca-se volver a Visat. Pode-se dizer que os alunos que mais
a introdução das ações de Visat na implantação do se envolveram com o Cerest nas ações de Visat foram
sistema de informação da Visa estadual como forma representantes do trabalho rural (povos tradicionais e
de monitoramento. indígenas). Houve aumento de denúncias sobre con-
Cabe salientar que a vigilância de agravos teve dições precárias e acidentes de trabalho e a formação
seu início em 2006 a partir de curso sobre os Proto- de uma rede de apoio do controle social. Contudo,
colos do MS. Outros marcos de destaque foram os ainda, há fragilidades, precarização das situações dos
cursos de especialização EAD em ST pela Fiocruz-RJ trabalhadores nos ambientes e o coletivo de boa parte
em 2008 e Epidemiologia em ST pelo Instituto de das organizações dos trabalhadores é incipiente.
Saúde Coletiva (ISC-BA) 2014, que ampliaram a
capacidade da equipe em desenvolver análises de Investigação de Acidente de Trabalho
situações de saúde, produção de informação e im- Os métodos para investigar AT partiu dos cursos
plantação de fluxos de notificação e investigação. CBVisat, 2006/2010, e especialização de ST e Ecologia
Isso contribui para a estruturação da vigilância epi- Humana em 2008, o que possibilitou instituir o serviço
demiológica em ST no estado. de investigação de acidentes fatais.
Após oito anos, o Cerest-TO participou, em
Assistência integral à Saúde do Trabalhador 2015/2016, do curso Análise e Prevenção de Acidentes pela
A equipe do Cerest-TO não recebeu uma ca- Faculdade de Saúde Pública-SP, em que foi introduzido
pacitação específica com esse tema, entretanto, o Método de Avaliação de Pessoas (Mapa) para análise e
foi abordado em todos os cursos de protocolos, investigação de acidentes, o que resultou na inserção das
especialização e mestrado. Contudo, vale destacar investigações nos planejamentos de saúde e na realização
o curso de Agravos e Saúde Mental relacionado do curso do Mapa em Tocantins para os técnicos do Cerest
ao trabalho (2010), que estruturou uma rede de estadual e regionais, vigilâncias e intersetorialidade, que
atuação entre estados da região Norte do País, culminou na formação de um comitê intersetorial de
desenvolveu cursos para a intrassetorialidade (SUS) prevenção e AT. Os cursos de investigação de acidente
na intencionalidade de inserir fluxo de diagnóstico, ajudaram a aperfeiçoar as estratégias e análises de Visat,
notificação e tratamento de transtornos mentais provocando na equipe a racionalidade problematizadora
relacionados ao trabalho na rede Capes. e investigativa. Vale mencionar uma pesquisa realizada
Desde 2015, há um planejamento de curso por técnico do Cerest-TO no MP – Fiocruz-RJ sobre vigi-
sobre ST na Atenção Primária (AP) com recursos lância de AT grave e fatal no Tocantins que proporcionou
da Escola Técnica do SUS (ETSUS). Apesar dos melhora na qualidade da informação, proposição de
esforços dos Cerest em implementar programas método de Visat-AT.
de AP por meio de projetos-piloto e identificar
problemas e desafios pelas pesquisas durante Mes-
Cursos e projetos de intervenção participativos
trado Profissional (MP) (Fiocruz e Universidade e de base territorial
Federal do Tocantins – UFT), não houve avanços Cabe destacar aqui o curso MP na área da Vi-
significativos em relação à estruturação de serviços. sat, Ensp/Fiocruz (2012/2014) e a especialização em
Nesse contexto, é imprescindível um processo Promoção, Vigilância, Ambiente e Trabalho Fiocruz/
formativo que promova a atenção integral e de- DF (2018/2019) que incentivaram projetos de inter-
senvolva projetos de intervenção nos territórios. venção em Visat.
119

Nessa dinâmica, os projetos de intervenção Ministério Público Estadual e do Trabalho, a realiza-


iniciados nesses cursos tiveram como sujeitos prin- ção do curso de vigilância territorial e participativa,
cipais os trabalhadores da agricultura familiar do envolvimento da rede SUS municipal, ações de Visat
projeto de fruticultura irrigada São João em Porto no agronegócio e agricultura familiar. Em 2019, hou-
Nacional e os atores sociais na gestão participativa ve a continuidade dos projetos de intervenção na
de Visat do município da Lagoa da Confusão. Ambos Lagoa da Confusão e em Porto Nacional por meio
iniciados em 2012 durante atividade do mestrado e de outro curso de especialização em ST (Fiocruz-DF)
se estenderam até 2019, em que foram resgatados com fortalecimento da rede local em ST, a partir da
para apreciação científica em novas pesquisas e con- reorganização social coletiva com apoio da vigilância
tinuidade aos projetos. em saúde e AP.
Os projetos de intervenção, por meio das pesqui-
sas, apresentaram como a principal intencionalidade Considerações finais
o desenvolvimento da Visat de forma participativa e A maioria dos cursos enfatizaram o conhecimen-
a promoção da transformação local no sentido de to e a implementação da Visat uma vez que o Cerest
resolução dos problemas para a promoção da saúde estadual está vinculado à área de Vigilância, o que
e prevenção de agravos e doenças relacionadas ao impactou principalmente na estruturação de serviços
trabalho. Como principais resultados, destacam-se de vigilância de agravos e doenças relacionados ao
a introdução da Visat nos territórios, a compreensão trabalho e de ambientes e processos de trabalho.
da categoria trabalho como determinante em saúde, Entretanto, é preciso investimento para a atenção
a visibilidade dos problemas para Ministério Público integral à ST, principalmente para AP.
estadual e do Trabalho. Projetos de intervenção aliados a recursos científi-
A pesquisa-intervenção iniciada no MP (2012- cos e processos de aprendizagem de forma participativa
2014) no território Lagoa da Confusão convocou e de abordagem territorial se configuram em uma pro-
a participação social para criação de um plano de posta concreta de transformação de uma ‘realidade’.
vigilância participativa em ST para o município com As ações de Visat foram compreendidas como
realização de audiência pública sobre agronegócio, componente das ações de vigilância em saúde, res-
criação da Visat participativa, capacitação técnica da ponsabilidade do SUS em intervir nos processos e
secretaria municipal de saúde e controle social e cum- ambientes de trabalho, e inserção na prática sanitária
primento do Plano Básico Ambiental. Segundo Leite de transpor o objeto produto/consumidor para o
e Souza2, quando se adota a participação social como processo/trabalhador/ambiente. Entretanto, surgi- 2. LEITE, M. D., et al. Vigilância
Participativa em Saúde do
ferramenta coletiva de um processo educativo-peda- ram dificuldades na inserção das ações nos planos Trabalhador e Agronegócio
no Município de Lagoa da
gógico, tem-se a transformação do conhecimento e municipais de saúde, na execução contínua de ações Confusão Tocantins. Caderno
Saúde Coletiva, v. 23, n. 4, p.
da realidade, pois cada discussão coletiva passa a ser por rotatividade dos fiscais, decorrente de falta de 374-379, 2015
estratégia de intervenção. concurso público, profissionais que não possuem
Como salientado, a intencionalidade de implantar cargo de fiscal e falta de apoio político municipal. É
a Visat de forma territorial e participativa foi alcan- preciso dar continuidade ao processo de descentrali-
çada no âmbito de outra pesquisa desenvolvida no zação das ações de Visat e fortalecimento das equipes
MP (2012/2014), com os trabalhadores da agricultura de Visa municipais.
familiar do projeto São João em Porto Nacional. A pes- Outros desafios a serem superados são a falta
quisa possibilitou maior visibilidade do território, com de apoio dos gestores na participação dos cursos,
destaque para autoridades da saúde do município e do principalmente nos municípios (custos, dispensa em
estado, ampliação dos debates sobre aspectos relacio- horas de trabalho para o estudo, não compreensão
nados com os determinantes da saúde e o trabalho do processo formativo em relação à resultados na
como categoria central. Explorou-se o uso de video- prática) e não consideração da categoria trabalho
gravação nas práticas de Visat, buscando a ampliação como um determinante em saúde.
dos debates sobre saúde-trabalho-adoecimento a partir Também se faz necessária a redução do intervalo
da confrontação das imagens. A videogravação é um de tempo entre um curso e outro, principalmente os
3. CARNEIRO, G. A. A prática
recurso metodológico complementar nas práticas da de pós-graduação e o desenvolvimento de sistemas da vigilância em saúde do traba-
lhador na agricultura familiar em
Visat e contribui para a participação dos trabalhadores de avaliação dos cursos, mapeamento dos alunos cena: o uso da videogravação.
2014. 145 f. (Prog rama de Pós
na compreensão de suas atividades de trabalho3. formados e análise dos impactos. Graduação em Saúde Pública)
Entre 2014 e 2018, os projetos de intervenção Destaca-se, como avanço, o fortalecimento da – Escola Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca, Rio de
proporcionaram a inserção do apoio institucional do rede intra e intersetorial nas ações de ST e Visat com Janeiro, 2014.
120

atuação em conjunto, inclusive nas fases de negociação profissionais de saúde do SUS, além das universidades
e aplicação de Termo de Ajustamento de Conduta e centros de pesquisa.
(TAC) e/ou inquéritos. Do ponto de vista político, é por meio do conhe-
Ademais, é de extrema relevância que proces- cimento compartilhado entre trabalhadores, técnicos
sos de formação em ST e Visat, de variados níveis, e academia, em sua natureza dinâmica e reflexiva, que
sejam proporcionados por instituições de ensino a sociedade se mune de recursos no enfrentamento
experientes, com destaque para as escolas de saúde das questões hegemônicas impostas pelo capital, que
públicas, principais formadoras na qualificação dos tanto impactam a saúde dos trabalhadores.

A formação como estratégia para ação de


Vigilância em Saúde do Trabalhador:
até quando?
Ana Maria Cheble Bahia Braga
Simone Santos Oliveira

A Visat, como componente estruturante e essencial O primeiro curso ocorreu no período de 2012 a
ao modelo de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador, 2014 com foco nos trabalhadores do Cerest das regiões
tem como foco de ação a relação saúde/ambiente e Centro-Oeste e Norte, formando 20 profissionais.
os processos de trabalho. Como proposições básicas, O segundo, de 2017 a 2019, com profissionais de
ressalta o respeito ao saber dos trabalhadores e sua diversas regiões do País, em um total de 23 egressos.
participação efetiva em todas as ações que visem à O processo formativo da segunda turma do MP-Visat
promoção da saúde e à redução da morbimortalidade privilegiou, como estratégia pedagógica, a interlocução
da população trabalhadora. Como campo de práticas e dialogada com os profissionais-alunos envolvidos
teorias, a ST pressupõe a interdisciplinaridade, a intra buscando valorizar suas experiências no âmbito dos
e a intersetorialidade como elementos fundamentais serviços de saúde.
para a transformação da realidade. O resgate das experiências adquiridas pelos serviços,
O processo de formação para atuação na Visat seguido de seu desenvolvimento/enriquecimento no co-
deve estar alinhado aos princípios da PNSTT no SUS, letivo, constitui-se importante ferramenta para superação
com uma lógica que integre princípios e diretrizes que de impasses vividos no fazer/lidar cotidiano, seus entraves
articulem os saberes da experiência, da técnica e da e limites, na busca de outros caminhos. Por meio de uma
ciência para um efeito transformador metodologia participativa, os desafios enfrentados foram
O MP-Visat da Ensp/Fiocruz é então concebido com debatidos e compartilhados durante todo o processo peda-
apoio da Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador do gógico. A formação com base na perspectiva dialógica, em
MS (CGST/MS), tendo como objetivo atender à demanda que as relações entre professores e alunos não se fundam
de formação de trabalhadores do SUS, principalmente em distinções hierárquicas, visou potencializar a produção
aqueles dos Cerest, visando contribuir e estimular as ações de estratégias coletivas, buscando outra inscrição, para
da Visat, para o fortalecimento da Renast. Nessa concep- deslanchar ações transformadoras na qualificação dos
ção, assume-se o compromisso de construir, de forma processos de formulação, implementação e gestão das
dialogada, uma formação que considera a interseção entre ações de vigilância.
os princípios e diretrizes do campo e a heterogeneidade Para tal, os processos formativos de base crí-
das experiências formativas e profissionais dos alunos, tica e dialógica evidenciam-se como estratégias
de caráter estratégico para a trajetória e desenvolvimento fundamentais, já que contribuem para emancipação
1. SOUZA, K. R., et al. Participa-
ção social, vigilância em saúde
profissional dos alunos-trabalhadores (na construção e dos atores locais de modo a provocarem ações
do trabalhador e serviço público. validação de seus saberes), por meio de ações efetivas, políticas, de caráter público, para intervenção
Trab. educ. saúde, v. 13, n. 2, p.
261-282, 2015. para o fortalecimento da Renast. qualificada na realidade1.
121

No transcurso da formação no MP-Visat, houve


a contextualização dos temas definidos pelos alunos
para que tudo fosse compreendido como passível
de mudança, já que outro importante aspecto teó-
rico do processo de formação foi a compreensão da
historicidade das questões atinentes à relação saúde,
trabalho e ambiente. Para Freire2, o desenvolvimento
da consciência crítica no processo educativo propi-
ciará a qualificação na forma de intervir e uma moti-
vação para ação. O campo da saúde coletiva requer
o desenvolvimento de novos projetos e modelos
epistemológicos para a integração curricular, de
maneira a provocar mudanças fundamentais na forma
de pensar e atuar de seus alunos e professores3,4.
O diálogo torna-se a pedra angular da formação.
Viabiliza metodologicamente o movimento da práxis:
parte-se do vivido e do senso comum para discuti-lo,
criticá-lo e ampliá-lo na direção do bom senso para,
daí, não só mudar a visão de mundo, mas também
transformar o mundo concretamente4,5. Como produto dessa atividade de formação, foi 2. FREIRE, P. Pedagogia do
oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
No MP-Visat, o dispositivo pedagógico adotado e publicado livro que apresenta um panorama de refle- Terra, 1988.
denominado Grupos Situações-Problema (GSP) visou xões, conceitos e teorias sobre a Visat voltado para os 3. ALMEIDA FILHO, N. M. Trans-
aglutinar alunos e professores em torno de temas trabalhadores do SUS, principalmente àqueles dos Cerest, disciplinaridade e o paradigma
pós-disciplinar na saúde. Saúde
relevantes para a área de ST, no intuito de pensar que apresenta proposições de políticas para a saúde dos e Sociedade, v. 14, n. 3, p. 30-50,
2005.
a prática e estruturar ações com foco nas situações trabalhadores, assim como estratégias para dar visibilidade
4. AMPARO, L. P. Aprender
problematizadas. A definição dos temas ocorreu a não apenas nos sistemas de notificações, mas, sobretudo, fazendo: a interdisciplinaridade
na formação em saúde coletiva.
partir da síntese entre os projetos estratégicos iden- aos mundos invisíveis dos sujeitos sociais que trabalham. Ciênc. Saúde Colet., v. 18, n. 5, p.
tificados pela CGST/MS em conformidade com as Os cinco temas estruturantes definidos a partir das discus- 1511-1512, 2013.

demandas trazidas pelos alunos/profissionais a partir sões e materiais apresentados coletivamente foram: (in) 5. FÁVERO, O. Paulo Freire:
importância e atualidade de sua
de dificuldades e necessidades de superação em suas visibilidade – educação e comunicação; controle social; obra. I, v. 7, n. 3, p. 1-8, 2011.

práticas. No primeiro momento, apresentou-se um cadeias produtivas; acidentes de trabalho; saúde do tra-
consolidado de questões apontadas nos resultados balhador da saúde, que passaram a integrar o percurso
da pesquisa nacional realizada nos diversos Cerest; formativo do MP e, dessa forma, passaram a ser artefatos
e, após debate, os profissionais-alunos trouxeram no processo de Visat no Brasil.
questões prioritárias e/ou limitantes da sua rotina A universalidade como princípio essencial do
de trabalho. Na sequência, principais temas foram SUS e da ST está presente transversalmente em todas
debatidos e sintetizados em cinco temas prioritários. as experiências da formação discutidas, como nas
A partir daí, os profissionais-alunos, com os pro- cadeias produtivas da cana-de-açúcar, nas análises de
fessores, integraram os grupos a partir dos temas acidentes de trabalho na construção civil, nas reflexões
identificados como relevantes para as ações de Visat. sobre políticas de saúde dos trabalhadores da saúde,
Um grupo de professores-apoiadores teve um papel ou seja, sobre o cuidado dos cuidadores da saúde.
fundamental no estímulo aos grupos, a partir de uma São desafios abissais das formas de precarização
visão macro dos problemas e estratégias da PNSTT. do trabalho que refletem na saúde. Nada mais impor-
A adoção da estratégia pedagógica de GSP pro- tante neste momento que discutir as experiências
piciou, a partir de uma relação dialógica, o desenvol- de formação e exemplos temáticos essenciais para o
vimento de estratégias para potencialização de ações preparo das práticas profissionais no enfrentamento
transformadoras para a relação saúde-trabalho, além dessa realidade com base nas ações de Visat.
de desenvolver a atividade e o protagonismo dos Conclui-se que a realização de ações de Visat
profissionais-alunos, ampliando seus recursos para sempre será um desafio, pois, se os protocolos são in-
agir, por meio do desenvolvimento de ações que en- dispensáveis como guia e orientação, nunca consegui-
volveram a qualificação dos processos de formulação, rão contemplar todos os aspectos que configuram uma
implementação e gestão das ações de Visat. dada realidade, com seu contexto e especificidades.
122

A produção de conhecimento para estruturar


a prática da Visat no estado de São Paulo
Simone Alves dos Santos

Discutir e buscar modelos para aprimorar a Visat Trabalhador canavieiro


é desafio permanente em um estado complexo como O Programa Paulista de Vigilância em Saúde
São Paulo. A busca dos caminhos possíveis para o do Trabalhador no Setor Canavieiro (PPVISAT-Cana-
desenvolvimento de ações centradas na análise e vieiros) foi estruturado em 2007 com o objetivo de
intervenção sobre os ambientes, processos e organi- padronizar, sistematizar e implantar procedimentos
zação do trabalho exige compreender a grandeza e a de Visat nesse setor, cuja expansão veio acompanhada
variedade das demandas, como também os recursos do incremento de problemas sociais, com aumento
e a capacidade dos serviços para seu enfrentamento. dos riscos e dos acidentes nos ambientes de traba-
Pensar ações mais consistentes de Visat exige lho – mortes por exaustão, acidentes nas lavouras
compreender as dinâmicas e as imposições das forças e usinas e precarização das habitações coletivas da
sociais e produtivas no território, a complexidade do população migrante envolvida no corte da cana. Em
mercado de trabalho e o impacto desses determinantes 2008, 5,4 milhões de hectares do território paulista
na saúde, ainda que fazendo uso de dados de morbi- era destinado ao plantio de cana, em 484 municípios,
1. SANTOS, S. A. Atividade
de Vigilância em Saúde do mortalidade muitas vezes subnotificados. com 184 usinas produtoras de açúcar e álcool ativas
Trabalhador no SUS. 2018.
Tese (Doutorado em Saúde
Para prevenir agravos e interromper ciclos re- em 142 cidades.
Pública) – Faculdade de Saúde
Pública, Universidade de São
correntes de adoecimentos e mortes nos ambientes A necessidade de garantir melhores condições
Paulo, 2018. de trabalho, é preciso conhecer os fatores amplos para os trabalhadores nas lavouras resultou na pu-
2. SATO, L. As implicações do e localizados que moldam a realidade. Para tanto, blicação pelo Centro de Vigilância Sanitária (CVS) de
conhecimento prático para a
vigilância em saúde do trabalha- é preciso se apropriar de métodos mais robustos regramentos acerca da qualidade da água para consu-
dor. Cad. Saúde Pública, v. 12,
n. 4, 1996.
de observação, abordagem, perspectivas teóricas e mo dos trabalhadores nas frentes de trabalho3 e das
3. Portaria CVS nº 11/2011 e
fontes de dados. É necessário também um domínio condições dos alojamentos e moradias destinadas aos
Comunicado CVS nº 36/2012– mais efetivo de instrumentos técnicos, conceituais trabalhadores migrantes4. Além disso, para subsidiar a
Vigilância sanitária da qualidade
da água para consumo humano e legais para efetivamente reduzir riscos e impactos formação dos técnicos para atuar no assunto, foram
nas frentes de trabalho.
na saúde dos trabalhadores1. De acordo com Sato2, a elaborados o ‘Manual para o PPVISAT-Canavieiros’,
4. Portaria CVS nº 12/2009
– Critérios para instalação e construção do conhecimento deve se utilizar de aporte com os passos para as ações de vigilância nas usinas,
funcionamento dos alojamentos
de trabalhadores rurais do
teórico pelo qual se “desenha a trilha dos caminhos lavouras e habitações coletivas, e o ‘Protocolo Clíni-
setor sucroalcooleiro e demais que as ações deverão conduzir”. co para Trabalhador em Atividades de Cultivo’, que
trabalhadores rurais.
Com fundamento nesses princípios, a experi- descreve os principais agentes de risco e de doenças
5. SÃO PAULO. Lei nº 12.684
de 26 de julho de 2007. Proíbe ência paulista de Visat no contexto da programação e agravos decorrentes das atividades de cultivo, con-
o uso do amianto no Estado de
São Paulo. São Paulo, Governo das ações de Visa para descentralização das ações de tribuindo assim para identificação, estabelecimento
Estadual, Diário Oficial do
Estado. 27 Jul. 2007.
controle de riscos nos territórios municipais compre- da relação com o trabalho e notificação no Sinan dos
6. Comunicado CVS nº 16/2016 –
ende um importante repertório de experiências que casos de adoecimento pelos profissionais da rede de
Referências básicas para inspeção pode trazer subsídios no processo de conhecimento atenção à saúde do SUS.
sanitária no comércio e transporte
de cargas com amianto. teórico do assunto.
7. CEREST Estadual/SP e CE- Organizada com base em projetos estratégicos Amianto
RESTs Regionais de Piracicaba,
Rio Claro, São João da Boa Vista.
e intervenções articuladas, a implementação dos pro- O marco regulatório que proibiu o uso do
8. Resolução SS nº 70/2020
gramas estaduais de Visat no território paulista exige amianto no estado representou um importante pas-
– Orientações técnicas para o alinhamento conceitual e de metodologias passíveis so para reduzir a exposição humana a esse minério,
vigilância e atenção à saúde dos
trabalhadores e população expos- de serem aplicados em larga escala, sendo sensíveis reconhecidamente cancerígeno e responsável por
tas ao amianto e com doenças
relacionadas. o suficiente para se adaptarem às especificidades lo- várias doenças respiratórias incapacitantes e fatais. O
8. Resolução SS nº 70/2020 cais. Alguns desses programas são descritos a seguir, Programa Visat Amianto foi organizado com o objetivo
– Orientações técnicas para
vigilância e atenção à saúde dos
destacando normas, protocolos, procedimentos e de estruturar a intervenção das Visa e dos Cerest
trabalhadores e população expos- ferramentas produzidas para subsidiar as intervenções na cadeia de produção e consumo do amianto, nos
tas ao amianto e com doenças
relacionadas. sobre problemas priorizados pela gestão estadual. termos do disposto na lei estadual5.
123

A atuação, desde 2012, no comércio de material 1 – Prevenção da infecção por Covid-19 em


de construção teve como estratégia a realização de ambientes de trabalho13: nota informativa sobre
ações simultâneas, organizadas pelos Grupo Regionais medidas para a proteção dos trabalhadores e con-
de Visa, em conjunto com as instâncias municipais tenção da transmissão do Sars-CoV-2 nos locais de
e os Cerest. No curso das ações, em 2016, o CVS trabalho, em especial para os trabalhadores das
divulgou diretrizes6 para a atuação das vigilâncias atividades essenciais.
no comércio e no transporte de cargas de amianto; 2 – Diretrizes para inspeção sanitária nos
e, em 2020, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) ambientes de trabalho para investigação de surtos
articulou entendimentos interinstitucionais, envol- de Covid-1914: procedimentos para a investigação
10. Resolução SS nº72/2015 –
vendo Cerest7, Fundacentro, Unicamp e Ministério de surtos de Covid-19 relacionados ao trabalho, Protocolo de atenção à saúde dos
trabalhadores expostos ao mercúrio
Público do Trabalho (MPT), e estabeleceu diretrizes destacando a articulação com Vigilância Epide- metálico.
para a vigilância e atenção à saúde dos trabalhadores miológica (notificação e inquérito epidemioló- 11. Comunicado CVS nº 32/2020
expostos ao amianto, população ambientalmente gico) e as etapas da inspeção sanitária incluindo – Diretrizes para inspeção sanitária
em estabelecimentos prestadores
exposta e portadores de doenças relacionadas8. a identificação dos trabalhadores adoecidos, das de serviços de processamento de
lâmpadas inservíveis contendo
situações de trabalho que possibilitam a exposição, mercúrio metálico.
Mercúrio das medidas preventivas adotadas e do modo como 12. Comunicado CVS-DVST nº
O mercúrio é uma substância extremamente as empresas estão realizando o monitoramento da 19/2017 – Diretrizes para atuação
da Vigilância Sanitária (Visa) e
danosa para o meio ambiente e perigosa para a saúde. saúde dos trabalhadores e afastamento dos casos dos Centros de Referência em
Saúde do Trabalhador (Cerest) na
Dentre as ações executadas, articuladas entre áreas diagnosticados. identificação e combate ao trabalho
infantil e na proteção ao trabalhador
de ST e de Meio Ambiente do CVS, destacam-se a 3 – Clínicas, serviços e empresas de medici- adolescente.
proibição da compra e uso de termômetros, esfig- na do trabalho no enfrentamento da pandemia15: 13. Nota Informativa “Recomenda-
momanômetros9; protocolo de atenção à saúde dos destaca as responsabilidades de tais serviços na ções para prevenção da infecção
por coronavírus (COVID-19) em
trabalhadores expostos ao mercúrio metálico10; e prevenção e vigilância ativa para a identificação ambientes de trabalho”.

diretrizes para inspeção sanitária em estabelecimen- de casos de Covid-19 nas empresas, incluindo a 14. Diretrizes para inspeção
sanitária nos ambientes de trabalho
tos prestadores de serviços de processamento de obrigatoriedade da análise, investigação e docu- para investigação de surtos de
covid-19.
lâmpadas inservíveis contendo mercúrio metálico11. mentação de todos os casos suspeitos ou confir-
15. Portaria CVS nº 20/2020 –
mados, a necessidade de notificação, em 24 horas
Trabalho infantil a partir da suspeita e as obrigações referentes à
Disciplina, no âmbito do Sistema
Estadual de Vigilância Sanitária
– Sevisa, a atuação das clínicas,
O combate ao trabalho infantil e a proteção ao identificação de casos suspeitos, monitoramento serviços e empresas de medicina
do trabalho no enfrentamento da
trabalhador adolescente constitui prioridade, de modo dos casos e contatos no ambiente de trabalho e pandemia da Covid-19.
que todos os casos notificados no Sinan devem ser colaboração com os órgãos de vigilância em saúde 16. Portaria CVS nº 13/2020 – Dis-
objeto de intervenção visando tanto à investigação do na disponibilização das informações sistematizadas. põe sobre medidas de prevenção
ao Sars-CoV-2 para profissionais de
acidente quanto à execução de ações que promovam 4 – Profissionais de coleta e entrega de merca- coleta e entrega de mercadorias.
o afastamento imediato das crianças e adolescentes dorias16: estabelece obrigações a serem cumpridas 17. Nota Técnica Covid-19 CVS/
CVE 01/2020 – Medidas de Preven-
das situações irregulares de trabalho. Foram estabe- pelas empresas (comércio em geral que dispõe de ção e Controle de Infecção a Serem
lecidas diretrizes12 para atuação das equipes com o serviços de entrega, empresas transportadoras de
Adotadas na Assistência à Saúde
Relacionadas à Covid-19.
foco na identificação e combate ao trabalho infantil mercadorias e logísticas e plataformas digitais de 18. Comunicado CVS nº 12/2020 –
e na proteção ao trabalhador adolescente. serviços de entrega), incluindo obrigações em Recomendações para Alojamentos
de Trabalhadores Rurais Durante a
relação ao monitoramento das condições de saúde Pandemia de Covid-19.
Covid-19 dos profissionais, identificação de casos suspeitos, 19. Comunicado CVS nº
09/2020 – Orientações aos serviços
Os diversos ambientes de trabalho possibilitam encaminhamentos aos serviços de saúde e pro- funerários no manejo do corpo
durante a pandemia de Covid-19
o contato dos trabalhadores com o Sars-CoV-2, o que tocolos de afastamento e retorno às atividades. e Comunicado CVS nº 15/2020 –
potencializa o risco de contaminação e disseminação 5 – Outros temas abordados em portarias e Orientações sobre sepultamento
durante a pandemia de Covid-19.
da Covid-19. Com o reconhecimento do estado de comunicados pelo CVS: prevenção e controle de 20. Sistemas de limpeza urbana e
calamidade pública e a consequente decretação de infecção na assistência à saúde17 alojamento para de resíduos de serviços de saúde.

quarentena, uma série de ações foram desenvolvidas trabalhadores rurais18; serviços e atividades fune- 21. Comunicado CVS nº 7/2020
– Prevenção do coronavírus em
com foco na prevenção, controle e mitigação dos riscos rárias19; sistemas de limpeza urbana e de resíduos sistemas de limpeza urbana e de
resíduos de serviços de saúde.
de transmissão da Covid-19 nos locais de trabalho. de serviços de saúde20; limpeza e desinfecção de
22. Comunicado CVS nº 13/2020
Referências técnicas e normativas foram estabeleci- espaços públicos21; pulverização de desinfetantes – Pulverização de Desinfetantes
das visando alinhar a atuação das equipes, entre as quais: em locais de trânsito intenso de pessoas22. em Locais de Trânsito Intenso de
Pessoas para Prevenir Covid-19.
124

Apontamentos sobre a produção de


conhecimento sobre Saúde do Trabalhador no
âmbito da rede de serviços do SUS
Andrea Garboggini Melo Andrade
Jacira Azevedo Cancio
Leticia Coelho da Costa Nobre
Rita de Cássia Peralta Carvalho
Suerda Fortaleza de Souza

Neste capítulo, apresentam-se alguns apontamentos ção, mestrado e doutorado, produzindo estudos e
e reflexões sobre a experiência da equipe da Diretoria pesquisas de interesse a ST no SUS. Os produtos têm
de Vigilância e Atenção à Saúde do Trabalhador/Centro sido publicados em livros, capítulos de livros, artigos
Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador (Divast/ em revistas científicas indexadas, apresentação de tra-
Cesat), da Superintendência de Vigilância e Proteção da balhos e experiências em congressos da área de saúde
Saúde (Suvisa), da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia coletiva, ciências sociais, políticas públicas e outros
(Sesab), na produção de conhecimento e orientações para de interesse a ST. Destaca-se também a participação
as ações e práticas no âmbito da Renast-BA, procurando em processos de discussão e construção das linhas de
evidenciar o que tem sido feito, como e com quem se pesquisa de interesse ao SUS-BA, com demais áreas
constrói esses processos, a partir de quais demandas e da vigilância em saúde e outras da Sesab, bem como
necessidades, para quem e para quê. nas etapas de avaliação e no acompanhamento dos
Essa produção iniciou-se ainda em meados da resultados dos projetos submetidos e aprovados.
década de 1990, sendo intensificada nos últimos anos. Outra linha de produção são boletins, folhetos,
Consiste em materiais técnicos, manuais de normas e cartazes e materiais de comunicação para população e
procedimentos e protocolos tendo como focos a vigilância representações de trabalhadores. Pode-se citar como
de ambientes e processos de trabalho, a vigilância epide- exemplo o Infoc, jornal publicado quadrimestralmente
miológica de agravos relacionados ao trabalho, a avaliação de 1995 a 2009. Produção de documentos e materiais
clínica de patologias e prevenção de incapacidade para o para subsidiar as equipes técnicas e representações de
trabalho; orientações para o planejamento e organização usuários, trabalhadores e gestores nas Conferências
das ações e serviços no âmbito da Renast-BA; orientações estaduais de saúde, assim como as específicas: de ST
para o apoio técnico e institucional para a rede; produção e de vigilância em saúde.
de instrumentos para coleta e registro de ações e para
o monitoramento e avaliação de indicadores e metas. A
Qual a finalidade de produção de conhecimento
partir de 2012, as orientações técnicas produzidas passa- e de tecnologias de produção de práticas, de
ram a ser indexadas e catalogadas no ISBN (International informação e de conhecimentos na Renast?
Standard Book Number). Produzir orientações, tecnologias e ferramentas
É importante destacar o caráter de produção que possam subsidiar e orientar as equipes técnicas e
coletiva e compartilhada de todo esse material, via- gerenciais, especialmente das instâncias da Renast-BA,
bilizada por meio de parcerias com universidades mas, também das demais áreas da vigilância em saúde,
públicas na Bahia e no País, com grupos acadêmicos da atenção básica, da rede especializada e de urgência/
de outros países e projetos multicêntricos; articulação emergência; que articulem ações de vigilância com
com a CGST/MS e com coordenações de ST de outros ações de diagnóstico e cuidado, manejo e prevenção
estados, formando grupos de trabalho, oficinas e de incapacidade para o trabalho. Os objetivos prin-
fóruns com esses e outros parceiros institucionais. cipais são ampliar a capacidade da rede SUS para o
Outra estratégia importante para essa produção desenvolvimento das ações de ST, ampliar o acesso da
tem sido o estímulo, o incentivo e o apoio, inclusive população trabalhadora às ações em seu município e
com recursos institucionais, à participação de técnicos território onde reside e trabalha, bem como contribuir
na formação em nível de pós-graduação: especializa- para a melhoria da qualidade das ações. Ou seja,
125

ampliar a cobertura das ações, impulsionar avanços cursos presenciais ou a distância, com cargas horárias
quantitativos e qualitativos na promoção, vigilância factíveis, descentralizados nas regiões de saúde, com
e atenção à ST no âmbito do SUS. Algumas podem possibilidade de inclusão de técnicos e gestores das
ser utilizadas também como subsídio às práticas e secretarias municipais de saúde, representações de
discussões dos movimentos sociais e representações trabalhadores, conselheiros etc. Nos anos mais recen-
sindicais. tes, passou-se a utilizar ferramentas do Telessaúde
Esse processo de produção coletiva parte da e outras plataformas digitais que permitem realizar
experiência construída no cotidiano, nas práticas webconferências, reuniões de apoio técnico, cursos,
das equipes técnicas; conta com equipes técnicas de palestras e oficinas de trabalho; também se encontra
elaboração, com processo compartilhado de discussão em implantação a inclusão de alguns agravos rela-
ao longo do processo de produção, em oficinas de cionados ao trabalho na telemedicina, teleconsultas
trabalho e outros momentos ampliados em que se e discussão de casos.
convida representantes de outras diretorias e áreas
técnicas do SUS, representações técnicas da rede ST,
de outras instituições parceiras (universidades, Supe-
rintendência Regional do Trabalho, representações
de categorias de trabalhadores etc.); seguindo etapas
de apresentação e validação, discussões na Comissão
Intersetorial de Saúde do Trabalhador do Conselho
Estadual de Saúde e nas instâncias intergestoras etc.
Depois de produzido o conteúdo, passa-se às
etapas de diagramação, catalogação, revisão da arte
gráfica, enfim, da revisão final da publicação, que,
em nossa experiência, é igualmente importante para Entre as estratégias de divulgação, estão a publi-
garantir a qualidade e a adequação para melhor acesso cação gráfica, a publicação e a divulgação em internet,
do público-alvo definido, sejam as diferentes áreas téc- a distribuição para técnicos de referência na rede,
nicas do SUS, da vigilância em saúde, representações municípios e regionais de saúde, para outros estados,
técnicas da área de ST, entidades representantes dos para o MS, para entidades e instituições parceiras,
trabalhadores e usuários do SUS. para representações de trabalhadores, para fóruns e
Uma vez produzida e publicada, é fundamental instâncias intersetoriais etc.
estabelecer as estratégias de implantação, que incluem Destacam-se, no quadro abaixo, as principais
a distribuição, a divulgação, o planejamento e o de- publicações produzidas pela Divast/Cesat, Bahia, no
senvolvimento de processos de educação permanente, período 1996-2020:

Quadro 1. Principais publicações produzidas pela Divast/Cesat, Bahia, no período 1996-2020


Nome da Publicação Ano
Manual de Normas e Procedimentos Técnicos para as Ações de Visat 1996, 1ª ed.
2002, 2ª ed. rev. e
Manual de Normas e Procedimentos Técnicos para as Ações de Visat
ampliada
Coletânea de Legislação em ST e Meio Ambiente 2002
Livro Edufba ST na Bahia: História, Conquistas e Desafios 2011
Orientações Técnicas para Ações de Vigilância de Ambientes e Processos de Trabalho – SUS/BA 2012
Orientações Técnicas para a Proteção da Saúde dos Agentes de Saúde 2012
Orientações Técnicas para Ações de Vigilância de Ambientes e Processos de Trabalho Agrícola – SUS/BA 2013
Orientações Técnicas para Ações de Vigilância de Ambientes e Processos de Trabalho em Postos de
2014
Revenda de Combustíveis – SUS/BA
Orientações Técnicas para Ações de Prevenção e Manejo da Incapacidade para o Trabalho no SUS 2014
Protocolo de Atenção à Saúde Mental e Trabalho 2014
Guia para Análise da Situação de ST – SUS/Bahia 2014
126

Nome da Publicação Ano


Orientações Técnicas para a Vigilância Epidemiológica de Óbitos por Causas Externas Relacionados ao
2018
Trabalho: Acidente de Trabalho Grave – SUS/Bahia
Atuação Integrada na Vigilância e Atenção à Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos: Fluxogramas
2019
– SUS/BA
Análises da Situação de ST no Plano Estadual de Saúde Bahia 2016/2019
Orientações técnicas para a investigação e notificação de casos de Covid-19 relacionados ao trabalho –
2020
SUS/BAHIA – 2020
Orientações Técnicas para avaliação de saúde de retorno ao trabalho de trabalhadores e trabalhadoras
2020
expostos(as) ao Sars-CoV-2. SUS/BAHIA
Vídeo Tijolo por Tijolo – 20 anos de ST na Bahia (1988-2008) 2010
Vídeo Seminário Temático 28 de abril de 2014 – 4ª Cest/BA 2014
Fonte: www.saude.ba.gov.br/suvisa/divast/.

Nossa experiência tem demonstrado que a esforços, de capacidades e de competências, que


produção de conhecimento e de tecnologias para exige a compreensão de que, necessariamente,
a inclusão e melhoria da qualidade das práticas deve ser um processo participativo com articula-
de atenção e Visat no âmbito da Renast é um pro- ções e parcerias institucionais e com a valorização
cesso complexo, dinâmico, muitas vezes longo e dos saberes, práticas e experiências dos sujeitos
difícil, que requer persistência e coordenação de implicados nessa construção coletiva.

A experiência do Programa Integrado de


Saúde Ambiental e do Trabalhador, Pisat/
ISC/UFBA, na produção de informação
epidemiológica sobre agravos à saúde
relacionados ao trabalho
Vilma Sousa Santana
Cleber Cremonese

A lógica subjacente às ações do campo da ST se em especial, aos valores atribuídos à vida e à justiça
estrutura na relação orgânica entre o conhecimento social, aos direitos humanos e sociais universais. Entre
científico, saberes e práticas. Sabe-se, aprende-se, esses, os direitos à ambientes de trabalho seguros e
compreende-se a situação de saúde, seus determi- saudáveis, livres de riscos, adotando-se medidas que
nantes, as causas, os mecanismos causais, fatores garantam a proteção, o bem-estar e a dignidade de
de risco; e, então, elaboram-se respostas, soluções, viver, adoecer e morrer.
estrategicamente planejadas e possíveis. Essa racio- Essa racionalidade baseada na ação política dos
nalidade não é simples, mas dialética, envolvendo as trabalhadores e demais atores sociais, intelectuais,
1. SANTANA, V. S., et al. contradições e as disputas próprias da relação capital acadêmicos, lideranças políticas, movimentos sociais,
Prevenção, atenção e controle
em Saúde do Trabalhador In: e trabalho, em suas diversas configurações1. Embora sindicatos, torna-se possível com o fluxo, o intercâm-
PAIM, J. S., et al. Saúde Coletiva
– teoria e prática. Rio de Janeiro:
passe pela técnica, estende-se ao campo polít ico, às bio, o compartilhamento e o uso crítico do conhe-
MedBooks, 2014, p. 513-539. práticas sociais, comportamentais, culturais, ética e, cimento e de saberes. Essa troca de conhecimento é
127

possível quando o acesso à informação empregando doença pela previdência social, de hospitalizações,
linguagens comuns, compreensíveis, é permitido entre dados laboratoriais, podem ser empregados como
esses atores. Em ST, considera-se que é o trabalhador fontes de estudos capazes de identificar novos agravos
que detém o mais legítimo conhecimento sobre suas relacionados ao trabalho. Longe de serem únicos pon-
condições de trabalho e as consequências para a saú- tos de partida, hipóteses e perguntas importantes de
2. GAZE, R., et al. Os
de2. Ele é quem vive o fazer cotidiano, às vezes por pesquisa podem se originar de múltiplas condições, movimentos de luta dos
anos, estabelecendo uma dinâmica própria de garantia insights, explorações, entre outros. trabalhadores pela saúde. In:
VASCONCELLOS, L. C. F., et al.
de comodidade e conforto possíveis, conhecendo O Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Saúde, trabalho e direito: uma
trajetória crítica e a crítica de
quase sempre, integralmente, o processo produtivo. Federal da Bahia foi criado em 1995, com princípios uma trajetória. Rio de Janeiro:
Educam, 2011.
Entretanto, a observação sob o enquadre da ciência de compromisso com a consolidação do SUS e a ar-
pode contribuir, complementarmente, para identificar ticulação da ciência às práticas de cuidado à saúde,
problemas de saúde de difícil captura no cotidiano universais, e a garantia do direito à saúde e dever do
do trabalhar. Por exemplo, sabe-se que muitas doen- Estado, previstos na Constituição de 1988. Sua matriz
ças crônicas resultam de situações de trabalho que organizacional não é departamental disciplinar. Adota
envolvem o contato com substâncias químicas, cujos uma estrutura formada por núcleos multiprofissionais
efeitos sobre a saúde irão ocorrer até 40 anos após de pesquisadores professores voltados para tópicos
a exposição, quando o trabalhador já se encontra que conformam problemas de alta relevância em saúde
aposentado, mudou de atividade de trabalho, às vezes pública. Um desses núcleos é o Pisat, constituído com
nem se recorda do pouco tempo passado naquele a missão de contribuir na produção do conhecimento
emprego, no qual se expôs a certos agentes de risco. de importância para os trabalhadores, na formação de
Outros agravos à saúde relacionados ao trabalho são pessoas nesse campo, e prestando assessoria a institui-
raros, e a organização da produção implica peque- ções, sindicatos e movimentos sociais. O seu foco são
no número de trabalhadores, que mantêm contato situações críticas da iniquidade dos direitos, a exemplo
uns com os outros, tornando difícil a compreensão dos modos informais de trabalho e emprego, do traba-
sobre a relação com o trabalho desses agravos. Ou as lho invisível de mulheres em suas casas, do trabalho
consequências da exposição ocorrerão em gerações de crianças e adolescentes, e atividades e situações de
futuras, nos descendentes; ou então, os agravos à trabalho de risco elevado que ameaçam a saúde, a vida
saúde causados ainda não são conhecidos, emergem e o bem-estar. É claro que a necessidade de divulgar e
como sintomas inespecíficos, limitando a percepção disseminar o conhecimento científico, para além das
3. CHECKOWAY, H., et al. Re-
sobre a associação com o trabalho3. São muitas outras publicações acadêmicas e dos limites da comunidade search Methods in Occupational
as situações que comprometem a apreensão imediata científica, estava explícita na proposta de criação do Epidemiology. 2. ed. Oxford:
Oxford University Press, 2004.
e intuitiva dos problemas de saúde, que podem ser Pisat para alcançar os trabalhadores e a sociedade.
resultantes do trabalho, pelos próprios trabalhadores.
O conhecimento científico pode examinar Uma experiência de informação em
perguntas e hipóteses explicitadas em narrativas de epidemiologia da ST
trabalhadores. Todavia, pode também, partir de co- A Coordenação Geral da Saúde do Trabalhador
nhecimento proveniente das ciências básicas, chama- (CGST) integra o Departamento de Saúde Ambien-
das de bancada, como da química, toxicologia, que tal, do Trabalhador e Vigilância das Emergências em
eventualmente podem demonstrar que uma certa Saúde Pública (DSASTE), da Secretaria de Vigilância
substância ou um composto que, em laboratório, em Saúde do MS. A CGST tradicionalmente opera em
afeta a saúde de animais, podendo também afetar estreita articulação com diversos grupos e pesquisado-
humanos. Isso vem sendo o ponto de partida da des- res de instituições acadêmicas. Em 2008, foi criado o
coberta de muitos cancerígenos e teratogênicos. O Centro Colaborador da Vigilância aos Agravos à Saúde
monitoramento compulsório de condições de traba- do Trabalhador (CCVISAT), do Pisat/ISC/UFBA, com o
lho, a mensuração de agentes de risco conhecidos, propósito de produzir e disseminar informações de
a documentação detalhada do processo produtivo e base epidemiológica, de interesse para a promoção
suas mudanças ao longo do tempo, as ocupações, da ST. Implementado em 2009, o CCVISAT passou a
os postos de trabalho, entre outros, têm tornado as disponibilizar ferramentas amigáveis para a produção de
populações de trabalhadores alvo de estudos sobre indicadores epidemiológicos em ST pelas equipes da Re-
causas de doenças. Mesmo dados de sistemas de in- nast, a exemplo de bases de dados, públicas, anônimas,
formação vários, de estatísticas vitais como os registros de agravos à saúde relacionados ao trabalho, originadas
de morte, de concessão de auxílios relacionados à do Sinan, do Sistema de Informação sobre Mortalidade
128

(SIM) e do Sistema de Informações Hospitalares do SUS superposições. Isso tem levado a que análises subjacentes
(SIH-SUS). Além dessas, análises desses dados para o aos boletins do CCVISAT avancem sobre questões mais
conhecimento relativo a lacunas que ensejam respostas complexas ou que demandem a abordagem de problemas
de modo a promover políticas específicas. metodológicos como a qualidade dos dados registrados.
Assim, vêm sendo elaborados boletins epide- Portanto, entendemos que ainda há barreiras na produção
miológicos tratando de temas como a mortalidade de dados de interesse para a ST. Por exemplo, embora
por acidentes de trabalho, acidentes com crianças e existam vários sistemas de informação em saúde que con-
adolescentes, envolvendo motocicletas, picadas de ani- templam registros da relação com o trabalho de agravos
mais peçonhentos, doenças infecciosas e parasitárias a saúde ou acidentes, há muitas informações faltantes ou
relacionadas ao trabalho, dentre outros. Esses boletins dados inconsistentes. Isso evidencia, ainda, a necessidade
conformam objetivos diretos, claros, com perguntas que de informação sobre a importância do conhecimento
remetem a respostas possíveis, nem sempre conclusivas. sobre a situação de saúde dos trabalhadores, entre os
São elaborados com linguagem simples, definindo-se próprios profissionais de saúde. Por fim, o intercâmbio
apenas os procedimentos necessários para a compreen- entre uma instituição acadêmica e serviços de saúde pode
são dos achados, e muito pouca referência à literatura ser positiva, mesmo em tempos que desafiam a criatividade
científica. Após a apresentação dos resultados, uma para tornar concretas ações que avancem a informação
breve interpretação e comparação com o esperado ou da sociedade. Qualquer ação de prevenção de doenças
com o encontrado por outros estudos, resumem-se ou promoção da saúde começa com o conhecimento.
recomendações para a saúde pública e a pesquisa. A nossa utopia, como sujeitos da saúde coletiva
Atualmente, estão disponíveis 17 edições do ‘Bo- e da ST, é levar o conhecimento de bases científicas
letim Epidemiológico’, em versão texto digital, no portal para circulação na sociedade, revelando os determi-
http://www.ccvisat.ufba.br. A partir de 2019, considerando nantes das condições de trabalho, das exposições ou
a popularização do acesso à mídia audiovisual, foi dado fatores de risco, da desproteção previdenciária, dos
início à edição de boletins em formato de vídeos, bus- agravos à saúde, de formas inaceitáveis de trabalho
cando ampliação do seu alcance. No presente, conta-se como o trabalho infantil ou análogo à escravidão, e
com quatro edições audiovisuais, especificamente, sobre suas vinculações com a injustiça. No entanto, vive-
transtornos mentais relacionados ao trabalho, ocupação mos um tempo estranho, escuro, obscuro, no qual
e suicídio, doenças infecciosas e parasitárias relacionadas a importância da ciência é negada, por mais bizarro
ao trabalho, incluindo a Covid-19 e acidentes de trabalho que isso seja. Especialmente por estar ocorrendo
envolvendo motocicletas e custos hospitalares dos aciden- em meio à pandemia da Covid-19, que desencadeou
tes de trabalho por picadas de serpentes. uma pressão sem precedentes sobre cientistas, para
O portal e suas ferramentas de trabalho, bem como entendê-la e produzir os meios de seu controle. Ten-
os boletins, vêm sendo muito bem recebidos pela po- tativas de manipulação de dados, por exemplo, não
pulação, trabalhadores, sindicatos, movimentos sociais, prevaleceram. Ocultação de dados é impossível com
jornalistas, estudantes de graduação e pós-graduação e, em as janelas de transparência e capilaridade da produção
especial, os profissionais da saúde, a exemplo de equipes da informação, que permitem o compartilhamento e
da vigilância do trabalhador e da vigilância epidemiológica. o processamento e análise em tempo real. Ademais,
Esse trabalho é realizado por professores do ISC/UFBA e trabalhadores em ocupações ‘emergentes’, como as
de outras unidades da UFBA e, fundamentalmente, por de entrega gerida por aplicativos, organizam-se e
estudantes de graduação e pós-graduação. Durante a clamam por informações sobre suas condições de
elaboração de cada edição, são contatados especialistas, emprego, desproteção social e situação de elevada
lideranças sindicais, representantes de movimentos sociais, vulnerabilidade tanto para acidentes de trabalho como
nacionais e estrangeiros, de instituições como a Organi- para o enfrentamento da violência, inclusive a policial,
zação Pan-Americana da Saúde (Opas), dentre outras. evidente nas abordagens impregnadas de racismo e
Consideramos essa uma experiência bem-sucedida, preconceito de classe, entre outras. A organização e
de produção de conhecimento científico para além dos a procura por informação, de grande parte desses
limites da comunidade acadêmica. Vale ressaltar que a trabalhadores, nos animam. São um exemplo. Assim,
própria CGST passou a produzir e divulgar com regulari- no âmbito do pessimismo que nos envolve, podemos
dade boletins epidemiológicos sobre tópicos de interesse pensar em continuidade desse processo de produção
estratégico para a ST e as políticas correspondentes. Com de conhecimento a partir de colaboração entre aca-
a colaboração, os tópicos focalizados pelo CCVISAT são demia, sim, porque a luz há de brilhar mais uma vez.
previamente acordados de modo a evitar repetições e Como dizia o poeta.
129

Fotos: Rita Loureiro/ALM Apoio à Cultura


Os boletins epidemiológicos,
elaborados com linguagem simples e
direta, são disponibilizados on-line
no portal http://www.ccvisat.ufba.br
em versão texto digital e também em
formato de vídeo.

A comunicação e a difusão do conhecimento em


Saúde do Trabalhador a partir da experiência
do blog Multiplicadores de Visat
Isabella de Sousa Maio
Luciene de Aguiar Dias

Ao pensar que a missão da academia é pesquisar, população. Contudo, ainda assim, fica uma pergunta:
produzir conhecimento, formar e informar pessoas para a será que o pensamento acadêmico, em geral, enxerga
vida em sociedade, perguntamos: essa mesma sociedade a população e os movimentos de luta social por me-
em movimento tem acesso às suas propostas pedagógicas? lhores condições de vida e mais direitos como sujeitos
Recentemente, com a pandemia da Covid-19, vi- ativos e parceiros na produção de conhecimentos? Ou
mos uma grande aproximação do discurso acadêmico será que há um distanciamento da academia com os
e científico com a sociedade. Nas diversas mídias e sujeitos sociais que movimentam a sua luta?
redes, observamos epidemiologistas, infectologis- No caso da ST e suas interfaces com os direitos
tas, estatísticos, profissionais de diversas áreas do humanos e as dinâmicas dos movimentos sindical e
conhecimento acadêmico conversando, debatendo sociais, essas relações com a academia são questões
e esclarecendo questões de caráter científico para a mais inquietantes. É voz corrente entre os que atuam
130

no campo da ST que não se ‘faz’ ST sem o trabalha- sobre Inclusão e Acessibilidade no Trabalho, além
dor – e esse fazer implica justamente a produção de de links com outros veículos similares, tais como o
conhecimentos, cuja máxima é considerar os traba- Fórum de Acidentes de Trabalho, o Pisat – CCVISAT
lhadores como sujeitos coletivos, ativos e, mesmo, (ISC-UFBA/CGSAT-MS), o Centro de Estudos da Saú-
protagonistas, objetivando a transformação do mundo de do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) e a
do trabalho. Com esse espírito de partilhamento de Renast online. Atualmente, chegando aos 170 mil
produção de conhecimentos, há muitos anos, um acessos, seu objetivo vem sendo alcançado como
projeto de formação de agentes de Visat no SUS vem instrumento de formação continuada dos alunos e
sendo desenvolvido no âmbito da academia, no caso ex-alunos, além de fornecer informações e materiais
a Ensp/Fiocruz, com o apoio do MS e da Renast. para todos aqueles que têm interesse nos conteúdos
disponíveis dos temas relacionados.
Outro objetivo é a manutenção de vínculos afeti-
vos dos alunos e ex-alunos entre si, com as instituições
participantes e com a coordenação do projeto. De
forma proativa, a coordenação do blog fomenta, por
meio das redes sociais, o acesso dos alunos aos con-
teúdos disponíveis, esclarecendo dúvidas e prestando
todo o suporte necessário para os usuários.
As redes eletrônicas estão estabelecendo novas formas
de comunicação e de interação onde a troca de ideias
grupais, essencialmente interativas, não leva em consi-
deração as distâncias físicas e temporais. A vantagem é
que as redes trabalham com grande volume de arma-
zenamento de dados e transportam grandes quantida-
des de informação em qualquer tempo e espaço e em
1. DORIGONI, G. M. L., et A essência desse projeto de formação é dar voz diferentes formatos1.
al. Mídia e Educação. 2007.
Disponível em: http://www.dia-
aos trabalhadores enquanto sujeitos coletivos pro-
adiaeducacao.pr.gov.br/portals/ dutores de conhecimento partilhado, tanto com a O blog Multiplicadores de Visat conta também
pde/arquivos/1170-2.pdf. Acesso
em: 12 set. 2019. academia quanto com os serviços (principalmente os com uma rede de mídias sociais, como o Instagram e o
Cerest da Renast) responsáveis pela Visat. Com o seu YouTube, que divulgam os materiais didáticos, textos,
aprofundamento, foi agregada ao projeto a formação vídeos e informações nele disponíveis. Essa divulgação
de multiplicadores de Visat (formação de formado- possibilita a captação de novos usuários dos seus con-
res), hoje consolidada, tendo sido formados, desde teúdos, aproximando trabalhadores e trabalhadoras e
2014, 164 multiplicadores e 1718 agentes de Visat movimentos sociais que utilizam essas mídias como
(trabalhadores incluídos) em todas as regiões do País. fonte de informação e articulação de lutas. O convite
O blog Multiplicadores de Visat, desde então, à leitura e a participação das atividades do blog são
vem sendo utilizado como veículo de comunicação feitos também por meio do contato pelo WhatsApp,
e educação permanente para os agentes de Visat, os criando, assim, uma grande rede de divulgação desse
multiplicadores e, principalmente, os trabalhadores espaço de aprendizagem e participação coletiva. É por
e seus representantes. À medida de sua consolidação intermédio desses espaços que os leitores do blog são
como ferramenta pedagógica, além do tema mais também convidados a escrever textos de opinião que
específico da ST, questões ambientais, de direitos contribuem para a reflexão dos sujeitos coletivos.
humanos e dos movimentos sindical e sociais passaram Dessa forma, os trabalhadores são compreendidos
a ser temas abordados no blog. nessa lógica como protagonistas reflexivos ativos e
2. FREIRE, P. Pedagogia da
Em seu espaço virtual (www.multiplicadoresde- críticos, e não como “objetos a serem formados”2.
autonomia. 25. ed. Paz e Terra:
São Paulo, 2002. visat.com), são disponibilizados materiais didáticos A importância desse espaço virtual como um
diversos, tais como livros, textos diários em sua Coluna instrumento que mantém vínculos afetivos já esta-
Opinião, com mais de 60 colunistas das mais diversas belecidos e integra usuários, trabalhadores e profis-
áreas afins ao campo da ST, videoaulas (canal YouTube sionais de todo o País, criando a troca, o intercâmbio
do projeto), documentários, boletins informativos de saberes de forma ativa, possibilita uma educação
mensais (atualmente no número 55) e informações crítica e transformadora. Representa, portanto, não
sobre eventos do campo ou relacionados aos temas apenas uma ferramenta pedagógica, mas é, também,
mencionados. Possui também uma janela de temas uma ferramenta de formação política no campo.
131

Plataforma Renast online: uma ferramenta


para apoio à formação e integração da Rede
Nacional de Atenção Integral à Saúde do
Trabalhador
Augusto Campos

O site Renast online foi criado em 2009 como um de uso da internet. O foco e interlocutor primordial
experimento de utilização de ferramentas da internet escolhido foi a Renast, enquanto rede ampla de atores
para a indução de práticas, divulgação de conheci- e instituições relacionados à ST. Sua proposta inicial
mentos, circulação de informações da rede, debate tinha como horizonte o apoio à busca autônoma por
e para dar visibilidade aos temas relacionados à ST. parte de profissionais da Renast e outros atores sociais
Não se tratava exatamente de uma iniciativa inédita. relacionados por informações e conhecimento em ST.
Na época, o Observatório de Saúde do Trabalhador, Sua estrutura, portanto, deveria dar conta de dois eixos.
criado em 2003, com apoio da Opas e do MS, encon- O primeiro organizaria os conteúdos: atualida-
trava-se sem manutenção, apesar de já ter cumprido des, experiências, conceitos e conhecimento. O site
importante papel durante a III Conferência de Saúde deveria organizar e disponibilizar acesso a informações
do Trabalhador1,2. sobre o que acontece no cotidiano da rede e relativo 1. SIQUEIRA, C. E., et al. The
Observatory of the Américas as
Há uma vasta discussão sobre as transformações a assuntos de interesse dela. Também deveria buscar, a network in environmental and
worker health in the Americas.
que envolvem as ferramentas de Tecnologia da Informa- selecionar e organizar objetos de aprendizagem3, Ciênc. Saúde Colet., v. 8, n. 4,
ção (TI) e redes sociais e seu o efeito potencializador nas formatos diversos de transmissão de conhecimento 2003.

interações, e na criação de novas formas de produção, técnico e científico. 2. CAMPOS, A. S. Observatórios


de Saúde do Trabalhador. In:
difusão, assimilação e uso de informação e conhecimen- O segundo eixo estruturaria a utilização das MENDES, R. (Org.). Dicionário de
Saúde e Segurança do Trabalha-
to. Comunidades virtuais, redes de relacionamento, ferramentas de TI para fomentar a interação dos ato- dor. Novo Hamburgo: Proteção
Publicações Ltda, 2018, p. 93-94.
blogs, fóruns, wikis, sites de compartilhamento de res em torno dos conteúdos. Embora as ferramentas
3. Objetos de aprendizagem
vídeo e fotos, entre outros, transformam consumidores tenham sido implementadas, pouco se avançou nessa são recursos digitais ou não que
em produtores de conteúdo e possibilitam a interação inciativa. Promover a interação dos usuários com podem ser utilizados e reutilizados
em diversas modalidades de
com este. Conforma-se uma nova forma de utilização comentários e discussões utilizando o site ainda é ensino (presencial, híbrida, à
distância, autoaprendizagem etc.).
da internet, agora como plataforma para a produção um desafio a ser superado. Devem ser estruturados como
unidades autoconsistentes de
e divulgação de conteúdo de forma muito mais ágil Complementando a estrutura formal do conte- pequena extensão, passíveis de
e participativa. A web 2.0 foi o termo forjado para údo, que possibilita sua organização conforme o tipo combinação com outros objetos.
Podem conter vídeos, imagens,
descrever o desenvolvimento de aplicações e práticas de informação e seu objetivo, utiliza-se uma indexação áudios, textos, bases de dados,
animações, gráficos, estudos de
que aproveitem os efeitos de rede para se tornarem por temas e por territórios, permitindo fácil localização caso, animações etc.). Costumam
ser disponibilizados para
melhores quanto mais sejam usados pelas pessoas, segundo o interesse do usuário. Um terceiro nível de educadores ou para estudantes em
aproveitando a inteligência coletiva. Diversas institui- direcionamento de conteúdos para o usuário é feito repositórios indexados.

ções vêm adotando as ferramentas da web 2.0 como a partir da própria interface. Ao lado do conteúdo
modelo para gestão do conhecimento e comunicação principal, é possível encontrar uma lista de conteúdos
interna e externa, das quais tem lugar de destaque a relacionados a partir da indexação. Conteúdos-chave
Opas. A Biblioteca Regional de Medicina (Bireme) é são também organizados de forma hierarquizada de
outro exemplo de utilização destas ferramentas para tópicos e subtópicos, exibidos do lado direito do
a organização de comunidades de prática. conteúdo principal, organizando e conduzindo a ex-
A iniciativa teve como referência a experiência do periência do usuário que se interessa por aprofundar
Observatório, mas enquanto iniciativa, independen- de forma organizada sua leitura.
temente do ponto de vista institucional, pôde adotar Além do site em si, a Renast online passou a
uma postura mais experimental e flexível, buscando utilizar também as plataformas sociais externas como
formas de incorporar novas ferramentas e práticas Facebook, Twitter e LinkedIn como forma de divulgar
132

seus conteúdos. Mais recentemente, foi incluído um – Verbetes temáticos: conteúdos produzidos
componente de informação, que compreende, por como referência básica de forma a organizar concei-
um lado, a coleta, o tratamento e a disponibilização tos e temas fundamentais da ST, direcionados para
de informações de situação de ST a partir de dados profissionais da rede. Incluem referências a textos
oficiais secundários (Sinan, SIM, Rais, CAT e outros). científicos, mas podem incluir outras formas de ob-
Durante a evolução da plataforma, experimen- jetos de aprendizagem.
taram-se algumas variações em sua estrutura. Atual- – Fóruns: são ferramentas de comunicação e
mente, ela inclui: debate, utilizados para a interação da rede com o
– Notícias: principalmente coletadas a partir site e entre si.
de pesquisas na internet de temas de interesse para – Blogs: espaço disponibilizado para atores-chave
a Renast, indexadas por tema e território. Têm como e pesquisadores para comunicação direta com a rede.
objetivo divulgar para a rede informações sobre ações – Armazém de dados secundários públicos.
e situações de risco, apoiando o planejamento de Sistemas de informação: são sistemas de TI para
ações, a troca de experiências e a transparência. apoio às ações da Renast. Podem incluir ferramentas
– Acervo de recursos: inclui artigos científicos, para apoio ao planejamento e registro de ações.
publicações e diversas outras formas de objetos de Por outro lado, foram desenvolvidas ferramentas
aprendizagem técnica (vídeos, cartilhas, boletins de informação para apoio às ações de Visat, especial-
etc.) e de divulgação, constituído a partir de pesqui- mente para o registro e estruturação de ações de vigi-
sa sistemática e contínua em assuntos de interesse, lância de ambientes de trabalho e para a elaboração de
indexado por tema e território. Tem como objetivo matrizes de exposição ocupacional. Esta última passa
selecionar e organizar objetos de aprendizagem téc- a organizar toda a plataforma organizando conteúdos
nicos e científicos que possam ser utilizados para a e informações de forma sistemática (figura 1).
autoaprendizagem ou constituir material didático.

Figura 1. Integração de conteúdos e dados


Conteúdos Indexadores Dados
Notícias
Recursos Atividade econômica (CNAE) Armazém
Temas Agravo (CID) Painéis
Comentários Território SisCarex
Blogs Risco SisVisat
Fóruns Indicadores
Redes Alertas

Matriz de exposição ocupacional

Projetos estruturantes

Ação Informação

Avanços e desafios laçada à Renast real. Considera-se que haja suficiente


Em 2019, o experimento Renast online comple- amadurecimento da experiência para demonstrar
tou 10 anos. Atualmente, alcança aproximadamente o tanto sua importância como sua atual insuficiência.
número de 5 milhões de visualizações e 2 milhões de Se, por um lado, percebe-se crescente utilização dos
visitantes. Destes, mais de 6.500 pessoas são inscritas conteúdos disponibilizados, há que se avançar no que
no site. O acesso ao site tem demonstrado crescimento se refere à sua qualidade, especialmente os ‘verbetes’
significativo nos últimos meses, aproximando-se de que devem sintetizar conceitos e temas fundamentais
100 mil visitantes por mês. e direcionar os usuários a conteúdos para aprofun-
Pode-se considerar um relativo sucesso da Renast damento. É também necessário que estes superem a
online enquanto comunidade de prática virtual entre- forma tradicional de texto didático, incluindo novas
133

Plataforma

RENAST
online
formas de apresentar e interagir com o conteúdo ratura para dinamizar as comunidades de prática.
(como vídeos, casos reais ou simulados, aplicações Algumas delas são muito utilizadas como recurso
interativas etc.), observando ainda a sua preparação didático em fóruns em EAD. A principal delas, como
para o autoaprendizado e a possibilidade de utilização demonstra a experiência, é a atuação de pessoas-cha-
de objetos de aprendizagem em cursos e outras formas ve, capazes de mobilizar a participação, responsáveis
mais estruturadas de ensino a distância, híbrido ou por propor temas, publicar questões e incentivar a
presencial. A recente experiência de trabalho, estudo e participação. Atividades presenciais, como reuniões e
articulação durante a pandemia de Covid-19 evidencia seminários, ou síncronas, como webconferências, são
a potencialidade dessas modalidades, mas também importantes para fortalecer os vínculos e aumentar a
a necessidade de estruturação de ferramentas e a confiança entre os participantes de forma a promover
coordenação de seu uso. sua participação em atividades não presenciais e
Nesse sentido, coloca-se a questão da interação assíncronas como os blogs e fóruns.
horizontal dos usuários entre si por meio do site e Tanto a manutenção da Renast online quanto
com o site. Esse é um desafio para a instituciona- o seu aprimoramento como ferramenta definitiva de
lização de diversas redes. Ainda que haja muitos TI, vinculada à implementação da Renast, enquanto
exemplos de interações voluntárias e espontâneas estratégia para implementação da PNSTT, configurada
entre profissionais em diversas comunidades de em rede, demandam não só suporte físico e finan-
prática, é ainda difícil promover intencionalmente ceiro, mas também a participação ativa de técnicos e
essas interações. Estratégias são sugeridas na lite- instituições do campo.
Capa do relatório da 3ª
Conferência Nacional de
Saúde do Trabalhador.
5
A institucionalidade
fragmentada do campo da saúde
do trabalhador
Coordenação
Elizabeth Costa Dias & Paulo Gilvane Lopes Pena
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.08
137

A institucionalidade fragmentada do campo da


Saúde do Trabalhador
Paulo Gilvane Lopes Pena
Elizabeth Costa Dias

A noção de instituição tem significados diferen- com o trabalho. Configurou-se o enfrentamento à


tes em várias áreas de saberes, mas na acepção aqui hegemonia das práticas tradicionais de medicina e
adotada, entende-se como o conjunto de normas que segurança do trabalho da Organização Internacional
regulam a ação social associado à criação de estruturas do Trabalho (OIT), com a institucionalização das
sociais que compõem o Estado. São organizações ações de proteção à ST no âmbito das inspeções do
de caráter permanente estabelecidas politicamente trabalho, no Ministério do Trabalho e, portanto, fora
em atendimento aos interesses sociais, tradições ou das estruturas de saúde pública.
direitos que regem a sociedade. Com isso, a insti- A ST era uma ideia nova na estrutura do Estado,
tucionalização no âmbito da Saúde do Trabalhador na produção científica, práticas dos profissionais de
(ST) significa inclusão na esfera pública do Estado, saúde e nos saberes e conhecimentos dos movimen-
das ações que garantam o direito à saúde por meio tos sindicais e sociais. A força da concepção da ST se
da assistência integral para todos os trabalhadores, estabeleceu a partir da realidade trágica e insustentável
com suporte dos marcos legais. Considera-se que o de exploração do trabalho que colocou o Brasil como
Estado se compõe de uma determinada população um dos campeões mundiais de acidentes e mortes
em abrangência geográfica de domínio sobre um no trabalho nos anos 1970. Configurou-se, assim,
determinado território, no qual monopoliza a cria- a falência do modelo de medicina e segurança do
ção e a execução das regras sobre as quais detém o trabalho do Ministério do Trabalho que privilegiava
poder. Para isso, tem o seu conjunto de instituições as ações e regulamentações segundo interesses eco-
educacionais, militares, econômicas, na esfera da nômicos das empresas, em detrimento da vida e da
saúde, trabalho, ambiente, previdência, entre outras. saúde dos trabalhadores.
No Brasil, no período de 1964 a 1984, na esfera da No âmbito das instituições do Estado, esse movi-
saúde, havia sistemas pulverizados, com profunda mento envolveu a transferência dos atendimentos em
dicotomia entre a prevenção e a assistência centrado acidentes doenças do trabalho da previdência social
no modelo hospitalocêntrico. O modelo excluía dois para o SUS. No entanto, a ação política no processo
terços da população brasileira do direito à saúde e constituinte não permitiu a mudança das estruturas do
acesso aos serviços, que se mantinha dependente antigo Ministério de Trabalho para o SUS. Órgãos como
dramaticamente das ações filantrópicas, agravadas por a Fundacentro e inspeção e segurança e medicina do
contextos de desigualdade extrema, miséria, fome. trabalho e o controle das práticas e da organização da
A Constituição Federal de 1988 (CF/88)1, que rede de serviços médicos e de segurança do trabalho 1. BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil.
estabeleceu o Estado Democrático de Direito, assegura das empresas permaneceram como estavam. 1988. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
acesso universal à educação, saúde e previdência so- Tal superposição de atribuições não impediu o tuicao/constituicao.htm. Acesso
em: 14 nov. 2020.
cial, resultando na reordenação ou criação de novas esforço voltado para a institucionalização dos serviços
instituições. Configurou-se um processo de unificação de ST no SUS e suas relações intersetoriais, com base
dos subsistemas pulverizados de saúde, levando à nas experiências existentes nas redes estaduais de
formação do Sistema Único de Saúde (SUS), conceitu- saúde e em algumas capitais, universidades e cen-
almente centrado no movimento de Reforma Sanitária. tros de pesquisa. O suporte sindical e assessorias, a
Na Reforma Sanitária, emergiu um novo conceito exemplo do Departamento Intersindical de Estudos
de ST, em desenvolvimento em países da Escandiná- e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho
via, no Canadá e na Itália, a exemplo do movimento (Diesat), proporcionou o apoio essencial da sociedade
operário italiano. Segundo Mendes e Dias (1991)2, civil nessa construção inusitada na saúde pública 2. MENDES, R., et al. Da
medicina do trabalho à saúde do
a ST passou a ser uma nova prática em construção brasileira. Com isso, desencadeou-se uma política de trabalhador. Rev. Saúde Públ., v.
25, n. 5, p. 341-349, 1991.
no espaço da saúde pública centrada no processo ST, cujo marco, a Portaria nº 1.823, instituiu a Política
saúde e doença dos grupos humanos na sua relação Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
138

(PNSTT), além de diversos outros momentos com País entre os mais atingidos no mundo, consequente
ações e reordenamento institucional no SUS, que das ações negacionistas e descontrole político na saúde
tiveram resultados importantes. pública promovida pelo governo federal.
No plano internacional, verificou-se o crescimen- Paradoxalmente, a ST reassume nesta pandemia
to da ST na Organização Mundial da Saúde (OMS), valor crucial diante da centralidade das ações de saúde
somando-se ao tradicional suporte da OIT. Em 1994, a no mundo. Trata-se dos impactos ocupacionais não
OMS aprovou a declaração de Beijing, China, na qual apenas nos profissionais de saúde e nas várias cate-
propôs a ‘Saúde Ocupacional para Todos’, baseado gorias profissionais mais expostas, mas em todos os
ainda na noção do modelo de segurança e saúde da trabalhadores do mundo, com repercussões diretas
OIT. A evidência constatada pela OMS, em 2005, foi de adoecimento e indiretas devido ao desemprego em
de que havia 2,2 bilhões de trabalhadores no mun- massa e demais consequências sociais sem precedentes
do sem acesso a qualquer serviço de proteção à ST desde a pandemia da influenza ou gripe espanhola
dispondo de proteção precária dos serviços médicos há cem anos. Esta tragédia evidencia a importância
das empresas. Tratava-se de um universo de pessoas das instituições de ST, tão vilipendiadas nos últimos
excluídas da proteção à saúde decorrente dos riscos tempos da era neoliberal. São fenômenos que eviden-
e modalidades de violência à saúde no mundo do ciam a importância do campo, recolocam em cena a
trabalho. Em 2007, na Assembleia Mundial de Saúde, a necessidade de avançar na institucionalização da ST,
OMS assumiu o conceito de ST e deliberou um Plano com lutas, resistências e exemplos, por mais extremada
de Ação Global em ST, recomendando a todos os e obscura que sejam as ações governamentais.
serviços de saúde pública do mundo desenvolverem Nesse contexto, este bloco busca resgatar aspectos
3. WORLD HEALTH ORGANI- ações nesse campo3. históricos e conceituais da construção do movimento
ZATION. Sixtieth World Health
Assembly: Agenda 12.13. Worke- O processo de orientação das políticas de pro- da ST no Brasil, seguindo-se a análise da PNSTT, dos
rs’ health: global plan of action.
WHA60. 2007. Disponível em:
teção à ST da OMS avançou na institucionalização de fundamentos da organização da atenção à saúde dos
https://apps.who.int/gb/ebwha/
pdf_files/eb120/b120_28rev1-en.
estruturas para permitir o acesso universal aos serviços trabalhadores nos três níveis de gestão do SUS; os desafios
pdf. Acesso em: 11 ago. 2020. de proteção e recuperação da ST no mundo. No Brasil, para a Vigilância em Saúde do Trabalhador (Visat); a Rede
o suporte internacional favorece substancialmente a Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador
continuidade da institucionalização em curso. (Renast) e a atuação dos Centros de Referência em Saúde
No entanto, a conjuntura atual impõe a fragmen- do Trabalhador (Cerest); a participação e controle social
tação drástica da institucionalidade da ST duramente pela Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador
construída, que ameaça todos os avanços conquista- e da Trabalhadora (CISTT) do Conselho Nacional de
dos. Instalou-se um governo com políticas extremistas Saúde (CNS); a ST no contexto pós-pandemia Covid-19;
D. Rivera – Indústria
de Detroit, muro norte no desmonte do estado social e que ameaçam e des- e algumas reflexões sobre a situação da ST diante das
(detalhe), 1933 constroem a própria ST. Soma-se a isso o momento mudanças no trabalho. Finalizando, buscou-se apontar
Afresco,
5,40m x 13,72m
trágico da pandemia da Covid-19, que tem colocado o algumas perspectivas e frentes de luta.
Instituto de Artes de Detroit,
Detroit, EUA.
139

Aspectos históricos-conceituais da
atenção à saúde dos trabalhadores e
das trabalhadoras no SUS
Anamaria Testa Tambellini
Mariza Gomes de Almeida
Volney de Magalhães Câmara

Na chegada dos anos 60, podia-se perceber que as pre- militar e que julgavam ser a saúde um dos direitos
missas de prosperidade e melhores condições de vida fundamentais dos povos. A ideia matriz que presidiu
que os planos governamentais alardeavam não estavam
o entendimento da questão das relações Produção/
se concretizando e que as teorias que vinham tentando
explicar esta realidade econômico/social não a penetra- Ambiente/Saúde se aglutinou em torno de objetos e
vam. Todo o quadro se agravou quando o país, após um margens de várias disciplinas e técnicas baseadas no
período de grandes lutas políticas e tensões, sucumbiu conhecimento científico, aliada a necessidades con-
ao poder autoritário da ditadura militar iniciada com o cretas de pensar e agir, tendo em vista os diferenciais
golpe de 64. A partir de então houve uma busca persis- de saúde por classes sociais, levando em conta riscos
tente por alternativas de explicação dos acontecimentos
específicos a que estavam submetidas coletividades
e processos sociais e políticos vividos nacionalmente e
que, dali por diante, irão ficar cada vez mais articulados, nas sociedades capitalistas subdesenvolvidas
embora mantendo feições particulares, de acordo com Esse pensamento crítico teve uma expressão
as especificidades das diferentes formações sociais, em concreta no que diz respeito às relações Produção-
outros países do continente sul-americano1. -Ambiente-Saúde em Epidemiologia na tese de douto- 1. TAMBELLINI, A. T., et al.
Registrando a Saúde do Traba-
rado sobre acidentes de trânsito de Tambellini Arouca lhador no Brasil: Notas sobre
Primeiro momento 1969-1979 (1976)3 e no Curso de Mestrado em Medicina Social sua emergência e constituição.
Em Pauta, v. 11, n. 32, p. 21-37,

A experiência brasileira sobre as relações entre do Instituto de Medicina Social da Universidade do 2013.

Produção, Ambiente e Saúde considerada um campo Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com a disciplina 2. UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE CAMPINAS Departamento
de práticas situadas no interior da saúde coletiva é denominada ‘Determinação Social da Doença’, que de Medicina Preventiva e Social.
Faculdade de Ciências Médicas.
recente no País. Atualmente, está constituído pela ST, começou a ser ministrada em 19763. Documentos Básicos. Relatório
dos encontros de docentes de
Saúde Ambiental e Saúde do Consumidor2. Tal campo Essa fase culminou com a tentativa de integra- Medicina Preventiva do Estado
de relações se desenvolveu a partir das análises críticas lização e reconstrução de campos de conhecimento de São Paulo. 1974, mimeo.

à Medicina Preventiva e Saúde Pública tradicional anteriormente limitados pela saúde pública e medicina 3. TAMBELLINI, A. T. Contri-
buição à análise epidemiológica
que foram realizadas pelos próprios trabalhadores e preventiva no campo denominado saúde coletiva – dos acidentes de trânsito. Tese
(Doutorado em Medicina Pre-
trabalhadoras dessas áreas, em processo iniciado nos espaço para uma produção de conhecimentos abor- ventiva) – Universidade Estadual
de Campinas, Faculdade de
fins dos anos de 19603. Esse período inicial comporta dando a relação peculiar entre a saúde e o trabalho, Ciências Médicas, Campinas,
dois momentos. o que possibilitaria criar uma área particular de inter- 1976.

O processo que levou à construção de possibili- venção, englobando e reformulando as áreas de saúde 4. TESTA, M. Medicina del
trabajo al servicio de los traba-
dades alternativas para pensar a saúde em suas várias ocupacional e medicina do trabalho. Tal área nomeada jadores. Actas de las Jornadas
Nacionales de Medicina del
dimensões assumiu a forma de um pensamento crítico de ST foi inspirada em livro de Testa (1974)4. A área Trabajo. Universidad de Buenos
Aires, Facultad de Medicina, IMT.
e criativo. Em um primeiro momento, considerava-se propunha assumir uma ST em sua dimensão integral, Buenos Aires: Eudeba, 1974.
a existência de uma crise do sistema de saúde em que ou seja, na qual o trabalhador não seria considerado
a falta de resolutividade das propostas de políticas pú- apenas como agente do processo de trabalho, mas
blicas e das próprias intervenções na saúde procedia, como um ser humano em suas múltiplas dimensões
em parte, do modelo científico adotado e grandemente políticas, sociais, biológicas e pessoais e em que o
dos pressupostos políticos liberais que orientavam cuidado preventivo seria privilegiado.
as decisões sobre e no interior do sistema de saúde. Houve naquela década um entrosamento e co-
Aliaram-se a essa crítica, que expunha a área de saúde, laboração mútua entre países latino-americanos, com
alternativas propositivas elaboradas por pesquisadores apoio da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).
e profissionais de saúde aliados a militantes políticos No Brasil, as lutas para as modificações desejadas
que faziam oposição ao totalitarismo e à ditadura no sistema de saúde, o tipo de relação da academia
140

com os órgãos representativos dos trabalhadores, de trabalho e a investigação competente dos deno-
a inserção das ações de ST no sistema de saúde e minados ‘fatores de risco’ de diferentes naturezas,
a forma e prioridade da formação de profissionais além das situações e formas de exposição presentes
para atuação nessa área se constituíram em elemen- naquele processo6,7.
tos importantes para a realização dessas mudanças. Não era mais possível entender a produção
Favorecidas, ainda, pela intensa mobilização social se não fosse colocada a importância da questão
pela redemocratização que se tornou evidente no ambiental. Nessa direção, a questão produção e
5. ESCOREL, S. Reviravolta na Movimento da Reforma Sanitária5. saúde remete ao ambiente, em sua dimensão eco-
saúde: origem e articulação do
movimento sanitário. Dissertação lógica, que, transformado pelo regime de produção,
(Mestrado em Saúde Pública) – Segundo momento 1980-1988 poderá produzir novos riscos à ST e a outros coleti-
Fundação Oswaldo Cruz, Escola
Nacional de Saúde Pública, Rio Nesse momento, já existe uma articulação e vos humanos, animais e vegetais que compartilhem
de Janeiro, 1987. Mimeo.
grande coesão das forças sociais na defesa da demo- desses ambientes transformados. Tais considerações
6. MALUF, U. M. M., et al.
Otimização ergonômica dos cracia e contra a ditadura e fica patente a presença e possibilitaram prever a articulação de três braços
tratos culturais da lavoura de
cana-de-açúcar. Rev Brasileira
a importância da questão saúde. Ao mesmo tempo, a técnicos no contexto da saúde pública: a ST, a Saúde
Saúde Ocupac, v. XVIV, n. 1, p.
18-28, 1983.
luta pela ST passa a ser elemento reconhecido nas arti- Ambiental, a Saúde do Consumidor.
culações políticas do movimento de redemocratização Essas áreas técnicas não teriam como objetivo
7. CAMARA, V. M., et al.
Teores de mercúrio no cabelo: o que contribuiu para aproximação dos sindicatos de principal produzir conhecimento, mas, sim, inter-
um estudo comparativo em
trabalhadores da lavoura de trabalhadores com o Movimento da Reforma Sanitária. vir na realidade dos processos de trabalho em sua
cana-de-açúcar. Cad. Saúde
Pública, v. 3, n. 2, p. 359-372,
A compreensão de que os métodos científicos relação com a saúde, nela produzindo mudanças
1986. e as técnicas desenvolvidas pelos profissionais da com a utilização de conhecimento científico e das
8. BRASIL. Portaria nº 3.120, de saúde para abordar a questão Produção/Trabalho- técnicas. Por exemplo, no caso da ST, contribuindo
1º de julho de 1998. Instrução
Normativa de Vigilância em -Ambiente-Saúde não eram suficientes para dar para a transformação da categoria nosológica (do-
Saúde do Trabalhador no 1998.
Disponível em: http://renaston- conta das análises dos problemas da ST fez com que ença comum) em categoria jurídico-legal (doença
line.ensp.fiocruz.br/recursos/
portaria-3120-1o-julho-1998.
se estabelecesse formas de trabalho com profissio- produzida pelo trabalho), com a legitimação social
Acesso em: 15 dez. 2020. nais e pesquisadores de outras áreas – engenheiros como necessária. Além da comprovação científica da
de produção, ergônomos, advogados, cientistas relação doença-trabalho, é preciso que a sociedade
sociais e políticos, historiadores, antropólogos, tenha consciência do problema e que essa questão seja
entre outros que contribuíram com suas diversas trabalhada pelos profissionais e técnicos cujo desafio
abordagens disciplinares. No Brasil, entra-se em é entender, aceitar e contribuir para ajudar outros a
uma corrida interdisciplinar de grandes propor- entenderem essa consideração. Essa perspectiva se
ções, na qual os profissionais da área tecnológica fará presente na legislação da área, como podemos
foram fundamentais para o entendimento das ver na Portaria nº 3.1208.
formas assumidas pelos processos de produção Nesse período, persistia no País uma política
e de trabalho em suas relações técnicas e sociais. que não privilegiava o acesso dos trabalhadores às
Do ponto de vista social, político e econômico, informações. Entretanto, os trabalhadores apareciam
havia teorias que explicavam a produção, tanto em no cenário nacional à custa de suas organizações
escala micro quanto macroeconômica, mas não e lutas, enquanto classe social, constituindo-se em
havia categorias que explicassem os processos de grupo de pressão política de alta densidade. Essa
trabalho concretos e as formas como as relações constatação pesou na decisão estratégica de deixar
capitalistas eram absorvidas em seu interior. na sombra a questão da Saúde Ambiental, dado que
Um estudo sobre os efeitos dos agrotóxicos em o País passava pelo processo de redemocratização e a
plantações de cana-de-açúcar de Campos, estado do ST emergia e aparecia clara, tanto para o trabalhador
Rio de Janeiro, iniciado em 1979, foi realizado por quanto para a sociedade.
pesquisadores de instituições universitárias (Pontifícia Por essa época, havia se logrado construir uma
Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, forma compartilhada de trabalho academia-sindicato
Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e e caminhava-se para o reconhecimento do êxito de
Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio algumas propostas em andamento objetivando alcan-
de Janeiro – Coppe-UFRJ e Escola Nacional de Saúde çar formas de institucionalização da área dentro da
Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz – ideia de um proposto SUS.
Ensp-Fiocruz). Constituiu-se no primeiro trabalho Durante esse período até o ano de 1985,
aplicado com a concepção teórica e a metodologia quando foi fundado o Centro de Estudos e Saúde
científica apropriada para o entendimento do processo do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) da
141

Ensp/Fiocruz, os estudos sobre a ST foram inter- Ocupacional, em agosto de 1983, que marcou, oficial- 9. TAMBELLINI, A. T., et al. As
relações saúde/trabalho: uma
disciplinares, abrangendo as relações da saúde mente, o ingresso dessa instituição entre os parceiros abordagem interdisciplinar. Pro-
grama de Estudos e Pesquisas
no trabalho e vida operária/condições de vida9. comprometidos politicamente na formulação das em Saúde Ocupacional. Rio de
Janeiro: ENSP, 1982 (mimeo).
Em 1986, contribuindo para a I Conferência propostas de desenvolvimento da ST.
Nacional de Saúde do Trabalhador (CNST)10, foi

Foto: Mariza Gomes de Almeida/Acervo Cesteh


elaborado um texto pelos trabalhadores do Ces-
teh11. Escrito para profissionais de saúde e traba-
lhadores, contém elementos da maior importância
para tomada de decisão pelos participantes da
Conferência. Encaminha a discussão do processo
de elaboração de uma Política Nacional de Saúde
dos Trabalhadores, assim como a urgência de pro-
duzir teses e subsídios para aprovação na Assem-
bleia Nacional Constituinte. Documento seminal,
abordou questões até hoje atuais. Considerou que
o campo das relações Produção/Trabalho-Saúde:
“[...] é um campo de atividades teóricas e
práticas, subordinado de maneira abrangente e
complexa às relações capital/trabalho nas socie-
dades capitalistas [...]”11.
Conclui-se que as relações Produção/Traba-
lho-Ambiente-Saúde estejam compreendidas em
um campo de maior abrangência e complexidade,
ou seja aquele que compreende a relação Capital/
Trabalho. Essa relação preside, como determinante
em última instância, as mudanças na integridade e
natureza dos Sistemas Ecológicos no sentido de se
transformarem em Sistemas Socioecológicos. Por
outro lado, determina o Perfil de Morbimortalidade
Populacional, segundo as diferentes classes sociais
e suas relações, que se modifica e evolui de acordo
com a dinâmica das relações sociais.
Hoje constitui-se em entendimento global da
questão saúde fundado teoricamente em suas deter-
minações históricas, socioecológicas, biológicas e
psíquicas estreitamente articuladas.
Diversas instituições se mobilizaram e se enga-
jaram no processo de discussão das relações trabalho Afirmamos que o elemento mais importante
10. CONFERÊNCIA NACIO-
e saúde. Salientamos a importância do Diesat que, desse processo é o trabalhador. É o que fica exposto NAL DE SAÚDE DOS TRABA-
LHADORES, 1.,1986 Brasília,
desde sua fundação em 198012, vem prestando ser- à ação patogênica de substâncias físicas, químicas e DF, Relatório Final, 1986.
viços aos trabalhadores organizados e lutando pelo biológicas, determinadas maneiras de uso e desgaste 11. TAMBELLINI, A. T., et al.,
avanço desse movimento no País, elaborando para o do corpo no processo de produção e de determinadas 1986. Política Nacional de Saú-
de do Trabalhador, análises e
movimento sindical as questões julgadas importantes condições de vida potencialmente lesivas à saúde. perspectivas: In: CONFERÊNCIA
NACIONAL DA SAÚDE DOS
para melhorar o nível de ST. Diríamos que realiza, na Combinam-se a essas exposições outras situações TRABALHADORES, 1. 1986.
Anais. Rio de Janeiro: Fiocruz,
prática e de maneira completa, a proposta de uma de risco, produzidas pelos sistemas socioecológicos, 1986 (mimeo).
técnica a serviço da política. que também produzem doenças relacionadas com a 12. DIESAT. História. Disponível
Também, a Associação Brasileira de Pós-Gra- produção em geral. em: http://diesat.org.br/diesat/
historia/. Acesso em: 14 dez.
duação em Saúde Coletiva (Abrasco) hipotecava so- O resultado importante para a ST foi sua inser- 2020.

lidariedade ao movimento, incluindo trabalhadores ção na CF/88: “Art. 200. Ao Sistema Único de Saúde 13. BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil.
interlocutores de suas discussões e apresentando compete, além de outras atribuições, nos termos da 1988. Disponível em: http://www.
o tema trabalho/saúde em eventos. Assinale-se a I lei: II – executar as ações de vigilância sanitária e epi- planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/constituicao.htm. Acesso
Reunião Nacional sobre Ensino e Pesquisa em Saúde demiológica, bem como as de saúde do trabalhador”13. em: 14 nov. 2020.
142

Notas sobre Saúde do Trabalhador na fase


pós-constituinte no Brasil (1988 – 2000)
Jacinta de Fatima Sena Silva

Esta contribuição trata do campo de Saúde do são resultado de lutas e demandas que visam mini-
Trabalhador e da Trabalhadora (STT) após a Consti- mizar as desigualdades, imprescindível em um país
tuição cidadã até meados dos anos 2000. No período, no qual os índices de extrema miséria e inequidade
havia uma pujante e forte mobilização plural da socie- bateram recordes em 2018, 2019 e 2020. Destaca-se
1. VASCONCELLOS, L. C. F., dade brasileira em torno da democracia traduzida na a perversidade da reforma trabalhista na prevalência
et al. Uma década de Saúde
do Trabalhador no setor saúde:
luta por direitos, ensejando a conquista deste campo do negociado sobre o legislado, flexibilidade da jor-
tempo de construção, avanços e na carta magna. nada e do salário, piora da insalubridade, compra de
desafios. Saúde debate, v. 28, n.
68, p. 191-205, 2004. Nesse cenário, forjou-se o detalhamento da ST uniformes... O transporte não é mais obrigação das
2. GALVÃO, A., et al. Dilemas na Lei Orgânica da Saúde, tendo a área conquistado empresas, e a Justiça do Trabalho foi restringida2.
da representação e atuação
sindical dos trabalhadores a expressão máxima enquanto efetivo problema de Desde a inserção do tema na CF/88, o ano de
precários. In: RODRIGUES, I. J.
(Org.) Trabalho e ação coletiva
saúde e do sistema vigente no País. 1990 foi o marco de legitimação da ST, ao cunhar
no Brasil: contradições, impas- Era notório que o campo e a abrangência da de forma incisiva na Lei nº 8.080/19903 atribuições
ses, perspectivas (1978-2018).
São Paulo: Annablume, 2019. saúde coletiva careciam de contemplar a dimensão da abrangentes e detalhadas da relação saúde-trabalho
p. 203-233.
relação do processo de trabalho com viver, adoecer e e o ordenamento de um conjunto de ações a serem
3. BRASIL. Lei nº 8.080, de 19
de setembro, 1990. Dispõe sobre morrer dos trabalhadores. Tradicionalmente voltado executadas pelo sistema de saúde brasileiro. Nesse
as condições para promoção,
proteção e recuperação da
para outros grupos populacionais, o sistema público momento, tem início a institucionalização da ST no
saúde, a organização e o de saúde relegava e, ainda hoje, de forma secundária sistema de saúde.
funcionamento dos serviços
correspondentes e dá outras a importância da proteção e promoção da ST. Por A história da ST acompanhou a forte luta da
providências. Diário Oficial da
União. 19 Set. 1990. Disponível consequência, abdica do papel do Estado no engen- Reforma Sanitária; e dela sendo parte, constitui um
em: https://www2.camara.leg.br/
legin/fed/lei/1990/lei-8080-19-se-
dramento de formas de preservação e promoção da legado fundamental do ideário do campo, com a
tembro-1990-365093-publicacao- vida dos que sobrevivem do trabalho, sem buscar o mobilização de setores sociais, sindicais, acadêmicos e
original-1-pl.html. Acesso em: 14
dez. 2020. reordenamento dos efetores da política de governo técnicos imersos nos espaços públicos de implemen-
4. BRASIL. Ministério da Saúde. e seus modos de intervenção e sem o entendimento tação das práticas de cuidado à saúde, cujas experi-
Relatório Final da 2ª Conferência
Nacional de Saúde do Traba-
dos impactos sobre a saúde, advindos da restruturação ências incidiram na modelagem de um paradigma de
lhador. Brasília, DF: Ministério
da Saúde; 1994. Disponível em:
produtiva, da flexibilização das relações de trabalho, resistência e luta por a inserção da área no campo da
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ das novas tecnologias que trazem consigo novas for- saúde coletiva.
publicacoes/0207cnst_relat_final.
pdf. Acesso em: 16 dez. 2020. mas de doenças e mortes, da precarização das relações Desse modo, 1990 pode ser considerado um
de trabalho, do incremento do trabalho terceirizado, divisor de águas entre as práticas voluntaristas e pe-
do trabalho familiar e infantil e de outras formas de riféricas ao sistema e a necessidade de dar resposta
desregulamentação, todas elas associadas, além de aos princípios legais basilares do sistema, de forma
tudo, ao desemprego estrutural, também, fonte de legítima e não clandestina1.
adoecimento dos trabalhadores1 . O Brasil começava a se posicionar diante da
No contexto atual, convive-se com a reforma tra- América Latina e Caribe, na XXIII Conferência Sanitária
balhista instaurada em 2017 e a reforma previdenciária Pan-americana, no mesmo ano de 1990, em que se
em 2019 e seus efeitos nos direitos dos trabalhadores dimensionava o problema:
e das trabalhadoras. A reforma trabalhista destitui
[...] as taxas de incidência de acidentes e doenças pro-
direitos, retomada com força pelos governos Temer e fissionais nos países em desenvolvimento são 6 a 10
Bolsonaro. Partem do pressuposto de que o mercado vezes maiores que nos industrializados. Se se examina
de trabalho é autorregulável, que as empresas preci- cada ramo de atividade, aparecem diferenças ainda mais
sam de total liberdade para a contratação e que não marcantes. Só os custos produzidos pelos acidentes
podem ser engessadas pela lei. Essa é uma premissa equivalem a aproximadamente 10% do produto interno
bruto nos países em desenvolvimento4.
equivocada, pois o nível de emprego não aumenta
ou diminui em virtude da legislação, mas da dinâmica No mesmo conclave, concluía-se que a situação
econômica. A proteção social, a legislação e os direitos remetia a vários determinantes, entre os quais: plane-
143

jamento industrial inadequado, migração campo-ci- zador para o campo, após acurada análise e discussão
dade, crescimento populacional em idade produtiva, com os construtores e implementadores da área nos
incremento do setor informal, entrada de grupos espaços das institucionalidades pelos quais se faziam as 5. ORGANIZAÇÃO PAN-AME-
RICANA DA SAÚDE. Año de
vulneráveis, adoção de tecnologias pouco adaptadas práticas de ST. Naquela época, instava-se a construir um la Salud de los Trabajadores.
às condições locais, estagnação econômica e a falta de paradigma que contemplasse a penetração na atenção Boletín de la Oficina Paname-
ricana de Salud, v. 3, n. 113, p.
profundidade dos estudos relacionados aos agravos básica e a abordagem ambiental, buscando inserir a ST 256, 1992.

à ST. Nesse cenário, arremata-se que o programa de em pontes intersetoriais6. 6. MAGALHÃES, R., et al.
Avaliação de iniciativas e pro-
saúde ocupacional era insuficiente para cuidar do Indaga-se se as construções sociais e os instrumentos gramas intersetoriais em saúde
problema, dada a formação inadequada de pessoal e políticos, legais e operacionais produzidos no período – desafios e aprendizados.
Ciênc. Saúde Colet. v. 14, n. 3,
problemas de ordem política, administrativa e técnica4. foram suficientes e claros para direcionar a integração p. 861-868, 2009.

A Lei Orgânica de Saúde, no período, instigou ges- do campo fragmentado nas diversas instituições como
tores, pesquisadores, técnicos, trabalhadores e represen- os Ministérios do Trabalho e da Previdência e Assistência
tantes institucionais e sociais para uma tomada de atitude Social. Ou se essas questões perpassam os setores e suas
no tocante aos problemas decorrentes da relação saúde- insuficiências e ficam retidas no emaranhado complexo
-trabalho, já agora sob o desfecho do ordenamento legal, das relações capital-trabalho-saúde e direitos.
mas sem a diretiva de um guia estratégico que pudesse No entanto, ousa-se declarar que, perante a
servir como modelo organizativo e operativo, interna e abrangência e a amplitude de seu campo de ação, a ST,
externamente coeso com o sistema público de saúde. obrigatoriamente, exige uma abordagem intrassetorial,
As deliberações da II CNST, em 1994, convocavam multiprofissional e transdisciplinar, que envolva todos
o Ministério da Saúde (MS) a assumir efetivamente to- os níveis de atenção e esferas de gestão do SUS, e in-
das as ações em ST e articular a integração dos diversos tersetorial, dos setores da previdência social, trabalho e
serviços municipais, estaduais e federais4. É notório o emprego, ambiente, justiça, educação, ciência e tecnologia
papel histórico do setor saúde na busca de avanços nas e economia e planejamento e com a participação ativa dos
políticas de ST, incluindo a organização de conferências trabalhadores e trabalhadoras, independentemente de
nacionais temáticas, elaboração de documentos e po- seus vínculos formais ou informais, ou de outros formatos
líticas públicas. Porém, esses avanços não asseguraram mais precarizados em curso, a exemplo os trabalhadores
a efetivação da intersetorialidade enquanto prática de e trabalhadoras de delivery.
gestão integrada, que impacte e favoreça melhorias das Nessa perspectiva, é imperativo engendrar novas
condições de trabalho, promoção da saúde-trabalho, formas de organização e mobilizações coletivas. Possi-
prevenção de adoecimentos, consolidação de direitos dos velmente, as frentes amplas e plurais possam ser o farol
trabalhadores ou que assegurem tratamento, reabilitação agregador para capitanear lutas e recompor uma nova
e programas de retorno e permanência no trabalho para ordem social que possibilitem a retomada de um novo
aqueles que já adoeceram5. fazer no campo de ST e, sobretudo, a reconstrução dos
A partir da II CNST, ações conjuntas, intra e interseto- direitos e da proteção social dos trabalhadores e das
riais, são enfatizadas a partir da integração dos Programas trabalhadoras no Brasil.
de ST na estrutura do SUS, por meio da implantação dos

Foto: Mariza Gomes de Almeida/Acervo Cesteh


Cerest/CRST, realizada com participação paritária das
entidades sindicais e organizações populares devendo
ter como pressuposto básico para o seu funcionamento
pleno: participação popular na implantação e no ge-
renciamento; atuação nas cinco áreas básicas previstas:
assistência, vigilância, pesquisa, formação de recursos
humanos e orientação técnica a sindicatos e empresas3.
Nessa conferência, é enfatizada a centralidade do
setor saúde na gestão dessas ações conjuntas. Durante
esse processo, as ações de ST devem ser desenvolvidas
sob a coordenação do SUS, com a integração dos diversos
órgãos nas esferas municipais, estaduais e federal, estabe-
lecendo-se a mudança na prática de vigilância tradicional
e incorporando o controle social.
O Encontro Nacional de Saúde do Trabalhador, em
1999, buscou apontar um modelo estratégico integrali-
144

A Política Nacional de Saúde do Trabalhador


e da Trabalhadora no âmbito
do Sistema Único de Saúde:
trilhas, caminhos, avanços e desafios
Jandira Maciel da Silva
Leticia Coelho da Costa Nobre
Karla Freire Baeta
Jacira Azevedo Cancio

A institucionalização da Saúde do Trabalhador que instituiu a Lista de Doenças Relacionadas ao Tra-


no SUS balho (LDRT).
Entre 1998 e 2000, foi formulado o primeiro
Os primeiros passos para a elaboração da PNSTT documento de proposta de política nacional de ST no
no âmbito do SUS aconteceram no processo da Re- SUS, que foi apresentado e discutido na Câmara de
1. BRASIL. Constituição da forma Sanitária brasileira e de construção da CF/881, Deputados em Brasília, em 2001, tendo sido ‘engave-
República Federativa do Brasil.
1988. Disponível em: http://www. resultando no estabelecimento de direitos dos tra- tado’ pelo MS, sob o argumento de falta de definição
planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/constituicao.htm. Acesso
balhadores. quanto ao financiamento para a sua implantação2.
em: 14 nov. 2020. A Lei Orgânica da Saúde (Leis Federais nº Enquanto não se definia a política pública de ST
2. NOBRE, L. C. C. A política 8.080/1990 e nº 8.142/1990), que trata da organização para o SUS, a área era construída pelos programas
do possível ou a política da
utopia? Rev. bras. Saúde ocup., e funcionamento do SUS e da participação da comu- e centros de referência nos estados. Em 2002, o MS
v. 38, n. 128, p. 179-198, 2013.
Disponível em: http://bvsms. nidade na sua gestão, avança na orientação quanto à publica a Portaria GM/MS nº 1.679, criando a Renast,
saude.gov.br/bvs/periodicos/
RBSO_128.pdf. Acesso em: 16
organização de ações de ST no SUS, na perspectiva posteriormente atualizada pelas portarias GM/MS nº
dez. 2020. da atenção integral. 2.437/2005 e nº 2.728/2009, composta por centros de
3. BRASIL. Ministério da Saúde. Desde então, tendo por base a CF/88 e a Lei referência que passaram a ser habilitados e implanta-
Portaria de consolidação MS/GM
nº 5, de 28 de setembro de 2017. Orgânica da Saúde, no período compreendido entre dos nos estados e municípios.
Consolidação das normas sobre
as ações e os serviços de saúde
1990 e 2012, ano da publicação da PNSTT, foi intenso
do Sistema Único de Saúde.
Diário Oficial da União. 28 Set.
o trabalho de implantação das ações de ST no SUS, A PNSTT
2017. Disponível em: https:// considerando suas diferentes instâncias de gestão, o Em 2008, coordenadores estaduais de ST pres-
portalarquivos2.saude.gov.br/
images/pdf/2018/marco/29/PRC- controle social e a participação dos trabalhadores. sionam para a retomada da elaboração de uma política
5-Portaria-de-Consolida----o-n--
-5--de-28-de-setembro-de-2017.
Visando orientar os estados e os municípios na organi- de ST no âmbito do SUS, para o qual é constituído
pdf. Acesso em: 16 dez. 2020. zação de ações e serviços em ST, a gestão de ST do MS Grupo de Trabalho (GT) com representações estadu-
4. BRASIL. Portaria nº 3120, de
1º de julho de 1998. Instrução
publicou “instrumentos, manuais técnicos, protocolos, ais, sob coordenação da Coordenação de Saúde do
Normativa de Vigilância em orientações para o manejo de doenças relacionadas Trabalhador do MS (Cosat). Em 2010, o GT apresenta
Saúde do Trabalhador no 1998.
Disponível em: http://renaston- ao trabalho, definições quanto às informações em ST, a primeira versão da política em instâncias de gestão e
line.ensp.fiocruz.br/recursos/
portaria-3120-1o-julho-1998.
propostas de indicadores de ST, revisão da listagem controle social; passa por consulta pública; pactuação
Acesso em: 15 dez. 2020. de doenças e agravos relacionados ao trabalho [...]”2. nas instâncias de gestão do SUS – Conselho Nacional
5. BRASIL. Portaria nº 1.823, de Entre 1998-2000, destacam-se as seguintes Por- de Secretários da Saúde (Conass) e Conselho Nacio-
23 de agosto de 2012. Institui a
Política Nacional de Saúde do tarias federais: nº 3.908/1998, que aprovou a Norma nal de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems),
Trabalhador e da Trabalhadora.
Diário Oficial da União, nº 165, Operacional de Saúde do Trabalhador, com objetivo de Comissão Intergestores Tripartite (CIT) –; retorna
Seção I, p. 46-51, 24 Ago. 2012.
orientar estados e municípios para o desenvolvimento para aprovação no CNS; passa pela Procuradoria do
de ações de ST de acordo com os níveis de gestão MS. A proposta incorpora sugestões, é aprimorada
vigentes3; nº 3.120/1998, que aprovou a Instrução e resulta na atual PNSTT, Portaria MS/GM nº 1.823
Normativa de Visat no SUS, que continua vigente, (23/08/2012)5.
sendo um importante marco em relação aos pres- O caminho de elaboração, discussão e publi-
supostos teórico-conceituais e às orientações para o cação da PNSTT, embora longo e demorado, foi um
planejamento de Visat nos territórios4; nº 1.339/1999, processo participativo, que contou com o acúmulo de
145

experiência e construção de diversos atores, ao longo dação no Grupo Técnico de Vigilância em Saúde da
de duas décadas, e resultou em uma política ampla, CIT e análise jurídica do MS. A revogação decorre de
complexa e atual, onde estão pontuados: a lista ser interpretada pelo setor empresarial como
obstáculo ao desenvolvimento econômico do País
[...] princípios, objetivos, diretrizes, estratégias e res-
ponsabilidades institucionais [...] elementos concei- somado ao desconhecimento do papel da ST no SUS.
tuais e práticos que informam a política e permitem Para efetivação da PNSTT, é necessário fortalecer
compreender a ST como integrante do campo da Saúde a Renast, que seja assumida nas três esferas de gestão
Coletiva, pressupostos e princípios éticos da Visat [...] como rede do SUS com características mistas, como
a ST como parte e em articulação com todos os demais rede temática e de serviço e parte integrante da Rede
componentes da rede SUS, participação e controle social,
de Atenção à Saúde (RAS) nos territórios. Como produ-
responsabilidade sanitária de gestores e profissionais de
saúde [...] transversalidade, inter e transdiciplinaridade to de um esforço coletivo entre gestão, representantes
e articulação com as demais políticas do SUS e demais de trabalhadores, instituições de ensino e pesquisa,
setores [...] redução das desigualdades sociais [...] e foi publicada pelo CNS (Resolução nº 603/2018) o
interessa não somente aos trabalhadores e trabalhadoras relatório da Câmara Técnica da CISTT/CNS, que apre-
como a toda a sociedade brasileira6. senta proposta de reorganização da atenção integral 6. BAHIA. Secretaria de
Estado da Saúde. Documento
A PNSTT também prioriza pessoas e grupos em à ST no SUS. Nele se destaca o reconhecimento do sobre a Política Nacional de
Saúde do Trabalhador e da
situação de maior vulnerabilidade, na perspectiva de papel central e estratégico dos Cerest, mas também Trabalhadora, 2014. Disponível
em: http://www.saude.ba.gov.
superar desigualdades sociais e de saúde e de buscar entender que a Renast não se resume aos Cerest, br/wp-content/uploads/2017/08/
Pol%C3%ADtica-Nacional-de-
a equidade na atenção. Nada mais atual, necessário necessitando que os componentes da vigilância em -Saude-do-Trabalhador-PNST.
e desafiador, tendo em vista a presente configuração saúde, bem como as várias instâncias e pontos da RAS, pdf. Acesso em: 10 set. 2020.

do mundo do trabalho no Brasil, caracterizado pela incorporem ações de ST nas suas práticas.
intensificação da superexploração da classe trabalha- Sobre o fortalecimento da Visat e a integração
dora, cada vez mais submetida a relações e condições com os demais componentes da Vigilância em Saúde,
de trabalho precarizadas, escancaradas e agravadas um dos objetivos da PNSTT, destacam-se avanços na
na pandemia. qualificação dos profissionais com oferta de cursos
A PNSTT é uma política contemporânea, com- nas modalidades de especialização, mestrado e outras,
pleta do ponto de vista das suas diretrizes e princí- sobre análise de situação de saúde, vigilância de am-
pios, objetivos e estratégias, cuja implementação nos bientes e processos de trabalho e epidemiologia em ST.
territórios da incorporação de ações na prática dos Em âmbito nacional, foram revisados e produzi-
serviços apresenta potencial significativo na promoção dos instrumentos para orientar as ações de vigilância
da saúde e na melhoria da qualidade de ST. epidemiológica em ST, a exemplo de atualização da
A implementação da PNSTT tem ocorrido de for- portaria que dispõe sobre a inclusão e o preenchimen-
ma bastante heterogênea no Brasil. As características to obrigatório dos campos Classificação Brasileira de
do federalismo brasileiro, em um país de dimensões Ocupações (CBO) e Classificação Nacional de Ativida-
continentais e múltiplas realidades, efetivam a PNSTT des Econômicas (CNAE) nos sistemas de informação
de forma diversificada, em velocidades diferentes e em saúde (Portaria nº 458/2020), importante para a
cenários complexos e múltiplos, experimentando produção de informações sobre o perfil de morbimor-
avanços e recuos, em função dos atores e dos conflitos talidade integrado ao perfil produtivo dos territórios;
que se colocam em determinado espaço sociopolítico. Atlas do Câncer Relacionado ao Trabalho; Protocolo
O avanço de políticas ultraneoliberais, em que de Distúrbio da Voz Relacionada ao Trabalho; Manual
as disputas na arena política se acirram e aprofundam sobre medidas de proteção à saúde dos Agentes de
as inequidades, com predomínio de interesses econô- Combate às Endemias; planos, programas e projetos
micos em detrimento da proteção da saúde, resultam estratégicos de vigilância da saúde de população ex-
na inviabilização harmônica de diretrizes entre áreas posta a agrotóxicos, a amianto, a benzeno; ‘Caderno
governamentais que atuam na ST e na implementação de Atenção Básica nº 41 STT’, entre outros. Ao mesmo
da intersetorialidade prevista na PNSTT. tempo, houve importante produção de orientações
Recente exemplo dessas dificuldades foi a revo- técnicas, manuais, protocolos, portarias, em várias
gação da publicação da LDRT atualizada, cuja revisão localidades, que impulsionaram as práticas de ST.
constitui atribuição da Lei nº 8.080/90). A revisão da A despeito desses investimentos na produção
LDRT, 20 anos após a primeira versão, teve início de ferramentas e processos de educação permanente,
em 2018, com participação de diversos especialistas ainda persistem os desafios para a garantia da integrali-
e atores sociais, passando por consulta pública, vali- dade na atenção à ST, articulação de ações preventivas
146

e curativas, entendimento da ST como transversal, a revestidas de concepções e ideologias que explicitam ou


superação da fragmentação no cuidado de modo que escondem disputas por espaços de poder e defesas de
a relação saúde-trabalho seja identificada em todos os interesses, legítimos ou não.
pontos e instâncias da rede de atenção, que vai além Saúde, trabalho e previdência social são três sujeitos
da assistência. Também persiste o desafio da garantia institucionais e áreas de políticas públicas da maior impor-
da universalidade e equidade com ampliação do aces- tância para toda a sociedade brasileira, e suas relações ao
so às ações de ST para todos(as) formais, informais, longo desses anos precisam ser analisadas considerando
vulneráveis, urbanos, rurais. as concepções sobre o papel do Estado e as políticas
A Visat é, sem dúvida, uma das tarefas mais ricas sociais, que se traduzem em ações e intervenções do
e mais complexas a serem absorvidas pelo SUS. Requer Estado. As políticas ultraneoliberais no País nos anos
a compreensão da sua ação como prática pedagógica, recentes, expressas pela destruição do arcabouço jurídico
sistemática, intersetorial e que incorpora a participação, institucional, extinção de ministérios, reformas trabalhistas
os saberes e a subjetividade dos trabalhadores. As experi- e previdenciárias, desfinanciamento das políticas públicas
ências de Visat desenvolvidas em alguns Cerest somente decorrentes da aprovação da Emenda Constitucional (EC)
poderão ser ampliadas mediante investimento e compro- nº 95/2016, resultaram em enorme perda de direitos,
metimento de técnicos e gestores, por meio de esforços de ampliação das desigualdades sociais, aprofundamento
integração intra e interinstitucional e articulação em redes da precarização do trabalho e da ST.
solidárias de compartilhamento de práticas e saberes. A efetivação de uma política não se faz de um dia
É necessário compreender a centralidade do tra- para outro. É um processo que ocorre com avanços e retro-
balho na vida das pessoas e dos coletivos humanos. cessos, ações e omissões, impactos positivos, dificuldades;
Compreender que as políticas sociais revelam relações enfrentam-se os desafios e se constroem perspectivas para
sociais de dominação, de práticas hegemônicas e con- a sua institucionalização. Para torná-la real nos municípios,
tra-hegemônicas; explicitam e escondem valores e prin- nos territórios, nos ambientes de trabalho e em toda a
cípios, interesses e contradições, que atuam sobre os rede SUS, considera-se muito importante que ela seja
sujeitos históricos, coletivos e singulares e se revelam conhecida, debatida, divulgada e assumida por todos
nas práticas desses sujeitos; nos ambientes de trabalho, que vêm construindo o SUS que queremos e precisamos
nas instituições e serviços. para nossa população. Uma política precisa ser viva, fazer
A despeito de muitos momentos de construção parte dos desejos, das vontades, das necessidades, das
conjunta dessa história, persistem a fragmentação e as perspectivas e dos objetivos dos sujeitos que vêm ao longo
dificuldades de articulação e integração intersetorial entre dos anos construindo experiências concretas, cotidianas,
os entes públicos que deveriam ser parceiros solidários inspirando e dando base às reflexões coletivas da ST nos
nesse processo. Ao invés, ocorrem disputas corporativas, municípios, estados e no País.

Vigilância em Saúde do Trabalhador: alguns


novos e velhos apontamentos
Fátima Sueli Neto Ribeiro
Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro

No Estado autoritário, a vigilância é exercida para pela lógica sócio sanitária vigente. Essa lógica já foi o
restringir ou eliminar direitos dos cidadãos e proteger confinamento e a expulsão de moradores de bairros
o capital. No Estado democrático, a vigilância seria populares para a preservação da saúde na cidade ou
exercida para garantir a proteção e os direitos dos a interiorização de protocolos sanitários no âmago
cidadãos aos parâmetros definidos como saudáveis. das residências via agentes de saúde.
A vigilância em saúde é a expressão máxima de inter- Conceitualmente, a vigilância é um espaço es-
venção do Estado democrático e de direito, no sentido tratégico do Estado que recolhe evidências, analisa,
de garantir a saúde dos cidadãos ainda que enviesada desencadeia, recomenda e avalia ações. Compreende
147

necessariamente uma preconcepção ou um modelo muitos cursos ofertados, os Cerest continuam tratando
(implícito ou explícito) de saúde que, por sua vez, o sindicato como ‘objeto’, e não como ator desse
está carregado de teoria (ou de uma visão do mundo) processo. Reflete, obviamente, a prática assistencial
que se consubstancia em um método para apreensão do SUS. A não inclusão mais orgânica do movimento
da realidade, que é decodificada em evidências bio- sindical se reproduz no não reconhecimento de uma
médicas que se traduzem em adoecimento ou riscos1. Visat diferenciada das demais vigilâncias do SUS. 1. RIBEIRO, F. S. N. Metodolo-
gia Progressiva e Integrada de
Vigilância, nessa perspectiva, representa uma Por sua vez, o movimento sindical espremido Vigilância em Saúde do Traba-
lhador. In: CORREA, M. J. M., et
atividade de reparação em um cenário estático de pela crise de desemprego aberto, diminuição dos al. (Org.). Vigilância em Saúde
produção de riscos e, intencionalmente, não interfere associados, reestruturação produtiva e desregula- do Trabalhador no SUS – Teorias
e Práticas. Belo Horizonte:
nas determinações, nas causas, não reduz a dimensão mentação de direitos comprometeu valiosas experi- Coopmed, 2013. p. 145-177.

dos agravos e não evidencia a apropriação da saúde ências historicamente acumuladas, como o Diesat e 2. BREILH, J. De la vigilancia
convencional al monitoreo parti-
e da vida pelo processo de produção2. o Instituto de Saúde do Trabalhador (INST). Nesse cipativo. Ciênc. Saúde Colet., v.
8, n. 4, p. 937-951, 2003.
A Visat se distingue das vigilâncias e de outras processo de reinventar e enfrentar novos desafios
3. BRASIL. Portaria nº 3120, de
disciplinas do campo da relação trabalho-saúde pela no mundo do trabalho, os movimentos avançaram 1º de julho de 1998. Instrução
delimitação de seu objeto específico na “investigação pouco na proposição de cláusulas de saúde, a ponto Normativa de Vigilância em
Saúde do Trabalhador no 1998.
e intervenção na relação entre o processo de trabalho de tornarem-se repetitivas da legislação ou ausentes. Disponível em: http://renaston-
line.ensp.fiocruz.br/recursos/
e a saúde”3(34) e pela participação, protagonismo e De certa forma, a mudança de estratégia do mo- portaria-3120-1o-julho-1998.
Acesso em: 15 dez. 2020.
envolvimento de atores sociais. Os sujeitos traba- vimento sindical dos anos 1970 passou da posição de
4. PINHEIRO, T. M., et al. Vigi-
lhadores ocupariam um espaço de poder distinto e confrontação com o capital para a postura de conci- lância em Saúde do Trabalhador.
determinante. Entende-se como trabalho os processos liação ou “cooperação conflitiva”6. Culminou com In: BRASIL. 3ª CNST: Trabalhar,
sim! Adoecer, não!. Brasília, DF:
produtivos organizados ou informais, urbanos ou lideranças sindicais assumindo cargos no governo MS, p. 168-173, 2005.

rurais; e por saúde, as mudanças no potencial máximo Lula sem interlocutores que mantivessem o debate 5. MACHADO, J. M. H., et
al. Promoção da saúde e
de vida dos trabalhadores, de seus descendentes e da pela saúde e ao massacre sofrido atualmente. intersetorialidade: a experiência
da vigilância em saúde do
população exposta aos contaminantes oriundos direta Resta, no que se refere à participação dos trabalha- trabalhador na construção de
ou indiretamente do processo de trabalho. dores, incluir o contingente de trabalhadores informais, redes. Epid. serv. saúde, v. 12, n.
3, p. 121-130, 2003.
No cenário brasileiro, as práticas de Visat ini- precarizados, vulnerabilizados, marginalizados e excluídos
6. BOITO JR, A. Hegemonia
ciam-se na década de 1980 com os primeiros Progra- de cidadania e das políticas públicas essenciais à vida. neoliberal e sindicalismo no
Brasil. Crítica Marxista v. 1, n.
mas de ST nos serviços públicos de saúde e ganham, As políticas neoliberais do atual governo brasilei- 3, 1996, p. 80-105. Disponível
em: https://www.ifch.unicamp.br/
posteriormente, um caráter nacional institucional ro ganharam o poder político com franca aliança com criticamarxista/arquivos_biblio-
sistêmico com a criação do SUS. No entanto, apesar o capital financeiro, grupos empresariais, militares, teca/artigo260Art1.6.pdf. Acesso
em: 15 dez. 2020.
de o acúmulo de experiências estarem ocorrendo há juristas e parlamentares ligadas ao agronegócio, à
mais de 30 anos, o foco da Visat ainda se dá no registro indústria bélica e à corporação evangélica. O tripé
de agravos e na intervenção sobre os ‘fatores de risco’ da plataforma política retrógrada, com o aumento
de forma pontual, com ações direcionadas para alguns da violência e a necropolítica, foi impactado, mas
setores da economia e categorias mais mobilizadas não reduzido, pela pandemia. Avançam na abertura
dos trabalhadores4; e, nas últimas décadas, em um da economia nacional ao capital imperialista, priva-
processo de desmobilização visível. tização de empresas e serviços públicos, liberação
A Renast tem respondido de forma insatisfatória inescrupulosa de agrotóxicos e desregulamentação
às dificuldades, especialmente no que tange a instru- das relações de trabalho com pouca ou nenhuma
mentalizar a rede de saúde com métodos e técnicas que resistência de grupos sociais organizados.
coadunem com os princípios da ST, particularmente no A degradação que o capitalismo define para as pes-
tocante a superar as estratégias fiscalizatórias e fomentar soas e o meio ambiente configura desafios para a área
a participação sindical. O pressuposto da integralidade de ST. Do ponto de vista das finalidades ou propósitos
intrasetorial e intersetorial da Visat, transdisciplinar e da atenção à saúde, cabe superar o modelo centrado
transformadora, ainda se constitui em uma utopia5 e na atenção à ‘demanda espontânea’, de atendimento a
sem caminhos definidos. A partir de 2019, esse cenário doentes, para incluir e priorizar ações que estabeleçam
parece ainda mais desafiador com o desmantelamento o ‘Bem Viver’, que representa mais do que promoção
dos ministérios (trabalho e previdência social) e dos da saúde, mas considera a promoção da vida no/do
descaminhos da política ambiental. planeta. Toma como objeto os cenários compostos
A participação dos trabalhadores continua sendo de territórios, problemas de saúde e relações sociais,
a premissa central, básica e fundante para a área. ambientais, emocionais e espirituais, entendidas como
Contudo, mesmo com o financiamento da Renast e construção cultural e histórica.
148

o modelo social-democrata europeu, que mantém os

Foto: Mariza Gomes de Almeida/Acervo Cesteh


moldes da exploração social do trabalho e do ambiente.
O paradoxo deste momento de pandemia denota
que um sistema de saúde único, gratuito e universal é
essencial até para países que se apoiam no modelo li-
beral da saúde. Contrapõe-se, entretanto, à valorização
dos profissionais de saúde que não se expressaram em
melhorias das condições de trabalho, redução da jornada,
equiparação salarial etc. Na prática, o máximo que se
discute é o horizonte da saúde ocupacional que se limita
à necessidade de equipamentos de proteção individual e
culpabilizar o trabalhador pelos seus agravos.
A pandemia desnudou as profundas e estruturais
desigualdades sociais do modelo capitalista de produção
e reprodução social. As tensas e disputadas narrativas
entre a defesa da economia versus a defesa da saúde da
população e dos trabalhadores ocuparam um espaço
central no debate sobre o seu desenrolar. As relações epi-
demia-trabalho-cuidado ficaram muito expostas e nítidas.
Como nos ensina a epidemiologia crítica, a pandemia
não se distribui e atinge a sociedade de forma aleatória,
Uma ação de vigilância não deve se restringir à che- democrática e igualitariamente. Ela guarda relação com
cagem de normas ou mitigação de danos, mas efetivar a classes sociais, raças, gêneros sexuais, posições de governo,
pactuação de ambientes promotores de saúde da família, tipos de sistemas de saúde e de proteção social. Entre os
dos consumidores, das cadeias produtivas e do entorno. trabalhadores mais vulneráveis, estão: desempregados,
O deslocamento da abordagem limitada a agravos, informais, trabalhadores em situação de rua, precarizados,
riscos e insalubridades em cenários promotores de uberizados, profissionais de saúde, de segurança pública
7. ANTUNES, R. O trabalho saúde implica um pacto social e releitura da legislação e de outros serviços considerados essenciais7,8.
sob fogo cruzado. São Paulo:
Boitempo, 2020. e do papel do Estado. Contrasta com o modelo da Uma grande disputa parece estar em cena no pós-
8. SANTOS, B. S. A cruel política neoliberal do Estado mínimo e se refere a uma -pandemia: a volta da chamada (neo)normalidade ou a
pedagogia do vírus. São Paulo:
Boitempo, 2020.
verdadeira mudança civilizatória. possibilidade de uma outra civilização emancipadora.
Nessa lógica, é necessária a incorporação de di- Talvez nem uma coisa nem outra em um cenário próximo.
mensões do modelo produtivo, a temática ambiental, As novidades e as alternativas intensificadas neste perío-
subjetividade, gênero, raça e responsabilidade do traba- do pandêmico, como trabalho intermitente, remoto ou
lho sobre a família, consumidor e entorno, e não apenas trabalho no domicílio, vieram para ficar? Ou ainda pode-
sobre o corpo do trabalhador. Trata-se, portanto, de ríamos pensar que eles deveriam ser tão regulamentados/
discutir e enfrentar os problemas de forma articulada protegidos que sua incorporação se torna proibitiva ou
com a luta pela democracia, a justiça social e o Bem um desincentivo à sua adoção?
Viver da população e do planeta. Um novo ‘sistema’ de apreensão da realidade,
Embora ainda não disponha de procedimentos bem a partir dos problemas vividos e priorizados, vai re-
estabelecidos, a reconstrução da sociedade pós-pandemia querer a construção de cenários além de coeficientes,
de Covid-19 impõe refazer valores, premissas e pactos evidências traduzidas em indicadores, de uma Visat
sociais. Reinventar o SUS é apenas uma dessas tarefas. tradicional e acrítica.
A Visat que parte do modelo fordista de organiza- Se estamos esperançando relações saúde-traba-
ção da produção precisa se atualizar rapidamente para lho-nova-ética-civilizatória, as políticas de saúde devem
enfrentar a estratégia de trabalho uberizado, precarizado e incorporar questões essenciais da nova ética na produção
remoto. Por mais que a terceirização se imponha e a (des) e no desenvolvimento do modo como trabalho/produção
regulamentação do contrato avance, precisam ser enfren- se realiza. A possibilidade de que isso ocorra depende
tadas pela ST em uma lógica distinta da medicalizante, da de níveis sociais complexos que passam da microcons-
‘prevenção’ dos novos efeitos, do progresso que ignora o ciência individual à macroarticulação política das classes
trabalhador e do desenvolvimento baseado na exploração que vivem do trabalho. Contudo, em todos os níveis, os
humana e ambiental. Um novo pacto social deve rever passos para a mudança devem ser dados imediatamente.
149

Desafios e soluções para a ST no SUS na


atualidade, no modelo Renast e Cerest
Adriana Skamvetsakis

[...] uma estranha loucura tomou conta das classes ope- às diferentes formas de inserção no mercado de traba-
rárias nas nações onde reina a civilização capitalista. Esta lho e aos seus diferentes significados e representações
loucura trouxe consigo misérias individuais e sociais
culturais e sociais.
que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta
loucura é o amor pelo trabalho, a paixão agonizante pelo [...] compreender o trabalho como dimensão de cons-
trabalho, levada até o esgotamento da energia vital do tituição de identidade e meio de inserção social, o que
indivíduo e de seus filhos1(143). significa considerar a atividade ocupacional como um 1. DE MASI, D. A economia do
ócio. Rio de Janeiro: Sextante,
domínio que vai além da questão da sobrevivência eco-
A ST, como política temática do SUS, possui nômica, embora isto também seja relevante [...] Nesse
2001.

expressiva transversalidade, cuja visibilidade – embora sentido, o trabalho parece preencher duas funções vitais,
evidente para os atores envolvidos em suas práticas e uma função utilitária e uma função expressiva3(77).
interlocuções – oscila entre a tenuidade, para muitos
Dedicar atenção e tempo para ouvir o usuá-
que ainda a ignoram ou pouco se interessam por
rio-trabalhador e compreender sua história de vida,
seu objeto de estudo, e a distorção, para os que a
incluindo a esfera profissional, representa muito.
refutam ou a consideram antidesenvolvimentista.
Primeiro, por oportunizar a narrativa do trabalhador
Tornar essa transversalidade uma realidade requer,
sobre seu trabalho, sua percepção sobre as tarefas que
preliminarmente, horizontalidade e pertencimento,
desempenha, o esforço e o saber necessário para sua
ou seja, construção e troca de saberes entre técnicos
execução, sobre as condições em que trabalha etc.;
dos diversos pontos da RAS e entre técnicos e usuários.
depois, por oportunizar a inclusão do trabalho e da
ST é uma política do SUS, uma das redes temáticas do
ocupação como importantes no curso dessa história;
SUS, e assim deve identificar-se e inserir-se.
enfim, por permitir considerar o quanto do trabalho
A PNSTT, que se alinha com o conjunto de po-
permeia o processo saúde-doença, vislumbrando
líticas de saúde no âmbito do SUS, está disposta no
possíveis intervenções que extrapolam a terapêutica
Anexo XV da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de
individual/curativa.
setembro de 20172. 2. BRASIL. Ministério da Saúde.
Portaria de Consolidação nº 2,
O campo da ST permanece exigindo esforço de [...] a atividade de trabalho é complexa, tendo em vista de 28 se setembro de 2017.
profissionais de saúde, gestores, academias e usuários que envolve não apenas a execução técnica e opera- Consolidação das normas
sobre as políticas nacionais de
cional de regras e procedimentos, mas também uma
para o que se considera com uma de suas principais saúde do SUS. Diário Oficial da
diversidade de habilidades e competências demandadas União. 3 Out. 2017. Disponível
premissas: identificar e dimensionar o lugar que o pelas situações laborais. [...] situações apresentam-se
em: http://bvsms.saude.gov.
br/bvs/saudelegis/gm/2017/
‘trabalho’ ocupa em nossa sociedade e perceber as cotidianamente aos trabalhadores, como acontecimentos prc0002_03_10_2017.html.
Acesso em: 15 dez. 2020.
influências impostas aos indivíduos e coletividade daí inesperados, panes, incidentes, anomalias de funcio-
3. CRESPO, A. R., et al. (Org.).
decorrentes, a depender de como ele está organizado. namento, incoerência organizacional, imprevistos [...], Atenção à saúde mental do
Como exposto por Nardi e Rminger3(201), há etc. [...] de tal modo que os trabalhadores mobilizam-se trabalhador: sofrimento e trans-
tornos psíquicos relacionados ao
física, cognitiva e emocionalmente [...]. Muitas vezes, o trabalho. Porto Alegre: Evangraf,
[...] a necessidade de uma prática reflexiva, com o pro- fazem às custas de seu bem-estar físico e mental: ado- 2014.
tagonismo dos trabalhadores e a construção de espaços tando posturas desconfortáveis, acelerando ritmos, su-
para a problematização do trabalho, da saúde, essas portando ininterruptamente demandas intelectuais e/
relações de poder/saber presentes no cotidiano dos ou emocionais, submetendo-se a relações de trabalho
serviços de atenção em saúde. hostis, etc.3(77).

[...] o reconhecimento da categoria trabalho como É igualmente desafiador perceber-se como traba-
variável determinante a ser considerada na atenção à lhador e, enquanto profissional da saúde, assumir o
saúde pelas equipes de saúde [...] carece até hoje de ‘olhar’ da ST. Nesse sentido, Paulon3(198) aponta que
mecanismos mais permanentes que lhe deem visibilidade “[...] paradoxalmente, nas organizações de trabalho
e efetiva consideração4(73). que lidam com a Saúde, a dimensão subjetiva das 4. DIAS, E. C., et al. (Org.). ST
na Atenção Primária à Saúde:
Para tanto, impõe-se pensar sobre o trabalho e relações de trabalho é negligenciada, tornando-se in- possibilidades, desafios e
perspectivas. Belo Horizonte:
sua ausência, sobre os limites e liberdades vinculados visível frente à racionalidade do discurso biomédico”. Coopmed, 2013.
150

Para a ST efetivar-se no SUS, é necessário que Sendo os trabalhadores usuários do sistema


equipes de saúde em todos os níveis de atenção es- de saúde, a Renast, criada em 2002, constitui-se em
tejam suficientemente sensíveis e se proponham a principal estratégia para implementação e qualifica-
romper com modelos predominantemente assisten- ção das ações de ST em todos os níveis de atenção
ciais, que exigem quantitativos a serem apresentados do SUS, de forma articulada e integrada aos demais
como produtividade; impõe linhas de cuidado que componentes da vigilância em saúde. Na Renast, o
avançam para além territórios e aproximações com suporte técnico e pedagógico especializado da rede
outros setores e atores. Indo além, necessita que as SUS cabe aos Cerest2.
equipes de saúde se reconheçam como capazes de Na proposta para superar a heterogeneidade na
intervir no curso desse processo, sem parecer que atuação dos Cerest, o CNS publicou a Resolução nº
invadem searas que não lhes pertencem, sem temer 603, em 2018, que aponta:
rótulos indesejáveis; exige enfrentamentos e rupturas.
[...] na perspectiva do matriciamento a todos os pontos
Além disso, em qualquer ponto da rede, ao aten- de atenção da rede de assistência e vigilância; a cons-
der o trabalhador, é importante dar-se conta que “o trução das linhas de cuidado, protocolos e linhas guia,
não reconhecimento da doença do trabalho como tal com definição de fluxos para a assistência e a vigilância;
pode constituir-se em uma fonte adicional de sofrimen- a articulação de ações intersetoriais; a ampliação da
to”3(78), ou seja, muitas vezes, é na esperança desse educação permanente com mudança dos processos
de trabalho e o fortalecimento da participação social,
reconhecimento (da possibilidade de relação com
5. CONSELHO NACIONAL DE incorporando os trabalhadores informais5.
SAÚDE. Resolução nº 603, de o trabalho) que o trabalhador-usuário busca o SUS,
08 de novembro de 2018. Aprova
o relatório da Câmara Técnica geralmente após ele ter sido negado anteriormente. “O baixíssimo número de CISTT implantadas até
da CISTT/CNS, que apresenta Considerando que, “além da sobrevivência, esses hoje nos conselhos municipais de saúde reflete a invi-
proposta de reorganização da
Atenção Integral à Saúde dos trabalhadores procuram no trabalho a construção de sibilidade da Política de ST na agenda dos conselhos
trabalhadores no SUS com o
objetivo de desenvolver um novo uma identidade”3(234), esse pode ser um caminho de e gestores de saúde em todo o país”5 e aponta para
modelo de organização dos
Cerest com vistas à correção compreensão e desculpabilização pelo adoecimento. uma (re)construção necessária da participação social
das assimetrias existentes entre Além dos conflitos históricos da interlocução no SUS e na ST. Esta se torna ainda mais relevante
as diversas regiões e em atendi-
mento às realidades locais. Dis- entre saúde e trabalho, muitos outros desafios da ST diante da ampliação da fragilização e precarização das
ponível em: http://www.conselho.
saude.gov.br/resolucoes/2018/ poderiam ser enumerados. A adoção de um modelo relações de trabalho no Brasil, refletindo-se em um
Reso603-Publicada.pdf. Acesso
em: 15 dez. 2020. de atenção à saúde não hegemônico, que integra grande número de trabalhadores ao mesmo tempo
promoção em saúde, vigilância em saúde e assistência mais expostos a condições inadequadas e desprote-
e busca articulação dentro e para além da rede SUS, gidas de trabalho e menos inseridos em organizações
dialogando com outros setores, instituições e com o representativas.
controle social, provoca, ao mesmo tempo, encanto Cabe ao SUS, na atuação dos serviços de saúde,
e repulsa. Encanto pelas múltiplas potencialidades do especialmente os Cerest pelo seu papel articulador,
‘fazer’ oportunizadas aos trabalhadores da saúde, via- e na atuação do controle social, ampliar o acesso
bilizando intervenções em todos os níveis da atenção ao cuidado e à participação destes trabalhadores na
à saúde e completude da integralidade; também pela superação das lacunas da PNSTT, bem como a comu-
eleição da vigilância em saúde como ação prioritária; nicação e a informação em saúde.
pelo trabalho multidisciplinar e com participação so- Para isso, é necessário manter no horizonte que
cial; pelas diversas temáticas transversais abarcadas na “seus marcos referenciais são os da Saúde Coletiva,
6. GOMEZ, C. M., et al. área; pela interface com outras áreas do conhecimen- ou seja, a promoção, a prevenção e a vigilância”6 e
Saúde do trabalhador: aspectos
históricos, avanços e desafios to, como sociologia, direito, trabalho, comunicação superar “a insensibilidade de agentes públicos para
no SUS. Ciênc. Saúde Colet.,
v. 23, n. 6, p. 1963-1970. Dispo- social, pedagogia; entre outras. Repulsa talvez pelos com a missão do SUS de proteger, promover a saúde
nível em: http://www.scielo.br/
mesmos motivos e pelo trabalho constantemente e prevenir os danos à saúde do trabalhador [...]”6.
scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S1413-81232018000601963 em construção e reinvenção, pela grande magnitude No contexto atual, inclui a luta por ampliação do
&lng=en&nrm=iso. Acesso em:
17 dez. 2020. ‘do que há para fazer’, pela sombra da impotência e financiamento do SUS, fortemente prejudicado pelas
da frustração. Tais características, mesmo não sendo mudanças nas regras de gastos do governo federal,
exclusivas da ST, a representam significativamente. com redução e congelamento do orçamento do SUS.
Para a ST frutificar no SUS, é preciso (re)estabele- Ademais, inclui reinventar-se e ousar. Acolher e
cer diálogos entre técnicos e usuários, entre assistência dialogar. Refazer. Criar canais, utilizar tecnologias
e vigilância, entre atenção primária e especializada, e meios de comunicação para aproximação entre
entre gestão e movimentos sociais e tolerar uma atu- serviços e fortalecimento da RAS e para novas
ação técnica de efeitos infrequentemente imediatos. formas de cuidado, produzir materiais técnicos
151

de fácil acesso, disponibilizando em formato aplicáveis e reprodutíveis, seguindo as diretrizes


eletrônico. Criar e fortalecer parcerias interins- da PNSTT e os princípios do SUS. Ouvir. Reco-
titucionais, envolvendo universidades e outras mendar. Vigiar. Repetir. Aproximar-se de usuários
instituições de ensino, associações e organizações e gestores. Elaborar projetos e trocar experiências
de trabalhadores, outros órgãos governamentais. e saberes. Dar visibilidade aos feitos e às lacunas.
Construir estratégias locais conjuntas, que sejam E resistir. E lutar.

Controle e participação social: a atuação da


Câmara Técnica de Saúde do Trabalhador e da
Trabalhadora
Olga Rios
Eduardo Bonfim da Silva
Geordeci Souza

1. CONSELHO NACIONAL
A Câmera Técnica (CT) de STT da CISTT/CNS Discutir um novo modelo de organização dos Ce- DE SAÚDE. Resolução nº 555,
de 15 de Setembro de 2017.
foi aprovada pela Resolução do CNS nº 5551, de 15 rest a partir do processo de revisão do modelo de Disponível em: http://conselho.
de setembro de 2017, sob coordenação da CISTT regionalização em saúde em discussão nos estados saude.gov.br/resolucoes/2017/
Reso555.pdf. Acesso em: 15
nacional. Foi composta por 5 representantes de Cerest e no âmbito da CIT; e com vistas à correção das dez. 2020.

estaduais, sendo 1 por região; 3 representantes das assimetrias existentes entre as diversas regiões e 2. BRASIL. Lei nº 13.249, de
13 de Janeiro de 2016. Institui o
CISTT estaduais; 3 representantes das CISTT munici- em atendimento às realidades locais. Plano Plurianual da União para
o período de 2016 a 2019. Diário
pais; 9 representantes CISTT nacional, da Secretaria O documento resultante do trabalho da CT- Oficial da União. 23 Jan. 2016.
de Vigilância em Saúde (SVS) e da comunidade aca- -CISTT/CNS foi publicado pela Resolução do CNS de Disponível em: http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
dêmica, totalizando 20 pessoas. nº 6033, de 8 de novembro de 2013, cabendo destacar 2018/2016/Lei/L13249.htm.
Acesso em: 15 dez. 2020.
A convocação se deu para atender à exigên- alguns pontos:
3. CONSELHO NACIONAL
cia prevista no Plano Plurianual2 2016-2019 e às I – Constituição de Referências Técnicas (RF) DE SAÚDE. Resolução nº 603,
de 8 de Novembro de 2018.
resoluções aprovadas na IV CNSTT, que atribuiu em STT, considerando a população do município, sua Disponível em: http://conselho.
ao MS a meta de assegurar 100% das regiões de capacidade técnica instalada, seu perfil produtivo e saude.gov.br/resolucoes/2018/
Reso603-Publicada.pdf. Acesso
saúde com cobertura de pelo menos um Cerest; epidemiológico. Disposição tabela 11-3. em: 15 dez. 2020.

Tabela 1. Proposta de organização da referência técnica municipal em saúde do trabalhador e da trabalhadora, segundo a faixa populacional
dos municípios brasileiros

Organização da Referência Técnica, Núcleo, Coordenação ou


Gerência M unicipal de ST
Total de % Total % Município que não é sede Município que é sede Capital sede de
Faixa populacional municípios municípios população população de Cerest regional de Cerest regional Cerest municipal
Até 20.000 3.808 68,37 32.069,038 15,38 1 RF que não é exclusiva
da ST
20.001 a 50.000 1.096 19,67 33.391.579 16,02 1 RF exclusiva da STT
50.001 a 100.000 349 6,26 24.092.359 11,55 Núcleo de ST, com, no
mínimo, 2 RT exclusivas
da STT
100.001 a 500.000 265 4,76 51.491.088 24,69 Coordenação municipal No mínimo 1 RF exclusi-
de ST composta por no va da STT
mínimo 3 técnicos
152

Organização da Referência Técnica, Núcleo, Coordenação ou


Gerência M unicipal de ST
Total de % Total % Município que não é sede Município que é sede Capital sede de
Faixa populacional municípios municípios população população de Cerest regional de Cerest regional Cerest municipal
500.001 a 1.000.000 22 0,39 14.047.397 6,74 Coordenação municipal
de STT composta por no
mínimo 2 técnicos
Maior que 1.000.000 3 0,05 3.637.680 1,74 Gerência municipal de
STT composta por no
mínimo 3 técnicos mais
um por distrito sanitário
Não se aplica (são 27 0,48 49.724.699 23,85 No mínimo 1 RF
as 27 capitais dos exclusiva da STT
estados brasileiros)
Total 5.570 100 208.494.900 100
Fonte: Estimativas da população residente nos municípios brasileiros, segundo a faixa populacional. IBGE, julho/20184.

4. INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. II – Modificação dos Cerest regionais em cidades da população trabalhadora do entorno.
Estimativas da População. 2018.
Disponível em: https://www. municipais nas capitais dos estados e no Distrito III – Implantação de Cerest municipais a cada
ibge.gov.br/estatisticas/sociais/
populacao/9103-estimativas-de-
Federal. Devendo garantir a habilitação de um 2 milhões de habitantes, conforme disposto na
-populacao.html?=&t=o-que-e. Cerest regional metropolitano para atender às tabela 2.
Acesso em: 15 dez. 2020

Tabela 2. Dimensionamento do número de Cerest Municipais nas capitais do País

Dimensionamento Total Cerest


Nº Habitantes Cerest Municipal Capitais Municipal
Curitiba, Recife, Porto Alegre, Goiânia, Belém, São Luís,
Maceió, Natal, Campo Grande, Teresina, João Pessoa,
Até 2.000.000 1 20
Aracaju, Cuiabá, Porto Velho, Florianópolis, Macapá, Rio
Branco, Vitória, Boa Vista, Palmas
De 2.000.001 a 4.000.000 2 Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Manaus 8
De 4.000.001 a 6.000.000 3 - -
De 6000.001 a 8.000.000 4 Rio de Janeiro 4
De 8.000.001 a
5 - -
10.000.000
De 10.000.001 a
6 - -
12.000.000
De 12.000.000 a
7 São Paulo 7
14.000.000
Total - - 39
5. INSTITUTO BRASILEIRO DE Fonte: População das capitais, IBGE, 2017 .
5
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
Nota: Considerando a especificidade do Distrito Federal, os 2 Cerest Municipais definidos para a capital Brasília serão realocados como Cerest Regionais.
Estimativas da População. 2017.
Disponível em: https://www.
ibge.gov.br/estatisticas/sociais/
populacao/9103-estimativas-de-
-populacao.html?=&t=o-que-e.
Acesso em: 15 dez. 2020.
IV – Considerar o controle social como premissa e intersetoriais, para além das instâncias do
básica do SUS de grande relevância na PNSTT. SUS, com estruturas organizativas formais ou
– A efetivação do controle social na STT não não, como: rodas de conversas, observatórios,
se dá apenas por meio dos espaços institu- câmaras técnicas, comitês, comissões, grupos
cionalizados. de trabalho, conselhos de gestão participativa,
– Imprescindível a ampliação, por meio de fóruns, entre outros.
mecanismos de articulação e pactuação intra – A ‘efetivação do controle social na STT’ não
153

se dá apenas por meio dos espaços institu- SUS, com estruturas organizativas formais ou
cionalizados. não, como: rodas de conversas, observatórios,
– ‘Imprescindível a ampliação’, por meio de câmaras técnicas, comitês, comissões, grupos
mecanismos de articulação e pactuação intra de trabalho, conselhos de gestão participativa,
e intersetoriais, para além das instâncias do fóruns, entre outros.

Tabela 3. Dimensionamento do número de Cerest (estaduais, municipais e regionais) por estado da Federação

Nº Cerest atuais Nº Cerest necessários


Nº Regiões Cerest Cerest Cerest Cerest Cerest
Região / Estado de Saúde Estaduais Regionais Total Estaduais Municipais Regionais Total
Norte 45 7 15 22 7 8 45 60
Acre 3 1 0 1 1 1 3 5
Amapá 3 1 1 2 1 1 3 5
Amazonas 9 1 3 4 1 2 9 12
Pará 13 1 6 7 1 1 13 15
Rondônia 7 1 2 3 1 1 7 9
Roraima 2 1 2 3 1 1 2 4
Tocantins 8 1 1 2 1 1 8 10
Nordeste 133 9 51 60 9 11 133 152
Alagoas 10 1 3 4 1 1 10 12
Bahia 28 1 15 16 1 2 28 31
Ceará 22 1 8 9 1 2 22 25
Maranhão 19 1 4 5 1 1 19 21
Paraíba 16 1 3 4 1 1 15 17
Pernambuco 12 1 8 9 1 1 12 14
Piauí 11 1 4 5 1 1 11 13
Sergipe 7 1 3 4 1 1 7 9
Rio Grande do Norte 8 1 3 4 1 1 7 9
Centro-Oeste 39 4 15 19 4 3 39 47
Distrito Federal 1 1 2 3 1 0 2 3
Goiás 18 1 6 7 1 1 18 20
Mato Grosso 16 1 4 5 1 1 16 18
Mato Grosso do Sul 4 1 3 4 1 1 4 6
Sudeste 153 4 78 82 4 14 153 171
Espírito Santo 4 1 3 4 1 1 4 6
Minas Gerais 77 1 19 20 1 2 77 80
Rio de Janeiro 9 1 15 16 1 4 9 14
São Paulo 63 1 41 42 1 7 63 71
Sul 68 3 27 30 3 3 68 60
Paraná 22 1 9 10 1 1 22 24
Rio Grande do Sul 30 1 12 13 1 1 30 32
Santa Catarina 16 1 6 7 1 1 16 18
Total 438 27 186 213 27 39 438 504
Nota: Considerando a especificidade do Distrito Federal, os dois Cerest Municipais definidos para a capital Brasília serão realocados como Cerest Regionais.
154

V – Composição da equipe técnica e gerencial atribuições previstas e ações a serem realizadas


dos Cerest, considerando o dimensionamento em cada âmbito de atuação. A tabela 4 apresenta
da população geral e trabalhadora, perfil pro- a configuração e o dimensionamento mínimos a
dutivo e epidemiológico da região de saúde, as serem observados.

Tabela 4. Equipe mínima para composição dos Cerest Estaduais, Regionais e Municipais, quantitativo e formação

Nível de formação Nº / Formação Cerest Estadual Cerest Regional Cerest Municipal


Profissionais / técnicos Nº Total 15 10 10
NM e NS
Profissionais de NM Nº mínimo 5 4 4
Formação Técnico de segurança do trabalho, Técnico de segurança do trabalho, Técnico de segurança do trabalho,
Técnico de gestão ambiental, Técnico de gestão ambiental, Técnico de gestão ambiental,
Técnico em vigilância em saúde, Técnico em vigilância em saúde, Técnico em vigilância em saúde,
Técnico de enfermagem e ou Técnico de enfermagem e ou Técnico de enfermagem e ou
Técnico agrícola/agroecologia Técnico agrícola/agroecologia Técnico agro/agroecologia
Profissionais de NS Nº mínimo 10 6 6
Formação 1 médico (carga horária mínima de 1 médico (carga horária mínima de 1 médico (carga horária mínima de
obrigatória 20 horas semanais); 1 enfermeiro; 20 horas semanais); 1 enfermeiro; 20 horas semanais); 1 enfermeiro;
1 assistente social (30 a 40 horas 1 assistente social (30 a 40 horas 1 assistente social (30 a 40 horas
semanais) semanais) semanais)
Outras formações Biologia, Biomedicina, Enferma- Biologia, Biomedicina, Enferma- Biologia, Biomedicina, Enferma-
gem, Farmácia, Fisioterapia, Fo- gem, Farmácia, Fisioterapia, Fo- gem, Farmácia, Fisioterapia, Fo-
noaudiologia, Medicina, Nutrição, noaudiologia, Medicina, Nutrição, noaudiologia, Medicina, Nutrição,
Odontologia, Psicologia, Química, Odontologia, Psicologia, Química, Odontologia, Psicologia, Química,
Serviço Social, Terapia Ocupacio- Serviço Social, Terapia Ocupacio- Serviço Social, Terapia Ocupacio-
nal, Veterinária, Administração, nal, Veterinária, Administração, nal, Veterinária, Administração,
Arquitetura, Ciências Sociais, Arquitetura, Ciências Sociais, Arquitetura, Ciências Sociais,
Comunicação, Direito, Educa- Comunicação, Direito, Educação, Comunicação, Direito, Educação,
ção, Engenharia e Estatística e Engenharia e Estatística e Informa- Engenharia e Estatística e Informa-
Informação ção. ção.
Experiência em Saúde do Trabalhador e formação em nível de pós-graduação em Saúde Coletiva e Forma-
ção em nível de graduação ou pós-graduação como Sanitarista

Figura 1.

Nas questões de revisão do


Articulação da ação
financiamento, compartilhado
governamental, superando a
entre os entes e para as Revisão da portaria atual da
fragmentação das ações de
diferentes ações – de Renast, em conjunto com
assistência e de vigilância. É
assistência, de média e alta representações da CIT e da
fundamental a incorporação de
complexidade; na atenção CISTT/CNS.
ações de Saúde do Trabalhador
básica; de vigilância em saúde;
nos códigos sanitários dos
na educação permanente, entre
estados e municípios.
outras.

Considerações finais a promulgação da Lei nº 8.080/90 essas ações ainda


Ao longo da história da Renast, a Rede passou são pontuais e desassociadas no cotidiano da rede
por diversas modificações, portanto, é preciso via- de serviços do SUS.
bilizar e qualificar o processo de implementação da O resultado do trabalho da CT-CISTT/CNS aponta
PNSTT no SUS, uma vez que mais de 30 anos após critérios e estratégias para a reorganização da Renast.
155

Estabelece, ainda, responsabilidades dos gestores e Para viabilização das preposições aprovadas pela
equipes técnicas de saúde nas três esferas da federa- Resolução CNS nº 603/20186, é necessário aprofunda- 6. CONSELHO NACIONAL
DE SAÚDE. Resolução nº 603,
ção com vistas à implementação da PNSTT no País, mento, debates e pactuações, destacando-se: de 8 de novembro de 2018.
Disponível em: https://conselho.
considerando o contexto do processo de revisão e Foi aprovado pelos conselheiros nacionais na saude.gov.br/resolucoes/2018/
Reso603-Publicada.pdf. Acesso
pactuação da regionalização em curso6. Trecentésima Décima Primeira Reunião Ordinária, em: 16 dez. 2020.
Vale ressaltar que a atenção integral à STT re- realizada nos dias 7 e 8 de novembro de 2018, o
quer e deve estar em sintonia com o modelo de seguinte encaminhamento: que seja estabelecido um
atenção do SUS, evitando-se qualquer ação em pa- processo de discussão e pactuação com os gestores no
ralelo, incorporando a vasta experiência acumulada âmbito da CIT e o MS de modo a viabilizar estratégias
ao longo desses anos. de implantação progressiva desta proposta.

Saúde dos Trabalhadores e Trabalhadoras


pós-Covid-19
Maria Maeno
José Carlos do Carmo
Cristiane Queiroz Barbeiro Lima

A ausência de uma política efetiva, integrada informações identificando os trabalhadores informais,


e intersetorial, que propicie ações continuadas que um recurso precioso possibilitado por anos de atu-
traduzam a ampla compreensão de que o trabalho é ação da APS, particularmente por meio dos Agentes 1. PINA, R. Como frigoríficos
propagaram o coronavírus em
parte dos determinantes de saúde e de doença, fez-se Comunitários de Saúde (ACS), é o mapeamento das pequenas cidades do país. El
sentir de maneira gritante no caso da Covid-19. Os atividades informais de trabalho existentes em espaços Pais, 29 jun 2020. Disponível
em: https://brasil.elpais.com/
locais e ramos econômicos nos quais foi possível coletivos e domiciliares, espalhados nos territórios brasil/2020-06-29/como-frigorifi-
cos-propagaram-o-coronavirus-
desenvolver ações com maior peso foram aqueles em de atuação das equipes de saúde da família. Esse -em-pequenas-cidades-do-pais.
html. Acesso em: 15 dez. 2020.
que já havia previamente um trabalho conjunto de di- mapeamento sistematizado possibilita as orientações
2. MARTINS, J. S. Frigoríficos
ferentes instituições, como é a atuação nos frigoríficos. de prevenção da Covid-19, a localização das pessoas e covid-19 no Rio Grande do
O trabalho integrado entre agentes públicos, como o que não conseguem acesso a direitos como o auxílio Sul. UFRGS, 18 de maio de
2020. Disponível em: https://
Ministério Público do Trabalho, a auditoria fiscal do emergencial de modo a ajudá-las, a distribuição de www.ufrgs.br/coronavirus/base/
artigo-frigorificos-e-covid-19-no-
trabalho e o SUS, com participação do movimento cestas de alimentos e produtos de higiene e limpeza. -rio-grande-do-sul/. Acesso em:
04 abr. 2020.
sindical, revelou um alto número de casos nas em- Para o desenvolvimento dessas ações, deve-se oferecer
3. ROCHA, C. Por que os
presas do ramo, o que resultou em ações preventivas aos trabalhadores da saúde orientações e treinamento frigoríficos são foco de disse-
e processos judiciais, com repercussões na mídia1-4. abrangentes, condições seguras para a realização do minação do coronavírus. Nexo,
15 de maio de 2020. Disponível
Na maior parte do País, no entanto, desarticu- seu trabalho, apoio psicológico, além do aumento em: https://www.nexojornal.
com.br/expresso/2020/05/15/
lado, esvaziado e desprestigiado pelas autoridades de contingente. Por-que-os-frigor%C3%ADficos-
-s%C3%A3o-foco-de-dissemi-
públicas, o sistema de vigilância nas esferas muni- Subsidiado por sistemas de informação inte- na%C3%A7%C3%A3o-do-coro-
cipais, estaduais e federal não atende à necessidade grados, o poder público teria todas as condições de nav%C3%ADrus. Acesso em: 04
abr. 2020.
de integração intersetorial para o controle da doença obter dados para planejar suas intervenções, como,
4. MANO, A. Como a Covid-19
entre os trabalhadores que foram obrigados a traba- por exemplo, sobre as trajetórias habituais dos tra- varreu instalações brasileiras
da JBS, maior produtora de
lhar fora de seus domicílios. Com a capilaridade do balhadores e o tempo dispendido no transporte, no carne do mundo. Reuters, 08 de
SUS, teria sido de crucial importância que a Atenção espaço municipal e intermunicipal, que permitisse setembro de 2020. Disponível
em: https://br.reuters.com/article/
Primária à Saúde (APS), desde o início da pandemia, uma análise da mobilidade das pessoas e sua relação topNews/idBRKBN25Z1VL-OBR-
TP. Acesso em: 12 set. 2020.
fosse orientada contundentemente a realizar as ações com óbitos por Covid-19, a partir de dados do Sistema
5. CERIONI, C. Transporte
de orientação e detecção precoce dos adoecimentos de Informação sobre Mortalidade (SIM)5 sobre os público tem mais influência nas
mortes por covid-19 em SP.
pelo Sars-CoV-2, com encaminhamento adequado às riscos laborais com a utilização de bancos de dados Exame, 10 ago 2020. Disponível
unidades de saúde, mantendo os cuidados às pessoas das empresas já existentes, complementados por ins- em: https://exame.com/brasil/
transporte-publico-tem-mais-
com agravos crônicos e às pessoas em situação de rua. peções e fiscalizações dos locais de trabalho. As fichas -influencia-nas-mortes-por-co-
vid-19-em-sp/. Acesso em: 04
Afora os bancos de dados que dificilmente captam de registro de casos de Covid-19 dos atendimentos nos abr. 2020.
156

6. BRASIL. Decreto nº 10.282,


de 20 de março de 2020.
serviços de saúde seriam de suma importância para a videnciária7, o que traz prejuízos para os segurados
Regulamenta a Lei nº 13.979, vigilância de locais de trabalho, se tivessem campos que têm seus proventos mensais acima desse limite.
de 06/02/2020, para definir os
serviços públicos e as atividades de ocupação, empresa e ramo econômico. De feve- Aos requerentes de benefício de prestação con-
essenciais. Diário Oficial da
União. 20 Mar. 2020. Disponível reiro a agosto, é possível identificar apenas os casos tinuada8, o INSS tem antecipado o valor de R$ 600,00
em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2019-2022/2020/
de profissionais das áreas de saúde e de segurança. durante o período de 3 meses9, quando o valor devido
decreto/D10282.htm. Acesso em: A partir de agosto, é possível ter a informação sobre seria um salário mínimo8.
15 dez. 2020.
a ocupação do paciente, mas não sobre os locais de O que se deduz desse cenário sinteticamente
7. BRASIL. Lei nº 8.213, de 24
de julho de 1991. Dispõe sobre trabalho. Além do desafio de poder contar com a traçado é que a pandemia chegou ao Brasil em um mo-
os Planos de Benefícios da
Previdência Social e dá outras completude de preenchimento dessas fichas, dados mento em que o governo federal e diversos governos
providências. Diário Oficial da
União. 25 Jul. 1991. Disponível
sobre a ocupação sem a devida correspondência das estaduais e municipais explicitamente fizeram opção
em: http://www.planalto.gov.br/ informações sobre as empresas limitam o planejamen- para que o Estado encolhesse e as políticas públicas
ccivil_03/leis/l8213cons.htm.
Acesso em: 15 dez. 2020. to de vigilância dos ambientes de trabalho pelo SUS. nas áreas sociais fossem minimizadas ao extremo.
8. BRASIL. Lei nº 8.742, de Há insuficiência e heterogeneidade da inter- Por outro lado, contra projeções mais pessimistas,
07 de dezembro de 1993.
Dispõe sobre a organização da
venção do poder público nos locais e processos de na maioria das regiões do País, o SUS conseguiu acolher
Assistência Social e dá outras
providências. Diário Oficial da
trabalho na contenção da disseminação do vírus. Os os que necessitaram e necessitam de leitos hospitalares
União. 8 Dez. 1993. Disponível shoppings centers e supermercados mereceram mais e de terapia intensiva, fruto de um sistema de saúde
em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l8742.htm. Acesso cuidados, mas o comércio de rua, principalmente em combalido, mas ainda presente em todo o território na-
em: 15 dez. 2020.
regiões periféricas, retrata uma situação de temerida- cional; e do esforço enorme de seus profissionais e de
9. BRASIL. Lei nº 13.982, de
02 abril de 2020. Altera a Lei nº
de, com aglomerações de pessoas, frequentemente organizações sociais e populares. É inquestionável que
8.742, de 07/12/1993, para dis-
por sobre parâmetros adicionais
sem o uso de qualquer aparato pessoal que ajude a a tragédia sanitária seria ainda muitíssimo maior se não
de caracterização da situação conter a transmissão. Empresas de transporte cole- fosse a garantia da saúde um direito dos cidadãos e o seu
de vulnerabilidade social para
fins de elegibilidade ao Bene- tivo agiram heterogeneamente, sendo que algumas provimento, uma obrigação do Estado.
fício de Prestação Continuada
(BPC), e estabelece medidas
poucas providenciaram dispositivos que separassem A modalidade do teletrabalho, regulamentada
excepcionais de proteção social
a serem adotadas durante o
os motoristas e cobradores dos passageiros; uma boa em 201710, deverá ser implementada em larga esca-
período de enfrentamento da parte delegou a esses trabalhadores a fiscalização la, mediante contratos individuais sem controle da
emergência de saúde pública de
importância internacional decor- dos passageiros no uso das máscaras. Mais do que jornada de trabalho, com exigências por resultados
rente do coronavírus (Covid-19)
responsável pelo surto de 2019,
as barreiras físicas representadas pelas paredes, o como forma de gestão e, no geral, sem o provimento
a que se refere a Lei nº 13.979,
de 06/02/2020. Diário Oficial da
que efetivamente impede o pleno cumprimento do de condições e equipamentos adequados. Muitos
União. 2 Abr. 2020. Disponível papel da vigilância são as limitações decorrentes do empregadores, por conta do preconceito e para fu-
em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2019-2022/2020/ enfraquecimento das políticas públicas em defesa da girem da obrigação legal de investir na melhoria das
lei/l13982.htm#:~:text=Altera%20
a%20Lei%20n%C2%BA%20
saúde dos trabalhadores. condições de acessibilidade, obrigarão trabalhadores
8.742,durante%20o%20
per%C3%ADodo%20de%20
Nesse contexto, em que a garantia de sobrevi- com deficiência a – não por opção, mas por imposi-
enfrentamento. Acesso em: 15 vência é um dos elementos centrais para que se possa ção – terem que desenvolver suas atividades dentro
dez. 2020.
efetivar a única proteção real contra o Sars-CoV-2, que dos seus domicílios, o que significará um grande
10. BRASIL. Lei nº 13.467,
de 13 de julho de 2017. Altera é o distanciamento físico, duas decisões inexplicáveis retrocesso na luta pela sua inclusão social. Variantes
a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), aprovada pelo
têm diminuído a proteção do segurado do Instituto desse processo de precarização são previstas, também,
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de Nacional de Seguro Social (INSS) que necessita de com a proliferação de autônomos e pessoas jurídicas,
maio de 1943, e as Leis nºs
6.019, de 03/01/1974, 8.036, afastamento do trabalho por mais de 15 dias por excluídas dos contratos empregador-empregado, re-
de 11/05/1990, e 8.212, de
24/07/1991, a fim de adequar incapacidade resultante de um acidente ou doença: lação que comporta direitos trabalhistas como férias,
a legislação às novas relações
de trabalho. Diário Oficial da
a) o INSS não efetivou a perícia médica presencial por décimo terceiro e recolhimento do fundo de garantia.
União. 14 Jul. 2017. Disponível mais de 5 meses, embora esta faça parte das atividades Os direitos previdenciários serão precarizados, dadas
em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2017/ essenciais segundo decreto federal6; dessa forma, as dificuldades de que as contribuições individuais
lei/l13467.htm . Acesso em: 15
dez. 2020. nenhum agravo à saúde está sendo analisado quanto sejam efetuadas de forma permanente e regular.
à sua natureza ocupacional, o que implica subtração Licenças-maternidade, aposentadorias nas diversas
de direitos, como inexistência de carência, recolhi- espécies, auxílios-doença por incapacidade laboral e
mento de fundo de garantia durante o afastamento, auxílios-acidente podem ser direitos restritos a uma
estabilidade de 12 meses após o retorno ao trabalho população cada vez menor.
e impossibilidade de receber auxílio-acidente no caso Trabalhadores demandados por aplicativos serão
de sequelas; b) o INSS tem antecipado um salário mais numerosos e mais variados, entre os quais, entrega-
mínimo aos requerentes do auxílio-doença, por 3 dores, motoristas, professores, profissionais de saúde, do
meses, e não está concedendo o benefício referido direito, de limpeza, de cuidados pessoais, de manutenção,
no valor correspondente devido, segundo a lei pre- de tecnologia da informação. A própria necessidade e a
157

insegurança serão os algozes a fazê-los buscar e trabalhar mentos ao modo de trabalhar ou que tenham como 11. ANTUNES, R. O privilégio da
servidão: o novo proletariado de
cada vez mais em condições tão desvantajosas. uma atribuição a observação, ou ao menos orientação, serviços na era digital. São Paulo:
Boitempo, 2018.
São processos que precarizam a vida social e referente aos reais determinantes da ocorrência de
12. CONSELHO FEDERAL DE
assujeitam as pessoas de maneira que a servidão será acidentes e doenças. Pelo contrário, o ocultamento ENFERMAGEM. Resolução nº
2.183, de 21 de maio de 2018.
um privilégio, como analisa Antunes11 em sua obra dos agravos conta, muitas vezes, com o aval técnico- Diário Oficial da União, Brasília, DF,
multifacetária. -científico dos planos privados de saúde, juntamente 21 Set. 2018. Disponível em: http://
www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-
Qual é a resistência possível e o avanço que com os serviços de segurança e medicina do trabalho no-567-2018_60340.html. Acesso
em: 15 dez. 2020.
devemos buscar no campo da ST? das empresas. Seus técnicos são colocados a serviço
13. VILELA, R. A. G., et al. Da
A diminuição das desigualdades sociais, incluin- do capital, em detrimento da defesa da saúde dos vigilância para prevenção de
acidentes de trabalho: contribuição
do as existentes nas relações de trabalho, tem profun- trabalhadores. Emblemática nesse sentido foi a reso- da ergonomia da atividade. Ciênc.
da ligação com o pleno restabelecimento do estado lução do Conselho Federal de Medicina (CFM, 2018, Saúde Colet., v. 17, n.10, p. 2817-
30, 2012. Disponível em: https://
democrático de direito. art. 9)12 que liberava o médico do trabalho a utilizar www.scielo.br/pdf/csc/v17n10/29.
pdf. Acesso em: 05 set. 2020.
A submissão dos trabalhadores a situações de dados do prontuário do trabalhador para contestar
exploração ainda mais diversificadas implicará um o nexo causal de agravos com o trabalho no INSS, na
aprofundamento do não atendimento de necessidades defesa da empresa.
básicas de cidadania.

Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas


A luta por uma sociedade menos desigual é
central para o trabalhador, e o papel dos sindicatos,
estejam os trabalhadores em suas casas, nas ruas, nos
espaços rurais ou no interior dos estabelecimentos,
é de fundamental importância para que não se perca
a dimensão de coletivo. Os meios de comunicação e
a tecnologia devem ser utilizados para que os laços
se fortaleçam e se construam caminhos coletivos e
solidários. Individualmente não há saídas sustentáveis.
O enfrentamento dessas múltiplas questões exige
uma aproximação e integração entre o movimento
sindical e os movimentos populares por moradia,
saúde, transporte, educação e contra as discriminações
e preconceitos. Antunes11 aponta a necessidade da
organização sindical ampliada que atenda aos traba- Uma crença a ser profundamente revista é a da
lhadores intermitentes, em tempo parcial, subempre- importância e prioridade do aprimoramento de normas
gados, pejotizados e desempregados. Ressalta que o técnicas em um terreno negocial desfavorável e sem focar
sindicalismo deve estar atento para as questões de nas questões críticas, principalmente a da democracia nas
preservação da natureza e da humanidade. relações de trabalho. A prevenção dos acidentes e doenças
A dispersão dos locais de trabalho é elemento ligados ao trabalho não deve se limitar à checagem de
que reforça a importância da atuação do SUS, dadas as itens de legislação em saúde e segurança, sem que se
suas características de descentralização, integralidade garanta o direito à voz ativa do trabalhador e o papel de
e ampla cobertura geográfica. Embora não efetivado protagonista da sua própria história13.
plenamente, na prática, mesmo por partidos com raí- Contudo, é necessário um esforço enorme no
zes populares e entidades sindicais, o fortalecimento sentido de buscar outro modo de pensar e viver,
do SUS significa a possibilidade de recuperação da de perceber que é possível produzir e usufruir as
tutela sobre o corpo do trabalhador e a de construção riquezas produzidas por todos, de que a tecnologia
de caminhos da promoção de sua saúde, juntamente é um recurso potente para estimular a comunicação
com profissionais que atuam sob o paradigma da ST. organizadora entre nós, para que a maioria da po-
O setor privado dificilmente terá como foco a pulação se dê conta de que apenas saídas coletivas
promoção da saúde das pessoas, e, sim, sua própria podem criar ondas de transformação que levem à
lucratividade e a colaboração com as empresas no construção de uma sociedade mais justa e solidária.
processo de controle da força de trabalho. Não se A defesa do SUS e da saúde dos trabalhadores
tem notícias de planos privados de saúde, aos quais é componente fundamental nesse processo de luta e
trabalhadores de categorias tradicionais têm acesso, deve ser bandeira importante dos movimentos sociais,
que tenham relatado espontaneamente os adoeci- em especial do movimento sindical.
158

A interinstitucionalidade da Saúde dos


Trabalhadores e Trabalhadoras: entraves
históricos e regressões na saúde dos
trabalhadores e trabalhadoras nas políticas
públicas do trabalho e da previdência social
Paulo Antonio Barros Oliveira
Dolores Sanches Wünsch
Jussara Maria Rosa Mendes

Como destacado nos capítulos anteriores, cabe a nas a regressão de direitos trabalhistas e previdenciários,
referência ao papel do trabalho na determinação social mas também dos meios institucionais para acessá-los.
do processo de saúde-doença e às diferentes dimen- É o que se observa, por exemplo, com a extinção dos
sões que recaem sobre ele, tais como: econômica, Ministérios do Trabalho e da Previdência Social que,
política, cultural, ideológica e histórica. A centralidade em 2019, foram incorporados a um único ministério.
do trabalho humano é cada vez mais evidenciada Em que pese a histórica fragmentação das ações inte-
como característica e elemento constituinte de nossa rinstitucionais entre esses ministérios, o fato de agora
sociedade. Assim, destaca-se a importância da defesa serem políticas públicas pertencentes ao mesmo minis-
do trabalho e da previdência social, em especial para tério evidencia que o propósito não é de alcançar uma
a ST, principalmente quando a incapacidade para o integração. Esses órgãos tornam-se uma Secretaria de
trabalho se sobressai na constituição das condições Previdência Social e Trabalho, vinculada ao Ministério
de vida dos trabalhadores e trabalhadoras. da Economia, e demonstram a clara orientação governa-
Nos últimos dois anos, referentemente ao de- mental de que o desmonte de ambas as políticas passa
semprego, o Brasil chegou a 13,7 milhões de pessoas também pela desestruturação administrativa e política
desocupadas e a 27,9 milhões de pessoas subutilizadas que rebate nos serviços, como expressão cabal da lógica
(pessoas que estão desocupadas, trabalham menos do estado capitalista. São parte de uma contrarreforma
de 40 horas semanais ou estão disponíveis para tra- do Estado, na qual a reestruturação estatal é defendida
balhar, mas não conseguem procurar emprego por por forças econômicas e políticas que dominam o Brasil
motivos diversos). Alia-se a esse quadro a proliferação desde o golpe de 2016.
acelerada de novas tecnologias e novas formas de Ocorrem, então, contrarreformas por dentro e
apropriação do trabalho, como, por exemplo, por por fora do Estado por meio de leis, decretos e medi-
meio de plataformas digitais. das administrativas que vão suprimindo e subsumindo
Nesse ambiente, o País atingiu um recorde de os direitos dos trabalhadores. As Leis nº 13.429 e
número de pessoas desempregadas e de pessoas que nº 13.467, ambas de 2017, constituíram-se em uma
simplesmente pararam de procurar emprego. Temos ampla reforma trabalhista pela qual foram promovidas
mais Pessoas Economicamente Ativas (PEA) desempre- mais de cem alterações na Consolidação das Leis do
gadas (88 milhões de adultos) do que contratadas (86 Trabalho (CLT). Foram ampliadas as permissões de
milhões de adultos empregados). Consequentemente, terceirização, criaram-se contratos precários, facilitou-
a ST é fortemente atingida nesse contexto de usurpação -se a dispensa, permitiu-se a majoração da jornada,
da força de trabalho em meio à precariedade instalada. retirou-se o caráter remuneratório de algumas verbas,
Nesse cenário, temos vivenciado forte desestru- fragilizaram-se as possibilidades de atuação dos sindi-
turação dos direitos dos trabalhadores e mesmo da catos, entre outras alterações. Além disso, o acordo
estrutura responsável por acompanhar as questões do individual para realização de jornada regular de 12
trabalho e da proteção social pela previdência social horas sem intervalo foi autorizado, com a possibili-
pelo Estado brasileiro. Esse cenário evidencia não ape- dade de extensão desse tempo de trabalho. Ainda, a
159

mulher gestante ou lactante passou a ser obrigada a século XXI, não pode deixar de contar, em sua es-
levar atestado médico para a empresa a fim de que trutura institucional, com um órgão que centralize,
seja afastada do ambiente insalubre de trabalho, o que planeje, monitore e execute políticas públicas de
a coloca em situação de extrema fragilidade. Todos Estado essenciais à proteção das trabalhadoras e dos
esses são exemplos de alteração prejudicial à ST. trabalhadores, ainda mais diante do cenário econô-
A Lei nº 14.020/2020, com seu Programa mico e social vindouro.
Emergencial de Manutenção do Emprego e da No contexto de 2020, em que se vivencia tempos
Renda, autoriza a redução de salário e jornada, de pandemia, não se constata a participação ativa da
por acordo individual, oferecendo em troca um Fiscalização do Trabalho em ST entre as medidas anun-
valor indenizatório, mesmo que seja irrisório, ciadas pelo governo. Pelo contrário, há propostas que
de complementação emergencial de renda. A lei diminuem ainda mais seus direitos, como a suspensão
autoriza a perda de até 70% do salário por meio das obrigações de realização de exames médicos ocu-
de acordo individual ou a suspensão completa do pacionais de controle periodicamente, a suspensão de
pagamento enquanto durar a pandemia, de modo treinamentos e capacitações de prevenção de acidentes
que o vínculo se mantenha, mas a renda, não. e a suspensão de eleições para membros de Comissões
A extinção do Ministério do Trabalho em janeiro Internas de Prevenção de Acidentes. Paradigmático da
de 2019, primeiro ato do atual governo federal, foi mais índole da atual gestão está a ‘reforma modernizadora’
um duro golpe à classe trabalhadora. Suas atribuições das 36 normas regulamentadoras ao atropelo de suas
foram divididas entre o Ministério da Economia, o próprias normas, que acabaram sendo proibidas pela
Ministério da Cidadania e o Ministério da Justiça e Judiciário Trabalhista por solicitação do Ministério
Segurança Pública. Desfez-se a materialidade da carteira Público do Trabalho. Tudo em nome da continuidade
de trabalho, verdadeiro documento de identidade do das atividades econômicas e, por conseguinte, da
trabalhador brasileiro. Observa-se, também, um ver- exploração do trabalho humano.
dadeiro congelamento do salário mínimo que, depois Os elementos apontados referentes aos aspectos
de muitos anos de correção acima da inflação, sofreu evidenciados no âmbito trabalhista têm seus rebati-
correção abaixo da inflação do ano anterior. Vivencia-se, mentos nos direitos previdenciários, ou seja, na regres-
de fato, um rebaixamento do nível geral dos salários. são de direitos trabalhistas que impactam diretamente
Concomitantemente, a Fiscalização do Traba- a possibilidade de acesso à previdência social e que
lho foi quase que completamente desestruturada no se agravam duplamente perante os entraves legais e
campo da ST e, também, alijada de toda a sua antiga institucionais impostos por essa política.
autonomia técnica. No extinto Ministério do Trabalho,

Foto: Mariza Gomes de Almeida/Acervo Cesteh


era uma Secretaria Técnica no segundo escalão da
pasta, com relevância e protagonismo na execução das
políticas públicas. Já no atual Ministério da Economia,
integra seu quarto escalão, uma subsecretaria (da Ins-
peção do Trabalho) subordinada financeira, normativa
e administrativamente à Secretaria do Trabalho, que,
por sua vez, é subordinada à Secretaria Especial de
Previdência e Trabalho. Toda essa estrutura está em
evidente afronta à Convenção 81 da OIT, que determi-
na a autonomia técnica e administrativa da Inspeção
do Trabalho para todos os países que a ratificaram,
incluindo o Brasil.
A completa irrelevância da Subsecretaria de Ins-
peção do Trabalho no auge da maior ameaça à vida de
milhões de trabalhadores é a prova cabal de que não há,
na atual gestão da qual faz parte, a menor preocupação
com a promoção do trabalho digno e a salvaguarda dos
direitos fundamentais previstos na CF/88.
O Brasil, uma das mais desiguais nações econo-
micamente relevantes do planeta, que tem a sociedade
fortemente marcada pela escravidão ainda em pleno
160

É importante ressaltar que, historicamente, na O Auxílio-doença previdenciário (B31) vem repre-


previdência social, a saúde e o trabalho, não são ob- sentando, historicamente, 90% dos benefícios por
jetos reconhecidos, de imediato, como sendo sua incapacidade concedidos pela previdência social.
finalidade protegê-los socialmente. Dessa forma, a Embora o Nexo Técnico Epidemiológico Previden-
construção dos direitos à ST na previdência social ciário tenha representado um avanço e se constitua
sempre foi um processo lento e de retrocessos. Não em um importante instrumento para o enfrentamento
houve até então uma efetivação plena como política da subnotificação das doenças e dos acidentes de
de natureza pública e de caráter mais universalizante, trabalho, o percentual de auxílios por incapacidade
bem como não houve o reconhecimento da centra- concedidos como benefício previdenciário, de ordem
lidade do trabalho no processo de saúde-doença. acidentária (B91), representa apenas 10% do total de
1. BRASIL. Ministério da Há, portanto, uma luta social por parte dos trabalha- auxílios por incapacidade concedidos pelo INSS1.
Economia. Anuário estatístico da
Previdência Social, Secretaria dores contra as regressões advindas das constantes Recentemente, duas importantes medidas impu-
de Previdência, Empresa de
Tecnologia e Informações
contrarreformas, do constante desmonte, que geram seram novos agravantes ao acesso aos direitos previ-
da Previdência. Brasília, DF: instabilidade e, acima de tudo, uma violação a esse denciários relativos à saúde dos trabalhadores. Uma
DATAPREV, 2019.
direito socialmente reconhecido como imprescindível delas foi a Portaria nº 152/2016, que instituiu a alta
em qualquer sistema de proteção social. programada, dispensando a realização de nova perícia
No Estado capitalista, as políticas sociais assumi- que possa avaliar as efetivas condições de retorno
ram perspectivas contraditórias, a previdência social ao trabalho, o que deixa o trabalhador ainda mais
historicamente tem esse caráter, ou seja, entre a ga- desprotegido, cabendo a ele recorrer dessa decisão
rantia de direitos conquistados e a mera reprodução após o período ‘pré-estimado’, que invariavelmente
da força de trabalho. Porém, intrinsicamente, esse é mínimo. A outra, uma das mais agravantes, foi a
caráter se expressa na clivagem de acesso por meio revisão dos benefícios de longo prazo, denominada
da contribuição, e não pelo reconhecimento das reais ‘pente fino’, editada através da Lei nº 13.457/2017,
necessidades dos trabalhadores. A seletividade restri- que excluiu do direito ao auxílio por incapacidade/
tiva nos critérios de avaliação de incapacidade coloca invalidez a nove de cada dez trabalhadores, colocando
os trabalhadores em uma ‘roda viva’ entre o INSS e ainda mais à margem do mercado de trabalho milhares
o empregador/mercado de trabalho, caracterizando de trabalhadores.
uma via crucis enfrentada pelos trabalhadores na Nesse sentido, também se destaca que a relação
luta por seus direitos. da perícia médica com os trabalhadores que buscam a
A busca por direitos previdenciários pelos tra- previdência social tem sido um dos elementos centrais
balhadores quando do afastamento do trabalho por que vem contribuindo para a desproteção social. A
incapacidade se materializa na relação direta como ausência histórica de uma concepção de ST aliada
o INSS, órgão executor da política de previdência. ao conservadorismo que permeia majoritariamente
O INSS possui uma dinâmica cuja interação social a perícia médica levam à restrição da garantia dos
sempre evidenciou um aparato burocrático-estatal direitos previdenciários dos trabalhadores que buscam
e agora está cada vez mais ‘digital’ e remota. Além a previdência social devido a agravos relacionados à
do que a visão da previdência é voltada à lógica de sua saúde. Somado a isso, é cada vez menor o número
‘seguro’ e seus ‘segurados’, destituídos do lugar social de trabalhadores com vínculo previdenciário em fun-
de trabalhadores e, quando reconhecido seu direito, ção da reforma trabalhista e da lógica securitária do
trata-se de um ‘seguro’ a ser pago temporariamente, regime previdenciário. Logo, os que a acessam ficam
ou seja, a saúde e a renda não são protegidas. protegidos temporariamente, via auxílio incapacidade
Nessa perspectiva, destacam-se algumas ques- previdenciário, sem levar em conta as conformações
tões centrais que são históricas e contemporâneas do mercado de trabalho devido à crescente preca-
e que incidem diretamente na ST no âmbito da rização das relações de trabalho. Portanto, além da
previdência social, a saber: a avaliação e o reconhe- perda e/ou redução da ‘capacidade’ para o trabalho,
cimento da incapacidade laboral, a fragmentação os trabalhadores enfrentam um cenário desfavorável,
dos serviços previdenciários e a ausência de uma que não é considerado na avaliação laboral médico-
relação interinstitucional. -pericial, que se dá no âmbito de uma política pública
Primeiro, destaca-se que, no que tange à avalia- de previdência social.
ção da incapacidade laboral, essa passa inicialmente Outra dimensão regressiva quanto à atenção à
pelo não reconhecimento da centralidade do trabalho saúde dos trabalhadores na previdência social está na
para a análise pericial do processo de saúde-doença. reforma da estrutura administrativa. Recentemente,
161

ocorreu a extinção da Diretoria de Saúde do Trabalha- análises e avaliações conjuntas sobre a realidade dos
dor (Dirsat), criada em 2009 por meio do Decreto nº trabalhadores em reabilitação profissional.
6.934. Entre suas competências, estava a de gerenciar O que se vivencia é um processo de destruição
e normatizar as ações da Perícia Médica, Reabilitação e desmonte da política pública de previdência social.
Profissional e Serviço Social, buscando unificar esses Direitos foram retirados, novas regras de exclusão e
serviços com ações que envolvessem a ST, em uma seletividade para o acesso aos direitos previdenciá-
difícil tentativa de superar a fragmentação desses rios foram impostas, reformas institucionais foram
serviços. Com os Decretos nº 9.745 e nº 9.746, de realizadas e medidas que excluem ainda mais os tra-
2019, que tratam da nova Estrutura Regimental do balhadores da previdência social foram ditadas ao
INSS, a Perícia Médica passou a ser Subsecretaria da INSS. Sem contar o grande distanciamento com a
Perícia Médica Federal do Ministério da Economia, política de saúde e a total ausência de integralidade
e foi criado o cargo de Perito Médico Federal. Já os na atenção à ST.
serviços de Reabilitação Profissional e Serviço Social A reversão da lógica liberal impregna as opções
retomaram à antiga, agora reativada, estrutura de políticas adotadas nos últimos anos, que rebatem na
Diretoria de Benefícios. destruição da previdência social, tanto pela contrar-
É importante destacar o ocorrido com o serviço reforma constitucional, com impacto na estrutura do
de Reabilitação Profissional, que deveria se constituir INSS, quanto pelo processo em curso de descons-
em uma atividade potencialmente interdisciplinar, trução das normas regulamentadoras de segurança
intra e intersetorial. Entre 2015 e o início de 2016, e saúde do trabalho. Tal situação faz parte de um
houve várias medidas no sentido de desenvolver um processo de destruição gradual do serviço público
modelo de reabilitação integral do trabalhador, arti- determinada pela austeridade travestida de ‘teto de
culado com as políticas de saúde, trabalho, educação, gastos’, em especial no que tange ao SUS2. 2. INSTITUTO TRABALHO DIG-
NO; AUDITORES FISCAIS PELA
entre outras, e discorreu-se sobre a adoção de ins- Destaca-se, portanto, no âmbito da ST, as políti- DEMOCRACIA (AFD). Ministério
trumentos de avaliação de incapacidade e funcionali- cas públicas do trabalho e da previdência social, cujos do Trabalho: ressurgimento para
quê, para quem? DMTBrasil,
dade de acordo com a Classificação Internacional de aspectos e medidas aqui apontados contribuíram para abril de 2020. Disponível em:
http://www.dmtemdebate.com.
Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da OMS. a ampliação do abismo interinstitucional, a crescente br/ministerio-do-trabalho-ressur-
gimento-para-que-para-quem/.
Essa proposta não apenas não se concretizou como regressão de diretos a partir das contrarreformas Acesso em: 15 dez. 2020.
se agravou com a saída da Perícia Médica Federal da permanentes pela adoção de desmedidos entraves e
estrutura do INSS. Suas novas atribuições rompem pelas regressões impostas no País a partir de 2016 e
com a já escassa interdisciplinaridade existente nas aprofundadas em 2019.

A crise do trabalho e desafios para a


universalização da Saúde do Trabalhador
Paulo Gilvane Lopes Pena
Mônica Angelim Gomes de Lima
Maria da Graça Druck de Faria

A ST se estrutura no Brasil a partir dos anos Portaria nº 1.832 instituiu a PNSTT em conformidade
1980, no centro das lutas pelas liberdades demo- com os princípios e diretrizes do SUS, com destaque
cráticas e pela Reforma Sanitária, como alternativa à para universalidade, integralidade, participação da
insuficiência do modelo hospitalocêntrico de saúde comunidade e dos trabalhadores no controle social.
e de baixa qualidade predominante no período da Demarca-se, assim, o direito dos trabalhadores à
ditadura militar, em direção à criação e implantação uma política de atenção integral à saúde, envolvendo a
do SUS e das ações de ST em 1990. Desde esse ponto promoção, a prevenção dos agravos e o cuidado assis-
à publicação da PNSTT em 2012, um longo percurso tencial nas três esferas de gestão do SUS. Configura-se
foi marcado por avanços e retrocessos no âmbito na forma de uma política de Estado às ações de atenção
das ações de ST e dos direitos dos trabalhadores. A integral à saúde de usuários-trabalhadores, formais e
162

informais, com ações específicas no âmbito da vigilância tem acesso regulamentado aos Serviços Especializado
à saúde e capilaridade que alcança os territórios onde em Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) das
vivem e trabalham, com destaque para a Visat e a ênfase empresas. Contudo, os SESMT não estão inclusos no
na Atenção Básica à Saúde (ABS). Essa tarefa extraordinária controle direto do SUS enquanto serviços de saúde e
marca o caminho para assegurar a todos trabalhadores são fiscalizados cartorialmente pela Inspeção do Tra-
o direito universal à ST nos diversos modelos de desen- balho que está em forte processo de desestruturação.
volvimento e processos produtivos. Com isso, existe a Com exceções, os SESMT são serviços de baixa eficácia,
necessidade de conhecer o perfil produtivo da situação pois orientam-se para manutenção das atividades
dos trabalhadores como sujeitos políticos para o controle econômicas de interesse do capital motivados pelo
ou eliminação dos riscos relacionados com as precárias produtivismo econômico, e não para a proteção à ST.
condições de trabalho, articuladas à assistência integral Com isso, há dois terços dos trabalhadores sem acesso
à saúde. Essa política pressupõe a integração das ações a qualquer serviço de proteção à sua saúde, exceto
de vigilância e assistência em nível da ABS e nos demais pelas ações dos Cerest por meio da Visat.
níveis de atenção. Representa um dos maiores desafios e Entretanto, os dados da PEA não expressam a
pretensões da atualidade para o SUS, considerando que gravidade de situações ocupacionais como o trabalho
o País tem o maior universo de trabalhadores a serem infantil, que envolve 2,5 milhões de crianças e ado-
alcançados por um modelo de serviço público de saúde lescentes, entre 5 e 17 anos, que exercem atividades
no mundo – países mais populosos, como China, Índia, remuneradas ou não, com consequências dramáticas
1. INSTITUTO BRASILEIRO DE
EUA e Indonésia, não dispõem de serviços públicos de e invisíveis para saúde. Outro exemplo se refere aos
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA saúde para assistência a toda a população. aproximadamente 160 mil trabalhadores submetidos
(IBGE). Censo Agropecuário.
2017. Disponível em: https:// Trata-se de uma construção recente que ne- às condições análogas à escravidão, segundo o Minis-
www.ibge.gov.br/estatisticas/eco-
nomicas/agricultura-e-pecuaria/ cessita ser compreendida na sua magnitude diante tério Público do Trabalho.
21814-2017-censo-agropecuario.
html?edicao=25757&t=sobre.
da complexidade do trabalho, das dificuldades das São trabalhadores em condições irregulares ou
Acesso em: 11 jan. 2021. organizações dos trabalhadores e do desenvolvimento ilegais, em que não há garantia dos direitos trabalhistas
2. DRUCK, G. Trabalho, dos serviços de ST e do próprio SUS nas diversas e securitários, ou seja, trabalho sem carteira assinada2;
precarização e resistências:
novos e velhos desafios? conjunturas institucionais. Uma construção não linear, trabalho autônomo irregular representado por grande
Caderno CRH, v. 24, n. esp.1,
p. 35-55, 2011. Disponível em: mas condicionada às profundas transformações e número de ambulantes, feirantes, biscateiros que
https://www.scielo.br/scielo.
php?pid= S0103-49792011000
crises no trabalho, porém mantendo continuamente povoam os espaços urbanos e rurais, com dificuldade
400004&script=sci_arttext. os modos de exploração dos trabalhadores. Ademais, de acesso aos serviços de ST pela insuficiência das
Acesso em: 11 jan. 2021.
trabalhadores estão subjugados à era neoliberal de políticas de proteção aos vulneráveis.
desmonte, perda de direitos, somadas às revoluções Deve-se considerar os trabalhadores inclusos nas
tecnológicas aliadas à ação antissocial de fragmentação categorias previdenciárias como segurado especial
das instituições de proteção do trabalho e de ameaças constituído por trabalhadores rurais em regime de
à saúde, caracterizados pela precarização do trabalho. agricultura familiar, em número de 10 milhões de
Conhecer a real magnitude e características es- postos de trabalho, segundo o IBGE1; pescadores
senciais da estrutura do trabalho inscritos em diversos artesanais com estimativa de 1,5 milhão; entre ou-
modelos produtivos no Brasil é uma tarefa complexa. tros. Estes, embora no trabalho formal com direito ao
Há uma história trágica de genocídios dos povos in- Seguro Acidente do Trabalho, têm inexpressividade
dígenas, 400 anos de escravidão que se somam, na epidemiológica por baixa acessibilidade e visibilidade
atualidade, às novas formas de escravismo, violência enquanto trabalhadores nos serviços de saúde e de
e repressões aos movimentos de trabalhadores e suas ST, persistindo sub-registro de acidentes e doenças no
organizações sindicais, recordes de desemprego, tra- trabalho na previdência social e no Sistema Nacional
balho infantil, racismo ocupacional, epidemias de de Atendimento Médico (Sinam). Para o trabalhador
doenças ocupacionais e sofrimento no trabalho. informal, essa situação se amplifica com a fragilidade
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e do processo de implantação da PNSTT. Existe ain-
Estatística (IBGE)1 vinculavam 106 milhões de pessoas da o trabalho subjugado a estigmas e preconceitos
à População Economicamente Ativa (PEA) em 2020, denominado pela OIT de ‘zonas sombrias’, em que
entre 15 e 65 anos (50,1% da população). A PEA revela podem ser irregulares ou mesmo crime em alguns
30 milhões com carteira de trabalho, sendo 23,2 % países e em outros regularizados e protegidos por lei.
por conta própria, 11,1% ocupados sem carteira e Tem-se o exemplo do trabalho das profissionais do
13,3% desempregados. Nesse contexto, apenas um sexo, legalizado no Brasil exceto quando explorado
terço dos trabalhadores inseridos no mercado formal por terceiros. No entanto, a categoria não tem sido
163

objeto de programas de ST, e as doenças do sexo não Esse contexto está permeado, ainda, por pro-
são reconhecidas como relacionadas ao trabalho pelo cesso de globalização e revoluções tecnológicas que
MS. Adiciona-se a incidência de gênero, raça, etnias, associam o moderno e o trágico, com a denominada
migrações, pessoa com deficiência, cujas informações ‘uberização’ do trabalho decorrente da nova era vir-
ainda são precárias e/ou desconhecidas, como marca- tual3, assim como a introdução massiva de produtos 3. ANTUNES, R. O privilégio
da servidão: o novo proletariado
dores de ampliação da vulnerabilidade individual e transgênicos, com riscos desconhecidos para o meio de serviços na era digital. São
Paulo: Boitempo, 2018.
social, que atuam intensificando exposições e efeitos ambiente e saúde, como ilustra a figura abaixo, de-
negativos à saúde dos trabalhadores. Cabe também safiando ainda mais a investigação da relação entre
salientar a incidência desigual sobre a inserção no essas e outras exposições isoladas ou conjugadas e
mercado de trabalho e a capacidade de vocalização a produção de tecnologia de prevenção de agravos
desses grupos de trabalhadores. biopsicossociais.

Figura 1. Vulnerabilidade Social2,3

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Na era da acumulação flexível, as transformações sua heterogeneidade e divisão, promovendo a pulve-


trazidas pela ruptura com o padrão fordista geraram rização dos sindicatos; e, por fim, na crise do direito
outro modo de trabalho e de vida pautados na flexi- do trabalho, cada vez mais condenado e descartado a
bilização e precarização do trabalho, como exigências exemplo das contrarreformas trabalhistas em curso.
do processo de financeirização da economia, que A legalização da terceirização para todas as ativida-
viabilizaram a mundialização do capital em um grau des (meio e fim), na Lei nº 13.467/174 – Lei da Reforma 4. BRASIL. Lei nº 13.467, de 13
de Julho de 2017. Altera a Con-
nunca alcançado. A hegemonia neoliberal deu a sus- Trabalhista –, impõe a precarização como regra, conforme solidação das Leis do Trabalho
(CLT), aprovada pelo Decreto-Lei
tentação política e ideológica a esse processo, fazendo demonstrado por inúmeras pesquisas nos últimos 30 nº 5.452, de 1º de maio de 1943,
da concorrência uma norma de conduta em que os anos, pois ela cria trabalhadores de “segunda categoria”, e as Leis n º 6.019, de 3 de
janeiro de 1974, 8.036, de 11 de
trabalhadores devem ser ‘empresários de si mesmos’. que ganham menos, trabalham mais, adoecem e morrem maio de 1990, e 8.212, de 24 de
julho de 1991, a fim de adequar
A precarização do trabalho se tornou o centro da mais, têm direitos desrespeitados e são invisibilizados em a legislação às novas relações
de trabalho. Diário Oficial da
dinâmica do capitalismo flexível e tem diversas dimen- seus locais de trabalho. A terceirização, ao estabelecer União.13 Jul. 2017. Disponível
sões: no mercado de trabalho, por meio de contratos uma relação contratual de prestação de serviços entre em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2017/
precários, sem direitos e da informalidade; nos locais a empresa contratada e a tomadora, por meio de um lei/l13467.htm #:~:text=Al-
tera%20a %20Consolida%-
de trabalho, por intermédio da intensificação do tra- processo de intermediação da força de trabalho, deixa a C3%A7%C3 %A3o%20das%20
Leis,%C3%A0s%20 novas%20
balho com metas inalcançáveis, extensão da jornada, empresa que terceiriza livre da fiscalização das instituições rela%C3%A7%C 3%B5es%20
polivalência, gestão pelo medo, assédio moral e dis- operadoras do direito do trabalho, à medida que não de%20trabalho. Acesso em: 11
jan. 2021
criminação criada pela terceirização; no desrespeito às tem qualquer responsabilidade solidária sobre os traba-
normas elementares sobre riscos, medidas preventivas lhadores terceirizados. As empresas contratadas, como
coletivas, necessário treinamento, elevando os índices intermediadoras, só têm a finalidade de ‘vender gente’; e,
de acidentes e adoecimento; no enfraquecimento da na concorrência para ganhar os contratos, ‘vende a alma’
organização sindical e da ação coletiva, decorrentes dos trabalhadores, já que, para cumprir o preço mais
da violenta concorrência entre os trabalhadores, da baixo e os prazos exíguos, cria redes de subcontratação,
164

contaminando toda a cadeia com a lógica do baixo custo, Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil, “a
levando no limite ao uso do trabalho análogo ao escravo, gente quer que a população saiba o quanto custa uma
como tem sido revelado pelas auditorias do trabalho. entrega mais barata ou gratuita”. O líder do Movimento
Durante a pandemia da Covid-19, grande parte Entregadores Antifascistas, que se autodefine como um
dos trabalhadores terceirizados está nas atividades “político de rua”, tem se manifestado sobre a perversidade
consideradas essenciais: enfermeiros, técnicos em do capitalismo, o comportamento egoísta do ‘rico’ e as
enfermagem e médicos nos hospitais e Unidades de reais condições desses trabalhadores, que foram iludidos
Pronto Atendimento (UPA); nos serviços de limpeza, com a ideia de empreendedor, de que são ‘livres’ para fazer
recepção e segurança nas universidades, escolas, ban- seu horário, quando, segundo ele, o que faz o horário dos
cos e outros. Uma gama de serviços que não pode entregadores é a dívida que eles têm para pagar.
parar, cujos trabalhadores não podem ficar em casa, Ao lado da crise dos sindicatos, enfraquecidos
expostos à contaminação diariamente, sem proteção pela precarização social do trabalho, pelas políticas
suficiente, já que as empresas que os contratam não neoliberais, pelos ataques das reformas trabalhistas,
oferecem condições seguras de trabalho. Muitos já surgem novos movimentos sociais e novas redes de
foram contaminados, parte sobreviveu, outros mor- contrapoderes, cujas formas de organização são as
reram, ou estão adoecidos pelas jornadas excessivas mais variadas. São fóruns, plenárias, redes, associações
e pela tensão permanente. que reúnem diferentes profissões e representações
Se a terceirização era a forma mais precária de organizadas horizontalmente. São movimentos que
trabalho, superexplorando o trabalhador e burlando o inovam e resgatam experiências históricas, como a
direito do trabalho; o capitalismo inovou mais uma vez, que construiu a Reforma Sanitária, o SUS e o direito
com a ‘economia digital’ e decretou a morte do direito constitucional da ST no Brasil.
do trabalho. É a ‘uberização’ como chamam alguns es- Para os serviços de ST, inscritos nas estru-
tudiosos, empresas-aplicativos que, ‘escondidas’ atrás da turas do SUS, o desafio é conhecer a realidade
tecnologia de informação, criaram um padrão de explo- das ocupações e sua diversidade no Brasil sucin-
ração da força de trabalho sem limites, não reconhecem tamente apresentada. Trata-se de compreender a
a relação de emprego, pois contratam os trabalhadores simultânea precarização estrutural do País, relativa
como autônomos prestadores de serviços, ‘empresários às situações de miséria social e trabalho desqualifi-
de si mesmos’. A empresa-aplicativo usa o trabalho e os cado, com a precarização pós-fordista resultante da
instrumentos de trabalho dos trabalhadores para faturar restruturação produtiva, associada à precarização
altos lucros, a exemplo de motoristas e entregadores, que extrema imposta pelas mutações tecnológicas em
arcam com os custos dos seus carros, motos ou bicicletas. curso como pressuposto essencial para as ações
Em uma situação de alto desemprego, passou a ser alter- da proteção à saúde e de melhoria das condições
nativa para milhões de trabalhadores e já se estendeu a de trabalho.
outras profissões, como médicos, enfermeiros, advogados, Enfim, as estratégias para universalização da
professores, entre outros. ST exigem abordagens múltiplas de Visat com as
Durante a pandemia, tornaram-se serviços essen- diversas formas de organização dos trabalhadores
ciais. Ademais, se antes já arriscavam suas vidas para para agir no chão das fábricas, campo, periferias,
cumprir as metas e/ou para obter alguma remuneração centros comerciais, feiras, nas zonas sombrias
para sobreviverem, agora estão expostos cotidiana- de proteção dos trabalhadores estigmatizados às
mente à contaminação pelo vírus Sars-CoV-2, com formas extremas de exploração nas novas modali-
poucas medidas preventivas adotadas pelas empresas, dade de escravidão e, sobretudo, nesta era virtual
nenhum compromisso destas com o adoecimento ou com o trabalho hiperprecarizado, constituindo-se
mesmo morte destes trabalhadores e sem qualquer em uma ‘ciber-Visat’ ou ‘Visat digital’ para enfren-
proteção social e trabalhista do Estado. tar os desafios abissais da atualidade. No entanto,
É a desumanidade do capitalismo em meio à crise a centralidade do trabalho na sociedade com todas
humanitária. Situação que só pode ser alterada pela força essas mutações persiste não apenas na expressão de
dos próprios trabalhadores. Foi o que demonstrou a greve submissão ao domínio do capital, mas de resistências
dos entregadores de aplicativos no 1º de julho de 2020, e ações transformadoras da sociedade e de lutas dos
por meio de uma campanha nacional que se estendeu trabalhadores como sujeitos. Por isso mesmo, apre-
para outros países e que buscou atingir os consumidores, ender as experiências dos próprios trabalhadores,
por intermédio das redes sociais, chamando o apoio atualizando-as nas novas conjunturas, é o grande
da sociedade. Segundo o presidente da Associação dos desafio para o trabalho e para a ST no Brasil.
165

Ponto e vírgula ao final do Bloco 5 –


pensando o futuro
Elizabeth Costa Dias
Paulo Gilvane Lopes Pena

Ao recebermos o honroso convite dos organiza- fazer acreditar, mas resulta de decisões ditadas pelo
dores do Almanaque ‘Saúde do Trabalhador em tem- valor ou falta dele atribuído pelo sistema produtivo
pos de desconstrução: caminhos de luta e resistência’, aos seres humanos trabalhadores.
publicação conjunta do Cebes/Asfoc, para coordenar o Outro pilar é representado pelo entendimento
Bloco 5 – ‘A institucionalidade fragmentada’ –, fomos do trabalhador enquanto sujeito de sua vida e saúde,
desafiados por múltiplos sentimentos e sensações e e de que ninguém sabe mais ou percebe melhor os
temores. Tínhamos, por um lado, a oportunidade de impactos do trabalho sobre sua vida, saúde e adoeci-
produzir sobre um tema ao qual temos nos dedicado mento. Por isso a necessidade e a importância da sua
por muitos anos, tornando-o acessível a um grande participação nas decisões que envolvem as relações
número de pessoas envolvidas com a questão; a necessi- trabalho-saúde-doença e o controle social no SUS.
dade de contar com um grupo seleto de colaboradores Outra questão importante decorre da transversa-
experientes e comprometidos, porém assoberbados por lidade das políticas de saúde dos trabalhadores, uma
um sem-número de atividades em tempos de pandemia vez que poucos problemas identificados ao âmbito
e sob grande pressão de tempo exíguo. dos serviços de saúde podem ser, de fato, ali resol-
Assim, é com alegria que chegamos ao final da vidos. Por esse motivo a importância da articulação
tarefa com um bloco robusto, denso, que aborda com outros campos de conhecimento e com outras
diversas dimensões do movimento da ST no SUS, instâncias, entidades e instituições sociais para a ga-
que contou com a participação de 29 colaboradores/ rantia da saúde. De modo simplificado, pode-se dizer
autores, que deram o melhor de si para retratar desde que a saúde dos trabalhadores depende do modelo
os primórdios da emergência do movimento nos anos de desenvolvimento adotado no País e na região, o
1980, o processo constituinte, a PNSTT e os desafios empreendimento ou o trabalho, que, por sua vez,
para sua implementação, os distintos modelos de resulta dos processos de luta e negociação social.
gestão das ações na rede pública de serviços de saúde; Disso decorre a necessidade da articulação in-
a Renast; a Vigilância em Saúde dos trabalhadores e tra-SUS, e a interinstitucinalidade, em particular com
trabalhadoras; a participação e o controle social; as as instâncias do trabalho e da previdência, ambiente
relações com as questões ambientais; a emergência da e o sistema judiciário, em especial com a justiça e a
pandemia de Covid-19 e seus reflexos sobre a vida e a procuradoria do trabalho.
saúde dos trabalhadores; as ações interinstitucionais, Segue-se, sem nenhuma hierarquia preestabe-
com ênfase no trabalho e na previdência social, e os lecida, o entendimento quanto à indissociabilidade
desafios que as mudanças no trabalho impõem para preventivo-curativo, com primazia da prevenção das
a universalização da proteção e assistência integral à ações de saúde voltadas para os trabalhadores. Con-
saúde de todos/as trabalhadores brasileiros. sideramos um falso dilema a discussão, por vezes
A provocação contida no título do texto refere-se emocionada e destrutiva, de que a vigilância é mais
ao conceito de Movimento Social, entre os quais inclu- importante que a assistência. Na perspectiva da aten-
ímos o da ST, que não tem fim. Daí o ponto e vírgula! ção integral, ambas são complementares. Para que a
Temos como norte algumas premissas e prin- vigilância à saúde funcione bem, ela necessita estar
cípios para o Movimento da Saúde do Trabalhador amparada no cuidado resolutivo, de aceso universal
que consideramos importante resgatar aqui, pois capaz de não apenas resolver os problemas trazidos
constituem seu ‘DNA’. pelo trabalhador/a ao serviço de saúde, mas estabe-
Começa pelo entendimento básico que vem da lecer a relação causal com o trabalho, alimentar os
construção social do processo saúde-doença, que sus- sistemas de notificação e, dessa forma, a vigilância
tenta a compreensão da determinação social fazendo epidemiológica, dos ambientes e locais de trabalho e
com que não seja inerente ao trabalho, como tentam sempre que possível integrada à vigilância ambiental.
166

A atenção integral à saúde dos trabalhadores e a avaliação dos riscos para a saúde presentes nos am-
inclui as ações de ‘promoção da saúde’, que reco- bientes de trabalho, de modo a antecipar e prevenir os
nhece o trabalho como oportunidade de saúde. Elas danos à saúde, por meio de mudanças nos processos
pressupõem o empoderamento dos trabalhadores para de trabalho e secundariamente na proteção individual
participar das decisões sobre seu processo saúde-do- do trabalhador. Também, como dito anteriormente,
ença e nas lutas por melhores condições de trabalho. envolve o reconhecimento e registro da relação do
Já a Visat envolve a vigilância epidemiológica dos adoecimento com o trabalho que permite desencadear
agravos relacionados com o trabalho e a identificação os desdobramentos necessários e adequados

Articulação e complementaridade das ações de vigilância de agravos à saúde relacionadas


ao trabalho e vigilância das condições ambientes de trabalho - Visat

Vigilância de Ambientes e
Assistência – promoção, Condições de Trabalho
proteção, recuperação e
reabilitação da saúde
Identifica situações de risco e perigos para a
saúde presentes no trabalho
Identifica e notifica os casos
de doenças e agravos
relacionados ao trabalho Intervenções para eliminação
ou minimização de riscos

Vigilância de agravos
(articulada à Vigilância Identifica trabalhadores expostos e/ou
Epidemiológica) doentes que necessitam ser avaliados e
cuidados

Acompanhamento de
expostos e doentes Assistência e vigilância da saúde de
trabalhadores expostos e doentes

Fonte: Diretrizes para a Vigilância em Saúde do Trabalhador na Atenção Básica, 20161.


1. Universidade Federal de
Minas Gerais. Diretrizes de
implantação da Vigilância em
Saúde do Trabalhador na Aten-
ção Básica. 2016. Disponível
em: https://central3.to.gov.br/ Entretanto, apesar da experiência acumulada nos cuidado à saúde dos trabalhadores, em especial, no
arquivo/294234/. Acesso em: 16
dez. 2020. últimos 30 anos da ST e dos avanços observados, o contexto das mudanças no trabalho em que mais de
desafio da atenção integral à ST no SUS permanece. 50% da força de trabalho no Brasil está inserida no
Vários modelos de atenção e gestão do cuida- setor informal ou precarizado. Os ACS, por exemplo,
do à saúde dos trabalhadores/as foram tentados; e são os únicos membros das equipes de saúde com
o mais bem-sucedido e duradouro foi a criação da acesso facilitado aos domicílios, nos quais crescen-
Renast focada na atuação dos Cerest, incorporando temente são desenvolvidas atividades produtivas.
ações de assistência e vigilância, informação e Outrossim, não precisamos de grandes inves-
orientação dos trabalhadores, produção de co- timentos, para além do fortalecimento da própria
nhecimento na rede SUS. APS no SUS. Pode-se começar com o que já é fei-
A incorporação das ações de ST na atenção básica to e qualificar as ações de saúde – individuais e
ou primária de saúde – porta de entrada no sistema coletivas – desenvolvidas com/para os usuários
– continua um desafio atual, apesar das experiências trabalhadores considerando sua inserção particular
bem-sucedidas registradas, e de ser o modelo preco- nos processos produtivos.
nizado de organização do cuidado no SUS. Também, Finalizando, entre os desafios permanentes,
é recomendada pela OMS desde a conferência de estão: a ampliação do controle social; ampliação das
Alma-Ata em 1978 e a Declaração de Astana de 2018. ações de ST nos programas/políticas públicas de ge-
No SUS, a atenção primária é considerada orde- ração de trabalho e renda, como os catadores de
nadora da rede e coordenadora do cuidado. A capila- reciclável, marisqueiras, carroceiros, artesãos; a apro-
ridade da rede, a organização do trabalho em equipe ximação e articulação das agendas de ST – segurança
de saúde, com responsabilidade sanitária sobre um – ambiente no setor público e privado; a articulação
dado território, tem grande potencial de sucesso no com o Ministério Público do Trabalho e construção
167

de uma agenda comum para o enfrentamento de e a doença denominada Covid-19, que se espalhou
problemas específicos: trabalho infantil; trabalho rural rapidamente e foi reconhecida como pandemia pela
– agroindústria; trabalhadores da saúde, entre outros OMS em março de 2020.
Ao encerrarmos, não podemos deixar de men- Para os estudiosos do trabalho e suas relações
cionar os aprendizados, as angústias e as incertezas com a saúde dos trabalhadores e o ambiente, é impac-
que vivenciamos neste momento histórico, coma a tante reconhecer que tanto o surgimento da doença
pandemia da Covid-19, que se inicia em 2020 e cujos quanto sua dispersão no continente europeu estão
desdobramentos desconhecemos. relacionados com processos produtivos. Isso porque
O capítulo escrito por Maria Maeno e José Carlos a doença começou entre trabalhadores e usuários de
do Carmo, que integra este bloco, antecipa algumas um mercado, local de atividade produtiva; e, segundo
inquietudes e perguntas que nos atravessam. Porém, alguns estudos apontam, sua dispersão rápida ao norte
apesar das discussões, que se multiplicam, são poucas da Itália estaria associada à aquisição de empresas
as repostas. São tempos que Edgar Morin denomina de de confecção por empresários chineses e ao intenso
“experiência das irrupções do inesperado na história” fluxo de trabalhadores trazidos da China para garantir
em que predominam as incertezas, mas está prenhe mão de obra disciplinada e barata. Mais uma vez,
de possibilidades. expressa-se a forte conexão em atividades produtivas
Quando em dezembro de 2019 o Centro de e o processo saúde-doença e os danos ambientais.
Controle e Prevenção de Doenças na China identificou Os desafios estão postos. Para enfrentá-los,
o surto de uma doença respiratória grave, entre traba- precisamos resgatar nossos valores essenciais e
lhadores de um mercado de alimentos na cidade de nos organizarmos para buscar construir um outro
Wuhan, na província de Hubei, o agente causador foi mundo possível, mais justo, fraterno e compro-
identificado como um novo coronavírus, o Sars-CoV-2, metido com a vida.
Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Greve dos entregadores de


aplicativos, São Paulo, SP.
25 de julho de 2020.
6
Trabalho em saúde e os
santos de casa
Coordenação
Jorge Mesquita Huet Machado, Luciene de Aguiar Dias & Simone Santos Oliveira
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.09
171

Os caminhos, fragmentos e conexões


Jorge Mesquita Huet Machado
Simone Santos Oliveira
Luciene de Aguiar Dias

Os lugares do cuidado miológica, vigilância sanitária vigilância em saúde


O trabalho em saúde e seus lugares são espa- ambiental e de vigilância em saúde do trabalhador),
lhados em uma rede múltipla de serviços de saúde com conexões aos serviços de saneamento ambiental,
com características distintas, conectados por uma a redes de assistências social e de educação em espaços
ação de promoção e atenção à saúde, configurando o de ensino e aprendizado profissional das múltiplas
Sistema Único de Saúde (SUS) articulado internamente disciplinas, profissões e especialidades que compõem
por instâncias de coordenação técnica das secreta- a força de trabalho em saúde. Tudo isso articulado
rias municipais, estaduais e do Ministério da Saúde, externamente a uma rede multissetorial de promoção
redes assistenciais (hospitais, Unidades de Pronto da saúde, destacando-se a conexão com as atividades
Atendimento – UPA, Serviço de Atendimento Móvel de produção distribuição e consumo de alimentos e
de Urgência – Samu, Unidades de Atenção Básica, de insumos industriais para a saúde.
Equipes de Saúde da Família, Centros de Atenção São lugares de cuidados clínicos e cirúrgicos de
Psicossocial – Caps), instâncias de supervisão, redes contato direto com as pessoas, são espaços da rua e
de laboratórios de saúde pública e de vigilância em das casas, são laboratórios e escritórios em conexão
saúde e saúde coletiva (serviços de vigilância epide- com todas as atividades humanas.

Carta para minha mãe...


coisas que eu queria conversar com você
Luciene de Aguiar Dias

Se o mundo ficar pesado / Eu vou pedir se estão saudáveis. Sinto falta de degustar seu café
emprestado / A palavra poesia1 coado fresquinho feito pra mim. De sairmos juntas 1. SILVA, J. Samba da Utopia.
para almoçar nos domingos. E de deitar exausta e Disponível em: https://www.
letras.mus.br/jonathan-silva/
Você tem 85 anos. Eu 54. Te disse um tempo an- triste no seu sofá e te ver trazendo uma manta para samba-da-utopia/. Acesso em:
tes que iria aposentar com 55. Estava tudo combinado. me cobrir e aquecer meus lampejos de sonho. 01 ago. 2020.

Mas não vai dar. Mudou tudo e tanto, que nem consigo
te explicar com clareza e da forma que compreenda Se o mundo emburrecer / Eu vou rezar pra
esses novos tempos que, de uma forma tão abrupta chover / Palavra sabedoria1
e repentina, modificaram tão profundamente a vida Mas você, minha mãe, é mãe de enfermeira. E
da gente. Você fez aniversário. Eu também fiz. Mas eu estou no front. Por amor, te amo de longe, porque
nós não nos abraçamos. Moramos na mesma cidade segundo o texto de Bonfatti2 (2020) “em tempos de 2. BONFATTI, R. Dia dos
Namorados. Disponível
– Macaé (RJ) –, desde março não te abraço ou toco pandemia quem ama deve manter os preceitos do em: https://15557d4b-846d-
na sua pele. distanciamento social”. Segundo o Conselho Federal -4ca4-a9f7-0518a88199e2.
usrfiles.com/ugd/15557d_b159f-
Um dia desses, me pediu para ver meu sorriso de Enfermagem3 (Cofen), em dados apontados em f38700d405087ae4bf232b0f317.
pdf. Acesso em: 01 ago. 2020.
sem máscara, assim fiz, sorri de longe... Se te visito junho de 2020, somos 2.322.762 profissionais de
3. CONSELHO FEDERAL DE
do portão, você fica na porta da casa. Sou Enfermeira, enfermagem. Creio que, em sua maioria, vivendo ENFERMAGEM. Enfermagem
em números. Disponível em:
estou no front. E a senhora, minha mãe, é mãe de uma situação semelhante a essa, que cá, nós duas http://www.cofen.gov.br/enferma-
enfermeira. Sinto falta de te levar para as compras e vivemos. Faz muito tempo, te contava que as coisas gem-em-numeros. Acesso em:
01 ago. 2020.
te ver sacudir o abacate ou o maracujá para verificar não iam bem, muito além dessas matérias que a mídia
172

faz mostrando filas ou desqualificando o trabalho Se o mundo andar pra trás / Eu vou escrever
que nós, como servidores públicos, executamos – num cartaz / A palavra rebeldia1
porque nada são além de realidades mal mostradas
ou explicadas. Afirmo isso como uma cidadã e tra- E 2020 nos trouxe essa pandemia em pleno contexto
4. SOUZA, D. O. Textos de Die-
go de Oliveira Souza. Disponível
balhadora, pois poucos são nesse país que sabem de desmonte do SUS, situação bem retratada pelo colega
em: https://15557d4b-846d-4ca-
4-a9f7-0518a88199e2.usrfiles. e entendem o SUS, suas diretrizes, sua base legal de profissão e professor Diego Souza4 em inúmeros
com/ugd/15557d_6aee64590d-
864d788fc2db222d3d92da.pdf. e muito menos sua operacionalização. textos da Coluna Opinião no blog www.multiplicadores-
Acesso em: 01 ago. 2020.
Alguns afastados dos pais; outros, dos filhos; devisat.com. Pensamos: dessa vez vai! A rede vai ter que
outros, do cônjuge (por comorbidades), mas es- se organizar melhor... Faremos treinamentos, que será a
tamos afastados do convívio familiar... Também oportunidade de discutir velhos problemas e tentar corri-
te falei várias vezes que não me vejo como uma gi-los. Inicialmente, fomos aplaudidos, bateram panelas,
trabalhadora de nenhum ente federado seja ele cantaram, e até mesmo o Ministro da Saúde na época do
estado ou município, mas do SUS. Esse nosso início da pandemia – Luiz Henrique Mandetta – disse que
5. UOL. Pandemia do corona-
vírus é maior prova de fogo do
mesmo SUS, a mais robusta política pública desse o SUS estaria ao lado dos 215 milhões de brasileiros5 em
SUS. Disponível em: https://
jc.ne10.uol.com.br/pernambu- país, prescrita constitucionalmente em 1988, sofre entrevista que está disponível na internet. E nós do SUS
co/2020/03/5603069-pande-
mia-do-coronavirus-e-maior- ataques constantes para o seu desmantelamento. estamos, mãe, porque o SUS não escolhe sobrenome,
-prova-de-fogo-do-sus.html.
Te falava que as coisas não iam bem... São tantos renda familiar, empregado ou desempregado, faixa etá-
Acesso em: 01 ago. 2020.
os impropérios que ouço “o SUS foi feito pra não ria, etnia, religião, território, nacionalidade nem nada. É
funcionar”, “eu não preciso do SUS”, “divide esse de todos e para todos... E se algum serviço do SUS faz
dinheiro gasto com o SUS para a população mais escolhas, não é uma ‘escolha’, é porque deve atender
pobre e cada um que se vire”, fora alguns termos protocolos estabelecidos e aprovados, e esses são, na
chulos usados que não pretendo repetir... maioria das vezes, devidos à complexidade da causa do
O nosso SUS, que nunca dorme, é invisível em atendimento, do problema de saúde a ser tratado. Mas
algumas de suas muitas atividades, entre delas as é verdade que muitas vezes não temos capacidade de
ações de vigilância em saúde (sanitária, epidemio- acolher tantos que precisam. Mas lembra? Esse é um dos
lógica e em saúde do trabalhador), monitoramento problemas antigos. Desses que se somaram aos novos
de vetores, planejamento e orçamento, compras que chegaram com a pandemia. E hoje, praticamente
e armazenamento, auditorias, ensino e pesquisa após quatro meses dessa frase do ex-ministro, estamos
e formação de recursos humanos etc. ainda sem um novo Ministro da Saúde. Sem um direcio-
Quanto trabalho é feito sem que a população namento gestor quanto aos protocolos sociais, técnicos e
veja ou saiba... Mas o foco da mídia e das queixas terapêuticos para a Covid-19. Reafirmo que os problemas
está na crítica ao funcionamento dos serviços de antigos se somaram aos novos problemas.... Mas a gente
saúde – hospitais, postos de saúde, UPA, ambu- teima e segue firme!
latórios entre outros. É onde estou, minha mãe, Se a gente desanimar / Eu vou colher no
na assistência, dentro de um desses serviços de
saúde, que depende do SUS invisível para bem
pomar / A palavra teimosia1
funcionar. E esse bem funcionar depende tam- Se antes da pandemia desta cruel Covid-19 nós
bém de outros fatores como a própria capacidade éramos poucos, somos menos ainda agora na lida. Muitos
técnica e organizacional de seus micro (serviços trabalhadores da saúde foram afastados por idade ou por
e municípios) e macrogestores (Estado e União). serem portadores de comorbidades que os tornam mais
Depende ainda dos legisladores, das instâncias suscetíveis ao adoecimento. Se por vezes faltavam insu-
de controle social (Conselhos de Saúde), bem mos, seja materiais, seja estruturais, permanecem faltando.
como de controle externo (Tribunais de Contas, Se a rede de saúde já não enredava, o distanciamento
Ministério Público). entre os serviços aumentou. As restrições do isolamento
Sei que parece complexo, minha mãe, não im- diminuíram as reuniões formais e as possibilidades de
porta! Vale que você sempre soube que eu estava discussão da situação, os encontros informais para um
na trincheira de luta em defesa do SUS. De mãos café (em que se resolviam e se esclareciam muitas coisas),
dadas com meus pares ou mesmo sozinha perante aumentou o medo, as disputas, os desencontros, a falta
uma multidão de contrários... Porque depende, mãe, do esclarecimento. Aumentou a nossa solidão. Por estar-
fundamentalmente de nós, trabalhadores de saúde do mos paramentados (com os Equipamentos de Proteção
SUS, como agentes do Estado que somos, fazer essa Individual – EPI), face e cabelos tão recobertos, muitas
engrenagem girar na direção da população. vezes passamos ao lado de um colega que é amigo e
173

não o reconhecemos. Nossos olhares, mãe, ficaram mais

Foto: Scarlett Rocha / Mídia Ninja


distantes, cheio de névoas, a voz abafada, e os sorrisos
sumiram... Estamos isolados socialmente como todos e
isolados enquanto trabalhadores. Existe uma tensão, como
uma desconfiança... Meu colega que pediu minha caneta
emprestada, me devolveu ela contaminada (sem querer)?
Tudo ultimamente se tornou um risco, até se
sentar numa cadeira. Agora, antes temos que desinfetar
com álcool a 70%. E tudo demora mais, atender um
após o outro depende de procedimentos e cuidados
para evitar a transmissão da Covid-19. Nem todo mun-
do entende. Talvez nem todos cumpram exatamente os
exigentes cuidados. Vai saber? Isso gera muita tensão
e alguns conflitos entre as equipes.
Mas, para além disso, me pergunto: como estão
as gestantes? Delas, li uma notícia desanimadora, es- Profissionais da saúde
crito assim no site de notícias UOL6 “das 160 mortes Se acontecer afinal / De entrar em nosso são agredidos enquanto
registradas [de gestantes] entre o início da epidemia fazem manifestação
quintal / A palavra tirania1 pela vida, em Brasília,
e 18 de junho nada menos que 124 ocorreram no 1º de maio de 2020.
Brasil”, triste isso. Quem são essas mulheres e o que Encerro aqui esta carta, minha mãe, que mais
aconteceu a elas? Me pergunto sem parar... parece um muro das lamentações... Mas não é! É 6. UOL. Covid mata mais grávidas
no Brasil. Disponível em: https://no-
Pergunto também diante do meu espelho que apenas para te dar notícias, tentar te dizer que es- ticias.uol.com.br/ultimas-noticias/
permanece mudo sobre os pacientes oncológicos, os tamos trabalhando muito e estamos mais cansados, agencia-estado/2020/07/15/covi-
d-mata-mais-gravidas-no-brasil.
idosos, as crianças, os diabéticos, os hipertensos etc. Mas mais solitários, mas não estamos sozinhos e estamos htm?utm_source=facebook&utm_
medium=social-media&utm_cam-
fundamentalmente, onde está a vigilância em saúde do atentos. Que estamos na luta, lutando pela saúde da paign=noticias&utm_content=ge-
ral. Acesso em: 01 ago. 2020.
trabalhador? Quem e como estão sendo observados os população e pela sobrevivência do SUS. E que tudo
processos e ambientes de trabalho desses setores eco- está sendo registrado. Por nós trabalhadores, pela
nômicos ditos essenciais? A limpeza urbana, a produção população, pelos poetas, escritores, jornalistas, com-
de alimentos até sua chegada até nós, a produção de positores, acadêmicos, pesquisadores, sindicalistas,
medicamentos, material de limpeza, do álcool que agora enfim... por toda gente do bem, toda gente de fé, por
é essencial a todos – os plantadores de cana e os trabalha- todas as mães e todos mais que sabem o que é amor
dores da usina de beneficiamento... É o Estado ausente. e solidariedade. Eu quero que leia e conte p’ra toda
Mas quero voltar ao que me motivou a te escrever, gente, que nem o vírus nem a ‘tirania’ nos fizeram
minha mãe: nosso trabalho no SUS. Se antes havia assédio desistir de cantar, dançar, lutar e sonhar. Beijo. Te amo!
moral... nem sei dizer o quanto somos mais vigiados e
ameaçados atualmente, por todos os lados. Vizinhos, Pegue o tambor e o ganzá / Vamos pra rua
conhecidos, gestores e até mesmo a população que aten- gritar / A palavra utopia.
demos nos oprime com atos ou atitudes. Nem todos, é
claro, mas descontam em nós seus medos, desamparo, Samba da Utopia1
desconhecimento, desalentos.
Foto: Scarlett Rocha / Mídia Ninja
174

Democracia faz bem à saúde? Gestão do


trabalho e a Vigilância em Saúde do
1. Síntese adaptada de
capítulo de livro publicado.
HENNINGTON, E. et al. Saúde
Trabalhador (da saúde) 1

do trabalhador da saúde. In: Élida Azevedo Hennington


OLIVEIRA, S. S., et al, (Org.). Fátima Cristina Rangel Sant’Anna
Vigilância em saúde do trabalha-
dor: formação para ação. Rio de Dário Frederico Pasche
Janeiro: CDEAD/ENSP/Fiocruz,
2019. 280 p.

O conceito de trabalho em saúde é de origem sua imaterialidade passa a ser valorizado pelo capita-
relativamente recente na literatura da saúde cole- lismo contemporâneo que molda, controla, explora e
tiva. A partir dos anos 1980, esse conceito passa a manipula a subjetividade dos trabalhadores, ativando
transcender o enfoque tradicional que se restringia e organizando as relações de produção/consumo.
aos particularismos da análise das funções de cada A negligência com a saúde do trabalhador é
profissão de saúde. Assim, o conceito atual remete elemento intrínseco ao sistema produtivo capitalista,
ao conjunto de funções e atividades que se realizam corrigida paulatina e gradativamente pela ação política
nos estabelecimentos de saúde. Sob o rótulo ‘traba- dos trabalhadores e por processos de normatização
lho em saúde’, estão coisas tão distintas quanto os legislativa, até porque a preservação da saúde de
trabalhos de lavar roupa dos leitos, de contabilizar quem trabalha é, em alguma medida, benéfica aos
as despesas do hospital, de ler uma lâmina de hemo- propósitos da produção e do consumo.
grama, de examinar um paciente etc. Quando se fala Na atenção à saúde, processos terapêuticos e
em trabalho em saúde, não se entende como sendo de cuidado em determinadas situações de trabalho
2. NOGUEIRA, R. P. Perspecti- um processo único2. trazem importantes impactos à saúde dos Trabalha-
vas da qualidade em saúde. Rio
de Janeiro: Qualitymark, 1994. O universo dos sujeitos categorizados como dores e Trabalhadoras da Saúde (TS) e se constituem
profissionais da saúde caracteriza-se por amplo con- em fonte de sofrimento/adoecimento. Tais situações
tingente de trabalhadores, com diversificadas compe- convocam à elaboração de um sistema de Vigilância
tências, habilidades, especialidades, cargos e funções, em Saúde do Trabalhador ( Visat) que dê conta das
diferentes níveis de escolaridade e de autonomia especificidades mencionadas, ampliando o enfoque
no exercício da profissão e ocupação. Além disso, tradicional em favor de uma ótica que privilegie o
encontram-se inseridos em equipes com divisões de significado do trabalhar em saúde hoje.
trabalho mais horizontalizadas ou bastante verticaliza- Referimo-nos aos TS como aqueles que acolhem,
das, de modo geral, obrigados a estabelecer relações cuidam e tratam e se responsabilizam pela saúde das
entre si, porque a maioria dos processos de trabalho pessoas nos territórios. Tudo isso exige conhecimento
são coletivos, planejados e desenvolvidos de modo técnico-científico, esforço físico e mental, comprome-
3. ASSUNÇÃO, A. A., et al. integrado em equipes multiprofissionais3. timento, dedicação. Frequentemente, esquece-se que,
Trabalhar na saúde. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2011. Neste ensaio, o foco recai sobre o processo de como qualquer outro trabalhador ou trabalhadora, estão
trabalho em saúde como prestação de serviço nas expostos a variados riscos dentro e fora do ambiente
unidades de saúde, implicando a presença humana de trabalho. Podem se acidentar, adoecer e morrer em
em todos os seus componentes e etapas. Isto é, pres- decorrência das atividades laborais ou em situação de
supõe o ser humano e suas necessidades encarnados trabalho, no trajeto de casa para a unidade de saúde,
como os objetos de intervenção e com a finalidade por exemplo, ou mesmo durante o trabalho realizado no
de produzir ações de saúde ou, precisamente, de território. Sofrem desgaste em empregos precarizados,
produzir saúde. Em sua dimensão relacional, envolve trabalhando sob gestão pouco democrática nos serviços
atividades corporais, intelectuais, criativas, afetivas e com exigências de produtividade. Muitos vivenciam
e comunicacionais. O trabalho em saúde vivo em precárias condições de trabalho, jornadas exaustivas,
ato pressupõe o trabalhador como sujeito ativo do histórias de assédio moral e labutam em territórios muitas
4. MERHY, E. E. Saúde. São trabalho, como produtor de saúde e de si mesmo4. vezes degradados e dominados pela violência.
Paulo: Hucitec, 2002.
Tido como indispensável à produção e acumula- O debate em torno da Visat está relacionado
ção na perspectiva de mercado, o trabalho em saúde na com a dinâmica pela qual se dão as transformações
175

no mundo do trabalho e as formas como são pen- caráter permanente para tratar conflitos e demandas
sadas as políticas públicas, em especial a política decorrentes das relações de trabalho e contribuir para
de saúde, em diferentes contextos sociotemporais. o efetivo funcionamento do SUS.
Historicamente, a luta por saúde no trabalho está Em 2009, foi criada a Política de Atenção Integral
intensamente imbricada nas lutas por cidadania. No à Saúde do Servidor Público para a implementação das
Brasil, as mudanças no que se refere às modalidades ações de vigilância nos ambientes e processos de trabalho
de participação da sociedade na formulação, gestão e e a promoção à saúde do servidor público federal.
avaliação das políticas públicas têm sido primordiais na A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas)
reconstrução das relações entre Estado e Sociedade e, determinou o período de 2006 a 2015 como a déca-
consequentemente, nos avanços em defesa da saúde da dos recursos humanos em saúde nas Américas.
dos trabalhadores e trabalhadoras. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Opas
Ao resgatar a luta dos TS por um trabalho saudável, dedicaram o ano de 2006 à valorização dos recursos
destacamos aqui pontos de interseção nas trajetórias das humanos em saúde. O Ministério da Saúde do Brasil
lutas por uma saúde pública enquanto dever do Estado acompanhou esse movimento, consagrando esse ano
e direito universal. Estes configuram o movimento pela como o Ano dos Trabalhadores em Saúde, chamando
5. RANGEL-SANT’ANNA, F. C.
reforma sanitária, a ampliação da democracia no Brasil atenção para necessidade de desenvolvimento de Controle Social e a Saúde do
Servidor Público. Rio de Janeiro,
pós-ditadura e a pauta de reivindicações construída pelos políticas voltadas para o setor. UFRJ; UNIRIO; SIASS; SRH/
TS no decorrer dos últimos anos. Em 2012, a Política Nacional de Saúde do Trabalha- MP, 2011.

O engajamento dos TS na defesa da saúde como dor e da Trabalhadora (Portaria GM/MS nº 1.823)6 visou 6. BRASIL. Ministério da Saúde.
Portaria GM/MS nº 1.823 de 23
um bem coletivo e público não se distancia das lutas promover, orientar e subsidiar a atenção integral à saúde de agosto de 2012. Institui a
Política Nacional de Saúde do
pelas transformações cotidianas das condições objetivas do trabalhador, enfatizando as ações de vigilância para Trabalhador e da Trabalhadora.
Diário Oficial da União. 24
de realização do trabalho no setor5. Tais dimensões de reduzir mortes, acidentes e adoecimentos relacionados Ago. 2012.
luta são indissociáveis, mesmo no que se refere aos tra- ao trabalho. Em 2013, em Recife, o III Fórum Global de
balhadores inseridos no setor privado. No conjunto das Recursos Humanos em Saúde reafirmou o papel central
políticas públicas, em uma abordagem mais ampla dos dos trabalhadores na construção e fortalecimento dos
direitos sociais, a conquista da saúde no trabalho requer sistemas de saúde: ‘Uma verdade universal: não há saúde
a efetivação de políticas públicas mais justas, entre elas, sem trabalhadores da saúde’. A Declaração de Recife abor-
as de regulamentação e regulação do trabalho. dou os principais desafios referentes à força de trabalho
Muitos são os desafios, mas também observamos em saúde e as ações para enfrentá-los a fim de melhorar
avanços para a força de trabalho em saúde especial- esse cenário e a qualidade de assistência: trabalhadores
mente no campo político-institucional e legal-normati- em número suficiente, com boa formação que resulte
vo. Destacamos os debates nas Conferências de Saúde, em competências técnicas e sociais para que possam
especialmente a partir da VIII Conferência Nacional de responder às necessidades e expectativas da população.
Saúde (CNS), marco da Reforma Sanitária e criação do Em 2014, a LXVII Assembleia Mundial da Saúde
SUS; a I Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador renovou os compromissos para a cobertura universal
e a I Conferência Nacional de Recursos Humanos em e implementação de estratégia global de recursos
Saúde (CNRHS). Em seguida, a II CNRHS e a aprovação humanos para a saúde a partir da carta de Recife.
da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos Em 2016, a OMS publicou o documento
do SUS (NOB/RH-SUS/2000) que ofereceu subsídios ‘Global strategy on human resources for health:
às discussões da III Conferência Nacional de Gestão workforce 2030’, reiterando que os sistemas de
do Trabalho e da Educação na Saúde e à criação da saúde dependem dos TS para funcionar adequa-
Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na damente. Para tanto, destaca-se a necessidade de
Saúde (SGTES) do Ministério da Saúde em 2002. adoção de políticas apropriadas por parte dos
Marco na discussão das relações de trabalho países, de investimento estratégico e gestão de
no setor público foi a criação da Mesa Nacional de agenda da força de trabalho em saúde.
Negociação Permanente do Sistema Único de Saúde As bases jurídico-legais para uma Polí-
(MNNP-SUS), fórum paritário de negociação, criado tica Nacional de Saúde do Trabalhador são
em 1993 e reinstalado no ano de 2003, reunindo bastante expressivas. Normas e instrumentos
gestores públicos, prestadores de serviços privados legais são permanentemente produzidos e
da saúde e entidades sindicais nacionais representa- atualizados com dinamicidade nos diversos
tivas dos TS. Visou à democratização das relações de campos do direito. Entretanto, ainda há muito a ser
trabalho na saúde, instituindo processos negociais de feito na prática em prol da saúde e segurança dos TS.
176

Há uma grande diversidade de cenários de traba- favorecem a descoberta de caminhos para enfren-
lho em saúde, tais como hospitais, clínicas, laborató- tamento dos problemas de saúde que afligem o
rios, centros de saúde. Mesmo quando nos referimos trabalhador no dia a dia.
à atenção primária, tendo em vista a extensão do ter- Defendemos que dispositivos como a cogestão
ritório brasileiro e sua heterogeneidade sociocultural, são um divisor de águas da Visat na saúde, pois, a
há múltiplas e diferenciadas redes básicas coabitando partir desse modo de gerir o trabalho, é possível criar
no SUS e diferentes realidades de trabalho diante da espaços de discussão e encontrar soluções para os
diversidade dos 5.570 municípios brasileiros. O SUS problemas de forma compartilhada e horizontaliza-
atende cerca de 70% da população brasileira, mais de da pelos coletivos de trabalhadores que vivenciam
190 milhões de pessoas e é o principal empregador situações comuns, rompendo com a alienação e o
de TS – 80% da força de trabalho do setor, o que estranhamento. A atenção básica como porta de en-
representa quase 2 milhões de empregos. Na Atenção trada e ordenadora do sistema de saúde pode ser o
Básica, existem atualmente cerca de 42 mil equipes cenário ideal para novas experimentações nas formas
de saúde da família, 25 mil equipes de saúde bucal de organizar e gerir o trabalho em saúde, assumindo
7. CARVALHO, M. N., et al. e 260 mil Agentes Comunitários de Saúde (ACS)7,8. formas de gestão democráticas como dispositivos
Necessidade e dinâmica da força
de trabalho na Atenção Básica Diante dessa diversidade, devemos buscar fugir de intervenção que pautam a saúde do trabalhador
de Saúde no Brasil. Ciênc.
Saúde Colet., v. 23, n. 1, p.
da lógica operativa do Ministério da Saúde de padro- e colocam na roda a equipe e os diferentes sujeitos
295-302, 2018. nização, normalização e homogeneização também – trabalhadores, gestores e usuários – em busca de
8. PAIM, J., et al. The Brazilian quando discutimos ações de Visat. Não há receita estratégias e soluções para os problemas que afetam
health system: history, advances,
and challenges. Lancet, v. 377, pronta e única. No máximo, podemos discutir alguns os TS. Por consequência, repercutem na própria gestão
n. 9779, p. 1778-1797, 2011.
caminhos, estratégias e posicionamentos em busca e nos serviços prestados à população.
de um modo de atuar na prevenção e promoção da Sob uma gestão democrática, é possível pautar,
saúde dos trabalhadores da atenção básica. discutir e implementar medidas de intervenção so-
Uma das premissas da intervenção em saúde bre os determinantes e condicionantes do processo
é a realização de ‘diagnósticos locais’ que incluam saúde-doença-cuidado relacionado aos TS nos dife-
as condições de saúde e trabalho nos territórios e rentes territórios. É possível criar mecanismos de
possibilitem quantificar e qualificar os fenômenos acolhimento do sofrimento do trabalhador e de en-
que devem ser enfrentados pela vigilância. caminhamentos de suas demandas e necessidades de
Os serviços de saúde podem e devem mobili- saúde (inclusive de promoção, prevenção/proteção,
zar os TS para utilizar dados existentes e construir recuperação e de reabilitação), dar apoio ao desenvol-
sistemas locais de informação, de modo a haver um vimento do seu trabalho nos serviços de saúde como
monitoramento sobre a situação de saúde desse grupo forma de empoderamento e de maior qualificação
de trabalhadores e uma organização locorregional do seu fazer, e permitir que o TS saia do seu lugar
com apoio do Centro de Referência em Saúde do de aparente desânimo, descaso ou indiferença e
Trabalhador (Cerest) e do Núcleo de Apoio à Saúde seja desafiado a adquirir novos conhecimentos que
da Família (Nasf ), e a proposição de ações coletivas potencializem sua prática e que o ajudem a refletir,
de enfrentamento. analisar e produzir saúde de forma embasada, crítica
Os modos de fazer gestão do trabalho são e efetiva – para si, para o outro e coletivamente.
o fundamento para organizar a vida no trabalho Pautar os temas da saúde do trabalhador permite
e, consequentemente, interferir diretamente na a elaboração de planos de intervenção considerando
vida do trabalhador e na sua saúde. Existem fortes diretrizes do SUS e a interpretação-ação dos trabalha-
indícios que o cerne da discussão sobre a saúde dores, que produzem afetos e são afetados em sua
do trabalhador da saúde está vinculado à forma condição de sujeito no processo de pensar-fazer saúde.
como se dá a gestão no cotidiano e o lugar que o Reconhecer que, para uma atuação competente dos TS,
trabalhador ocupa nesse processo. Aqui e acolá, são necessários saberes, mas também atitudes, anco-
nos serviços que preconizam (e realizam) uma radas na perspectiva da ação autônoma e responsável.
gestão democrática e participativa, as pessoas ado- A cogestão faz essa aposta: capacidade de ação
ecem menos e se sentem mais realizadas. Nesses criativa e coletiva, que aponta para novas soluções dos
espaços de fala e escuta qualificada, conseguem problemas e singulariza sujeitos, que se moldam na
ter seu sofrimento ou adoecimento identificados, lida e no manejo de situações que o despertam para
acolhidos e encaminhados pelo coletivo de traba- a reflexão-crítica-ação. Esta é a própria natureza da
lho. A problematização e a gestão compartilhada cogestão: incluir para influenciar.
177

Somos moldados fortemente pelo trabalho, que assim, sujeitos adoecidos, resignados à sua condição
produz em nós traços de humanidade. Portanto, pen- de insumos, de recursos (humanos). TS não devem ser
sar em saúde do TS implica pensar nas formas de encarados como meros recursos, e, sim, como força
gestão do trabalho. Quando não se aposta na autono- de trabalho criativa e singular que deve ter sua saúde
mia corresponsável do trabalhador, estimula-se uma preservada e protegida. São potência em defesa da
subjetividade que renuncia ao desejo ao trabalho e vida. Por tudo isso, afirmamos: democracia faz bem
reforça a obediência e a conformidade. Moldam-se, à saúde dos trabalhadores.

Saúde do Trabalhador da saúde: entre a


defesa e a concretização de direitos
Claudia Rejane de Lima

As reivindicações por melhores condições de das Lesões por Esforços Repetitivos/Doenças Oste-
trabalho e sua relação com a saúde sempre mobiliza- omusculares Relacionadas ao Trabalho (LER/Dort),
ram as lutas do movimento sindical e compuseram as da fadiga, dermatites, dos transtornos mentais, além
pautas de negociação, algumas vezes de forma central, do risco de agressão de usuários, dos acidentes com
outras de forma complementar às pautas econômi- perfurocortantes e de outras situações frequentes no
cas. Estas que, geralmente, são o principal foco dos trabalho em saúde.
sindicatos em todos os setores, inclusive na área da
saúde, mesmo levando-se em conta que o trabalho A proteção à saúde como direito e a realidade
nesse setor é reconhecidamente insalubre e penoso, dos fatos
realizado em geral sob condições adversas, conforme A proteção à saúde dos trabalhadores é um di-
desvelado recentemente neste contexto de pandemia. reito assegurado na legislação trabalhista e na Consti-
A falta generalizada de EPI ganhou visibilidade na tuição Federal, que, a partir de 1988, a colocou como
mídia. Contudo, no seu cotidiano, os profissionais de uma área de competência também da saúde pública,
saúde se deparam também – e há muito tempo – com no rol de responsabilidades do SUS, demarcando não
outras dificuldades, como a falta de medicamentos, só a ampliação do seu enquadramento jurídico-insti-
insumos, equipamentos e instalações adequadas; tucional como também referências éticas e conceituais
jornadas extenuantes; número de funcionários insufi- visando a novo campo de práticas. Sob a perspectiva
ciente para a demanda de serviços. Vínculos de traba- da saúde pública, os agravos à saúde gerados pelo
lho precários; além da própria natureza do trabalho, trabalho são resultado de determinações sociais re-
marcada por elevada sobrecarga psíquica, por lidarem lativas à inserção dos trabalhadores nos processos
diuturnamente com situações-limite, que implicam produtivos e do conjunto de condições derivadas de
decisões sobre a vida, a morte e o sofrimento humano. suas contradições e assimetrias de poder, visão que
Se, por um lado, a importância social do trabalho nesse vai além da exposição ocupacional a fatores de risco.
setor pode ser uma fonte de satisfação, por outro, as Em que pese a existência de um vasto arcabouço
condições em que ele se realiza acabam sendo fonte jurídico, há uma defasagem entre os direitos pres-
de esgotamento e insatisfações1 com repercussões critos nas leis e a realidade do trabalho na saúde, 1. ASSUNÇÃO, A. A., et al.
Barreiras e facilitadores na
importantes na saúde dos trabalhadores e na própria especialmente no setor público, no qual as relações implantação da política nacional
de promoção da saúde dos
qualidade dos serviços. de trabalho são marcadas por ambiguidades entre o trabalhadores do SUS. Belo
Aos riscos biológicos, popularizados pela Co- papel do Estado como empregador e a sua função Horizonte: UFMG, 2017.

vid-19, somam-se outros riscos (físicos, químicos, pública. Pelo menos três aspectos parecem interferir na
mecânicos etc.): a exigência de um conjunto de es- materialização dos direitos dos trabalhadores públicos
forços físicos, emocionais e cognitivos, geradores de e, por sua vez, em seu correlato, nas obrigações do
desgaste, que se expressam ao longo do tempo sob a Estado como empregador: 1) o fato de o vínculo de
forma de adoecimento, como é o caso, por exemplo, contratação ser considerado administrativo, relação
178

que considera o trabalhador como parte do Estado a As atividades da MNNP-SUS infelizmente fo-
serviço do interesse público; 2) as ações de fiscalização ram suspensas em 2019 pelo governo federal, no
e inspeção, funções típicas de Esta do, em que ele bojo das medidas de desconstrução dos espaços
próprio não se constitui em objeto; 3) a não regula- participativos e de controle social das políticas
mentação do direito à negociação coletiva, que é um públicas. Outras iniciativas importantes que vinham
instrumento básico para a resolução de conflitos e sendo desenvolvidas pelo Ministério da Saúde, por
2. BRAGA, D. G. Conflitos, pactuação de compromissos nas relações de trabalho2. meio do Departamento de Gestão e Regulação do
eficiência e democracia na
gestão pública. Rio de Janeiro: Os trabalhadores do setor privado também Trabalho em Saúde (Degerts), de apoio à estrutura-
Fiocruz, 1998. enfrentam condições bastante adversas e números ção de mesas regionais de negociação, em parceria
elevados de acidentes de trabalho. Contudo, as rela- com Departamento Intersindical de Estatística e
ções de trabalho, o reconhecimento de assimetrias e Estudos Socioeconômicos (Dieese); o investimento
conflitos de interesses e os direitos trabalhistas estão na educação permanente, em parceria com uni-
claramente delimitados do ponto de vista social e versidades, e outras ações e programas também
jurídico, como resultado das lutas travadas desde os foram interrompidos. A construção de condições
primórdios do capitalismo. para a implantação do Protocolo 008/2011 estava
Embora também tenham uma importante tra- entre as prioridades do Degerts e da MNNP-SUS,
jetória de lutas em defesa dos interesses da classe a exemplo do curso de atualização em Gestão das
trabalhadora, inclusive no processo de democrati- Condições de Trabalho e Saúde dos Trabalhadores
zação do País e na reforma sanitária que deu origem da Saúde (Cegest), realizado pela Universidade
ao SUS no Brasil, os trabalhadores do setor públi- Federal de Minas Gerais (UFMG) entre 2012 e
co conquistaram o direito à organização sindical 2014, envolvendo, a princípio, trabalhadores de
somente em 1988 e, como mencionado, sem o nível universitário, depois estendido para os ser-
reconhecimento do seu principal instrumento de vidores de nível médio.
ação, que é a negociação coletiva. A elaboração e aprovação do Protocolo
008/2011 foi um avanço importante, porque am-
Conquistas negociadas em espaços pliou anos-luz as referências para as ações em
democráticos de negociação saúde do trabalhador em relação às práticas tra-
À revelia das lacunas e controvérsias jurídicas, dicionais, hegemônicas no setor privado, que a
os trabalhadores do setor público contabilizam con- restringem à noção de risco ocupacional e a apli-
quistas importantes, a exemplo da Mesa Nacional de cação de normas. O protocolo reconhece a gestão
Negociação Permanente do SUS (MNNP-SUS), que foi do trabalho, o empoderamento dos trabalhadores,
criada em 1993, por iniciativa do Conselho Nacional a negociação coletiva e outros aspectos inovado-
de Saúde, e que funcionou de forma intermitente até res como estratégicos para o desenvolvimento de
2003, quando foi reinstalada por iniciativa do Minis- políticas e programas de promoção da saúde dos
tério da Saúde. A MNNP-SUS é um fórum paritário de trabalhadores nas unidades de trabalho.
pactuação de temas no campo da gestão do trabalho Conforme expresso no seu art. 2º sobre os princí-
em saúde, da qual participam representantes dos pios, a Política Nacional de Promoção da Saúde do Tra-
trabalhadores, gestores públicos e privados, o Con- balhador do SUS tem como premissas a universalidade,
selho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o ao abranger todos os trabalhadores e trabalhadoras
Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde do SUS, independentemente do vínculo empregatí-
(Conasems) e prestadores de serviço filantrópicos. cio; a democratização das relações de trabalho, que
Dentre os protocolos negociados no âmbito aponta para a importância da participação dos traba-
da MNNP-SUS, vale destacar três que dizem respeito lhadores na formulação, planejamento, gestão e na
de forma direta às condições de trabalho: o Protoco- avaliação de políticas e ações referentes à saúde do(a)
lo 007/2007, sobre a implementação da Política de trabalhador(a); a integralidade da atenção à saúde
Desprecarização do Trabalho no SUS; o Protocolo do trabalhador, com foco em ações de promoção da
008/2011, que instituiu as diretrizes para a Política saúde, prevenção de agravos, vigilância, assistência,
Nacional de Promoção da Saúde do Trabalhador do recuperação e reabilitação; o papel estratégico da
3. BRASIL. Ministério da Saúde.
Protocolo 008/2011. Institui as SUS; e o Protocolo 009/2015, que estabelece dire- Negociação Coletiva do Trabalho em Saúde; a Valori-
diretrizes da Política Nacional trizes para a Agenda Nacional do Trabalho Decente, zação do Trabalhador; a Humanização do trabalho em
de Promoção da Saúde do
Trabalhador do Sistema Único de formulado com a parceria e apoio da Organização saúde; a Intersetorialidade; e a Educação Permanente
Saúde – SUS. Brasília, DF: Diário
Oficial da União. 1 Dez. 2011. Internacional do Trabalho (OIT). do(a) Trabalhador(a) do SUS3.
179

Desafios à consolidação dos direitos No entanto, também é diversificada a compre-


Como diz Norberto Bobbio4(25), “nem tudo que é ensão dos processos saúde-doença relacionados 4. BOBBIO, N. A era dos

desejável e merecedor de ser perseguido é realizável”. com o trabalho e, por conseguinte, a transformação direitos. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004.
Segundo ele, não basta fundamentar ou proclamar dos problemas em reivindicações. Geralmente, há
um direito; é necessário um conjunto de condições uma narrativa ambígua em defesa dos princípios da
objetivas para sua viabilização4. São muitas e com- Saúde do Trabalhador, sintetizados nas diretrizes do
plexas as barreiras para a concretização das diretrizes SUS, mas, ao mesmo tempo, um reforço das práticas
pactuadas na MNNP-SUS e, em uma perspectiva mais tradicionais, segundo marcos da saúde ocupacional,
ampla, os direitos assegurados na Constituição Federal consolidados na legislação trabalhista de Saúde e
de 1988, pois seus avanços ou recuos são resultado Segurança no Trabalho (SST).
de determinações sociais, políticas e econômicas. Análise feita por Cardoso e Lima5 em estudos 5. CARDOSO, A. C. M., et
al. A negociação coletiva e as
A defesa e consolidação dos direitos depen- realizados com base no banco de dados do Sistema possibilidades de intervenção
nas situações de risco à saúde
dem, em grande medida, da pressão exercida pela de Acompanhamento de Contratações Coletivas do no trabalho. São Paulo: Rev

sociedade e, particularmente no caso das relações Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Bras Saude Ocup., n. 45, p.
1-11, 2020. Disponível em

de trabalho, da força e organização do movimento Socioeconômicos (Sacc-Dieese) sobre o tema saúde do https://www.scielo.br/pdf/rbso/
v45/2317-6369-rbso-45-e2.pdf.
sindical. No tocante à saúde dos trabalhadores, nem trabalhador aponta que, em grande parte dos acordos Acesso em: 01 ago. 2020.

sempre as formulações e pactuações estabelecidas e convenções coletivas estudados, as cláusulas se


nos fóruns com a participação de representantes de limitam a reproduzir a legislação trabalhista, ou têm
organizações sindicais nacionais se desdobram em um alcance limitado para transformar as situações de
ações efetivas em suas entidades de base, situação trabalho que causam adoecimento.
que se verifica também, no caso da MNNP-SUS, em As autoras mencionam pesquisa realizada por
relação às entidades representativas dos gestores. Cardoso et al.6(6) sobre as cláusulas negociadas entre 6. CARDOSO, A. C. M., et al.
A saúde do trabalhador no pro-
Por serem decisões consensuais, seriam esperados, 2010 e 2012, em que, “do total de cláusulas registradas cesso de negociação coletiva no
Brasil. Est. Pesq., n. 76, 2015.
em tese, compromissos compartilhados também na sobre todos os temas (46.806 cláusulas), aproximada-
sua efetivação. mente 20% (9.492 cláusulas) se referiam a questões
A fragilidade de elos que garantam, na ponta, a relativas à saúde do trabalhador”, percentual que
transformação de diretrizes nacionais em políticas e indica a preocupação dos sindicatos com o tema.
programas de promoção da saúde dos trabalhadores, Contudo, grande parte dessas cláusulas referiam-se
adequados a cada realidade de trabalho é, sem dúvida, a condições básicas há muito tempo previstas em
uma grande dificuldade. Se, por um lado, há resis- lei, como o fornecimento de EPI e uniformes, assim
tência dos gestores, por outro, no cotidiano sindical, como os adicionais de insalubridade e periculosidade,
geralmente os problemas relativos às condições de que aparecem com destaque, contudo sem qualquer
trabalho aparecem de forma fragmentada e pontual menção às necessárias mudanças nos processos de
na agenda, com pouca ênfase para uma intervenção trabalho para eliminar ou controlar suas fontes de
mais abrangente nos processos de trabalho. risco. A ênfase na reparação previdenciária dos danos
Os problemas ganham visibilidade nas situações causados à saúde pelo trabalho, na monetização dos
mais críticas, a exemplo do contexto da pandemia, riscos, lamentavelmente, ainda é um traço forte na
quando a falta generalizada de EPI mobilizou sindi- ação sindical.
catos e conselhos profissionais, cada um a seu modo Os estudos mencionados referem-se a sindicatos
e no âmbito dos interesses de seu espaço de repre- de diversos setores produtivos do setor privado. Uma
sentação. A unificação das ações é um desafio, dada a análise mais consistente do setor público demandaria
multiplicidade de categorias profissionais envolvidas pesquisas em outras fontes, embora, de modo geral,
no trabalho em saúde, a hierarquia estabelecida entre perceba-se que suas reivindicações e negociações
elas na organização dos processos de trabalho e a seguem a mesma linha. Dada a natureza do trabalho
diversidade de vínculos de contratação, advindos das na esfera pública, muitas vezes, no cotidiano do tra-
terceirizações e outras formas precarizadas de inserção balho – que é no qual os problemas se materializam
nos serviços, como os contratos temporários, exten- e o alcance das medidas de proteção à saúde são
samente utilizados na administração pública. Talvez colocadas à prova –, a defesa da saúde dos trabalha-
essa heterogeneidade não fosse uma barreira para as dores se perde nas bandeiras políticas de lutas mais
ações em saúde do trabalhador se fosse considerado gerais e acaba sendo encoberta, sob a reivindicação
o princípio da universalidade e o caráter coletivo do genérica de condições de trabalho.
trabalho em saúde. Em um país de tradição autoritária como o Brasil,
180

onde direitos básicos são sistematicamente desrespeita- lhadores, é importante dar um passo além, para
dos e, desde o golpe de 2016, desconstruídos de forma superar o descompasso entre a defesa formal dos
galopante em todas as áreas, especialmente no trabalho, direitos e as iniciativas efetivas para sua concretiza-
as lutas não são fáceis. Os sindicatos são desafiados cons- ção, o que implica, entre outras coisas, considerar
tantemente a enfrentar temas estruturais, relacionados a saúde em sua dimensão política e ideológica e
com o emprego e a sobrevivência; e, no contexto atual, a centralidade do trabalho nas relações sociais,
a defesa da democracia apresenta-se como prioridade. dimensões que perpassam as diretrizes pactua-
Contudo, sem desconsiderar a complexidade das pelos sindicatos nos protocolos mencionados
das lutas, no que diz respeito à saúde dos traba- neste artigo.

Vida no hospital e suas conexões


Jorge Mesquita Huet Machado
Marilena Villela Correa
Luciene de Aguiar Dias

Seguindo no almanaque, revisitamos um texto No campo da saúde do trabalhador, o processo


publicado na revista de Epidemiologia e Serviços de de trabalho tornou-se uma categoria fundamental,
1. MACHADO, J. M. H., et al. Saúde de Jorge Machado e Marilena Correa em 20021; possibilitadora de análises sobre o adoecimento e
Conceito de vida no trabalho
na análise das relações entre trazendo uma tentativa de imersão no trabalho em o sofrimento ligados a ele, permitem propor novos
processo de trabalho e saúde no
Hospital. Inf. Epidem. SUS. v. 11,
saúde e um olhar sobre o trabalho no setor saúde e modelos de abordagem do processo saúde-doença.
n. 3, p. 159-166, 2002. enfatizando algumas contradições do modelo domi- Disso resultaram análises sobre o problema do des-
nante de segmentação da prática das corporações de gaste físico e psíquico ligado a tipos específicos de
trabalhadores dos serviços de saúde e do trabalho ante atividade produtiva ou laborativa. De certa manei-
as restruturações contínuas de atividades e ainda do uso ra, essas análises não deixam de refluir na direção
de tecnologias em seus múltiplos campos de práticas. do modelo médico o reconfigurando, na medida
A visão hegemônica da medicina e mesmo da em que nos seus resultados apontam indicadores
epidemiologia encara o processo de adoecimento de morbidade e ou de mortalidade – ferramentas
como um fenômeno biológico individual das pessoas, fundamentais no combate aos agravos impostos aos
abstraindo outras dimensões fundamentais da vida, trabalhadores e demais pessoas (no caso de agravos
com destaque para a questão das relações sociais, ambientais) –, mas com relativo prejuízo, ao deixar
humanas ou interpessoais, e a própria atividade de à sombra a contribuição mais original do modelo da
trabalho (ou a privação do trabalho pelo desemprego), saúde do trabalhador, que seriam as considerações e o
para a qual todos nós somos formados e da qual de- detalhamento dos outros elementos acima indicados
pende, em grande parte, a própria produção material – as relações humanas condicionadas por recortes de
da vida de cada um. classe, raça e gênero em suas relações com o trabalho,
o sentido relacionado as necessidades de produção e
Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil

reprodução e a significação simbólica cultural.


Colocamo-nos diante do desafio de produzir uma
abordagem do trabalho em saúde que guarde relações
aos modelos de estudo do campo da saúde do traba-
lhador, mas com ênfase nos últimos elementos citados.
Estudar o trabalho em saúde pode compreender uma
ampla gama de atividades de produção e serviços.
Processo de trabalho no hospital
O processo de trabalho em saúde é múltiplo
e complexo, ele pode ser desenvolvido em diversos
tipos de serviços e produção no âmbito do comple-
181

xo industrial da saúde. Embora se fale de SUS e de Ou seja, é a prescrição do trabalho que compreende:
atenção integral à saúde como paradigmas, várias divisão de trabalho, qualificação, condições; aspectos
atividades intersetoriais que se articulam em um pro- afetivos e relacionais implicados no posto de trabalho
cesso de trabalho voltado para promoção da saúde ocupado; o grau de iniciativa e autonomia; o grau
e reprodução social permanecem em uma situação de ambiguidade sobre os resultados da tarefa; status
de articulação de determinação apartada de uma social da atividade; possibilidade de cooperação e
operação integrada. A ação de promoção da saúde comunicação; entre muitos outros aspectos.
de cunho político e intersetorial é negligenciada. O Para Palácios, a pouca participação e controle
dominante é a reprodução de um modelo em que o sobre o processo de trabalho no hospital resultaria
trabalho no hospital representa um centro irradiador em carga psíquica. Não há dúvida de que o desgaste
de organização, voltado para um modo de trabalhar estaria relacionado com os aspectos acima enumera-
em saúde hospitalocêntrico centrado em ações de dos. Entretanto, a nosso ver, há, muitas vezes, a trans-
alta densidade tecnológica e de uso de equipamen- posição e a operacionalização de categorias analíticas
tos e de terapias farmacológicas que resulta em um construídas a partir do modelo do trabalho industrial,
modo de produção limitado ao setor saúde e em que devem ser questionadas na análise do trabalho
uma ação pouco articulada em torno da promoção em saúde e do trabalho hospitalar. Conhecer um
da saúde. Está fortemente diferenciado e organizado hospital implica, por um lado, descrevê-lo por meio
com fragmentações no campo de práticas e alicerçado de dados secundários, que constituem os indicadores
na hierarquia entre os grupos profissionais envolvidos hospitalares rotineiramente produzidos. Todavia, para
no trabalho em saúde, em função do próprio discurso além disso, em um estudo que se apoie em instrumen-
médico-hospitalar dominante. tos metodológicos da antropologia, temos buscado
inspiração nos textos de Latour e Woolgar em Vida
Aspectos organizacionais do hospital no Laboratório4, e sua proposta de uma antropologia
Retomando a literatura existente sobre saúde simétrica, da sociologia e outras disciplinas do campo
e trabalho no hospital, observa-se que a questão do das ciências humanas que nos possibilitem observá-lo,
sofrimento ou desgaste está sempre colocada em auscultá-lo, penetrar na densidade das questões que
contraste com a abordagem dos aspectos organiza- uma unidade complexa como esta apresenta. O ca-
cionais do hospital. O que, sem dúvida, corresponde minho que o hospital percorre em sua história como
à ênfase na natureza do trabalho hospitalar, levando instituição aponta sua transformação de depositário de
em consideração aspectos positivos e analisando a doentes e excluídos em locus de extrema concentração
inserção afirmativa dos trabalhadores do campo da de tecnologia e saber. Procuramos nos deter, neste
saúde na modalidade do trabalho hospitalar e sua contexto de alta complexidade, em aspectos rele-
permanência, a despeito de aspectos penosos ligados vantes direcionadores das transformações humanas
a esse tipo de trabalho. ocorridas e desencadeadas pelo trabalho no interior
O modelo dominante de análise do trabalho do hospital. É este que vai ser o delimitador do lugar,
hospitalar dá muita ênfase aos aspectos reconheci- como espaço aberto, no qual acontecem as interações
damente associados ao sofrimento psíquico. Essa entre trabalhadores, doentes e seus familiares com
categoria é definida ora como sinônimo de ‘mal-estar os objetos, técnicas, tecnologias, ferramentas e pro-
e de sentimento de vida contrariada’ em Palácios2, ora cedimentos terapêuticos. Dizem-se espaço aberto, 2. PALÁCIOS, M. Trabalho
hospitalar e saúde mental: o caso
para Dejours3 – como um espaço que se caracteriza pois as relações existentes no interior de um hospital de um hospital geral e público
do município do Rio de Janeiro,
por uma luta contra a doença mental. Para este últi- estão permeadas por elementos externos do presente 1993. Dissertação (Mestrado em
mo, embora a organização do trabalho exerça uma e do passado e que vão se relacionar com a vida de Saúde Coletiva). Rio de Janeiro:
Universidade Estadual do Rio de
ação específica sobre o aparelho psíquico, não existe seus personagens, que podem ser apreendidos pelas Janeiro, 1993.

doença mental específica do trabalho. O que ocorre vivências internas ao hospital. Ao lado de novos dile- 3. DEJOURS, C. Travail usure
mentale essai de psycopathologie
muitas vezes, em função daquela luta, é o surgimen- mas sobre como estabelecer o bom atendimento ao du travail. Paris: Le Centurion,
1980.
to de doenças somáticas mediadas pelo sofrimento paciente, mantêm-se antigos problemas: priorizar a
4. LATOUR, B., et al. A vida
psíquico. Esses autores concordam que o sofrimento ciência, a atenção, o suporte à dor e ao sofrimento. de laboratório: a produção de
psíquico estaria relacionado com a impotência diante fatos científicos. Rio de Janeiro:

das formas objetivas em que se organiza o trabalho. Vida no hospital Relume-Dumará, 1997.

Essa organização configura um conjunto de normas Falamos em uma perspectiva de estudar os mo-
e regras que estabelecem a forma como o trabalho dos de vida no hospital, guardando a ideia de que as
deve ser executado em uma unidade de produção. relações de trabalho estão englobadas em relações
182

sociais e relações humanas amplas por parte daqueles e incluindo modelos centrados em situações de risco
que ali convivem, tanto os que trabalham em suas e efeitos para a saúde;
diversas modalidades de inserção institucional com b) inclusão do conceito de situações descritoras,
seus interesses profissionais e ou de pesquisa, como as e da abordagem da antropologia simétrica na análise
pessoas atendidas, alocadas em projetos de pesquisa do processo de trabalho, como formas de observação
específicos do hospital com suas expectativas de bem- que possibilitam a reorganização metodológica no
-estar, de tratamento ou de alívio de seu sofrimento. campo da saúde do trabalhador;
Isso amplia a perspectiva dominante de análise do c) tomar de Foucault ferramentas conceituais para a
trabalho hospitalar, centrada, ora nas questões da carga descrição do processo de trabalho: distribuição de espaço;
e do sofrimento, e nos riscos do trabalho em saúde, ora controle das ações; acompanhamento das pessoas de acor-
em relação aos acidentes, tal como representado para- do com a hierarquia; registro do processo para classificar,
digmaticamente, no caso do trabalho hospitalar, pelos julgar, medir e relocar as pessoas. O modelo de análise
acidentes perfurocortantes. Se dizemos que amplia que Foucault apresenta em seu livro Microfísica do Poder
é porque não tem sentido renunciar às perspectivas atribui um sentido de aperfeiçoamento a estas técnicas
teórico-metodológicas, como já dito, fundamentais de gestão humana. A disciplina implicaria, para o autor:
do campo da saúde do trabalhador. – uma distribuição espacial dos indivíduos;
Destacam-se algumas questões na discussão – o exército que deixa de ser um aglomerado
prévia do trabalho hospitalar: os riscos específicos, de pessoas, a escola que, ao ministrar um
o trabalho feminino, o sofrimento psíquico. E algu- ensino a coletivos, organiza espacialmente
mas ‘situações descritoras’ das relações ocorridas no grupos de indivíduos;
hospital: os doentes; as especialidades; as formas de – o controle sobre o desenvolvimento das
atendimento; os departamentos com suas divisões; os ações – como são feitos os gestos no trabalho,
programas e projetos existentes; o layout, a circulação quais os mais eficazes, rápidos e ajustados;
e seus tempos; os serviços de apoio; a construção – a vigilância constante dos indivíduos, o que
de hierarquias; a comunicação; os indicadores que implica uma hierarquia de olhares, como os
constituem elementos da rede do trabalho no hospital. instalados por figuras como o contramestre
Sendo este universo extremamente vasto, ampliá-lo na fábrica, o suboficial no exército;
compreende enormes dificuldades, encontradas ao – um registro contínuo originado daquela
longo de nosso trajeto. De todo modo, mantém-se vigilância que individualiza as pessoas em seu
esse esforço de, cada vez mais, aproximarmo-nos poder de classificar, julgar, medir, localizar
do trabalho hospitalar por uma abordagem que não cada um; e
pensa esse trabalho apenas como sofrimento e com d) estudar a influência da pesquisa na qualidade
suas cargas físicas e mentais; porque o contato com dos serviços de saúde.
o sofrimento daquele que trabalha se dá na relação Considerando que a pesquisa no hospital é um
entre pessoas, na qual o paciente é quem está mais de seus elementos intrínsecos, esse é sempre um lugar
diretamente colocado em uma situação de exposi- de formação de recursos humanos para o setor e de
ção, dependência, situações extremas de ruptura e desenvolvimento de tecnologia com maior ou menor
de despojamento da própria vida, posição diferente ênfase, dependendo do tipo de hospital. A pesquisa
daquelas encontradas nas relações humanas comuns. no hospital também pode ser vista como diretamente
Por meio da solidariedade daqueles que convivem no ligada à atividade clínica ou cirúrgica desenvolvida, ou
hospital, pode ser proposta uma nova abordagem da indiretamente relacionada com os dados secundários
saúde no hospital. decorrentes dos atendimentos.
Considerações metodológicas Características do trabalho hospitalar
Propomos, no momento, que avanços me- Desejamos destacar, então, algumas característi-
todológicos possam ser alcançados trilhando os cas que temos observado no processo de trabalho em
seguintes caminhos: hospital, que consideramos merecedoras de atenção
a) introdução do conceito de vida no trabalho e e discussão e, também, algumas particularidades em
na análise de processo deste, o que se torna ainda mais sua relação com a saúde de atividades diretamente
apropriado no trabalho em serviços de saúde devido relacionadas com o cuidado:
à natureza e à intensidade das relações humanas pre- a) a concentração de trabalho humano e a sua
sente no cotidiano desse tipo do trabalho, superando aplicação em pessoas intensificam as relações entre
183

elas como um elemento central, e a tecnologia e o e) a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida


conhecimento se tornam fatores distanciadores ou (Aids) embora contamine com menos frequência que
de intermediação desta relação; a hepatite, por sua letalidade e significado social, dis-
b) os trabalhos prescritos são orientações seminou uma revisão dos padrões de biossegurança
transmitidas em períodos de formação. Nas ações internos aos hospitais, além de provocar uma restru-
decorrentes do atendimento a cada paciente, há um turação dos serviços e uma renovação da preocupação
componente rotineiro e outro particular. Este últi- com as doenças infectoparasitárias, contudo, toda essa
mo faz a diferença objetiva em relação aos trabalhos estruturação e organização precisa ser urgentemente
prescritos industriais. A necessidade de improvisação revista e sofrer adaptações nos serviços de saúde com
e impasses decorrentes de falta de algum componente o advento da pandemia de Covid-19;
acontecem; e, como na indústria, alternativas opera- f ) há um consenso sobre o alto valor social do
cionais são aplicadas e tendem a não ser seguras, ou trabalho hospitalar, sendo esse um dos motivadores
seja, constantemente trazem um maior risco; da satisfação dos trabalhadores do setor saúde. Pa-
c) exige altos níveis de qualificação para muitas radoxalmente, ele pode induzir a ações em que as
de suas atividades, além de constante treinamento medidas de proteção são relegadas por um impulso
prático e o enfrentamento de situações com alta va- fundamentado na premência de resolver o problema
riabilidade e emergenciais; do paciente. Para concluir, essas características são
d) grau de imprecisão das tarefas é alto, e a passíveis de observação a partir de análises qualitativas
presença de tomadas de decisão em situações novas e representam em si situações descritoras do trabalho
faz parte da rotina; hospitalar, fazendo parte da rede que o constitui.

Aspectos psicossociais e da saúde mental dos


trabalhadores e trabalhadoras da saúde no
combate à Covid-19
Simone Santos Oliveira
Lucia Rotenberg

O trabalho em saúde tem vivenciado grande nos riscos biológicos, por vezes negligenciando-se as
impacto com a pandemia da Covid-19. São muitos os implicações de cunho emocional aos TS.
profissionais infectados pelo vírus, além do elevado Essenciais e indispensáveis, os profissionais da
número de mortes associado às diferentes catego- saúde que atuam na resposta à emergência sanitária
rias – técnicos(as) de enfermagem, enfermeiros(as), da Covid-19 estão entre os grupos mais vulneráveis
médicos(as) e fisioterapeutas. às consequências emocionais e psicológicas. O nú-
Este cenário pandêmico acaba por colocar em evi- mero crescente de casos confirmados e suspeitos, a
dência a precarização crescente do SUS ao longo dos anos, sobrecarga de trabalho, a disponibilidade insuficiente
por meio de um sub financiamento, com aumento das de equipamentos de proteção individual, a falta de
privatizações e redução dos direitos sociais, que resultam medicamentos específicos, de equipamentos, de in-
em condições de trabalho degradadas e perversas. fraestrutura e de pessoal, acrescidos de sentimentos
Em meio a esta situação crítica, as unidades de apoio inadequado, podem contribuir para a carga
de saúde, em especial, as Unidades de Tratamento mental dos profissionais de saúde.
Intensivo (UTI), têm que se preparar não só em re- Assim como ocorreu em relação a outras doenças
lação à infraestrutura e suprimentos, mas também a infecciosas, como Sars e H1N1, há padrões consis- 1. PHUA, J., et al. Intensive
ações de proteção contra a transmissão hospitalar e tentes de reação entre os profissionais de saúde que care management of coronavirus
disease 2019 (COVID-19):
promoção do bem-estar mental dos profissionais1. se referem a situações de trabalho, de quarentena, e challenges and recommendations.
Lancet Respir Med. v. 8, n. 5, p.
Neste contexto de desafios, as ações se concentram mesmo após o retorno ao trabalho após licença por 505-517, 2020.
184

doença. Entre os desafios, está o medo do contágio • falta de participação na tomada de decisões
de si próprio(a) ou da família, lidar com protocolos que afetam o trabalhador e falta de controle sobre a
novos e que se modificam rapidamente, cuidar de pa- forma como executa o trabalho;
cientes muito graves com rápida deterioração e cuidar • má gestão de mudanças organizacionais,
2. WALTON, M., et al. Mental de colegas que também adoeceram2. Entre os efeitos insegurança laboral;
health care for medical staff and
affiliated healthcare workers psicológicos negativos durante a pandemia, está o • comunicação ineficaz, falta de apoio da parte
during the COVID-19 pandemic.
Eur Heart J Acute Cardiovasc
esgotamento, a ansiedade, a depressão e Transtorno de chefias e colegas;
Care. v. 9 n. 3, p.241-247, 2020. de Estresse Pós-Traumático (TEPT). • assédio psicológico ou sexual, violência
Destacam-se situações em que, por insuficiência de terceiros.
de recursos, há escolhas difíceis a serem tomadas em Os TS têm enfrentados rotinas exaustivas,
relação à disponibilização de equipamentos hospitala- fazendo um complexo uso de si para cuidar dos
res. Como observam Walton e cols.2, são decisões que pacientes. A vivência dessa sobrecarga do trabalho e
diferem em essência daquelas a serem tomadas no caso sensação de impotência diante do número significativo
de doença menos virulenta ou de recursos suficientes de mortes pela Covid-19 podem gerar estresse e burn-
e que, portanto, afetam sobremaneira os profissionais out (transtorno de esgotamento). Muitas vezes os
de saúde. Tais decisões têm que ser embasadas em sintomas do estresse psicológico são difusos, como
protocolos, mas elas diferem da prática usual e das dores, enxaqueca, desconforto estomacal, falta de
recomendações pré-Covid-19. Frequentemente, a concentração, alteração no sono e irritabilidade. É pre-
equipe já se mostra preocupada com essa questão a ciso valorizar e respeitar os protagonistas do cuidado.
partir do ocorrido em outros países, e já sente a culpa
antecipadamente, aguardando que a situação possa
piorar em seu próprio país. Narrativas dos trabalhadores e trabalhadoras
sobre suas vivências
Foto: Reprodaução Instagram

O trabalho em saúde durante a pandemia


Eu troquei de uma área ambulatorial para uma área
hospitalar. Eu fiquei cinco anos na Atenção Básica, e de
repente eu me vi naquele meio em que tudo era muito novo
e no meio de uma pandemia. [...] Com o tempo, os médicos
foram adoecendo, e eu acabei intensificando em 1001% a
minha jornada trabalhista, porque ao mesmo tempo em
que os médicos estavam sendo afastados por serem do
grupo de risco, alguns médicos também ficaram doentes, E
como eu estava ali, eu acabei assumindo vários plantões,
então foi, assim, uma mudança muito drástica. Então,
as pessoas perguntam, ‘E como era antes da pandemia?’.
Eu não sei, foi meu primeiro dia de trabalho no hospital.
(Médica, Emergência de Hospital público).

Lidar com a pandemia atual demanda mudar


nossas ações para enfrentar uma crise sem preceden-
Precariedade no trabalho dos profissionais
tes. Estudos em diversos países durante a pandemia de saúde
indicam grande quantitativo de profissionais que pode
Eu fui contratada no contrato emergencial para atendi-
ter a saúde comprometida. No Brasil, o contingente mento do Covid. É um hospital de referência para Covid.
de TS que atuam na atenção primária, nos serviços Eu já trabalhei lá por muitos anos, [...] Sou celetista. [...]
especializados e nos hospitais somam aproximadamen- Eu peguei covid, fiquei bem mal, fiquei afastada por 14
te 3,5 milhões de profissionais seja da rede pública, dias e ainda estava mal, mas tive que voltar. Eu até fui no
3. REDE COVIDA. A saúde seja na rede privada3. médico de novo, ele me deu mais 3 dias, mas me disseram
dos trabalhadores de saúde que se eu ficasse mais esses dias, eu entrava pelo INSS. E a
no enfrentamento da pan- Condições de trabalho favoráveis aos riscos
demia da covid-19. Disponível situação como está, de emprego, as coisas estão difíceis,
em: http://covid19br.org/. Acesso psicossociais: a gente ficou sabendo que o pessoal que estava pelo INSS
em: 30 maio 2020. • cargas de trabalho excessivas; não estava recebendo, então eu achei melhor voltar, mas
• exigências contraditórias e falta de clareza eu ainda estava com sintomas. (Técnica de Farmácia, CTI
na definição das funções; de Hospital público).
185

Efeitos emocionais do trabalho em saúde eu vou numa outra clínica, e a gente pensava que a
gente mesmo poderia ser um vetor de contaminação
durante a pandemia nesse momento de muita indeterminação. Então a
gente começou a pensar: então vamos fazer remoto?
Eu via dez pessoas morrerem num plantão! À s ve- Vamos ligar pro paciente [...]. Então a gente foi criando,
zes eu tinha a sensação de que eu estava naqueles dentro do que a gente não sabia o que fazer, a gente foi
filmes de zumbi, as pessoas ficarem, porque a UPA criando uma saída né. Aí a gente foi se surpreendendo
não tem geladeira, então ficava entulhados, ficava [...] Mas não foi fácil! Estou te contando como uma
com cheiro, e você assinando óbito. O doente entra- coisa que a gente conseguiu fazer, mas foi a duras penas.
va, e ele chegava assim, com uma leve dispneia, e Era muito mais incerteza do que certeza. (Psicóloga,
enquanto ele fazia o raio x e o hemograma, que era Hospital Público).
o que a gente tinha, em quatro horas, ele agravava
muito. E aí você ia vendo uma pessoa morrer ali na
sua frente, sem você... Porque não tinha hospital
Ações de proteção e promoção da saúde
de campanha, não tinha vaga, assim... Então teve Ao reconhecer os riscos inerentes à assistên-
plantão que eu encostei na parede e falei ‘o que
que eu estou fazendo aqui? Primeiro que eu estou
cia em saúde, a gestão dos serviços de saúde tem o
contaminando a minha família, estou correndo compromisso ético de assegurar estratégias e ações
risco, e não estou podendo fazer nada pelas pessoas’. de suporte psicológico e de apoio aos trabalhadores.
[...] Então, tem muitas pessoas que eu não falo há A primeira intervenção sobre a saúde mental da
muito tempo. Em rede social eu bloqueei gente que equipe de linha de frente é garantir boas condições
fazia piadinha, sabe, porque eu via a gravidade. de trabalho e de descanso, por meio de pausas regu-
Agora eu estou passando meio que um momento
de depressão mesmo. Eu já venho há umas três
lares. Outro passo fundamental em relação ao apoio
semanas que estou embotada, e com essas questões psicológico é o fornecimento de EPI adequado, com
de trabalho, né... (Médica UPA). orientações e treinamento claros antes de interagir
com os pacientes4. 4. FUNDAÇÃO OSWALDO
CRUZ. Saúde Mental e Atenção
Foi um período de muito cansaço, eu chegava em A coesão e a cooperação são estratégias essen- Psicossocial na pandemia Co-
casa morta, porque a gente viu tantas pessoas mor- ciais para o enfrentamento da situação, pois contri- vid-19. Rio de Janeiro: Cepedes,
2020.
rerem, foi um período muito difícil, porque a pessoa buem para a resiliência da equipe de saúde5. A questão
chegava e ficava muito ruim, porque o quadro das 5. JUN, J., et al. Clinician Mental

pessoas evoluía muito rápido, uma pessoa chegava


da comunicação nas equipes é reconhecidamente Health and Well-Being During Glo-
bal Healthcare Crises: Evidence
falando com a família e em 24 horas ela estava um problema nas unidades de saúde. Dessa forma, Learned From Prior Epidemics
for COVID-19 Pandemic. World.
entubada. [...] No início da pandemia, houve mui- é preciso promover: Evid. Based Nurs. v. 17, n. 3,
ta comoção, era muita gente desesperada, gente • Reuniões que permitam que os trabalhadores p. 182-184, 2020.

se jogando no chão porque perdeu parente, então expressem suas preocupações e tirem suas dúvidas.
estava muito pesado. (Supervisora administrativa, Também pode ser um espaço que incentive o apoio
Atendimento ao cliente).
entre colegas;
Então, assim, eu particularmente dei uma pirada no
• Espaços de diálogo breves e sistemáticos antes
início, porque, assim, eu achava que eu ia pegar e que eu e após cada plantão. A metodologia é simples, não
ia transmitir pra minha mãe. E todos os profissionais, precisa de recursos, somente ajuste na organização do
apesar de ninguém ter se negado a ir ao trabalho, né, a trabalho. A proposta contribui para refletir o sentido
gente via assim, uma angústia muito grande nos pro- e propósito do trabalho, além de, possivelmente,
fissionais de pegar a doença, de passar para as pessoas promover maior coesão à equipe.
de dentro de casa. O que eu posso dizer hoje, depois
de quatro meses, quase cinco meses, nesse trabalho, é
que ninguém na equipe se contaminou, quase todos
já foram testados, alguns mais de uma vez, como eu.
E isso dá uma segurança muito grande pra gente, é
um sinal de que o nosso protocolo está funcionando.
(Médica, Policlínica Universidade Pública).

A primeira sensação era de medo, de impotência, nin-


guém sabia exatamente, como é que a gente ia poder
estar contribuindo. A gente estava exposto, a gente é
psicóloga, a gente não tem uma tradição de uso de
EPI, a gente não sabia, exatamente, nem como que a
gente ia poder... nosso trabalho é assim, se eu recebo
o parecer de uma clínica, eu vou nessa clínica, depois
186

Por fim, cabe considerar que, em uma pandemia neira coordenada para não haver falta ou sobreposição
cujas consequências crescem de forma assustadora, o de frentes de trabalho, promovendo um único fluxo de
tempo é um inimigo. Assim, há que se pensar em alter- cuidado. Seja qual for a estratégia de apoio psicológico, é
nativas factíveis na forma de atividades rápidas a serem essencial ter em mente que as ações não devem ser pen-
realizadas durante a troca de plantão. Vale destacar que sadas isoladamente, elas devem ser pautadas na realidade
as ações em saúde mental devem ser realizadas de ma- e complexidade de cada serviço de saúde.

Escolhas estratégicas e gestão de


variabilidades na prevenção da Covid-19
Ildeberto Muniz de Almeida
Letícia Rodrigues de Souza
Marco Antonio Pereira Querol

Introdução econômica. Esse terceiro objetivo implica inclusão da


1. ALMEIDA, I. M. Proteção proteção da STS nos planos de resposta à pandemia 1.
da saúde dos trabalhadores da A proteção da Saúde dos Trabalhadores da
saúde em tempos de COVID-19
e respostas à pandemia. Rev. Saúde (STS) em tempos de Covid-19 é aqui abor- Vale destacar que sistemas de gestão de ser-
bras. saúde ocup. n. 45, p.
1-10, 2020. Disponível em: dada em perspectiva da historicidade de mudan- viços de saúde não costumam assumir políticas e
https://www.scielo.br/pdf/rbso/ ças ocorridas com a chegada da pandemia e das práticas que considerem simultaneamente esses
v45/2317-6369-rbso-45-e17.pdf.
Acesso em: 16 ago. 2020. respostas mobilizadas. três conjuntos de objetivos.
O cotidiano de sistemas de trabalho é marca-
do pela convivência com mudanças emergentes a
Como fazer a prevenção em situações de
serem detectadas e interpretadas. De acordo com mudanças tão rápidas e radicais?
o diagnosticado, os sujeitos envolvidos mobilizam A preocupação com a prevenção tanto precisa
repertórios de correções e implementam adapta- estar presente nas práticas e escolhas adotadas
ções buscando responder às mudanças e manter na esfera gerencial, que decide o caminho a ser
o sistema funcionando com o mínimo possível de seguido na resposta à pandemia, quanto nas esco-
resultados não desejados. lhas de estratégias e modos operatórios a serem
A atividade de prevenção depende de ações adotados no desenvolvimento da assistência na
de gestores e trabalhadores da oferta direta de linha de frente.
cuidados. O conhecimento dos trabalhadores que A abordagem teórica aqui adotada mostra que
atuam na linha de frente é essencial no processo as atividades de gestão estratégica, de oferta de cui-
de gestão estratégica, especialmente em situações dados e a de prevenção de riscos de contaminação
em que decisões têm que ser tomadas rapidamen- são interdependentes. São apresentados exemplos
te, muitas vezes sem a presença dos recursos e práticos de interações entre atividades e resultados
conhecimentos necessários. dessas interações no risco de contaminação.
A Covid-19 exige reorganização de sistemas
e serviços de saúde em um processo que precisa Gestão estratégica e prevenção de risco
se dar de modo integrado e promotor de colabo- como sistemas de atividades
ração na aplicação da hierarquia de medidas de A unidade teórica de análise é a atividade
prevenção. humana composta por ações e operações. Uma
De acordo com a OMS, respostas à doença atividade é mediada por elementos técnicos e
devem articular sociais e representada como sistema de atividade
três objetivos: 1) Diminuir e interromper a trans- composto por sujeito (que conduz as ações), ins-
missão, [...] epidemias [...]; 2) Prover cuidado [...] trumentos, regras, divisão de trabalho, comunidade
para [...] pacientes [...] mais graves e 3) Minimizar o e um objeto, que é aquilo que é transformado na
impacto [...] sobre sistemas de saúde [...] e atividade atividade.
187

Figura 1: Modelo de sistema de atividade


Instrumentos

I Prestação do
cuidado de saúde

Sujeito S O Objeto
Resultados
Internações, consultas
[...] acidentes

R C DT
Regras Comunidade Divisão de Trabalho
Fonte: Adaptado de Engeström, Y. (1987)2. 2. ENGESTRÖM, Y. Learning by
expanding: An activity-theoretical
approach do developmental
research. 1987. Disponível em:
Sendo a unidade de análise o serviço de saúde, financeiros, materiais e sua organização). A gestão es- http://lchc.ucsd.edu/MCA/Paper/
Engestrom/Learning-by-Expan-
sua atividade tem como sujeitos a equipe de saúde tratégica também pode ser entendida como sistema de ding.pdf. Acesso em 20 jul. 2020.
que usa instrumentos para melhorar a saúde de seu atividade especializado cujo objeto é conduzir ações de
paciente. Para tanto, várias pessoas (comunidade) con- gestão (escolher planos, tecnologias, procedimentos)
duzem ações que integram uma divisão de trabalho. para que o sistema de prestação de serviços de saúde
A execução da atividade de serviços de saúde produza os cuidados desejados. A figura representa
exige decisões estratégicas relativas a seus objetivos a atividade de gestão estratégica produzindo, sepa-
e a como devem ser alcançados (recursos humanos, radamente, parte dos elementos de outro sistema.

Figura 2. Objeto da atividade de gestão estratégica

Define os
Atividade de instrumentos
gestão estratégica Gerir organização e
oferta de cuidados de
saúde conforme
demanda, com qualidade
e segurança para todos
Define a
capacitação do
sujeito
Define quem
fará o que

Define quem
deve estar
Define regras, envolvido
normas e formas
como operar

Fonte: Adaptado de Engeström, Y. (1987)2.

A atividade de gestão estratégica cabe a gestor de leitos e equipamentos de UTI e coleta de exame
especializado. Tal forma de organizar a gestão sofre para teste do vírus.
limitações em situações complexas e de rápida mudan- As escolhas afetam coletivo com interesses diver-
ça como em uma pandemia. Nesse contexto decisões, sos e em competição, em contexto de escassez crônica
podem desconsiderar fatos e avisos facilmente iden- de recursos e em que, historicamente, a tomada de
tificáveis quando o sistema em funcionamento passa decisões se dava de modo fragmentado e até excluden-
por variabilidades que ajudam a revelar problemas te. Este estudo sugere que se o processo de tomada
não antecipados. de decisões excluir interesses de atores da linha de
frente, pode favorecer o surgimento de problemas
Respostas à pandemia e desafios da prevenção que poderiam ser evitados ou minimizados.
A chegada da pandemia em hospital de referência A Covid-19 exigiu outras mudanças, como a
afetou da alta gestão às equipes de linha de frente, criação de novos serviços e atividades, ditos Covid-19,
exigindo, entre outras respostas, aumento da oferta como hospital de campanha, destinado exclusiva-
188

mente à assistência ou à destinação exclusiva de serviço Em outras palavras, cabe estimular reflexões sobre
preexistente para assistência a doentes Covid-19. Aqui, projetos de mudanças com foco em identificação de
a separação entre atividades Covid e não Covid é total: inovações e resultados.
espacial e temporal, e o risco de contaminação é maior Se a arquitetura dos serviços, materiais, ativi-
por envolver contato próximo e ou direto com os doentes. dades, equipes, regras, formas de organização do
A reorganização de atividades com a divisão em trabalho e comunidades com quem vai interagir in-
Covid e não Covid visa estabelecer separação espacial e cluem diferenças, há a necessidade de análise visando
temporal entre as áreas. Ao fazer isso, os serviços tendem identificar que novos tipos de interações e situações
a criar terceira área que é, simultaneamente, Covid e não de risco podem ser antecipados nas novas rotinas
Covid, com separação apenas temporal. Exemplos mais criadas, assim como nas variabilidades mais frequentes
evidentes se referem a apoio diagnóstico em que há apenas ou de maior gravidade potencial.
um equipamento para os dois grupos de pacientes. O Identificadas as diferenças, cabe explorar razões
desafio da prevenção passa a ser o da ‘proteção das zonas associadas às suas origens checando a possibilidade de
de fronteira’. Manter as medidas de prevenção para os adotar ajustes de projetos que reduzam o custo humano
momentos da transição pode deixar lacunas em relação do trabalho e riscos novos antes de sua implantação.
a riscos que surjam nesses períodos. Nesta análise, é fundamental envolver o ponto de
Na atenção básica, a criação de áreas novas desti- vista daqueles que executarão as atividades; e explorar se
nadas a assistência de casos suspeitos e confirmados de a chegada da pandemia muda a forma como viam o risco
Covid-19 pode envolver triagem, que encaminha pacientes da contaminação seja em atividades que já faziam há anos,
para fluxo não Covid em prédio previamente existente; e seja nas que agora executam com maior frequência, como
casos suspeitos ou confirmados de Covid para tenda insta- é o caso da coleta de swabs, da intubação e extubação etc.
lada no lado de fora do serviço. Também pode ser criado O foco da prevenção é posto no controle da
posto de coleta de exames para diagnóstico da doença. transmissão e no enfoque tradicional da gestão de
Implantada tenda para atendimento externo de segurança, com peso na ‘segurança prescrita’, ou seja,
pacientes Covid, parada cardiorrespiratória em paciente implantar medidas de segurança determinadas nas
requereu kit de ressuscitação que permanecia na área regras vigentes. Na Covid-19, isso significa ênfase em
não Covid. O socorro foi emergencial, sem tempo para uso de EPI, higiene de mãos, medição de temperatura
mudança de paramentação do pessoal exigindo contato e medidas de etiqueta pessoal complementadas por
direto com caso confirmado da doença. Equipamento de rastreamento e isolamento de contatos.
uso compartilhado é resultado que emerge como aviso Essa abordagem pode alimentar a falsa ideia de que
de risco – e, se evitado, antecipa ações de prevenção. a segurança seja afeita exclusivamente às atividades que
Esse exemplo gera questões: que razões explicam se dão na linha de frente dos cuidados.
que o novo serviço não tivesse kit próprio? Como se deu A ‘segurança na ação’ precisa considerar a
o processo de tomada de decisões? Houve participação disponibilidade de recursos financeiros e mate-
da equipe de prevenção? riais (e se houver escassez de EPI? E se for de
Aprendizagem possível ressalta que tomadores qualidade inferior?), humanos (e se inclui novatos
de decisão devem sempre considerar que, com a e inexperientes?), bem como a emergência de
inovação, vem possibilidades de interações novas que variabilidades, como a presença de profissionais
precisam ser avaliadas no que se refere a interferências assintomáticos, pré-sintomáticos e sintomáticos nas
na segurança do trabalho. equipes, o trabalho em situação de desequilíbrio
entre efetivo e demanda instalada, o adoecimento
Novos caminhos da prevenção de colegas, o medo de contaminar familiares.
Incorporar a preocupação com a STS em É preciso mobilizar estratégias de prevenção que
momentos de mudança rápida e complexa como ampliem o leque de medidas adotadas em consonância
o caso da pandemia de Covid-19 exige mudanças com conceitos como os de ‘hierarquia de medidas de
em práticas historicamente arraigadas tanto nos prevenção’ e outros que tendem a ser úteis como critérios
gestores envolvidos como nas equipes de SST que, a serem considerados pelos tomadores de decisões na
regra geral, estão excluídas da gestão estratégica gestão estratégica do sistema.
e acomodadas com a naturalização de práticas Perguntar sobre a presença de recomendações de
excludentes. No pior dos cenários, o mesmo tipo segurança classificadas nos níveis mais elevados da hierar-
de exclusão também ocorre com equipes de se- quia de medidas de prevenção é caminho de valorização
gurança de pacientes e equivalentes. da gestão de segurança.
189

A mudança aqui recomendada é incluir na ‘seguran- a segurança do paciente, o controle de infecções hospi-
ça total a segurança na ação’, medidas destinadas a lidar talares, melhorias de qualidade.
com incertezas, com variabilidades presentes na vida como Não existe garantia de que todos os problemas serão
ela é. Na pandemia, o caminho da ‘segurança na ação’ é antecipados dada a presença de representantes de equipes
dificultado por se tratar de doença nova e em relação à como as acima citadas no grupo de tomada de decisões.
qual ainda é enorme o desconhecimento. Tampouco a inexistência de problemas no passado deve
ser assumida como garantia de sucesso no futuro.
Considerações finais A prevenção não deve ser atividade separada e in-
Situações de mudanças complexas e rápidas, como dependente, mas, sim, integrada a outras como a pres-
pandemias, exigem que a tomada de decisões estratégicas tação direta de cuidados, a promoção da SST e a gestão
do sistema envolva todas as lógicas que se apresentam. A estratégica.
escolha de estratégias e o design de inovações tendem a A prevenção da Covid-19 pode ser representada
ser aperfeiçoados se estiverem amparados em ferramentas como objeto integrado, parcialmente compartilhado por
conceituais e experiências potencialmente mais úteis na sistemas de atividade: o de gestão estratégica, o da SST e
hora de lidar, entre outras, com a segurança no trabalho, o da segurança do paciente.

Figura 3. Sistemas de atividade gestão estratégica, gestão de SST, gestão de segurança do paciente [...] trabalhando
colaborativamente para prevenção da Covid-19
Atividade de gestão de segurança
Regras

do paciente / Controle de
Sujeito

infecções
Instrumentos
Comunidade

Atividade de Gestão Atividade de Saúde e


Estratégica Segurança no Trabalho
Instrumentos Instrumentos
de trabalho
Divisão

Sujeito Sujeito
Objeto potencialmente
compartilhado: Prevenção de
contaminação

Regras Comunidade Divisão de Divisão de Comunidade Regras


trabalho trabalho
Fonte: Adaptado de Engeström, Y.3. 3. ENGESTRÖM, Y. Expansive
Learning at Work: Toward an
activity theoretical reconceptuali-
zation. J. Edu. Work. v. 14, n. 1,
p. 133-156, 2001.
Caminhos da aprendizagem possível são muitos. como a criação de UTI sem central de monitoramento
Frequentar a vida é, talvez, um dos mais ricos e revela- e/ou a de deixar serviço Covid e não Covid com ape-
dores notadamente porque coloca os interessados na nas um kit de ressuscitação. A segurança na linha de
aprendizagem em contato direto com multiplicidade de frente também pode ser aperfeiçoada desde que se
resultados desejados e não desejados que são, ambos, passe a considerar as variabilidades e a necessidade de
oportunidade para estudo em busca de padrões de res- prevenção considerando mudanças de riscos quando
postas associados a esses dois tipos de desfechos. Aqueles se precisa fazer ajustes em resposta a variabilidades.
a serem reforçados como vias para sucesso e aqueles a Encontrar o objeto compartilhado entre a gestão
serem evitados para diminuir desfechos não desejados. estratégica e a de saúde e segurança exige aprendizado
Os exemplos mostram a necessidade de abor- mútuo de ambas as atividades. Ambos os sistemas
dagem não fragmentada da hierarquia de medidas precisam aprender a colaborar e considerar a pers-
de segurança no desenvolvimento da atividade da pectiva do outro. Novos estudos são necessários para
prevenção. Situações complexas exigem mudança analisar se e como é possível implementar atividade de
em processos de tomada de decisões gerenciais que gestão estratégica envolvendo a colaboração com as
podem minimizar a introdução de perigos e riscos. atividades de gestão da SST, e como esta colaboração
Isso implica reconhecer, antecipadamente ou no curso pode ser promovida inclusive em setores de atividades
das ações o impacto de riscos associados a decisões diferentes do da saúde aqui abordado.
190

Acidente de trabalho com exposição


a material biológico entre profissionais de
serviços de saúde
Flávia Nogueira Ferreira de Sousa

1. WORLD HEALTH ORGA- Os Acidentes de Trabalho com Exposição a cusando a notificar o acidente e a buscar atendimento
NIZATION. Environmental
Burden of Disease Series 11. Material Biológico (ATBIO), apesar de evitáveis, são médico após a exposição.
Disponível em: https://apps.
who.int/iris/bitstream/han- frequentes entre os TS no mundo inteiro devido às Considerando a necessidade de dispor de dados
dle/10665/43051/924159232X-
pdf?sequence=1&isAllowed=y.
particularidades dos procedimentos realizados por de forma mais sistemática para orientar as ações de Vi-
Acesso em: 03 out. 2019. esses profissionais, a alta exposição a riscos biológicos sat no Brasil, os casos de ATBIO devem ser notificados
2. BRASIL. Ministério da no cuidado a saúde das pessoas e as condições adver- no Sistema de Informação de Agravos de Notificação
Economia. Anuário Estatístico da
Previdência Social. Brasília, DF: sas em que o trabalho é executado. Segundo a OMS, (Sinan), de acordo com a Portaria de Consolidação nº
Ministério da Economia, 2013.
Disponível em: https://www.gov. 35,7 milhões de profissionais de saúde no mundo 4 de 20173. Nesse sentido, deve ser notificado todo
br/previdencia/pt-br/acesso-
-a-informacao/dados-abertos/
estão expostos ao risco de acidentes no trabalho por caso de acidente de trabalho ocorrido com quaisquer
previdencia-social-regime-geral- materiais perfurocortantes contaminados, e, destes, categorias profissionais, envolvendo exposição direta
-inss/aeps-2013. Acesso em: 15
dez. 2020. 2 milhões se contaminam por alguma doença infec- ou indireta do trabalhador a material biológico (or-
3. BRASIL. Ministério da Saúde. ciosa a cada ano em países africanos, mediterrâneos gânico) potencialmente contaminado por patógenos
Portaria de consolidação nº 4,
de 28 de setembro de 2017.
e asiáticos1. No Brasil, benefícios previdenciários para (vírus, bactérias, fungos, príons e protozoários), por
Consolidação das normas sobre
os sistemas e os subsistemas do
ATBIO têm-se elevado, sendo estimados 5.914 casos meio de material perfurocortante ou não3.
Sistema Único de Saúde. Diário em 2010 e 14.155 em 20172. Entre 2010 e 2018, foram registrados no Sinan
Oficial da União. 29 Set. 2017.
No entanto, apesar de ser um sério problema, a 339.325 casos de ATBIO entre profissionais de saúde e
4. BRASIL. Ministério da
Saúde. Saúde Brasil 2019 uma prevenção desse tipo de acidente ainda é um desafio. 73.647 entre demais profissionais. No mesmo período,
análise da situação de saúde
com enfoque nas doenças imu-
A maioria dos profissionais dos serviços de saúde número de casos registrados aumentou 75,6% entre
nopreveníveis e na imunização. desconsidera as possíveis consequências negativas, os profissionais de saúde; 95,6% entre os demais
Brasília, DF: Ministério da
Saúde, 2019. descumprindo normas básicas de segurança e se re- profissionais e 79,1% entre todos os casos notificados4.

Gráfico 1. Acidentes de trabalho com exposição a material biológico, entre profissionais de saúde e demais profis-
sionais, por ano – Brasil, 2010 a 2018
60.000

50.000

40.000
Nº absluto

30.000

20.000

10.000

0
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Profissionais de saúde 25.938 29.815 33.758 36.839 40.345 40.981 41.999 44.095 45.555
Demais profissionais 5.450 6.349 7.219 7.918 8.629 8.788 8.893 9.742 10.659
Total 31.388 36.164 40.977 44.757 48.974 49.769 50.892 53.837 56.214

Fonte: Elaboração própria com base nos dados de BRASIL. Ministério da Saúde4.
191

Os dados da ficha de registro dos casos confor- objetivo de compreender a dinâmica do evento e todas
mam as bases sobre as quais se geram informações, as etapas de seu desencadeamento, inclusive aquelas
roteiros ou direcionamentos para as ações de as- relacionadas com a organização do trabalho e com a
sistência e Visat. Assim, a notificação como registro concepção de máquinas e instalações, a fim de evitar
documental é necessária para que as estimativas da acidentes semelhantes5. Dá destaque, nessa constru- 5. OSÓRIO, C., et al. Método de
Análise Coletiva dos Acidentes
ocorrência de ATBIO, assim como a de morbidade e ção, a acolher as diferenças dos saberes e experiências de trabalho no Hospital. Cad.
Saúde Pública, v. 21, n. 2, p.
letalidade das infecções adquiridas devido ao acidente, dos diversos trabalhadores envolvidos. Essa maneira 517-524, 2005.
sejam divulgadas, o que se faz considerar que a Visat e de retratar o acidente é completamente distinto da
os serviços de saúde necessitam voltar maior atenção forma culpabilizatória, em que se atribui a um fator ou
ao problema, direcionar medidas para a notificação a um culpado o ATBIO. A análise deve ser pluricausal,
dos acidentes, melhorar o encaminhamento dos tra- aquela que se diferencia da determinação de culpa,
balhadores acidentados aos serviços especializados enquanto a análise monocausal, ainda prevalente no
e adotar medidas para a prevenção nos locais de Brasil, tende a atribuir ao próprio trabalhador aciden-
trabalho, preferivelmente de maneira participativa tado. Dessa maneira, cada acidente tende a ser visto
e transdisciplinar, de forma a produzir efeitos tanto como um acontecimento particular, a ser considerado
no ambiente de trabalho como na relação dos traba- em sua singularidade5, dando visibilidade a causas
lhadores com sua atividade. que vão além de culpas individuais ou más condições
No entanto, ainda são frequentes situações que de trabalho. Dar ênfase apenas as más condições de
dificultam essa vigilância participativa, como a cen- trabalho, todavia muitas vezes necessária, pode levar
tralização na tomada das decisões nos serviços de a reivindicações de transformações de caráter geral,
saúde, representação sindical ou outras formas de sem interferir na capacidade de ação e nos recursos
organização dos trabalhadores frágeis e descrença subjetivos dos trabalhadores para essa ação.
acentuada da influência dos coletivos de trabalhadores
na organização de suas próprias atividades, observan-
do-se atitudes predominantemente defensivas ante as
exigências da organização do trabalho5.
Os ATBIO não podem ser vistos como fenômenos
fortuitos ou casuais, pois sua compreensão e prevenção
necessitam de abordagem mais ampla que perpasse pela
análise coletiva desses acidentes por meio do diálogo
entre conceitos e experiências dos trabalhadores e insti-
tuições de saúde, levando em consideração suas relações
sociais e propiciando a elaboração conjunta de novas
formas de reorganização do trabalho. A forma coletiva de
analisar acidentes pode favorecer a gestão democrática
do serviço de saúde e a ampliação das possibilidades de
trabalho participativa5.
Estudos indicam que a informação e a capacita-
Descarte inadequado
ção centrada em aspectos técnicos não são suficientes A ficha de notificação dos ATBIO é composta por de materiais
para reduzir a ocorrência de acidentes. Além de ques- vários campos para registro de dados que auxiliam a perfurocortantes.
tões tradicionalmente reconhecidas, como a percepção Visat, assim como os empregadores e trabalhadores, Fonte: https://www.toledo.pr.gov.
br/noticia/vigilancia-em-saude-
do risco e o conhecimento das precauções universais, a registrarem de maneira mais fidedigna possível as orienta-sobre-o-descarte-correto-
de-materiais-perfurocortantes
o clima organizacional de respeito à segurança e os informações da análise coletiva desse evento, assim
conflitos de interesse entre a segurança do trabalhador como fornece informações essenciais tanto para pre-
em saúde e a assistência ao doente (muitas vezes o venção como para a assistência adequada aos aci-
compromisso com o doente supera à preocupação dentados. É possível registrar informações relativas
com a própria segurança) devem ser levados em con- à ocorrência do ATBIO, como: o tipo de exposição,
sideração quando se pensa em medidas de prevenção o material orgânico a que o trabalhador foi exposto,
dos ATBIO, ou seja, aspectos subjetivos do processo a circunstância do acidente, o agente envolvido e os
de trabalho devem estar envolvidos nessa análise. EPI que o trabalhador estava usando no momento
Análise coletiva do ATBIO permite a elaboração do acidente. Esses registros ajudam a verificação de
de uma interlocução entre os atores envolvidos, com o falhas nas medidas de segurança, a probabilidade de
192

contaminação do trabalhador por diversas doenças desprotegidas, à administração de medicamentos


infecciosas, a identificação de atividades/funções/ sem o uso devido dos equipamentos de proteção,
circunstâncias que necessitam de intervenção para se à desconexão da agulha da seringa, assim como ao
tornarem mais seguras, a avaliação de prognóstico, a reencape de agulhas contaminadas.
magnitude do acidente, entre outros. A ficha de notificação de ATBIO contém campos
O tipo de exposição percutânea devido a ATBIO específicos para monitoramento dos potenciais ca-
com perfurocortantes merece importante atenção sos de contaminação por hepatites B e C e por HIV,
quando comparado aos outros tipos de exposição como: situação vacinal do acidentado em relação às
(em mucosas, pele íntegra ou não íntegra), uma vez três doses de hepatite B, resultados de exames do
que são decorrentes de lesões por agulha, lâmina ou acidentado (no momento do acidente – data zero),
caco de vidro, objetos que podem conter sangue ou resultados dos testes sorológicos do paciente-fonte,
outros fluidos corporais potencialmente contamina- além da conduta no momento do acidente, se teve
dos, aumentando o risco de transmissão de doenças indicação de profilaxia e evolução do caso, se houve
graves como HIV e hepatites. É preciso investigar a soroconversão ou não.
parte do corpo em contato com o material biológico, É importante ressaltar que as profilaxias pós-ex-
pois diferentes são os graus de risco de contaminação posição podem não se mostrar totalmente eficazes,
para certas doenças e, consequentemente, diferentes diante de uma série de fatores, como tipo de expo-
também são as condutas recomendadas pós-acidente sição, tempo, tipo de material biológico fonte da
e as medidas de prevenção de ATBIO semelhantes. contaminação etc. Assim, a prevenção da exposição ao
Os ATBIO, envolvendo sangue e outros fluidos sangue ou a outros materiais biológicos é a principal
potencialmente contaminados, são casos de emergên- e mais eficaz medida para evitar a transmissão do HIV
6. BRASIL. Ministério da Saúde. cia, uma vez que profilaxia de algumas infecções como e dos vírus da hepatite B e C6.
Recomendações para atendimento
e acompanhamento de exposição HIV e hepatite B ou C, quando indicadas, precisam Nessa perspectiva, quando esses campos da ficha
ocupacional a material Biológico:
HIV e hepatites B e C. Brasília,
ocorrer imediatamente após o acidente, para melhores são preenchidos qualificadamente, a análise coletiva
DF: Ministério da Saúde; 2004. resultados. A análise da gravidade do risco do ATBIO do acidente e monitoramento dos casos assim como
leva em consideração o volume de sangue, assim como ações de profilaxia e mitigação dos fatores de risco de
a quantidade de vírus presente; dessa maneira, existe ATBIO presentes nos ambientes e processos de traba-
a necessidade de avaliação dessas características e re- lho, de forma participativa, tornam-se mais eficazes.
gistro qualificado na ficha de notificação. Os acidentes Diante desse contexto, é imprescindível a
mais graves, além de estarem relacionados com um realização da vigilância epidemiológica acerca dos
maior volume de sangue, estão associados a lesões ATBIO, no sentido de proporcionar aos emprega-
profundas, provocadas por material perfurocortante, dores, às instituições e aos próprios trabalhado-
presença de sangue visível no dispositivo invasivo, res a oportunidade de revisitarem conjuntamente
acidentes com agulhas previamente utilizadas em veia estratégias que, além de prevenirem os acidentes,
ou artéria do paciente-fonte e acidentes com agulhas promovam a saúde, a qualidade de vida do traba-
de grosso calibre, e aqueles em que há maior inóculo lhador em suas atividades laborais.
viral envolvendo paciente-fonte HIV positivo. A identificação dos riscos aos quais os profis-
sionais estão expostos (levando em consideração
Foto: Sindsaúde/RS

a investigação dos fatores que contribuem para a


ocorrência desse tipo de acidente, bem como a
avaliação e priorização dos riscos), a definição de
estratégias de atuação para a minimização destes, a
ação e o monitoramento das estratégias de maneira
participativa são ferramentas de gestão de riscos que
podem ser aplicáveis à proteção de trabalhadores
expostos a ATBIO. Ainda, a disponibilização e o
incentivo ao uso de equipamentos de proteção
(individual e/ou coletivo), a oferta de capacita-
Ainda é possível registrar a circunstância de ções, a disponibilização de ambientes de trabalho
ocorrência do ATBIO como o descarte inadequado adequados são requisitos que devem ser adotados,
de materiais contaminados, devido a recipientes su- conforme constam nas normas regulamentadoras
perlotados, ao transporte/manipulação de agulhas disponíveis (NR-06, NR-07, NR-32)3.
193

Violência no trabalho dos Agentes


Comunitários de Saúde
Alba Regina Silva Medeiros
Marta Gislene Pignatti
Maria Cecília de Souza Minayo

Os ACS são sanitaristas comunitários reconhe- Na população atendida pelos ACS, esses profissio-
cidos na implantação da Atenção Básica à Saúde por nais encontram principalmente as seguintes expressões
meio do Programa Saúde da Família (PSF) e desem- de violência: conjugal, contra crianças, adolescentes e
penham o papel de mediadores entre a equipe e a idosos, na escola, delinquência juvenil e armada.
comunidade, sendo responsáveis por colocar em A ênfase desse trabalho é a violência sofrida
prática, nos domicílios dos usuários do SUS, as ações pelo ACS no exercício de seu trabalho. Ela pode ser
1. MEDEIROS, A. R. S., et
de atenção básica. entendida como quaisquer atos agressivos ou abusi- al. O/A ACS e a manifestação
das violências no trabalho.
Desenvolvem seu trabalho no território vivo, em vos, incidentes ou ataques, que lhe causem danos, In: BITENCOURT, S. M., et
que os limites prescritos de horário e de atividades constrangimentos, desconforto, adoecimento, morte, al. Corpo, gênero e cuidados:
perspectivas e desafios na
geralmente são ultrapassados. As práticas planejadas, e risco à segurança, bem-estar e saúde no exercício contemporaneidade. Cuiabá:
EdUFMT, 2020.
interativas e de intervenção setorial ganham concre- de sua atividade2. Pelas características do modo de
2. MEDEIROS, A. R. S. Agente
tude e significado porque os ACS tratam do bem mais produção desse serviço, a violência se origina na Comunitário de Saúde: processo
de trabalho na mediação entre
precioso da vida humana: a saúde e as ameaças que organização do processo de trabalho e nas interações equipe e comunidade. Tese
possam colocá-la em risco. que requer. Suas atividades podem acontecer em meio (Doutorado em Saúde Coletiva).
Cuiabá:Instituto de Saúde
Os locais de atuação dos ACS são predominan- a riscos físicos, morais e psíquicos que se misturam Coletiva, Universidade Federal
de Mato Grosso, 2020.
temente regiões de periferias urbanas, onde se mate- e se potencializam1.
rializam a desigualdade social, a ineficiência do Estado Pesquisa realizada com 49 ACS, em todas as
quanto à segurança, saúde, saneamento e onde se acu- regiões administrativas de saúde de Cuiabá (MT),
mulam riscos ambientais, sociais e relacionais. Nesses entre 2018-2019, observou o importante serviço que
contextos, a rua é considerada uma extensão da casa, esses profissionais prestam à população, em especial
local de atividades cotidianas, espaço para brincadeiras à mais desfavorecida, mas também as mais diversas
infantis e encontros de vizinhos, na qual ocorrem feiras, expressões de violência que os atinge no exercício
festas e velórios; mas também é cenário para vários de sua atividade. As mais comuns no cotidiano são:
tipos de violência interpessoal, comunitária e criminal. a violência psicológica nas formas de agressão verbal,
Dada a multiplicidade de situações vivenciadas, e ameaças, intimidações, abusos emocionais e insultos;
das mais diversas relações humanas estabelecidas em e a violência institucional do próprio setor saúde2.
sua atividade, é quase impossível dimensionar o que é É importante falar da violência institucional. Ela
ser um ACS. A nebulosidade de contorno na atividade e se expressa na desorganização, na desvalorização e
indefinição do trabalho real, em lugar de dar-lhe poder, nas omissões que redundam em precárias condições
acaba por fragilizá-lo e expô-lo a conflitos sociais, danos de trabalho, por parte dos setores hierárquicos da
psicológicos e, muitas vezes, a risco à saúde e à vida. atenção primária ou pelos gestores. Por exemplo, no
Teoricamente, o fenômeno da violência é diverso, estudo, foram citados como sinais de precariedade:
difuso, multicausal e polimorfo e histórico, tendendo falta de material de identificação, de mochila e de
a repetir-se1. As teorias e discursos que se propõem equipamentos de proteção como máscaras, luvas,
a explicá-lo também são controversos. Alguns de- filtro solar, sombrinha, chapéu e uniforme com filtro
fendem que é preciso ser violento para se afirmar e ultravioleta adequado para sol, impermeável para dias
vencer na vida, nos negócios e na política, e usam até de chuva e calçados fechados1.
exemplos históricos para isso. Conjunturalmente, no Não são omissões, descaso e negligências que
País, vive-se essa glorificação da força e das armas, o caracterizam a violência no trabalho, por privar das
que se reproduz no comportamento da população, condições necessárias para o exercício adequado e
perdendo força os discursos que defendem o diálogo seguro qualquer atividade? Quando se fala de pro-
típico da atitude democrática. fissionais de serviços públicos, está pressuposta a
194

presença do Estado na forma de gestão. Portanto, entrar. Falta de higiene mesmo, higiene precária. Eles
a responsabilidade pela violência institucional de querem isso aqui ó (o dinheiro deles), isso que está
aqui. (Tania, UESF 3).
que os ACS são vítimas é da instituição pública que
representa o governo e o Estado1. Em casos como o citado acima, há que ver o lado
Existe também a violência social sofrida ou pre- cruel da irmã, mas também esticar o olhar para além do
senciada pelos ACS quase diariamente; quando transi- âmbito familiar, para a ausência do apoio institucional,
tam no território, adentram nas residências e escutam hoje premente e urgente para a população cada vez mais
as necessidades das pessoas a quem atendem. Muitos longeva. A compreensão das situações concretas por parte
desses Agentes se dizem impotentes, sem preparo e dos ACS é fundamental. Por exemplo, encontram-se casos
sem apoio para lidar com situações frequentemente de extrema negligência com o familiar idoso, mas se
mais complexas com que sua formação os equipou. denunciar a família, como fica a situação, tendo em vista
Eles se deparam, por exemplo, com vários tipos de que é a aposentadoria dele que sustenta todos. Situação
violência doméstica: mulheres violentadas ou espan- assim levam o Agente a se calar1.
cadas; abandono de pessoas idosas; casos de pedofilia A impossibilidade ou a ausência de retaguarda
e estupro; situações de maus-tratos a crianças e a para solução de situações de saúde que precisam de
pessoas com deficiência física e mental; e maus-tratos encaminhamento geram sentimentos de impotência
a animais. Esses eventos costumam ocorrer dentro do e muito sofrimento. É o caso de abuso sexual de
‘sacrossanto lar’, e frequentemente são guardados crianças. O fato de adentrar o espaço privado leva
mediante ameaças de homens (algumas vezes de a enxergar violências impetradas e protegidas pelo
mulheres) autoritários e machistas, que perpetuam escudo do espaço sagrado, reservado e íntimo de
a lógica do patriarcalismo profundamente arcaico. difícil intervenção1. Tudo isso ocorre ao arrepio do
Observa-se que as violências domésticas presen- Estatuto da Criança e do Adolescente!
ciadas pelo ACS se somam às violências sofridas por
Um rapaz estava abusando da menina. Eu já tinha
eles no trabalho, seja as institucionais provenientes feito alguma coisa de uma forma e não tive resposta.
das relações hierárquicas internas, seja as de que são Impotência! Mas eu estava assim porque me prejudicava
vítimas por parte de pessoas da comunidade. Contra- não conseguir resolver a situação. (Rosa, UESF 8).
pondo-se a esse lado negativo, é muito forte seu poder
Outro tema recorrente é a violência de gênero,
de mediação, o que promove o reconhecimento e,
fenômeno predominantemente feminino no que toca
por vezes, até compensa o sofrimento no trabalho1.
à vítima, e masculino no que se refere ao agressor. Esse
padrão se manifesta contra os próprios Agentes1. O assédio
Algumas falas que revelam situações vividas sexual às ACS é recorrente. Portanto, qualquer esforço de
prevenção ou intervenção a esse tipo de agravo tem que
O Agente é psicólogo, é orientador, a gente é conselheiro, considerar essa especificidade, como no caso exposto:
claro que você tem que ter certo cuidado, você não pode
falar ‘ah seu marido está te batendo, vai lá, denuncia O homem trancou o portão e eu fui lá fazer o cadastro.
ele’, essa mesma mulher vai lá e volta para o marido Eu bati para cadastrar. Ele pegou e falou peraí, já vou
dela: ‘a fulana mandou denunciar’. (Maria, UESF 1). abrir a porta. De repente ele abriu a porta só de cueca
e falou entra aí. ( Joaquina, UESF 6).
Em casos como o citado – tão comum no cotidiano O fato de a maioria das ACS serem mulheres
das mulheres nos bairros populares – a violência in-
trafamiliar se reproduz e o ACS encontra entraves para
aumenta em três vezes o risco de violência nesse
atuar. Porque às vezes já ouvi conflito familiar e eles ambiente de trabalho e exacerba o risco de assédio
ali vendo que eu estou, não deixaram eu entrar, para sexual1. Além da violência intrafamiliar nas suas mais
eu não poder denunciar. Só que, assim eu fico quieta, diferentes expressões, os ACS também lidam em espa-
não falo para o Enfermeiro, não falo. ( Josefa, UESF 4). ços sociais nos quais prosperam a violência comuni-
Na situação seguinte, sobrepõem-se elementos tária e a delinquência armada. A presença de facções
de negligência, descaso, abandono, privação, opres- criminosas que gerenciam o território para o varejo
são, abuso econômico e financeiro contra idosos. Três da venda de drogas acaba por envolver usuários e
idosos maltratados, explorados pela irmã. familiares em práticas ilícitas e potencializa o uso da
força nas relações. O fato de os ACS morarem nos
Mas, ali é muito, ali é muito sofrimento. Eu não consigo territórios onde trabalham, de um lado, é seu trunfo,
entrar lá não, um dia eu fui lá, eu não vou entrar, vou
ficar aqui fora, eu não consigo entrar não, o cheiro
mas de outro, torna-os vulneráveis a ataques e até a
é muito forte, extremo mesmo de não dar conta de ameaça de morte, por tais grupos.
195

Você vai à casa de uma pessoa que você sabe que ela

Foto: Rita Loureiro/ALM Apoio à Cultura


mexe com coisa ruim, você vai com o coraçãozinho
bem apertado porque você sabe que qualquer hora pode
acontecer alguma coisa. (Simone, UESF1).

Tensão! Assim, estouraram uma boca de fumo e que foi


eu que denunciei, então veio a pressão psicológica para
eu ia sair da unidade. Eu tive que mudar do bairro.
Depois o rapaz foi preso e dentro da cadeia avisaram
para que eu voltasse para o bairro, que ninguém mais
ia mexer comigo. (Gloria, UESF 8).

No último depoimento, observa-se o risco do


trabalho no território e como a instituição de saúde
da localidade tem pouco poder de solução do caso
e para preservar a vida da Agente1. Esse tópico será
aprofundado a seguir.
É importante assinalar que, na cidade de Cuiabá
(MT), as facções criam espaços de negociações ilícitas Eles conhecem a gente, eles falam: são as meninas que Os ACS desempenham
e impõem seus ‘Salves’, ou seja, suas regras à comu- trabalham lá no posto, são chegadas, são gente boa e o papel de mediadores
tal! não é cagueta, não é sujo, já sabem até os códigos entre a equipe e a
nidade2. É, portanto e também, com pessoas desses comunidade.
e tudo e tal. Eles tratam a gente bem. Até porque a
bandos criminosos que os ACS precisam se entender gente já é do bairro conhece há muito tempo, chega e
para desenvolver sua atividade com certa segurança. A pergunta. Esses que estão entrando agora, os ‘cabeça
convivência e a proximidade entre eles e os bandidos nova’, eles são mais difíceis de respeitar. (Celia, UESF 2).
acabam por ser uma necessidade, embora as interações
Mesmo com toda convivência possível e necessá-
sejam demarcadas por ambos os lados, pelo fato de
ria em espaços sociais em que a delinquência armada
serem trabalhadores, e assim, diferenciados real e
e o comércio varejista de droga ditam as regras, há
simbolicamente.
ainda a violência sofrida pelos ACS nas ruas e nas re-
A relação com a segurança pública – principal-
sidências, causada por balas perdidas, armas brancas,
mente da polícia com os moradores, dos moradores
vitimização por assalto e atropelamentos. Os casos
com a polícia e com os delinquentes-moradores –
mencionados acima são os mais comuns3. 3. MEDEIROS, A. R. S., et al.
exige atitudes defensivas e estratégicas dos Agentes. Uso de redes sociais virtuais
Há muitas agressões divulgadas nas páginas do
Atuam como se operassem um pacto tácito1. O de- na vigilância da violência no
Facebook da categoria e não notificadas oficialmente3. trabalho sofrida por agentes
poimento a seguir revela claramente os meandros comunitários de saúde. RBSO,
O fato de a grande maioria das ACS serem mulheres v. 45, 2020.
dessa relação:
de cor preta ou parda e de baixa renda as torna mais
É igual o dia que eu estava atrás, eu assim e o policial vulneráveis à violência por discriminação de classe,
assim. Policial civil – ‘você trabalha aqui, moça?’ eu sabia gênero e raça/cor.
que aquele cara era policial civil. A senhora conhece
O trabalho dos ACS é hoje uma atividade indis-
fulano de tal? Eu conversando com o próprio, do lado
assim. Eu, ele e o policial e eu disse: ‘não conheço moço’, pensável para o SUS. Em que pesem algumas con-
mas quem ele estava procurando, estava do meu lado. quistas que esse seguimento conquistou desde os
Não vou abrir a boca! Nada! Se eu falar, nunca mais anos 1990 quando foi criado institucionalmente, a
eu volto naquela área, nunca mais! Esquece! Eles não sociedade brasileira ainda está lhe devendo reconhe-
deixam mesmo!’. (Gilma, UESF 2). cimento, apoio e melhores condições de trabalho.
Existe um aspecto muito importante na cons- Por causa da vulnerabilidade dos locais em que
trução da intrincada relação citada por Gilma: ser atuam e do baixo reconhecimento institucional de
morador do bairro. Isso facilita transitar no territó- que desfrutam, os ACS são um dos segmentos de
rio para exercer as atividades como ACS. Em geral, trabalhadores mais expostos à violência social. Esse foi
a pertença ao local de moradia protege a pessoa o tema central deste texto. Como se viu, o ACS é, ao
de possíveis violências. Não obstante, nem todos mesmo tempo, trabalhador e morador da localidade, o
são assim identificados e tratados com o devido que torna muito tênues os limites de sua vida pública
respeito. Há os mais antigos e os ‘cabeça nova’1. e privada. As mesmas características de pertencimen-
Nesse sentido, há uma negociação da realidade, to aos contextos nos quais residem e trabalham os
como reportado pela ACS: irmanam com a população a quem servem: baixos
196

salários, raça/cor, condições de reivindicação. No Não é possível que a violência intrafamiliar repe-
entanto, esses mesmos marcadores sociais, quando tidamente relatada possa ser omitida e passada
acrescidos por uma formação básica para promoção impune. Os gestores das unidades de saúde pre-
e cuidado com a saúde, os transformam em atores cisam, coletivamente, discutir meios e estratégias
imprescindíveis do SUS. para amenizar o sofrimento de crianças, mulheres
Quanto à violência, alguns pontos precisam ser e idosos e punir os criminosos. Jogar luz sobre
ressaltados. Em primeiro lugar, o setor saúde, para tais problemas oriundos do arcaico patriarcalismo
o qual confluem as consequências das violências, é bom para os homens também. Já o lidar com as
também é local que pode engendrá-las. No caso dos facções criminosas é uma questão da segurança
ACS, é incabível o descaso com suas condições e pública e do empoderamento da sociedade. No
equipamentos de trabalho. entanto, é preciso investir fortemente na educação
Em segundo lugar, é importante articular as para que os jovens prefiram uma carreira a entrar
vivências dos ACS com áreas de educação e direito. para a delinquência.

Interseccionalidade gênero, raça e classe


Fátima Cristina Rangel Sant’Anna

A prática da Visat nos convoca à compreensão de refinamento dessas lógicas e a sustentação das iniqui-
múltiplas variáveis que dimensionam as experiências dades não se dão necessariamente pelo uso da força,
dos trabalhadores no cotidiano do trabalho e suas mas, principalmente, mediante formas de compor
repercussões à saúde. Desse modo, torna-se impres- o imaginário social com valores que as legitimem2.
cindível compreender a divisão do trabalho em uma Para sustentar essas relações, produz-se, inicial-
perspectiva de divisão sexual e racial do trabalho. mente, uma clivagem que define a humanidade de forma
O que chamamos de abordagem interseccional binária (homens e mulheres). Essa divisão atua como
de classe, gênero e raça, para a Visat é, portanto, a determinante do que irá definir a identidade dos sujei-
construção de estratégias que permitam tornar visíveis tos e orientar todas as suas escolhas, inclusive aquelas
elementos indissociáveis que conformam a totalidade relacionadas diretamente com o mundo do trabalho.
das experiências dos sujeitos no mundo do trabalho. A noção de raça, quando atribuída a processos
Significa reconhecer que os marcadores de gênero, raça de distinção e classificação entre seres humanos, mo-
e classe operam, de forma integrada, como determi- difica-se em diferentes momentos históricos. Assim
nantes dos processos de subjetivação de trabalhadores como a noção de homem ou de humano, a noção
e trabalhadoras, seja em sua vida privada, seja em suas de raça sofre variações no decorrer da história. Tais
1. DAVIS, A. Mulheres, Raça e inserções e trajetórias no mundo do trabalho1. ideias não se sustentam apenas em irracionalidades,
Classe. São Paulo: Boitempo,
2016. Tal compreensão é essencial, também, para o é preciso criar e recriar, no imaginário social, carac-
alcance daquilo a que se destina a Visat, em sua pro- terísticas biológicas, além de práticas culturais, no
posição de romper com lógicas opressoras e com a sentido de legitimá-las. Dessa forma, é importante
produção de assimetrias que se legitimam continu- ressaltar que, para sua sustentação e do sistema de
amente no mundo do trabalho. Por outro lado, é a ideias racistas, tem sido necessário o aporte da ciência,
2. ALMEIDA, S. Racismo partir das relações de trabalho, ao longo da história e em seu discurso de autoridade2.
Estrutural. São Paulo: Jandaíra,
2019. das inúmeras reestruturações dos modos de produção, Historicamente, parte significativa das disciplinas
que elas se instalam. científicas dominantes fazem valer seu discurso de
Observa-se que a presença desses marcadores se autoridade para validar hipóteses que justificam a
confirma por meio de novos dispositivos de controle dominação racial e de gênero. É preciso uma racio-
e hierarquização das relações de trabalho. Tais dispo- nalidade que se propõe universal e colonizadora que
sitivos são desenvolvidos e aprimorados no sentido de inscreva colonizados e colonizadores em um projeto
3. MBEMBE, A. Necropolítica. confirmar e disciplinar as relações hierárquicas, que civilizatório3. Em tempos de capitalismo moderno,
São Paulo: N1 Edições, 2018.
se impõem no mundo do trabalho por intermédio continua presente a necessidade de que racismo e
da discriminação racial e de gênero. Os processos de colonialismo andem juntos.
197

Dessa forma, as ideologias do racismo e das de- àqueles que habitam os países pobres ou em desen-
sigualdades de gênero promovem o consentimento à volvimento, têm merecido destaque1,4. 4. SEN, A., et al. As pessoas
em primeiro lugar. São Paulo:
uma cartografia que confere a homens brancos, homens No caso do Brasil, essa reflexão torna-se ainda Companhia das Letras, 2010.
negros, homens indígenas, mulheres brancas, mulheres mais importante se levarmos em conta que negros
negras e mulheres indígenas lugares diferenciados e e pardos correspondem a cerca de 56% do total da
hierarquizados. Trata-se de lugares que se distanciam população; e, em algumas regiões do País, chegam a
no que se refere à distribuição dos recursos socioam- mais de 80% segundo o último Censo. Para compre-
bientais, assim como à distribuição dos riscos e danos endermos esses elementos, é fundamental a análise
à saúde decorrentes dos processos produtivos. do processo de transição da escravidão para o mer-
Nesse sentido, tais ideologias servem para desig- cado de trabalho livre brasileiro e suas repercussões
nar os lugares e as relações de pertencimento a cada contemporâneas.
um desses grupos. Produzem uma fragmentação dos
territórios a partir de uma lógica de exclusão que se
manifesta de formas variadas, ora como privação, ora
como exclusão injusta, em que a mobilidade social
dos sujeitos sofre profundas restrições e, constante-
mente, a existência de um lugar se dá em oposição
a existência de outro (‘lugar de mulher é em casa’,
‘os negros pela porta de serviço’). Opera-se, além
da hierarquização, a negação e toda existência de
outras perspectivas de gênero e suas possibilidades
de manifestação, o que provoca, do ponto de vista
ético, um dilema importante: a negação do outro.
No entanto, à medida que a natureza do trabalho
em saúde se afirma, a partir de um elemento-chave que
é o cuidado, a representação do outro e o reconheci-
mento de suas necessidades são essenciais na definição A organização do trabalho livre no Brasil ocorre Tarsila do Amaral –
da ação, no ato de cuidar. Esse só poderá se realizar em Operários, 1933
com: a preservação substancial da continuidade da Óleo sobre tela
relação, ou seja, a partir do reconhecimento do outro dominação dos meios de produção pelas elites e a 150 cm x 230 cm
Palácio Boa Vista, Campos do
e da consideração do conjunto dos interesses em jogo criação de mecanismos de recuperação financeira e Jordão.

quando se trata de promover ou recuperar a saúde de de prestígio dos ex-proprietários de escravos; a cria-
indivíduos e mesmo de grupos populacionais. ção e aprimoramento dos mecanismos de controle
Orientar o trabalho em saúde em uma pers- e disciplinamento da força de trabalho negra; e a
pectiva binária de gênero implica representações desmobilização das múltiplas formas de luta, resis-
reducionistas do corpo e suas expressões que tra- tência e organização social que haviam sido geradas
zem obstáculos e limitações importantes à realização pela população na recusa à escravidão.
do cuidado pelo trabalhador da saúde. Do mesmo Na transição para o mercado de trabalho livre,
modo que na ideologia racista, a ideologia binária são produzidos condições materiais e valores sociais
de gênero atua na produção do estranhamento e, que configuram um processo de entrosamento em
consequentemente, da intolerância. Essas ideologias, desvantagem das populações de trabalhadores e tra-
separadamente e de forma interseccional, também balhadoras negras recém-libertos da escravização1,5. 5. GEBARA, A. Mercado de
Trabalho Livre no Brasil. São
desenvolvem importantes dispositivos ao surgimento Cristaliza-se o mito da democracia racial, cunha- Paulo: Brasiliense, 1986.

da violência que vemos se reproduzir nos territórios, do no sentido de promover estabilização sociopolítica.
seja no âmbito da vida privada, seja no da pública. Conjugam-se supostas ‘essências’ e inviabilização das
diferenças, desigualdades e discriminações ‘novos para-
Entrosamento em desvantagem – racismo digmas de organização e uso do trabalho’; conjunto de
ambiental e a determinação social da saúde- competências cognitivas e atitudinais. São produzidas
doença na população negra expectativas acerca dos lugares para negros e negras assim
As diferenças significativas entre as condições de como ‘estranhamentos’ quando essas não se realizam6. 6. GUIMARÃES, N. A. Os
desafios da equidade: rees-
vida de brancos e negros nos países desenvolvidos e Esses são pilares do modo como o racismo es- truturação e desigualdades de
gênero e raça no Brasil. Cad.
as semelhanças entre as condições de vida de negros trutural se caracteriza no Brasil, em suas múltiplas Pagu [online]. 2002, n.17-18, p.
237-266.
que vivem em países desenvolvidos, comparativamente faces, e como molda as instituições. A violência insti-
198

tucional manifesta-se como um produto das dinâmicas recuperar a atenção à saúde em sua integralidade e
pelas quais as instituições atribuem, de forma direta vocação transformadora.
ou indireta, privilégios e benefícios com base nas As lutas sociais que culminaram na afirmação cons-
discriminações de classe, gênero e raça. É preciso titucional do direito universal à saúde e na criação do SUS
compreender os conflitos de gênero e de raça, no convocam um projeto de sociedade solidária, singular
âmbito das instituições, como parte integrante delas, e e robusto, mesmo em comparação com muitos países
não como eventos isolados que resultam unicamente onde a garantia dos direitos se dá de forma sustentável.
de comportamentos individuais. O conjunto de políticas que derivam da Constituição de
Dessa forma, podemos relacioná-lo com situa- 1988, em especial da Lei Orgânica da Saúde e da criação
ções de violência que ocorrem cotidianamente nos do SUS (políticas de Saúde Indígena, da População Ne-
serviços de saúde. Cabe ressaltar aqui que essas re- gra, das populações do Campo, da Floresta e das águas,
presentações compõem um repertório social ainda entre outras), expressam o cenário de conquistas e lutas
hegemônico, que atravessa a trajetória de vida dos constantes que se travam no Brasil pela dignidade das di-
sujeitos que se dedicam ao trabalho em saúde e fazem versas formas de vida. Nesse processo, as ações afirmativas
7. KOIFMAN, S. Racismo no
Brasil: os trabalhadores da
parte também de suas experiências7. também vêm contribuindo para materializar importantes
saúde. Cad. Saúde Pública, v. 2, Daí o desafio de refletir sobre o modo como processos de inclusão.
n. 3, p. 279-296, 1986.
a distopia do cuidado no Brasil opera no corpo das Trazem fôlego novo ao intento de superar, com
mulheres negras6. Lembrando-se que as mulheres equidade, uma história de país cravada pela violência
representam a maioria absoluta da força de trabalho do Estado e por abismos socioambientais imensurá-
em saúde, que, por sua vez, em média, é composta veis. Promovem um debate vigoroso que confronta
majoritariamente por mulheres negras. Desafio de a meritocracia e o mito da democracia racial, produ-
construir processos de formação profissional, a partir zindo territorialidade.
de projetos político-pedagógicos emancipatórios. No cenário atual, torna-se possível a combinação
Nesses trabalhadores e trabalhadoras, em formação entre ideologia e uso da força, no sentido de legitimar
para o trabalho em saúde, são convocados a (re)suscitar uma necropolítica obstinada, interseccionalmente se-
suas experiências e (re)significá-las, no sentido de romper letiva, como a que se vivencia contemporaneamente,
com as lógicas de opressão de raça e gênero. Ressignificar intensificada pelo atual cenário pandêmico. Entretanto,
8. SANTOS, M. Metamorfoses as relações entre sexismo e racismo em uma perspectiva solo cultivado é solo fértil. Milton Santos8 chama atenção
do Espaço Habitado. São Paulo:
Hucitec, 1997. biográfica. É preciso situar o processo de formação para para a importância do território na realização da história.
o trabalho em saúde como um processo permanente Convida-nos a contemplar a paisagem como algo vivo e
e intermitente, repleto de realizações, acontecimentos a compreender que a paisagem é a herança de muitos
que abrem inúmeras possibilidades de interpretação da momentos – e que as relações entre homem e natureza
realidade e ação sobre ela. não podem ser cabalmente previstas8.
Não só no Brasil, o Estado se caracteriza como A mobilização de populações tradicionais, como
espaço de permanente disputa entre essas ideologias indígenas, quilombolas, as ligadas a pesca artesanal e
hegemônicas, cuja legitimidade também se ancora a agroecologia, as que habitam as favelas, entre outras,
em determinadas racionalidades científicas e outras populações majoritariamente compostas por mulheres
formas de compreender o mundo. Nestas últimas, a negras, vem protagonizando, de forma expressiva,
diversidade das lutas pelos direitos humanos e digni- um conjunto de estratégias para o enfrentamento
dade da vida assume um papel central; e a orientação da Covid-19. Apesar das inúmeras mazelas derivadas
do Estado deve se voltar para a efetivação de políticas ou agravadas pela pandemia, essas ações têm sido
9. CARNEIRO, F., et al. Iniciati- públicas permanentes e com equidade. significativas (re)suscitam condições de possibilidade
vas de Organização Comunitária
e Covid-19. Trab. Edu. e Saúde. Nesse contexto é que a Visat, enquanto um con- para a construção de processos de vigilância em saúde
v. 18 n. 3, e00298130, 2020.
Disponível em: https://www.
junto de estratégias que fundamentam a política de de base popular, participativa e democrática9.
scielo.br/pdf/tes/v18n3/0102-
6909-tes-18-3-e00298130.pdf.
saúde, pode desencadear ações voltadas à visibilidade É preciso reconhecer também o que se tem con-
Acesso em: 20 ago. 2020. das intersecções de gênero e raça que permeiam o quistado. É preciso procurar no território vivo ‘por
mundo trabalho. Orientar as ações nesse sentido e onde se trava a revanche’.
7
A necessária integração
trabalho-ambiente: problemas
emblemáticos e lições aprendidas
Coordenação
Hermano Albuquerque de Castro & Lia Giraldo da Silva Augusto
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.10
201

Trabalho e ambiente no processo de


determinação da saúde
Hermano Albuquerque de Castro
Lia Giraldo da Silva Augusto

Aspectos históricos da articulação trabalho- 1980, abriu caminho para a incorporação de serviços
ambiente-saúde de Saúde Ambiental, a partir da articulação entre os
temas trabalho, ambiente e política de saúde, acolhido
Uma dificuldade no desenvolvimento das ações no arcabouço jurídico-institucional do Sistema Único
em Saúde do Trabalhador (ST) e ambiental é o fato de de Saúde (SUS) a partir de 1990.
a saúde pública brasileira, e provavelmente mundial, A saúde pública brasileira incorporou as vi-
ser prisioneira de abordagens restritas e fragmentadas; gilâncias da água, do solo, do ar e de desastres
e, na prática, centradas em relações causalistas entre ambientais, nos moldes preconizados pela Organi-
um agente causador e o exposto, a despeito do grande zação Mundial da Saúde (OMS). A dimensão social,
avanço conceitual que aponta para a complexidade como uma abordagem totalizadora relacionada
da determinação. A saúde pública/saúde coletiva em com a saúde, ainda permanece fragmentada na
seu modo de intervenção desconsidera os temas do operacionalidade dessas vigilâncias especializadas.
ambiente e dos processos produtivos na gênese dos Trata-se de um desafio candente integrar o con-
fenômenos de saúde1. ceito de território, oriundo da Geografia Crítica,
1. AUGUSTO, L. G. S. Saúde do
Trabalhador e Sustentabilidade
A saúde pública trata o ambiente, ainda, como no âmbito da SC. do Desenvolvimento Humano
Local – Ensaios em Pernambu-
um elemento externo ao sistema2, atuando no final co. Recife: Universitária UFPE,
Os variados movimentos sociais, incluindo
dos processos, isto é, apenas nos efeitos. 2009.
Organizações Não Governamentais (ONG) e redes,
Os fenômenos de saúde são processos concre- 2. LIEBER, R. R. Teoria e
vêm trazendo suas lutas por uma sociedade saudá- Metateoria na Investigação da
tos que incidem sobre os corpos das pessoas e nos Causalidade. São Paulo. 1998
vel, que inclui temas novos como o da justiça am- Tese. (Doutorado em Saúde
coletivos representados por espaços populacionais, Pública), Departamento de
biental, que se integra perfeitamente ao da justiça Saúde Ambiental da FSP da
territórios de vida e trabalho. Os contextos e as USP, 1998.
social e ao da dignidade no trabalho. Como parte
dinâmicas socioambientais, em geral, carregados
do elenco de demandas para proteção da saúde dos
de conflitos de interesses, não são vistos como
grupos excluídos ou discriminados socioambien-
planos de emergência e de interações para ações
talmente, emergem as históricas dos racismos em
de cuidado e prevenção.
nossa sociedade, incluindo o ambiental oriundo
Como nos fala Câmara e Tambellini3 as lógicas 3. CÂMARA, V. M., et al.
das zonas de sacrifício no campo, nas florestas e Considerações sobre o uso da
da natureza e do social, das quais o trabalho é parte, epidemiologia nos estudos em
nas áreas urbanas, onde estão segregadas parcelas saúde ambiental. Rev. bras.
integram-se na produção da saúde.
importantes da sociedade, que vivem em ambientes epidemiol. [online]. v. 6, n. 2, p.
As experiências a seguir descritas são emble- 95-104, 2003.
degradados e sujeitos a nocividades de tecnologias
máticas da intervenção sanitária e da pesquisa aca-
e de modos de trabalho perigosos.
dêmica, em que a articulação entre saúde, trabalha-
O processo crítico não cessa de produzir
dor e ambiente vem se dando sob a inspiração do
robustos movimentos de reformas sanitárias em
pensamento crítico que alimenta a Saúde Coletiva
diversos continentes. Na América Latina, ele ga-
(SC) desde a década de 1960. Esse movimento de
nhou força e, especialmente no Brasil, possibilitou
ressignificação da velha saúde pública começou a
a luta pela construção de sistemas universais de
ganhar corpo a partir das análises marxistas do pro-
saúde. O SUS tem características singulares, e que
cesso saúde-doença e das importantes contribuições
continuam em construção e reconstrução, em que
de pensadores como Canguilhem e Foucault, e mais
a ST e a saúde ambiental já têm institucionalidade,
recentemente de muitos outros, que, na América
mas incompleta e insuficiente, com fragilidades
Latina e no Brasil, deram uma contribuição bastante
decorrentes da conjuntura histórico-política do
significante, como Cecília Donnangelo, Juan Samaja,
País, que vive seguidas crises econômicas, manu- 4. CÂMARA, V. M., et al. A
Jaime Breilh, Anamaria Testa Tambellini. patologia do trabalho numa
tenção de contextos nocivos, sustentados por uma perspectiva ambiental. In:
De acordo com Câmara e Galvão4, o desenvolvi- MENDES, R. (Ed.). A patologia
conjuntura caracterizada pelo neoliberalismo, de do trabalho. São Paulo: Atheneu,
mento da área acadêmica de ST, durante a década de 1995. p. 75-85
202

dependente reprimarização da economia, do rentismo, É neste cenário que reunimos alguns autores
da dependência de mercados globais espoliadores, que puderam atuar em pesquisas empíricas sobre
da frágil democracia, da falta de políticas internas de problemas que articulam os temas saúde-ambiente-
efetiva proteção do ambiente e da ST, atualmente com -trabalho. Esperamos que esses exemplos sirvam de
acentuadas perdas de direitos fundamentais. base para novas questões no atual contexto brasileiro,

Desafios e lutas na questão do benzeno:


o modo de produção, os trabalhadores, a
1
1. Este texto traz um recorte
do artigo ‘Análise da ordem
saúde e o ambiente
constitutiva da determinação
socioambiental do benzenismo Lia Giraldo da Silva Augusto
em trabalhadores: revisitando o Jorge Mesquita Huet Machado
caso de Cubatão (SP), Brasil’ e
que foi ajustado para o objetivo Tereza Carlota Pires Novaes
desta publicação, recebendo Danilo Fernandes Costa
novos aportes de autores convi-
dados. AUGUSTO, L. G. S., et al.
Análise da ordem constitutiva da
determinação socioambiental do
benzenismo em trabalhadores:
revisitando o caso de Cubatão,
Introdução da saúde (por exemplo, acordos trabalhistas); os
SP, Brasil. Sustentabilidade em
No final da década de 1970, houve uma impor- trabalhadores e suas famílias tendem a residir em
Debate. Brasília, v. 9, n.1, p.
66-80, abril/2018.
tante mobilização sindical para a defesa dos direitos lugares insalubres e, de modo geral, mantêm-se
dos trabalhadores em termos de renda e de saúde, expostos aos mesmos poluentes ou a outras noci-
com a criação do Departamento Intersindical de Es- vidades, uma vez que as áreas urbanas operárias são
tatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e o desprovidas de qualidade ambiental.
Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas Para essa atuação foram escolhidos agravos à
2. DEPARTAMENTO INTER- em Saúde do Trabalhador (Diesat) em 19802. Essas saúde vinculados aos perfis das indústrias de Cubatão
SINDICAL DE ESTUDOS E
ações foram fortemente inspiradas pelo Movimento (Siderurgia, Refinaria de Petróleo, Petroquímicas,
PESQUISAS DE SAÚDE E
AMBIENTE DE TRABALHO.
Operário Italiano das décadas de 1960 e 1970, que Fertilizantes, Clororados, Papel) que afetavam conco-
O que é? Disponível em:
http://diesat.org.br/diesa- nos chegaram principalmente pelos livros de Giovanni mitantemente o ambiente, a saúde da população e dos
t/o-que-e/#:~:text=Artigo%20
1%C2%BA%E2%80%93%20 Berlinguer3 e de Ivar Oddone4. trabalhadores. Esse perfil de agravos assim vinculados
O%20Departamento%20Inter-
Crescia o movimento pela reforma sanitária possibilitou instrumentalizar a organização sindical em
sindical,ESTATUTO%20e%20
legisla%C3%A7%C3%A3o%20
que incluía a luta dos trabalhadores por saúde, defesa da saúde, o movimento ambientalista e o plane-
em%20vigor. Acesso em: 17
dez. 2020. melhores condições de trabalho e de renda. Nesse jamento de um programa novo para a ST, nunca havido
3. BERLINGUER, G. A saúde contexto, ainda foram criados o Centro Brasileiro na rede pública de saúde. Nesse processo, criou-se a
nas fábricas. São Paulo: Cebes;
Hucitec; Oboré; 1983 de Estudos de Saúde (Cebes) e a Associação Brasi- Associação das Vítimas da Poluição e uma a agenda
4. ODDONE, I., et al. Ambiente leira de Saúde Coletiva (Abrasco), respectivamente de defesa da saúde em três importantes sindicatos da
de trabalho: a luta dos trabalha-
nos anos 1976 e 1979. região (Metalúrgicos, Petroleiros, Construção Civil), e
dores pela saúde. SP: Hucitec,
1986. que veio a se ampliar posteriormente, especialmente
5. SÃO PAULO. Secretaria de
Em resposta, surgiram movimentos sindicais com os Químicos e Urbanitários.
Estado da Saúde. Resolução
SS-SP 69. DOE, outubro de
O desenvolvimento de ações de proteção à A sociedade se mobilizava pela redemocratiza-
1984. In: AUGUSTO, L. G. S. saúde dos trabalhadores na Baixada Santista, em ção do País, e a saúde foi uma trincheira que pos-
(Org.). Saúde do trabalhador no
desenvolvimento humano local: 1983, representou uma inovação na prática da saúde sibilitou fortes alianças entre o movimento sindical
ensaios em Pernambuco. Recife:
Universitária UFPE, 2009. pública5. Teve os seguintes pressupostos: a poluição de trabalhadores; parlamentares; profissionais de
ambiental é gerada no processo de produção; os tra- saúde da rede de saúde pública; intelectuais mili-
balhadores são os primeiros e os mais intensamente tantes do Partido Comunista Brasileiro, entre outros
afetados pela poluição no interior das unidades de esquerda, como o Partido dos Trabalhadores a
produtivas; os trabalhadores são amparados por uma partir de meados da década de 1980, com a criação
complexa legislação e ferramentas reivindicativas do Instituto Nacional de Saúde do Trabalhador vin-
que lhes possibilitam uma ação política em defesa culado à Central Única dos Trabalhadores.
203

O contexto Trabalho/Ministério do Trabalho (Fundacentro), pelo


Em Cubatão, as doenças respiratórias eram a Sindicato dos Metalúrgicos de Santos e pela investiga-
principal causa de internação hospitalar e de morte ção epidemiológica realizada no âmbito do Programa
nesse período. Os acidentes de trabalho estavam entre de Saúde do Trabalhador da Secretaria de Estado da
os mais elevados do País, em uma época em que o Saúde em sua regional de Santos8.
Brasil era o campeão mundial na ocorrência desses A Fundacentro teve papel antecedente e impor-
eventos, fruto da política desenvolvimentista durante tante no tema do benzeno pelos estudos de Novaes
o período da ditadura militar-empresarial. que apontaram três grandes grupos de expostos e que
É interessante sinalizar que, durante a Eco-92, resultaram em uma portaria interministerial em 1982,
no Rio de Janeiro, o governo brasileiro acolheu as pela redução da presença de benzeno em misturas
empresas poluidoras com atuação restrita na Europa e de solventes6.
nos Estados Unidos da América (EUA). Era voz corrente Inicialmente, uma denúncia sindical e uma ação
da governança dessa época de que a poluição seria o de vigilância epidemiológica suscitaram novas per-
preço a pagar pelo desenvolvimento, e os acidentes guntas, incidentes na vida dos trabalhadores e sobre
de trabalho pelo emprego. as responsabilidades das instituições públicas por
Com a forte denúncia do Sindicato dos Traba- garantir seus direitos. Na medida em que surgiam
lhadores Metalúrgicos de Santos de casos de intoxi- dúvidas de diagnóstico para prevenção primária e
cados por benzeno, favorecido pela então vigilância secundária (mais precoces), de condutas previden-
de agravos relacionados com processos produtivos, ciárias e de medidas de controle, novas questões
6. NOVAES, T. C. P. Bases
revelou-se que o problema do benzenismo não se foram sendo feitas, que obrigaram a criar um plano metodológicas para abordagem
da exposição ocupacional ao
restringia ao âmbito das plantas siderúrgicas. O tema normativo garantidor de direitos. benzeno. 1992. Dissertação

abrange refinarias de petróleo e demais petroquímicas Algumas dessas perguntas foram feitas para o (Mestrado em Química Analítica)
– Universidade de São Paulo,

que utilizavam benzeno como matéria-prima6-12. A campo da medicina responder a respeito de sinais São Paulo, 1992.

partir do território de Cubatão, o Tema do benzeno precoces da intoxicação; sobre o tempo necessário de 7. ARCURI, A. S. A., et al. Valor
de Referência Tecnológico (VRT)
ganhou relevância nacional. afastamento da função para a recuperação da saúde ou – a nova abordagem do controle
da concentração de benzeno nos
O município de Cubatão era conhecido como o se o dano era definitivo; se as alterações observadas ambientes de trabalho. RBSO, v.

Vale da Morte por sua intensa degradação ambiental na medula óssea eram permanentes; se havia corres- 24, n. 89/90, p. 71-85, 1997.

e poluição que vararam as décadas de 1960, 1970, pondência entre as alterações clínicas e as observadas 8. AUGUSTO, L. G. S. Estudo
longitudinal e morfológico (medu-

1980, 1990 e que ainda não estão completamente na análise hematológica. Outras, relacionadas com la óssea) em pacientes com neu-
tropenia secundária à exposição
saneadas. Graças às inovações em saúde pública inau- os processos produtivos, ficaram aos cuidados da ocupacional crônica ao benzeno.
s.n., Campinas, 1991.
guradas a partir de 1983, com o apoio do movimento Fundacentro.
9. FARIA, M. A. M., et al.
sindical, centenas de casos de intoxicações por expo- Um pensamento crítico guiou o movimento sin- Saúde e Trabalho: acidentes de

sição ao benzeno foram notificados e investigados na dical e a maior parte dos técnicos do setor público mo- trabalho em Cubatão. RBSO, v.
11, n. 42, p. 07-22, 1983.
região e que alcançou outras cidades de São Paulo bilizados nessa questão; especialmente introduzindo
10. FARIA, M. A. M., et al.
e outros estados da federação. Uma enorme disputa elementos do contexto, e das vulnerabilidades sociais saúde e Trabalho Industrial:
valores hematológicos de
de narrativas se sucedeu. De um lado, o movimen- no modo de tratar os problemas que iam emergindo, trabalhadores residentes no polo
sidero-petroquímico de Cubatão
to dos trabalhadores denunciando as exposições, todos com muitos conflitos de interesses claramente – SP. RBSO, v. 15, n. 60, p.

a falta de controle ambiental e as intoxicações dos postos e tensionados. 17-29, 1987.

trabalhadores; de outro, o setor empresarial tentava Foto: Kenn W. Kiser/morgueFile.com

ocultar, minimizar, negar, dificultar de todas as ma-


neiras possíveis os problemas relacionados; e ainda
o setor público, na esfera da Saúde, da Previdência e
do Trabalho, mobilizava-se para encontrar mediações
para o problema complexo.
O caso benzeno
Embora o benzeno fosse há muito reconhecido
como substancia carcinogênica, teratogênica e nefro-
tóxica para humanos, não havia a adoção de medidas
de controle nos ambientes de trabalho, como ficou
incialmente atestado na siderúrgica de Cubatão, pela
Fundação Jorge Duprat de Segurança e Medicina do
204

Adotou-se um pensamento precaucionário para negociar com o setor empresarial as mudanças


nos processos produtivos, no controle ambiental e na
Para orientar a atuação nessa problemática, foi saúde dos trabalhadores. Também essa CNPB possibi-
considerado todo o conhecimento existente, assim litou um melhor cenário para formação e integração
como as incertezas, a gravidade para a saúde, o am- entre os trabalhadores e suas bases com a criação
biente e o contexto social e a visão do trabalhador dos GTB. Comissões regionais, encontros, cursos e
sobre a questão. O fato de o benzeno ser uma subs- processos de visitas técnicas foram realizados, com
tância cancerígena, conforme farta literatura científica apresentações e discussão de alternativas técnicas e
11. COSTA, D. F. Prevenção
de quase um século de estudos, tornou-se um vetor mudanças tecnológicas, como dos sistemas de sepa-
da exposição ao benzeno no importante na radicalização para as medidas de pre- radores de água e óleo, melhor estanqueamento de
Brasil. Tese 2009. (Doutorado
em Patologia) – Universidade de venção, proteção e cuidado da saúde de trabalhadores portas de coqueria e operações de coleta de amostras
São Paulo, São Paulo, 2009.
potencialmente a ele expostos. com sistemas fechados, que também resultavam em
12. CAMPOS, A. G. Análise
da atividade do frentista A precaução adotada se observou inclusive na melhorias ambientais tanto para os trabalhadores
diante do perigo da exposição ao
benzeno. 2017. 94 f. Dissertação
definição de indicadores de nocividade precoces à como para a população13,14.
(Mestrado Acadêmico em Saúde saúde devido à exposição ao benzeno, que serviram Outra conquista relevante dessa articulação: a
Pública) – Instituto Aggeu Maga-
lhães, Fundação Oswaldo Cruz, para o afastamento do trabalhador das situações de substituição do Limite de Tolerância de exposição por
Recife, 2017.
risco, antes de ser acometido por doenças graves, um Valor de Referência Tecnológico ( VRT) não mais
13. MACHADO, J. M. H., et
al. Alternativas e processos como a anemia aplástica e o câncer, entre outras, vinculado ao estabelecimento de nexo causal entre
de vigilância em saúde do
trabalhador relacionados à
decorrentes da toxicidade dessa substância química. as alterações hematógicas ou doença decorrente da
exposição ao benzeno no Brasil. Também na eliminação de um aceitável limite de exposição ao benzeno. A saúde deixou de estar su-
Ciênc. Saúde Colet. v. 8, n. 4, p.
913-921, 2003. tolerância para exposição e quanto à redução dessa bordinada a um indicador da química analítica, que
14. BRASIL. Ministério da substância em produtos acabados. era arbitrado como supostamente biosseguro.
Saúde. Portaria nº 776, de 28
abr 2004. Dispõe sobre a regu- A criação da nova Comissão Nacional Perma- O duelo que se estabeleceu entre uma visão po-
lamentação dos procedimentos
relativos à vigilância da saúde
nente do Benzeno (CNPB) 1997-2019, de caráter sitivista da Medicina do Trabalho e o da complexidade
dos trabalhadores expostos tripartite, possibilitou, no período de sua criação como realizado pelo campo da ST foi possível pelos
ao benzeno, e dá outras pro-
vidências. Diário Oficial União. e funcionamento, a ação de Comissões Regionais e processos participativos instituídos. As Campanhas de
29 Abr. 2004. Disponível em:
https://www.legisweb.com.br/ de Grupos de Representantes dos Trabalhadores do conscientização simbolizadas por palavras de ordem
legislacao/?id=187844. Acesso
em: 17 dez. 2020.
Benzeno (GTB) em praticamente todas as fábricas como ‘Operação Caça Benzeno’, promovida pela
15. CENTRAL ÚNICA DOS
envolvidas na CNPB. Foi uma articulação que deu Central Única dos Trabalhadores15, e ‘Benzeno não é
TRABALHADORES. Operação maior amplitude de discussão com agentes públicos flor que se cheire’16, lema cunhado pelos petroleiros,
Caça Benzeno. Vídeo. 1991.
Disponível em: http://nucleopira- (especialmente dos setores da Saúde, do Ministério representam a luta dos GTB; e comissões regionais
tininga.org.br/a-maldição-do-ben-
zeno/. Acesso em: 10 dez. 2017. Público e do Trabalho) e dos trabalhadores (dos se- organizadas em estados com polos petroleiros, petro-
16. CORRÊA, M. J. M. A
tores do petróleo, petroquímico e siderúrgico). Foi químicos e siderúrgicos17 ilustram algumas das ações
construção social do silêncio
epidemiológico do benzenismo:
também um espaço para formação técnica e sindical nacionais para esse problema.
uma história negada. 2008. Dis- em vigilância em saúde dos trabalhadores expostos ao Podemos afirmar que o modo como o tema do
sertação (Mestrado em Serviço
Social) – Faculdade de Serviço benzeno dessas categorias envolvidas. Posteriormente, benzenismo foi enfrentado, desde o seu desvelamento
Social da Pontifícia Universidade
Católica, Porto Alegre, 2008.
possibilitou ampliar a base de atuação para os postos pelos trabalhadores em diversos Estados, pela vigi-
17. FEDERAÇÃO ÚNICA DOS
de combustíveis, envolvendo os frentistas11, mas que lância da saúde pública na região de Cubatão (SP),
PETROLEIROS. Bancada dos segue com muita vulnerabilidade. Pode-se afirmar pela ação Inter setorial e pelos estudos realizados, foi
Trabalhadores. Benzeno não é
flor que se cheire. 2016. Dispo- que essa construção nacional foi fruto da coesão do um ganho para a ST em uma perspectiva sistêmica de
nível em: https://www.fup.org.br/
ultimas-noticias/item/23353-ben- movimento sindical em forte aliança com os setores atuação, que trouxe benefício também para a garantia
zeno-nao-e-flor-que-se-cheire.
Acesso em: 17 dez. 2020.
públicos do Estado, criando uma melhor simetria dos direitos a saúde de modo geral.
Foto: morgueFile.com
205

Saúde do Trabalhador e ambiente: entre


caminhos e descaminhos
Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro
Fátima Sueli Neto Ribeiro

Palavras iniciais Social Latino-Americana (MSLA), e no Brasil com o


Este ensaio pretende discutir alguns aponta- movimento da saúde coletiva.
mentos, reflexões e contribuições sobre os ‘dilemas/ Nesse contexto, emergem as principais catego-
cismas envolvendo os campos trabalho e ambiente’ rias para analisar a determinação social do processo
no âmbito da SC, tema deste eixo. Este texto tem um saúde-doença e a centralidade do trabalho, cons-
caráter mais opinativo e despretensioso diante de tructos importantes na trajetória do campo da ST
uma temática tão complexa, volátil, polêmica e que no Brasil. Asa Cristina Laurell no México desenvolve
certamente merece um adequado aprofundamento e uma perspectiva mais focada no processo produtivo,
rigor científico. É importante frisar também que este enquanto Jaime Breilh no Equador desenvolve uma
ensaio é marcado e enviesado pelo olhar dos autores perspectiva de processo de trabalho mais integrado
a partir do campo da ST. ao processo de reprodução social. Essas diferenças
A produção técnico-científica, os saberes e as resultam em modelos de explicação e, consequente-
práticas sobre as relações saúde, trabalho e ambiente mente, possibilidades de organizar ações de atenção
tornaram-se crescentes e robustas ao longo do tempo integral à ST distintas.
no mundo e no Brasil. Na tentativa de aproximação O rico debate na produção teórica da academia e
com os objetivos deste ensaio, buscou-se intencional- a operacionalização em práticas dos serviços de saúde
mente inspirar e dialogar com autores de referência do SUS foram fortalecidos com a crescente partici-
que tratam de questões históricas, conceituais, me- pação dos trabalhadores organizados em sindicatos,
todológicas, políticas, organizacionais da construção inaugurando um relacionamento mais democrático
dos campos da ST e da Saúde e Ambiente (SA) no entre Estado-Sociedade.
Brasil e que podem trazer luzes para a compreensão A ST começava a ser exercida nos serviços de
dos (des)caminhos entre esses campos. saúde nos anos de 1970 e ganhava espaço na SC nos
anos 1980. A ST passava a fazer parte da pesquisa e
Saúde do Trabalhador e Saúde & Ambiente: divulgação do Cebes e da Abrasco, em que foi cons-
origens das políticas tituído um Grupo Temático (GT) de ST. O Centro de
Em uma concepção de linha do tempo, a for- Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana
mação da SC brasileira se alicerçou inicialmente em (Cesteh) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
três grandes disciplinas (Epidemiologia, Políticas de Arouca (Ensp), da Fundação Oswaldo Cruz, foi inaugu-
Saúde e Planejamento e Ciências Sociais) e em alguns rado em 1985, e as Conferências Nacionais de Saúde
chamados campos ou áreas de atuação. A ST foi um do Trabalhador ocorreram em 1986, 1994, 2005 e
desses primeiros campos a serem estruturados. 2015. Naquele momento, as questões SA ocupavam
Porto1 aponta para as diferentes perspectivas um espaço mais periférico no interior da ST.
1. PORTO, M. F. S. Crise das
explicativas para a configuração do campo da ST. Nos serviços de saúde, a ST se estruturou em utopias e as quatro justiças:
ecologias, epistemologias e
Enquanto alguns autores assumem que a ST emerge Programas e a partir de 2002 em centros de referência emancipação social para rein-
como uma tentativa de ruptura e avanços da medi- financiados e com uma Política Nacional em 2005. ventar a saúde coletiva. Ciênc.
Saúde Colet., v. 24, n. 12, p.
cina do trabalho e da saúde ocupacional, a partir do Entretanto, na instância ministerial, flutuava entre as 4449-4458, 2019.

movimento nos países industrializados entre 1950 e áreas de planejamento, atenção/assistência à saúde e
1970. Em particular na Itália, cujas reforma sanitária a vigilância.
e atuação sindical conformaram o Modelo Operário Por volta dos anos 1970, no bojo da SC latino-
Italiano (MOI) em saúde e que inspiraram fortemente -americana e brasileira, com a crise ambiental e par-
2. FREITAS, C. M. A produção
o Brasil. Outros autores localizam essa emersão no ticularmente na década de 1990, ganhava amplitude científica sobre o ambiente na
contexto da redemocratização na América Latina, nas o campo da SA, com elementos também distintos da saúde coletiva. Cad. Saúde
Pública, v. 21, n. 3, p. 679-701,
décadas de 1970 e 1980, com a emergente Medicina tradicional saúde ambiental2. 2005.
206

Os tensionamentos e as divergências teórico- por vários anos, não havendo consenso, e, sim, uma
-práticas nas academias e nos serviços de saúde da ruptura. Entendemos que esse foi o motivo principal
ST culminaram na criação de um GT específico em de implicou uma citada cisão no interior da ST e na
3. TAMBELLINI, A. T., et al. A SA na Abrasco em 20023. No setor saúde, a dimensão constituição da SA, inclusive na Abrasco. Objetos e
temática saúde e ambiente no
processo de desenvolvimento do ambiente era compreendida como externa ao hu- entendimentos distintos que colocaram a ST e a SA
do campo da saúde coletiva:
aspectos históricos, conceituais mano e traduzida em ‘ambiente físico’, ‘ecossistema’ em caminhos paralelos, ora mais próximos, ora mais
e metodológicos. Ciênc. Saúde
Colet., v. 3, n. 2, p. 47-59, 1998.
ou ‘espaço geográfico’. O movimento ambientalista distantes, mas em trajetórias particulares e/ou mesmo
nos anos 1960 e 1970 contribuiu para a ampliação até conflitivas.
da concepção dos problemas ambientais, assim como Essa distância/proximidade das áreas se fazia
recuperando a dimensão política e social relacionadas notar em diversos setores e se expressava no âmbito
com esse tema. do SUS, nas suas várias esferas organizativas de atua-
No Ministério da Saúde (MS), amplia-se a com- ção. Na instância federal, na Secretaria de Vigilância
preensão de que as ações de promoção da saúde deve- em Saúde/MS, os espaços distintos da ST e da SA se
riam ser implementadas levando-se em consideração o reproduziam em diretorias, divisões, departamentos,
ambiente no qual as pessoas residiam e trabalhavam. ações, programas, eventos, documentos e publicações.
Na modalidade de Conferências Nacionais de Saúde, Além dos focos distintos (trabalho e ambiente), os
em 2003, 2005, 2008 e 2013, ocorreram as Conferên- objetos privilegiados para estudo/intervenção/políticas
cias de Meio Ambiente ligadas ao Ministério de Meio eram diferentes: danos aos trabalhadores e danos ao
Ambiente. No âmbito do MS, foi realizada apenas a I ambiente. Tanto para a ST como para a SA, a ênfase
Conferência e Ambiente em 2010. no processo saúde-doença se voltava mais para os
Em uma vertente mais preocupada com os as- agravos/danos do que para a saúde propriamente dita.
pectos sociais, o conceito de justiça ambiental sob Outra questão para reflexão é sobre quais seriam
4. PORTO, M. F. S. Saúde do o olhar de Porto4 buscou explicitar a relação entre os atores sociais prioritários para a ST e para a SA. Aqui
trabalhador e o desafio ambien-
tal: contribuições do enfoque diferenças socioeconômicas e degradação ambiental também havia diferenças postas. Para a ST, os seus
ecossocial, da ecologia política
e do movimento pela justiça e assegurar o acesso justo e equitativo aos recursos sujeitos principais eram os trabalhadores por meio
ambiental. Ciênc. Saúde Colet.,
v. 10, n. 4, p. 829-839, 2005.
ambientais do País. Esse retrospecto é importante para de seus sindicatos, centrais sindicais, associações e
identificarmos a emersão dos campos da ST e da SA movimentos sociais mais engajados nas questões da
e como eles vêm se estruturando e se articulando. saúde no trabalho. Para a SA, os sujeitos principais
eram as ONG, lideranças e outros movimentos socio-
Caminhos e descaminhos ambientais. As questões intersetoriais também tinham
Embora partilhassem de um mesmo marco teórico certas particularidades. Para a ST, os setores a serem
geral (a SC latino-americana), como foi ficando claro ao mais envolvidos eram o trabalho e a previdência social,
longo dos anos, a ST e a SA tinham objetos, sujeitos, enquanto para as SA, era o meio-ambiente.
instrumentos, práticas, parceiros institucionais e sociais Todavia, parece haver uma grande e essencial
estratégicos diferentes. As prioridades, por consequente, convergência quanto aos geradores e/ou responsáveis
não eram as mesmas. Tentar compreender e contextu- maiores pelos danos aos trabalhadores e ao ambiente:
alizar essas especificidades e trajetórias históricas pode empresas e/ou empregadores sob o mesmo modelo
ajudar na (re)articulação entre a ST e SA. Afinal, que de produção destrutivo. Duas faces de uma mesma
especificidades seriam essas que poderiam implicar moeda. Em última instância, o modelo de desenvol-
caminhos e descaminhos na relação ST/SA? vimento capitalista.
O conceito abrangente da determinação social
do processo saúde-doença, os princípios da (inter) É necessário e possível um outro caminhar?
transdisciplinaridade, da (intra)intersetorialidade e da A despeito dessas diferenças estruturais, ao lon-
participação social foram fundantes tanto na ST como go dos últimos 20 anos, ocorreram vários esforços
na SA. Contudo, o trabalho e o ambiente ocupavam no sentido de uma maior integralidade e integração
espaços diferentes. A ST possui como seu foco central entre a ST e SA. Nessa direção, inúmeros congressos,
o processo e os ambientes de trabalho, e não a questão seminários, conferências, cursos e pesquisas foram
ambiental no seu sentido mais ampliado. O coração e estão sendo realizados – e, diga-se de passagem,
da ST é a compreensão do trabalho como categoria com êxito. A título de exemplificação, destaca-se a
explicativa hegemônica do processo saúde-doença. A publicação do livro ‘Dossiê Abrasco: um alerta sobre
questão ambiental representaria na ST um desvio da os impactos dos agrotóxicos na saúde’, organizado
centralidade do trabalho? Essa discussão se arrastou pelo GT-SA/Abrasco em 2015.
207

zatório não é uma questão de se iniciar necessaria-


mente pelo trabalhador explorado ou pela natureza
devastada. Não há uma rígida hierarquia, ambos são
sujeitos, meios, produtos, insumos descartáveis do
mesmo cenário.
Uma ação bem articulada intersetorialmente, não
fragmentada, com maior empoderamento institucional
e social teria um poder de intervenção mais robusto.
A atual pandemia da Covid-19, em meio a uma grave
crise econômica, política, social e sanitária, agravou um
prévio e estrutural cenário nacional e internacional.
5. PORTO, M. F. Saúde do
As crises no mundo do trabalho e do ambiente Trabalhador e Modelo de
Desenvolvimento: aprofundando
são profundas e sem precedentes. Ricardo Antunes já as origens e as contradições dos
entraves. RBSO, v. 38, n. 128,
traçava uma nova morfologia do trabalho, com suas p. 179-198, 2013. Disponível

Existem algumas questões específicas que podem novas formas de composição e de adoecimentos, em: https://siabi.trt4.jus.br/
biblioteca/direito/doutrina/artigos/
ou poderiam ser facilitadoras nessa aproximação ST- precarizações, terceirizações, desregulamentações Revista%20Brasileira%20de%20
Saude%20Ocupacional/2013/
-SA: os temas dos agrotóxicos e da mineração. Estes e assédios. Revista%20Brasileira%20
de%20Sa%C3%BAde%20Ocu-
ganharam grande centralidade e impacto tanto para Autores com Boaventura Santos e Pepe Mujica pacional,%20S%C3%A3o%20

a ST quanto para a SA. Os recentes crimes decorren- nos conclamam a “descolonizarmos”, “acordarmos” Paulo,%2038%20(129)%20179-
198,%202013.pdf. Acesso em:
tes dos rompimentos das barragens de rejeitos de e “construirmos um novo modelo civilizatório”. Mi- 19 dez. 2020.

minérios de Fundão (Mariana, 2015) e da Mina do chael Löwy6 aponta para o ecossocialismo como uma 6. LÖWY, M. Crise ecológica,
crise capitalista, crise de civiliza-
Córrego do Feijão (Brumadinho, 2019) ilustram bem estratégia de convergência das lutas sociais e ambien- ção: a alternativa ecossocialista.
Caderno CRH, v. 26, n. 67, p.
como um evento ocorrido no ambiente de trabalho tais, das lutas de classe e das lutas ecológicas contra 79-86, 2013.

pode impactar fortemente o ambiente. Ao mesmo o inimigo comum que seriam as políticas neoliberais.
tempo, um ergocídio e um ecocídio. Trata-se de um No entanto, essa convergência apontada por
grande ergoecocídio causado por uma mesma empre- Löwy6 não se dá espontaneamente. Ela precisa ser
sa mineradora. Trabalhadores diretos das empresas organizada pelos trabalhadores, pelos ambientalistas,
envolvidas, outros trabalhadores e populações do por suas organizações, pela sociedade de modo geral,
entorno e dos territórios atingidos, comunidades por meio de estratégias que integrem as lutas sociais
particulares, como as indígenas e as quilombolas, e e as lutas ecológicas. Assim, voltamos à necessidade,
todo um ecossistema fortemente impactado ao longo à possibilidade e à ousadia de se construir um outro
das bacias hidrográficas agredidas. Os elos entre a ST paradigma civilizatório. Esse novo modelo pressupõe
e SA na abordagem dessas tragédias são descarada- reconhecer novos/tradicionais valores humanos e
mente evidentes. novas estratégias para promover a saúde e a vida
Porto5 destaca que o modelo de desenvolvimento no planeta.
capitalista trabalha para essa não integralidade e não Oxalá que os sujeitos da ST e da SA se abram ao
intersetorialidade. Acrescenta uma importante reflexão diálogo e à construção conjunta de novos modelos de
trabalho, de produção e de saúde, em uma ecologia Ponte ferroviária em
provocativa da necessidade de Córrego do Feijão,
ecoespiritual calcada no bem viver e no ideário de uma destruída após desastre
[...] desconstruir a noção do proletariado como sujeito sociedade diferente, justa e equânime pós-pandemia. em 2019.
histórico central dos processos de transformação social Foto: Guilherme Venaglia/Wikimedia Commons

e que os processos emancipatórios deveriam forçosa-


mente articular as lutas das classes trabalhadoras com
as de todos os outros grupos dominados e oprimidos
no sistema-mundo, os quais foram desprezados como
‘sujeitos não históricos’.

Não seria mais uma questão crucial para o di-


álogo ST-SA?
As respostas parecem estar no enfrentamento
conjunto de trabalhadores em grupos organizados e
ameaçados em uma perspectiva macro e microssocial.
Seja na lógica de classes sociais ou de determinantes
socioeconômicos, abordar esse atual modelo civili-
208

Banimento do amianto no Brasil: um passivo


ambiental e um problema de saúde pública
Hermano Albuquerque de Castro
Francisco Pedra

Os danos do amianto na saúde Os processos produtivos insustentáveis e a luta


O amianto é uma ameaça para os trabalhadores pelo banimento
e para toda a população. Ele é causador de doenças No Brasil, mesmo após o banimento do amianto,
pulmonares, tais como asbestose, placas pleurais, conviveremos com um dos maiores passivos ambientais,
câncer de pulmão e mesotelioma, a literatura relata no convívio com telhas e caixas d’água utilizadas larga-
vários casos de mesotelioma em trabalhadores e popu- mente em todo País. O amianto crisotila foi proibido
lações expostas. A utilização do amianto em diferentes em todo o País, em dezembro de 2017, pelo Supremo
processos produtivos e utilizados no consumo, como Tribunal Federal (STF); essa decisão entrou em vigor
telhas e caixas d’água, proliferou-se nos últimos 100 somente a partir de fevereiro de 2019. A decisão do STF
anos. Diversos estudos mostraram que a fibra pode validou as leis estaduais de São Paulo, Rio de Janeiro,
causar danos tanto aos familiares dos trabalhadores, Rio Grande do Sul e Pernambuco, e da lei municipal da
que traziam as fibras para a residência, quanto para a cidade de São Paulo, que proibiram as atividades eco-
população exposta devido ao manuseio de materiais nômicas com amianto em seus respectivos territórios.
contendo fibras de amianto A produção de amianto no Brasil reduziu-se de
As formas de exposição ao amianto são classificadas um patamar de 200 mil toneladas em 2017 para 110
em ocupacional e ambiental e parecem estar entrelaçadas mil em 2018, e 15 mil em 2019; até 2012, o consumo
ao processo de adoecimento humano, pois a própria total acumulado da fibra no Brasil (90% de variedade
classe trabalhadora e seus familiares geralmente residem crisotila) chegou a 6 milhões de toneladas, 98% delas
próximo à mina e se expõem de múltiplas formas ao empregadas na fabricação de produtos de cimento-a-
mineral. Outras formas de exposição ao amianto por mianto (telhas, caixas d’agua, divisórias). Entretanto,
mulheres, crianças e outras pessoas ocorrem por meio do seu uso no País foi amplo (produtos de fibrocimento,
manuseio de roupas e objetos de trabalhadores expostos juntas, freios de veículos, isolamento térmico, produtos
e/ou por se apresentarem como trabalhadores indiretos, têxteis) e intenso. O Brasil é um país de alto consumo
que removem veios de amianto de rochas britadas por e elevada exposição ao amianto, porém com baixo
intermédio da catação manual e ensacam os resíduos de registro de Doenças Relacionadas ao Amianto (DRA). As
amianto, tal como ocorreu na história da mineração do razões para baixa sensibilidade da rede de assistência à
município de Bom Jesus da Serra (BJS) na Bahia. saúde para essas doenças vão desde falta de diagnóstico
A exposição relacionada com o amianto/asbesto, adequado pelo médico até dificuldades de registro na
em que as pessoas são frequentemente expostas sem previdência social e no Sistema de Informações de
o saber e com o adoecimento ocorrendo tempos após Agravos de Notificação (Sinan) do MS. O longo tempo
a liberação da fibra e em local distante da fonte de de latência até que doença se manifeste dificulta que
liberação, pode ocasionar um câncer devido à expo- muitos trabalhadores e populações expostas se lembrem
sição ambiental. Esse tipo de exposição, claramente, das exposições ocupacionais e ambientais.
ameaça a vida dos consumidores do produto e a quem A exposição ao asbesto ameaça amplamente a
se expõe à fibra mineral. São perigos ambientais para população, em particular a mais pobre, pela extensa
a saúde pública, tendo os riscos se multiplicado e utilização de telhas, caixas d’água, divisórias, tecidos
expandido no espaço e no tempo, atingindo casas, como luvas, mangueiras, gaxetas, que permanecem
cidades e efeitos futuros sobre a vida. por tempo indefinido após sua instalação ou uso.
Estudos brasileiros recentes têm identificado Essas características implicam, ao longo do tempo,
maior incidência de óbitos por mesotelioma e câncer maior chance de ocorrerem fraturas e desgastes das
de pulmão em cidades e regiões com maior consumo peças, seja na manutenção, na substituição, e de
de asbesto, onde se localizavam fabricas de materiais eventos como intempéries, desabamentos, impacto
com esse mineral. de veículos e outros.
209

Vigilância em saúde e a proteção dos expostos evitar manobras que alterem a estabilidade das fibras
Em São Paulo, vem sendo executado um plano nos materiais, sendo seu encapsulamento uma medida
de vigilância avançado e abrangente, com resultados importante para evitar novas contaminações e preservar
relevantes e promissores. O Centro de Vigilância Sanitária os trabalhadores e o ambiente nos domicílios e de uso
da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, atuando coletivo público ou privado. O encapsulamento se faz pela
em conjunto com o extinto Ministério do Trabalho e aplicação de impermeabilizantes, vernizes ou outros, sobre
Emprego (MTE), o Ministério Público do Trabalho (MPT), os materiais de maneira a manter incorporadas neles as
com coordenações regionais dos Grupos de Vigilância fibras de amianto, a fixar as peças ao suporte, formando
Sanitária, articulados com os Centros de Referência em uma película de proteção, impedindo ou reduzindo a
Saúde do Trabalhador (Cerest), realizou, entre 2012 e liberação de fibras. Bem claro que esse procedimento
2015, inspeções em 6.767 estabelecimentos de vendas não é melhor nem definitivo como é a completa retirada
do produto no varejo, interditando mais de 160 mil uni- do material onde quer que esteja.
dades de produtos. Essa linha de intervenção é parte de Muito especialmente, a proteção dos profissionais
um plano abrangente e sistemático de intervenção nas responsáveis pela descontaminação deve ser alvo de cui-
fontes de contaminação, preparação de pessoal técnico, dado minucioso, devem ser protegidos com respiradores
iniciativas de esclarecimento público, entre outras. especiais, óculos, luvas e roupas de proteção – e o forne-
O mapeamento da presença do amianto no território cimento de instalações especiais para a descontaminação.
brasileiro exige um trabalho extenso e intenso e esbarra Outra linha de intervenção de máxima importância
em grandes dificuldades. Plantas industriais ainda em deve ser o aprimoramento da capacidade de os profis-
atividade, obras de construção civil, comércio de peças sionais e serviços realizarem o diagnóstico das DRA, seu
de fibrocimento funcionando ao arrepio da lei, depósitos tratamento e reabilitação, bem como a coleta e guarda das
perigosos de rejeitos industriais e de peças substituídas informações sobre o passado de exposição dos indivíduos,
em edificações, obras de construção civil, oficinas mecâ- a realização de campanhas de conscientização pública,
nicas, uma imensa quantidade de residências, escolas, assim como dos profissionais.
escritórios, minas abandonadas e afloramentos, e demais Em qualquer doença com largo tempo de latência, a
tipos de ambientes que contêm peças com asbestos. Um coleta de dados que depende da memória dos pacientes
recurso de maior importância para análise e identificação é sempre muito limitada. No entanto, são fundamentais, e
da presença do amianto/asbesto em edificações pode ser seu achado deve apoiar-se em entrevistas, questionários e
feito utilizando processamento geoespacial, como o uso outros instrumentos que cabe à rede de atenção à saúde
de imagens de alta resolução obtidas por satélites. elaborar e consolidar. Contribuem para a identificação de
A Resolução Conama nº 348/20041 considerou o expostos os dados existentes de atuação profissional em 1. BRASIL. Ministério do Meio

amianto como resíduo perigoso, incluindo o mineral na atividades potencialmente expostas, disponíveis em alguns Ambiente. Resolução Conama nº
348, de 16 de agosto de 2004.
Classe ‘D’, como resíduos perigosos oriundos do processo bancos públicos, como Relação Anual de Informações Diário Oficial da União. 17 Ago.
2004. Disponível em: http://
de construção, tais como tintas, solventes, óleos e outros Sociais (Rais), Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), www2.mma.gov.br/port/conama/
legiabre.cfm?codlegi=449.
ou aqueles contaminados ou prejudiciais à saúde oriundos MTE, Sinan-MS, ações de vigilância, pesquisas e outros. Acesso em: 12 nov. 2020.

de demolições, reformas e reparos de clínicas radiológi- É fundamental impedir qualquer retrocesso na


cas, instalações industriais e outros, bem como telhas e aplicação da decisão que baniu o uso no Brasil, bem
demais objetos e materiais que contenham amianto ou como a necessidade de organizar ou ampliar os serviços
outros produtos nocivos à saúde. Uma importante medida de atenção à saúde dos trabalhadores atuais e aos que
com relação ao passivo instalado é a recomendação de foram expostos no passado.
210

Exposição a solventes clorados e o princípio


da precaução: o caso Rhodia
Lia Giraldo da Silva Augusto

Introdução A maioria dos trabalhadores da fábrica tinha


A caracterização do dano ambiental e de agravo à formação em química, de nível técnico ou superior.
saúde dos trabalhadores expostos à solventes clorados, Esse estudo demonstrou haver aumento na frequência
fabricados pela Rhodia no polo industrial de Cubatão de micronúcleos entre os expostos aos organoclorados
(SP), foi fundamental para o estabelecimento de pro- produzidos pela Rhodia – Cubatão2,3. É um indicador
cessos judiciais em defesa da saúde e do ambiente na biológico de efeito, que, ao ser tratado no contexto de
região de abrangência daquela zona petroquímica e produção e exposição, ganhou um grande significado
siderúrgica, nas décadas de 1980-19901. na luta em defesa da saúde daqueles trabalhadores.
A situação da exposição aos solventes clorados era Trata-se de uma alteração molecular que antecipa a
múltipla e provinha principalmente da contaminação do doença grave, no caso, o câncer. Era uma evidência de
ar e do solo dentro da fábrica; e, também, do solo, do dano reconhecida pela ciência e passou a ser também
ar e da água em terrenos que receberam lixo industrial pela justiça. Esse reconhecimento significou proteger
dessa produção ao longo da estrada, entre as cidades de os trabalhadores antes do advento da doença propria-
Cubatão, São Vicente até Itanhaém, litoral de São Paulo, mente dita. A frequência de micronúcleo aumentada
onde lotes foram vendidos para a construção de residên- entre expostos tem como significado o aumento da
1. AUGUSTO, L. G. S. A cias, mediante autorização das prefeituras1. probabilidade do advento de câncer. Não significa
construção do campo da
O ambiente nessa região foi contaminado pelos ter a certeza de vir a ocorrer, mas, sim, o aumento da
saúde do trabalhador e da saúde
ambiental. In: AUGUSTO, L. G.
produtos tóxicos da produção de pentaclorofenol, chance dessa ocorrência. Nessa concepção, temos já
S. (Org.). Saúde do trabalhador
e sustentabilidade do desenvol- tetracloreto de carbono, percloroetileno e hexacloro- um elemento de precaução para atuar na proteção e
vimento humano local. Ensaios
em Pernambuco. Recife: UFPE, benzeno (HCB) (resíduo da produção – um potencial na prevenção diante do perigo de exposição a subs-
2009. p. 47-51.
cancerígeno). Os processos produtivos dessa fábrica tâncias cancerígenas.
2. AUGUSTO, L. G. S. Exposi-
contaminaram o ambiente, expondo trabalhadores e Esse caso mostra claramente a interdependência
ção Ocupacional a Organoclo-
rados em Indústria Química de
moradores a agentes altamente tóxicos2,3. entre o biológico e o social, que podemos sintetizar
Cubatão – Estado de São Paulo:
avaliação do efeito clastogênico como um processo de determinação social da saúde,
pelo teste de micronúcleos. 1995
Tese (Doutorado em Medicina)
A interdependência entre o biológico e o social no qual o contexto está marcado pelas relações tra-
– Universidade Estadual de
A exposição aos solventes clorados, entre os vá- balho, produção, ambiente e saúde.
Campinas, Campinas, 1995.

3. AUGUSTO, L. G. S., et al. Mi-


rios efeitos produzidos na saúde dos trabalhadores –, e Conceitos precaucionários aplicados
cronucleus monitoring to assess entre vários danos –, provoca alterações citogenéticas,
human occupational exposure to
organochlorides. Journal of Envi- considerado sinal de processos carcinogenéticos. É Um processo judicial movido pelo sindicato dos
ronmental Molecular Mutagen. v.
um efeito que causa a quebra de cromossomos, pe- trabalhadores químicos de Cubatão-SP possibilitou
29, n. 2, p. 46-52, 1997.
daços que são vistos como micronúcleos facilmente um ganho inovador, o de que qualquer alteração na
identificados ao microscópio óptico3. saúde, diante da suspeita de exposição aos produ-
Uma pesquisa desse efeito criptogenético, em tos dessa fábrica (sabidamente tóxicos), deveria ser
trabalhadores expostos aos organoclorados, foi rea- considerada como de responsabilidade da empresa.
lizada a pedido dos trabalhadores da fábrica Rhodia Além das doenças, as alterações na saúde detectadas
de Cubatão (SP). O ‘teste do micronúcleo’ foi então por indicadores biológicos de efeito passaram a ter
realizado com a melhor técnica disponível, em cul- reconhecimento.
turas de linfócitos de sangue, no Hemocentro da Na época, em favor da adoção de um indicador
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com precoce de efeito, o sindicato dos trabalhadores quí-
o consentimento dos trabalhadores. As alterações micos da região argumentava que, para o decurso
observadas eram fotografadas e mostradas aos tra- de uma doença do trabalho até seu diagnóstico e a
balhadores, uma forma de eles compreenderem e se confirmação do nexo, haveria um grande tempo de
apropriarem do que se tratava as imagens analisadas latência, com prejuízo para a prevenção e cuidado,
pelo pesquisador. tanto do caso como do coletivo. O diagnóstico poderia
211

acontecer já quando da aposentadoria do trabalhador do corpo humano por longo período. Dessa forma, o
ou quando tivesse mudado de empresa ou ainda argumento da empresa não se sustentou. Ela foi, sim,
em atividade diversa, dificultando a conexão com a responsabilizada por aquela contaminação e poluição
exposição pregressa. Também foi considerado que de organoclorados na região.
não estavam só envolvidos trabalhadores diretamente
contratados da Rhodia, mas havia os terceirizados, Antecedentes históricos
que deveriam ser protegidos. Em 1986, um grupo pequeno de 28 trabalhadores
Nessa luta, como veremos, os trabalhadores da Rho- da Rhodia que portavam lesões de pele demandou, ao
dia de Cubatão conquistaram um acordo muito distinto. Centro de Saúde dos Trabalhadores (Cesat) da Regional de
Os portadores de alteração na saúde, qualquer que fosse, Santos, uma avaliação dessas lesões que eram comuns aos
com possível vinculação aos organoclorados, ganharam que tinham trabalhado na antiga fábrica de Pentaclorofenol
estabilidade vitalícia. (pó-da-china) na Rhodia de Cubatão (SP).
Essa decisão do judiciário foi pela vida do convenci- O estudo desse grupo revelou que eram por-
mento de que aquelas substâncias eram potencialmente tadores de Acnecloro, uma doença relacionada com
cancerígenas, e que uma associação linear causa-efeito, o trabalho. O estabelecimento desse nexo trouxe
caso a caso, era sempre muito difícil de ser realizada pelas como resultados a estabilidade vitalícia do grupo
vítimas, e que terminariam sem a devida reparação. Nesse acometido. Além desse ganho, tirou-lhes um enorme
caso dos trabalhadores expostos aos organoclorados, a peso de discriminação social. As lesões de Acnecloro
detecção de alterações moleculares e celulares, que são se encontravam no rosto e em outras partes do corpo,
sinais precoces e antecessores de doença, foi considerado incluindo as genitálias. São lesões que produzem um
suficiente para a tomada de medidas de proteção, cuidado odor fétido, afetando profundamente a vida social dos
e reparação. trabalhadores portadores dessas lesões. Era frequente
Em adição, foi recomendado o estabelecimento de a empresa enviá-los para clínicas de estética para lim-
um seguimento vitalício dos trabalhadores, com exames peza de pele. Alguns perderam suas companheiras sob
periódicos definidos em um protocolo. Esse caso foi um suspeita de portarem doença venérea, e outros tinham
entre outros que ajudou a estabelecer o conceito do nexo distúrbios socioafetivos, segundo alguns relatos de
epidemiológico. ‘nojo de si próprios’.
A abordagem precaucionaria foi aplicada especial- A revelação e a compreensão da verdadeira
mente ao expandir o entendimento de ‘dano à saúde’ causa das lesões de pele tornaram esse grupo com-
para alterações mais precoces (pré-clínicas) antes do surgi- prometidos com a luta em defesa da saúde. Como
mento de doenças limitadoras de atividade ou quando em conquistaram a estabilidade vitalícia, com o apoio
estágio já irreversível, incapacitante ou mesmo pós-morte. indispensável do Cesat, um forte elo de confiança
Nessa época, a empresa poluidora Rhodia tentava se estabeleceu, fundamental para ampliação da luta
escapar de suas responsabilidades, alegando que havia contra a poluição, no interior e no exterior da fábrica.
no ‘mundo’ uma ampla e antiga contaminação por orga- Esse grupo foi mobilizado para documentar
noclorados, que chegavam até a região Antártica, e que os lugares dentro da fábrica, onde havia problemas
ela não podia ser acusada pela contaminação das pessoas de vazamentos e aterros clandestinos de substâncias
na região de seu entorno. perigosas. Em uma ação articulada com o Ministério
Isso exigiu a realização de estudos epidemiológicos Público de Cubatão, foi realizada uma diligência orien-
comparativos entre grupos expostos e não expostos. Duas tada pela informação desses operários. Participaram
pesquisas foram realizadas. Uma, estudou os trabalha- da inspeção a Secretaria de Estado de Relações de
dores e familiares em diversas situações de exposição. Trabalho, o Instituto Nacional de Previdência Social,
Os grupos de comparação foram de trabalhadores em o Programa de Saúde do Trabalhador da Secretaria
diferentes empresas na mesma região2. Outra, comparou de Estado da Saúde de Santos e o Sindicato dos Tra-
a concentração de hexaclorobenzeno em leite materno de balhadores Químicos. A farta documentação dessa
4. MESQUITA, S. A., et al.
mulheres residentes nas áreas contaminadas pela Rhodia diligência resultou em um primeiro dossiê, que ficou Determination of HCB in a popu-
lation exposed to organochlorine
com outras nutrizes de áreas distantes4. conhecido como ‘Dossiê Rhodia I’. industrial residues site in Sama-
Nos dois estudos, a presença de HCB no sangue Em junho de 1993, esse documento foi levado ritá region, São Vicente City, São
Paulo, Brasil. In: INTERNA-
e no leite materno, respectivamente, mostrou valores à justiça, e o juiz encarregado do caso determinou TIONAL UNION OF APPLIED
CHEMISTRY; ASSOCIATION
detectáveis significantes e validados estatisticamente. o imediato fechamento da fábrica. Uma odisseia que GROUP OF PESTICIDE RESI-
DUE ANALYSTS. Workshop on
Esse resíduo tem característica organopersistente, poden- contou com apoio, entre outros, de parlamentares, da Pesticides, São Paulo, 1996. p.
do permanecer no ambiente e nos tecidos gordurosos mídia, do Greenpeace e da Confederação Geral dos 75. (v. 1).
212

Trabalhadores da França, uma vez que fábrica permanece fechada até hoje, mas posteriormente,
a Rhodia era uma estatal francesa. por desrespeito sistemático aos TAC pela empresa, os
O fechamento dessa fábrica im- trabalhadores exigiram uma reintegração, para manter a
pactou a agenda mundial de redução empresa responsabilizada pelos danos causados.
da produção de Clorofluorcarbonetos
(CFC). Como se sabe, essa substân-
Os desdobramentos da luta dos trabalhadores
cia, utilizada para produção de sprays, O processo de fechamento da fábrica exigiu
gás para refrigeradores e ares-condi- uma independente associação dos trabalhadores da
cionados, é considerada uma das res- Rhodia, em uma ONG, congregando a Associação de
ponsáveis pela destruição da camada Combate aos Poluentes e a Associação de Consciência
de ozônio na atmosfera. O CFC era à Prevenção Ocupacional5 (ACPO).
produzido a partir do Tetracloreto de Como a Rhodia tinha diversas subsidiárias no Bra-
Carbono. A Rhodia de Cubatão era uma sil, logo essa associação se tornou nacional. A ACPO se
das principais fornecedoras mundiais. mantém em permanente atuação política em defesa dos
Pode-se afirmar que, com essa ação trabalhadores expostos a organoclorados, fazendo parte
local, foi possível impactar positivamente a ação global de da Rede de Justiça Ambiental. Teve destaque no apoio a
proteção da camada de ozônio, fundamental à filtração luta de outra categoria, contra a empresa Shell – Basf
de componentes nocivos de raios solares. na região de Campinas (SP), em que mais uma vez os
Na Ação Civil que interditou a fábrica, com o apoio trabalhadores, depois de muitos anos de judicialização,
dos trabalhadores, foi celebrada um Termo de Ajusta- foram vitoriosos em sua causa de reparação.
mento de Conduta (TAC 249/93, reeditado várias vezes)
pelo Ministério Público Estadual em Cubatão, que, nos
Lições aprendidas
5. ASSOCIAÇÃO DE COM-
BATE AOS POLUENTES;
seus termos, previa garantias aos trabalhadores, como A evocação do princípio da precaução, o pen-
ASSOCIAÇÃO DE CONS- explicado acima, especialmente a estabilidade vitalícia samento crítico, a intersetorialidade, a interdisci-
CIÊNCIA À PREVENÇÃO
OCUPACIONAL. Rhodia para todos os trabalhadores da Rhodia de Cubatão (SP). plinaridade, a participação social e a coragem dos
Cubatão, Quarenta e Sete
Anos Poluindo e Envenenan- A empresa, o Ministério Público Estadual e o Sindicato trabalhadores permitiram problematizar o processo
do Ecossistemas e Pessoas.
Disponível em: http://www.
dos Químicos assinaram um acordo judicial dividido de causalidade e possibilitaram efetivas ações de pro-
acpo.org.br/tac/resumo_his- em três partes: I – Obrigações de caráter ambiental; II – teção à saúde dos trabalhadores com processos de
torico_rhodia.pdf. Acesso em:
29 jun. 2020. Preceitos relativos à saúde; e III – Disposições gerais5. A reparação vitoriosos.

Perfil da indústria brasileira do alumínio e


implicações para a saúde e o ambiente
Sandra Hacon
Lucas de Oliveira Couto

O Brasil é o décimo quarto produtor de alumínio em Barcarena (PA) e 440 toneladas na unidade da
primário no mundo, ficando atrás de China, Rússia, Companhia Brasileira de Alumínio em Alumínio
Canadá, Emirados Árabes, Índia, Austrália, Norue- (SP). Já a produção executada por essas unidades
ga, Bahrein, Arábia Saudita, EUA, Islândia, Malásia e foi de 307,5 toneladas em Barcarena (PA) e 351,5
África do Sul. É o quarto produtor de bauxita, atrás toneladas em Alumínio (SP), totalizando 659 to-
de Austrália, China e Guiné, e o terceiro produtor de neladas produzidas em 2018.
1. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA alumina, atrás de China e Austrália1. O faturamento da indústria do alumínio foi de
DO ALUMÍNIO. Disponível em:
https://abal.org.br/. Acesso em: Segundo dados da Associação Brasileira do R$ 61,5 bilhões em 2018, com uma participação de
18 dez 2020.
Alumínio (Abal), a capacidade instalada de pro- 0,9% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e de
dução primária no País foi de 900 toneladas em 4,9 no PIB industrial; e a participação das exportações
2018, sendo 460 toneladas na unidade da Albras de alumínio nas exportações brasileiras foi de 1,7%.
213

Quadro 1. Quantidade produzida pelas indústrias do alumínio, segundo categoria.

Indústria Localização Região Quant. produzida (toneladas)


Albras – Alumínio Brasileiro S.A. Barcarena (PA) Norte 307,5
Companhia Brasileira de Alumínio Alumínio (SP) Sudeste 351,5
Alcoa Alumínio S.A. Poços de Caldas (MG) Sudeste 609,0
Juruti (PA) Norte 6.555,4

Companhia Brasileira de Alumínio Miraí (MG) Sudeste 2.074,5


Itamarati de Minas (MG) Sudeste
Poços de Caldas (MG) Sudeste

MRN – Mineração Rio do Norte S.A. Oriximiná (PA) Norte 14.456,6


Faro (PA) Norte
Terra Santa (PA) Norte

Norsk Hydro Brasil Ltda. – Mineração Paragominas (PA) Norte 6.214,4


Paragominas S.A.
Alcan Alumina Ltda. São Luís (MA) Nordeste 351,2
Alcoa Alumínio S.A. Poços de Caldas (MG) São Luís (MA) Sudeste 179,7
Nordeste 1.896,5
Companhia Brasileira de Alumínio Alumínio (SP) Sudeste 752,7
Norsk Hydro Brasil Ltda. - Alunorte S.A. Barcarena (PA) Norte 3.712,2
South32 Minerals S.A. São Luís (MA) Nordeste 1.264,3
1
Fonte: Abal, os últimos dados disponíveis são de 2018 .

Histórico dos grupos empresariais atuantes no A Vale, empresa brasileira privatizada em 1997, atua em
todas as etapas de produção da cadeia do alumínio, desde
Brasil a extração da bauxita, passando pelo refino da alumina e a
Esta parte é uma transição integral de conteúdo produção do alumínio. Após a fase de coleta de informações
publicado por Henriques e Porto2. para a confecção do presente artigo, o setor de alumínio da 2. HENRIQUES, A. B., et al. A
Vale foi negociado para a empresa norueguesa Norsk Hydro. insustentável leveza do alumínio:
impactos socioambientais da
Apesar do volume elevado de produção, tanto de bauxita Desta forma esta empresa assumiu todos os ativos corres- inserção do Brasil no mercado
quanto de alumina e alumínio primário, são poucos os pondentes à extração de bauxita e a produção de alumínio mundial de alumínio primário.
Ciênc. Saúde Colet., v. 18,
grupos que operam no Brasil. Estes são formados por no Brasil, até então geridos pela Vale. Além da participação n. 11, p. 3223-3234, 2013.
empresas e capitais nacionais e internacionais, sendo acionaria na Mineração Rio do Norte S.A. (MRN) (40%), a Disponível em: https://www.
scielo.br/ scielo.php?script=sci_
que algumas vezes se encontram associados. empresa tem participação majoritária na Alumina do Norte abstract&pid=S1413-8123201
A Mineração Rio do Norte (MRN) está localizada no do Brasil S.A. (Alunorte) (57%), localizada em Barcarena 3001100013&lng=pt& tlng=pt.
Acesso em: 17 dez. 2020.
complexo de Porto Trombetas, no município de Orixi- no estado do Pará, e na Alumínio Brasileiro S.A. (Albras),
miná no estado do Pará. A MRN, criada em 1974, é uma também situada nesta cidade (51%). O fornecimento de
associação de empresas nacionais e internacionais, cujo bauxita para a planta de Barcarena é realizado pela Vale
objetivo era o de produzir bauxita. A MRN, atualmente, em uma unidade produtiva em Paragominas, também no
é uma das maiores instalações de produção de bauxita estado do Pará. A produção de bauxita em Paragominas está
do mundo, com capacidade estimada em 18,1 milhões integrada a unidade de Barcarena por um mineroduto de
de toneladas por ano. Em 1972, a então Cia. Vale do Rio 244 quilômetros. Já na produção de alumínio primário a
Doce (CRVD) e a canadense Alcan planejaram reiniciar o Vale tem participação na Albras, subsidiária da Alunorte,
projeto criando uma joint-venture. Finalmente, em 1974 com capacidade produtiva de 455 mil toneladas de alumínio
foi assinado o acordo de acionistas criando a Mineração primário por ano.
Rio do Norte S.A., atualmente composto pelas empresas: A Albras, está instalada no município de Barcarena, no
Vale (40%), a australiana BHP Billiton Metais (14,8%), a estado do Pará. A empresa foi constituída em 1978 e
anglo-canadense Rio Tinto Alcan (12%), a Companhia instalada em 1985, fruto de uma associação da brasi-
Brasileira de Alumínio (CBA) (10%), a norte-americana leira Vale e da Nippon Amazon Aluminium Co. Ltda.
Alcoa Brasil (8,58%), a norueguesa Norsk Hydro (5%), (NAAC), um consórcio de 17 empresas japonesas com
a Alcoa World Alumina (5%) e a norte-americana Abalco participação majoritária do Japan Bank for international
(4,62%). Cooperation, organismo do governo japonês.
214

A Alunorte foi criada em 1978 a partir de um acordo Cada tonelada de bauxita beneficiada produz,
entre os governos do Brasil, na época com a participação em média, 1,5 tonelada de escória. Considerando-se
da Cia. Vale do Rio Doce, e do Japão para a produção
a produção brasileira de 2005, estimada em 21,19 mi-
conjunta de alumina. Localizada no município de Bar-
carena, no estado do Pará, a unidade iniciou a produção lhões de toneladas de bauxita, chega-se a um número
no ano de 1995 e ostenta atualmente a condição de de 31,78 milhões de toneladas de escória produzida2.
maior produtora de alumina do planeta. A alumina Além disso, no ano de 2009, segundo a Abal,
processada é dividida de acordo com a participação foram consumidos 23.880,6 Gwh no processo de pro-
acionária de cada empresa. Os principais acionistas da dução de alumínio pelas empresas nacionais e 1.998,3
Alunorte são: as nacionais Vale (57,3%) e CBA (3,62%), a
Gwh para a redução de alumina, perfazendo um total
norueguesa Norsk Hydro (34,03%), as japonesas NAAC
(2,59%), Mitsui (2,19%) e Japan Alunorte Investiments de 25.878,9 Gwh. Apesar desse setor defender que a
( JAIC) (0,54%). criação de usinas hidrelétricas privadas para produção
A Novelis deu início a suas atividades no Brasil em 2005, de energia é uma alternativa limpa, sabe-se que estas
a partir da cisão dos ativos da Alcan, herdando os em- têm produzido elevados impactos socioambientais no
preendimentos desta empresa nos ramos da extração Brasil e no mundo, como a alteração do regime hi-
de bauxita e produção de alumina e alumínio primário.
drológico dos rios, o comprometimento da qualidade
A empresa possui duas unidades produtoras no Brasil,
estabelecidas nos municípios de Aratu, na Bahia, e Ouro das águas devido ao caráter lêntico das represas que
Preto, Minas Gerais. A partir de 2007, a Novelis foi in- prejudicam a decomposição de rejeitos e efluentes,
corporada pela Hindalco Industries Limited, empresa a proliferação de vetores transmissores de doenças
do grupo indiano Aditya Birla e maior produtora de endêmicas, a até mesmo a emissão de gases do efeito
alumínio integrado e de cobre da Ásia. estufa (metano) decorrentes da decomposição da
A CBA, ligada ao Grupo Votorantim, teve sua unidade
3. DUPAS, G. O Impasse cobertura vegetal submersa3.
Ambiental e a Lógica do Capital. produção inaugurada em 1955, localizada na cidade
In: DUPAS G, (Org.). Meio am-
biente e crescimento econômico,
paulista de Alumínio em São Paulo. A planta desta em- Impactos para o ambiente
tensões estruturais. São Paulo: presa é a maior do planeta com operação totalmente
Unesp; 2008.
verticalizada, concentrando todas as etapas da produção, Além dos efeitos negativos do processo pro-
4. GUPTA, N., et al. Molecular do processamento da bauxita à produção de alumínio dutivo do alumínio, há também um efeito direto da
Basis of Aluminium Toxicity
in Plants: A Review. Am J of em um mesmo local. A empresa detém também 10% de exposição desse contaminante na natureza. O alumínio
Plant Sci. n. 4, p. 21-37, 2013. participação na MRN e uma nova unidade de extração é o terceiro elemento mais abundante encontrado
Disponível em: https://www.scirp.
de bauxita no município de Miraí em Minas Gerais.
org/html/4-2600993_41018.htm. na crosta terrestre4. Ocorre naturalmente no ar, na
Acesso em: 17 dez. 2020. O Consórcio de Alumínio do Maranhão (Alumar), inaugu-
rado em 1984, é formado pelas empresas Alcoa, Rio Tinto água e no solo, sendo que a mineração e o próprio
5. BARABASZ, W., et al.
Ecotoxicology of Aluminium. Pol Alcan e BHP Billiton. A planta, localizada no município processamento de alumínio podem elevar seu nível
J Environ Stud. v. 11, n. 3, p.
199-203, 2002. Disponível em: de São Luís no Maranhão, é uma das maiores do mundo de concentração no meio ambiente. Investigações
https://pdfs.semanticscholar.
org/6c4b/ae47be62250c92990c-
na produção de alumínio primário e alumina. recentes sobre toxicologia ambiental revelaram que
404610c8ac34ad5a71.pdf. A Alcoa está presente no Brasil há 45 anos. A empresa o alumínio pode representar uma grande ameaça
Acesso em: 17 dez. 2020. possui unidades produtivas em Poços de Caldas, Minas
para a saúde humana e o equilíbrio ecossistêmico5.
6. ROSSELAND, B. O., et Gerais, São Luís no Maranhão (Alumar) e Juruti, no
al. Environmental effects of
estado do Pará. A participação acionária de 8,5% na Os efeitos adversos mais comuns em plantas
aluminium. Environ Geochem
Health. v. 12, n. 1-2, p. 17-27, MRN permite a empresa a produzir alumina e alumínio expostas a grandes quantidades de alumínio são:
1990. Disponível em: https://
link.springer.com/content/
primário na unidade de São Luís (Alumar), sendo que inibição do crescimento radicular, modificação celular
pdf/10.1007/BF01734045.pdf. a bauxita explorada em Juruti vem atender a demanda nas folhas, folhas pequenas e verde-escuras, amarele-
Acesso em: 19 jan. 2021.
desta unidade, o que contribuiu para sua expansão; já a cimento e morte das folhas, clorose, roxos e necrose
unidade de Poços de Caldas, onde também é produzido
foliar3. O alumínio em altas concentrações também é
alumina e alumínio, é abastecida de bauxita minerada
neste mesmo município. muito tóxico para animais aquáticos, especialmente
para organismos que respiram por guelras, como
peixes, causando falha osmorregulatória. A atividade
Os biomas mais afetados
da enzima branquial, essencial para a captação de
Juntas, essas unidades produziram 31.246,1 to- íons, é inibida pela forma monomérica de alumínio
neladas de produtos (alumínio bruto, bauxita e alumi- em peixes6. Organismos vivos na água, como algas
na). Essas indústrias fazem parte de um aglomerado e lagostins, também são afetados pela toxicidade do
produtivo de alumínio e correlacionados que opera na alumínio.
região Amazônica do Brasil, um dos ecossistemas mais
importantes do planeta. Do ponto de vista ambiental, a Impactos para a saúde
produção do alumínio bruto, da bauxita e da alumina Em relação à exposição humana, os sintomas
é bastante custosa para um país, principalmente se que indicam a presença de maiores quantidades de
considerarmos essas atividades na região Amazônia.
215

alumínio no corpo humano são náusea, úlceras na Alzheimer (DA) em humanos, conforme a hipótese 7. CLAYTON, D. B. Water
pollution at Lowermoore North
boca, úlceras na pele, erupções cutâneas, vômitos, da OMS em 1997. Dermatite de contato e dermatite Cornwall: Report of the Lower-
moore incident health advisory
diarreia e dor artrítica. No entanto, esses sintomas irritante foram observadas em casos de exposição committee; Truro: Cornwall Dis-
trict Health Authority, 1989. p. 22.
tendem a ser e de curta duração segundo Clayton7. ocupacional. O alumínio mostrou efeitos adversos Disponível em: https://scholar.
Além disso, a exposição ao alumínio é provavelmente no sistema nervoso e resultou em perda de memória, google.com/scholar?q=Clayton+-
DB+Water+pollution+at+Lower-
um fator de risco para o aparecimento da Doença de problemas de equilíbrio e perda de coordenação8. moore+North+Cornwall:+Repor-
t+of+the+Lowermoore+inciden-
t+health+advisory+committe-
e+1989+Truro+Cornwall+Distric-
t+Health+Authority+22+ . Acesso
em: 17 dez. 2020.

Exposição ao mercúrio na Amazônia, 8. KREWSKI, D., et al. Human


health risk assessment for
aluminium, aluminium oxide,
and aluminium hydroxide. JJ

aspectos toxicológicos
Toxicol Environ Health B
Crit Rev. v. 10, supl. 11-269,
2007. Disponível em: https://
www.tandfonline.com/doi/
abs/10.1080/10937400701597766.
Volney de Magalhães Câmara Acesso em: 17 dez. 2020.
Angélica dos Santos Vianna
Carmen Ildes Rodrigues Fróes-Asmus

O caso do mercúrio na Amazônia é um bom nos sedimentos dos rios. Por intermédio da cadeia
exemplo da relação entre trabalho e ambiente. É biológica, contamina desde plânctons até os peixes,
uma situação em que não somente os trabalhadores notadamente aqueles carnívoros, ou seja, os que se
são expostos, mas também pessoas próximas ou até alimentam de outros peixes. Dessa forma, quanto
distantes dos locais de trabalho onde esse metal está mais no topo da cadeia alimentar estiver o ser vivo,
sendo utilizado. maior será a concentração dessa substância, fenômeno
A primeira questão que se deve levar em consi- conhecido como bioacumulação. Assim, a exposição
deração é que não existe somente um tipo mercúrio ao metilmercúrio (muito mais tóxico que o mercúrio
na Amazônia, e, sim, pelo menos dois que são muito metálico) ocorre por meio da ingestão do pescado. 1. VIANNA, A. S. Exposição
humana ao mercúrio e efeitos
diferentes: o mercúrio metálico e o metilmercúrio (isso Os ribeirinhos e os índios da Amazônia são hematológicos. 2019. Tese
(Doutorado em Saúde Coletiva)
vale para muitas outras substâncias químicas, em que a grupos populacionais particularmente expostos ao – Instituto de Estudos em Saúde
simples mudança de um radical altera completamente metilmercúrio, porque, ao contrário das demais popu- Coletiva, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2019.
a toxicologia da substância química). Todas as formas lações, alimentam-se de peixes diariamente, em quase
2. JESUS, I. M., et al. Exposure
de mercúrio são tóxicas para o meio ambiente e se- todas as refeições5,6. Apesar da carga de metilmercúrio to elemental Mercury in urban
worker and gold miners from the
res vivos, sem nenhuma função fisiológica benéfica a que estão expostos devido a essa peculiaridade Tapajós Region, Pará. Brazil.
Bull. Environ. Contam. Toxicol.
conhecida até o momento1. dietética, não se devem esquecer os benefícios do n. 67, p. 317-323, 2001.
Na atividade de garimpo, a exposição humana consumo de peixe como fonte de: proteína, selênio 3. CAMARA, V. M., et al. A
ao mercúrio ocorre no processo de formação de amál- (que produz efeitos antagônicos ao mercúrio), vita- Program for the Control of Indoor
Pollution by Metallic Mercury.
gama ouro-mercúrio, que tem por objetivo facilitar a mina D e outros micronutrientes. Environ Res, v. 83, n. 2, p.
110-116, 2000.
identificação do precioso metal, o qual é encontrado A exposição das pessoas, notadamente ao metil-
4. MALM, O. Gold mining as a
sob a forma de pó. Depois, esse amálgama é queima- mercúrio, pode ocorrer em qualquer idade, podendo source of mercury exposure in
do, ocorrendo a emissão de mercúrio metálico para iniciar já durante o período da gestação, visto que the Brazilian Amazon Environ
Res, v. 77, n. 2 77, p. 73-78,
o ar. Essa mesma situação ocorre quando o ouro é essa forma química do mercúrio atravessa a barreira 1998.

queimado novamente ao ser vendido em lojas situadas placentária6,7. Os grupos de maior risco incluem as 5. HACON, S. Risk assessment
of Mercury in Alta Floresta.
em áreas urbanas. Essa requeima é realizada para crianças, as mulheres em idade fértil e os idosos. Amazon Basin-Brazil. Water Air
and Soil Pollut, n. 97, p. 91-105,
eliminação de ‘contaminações do ouro’, que, nesse Durante a gestação, podem ocorrer efeitos em- 1997.
caso, é representada pelo mercúrio2. Também já foi briotóxicos, teratogênicos ou carcinogênicos, sobre o 6. MARQUES, R. C., et al. Fish
descrita a ocorrência de exposição intradomiciliar ao zigoto, embrião ou feto, podendo levar à ocorrência de Consumption during Pregnancy,
Mercury Transfer, and Birth
mercúrio metálico em amostras ambientais de ar, solo abortamentos espontâneos, mortes pré-natais, baixo Weight along the Madeira River
Basin in Amazonia. Int. J. Envi-
e poeiras, além de amostras biológicas de urina de peso ao nascer, partos prematuros e malformações ron. Res. Public Healt,. 2013, v.
10, n. 6, p. 2150-2163.
moradores de casas onde eram queimadas amálgamas congênitas; e, na criança, alterações do desenvol-
7. FROES ASMUS, C. I. R.,
nos fogões das cozinhas3,4. vimento infantil (em particular, comprometimento et al. A Systematic Review of
O metilmercúrio surge por meio da biotransfor- do neurodesenvolvimento) e neoplasias infantis. O Children’s Environmental Health
in Brazil. Ann Glob health, v. 82,
mação da forma metálica do mercúrio principalmente conceito de janelas de vulnerabilidade refere-se a pe- p. 132-148, 2016.
216

ríodos críticos, ou mais sensíveis, do desenvolvimento mercúrio metálico. No caso do metilmercúrio, são
do feto intraútero aos efeitos tóxicos dos poluentes utilizadas as amostras de cabelo. O sangue não é uma
químicos ambientais8. matriz biológica habitualmente utilizada para as duas
Como já mencionado anteriormente, as crianças formas desse metal por causa do período curto (meia-
são uma população particularmente vulnerável à ex- -vida) em que pode ser encontrado nessas amostras9.
posição a substâncias químicas devido a uma série de Na toxicodinâmica do mercúrio, os grupos se-
características peculiares que possuem, incluindo: a lenohidrilas e sulfidrilas são seu alvo fisiopatológico.
imaturidade dos sistemas orgânicos e dos mecanismos Evidências científicas mais recentes mostram que a
de detoxificação; a barreira hematoencefálica ainda afinidade da ligação do mercúrio pelo selênio é maior
não está totalmente fechada; certos comportamentos que pela sulfidrila em 1 milhão de vezes. Esse metal
que favorecem terem mais contato com os agentes prejudica o controle da homeostase redox intracelular
(‘levar tudo a boca’) e o fato de apresentarem maior com consequente aumento do estresse oxidativo,
superfície corporal, maior frequência respiratória e levando à desregulação de uma série de processos
maior ingesta de líquidos e alimentos em relação fisiológicos até finalmente apoptose1. O principal efei-
ao peso corporal quando comparadas com adultos. to do mercúrio no corpo humano ocorre no sistema
Por esses motivos, especial atenção deve ser dada a nervoso, incluindo, entre outros, danos cerebrais na
essa população quando da exposição a substâncias área occipital, lobos temporais e substância negra9,12.
químicas, entre elas, o mercúrio1,9. O mercúrio metálico inalado pode causar uma in-
toxicação aguda sob a forma de pneumonite química que
Um estudo sobre efeitos em crianças pode levar à insuficiência respiratória e à morte. Todavia,
Estudo realizado pelo Instituto Evandro Chagas os clássicos efeitos estão relacionados com exposição
do Pará em 1.510 mães e seus 1.510 recém-nascidos crônica com tremores, excitabilidade, visão de túnel,
em uma maternidade de Itaituba (PA) mostrou que depressão, perda de peso, fraqueza muscular, mudanças
existia uma correlação elevada entre as concentra- de comportamento (famoso personagem ‘chapeleiro
ções do mercúrio no sangue das mães e dos cordões maluco’ do livro ‘Alice no país das maravilhas’ de Lewis
8. LANDRIGAN, P. J., et al. umbilicais dos recém-nascidos10. Após dez anos, foi Carroll), perda de memória, delírio, entre outros. Quanto
Children’s Exquisite Vulnerability
to Environmental Exposures. In: observado que as concentrações longitudinais do mer- ao metilmercúrio, seus efeitos são também mais rela-
______. Textbook of Children’s
Environmental Health. Oxford: cúrio nas mães não sofreram alterações significativas. tivos à exposição crônica, destacando-se a dormência
Oxford University Press, 2014.p.
18-27.
Entretanto, observou-se que as crianças nasciam com das extremidades, alteração de marcha, incoordenação
9. AGENCIA PARA SUSTÂNCIAS
teores mais elevados que as mães, mostrando que, motora, desarticulação da fala, perda auditiva, perda da
TÓXICAS Y EL REGISTRO DE durante a gravidez, ocorria exposição delas a esse visão periférica, dificuldades de concentração mental
ENFERMEDADES. Resumen de
Salud Pública. Mercurio. [S. l.]: metal, via passagem deste pela barreira placentária. (comprometimento neuropsiquiátrico), hepatite, com-
ATSDR, 1999.
Com o passar dos anos, essas crianças apresentaram prometimento dermatológico, entre outros1,12.
10. SANTOS, E. O., et al. Cor-
relation between blood mercury um decréscimo desses teores, possivelmente expli-
levels in mothers and newborns in cado pelo término da exposição via placenta, assim Pontuações sobre a importância da toxicologia
Itaituba, Pará State, Brazil. Cad.
Saúde Pública, v. 23, supl. 4, p.
S622-9, 2007.
como pela amamentação. Após esse período, ocorreu e da interpretação de resultados analíticos
novamente um crescimento das concentrações de mer- Vimos aqui como foi realizada a análise de in-
11. DUTRA, M. D. S., et al. Lon-
gitudinal assessment of mercury cúrio, possivelmente relacionado com maior ingesta formações toxicológicas em uma situação específica
exposure in schoolchildren in
an urban area of the Brazilian
de pescados durante o crescimento das crianças11. do mercúrio na Amazônia, um caminho que pode ser
Amazon. Cad. Saúde Pública, v.
28, n. 8, p. 1539-1545, 2012.
A toxicocinética do mercúrio na Amazônia é impor- feito para exposição a outras substâncias químicas.
12. PACHECO-FERREIRA, H. O
tante para a definição do monitoramento desse metal. Essas informações são de elevada importância
Mercúrio na Amazônia e os efeitos Vale enfatizar que o mercúrio pode ficar depositado, e para os seguintes cenários:
sobre a saúde das populações
ribeirinhas 2001.Tese (Doutorado seu armazenamento no organismo pode causar efeitos – Avaliação das pessoas expostas, sejam trabalha-
em Desenvolvimento Sustentável
do Trópico Úmido) – Universidade
crônicos. Sua eliminação se dá através da urina (princi- doras ou não, pelos profissionais de saúde, uma vez
Federal do Pará, Belém, 2001. palmente a forma metálica), fezes, cabelos, unhas e leite que estes necessitam analisar os efeitos adversos dos
13. TEIXEIRA, C. F., et al. Saúde materno. O mercúrio metálico penetra no organismo poluentes ambientais no processo saúde e doença;
auditiva de trabalhadores expostos
a ruído e inseticidas. Rev Saúde através da via respiratória, e seu monitoramento ambiental – Orientação na elaboração de pesquisas nos
Pública, v. 37, n. 4, p. 417-423.
é realizado por meio da análise de amostras de ar, poeira, contextos produtivos e coletivos;
14. LIEBER, R. R. Trabalho
de turnos e riscos químicos: o solo, sedimento e até plantas. Para o monitoramento do – Reivindicação e luta por condições de tra-
horário de trabalho como fator
interveniente no efeito tóxico.
metilmercúrio, são utilizadas amostras de peixes. balho saudáveis.
1991. Dissertação (Mestrado em Quanto ao monitoramento biológico, as amos- Tanto informações básicas como completas do
Saúde Pública) – Universidade de
São Paulo São Paulo, 1991. tras de urina são as preferenciais para avaliação do perfil toxicológico de uma substância química de
217

interesse estão à disposição em sites comumente mente, maior tempo de exposição aos agentes; e o
acessados. No caso dos trabalhadores, essa consulta contexto de vida da pessoa, avaliando a existência de
pode oferecer subsídios para perguntas específicas comorbidades que podem causar interações tanto no Sobrevoo na região de
garimpo ilegal na Terra
para profissionais da área de saúde ambiental e processo de determinação do efeito, como interação Indígena Munduruku,
do trabalhador. entre os efeitos observados. no Pará.
Entretanto, toda vez que se for analisar um perfil

Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real/Amazon Watch


toxicológico de uma substância química, especial
atenção deve ser dada a uma série de fatores que po-
dem alterar os mecanismos fisiopatológicos, quer no
nível biológico (susceptibilidades e vulnerabilidades),
quer no âmbito coletivo (contexto). Entre eles, estão:
as múltiplas exposições a substâncias químicas, fato
que pode levar a efeitos sinérgicos ou antagônicos; a
exposição a agentes de natureza distinta, como ruído
e solventes, fato que reduz o tempo de aparecimento
e a gravidade da disacusia neurosensorial13; o trabalho
em turno alternado, que pode modificar significati-
vamente os resultados das exposições a solventes14;
o contexto social relacionado com a renda, levando
à ampliação da jornada de trabalho e, consequente-

Saúde do Trabalhador e licenciamento 1. AUGUSTO, L. G. S., et al.


Compreensões integradas para a
vigilância da saúde em ambiente
de floresta: o caso da Chapada

ambiental do Araripe, Ceará, Brasil. Cad.


Saúde Pública, v. 23, supl. 4, p.
S549-S558, 2007.

José Marcos da Silva 2. PORTO, M. F. S. Uma Ecologia


Política dos Riscos: princípios para
Mariana Olívia Santana dos Santos integrarmos o local e o global na
promoção da saúde e da justiça
ambiental. Rio de Janeiro: Fiocruz,
2007.

Introdução Diversidade Biológica4, mas hoje está sofrendo um 3. LEFF, H. Sociologia y ambiente:
formación socioeconômica,
A proteção da saúde e dos ecossistemas são revés nacional e internacional, imposto pelo atual racionalidad ambiental y trans-
formaciones del conocimiento.
condições essenciais para a realização da vida. Tratar governo federal, pela falta de compromissos com a In: LEFF, H. Ciências sociales y

desses temas tem sido fundamental em tempos de agenda ambiental. formación ambiental. Barcelona:
Gedis, 1994. p. 17-84.

graves desastres ambientais que evidenciam a insus- Apesar de ter assinado essa convenção, existem 4. BRASIL. Decreto Legislativo
tentabilidade dos modelos de desenvolvimento na enormes problemas sociais e ambientais insuficien- nº 2, de 3 de fevereiro de 1994.
Aprova o texto da Convenção
maior parte do planeta1,2. temente enfrentados, e agora em abandono. Entre sobre Diversidade Biológica. Diário
do Congresso Nacional (Seção II).
Observa-se que, na relação saúde, ambiente e os resultados nefastos, está o aumento da poluição 8 Fev. 1994, p. 500-510.

trabalho, os processos de exproriação da natureza, atmosférica que afeta agudamente a saúde da popu- 5. Augusto, L. G. S. Exposição

como se esta fosse fonte ilimitada de matérias-primas lação, especialmente das crianças, causando altos Ocupacional a Organoclorados em
Indústria Química de Cubatão-Es-
para atender às demandas da reprodução social, têm índices de doenças respiratórias e mortes5. tado de São Paulo: avaliação do
efeito clastogêncio pelo Teste de
levado ao comprometimento irreversível de diversos As desigualdades sociais no Brasil, associadas Micronúcleos. 1995. Tese (Doutora-
do em Medicina) – Universidade de
ecossistemas, às alterações climáticas, à perda da ao recrudescimento do neoliberalismo, seguido por Campinas, Campinas, 1995.

biodiversidade e impactados negativos no perfil epi- um processo de industrialização tardio, acelerado e 6. BRASIL. Conselho Nacional do

demiológico de grupos humanos, com emergência dependente de tecnologias sujas; da reprimarização Meio Ambiente. Resolução 001,
de 23 de janeiro de 1986. Brasília,
e reermergência de agravos e doenças2,3. da economia, com um agronegócio avesso a proteção DF, 1986. Disponível em: http://
www.mma.gov.br. Acesso em: 06
Os ecossistemas são sistemas dinâmicos nos ambiental, concentrador de terra, com processo de ago. 2020.

quais se processa a vida no planeta, tanto para as produção em monocultura, uso intensivo de agro- 7. BRASIL. Conselho Nacional do

espécies humanas quanto para todas as outras formas tóxicos/fertilizantes químicos, de energia e água, e Meio Ambiente. Resolução 237, de
19 de dezembro de 1997. Diário

de vida. O Brasil é signatário da Convenção sobre a violento; da intensificação da mineração em áreas de Oficial da União. Poder Executivo,
Brasília, DF, n. 247, 22 Dez. 1997.
proteção ambiental e indígena, são algumas das carac- Seção 1, p.30841-30843
218

8. BHATIA, R., et al. Integrating


human health into environmental
impact assessment: an unrealized
opportunity for environmental health
and justice. Ciênc. Saúde Colet, v.
14, n. 4, p.1159-1175, 2009.

9. BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil.
1988. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constitui-
cao/constituicao.htm. Acesso em:
14 nov. 2020.
terísticas que respondem pelas enormes assimetrias A comunicação ambiental deve ser estabelecida
10. CANCIO, J. A. Inserção das
questões de saúde no estudo do de renda, raça, gênero, ocupação territorial e acesso com toda a sociedade acerca da instalação de um
impacto ambiental. 2008. Disserta-
ção (Mestrado em Planejamento e a bens essenciais1,2. empreendimento mediante a constituição de plano
Gestão Ambiental) – Universidade
Católica de Brasília, Brasília,
Em outras partes do planeta, esses processos ocor- ou programa de comunicação que precisa ser desen-
DF, 2008. reram de modos diferenciados e com reparações que volvido com a sociedade e, especialmente, com a po-
11. RIGOTTO, R. M. Inserção da levaram, em muitos deles também injustos, promovendo pulação diretamente afetada, garantindo a divulgação
saúde nos estudos de impacto
ambiental: o caso de uma termelé- exportação de riscos para os países menos desenvolvidos das informações, bem como participação e debate
trica a carvão mineral no Ceará.
Ciênc. Saúde Colet., v. 14, n. 6, p. e dependentes, como fez a Europa e os EUA. No Brasil, transparente sobre os perigos e riscos e ações que
2049-2059, 2009. especialmente na década de 1970, tempos de ditadura, serão organizadas para a redução destes.
12. SILVA, J. M., et al. A inter-re-
lação saúde, trabalho e ambiente
essas transferências foram mais sentidas2. Alguns procedimentos esperados: ampliação da
no licenciamento da refinaria do participação pública; melhor detalhamento do con-
nordeste. Tempus, v. 4, n. 4, p.
72-83, dez. 2009
Licenciamento ambiental e a saúde teúdo dos EIA; apontamento das responsabilidades
13. PORTO, M. F. S., et al. Eixos
Para as atividades poluidoras, a legislação ambiental e atribuições para todos os ente envolvidos; ques-
de desenvolvimento econômico
e geração de conflitos socioam-
atual do Brasil exige estudos qualificados para licenciar tionamento da qualidade das consultorias privadas e
bientais no Brasil: desafios para a os empreendimentos6,7. Esse licenciamento ambiental os conflitos de interesses; integração das dimensões
sustentabilidade e a justiça social.
Ciênc. Saúde Colet., v. 14, n. 6, p. é de responsabilidade dos órgãos reguladores do meio fundamentais para a qualidade de vida, como a Saúde
1983-1994, 2009.
ambiente. Raramente o setor saúde participa desses es- do Trabalhador(a); e geração de dados integrados
14. GURGEL, A. M., et al.
Framework dos cenários de risco
tudos visando a medidas protetoras e mitigadoras de para o planeamento, avaliação e controle dos entes
no contexto da implantação e uma possíveis efeitos nocivos na saúde8. O tema do trabalho públicos e abertos para a pesquisa11,12.
refinaria de petróleo em Pernambu-
co. Ciênc. Saúde Colet., v. 14, n. 6, está contemplado no sistema de saúde, conforme o art.
p. 2027-2038, dez. 2009.
200 da Constituição Federal de 19889. Saúde do Trabalhador no licenciamento
15. RIGOTTO, R. M. Desenvolvi-
mento, Ambiente e Saúde: implica- Devido à fraca ação Intersetorial, bem como ambiental
ções da (des) localização industrial.
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
a não utilização de abordagens interdisciplinares e O conhecimento dos reflexos das condições ambien-
16. RIGOTTO, R. M., et al.
participativas na operacionalização do processo de tais na saúde humana é indispensável para a definição
Da primavera silenciosa às licenciamento ambiental, esse tem inviabilizado a de políticas e estratégias intersetoriais envolvendo os
primaveras silenciadas: conflitos
socioambientais no agronegócio da efetiva integração social em sua realização. Para os campos do meio ambiente e da saúde. Isso tem motivado
fruticultura e agrotóxicos no Baixo
Jaguaribe. In: ZHOURI, A., et al. Estudos de Impacto Ambiental (EIA), o arcabouço a realização de estudos para um melhor entendimento
(Org.). Desenvolvimento e conflitos
ambientais. Belo Horizonte: UFMG,
jurídico institucional da saúde deveria ser instrumento da relação entre essas duas10,13-16.
2010. p. 146-175. importante de prevenção de nocividades10-12. Em se tratando da elaboração de EIA, a utilização
17. ORGANIZAÇÃO PAN-AME- O EIA deve envolver uma série de atividades de- de indicadores de saúde é essencial tanto no diagnóstico
RICANA DA SAÚDE. Promoção
da saúde: avanços e lições senvolvidas por uma equipe multiprofissional, buscan- ambiental quanto na análise dos impactos ao meio socioe-
aprendidas, de Ottawa a Bangkok
e perspectivas futuras. Washington, do as melhores tecnologias existentes, considerando a conômico ou antrópico. A perspectiva é que os indicadores
DC: Relatório da 138ª Sessão do
Comitê Executivo, 19-23 jun. 2006.
possibilidade da produção de processos de vulneração apontem as evidências a respeito dos impactos sobre a
Disponível em: http://www.paho.org/ socioambiental no território de abrangência direta e saúde das pessoas onde são implantados empreendi-
Portuguese/GOV/CE/ce138-16-p.
pdf. Acesso em: 15 jul. 2020. indiretamente vinculada aos empreendimentos2,6,13. mentos que oferecem riscos e produzem situaçõeses de
219

vulnerabilização socioambiental, constituindo a base da incorporando o conceito de saúde como um direito 18. BRASIL. Ministério da Saúde.
Portaria nº 1.823, de 23 de agosto
identificação de grupos humanos com maiores necessi- para a realização da vida. Por isso, saúde significa de 2012. Institui a Política Nacional
de Saúde do Trabalhador e da
dades de saúde em consequência de impactos ambientais ter condições adequadas de moradia, de trabalhar Trabalhadora. Diário Oficial da
União. Poder Executivo, Brasília,
introduzidos em determinado território17. sem adoecer por exposição a riscos no ambiente DF, 24 Ago. 2012. Seção I, p. 46-51.
O processo de licenciamento ambiental, em de trabalho, ter acesso a espaços saudáveis para Disponível em: http://bvsms.saude.
gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/
geral, desconsidera a ST. Suas análises se sustentam lazer e práticas de vida saudáveis, poder comprar prt1823_23_08_2012.html. Acesso
em: 30 jul. 2020.
em conceitos arcaicos mantidos pelo interesse do alimentos saudáveis e de fácil acesso, poder des-
19. BRASIL. Lei nº 8.080, de
patronato, como o da culpa do trabalhador pelo aci- frutar do ar puro, do clima adequado, ter liberdade 19 de setembro de 1990. Lei
Orgânica da Saúde. Dispõe sobre
dente de trabalho, conhecido como ato inseguro; ou para escolher sua religião, devendo ser garantida as condições para a promoção,
entendendo as doenças como devido a patogênicos por políticas públicas19. proteção e recuperação da saúde,
a organização e o funcionamento
não vinculados com os processos de determinação em A reparação social é uma preocupação que dos serviços correspondentes e
dá outras providências. Brasília,
que o trabalho e suas circunstâncias participam direta deve estar presente nos EIA para a proteção da DF. 19 Set. 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
ou como mediadores. Na Política Nacional de Saúde vida, mas que não vemos acontecer nos processos leis/l8080.htm#:~:text=LEI%20
do Trabalhador e da Trabalhadora, a compreensão de licenciamento ambiental, que seguem sendo N%C2%BA%208.080%2C%20
DE%2019%20DE%20SETEM-
do processo saúde-doença-trabalho é que deveria realizados segundo a lógica do empresariado. Res- BRO%20DE%201990.&text=Dis-
p%C3%B5e%20sobre%20as%20
orientar o licenciamento ambiental nesse conteúdo18. saltamos neste ensaio algumas das incongruências condi%C3%A7%C3%B5es%20
para,correspondentes%20e%20
A perspectiva da ST favorece uma visão in- e os limites dos EIA para efetivamente garantir a d%C3%A1%20outras%20provid%-
tegradora das questões de saúde e do ambiente, saúde e a proteção ambiental. C3%AAncias.&text=Art. Acesso em:
30 jul. 2020.

Agentes de Combate às Endemias expostos


a agrotóxicos no estado do Rio de Janeiro:
relação entre saúde, trabalho e ambiente
Luiz Claudio Meirelles
Leandro Vargas Barreto de Carvalho
Ana Cristina Simões Rosa
Maria Blandina Marques dos Santos
Liliane Reis Teixeira
Ariane Leites Larentis

Introdução onde ocorrem os atendimentos e análises de biomar-


Este texto foi escrito a partir da sistematização cadores, com a participação de pós-graduandos do
da experiência de luta dos trabalhadores de ende- Programa de Saúde Pública e Meio Ambiente (Ensp/
mias organizada no capítulo ‘Avaliação do Processo Fiocruz), em parceria com as instituições Institu-
de Trabalho de Agentes de Combate às Endemias/ to Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva
Guardas de Endemias (ACE) Expostos Cronicamente (Inca), Instituto Aggeu Magalhães (IAM/Fiocruz-PE),
a Agrotóxicos no Estado do Rio de Janeiro/RJ’, do Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/
livro organizado pela Rede de Pesquisa em Saúde Fiocruz), Universidade Federal do Estado do Rio de
do Trabalhador: construção de conhecimento entre Janeiro (Unirio), Universidade Federal do Rio Grande
trabalhadores, profissionais dos serviços e pesquisa- do Norte (UFRN), Fundação Centro Universitário
dores. Ele também representa o trabalho do projeto Estadual da Zona Oeste (Uezo) e sindicatos da cate-
integrador multicêntrico ‘Estudo do impacto à saúde goria (Sindsprev/RJ, SintsaúdeRJ e Sintrasef ), onde
de Agentes de Combate às Endemias/Guardas de En- os Agentes de Combates às Endemias (ACE) estão
demias pela exposição a agrotóxicos no Estado do Rio diretamente envolvidos na pesquisa, em um processo
de Janeiro’, desenvolvido no Cesteh/Ensp/Fiocruz, que busca avançar na construção de uma comunidade
pelos pesquisadores do Ambulatório e Laboratório, científica ampliada com os trabalhadores, estudantes
220

e pesquisadores. O projeto conta com financiamento Trabalhadores: saúde e ambiente de trabalho


da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério As atividades realizadas por esses trabalhadores
da Saúde (SVS/MS). raramente foram acompanhadas de treinamento ade-
Antecedentes quado para o manuseio dos agrotóxicos utilizados em
1. CARNEIRO, F. F., et al. (Org). seu processo de trabalho2,4; e as tentativas de obtenção
Dossiê ABRASCO: um alerta
sobre os impactos dos agrotóxi- Em 2008, o Brasil passou a maior consumidor das informações geralmente eram mal recebidas. Os/as
cos na saúde. Rio de Janeiro J:
EPSJV; São Paulo: Expressão mundial de agrotóxicos e, na última década, quadru- ACE relatam que, em anos de atividades, o foco de traba-
Popular, 2015.
plicou o uso deles no território. Esse crescimento lho no combate às endemias ficou no uso de produtos
2. EVANGELISTA, J. G., et al.
Agentes de combate às ende-
aprofundou ainda mais a exposição e os agravos à químicos, com poucas ações de intervenção em educa-
mias: construção de identidades saúde de diversas categorias de trabalhadores, que em- ção e saúde. Também a organização do trabalho estava
profissionais no controle da
dengue. TES, v. 17, n. 1,2019. pregam esses venenos em seus processos de trabalhos, baseada na lógica da disciplina militar. O assédio moral
Disponível em: https://www.
scielo.br/pdf/tes/v17n1/0102- tais como os ACE, também chamados de Guardas de e as punições sempre foram constantes e, infelizmente,
6909-tes-17-1-e0017303.pdf.
Acesso em: 18 dez. 2020.
Endemias, envolvidos em suas tarefas cotidianas com partem da cultura institucional, que vigora até os dias
3. AUGUSTO, L. G. A., et al.
ações do ‘controle’ de vetores de doenças1. de hoje. Outra questão é que, ao longo de décadas, os
Aedes aegypti control in Brazil. O controle vetorial é considerado uma emer- trabalhadores conviveram com um vínculo trabalhista
Lancet, v. 387, n. 10023, 1052-
1053, 2016. gência em saúde pública, devido à explosão do instável e precarizado com o Estado, levando a categoria
4. SOARES, A. M., et al. Mortes número de casos de dengue nos últimos anos, e a compartilhar medo, insegurança e incertezas.
de agentes de combate às
endemias e necessidade de diante dos novos desafios impostos pela circulação Essa precariedade pode ser exemplificada pelos
banimento de produtos cance-
rígenos no trabalho: denúncias
do vírus da febre de chikungunya e do zika vírus. chamados ‘pontos de apoio’, que são os locais destina-
marcam oficina no Cesteh. Essas arboviroses, principalmente a dengue, são dos aos trabalhadores para exercerem suas atividades
2018. Disponível em: http://www.
cesteh.ensp.fiocruz.br/noticias/ doenças transmitidas pelo mesmo vetor, o Aedes cotidianas. Segundo relatos dos trabalhadores4, muitos
mortes-de-agentes-de-combate-
-endemias-e-necessidade-de-ba- aeg ypti 2. Entre tantos fatores que corroboram locais são pequenos, com banheiros desativados e/
nimento-de-produtos-cancerige-
nos. Acesso em: 18 dez. 2020.
grave quadro epidêmico e de adoecimento, sabe-se ou mal higienizados, precariamente ventilados, em
que a estratégia ‘mosquitocêntrica’ (focada apenas que também se armazenam agrotóxicos e se realizam
no combate ao mosquito), empregada em nível a manipulações para preparação das soluções utiliza-
nacional, sempre se mostrou incapaz de resolver das nas bombas costais, cenário que conflita com as
o problema. A falta de informação, saneamento e a normas regulamentadoras de saúde e segurança dos
má qualidade dos serviços básicos são, de fato, os ambientes e proteção à ST.
maiores desafios a enfrentar no controle vetorial3. O primeiro alerta para a contaminação dos ACE
Historicamente, os/as ACE têm tido fundamental no Rio de Janeiro se deu a partir dos primeiros quadros
importância no desenvolvimento e implementação de intoxicação de 122 servidores, que foram atendidos
dessas ações de saúde pública no País. Porém, a cate- no Ambulatório de Saúde do Trabalhador do Cesteh/
goria também se constituiu em um grupo de trabalha- Ensp/Fiocruz, e depois encaminhados para o Hospital
dores de grande preocupação para a saúde pública, Universitário Clementino Fraga Filho/Universidade
em razão da sua elevada exposição aos agrotóxicos Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na década de 1990.
usados em seu processo de trabalho. Esse evento colaborou para que parte dos trabalhado-
No enfrentamento dos agravos, contaminações res se conscientizasse da gravidade da situação, bem
e ausência de estratégias para preservação da saúde como para o que o Cesteh e a UFRJ definissem uma
dos ACE, os trabalhadores representantes das entida- cooperação para trabalhos conjuntos com os ACE.
des sindicais Sindicato dos Trabalhadores em Saúde, Entre outros fatores de agravos a saúde, os tra-
Trabalho e Previdência Social do Estado do Rio de balhadores relatam que era comum a não realização
Janeiro (Sindsprev/RJ), Sindicato dos Trabalhadores de exames admissionais, e que existia uma gratificação
no Combate às Endemias e Saúde Preventiva no para quem trabalhava diretamente no ‘combate’ ou
Estado do Rio de Janeiro (SintsaúdeRJ) e Sindicato no ‘campo’ – e essa remuneração era usada para
dos Trabalhadores do Serviço Público Federal no punir atrasos – e outras irregularidades. Em alguns
Estado do Rio de Janeiro (Sintrasef ) colaboram com cenários, nos quais o trabalhador tinha realizado o
o projeto de pesquisa ‘Estudo do impacto à saúde exame, as perdas salariais decorrentes de um agravo à
de Agentes de Combate às Endemias/Guardas de saúde faziam com que muitos preferissem permanecer
Endemias pela exposição a agrotóxicos no Estado sem as avaliações, já que o trabalhador afastado do
do Rio de Janeiro’ desenvolvido no Cesteh/Ensp/ local de trabalho perdia a gratificação pelo ‘trabalho
Fiocruz em uma perspectiva multicêntrica com outras no campo’. Dessa forma, nenhum trabalhador queria
instituições de pesquisa. dizer que estava com algum problema de saúde.
221

O Cesteh, desde 2010, tem realizado estudos devido à sua carcinogenicidade’7. A alternativa para
com esses trabalhadores. Esse acompanhamento ini- substituição desse produto apresentada pelo MS8, a
ciou-se a partir de uma demanda do Sintrasef. Dali partir de recomendação da WHO/OMS9, foi o Cielo,
em diante, foram avaliados, de forma contínua, ACE que contém na sua formulação imidacloprido (proi-
lotados em diversos municípios do Rio de Janeiro, bido na Europa) e praletrina. Estudos demonstram 5. CESTEH. SAÚDE; TRA-
no período entre agosto/2010 e novembro/2011, que esses componentes podem causar alterações BALHO MATA MOSQUITOS.
Estudo do Impacto à Saúde
no Ambulatório de Saúde do Trabalhador (Clínica hematológicas, tumores no fígado, problemas renais, de Agentes de Combate às
Endemias – RJ. Boletim, Ano I,
de Neurotoxicologia Ocupacional e Ambiental) do alterações neurológicas e motoras6. n. 01, 2018.
Cesteh/Ensp/Fiocruz, sendo realizado diagnóstico No desenvolvimento do trabalho, os sindicatos 6. CESTEH. SAÚDE; TRA-
BALHO MATA MOSQUITOS.
de uma série de doenças neurológicas relacionadas encaminharam mais de 100 atestados de óbitos de Estudo do Impacto à Saúde
à exposição a agrotóxicos neurotóxicos. ACE, ocorridos em curto período, com uma grave de Agentes de Combate às
Endemias – RJ. Boletim, Ano III,
Em 2017, ampliou-se o estudo, buscando maior preocupação, devido à elevada quantidade de óbitos n. 03 2020.

articulação com os trabalhadores e seus sindicatos. por câncer. A avaliação dessas declarações de óbitos 7. CESTEH. SAÚDE; TRA-
BALHO MATA MOSQUITOS.
Assim, foi desenvolvido um projeto com o objetivo fornecidas pelos familiares dos trabalhadores falecidos Morte de agentes de combate às
endemias/guardas de endemias:
de avaliar os impactos à saúde de ACE pela exposi- permitiu identificar que 75% estavam em idade produ- luta pelo banimento da malationa
ção aos agrotóxicos no estado do Rio de Janeiro e tiva (40-59 anos), com média de 54 ± 10 anos, abaixo (malathion). Estudo do Impacto à
Saúde de Agentes de Combate
subsidiar políticas públicas de vigilância em saúde, da expectativa de vida dos brasileiros. As principais às Endemias – RJ. Boletim, Ano
II, n. 02, 2019.
por meio da construção de experiências formativas, causas de morte foram doenças do aparelho circulató-
8. BRASIL. Ministério da
na perspectiva da ST5. Além das discussões sobre o rio (39%, incluindo insuficiência cardíaca, hipertensão Saúde. Secretaria de Vigilância
em Saúde. Departamento de
processo de trabalho dos/as ACE, o projeto, que evolve arterial sistêmica, infarto agudo do miocárdio e doença Imunização e Doenças Transmis-
diferentes instituições de saúde pública, universidades isquêmica crônica do coração) e câncer (15%). Dados síveis. Coordenação-Geral de
Vigilância de Arboviroses. NOTA
e sindicatos, tem buscando identificar a exposição aos fornecidos pelo Núcleo Estadual do Rio de Janeiro TÉCNICA Nº 1/2020-CGARB/
DEIDT/SVS/MS com objetivo
agrotóxicos a que os trabalhadores estão submetidos, do MS (Nerj/MS) demonstram, em uma série histórica de apresentar as características
gerais relacionadas ao produto
e a construção conjunta de estratégias de atuação e desde 1942, um aumento no número de falecimentos atualmente preconizado para as
enfrentamento da situação. dessa categoria de servidores no estado do Rio de atividades de controle químico
a Ultra Baixo Volume (UBV),
Foi identificado que, ao longo das últimas déca- Janeiro. Até o ano de 2010, o número era de menos CIELO ULV, 2020.

das, os/as ACE vêm sofrendo exposição continuada a de 10 óbitos anuais; e, na década seguinte, aumentou 9. WORLD HEALTH ORGA-
NIZATION. Prequalification
diversos tipos de agrotóxicos6, alguns neurotóxicos significativamente para cerca de 400%. Além disso, Team Vector Control Decision
Document. Cielo ULV Adulticide
e/ou cancerígenos, como organoclorados (BHC e vários tipos de doenças causaram 5.024 afastamentos Space Spray. Product number:
DDT), organofosforados (temefós e malationa), car- no trabalho no período de 2014 a 20186. 020-006. 22 January 2019.
Disponível em: https://www.who.
bamatos (bendiocarbe), piretroides (deltametrina), O modo de adoecimento e morte dos ACE nas int/pq-vector-control/prequa-
lified-lists/FinaldecisionCielo.
benzoilureia (diflubenzuron). A malationa foi em- últimas décadas é resultado de um processo de tra- pdf?ua=1. Acesso em: 18 dez.
2020.
pregada no fumacê (UBV ) pelo menos até 2019 e, balho centrado no uso de produtos/venenos para
por isso, foi realizada pelo projeto uma ‘Campanha ‘controle’ de vetores de doenças, em uma prática que
pelo banimento da Malationa (Malathion) no Brasil pretende proteger a população de doenças transmi-
Foto: Antônio Basílio/Prefeitura Municipal de São José dos Campos
222

tidas por vetores, mas que é prejudicial à saúde e ao ajudem os sindicatos na produção dessas denúncias
ambiente. Existem modelos e métodos alternativos e das informações.
com enfoques ecossistêmicos para o enfrentamento
das arboviroses, que não sejam centrados no uso de Lições aprendidas
10. GURGEL, A. M., et al. venenos10; estratégias de educação em saúde para a A produção de ciência pelos trabalhadores e
Enfoques ecossistêmicos para o
enfrentamento das arboviroses: população, para que esta contribua na identificação técnicos/pesquisadores em comunidades ampliadas
construindo um modelo possível
de controle vetorial sem o uso dos focos de mosquitos, remoção mecânica, e na con- de pesquisa, de forma interdisciplinar, buscando
de venenos. Waterlat-Gobacit
Network Working Papers, n. 3,
fecção de armadilhas caseiras para redução e controle romper com uma divisão sociotécnica do trabalho
83-95, 2016. de populações dos vetores de doenças. Universidades e com a não delegação, precisa ser praticada nos
11. LARENTIS, A., et al. Crítica e centros de pesquisa sem apoio financeiro, assim estudos de avaliação da exposição, sempre ten-
à abordagem toxicológica nas
avaliações de exposições de como os próprios ACE, vêm desenvolvendo essas tando superar as experiências desenvolvidas nos
trabalhadores a substâncias
químicas a partir da perspectiva alternativas, mas o uso em larga escala depende de modelos tradicionais de saúde ocupacional em
do Modelo Operário Italiano
(MOI). In: ODDONE, I., et al.
uma política pública que se volte a medidas seguras que não se articulam os processos e os contextos
Ambiente de trabalho: a luta dos e eficazes. É urgente deixar para trás o modelo cen- na determinação da saúde11.
trabalhadores pela saúde. 2. ed.
São Paulo: Hucitec, 2020. trado no uso de produtos/venenos nocivos à saúde É sob a perspectiva da ST de que ‘saúde não
e ao ambiente, alguns proibidos ou já banidos em se delega, saúde se defende’, que está inserido este
outros países ou restritos por acordos internacionais, projeto, onde atuamos junto aos trabalhadores, por
mas que no Brasil são estimulados por diferentes entender que a reorganização social, comunitária e
setores6,11. Como denunciado por uma trabalhadora sindical são os caminhos para se enfrentar os crimes
ACE e dirigente sindical: cometidos contra eles, e garantir melhores condições
Temos mais de 20 mil trabalhadores expostos todos de vida, saúde e trabalho, especialmente no atual
os dias aos inseticidas. Isso é de total responsabili- contexto de enfrentamento da pandemia de Covid-19,
dade dos gestores, e também de responsabilidade dos onde a identificação de diferentes aspectos dessa
sindicatos de denunciar e informar nossa categoria. realidade que atinge os ACE é crucial para encontrar
Esperamos que as pesquisas realizadas nesse projeto respostas e soluções.

Saúde do Trabalhador, desastres ambientais


e pandemias: a questão do agronegócio
Wanderlei Antônio Pignati
Luís Henrique da Costa Leão

1. PIGNATI, W. A. Os riscos, As cadeias produtivas globais do mercado inter- sociais, ecológicas, econômicas e sanitárias impulsionada
agravos e vigilância em saúde
no espaço de desenvolvimento nacional neoliberal têm influência direta no fluxo de pela chamada Revolução Verde, a partir dos anos 1950, e
do agronegócio no Mato Grosso.
2007 Tese (Doutorado em Saúde
materiais, serviços, produtos e pessoas. Impactos am- ‘modernização’ da agricultura com suas renovadas alianças
Pública) – Fundação Oswaldo bientais, dominação cultural, controle de territórios e entre capital e biotecnologias1-3.
Cruz, Escola Nacional de Saúde
Pública, Rio de Janeiro, 2007. de fontes naturais (água, ar, solo, minérios), imigração
2. ALTIERI, M. Agroecologia: forçada e formas contemporâneas de escravidão criam Desastre socioambiental e sanitário
bases científicas para uma agri-
cultura sustentável. São Paulo: desequilíbrios ecológicos, privatizações econômicas, No Brasil, a tendência de apresentar o agrone-
Expressão Popular, 2012.
injustiça fiscal e processos de pauperização de popu- gócio como o melhor negócio para o País ressalta sua
3. LEÃO, L. H. C. Nas trilhas
das cadeias produtivas. Uma
lações. Duas grandes cadeias de commodities são as incorporação tecnológica, qualidade, aquecimento
política integradora em principais responsáveis: agronegócio e mineração. de negócios relacionados (serviços, equipamentos,
saúde, trabalho e ambien-
te. Curitiba: Appris, 2015. A cadeia do agronegócio, que abrange o desma- insumos agrícolas), aumento do PIB e salvação das
4. PIGNATI, W. A., et al. tamento, indústria da madeira, pecuária, agricultura, crises econômicas. De fato, o Brasil é um dos maiores
Distribuição espacial do uso
de agrotóxicos no Brasil: uma transporte e agroindústria, organiza-se em monoculturas produtores agropecuários do mundo e o segundo
ferramenta para a Vigilância
em Saúde. Ciênc. Saúde Colet.
em grandes extensões de terras, recebendo apoios, isen- exportador de commodities, mas a que custo social,
2017, v. 22, n. 10, p. 3281-3293. ções e incentivos do Estado. Interliga esferas políticas, sanitário e ambiental?4.
223

A integração saúde-trabalho-ambiente defendida agronegócio (figura 1), com os impactos na ST, agravos na
por Pignati1 expõe claramente o que está por trás do população e danos ambientais em toda a cadeia produtiva.

Figura 1. Etapas do processo produtivo do agronegócio e seus impactos na saúde do trabalhador, na população e
no ambiente

Fonte: Original do autor. Pignati WA, 2007.

Cada elo da produção agropecuária gera danos Estudo de Pignati e Machado5 indica que esses 5. PIGNATI, W. A., et al. Riscos
e agravos à saúde e à vida dos
e agravos: desmatamento, poluição, acidentes de dois elos produtivos tornam o Brasil campeão trabalhadores das indústrias
madeireiras de Mato Grosso.
trabalho, mutilações, sequelas, intoxicações, doen- mundial de mutilados e sequelados por acidente Ciênc. Saúde Colet., v. 10, n. 4,
p. 961-973, 2005.
ças crônicas e contaminações humana e ambiental de trabalho. No ano da publicação (2005), existiam
no Brasil e onde ela utilize monoculturas extensivas em Mato Grosso 1.749 indústrias madeireiras.
(Argentina, EUA, Índia e China). Nos dados de mapas de riscos de 999 delas, com
Sua ‘pujança’ se assenta em um padrão de produção 21.607 trabalhadores, 11% (4.381) estavam mu-
químico-dependente (sementes transgênicas, agrotóxicos, tilados, 25% sequelados, 21% hipertensos e 20%
fertilizantes químicos, ração animal e conservantes quí- viviam sob assédio nos alojamentos. Mato Grosso,
micos de alimentos), resultado de alianças entre o capital campeão nacional de produção de madeira, soja,
internacional, grandes corporações, oligarquias nacionais milho, algodão e gado bovino, também é campeão
e instâncias do Estado, fortalecendo o latifúndio e atuali- nacional de incidência de acidentes e mortes no
zando opressões num pacto tácito, genocida e pandêmico. trabalho. Dos acidentes, 70% são relacionados ao
Etapas e elos dessa cadeia, descritas na figura agronegócio (agropecuária, frigoríficos, usinas de
1, acontecem simultaneamente, dependendo do ter- açúcar/álcool, madeireiras e transporte/silagem), e
ritório e clima. Os dois primeiros elos andam juntos: as maiores incidências estão nas regiões de maior
‘desmata-se’ e utiliza-se ‘madeira’ nobre para as ma- produção agropecuária e madeira. Atualmente,
deireiras. O Brasil, maior produtor de madeiras do existem, no estado, 536 madeireiras. As restan-
mundo e maior desflorestador, cujos ‘restos’ quei- tes migraram para Rondônia, Amazonas, Piauí,
mados servem para pastagens de gado bovino e/ou Tocantins, Pará e Maranhão para continuar a des-
plantação (soja, milho, algodão, cana), aumentou o truição e transformação da floresta em madeira e
desmatamento em 17% nos últimos três anos. monoculturas4.
224

Na cadeia produtiva da ‘pecuária’, o elo do ambiente para atingir insetos, fungos e ervas daninhas
agronegócio pós-desmatamento mostra ao mundo a das lavouras. Assim, deixam resíduos nos cereais, fibras
perversidade desse processo para o meio ambiente. de algodão, fumo, cana, solo, ar, águas, alimentos e
Além do uso intensivo de agrotóxicos, o consumo no leite materno, em um verdadeiro ‘crime doloso’1.
de 500 litros de água para produzir 1 quilograma de Apesar do negacionismo de setores da socie-
carne bovina é insustentável. A produção de suínos dade quanto aos riscos dos agrotóxicos, os estudos
e aves confinados adensadamente consomem ração têm evidências científicas suficientes de associação
baseada em soja e milho transgênicos com resíduos entre exposições ocupacionais, ambiental e alimentar
de agrotóxicos e químicos (vitaminas e antibióticos) de ‘intoxicações agudas e crônicas’ provocadas por
derivados de gorduras, penas e carcaças ósseas dos esses venenos. Revisão recente sobre pesquisas dos
animais abatidos. últimos 20 anos encontrou 7.419 estudos de corre-
Esse processo produtivo nas lavouras, pastagens lação entre esses tóxicos e cânceres, neurotoxidade,
e granjas, químico-dependente, é um dos fatores de pneumotoxidade, embriotoxicidade e distúrbios do
contaminação de nossos alimentos e de produção desenvolvimento (físico, mental, endócrino). Além
6. SMITH, J. M. Riscos
documentados dos alimentos de ‘superbactérias’, ‘supervírus’ e ‘superfungos’, in- disso, a OMS/Agência Internacional de Pesquisa em
transgênicos sobre a saúde. São
Paulo: JB Editora, 2009. cluindo a peste suína, os Sars e o coronavírus. Esses Câncer (Iarc)9 fez uma revisão dos 10 agrotóxicos
7. MOSTAFALOU, S., et al. micro-organismos ‘modificados’ são infectantes e mais utilizados no mundo, entre eles, o herbicida
Pesticides: an update of human
exposure and toxicity. Arch
nocivos para animais, inclusive humanos, que têm Glifosato, concluindo que esse tóxico, o mais usado
Toxicol. v. 91, n. 2, p. 549-599, suas imunidades precarizadas por alimentos transgê- no mundo, é provável cancerígeno para humanos,
2017.
nicos e resíduos de agrotóxicos imunodepressores, classificado no nível 2A, em uma escala que vai de 1
8. WALLACE, R. Pandemia
e agronegócio: doenças desreguladores endócrinos e cancerígenos6-8. (certamente cancerígeno) a 4 (não cancerígeno). Os
infecciosas, capitalismo e
ciência. São Paulo: Elefante; Igrá
Nesse elo, o setor ‘frigorífico’ é emblemático: pesquisadores receberam pressões das indústrias e
Kniga, 2020. maior rotatividade no trabalho, segundo lugar do do agronegócio para rever os estudos, e a UE deu
9. GUYTON, K. Z., et al.
Carcinogenicity of tetrachlor-
País em acidentes de trabalho, um dos maiores em prazo até 2022 para bani-lo de uso, juntamente com
vinphos, parathion, malathion, assédio, Distúrbios Osteomusculares Relacionados dezenas já proibidos nos seus países.
diazinon, and glyphosate. IARC
Monographs v. 11, 2015. ao Trabalho (Dort), doenças mentais e incidência
Disponível em: www.thelancet.
de Covid-19 em 2020. Os curtumes, associados ao Contaminação das nossas águas e alimentos
com/oncology. Acesso em: 15
mar. 2015. processo, são grandes poluidores das águas, pelo Pignati et al.4 concluíram que, nas regiões de
10. RIGOTTO, R. M., et al. uso de grandes volumes de ácido sulfúrico e metais maior produção agrícola dos estados brasileiros (MT,
Trends of chronic health effects
associated to pesticide use pesados direcionados aos nossos rios. MS, GO, PR, RGS, SP, TO, CE), existe uma ‘correlação
in fruit farming regions in the
state of Ceará, Brazil. Rev Bras Na ‘agricultura’, concentram-se os maiores positiva’ entre os volumes de agrotóxicos usados nes-
Epidemiol, v. 16, n. 3, 763-773,
problemas ambientais, ocupacionais e impactos na sas lavouras com maiores incidências de intoxicações
2013.
saúde humana e animal. É o setor mais defendido agudas, mortes por intoxicação, cânceres infantoju-
11. BOMBARDI, L. M. Geografia
do uso dos agrotóxicos no pelo agronegócio, que deslegitima pesquisadores e venis, malformações, abortos e suicídios. Esses dados
Brasil e conexões com a União
Europeia. SP: Editora da FFLCH propaga-se na grande mídia como ‘salvador da pátria’. são corroborados por outros pesquisadores10,11.
da USP, 2017.
‘Agro é tudo’. Esse modelo produtivo, defendido pelo Observando os dados do Sistema de Informa-
12. BRASIL. Portaria nº 2.914,
de 12 de dezembro de 2011. governo federal, pelo Legislativo e governos estaduais ção de Vigilância da Qualidade da Água para Consu-
Dispõe sobre os procedimentos
e municipais, representa as corporações do capital. mo Humano (Sisagua) do MS, verificamos que, dos
de controle e de vigilância
da qualidade da água para Em 2018, o Brasil plantou 75,6 milhões de hec- 5.570 municípios brasileiros, 1.302 analisaram os
consumo humano e seu padrão
de potabilidade. Diário Oficial da tares de lavouras de 21 dos maiores cultivos, nos quais contaminantes químicos da água potável entre 2014
União. 12 Dez. 2011. Disponível
em: https://bvsms.saude.gov. foram pulverizados 1,2 bilhão de litros de agrotóxicos e 2017. Notou-se que 22% apresentaram resíduos de
br/bvs/saudelegis/gm/2011/
(herbicidas, inseticidas e fungicidas) e usados 7 bilhões agrotóxicos acima do permitido (LMR)12, 53% conti-
prt2914_12_12_2011.html.
Acesso em: 19 dez. 2020. de quilogramas de fertilizantes químicos. A maioria é nham amostras abaixo do LMR e 25% dos municípios
proibida na União Europeia (UE) e liberada por pressão apresentaram ausência. Que água ‘potável’ estamos
do agronegócio e submissão da Agência Nacional de bebendo? Quem contaminou com agrotóxicos? A
Vigilância Sanitária (Anvisa), Ministério da Agricultura, norma prevê análises semestrais de amostras de água
Pecuária e Abastecimento (Mapa) e Instituto Brasileiro potável de 27 tipos de agrotóxicos, 15 metais pesados,
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis 15 solventes e 7 desinfetantes domésticos e que em 1
(Ibama). Da área plantada no Brasil, 42% é de soja, 21% litro d’água potável podemos ter 500 microgramas de
de milho e 13% de cana-de-açúcar4. glifosato como LMR, enquanto a Diretiva 98/83 da UE
Os grandes agricultores pulverizam os tóxicos com prevê um LMR de 0,1 microgramas e máximo de 0,5
tratores ou aviões e contaminam ‘intencionalmente’ o microgramas agrotóxicos em 1 litro d’água potável.
225

Por que no Brasil podemos ter 27 agrotóxicos amostras de águas dos rios, chuva, ar, água potável,
em 1 um litro e grandes mortíferos LMR?11. Será que hortaliças, soja, milho, fibras de algodão, peixes, leite
somos ‘mais fortes’ e aguentamos mais venenos na materno, sangue e urina de trabalhadores e população
água potável? Ou o MS e a Anvisa estão subjugados? de vilas rurais e do entorno das cidades.
Ou porque estamos desorganizados e não exigimos Também, estudos mostram que as nascentes do
da vigilância em saúde? Rio Paraguai e do Rio Xingu nascem dentro das plan-
Corroborando, quando observamos os dados tações de soja, milho, pastagens e cana; e se detectou
de contaminação química no Programa Nacional de no Pantanal e Parque Nacional do Xingu presença de
Análise de Resíduos de Agrotóxicos em ‘Alimento’ vários agrotóxicos nas suas águas, sedimentos, peixes,
(Para) – do MS –, das 4.616 amostras de 14 alimentos, sapos, tartarugas e outros animais13. 13. NÚCLEO DE ESTUDOS
AMBIENTAIS E SAÚDE DO
coletados em 77 cidades em 2017/2018, constatou-se
que 28% têm agrotóxicos abaixo do LMR, 23% têm ‘Passando a boiada’ TRABALHADOR DA UFMT.
Estudos. 2020. Disponíveis
em: http://www.facebook.com/
agrotóxicos acima do LMR e/ou não autorizado para No Brasil, apesar dos desastres causados pelo neastufmt; http://www.instagram.
com/neast.mt; app.vc/meu_agro-
as culturas e/ou era proibido no Brasil e 49% não agronegócio, vemos ‘desregulamentações de normas ecologico.

apresentaram resíduos dos agrotóxicos pesquisados. ambientais e sanitárias’, autorizações de desmatamen-


Que alimentos estamos comendo? Quem contaminou to e implantação de agropecuárias em terras indíge-
com agrotóxicos? E, ainda, há alimentos com mais de nas. Vemos também incentivos à produção agrícola
dez tipos de agrotóxicos diferentes numa só amostra! sustentável e agricultura familiar (Programa Nacional
O MS/Anvisa analisou 270 tipos de agrotóxicos dife- de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf )
rentes, mas estão registrados no Brasil 650 Princípios escasseando, com clara opção da política agrícola
Ativos desses venenos e não estão incluídos no Para, brasileira pela manutenção e ampliação do modelo
nas análises de carnes, leites, ovos e alimentos proces- de concentração de terra.
sados. O Brasil prevê que, em 1 kg de soja, podemos A expansão da pulverização de agrotóxicos (Lei
ter até 10 mg de glifosato; e no feijão, até 8 mg de nº 13.301/2016), que permite uso de inseticidas em
Malathion. Na UE, o LMR de 0,05 e 0,02 mg, respec- áreas urbanas para o combate da dengue, e, no Con-
tivamente, é 200 e 400 vezes menor que no Brasil11. gresso Nacional, o Projeto de Lei nº 6.299/2002 –
São alimentos ou mercadorias? As indignações são as ‘pacote do veneno’ – ampliam o uso de agrotóxicos
mesmas feitas para nossa água potável. no Brasil. Também, as recentes 541 autorizações do
Avaliações integradas e participativas de saúde- Mapa (2019/2020), de uso de novos agrotóxicos no
-trabalho-ambiente realizadas por pesquisadores do Brasil, sem consultar o MS e o Ibama, desrespeitam
Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalha- a Lei nº 7.802/89 dos Agrotóxicos, cuja maioria é
dor (Neast) da Universidade Federal de Mato Grosso proibida na UE.
(UFMT) em regiões de grande produção agrícola de De igual modo, o enfraquecimento da vigilância
Mato Grosso (Rondonópolis, Sorriso, Sapezal e Ca- em saúde e ambiente emperra as políticas que tentam
narana) constataram, além da insegurança alimentar, conter o avanço da sanha predatória. Como se não
contaminações por vários agrotóxicos usados nas bastasse, temos a ‘injustiça fiscal’. A produção agro-
lavouras de soja, milho e algodão em dezenas de pecuária não paga impostos, devido à Lei Kandir (Lei
Foto: Amiss Photos/Creative Commons
226

nº 87/1996), que exonera o Imposto sobre Circulação o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o imposto de ex- (MST) e a Campanha Contra os Agrotóxicos.
portação para os produtos primários da agropecuária Também se movimentam, nesse sentido, várias
e da mineração. Note-se que, nos estados brasileiros comunidades rurais, povos indígenas e quilombolas
que dependem do agronegócio, em mais de 60% do que lutam diretamente com seus corpos, seus saberes
seu PIB são ‘pobres’ em saúde, educação pública e práticas, resistindo e buscando fortalecer práticas
e ambiente sustentável, como Mato Grosso, Goiás, agroecológicas.
Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia.
Da vigilância à saúde para a vigilância do
Trabalhadores por um mundo agroecológico desenvolvimento
As pandemias causadas pelo agronegócio precisam É urgente e necessário discutirmos a ampliação
ser enfrentadas. Para isso, será preciso mudar o modelo do movimento em defesa da vida, pois os fatores
agroexportador que se apropria, desmata e envenena de risco para as pessoas e o ambiente são impostos
bens coletivos, privatiza lucros, socializa prejuízos e pelo capital aliado aos governantes, com um modo
desmonta políticas públicas protetoras de vida. de desenvolvimento econômico que não nos serve
Nessa luta, contamos com a pluralidade de e não serve à humanidade. Que a SC exerça uma
coletivos de trabalhadores/as como protagonistas vigilância desse desenvolvimento, implementando
de transição para um mundo novo, protetores do a vigilância em saúde e ambiente e o verdadeiro
bem viver, produtores de alimentos saudáveis e desenvolvimento sustentável. Esta pode ser consi-
cuidados com a água, ou seja, os construtores derada uma das lutas sociais mais emblemáticas no
da Agroecologia como a Associação Nacional de campo econômico e da saúde no Brasil e no mundo:
Agroecologia, a Associação Brasileira de Agroeco- as articulações dos movimentos em defesa da vida
logia (ABA), a luta em defesa do SUS e da Vida, a partir da rearticulação de lutas dos movimentos
dos Grupos de Pesquisadores, a Abrasco, o Cebes, comunitários e sindicais de trabalhadores.
Foto: Mariza Gomes de Almeida/Acervo Cesteh
8
De volta ao passado:
o futuro do trabalho
Coordenação
Diego de Oliveira Souza & Bruno Chapadeiro
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.11
229

Home office no contexto pandêmico: a saúde


dos(as) trabalhadores(as) entre tempos e
espaços de vida e de trabalho
Diego de Oliveira Souza
Ana Inês Simões Cardoso de Melo

Neste texto, o objetivo é o de propor reflexões jornada de trabalho é um objetivo perseguido pelo
a respeito do trabalho em home office e suas relações empregador, mesmo quando, pelo tipo de trabalho,
com a saúde dos(as) trabalhadores(as), tomando como não se extrai mais-valia diretamente. Essa captura do
eixo central a dinâmica de ‘compressão tempo-espa- tempo de trabalho é importante também do ponto
cial’1 e, ainda em especial, como esse processo se de vista dos custos da produção, incluindo-se o da 1. MARX, K. O capital. Tomo I.
São Paulo: Nova Cultural, 1988.
expressa e toma vulto no contexto de pandemia de força de trabalho e, muitas vezes, adotando-se as
Coronavirus Disease 2019 (Covid-19). estratégias criadas, originariamente na indústria, nos
O capital, enquanto relação social, é produzido/ serviços, sendo tendência sua adoção nos mais dife-
reproduzido mediante uma relação tempo-espacial rentes processos de trabalho.
que lhe é peculiar. Conforme Marx2 demonstrou, nas A questão espacial também é decisiva para a pro- 2. HARVEY, D. Condição
pós-moderna. São Paulo: Loyola;
sociedades consubstanciadas em torno do capital, não dução/reprodução do capital, uma vez que a natureza 1992.
basta produzir valores de uso, mas valor que se valoriza. expansiva deste último implica a busca por novos
Isso significa que do processo de trabalho se gera um nichos de produção, subordinando toda e qualquer
valor maior do que o consubstanciado nos meios de atividade humana aos seus imperativos. Mesmo nos
produção e na força de trabalho empregados no início espaços nos quais não se está produzindo capital,
do processo. Como só a força de trabalho é capaz de ge- as atividades ali desenvolvidas se realizam tendo a
rar valor ao ser consumida no processo, gerar mais-valia compra e a venda de mercadorias como o seu eixo
equivale a se apropriar, permanente e crescentemente, movente. Pensemos, por exemplo, na mercantiliza-
do mais trabalho daqueles que produzem valor. ção da arte, da educação, da cultura, quando estão
Essa apropriação se dá pelo prolongamento e/ subsumidas ao capital, corroborando as condições
ou pela intensificação do tempo de trabalho. Tendo necessárias à reprodução do capital.
em vista a primeira situação (prolongamento), deve-se Nesse processo, é possível observar uma imbrica-
considerar que a jornada de trabalho está dividida na ção entre espaço e tempo que é funcional à dinâmica
parcela na qual o trabalhador produz o valor equivalente capitalista, pois, desde os primeiros estágios do modo
ao seu salário (valor de troca da força de trabalho) de produção, a captura do tempo pelo capital se dá não
e em uma parcela excedente, porquanto todo valor só no espaço específico de trabalho, mas também nos
que se produz nela é mais-valia absoluta. Na segunda espaços comuns do andar a vida. Concordamos com
situação (intensificação), o capital consegue extrair Harvey1 quando afirma que, no capitalismo contempo-
mais-valia do trabalhador sem que, necessariamente, râneo, há uma compressão tempo-espacial, sobretudo
aumente o tempo de trabalho. Essa condição se torna pela demanda do próprio capital em remediar sua crise,
possível devido à produção de mais mercadorias em o que se dá pelo aceleramento de suas mutações e pelo
tempo igual ou menor, seja pelo preenchimento dos rompimento de fronteiras para a sua circulação. Essa é
poros da jornada de trabalho/ritmo intenso, seja pelo a pedra-de-toque da acumulação flexível mais ou menos
desenvolvimento dos meios de produção2. estabelecida, mundialmente, desde fins da década de
Existem distinções nesse processo quando 1970, sobremodo com o grande capital distribuindo-
consideramos o conjunto da classe trabalhadora e -se globalmente e, para tal, também moldando novos
aqueles(as) trabalhadores(as) que geram mais-valia hábitos, valores, culturas etc. a serviço de seu frenesi.
ou que dela participam de forma diferenciada. En- Com a acumulação flexível, o capital sofisticou
tretanto, do ponto de vista das relações e condições as formas de se apropriar do tempo de vida do tra-
de trabalho sob o capitalismo, a busca da extensão balhador, transformando-o em mais trabalho. Isso
da jornada ou sua intensificação durante uma mesma porque as fronteiras entre os espaços de trabalho
230

e do andar a vida são cada vez mais imprecisas, quiçá O home office é a forma mais sistematizada dessa
inexistentes. Ou seja, cada vez mais trabalhamos fora dos violação tempo-espacial, pois é com ele que há a fusão
limites tradicionais da fábrica, da empresa, da escola, do do ambiente doméstico e/ou de vida com o de trabalho.
3. DURAND, J. P. A refundação hospital etc., em especial, devido à mediação tecnológica. Concordamos com Praun6 quando destaca que sempre
do trabalho no fluxo tensionado.
Tempo Social, n. 1, v. 15, 2003. De fato, desde a última reestruturação produtiva, foi dito para não se levar os problemas de casa para o tra-
4. FONTES, V. Capitalismo em verificamos como o tempo e o espaço de trabalho balho, mas o capital não tem nenhum pudor ou hesitação
tempos de uberização. Marx e o
Marxismo, v. 5, n. 8, 2017.
vêm sendo objeto de disputa e captura pelo capital. em levar o trabalho para nossas casas. Em uma sociedade
5. ANTUNES, R. Proletariado
Processo este que se deu com o desenvolvimento em que trabalhadores e trabalhadoras só dispõem de sua
digital, serviços e valor. In: da base microeletrônica, a partir da combinação das força de trabalho e na qual é o trabalho que gera a riqueza,
ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e
miséria do trabalho no Brasil IV. tecnologias da informação e da comunicação com as apropriada por poucos, muito poucos, o trabalho já há
São Paulo: Boitempo, 2019.
alternativas e estratégias de gestão e organização do muito detém sua centralidade e tem a primazia sobre as
6. PRAUN, L. A Espiral da
Destruição: legado neoliberal, trabalho e da produção reconfiguradas, em função demais importantes atividades da vida humana. Na atuali-
pandemia e precarização do
trabalho. Trab. Edu. e saúde. v.
da demanda e/ou organizada em fluxo tensionado3. dade, esse domínio e essa direção de nossa sociabilidade
18, n. 3, p. e00297129, 2020. Com isso e ao lado de outras estratégias de gestão tendem a avançar, cada vez mais, sobre todas as esferas
Disponível em https://doi.or-
g/10.1590/1981-7746-sol00297. do trabalho, inclusive com maior precarização das da vida social, deslocando fronteiras e alterando ritmos e
Acesso em: 20 ago. 2020.
relações e condições de trabalho, os poros (intervalos, intensidades, com repercussões sobre nossos processos
7. LAURELL, A. C., et al.
Processo de produção e saúde. por exemplo, entre uma tarefa e outra) da jornada de vitais e, nesse caso, nossa saúde física e mental.
São Paulo: Hucitec, 1989. trabalho são cada vez mais eliminados. Além disso, de fato, quando nos voltamos também
8. SELIGMANN-SILVA, E.
Trabalho e desgaste mental. São
Também os espaços de produção e de trabalho para estudos clássicos em Saúde do Trabalhador, infor-
Paulo: Cortez, 2011. são alcançados pelas estratégias que desterritoriali- mados pela epidemiologia social crítica, vemos o papel
zam a produção, assim como parcelam várias de suas que os espaços e tempos de trabalho têm sobre o corpo
atividades, na apropriação de nichos os mais distintos dos(as) trabalhadores(as), em sua exposição nos proces-
que sejam capazes, obviamente, de gerar lucros e sos e ambientes de trabalho. Atividades de trabalho em
rendas tecnológicas, com esses processos ocorrendo turnos, em jornadas de trabalho estendidas, com ausência
à escala mundial, independentemente da história, de pausas, em locais insalubres etc. já são fenômenos
condições e modo de vida dos(as) trabalhadores(as) sociais estudados há muito, sinalizando sobre as cargas
daqueles territórios ou localidades. Contudo, essa e riscos nas relações entre processos de trabalho e de
busca frenética e exponencial do capital avança, ainda, saúde-doença. Repercussões em termos do desgaste físico
nas requisições que faz aos(às) trabalhadores(as), e mental foram e são identificadas em suas relações com
cotidianamente, proporcionando a interpenetração as condições e a organização dos processos de trabalho,
entre os espaços de trabalho e de vida, como a própria por vezes, levando ao adoecimento e à mortalidade. Nos
expressão inglesa home office (trabalho em casa) já dias de hoje, vimos crescer, cada vez mais, esse desgaste
o caracteriza. É importante relembrar, no entanto, físico e mental, sendo que evidências dos processos que
quanto ao equívoco de responsabilizar as próprias aqui descrevemos estão correlacionadas ao seu desdo-
tecnologias por esse cenário, sendo que, de fato, essa bramento com aumento de vários agravos, inclusive, os
apropriação e esse consumo da força de trabalho, aos transtornos psicossomáticos e mentais, entre outros7,8.
limites da exaustão, encontram seus fundamentos nas Também agravos à saúde que atingem a popu-
relações sociais próprias à sociabilidade capitalista. lação geral; e os trabalhadores e trabalhadoras, em
A popularização da Internet, sobretudo, com particular, vêm evidenciando como os imperativos des-
computadores mais acessíveis, celulares do tipo smart sa forma de sociabilidade em que vivemos se articula
e aplicativos de rápida comunicação, fez com que as de- com as relações entre produção, ambiente e saúde.
mandas de trabalho se estendessem para qualquer espaço, Evidenciam, em um ordenamento social cada vez
resolvidas em qualquer hora. Dificilmente encontraremos mais internacionalizado, suas conexões universais e,
alguém que não tenha precisado responder a e-mails ou também, particular e singularmente, como o processo
a mensagens, fechar relatórios, realizar plantões de ma- saúde-doença se coloca de forma desigual, também
nutenção a distância, estando fora de sua jornada formal temporal e espacialmente, a depender do lugar que
de trabalho, em casa ou até em um ambiente de lazer. ocupamos na estrutura social e de nossas condições
Pensemos também na falácia do empreendedorismo, do de trabalho e de vida.
suposto trabalho sem patrão, quando você tem sucessivas Decerto, o ano de 2020, com a pandemia da
extensões da jornada, determinadas pela subsunção do Covid-19, marca uma fase histórica na qual o imbri-
indivíduo ao tempo capitalista, ainda que por trás da camento entre tempo e espaço de trabalho e de vida
máscara da autogestão do trabalho4,5. chega a um patamar sem precedentes, condições estas
231

já presentes antes da propagação do vírus – mas, dentro de casa, sobrepujando o ambiente doméstico 9. ALVES, G. Trabalho, corpo e
subjetividade: toyotismo e formas
sobretudo, que se potencializam, quando o capital re- com a pressão diuturna por produtividade. Vale lem- de precariedade no capitalismo
global. Trab. Edu. e saúde. v. 3,
funcionaliza as supostas ameaças econômicas geradas brar, consoante Souza10, que a pandemia da Covid-19 n. 2, p. 409-428, 2005. Disponí-
vel em: https://doi.org/10.1590/
pelo distanciamento social ao ampliar e popularizar tem suas bases sociais constituídas, justamente, nessa S1981-77462005000200009.
o home office, hipertrofiar o setor tecnológico e, por- dinâmica mundializada do capital (e sua disrupção Acesso em: 20 jan. 2021.

tanto, prolongar e intensificar o trabalho. espacial pelo tempo), extremamente favorável à dis- 10. SOUZA, D. O. A pandemia
de COVID-19 para além das Ci-
Com isso, certamente, também se eleva o patamar seminação do vírus. ências da Saúde: reflexões sobre
sua determinação social. Ciênc.
de desgaste, sofrimento e adoecimento dos(as) traba- Nesse sentido, a pandemia da Covid-19 confere Saúde Colet. v. 25, supl. 1, p.
2469-2477, 2020. Disponível em:
lhadores(as). Vale lembrar que Alves9 já apontava para maior intensidade aos mecanismos capitalistas que, https://doi.org/10.1590/1413-
a compressão corpo-subjetividade enquanto expressão inclusive, também fazem parte de sua trama causal. A 81232020256.1.11532020.
Acesso em: 20 ago. 2020.
da compressão tempo-espaço, uma vez que, com a ‘fle- intensificação do imbricamento entre tempo e espaço
xibilização’ do regime de acumulação, aumentam-se as e suas reverberações para a saúde dos(as) trabalha-
crises de adaptação (corolárias ao culto à polivalência), dores(as) compõem esse processo, que tende a se
a gestão pelo estresse e o sofrimento mental decorrente intensificar com o avanço de estratégias de produzir
da competitividade acirrada e promessas frustradas. mais mais-valia (seja absoluta, seja relativa).
Não à toa, o capitalismo contemporâneo vê crescer Acreditamos que a apropriação do tempo e do
os indicadores de adoecimento mental, processo este espaço de vida pelo capital contribui para ratificar
que é perene e só se intensifica. que todo e qualquer processo saúde-doença está com
A pandemia da Covid-19, então, para além dos suas raízes cravadas no antagonismo entre capital e
casos e óbitos que ocorreram e, ainda, estão ocor- trabalho. Seja no local de trabalho, seja fora dele;
rendo diretamente pela doença, deixará um legado seja na jornada formal, seja na inexistência dessa
de adoecimento, sobretudo mental. O home office se formalidade, seja no desemprego, nosso processo
mostra um habitat fértil para tal, pois traz todos os saúde-doença está em curso com a participação pri-
elementos da compressão corpo-subjetividade para mordial do trabalho.

Não sois máquina – a propósito do 28 de abril


Bruno Chapadeiro

No 28 de abril, celebra-se o ‘Dia Internacional Chapadeiro (sim, por incrível que pareça, é um sobre-
em Memória das Vítimas dos Acidentes e Doenças nome, e não um apelido como pensam os desavisados,
do Trabalho’. Por determinismo astrológico ou mero rs), costumo dizer que é inventado! Diz-se a palavra
acaso do destino, no dia de hoje, também particular- ‘Chapadeiro’ derivar de ‘trabalhador da Chapada’.
mente comemoro minha data natal. Neste 2020, 34 Pois bem, esse era o fazer de meu bisavô materno
outonos. Por mais ‘coincidências’, meu sobrenome na Chapada Diamantina; e, por assim ser conhecido
232

entre colegas e familiares, alterou seu sobrenome à siadamente humana. Com ele, por ele e por causa
época. Comumente, quando se busca significados de dele, homens e mulheres ao redor do mundo ganham
nomes/sobrenomes, há achados quase sempre nobres e perdem suas vidas materiais e subjetivas. Já dizia
e pomposos. O meu é sinônimo de ‘matuto’, ‘caipira’, o velho barbudo comedor de criancinhas: o Traba-
palavras que trazem à mente figuras como o Jeca Tatu lho satisfaz primeiro as necessidades do estômago,
de Lobato ou os meridionais de Gramsci. Ou seja, e depois as da fantasia. Consome-se nesse processo,
ambas adquirem representatividade no imaginário saúde/doença. Ou seja, o que nos hominiza é o que
dos habitantes das regiões mais economicamente também determina nossos modos de viver, andar com
avançadas, como sendo ‘a bola de chumbo que im- a vida, adoecer e morrer. Curioso, não? “Seu sonho
pede o progresso nacional’. São em tempos como é sua vida, e vida é trabalho. E sem o seu trabalho,
estes de pandemia, em que trabalhadores do campo um homem não tem honra. E sem a sua honra, se
abastecem os alimentos que passam pelos entrega- morre, se mata” cantava o saudoso Gonzaguinha. A
dores de aplicativos para que cheguem às mesas dos forma social como que o Trabalho é/está organizado
‘confinados’ urbe et orbi, que se vê a importância de e dividido tem impactos diretos em nossa saúde,
os ‘vinhos serem feitos de uvas’ e das mãos por quais determinando-a. Em sua forma capitalista em que
passam toda a cadeia desde o cultivo da fruta ao pri- se preconiza o trabalho morto, abstrato, que produz
meiro gole da etílica bebida em nossas bocas. Vertov valores de troca em antagonismo ao trabalho vivo,
e a ‘Ilha das Flores’ de Furtado bem nos auxiliam a concreto, que produz valores de uso, os adoecimentos
compreender o que digo. passam não somente pela alienação dos processos e
‘Trabalho’ parece ser algo que corre nas veias dos produtos do trabalho em nome da forma salário,
de quem vos escreve. Para além de ser também uma mas também pela perda de autorreferência de si e dos
palavra marcada na pele deste, porém na língua de outros enquanto ser genérico. Doença é alienação, e
1. LEONTIEV, A. N. O desenvol- Victor Hugo. Tal como dizia um professor meu ainda saúde é emancipação, resumiram Laurell & Noriega4.
vimento do psiquismo. Lisboa:
Livros Horizonte, 1978. na graduação: “Só estudamos/pesquisamos aquilo Desse modo, o contexto da pandemia da Co-
2. LUKÁCS, G. Ontologia do ser que nos incomoda, nos implica, o que precisamos vid-19 que vivemos atualmente agudiza e complexifica
social. São Paulo: Livraria Edito-
ra Ciências Humanas, 1979. resolver”. Sim, porém o Trabalho está na gênese de como pensamos nossa saúde individual e coletiva
3. MÉSZÁROS, I. A montanha
toda espécie humana, dotada de telencéfalo superior enquanto trabalhadores(as) que somos. Em quê, um
que devemos conquistar:
reflexões acerca do Estado. São
desenvolvido, polegares opositores e a capacidade vírus, enquanto risco biológico passível de nos ado-
Paulo: Boitempo, 2015. de ser livre (mesmo que essa seja uma palavra que ecer, tem a ver com a forma com que trabalhamos?
4. LAURELL, A. C., et al. o sonho humano alimente em que não há ninguém Lembremos que, como disse acima, trata-se de questão
Processo de produção e saúde.
São Paulo: Hucitec; 1989. que explique e ninguém que não entenda). Figura ulterior: versa mais sobre o modo com que as formas
5. Berlinguer G. A doença. São como a categoria central no desenvolvimento de nos- de trabalhar estão arraigadas no sociometabolismo do
Paulo: CEBES-Hucitec; 1988.
sas funções psicológicas superiores como apontado capital em que vivemos do que como se expressam
por Leontiev1. Ou ainda, é a mediação necessária de singularmente no cotidiano. Ou seja, o positivismo
nossas posições teleológicas segundo Lukács2. Por por detrás da questão se uma doença é ou não do
meio do acúmulo histórico-social advindo do manejo trabalho já deveria ter sido superada, pois todas guar-
da técnica, de ferramentas, mesmo as mais arcaicas, dam relação direta/indiretamente com a base material/
e da capacidade de pensamento abstrato, o ‘animal processos produtivos de uma sociedade.
tornado homem através do trabalho’ permitiu-lhe fazer Para compreendermos, vejamos como Berlin-
história, criar cultura, pensar a política, produzir arte guer5 destaca quatro aspectos d’A Doença distintos e
etc., o ‘poder de criar máquinas e o poder de criar intercambiários entre si. O primeiro é o estar doente,
felicidade’. Afinal, “a gente não quer só comida, a ou seja, realmente apresentar alterações fisiológicas
gente quer comida, diversão e arte!” já diziam os por causa da doença. No caso do novo coronavírus,
titânicos. E se a Arte, algo tão relegado a segundo pensemos naqueles(as) que, de fato, têm febre, tosse e
plano pelos burocratas, existe, é justamente porque a falta de ar, ou seja, os sintomáticos. O segundo aspecto
vida diante dos olhos não nos basta. Curiosamente, é versa sobre o sentir-se doente em que os sintomas
justamente a Arte que, em tempos de isolamento, tem são notados. Há os que possam estar contaminados
nos redimido da barbárie desses períodos. Barbárie, pela Covid-19 e nada sentirem. São os chamados
claro, se tivermos sorte como bem dito por Mészáros3. assintomáticos que, inclusive, são a maioria contami-
É então por meio do Trabalho que ganhamos nante. O terceiro denota a identificação da doença. Os
a vida, nos permite viver, nos atrela identidade, e sinais do corpo que muitas vezes ignoramos, sempre
sentidos e significados à condição humana, dema- pensando que estamos bem, aptos ao trabalho, às
233

atividades domésticas etc., o que nos leva à demora ao distanciamento social recomendado, como esse
pela procura de tratamento, geralmente apelando para sistema se valoriza e se reproduz? Quem produzirá
que alguém próximo nos indique um medicamento a riqueza? Se este mundo se apresenta como ‘uma
certeiro. Trabalhar adoecido já é a nova constante do imensa coleção de mercadorias’, faz sentido agora
novo (e precário) Mundo do Trabalho; E, por fim, o ‘comprarmos coisas que não precisamos, com dinheiro
quarto aspecto diz sobre poder estar doente. Quem que não temos, para impressionar pessoas de quem
não vive de rendas e propriedades vive, como disse- não gostamos’? Tyler Durden6 nos afirma que não. 6. CLUBE DA LUTA [Fight club].
Direção de David Fincher. Los
mos, do Trabalho, então o medo da perda do corpo E não, o capitalismo não será colapsado por um Angeles: 20th Century Fox,
1999. VHS (139 min.).
saudável, produtivo é duplamente ameaçador, pois vírus, mas tão somente, como há tempos preconizado,
7. O GRANDE DITADOR [The
pode-se perder também o sustento material. pela luta de classes. Não à toa, há um 1º de maio de Great Dictator]. Direção Charles
Eis o ‘decifra-me ou devoro-te’ que a pandemia simbolismo tão forte e atual logo ali, tão próximo Chaplin. Los Angeles: United
Artists, 1940. Película (124 min).
do novo coronavírus impôs à sociabilidade do capi- desse 28 de abril. Que pode nos recobrar aos vigo-
tal. Quem pode ‘dar-se ao luxo’ de estar doente? Se rosos dizeres do Adenoid Hynkel de Chaplin7: “Não
não há quem produza e/ou quem consuma, devido sois máquinas! Homens é que sois!”

O passado massacra o presente do mundo do


trabalho no Brasil
Ricardo Lara

Neste ensaio, abordamos aspectos sócio-histó- Na reprodução social, a restrição de investimentos


ricos da exploração da força de trabalho no Brasil e em políticas públicas que objetiva economizar para gerar
destacamos como as cicatrizes da formação social superavit primário e pagar juros e amortizações da dívida é
brasileira são dilaceradas diante da pandemia da Co- um exemplo de como o capital rentista sufoca a população
vid-19 (Coronavírus – Sars-CoV-2). brasileira. As manifestações recentes dessa situação são:
No Brasil, o passado massacra o presente. Diante a Emenda Constitucional nº 95 (EC 95), que congelou o
da pandemia da Covid-19, as contradições históricas da teto de investimentos da União, atingindo duramente os
sociedade brasileira comprovam a particularidade de investimentos em saúde, educação e assistência social; a
nossa classe trabalhadora, que sobrevive em condições contrarreforma trabalhista, que legalizou o trabalho precá-
e relações de trabalho/vida de intensa exploração, rio em todas as suas modalidades possíveis (intermitente,
adoecimento, morte, precarização, informalidade, remoto, terceirizado); a contrarreforma da previdência
submoradias, racismo e patriarcalismo. social, que impossibilitou a aposentadoria da maioria da
A formação sócio-histórica das classes sociais no classe trabalhadora em razão das próprias condições de
Brasil, principalmente a partir de 18501 e intensificadas empregabilidade do mercado de trabalho moldado pela 1. A Lei de Terras, de 1850, mar-
ca a legalização da propriedade
no século XX, ajustada pelas condições estruturais do rotatividade e flexibilização irrestrita. fundiária no Brasil, o golpe con-
imperialismo e da dependência, proporcionaram privi- No marco político e dos direitos sociais, historica- tra uma possível reforma agrária
e a inserção do trabalhador
légios às elites e misérias aos subalternos, criando uma mente, as classes trabalhadoras acessaram uma democracia escravizado. “Durante a crise do
trabalho servil, o objeto da renda
processualidade social que nos assombra até hoje. restrita no Brasil. A ‘modernidade’ aqui não contemplou capitalizada passa do escravo
para a terra, do predomínio
Na formação social brasileira, a exploração da força a plenitude da emancipação política. No que diz respeito num para o outro, da atividade
de trabalho extrai mais-valia por meio de uma apropriação ao direito ao trabalho, um fato histórico trágico na cons- produtiva do trabalhador para
o objeto do trabalho, a terra.
dual do excedente econômico, do qual parte precisa ser tituição do mercado de trabalho brasileiro assalariado Nessa mudança sutil, persiste a
dimensão propriamente rentista
canalizado ao capital estrangeiro. Esse processo impacta se deu após a abolição da escravidão (1888), momento da economia de exportação, o
que é diverso do propriamente
não apenas as condições de vida das classes trabalhadoras em que os trabalhadores negros foram substituídos por capitalista. Porém, libertando
com altos índices de adoecimentos e mortes relaciona- trabalhadores imigrantes. Esse episódio contou com do rentismo o trabalho e
transferindo o rentismo para a
das com as extensivas e intensivas jornadas de trabalho grande investimento estatal para a vinda dos imigrantes propriedade da terra” MARTINS,
J. S. O cativeiro da terra. São
(mais-valia absoluta e relativa), mas em toda dinâmica da ao País. Por outro lado, a população negra ingressou Paulo: Contexto, 2017.

produção e apropriação da riqueza na sociedade brasileira. impositivamente no exército industrial de reserva.


234

Lamentavelmente, com a herança sócio-histórica


Foto: Mariza Gomes de Almeida/Acervo Cesteh

descrita acima e diante do pior governo federal da


história, o resultado da pandemia do novo coronavírus
é catastrófico para o Brasil. Autoritarismo, negacionis-
mo, desprezo pelas orientações das organizações e
profissionais da saúde estiveram presentes nas ações
de Bolsonaro e de seus seguidores desde o início da
Covid-19 no País. As consequências econômicas e
políticas ainda estão em curso, mas uma das poucas
certezas é que a conta já chegou à classe trabalha-
dora. O vírus pode não escolher a classe social, mas
as classes subalternas são as mais atingidas. Quando
os desempregados, indivíduos em situação de rua,
comunidades quilombolas, indígenas e trabalhadores
informais não morrem pela doença, eles encontram
O processo de ‘descravização’ no Brasil foi as maiores dificuldades na assistência médica e nas
formal e fenomênico, o que possibilitou a recicla- políticas de enfrentamento da crise sanitária.
gem das relações de espoliação e de exploração A maior parte da população urbana no Brasil
herdadas do colonialismo e do escravismo, mas a encontra dificuldades e não apresenta condições
partir de 1888, sob o imperialismo e a dependên- adequadas de isolamento social, pois reside em sub-
cia. As classes dominantes que aqui se forjaram moradias em que os espaços de habitação são apenas
mantiveram o caráter predatório e elitista diante para o descanso corporal após longas e extenuantes
das classes subalternas. O Estado foi instrumen- jornadas de trabalho, na maioria dos casos na econo-
talizado para manter o privilégio e as riquezas mia informal. Cabe registrar que, diante da pandemia,
2. IANNI, O. O ciclo da das elites. O prestígio social, político, econômico muitos trabalhadores não pararam suas jornadas de
revolução burguesa. Petrópolis:
Vozes, 1984.
e cultural que as classes dominantes alcançam trabalho e receberam a própria morte como pagamen-
3. FERNANDES, F. A revolução
internamente na constituição da sociedade civil to, exemplo disso são os profissionais de saúde. Muitos
burguesa no Brasil. São Paulo: brasileira é diametralmente oposto ao desprestígio, trabalhadores não têm escolha, continuaram em suas
Globo, 2009.
vilipêndio e aviltamento aos quais está submetida ocupações durante a pandemia, pois os hospitais, as
4. GORENDER, J. A escravidão
reabilitada. São Paulo: Expres- a maioria dos indivíduos que integram as classes funerárias, a logística, a limpeza e a higienização, os
são Popular; Fundação Perseu
Abramo, 2016.
trabalhadoras. Assim, foram moldadas as práticas supermercados, os abates de animais e a agricultura
5. MOURA, C. A história do
coercitivas e repressivas de cima para baixo, visan- não pararam suas atividades.
trabalho no Brasil ainda não foi do perpetuar as desigualdades sociais e raciais 2-5. O enfrentamento da pandemia está encontrando
escrita. Portal Grabois: espaço
do pensamento marxista e O racismo apresenta importante chave analítica verdadeiras muralhas chinesas produzidas por uma
progressista. São Paulo, 37. ed.,
p. 51-57, maio/jun./jul. 1995. para entender o mercado de trabalho no Brasil. Os concepção neoliberal de sociedade e Estado que, nas
Disponível em http://revista-
principios.com.br/artigos/37/
capitalistas agrários e industriais criaram original- últimas décadas, foi voraz nas medidas de austeridades
cat/1720/a-hist&oacuteria-do-tra- mente o exército de reserva à custa da imigração fiscais e redução ao máximo dos investimentos em
balho-no-brasil-ainda-n&atildeo-
-foi-escrita-.html. Acesso em: 20 europeia e asiática nas regiões de forte dinamismo políticas públicas. Nas sociedades altamente integradas
ago. 2020.
econômico e fizeram dos negros uma ‘reserva da em que vivemos, a saúde do indivíduo e a saúde da
6. BIHR, A. França: pela socia-
lização do aparato de saúde. In: reserva’. “Classificar as pessoas segundo a cor tem sociedade nunca podem ser consideradas de manei-
DAVIS, M., et al. Coronavírus e a
luta de classes. Brasil: Terra sem
sido vantajoso ao funcionamento do capitalismo, ra isolada, a concepção privatista de saúde de que
Amos, 2020. pois mantém a reserva de segunda linha dos discri- cada indivíduo pode comprar ‘a melhor saúde’ nas
minados sempre disponível para o trabalho em troca empresas de planos privados naufraga em contextos
de salários rebaixados”4(223). de pandemias. As ações dos Estados para proteger
O mito da ‘democracia racial’, que tenta encobrir a população comprovam que a saúde é, antes de
a história de como se formaram e se consolidaram as tudo, um bem público6, que a condição saudável
práticas e as ideias que deram sustentação ao racismo, ou doentia de cada indivíduo depende, em primeiro
não consegue esconder a realidade de um país que tem lugar, da condição saudável ou mórbida da sociedade.
no patrimonialismo, no mandonismo, na intolerância e A capacidade da sociedade de se defender das doenças
na desigualdade de classe e raça elementos concretos e pandemias depende, de fato e unicamente, de um
que se evidenciam no cotidiano da classe trabalhadora genuíno sistema de políticas públicas de saúde, assis-
e da população periférica, sobretudo do povo negro. tência social, moradia, trabalho e saneamento básico.
235

Nos países da periferia do capitalismo como o de várias regiões do mundo e, por conseguinte,
Brasil, os impactos da Covid-19 aprofundarão a tra- pela quantidade de habitantes e pela densidade
gédia da classe trabalhadora. As condições precárias demográfica, o que revela o padrão de urbanização 7. BAMBIRRA, V. O capitalismo
dependente Latino-americano.
de trabalho e proteção social como informalidade, desigual, segregacionista e nefasto para a saúde Florianópolis: Insular, 2013.
intensiva exploração da força de trabalho, altos índices humana. Os autores também alertam que muitos 8. BOMBARDI, L. M., et al.
Covid-19: desigualdade social e
de adoecimentos e mortes no trabalho, investimento casos de aumento de contaminação podem estar tragédia no Brasil. Le Monde Di-
insuficiente de recursos nas políticas públicas são relacionados com a falta de coleta de esgoto, em plomatique Brasil, 29 abr. 2020.
Disponível em: https://diploma-
situações constitutivas da formação do mercado de função da possibilidade de contaminação ‘fecal- tique.org.br/covid-19-desigual-
dade-social-e-tragedia-no-brasil.
trabalho brasileiro. -oral’. Aí a catástrofe pode ser ainda maior, pois, Acesso em: 20 ago. 2020.
O mercado de trabalho do Brasil de hoje é com- na maior parte dos municípios do Brasil, mais 9. SILVEIRA, D. Cerca de
18,4 milhões de brasileiros
posto por trabalhadores que, em alguns casos, laboram de 50% da população não tem esgoto coletado. não recebem água encanada
14 horas ou mais por dia. São os trabalhadores sem Aproximadamente 6,1 milhões de domicílios não diariamente, aponta IBGE. G1,
Economia. 6 maio 2020. Dispo-
direitos sociais dos mais diversos aplicativos – como contavam, em 2019, com água diariamente, re- nível em: https://g1.globo.com/
economia/noticia/2020/05/06/
Uber, Rappi, iFood –, as empregadas domésticas, os presentando cerca de 18,4 milhões de brasileiros. cerca-de-184-milhoes-de-brasi-
leiros-nao-recebem-agua-enca-
ambulantes, ou seja, de 40% a 50% dos trabalhadores Regionalmente, o acesso ao esgotamento sanitário nada-diariamente-aponta-ibge.
e trabalhadoras que vivem na informalidade ou em mostra acentuadas diferenças no País: no Norte, ghtml. Acesso em: 20 ago. 2020.

relações de trabalho (proteção social) fragilizadas. apenas 27,4% dos domicílios eram ligados à rede 10. “La cuestión indígena
arranca de nuestra economía.
Foram esses trabalhadores que lotaram as filas da geral de esgoto; no Nordeste, esse percentual era Tiene sus raíces em el régimen
de propiedad de la tierra”.
Caixa Econômica Federal em busca dos R$ 600,00. A de 47,2%; no Centro-Oeste, chegava a 60%; no Sul, MARIÁTEGUI, J. C. 7 Ensayos
de interpretación de la realidad
ideologia da meritocracia e do empreendedorismo subia para 68,7%; alcançando o maior percentual peruana. Caracas, Venezuela:
como alternativas ao trabalho regulado foi a primeira no Sudeste, com 88,9% dos domicílios com acesso Fundación Biblioteca Ayacucho,
2007.
a tombar e a ser abatida na emergência da pandemia. à rede coletora9.
11. O imperialismo e a
A sociedade brasileira precisa compreender que José Carlos Mariátegui10 argumentou, no início dependência se manifestam na
atualidade na divisão internacio-
o projeto de nação para o Brasil antes da Covid-19 do século XX, que o problema do índio é o problema nal do trabalho, na relação entre
norte e sul global. A inserção do
já era uma tragédia para as classes subalternas. A da terra na América Latina. Na pandemia, uma grande Brasil como grande produtor de
seguridade social foi criminosamente atacada, a pro- preocupação que se levanta aos olhos do mundo alimentos (agronegócio) e eleva-
dos índices de desmatamento é
teção social ao trabalhador foi reduzida ao mínimo diz respeito aos povos indígenas contaminados pela explicado por Foster e Suwandi
[tradução nossa]: “Desde o final
pelas contrarreformas, o mercado de trabalho estava Covid-19. Historicamente, os povos indígenas são do século XX, a globalização
capitalista adotou cada vez mais
mergulhado na precarização (o denominado trabalho mais suscetíveis a doenças e quase foram eliminados a forma de cadeias de merca-
precário é uma característica constitutiva de nossa da América com a chegada dos europeus no século dorias interligadas controladas
por corporações multinacionais,
formação social). Não podemos ficar reféns de um XVI. Hoje, diante da Covid-19, uma das possíveis expli- conectando várias zonas de
produção, principalmente no Sul
projeto de nação que se agarra na dependência e na cações sobre o maior risco de contágio dos indígenas Global, com o ápice do consumo,
das finanças e da acumulação
manutenção de uma classe dominante-dominada7 é que eles não tiveram o mesmo contato com vários mundial principalmente no Norte
com seus privilégios. vírus como as demais populações não indígenas e, Global. Essas cadeias de merca-
dorias constituem os principais
As desigualdades de salários, habitação e todas as por isso, são mais suscetíveis às doenças trazidas do circuitos materiais do capital
globalmente que constituem o
demais condições básicas de reprodução social fazem exterior para suas aldeias. São aproximadamente 81 fenômeno do imperialismo tardio
identificado com a ascensão do
do Brasil um dos países com as piores condições de mil indígenas, na região amazônica, que estão em capital financeiro e monopolista.
vida para a maioria da população. O policlassismo da situação de vulnerabilidade, o que pode ser agravado Nesse sistema, rendas imperiais
exorbitantes do controle da
pandemia da Covid-19 em atingir todas as classes e pelas distâncias de suas aldeias aos centros urbanos produção global são obtidas não
apenas da arbitragem trabalhista
segmentos sociais pode até ser considerado em países que oferecem tratamentos em hospitais especializados global, por meio do qual as em-
presas multinacionais com sede
com iguais condições de cobertura de saúde, habitação para combater a Covid-19. O aumento do desmatamen- no centro do sistema exploram
e saneamento básico; mas, no Brasil, onde o acesso a to11 e o garimpo ilegal, nesse caso, são os principais excessivamente a força de tra-
balho industrial na periferia, mas
esses serviços é precário e desigual, a Covid-19 não fatores de contágio. também cada vez mais através
da arbitragem global da terra,
tem nada de democrática. Ela acaba por ser letal nas Por fim, é bom reforçar que muitos estudos das na qual as multinacionais do
agronegócio desapropriam terras
periferias das cidades, pois os poucos leitos hospita- ciências sociais e humanas, tão agredidas no atual (e mão-de-obra) baratas no Sul
lares, as condições precárias de moradia para praticar contexto, são fundamentais para compreendermos o Global para produzir e exportar
principalmente para venda no
o isolamento social colocam a classe subalterna na nosso presente que está ancorado no passado, pois, Norte Global”. FOSTER, J. B.,
et al. Covid-19 and catastrophe
trincheira da contaminação e da morte. para combater a Covid-19, são necessárias vigorosas capitalism: commodity chains
Os pesquisadores Bombardi e Nepomuceno8 políticas de saúde, habitação, trabalho, assistência and ecological-epidemiological-e-
conomic crises. Monthly Review.
demonstraram que a Covid-19, primeiramente, social, saneamento básico e, principalmente, o en- v. 72, n. 2, jun. 2020. Disponível
em: https://monthlyreview.
alastrou-se pelas maiores capitais (São Paulo e frentamento ao imperialismo e à dependência para org/2020/06/01/covid-19-and-
-catastrophe-capitalism/. Acesso
Rio de Janeiro) em razão da circulação de pessoas produzirmos uma substantiva soberania nacional. em: 20 ago. 2020.
236

O ‘novo normal’ e a Saúde dos(as)


1. INSPER. Novo Normal:
Entenda melhor esse conceito
Trabalhadores(as)
e seu impacto em nossas vidas. Paulo Victor Rodrigues de Azevedo Lira
Disponível em: https://www.
insper.edu.br/noticias/novo-nor-
mal-conceito/. Acesso em: 20
ago. 2020.
O ‘novo normal’ é tema rotineiro quando se fala reprodução indireta da sociedade; e por ser sócio-
2. MONTINI, A. Retomada do
Trabalho: o que esperar do na flexibilização das ações sanitárias na pandemia -historicamente estabelecido, é mutável. Hábitos
“Novo Normal”? Disponível
em: https://www.uol.com.br/
ocasionada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). O e valores são definidores de suas características.
tilt/colunas/alessandra-monti- tema vem sendo abordado por recentes matérias em Segundo Holanda6, complexos como a alienação e
ni/2020/06/29/retomada-do-tra-
balho-o-que-esperar-do-novo- veículos midiáticos, que tratam, sobretudo, como se a ideologia nascem do cotidiano: “Tanto a alienação
-normal.htm. Acesso em: 20
ago. 2020. dará a ‘nova’ vida cotidiana, na maioria das vezes, quanto a ideologia nascem da vida cotidiana e a ela
3. RAIA, A. O novo normal e o pautada em uma vida ‘diferente’, ‘repleta de ino- remetem, razão pela qual o cotidiano se põe nessa
novo você. 2020. Disponível
em: https://vidasimples.co/
vações’, ‘desafios’ e ‘reorganizações no mundo do relação como médium entre a estrutura econômica
colunistas/o-novo-normal-e- trabalho e vida pessoal’1-4. geral da sociedade e a dos seres humanos”. É,
-o-novo-voce/. Acesso em: 20
ago. 2020. É fato que o cotidiano é uma característica portanto, na estrutura e na dinâmica capitalista
4. TAWIL, M. O Novo Normal insuprimível da vida dos seres sociais. Todos os atual que se funda nossa abordagem do cotidiano,
chegou. Esqueça ‘entender
para atender’. Agora é ‘acolher
dias acordamos, realizamos uma série de atividades bem como a sua crítica, e, consequentemente, suas
para atender’. Disponível em:
https://epocanegocios.globo.
que fazem parte de nossa rotina: comer, trabalhar, implicações na vida dos sujeitos.
com/colunas/Futuro-do-trabalho/ dirigir, encontrar amigos, andar pelas ruas, entre Com essa discussão, temos como objetivo
noticia/2020/06/o-novo-normal-
-chegou-esqueca-entender-pa- outras. Inúmeras ações compõem a cotidianidade, abordar o que vem sendo chamado de ‘novo nor-
ra-atender-agora-e-acolher-pa-
ra-atender.html. Acesso em: 20
que, sem dúvida alguma, também é determinada mal’, pois este é colocado como linha de mudança
ago. 2020. sócio-historicamente, tanto em relação à questão do no cotidiano das pessoas. Sob essa concepção,
5. Aqui cabem uma série de
comparações. Importante
espaço quanto em relação ao tempo. Exemplificando: haveria uma forte separação entre a vida pré e
também ressaltar a diferença rotinas estabelecidas por determinada pessoa no sé- pós-pandemia, inclusive com um apelo ‘ideológi-
desse cotidiano entre as classes
sociais. culo XIX são distintas de hábitos atuais, assim como co’ à formação de uma sociedade ‘mais humana’,
6. HOLANDA, M. N. A. B. o cotidiano de uma pessoa na periferia é diferente ‘solidária’, pautada em um consumo consciente,
Ideologia e alienação: uma
relação necessária. Katályse,
do de outra pessoa em um bairro nobre5, mesmo assim como modificações no mundo do trabalho
v. 22, n. 2, p. 235-243, 2019. que sejam contemporâneos. que permitam essas características2-4.
Disponível em: https://www.
scielo.br/pdf/rk/v22n2/pt_1982- O cotidiano é expressão da singularidade A insistência na necessidade da retomada das
0259-rk-22-02-235.pdf. Acesso
em: 20 ago. 2020. do ser humano, de sua reprodução direta, e da atividades, desde que tomadas ‘medidas seguras’,
7. NETTO, J. P., et al. Cotidiano.
5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

Foto: Min Woo Park/Pixabay


p. 7-93.

8. Vale ressaltar que abordagem


científicas calcadas no
positivismo, neopositivismo
e na fenomenologia se
atém a dados empíricos, a
faticidade, amparando-se em um
racionalismo limitado ou em um
irracionalismo7.

9. DANTAS, A. V. Coronavírus,
o pedagogo da catástrofe: lições
sobre o SUS e a relação entre
público e privado. Trab. Edu.
Saúde, v. 18, n. 3, p. 1-8, 2020.
Disponível em: https://www.
scielo.br/pdf/tes/v18n3/0102-
6909-tes-18-3-e00281113.pdf.
Acesso em: 20 ago. 2020.

10. SOUZA, D. O. A pandemia


do COVID-19 para além das
ciências da Saúde: reflexões
sobre sua determinação social.
Ciênc. Saúde Colet. 25, supl. 1,
p. 2469-2478, 2020. Disponível
em: https://www.scielo.br/pdf/
csc/v25s1/1413-8123-csc-
-25-s1-2469.pdf. Acesso em: 20
ago. 2020.
237

é um apelo feito em maior ou menor medida por e, consequentemente, levantar determinações estruturan-
governos na esfera federal, estadual, municipal e tes acerca deste. Nesse caminho, em que método e teoria
por grandes empresários. O uso de máscara, de caminham lado a lado, o ‘novo normal’ não apresenta
álcool em gel, o reforço na lavagem das mãos com muitas novidades para além de sua forma.
água e sabão (mesmo que você não tenha água A explosão de casos e mortes ocasionadas pelo
em casa), o uso de tecnologias e modalidades de novo coronavírus escancara a dimensão destrutiva do
trabalho como o home office, a educação a dis- capitalismo sob a égide neoliberal, que tem seu lema
tância, o trabalho por aplicativos, o consumo via implícito nas chamadas de retorno as atividades: ‘o
internet são alguns dos mandamentos do ‘novo lucro e a exploração antes da vida’. ‘Reflexões coti-
normal’ (cotidianidade). Nessa esfera da vida, o dianas’ que manifestam descontentamento, fatalismo
critério da utilidade e o da verdade se confundem7. ou soluções mágicas em relação à situação acabam
Netto7, ao tratar sumariamente da abordagem por dar corpo a essa cotidianidade capitalista. Essas
lukácsiana da cotidianidade, elenca três determina- reflexões estão permeadas pela ideologia burguesa,
ções fundamentais de sua constituição: 1) Heteroge- que necessariamente precisa da força de trabalho para 11. Vale ressaltar a importância
da pesquisa sobre o mercado
neidade, ou seja, a movimentação e coexistência de extração de mais-valor. Por isso, a necessária suspen- de trabalho no Brasil no período
‘imediatamente’ anterior a pande-
múltiplos fenômenos; 2) Imediaticidade, em que são são do cotidiano para um retorno a ele mais eficaz. mia. Veremos o avanço da taxa
expressos automatismos e o espontaneísmos próprios Se, por um lado, a pandemia explicitou para de desemprego, aumento ex-
ponencial de informalidade, das
da reprodução direta dos indivíduos; 3) Superficia- parte da população a importância do Sistema Único de terceirizações, dos vínculos in-
termitentes e dos desalentados.
lidade Extensiva, uma vez que o indivíduo responde Saúde (SUS), por outro, ela é uma verdadeira ‘janela Para mais informações consultar
LARA, R., et al. Modernização
ao somatório de fenômenos presentes em situações de oportunidades’ para a reprodução ampliada do trabalhista em contexto de
da vida sem vincular as relações que os determinam. capital e ataque à saúde dos trabalhadores, inclusive crise econômica, política
e sanitária. Disponível em:
Expostas as determinações essenciais da cotidianidade, no desmonte do próprio SUS. Recentes exemplos não https://suassccovid19.files.
wordpress.com/2020/07/arti-
o chamado ‘novo normal’ acaba por ter realmente faltam. Dantas9 evidencia elementos que já colocavam go_modernizaccca7acc83o_tra-
balhista.pdf/. Acesso em: 20 ago.
uma faticidade de novidade, já que aparentemente o ‘antigo normal’ imerso em uma sociedade capi- 2020. Dantas9. SOUZA, D. O.
uma série de mudanças talista em crise, assim O subfinanciamento do Sistema
Único de Saúde e seus reba-
será realizada para que Todo dia eu só penso em poder parar como Souza10 questiona timentos no enfrentamento da
Covid-19. Physis. v. 30, n. 3, p.
os indivíduos possam Meio-dia eu só penso em dizer não que a pandemia não é 1-6, 2020. Disponível em: https://
www.ims.uerj.br/wp-content/
continuar a expressar a geradora da crise que
sua singularidade e sua Depois penso na vida pra levar os países capitalistas já
uploads/2020/07/Revista-phy-
sis-30-3_artigo-13.pdf. Acesso
em: 20 ago. 2020.
reprodução direta. E me calo com a boca de feijão atravessavam, senão um
12. Não à toa, no dia 1º de
No entanto, é ne- (Cotidiano – Chico Buarque) fenômeno que a expôs agosto houve paralisação
nacional dos entregadores de
cessária uma crítica do mais visceralmente e aplicativos, ‘o breque dos APPs’,
que reivindicavam condições
cotidiano, sem que este seja anulado, mas que haja sua tornou-a mais aguda11. de trabalho básicas como:
suspensão. Ainda seguindo o pensamento de Lukács, A expansão da flexibilização e da precarização aumento do valor recebido por
quilômetro rodado; aumento do
Netto7 ressalta que a superação da singularidade é dada do trabalho por meio de alternativas como o home valor mínimo de cada entrega,
que é independente da distância
por meio de um processo que suspende a heteroge- office, o trabalho por aplicativos12, o reforço ideoló- percorrida e do tempo gasto pelo
entregador; esse valor é fixado
neidade da vida humana e acaba por homogeneizar gico ao empreendedorismo, a redução de salários, a por cada empresa; fim do que
as faculdades do ser humano direcionando-as a uma demissão massiva de trabalhadores, o afrouxamento os entregadores consideram
bloqueios indevidos, quando eles
objetivação na qual este se reconheça como portador nas medidas de saúde e segurança nas empresas, o são bloqueados dos aplicativos
sem saber o motivo; auxílio
da consciência humano-genérica, como ‘inteiramente uso da educação a distância expressam que o ‘novo’ pandemia (Equipamentos de
Proteção Individual – EPI – e
ser humano’. Essa mediação entre singular e universal carrega muito do ‘velho’ e que, tendencialmente, licença). CARVALHO, I. Supe-
é feita pela particularidade. Três complexos são privi- apresenta a continuidade de formas utilizadas na rexplorados em plena pandemia,
entregadores de aplicativos
legiados nessa forma de suspensão do cotidiano: 1) o organização do trabalho na pré-pandemia, só que marcam greve nacional. Disponí-
vel em: https://www.brasildefato.
trabalho criador; 2) a ciência; 3) a arte. Por meio desses agora na forma mais incisiva de ataques à classe tra- com.br/2020/06/16/superexplo-
rados-em-plena-pandemia-entre-
complexos, o ser social compreende a dimensão huma- balhadora, que, de forma tendencial, refletirão para gadores-de-aplicativos-marcam-
no-genérica, porém, essa compreensão não elimina a o momento pós-pandemia. -greve-nacional. Acesso em: 20
ago. 2020. G1. Entregadores de
vida cotidiana, mas lhe enriquece, percebendo-a como Há também a propensão que o estranhamento/ aplicativos fazem manifestações
pelo país. 2020b. Disponível em:
espaço de ampliação do ser social, de ‘desalienação’, alienação do trabalho se complexifique ainda mais, com https://g1.globo.com/economia/
noticia/2020/07/01/entregadores-
ainda que parcialmente. o entrelaçamento dos tempos de trabalho e tempo livre, -de-aplicativos-fazem-manifes-
Assim, a crítica à cotidianidade feita por uma aborda- em situações que utilizem, por exemplo, o home office tacoes-pelo-pais.ghtml. Acesso
em: 20 ago. 2020.
gem científica8 que se ampare nas categorias da crítica da como estratégia organizativa. Marx13(82-83), ao tratar da
13. MARX, K. Manuscritos
economia política possibilita uma suspensão do cotidiano; alienação do trabalho na sociedade capitalista, elabora: econômico-filosóficos. São
Paulo: Boitempo, 2010.
238

Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, ‘clamando pela volta das atividades’ e minimizando
isto é, não pertence ao ser, que ele não se afirma, os efeitos da pandemia, como os da rede de res-
portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que
taurantes Madero, Giraffas e das lojas Havan16,17.
não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve
nenhuma energia física e espiritual livre [...] O tra- Esses depoimentos são expressões das formas mais
balhador só se sente, por conseguinte e em primeiro desumanizadas da sociedade capitalista, mas, em
lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de última instância, revelam o caráter de mercadoria
si [quando] no trabalho. Está em casa quando não (reificado) da força de trabalho.
trabalha e, quando trabalha, não está em casa [...] o Como analisa Marx18(307,337-338):
trabalho não é, por isso, satisfação de uma carência,
mas somente um meio para satisfazer necessidades O capital é trabalho morto, que como um vampiro,
fora dele. vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto
mais quanto mais trabalho vivo suga. O tempo duran-
A dimensão se torna mais complexa com o te o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante
avanço das estratégias, antes já utilizadas, de traba- o qual o capitalista consome a força de trabalho que
lho domiciliar e uberização, por exemplo, em que comprou do trabalhador. Se este consome seu tempo
o avanço da intensidade e do prolongamento das disponível para si mesmo, ele furta do capitalista [...]
Tempo para formação humana, para o desenvolvi-
jornadas assume dimensões vistas no século XIX. mento intelectual, para o cumprimento das funções
14. ANTUNES, R. Os exercícios
da subjetividade. Caderno CRH,
Antunes14, ao tratar da relação de estranhamento sociais, para relações sociais, para o livre jogo das
v. 24, n. 1, p. 121-131, 2011. Dis-
ponível em: https://www.scielo.br/
no mundo do trabalho contemporâneo, aborda a forças vitais físicas e intelectuais, mesmo o tempo
pdf/ccrh/v24nspe1/a09v24nspe1. conexão entre objetividade e subjetividade, ten- livre do domingo [...] é pura futilidade! Mas em seu
pdf. Acesso em: 20 ago. 2020.
do a primeira como momento predominante, na impulso cego e desmedido, sua voracidade de lobi-
15. LIRA, L. Gráfico que
construção de uma subjetividade inautêntica nos somem por mais-trabalho, o capital transgride não
relaciona os casos de coronavírus
no Brasil com falas de Bolsonaro apenas os limites morais da jornada de trabalho, mas
viraliza no WhatsApp. Disponível
trabalhadores, em que eles assumem interesses também seus limites puramente físicos. Ele usurpa
em: https://jc.ne10.uol.com.br/ do capital como interesses próprios. Determina- o tempo para crescimento, o desenvolvimento e a
politica/2020/04/5607630-grafi-
co-que-relaciona-os-casos-de- ções estas que acreditamos que se agudizarão nas manutenção saudável do corpo [...] Avança sobre os
-coronavirus-no-brasil-com-fa-
las-de-bolsonaro-viraliza-no- exortações ao ‘novo normal’. horários das refeições e os incorpora, sempre que
-whatsapp.html. Acesso em: 20 possível, ao processo de produção, fazendo com que
ago. 2020. O cotidiano está permeado pelo conteúdo
os trabalhadores, como meros meios de produção,
16. TELES, J. C. M. Dono do da luta de classes, da manutenção da reprodu- sejam abastecidos de alimentos do mesmo modo
Madero diz que “não podemos
parar por 5 mil que vão morrer”, ção ampliada do capital, mas também de todas como a caldeira é abastecida de carvão [...] O sono
por coronavírus. Disponível
em: https://jornaldebrasilia.com.
suas contradições. Apesar da tendência ao au- saudável, necessário para a restauração, renovação
br/nahorah/dono-do-madero-di- mento dos ataques à classe trabalhadora sob o e revigoramento da força de vital, é reduzido pelo
z-que-nao-podemos-parar-por- capital a não mais do que um mínimo de horas de
-5-mil-que-vao-morrer-por-corona- subterfúgio da ‘conta gasta na pandemia’, também
virus/.Acesso em: 20 ago. 2020. torpor absolutamente imprescindíveis ao reaviva-
acompanhamos algumas manifestações da classe
17. UOL. Madero, Havan, Giraf-
mento de um organismo completamente exaurido
fas: empresários criticam medidas
trabalhadora durante o período da pandemia. [...] O capital não se importa com a duração de vida
de combate à pandemia. Disponí-
vel em: https://economia.uol.com.
Vimos uma série de protestos se espalharem pelo da força de trabalho. O que lhe interessa é única
br/noticias/redacao/2020/03/24/ mundo em plena pandemia gritando que ‘vidas e exclusivamente o máximo de força de trabalho
empresarios-coronavirus-o-que-
-dizem-criticas.htm. Acesso em: negras importam’, denunciando o caráter racista que pode ser posta em movimento numa jornada
20 ago. 2020.
do capitalismo, acompanhamos mobilizações para de trabalho. Ele atinge esse objetivo por meio do
18. MARX, K. O capital. São encurtamento da duração da força de trabalho [...].
Paulo: Boitempo, 2013. 894 p.
paralisação geral de trabalhadores de aplicativos,
com uma boa adesão popular. Ao mesmo tempo, Por isso, trazer à tona o debate sobre a coti-
assistimos a tentativa de cooptação destas por dianidade e sua crítica é fundamental. O fato de
elementos liberais, com forte intervenção da mídia vivenciar determinados acontecimentos, como
corporativa, que tentam mantê-las no limite da os decorrentes da pandemia, não garante uma
ordem capitalista, porque enxergam, mesmo que a elaboração crítica e uma ação transformadora da
milhas de distância, a possibilidade revolucionária. realidade, pois, como discutimos, é necessária a
Ao contrário de uma solidariedade interclasse, suspensão do cotidiano, por meio de mediações
foi possível desnudar durante o período o caráter para avançar neste caminho transformador. Eviden-
reificado da sociedade capitalista; e no Brasil, espe- temente que a crítica se esvazia se não favorece
cificamente, este atrelado ao conteúdo fascistizante a organização e luta da classe trabalhadora, que
dos depoimentos do presidente Jair Bolsonaro e assim não estará mais presa na construção de um
de seus apoiadores. “É só uma gripezinha!; Eu não ‘novo normal’, mas em direção a uma nova socie-
sou coveiro! E daí? Lamento. Quer que eu faça o dade, que não tenha em sua essência a exploração
quê?”15. Assim como depoimentos de empresários do ser humano pelo ser humano.
239

‘Alegria’? A uberização do trabalho e a


Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
Joana Alice Ribeiro de Freitas
Caio Antunes

“Alegria, era o que faltava em mim”, cantava o a renda, ou mesmo para não morrer de fome – a
grande mestre Cartola... Mas o que isso tem a ver com ‘alegria que faltava em mim’ de Cartola.
Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora e o processo Mas e a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras,
de uberização do trabalho que vivemos? onde entra? Inicialmente, vale a pena destacar que
Para começo de conversa, precisamos entender existem várias compreensões, vários jeitos diferentes
que ‘uberização do trabalho’ é uma noção, uma ideia de entender o fenômeno da saúde. A mais conhecida
que é muito maior do que apenas um aplicativo de dessas formas, embora não a única, compreende a
transporte de passageiros. Também precisamos ter saúde como a ausência de doenças: “não estou doente,
claro que o uso dessas plataformas digitais não é tão logo, tenho saúde” – então, ter ou não ter saúde é
novo, mas algo que vem crescendo significativamente um problema só meu?
nos últimos anos ao redor do mundo, e também no Existe, contudo, outra forma de entender a saúde
Brasil. A novidade é que, no período de isolamento que, ainda que não seja imediatamente tão palpável,
social provocado pela pandemia da Covid-19, esse permite enxergar muito mais longe. Essa noção de
crescimento ficou muito mais intenso. saúde, que se chama justamente Saúde do Trabalhador
A ‘Uberização do trabalho’ está relacionada tanto e da Trabalhadora, vai dizer que, para falarmos de
com o uso de plataformas digitais para conectar quem saúde, precisamos compreender o contexto no qual
precisa trabalhar com o trabalho quanto com as várias as pessoas estão inseridas, suas condições de vida, de
consequências que traz para o trabalho, bem como trabalho etc., pois todos esses elementos agem como
para os trabalhadores e trabalhadoras, principalmen- determinantes mútuos do processo saúde-doença.
te a partir da grande intensificação do uso dessas O ‘pulo do gato’ da Saúde do Trabalhador e da
plataformas no momento que vivemos. Em outras Trabalhadora é que, se o contexto social é importante,
palavras, pode-se dizer que a uberização do trabalho os problemas de saúde não são ‘apenas’ individuais,
consiste em um duplo movimento: em primeiro lugar, mas principalmente questões coletivas, sociais2: “ti-
1. Nos últimos tempos, os
no uso das plataformas digitais (tecnologias físicas) nha uma boa saúde [física] e adorava dirigir, mas entregadores por aplicativo
para mediar a execução do trabalho; e, em segundo, por causa do trânsito, dos prazos e da quantidade ganharam um grande destaque,
principalmente depois de suas
em uma nova tecnologia de gestão – ou seja, outra de entregas desenvolvi uma hipertensão arterial e duas grandes paralisações
nacionais.
forma de gerir o trabalho enquanto tal, que cria uma medo de dirigir”.
2. É muito importante ter claro
forma de contratação por demanda. Se olharmos para como é o trabalho na atuali- que falar em uma noção coletiva
de saúde não exclui os proble-
Outro aspecto importante é que ‘uberização’ não dade, não será difícil perceber a enorme influência mas individuais, mas relaciona
é apenas sobre os aplicativos de transporte, ou mesmo das chamadas ‘tecnologias de base microeletrônica’. o que ocorre com o indivíduo
singular com o meio social no
de entrega de produtos1, mas sobre muitos outros Há não muitas décadas, os computadores entraram qual este se insere.

tipos de trabalho que também têm sido ‘uberizados’. nas instituições e empresas (basta se lembrar dos 3. Não à toa, nas últimas déca-
das do século XX, uma série de
São professores e professoras, personal trainers, filmes da década de 1980), seguidos pelos telefones teóricos chegou a sustentar a
tese de que o trabalho teria che-
médicas e médicos, empregados domésticos e empre- celulares. Tudo isso acabou por trazer uma série de gado ao fim e que viveríamos,
gadas domésticas, entre outros, que, ‘alegremente’, impactos no trabalho das pessoas, inclusive com a enfim, um ‘ócio criativo’.

como diria Cartola, estão dando aulas, atendendo, promessa de que o uso dessas tecnologias diminuiria
transportando ou entregando, enfim, trabalhando a sobrecarga de trabalho3 – “uma esperança vaga eu
por plataformas. já encontrei”, Cartola completaria.
Para muitas pessoas, tanto já fora do, ou com difi- Hoje, os chamados smartphones trouxeram o
culdades de inserção no mercado de trabalho, quanto mundo todo para dentro de nossas casas, para a palma
mesmo para pessoas com trabalhos regulares (até com de nossas mãos. Mas trouxeram também o trabalho.
carteira assinada), o trabalho por plataformas digitais De manhã, de tarde, de noite ou de madrugada, na
apareceu como uma alternativa para complementar mesa, na cama ou no banheiro, é sempre hora de
240

publicar um stories, curtir um post, subir uma hashtag, Não existiria, ainda assim, nenhuma vantagem no
assistir uma live, responder um e-mail, fazer uma call. trabalho por aplicativos? A resposta só vai ser sim se a
Mesmo nesse terreno, precisamos entender que não escolha for entre este tipo de trabalho ou o desempre-
se trata de uma novidade. A tecnologia é tão necessária go! Mas aí então não é vantagem, é desespero. Todas as
ao modo de produção capitalista, desde o seu nascimen- vantagens ficam para os donos dos aplicativos. Chico
to, que poderíamos dizer que foi a sua parteira e é, até Science nos ajuda a entender: “e a situação sempre mais
hoje, sua babá. Só não podemos nos esquecer de que o ou menos, sempre uns com mais e outros com menos”. E
capitalismo, como um vampiro, alimenta-se do sangue do não podemos ter nenhuma ilusão, o patrão é o aplicativo
trabalho, suga a vitalidade de homens e mulheres, rouba – funcionando em um celular e a partir de um plano de
a saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras para viver. dados pagos pelo próprio trabalhador ou trabalhadora.
Olhando mais de perto, isso tudo o que a pandemia Enfim, fica a cargo do ‘patrão de si mesmo’ criar suas
e o isolamento social impulsionam pode ser pensado a próprias condições de trabalho e, obviamente, arcar com
partir do chamado modelo toyotista de organização do os custos disso. Mais uma vez Cartola diria: “eu sei que teus
trabalho. Surgindo como uma resposta na base da orga- beijos e abraços, tudo isso não passa de pura hipocrisia”.
4. Essa crise estrutural começa nização produtiva à crise estrutural do capital4, o modelo E se, como indicado acima, saúde e trabalho são
na virada da década de 1960
para a de 1970 (mais precisa- toyotista traz novas características para o ambiente de aspectos que se determinam mutuamente, não é de se
mente nos anos de 1968-73) do
século passado.
trabalho: maior flexibilização das relações, horizontaliza- espantar que trabalhadores e trabalhadoras expostos a
ção das hierarquias, polivalência nas tarefas, além do uso condições de trabalho tão aviltantes e precárias tenham
das já mencionadas tecnologias de base microeletrônica. suas condições de saúde desmanteladas.
“Eu vejo o futuro repetir o passado, vejo um museu Vemos uma massa de trabalhadores e trabalhado-
de grandes novidades”, diria Cazuza. ‘Flexibilização’, ras usando tecnologias extremamente avançadas, com
‘horizontalização’, ‘polivalência’ são palavras pomposas alto teor de complexidade, mas pedalando uma bicicleta
para dizer, na verdade: perda de direitos, precarização, alugada, sem marchas, em qualquer tipo de terreno,
intensificação do trabalho. O que se pode perceber neste sob qualquer tipo de condição climática – para não falar
‘futuro que repete o passado’ é que toda esta flexibilização da falta de equipamentos de proteção individual, do
atingiu em cheio o trabalho, bem como toda a legislação trabalho desregulamentado e sem direitos ou qualquer
5. São exemplos atuais disso a que regula seus vínculos e protege suas relações5. amparo legal, e isso sem ainda mencionar as condições
reforma trabalhista, a reforma da
previdência, a lei da terceirização Esse palavrório cínico, contudo, não para por de trabalho típicas da Inglaterra do século XIX6, com
universal, dentre outras.
aí. Startup e coworking (falta de condições de abrir suas jornadas de mais de 14 horas diárias, os baixíssi-
6. Época da primeira revolução
industrial. seu próprio negócio?), downsizing (demissões?), mos salários, as condições insalubres, o trabalho de
proatividade e resiliência (mascarar um ambiente de jovens e crianças, o explosivo número de acidentes
trabalho abusivo e violento?), associados e colabora- de trabalho (muitos fatais) etc.
dores (não são trabalhadores?) e o provável campeão Se olharmos mais de perto, veremos que a tal ‘liber-
de todos: o empreendedorismo. dade para escolher o próprio horário de trabalho’, para
Antes de mais nada, desenvolvendo-se mais nos as pessoas que têm como única fonte de sobrevivência o
países dependentes e periféricos, em outras palavras, trabalho por aplicativo, restringe-se a poder escolher que
países pobres e sem oportunidades dignas para sua horas do dia ou da noite iniciarão suas jornadas de 12
população trabalhadora, o empreendedorismo é um a 16 horas diárias e que se estendem, muitas das vezes,
poderoso canto de sereia que esconde o desemprego, para os sete dias da semana.
oculta a perda de direitos, maquia a desigualdade e Durante essas jornadas exaustivas, os ‘colabo-
chama atraso social de ‘inovação’. radores e colaboradoras’ estão expostos a diferentes
Em meio a toda esta ‘liberdade de escolher o próprio formas de adoecimento (algumas das quais inclusive já
horário de trabalho’, o ‘patrão de si próprio’ é, na verdade, estavam em declínio) e de acidentes de trabalho, que,
um empregado de si próprio que, caso engravide, ado- aliás, deixam de ser reconhecidos como tal, e, mesmo
eça, se machuque, ou sofra um acidente, verá o quanto se forem assim reconhecidos, como não há legislação
realmente é empresária ou empresário. protetiva, passa a ser indiferente se um determinado
Falando claramente: o empreendedorismo é uma acidente é considerado de trabalho ou não.
ideologia, e das fortes, e a sua força vem de uma realidade Em relação às formas de adoecimento, é claro que
que só oferece emprego se for sem vínculos, sem direitos estas variam a depender de uma série de fatores, entre
e sem segurança, apenas com metas, pressão e cobranças. eles o próprio histórico individual do trabalhador ou da
E o velho Cartola diria: “pelos carinhos que me faz me trabalhadora, mas é muito importante frisar que, inde-
deixa em paz, não te quer ver, para nunca mais”. pendentemente da forma de manifestação individual dos
241

adoecimentos e acidentes (de trabalho), estes mantêm Science: “me organizando eu posso desorganizar” – e
íntima relação com a forma como o trabalho é desen- o movimento dos entregadores antifascistas mostrou
volvido. E se cabe ao trabalhador ou à trabalhadora, um importante exemplo a este respeito.
individualmente, garantir suas próprias condições de

Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas


trabalho e lidar com as consequências (físicas e psi-
cológicas) desse trabalho, ainda mais quando não há
vínculo empregatício formal, este é mais um elemento
de pressão, e, portanto, de adoecimento.
Para aquela pequena parcela da população que
tem condições de não sair de suas casas, existe um
imenso contingente de trabalhadores e trabalhadoras
entregando as compras de supermercado, farmácia,
restaurante, livraria etc., tudo comprado pela plata-
forma, na segurança do seu lar.
Mais uma vez, não se pode perder de vista que o
trabalho por plataforma já existia e crescia rapidamente no
mundo todo e também no Brasil. Contudo, se o contexto
de pandemia apenas intensificou algo que já estava em
franca expansão, nada indica que isso irá se reverter após Em primeiro lugar, é fundamental que aqueles Manifestação de
o fim desse processo. e aquelas que trabalham por plataformas digitais entregadores por
melhores condições de
A uberização do trabalho, com o seu canto de sereia, consigam perceber que as dificuldades enfrentadas trabalho e EPI em maio
ao falar de liberdade, flexibilidade, trabalho sem patrão, para a realização de seu trabalho não são meras de 2020.
tenta na verdade atrair trabalhadores e trabalhadoras para casualidades, muito menos simples questões in-
a informalidade, para a precariedade, para o trabalho sem dividuais, mas, sim, problemas coletivos, sociais,
direitos. No entanto, não podemos culpar os trabalhadores numa palavra: são questões de classe! É também
e trabalhadoras que veem nesse tipo de trabalho a chance fundamental compreender que apenas coletiva-
de ter uma renda ou mesmo de melhorar um pouco de mente, como classe, conseguiremos enfrentar toda
vida. O que precisa ser entendido é o que esse tipo de esta difícil situação.
trabalho causa para a classe trabalhadora, suas condições Com Cartola começamos e com ele terminaremos.
de trabalho, sua saúde, enfim, sua vida. À uberização do trabalho e a todas as suas perversas
Enfim, o que fazer diante dessa dura realidade? A consequências à saúde dos trabalhadores e trabalha-
resposta pode até parecer fora de moda, mas se chama doras, dizemos: “já que tu não és sincera, eu vou te
resistência. Ou como diria mais uma vez o sábio Chico abandonar um dia”. E que esse dia chegue logo!

A precarização do trabalho na pandemia de


Covid-19: o sofrimento social em questão
Fabiane Konowaluk Santos Machado
Carmem Regina Giongo
Jussara Maria Rosa Mendes

Em março de 2020, foi declarada a pandemia especificamente no Brasil, revela um cenário duro e
da nova cepa viral Coronaviridae (Sars-CoV-2), que resultante do desmonte das políticas públicas e sociais,
provoca adoecimento pela Covid-191. O primeiro caso além de desnudar a desproteção social crescente dos 1. ORGANIZAÇÃO PAN-A-
MERICANA DA SAÚDE. Folha
no Brasil foi notificado em fevereiro de 2020 e, até o trabalhadores no País. informativa COVID-19: Brasil.
Disponível em: https://www.paho.
mês de julho, havia infectado mais de 2,5 milhões de As transformações significativas na estrutura do org/pt/covid19. Acesso em: 14
pessoas, ultrapassando a marca de 90 mil mortes. O Estado e do poder político justificaram a adoção de ago. 2020.

impacto da pandemia na economia mundial, e mais novas teorias e enfoques gerenciais capazes de com-
242

por essas modificações; e a alteração dos modelos de os expõem a todos tipos de riscos na pandemia. A
democratização jurídica formal dos países da América redução dos postos de trabalho e o rompimento ex-
Latina, após os regimes ditatoriais, expressa-se não só pressivo da renda média das famílias brasileiras são
pela circulação do capital, mas também de pessoas que refletidos na via crucis da busca pelo auxílio emergen-
migram em busca de trabalho. A precarização social e cial governamental como fonte de sobrevivência. Com
do trabalho, nesse contexto, apresenta-se como um esse cenário, como cumprir as orientações sanitárias
processo multidimensional de institucionalização e manter-se em isolamento social?
da instabilidade caracterizado pelo crescimento de Outro dado importante é a taxa de desocupação
diferentes formas de precariedade e de exclusão. (10,7%) – cabe observar que se manteve estável du-
Neste cenário, o Brasil ocupa a quarta posição mun- rante a pandemia, pois é provável que o contingente
dial em número de acidentes fatais e a décima quinta em de pessoas sem emprego foi igualmente elevado. O
número de acidentes gerais. Segundo dados da previdên- medo da Covid-19 pode ter sido fator de bloqueio
cia social, entre os anos de 2012 e 2016, foram concedidos, não buscar emprego em maio de 2020, mês do pico
por incapacidade temporária para o trabalho, 7.168.633 da doença em muitos estados brasileiros. Os dados
auxílios-doença e 283.423 aposentadorias por invalidez. ainda referem que 17,7 milhões de trabalhadores
Os transtornos mentais e comportamentais ocupam a afirmaram não ter procurado emprego por causa da
terceira posição entre as causas dos afastamentos, totali- pandemia ou por falta de opções na localidade em
2. BRASIL. Anuário estatístico zando 668.927 registros no mesmo período2. que residem. A pandemia e a política de desinforma-
da Previdência Social. Brasília,
DF: MF/DATAPREV, 2017. Apesar disso, diversas perdas trabalhistas e de ção adotada pelo governo federal acabam mascaran-
Disponível em: http://sa.pre-
videncia.gov.br/site/2019/04/
proteção social contribuíram para a precarização da do muitos números, incluindo os do trabalho, pois
AEPS-2017-abril.pdf. Acesso
em: 06 ago. 2020.
saúde no Brasil; dentre elas, podem ser citadas a EC muitos brasileiros desempregados ou em busca da
95 apresentada em 20163, que alterou a Constituição vaga antes da pandemia, após seu início, desistiram
3. BRASIL. Constitucional n.
95 de 15 de dezembro de 2016. Federal de 1988 para instituir o Novo Regime Fiscal e e desapareceram das estatísticas oficiais.
Altera o Ato das Disposições
estabeleceu um teto de gastos públicos em importantes
Constitucionais Transitórias, para
instituir o Novo Regime Fiscal,
esferas como na saúde e na educação, associada a refor- O sofrimento social como expressão da
e dá outras providências. Diário
Oficial da União. 16 Dez. 2016. ma trabalhista de 2017, e, mais recentemente, em 2019, precarização do trabalho
4. INSTITUTO BRASILEIRO DE a aprovação da Reforma da Previdência que alterou as Mudanças sociais aceleradas, enfraquecimento dos
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
PNAD: COVID-19. Rio de condições de aposentadoria e seguridade social no coletivos institucionalizados, fragilização da rede de pro-
Janeiro: IBGE, 2020. Disponível
em: https://covid19.ibge.gov. País. Essas alterações legais ceifaram profundamente teção social, atenuação do papel do Estado, precarização
br/pnad-covid/. Acesso em: 10
ago. 2020.
os direitos sociais, aceleraram o desmonte dos serviços do trabalho e da vida, culto ao individualismo e novas
5. BAUMAN, Z. Vidas desper-
públicos e precarizam ainda mais a classe que vive do formas de exclusão têm caracterizado a vida social con-
diçadas. Rio de Janeiro: Jorge trabalho, reduzindo postos de trabalho e excluindo temporânea5,6. Esse contexto leva à construção de, pelo
Zahar, 2005.
ainda mais os trabalhadores do mercado formal. menos, duas normativas que organizam a sociedade: a
6. CASTEL, R. As metamorfoses
da questão social. Rio de O cenário real do mercado de trabalho brasileiro da excelência e a da inutilidade. Na primeira, estão os
Janeiro: Vozes, 1998.
piorou com a pandemia. Segundo dados da Pesquisa discursos da excelência, da superação de si, da inserção,
7. LINHART, D. L’entreprise de
dépossession: entretien avec Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Covid-19, da carreira, do poder e das conquistas econômicas e
Daniéle Linhart. Disponível em:
http://www.laviedesidees.fr/L-en-
em maio de 2020, havia 10,1 milhões de trabalhado- sociais. Na segunda, estão os sujeitos localizados nas
treprise-de-depossession-3054. res desocupados, gerando taxa de desocupação de franjas da sociedade ou fora dela, caracterizados pela
html. Acesso em: 29 jun. 2020.
10,7%4. A taxa de subutilização, por sua vez, ficou desqualificação, inutilidade e vulnerabilidade social, e esse
em 27,9% da população ocupada, o que representou coletivo é formado por indivíduos inúteis ao mundo ou
18,3 milhões de pessoas que trabalharam menos do extranumerários, sem acesso às zonas de inclusão social
que habitualmente durante a pandemia. Observamos portadoras de sentido e de pertencimento. Do tayloris-
ainda que a média semanal de horas efetivamente mo ao gerenciamento moderno, a busca da organização
trabalhadas no País ficou abaixo da média habitual; e do trabalho sempre esteve pautada na apropriação dos
o rendimento efetivo dos trabalhadores, ficou 18,1% saberes dos trabalhadores e no desenvolvimento de um
abaixo do rendimento habitual. Essas duas informa- modelo único de gestão capaz de controlar os profissio-
ções denotam que, em função de ter sua jornada nais, aumentando a produtividade sem implicar a elevação
reduzida, ou a impossibilidade de trabalho autônomo, dos custos de produção ou de serviço. Para Linhart7, na
houve a diminuição do rendimento médio em 18%. atualidade, essa apropriação dos trabalhadores é, também,
O impacto do ‘Fique em Casa’ no Brasil é um privi- e principalmente, subjetiva, dificultando o surgimento de
légio de uma minoria, e não dos que sobrevivem em modos de combate e de resistência coletiva.
condições de extrema pobreza, cuja vulnerabilidade O trabalho que, anteriormente, era um lugar de
243

cidadania, de direitos e deveres, de legitimidade, de ex- é o medo da perda ou a perda concreta dos objetos
periência coletiva e de espaço social, transforma-se em sociais. Assim, um objeto social é algo concreto, como
um lugar de valorização de si, de realização própria, de o emprego, o dinheiro, a aposentadoria, a habitação,
conquista do sucesso individual. Essa transformação a formação, os diplomas, os rebanhos, uma proprie-
trará elementos do sofrimento no trabalho: a solidão e dade. Sofremos pela perda concreta desses objetos
o individualismo, assim, o trabalhador interioriza suas ou pelo medo de perdê-los, afinal, um objeto social é
dificuldades individualmente. Mesmo os trabalhadores uma forma de segurança. E é justamente esse medo,
mais estáveis são imersos nas constantes mudanças também discutido por Linhart7, que contribui para
organizacionais, o que os faz perder as referências e a intensificação da submissão e do sofrimento do
os conhecimentos já construídos; e esta precarização trabalhador. Diante da nova configuração global, as
subjetiva, coloca o trabalhador em um estado de vul- instituições que deveriam oferecer suporte social para
nerabilidade e de não saber. Os trabalhadores acabam a população estão cada vez mais precárias. Se a loucura
se submetendo por estarem submersos em um pro- e a perda da razão foram as obsessões do início da
fundo sentimento de precariedade, de impotência e modernidade, a precariedade e a insegurança torna-
de perda do domínio de suas atividades. Linhart7 trata ram-se as obsessões da pós-modernidade. A segurança, 8. MENDES, J. M. R., et al.
da “produção da amnésia” como forma de gestão de nesse caso, é um fator fundamental de saúde mental, Serviço social e a saúde do
trabalhador: uma dispersa
pessoas, sendo ela a “fórmula extraordinária” de fazer e justamente ela é precarizada em uma sociedade de demanda. Serv. Soc. Soc. v. 107,
p. 461-481, 2011. Disponível em:
com que as pessoas se esqueçam de como trabalhavam consumo e de práticas individuais. http://www.scielo.br/pdf/sssoc/
antes. Dessa forma, o trabalho real, aquele com vida A vivência da dor e do sofrimento jamais poderia ter n107/05.pdf. Acesso em: 02
jun. 2020.
social, consciência coletiva, sindical, política, moral, um caráter individual ou médico, considerando-se que re- 9. FURTOS, J. Introduction.
que proporciona um sentimento de saber fazer, de presenta um fenômeno cultural construído historicamente Paris: Mercredi, 2008.

prazer, perde lugar para o trabalho prescrito dentro em um determinado território e em uma determinada 10. MORRIS, D. The culture of
pain. Los Angeles: University of
das normas e políticas de qualidade. cultura. Portanto, o sofrimento não estaria localizado California Press, 1991.
O intenso sofrimento e o adoecimento dos tra- no indivíduo, mas na intersecção de corpos, mentes e 11. MEDINA, L. C. El
sufrimiento en la catástrofe:
balhadores nos mais diversos setores e segmentos culturas10, estruturado em uma “ordem socioespacial orientaciones para una agenda
sociais e econômicos são crescentes e tratam das e intersubjetiva”11. O processo desse sofrimento acaba de investigación en perspectiva
relacional. Rev. Márg. Esp. Arte y
vivências de precarização do trabalho, de assédio por repercutir, ainda que sob modos e formas diferentes, Soc. v. 11, n. 15, p. 49-56, 2014.
Disponível em: https://revistas.
moral, de ausência do coletivo de trabalho, de soli- tanto em aspectos privados quanto em aspectos coletivos, uv.cl/index.php/margenes/article/
viewFile/304/271. Acesso em: 21
dão, de tentativas e atos contra a própria a vida, de emergindo de formas objetivas ou subjetivas, atravessando abr. 2020.
acidentes de trabalho provocados ou intensificados a totalidade das esferas da vida contemporânea. Os efeitos
pela organização do trabalho, de vulnerabilidade, gerados pela pandemia do novo coronavírus apenas
Tarsila do Amaral –
de submissão e ameaças diante do risco de perda do intensificam a precarização estrutural do trabalho que Segunda Classe, 1933
emprego, entre diversos outros temas8. Diante disso, já estava em curso no Brasil, potencializando a perda Óleo sobre Tela
os profissionais são constantemente confrontados com dos objetos sociais e a fragilização das instituições que 110 x 151 cm
Coleção particular,
um modo de adoecimento diferente do tradicional, deveriam oferecer suporte e proteção. São Paulo.
caracterizado por um mal-estar vago, uma dificuldade
de agir, aspectos depressivos e problemas comporta-
mentais. As demandas também mudaram; trata-se de
desempregados crônicos ou de pessoas com perdas
de objetos sociais e a contextualização do trabalho
contemporâneo se apresenta como pano de fundo
para o fenômeno do sofrimento social, fundamentado
em um profundo sentimento de insegurança. Assim,
sofrimento social é caracterizado pela perda da con-
fiança tripla: perda da confiança no outro, perda de
confiança em si mesmo e da sua dignidade de existir e
perda da confiança no futuro, que se torna ameaçador.
O termo ‘sofrimento social’ expressa uma dor
que não é localizada. Traduzida por Furtos9, como
‘uma dor da existência’, atrelada ao sofrimento social,
de origem social, relacionada com a solidão e com o
desamparo. Outro elemento importante nessa análise
244

Considerações finais novo contexto vivenciado enfatizam o desempenho


As mudanças no capitalismo ocorridas nas últi- imediato, a produção em curto prazo e os resultados
mas décadas transformaram não só a economia como do saldo final, estabelecendo uma competição fictícia
também as políticas públicas e sociais do Brasil e do como estratégia de reforço do trabalho em equipe.
mundo. A pandemia acelerou esse processo e de- Os resultados disso tudo degradam e isolam cada vez
mandou medidas controversas: de um lado, a busca mais a compreensão sobre seus efeitos na saúde dos
exacerbada da proteção do econômico a qualquer trabalhadores expostos a adoecimentos, padecimen-
custo; de outro, a negação da ciência e das orientações tos, precarizações, desregulamentações e assédios
sanitárias. Os resultados desta profunda crise que travestidos de ferramentas de gestão.
vivenciamos são os dados alarmantes de mortalidade Observa-se ainda o estabelecimento de ferramen-
em agosto de 2020, que ultrapassam 104.752 mortes tas contraditórias que negam o discurso autoritário,
por Sars-CoV-2. aliando a produção a um critério de participação e
As estratégias governamentais para enfrentar a permitindo a liberdade de mudança momentânea em
crise e alcançar desenvolvimento econômico e finan- processos de trabalho. Esse processo geralmente é
ceiro encontram-se alicerçadas nas privatizações, na intensificado entre trabalhadores terceirizados, que
destituição de direitos, na (des)proteção social e na apresentam maior vulnerabilidade decorrente do
desregulamentação das economias, impactando na desamparo jurídico-assistencial, do menor poder
mundialização do capital. aquisitivo, do vilipêndio ao acesso restrito a serviços de
Considerando-se este cenário de intensas trans- promoção e de assistência em saúde e da inexistência
formações e instabilidades do universo do trabalho e de representação política no setor.
de seus efeitos indiscutíveis sobre a saúde dos trabalha- Finalmente, usufruindo-se da analogia de Li-
7
dores, objetivamos problematizar os processos de pre- nhart , percebemos os trabalhadores como pequenas
carização do trabalho como propulsores do sofrimento pétalas de rosas sobre o mar em grandes marés, que
social, agudizados pela pandemia do Sars-CoV-2. O sozinhos nada podem fazer. Afinal, este é o drama dos
período pós-pandemia torna-se preocupante; con- trabalhadores no mundo do trabalho atual: eles são
siderando as perspectivas de enfrentamento desta confrontados sós e são atingidos em suas identidades.
profunda crise global, a pandemia revelou modos de Também é importante estar atento ao fato de que nem
precarização aos quais os trabalhadores encontram-se mesmo os empregados registrados estão salvos das
perversamente submetidos e, com ela, os impactos na consequências psicológicas – e físicas – resultantes
saúde mental e nas expressões do sofrimento social dos novos modelos de gestão, das perdas de direitos
dos trabalhadores. instituídas no Brasil e, mais recentemente, dos efei-
No contexto da pandemia, essas desigualdades tos gerados pela pandemia do novo coronavírus. Os
e vulnerabilidades se tornaram ainda mais evidentes, trabalhadores foram levados a sentir a insegurança de
cruelmente amplificando às últimas consequências suas próprias competências, sendo eles ocupantes de
os modos de sofrimento social e adoecimentos dos cargos de chefia ou subordinados. A marca da avaliação
trabalhadores e trabalhadoras. Do ponto de vista do contínua que os compara nos desempenhos e julga-
trabalho, a forma da gestão administrativa, surgida a mentos é uma exigência explícita da administração
partir da instalação do trabalho flexível e potenciali- contemporânea, que tem como marca a ultraexplo-
zada por meio do trabalho remoto que se impôs pela ração dos trabalhadores em nome da excelência e
Covid-19, acabou impondo também um novo leque a capacidade permanente de ir além, extraindo a
de aptidões portáteis no qual se deve julgar a tarefa mais-valia plena – restando-lhe provar que merece o
imediata, distanciar-se de relacionamentos preesta- lugar que ocupa quem se convencer do próprio mere-
belecidos, produzindo e alterando regras na medida cimento. Esse processo pode se tornar uma catástrofe
em que o trabalho ocorre. Assim, o desempenho na subjetividade do trabalhador que, por medo de
passado não serve mais como guia para a recompen- enfrentá-lo, aprisiona-se a uma sensação permanente
sa ou o reconhecimento presente. A economia e o baseada na tríade ansiedade-angústia-medo.
245

O trabalho superexplorado como


determinação social do processo saúde-doença
no contexto latino-americano
Daniele Correia

O conceito de determinação social do processo De acordo com Breilh2, a perspectiva de DSS


saúde-doença construído a partir dos anos de 1970 é representa uma abordagem reducionista, ao ocultar ca-
de suma importância na formação da epidemiologia tegorias analíticas das ciências sociais, como reprodução
social latino-americana e na história do movimento social, modos de produção e relações de produção, e
sanitário brasileiro. Isso porque questiona a aborda- torna difícil proporcionar um pensamento crítico direto
gem biomédica da doença, em um importante movi- sobre a essência da organização social da sociedade
mento de produção científica da medicina social na de mercado e do regime de acumulação capitalista,
América Latina, demarcando a importância do campo por meio dos processos de geração e reprodução da
de conhecimento da saúde coletiva. Também, esse exploração humana e da natureza e as suas marcadas
conceito busca compreender e explicar a causalidade consequências na saúde. Assevera o autor que as ‘causas
dos principais adoecimentos. estruturais’ das desigualdades sociais em saúde, apesar
Tal abordagem empenhou-se na elaboração de um de assumirem uma posição de maior relevância, ainda
pensamento social da saúde, em contraposição crítica aparecem como abstrações esvaziadas de conteúdo crí-
à abordagem positivista da história natural da doença. tico e de movimento. Impossibilitam, também, a análise 1. ALMEIDA-FILHO, N. A proble-
Substancialmente marcada por referenciais de produ- do processo radical de acumulação econômica-exclusão mática teórica da determinação
social da saúde. In: NOGUEIRA,
ções vinculadas ao materialismo histórico, ancorou do social como eixo de uma reprodução ampliada das R. P. (Org.). Determinação Social
da Saúde e Reforma Sanitária.
pensamento marxista o trabalho como categoria central desigualdades sociais em saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2010.
no modo de produção capitalista, em que a produção e Requerem-se, portanto, enfoques analíticos capa- 2. BREILH, J. La determinación
a reprodução social conferem características no modo de zes de compreender de modo totalizante o processo social de la salud como herra-
mienta de transformación hacia
viver, adoecer e morrer da classe trabalhadora. saúde-doença, articulando as relações, especificidades e una nueva salud pública (salud
colectiva). Rev. Fac. Nac. Salud
É importante ressaltar que a abordagem da formas das condições materiais e objetivas determinadas Pública, Medellín, v. 31, supl. 1,
p. 13-27, 2013. Disponível em:
determinação social do processo saúde-doença, socialmente. Assim, expõe-se a relevância de reconstruir http://www.scielo.org.co/scielo.
apesar de ocupar centralidade nos debates das e interpretar a totalidade social, tornando visíveis os php?script=sci_arttext&pid=S-
0120-386X2013000400002.
relações entre saúde e sociedade, entrou para a processos sociais essenciais e desenvolvendo aproxi- Acesso em: 18 dez. 2020.

agenda política a partir de uma perspectiva teórico- mações que permitem decifrar a realidade concreta3. 3. ARELLANO, O. L., et al. Los
determinantes sociales de la
-metodológica distinta da concebida pela medicina Desse modo, reconhecemos que a configuração salud. Una perspectiva desde
el Taller Latinoamericano de
social/ saúde coletiva latino-americana. Passou-se a de como vivem, adoecem e morrem os grupos sociais Determinantes Sociales de la
designar o marcador Determinantes Sociais da Saúde está diretamente atrelada às condições materiais de Salud ALAMES. Med Soc. v. 3,
n. 4, p. 323-335, 2008.
(DSS), cujo foco principal de análise incide sobre produção e de reprodução social que se expressam em 4. MARINI, R. M. Subde-
a desigualdade social, por meio da constatação de contradições e particularidades históricas, ocupando a senvolvimento e Revolução.
Florianópolis: Insular, 2013.
importantes disparidades nas condições de vida e América Latina um lugar de dependente, ou seja, uma
de trabalho, no acesso diferenciado a serviços as- inserção subordinada e espoliada no interior da ordem
sistenciais, na distribuição desigual de recursos de mundial constituída do modo de produção capitalista,
saúde e nas suas repercussões sobre a morbidade em que a propriedade privada e a apropriação desigual
e mortalidade entre os diferentes grupos sociais1. da riqueza socialmente construída estão assentadas
A citada deturpação conceitual se dá, em grande na superexploração da força de trabalho4.
parte, por consequência da criação, em 2005, da Co- As desigualdades sociais se expressam e incidem
missão para os Determinantes Sociais da Saúde (CDSS), sobre o processo saúde-doença de maneira mais ou
alavancada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). menos exacerbada a depender do momento do desen-
Essa Comissão convoca autoridades dos países para a volvimento do capitalismo. Na atual fase desse modo
necessidade de práticas coletivas objetivando combater de produção, deterioram-se as condições de vida da
as expressivas desigualdades em saúde. população em processos articulados, em que estão
246

cada vez mais presentes o incremento da pobreza e e sociais aliadas as condições de trabalho, incidirão
das desigualdades socioeconômicas, o desemprego em diretamente no modo de adoecer e morrer da classe
massa e o aumento da informalidade com trabalhos trabalhadora. A classe trabalhadora está submetida
5. ANTUNES, R. O Privilégio de extrema vulnerabilidade5. às condições objetivas das esferas de produção que
da Servidão: o novo proletariado
de serviços na era digital. São Esse quadro resulta de uma economia absolu- buscam o aumento da produtividade, da reprodução
Paulo: Boitempo, 2018.
tamente subordinada, direta ou indiretamente, aos ampliada do capital em detrimento da saúde daqueles
6. OLIVEIRA, F. Crítica à razão
dualista / O ornitorrinco. São
movimentos do capital internacional. Ou seja, há que vivem da venda da força de trabalho.
Paulo: Boitempo, 2008. uma grande aliança entre o poder público, o capital A superexploração da força de trabalho é uma
7. MARINI, R. Dialética da nacional e o internacional, no sentido de garantir categoria fundamental da dependência, representan-
dependência. Petrópolis-RJ:
Vozes, 2000. as atividades produtivas privadas, o que resulta em do um regime brutal típico das economias latino-a-
8. LUCE, M. S. Teoria Marxista uma dinamização da reprodução ampliada do capital. mericanas dependentes, estruturadas em jornadas
da Dependência. São Paulo:
Expressão Popular, 2018. Ao se manter esse sistema, temos uma unidade de de trabalho mais extensas e níveis salariais abaixo
contrários, em que o chamado ‘moderno’ cresce e das economias dominantes, representando uma
se alimenta da existência do ‘atrasado’6. Esse ‘atraso’ determinação social que incide diretamente nos
seria uma produção da expansão do capitalismo, processos saúde-doença7.
tendo a dependência latino-americana se configurado Em suma, a superexploração da força de traba-
para atender às necessidades por uma reserva de lho possui três pressupostos intrínsecos; passam pelo
acumulação do capital. prolongamento da jornada de trabalho, intensificação
Assim, a classe trabalhadora, que é o agente do trabalho dentro da jornada e redução do salário
gerador de riqueza do País, vê-se expropriada de seu abaixo do valor da força de trabalho. Entretanto,
trabalho, de modo a garantir os interesses dos setores a superexploração da força de trabalho não se re-
dominantes da sociedade brasileira, além de garantir sume à elevação da produtividade ou aumento e
os interesses dos setores estrangeiros. Portanto, a intensificação da jornada, constitui uma categoria
economia capitalista brasileira organizou-se por meio inédita por ancorar no sistema de acumulação das
da expropriação dos trabalhadores, exaurindo suas economias dependentes, tendo como materialidade
capacidades física, psíquicas, emocionais e cognitivas. o tecido social latino-americano7.
Isso é acentuado a partir dos anos 1970, com o Não se trata de falta de desenvolvimento, ao
acirramento da competição pelo mercado mundial, o passo que o desenvolvimento e o subdesenvolvi-
que gerou profundas transformações nos processos mento não são processos desvinculados nem um
produtivos e nos processos de trabalho do País. continuum separado pelo tempo e superável por
Apresentou-se uma crise do modelo de produção políticas econômicas. A industrialização em si, sem
taylorista/fordista, no qual é caracterizado pela pro- a ruptura com as estruturas socioeconômicas do-
dução em massa e pelo trabalho especializado, sendo minantes, não seria capaz de levar à superação das
baseado em linha de produção. No Brasil, embora enormes mazelas em nossas formações sociais, mas
ainda não esteja totalmente superado, cedeu lugar ao produziria formas renovadas da dependência. A
chamado modelo de acumulação flexível (conhecido condição econômico social da América Latina não
também como toyotismo), com características de se dá pela falta de capitalismo, sendo uma maneira
produção a partir da demanda, produzindo somente particular em que o capitalismo se reproduz, nas
o necessário, no tempo e quantidade necessária – quais as classes dominantes procuram compensar
este processo é conhecido como just in time. sua desvantagem na competição intercapitalista su-
A introdução de trabalho virtual em escala am- perexplorando os trabalhadores8.
pliada significa à classe trabalhadora a perda gradativa Acrescem-se à análise os determinantes sociais
do controle sobre o fazer do trabalho, sobre o saber e os condicionantes aos quais está submetida a classe
operário. O objetivo dessa mudança nos processos trabalhadora, no acesso aos direitos sociais, o qual
produtivos e de trabalho é a busca de maior valoriza- vivenciamos significativos e lamentáveis retroces-
ção do capital, imputando ao trabalhador um ritmo sos: congelamento dos investimentos com saúde e
e velocidade do trabalho controlados pelo processo educação, contrarreforma trabalhista, aumento da
produtivo, a fim de manter alta produtividade e informalidade que nos retira ainda mais possibilidades
crescente aumento da taxa de lucro. de resistência, entre outras pautas que incidem dire-
Logo, o trabalho é uma categoria central na socie- tamente na reprodução social da classe trabalhadora.
dade; e as condições de vida em que estão submetidas Essas determinações históricas e sociais, aliadas
a classe trabalhadora, das determinações históricas às condições de trabalho, incidirão diretamente no
247

modo de adoecer e morrer da classe trabalhadora.

Foto: Jonathan McIntosh/Wikimedia Commons


Mesmo com uma expressiva invisibilidade dos dados,
o Brasil apresenta as mais altas taxas de acidentes e
doenças do trabalho do mundo. Entre os adoecimen-
tos causados pelo trabalho, merecem destaque as
Lesões por Esforços Repetitivos e os Distúrbios Os-
teomusculares Relacionados ao Trabalho (LER-Dort),
os agravos à saúde mental, o câncer relacionado
com o trabalho, as intoxicações por agrotóxicos,
entre outros. Vale ressaltar a esmagadora quantidade
da população trabalhadora brasileira submetidas a
trabalhos informais, o que significa que esse grupo
populacional possui como proteção social o SUS e
a assistência social (políticas sociais já tão desman-
teladas e subfinanciadas), mas não está respaldado
pela previdência social. No mais, é importante considerar que a classe
Em síntese, os adoecimentos resultantes dos pro- trabalhadora muitas vezes desconhece os riscos aos
cessos produtivos e de trabalho passam pelo estresse quais está exposta, além de não perceber a intrínseca
intenso decorrente da cobrança por produtividade e relação entre adoecimento e os processos de trabalho
do cumprimento de metas; das longas jornadas de desempenhados ao longo de sua vida produtiva. Esse
trabalho, do trabalho monótono, repetitivo e vazio de fato aumenta a responsabilidade dos órgãos gover-
sentido que somatizam o adoecimento físico e mental; namentais, dos serviços de saúde, do controle social
maquinários obsoletos; introdução de matérias-pri- e do movimento sindical/de trabalhadores(as) em
mas e agentes químicos nocivos à saúde; ambientes disseminar conhecimento para garantia dos direitos
insalubres com excesso de luz, som e calor e uma fundamentais e por uma nova sociabilidade, na qual
profunda desproteção social. o trabalho não adoeça e não mate.

De volta para o passado: o futuro do


trabalho
Ary Carvalho de Miranda
Anamaria Testa Tambellini

Discutir o trabalho na perspectiva futura, lastre- formações desde a Assim Chamada Acumulação Pri-
ado na história passada, coloca uma série de questões mitiva1, em que Marx escrutina as origens do capital, 1. MARX, K. O Capital. São
Paulo: Abril Cultural, 1983.
para definir esse passado, que poderia ser o trabalho mostrando como, na história real, a subjugação, o
nas comunidades tribais primitivas; o trabalho escravo assassinato para roubar e a violência sobre o cam-
dos impérios grego e romano; o trabalho servil do pesinato de então, no último terço do século XV e
sistema feudal ou o trabalho sob a dominação do início do XVI, desempenham o papel principal uma
capital. A opção foi resgatar o trabalho a partir do vez que, despojando o trabalhador de sua propriedade
capitalismo, fundamentalmente porque é a primeira dos meios de produção e dos produtos que produzia,
vez na história da humanidade que se constitui uma que garantia sua vida e de sua família, cria a base do
classe, pelas contradições do próprio sistema, com modo de produção capitalista, lançando uma massa
identidade social universal, capaz de colocar a luta de proletários livres como pássaros no mercado de
de classes em perspectiva de superação do sistema. trabalho pela dissolução dos séquitos feudais1. Des-
Desse modo, deve ser compreendido em seu se modo, não resta alternativa ao trabalhador a não
processo histórico, que engendra uma série de trans- ser vender sua força de trabalho que pertencerá aos
248

Foto: Mariza Gomes de Almeida/Acervo Cesteh

capitalistas, donos também dos meios de produção. produção. No entanto, o trabalhador ainda detém,
Sob o domínio capitalista, os processos de tra- nessa fase, o domínio sobre o processo de traba-
balho sofreram diversas transformações decorrentes lho, embora já submetido ao comando do capital.
da luta de classes, assim como pelo papel da ciência, Entretanto, esse processo de trabalho ainda possui
cujo direcionamento passa a se dar em função do base técnica estreita com relação às necessidades de
desenvolvimento tecnológico, fundamental aos in- produção ampliada, inerente à lógica da acumulação
teresses do capital e sua ampliação. de capital. O desenvolvimento de máquinas, criando
No entanto, se o trabalho surge na ontologia do a revolução industrial, supera essa limitação.
ser social como categoria qualitativamente nova com Tendo sua origem situada entre 1780-1800,
relação às formas anteriores do ser, nessa novidade, aciona o capitalismo em passos de gigante; e, como
2. LUKÁCS, G. Para Uma sustentam Marx e Engels, no Manifesto do Partido
Ontologia do Ser Social II. São [...] ele é a única forma existente de um ente teleolo-
Paulo: Boitempo, 2013. gicamente produzido, que funda, pela primeira vez, Comunista3, a burguesia obriga, sob pena de mor-
3. MARX, K., et al. O Manifesto a peculiaridade do ser social [...], fazendo com que a te, todas as nações a adotarem o modo burguês de
do Partido Comunista. São
Paulo: Anita Garibaldi, 1989.
consciência que orienta a transformação e reformula- produção, impelindo-as a abraçar o que ela chama
ção da natureza, não pode ser mais, do ponto de vista de civilização. Dizem os autores: cria o mundo à sua
ontológico, um epifenômeno2(61). imagem e semelhança. E como necessidade essencial
É sobre essa sociabilidade que mostramos suas e força motriz de seu desenvolvimento, o capitalismo
transformações. Na forma inicial do desenvolvimento faz surgir o proletariado que, por sua universalidade,
capitalista, em que os trabalhadores trabalham lado leva a termo o conhecimento da realidade social, pela
a lado e conjuntamente, no mesmo processo ou em primeira vez na história.
processos de produção diferentes, mas conexos, Marx Esse processo faz com que o século XIX conso-
denomina de Cooperação Simples, e enfatiza que esta lide a grande indústria. É um processo que permite,
é a primeira modificação que o processo de trabalho além de cada vez mais estender a jornada de trabalho,
real experimenta pela sua subordinação ao capital1. que pode chegar até 16 horas diárias, inserir as crianças
Esta forma de organização do trabalho conforma- e as mulheres, até então vinculadas fundamentalmente
-se classicamente na manufatura que vai até o último ao trabalho doméstico. É um fenômeno que permite
terço do século XVIII, inaugurando a divisão técnica do baratear o valor da força de trabalho uma vez que a
trabalho, retirando do trabalhador o desenvolvimento família inteira passa a ser explorada. As manufaturas
de seu ofício, e conferindo a ele tarefas parciais na de metal em Birmingham empregavam, para traba-
249

lhos pesados, 30 mil crianças e 10 mil mulheres. Nos do trabalhador na esteira rolante e, com isso, impõe 4. THOMPSON, E. P. A
Formação da Classe Operária
anos de 1860, também na Inglaterra, o trabalho na um ritmo ininterrupto ao processo de trabalho. Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1989.
mineração e na produção de carvão nas olarias ia das No pós-Segunda Guerra, os novos métodos de
5. POCHMANN, M. Desesta-
4 horas até às 21 horas1. produção fordista se ‘universalizam’ constituindo e bilização do Trabalho. Saúde
Os processos políticos sustentavam todo este consolidando o trabalhador coletivo fabril, que será debate, v. 42, esp. 3, p. 67-77,
2018.
curso histórico. Se a economia mundial capitalista componente significativo na organização das lutas 6. TAYLOR, F. W. Princípios da
foi estruturada pela revolução industrial inglesa, sua dos trabalhadores no enfrentamento com o capital Administração Científica do Tra-
balho. São Paulo: Atlas, 1971.
política e ideologia o foram pela Revolução Francesa, por intermédio da organização sindical7.
7. ANTUNES, R. Adeus ao
em fins do século XVIII, que abre as portas para o Ainda no século XX, na Grande Depressão iniciada Trabalho? São Paulo: Cortez,
1995.
arranque do capitalismo. Foi um processo que teve em 1929, o mundo do trabalho experimentou importantes
8. POCHMANN, M. Brasil Sem
também grande participação do campesinato e dos alterações, com significativas conquistas aos trabalhadores. Industrialização: a herança
demais movimentos em defesa dos trabalhadores, Generalizaram-se os contratos de trabalho com repartição renunciada. Ponta Grossa:
UEPR, 2016.
embora sem organicidade e força política para he- dos ganhos de produtividade menos desigual. Embora 9. GOMES, C. Projeto Nacional.
gemonizar a Revolução. Assim, sob o protagonismo centralizada nas economias de capitalismo avançado, não São Paulo: Casa dos Mundos/
LeYa, 2020.
burguês, logo após a queda da Bastilha, a estrutura deixou de se manifestar também em países de industria-
rural feudal francesa havia desmoronado e estava, lização tardia, ‘como no Brasil’ [grifo nosso]8.
então, pavimentando política e ideologicamente o Esse fenômeno do mundo do trabalho, no período
caminho para a consolidação do capitalismo. considerado, era predominante nos países do capitalismo
Todavia, todo esse quadro de exploração econô- mais avançado, embora com reflexos nas economias
mica e domínio político burguês impulsionava, por coloniais. No Brasil, até fins do século XIX, o processo
outro lado, a organização e a resistência dos trabalha- produtivo estava ancorado no trabalho escravo no campo,
dores contra tanta espoliação. Marcado sempre pela que alimentava a dinâmica capitalista europeia. A migração
repressão das classes dominantes, esses movimentos de trabalhadores europeus, com a vinda dos portugue-
levavam a uma tradição ilegal de resistência, como no ses, italianos e espanhóis, principalmente, no final do
caso dos ‘ingleses unidos’, no final dos anos 1790; da século XIX e início do século XX, traz um contingente de
‘Lâmpada Negra’, em 1802, que era capaz de reunir em trabalhadores livres em relação aos meios de produção,
uma sexta-feira, à noite, cerca de 200 trabalhadores4, aptos a se tornarem assalariados da indústria emergente.
ou do movimento luddista, em 1811, que destruíam No entanto, é a partir dos anos 1930 que o País
máquinas. O luddismo, derivado do operário têxtil acelera sua industrialização, com a fundação da Com-
Ned Ludd, vai sendo superado não só pela repressão panhia Siderúrgica Nacional (1941), da Companhia
das classes dominantes, mas pela compreensão dos Vale do Rio Doce (1943) e da Companhia Hidrelétrica
próprios trabalhadores de que a máquina não era a do São Francisco (1945). Posteriormente, são criados
sua inimiga, mas, sim, o uso que o capital fazia dela. o BNDES (então BNDE, 1952), a Petrobras (1953) e
É no escopo de todo esse movimento que se a Eletrobras (1962). Ainda, na década de 1950, dois
dá a formação da ‘classe operária’, no período 1790- terços dos recursos do Plano de Metas do governo
1830, revelada na consciência de uma identidade era dedicado à construção da rede de transporte e
de interesses entre todos esses diversos grupos de energia. Ainda que sobre a brutal ditadura militar, o
trabalhadores, contra os interesses de outras classes4. País dobrou seu PIB em um espaço de 7 anos e teve
Nesse processo histórico é que se constroem um crescimento extraordinário de 10,7% em média ao
os sindicatos como os centros organizadores dos ano9. Essa dinâmica desenvolvimentista foi também
assalariados contra o capital. Ainda assim, até o final fomentada no II Plano Nacional de Desenvolvimento
do século XIX e início do século XX, as conquistas (II PND), lançado em 1974, que tinha como objetivo
sindicais, apesar de importantes, foram relativas5. estimular a produção de insumos básicos, bens de
Na virada do século XIX ao XX, é inaugurada a capital, alimentos e energia. Ao final desses 50 anos,
Administração Científica do Trabalho, formulada por entre 1930-1980, o Brasil atinge seu mais alto grau
Taylor6. Esse fenômeno tecnológico-organizacional de desenvolvimento econômico, chegando a ter na
estabelece um conjunto de princípios orientadores industrialização um terço do PIB nacional. Hoje, a
que irão aperfeiçoar a forma de dominação produtiva indústria atinge níveis de 1910, contribuindo com
do capital por meio do controle dos tempos e movi- 9% do PIB9.
mentos dos trabalhadores no processo de trabalho. Importa destacar que esse crescimento esconde
Ford, nos anos 1910, aperfeiçoa o taylorismo combi- também as desigualdades sociais, ao mesmo tempo
nando o parcelamento das atividades com a fixação que faz crescer o operariado e a força do movimento
250

10. HARVEY, D. Condição sindical, de tal forma que, no início dos anos 1980, tivemos A concessão de hipotecas e crédito pessoal para as clas-
pós-moderna. São Paulo:
Loyola, 1998. uma taxa de sindicalização de 32%, a maior de nossa histó- ses média e trabalhadora derramou para o ‘subprime’
montanhas de dinheiro privado. [...]. Quando a farra
11. MATTOSO, J. A Desordem ria, enquanto hoje, com a desindustrialização acentuada,
do Trabalho. São Paulo: Página acabou e o dinheiro privado evaporou, com o colapso
Aberta, 1995. temos 14%, importante componente do enfraquecimento do sistema bancário, a besta estava ferida de morte12(25).
12. VAROUFAKIS, Y. O da luta orgânica dos trabalhadores.
Minotauro Global: a verdadeira Com o Golpe de 2016, que alçou Michel Temer à Esta crise, fez com que a dívida do setor
origem da crise financeira e o
futuro da economia global. São presidência da república, foram aprovadas duas medidas financeiro passasse de 22% do PIB, em 1981, para
Paulo: Autonomia Literária, 2016.
que atingem fortemente os direitos sociais e a organicidade 117%, em 2008, nos EUA. “Ainda, neste meio tem-
13. ANTUNES, R. O Privilégio
da Servidão. São Paulo: dos trabalhadores. São elas: a EC 95, de 15 de dezembro po, os cidadãos dos EUA viram sua dívida aumentar
Boitempo, 2018.
de 2016, e a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467, de 2017) de 66% para 100% e, como um todo e a dívida
14. STANDING, G. The Pre-
A EC 95 determina que, a partir de 2018, as agregada, em 2008, excedeu 350% do PIB, quando
cariat. Nova York: Bloomsbury,
2011. despesas federais só poderão aumentar de acordo em 1980 estava em 160%”12(34).
com a inflação acumulada conforme o Índice Nacional Essa crise atingiu o mundo. Apesar do impacto
de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e define que devastador que teve sobre o nível de emprego e pa-
vigorará por 20 anos, congelando os investimentos drões salariais dos trabalhadores, as políticas neoli-
sociais já subfinanciados, como educação, saúde, habi- berais seguiram como vetor orientador da economia
tação e outros. Com isso, concedem aos interesses da política, e seus efeitos provocam, atualmente, uma
iniciativa privada os projetos sociais que deveriam ser importante reconfiguração no padrão das classes
atributo do Estado. Já a Reforma Trabalhista estabelece sociais, deslocando os trabalhadores do chão de fá-
cláusulas que sistematicamente abrem espaço para o brica para o comércio, telemarketing, uberização,
aumento da exploração dos trabalhadores, perda de pejotização, trabalho informal, contrato zero hora
direitos trabalhistas e fragilização de suas organizações e para o desemprego, fazendo configurar a precari-
sindicais, tais como o ‘negociado’ prevalecendo sobre zação estrutural do mundo do trabalho, que retira
o ‘legislado’, mesmo que em prejuízo ao trabalhador. a sociabilidade do trabalhador e sua representação
A partir da primeira metade da década de 1970, sindical13. Ademais, o capitalismo informacional e
diversos fatores iniciam o enfrentamento ao for- digital, coadunando-se com a chamada indústria 4.0,
dismo, com grandes transformações na economia criada na Alemanha em 2011, intensifica processos
política que representam os primeiros ímpetos da produtivos automatizados e, assim, deslocando cada
passagem para um regime de acumulação inteira- vez mais o trabalhador do emprego. Essa nova fase
mente novo, associado com um sistema de regula- inaugura a automação industrial com a hegemonia
mentação política e social bem distinta10. informacional-digital no mundo produtivo, com os
A era que se inicia, ou seja, a reestruturação pro- celulares, tablets, smartphones e assemelhados con-
dutiva, impõe uma tendência que flexibiliza os proces- trolando, supervisionando e comandando essa nova
sos de trabalho e as formas contratuais. Os contratos etapa da ciberindústria do século XXI13.
coletivos deram lugar a diversas formas de contrato que Nesse processo, o capitalismo expande a pre-
se flexibilizam em: trabalho temporário, terceirizações, carização estrutural do mundo do trabalho e cria
tempo parcial, autônomos e teletrabalho, fragmentando o ‘precariado’, que não é uma classe para si, mas
e fragilizando a unidade dos trabalhadores no âmbito da uma classe em construção. Além da precariedade do
produção e, consequentemente, na luta sindical. Essas trabalho e da renda social precária, falta-lhes uma
alterações também irão afetar as negociações coletivas e a identidade baseada no trabalho. Quando empregados,
própria sociabilidade de um sistema baseado no trabalho11. eles estão em empregos sem carreira, sem tradições
Para isso, a espinha dorsal atingida, inicialmente, de memória social, um sentimento de pertencer a
foi o movimento sindical. A eleição de Margareth That- uma comunidade imersa em práticas estáveis, códigos
cher, na Inglaterra, em 1979, e de Reagan, nos Estados de ética e normas de comportamento, reciprocidade
Unidos da América (EUA), em 1980, dão sustentação a e fraternidade14. O perverso tratamento dado pelos
esse processo. Em seguida, sacramentam o protagonismo governos neoliberais à pandemia do novo coronaví-
do capital financeiro desregulamentado e professam um rus que estamos vivendo acentuou mais ainda este
receituário neoliberal aos países em desenvolvimento. fenômeno, com consequências ainda imprevisíveis
Os volumosos excedentes de capital dos EUA, sobre os trabalhadores.
centro da crise mundial de 2008, alimentaram as Está assim configurada parte da realidade e
aventuras financeiras. Entre os anos 1990 e 2000, a tendência do mundo do trabalho na sociedade
foram criadas grandes quantidades de valores fictícios. contemporânea.
9
Leve do altar do passado o fogo,
não as cinzas
Coordenação
Ildeberto Muniz de Almeida & René Mendes
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.12
253

‘Leve do altar do passado o fogo, não as cinzas’ 1


1. Jean Jaurès – líder socialista
francês, 1859-1914.
Ildeberto Muniz de Almeida
René Mendes

O objeto deste bloco é contribuir para o resgate de se apagar, sufocado pelas próprias cinzas, as quais
de alguns ‘princípios de fé, doutrina e prática’ do mo- têm impedido o acesso de ‘oxigênio’, ‘novos ares’, ‘ar
vimento da Saúde do Trabalhador no Brasil (valores, fresco’, capaz de reacender a chama... Ela não pode
experiências, modelos e, também, a memória de seus morrer, e nós ajudaremos a revigorá-la...
autores e praticantes...), buscando identificar a essên- Focos (‘fogos’) selecionados:
cia desses valores, resgatando o ‘fogo’ (a essência, o – Saúde do Trabalhador como expressão de
essencial). Mais fogo do que as cinzas do que restou... ‘Saúde Coletiva’ (paradigma de referência)
Porém, esse objetivo não tem o propósito de cultuar – Saúde do Trabalhador com voz e protagonismo
o passado, nem endeusar seus atores, mas de tentar dos trabalhadores
apontar a importância do resgate da essência (‘fogo’), – Saúde do Trabalhador é um processo de constru-
por, talvez ter se apagado, ou estar correndo o risco ção social que requer estratégias ousadas e renovadas.

FOCO:
Saúde do Trabalhador como
expressão de saúde coletiva
(paradigma de referência)

Saúde coletiva 1

Heleno Rodrigues Corrêa Filho


Maria Inês Monteiro
Aparecida Mari Iguti

‘Saúde coletiva’ é nome do movimento pelo Tal como os nomes impronunciáveis dados
direito à participação social direta da população or- às entidades míticas ou divinas, essa definição
ganizada, e não apenas de forma representativa, na direta não é encontrada nos textos que fazem a
formulação política e no controle das ações de saúde exegese hermenêutica e histórica do campo de
pública exercidas pelo Estado, incluindo as ações de práticas, saberes, percepções e formação discur-
prestação de serviços de saúde, vigilância à saúde, siva, surgida no Brasil, e denominada de saúde
promoção da saúde e proteção específica contra do- coletiva3-5. Deriva das concepções de saúde pública 1. CORRÊA FILHO, H. R., et al.
Saúde Coletiva. In: MENDES, R.
enças e agravos, no campo público e privado. Essa – a ‘filha da Higiene’ – vigentes no século XX, e (Org.). Dicionário de Saúde e Se-
gurança do Trabalhador: conceitos,
definição foi pronunciada por Gastão Wagner de Sousa dos movimentos pela retomada da determinação definições, história, cultura. Novo
Campos, em aula de pós-graduação em 2002, embora social e política da saúde e da doença, expressos Hamburgo: Proteção Publicações,
2018. p. 1023-5. (texto revisado e
não esteja publicada verbatim2. na concepção da medicina social criada por Lou- atualizado pelos autores).
254

is-René Villermé6 (1782-1863) e Rudolf Ludwig cooptação popular consentida ao conhecimento das
Karl Virchow (1821-1902)7-10. decisões administrativas e, em grau mais intenso, pelo
Assim como a expressão ‘determinação social’ controle político e financeiro direto por Conselhos
colocou-se em disputa quanto a ser formulada por populares comunitários, estaduais e nacionais4.
categorias da Economia Política ou da Antropologia e A conceituação de saúde coletiva é decorrência das
da Psicologia Social11,12, a denominação da formação formulações críticas à prestação de serviços de saúde,
discursiva proposta pela saúde coletiva também ficou fundamentalmente, ao complexo de prestação de cui-
em tensão quanto ao seu significado e conteúdo13,14. dados médicos e hospitalares, que foram contrapostos
A luta pelo poder popular participativo direto na por vários movimentos de transição denominados de
organização, planejamento, e controle das ações de saúde da comunidade, medicina preventiva e, às vezes,
Saúde Pública foi distendida, a partir dos anos 1960, medicina social, relembrando Villermé8 e Virchow6,22-25.
em definições que buscam adjetivos de ordem social, A definição de saúde coletiva é um campo em
histórica, filosófica4,15,16. Os movimentos de Medicina disputa pelas forças sociais que impõem maior capa-
Preventiva e Social e da Medicina Comunitária são cidade de poder de decisão nas políticas de saúde
vertentes organizativas e políticas do reconhecimento ou as submetem à conjuntura social e política do
das populações como atores sociais na construção das possível3,26-28. Participação social é uma expressão
condições de vida e saúde no período 1950-198017-21. muito ampla que abrange papéis passivos e ativos da
Foram construídas, no mundo acadêmico e da população nas políticas de saúde e resultam da divisão
gestão das políticas de Saúde, várias hierarquias de compartilhada do poder do Estado, que nunca resulta
participação, que vão da mera informação para a de uma simples decisão de conceder.

2. CAMPOS, G. W. S. Saúde pública e saúde coletiva: 11. GARBOIS, J. A., et al. Determinantes sociais da 21. SAN MARTIN, H. Salud y enfermedad: Ecología
campo e núcleo de saberes e práticas. Ciênc. Saúde Colet., saúde: o social em questão. Saúde Soc. v. 23, n. 4, p. Humana, Medicina Preventiva y Social. 3. ed. México:
v. 5, n. 2, p. 219-230, 2000. Disponível em: http://www.scielo. 1173-82, 2014. La Prensa Medica Mexicana, 1975.
br/pdf/csc/v5n2/7093.pdf. Acesso em: 20 set. 2017.
12. NOGUEIRA, R. P. (Org.). Determinação social da 22. DONNANGELO, M. C. F. Medicina e Sociedade (O
3. SOUZA, L. E. P. F. Saúde Pública ou Saúde Coletiva? Saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: Cebes, médico e seu mercado de trabalho). São Paulo: Livraria
Espaç. Saúde. v. 15, n. 4, p. 01-21, 2014. 2010. Disponível em: http://www.cebes.org.br/media/ Pioneira. 1975.
File/Determinacao.pdf. Acesso em: 24 set. 2017.
4. NUNES, E. D. Saúde Coletiva: história de uma ideia e de 23. NUNES, E. D. Medicina Social: aspectos históricos
um conceito. Saúde Soc. v. 3, n. 2, p. 5-21, 1994. Disponível 13. NAVARRO, V. What we mean by social determi- e teóricos. São Paulo: Global. 1983.
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5. DONNANGELO, M. C. F. Medicina e estrutura
social: o campo de emergência da medicina comunitária 14. Centers for Disease Control and Prevention. Social 25. NUNES, E. D “Saúde Coletiva: uma história recente
(1976). São Paulo: USP, 1976. Determinants of Health – Know what affects health. de um passado remoto”. In: CAMPOS, G. W. S., et
2014. Disponível em: https://www.cdc.gov/socialdetermi- al. (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro:
6. Louis-René Villermé Archive – Marxists Org. 1821. nants/index.htm. Acesso em: 24 set. 2017. Hucitec; Fiocruz, 2006. p. 295-315.
Disponível em: https://www.marxists.org/archive/villerme/
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Saudáveis. Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. em tempos de crise econômica, ajuste fiscal e reforma
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articles/PMC1698167/. Acesso em: 24 set. 2017.
16. OSMO, A., et al. O campo da Saúde Coletiva no 27. IRIART, J. A. B. Autonomia individual vs. proteção
8. VILLERMÉ, L. R. Les enfants et la fabrique au XIX Brasil: definições e debates em sua constituição. Saúde coletiva: a não-vacinação infantil entre camadas de
siècle. Extrait du rapport Villermé, 1840. Risque sécurité Soci, v. 24, n. 1, p.205-18, 2015. Disponível em: http:// maior renda/escolaridade como desafio para a saúde
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Acesso em: 24 set. 2017. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.
28. FAGNANI, E. O fim do breve ciclo da cidadania so-
9. CENTRE VIRCHOW-VILLERMÉ. Virchow & Villermé. 18. KLOETZEL, K. As bases da Medicina Preventiva. cial no Brasil (1988-2015). 2017. Disponível em: https://
History. 2013. Disponível em: https://virchowvillerme.eu/ São Paulo: EDART, 1973. www.eco.unicamp.br/images/arquivos/artigos/3537/
history/. Acesso em: 20 set. 2017. TD308.pdf. Acesso em: 21 dez. 2020.
19. FERRARA, F. A., et al. Medicina de La Comunidad:
10. VILLERMÉ, L. R. On prisons as they are and as Medicina Preventiva; Medicina Social; Medicina Adminis-
they should be. Des prisons telles qu’elles sont et telles trativa. 2. ed. Buenos Aires: InterMédica Editorial, 1976.
qu’elles devraient etre. Paris: Mequignon-Marvis, 1820.
20. AROUCA, A. S. O Dilema Preventivista:
contribuição para compreensão e crítica da Medicina
Preventiva. 1975. Tese [Doutorado em Ciência Médicas]
– Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1975.
Disponível em: https://teses.icict.fiocruz.br/pdf/arouca-
ass.pdf. Acesso em: 20 set. 2017.
255

FOCO:
Saúde do Trabalhador com
voz e protagonismo
dos trabalhadores

Modelo Operário Italiano 1


1. SANTOS, U. P. Modelo
Operário Italiano (de intervenção
na Saúde). In: MENDES, R.
Ubiratan de Paula Santos (Org.). Dicionário de Saúde
e Segurança do Trabalhador:
conceitos, definições, história,
cultura. Novo Hamburgo:
Proteção Publicações, 2018.
O ‘Modelo Operário Italiano’ (MOI) de inter- 1960, e não de forma espontânea. Guarda intrínseca p. 769-70. (texto revisado e
atualizado pelo autor).
venção na saúde tem raiz no desenvolvimento do relação com a política do Partido Comunista Italiano
movimento operário italiano no pós-guerra, reto- (PCI) e da principal central sindical, a Confederazione 2. GRAMSCI, A., et al. Con-
selhos de Fábrica. São Paulo:
mando na Itália a luta dos Conselhos de Fábrica, na Generale Italiana del Lavoro (CGIL), que passaram a Brasiliense, 1973.

concepção de Gramsci e Bordiga2, interrompidos dar centralidade à defesa da Saúde dos Trabalhadores 3. ENGELS, F. A situação da
classe trabalhadora na Inglaterra
durante os anos do Fascismo. Constituiu-se em uma a partir dos anos de 19605. Seu desenvolvimento (1845). Porto: Afrontamento,
1975.
poderosa força capaz de impor mudanças nas antigas centrado na participação operária, na fábrica, contou
4. BOBBIO, N., et al. Dicionário
condições de vida e trabalho criadas a partir da Revo- com a participação de intelectuais como Giovanni de Política. 12. ed. Brasília, DF:
lução Industrial, descritas com detalhes por Frederico Berlinguer (1924-2015), professor de medicina so- UnB, 2002. (v. 2.).

Engels, ainda no século XIX3. O movimento operário, cial da Universidade de Roma, senador pelo PCI por 5. BERLINGUER, G. A Saúde
nas Fábricas. São Paulo: Cebes-
entendido como o “conjunto dos fatos políticos e muitos anos, e de Ivar Oddone (1923-2011), ativo -Hucitec, 1983.

organizativos associados à vida política, ideológica e participante e principal intelectual orgânico da classe 6. ODDONE, I., et al. Ambiente
de trabalho: a luta dos trabalha-
social da classe operária”4, nasce com a indústria e operária, que, com Gastoni Marri, constitui o núcleo dores pela saúde. São Paulo:
Hucitec, 1986.
a ascensão da classe burguesa nos séculos XVIII e se que ajudou a formular e dar expressão universal ao
7. PRIVACY.it. Statuto dei lavo-
desenvolve em sua contraposição, da luta entre as modelo de intervenção para a luta dos trabalhadores ratori. Legge 20 maggio 1970, n.
classes burguesa e operária, apoiado na concepção pela saúde6. O relato dos resultados da investigação 300. Roma: Buffetti, 1980.

de Marx e Engels de que a emancipação da classe realizada em 1967, por iniciativa do PCI, que envolveu
operária, para estabelecer a igualdade de direitos, de cerca de 300 mil trabalhadores de 225 empresas5, é
deveres, e para abolir o domínio de uma classe sobre evidência do intenso processo participativo da época.
a outra, deve ser obra dela própria. Sua amplitude e força que teve seu vértice entre
O ‘modelo’ de ação italiano para preservação da 1967-1975, além de modificar a própria relação entre
Saúde, centrado no ambiente de trabalho, vem dessa sindicato e a organização do trabalhador na fábrica,
tradição, tendo como fundamento o papel central da tornando-a mais democrática e representativa, foram
fábrica e a luta do trabalhador na identificação dos capazes de mudar o ordenamento jurídico traba-
riscos, na busca de soluções e de suas validações pelos lhista e sanitário da Itália. Deu origem à Lei nº 300,
trabalhadores, recusando a tradicional delegação desse de 20 de maio de 1970, conhecida como Estatuto
papel às empresas, ou a técnicos ‘independentes’, dos Direitos dos Trabalhadores7, que estabeleceu
e superando a aceitação da monetização do risco, normas sobre a tutela da liberdade e dignidade dos
ou seja, o pagamento por trabalhar em ambiente trabalhadores, da liberdade sobre a atividade sindi-
nocivo. Sua construção nasce em meados dos anos cal nos locais de trabalho, e sobre a regulação do
256

G. P. Volpedo –
O Quarto Poder, 1901
Óleo sobre tela, emprego, cujo conteúdo é expressão da pujança do mento pela classe operária, para que seja protagonista
293cm x 545cm,
Museu do Novecento, Milão, movimento. Exemplos do conteúdo do Estatuto são: na luta contra os riscos que levam às doenças, aos
Itália. (a) art. 5º, que proibiu investigações/conhecimento, acidentes e às incapacidades, bem como para impor
pelo empregador, sobre as enfermidades por doenças modificações tecnológicas e normativas para anular o
ou acidentes do empregado e o estabelecimento de risco. O objetivo da abordagem do modelo tem como
que o controle da falta ao trabalho por doença só endereço teleológico a negociação das condições de
pode ser realizado através de serviço público, ou seja, trabalho, com a finalidade de eliminar a nocividade
não pela empresa; (b) art. 9º, que disciplina que os ambiental no mundo do trabalho. O modelo de inter-
trabalhadores, mediante suas representações têm o venção propõe a discussão em quatro partes: a primeira,
direito de controlar a aplicação das normas para a de caráter geral sobre os diversos riscos, apresenta os
prevenção dos acidentes e das doenças profissionais fatores de risco divididos em quatro grupos; na segunda
e de promover pesquisa, elaboração e implementação parte, detalha cada grupo de risco e seus efeitos na
de todas as medidas necessárias para salvaguardar sua Saúde do Trabalhador; na terceira, discute soluções
saúde e integridade física. indicadas para diminuir/eliminar riscos no ambiente
A construção do modelo de intervenção operária de trabalho; e na quarta parte, detalha a discussão
na Saúde foi fruto de intensas discussões que envol- sobre riscos químicos como poeiras, benzeno, entre
veram milhares de operários, dirigentes sindicais, outros6,7. Além da publicação que sintetiza o modelo
técnicos da saúde, médicos e psicólogos. A síntese de ação6 a criação da revista ‘Rassegna di Medicina dei
do modelo foi publicada em 1971, no ‘Manual sobre Lavoratori’, em 1968, e da ‘Medicina dei Lavoratori’,
Ambiente de Trabalho’ da Federação dos Trabalhadores em 1974, concebida como “um instrumento para a
Metalmecânicos (FLM), e reeditada em livro, no ano de conquista da hegemonia teórica e prática na luta pela
1977, com o título ‘Ambiente di Lavoro – La Fabbrica construção da saúde na fábrica e no território”5, deram
nel Território’, em que experiências da aplicação do grande impulso para o debate e o aperfeiçoamento das
método sugerido no manual, sua avaliação e aperfei- experiências desenvolvidas, e para o alargamento dos
çoamento são relatados e discutidos6. horizontes do movimento que evolui para questionar
O ‘modelo’ define ambiente de trabalho como ‘o as próprias relações de produção existentes e a neces-
conjunto das condições de produção em que a força de sidade de serem superadas.
trabalho e o capital se transformam em mercadorias e O ‘Movimento’ exerceu grande influência tam-
em lucro’. Dá centralidade à apropriação do conheci- bém entre os médicos do trabalho, que passaram a
257

atuar no interior das fábricas e em contato com os Sistema Único de Saúde (SUS), para desenvolver no
trabalhadores, antes inexistente, exceto para alguma movimento sindical a preocupação com os riscos no
demanda de tratamento. Sua força e as mudanças trabalho, e uma nova forma de combatê-los, para a cria-
legais tornaram possível outra inserção do trabalho ção de programas de Saúde dos Trabalhadores, origem
médico, fora do controle patronal. dos Centros de Referência em Saúde dos Trabalhadores
A relevância do movimento operário italiano, (Cerest), e ainda, para ampliar nas universidades o
com destaque na luta pela saúde e contra a nocividade estudo das relações entre saúde e trabalho.
do trabalho, evoluiu incorporando a luta pela preser- Apesar das importantes conquistas – a profunda
vação do ambiente, do território onde se trabalha e mudança do sistema produtivo a partir dos anos 1980,
vive, e foi decisivo para a aprovação da Lei nº 833, de com redução do peso da grande indústria, o avanço do
23 de dezembro de 1978, sobre a Reforma Sanitária neoliberalismo no mundo, a crise do sistema político
Italiana, que instituiu o Serviço Sanitário Nacional. e a redução do movimento dos trabalhadores –, foi
No Brasil, foi somente no final dos anos 1970 que interrompido o avanço das conquistas e retrocessos
a experiência italiana serviu como fonte de inspiração ocorreram. Entretanto, a história é movida pelos con-
para a implantação de serviços de saúde em municípios flitos entre os interesses antagônicos de classes, e o
que contribuíram para a elaboração e implantação do que é dado hoje é próprio para ser superado amanhã.

Breve biografia de Ivar Oddone


(1923-2011) 1
1. EDERSOLI, B. A. Ivar
Oddone (1923-2011). In: MEN-
DES, R. (Org.). Dicionário
Bruno de Almeida Pedersoli de Saúde e Segurança
do Trabalhador: conceitos,
definições, história, cultura.
Novo Hamburgo: Proteção
Publicações, 2018. p. 665.
Médico, psicólogo, cientista e militante italia- a subjetividade operária. Esse ‘saber operário’ de- (texto revisado e atualizado
pelo autor).
no, nascido em Imperia, em 26 de outubro de 1923, veria aliar-se ao conhecimento técnico, mas como
Ivar Oddone é considerado o principal expoente do protagonista. Formulam-se conceitos como: ‘não
grupo de intelectuais que, junto de trabalhadores, delegação’, ‘validação consensual’, ‘grupo operário
construiu, nos anos 1960 e 1970, a experiência homogêneo’, ‘recusa da monetização do risco’ e
de luta pela saúde no ambiente de trabalho que, ‘compreender para transformar’.
ao ser sistematizada, ficou conhecida como MOI. Na área da psicologia do trabalho, Oddone
Destacam-se ainda Alessandra Re, Gastone Marri, colaborou na criação da técnica de ‘instrução ao
Gianne Briante e Sandra Gloria. sósia’, um instrumento para se apreender a expe-
Em 1943, ainda como estudante de medicina, riência do trabalhador.
Oddone torna-se um partigiano, isto é, comba- No Brasil, a partir dos anos 1980, o MOI foi
tente na Resistência italiana antifascista. É nele, uma fonte de inspiração para diversas construções
inclusive, inspirado o personagem Kim, do ro- no campo da Saúde do Trabalhador, entre elas:
mance ‘A trilha dos ninhos de aranha’, do amigo comissões sindicais de saúde, programas regionais
Italo Calvino. Após a guerra, vai a Turim exercer de Saúde do Trabalhador, criação de entidades
medicina, e presencia, nos anos 1960, a ascensão como o Departamento Intersindical de Estudos e
das movimentações operárias na Itália. Por meio Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho
do PCI, do qual era militante, ele e outros profis- (Diesat), elaboração de Mapas de Risco nos locais
sionais se aproximam da luta dos trabalhadores. A de trabalho, além de diversas publicações.
colaboração entre técnicos de saúde engajados e Ivar Oddone é uma referência tanto teórico-
operários organizados em sindicatos e comissões -metodológica quanto militante, por seu compro-
de fábricas faz surgir uma experiência original de misso com os trabalhadores e pela valorização da
luta pela saúde no trabalho. ação transformadora da realidade.
O MOI rompe com o simples tecnicismo da Morreu em Turim, em 21 de novembro de
saúde ocupacional para valorizar a experiência e 2011.
258

Breve biografia de
Marcília de Araújo Medrado Faria
1. MENDES, R. Marcília
de Araújo Medrado Faria
(1938-2014). In: MENDES, R.
(1938-2014) 1

(Org.). Dicionário de Saúde René Mendes


e Segurança do Trabalhador:
conceitos, definições, história,
cultura”. Novo Hamburgo:
Proteção Publicações, 2018. p.
724. (texto revisado e atualizado Médica, professora e pesquisadora, Marcília de balhadores expostos e intoxicados pelo mercúrio, de
pelo autor).
Araújo Medrado Faria nasceu na Bahia, em 1938, 1997 em diante, até o final de sua vida.
graduando-se em Medicina pela Universidade Federal A justa homenagem publicada por Correia et
2
da Bahia, em 1963. Dedicou-se ao campo da medicina al. , assim conclui:
preventiva e social, à saúde pública e à Saúde do
A Professora Marcília atuou incansavelmente ao lado e
Trabalhador, por toda a sua vida, sem medir esforços, para os trabalhadores do Brasil. Sua trajetória foi marcada
até à época de sua morte, aos 75 anos. pela dedicação e pela prioridade que conferiu ao aten-
Em 1965, especializou-se em medicina tropical, e, dimento médico e à investigação clínico-epidemiológica
em 1968, em dinâmica populacional pela Universidade de dos trabalhadores que foram expostos aos diversos agen-
São Paulo (USP). Em 1969, foi contratada como docente tes químicos durante as suas atividades profissionais e,
ao mercúrio, em especial, nos últimos anos de sua vida.
do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade
[...] muito contribuiu para que a saúde dos trabalhadores
de Medicina da USP, onde trabalhou sob a orientação do se tornasse um marco de atenção permanente, e não
Prof. Guilherme Rodrigues da Silva, conterrâneo da Profa. poupou esforços para fazer com que os trabalhadores
Marcília, que assumira o cargo de Professor Titular, em tivessem boas condições de trabalho, livres de riscos
disputado concurso. Vindo de Salvador, o Prof. Guilher- à saúde, enfim, que pudessem ter trabalho digno(92).
me tornou-se uma das referências mais respeitadas no Juntamo-nos aos referidos colegas e amigos da
campo da Epidemiologia, com incursões em outras áreas Profa. Marcília, para dar mais elevada visibilidade a
que compõem o pensamento social da determinação da essa justa e merecida homenagem.
saúde/doença. Com ele, a Profa. Marcília dedicou-se, no A Profa. Marcília faleceu em 5 de agosto de 2014,
doutorado, a estudar aspectos da Doença de Chagas. em São Paulo.
Em 1974, especializou-se em medicina do traba-

Fonte: https://www.sbmt.org.br/portal/obituario-marcilia-de-araujo-medrado-faria-1938-%E2%80%A02014/
lho na USP e, mais tarde, em ergonomia, na França,
em pós-doutorado realizado na Université Paris I
(Panthéon Sorbononne), de 1977 a 1979. Em 1994,
vinculou-se ao Departamento de Medicina Legal, Ética
Médica e Medicina Social e do Trabalho, onde perma-
neceu até sua aposentadoria, em 2010. Mesmo após
essa data, continuou realizando atividades voluntárias
na USP, até a sua morte.
Sua profícua carreira foi recentemente organi-
2. CORREIA, M. M., et al. Profa.
Dra. Marcília Medrado de Faria
zada e resumida por colegas e amigos2, os quais a
(1938-2014): uma vida dedicada estruturaram em quatro blocos:
à saúde dos trabalhadores brasi-
leiros. Saúde, Ética & Justiça. v. – as relevantes contribuições para o ensino e
19, n. 2, p. 90-2, 2014. Disponí-
vel em: http://www.revistas.usp. produção científica;
br/sej/article/view/100097/98773.
Acesso em: 16 jun. 2017
– seu trabalho na criação e direção do Serviço
de Saúde Ocupacional do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP;
– seus estudos e pesquisas e assessorias sindicais
no Polo Industrial de Cubatão, incluindo os estudos
sobre acidentes do trabalho (1979 a 1987) e a pesquisa
sobre câncer e trabalho industrial (1995 a 2012);
– sua dedicação ao estudo e assistência aos tra-
259

Breve biografia de Lys Esther Rocha


(1956-2015) 1
1. BANDINI, M. Lys Esther Ro-
cha (1956-2015). In: MENDES,
R. (Org.). Dicionário de Saúde
Marcia Bandini e Segurança do Trabalhador:
conceitos, definições, história,
cultura. Novo Hamburgo: Prote-
ção Publicações, 2018. p. 715-6.
(texto revisado e atualizado pela
Nascida em São Paulo, em 13 de julho de 1956, acometiam fortemente os trabalhadores de processamento autora).
Lys Esther Rocha descobriu-se professora ao ajudar de dados e os digitadores. Nesse cenário, dedicou sua tese 2. MENEZES, E. T., et al.
os alunos do curso preparatório para o exame de de mestrado a defender a participação dos trabalhadores Mobral – Movimento Brasileiro
de Alfabetização. Dicionário
admissão dos alunos do Grupo Escolar que a mãe, para o reconhecimento e a notificação das doenças que Interativo da Educação Brasi-
leira – Educabrasil. São Paulo:
professora primária, carinhosamente batizou de ‘Flor acabaram sendo conhecidas como as Lesões por Esforços Midiamix, 2001. Disponível em:
http://www.educabrasil.com.br/
de Lis’. Aos 18 anos, foi convidada a dar aulas no Mo- Repetitivos (LER). mobral-movimento-brasileiro-
vimento Brasileiro de Alfabetização2 (Mobral) quando, Sua pesquisa abriu as portas para outros estudos -de-alfabetizacao/. Acesso em:
19 jul. 2017.
segundo seu próprio relato, despertou para a realidade em ergonomia. Isso, combinado à sua atuação como
3. DEPARTAMENTO INTER-
dos trabalhadores brasileiros. auditora-fiscal do trabalho, foi fundamental para a SINDICAL DE ESTUDOS E
PESQUISAS DE SAÚDE E DOS
Médica graduada pela Faculdade de Medicina do revisão da Norma Regulamentadora NR-174, publicada AMBIENTES DE TRABALHO.
História. Disponível em: http://
ABC, aproximou-se da saúde pública pelo convívio em 1990. Pela primeira vez, uma norma sobre Ergo- diesat.org.br/historia/. Acesso
com líderes envolvidos na reforma sanitária nos anos nomia trazia termos como organização do trabalho em: 19 jul. 2017.

1970. Entre 1978 e 1979, engajou-se no movimento e fatores psicossociais. A mudança não foi facilmente 4. BRASIL. Ministério do
Trabalho. Ergonomia. Norma
dos trabalhadores do ABC, colaborando para a I Se- aceita. Mandados de segurança e atos organizados por Regulamentadora NR-17. 1978.
Disponível em: http://trabalho.
mana de Saúde do Trabalhador do Diesat3, com o setores empresariais conseguiram atrasar a publicação gov.br/images/Documentos/SST/
tema ‘O pó nosso de cada dia’, dedicado à silicose, ao do novo texto, bem como impor algumas mudanças NR/NR17.pdf. Acesso em: 19
jul. 2017.
lado de Lia Giraldo e Mario Bonciani. A experiência na versão original. Nesse momento, o Grupo de Er- 5. ROCHA, L. E., et al. (Org.)
a levou a optar pela residência em medicina social, gonomia, do qual Lys fazia parte, desenvolvia material Isto é trabalho de gente?: Vida,
doença e trabalho no Brasil. São
com área de concentração em medicina do trabalho, específico para orientar os auditores-fiscais do trabalho Paulo: Vozes, 1993. 672 p.
o que levou Lys Esther para a Universidade Federal da e esta orientação acabou ampliada com a contribuição
Bahia. Lá, ao participar de um estudo sobre intoxicação de sindicatos de trabalhadores e empregadores.
por chumbo, no início dos anos 1980, adquiriu uma Quase ao mesmo tempo em que a nova NR-17 era
prática que se tornou sua marca registrada por toda construída e discutida, outras ‘gestações’ vieram – da
a vida – ver e ouvir os trabalhadores. primeira filha e do livro ‘Isto é Trabalho de Gente? Vida,
De volta a São Paulo em 1982, participou de Doença e Trabalho no Brasil’5, projeto desenvolvido
diversos trabalhos com referências com a Profa. Edith em parceria com José Tarcísio Buschinelli e Raquel
Seligmann-Silva, a Profa. Marcília de Araújo Medrado Rigotto, e que se tornou um marco ao trazer histórias
Faria e a socióloga Maria Cecília Donnangelo, entre de vida e trabalho.
outros profissionais de grande destaque à época, e O olhar holístico, desenvolvido desde o início da
colaborou com a estruturação das ações de Saúde carreira, levou Lys a ampliar os estudos de Ergonomia para
do Trabalhador na rede de Serviços da Secretaria a área de saúde mental, tema de sua tese de doutorado
de Estado da Saúde de São Paulo. Foi assim que se concluída em 1996. Além da contribuição acadêmica, a
aproximou das ações de vigilância epidemiológica tese ajudou a moldar a convenção coletiva de trabalho dos
dos trabalhadores de Cubatão, investigando e notifi- profissionais de processamento de dados. Em 1998, Lys
cando casos de fluorose, pneumopatias ocupacionais, fez uma opção oficial pelo mundo acadêmico e iniciou as
doenças hematológicas relacionadas ao benzeno, suas atividades como professora na Disciplina de Acidentes
dermatoses ocupacionais e perdas auditivas. e Doenças do Trabalho, na Faculdade de Saúde Pública
Em 1984, entrou para o Ministério do Trabalho, (FSP) da USP, e na Disciplina de Saúde Ocupacional, na
como auditora-fiscal na área de saúde e segurança, mas graduação da Faculdade de Medicina do ABC. Ao final do
uma tragédia pessoal fez com que Lys deixasse os trabalhos mesmo ano, foi aprovada em concurso como docente da
em Cubatão para fazer um curso de Higiene no Istituto Faculdade de Medicina da USP.
Superiore Di Sanitá, em Roma (Itália), em 1986. Quando Desde então, foram mais de 50 artigos publica-
retornou ao Brasil, deparou-se com nova ‘epidemia’ de dos, mais de 120 trabalhos apresentados em congres-
doença relacionada ao trabalho – as tenossinovites, que sos, além dos oito livros. A Profa. Lys Esther orientou
260

dezenas de teses de mestrado e doutorado, formou ele, vem a cumplicidade, a solidariedade, a compaixão.
centenas de alunos em cursos de especialização e As mulheres, ao lado da exposição ao benzeno, tendem a
ver também a angústia do trabalhador que foi intoxicado
foi responsável pela implantação do programa de
pelo benzeno. Ser mulher traz também a capacidade de
Residência Médica em Medicina do Trabalho, na USP. se indignar, de compreender simultaneamente o todo,
Na vida associativa foi atuante, como em tudo o as partes e a dinâmica que os anima. Traz sensibilidade
que fazia. Entre 2004 e 2007, pertenceu à Comissão de para deixar-se tocar pelas diferentes situações; de buscar
Título de Especialista e presidiu a Comissão Técnica organização de diferentes pontos de vista e de negociar;
de Saúde Mental e Trabalho na Associação Nacional a capacidade de compartilhar, de trabalhar em equipe e
de escutar, sem julgamento prévio6.
6. DIAS, E. C., et al. Contribui- de Medicina do Trabalho (Anamt)6. De 2007 a 2010,
ção das Mulheres para a Vida
Associativa da Medicina do foi Diretora de Título de Especialista da associação. Durante 15 anos, Lys Esther Rocha lutou contra
Trabalho. Curitiba: ANAMT – As-
sociação Nacional de Medicina Quando perguntada sobre o que o olhar fe- um câncer de mama que a levou em 12 de dezembro
do Trabalho, 2016. Disponível
em: http://www.anamt.org.br/site/
minino agregava em sua atuação como médica do de 2015. Durante a sua intensa vida, definia-se como
upload_arquivos/arquivos_diver- trabalho, Lys dizia que: mãe, auditora-fiscal do trabalho, professora e pianis-
sos_30520161546597055475.
pdf. Acesso em: 19 jul. 2017.
[...] em primeiro lugar, ser mulher representa dar valor ao ta. Foi também um farol que iluminou caminhos e
cuidado porque, em nossa cultura, as mulheres são prepa- inspirou pessoas, alunos, colegas, lideranças sociais
radas para querer ajudar, para exercer o cuidado. E com e trabalhadores.

Acordo Nacional do Benzeno: novos


parâmetros na prevenção da exposição às
substâncias cancerígenas no Brasil
1
1. COSTA, D. F. Acordo
Nacional do Benzeno: novos
parâmetros na prevenção da
exposição às substâncias cance- Danilo Fernandes Costa
rígenas no Brasil. In: MENDES,
R. (Org.). Dicionário de Saúde
e Segurança do Trabalhador:
conceitos, definições, história,
cultura. Novo Hamburgo: O Acordo Nacional do Benzeno (ANB) foi uma ao benzeno em si como da forma de tratamento da
Proteção Publicações, 2018. p.
92-3. (texto revisado e atualizado das principais expressões do processo de discussão vigilância dos riscos e da importância ambiental da
pelo autor). ocorrido no Brasil em consequência dos conflitos de- substância, levando a novos desafios, boa parte deles
correntes dos agravos à saúde provocados pela expo- ainda não equacionados. O período em que se deu o
sição ao benzeno e outras substâncias químicas. Entre ANB foi fértil em regulamentações. Seu início é de-
esses conflitos, destaca-se a luta dos trabalhadores da marcado, em 1994, pela portaria de reconhecimento
Baixada Santista contra a leucopenia, provocada pela do benzeno como substância cancerígena. Até então,
exposição ao benzeno no início dos anos 1980. Essa apenas quatro substâncias, de uso muito reduzido
luta expandiu-se às demais siderúrgicas brasileiras. e localizado, e praticamente desconhecidas, eram
Posteriormente, no final dessa década, as categorias de reconhecidas como cancerígenas. Assim, tal legislação
químicos e petroquímicos também aderiram a essa luta. era, até então, totalmente inócua.
As primeiras legislações relacionadas com o benze- Em 1993, um grupo interinstitucional e multidisci-
no no Brasil remontam à década de 1930 e se referem à plinar produziu um documento que fazia o diagnóstico
sua toxicidade e possibilidade de causar danos à saúde, da situação de exposição ao benzeno no Brasil, com
principalmente de mulheres e crianças, estabelecendo a finalidade de subsidiar tecnicamente a revisão da
como principais estratégias de proteção dos trabalhadores legislação trabalhista a esse respeito. Com base nas
a proibição da exposição desses dois grupos mais vulnerá- constatações e propostas do estudo, a Profa. Raquel
veis. Ao longo do tempo, foram sendo criadas leis, entre Rigotto, à frente da secretaria da área no Ministério
elas a Portaria nº 3.214, que incluía o benzeno na lista de do Trabalho, pub licou, em 10 de março de 1994,
substâncias químicas a serem controladas com definição a Portaria nº 3, enquadrando o benzeno na categoria
de limite de tolerância, e indicador biológico de exposição. das substâncias cancerígenas, e retirando da tabela os
Nesse processo, dá-se uma mudança significativa limites de tolerância relativos ao benzeno, bem como os
de abordagem, tanto do ponto de vista da exposição parâmetros biológicos utilizados – o limite de tolerância
261

era de 8 ppm e o indicador era o fenol urinário, com

Foto: Rita Loureiro/ALM Apoio à Cultura


valor normal e Limite de Tolerância Biológico (LTB)
correspondentes, passando a não reconhecer limite
seguro para exposição a esta substância.
A introdução do benzeno no Anexo 13 da NR-
15 foi bastante positiva, trazendo a necessidade de
ampliação do reconhecimento da ação cancerígena
de inúmeros agentes e processos de trabalho até
então excluídos das legislações. A retirada dos limites
ambientais e biológicos de tolerância teve grande
repercussão, pois os limites funcionam como me-
canismos de regulação jurídico-administrativa das
empresas, muitas vezes gerando programas de geren-
ciamento artificial de riscos. Quando foram retirados
da legislação, as empresas sentiram-se pressionadas,
pois passaram a não poder manter a justificativa de
que suas dependências estavam ‘dentro dos padrões II – Obrigatoriedade de cadastramento dessas
legais’. Houve grande debate à época que, com a empresas.
mobilização de trabalhadores dos setores de maior III– Estabelecimento do conceito de Valor de
risco com a participação de técnicos do serviço público Referência Tecnológico ( VRT), que permitiu assumir
comprometidos com a defesa da Saúde dos Trabalha- uma postura de precaução em que não existe exposi-
dores, funcionaram como elementos decisivos para ção segura para o benzeno, superando o conceito de
o recuo do patronato e a abertura de negociações Limites de Tolerância, inadequado para substâncias
que levaram à produção do acordo e legislação. Na carcinogênicas como o benzeno, conforme reconhe-
sequência, ao longo dos anos, foram publicadas quase cido pela legislação alemã na qual conceito se baseou.
duas dezenas de instrumentos de regulação. O VRT não é um limite de exposição, não exclui risco
A regulamentação dessa portaria ocorreu somen- à saúde e deve ser considerado como referência para
te após 18 meses de intensa discussão, com grande os programas de melhoria contínua, seu cumprimento
mobilização dos setores interessados e a formação sendo obrigatório.
de um grupo tripartite; contou com representantes IV – Criação do Programa de Prevenção da Expo-
do Poder Público, dos trabalhadores e das empresas, sição Ocupacional ao Benzeno, principal instrumento
grupo que elaborou uma proposta de acordo e de técnico de prevenção, que inclui as instruções nor-
legislação, que foi aceita pelas partes, ratificada pelo mativas de monitoramento ambiental e vigilância da
governo e publicada por meio do Anexo 13-A da NR- saúde, que deve expressar o consolidado das ações
15 da Legislação de Saúde e Segurança no Trabalho, realizadas pela empresa para prevenir a contaminação
que compõe a legislação trabalhista brasileira. Foram dos trabalhadores.
formuladas e publicadas, também, duas Instruções V – Definição dos Grupos de Trabalhadores
Normativas (IN) que complementam o Anexo 13-A, do Benzeno (GTB), escolhidos por seus pares entre
a IN01, que trata da avaliação ambiental, e a IN02, os eleitos para as Comissões Internas de Prevenção
que trata da vigilância em saúde. de Acidentes (Cipas), institui a vigilância ao benze-
Este acordo, o ANB, caracteriza uma pactuação no como uma prioridade de ação para as Cipas das
nacional inovadora, à época, envolvendo represen- empresas cadastradas; estabelece concretamente a
tações nacionais de três setores da sociedade: uma possibilidade de realização de ações de chão de fá-
parte importante do Poder Público, empresários do brica; dito de outra forma, de exercício do controle
setor siderúrgico e petroquímico e representantes da exposição pelos próprios expostos. Dessa forma,
de trabalhadores. Alguns dos pontos mais relevantes a ação de acompanhamento do acordo passa a ser
do acordo e da legislação, como forma de restringir permanente, pois é compartilhada com os trabalha-
a exposição, o uso e a circulação do benzeno, são: dores no seu cotidiano laboral.
I – Proibição do uso do benzeno, admitindo como VI – Criação da Comissão Nacional Permanente
exceções as empresas que o produzem ou que o utilizam do Benzeno (CNPBz), com o propósito de ser uma
em sínteses químicas, as siderúrgicas e os laboratórios instância de negociação e acompanhamento da imple-
em situações em que ele não possa ser substituído. mentação do acordo e da legislação, responsável tam-
262

bém por complementar as lacunas não resolvidas até dores em defesa de sua saúde e contra a exposição
então no processo de discussão. Posteriormente foram ao benzeno demandaria uma avaliação dos eventos
criadas instâncias regionais para cumprir esse papel decorrentes deste acordo nos pouco mais de 20 anos
localmente. O acordo e a legislação estão ainda em de sua definição e implantação o que até agora foi
vigor e constituíram a base legal e de negociação dos feito apenas de maneira parcial, ainda que relevante.
últimos anos no Brasil, tendo sido complementados A recente extinção da CNPBz no governo atual é
em diversos aspectos, alguns deles comentados aqui. apenas uma das muitas expressões dos ataques, difi-
O desmonte acentuado da legislação trabalhista, culdades e limitações enfrentadas pela classe trabalha-
o esvaziamento das instituições públicas responsáveis dora na segunda década do século XXI, em particular
pelo acompanhamento da prevenção da exposição ao após 2015. Para a superação desse ciclo negativo, é
benzeno e os ataques aos direitos e organização dos necessário o aprofundamento das reflexões sobre o
trabalhadores tiveram impacto bastante negativo na ocorrido, tanto nas questões mais específicas relativas
evolução dessa experiência, paradigmática em muitos ao benzeno e à Saúde dos Trabalhadores quanto nos
aspectos para a história da Saúde dos Trabalhadores e aspectos mais gerais políticos, institucionais e das
Trabalhadoras no Brasil. Uma análise das conquistas grandes transformações em curso em todo o mundo,
e desafios decorrentes dessa longa luta dos trabalha- cada vez mais globalizado e polarizado.

1. GIANNASI, F. Asbesto
(amianto). In: MENDES, R.
(Org.). Dicionário de Saúde
O caso da luta antiamianto no Brasil 1

e Segurança do Trabalhador: Fernanda Giannasi


conceitos, definições, história,
cultura. Novo Hamburgo: Prote-
ção Publicações, 2018. p. 153-4.
(texto revisado e atualizado pela
autora). O amianto ou asbesto é uma fibra de origem mineral, a utilização do amianto foi proibida pelo Supremo
derivada de rochas metamórficas eruptivas, que, por pro- Tribunal Federal (STF) em 29 de novembro de 2017,
cesso natural de recristalização, transforma-se em material embora tenhamos ainda algumas questões pendentes
fibroso. Compõe-se de silicatos hidratados de magnésio, e uma única exceção, que abordaremos mais adiante.
ferro, cálcio e sódio e se divide em dois grupos: serpenti- O amianto é reconhecido como um agente can-
nas (crisotila ou amianto branco) e anfibólios (tremolita, cerígeno para os seres humanos pela Agência Interna-
actinolita, antofilita, amosita, crocidolita); este último cional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc) da Organiza-
grupo está banido na maior parte do mundo, inclusive ção Mundial da Saúde (OMS) em quaisquer das suas
no Brasil desde a alteração pelo extinto Ministério do formas e tipos ou em qualquer estágio de produção,
Trabalho do Anexo 12 da NR-15 – Atividades e Operações transformação e uso. Segundo a OMS, no seu Critério
Insalubres pela Portaria DSST nº 1/1991 e da vigência 203 sobre o amianto crisotila (ou branco), publicado
2. BRASIL. Lei nº 9.055, de 1 da Lei nº 9.055/952, que buscou “disciplinar a extração, pelo Programa Internacional de Segurança Química
junho de 1995. Disciplina a extra-
ção, industrialização, utilização, industrialização, utilização, comercialização e transporte (IPCS), em 1998, não se estabeleceu nenhum limite
comercialização e transporte do
asbesto/amianto e dos produtos
do asbesto/amianto e dos produtos que o contenham, seguro de exposição ao amianto para o risco de câncer.
que o contenham, bem como bem como das fibras naturais e artificiais, de qualquer A OMS estima que 125 milhões de trabalhadores
das fibras naturais e artificiais,
de qualquer origem, utilizadas origem”, também conhecida como a “lei do uso seguro em todo o mundo estão expostos ao amianto em seus
para o mesmo fim e dá outras
providências. Diário Oficial da ou controlado do amianto”. locais de trabalho. Segundo essas estimativas, mais de
União. 1 Jun. 1995. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/
O amianto é conhecido desde a antiguidade 107 mil destes morrem por ano pelas Doenças Relacio-
ccivil_03/leis/L9055.htm. Acesso pelo homem primitivo que o misturava com barro nadas ao Amianto (DRA), entre as quais a ‘asbestose’,
em: 18 jan. 2021.
para conferir propriedades refratárias aos utensílios enrijecimento do tecido pulmonar, que conduz à falta
domésticos e foi muito usado durante e pós-revolução de ar acentuada e progressiva, podendo matar por
industrial para isolamento térmico de máquinas e asfixia, o ‘câncer de pulmão’ e o ‘mesotelioma’, tumor
equipamentos a vapor. Na atualidade, é ainda muito maligno raro e incurável, também chamado o ‘câncer do
consumido como matéria-prima em países pobres, amianto’, que é o único agente sabidamente causador
na produção de artefatos de cimento-amianto ou dessa patologia maligna e que leva ao óbito, a maioria de
fibrocimento, principalmente para a indústria da suas vítimas, em menos de um ano após o diagnóstico.
construção civil (telhas, divisórias, painéis acústicos, Além disto, atribui-se que uma em cada três mortes por
forros, pisos, caixas d’água e tubulações). No Brasil, câncer ocupacional está associada ao amianto.
263

A OMS vai além ao afirmar que milhares de mor- Entre idas e vindas, vitórias e derrotas, na luta
tes podem ser atribuídas anualmente à exposição antiamianto no Brasil, fomos mais uma vez surpre-
ambiental ao amianto, a qual todos seres humanos endidos com situações surreais como a sanção, pelo
estão sujeitos, especialmente nós brasileiros, que governo de Goiás, da Lei nº 20.514, em 16 de julho
vivemos cercados por construções que ainda contêm 19, a chamada Lei Caiado, que autoriza, para fins
o mineral cancerígeno e que fomos até recentemente exclusivos de exportação, a extração e o beneficia-
um dos seus maiores produtores, consumidores e mento do amianto crisotila naquele estado; lei esta,
exportadores. É, portanto, indubitavelmente, um segundo nosso ponto de vista, que contém vício de
problema de saúde pública. iniciativa, visto que afronta decisão da Suprema Corte
Embora as estatísticas brasileiras não reflitam da nação, requentando um debate pacificado pelo STF
o verdadeiro quadro de morbidade, letalidade e de com base no conhecimento científico e no estado da
morbimortalidade da população brasileira, exposta arte. No mesmo diapasão, a Associação Nacional dos
profissional ou ambientalmente ao amianto, alguns Procuradores do Trabalho (ANPT) ajuizou a ADI (Ação
indicadores já prenunciam que teremos por aqui em Direta de Inconstitucionalidade) nº 6.200, em 19 de
muito pouco tempo um quadro epidêmico semelhante julho 20193, em que afirma “que a lei goiana afronta 3. SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL. Associação
ao que vimos nos países desenvolvidos. os direito fundamentais à saúde, à proteção contra questiona lei goiana que permite
extrair amianto para exportação.
Entre as várias razões para esse grave quadro de os riscos laborais e ao meio ambiente adequado, pre- Disponível em: http://portal.stf.
silêncio epidemiológico, estão: o longo período de la- vistos na Constituição da República” e que, segundo jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=417201.
tência dessas doenças que ocorrem, em geral, quando a ANPT, “o Supremo levou em consideração, entre Acesso em: 18 jan. 2021.

não há mais vínculo de trabalho; a falta de médicos e outros pontos, o conhecimento científico consolidado
centros especializados para realização de exames e trata- há décadas a respeito da lesividade do amianto em
mentos de alta complexidade, cujos óbitos são atestados todas as suas variedades e a inexistência de limites
de forma genérica; acordos extrajudiciais firmados pelas seguros para a exposição ao mineral”4. 4. ASSOCIAÇÃO NACIONAL
DE PROCURADORES DO
empresas para invisibilizar esses dados perante os olhos A referida ADI nº 6.200 está sob a relatoria do TRABALHO. AMIANTO: ANPT
pede no STF suspensão de
do governo, dos políticos e da sociedade. Foram mais de Ministro Alexandre de Moraes, que ainda não se pro- lei que permite utilização de
5 mil acordos firmados entre as duas principais empresas nunciou sobre os pedidos da ANPT, que já comple- amianto em Goiás. Disponível
em: http://www.anpt.org.br/
de fibrocimento e seus ex-empregados, dados estes que taram mais de um ano, de concessão de liminar para imprensa/noticias/3544-amian-
to-anpt-pede-no-stf-suspensao-
estão submersos num imenso iceberg, cuja parte visível suspender os efeitos da Lei estadual nº 20.514/2019 -de-lei-que-permite-utilizacao-de-
-amianto-em-goias. Acesso em:
é uma porção ínfima do problema. e, no mérito, sua declaração de inconstitucionalidade. 18 jan. 2021.
De acordo com o boletim epidemiológico do Por outro lado, o plenário virtual do STF, em 18 de
Ministério da Saúde, foram registrados no SUS, entre agosto 2020, declarou a constitucionalidade da Lei nº
2008 e 2011, 25.093 casos de cânceres provocados 4.341/2004 do estado do Rio de Janeiro, de autoria do
pelo amianto e, no período de 2000 a 2011, 2.400 Deputado Carlos Minc, que dispõe sobre a responsa-
óbitos por mesotelioma. bilidade das empresas de fibrocimento pelos danos
Por tudo isso, a OMS recomendou que o uso causados à Saúde dos Trabalhadores pelo amianto.
do amianto seja substituído, tal qual a Organização Apesar dos pesares, de altos e baixos, todo esse
Internacional do Trabalho (OIT) já o fizera em sua debate, que se estende há pelo menos três décadas
Convenção 162 de 1986, que trata sobre a ‘Utilização em nosso país, só foi possível pela participação do
do Asbesto com Segurança’. controle social e seu intenso ativismo.
O Brasil, apesar de toda a produção científica mun- Foto: Enrico Pargaetzi/Wikimedia Commons
dial de mais de um século, já que pelo menos desde 1907
se conhecem estudos comprovando a nocividade do
amianto, foi uma das últimas nações do chamado G-20
(as 20 maiores economias mundiais) a adotar medidas
efetivas para a erradicação da fibra mortal.
Apesar disso, fomos mundialmente celebrados como
o primeiro país a ter a proibição decretada por uma Su-
prema Corte constitucional e o banimento ter se dado
com a produção do minério ainda em plena atividade, já
que em outras localidades a proibição ocorreu quando
as fábricas estavam já fechadas e a mineração esgotada;
isto é, apenas ratificando uma situação fática.
264

O papel dos contrapoderes na luta pela


erradicação da catástrofe sanitária
do século XX no Brasil
Fernanda Giannasi

No ‘Dicionário da Educação Profissional em DiFranco em ‘My IQ’: ‘Sabendo portar, toda ‘ferra-
1. CORREIA, M. V. C. Controle Saúde’, a autora Maria Valéria Costa Correia1 discorre menta’ é uma arma’. Foi esta a arma utilizada pelos
social. In: PEREIRA, I. B., et al.
Dicionário da Educação Pro- que “o ‘controle social’ envolve a capacidade que os movimentos sociais para poder lutar pelos direitos
fissional em Saúde. 2. ed. Rio
de Janeiro: Escola Politécnica
movimentos sociais organizados na sociedade civil de seus representados.
de Saúde Joaquim Venâncio,
Fundação Oswaldo Cruz, 2008.
têm de interferir na gestão pública, orientando as Esse tipo de ativismo, articulado em nível global,
Disponível em: http://www. ações do Estado na direção dos interesses da maioria propõe-se a pensar localmente (definindo os proble-
sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/
Dicionario2.pdf. Acesso em: 22 da população”. mas, necessidades e demandas) para atuar globalmen-
dez. 2020.
Esses ‘novos’ movimentos sociais surgiram no te e assim possibilitar gerar as mudanças necessárias
Brasil em meados da década de 1990 de maneira em contraposição a uma das mais perversas formas
espontânea, empírica, anárquica para se contrapor de ‘desapropriação das oportunidades de vida’, que
às necessidades momentâneas e pontuais ante a impõe um modelo de desenvolvimento devastador
globalização da economia e da pobreza e exclusão para a humanidade.
social. Não se situam simplesmente como movimentos Esses movimentos ditos alternativos – ‘os con-
antiglobalização, mas como uma globalização que é trapoderes ou globalização contra-hegemônica ou
construída desde baixo (globalization from below), que vêm de baixo’ – ou qualquer outra nomenclatura
isto é, vinda das bases do tecido social. mais apropriada que venha a ser adotada, exercem o
Na nossa vivência política, militando com os controle social e tentam, antes de mais nada, redis-
movimentos sociais, há duas décadas e meia, com cutir o significado do trabalho, da vida, do adoecer e
as associações de vítimas dos processos industriais, desconstruir a identificação do progresso com o cres-
pudemos compreender melhor e mais amplamente cimento industrial ou o desenvolvimento das forças
o real significado da dita sociedade civil organizada produtivas e a concepção de política como algo que
e de como exercer efetivamente o controle social se faz por intermédio de e pelo Estado por meio de
enquanto contrapoderes, na definição clássica do organizações hierárquicas verticalizadas (piramidais),
filósofo italiano Antonio Gramsci. A nossa experiência que visam acumular o poder e exercê-lo em nome
se deu, mais organicamente, na luta das vítimas do da base, sem a sua participação. Por não se sentirem
amianto, que se constituíram como uma contraposição representados pela maioria das entidades existentes
aos grupos hegemônicos ligados a instituições gover- e na ausência de interlocutores para a negociação
namentais, sindicais e empresariais, que defendiam de suas demandas coletivas, esses atores sociais se
unissonamente a tese do uso seguro ou ‘controlado’ expressam contra o não reconhecimento e defesa de
do agente cancerígeno amianto. seus interesses e em torno de uma identidade que
2. HARDT, M., et al. O
Império. 2. ed. Rio de Janeiro:
Com a massificação globalizante do uso da in- é autodefinida pelo sujeito na ação e no conflito,
Record, 2001. ternet, os movimentos sociais ganharam um aliado constituindo-se em verdadeira ‘cidadania de protesto’,
3. SOUZA, N. H. B. Traba- importantíssimo contra a hegemonia da informação assim denominada por Souza3.
lhadores Pobres e Cidadania:
A Experiência da Exclusão e e, com isso, puderam promover a disputa com os po- A luta antiamianto foi exercida com maestria
da Rebeldia na Construção
Civil. 1994. Tese [Doutorado]. deres, constituindo-se em verdadeiros contrapoderes pela Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto
Universidade de São Paulo,
São Paulo, 1994.
ou ‘revolucionários nômades’, conforme definido (Abrea)4, que se define como ‘uma Organização Não
4. ASSOCIAÇÃO BRASI-
por Hardt e Negri2, subvertendo potencialmente a Governamental (ONG) sem fins lucrativos, reconhe-
LEIRA DOS EXPOSTOS AO nova ordem capitalista. Esses ‘subversivos nômades’ cida como de utilidade pública’, e que foi fundada
AMIANTO. Quem somos.
Disponível em: http://www. e cibernéticos transformaram a internet em ‘ferra- em 9 de dezembro de 1995, em Osasco, na grande
abrea.com.br/a-abrea/abrea.
html. Acesso em: 21 dez.
menta’ de luta contra a ‘marginalização em favor dos São Paulo, como a primeira associação de trabalha-
2020. despossuídos, buscando nivelar as relações de poder dores, ex-empregados, familiares e vítimas da fibra
entre o local e o global’. Como diz a epígrafe de Ani cancerígena no País oriundos da empresa Eternit,
265

Foto: Adaílson Calheiros/Acervo Radis


Casa de sapê à margem
da rodovia Divaldo
Suruagy, Alagoas, 1988.

grupo multinacional suíço-belga na sua origem e, e tecnologias reconhecidamente menos nocivas aos
posteriormente, francês por sucessão de interesses e trabalhadores, consumidores e à população geral, a
que é atualmente constituído por uma holding nacio- preservação dos postos de trabalho (transição segura),
nal. A fábrica de Osasco, a maior do grupo em toda a a busca ativa dos que foram expostos profissional-
América Latina, operou de 1939 a 1993 e deixou um mente ou ambientalmente às suas fibras para fins de
legado de doenças e um rastro de destruição ainda cadastrá-los e encaminhar para exames médicos, a
não total e devidamente dimensionados. luta pelo conhecimento e reconhecimento das DRA,
Ao longo de duas décadas e meia, outros grupos a propositura de ações judiciais em favor de seus
de expostos de diversas empresas e fábricas, que associados na busca por justa indenização para os
utilizaram a matéria-prima amianto, juntaram-se à que foram lesionados, a conscientização da população
Abrea e hoje formam um coletivo de associações locais geral, trabalhadores e opinião pública sobre os riscos
e regionais que trabalham em total cooperação na do amianto e produtos mais seguros, a participação
luta por saúde e justiça para as vítimas. Esses grupos em ações e integração com outros movimentos sociais
estão organizados, além de Osasco, em São Caetano e ONG pró-banimento e na luta por saúde e justiça
do Sul e Capivari no estado de São Paulo, Rio de socioambiental em nível nacional e internacional, o
Janeiro, Londrina e São José dos Pinhais no Paraná, apoio à pesquisa científica sobre as DRAs e materiais
Bom Jesus da Serra e Simões Filho na Bahia, Recife em alternativos, o compromisso com o compartilhamento
Pernambuco, Pedro Leopoldo em Minas Gerais e na de informações e a recuperação ambiental dos sítios
região da grande Porto Alegre, em Esteio e Sapucaia degradados.
do Sul no Rio Grande do Sul. Com exceção da Bahia A Abrea3 esteve o tempo todo participando das
e Paraná, onde estes grupos estão organizados foram diversas ações no STF e, por meio de seu corpo jurídi-
aprovadas leis estaduais e municipais de proibição, co, atuando como Amicus Curiae (amigos da Corte),
antes mesmo da decisão histórica do STF, em função no sentido de subsidiá-la com sua expertise adquirida
das pressões exercidas pelo controle social, que tam- ao longo de todos estes anos no protagonismo da
bém vigiam o cumprimento delas. luta pelo banimento do amianto no Brasil. Está ainda
As principais bandeiras desses contrapoderes associada a movimentos internacionais que lutam nas
têm sido a vigilância constante da manutenção da mesmas trincheiras, em especial a Rede Virtual-Cidadã
decisão do banimento do amianto, para que não pelo Banimento do Amianto, a Ban Asbestos Network
ocorram retrocessos, a substituição por materiais e a International Ban Asbestos Network (Ibas).
266

FOCO:
Saúde do Trabalhador é um processo
de construção social que requer
estratégias ousadas e renovadas

Estratégias promissoras 1:
Fórum Acidentes do Trabalho:
disputando a agenda científica e política no campo da
Saúde do Trabalhador
Ildeberto Muniz de Almeida
Rodolfo Andrade Gouveia Vilela

Lá nos idos de 2008, as práticas de atribuição de e crítica das abordagens simplistas e reducionistas
culpa às vítimas de acidentes de trabalho se destaca- prevalentes no que se refere ao fenômeno acidente.
vam como importante preocupação política por parte A experiência evoluiu no desenvolvimento do
de movimentos de trabalhadores, já frequentavam a Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes de Tra-
agenda de pesquisa em nosso país e se refletiam em balho (Mapa), ferramenta prática que reúne conjunto
iniciativas institucionais de formação para análise de de conceitos modernamente utilizados em estudos e
acidentes no então Ministério do Trabalho e Emprego pesquisas de acidentes e que, nos últimos anos, tem
(MTE) e em serviços da Rede Nacional de Atenção sido aplicada em diferentes situações de segurança2,3.
Integral à Saúde do Trabalhador (Renast). Em consonância com esses esforços, é possível
Naquele ano, iniciativa conjunta de integrantes destacar avanços em intervenções de serviços de saúde
do Departamento de Saúde Pública da Faculdade do trabalhador em casos de acidentes de trabalho, indus-
de Medicina de Botucatu – Universidade Estadual triais ou desastres, como nos casos de colapsos em obras
1. FORUM ACIDENTES DO Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e da equipe de grande porte, ampliação de aeroporto, construção
TRABALHO. Agenda. Disponível
em: www.forumat.net.br. Acesso do Cerest Piracicaba criou o portal Fórum Acidentes do anel viário, acidentes fatais na transmissão e manu-
em: 22 dez. 2020. do Trabalho, FórumAT1. Logo em seguida, um dos tenção da rede de energia elétrica, em atropelamentos
2. ALMEIDA, I. M., et al. Mo-
delo de Análise e Prevenção de
integrantes da equipe de Piracicaba ingressou no de trabalhadores na manutenção de linhas de empresa
Acidentes de Trabalho – MAPA. corpo docente do Departamento de Saúde Ambiental de transporte ferroviário de passageiros, acidentes em
Piracicaba: CEREST, 2010.
da FSP – USP e, desde então, são esses os principais refinaria de petróleo, entre outros. Outras iniciativas
3. ALMEIDA, I. M., et al. Modelo
de Análise e Prevenção de Aci- responsáveis pelo FórumAT. envolvem pesquisas e intervenções visando à prevenção
dentes-MAPA: ferramenta para a
vigilância em Saúde do Trabalha-
A proposta associa ideias de educação permanen- de doenças no campo da saúde mental e de distúrbios
dor. Ciênc Saúde Colet., v. 19, n.
12, p. 4679-88, 2014. Disponível
te sobre o tema da análise de acidentes com esforços musculoesqueléticos relacionados ao trabalho.
em: https://doi.org/10.1590/1413- políticos de desconstrução da atribuição de culpa Aos poucos, o FórumAT também estimula e
812320141912.12982014.
Acesso em: 21 dez. 2020. apoiados em criação de tentativa de debate continuado mantem o tema nas agendas de pesquisas e política
267

do Brasil. Isso se deu tanto pela promoção de série Siapat) que incluiu encontro nacional de dirigentes
de encontros presenciais anualmente, muitos deles sindicais e rica discussão sobre as lutas de trabalhado-
com convidados internacionais, como também pela res em defesa da saúde; mostrando que a agenda do
ampliação de canais de diálogo com pesquisadores e FórumAT não ficou presa aos temas da atuação técnica
integrantes do movimento sindical de trabalhadores de e científica. A criação de pontes com as lutas sociais
diferentes estados do País, mas também com editores esteve em destaque inclusive em outros momentos
de revistas científicas e integrantes de organismos com convidados internacionais que destacaram como
institucionais da saúde, do trabalho e da previdência se organiza a defesa dos direitos de trabalhadores
social em diferentes níveis de governo. migrantes nos Estados Unidos.
O apoio recebido de parceiros como o Minis- Nos últimos anos, outras parcerias se viabili-
tério Público do Trabalho, a Secretaria de Estado zaram, como o blog Ergonomia da Atividade4 e os 4. ERGONOMIA DA ATIVIDA-
DE. Disponível em: https://www.
da Saúde de São Paulo e da Fundação de Amparo à multiplicadores de Vigilância em Saúde do Traba- youtube.com/ergonomiadaativi-
dade. Acesso em: 21 dez. 2020.
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) ajudou lhador ( Visat)5.
5. MUTIPLICADRES DE
a consolidar o FórumAT que se mantém até os dias A ideia floresceu apoiada em página internet VIGILÂNCIA EM SAÚDE DO
atuais. Apoios pontuais como o recebido da Funda- alimentada com difusão de notícias, suporte para cur- TRABALHADOR. Disponível
em: https://www.multiplicado-
centro, que sediou e apoiou financeiramente vários sos presenciais, difusão de conhecimentos incluindo resdevisat.com/. Acesso em: 21
dez. 2020
encontros, também foram importantes. O Cerest traduções de livros distribuídos gratuitamente em
de Campinas trouxe para a agenda a segurança do versões impressas e online e arquivos das apresenta-
paciente com caso de mortes de pacientes em serviço ções de encontros presenciais. Em agosto de 2020,
de ressonância magnética. Dos sindicatos de traba- o portal tem 2.500 cadastrados.
lhadores, tivemos demandas envolvendo desastres Com o início de encontros presenciais na FSP,
ambientais como contaminação química em Paulínia, vieram gravações e transmissões ao vivo dos eventos
acidentes com eletricitários; na agroindústria, aci- que passaram a ser disponibilizados em livre acesso
dentes e contaminações com Benzeno nas refinarias em Canal YouTube do Fórum6 bem como no canal7. 6. FÓRUM ACIDENTES
DO TRABALHO – FórumAT.
de petróleo. É importante ressaltar a conexão com Nos últimos anos, o Canal YouTube também Disponível em: www.youtube.
com/ForumAcidentes. Acesso
o trabalho do cineasta Beto Novaes que levou para passou a difundir gravações de entrevistas com espe- em: 21 dez. 2020.
a linguagem do cinema a produção científica. cialistas da área de Saúde do Trabalhador ampliando 7. IPVTVUSP. Disponível em:
Um dos pontos altos da colaboração com o mo- seu repertório de produtos e procurando destacar https://iptv.usp.br/portal/home.
Acesso em: 21 dez. 2020
vimento sindical se deu no I Seminário Internacional temas que cresceram em importância e atualidade,
de Análise e Prevenção de Acidentes do Trabalho (I com destaque para a construção de Política Nacional

Foto: New York Herald-Tribune, 1932


268

de Saúde do Trabalhador e para a saúde mental no O Fórum também foi influenciado pelo diálogo
trabalho; sem se afastar da análise de acidentes. Desde com integrantes de movimentos de educação popular,
setembro de 2011, o canal totaliza cerca 992 inscritos como Emílio Gennari, e demandas de Cerest resultan-
e 43.264 visualizações. do em experimentos que, sob a influência das ideias
É importante destacar que, ao longo desses 14 de Paulo Freire, mudaram o tradicional formato de
anos, a agenda de encontros do Fórum e a dinamiza- eventos centrados na transmissão de conhecimen-
ção das publicações de notícias sempre se mostraram tos para outro, de estímulo à produção coletiva de
em consonância com a conjuntura do País seja no conhecimentos e práticas compartilhadas por meio
tocante às repetidas ameaças e ataques a direitos de oficinas.
dos trabalhadores, seja nos desastres ou acidentes
industriais ampliados afetando diferentes setores de A intervenção formativa como objeto de
atividade, com destaque para o que aconteceu na pesquisa: academia se liga com a realidade social
Boate Kiss, em Santa Maria (RS); tragédias como a A colaboração estabelecida com órgãos públi-
de ônibus guilhotinado por dois trens em passagem cos, serviços com atuação no campo da prevenção
de nível em Americana (SP); explosão e afundamento de acidentes e organizações de representação de
da plataforma petrolífera P36; rupturas de barragens trabalhadores também se firma como característica do
de rejeitos na mineração etc. O portal permite acesso FórumAT. Por isso, parcela significativa dos projetos
a mais detalhes da programação dos encontros pre- de pesquisa desenvolvidos por integrantes do grupo
8. FÓRUM ACIDENTES DO senciais e virtuais (durante a pandemia)8. e/ou sob orientação de seus pesquisadores surgem por
TRABALHO. Disponível em:
https://www.forumat.net.br/at/ Historicamente, a construção da agenda de en- demandas de parceiros públicos e de sindicatos de tra-
sites/default/files/arq-paginas/
quadro_atualizado_ep_foru- contros presenciais do Fórum tem sido alimentada balhadores. A iniciativa foi também reconhecida pelo
mat_2020.docx. Acesso em: 06
jan.2021.
por múltiplas fontes. Parte das demandas teve ori- Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
gem na aproximação construída entre o FórumAT e Tecnológico (CNPq), que no início do Projeto Temático
áreas da Visat no estado de São Paulo, mas também de Pesquisa ‘Acidente de Trabalho: da análise sócio
da Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador do técnica à construção social de mudanças’, aprovou a
Ministério da Saúde. Os convidados internacionais concessão de bolsas aos seus organizadores, na mo-
refletiram pontes de diálogo construídas com colegas dalidade ‘Extensão Inovadora’. Atividades de pesquisa
pesquisadores de universidades e da Fundacentro das dos responsáveis pelo FórumAT têm sido reconhecidas
áreas de ergonomia e engenharia de segurança nos também no mundo acadêmico, merecendo destaque
estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná. Outra o financiamento de dois projetos de pesquisa temá-
fonte de diálogo importante é o Ministério Público ticos pela Fapesp (Processo nº 2012/04721-1 e Proc.
do Trabalho com demandas sempre associadas aos 2019/13525-0). As atividades do FórumAT, de difusão
múltiplos enfrentamentos que faz nos campos da da abordagem sistêmica em análise e prevenção de
Saúde do Trabalhador e ambiental. acidentes, foram incluídas como uma das cinco dimen-
Também merece destaque a tentativa do Fórum sões do primeiro temático que incluiu investigações
de se manter em sintonia com a conjuntura do País, in- em profundidade de acidentes e outras ocorrências
centivando encontros sobre temas emergentes, seja na em sistemas complexos, questionando a abordagem
forma de ameaças e práticas de desmonte do aparato tradicional e, a partir dos casos analisados, difundir a
jurídico institucional de atuação na Saúde do Trabalhador abordagem organizacional sistêmica e propiciar con-
em nosso país, seja em resposta a desastres e acidentes dições de intervenção formativa, visando a alteração
ampliados no Brasil e até fora dele. Isso culminou, em das condições que geram esses distúrbios no sistema
2020, com a criação de módulo que aglutina notícias de atividade de origem.
9. FÓRUM ACIDENTES DO relacionadas com a pandemia da Covid-199. Para dar conta desses objetivos, o projeto se
TRABALHO. COVID-19. Dispo-
nível em: https://www.forumat. Por fim, a própria trajetória de pesquisas desen- apoiou na análise organizacional10 (e no Mapa re-
net.br/at/index.php?q=covid-19.
Acesso em: 06 jan.2021.
volvidas por grupo que tem entre seus membros os formulado visando sua transformação em ferramenta
10. LLORY, M., et al. O acidente
responsáveis pelo portal e pesquisadores convidados, participativa e formativa, ampliando o processo de
e a organização. Belo Horizonte: inclusive, de outros estados do Brasil e de fora do construção do diagnóstico e de transformação das
Fabrefactum, 2014.
País, passou a influenciar a agenda de encontros e as situações com a participação dos trabalhadores).
atividades mantidas. Com isso, a página passa a ter Isso se dá ao mesmo tempo que crescem inicia-
mais espaço dedicado à difusão de informações sobre tivas de integração do FórumAT em agenda política
atividades de pesquisa desse grupo estando em fase de interesse do campo da Saúde do Trabalhador,
de desenho a ampliação dessa ideia. sempre em sintonia com ofensiva política vivenciada
269

no País nos últimos anos, que associa propostas de mentos juntamente com práticas que podem ser ditas
‘reformas’ trabalhista e previdenciária com desmonte de frequentar a vida e de estímulo à mobilização e
da legislação trabalhista e previdenciária. Em face do atuação política com agenda construída em estreita
fracasso dessas medidas no que se referia às melhorias associação com o que acontece na vida do País com
anunciadas em termos de criação de empregos e au- potencial de afetar a construção do campo da Saúde
mento da proteção social, vê-se novo incremento em do Trabalhador.
ataques governamentais ao conteúdo de seguridade A experiência do ForumAT pode ser considerada
social criado na Constituição Federal de 1988. Como bem-sucedida. De 2008 a agosto de 2020, foram realiza-
parte da resposta a esses ataques, o FórumAT passa dos 77 encontros, sendo 70 presenciais e os demais na
a integrar iniciativa de Frente Ampla em Defesa da modalidade web. A página tem servido de instrumento
Saúde do Trabalhador e cria em seu portal11 módulo de consultas e fonte de busca de materiais didáticos, 11. FÓRUM ACIDENTES
DO TRABALHO. Frente
de divulgação de ações e discussões ocorridas no notícias e difusão de conceitos e ferramentas úteis para Ampla. Disponível em: https://
www.forumat.net.br/at/index.
âmbito da Frente. profissionais, pesquisadores e trabalhadores envolvidos php?q=frampla_trab. Acesso em:
06 jan.2021.
A trajetória de atuação do FórumAT aparece no campo da Saúde do Trabalhador.
assim marcada pela associação de atividades que se Os autores agradecem a colaboração de José
referem ao campo da produção e difusão de conheci- Marçal Jackson Filho.

Estratégias promissoras 2:
‘Frente Ampla em Defesa da Saúde dos
Trabalhadores’
René Mendes

A proposta de criar uma ‘Frente Ampla em Defesa da Com efeito, o Estatuto da Abrastt1 preconiza que 1. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DE SAÚDE DO TRABALHA-
Saúde dos Trabalhadores’ nasceu no segundo Semestre DOR E DA TRABALHADORA.
[...] para alcançar sua missão, [a Abrastt] atua no apoio e Estatuto da Associação Brasileira
de 2019, como um desdobramento das discussões infor- articulação da sociedade civil, assim como no apoio e articu- de Saúde do Trabalhador e da
mais com lideranças do campo da Saúde do Trabalhador lação entre os profissionais da área de Saúde do Trabalhador Trabalhadora. 2017. Disponível
em: https://www.abrastt.org.br/
em nosso país, quando a nova Diretoria da Associação que estão vinculados a entidades públicas ou privadas ou estatuto-social. Acesso em: 06
jan. 2021.
Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora a centros de ensino e pesquisa em Saúde do Trabalhador.
(Abrastt) se preparava para tomar posse, em dezembro. Objetiva o fortalecimento e compartilhamento do saber,
do conhecimento, da informação e ampliação do diálogo
Havia que se apresentar um Plano de Trabalho para o
entre os atores do campo de saúde dos trabalhadores e das
biênio 2020/21, e as reuniões preparatórias apontavam trabalhadoras e a comunidade técnica e científica, e desta,
para a necessidade de buscar uma aliança de forças pró- com os serviços de saúde, organizações governamentais e
-Saúde dos Trabalhadores, sobretudo como uma estratégia não governamentais, e com a sociedade civil.
de enfrentamento e luta contra os inumeráveis ataques
Após a aprovação pela Diretoria que tomou posse
perpetrados contra a classe trabalhadora, principalmente
em 10 de dezembro de 2019, o discurso de posse foi
de 2016 em diante, e agravados em sua perversidade pelo
marcado pela apresentação e defesa destas ideias,
governo Bolsonaro, instalado no início de 2019.
culminando com um convite público:
Foi-nos dito, então, que a Abrastt não deveria ser
apenas ‘mais uma’ entidade, associação ou movimento Assim, por este meio, e como ponto culminante de
social, e, sim, sua relevância institucional poderia se nosso pronunciamento inaugural desta gestão, nós, os
dirigentes eleitos pelos associados da Abrastt para a
potencializar infinitamente, por meios de alianças e
gestão deste próximo biênio, formulamos um convite
parcerias com outros movimentos sociais, entidades a todos os movimentos sociais que comungam dos
e instituições com objetivos similares, alinhados na mesmos compromissos, para, unir nossas forças e juntos
defesa dos trabalhadores e trabalhadoras, de seus construirmos uma ‘Frente Nacional de Defesa da Saúde
direitos, de sua vida e saúde. dos Trabalhadores e Trabalhadoras’.
270

A potencial ampliação latino-americana e global Ampla. Sequencialmente, em ordem de adesão, foram


obrigou-nos a substituir nacional por ampla. o Instituto Trabalho Digno (ITD), o Fórum Acidentes
do Trabalho (FórumAT), o Fórum Intersindical Saúde
Frente Ampla coletivamente conceituada – Trabalho – Direito (Fiocruz/RJ) e a Associação Bra-
Do final de 2019 até os primeiros meses de sileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). O documen-
2020, foi construído um ‘documento-base’, inicial- to-base está atualmente na 28ª versão, e ainda pode
mente redigido pela Abrastt, e já como exercício de ser considerado em processo de aperfeiçoamento e
construção coletiva foi sendo revisto, modificado, constante atualização. A força dele está na legitimidade
ampliado e enriquecido pelos representantes das da construção coletiva.
entidades que primeiro expressaram o seu apoio à Assim, após várias rodadas de consulta, a Frente
proposta, e que se tornaram instituidoras da Frente Ampla foi conceituada nos seguintes termos:

A Frente Ampla em Defesa da Saúde de Trabalhadores é uma iniciativa estratégica de natureza política e multi
institucional, que visa desenvolver e aperfeiçoar parcerias conceituais e de cooperação entre movimentos sociais, en-
tidades de natureza sindical, instituições, grupos de trabalho e núcleos de estudo e pesquisa que tenham em comum
o compromisso de promoção e defesa da saúde e segurança de trabalhadores e trabalhadoras.
O objetivo principal desta iniciativa estratégica – plural, democrática e suprapartidária – é o de fortalecer e oti-
mizar a capacidade da sociedade civil – em especial, trabalhadores e trabalhadoras – para defender a vida e a saúde
dos que vivem de seu trabalho.

Principais meios de ação da Frente Ampla no Brasil e nos países da América Latina.
Dentro de seu escopo fundante de desenvolvi- (5) Desenvolver, de forma articulada e partici-
mento e aperfeiçoamento de parcerias conceituais e pativa, estratégias de ação conjunta, papéis e respon-
de cooperação no campo da promoção e defesa da sabilidades de cada parceiro(a) na resistência, luta
saúde e segurança de trabalhadores e trabalhadoras, e construção de mudanças políticas, tecnológicas,
a Frente Ampla em Defesa da Saúde de Trabalhadores legais e institucionais.
estabeleceu os seguintes meios de ação: (6) Elaborar e emitir pareceres conjuntos, notas
(1) Identificar e mapear os movimentos sociais, técnicas, posicionamentos e outros documentos e
entidades de natureza sindical, instituições, grupos de expressões de mídia, em defesa da saúde e segu-
trabalho e núcleos de estudo e pesquisa que atuam no rança de trabalhadores e trabalhadoras, sempre que
campo da promoção e defesa da saúde e segurança necessário e acordado entre os parceiros e parceiras
de trabalhadores e trabalhadoras, com o propósito componentes da Frente.
de potencializar o seu trabalho e impacto por meio (7) Desenvolver mecanismos de fortalecimento
de parcerias conceituais e de cooperação. institucional dos movimentos sociais, entidades de
(2) Desenvolver e atualizar inventários dos re- natureza sindical, instituições, grupos de trabalho e
cursos e das capacidades instaladas, das expertises núcleos de estudo e pesquisa, participantes da ‘Fren-
e dos engajamentos de pessoas, de equipamentos e te’, com o objetivo de aumentar sua acessibilidade e
instalações, de acervos de material técnico ou didático competitividade no acesso a fontes de financiamento
produzido, de estudos e pesquisas realizados pelos e fomento de atividades de pesquisa, de ensino e de
parceiros e parceiras que vierem a participar da ‘Frente’. prestação de serviços à comunidade.
(3) Compartilhar e socializar recursos para fins (8) Articular-se com outras ‘frentes’ e movimen-
comuns, isto é, dentro do escopo de defesa e promoção tos sociais nacionais, latino-americanos e globais de
da saúde e segurança de trabalhadores e trabalhadoras. escopo semelhante ou convergente, quer no campo da
(4) Desenvolver, de forma articulada e par- saúde e segurança de trabalhadores e trabalhadoras,
ticipativa, análises de conjuntura e discussão de no senso estrito, como no campo do direito ambiental
pautas temáticas prioritárias para a promoção e do trabalho, e outras ‘bandeiras’ sociais relevantes.
defesa da saúde de trabalhadores e trabalhadoras (9) Outras a serem propostas.
271

Uma agenda urgente e prioritária 8 – CONTRA todas as formas de trabalho infantil


Desde o seu lançamento, em dezembro de 2019, e de adolescentes;
quanto na elaboração do documento-base, e após 9 – CONTRA todas as formas de trabalho escravo,
discutir com os seus instituidores e apoiadores ins- antigas e contemporâneas;
titucionais, foram definidos 19 temas e ‘bandeiras 10 – CONTRA a exposição descontrolada a subs-
de luta’ prioritários, a seguir listados, os quais estão tâncias químicas tóxicas nos ambientes de trabalho,
abertos para aperfeiçoamento de seus enunciados, especialmente a exposição a agrotóxicos, às nanopar-
bem como para o acréscimo de outros temas. tículas e aos cancerígenos;
1 – CONTRA os contínuos ataques e ameaças 11 – PELA proibição imediata da retomada da ex-
de perda de direitos de proteção social no trabalho, ploração do amianto no estado de Goiás (Lei Estadual
e de direitos sociais, previdenciários e trabalhistas, nº 20.514, de 16 de julho 2019), em desacordo com
que alcançam e fragilizam trabalhadores e trabalha- o que foi aprovado pelo STF, em novembro de 2017;
doras, assim como segurados da previdência social 12 – PELA revogação da Emenda Constitucional
que têm sido impedidos de ter acesso aos direitos nº 95/2016, que congelou os gastos sociais públicos,
que fazem jus; neles incluídas as rubricas da educação e da seguridade
2 – CONTRA o desmantelamento do SUS, con- social, entre outras;
quista social, orientada pelos princípios da univer- 13 – EM DEFESA do fortalecimento e ampliação
salidade de acesso, integralidade do cuidado, com da atuação da Saúde do Trabalhador no SUS, conforme
equidade e participação da comunidade, dos trabalha- previsto na Lei nº 8.080/1990, em especial nos arts.
dores e do controle social a todxs cidadãos brasileiros; 6º, 13º, 15º, 17º, 18º;
3 – CONTRA o ataque às instituições públicas 14 – EM DEFESA da efetiva implementação da
do trabalho, como a extinção do MTE e as restrições Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Tra-
ao sistema de fiscalização do trabalho, e CONTRA balhadora (Portaria no 1.823/2012);
as medidas que enfraquecem as instituições de pes- 15 – PELA garantia do direito ao sigilo profis-
quisa, como a Fundacentro e a Fiocruz, entre outras sional e confidencialidade de informações dos tra-
que produzem conhecimento na área de Saúde dos balhadores, com a revogação definitiva do art. 9º. da
Trabalhadores e Trabalhadoras; Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº
4 – CONTRA a adoção de modelos de desenvol- 2.183/2018, respeitando-se códigos de ética nacional
vimento e de uso de novas tecnologias que implicam e internacionais;
perda de postos de trabalho (desemprego) sem a 16 – CONTRA a persistente e vergonhosa ocor-
correspondente e obrigatória adoção de políticas rência de mortes evitáveis de trabalhadores e traba-
compensatórias e de abertura de novas oportunidades lhadoras, causadas por acidentes do trabalho;
de trabalho; 17 – CONTRA a crescente incidência de sofri-
5 – CONTRA todas as formas de precarização mento e adoecimentos relacionados ao trabalho, com
do trabalho; destaque para o grupo das ‘patologias da sobrecarga
6 – CONTRA a adoção de modelos de organi- e do desgaste’ (fadiga física e mental; Lesões por
zação e gestão do trabalho perversos e patogênicos Esforços Repetitivos/ Distúrbios Osteomusculares
baseados na super exploração de quem trabalha; a Relacionados ao Trabalho – LER/Dort –; Síndrome
intensificação do trabalho baseada em aumento dos de Burnout, e mortes por exaustão e excesso de tra-
ritmos de trabalho, no aumento das horas trabalhadas balho, entre outras); e para grupo das ‘patologias da
e na redução de pausas e repouso; os modelos de solidão ou silêncio’ (transtornos mentais depressivos
gestão do trabalho baseados em técnicas perversas e suicídio relacionado ao trabalho, entre outras);
e no assédio moral; a exigência de produtividade, 18 – PELA mobilização nacional no combate
baseada em metas intencionalmente inatingíveis; a da pandemia pela Covid-19, focando com grande
redução dos postos de trabalho e as demissões como preocupação e consternação a situação dos trabalha-
prática constante de gestão e ameaças; a ‘captura da dores e trabalhadores em ‘atividades essenciais’ de
subjetividade’ e outras técnicas manipulatórias; fato, e aquelas que foram agregadas por interesses
7 – CONTRA todas as formas de discriminação de econômicos e escusos;
trabalhadores, em bases de gênero, de orientação sexu- 19 – PELA constante e diuturna vigilância de
al, étnica/racial, de opção religiosa, de nacionalidade, outros problemas emergentes de interesse da saúde
de opção política ou partidária, idade, deficiência, e segurança de trabalhadores e trabalhadoras, e do
condição de saúde, dentre outras; meio ambiente.
272

A pandemia da Covid-19: impedimento de seu – Saúde mental & trabalho


lançamento e a necessidade de iniciar suas – Acompanhamento do processo legislativo da
Medida Provisória nº 927 e das cláusulas críticas para
atividades a saúde e segurança de trabalhadores e trabalhadoras
Com as medidas de distanciamento e isolamento – Antirracismo, inclusão, diversidade e traba-
social e a proibição de eventos, decretadas a partir de lhadores migrantes e refugiados
13 de março de 2020, não pôde ser levado adiante o
Dos ‘produtos’ desenvolvidos pela Frente
plano de lançamento ‘oficial’ da Frente Ampla, que havia
Ampla destacam-se:
sido planejado para o dia 18 de março. O impedimento
prossegue até esta data (07 de janeiro de 2021). • Nota Técnica 01/20 – Orientação sobre di-
Contudo, a chegada da pandemia da Covid-19, reitos de trabalhadoras e trabalhadores dos serviços
com a força e a gravidade com que ela assolou o de saúde, enquanto grupo vulnerável prioritário na
Brasil, oportunizaram a mobilização da Frente Ampla, pandemia da Covid-19
principalmente para a proteção dos trabalhadores e • Elaboração e divulgação de 11 cards com
trabalhadoras da ‘linha de frente’ nos cuidados de mensagens curtas ilustradas (com apoios externos
saúde, e outras categorias ocupacionais consideradas especializados, oferecidos por cortesia)
‘essenciais’, e que não puderam seguir o isolamento • Nota Técnica 02/20: Análise crítica das Porta-
social e a adoção do ‘trabalho remoto’. Também, a rias Conjuntas nº 19 e nº 20 do governo federal que
grande parcela de trabalhadores e trabalhadoras infor- tratam de medidas de prevenção e controle do risco
mais foram obrigados a trabalhar, tanto em atividades de transmissão da Covid-19 em locais de trabalho
públicas, de rua, quanto em trabalhos domésticos. • Conceituação de Covid-19 relacionada ao
Para tanto, houve consenso de que a melhor trabalho
forma de organizar e mobilizar as pessoas aderentes e • Fluxograma de reconhecimento e notificação
apoiadores da Frente Ampla seria por meio da criação da Covid-19 relacionada ao trabalho, publicado em
de ‘grupos de trabalho temáticos’, com objetivos de julho/2020 com ampla divulgação nas redes sociais.
estudo e desenvolvimento de ‘produtos’, mais vezes
no formato de ‘notas técnicas’, material de divulgação,
Relação das entidades, instituições e
promoção de eventos, e outros formatos. movimentos sociais instituidores e apoiadores
Neste momento, são cinco os Grupos de Tra- da Frente Ampla (atualizada até 31 de
balho formados no âmbito da Frente Ampla, a saber: dezembro de 2020)
– Direitos trabalhistas e previdenciários de tra-
balhadores e trabalhadoras portadores de Covid-19 1 – Associação Brasileira de Enfermagem – Seção
relacionada ao trabalho Paraná (ABEn-PR)
– Ampliação do conceito de Covid-19 relacio- 2 – Associação Brasileira de Ergonomia (Abergo)
nada ao trabalho: ações necessárias e recomendadas 3 – Associação Brasileira de Estudos do Trabalho
para avançar (Abet)
273

4 – Associação Brasileira de Fisioterapia do Tra- 28 – Fórum Sindical e Popular de Saúde do Tra-


balho (Abrafit) balhador e da Trabalhadora de Minas Gerais (FSPSTT/
5 – Associação Brasileira de Médicas e Médicos MG)
pela Democracia (ABMMD) 29 – Grupo de Estudos Trages (Trabalho, Gestão
6 – Associação Brasileira de Saúde Coletiva e Saúde/UFG)
(Abrasco) 30 – Grupo de Extensão e Pesquisa Trabalho e
7 – Associação Brasileira de Saúde do Trabalha- Saúde Docente (Trassado/UFBA)
dor e da Trabalhadora (Abrastt) 31 – Grupo de Pesquisa ‘Os paradigmas da En-
8 – Associação Brasileira dos Expostos ao Amian- fermagem no contexto da Saúde do Trabalhador’
to (Abrea) (ENF/Uerj)
9 – Associação Brasileira dos Terapeutas Ocu- 32 – Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Con-
pacionais (Abrato) temporâneo (GPTEC).
10 – Associação dos Docentes da Unesp (Adu- 33 – Instituto de Arquitetos do Brasil – Depar-
nesp) tamento de São Paulo (IAB-SP)
11 – Associação dos Expostos e Intoxicados por 34 – Instituto Trabalho Digno (ITD)
Mercúrio Metálico (AEIMM) 35 – Instituto Lavoro
12 – Associação Juízes para a Democracia (AJD) 36 – Instituto Trabalho Digno (ITD)
13 – Associação Nacional de Engenharia de Se- 37 – Laboratório de Saúde, Ambiente e Trabalho
gurança do Trabalho (Anest) – Instituto Aggeu Magalhães – Fiocruz/PE (Lasat-IAM-
14 – Associação Nacional dos Magistrados da -Fiocruz/PE)
Justiça do Trabalho (Anamatra) 38 – Laboratório de Voz (LaborVox) da PUC-SP
15 – Associação Nacional dos Procuradores do 39 – Laboratório Interinstitucional de Subjetivi-
Trabalho (ANPT) dade e Trabalho (List) – Departamento de Psicologia
16 – Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras (DPI) – Universidade Estadual de Maringá (UEM)
do Brasil (CTB) 40 – Núcleo de Epidemiologia da Universidade
17 – Central Única dos Trabalhadores (CUT) Estadual de Feira de Santana – BA (Uefs-BA)
18 – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde 41 – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e
(Cebes) Trabalho (Nest/UFRGS)
19 – Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador 42 – Núcleo de Estudos Trabalho, Saúde e Sub-
e Ecologia Humana (Cesteh/Ensp/Fiocruz) jetividade (Netss/Unicamp)
20 – Centro Regional de Referência em Saúde 43 – Observatório Sindical Brasileiro – Clodes-
do Trabalhador da Região dos Vales (Cerest/Vales/RS) midt Riani (OSBCR)
21 – Departamento de Direitos Humanos, Saúde 44 – Pastoral Operária
e Diversidade Cultural – Escola Nacional de Saúde 45 – Programa de Estudos Pós-Graduados em
Pública – Fiocruz (DIHS/Ensp/Fiocruz) Fonoaudiologia da PUC-SP
22 – Departamento de Saúde Coletiva – Facul- 46 – Programa de Pós-Graduação em Ciências
dade de Ciências Médicas da Unicamp (DSC/FCM/ da Reabilitação (PPG-Reab/UFBA)
Unicamp) 47 – Programa de Pós-Graduação em Saúde
23 – Departamento Intersindical de Estudos Pública – Universidade Federal do Ceará (PPGSP/UFC).
e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho 48 – Programa de Pós-Graduação em Saúde,
(Diesat) Ambiente e Trabalho (PPSAT/UFBA)
24 – Faculdade de Enfermagem da Universidade 49 – Programa de Promoção da Saúde, Ambiente
do Estado do Rio de Janeiro (ENF/Uerj) e Trabalho (PSAT-Fiocruz/DF)
25 – Fórum Acidentes do Trabalho (FórumAT) 50 – Projeto Laborar – saúde psíquica do traba-
26 – Fórum Intersindical Saúde – Trabalho – lhador (Instituto Sedes Sapientiae)
Direito (Fiocruz/RJ) 51 – Rede de Estudos do Trabalho (RET)
27 – Fórum Sindical de Saúde do Trabalhador 52 – Sindicato dos Servidores de Ciência, Tecno-
(FSST/RS) logia, Produção e Inovação em Saúde Pública (Asfoc).
274

Que estratégias são necessárias hoje, para


reacender o ‘fogo’ da Saúde do Trabalhador
(e não se sentar sobre as cinzas...)?
Resposta de Elizabeth Costa Dias (setembro/2020)
A provocação embutida na pergunta certamente que acreditou que com os direitos básicos assegurados na
terá distintas respostas. Nenhuma certa ou errada, Constituição de 1988 poderíamos nos dedicar à constru-
todas refletindo os diversos entendimentos do mundo, ção de novas práticas de saúde, no contexto da ascensão
nesse tempo histórico em que vivemos. de um governo popular de esquerda.
Penso que a essência do ‘movimento pela Saúde Porém, essa desmobilização das lutas cotidianas
do Trabalhador’, que teve o protagonismo e a par- tem custado muito caro. Foge aos objetivos e mesmo
ticipação de muitos dos convidados a responder à ao espaço disponível no texto, o aprofundamento
pergunta e resultou na instituição de práticas sociais desse tema, que me instiga crescentemente. São muitas
em saúde inovadoras no âmbito das organizações as perdas recentes, impostas aos cidadãos, trabalhado-
sociais, das instituições no âmbito do trabalho e da res e profissionais de saúde comprometidos com as
previdência social e na criação do SUS, está viva e pul- lutas pela vida e pela saúde, e acrescentaria também
sando, ainda que sufocada por muitas adversidades. pelo trabalho digno para todos, pois acreditamos que
E continua prenhe de possibilidades. ele é ou deveria ser produtor ou facilitador da vida
Sem dúvida, são tempos de mudanças nos ce- com qualidade e de saúde. As reformas trabalhista,
nários no trabalho, nas políticas públicas de proteção previdenciária e do sistema educacional, aceleradas a
social dos trabalhadores e trabalhadoras, nas institui- partir de 2017, e a asfixia planejada e crescente do SUS
ções diretamente envolvidas, na esfera do trabalho, ferem mortalmente direitos duramente conquistados
previdência, saúde e ambiente, nas universidades e em lutas seculares dos trabalhadores.
institutos de pesquisa e nas organizações e represen- Porém, prefiro buscar inspiração na força dos
tações dos trabalhadores. movimentos sociais que se multiplicam como ex-
Nesse contexto de mudanças radicais e contrárias pressão de força e resiliência. E é a eles que quero
aos interesses dos trabalhadores, ser um ‘movimento’ juntar minha contribuição na luta pela vida e Saúde
confere plasticidade e abre inúmeras oportunidades. dos Trabalhadores e Trabalhadoras. A pandemia de
Por isso, sempre preferi a denominação de ‘Movimento Covid-19 tem trazido, à custa de muito sofrimento,
pela Saúde do Trabalhador’ à de área ou de campo. dor e mortes precoces, oportunidades de reflexão
Movimento nos deixa mais livres, leves e criativos. e mudanças na vida pessoal e social que não nos
Assim, considero o caráter instituinte como nossa permitem desanimar.
maior riqueza e a chance de estar próximos e em Quem poderia prever a organização dos mo-
sintonia com a realidade, como ensina Guattari. tociclistas profissionais, duramente atingidos pela
No entanto, realizar isso no dia a dia não é tão sim- precarização do trabalho, que se tornaram pesso-
ples, em especial no contexto da pandemia de Covid-19, e as-chaves na quarentena e foram responsáveis por
da crise sanitária, política e econômica, que nos aprisiona, um dos recentes exemplos de luta por condições de
assusta e paralisa. Correndo o risco de ser taxada de in- trabalho? Não saem das cinzas, mas são fogo puro.
gênua, alienada, desinformada, para ficar apenas nessas Os transtornos decorrentes da pandemia ocorrem
categorias, opto pela ousadia de buscar ver esse momento em escala planetária e têm mobilizado um esforço global
com outras lentes, buscando saídas, novas conexões e para o seu enfrentamento. Mediado pelas tecnologias
parcerias para continuar a perseguir nossas utopias. da informação e outras tantas, nunca se avançou tão
Pertenço ao grupo dos que participaram dos inícios rapidamente na produção de conhecimento sobre uma
do movimento da Saúde do Trabalhador em nosso país, e doença e nas formas de intervenção, na história humana.
275

No Brasil, a crise sanitária forçou a sociedade a Como será esse ‘novo normal’? Qual a nossa
encarar a vergonhosa desigualdade social: cerca de capacidade de antecipação às mudanças? Como moldá-
100 milhões de pessoas em situação de pobreza ou -las em benefício da humanidade? Que outro mundo é
indigência, flageladas pelo desemprego, a informalida- possível? Como construir instituições governamentais
de e a precarização do trabalho; a falta de saneamento e o modelo econômico deem suporte a esse novo?
básico e habitação digna no País. Essa realidade impôs Somos desafiados a contribuir com o nosso
a construção de remendos, com políticas emergenciais melhor neste momento. Segundo Noah Harari, a Co-
de transferência de renda, há muito demandadas, que, vid-19 pode ser uma virada significativa na história,
se não são suficientes, representam uma reviravolta pois representa uma ameaça clara e iminente, e mata
nas políticas econômicas em curso até então. rapidamente. O movimento da Saúde do Trabalhador
Trabalhadores invisíveis se tornaram essenciais. pode se beneficiar da experiência das irrupções do
O SUS e os trabalhadores de saúde, tão achincalhados, inesperado na história, na expressão de Edgar Morin, e
passaram a ser aplaudidos e a receber homenagens redirecionar suas lutas. Precisamos aprender a conviver
de reconhecimento. As pessoas de modo geral se com as incertezas e com os desafios da complexidade
apropriaram de tecnologias de comunicação que em para confrontar e organizar os conhecimentos e conec-
outras circunstâncias estariam distantes. A questão tá-los em rede, integrando a totalidade. Somos parte
ambiental e os efeitos das mudanças climáticas pas- da incrível construção da humanidade. Olhemos mais
saram a ser discutidos no cotidiano. Os custos foram longe: de onde viemos, onde chegamos e para onde va-
e continuam altíssimos, mas não será possível voltar mos. Não busquemos apenas a estabilidade conhecida.
ao ‘normal’ sem considerar essas mudanças. Para isso, precisamos de imaginação, criativida-
Creio que atingimos o patamar de aldeia global de, autonomia e liberdade para criar soluções novas.
anunciado por McLuhan nos anos 1960. A epidemia de Segundo Morin1, “precisamos abrir nossas mentes [...] 1. MORIN, E. Um festival de
incerteza. 2020. Disponível em:
Covid-19 desvelou aspectos sinistros do modelo capitalista, para o essencial: a importância do amor e da amizade http://www.ihu.unisinos.br/78-no-
ticias/599773-um-festival-de-in-
em especial das políticas ultraneoliberais, mas fez emergir para nosso florescimento pessoal; para a comunidade e certeza-artigo-de-edgar-morin.
gestos de solidariedade e compromisso com a vida que para a solidariedade de nossos ‘eus’ nos ‘nossos’, para Acesso em: 10 out. 2020.

pareciam esquecidos. Assim, não é bom ficar olhando o destino da Humanidade, dentro da qual cada um de
para trás, saudosistas, lamentando as perdas ou o leite nós é uma mera partícula”. Busquemos a regeneração
derramado. Sigamos o exemplo do povo trabalhador, do humano sem a arrogância do antropocentrismo.
marginalizado, dos excluídos sociais que persistem contra Assim, estaremos vivos e caminhando no Movimento
as adversidades e que não desistem da vida. pela Saúde do Trabalhador.

Resposta de Lia Giraldo da Silva Augusto (setembro/2020)


Para responder a essa questão, tenho de ir ao túnel a partir de 1978, seguindo a orientação partidária em
do tempo, recordar as histórias que permitiram o fogo, modo sempre de alianças amplas, sem hegemonismos,
depois os supostos fatos (em minha opinião) explicam foram iniciados debates com o movimento sindical,
o período de cinzas, e ensaiar alguma ideia de retomada. especialmente o paulista, culminando com a criação do
Para mim militante, à época do Partido Comunis- Diesat. No mesmo período, o conjunto da militância
ta Brasileiro (PCB) em São Paulo, tudo começa com um médica funda um movimento denominado ‘Renovação
documento de 1978 da direção deste partido intitula- Médica’, que tinha por principal objetivo deslocar
do ‘A saúde nas fábricas’, inspirado certamente no livro as entidades médicas de seu polo mais conservador
de Giovanni Berlinguer1 com o mesmo título, e que foi para um ambiente mais progressista e democrático 1. BERLINGUER, G. A
saúde nas fábricas. São Paulo:
editado no Brasil posteriormente no ano de 1983 pela para o devir de uma reforma sanitária necessária para CEBES-Hucitec, 1983.
editora Hucitec, um dispositivo desse mesmo partido. cumprir um melhor cuidado da saúde da população.
Nessa década ainda, os intelectuais da saúde pública, Com a ruptura na II Conferência Nacional da Classe
que atuavam nas diversas faculdades de Medicina, Trabalhadora (Conclat), momento em que é a criada
nacionalmente, mas com mais força no quadrante a Central Única dos Trabalhadores, por orientação
São Paulo-Rio-Minas Gerais-Paraná, tinham criado o do recém-criado Partido dos Trabalhadores, essas
Cebes e a Abrasco. Nesse caminho no final da década, iniciativas políticas ganham novas dinâmicas.
276

É nesse contexto que eu me inseri profissio- história, para compreender o que sucedeu após os
nalmente; em praticamente todas essas frentes, sou anos 2000, período em que a chama começa a des-
testemunha pela história vivida, não como dirigente, vanecer, dando lugar progressivamente às cinzas dos
mas como militante ‘pés descalços’. Também por tempos atuais.
ter escolhido, em 1978, o Vale da Morte, como era Meu sentimento é de que houve, entre outras, as
conhecido Cubatão (SP), como lugar para atuar como seguintes circunstâncias: domesticações do processo
sanitarista, cuja formação devo ao Secretário de Saúde político e da própria saúde pública; pragmatismos do
do Estado de São Paulo Walter Leser, que criou um movimento social justificado pela ‘governabilidade’;
curso de especialização intensivo de Saúde Pública na hegemonismos dentro da própria esquerda; falta de
USP. Muitos dos sanitaristas que tiveram protagonismo compreensão do capitalismo contemporâneo e por
na Saúde do Trabalhador paulista passaram por essa isto ausência de estratégias ao menos reformistas;
formação massiva, realizada principalmente 1976- descompassos na compreensão das mudanças glo-
1980, pela sábia decisão desse Secretário. bais: tecnológicas, dos processos produtivos e da
Também havia as orientações dos organismos organização do trabalho; dos fluxos de mercado, da
internacionais, especialmente OIT e Organização intensificação dos rentismos; do agravamento da crise
Pan-Americana da Saúde/OMS, de onde chegavam ambiental, que já se adivinhava desde a década de
importantes documentos que eram escritos sob a 1970, em que o campo da saúde coletiva permanece
influência de experts, inclusive vários de esquerda, atrasada em sua forma de atuação, especialmente pela
que atuavam na Europa, nas Américas do Norte, Cen- fragmentação não superada, embora tenha inscrito a
tral e do Sul. integralidade na Constituição Federal de 1988 como
Com frequência, esses dois movimentos tinham um de seus princípios.
profunda intersecção, mas havia também discordân- Nesses últimos tempos, surgiram outros atores
cias. A Saúde do Trabalhador nasce da ebulição das protagonistas, na condição de sujeitos, outras formas
ideias e ações produzidas nesse caldeirão de alianças de compreender os problemas de saúde em geral e
em que, no Brasil, o PCB soube amalgamar. Essas con- dos trabalhadores e trabalhadoras em especial. Os
tingências foram o que possibilitou a florescência das contextos, as iniquidades, as singularidades parecem
extraordinárias experiências em Saúde do Trabalhador apontar para um tempo de novas heurísticas e ações
no âmbito Sindical e na rede pública de saúde, desde políticas. As perguntas que não calam e insistem são: o
o começo da década de 1980. que fazer? Como fazer? Com quem fazer? E as respostas
Um paradoxo se observa e que requer análise pode ser esta sintética: ‘o caminho se faz ao caminhar’.
profunda, a partir de um pensamento crítico, supra- A iniciativa deste almanaque pode ser um instrumento
partidário, se possível com os atores políticos dessa para um processo inaugural, vamos debatê-lo!
Foto: Mídia Ninja
10
Saúde e trabalho
em situação extrema
de crise sanitária e econômica
Coordenação
Rosangela Gaze & Eguimar Felício Chaveiro
DOI: 10.5935/978-65-87037-01-1.13
279

Saúde e trabalho em situação extrema


de crise sanitária e econômica
Rosangela Gaze
Eguimar Felício Chaveiro

‘Saúde e trabalho em situação extrema de trabalhadora tecida em letras tem afeto pelo suor
crise sanitária e econômica’ é um bloco de dez do trabalho e pelas lágrimas das perdas e das
ensaios escrito por autores agregados no desejo de dores. A alma trabalhadora foi desenhada a lápis,
apontar rumos entrelaçados à alma trabalhadora como no esboço do artista, para que o corpo traba-
na luta por políticas públicas de saúde substan- lhador construa um novo caminhar ensolarado na
tivas. A alma trabalhadora em nosso bloco tem justiça e solidariedade. Retratamos este caminhar
láureas de todas as cores, roupagens, histórias, de lutas, conquistas e emoções em poesia, pois o
estudos, raças, gêneros, origens, classes... A alma sumário não basta à alma trabalhadora.

Almas estilhaçadas por perdas


Afagos distanciados
Legislações que disfarçam a ditadura
Múltiplas curvas sem faces trabalhadoras
Abandonos
Trabalhadores invisíveis
Ramazzini e Semmelweis esquecidos
A história desprezada
Busca pelo que se perde
Afeto e garra
Luta para conquistar
Humanidade ameaçada
Abandonos
Direitos suprimidos
Opressão
Rotas transnacionais da pandemia
Abandonos
Novas caras da morte
Abandonos
Política do necrocapital
Abandonos
Negacionismo
Direitos perdidos
Economia da necropolítica
Mineração mortal
Indiferença pandêmica
Abandonos
280

A Covid-19 trilha as rotas


das cadeias produtivas
Rosangela Gaze
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos
Eguimar Felício Chaveiro

1. FELIX, P., et al. OMS admite Prelúdio Neste ensaio, abordam-se questões menos popu-
erro e eleva um risco global de
coronavírus; mortes chegam a 106.
larizadas sobre ‘relações perigosas’ entre o capital e
Estadão. 27 jan. 2020. Disponível
Nos últimos tempos, procura-se compreender as a Covid-19 no neoliberalismo. Toma-se como pressu-
em: https://saude.estadao.com.br/ variações de casos e mortes na pandemia. Formulam-se posto que o vírus segue as rotas de cadeias produtivas
noticias/geral,oms-diz-que-come-
teu-erro-e-classifica-como-eleva- hipóteses, entre outras, sobre a constituição genética, transnacionais da economia globalizada.
do-risco-internacional-do-coronavi-
rus,70003174716. Acesso em: 21 grupos sanguíneos, imunidade natural, comorbidades, Em todos os setores produtivos, este vírus (e
dez. 2020.
estratégias de testagem, medidas de distanciamento possivelmente outros coronavírus e vírus influenza)
2. O ESTADO DE SÃO PAULO.
Mercado teme coronavírus e
social e barreiras mecânicas ao contágio. Muito comenta- aproveita-se dos processos de trabalho com aglo-
Bolsas desabam pelo mundo; das, transformam cada um de nós em técnicos de saúde merações de trabalhadores (linhas de produção) ou
dólar tem alta. Estadão. 27 jan.
2020. Disponível em: https:// pública; e, como no futebol, todos têm um palpite. pessoas em geral (centros comerciais).
economia.estadao.com.br/noticias/
geral,avanco-do-coronavirus-der- A oposição falaciosa saúde versus economia ocu- O encadeamento das ideias inclui o trabalho
ruba-mercados-em-todo-o-mun-
do,70003174442. Acesso em: 06
pou espaço na mídia desde os primeiros momentos da nas relações saúde-doença durante a pandemia, dia-
jan. 2020. pandemia. Nem bem se publicava o alerta da Organi- logando com referenciais da Saúde do Trabalhador
3. VASCONCELLOS, L. C. F., et zação Mundial da Saúde (OMS) de elevação máxima (ST), ilustrando e comparando com notícias atuais e
al. O afrouxamento da quarentena
é ótimo! ‘Atualize-se em tempo de do grau de risco internacional do novocoronavírus1, da gripe espanhola sobre a ocorrência de surtos em
coronavírus’-MVisat. Disponível
em: https://48209fd4-9e54-4385-b- a queda mundial nas bolsas de valores ocuparia as fábricas. Aponta vazios do Estado, lacunas dos sistemas
712-c09bfc7c2b87.filesusr.com/
ugd/15557d_5bbe8223961e-
principais manchetes2. A resistência dos governantes oficiais de monitoramento de agravos e resistência à
43d897b5a506386b7e66.pdf. brasileiros, pressionados pela elite empresarial, às superação de paradigmas científicos.
Acesso em: 21 dez. 2020.
medidas de distanciamento social traduziu-se em pro- Vislumbrando um enfrentamento alongado da
4. INSTITUTO BRASILEIRO DE
ÉTICA CORRENCIAL. Estudo gressão exponencial de casos e mortes e propagação pandemia, em um poslúdio, aborda o afloramento
do ETCO e do Ibre/FGV acom-
panha o mercado informal no País. do Sars-Cov-2 para quase todo o País. espontâneo de movimentos sociais que se assemelham
Disponível em: https://www.etco.
org.br/projetos/economia-subterra-
Falas e atitudes desafiadoras às recomendações aos “sítios simbólicos de pertencimento”5.
nea/. Acesso em: 21 dez. 2020. da OMS, minimização da gravidade, incentivos a aglo-
5. ZAOUAL, H. O homo situs e merações, prescrição de placebo (cloroquina) que Interlúdio
suas perspectivas paradigmáticas.
OIKOS, v. 9, n. 1, p. 13-39, 2010. pode ter contribuído para óbitos, demissão de dois Evidências estatísticas são suficientes para com-
Disponível em: http://www.revis-
taoikos.org/seer/index.php/oikos/
ministros da saúde e interinidade de militar por me- preender a trajetória e projetar tendências de arre-
article/viewFile/196/126. Acesso ses, afrouxamento ‘aleatório’ de quarentenas levam à fecimento ou ascensão, de eclosão ou supressão de
em: 06 jan. 2020.
suposição de que o Brasil se transformou em paraíso casos da Covid-19. Todavia, a pandemia caracteriza-se
6. KUHN, T. A função do dogma na
investigação científica. Disponível ao espalhamento da Covid-193. por incertezas e achados cotidianos que desafiam o
em: https://acervodigital.ufpr.br/
bitstream/handle/1884/29751/ A apreensão com trabalhadores informais, tra- conhecimento acumulado e suscitam a superação de
Kuhn_A%20Funcao%20do%20
dogma%20na%20investiga-
dicionalmente invisíveis às elites, ocupa agendas po- dogmas científicos. “Nas ciências, a maior parte das
cao%20cientifica.pdf?sequen- líticas, econômicas e sociais. A concessão de auxílio descobertas de fatos inesperados e todas as inovações
ce=3&isAllowed=y. Acesso em: 21
dez. 2020. aos trabalhadores autônomos e de baixa renda gerou fundamentais da teoria são respostas a um fracasso
7. MULTIPLICADORES DE medidas provisórias, pauta sessões do legislativo e prévio usando as regras do jogo estabelecido”6.
VIGILÂNCIA EM SAÚDE DO
TRABALHADOR. Atualize-se em frequenta conversas nem sempre ‘generosas’ nas A metamorfose do mundo do trabalho – ‘rein-
tempo de coronavírus. Disponível
em: https://www.multiplicadores-
lives sociais. O que pouco se comenta é a intenção venção dos negócios’, segundo os capitalistas – de-
devisat.com/atualize-se-em-tem- nada ‘humanitária’ de salvaguardar o Produto Interno senvolve-se em velocidade astronômica, assenta-se em
po-de-coronavirus. Acesso em: 21
dez. 2020. Bruto (PIB) nacional. análises complexas do mercado financeiro mundial,
8. ALMEIDA, I. M. Covid-19 O setor informal da economia no Brasil, em acesso a informações ‘privilegiadas’ (planos gover-
como doença relacionada ao tra-
balho. Opinião, MVisat, 20/07/20. 2019, movimentou R$ 1,2 trilhão (17,3% do PIB), namentais, ‘saúde’ de grandes empresas...) e não
Disponível em: https://48209fd-
4-9e54-4385-b712-c09bfc7c2b87.
“segundo o Índice de Economia Subterrânea (IES), dispensa o ‘tino’ dos proprietários.
filesusr.com/ugd/15557d_8e7e7e- divulgado pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorren- O mundo dos negócios, ao prever redução de
0e9e1440a3b47f0bbc2b90f6c3.pdf.
Acesso em: 21 dez. 2020. cial-ETCO e Instituto Brasileiro de Economia/FGV”4. lucros, redesenha investimentos, produtos, fachadas e
281

Foto: Marcelo dos Santos/Fotos Públicas


9. MOTA, M. V. Covid-19 se
alastra em frigoríficos e põe
brasileiros e imigrantes em risco.
BBC News Brasil. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/
brasil-53477319. Acesso em: 21
dez. 2020.

10. AROUCA, A. S. S. O Dilema


preventivista contribuição para a
compreensão e crítica da medicina
preventiva. 1975. Tese (Doutorado
em Ciências Médicas) – Univer-
sidade Estadual de Campinas,
Campinas, 1975. Disponível em:
https://teses.icict.fiocruz.br/pdf/
aroucaass.pdf. Acesso em: 21
dez. 2020.

11. GAZE, R. Pandemia para além


locais de produção; comportamento da elite financeira factíveis, e os frigoríficos são meros exemplos de péssimas da sinfonia. ‘Atualize-se em tempo
de coronavírus’-MVisat. Disponível
transnacional desde o primeiro caso/óbito em Wuhan, condições de trabalho entre os setores produtivos de em: https://48209fd4-9e54-4385-b-
China, na última semana de 2019. empresas nacionais e transnacionais. 712-c09bfc7c2b87.filesusr.com/
ugd/15557d_77f9f97b6e6a-
A reconfiguração ‘dos negócios’ como fator con- Arouca10, em 1975, já apontava as fragilidades de 438d8b2ea7a00f2e3a49.pdf.
Acesso em: 21 dez. 2020.
dicionante no espalhamento do vírus contribui para um modelo de história da doença em que desaparece
12. GAZE, R. Uma selfie para Jeff
a origem-gatilho e para o surgimento de novos casos. a articulação da medicina com a sociedade. O modelo Bezos. ‘Atualize-se em tempo de
coronavírus’-MVisat. Disponível
O modelo clássico de contágio, nos espaços precisa ser ajustado à realidade da pandemia sob a em: https://48209fd4-9e54-4385-b-
comunitários de moradia e convivência social, exclui a ótica e a ética da inclusão do trabalho nos algoritmos 712-c09bfc7c2b87.filesusr.com/
ugd/15557d_c9e0c21a199141a-
propagação nos espaços de trabalho e não se encaixa de propagação e monitoramento dos agravos. 996fc44a19f40e45f.pdf. Acesso
em: 21 dez. 2020.
ao das rotas reais de propagação. Revelados em di- O modo de espraiamento da Covid-19 encaixa-se
13. GAZE, R. Pequeno circo
versos países, surtos em comerciários, trabalhadores em uma ‘cadeia’ de eventos com rotas de propagação íntimo. Opinião, MVisat, 15/05/20.
Disponível em: https://48209fd-
da logística, motoristas de aplicativos, operários da múltiplas e complexas11. As medidas de contenção 4-9e54-4385-b712-c09bfc7c2b87.
indústria de eletrônicos, frigoríficos, mineradores, da pandemia – barreiras físicas de contágio pessoa a filesusr.com/ugd/15557d_f9e815f-
f553748a78474134f2b29bcc2.pdf.
operadores de telemarketing são evidentes7. pessoa, centradas no indivíduo –, embora eficazes e as Acesso em: 21 dez. 2020.

Contágio comunitário, sem a questão do tra- únicas disponíveis no atual estágio de conhecimento, 14. SINGH, M. Amazon launches
food delivery service in India. 21
balho, retrata a habilidade do capital em influenciar são frágeis no controle efetivo do surto. A razão é o maio 2020. Disponível em: https://
techcrunch.com/2020/05/21/
formadores de opinião e desviar a atenção das aglome- ‘foco’ do vírus estar no trabalho, seja nas fábricas, amazon-launches-food-delivery-
rações nas fábricas. Está moldado para servir às elites ruas, centros comerciais, minas, entregas... -service-in-india/. Acesso em: 21
dez. 2020.
capitalistas. Muniz indaga “É possível provar que esses Vítimas da Covid-19 seguem a rota dos seto-
15. GAZE, R., et al. Mistério ou
casos tenham origem comunitária, não relacionada res de produção e reprodução do capital. No setor respeito aos direitos humanos?
China colocou em quarentena
ao trabalho? A resposta óbvia é não”8. Nessa linha, de comércio, por exemplo, o isolamento social em operários da indústria eletrônica...
questiona-se: pode-se negar o contágio em linhas de centros urbanos empurrou as vendas diretas para o na primeira semana de fevereiro
de 2020. ‘Atualize-se em tempo
produção com cerca de 300 trabalhadores em espaços e-commerce, levando ao crescimento exponencial de coronavírus’-MVisat. Disponível
em: https://48209fd4-9e54-4385-b-
sem ventilação por 8 horas diárias? das empresas de logística e entrega de encomendas; 712-c09bfc7c2b87.filesusr.com/
ugd/15557d_755644259416460e-
Eventualmente, ‘bodes expiatórios’ (temperatura/ casos de Covid-19 ‘migraram’ dos lojistas para os 80d144a6e4bd952d.pdf. Acesso
umidade dos frigoríficos, barulho de máquinas que exigem ‘colaboradores’ de empresas de logística12. em: 21 dez. 2020.

da voz expelir mais gotículas, moradias precárias) são A migração de linhas de produção para lo- 16. GAUCHAZH. Operários chine-
ses serão postos em quarentena
artimanhas para retirar responsabilidades das empresas. calidades nas quais a fiscalização das condições em fábrica gigante de iPhones.
Gauchazh. Disponível em: https://
Argumentos equivocados reforçam que contrair a Co- de trabalho é mais precária, na pandemia, ‘pre- gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/
noticia/2020/02/operarios-chine-
vid-19 é um azar, um ‘infortúnio’9. Ao contrário do que se serva’ a negligência com a saúde dos trabalhado- ses-serao-postos-em-quarentena-
veicula na mídia, a reformulação de plantas de produção res, valendo-se do medo da denúncia devido ao -em-fabrica-gigante-de-iphones-
-ck6are5n403lb01nwdkkipq8l.html.
e a reestruturação produtiva a favor do trabalhador são desemprego 13. Ilustra esse aspecto a expansão Acesso em: 21 dez. 2020.
282

internacional da gigante de logística na entrega Relato de operário da Foxconn Jundiaí17 mostra


de refeições (Amazon Food) na Índia14. o sofrimento anônimo de trabalhadores da ‘linha de
O debate sobre atividade essencial é fator a conside- frente do necrocapital’:
rar nos elos de transmissão do vírus. Na China, lockdown Medo, é esse o sentimento de quem trabalha em serviços
em Wuhan/Hubei estendeu-se às indústrias não essenciais. essenciais quando enfrenta o mundo externo da pandemia.
17. GHEDIN, R. Foxconn de
Jundiaí (SP) não libera funcionários O que sucedeu na Foxconn (transnacional taiwanesa de Conheço bem o sentimento. Com um detalhe: não trabalho
na pandemia mesmo batendo
Iphones)15 em Zhengzhou/Henan, vizinha à Província em serviços essenciais. Trabalho em uma planta fabril da
recordes de produção. 02/04/20.
Foxconn na cidade de Jundiaí (SP). Sim, a empresa de origem
Disponível em: https://manualdou-
suario.net/foxconn-coronavirus/.
de Hubei, valeu para cerca de 1 milhão de operários taiwanesa que fornece componentes, material semipronto
Acesso em: 21 dez. 2020.18. nas 30 fábricas chinesas que guardaram quarentena até e pronto para marcas como Dell, Asus e Apple. Trabalhar
18. INSTITUTO BRASILEIRO DE 9 de fevereiro de 2020. Líder mundial na montagem de num ambiente fabril neste momento em que o coronaví-
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
Em 2017, São Paulo (SP) tinha o eletrônicos, da qual dependem fábricas de televisores, ce- rus se espalha rapidamente é deveras estafante. Qualquer
maior PIB e Paulínia (SP), o maior ambiente com aglomeração pode espalhar o vírus. Mais de
PIB per capita do país. Disponível lulares e laptops, a Foxconn tranquilizou clientes, revisou
em: https://agenciadenoticias. metas de crescimento (3%-5% para 1%-3%) e manteve-se 80% das indústrias da cidade não pararam. Na Foxconn, há
ibge.gov.br/agencia-sala-de-im- alguns agravantes, que, entre outras controvérsias, foi palco
prensa/2013-agencia-de-noticias/ inoperante até a suspensão das medidas preventivas pelas de dezenas de casos de suicídios em suas plantas na China
releases/26396-em-2017-sao-
-paulo-sp-tinha-o-maior-pib-e- autoridades chinesas16. continental em 2010. [...] Manter a fábrica funcionando é
-paulinia-sp-o-maior-pib-per-capita-
-do-pais. Acesso em: 21 dez. 2020. O governo brasileiro negacionista e as elites finan- um atentado à saúde e, possivelmente, levará a vida de um
19. BRASIL. COVID-19 no Brasil. ceiras transnacionais garantiram as atividades em diversas ou mais funcionários. A troco do cumprimento de contratos,
Disponível em: https://susanalitico. cadeias produtivas, entre elas, a de eletrônicos. A unidade de dinheiro.
saude.gov.br/extensions/covid-19_
html/covid-19_html.html. Acesso da Foxconn Jundiaí (SP) tem cerca de 1.500 funcionários17. A ‘gripezinha’ já foi a Influenza Espanhola. Em
em: 21 dez. 2020.
Difícil classificar esse setor produtivo como essencial, mas setembro de 1918, eclodiam os primeiros casos da Es-
20. KNUPP, L. CORONAVÍRUS
Fase vermelha: o que abre e fecha seus produtores alegam que houve aumento da demanda panhola no bairro da Fábrica (de tecidos) Santa Rosália
em Jundiaí a partir de segunda
(6). Tribuna de Jundiaí. Disponível
pelo home office. Ainda assim, medidas de contenção em Sorocaba (SP), a 85 km de Jundiaí, posicionada
em: https://tribunadejundiai.com.br/
saude/coronavirus/fase-vermelha-
– por exemplo, espaçamento de postos de trabalho, entre as cidades ‘modernas’ à custa da deterioração
-o-que-abre-e-fecha-em-jundiai-a- rodízio de equipes, diminuição de ritmos, aumento de das condições de vida e trabalho do operariado têxtil21.
-partir-de-segunda-6/. Acesso em:
21 dez. 2020. efetivos, uso de Equipamento de Proteção Individual Os debates e conflitos sobre a interrupção das ati-
21. DALL’AVA, J. P., et al. A gripe (EPI) e Equipamento de Proteção Coletiva (EPC) – não vidades na Santa Rosália e em outras têxteis sorocabanas
espanhola em Sorocaba e o caso
da fábrica Santa Rosália, 1918:
foram aplicadas, pelo menos não com essa amplitude. eram intensos. Eduardo Pirajá, médico da fábrica, em
contribuições da história local ao O perfil produtivo da cidade industrial Jundiaí é atitude dúbia, subscrevia parecer de colegas favorável
estudo das epidemias no Brasil.
História, Ciências, Saúde-Mangui- diversificado pela presença, entre outras, de empresas ao fechamento temporário das fábricas, enquanto dizia:
nhos, v. 24, n. 2, p. 429-446, 2017.
Disponível em: https://www.scielo. de tecnologia, logística, armazéns, telemarketing, trans- “Tomei a responsabilidade de concordar com o trabalho
br/pdf/hcsm/v24n2/0104-5970-h-
csm-24-2-0429.pdf. Acesso em:
portadoras, indústria alimentícia, bebidas, autopeças, [...] por não considerar aglomeração o trabalho de uma
06 jan. 2020. metalurgia, borracha, plásticos, embalagens, materiais fábrica, onde os diversos grupos de operários se dividem
22. HONORATO, M. Gripe de construção, química, papeleira, lingerie etc. por várias seções do serviço, em compartimentos diversos
espanhola de 1918 provocou
caos e fez milhares de vítimas em Os operários de Jundiaí que garantem o 16º e muito amplos [...]”21(442-3).
Alagoas. Gazetaweb. Disponível
em: https://gazetaweb.globo.com/ PIB per capita do estado de São Paulo (em 2017) e As elites empresariais e financeiras agradeceram.
portal/noticia/2020/03/gripe-espa-
nhola-de-1918-provocou-caos-e-
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito alto E a Espanhola deixou saldo de 300 mortes em Soroca-
-fez-milhares-de-vitimas-em-ala- (0,822)18 estão rapidamente se materializando, com ba. Relatórios oficiais registraram 8.213 casos de gripe
goas_101204.php. Acesso em: 21
dez. 2020. suas famílias, em curvas. O primeiro caso ocorreu em e 142 óbitos nos cerca de 39 mil habitantes21(444).
23. VEIGA, E. São Paulo já parou 28 de março; e a primeira morte por Covid-19, em 8 Operários de outras cidades22-24 formaram gran-
antes: gripe espanhola teve saques
e cemitério 24h. UOL. Disponível de abril. Em 7 de agosto de 2020, contava 314 mortes de parcela das vítimas da pandemia da Espanhola, e
em: https://tab.uol.com.br/noticias/
redacao/2020/03/14/presidente-do-
e 7.658 casos de Covid-19 para 418.962 habitantes19. a produção foi interrompida por não haver mão de
ente-mortos-insepultos-como-foi- Destaque-se que, sendo polo produtivo, muitos obra disponível.
-a-gripe-espanhola-no-brasil.htm.
Acesso em: 21 dez. 2020. de seus trabalhadores residem em outras localidades. A Covid-19, assim como a Influenza Espanho-
24. CÂMARA, R. S. A Gripe Es- Quantos desses terão morrido nos locais que habitam? la, propaga-se em ambientes com aglomerações de
panhola nos jornais de 1918: como
o coronavírus repete o passado. A fase vermelha de bloqueio à aglomeração pessoas. ‘Não importa’ se a fábrica produz carnes ou
Poder360. Disponível em: https://
www.360meridianos.com/especial/
em Jundiaí proibia, por exemplo, funcionamento celulares, o que importa é que produz vítimas. Em
gripe-espanhola-1918. Acesso em: de teatros/cinemas, restaurantes/bares, shoppings e 1918 e agora em 2020, a história se repete.
21 dez. 2020.
espaços públicos; e permitia atividades “industriais e A propagação da Covid-19 em ambientes e processos
25. GAZE, R. Ônus da prova é do
patrão. ‘Atualize-se em tempo de cadeia produtiva”, “Importação, exportação, logística de trabalho pode ser comprovada pelo Sequenciamento
coronavírus’- MVisat. Disponível
em: https://48209fd4-9e54-4385-b- e transportes”20. Infere-se, desses critérios, a diferença Genômico Completo (SGC), técnica de alta confiabili-
712-c09bfc7c2b87.filesusr.com/
ugd/15557d_90d08bb2a0bd-
entre as medidas de contenção da pandemia adotadas dade incorporada à rotina de laboratórios nacionais de
4f3a883e80ef8db036e4.pdf. na China e no Brasil. virologia molecular. O vírus, ao ‘pular’ de uma pessoa
Acesso em: 21 dez. 2020.
283

Hospital de campanha
Foto: Wikimedia Commons
durante a gripe
espanhola, 1918.

26. AGÊNCIA O GLOBO. Surto


de Covid-19 no navio Diamond
Princess foi iniciado por uma única
pessoa. Agência O Globo. Dispo-
nível em: https://www.emaisgoias.
com.br/surto-de-covid-19-no-navio-
-diamond-princess-foi-iniciado-por-
-uma-unica-pessoa/. Acesso em:
21 dez. 2020.

27. CHEUNG, H. Por que ‘terceira


onda’ de covid-19 em Hong Kong
é alerta para o mundo. BBC
News. Disponível em: https://www.
bbc.com/portuguese/internacio-
nal-53609113. Acesso em: 21
dez. 2020.

28. GONZAGUINHA. E Vamos À


Luta. Disponível em: https://www.
letras.mus.br/gonzaguinha/259335/.
Acesso em: 21 dez. 2020.

29. ZAMILIANO. 80 – Breque dos


Entregadores de Aplicativo. Revo-
lushow. 07/07/20. Disponível em:
https://revolushow.com/80-breque-
-dos-entregadores-de-aplicativo/.
a outra, ‘registra’ o material genético de cada pessoa. unirem aos entregadores. Destaca-se a centralidade Acesso em: 21 dez. 2020.

Grosso modo, o SGC, aliado à investigação (entrevista da união estudantes-trabalhadores30. 30. ESQUERDA DIÁRIO. “Nos
unamos aos entregadores”, diz
e coleta de material) caso a caso, permite identificar a O Painel Unificador Covid-1931 lançado por carta dos estudantes de Artes Visu-
ais da UFMG. Rede Internacional.
trajetória do vírus de pessoa a pessoa (vejam investigações favelas no Rio de Janeiro, com apoio da Fundação Disponível em: http://www.esquer-
na Alemanha25, Japão26 e Hong Kong27). Oswaldo Cruz (Fiocruz) e de agentes internacionais, dadiario.com.br/Nos-unamos-aos-
-entregadores-diz-carta-dos-estu-
A utilização do SGC na comprovação de nexo contabiliza casos e mortes considerando sintomas dantes-de-Artes-Visuais-da-UFMG.
Acesso em: 21 dez. 2020.
causal25 pode e deve ser solicitada ao empregador autodeclarados. Alguns órgãos públicos31 distorcem
31. SCHMIDT, S., et al. Favelas
em ações judiciais visando garantir direitos aos tra- normas32 (nacionais e internacionais) e se apoderam contestam dados oficiais de mortes
pelo coronavírus em comunidades
balhadores em caso de infecções adquiridas em am- de dados públicos. do Rio e criam painel próprio.
bientes e processos de trabalho em todos os setores Da Itália, emerge o ‘NOI Denunceremo’33 (‘Nós Yahoo Notícias. Disponível em:
https://br.noticias.yahoo.com/
produtivos. A ST, ao incorporar o SGC na elucidação denunciaremos’) para as vítimas de Covid-19 visando favelas-contestam-dados-oficiais-
-mortes-073005264.html. Acesso
da transmissão ocupacional da Covid-19, agrega rele- apurar responsabilidades, negligências e julgamento em: 21 dez. 2020.
vante diferencial a favor dos direitos humanos e dos de possíveis acusados, na condução da pandemia em 32. GAZE, R. Omissão de
notificação de doença (4). ‘Atuali-
trabalhadores. regiões industrializadas34. Trabalhadores de algumas ze-se em tempo de coronavírus’-

Poslúdio dessas fábricas de bens supérfluos realizaram greves MVisat. Disponível em:
https://48209fd4-9e54-4385-b-
espontâneas em março de 202035, sob o lema ‘Nossa 712-c09bfc7c2b87.filesusr.com/
Um novo rumo por iniciativas nascidas da dor ugd/15557d_d64574a32fb-
saúde antes dos seus lucros’. d4765a1390911ba1b31c8.pdf.
em organizações da sociedade civil no Brasil e na Acesso em: 05 mar. 2021
Esses quatro movimentos sociais ilustram o
Itália toma as rédeas para a construção da “manhã 33. NOI DENUNCEREMO. Noi
conceito de “sítio simbólico de pertencimento”5. O
desejada”28. Denunceremo – Verità e giustizia
“sítio” é uma entidade imaterial, de início invisível, per le vittime di Covid-19. Disponível
Relatos de motoristas e pedalistas de aplica- em: https://www.noidenunceremo.it/.
fugaz, perceptível por nuances, vestígios que são dei- Acesso em: 21 dez. 2020.
tivos que participaram d’O Breque dos Aplicativos
xados no espaço visível, no cotidiano da organização 34. GRAGNANI, J. Queremos
comovem! O movimento espontâneo e organizado de respostas: os parentes de vítimas
social, cultural, arquitetônica. É o locus que estabiliza da covid-19 na Itália que foram à
paralização nacional no 1º de julho de 2020 tomou Justiça contra autoridades. BBC
comportamentos no “caos da ordem social”, em que
proporções inesperadas e desejadas. O processo de News. Disponível em: https://www.
o “homo oeconomicus”, adaptado às matrizes do bbc.com/portuguese/internacio-
precarização do trabalho na fala desses trabalhadores é nal-53397353. Acesso em: 21
neoliberalismo, perde território para o “homo situs”, Dez. 2020.
tocante. A conscientização política é plasmada na dor;
desenhado por Zaoual como “refinado compositor” 35. GAZE, R. Estatísticas:
a busca de informações parte das vivências cotidianas; falácia, omissão, hipocrisia? O
que emana da luta e resistência às pressões e contribui trabalho cruelmente desconside-
expõe opiniões com lastro no sofrer, saber e viver...29. rado. ‘Atualize-se em tempo de
para conter o avanço de um modelo que avança sobre
Alinhados ao movimento dos entregadores, es- coronavírus’- MVisat. Disponível
a dignidade no trabalho. em: https://48209fd4-9e54-4385-b-
tudantes do Curso de Artes Visuais da Universidade 712-c09bfc7c2b87.filesusr.com/
Que os trabalhadores caminhem para o fortale- ugd/15557d_57b62ae3bea-
Federal de Minas Gerais divulgaram carta, em 15 de 541d6b4bfc46b68151b22.pdf.
cimento de seus sítios simbólicos de pertencimento! Acesso em: 21 dez. 2020.
julho de 2020, convidando colegas e entidades a se
284

Valores civilizatórios na atual turbulência: 1,2


os espaços de sempre
1. Adaptado de texto de apoio
à palestra de abertura do 5º
Congresso Paranaense de
Saúde Pública. Instituto Núcleo
de Estudos em Saúde Coletiva
(Inesco), 15/07/20. Leia na Nelson Rodrigues dos Santos
íntegra em MVisat/Covid-19:
https://48209fd4-9e54-4385-b-
712-c09bfc7c2b87.filesusr.com/
ugd/15557d_4692f99051d-
04d32b88caca79be16a2e.pdf. Conexões 4. Integrantes desse processo global – Google,
2. SANTOS, N. R. A Covid-19 e 1. O eficaz engendramento, nos últimos 30 anos, de Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Instagram, Twit-
o SUS: algumas reflexões e ins-
tigações. Processo civilizatório crescente formulação e comunicação midiática do ‘mito ter, WhatsApp e outras – cobrem 24 horas bilhões de
versus recaídas obscurantistas.
mercado e lucro’ como centro gerador e mola propulsora usuários em perfis: social, profissão, gênero, idade,
Abrasco. Disponível em:
https://www.abrasco.org.br/site/
do desenvolvimento econômico-social, organizador da desejos, frustrações, expectativas etc., que, isolados,
wp-content/uploads/2020/09/
Artigo-Nelsao-.pdf. Acesso em: macroeconomia e gerador da história ‘acima’ dos controles intensificam conexões. Esse núcleo articula anun-
21 dez. 2020.
estatais, parlamentares, da sociedade organizada e da ciantes (empresas de produtos, partidos políticos,
cidadania. Nessa formulação e comunicação midiática, difusores de fake news etc.).
há um componente ortodoxo sectário intelectualmente Segundo Jaron Lanier5, há a possibilidade desses
constrangido; e pior, outro componente, ideológico e bilhões “assemelharem-se a animais de laboratório
estratégico, de uso e controle da inevitável aspiração de para os anunciantes”. No seio da lógica da acumula-
3. MBEMBE, A. A era do ascensão social das classes médias. Achille Mbembe3(28) ção do grande capital e como parte dele, esse núcleo
humanismo está terminando.
alude à realiza estratégias globais hegemônicas que, segundo
Revista IHU on-line. Disponível
em: http://www.ihu.unisinos. Aristogiton Moura6, impelem partidos a transforma-
br/186-noticias/noticias-2017/ Primeira teologia secular global: o formato da hegemonia rem-se em clubes eleitorais; governos a nacionalis-
564255-achille-mbembe-a-era-
do capital financeiro sobre o mundo a partir dos anos 80,
-do-humanismo-esta-terminando. mos predatórios da representatividade; e sindicatos
Acesso em: 12 jan. 2020. que transforma a política em negócio, colocando em risco
4. GALINDO, J. C. Byung-Chul a possibilidade da política e gerando um anti-humanismo à ‘uberizações’ e novos corporativismos.
Han, o filósofo coreano que ata-
de desprezo pela democracia. Moura indaga: como intervir na transição para
ca as redes e se tornou viral. El
País. Disponível em: https://bra- nova convivência entre o mundo real (off-line) e o
sil.elpais.com/brasil/2018/02/09/ 2. Existência de ‘macroembuste’, que submete parte virtual (on-line) e como estruturar o espaço individual
cultura/1518178267_725987.
html Acesso em: 12 jan. 2020. da nossa sociedade e a desafia à permanente vigilância e e coletivo de ‘autônomos’, comprometido com os di-
5. HANCOCK, J. R. Jaron controle do conjunto da sociedade sobre os aparelhos do reitos humanos e lembrando que o capital permanece
Lanier, pioneiro da internet,
quer que você largue as redes
Estado. Nem o mercado nem a economia são ‘descobertas dependente do trabalho?6
sociais. El País-Brasil. Disponível científicas’ inalteráveis e inalcançáveis pela cidadania, 5. A voraz expansão do modelo macroeconômico
em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2018/08/28/tecnolo- senão expressão numérica das relações entre segmentos dominante, e seu mundo digital, para além das rela-
gia/1535463505_331615.html.
Acesso em: 12 jan. 2020. e representações sociais, estudadas e definidas no campo ções de trabalho e concentração da renda e riqueza
6. MOURA, A. O mundo, da história, antropologia e ciências humanas e sociais. impacta as relações sociais (pais/filhos, professores/
o trabalho e o sindicalismo
em tempos de sociedade
3. A inimaginável concentração de riqueza, renda alunos). Desavisados, acríticos do mundo virtual ou
hiperconectada. Disponível e do processo produtivo e distributivo acompanhou o nele mergulhados, assoberbados pelo produtivismo,
em: https://www.linkedin.com/
pulse/o-mundo-trabalho-e-sin- avanço revolucionário no campo tecnológico – infor- não conseguem barrar crianças e jovens mergulha-
dicalismo-em-tempos-de-socie-
dade-moura?trk=public_profi- mática, plataformas de aplicativos, automação, robótica, dos no mundo virtual, com as ansiedades e fantasias
le_article_view. Acesso em: 06
jan. 2020.
nanotecnologia, ‘uberizações’ –, antecipando previsões próprias da idade para esse ‘outro’ mundo, elevando
de crescente obsolescência/dispensa do trabalho braçal, assustadoramente a angústia, depressão e suicídio
presencial, transporte ao trabalho e, mesmo, parte do nessa faixa etária.
trabalho cerebral. Em tempo real, 24 horas on-line, esse
processo, ao contrário de liberar trabalhadores, vem redu- Dilemas
zindo rendimentos de autônomos e assalariados, levando 1. Pensadores e lideranças políticas – Noam
ao ‘produtivismo’ exacerbado e cruel. Chomsky, Alvaro Linera, Davi Adler, Bernie Sanders
À exacerbação da concentração do grande capital, – repudiaram, na Internacional Progressista, a trans-
‘Byung Chul Han’4 destaca a “individualização no processo formação do mundo financeiro em grande cassino e
de trabalho e as pessoas se transformando em máquinas o burocratismo corporativista e populista despótico
de maximização de desempenho e empresárias de si do Estado. Defendem sociedades democráticas, sus-
mesmas”, e que “a esmagadora maioria acaba compondo tentáveis, inclusivas e plurais, com regulamentação
sociedade de depressivos e fracassados”. financeira social nos Estados democráticos.
285

2. Piketty7 reconhece que o primeiro impacto processo civilizatório: uma crença em nome da qual vale 7. PIKETTY, T. O capital no
século XXI. Rio de Janeiro:
da Covid-19 na economia planetária elevará a desi- a pena dedicar nosso tempo e esforço, zelando para que Intrínseca, 2014.
gualdade entre nações e estratos sociais, mas com os recursos públicos sejam integralmente alocados nos
potenciais de reversão porque: bens comuns e não nos interesses privados e bancários”.
A) Impera o fluxo global do capital com livre Processo civilizatório não é linear. Já na era cristã, o
trânsito, com destino para países com menor tribu- processo civilizatório pode ser sistematizado em quatro
tação do capital e paraísos fiscais. Sem um padrão períodos.
comum de regulação, permanece grande estímulo para (1) ‘Milênio do Obscurantismo’ / ‘Idade das Trevas’.
a fuga de capitais e investimentos privados. Pacotes Entre os 400 a 1400 d.C.: economia escravocrata; Cruzadas
trilionários no mercado mantêm as classes médias e (3 séculos); Inquisição (3 séculos), com torturas, mortes
pobres como grandes perdedores. Somente grandes e estancamento do desenvolvimento cultural. Um dos
mobilizações das sociedades, democratização de in- emblemas foi o acerto de Jacob Fugger (‘Homem mais
formações da concentração da renda e riqueza e o rico do mundo’) com o Papa Leão X, para substituir o
envolvimento das classes médias poderão pactuar termo bíblico proibido ‘usura’ pelo consentido ‘lucro
uma redistribuição efetiva. adquirido sem trabalho, custo e risco’.
B) A crise econômica aprofundada pela pande- (2) Renascença (3 séculos). Reinos feudais enrique-
mia fortalece correntes preocupadas com a redistri- cendo com colônias nas Américas, África e Ásia. Maquiavel
buição da riqueza. Sociedades e nações encontram-se em 1513 descrevendo o Estado como é, e não como
em momento histórico de bifurcação entre as duas apresentado pelos dominantes.
tendências. A União Europeia e o Mercado Comum (3) Iluminismo (2 séculos). Movimento que influi
Europeu podem adotar passos de tributação comum. no pensamento filosófico, político, científico, sociológico,
3. Além da reversão do processo concentrador econômico e cultural: reconhece o Estado laico e mapeia
vigente, a reestruturação do bem-estar social deve a decadência feudal.
estender-se à regulação dos novos processos e relações (4) Revolução Industrial e Capitalismo (séculos
de trabalho vinculados aos avanços tecnológicos e à XVIII e XIX). Primeira Guerra Mundial, revolução russa e
produtividade calcada em insana competitividade. democracias liberais. Pauta universal atual: inclusão social,
4. Os parâmetros civilizatórios da humanidade modelo de desenvolvimento e globalização.
na produção científica desvendam a ortodoxia dog- Uma visão, mesmo não aprofundada desses qua-
mática que, nos últimos 30 anos, impõe ‘verdades tro períodos aponta um sentido evolutivo no processo
únicas’ que ‘fundamentam’ o modelo econômico civilizatório.
vigente. São macroembustes como o do mercado/ Quanto à mortalidade humana, Reinaldo J. Lopes2
lucro serem a grande mola indutora e propulsora observa seu comportamento ao longo de diferentes for-
do desenvolvimento e da civilização. Alinhamos a mações civilizatórias: Estados monárquicos (séculos XVI e
reflexão de Frei Betto8: “Não somos trilobitas, somos XVII) derrubam a mortalidade violenta vigente no regime 8. FREI BETTO. Feliz 2008.
Folha de SP. Disponível em:
seres humanos dotados de capacidade de imprimir tribalista caçador/coletor sem Estado desde o século XIII; https://www1.folha.uol.com.br/
fsp/opiniao/fz0201200808.htm
ao tempo, caráter histórico, e à história, um sentido”. mortalidade pelos Estados nas guerras do século XX (duas Acesso em: 06 jan. 2020.
5. As ‘janelas históricas’ são conjunturas que mundiais, Coréia e Vietnã) foi 4 a 5 vezes menor que a
interagem situações políticas, socioculturais e eco- mortalidade no tribalismo sem Estado; e mortalidade
nômicas, como elos de uma cadeia que propiciam por homicídios entre os Esquimós (sem Estado) é 5 a 10
saltos a patamares civilizatórios mais avançados. Ja- vezes maior que a mortalidade por homicídios no Brasil.
nelas podem permanecer fechadas por décadas no Um terceiro referencial do processo civilizatório
processo histórico, mas parece que a pandemia e parte da expectativa de vida: pelos dados analisados por
sua repercussão no modelo econômico dominante estudiosos como Drauzio Varella, nossa vida média, desde
indicam importantes janelas. milênios anteriores até o século XIX, oscilou entre 20 e
30 anos, que é o início natural das perdas de vitalidade,
Considerações incluindo a massa muscular. Após a Revolução Indus-
Como seres gregários com impulsos ancestrais de trial e avanços científicos para vida saudável (nutrição,
sobrevivência, é inabdicável o acesso aos bens comuns: imunização, saneamento, medicamentos etc.), a vida
ar, água, alimentos, moradia e, com o avanço civilizató- média foi aos 40 anos. No final do século XX, aos 60
rio, educação, saúde, trabalho, cultura... Bens comuns anos; e hoje ultrapassa os 80 anos, em um processo
que Alvaro G. Linera2 estendeu a bens públicos: “fé na que se expande também para estratos mais pobres.
sociedade e na solidariedade, enquanto parte decisiva do Pesquisas no campo da Sarcopenia (processo de perda
286

muscular) apontam um teto inexorável entre 100 e Forjado no ocaso da ditadura, em paralelo aos
115 anos. Como última consideração sobre o processo debates constitucionais e no quinto ano de mandato
9. CALIGARIS, C. A cama de civilizatório, Contardo Caligaris9 assinala: ao “sentido prorrogado, nosso presidencialismo de coalizão pós-cons-
hospital e o futuro do Brasil. Fo-
lha de SP. Disponível em: https:// de vida, da nossa vida concreta, que faz que valha a titucional resta ainda não totalmente claro. Por um lado,
www1.folha.uol.com.br/colunas/
contardocalligaris/2019/06/a-
pena ser vivida ou não: seria o esforço para pensar a continuidade de poderes legislativos estruturantes pelo
-cama-de-hospital-e-o-futuro- o sentido da vida como parte da própria vida. E esse poder Executivo – projetos de emenda constitucional e
-do-brasil.shtml. Acesso em: 12
jan. 2020. esforço para entender a experiência de vida seria o medidas provisórias – menos truculentos que os atos ins-
que nos define como espécie humana”. titucionais e decretos-lei da ditadura, porém perniciosos,
porque vinculados às práticas espúrias pelo Executivo
Relações sociedade-Estado de: construção de bancadas parlamentares majoritárias e
As primeiras frações da população que há mais de 5 financiamento indireto de eleições e reeleições parlamen-
mil anos decidiram dispor sobre excedentes da produção tares. Por outro lado, inédita e impensável assunção, por
agrícola e manufatureira, no ensaio-erro, foram gerindo indicações de partidos e bancadas da situação, de cargos
os excedentes e aliando-se às religiões também nascentes. centrais de ordenação de gastos públicos pelo Executivo
Na multimilenar sequência histórica, essas frações foram nos Ministérios e nas Estatais.
desenvolvendo as funções de execução, legislação e jul- Essa ‘governabilidade’ esvaziou o resgate pós-
gamento, o comando e a gestão de guerreiros etc.; e, na -constitucional do poder Legislativo enquanto ‘caixa
sequência, o Estado escravocrata, feudal e capitalista com de ressonância da sociedade’, revelou alta fluidez e
suas respectivas burocracias. Hoje, os modernos Estados reversibilidade na efetivação das políticas públicas
Republicanos, extremamente complexos, carregam cultura constitucionais, disfarçando a geométrica concen-
própria bivalente: explícita, representando e governando tração de renda e riqueza, uma das maiores dívidas
imparcialmente o conjunto da sociedade; e implícita, públicas do mundo, e a atrofia do debate social efe-
representando e governando hegemonicamente para tivamente democrático do projeto de sociedade e de
segmentos minoritários mais apropriadores ou mesmo nação (com exceção na campanha eleitoral de 2002).
monopolistas. O quadro partidário foi esvaziado em sua finali-
Essa dualidade hegemonia X contra-hegemonia dade de formular e mobilizar correntes de pensamento
foi atenuada em vários graus nas sociais-democracias e bandeiras da sociedade, e do amplo debate social,
europeias e outras pós-Segunda Guerra Mundial, o que perdendo para as ‘verdades maiores’ emanadas pelo
vem decrescendo nas últimas décadas com a globalização Executivo corporativista, tecnocrata como populista.
financeira. Os movimentos político-sociais mais avançados Rubens Ricupero recentemente manifestou: “A macro-
e progressistas, pós-Segunda Guerra, mantêm a bandeira economia enlouquecida tomou o lugar da política
da democratização do Estado e, por vezes, participam de na atribuição das prioridades: a maré montante
coligações vitoriosas. Porém, na história brasileira recente, de selvageria, aos acordes da marcha triunfal da
salvo exceções, forças mais avançadas e progressistas, no saparia financeira, brada: ‘nunca foi tão bom!’”.
exercício do poder, vêm sendo neutralizadas ou distorci- Esse formato de presidencialismo de coalizão apa-
das: nos blocos parlamentares e na complexa ‘máquina’ rentemente encerrou com a eleição de 2018.
tecnoburocrática do Executivo e Judiciário. Os 20 anos de ditadura e os 30 anos do presi-
‘Máquina’ com raízes estruturadas na alternância dencialismo de coalizão geraram fatores cruciais no
entrelaçada do corporativismo, populismo e tecnocracia surgimento e desempenho do atual governo federal:
sedentos de poder. Na prática diária, anulam ou distorcem propiciaram a forças minoritárias antidemocráticas
iniciativas e possibilidades da democratização do Estado. de extrema-direita obscurantista influenciar setores
Em nossos mais de 30 anos pós-constitucionais, avolu- militares revanchistas e parte decisiva do alto empre-
mou-se no conjunto dos aparelhos de Estado, cultura sariado. Tiveram a ousadia e a competência política
própria do carreirismo, fisiologismo, corporativismo e de galvanizar tensões, frustrações, desilusões e sufoco
nomenklatura. Essa cultura inclui traços que cooptam, de um terço da população, incluindo a classe média-
neutralizam ou excluem quadros dirigentes portadores -média e parte da média-baixa. Vale a lúcida síntese de
10. VIEIRA, O. V. Folha de de bandeiras efetivamente democratizantes e de controle Oscar Vilhena Vieira10 sobre o atual governo:
SP, 25/06/2016, 06/07/2019
e 01/08/2020. Disponível em: pela sociedade. A ponto de, não raro, grupos de militân-
[...] impedido de alterar os dispositivos da Constituição
https://www1.folha.uol.com.br/ cia, ao assumir funções de gestão visando ‘aparelhá-las’,
colunas/oscarvilhenavieira/. Federal, o governo implementa a estratégia de nomear
Acesso em: 12 jan. 2020. tornarem-se com o tempo ‘aparelhados’ pelo lado venal para o 1º escalão, autoridades explicitamente incompe-
das ditas funções: carreirismo, fisiologismo, clientelismos tentes no âmbito dos postulados constitucionais, porém,
etc., lado este já parte da cultura institucional. eficazes e autocráticas para corroer o Estado de Direito
287

e inibir a eficácia da Constituição, com obsessão em social dos anos 1980; implementação de pacto social
emascular as instituições democráticas. em torno de projeto de nação e democratização do
Neste ano e meio do atual governo, agravam-se Estado; crítica do presidencialismo de coalizão e da
políticas econômico-sociais com contundentes retrocessos exponencial concentração da renda e riqueza.
nas políticas industrial, trabalhista, agrícola/agrária, meio Finalizando
ambiente, saúde, educação, cultura, segurança pública, 11. NOGUEIRA, S. ‘Cosmos’,
relações exteriores, relações republicanas entre os pode- O astrônomo Carl Sagan11 lembrava que o clássico de Carl Sagan, vai além

res, nas perspectivas da reforma tributária/fiscal e outras. potencial do obscurantismo, sempre presente na da divulgação científica. Folha de
SP. Disponível em: https://www1.

Tornaram-se comuns, na sociedade e imprensa, humanidade, folha.uol.com.br/ciencia/2017/12/


1942032-cosmos-classico-de-
-carl-sagan-vai-alem-da-divulga-
reações de indignação a cada ato divulgado, ministerial [...] torna mais fácil caminhar para trás do que para a cao-cientifica.shtml. Acesso em:
e autárquico, de retrocessos em direitos humanos, so- frente, [e que], para cada corrente de pensamento e 12 jan. 2020.

ciais, trabalhistas e outros. As emoções e tensões dessa ações sociais, e para cada um de nós, permanece sempre
o desafio pelo encantamento com o progresso social,
indignação devem ser canalizadas para a cuidadosa e
científico, técnico, descobertas do universo e do nosso
permanente troca de informações, esclarecimentos e planeta, com lucidez na distinção entre especulação e
proposições, considerando cada interlocutor ou coleti- consenso científico, assim como na tolerância com a
vidade. Mesmo óbvia, essa consideração visa contrapor à compreensão de que somos feitos de poeira de estrelas.
mera indignação que, lembrando Oscar Vilhena10, “pode
O geólogo Alvaro R. dos Santos12 enfatiza a 12. SANTOS, A. R. Registros e
levar o indignado à intolerância, menor capacidade de conjecturas: (breve crônica de
uma vida). São Paulo: Editora
enxergar as vicissitudes de outros, menor disposição ao [...] necessidade do permanente resgate dos mais caros Rudder, 2016. Disponível em: ht-
diálogo e até cômoda justificativa de imobilismo”. valores do ideário humanista e iluminista: correntes de pensa- tps://crusp68.org.br/sites/default/
files/Livro%20Registro%20e%20
mento e ações sociais ancorados na felicidade compartilhada,
A avaliação crítica, isenta e objetiva dos equívo- Conjecturas%20compactado.pdf.
na inaceitação da injustiça, no respeito à diversidade, na Acesso em: 12 jan. 2020.
cos e distorções ocorridos nos anos pós-ditadura, é igualdade entre as pessoas e no culto à vida. Esses valores são
devida à sociedade por todos os governos federais confrontados historicamente pelas regressões obscurantistas,
e coligações partidárias: eficácia no cumprimento mas também pelo próprio desapercebido distanciamento
das diretrizes constitucionais – fatores positivos e do ideário humanista e iluminista que originalmente nos
negativos –; amortecimento do debate democrático e embalou corações e mentes.

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil


288

Pandemia da Covid-19 expõe


contradições constitucionais
Maria de Fátima Siliansky de Andreazzi

1. ANDREAZZI, M. F. S., et al.


O SUS trinta anos depois: breve Saúde e a Constituição de 1988 garantir o pagamento da dívida pública. Essa emenda
balanço de sua existência. In:
A Constituição de 1988 (CF/88) representou criou o Fundo Social de Emergência que retirava 20%
MONTEIRO, G. T. M. (Org.).
Estado, Democracia e Direito
uma mudança significativa nas políticas de proteção do orçamento da seguridade. Com o nome de Fundo
no Brasil: Trinta Anos da Cons-
tituição Cidadã. Rio de Janeiro: social no Brasil. A saúde foi inserida na seguridade de Estabilização Fiscal, a desvinculação foi prorro-
Gramma, v. 1, p. 509-28, 2018.
social e entendida como direito universal. Para os gada até o ano 2000, quando o nome foi trocado
2. BRASIL. Emenda Constitu-
cional de Revisão nº 1, de 01 trabalhadores, o reconhecimento pelo Estado brasi- para Desvinculação de Receitas da União (DRU). A
de março de 1994. Acrescenta
leiro do direito à saúde significou que o atendimento EC 93/20163 elevou a DRU de 20% para 30% e criou
os arts. 71, 72 e 73 ao Ato das
Disposições Constitucionais
às necessidades de saúde de si e de sua família não a Desvinculação de Receitas dos Estados (DRE); e,
Transitórias. Diário Oficial da
União. 2 Mar. 1994. mais dependia do vínculo formal de trabalho. Grande no âmbito municipal, a Desvinculação de Receitas
3. BRASIL. Emenda avanço, sem dúvida. No entanto, além de determinar o dos Municípios (DRM), também com percentual de
Constitucional nº 93, de 8 de
setembro de 2016. Altera o Ato dever do Estado com respeito à saúde, a Constituição 30%, prorrogando-as de 4 para 8 anos. Outro golpe
das Disposições Constitucionais
também admitiu a livre-iniciativa no tocante à saúde. profundo veio da EC 95/20164 que constitucionali-
Transitórias para prorrogar a
desvinculação de receitas da
Na medida em que o mercado compete com as ins- zou metas de ajuste fiscal, impedindo o crescimento
União e estabelecer a desvincu-
lação de receitas dos Estados, tituições públicas em muitos campos, o que houve real de despesas da União com programas sociais,
Distrito Federal e Municípios.
Diário Oficial da União. 9 Set. foi a oficialização da existência de dois caminhos: o mas não o referente aos gastos com a dívida pública.
2016.
conflito entre o caminho da política pública de saúde Essa Emenda substituiu o piso vinculado à evolução
4. BRASIL. Emenda
e a privatização da saúde atravessa a construção do da receita pública que constava da EC 29/20005 pelo
Constitucional nº 95, de 15 de
dezembro de 2016. Altera o Ato
Sistema Único de Saúde (SUS) desde o seu nascedou- teto vinculado à inflação do ano anterior, agravando
das Disposições Constitucionais
Transitórias, para instituir o Novo ro. Tal conflito é mais geral, pois, ao mesmo tempo, a o impacto sobre o orçamento do SUS.
Regime Fiscal, e dá outras provi-
dências. Diário Oficial da União. ordem econômica tem como princípios a propriedade Quanto às legislações infraconstitucionais, me-
16 Dez. 2016.
privada e a função social da propriedade. rece destaque, pelo impacto considerável sobre o
5. BRASIL. Emenda Constitu-
O texto constitucional, ainda, reconhece a determi- SUS, a Lei nº 9.637/19986 que cria as Organizações
cional nº 29, de 13 de setembro
de 2000. Altera os arts. 34, 35, nação social da saúde, quando diz que parte do dever do Sociais (OS) na administração pública. Essa lei foi
156, 160, 167 e 198 da Cons-
tituição Federal e acrescenta Estado é garantido mediante políticas sociais e econômicas baseada nas concepções do Plano Diretor da Reforma
artigo ao Ato das Disposições
que visem à redução do risco de doença e de outros de Estado de 1995, que considerou os serviços públi-
Constitucionais Transitórias,
para assegurar os recursos
agravos. Essas políticas públicas decisivas na promoção cos de saúde como serviços competitivos de Estado,
mínimos para o financiamento
das ações e serviços públicos de da saúde foram também estabelecidas pela CF/88 como preconizando que fossem transferidos para o setor
saúde. Diário Oficial da União.
14 Set. 2000. a busca do pleno emprego, a reforma agrária, a proteção público não estatal. Esse setor seria formado por uma
6. BRASIL. Lei nº 9.637, de 15 social, a educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos ampla gama de instituições ‘não governamentais’,
de maio de 1998. Dispõe sobre
17 anos de idade e a proteção do mercado interno. No ‘não lucrativas’ e voltadas ao desenvolvimento social,
a qualificação de entidades
como organizações sociais, a
campo dos direitos democráticos, a CF/88 garante liber- estabelecendo-se, portanto, um sistema de parceria
criação do Programa Nacional
de Publicização, a extinção dades de pensamento, reunião e associação. entre Estado e sociedade para seu financiamento e
dos órgãos e entidades que
menciona e a absorção de suas De acordo com Andreazzi et al.1, o desenvol- controle. Após o ano 2000, tem havido um conside-
atividades por organizações
vimento da política universal de saúde por meio de rável aumento de estados e municípios que adotam
sociais, e dá outras providên-
cias. Diário Oficial da União. 16
um sistema público teve sua direção modificada, ou as OS na gestão de programas e unidades de saúde.
Maio 1998.
mesmo ameaçada, por diversas revisões efetuadas na A Lei de Responsabilidade Fiscal7 (Lei complementar
7. BRASIL. Lei Complementar
nº 101, de 4 de maio de 2000. Constituição ao longo desse período, algumas poden- nº 101, de 4 de maio de 2001), que impõe um teto
Estabelece normas de finanças
públicas voltadas para a res- do ser consideradas inconstitucionais. de 56% da receita corrente líquida com despesas
ponsabilidade na gestão fiscal
A primeira a destacar é a Emenda Constitucional de pessoal, criando condicionalidades financeiras
e dá outras providências. Diário
Oficial da União. 5 Maio 2000.
(EC) de Revisão nº 1/19942 que afetou os princípios relativas aos gastos com saúde, foi uma das molas
que asseguravam fontes adequadas de financiamento mestras dessa expansão.
para a seguridade social, por meio de mecanismos Tais reformas limitaram as possibilidades de
que retiraram parte de seu orçamento para serem expansão do SUS para cumprir as atribuições a ele
aplicados em outras finalidades, especialmente para preconizadas pela Constituição, por inadequação na
289

8. BRASIL. [Constituição
alocação de recursos financeiros e por desvirtuamento mudanças na estrutura econômico-social que era (1988)]. Constituição da
da orientação desmercantilizada e democrática da marcada por profundas desigualdades. Era o que se República Federativa do Brasil
de 1988. Diário Oficial da União.
operação da política de saúde. chamava a dívida social do regime militar de 1964. Os 5 Out. 1988.

Políticas públicas favoreceram a expansão dos direitos sociais assegurados na Constituição soaram 9. BRASIL. Lei nº 7.170, de 14
de dezembro de 1983. Define
seguros privados de saúde que competem com o como a resposta à luta de classes do período e foram os crimes contra a segurança
nacional, a ordem política e
financiamento social destinado à saúde, pois rece- promessas de mais de 30 anos de regime político social, estabelece seu processo
bem isenções fiscais sob a forma de abatimentos de demoliberal, não cumpridas por todos os matizes do e julgamento e dá outras provi-
dências. Diário Oficial da União.
imposto de renda, especialmente de empresas que espectro político oficial. 15 Set. 1983.

pagam planos de saúde para seus funcionários. Muitas A maioria das análises, no campo das políticas de 10. TELES, E., et al. (Org.) O
que resta da ditadura: a exceção
organizações que se dizem filantrópicas, mas atuam saúde, das mudanças ocorridas com a CF/88 ressaltam brasileira. SP: Boitempo, 2010.
no mercado de planos e serviços privados de saúde, esse lado bom – os direitos. Hoje, alguns falam das am- 11. BRASIL. Lei nº 12.850, de
2 de agosto de 2013. Define
têm uma série de benefícios fiscais. O próprio gover- biguidades da manutenção da livre-iniciativa privada. organização criminosa e dispõe
no federal e muitos estaduais e municipais utilizam No entanto, há um lado mau pouco ressaltado, sobre a investigação criminal,
os meios de obtenção da prova,
recursos públicos para subsidiar planos privados de diria até escondido. As classes dominantes adoçaram infrações penais correlatas e o
procedimento criminal; altera
saúde para seus servidores. as reivindicações populares com direitos escritos, o Decreto-Lei nº 2.848, de 7
de dezembro de 1940 (Código
Não apenas as diretrizes constitucionais da mas o fizeram de forma que permitisse seguir seu Penal); revoga a Lei nº 9.034, de
saúde foram abandonadas, mas também as políticas caminho privatista. E os militares, garantidores da 3 de maio de 1995; e dá outras
providências. Diário Oficial da
públicas que promovem a saúde. Não somente o pleno ordem econômica e social injusta que promoveram União. 3 Ago. 2013.

emprego não foi alcançado, mas também, no final de ativamente em 1964, mantiveram-se como garantido- 12. BRASIL. Lei nº 13.260, de
16 de março de 2016. Regu-
2019, a informalidade atingiu 41,1% da população res da lei e da ordem (art. 142 da CF/88)8. A Lei de lamenta o disposto no inciso
XLIII do art. 5º da Constituição
economicamente ativa, e o desemprego estava em Segurança Nacional (LSN)9, aprovada em 1983 dentro Federal, disciplinando o terro-
11,9%, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de da estratégia da distensão lenta e gradual do regime rismo, tratando de disposições
investigatórias e processuais
Domicílio (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia militar empreendida sob a direção da fração militar e reformulando o conceito de
organização terrorista; e altera
e Estatística (IBGE). O mercado interno não é protegi- Geisel-Golbery, e que se tornara uma excrescência de as Leis n º 7.960, de 21 de de-
zembro de 1989, e 12.850, de 2
do, ao contrário, a indústria, que representava 27,3% um regime dito democrático, nunca foi questionada de agosto de 2013. Diário Oficial
do PIB em 1986, teve a partir daí uma queda chegando em sucessivas legislaturas do período demoliberal da União. 16 Mar. 2013

a 11,3% do PIB em 2018. Os poucos assentamentos com composições políticas as mais variadas, inclusive
de sem-terra ocorridos colaboraram para acelerar a a de 1988 que aprovou a Constituição. Pela LSN, até
tendência predominante de crescimento das grandes difamação do Presidente da República pode ser con-
propriedades e manutenção de terras improdutivas siderada ameaça à segurança nacional, o que implica
que seguem sem reforma agrária. transferir processos para a Justiça Militar, permitindo
O caminho privatista da saúde, permitido pela a incomunicabilidade do indiciado em até cinco dias.
Constituição, encontrou na pandemia da Covid-19 Um conjunto de análises, organizadas por Teles e
um caminho aberto para favorecer seus interesses. Safatle10, chama a atenção para o alcance desse art. 142
A pandemia tem sido uma grande oportunidade de que coloca as Forças Armadas como tutoras da ordem
negócios para as OS: em muitos estados e municípios, constitucional, permitindo a constitucionalização do
os hospitais de campanha para a ampliação de leitos golpe de Estado desde que patrocinado por elas.
foram contratados por meio de OS. No Rio de Janeiro, O que isso implica? Implica que, sendo necessá-
optou-se por isso mesmo havendo mais de 2 mil leitos ria a mobilização popular, para que o Estado cumpra
sucateados sem funcionamento em hospitais públicos. seu dever constitucional à saúde, essa tem um limite
dentro da legalidade. Esse limite são as legislações
As lutas pelo direito à saúde e as leis de de exceção que começaram com a LSN e avançaram
exceção com a Lei das Organizações Criminosas (LOC)11 e
Os direitos dos trabalhadores no capitalismo não a Lei Antiterrorismo12. Esta última lei permite, na
são garantias que não possam ser questionadas pelas dependência do agente público, inclusive a polícia
classes dominantes, especialmente nos períodos de e o Juiz, que se considerem mobilizações populares
crise econômica. As ambiguidades da Constituição por direitos como terrorismo, com penas agravadas
não foram casuais. Foram a forma encontrada pela e possibilidade de sequestro de bens.
coalizão dos partidos dominantes de impor salva- É fato que o Judiciário tem garantido, em nume-
guardas aos seus interesses. A grande mobilização rosos casos, alguns direitos individuais à saúde; mas,
popular dos anos 1980, que exigia a volta de um até agora, o Supremo Tribunal Federal nunca chamou
regime de liberdades democráticas, também exigia a si, de fato, a defesa do direito coletivo à saúde, o
290

que implicaria a declaração de inconstitucionalidade de setores econômicos importantes: o capital financeiro


a muitas EC que impedem a concretização do direito internacional e a grande burguesia nativa a ele associada.
universal à saúde, como a própria EC 95/20164. Todos os governos da Nova República foram devedores
E as ruas? A resposta governamental às grandes desses setores econômicos para conquistar posições no
mobilizações de 2013 que também exigiam ‘Saúde Padrão Legislativo ou no Executivo. Uma leitura conspiratória,
Fifa’ foi a prisão de ativistas com base na LOC e a poste- mas não de todo inverossímil, poderia até julgar que
rior edição da Lei Antiterrorismo. A tensão permanente as classes dominantes brasileiras calaram a mobilização
na Amazônia por terra é respondida por Regimes de popular dos anos 1980 com a redação de direitos que,
Garantia da Lei e da Ordem (GLO) coordenados pelas por meio de outros dispositivos da mesma Constituição,
Forças Armadas e focados em camponeses e indígenas, puniriam quem os fosse requerer.
em que os direitos civis são suspensos. De fato, há uma A situação social contemporânea secundária
contrarrevolução permanente, dirigida a quem tem inte- à crise econômica mundial, que se aprofunda no
resse em fazer garantir os direitos constitucionais – saúde, Brasil a partir de 2016, é cada vez mais explosiva. A
educação, terra, pleno emprego – na qual esses GLO são pandemia foi um elemento a mais de uma tendência já
parte decisiva ao lado da negação diária de direitos civis recessiva. As saídas vislumbradas no campo das classes
para populações exploradas, vitimadas permanentemente dominantes aumentam o número dos que perderão
pela violência do Estado. empregos, terão suas pequenas terras de sobrevivência
O que aconteceu com alguns funcionários do tomadas pelo avanço do latifúndio de velho e novo
Ministério da Saúde durante a epidemia de Covid tipo, das mineradoras e grandes madeireiras, dos que
diante de questionamentos da política do governo terão seus pequenos negócios arruinados.
Bolsonaro/generais de deixar a epidemia grassar O aumento da repressão do Estado é a úni-
sem controle para tentar salvar os negócios e não ca solução possível dentro dos marcos do modelo
dispender gasto público? Foram ameaçados com a econômico brasileiro subjugado aos interesses do
LSN caso divulgassem informações e imagens sobre imperialismo, ativamente fomentado pelas classes
a pandemia. Ainda que a informação seja um direito dominantes locais, com especial ênfase no latifún-
assegurado na CF/88. dio agrário-exportador e em uma casta burocrática
Não foi exceção. Em 2000, a LSN foi aplicada corrupta operando o aparelho de Estado, que pugna
contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem para representar esses interesses. A CF/88 permitiu a
Terra (MST) que estava lutando pela reforma agrária, crescente militarização do Estado pelas salvaguardas
política garantida pela CF/88. colocadas pela redemocratização liderada pela grande
burguesia e setores da pequena burguesia associa-
Foto: Heitor Lopes/CUT

das (PMDB e partidos menores) visando aplastrar


um outro caminho de luta pela redemocratização,
que fosse a fundo na derrota do modelo econômico
concentrador de riquezas e da subjugação nacional.
As Forças Armadas sempre estiveram na defesa desse
modelo, caso ameaçado por projetos de reformas
estruturais. Para isso, efetuou o golpe de 1964. O
caminho democrático extinguiria as leis de exceção,
punindo todos os agentes públicos que cometeram
crimes de Estado, evitando o identificado em Teles
e Safatle10: restou tudo da ditadura, menos a forma.
Autores acadêmicos e não acadêmicos reconhe-
cem a existência no Brasil de uma contrarrevolução
preventiva ou uma contrarrevolução permanente que
se desdobra em distintas políticas de Estado, tendo
em comum a transformação do povo em ‘inimigo
Conclusões interno em potencial’. Os ideólogos do núcleo duro
A CF/88 deve ser ensinada e divulgada naquilo que do Estado brasileiro, aqueles que operam a lei e a
é, de fato, contraditória. Garantiu direitos, mas colocou ordem, admitem muito seriamente a existência de
em cima da cabeça do povo que os cobrar é uma espada um estado permanente de rebelião latente. Há que
de Dâmocles. A implantação do SUS vai contra o interesse levá-los em conta.
291

Sob o pretexto da pandemia, 1


avança a precarização do trabalho 1. Versão modificada de Praun,
L. A Espiral da Destruição:
legado neoliberal, pandemia
Luci Praun e precarização do trabalho.
Trabalho, Educação e Saúde, v.
18, n. 3, 2020.

2. MADEIRO, C. Mortalidade
Em meados de março, quando o contágio se da América Latina. A riqueza acumulada pelo grupo em UTIs públicas para covid-19
é o dobro de hospitais privados.
acelerou, as cidades brasileiras, a exemplo do que ampliou-se em 17% (US$ 48,2 bilhões), equivalendo Disponível em: https://noticias.
uol.com.br/saude/ultimas-no-
ocorreu em outros países, foram diminuindo o ritmo “a 38% do total dos pacotes de estímulo” implemen- ticias/redacao/2020/06/21/
da reprodução de capital. Diante das primeiras medi- tados pelos governos da região até junho. Entre esses mortalidade-em-utis-publicas-pa-
ra-covid-19-e-o-dobro-de-hospi-
das de isolamento social, por um breve momento, um bilionários, 42 são brasileiros, grupo que ampliou sua tais-privados.htm. Acesso em: 21
dez. 2020.
ensaio de comoção coletiva pareceu ecoar entre nós. fortuna em US$ 34 bilhões4.
3. Expressão utilizada pelo
Parte das varandas dos edifícios de classe média foram É sobre um lado dessa pirâmide que trata este ministro do Meio Ambiente
na reunião ministerial de
reeditando cenas vindas de longe, que se tornaram texto, detendo-se especificamente a algumas medidas 22/04/2020.
conhecidas pelas reportagens da televisão. Naqueles voltadas às relações de trabalho. Apresenta uma breve 4. OXFAM BRASIL. Bilionários
dias, algo de artificial parecia pairar no ar. Mas logo reflexão sobre o avanço da precarização durante a da América Latina aumentaram
fortuna em US$ 48,2 bilhões
as coisas voltariam ao seu lugar. pandemia, abrindo espaço para pensarmos sobre suas durante a pandemia. Disponível
em: https://www.oxfam.org.br/
Uma dramática articulação entre a nossa histó- repercussões no período posterior e nos caminhos a noticias/bilionarios-da-ameri-
rica desigualdade social, acentuada sob as medidas serem construídos em defesa da saúde dos trabalha- ca-latina-e-do-caribe-aumenta-
ram-fortuna-em-us-482-bilhoes-
neoliberais adotadas ao longo das últimas décadas, dores e trabalhadoras. -durante-a-pandemia-enquanto-
-maioria-da-populacao-perdeu-
e as particularidades de um governo cujas ações coti- -emprego-e-renda/. Acesso em:

dianas reafirmam o completo descaso com a proteção A miséria bate à porta 21 dez. 2020.

5. AMORIM, D., et al. Desem-


dos segmentos mais pobres, não tardou a se impor. Na noite de 27 de maio de 2020, em reportagem prego sobe para 13,3% no 2º tri-
Em meio a orientações oficiais desencontradas veiculada no Jornal Nacional/TV Globo, a trabalhadora mestre. Estadão. Disponível em:
https://economia.estadao.com.br/
e à ausência de políticas públicas efetivas, a possibi- desempregada Joseane discorreu sobre sua saga em noticias/geral,taxa-de-desempre-
go-no-2-trimestre,70003389596.
lidade de adesão às medidas de isolamento social foi busca do seguro-desemprego, desabafando: “passei Acesso em: 21 dez. 2020.
assumindo formas e desenhos diferenciados entre as a fazer parte de uma parcela da população que não 6. BRASIL. Emenda
Constitucional nº 95, de 15 de
classes sociais e seus segmentos. tem direito a absolutamente nada”. Insegura quanto dezembro de 2016. Altera o Ato
Observamos então as diferentes traduções, em ao futuro, Joseane enfrentava, entre outras barreiras, das Disposições Constitucionais
Transitórias, para instituir o
tempos de pandemia, das desigualdades sociais lo- as erguidas entre os/as desempregados/as e o acesso Novo Regime Fiscal, e dá outras
providências. Diário Oficial da
cais. Morre-se mais em Unidades de Terapia Intensiva ao seguro-desemprego. União. 16 Dez. 2016.
(UTI) de hospitais públicos (38,4%) que em unidades Foi também nesse contexto que, em uma noite 7. ANTUNES, R., et al. A aposta
nos escombros: reforma traba-
localizadas nas instituições privadas (19,5%), apurou do mês de julho, fui abordada, na porta de casa, por lhista e previdenciária – a dupla
levantamento da Associação de Medicina Intensiva João (fictício). Ao lado do filho ainda pequeno, descul- face de um mesmo projeto. Rev.
Juríd. Trab. Desenv. Humano, v.
Brasileira entre 1º de março e 15 de maio. As diferen- pando-se pelo possível aborrecimento, João anunciou 2, n. 1, p. 56-81, 2019.

ças ligam-se diretamente às dificuldades de acesso da ter perdido o emprego. Precisava de dinheiro para o
população mais pobre aos serviços de saúde, que tende sustento da família. Entreguei em sua mão a cédula
a só conseguir atendimento diante de quadro clínico que tinha na carteira. Entrei em casa com a cena se
agravado2. São os mais pobres também, por força das repetindo em meu pensamento.
necessidades de sobrevivência e das condições efetivas Joseane e João foram incorporados, compulso-
de vida, os mais expostos ao contágio. A pobreza re- riamente, aos 13,3% de trabalhadores e trabalhadoras
troalimenta desigualdades, e a pandemia as agudizou. brasileiras sem ocupação, conforme apurado pelo
No entanto, se a maioria, diante do desamparo IBGE tendo como referência o trimestre móvel de
oficializado e do clima do “passar a boiada”3, viu-se abril-junho de 2020. Dentro do mesmo período em
diante da possibilidade de perder o pouco que tinha, que perderam o emprego, outros 5,7 milhões de
inclusive a vida, no outro extremo da estrutura social, homens e mulheres desistiram, diante das persistentes
um pequeno grupo converteu o período aberto pela negativas, da procura por ocupação. O contingente
crise sanitária em oportunidade de enriquecimento. de trabalhadores e trabalhadoras submetidos ao de-
Entre março e junho de 2020, oito novos integrantes salento, quando comparado ao primeiro trimestre de
passaram a compor o seleto grupo de 73 bilionários 2020, cresceu em 19,1%5.
292

Os dados do período são a tradução estatística tidade patronal intitulado ‘Propostas da Indústria
do avanço da miséria. As flutuações entre os ocupados, contra a crise’11, de 18 de março de 2020, entregue
subocupados, desocupados e desalentados retroalimen- ao governo federal.
tam processos que precarizam o trabalho e a vida. Esses A MP nº 9279 liberou o trabalho remoto e corre-
processos, mais visíveis no contexto da ‘emergência de latos; flexibilizou as férias, permitindo a concessão de
saúde pública’, não tendem a se restringir a este período. períodos a partir de 5 dias corridos; deixou a critério
8. BRASIL. Lei nº 13.979,
Observa-se que, tal como aquele grupo de bilionários que do empregador a prorrogação de acordos e convenções
de 6 de fevereiro de 2020. multiplicou sua fortuna, outros setores, ligados às grandes coletivas vencidas ou a vencer no prazo de 180 dias
Dispõe sobre as medidas para
enfrentamento da emergência corporações e partícipes da formulação das políticas de contados a partir de sua entrada em vigor; diminuiu
de saúde pública de importância
internacional decorrente do Estado, têm encarado a pandemia como grande oportu- o alcance da atuação sindical em diferentes situações
coronavírus responsável pelo
surto de 2019. Diário Oficial da
nidade de impor rearranjos nas formas de organização que envolvem acordos trabalhistas, reforçando aqueles
União. 6 Fev. 2020. e exploração do trabalho, ampliando a tendência de au- firmados individualmente, além de outras providências
9. BRASIL. Medida Provisória mento do desemprego e da miséria. claramente desfavoráveis aos trabalhadores.
nº 927, de 22 de março de
2020. Dispõe sobre as medidas Aproveitando-se do contexto de pandemia, Bol-
trabalhistas para enfrentamento A crise e suas ‘oportunidades’ sonaro também tentou emplacar, via MP 927, três
do estado de calamidade pú-
blica reconhecido pelo Decreto Sabemos que a precariedade que atravessa outras medidas. Uma delas previa a possibilidade de
Legislativo nº 6, de 20 de março
de 2020, e da emergência de o mercado de trabalho brasileiro é bem anterior à suspensão dos contratos de trabalho por até quatro
saúde pública de importância
internacional decorrente do pandemia. Suas raízes firmam-se em especificidades meses. Os salários, durante a suspensão, seriam substi-
coronavírus (covid-19), e dá
outras providências. Diário
sócio-históricas, favorecedoras à constituição de re- tuídos por concessão de “ajuda compensatória mensal
Oficial da União. 22 Mar. 2020. lações de trabalho desde sempre marcadas pela alta [...] com valor definido livremente entre empregado e
Disponível em: https://www.
in.gov.br/en/web/dou/-/medida- informalidade e rotatividade, pela baixa remuneração, empregador, via negociação individual” (conforme art.
-provisoria-n-927-de-22-de-mar-
co-de-2020-249098775. Acesso assim como pela desigualdade de acesso aos poucos 18, § 2º, texto original)9. Note-se que o “livremente”
em: 20 jan. 2021. direitos conquistados e legalmente instituídos. soa como escárnio dos setores empresariais e do
10. BRASIL. Medida Provisória
nº 936, de 1º de abril de 2020.
É no marco dessas fragilidades estruturais que governo contra a classe trabalhadora.
Institui o Programa Emergencial se incorpora, a partir das últimas décadas do século Diante de forte reação contrária, o art. 18 foi
de Manutenção do Emprego e
da Renda e dispõe sobre medi- passado, um conjunto de mudanças disseminadas excluído, no dia seguinte, por meio da MP nº 92812.
das trabalhistas complementares
para enfrentamento do estado de globalmente sob a batuta neoliberal. É também nesse Entretanto, com nova redação, dispositivo similar
calamidade pública reconhecido
pelo Decreto Legislativo nº 6,
ambiente que passamos a sentir as repercussões de voltou a figurar na MP nº 936, de 1º de abril de 2020,
de 20 de março de 2020, e da uma onda recessiva que se espalha globalmente. que instituiu o ‘Programa Emergencial de Manuten-
emergência de saúde pública de
importância internacional decor- Destacam-se os efeitos da EC nº 95/20166, que oficia- ção do Emprego e da Renda’, de custeio público. O
rente do coronavírus (covid-19),
de que trata a Lei nº 13.979, de 6 lizou o estrangulamento a partir de 2018 da capacidade de Programa é composto pelo Benefício Emergencial,
de fevereiro de 2020, e dá outras
providências. Diário Oficial da
investimento público em saúde, educação, saneamento, por instrumentos de redução de jornada de traba-
União. 2 Abr. 2020. entre outros setores fundamentais. Na esteira dessa medi- lho e de salários (na ordem 25%, 50% ou 70%) e de
11. CONFEDERAÇÃO NACIO- da, duas contrarreformas foram aprovadas pelo Congresso suspensão temporária do contrato de trabalho. No
NAL DA INDÚSTRIA. Propostas
da indústria para atenuar os Nacional, a trabalhista e a previdenciária. Consonantes início de junho, os acordos de redução de jornada
efeitos da crise. Disponível em:
https://noticias.portaldaindustria.
com o avanço da mundialização neoliberal, essas me- e salário, somados aos de suspensão do contrato de
com.br/noticias/economia/
propostas-da-industria-para-a-
didas aprofundam o desmonte dos serviços públicos e trabalho, já eram realidade para mais de 10 milhões
tenuar-os-efeitos-da-pandemia/. promovem a hiperflexibilização do trabalho, amplamente de trabalhadores e trabalhadoras, impactando 30%
Acesso em: 21 dez. 2020.
facilitada pelos avanços no campo das tecnologias digitais do mercado de trabalho formal13.
12. BRASIL. Medida Provisória
nº 928, de 23 de março de e da inteligência artificial7. Governo e empresariado tentaram também, via
2020. Altera a Lei nº 13.979,
de 6 de fevereiro de 2020, que
Na contramão da negação da relevância das re- MP nº 927, art. 29, não caracterizar a contaminação por
dispõe sobre as medidas para percussões da pandemia sobre a saúde da população, coronavírus como doença do trabalho, destacando no
enfrentamento da emergência
de saúde pública de importância Bolsonaro e seus cúmplices souberam valer-se do texto original da MP um ‘exceto mediante comprova-
internacional decorrente do co-
ronavírus responsável pelo surto período de ‘emergência de saúde pública’ instituído ção do nexo causal’, cuidadosamente inserido como
de 2019, e revoga o art. 18 da
Medida Provisória nº 927, de 22
pela Lei nº 13.9798, de 06 de fevereiro de 2020, para uma senha para o não reconhecimento do nexo. O
de março de 2020. Diário Oficial dar continuidade à destruição de direitos e garantias Supremo Tribunal Federal tornaria sem efeito o art.
da União. 24 Mar. 2020
conquistadas pelos/as trabalhadores/as. 29 mais de um mês depois. Na mesma sessão, em 29
13. MARINHO, N. 10 milhões
de trabalhadores formais tiveram Agilmente, o governo publicou as Medidas Pro- de abril, o Supremo também suspendeu os efeitos do
redução de salário ou contrato
suspenso. Notícias Concursos. visórias (MP) nº 9279, de 22 de março de 2020, e nº art. 31 dessa MP que limitava, por prazo de 180 dias,
Disponível em: https://noticias-
concursos.com.br/direitos-traba-
93610, de 1º de abril de 2020, ambas construídas a ação dos Auditores Fiscais do Trabalho a procedi-
lhador/trabalhadores-formais-sa- com participação direta da Confederação Nacional mentos de orientação. As possibilidades de aplicação
lario-reduzido/. Acesso em: 21
dez. 2020. da Indústria (CNI), conforme documento dessa en- de multas àqueles/as que desrespeitassem direitos do
293

trabalho restringiam-se, na proposta original, a quatro doméstico. O contexto da pandemia, em um passe


situações: não registro de trabalhadores (mediante de mágica, converteu-se em poderosa oportunidade
denúncia); irregularidades diretamente relacionadas para empresas públicas ou privadas externalizarem
a situações graves com risco iminente; ocorrência de custos e ocuparem espaços, para muitos, relativamente
acidente fatal (a fiscalização poderia atuar somente preservados.
acerca de irregularidades diretamente relacionadas às Irrompendo a resistência de professores e estu-
causas do acidente); situações relativas ao trabalho em dantes, ignorando a profunda desigualdade social e o
condições análogas às de escravo ou trabalho infantil. próprio contexto pandêmico, a educação a distância
No início de junho, o deputado federal Celso e o ensino remoto colocaram-se como falsas soluções
Maldaner (MDB), relator do Projeto de Conversão à continuidade das atividades no ensino básico e
da MP nº 92714, tentou de contrabando inserir no- universitário. De um lado, a exaustão dos professo-
vas alterações na Consolidação das Leis do Trabalho res, que passaram a relatar sintomas de ansiedade e
(CLT), tornando permanentes medidas que, dada a esgotamento mental ante cobranças e pressões de
‘emergência de saúde pública’, são de caráter tem- diferentes ordens relacionadas com as novas formas
porário. Uma dessas alterações visava retirar de parte assumidas pelo trabalho16. De outro, questões para
importante dos trabalhadores da indústria frigorífica além do acesso ou não a recursos tecnológicos, as-
o direito às pausas de 20 minutos após uma hora e pecto relevante das desigualdades sociais.
quarenta minutos de trabalho contínuo. A tentativa As experiências relatadas por docentes, estudan-
de “passar a boiada” (fala do titular do meio am- tes e seus familiares indicam que entram em cena a
biente na reunião ministerial de 22 de abril de 2020), reprodução de velhas desigualdades, ampliadas no
aludindo às “oportunidades” supostamente abertas contexto da pandemia e marcadas pelas ‘soluções’
pela crise sanitária, esbarrou na evidente ilegalidade individualizantes propostas pela cartilha neoliberal. Tal
do procedimento, obrigando a relatoria a voltar atrás. dinâmica pode ser ilustrada pela experiência de Letícia,
Algumas medidas, a exemplo do home office, mãe de nove filhos, moradora de uma favela em Belo
de alta efetividade, ainda que previstas como parte Horizonte. Analfabeta, sem condições de auxiliar o 14. BRASIL. Projeto de Lei de
Conversão à medida Provisória
da excepcionalidade do contexto atual, reservam acesso de um dos filhos ao material impresso, desistiu nº 927, de 2020. Dispõe sobre
repercussões ainda difíceis de dimensionar, mas certa- de buscá-lo na escola17. Quantas Letícias se sentirão as medidas trabalhistas para
enfrentamento do estado de
mente duras e nocivas aos direitos e à saúde daqueles injustamente responsabilizadas pela interrupção dos calamidade pública reconhecido
pelo Decreto Legislativo nº 6,
e daquelas que vivem de seu trabalho. estudos de seus filhos e filhas? Que perspectivas de de 20 de março de 2020, e da
emergência de saúde pública de
acesso à educação podem oferecer os experimentos
Sem pedir licença, o trabalho avança sobre vida praticados sob a lógica do cumprimento, a qualquer
importância internacional decor-
rente do coronavírus (covid-19),
e dá outras providências. Diário
O trabalho domiciliar não é exatamente uma custo, dos cronogramas escolares? Que futuro essas Oficial da União. 4 Jun. 2020.
novidade. Diversas pesquisas indicam que sua exis- práticas reservam para o trabalho docente? 15. NAVARRO, V. L. O trabalho
e a saúde do trabalhador na
tência, anterior ao desenvolvimento da indústria, foi Uma sondagem, em julho de 2020, constatou indústria de calçados. São
se articulando às formas assumidas pela organização que 83,9% das atividades administrativas migraram Paulo Perspec., v. 17, n. 2, p.
32-41, 2003.
do trabalho sob o capitalismo. Marcado pela preca- ao home office e que mais de 50% das empresas 16. OLIVEIRA, J. Em meio
riedade, durante o século XX, esse tipo de atividade prometiam mantê-lo, total ou parcialmente, no pós- à rotina de aulas remotas,
professores relatam ansiedade e
assalariada manteve-se fortemente associada à esfera -pandemia18. sobrecarga de trabalho. EL PAÍS.
Disponível em: https://brasil.
produtiva. Em regiões de industrialização significativa, Ao contrário da velha ladainha empresarial sobre elpais.com/brasil/2020-05-21/
sobretudo nos bairros mais empobrecidos, nunca foi os problemas pessoais, que não devem ser trazidos em-meio-a-rotina-de-aulas-remo-
tas-professores-relatam-ansieda-
incomum encontrar mulheres e crianças trabalhando para o ambiente de trabalho, a vida tem sido invadida de-sobrecarga-de-trabalho.html.
Acesso em: 21 dez. 2020.
à porta de casa. Navarro15(35) menciona que esse tipo pelo trabalho explorado, fortemente submetido ao
17. PIMENTEL, T. Analfabeta,
de trabalho é comum na cadeia produtiva da indústria controle, acentuando nocividades à saúde. Nesse mãe desiste de pegar material
da escola do filho em BH por não
de calçados, inserido em “bairros industriais sem contexto, ainda que nocivo a todos, são as mulheres poder ajudá-lo. G1. Disponível
indústrias”. Parte importante dos calçados que saem que, acumulando as demandas do trabalho doméstico, em: https://g1.globo.com/mg/
minas-gerais/noticia/2020/06/19/
das indústrias do ramo para as lojas do Brasil e do veem-se diante do desafio de administrar a mercanti- analfabeta-mae-desiste-de-pe-
gar-material-da-escola-do-filho-
exterior é produzida até hoje valendo-se do velho lização do ambiente familiar. -em-bh-por-nao-poder-ajuda-lo.
ghtml. Acesso em: 21 dez. 2020.
trabalho domiciliar, marcado pela presença feminina.
Em meio ao avanço das tecnologias digitais Considerações finais 18. TOBLER, R., et al. Empre-
sas acreditam que mudanças
das últimas décadas, diversas atividades desempe- As formas assumidas pelo trabalho são expres- vieram para ficar. Disponível
em: https://portal.fgv.br/artigos/
nhadas por setores médios da classe trabalhadora sões localizadas, mas nem por isso secundárias, de empresas-acreditam-mudancas-
-vieram-ficar. Acesso em: 12
vêm progressivamente migrando para o ambiente transformações mais amplas, em curso, desencadeadas jan. 2020.
294

pelo movimento do capital na busca por romper as branças, é capaz de destituir um crescente contingente
barreiras que o impede de se perpetuar. de homens e mulheres de “suas próprias condições
19. ANTUNES, R. Coronavírus: O avanço do uso das tecnologias digitais nos de sobrevivência ultraprecárias”19(19). Quais patama-
o trabalho sob fogo cruzado. São
Paulo: Boitempo, 2020. processos de trabalho, apresentado como promessa de res de degradação do trabalho precisaremos atingir
vida com mais tempo livre e com mais horas em casa, para que se façam suficientemente fortes as nossas
tem se traduzido, para aqueles e aquelas que vivem reações? Como teceremos, em meio à acentuação
do seu trabalho, em fonte de um tipo de experiência da descentralização e heterogeneidade das formas
que rouba a vida. Esse sequestro da vida, que para uns de trabalho, formas coletivas de reação? Os desafios
se traduz no prolongamento das horas trabalho, no da luta em defesa da saúde e vida dos trabalhadores
esgotamento perante as crescentes demandas e co- e trabalhadoras são muitos e urgentes.
Foto: Tania Rego/Agência Brasil

Pandemia e a economia endividada:


vidas brasileiras importam
Pedro Paulo de Salles Dias Filho

A prática de emissão de títulos públicos origina-se de solapar as finanças dos Estados Nacionais, o que
no século XIV, no contexto das Cidades-Estado, mas, gerava necessidades de financiamento, satisfeitas por
na transição da idade média para a moderna, o endi- oferta de títulos de dívida para resgate futuro mediante
vidamento público consolida-se na emergência dos juros. Tratava-se de uma relação de confiança dos ban-
Estados Nacionais. No início da era moderna, atitudes queiros com os credores desses títulos, no reequilíbrio
expansionistas territoriais, as guerras, tinham poder futuro das finanças futura dos reinos expandidos. E os
295

banqueiros ajudaram a financiar os gastos estatais e a nesse ambiente de desconfiança dos mercados que se
expansão capitalista comercial no mundo. aprovou a EC 952. Com ela, foi estabelecido um teto
Eis aqui uma descrição preliminar das origens de gastos do governo por 20 anos, mantendo-se o
do endividamento público. A banqueiragem, a dívida gasto social em saúde e educação sob rígido controle.
pública, os Estados Nacionais e os interesses comer- Inexiste o mesmo teto para o pagamento de juros aos
ciais dos empreendedores forjaram o capitalismo investidores em títulos da dívida pública brasileira.
como um sistema econômico mundial, sujeito a crises Galgada ao poder, a atual equipe econômica impul-
cíclicas. Ora a economia é vigorosa, ora encolhe e sionou o discurso e a prática do Estado Mínimo, com
gera falências, desemprego e desamparo. A Grande redução de direitos sociais.
Depressão de 1929 é um exemplo clássico. Com efeito, O surgimento do novo coronavírus parece defi-
o capitalismo é um sistema econômico instável. No nitivamente interromper esse ciclo ultraliberal de di-
caos que se seguiu à Grande Depressão, o governo minuição do Estado. O que se tem visto mundo afora,
americano (Franklin Roosevelt) patrocinou maciços no auge da pandemia da Covid-19, é o renascimento
investimentos em infraestrutura para recuperar a do papel determinante do Estado forte na contramão
economia. Foi exitoso em sua política expansionista do Estado mínimo. A diretriz adotada tem sido gastar
de gastos públicos, e a economia ressurgiu. para salvar vidas, manter os empregos e as empresas
Esses gastos extraordinários dos governos em de pé, com crédito fluido para estas e transferências
tempos de crise ou são bancados por impostos, ou financeiras diretas a indivíduos, sem perder de vista
financiados via endividamento público. Governos lan- que a conta virá no futuro.
çam títulos internamente – a dívida mobiliária interna Governos das principais nações atingidas pela
– ou podem recorrer ao financiamento externo, em pandemia assumiram parcialmente as folhas de pa-
múltiplas fontes. O limite para esse endividamento, gamentos, como na Inglaterra. Nos Estados Unidos
em tese, é a insolvência das nações. Economias fortes da América (EUA), o governo concedeu crédito direto
e estáveis permitem que os governos nacionais con- às pequenas empresas para pagamento de salários,
sigam administrar seus endividamentos, com prazos mediante garantia temporária dos empregos, e dis-
longos, sem sobressaltos, pois existe a confiança dos tribuiu cheques de pouco mais de US$ 1.000 para
mercados de que irão receber seus fundos aplicados cidadãos com renda anual até US$ 77 mil (ou cerca de
em títulos desses países1. R$ 400 mil), mantendo-se a capacidade de consumo e 1. TRADING ECONOMICS.
Dívida Pública % PIB – lista de
No que se refere à confiança dos agentes de sustento imediato das famílias americanas durante a países – G20. Disponível em:
https://pt.tradingeconomics.
mercado no Brasil, é comum observar instabilidade crise. Em meados de julho de 2020, a União Europeia com/country-list/governmen-
nos mercados financeiros capitalistas quando é nítida aprovou um pacote de estímulos de € 750 bi, ou R$ t-debt-to-gdp?continent=g20.
Acesso em: 21 dez. 2020.
a incerteza dos investidores quanto ao sucesso da 4,7 trilhões, destinados à recuperação econômica 2. BRASIL. Emenda
política econômica do governo, segundo seus interes- de nações europeias atingidas pela pandemia. Pela Constitucional nº 95, de 15 de
dezembro de 2016. Altera o Ato
ses. Sempre há a preocupação de que uma execução primeira vez na história, o bloco econômico da Zona das Disposições Constitucionais
Transitórias, para instituir o
fracassada das políticas econômicas governamentais do Euro vai emitir títulos de dívida da União Euro- Novo Regime Fiscal, e dá outras
possa levar a um desarranjo macroeconômico, ruim peia para fazer frente a esse socorro às nações mais providências. Diário Oficial da
União. 16 Dez. 2016.
para o ambiente de negócios. impactadas. A Europa aguarda uma possível segunda
Essa desconfiança crônica traz uma instabilidade onda da Covid-19, e a União Europeia e seu Euro,
adicional e expõe um conflito alocativo, que gera antes desacreditados, ressurgem fortes. Seus líderes
pressões relativamente à forma como os recursos políticos assumem o papel central de coordenação
arrecadados via impostos devam ser distribuídos. Vozes econômica e de proteção social a seus povos.
progressistas querem a expansão do gasto público No Brasil, parece haver um mal-estar das au-
para promover crescimento econômico e bem-estar toridades na prestação do socorro emergencial à
social. Em oposição, rentistas priorizam o controle da economia e aos indivíduos. O importante auxílio
inflação e do deficit público. A política progressista emergencial de R$ 600,00 chega com dificuldade, vide
e a justiça social requerem mais e melhores serviços filas nas agências ou longas análises de elegibilidade
públicos, mais gastos. Já os mercados, cautelosos com de cidadãos ao programa. As linhas de crédito dese-
o risco da desorganização macroeconômica, pedem nhadas a partir da extensa liquidez provida ao sistema
parcimônia nos gastos públicos, sem jamais olvidar financeiro nacional, via farta liberação de depósitos
do retorno de seus investimentos. compulsórios retidos na Autoridade Monetária, pa-
Sempre que a relação dívida pública/PIB aparenta recem não chegar eficientemente a quem precisa. O
descontrole no Brasil, há um certo desconforto. Foi grande estímulo de capital aos bancos privados para
296

prover o crédito às empresas aplicado de modo muito derrocada econômica, no futuro, aos governadores.
seletivo está em descompasso com o cenário de guerra O governo central capturou governadores e prefeitos.
a um vírus letal. Programas recém-concebidos, feito A crise de saúde pública, que exigia uma coor-
o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e denação central e coesão política, irrompeu em des-
3. PRONAMPE. Disponível em: Empresas de Pequeno Porte (Pronampe)3, direcionado controle e interiorização da pandemia. Em nome do
https://www.gov.br/empre-
sas-e-negocios/pt-br/credito/ às micro e pequenas empresas, que oferece crédito controle obsessivo do gasto público, e da equivocada
pronampe/arquivos-e-imagens/
instituicoes-pronampe. Acesso barato e prazo elástico, têm sido liberados quase opinião de que a economia iria sofrer menos sem o
em: 12 jan. 2021.
exclusivamente pela Caixa e Banco do Brasil. lockdown, com o intento velado de não prejudicar
É fato, registrado em reunião presidencial tor- pretensões eleitorais, a resultante são vidas perdidas,
nada pública, o pronunciamento de alta autoridade economia em risco, e desemprego iminente, além de
de que, na crise, o governo iria emprestar para os parcas demonstrações de solidariedade estatal.
grandes e ganhar dinheiro; e perderia dinheiro caso A falta de generosidade nos é sugerida por um
emprestasse aos pequenos, opinião que demonstra certo ‘coração não tão bom’, quando os beneficiários
pouco apreço pelo pequeno negócio e descaso com se deparam com a morosidade na liberação do auxílio
o fechamento de postos de trabalho. emergencial de R$ 600,00 conseguido graças à inter-
De volta à dívida pública, o sentido de resgatar venção dos parlamentares de oposição que se uniram
neste artigo a noção, do fim da idade média, de recurso para elevar o valor original de R$200,00 proposto pelo
ao endividamento público para financiamento das governo; quando da resistência da área econômica em
guerras não seria outro senão destacar que a dívida compensar adequadamente os estados e municípios
pública é instrumento fundamental de resgate das pela perda de arrecadação resultante da parada súbita
economias nacionais nesse instante de guerra ao vírus. da economia, ajuda que, com esforços do Congresso,
Nessa hora, emerge a questão moral da preservação resultou na Lei Complementar nº 173, de 27 de maio
4. BRASIL. Lei Complementar nº da vida em detrimento dos rigores fiscais. de 20204, destinando R$ 60 bilhões àqueles entes.
173, de 27 de maio de 2020. Es-
tabelece o Programa Federativo O falso dilema levantado pelo mais alto manda- O ‘coração não tão bom’ ressurge quando o
de Enfrentamento ao Coronavírus
SARS-CoV-2 (Covid-19), altera tário do País, segundo o qual se a economia parasse os governo não interfere na ineficiente gestão dos pro-
a Lei Complementar nº 101, de
4 de maio de 2000, e dá outras
empregos sumiriam, e que isso seria pior do que encarar gramas de crédito concebidos, entregues aos auspícios
providências. Diário Oficial da pela frente milhares de mortes, evitáveis, em nome de da banca. Não fosse a pressão da mídia, da sociedade
União. 28 Maio 2020.
manter tudo o mais funcionando, com distanciamento e do Congresso Nacional, esses socorros talvez não
social restrito ao isolamento vertical de idosos e demais teriam sido realidade. Ou quando o governo central
grupos de risco, expõe visceralmente a nossa incapaci- renunciou, logo de início, a um protagonismo bené-
dade de superar a atual crise sem traumas. fico no combate à pandemia, e acaso não tivesse sido
Economias que promoveram um lockdown rigo- omisso no papel de coordenação da crise, certamente
roso conseguiram os melhores resultados na contenção a nossa situação seria, de longe, melhor na preservação
da pandemia seguindo as recomendações da OMS. de vidas, principalmente a dos mais vulneráveis, bem
Nações resistentes ao isolamento social atestam hoje como das menores empresas.
os piores desempenhos internacionais no manejo da Caso o combate à pandemia fosse resultado de
pandemia, sem garantias de que as condenáveis atitudes vontade política, a execução orçamentária do Ministé-
de pouco apreço à saúde pública levem à superação rio da Saúde no primeiro semestre de 2020 não estaria
da crise econômica de forma rápida. Os pobres são os em 29% do previsto, quando, por lógica, deveria ter
mais expostos por essa política irresponsável. sido de no mínimo 50%.
No afã de controlar obsessivamente os gastos, E por que os governadores e prefeitos foram
persiste a resistência em despender recursos públi- capturados? Porque eles não têm capacidade, como
cos na preservação de vidas, empregos e empresas. a União, de emitir títulos de dívida pública, à exceção
Ausência absoluta de coesão política no combate à dos precatórios. Aos governos estaduais e municipais,
pandemia no Brasil. Destaca-se a iniciativa da maio- é vedado ir ao mercado e lançar títulos e oferecê-los
ria dos governadores, preocupados com a saúde de aos investidores para fazer caixa. É dessa forma que
seus concidadãos, e com a higidez de seus sistemas as nações tradicionalmente financiam seus deficit.
de proteção à vida, que contrariaram a diretriz do Nesse contexto, os governadores/prefeitos – em rota
governo central de que o Brasil não poderia parar e de colisão com o governo central e sem sustentação
decretaram fechamento de escolas, shoppings, bares, financeira para bancarem seus estados/municípios
restaurantes e locais de entretenimento – duramente em lockdown até a contenção da Covid-19 – foram
criticados pelo Presidente, que exigia que se creditasse levados a reabrir antecipadamente suas economias,
297

a fim de que a arrecadação tributária (sua principal tral, sem coordenação com estados e municípios,
fonte de receitas) não cessasse. Isso poderia acarretar sem transferência maciça de recursos públicos para
consequências danosas aos serviços públicos presta- assegurar a manutenção do ritmo econômico e, con-
dos, em especial os de saúde. Registre-se que os que sequentemente, das empresas e dos empregos.
reabriram terminaram criticados pelos cientistas para Cogita-se que o governo emita títulos do Tesouro
o regozijo de seus adversários políticos, enquanto os a serem adquiridos pelo Banco Central, na prática
casos e óbitos de Covid-19 voltam a subir. uma emissão controlada de moeda. Essa proposta
Com efeito, governadores dependem da econo- é proveniente de certos desenvolvimentistas – que
mia aberta para que ocorra a arrecadação do Imposto alegam que o impacto na dívida pública poderia ser
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). O pequeno visto que o Banco Central é parte integrante
interesse público indicava suspender a atividade eco- do Estado – ou de parcelas do campo conservador –
nômica até que a taxa de retransmissão do vírus caísse que admitem haver espaço para executá-la como na
abaixo de 1. Entretanto, sem o apoio firme e decisivo crise de 2008 em que trilhões de dólares de estímulo
do governo federal, o único capaz de sustentar um à economia foram injetados pelos governos mundo
lockdown de fato, governos estaduais não poderiam afora sem impacto na inflação. Vozes do mercado
5. COMPARA BRASIL.
abrir mão de sua principal fonte de receita, dependen- desacreditam veementemente nesse caminho. Municípios. Disponível em: http://
comparabrasil.com/municipios/
te das atividades econômicas. Ilustrando, em 2019, O fato é que o Estado pode ter dinheiro na paginas/modulo1.aspx. Acesso
em: 22 dez. 2020.
em termos da receita tributária líquida, as economias emergência e que cidadania e solidariedade não po-
6. BRASIL. Medida Provisória
fluminense e paulista dependiam, respectivamente, dem faltar. Quando os efeitos da MP nº 975/20206 nº 927, de 22 de março de
em 63 e 91% da arrecadação do ICMS5. cessarem, e o desemprego irromper, quando todos 2020. Dispõe sobre as medidas
trabalhistas para enfrentamento
No âmbito do Tesouro Nacional, foi anunciado nos percebermos mais pobres, o ambiente social vai do estado de calamidade pú-
blica reconhecido pelo Decreto
pelo governo federal, em meados de julho, que a pan- se deteriorar rapidamente. A renda das pessoas vai Legislativo nº 6, de 20 de março
de 2020, e da emergência de
demia deve causar um rombo fiscal de R$ 880 bilhões cair, e a recuperação da economia será lenta. saúde pública de importância
este ano. Soma parecida com o ganho projetado em É recomendável que o Executivo, com a ajuda internacional decorrente do co-
ronavírus (covid-19), e dá outras
10 anos com a reforma da previdência. essencial do Legislativo, torne possível a tributação providências. Diário Oficial da
União. 22 Mar. 2020.
Essa situação poderá levar a relação dívida pú- sobre as grandes fortunas, sobre os dividendos, possa
blica/PIB a patamares entre 95% e 100% a depender repensar de forma original o teto de gastos sociais
da redução do PIB em 2020; se 9,1%, como estima imposto pela EC 95, que se trate de buscar um sistema
o FMI; ou 4,7%, conforme as projeções do governo tributário mais justo, progressivo, que os programas de
brasileiro divulgadas em julho que estimam a relação ajuda financeira aos ‘invisíveis’ sejam prorrogados até
dívida pública/PIB (fim do ano) em 98,2% com a eco- 2021, e se abandone de vez a tese do Estado mínimo.
nomia em recessão e endividada. Necessitamos de um SUS prestigiado e de um
Muitos defendem que o resultado poderia ter Estado forte para enfrentar os desafios que estão no
sido diferente não fosse a inação do governo cen- porvir. E não serão poucos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
298

Pandemia de Covid-19, crise sanitária e


impactos na Saúde das(os) Trabalhadoras(es)
Fernando Ribas Feijó
Jesem Douglas Yamall Orellana

Quase seis meses após declarada emergência por limitações na gestão e coordenação das políticas
sanitária global pela OMS, a pandemia de Covid-19 e ações sanitárias, retardaram a tomada de medidas
aproxima-se do primeiro milhão de vítimas, com im- efetivas de enfrentamento.
pacto maior nos segmentos socioeconômicos mais Embora pareça trivial, o termo ‘oportunidade’
desfavorecidos de todos os países, ampliando histó- é elemento-chave na interpretação da abordagem à
ricas iniquidades em saúde1. Covid-19 nos primeiros seis meses. O aludido termo
Na América Latina, adoecimentos e mortes evitá- remete a múltiplos entendimentos, quase sempre à
1. MARMOT, M., at al.
COVID-19: exposing and
veis crescem continuamente devido ao acesso limitado circunstância favorável ou propícia para fazer algo.
amplifying inequalities. J
Epidemiol Community Health,
a serviços de saúde e a dificuldades no isolamento de Entretanto, no mundo real, é muito difícil agir na hora
v. 0 n. 00, p. 1-2, 2020. infectados, que, muitas vezes, vivem em domicílios e no momento certo, exigindo análises aprofundadas
2. ORELLANA, J. D. Y., et densamente ocupados e em condições socioeconô- na estimativa e projeção de cenários. Mesmo sendo
al. Explosão da mortalidade
no epicentro amazônico da micas e sanitárias favorecedoras da disseminação impossível agir sempre oportunamente nas questões
epidemia de COVID-19. Cad.
Saúde Pública, v. 36, n. 7,
do novo coronavírus. Em julho de 2020, o Brasil, o cotidianas, há maneiras de antecipar problemas de
p.1, 2020. Brasil atingiu o maior número de mortes no planeta, maior escala ou maiores consequências para a socie-
3. BERGAMO, M., et al. e o relato de mais de mil mortes diárias por Covid-19 dade. Os exemplos vão desde coisas simples, como
‘Oxigênio acabou e hospitais
de Manaus viraram câmara tornou-se comum no País. um semáforo em um importante cruzamento, até
de asfixia’, diz pesquisador
da Fiocruz Profissionais Há um conjunto de acontecimentos que contribui sistemas de alerta complexos que podem antecipar
de saúde também fizeram
relatos dramáticos à
para a compreensão do desolador cenário de inúmeras a ocorrência de tsunamis ou furacões com horas ou
coluna. Folha de São Paulo. cidades brasileiras. Manaus, por exemplo, foi duramente dias de antecedência.
Disponível em: https://www1.
folha.uol.com.br/colunas/ castigada em abril/maio de 20202 e foi dramaticamente Na saúde coletiva não é diferente2. Aplicam-se di-
monicabergamo/2021/01/
oxigenio-acabou-e-hospitais- afetada na segunda onda, recebendo a alcunha de capital ferentes conceitos e abordagens, baseados nos melhores
-de-manaus-viraram-camara-
-de-asfixia-diz-pesquisador-
mundial da mortalidade por Covid-19, após devastadora dados epidemiológicos para prevenir adoecimentos, mor-
-da-fiocruz.shtml. Acesso em: disseminação viral e o colapso de sua rede médico-as- tes e gastos desnecessários. Esses pressupostos deveriam
15 jan. 2021.
sistencial em dezembro-2020/janeiro-2021, catástrofe ser considerados no agir assertivo e efetivo em um cenário
4. GIRARDI, G. Explicação
mais plausível para a explo- sanitária e humanitária que chocou a humanidade, após epidêmico dificultado por um agente infeccioso até então
são da covid em Manaus é
nova variante do vírus, diz hospitais terem sido transformados em algo parecido com desconhecido. Diante do comunicado da China à OMS,
cientista. Estadão. Disponível
em: https://saude.estadao.
‘câmaras de asfixia’ diante do esgotamento de oxigênio em 31 de dezembro de 2019, do surto por novo agente
com.br/noticias/geral,explica- medicinal no estado3,4. A redução dos gastos públicos viral (Sars-CoV-2), o mundo parecia descrente com o
cao-mais-plausivel-para-ex-
plosao-da-covid-em-manaus- com saúde a partir de 2015 – devido à crise econômi- potencial do novo coronavírus e não apostou na sua
-e-nova-variante-do-virus-di-
z-pesquisador,70003581859. ca – com importantes restrições orçamentárias para o capacidade avassaladora, mesmo depois do alerta de
Acesso em: 15 jan. 2021. SUS – historicamente subfinanciado – agravou-se com a emergência sanitária global pela OMS em 30 de janeiro
5. ORELLANA, J. Saúde
Coletiva, Oportunidade e
aprovação da EC 95/2016 (emenda do Teto dos Gastos de 2020. EUA, Itália e Espanha perderam a oportunidade
Resiliência em Tempos de Públicos) que congelou investimentos em saúde até 2036 de reconhecerem a gravidade do problema a tempo e
Pandemia. Disponível em: ht-
tps://48209fd4-9e54-4385-b- e resultou na perda de mais de R$ 20 bilhões até 2020. foram duramente castigados, com milhões de infectados
712-c09bfc7c2b87.filesusr.
com/ugd/15557d_988a- Para 2021, há previsão de nova perda de mais 35 bilhões e dezenas de milhares de mortos5.
f7ac80d849a986a53b1cd-
46d2d20.pdf. Acesso em: 22
na saúde, via Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias O Brasil falhou em não alocar recursos finan-
dez. 2020. (PLDO). Com esses cortes e as medidas adotadas pelo ceiros; não qualificar trabalhadores de saúde nos
6. MELLAN, T. A., et al. atual governo, o SUS, que poderia ser o maior aliado da diferentes níveis de atenção à saúde, em especial na
Relatório 21 – Estimativa
de casos COVID-19 e população no enfrentamento da epidemia, mostra-se atenção básica; não prover infraestrutura hospitalar;
número de reprodução
no Brasil. Disponível em: cada vez mais fragilizado. e, principalmente, por não coordenar a vigilância
https://www.imperial.ac.uk/
mrc-global-infectious-di-
Os erros no dimensionamento do potencial em saúde e ofertar capacidade laboratorial e testes
sease-analysis/covid-19/ impacto social, econômico e humanitário da crise, diagnósticos, possibilitando o monitoramento e o
report-21-brazil/. Acesso em:
22 dez. 2020. em especial nos primeiros cinco meses da pandemia, controle dos casos de Covid-19.
299

Organismos internacionais6 e nacionais7 alertaram distanciamento físico das pessoas foram fracassando 7. CODEÇO, C., et al. 3º relatório
– 02 de abril 2020: Estimativa de
as autoridades sanitárias do Brasil sobre o potencial da em efeito cascata no País, pois muitas grandes cidades risco de espalhamento da CO-
VID-19 nos estados brasileiros
pandemia. Em fevereiro de 2020, a China, que sofreu por como Manaus (estado do Amazonas – região Norte), e avaliação da vulnerabilidade
quase 60 dias para desacelerar efetivamente o surgimento Fortaleza (estado do Ceará – região Nordeste) e Rio socioeconômica nos municípios.
Disponível em: https://portal.
de casos novos, ofereceu lições ao mundo nas estraté- de Janeiro (estado do Rio de Janeiro – região Sudes- fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/
files/documentos/procc-emap-co-
gias eficazes de controle (como isolamento em massas te) aderiram apenas pobremente a essas medidas e vid-19-reporte3_20200401.pdf.
Acesso em: 22 dez. 2020.
e rastreamentos comunitários rigorosos de casos confir- acabaram levando milhões de pessoas ao adoecimento
8. MENON, P. Covid-19: Nova
mados, suspeitos, e de contatos) e na drástica redução e outras dezenas de milhares a mortes evitáveis12. A Zelândia põe maior cidade em
na circulação viral e, consequentemente, de potenciais cidade como São Paulo, que aderiu de forma menos lockdown após 102 dias. Agência
Brasil. Disponível em: https://agen-
adoecimentos e mortes evitáveis. precária às medidas de distanciamento físico entre ciabrasil.ebc.com.br/internacional/
noticia/2020-08/covid-19-nova-ze-
Recentemente, a cidade de Auckland/Nova Zelân- março e maio de 2020, mas que relaxou em junho e landia-poe-maior-cidade-em-lock-
down-apos-102-dias. Acesso em:
dia surpreendeu positivamente ao decretar lockdown julho, viu mais de 56% de todas as mortes por Covid-19 22 dez. 2020.
após a confirmação de quatro casos novos, mostrando acontecerem justamente nos meses de junho e julho13. 9. BRASIL. Ministério da Saúde.
que para manter o vírus sob controle é necessário O desastre na condução da crise de saúde no Portaria nº 1.823, de 23 de agosto
de 2012. Institui a Política Nacional
enfrentá-lo permanentemente, tendo o princípio da Brasil apresenta graves perdas, levando 8,9 milhões de de Saúde do Trabalhador e da
Trabalhadora. Diário Oficial da
precaução como maior aliado, especialmente quando trabalhadores a perderem seus empregos no segundo União. 24 Ago. 2012.
não há vacina e/ou medicação específica disponíveis de trimestre de 2020, enquanto o número de desalentados 10. FERRANTE, L., et al. Proteja
forma ágil e universal. A Nova Zelândia mantém-se como (indivíduos que desistiram de buscar trabalho) chegou os povos indígenas de COVID-19.
Science, v. 368, n. 6488 p. 251.
exemplo durante a pandemia e ficou 102 dias livre de a 5,4 milhões em julho de 202014. As incertezas quanto 11. GIMENES, E., et al. Governo
casos novos sugestivos de transmissão comunitária8. O ao futuro e o medo do desemprego têm adoecido as admite que número de casos de
coronavírus no Brasil é maior
princípio da precaução, conceito basilar da ST incluído trabalhadoras e os trabalhadores, que se veem sem que o registrado. Brasil de Fato.
Disponível em: https://www.
nas diretrizes da Política Nacional de Saúde do Traba- perspectivas de terem um trabalho digno e seguro. brasildefato.com.br/2020/03/20/
lhador e da Trabalhadora9, deveria ser empregado na À população que se mantém empregada, restam governo-admite-que-numero-de-
-casos-de-coronavirus-no-brasil-
gestão de saúde e vigilância epidemiológica. as mais variadas formas de precarização do trabalho, -e-maior-que-o-registrado. Acesso
em: 22 dez. 2020.
O poder Executivo federal brasileiro jamais exer- desde suspensões de contratos de trabalho, migração
12. ORELLANA, J. D. Y., et al.
ceu sua liderança de forma efetiva para minimizar os de trabalho formal para informal, reduções salariais, Excesso de mortes, subnotificação
de COVID-19 e desigualdades.
efeitos da epidemia. No início de junho, menos de passando por trabalho remoto/a distância, sobrecar- Cad. Saúde Pública, v. 37, n. 1,
100 dias após o registro do primeiro caso no País, já ga de trabalho, aumento do estresse nos ambientes p. 1, 2021.

estávamos no terceiro ministro da Saúde, um gestor laborais, bem como a exposição dos trabalhadores a 13. VALERY, G. Brasil se apro-
xima de 100 mil mortos pela co-
interino que permaneceu no cargo indefinidamente riscos elevado de contaminação, em especial entre tra- vid-19. Mudanças são urgentes, diz
Fiocruz. Rede Atual Brasil. Disponí-
mesmo sem formação na área da saúde. balhadores de serviços e setores produtivos essenciais. vel em: https://www.redebrasilatual.
com.br/saude-e-ciencia/2020/08/
Dessa forma, falhamos quando da oportunidade brasil-se-aproxima-de-100-mil-mor-
tos-por-covid-19-mudancas-sao-ur-
de executar planos de contingenciamento e mitigação da gentes-diz-fiocruz/. Acesso em: 22
epidemia (em fevereiro de 2020), respeitando o padrão de dez. 2020.

disseminação do novo coronavírus. Falhamos no controle 14. ROUBICEK, M. Como ler


os dados do desemprego na
da disseminação do vírus da região sudeste do Brasil para pandemia. Nexo. Disponível em:
https://www.nexojornal.com.br/
outras regiões, das capitais e metrópoles para o interior, e expresso/2020/06/30/Como-ler-os-
de alguns municípios para localidades remotas/isoladas, -dados-do-desemprego-na-pande-
mia. Acesso em: 22 dez. 2020.
como os ribeirinhos e povos indígenas10. Faltou perceber
especificidades ambientais, de infraestrutura médico-hos-
pitalar, de vigilância laboratorial e epidemiológica e de
características socioeconômicas.
Como exemplo de erros estratégicos cometi-
dos no início da epidemia, citam-se a deficiência no
controle sanitário em aeroportos, portos e terminais
rodoviários; o descarte precoce da estratégia de tes-
Foto: João Paulo Costa/Mídia Ninja

tagem em massa pelo Ministério da Saúde11.


Como não tivemos um adequado planejamento
e condução da epidemia no nível federal, o Brasil
acabou lidando equivocadamente com a crise sanitária
e humanitária. Os planos para implementação de
quarentenas ou medidas que resultassem em efetivo
300

Aos profissionais de saúde, atribui-se o papel de a suspensão das frágeis medidas de distanciamento
15. MYTTON, O., et al.
Mortalidade devido à pandemia de serem heróis, ao mesmo tempo que são submetidos físico em grandes metrópoles brasileiras13.
gripe (H1N1) 2009 na Inglaterra:
uma comparação da primeira e
à falta de condições de trabalho mínimas, seja de in- Os sequenciais erros na gestão da epidemia no
da segunda ondas. Epidemiology
and Infection, v. 140, n. 9, p. 1533-
fraestrutura, materiais ou Equipamentos de Proteção Brasil, aos poucos, vão nos obrigando a conviver com
1541, 2012. Coletiva (EPC) e Individual (EPI), a jornadas de traba- o luto diário, seja por mortes direta (específicas por
lho extenuantes e a riscos psicossociais imensuráveis. Covid-19) ou indiretamente associadas à epidemia12.
A exacerbação dos riscos ocupacionais durante Além dos mais de 110 mil óbitos registrados por Co-
a pandemia é uma realidade vivenciada por todos vid-19 até meados de agosto de 2020, somam-se as
trabalhadores e trabalhadoras e demandará interven- mais de 40 mil mortes por Síndrome Respiratória
ções no curto, médio e longo prazo. A reabertura de Aguda Grave (SRAG) com causa ‘indeterminada’, além
serviços não essenciais como comércio, restaurantes, de milhares de outros óbitos decorrentes da falta de
locais públicos e escolas, proposta por governantes assistência a pacientes com doenças crônicas.
já a partir da metade do ano de 2020, mesmo sem Não só milhares de trabalhadores e trabalhado-
qualquer tipo de redução sustentada de novos casos ras adoeceram ou perderam suas vidas pela falta de
ou melhoria da curva epidêmica no País, coloca em controle na disseminação da Covid-19, mas outros
risco toda a população, podendo levar muitas cidades milhares de comunicantes também, como familiares
a uma segunda onda de mortalidade3, assim como já e contatos próximos. À classe trabalhadora, cabe a
aconteceu em outras regiões do planeta, por ocasião luta pela sobrevivência. Tão ou mais necessário, hoje
da pandemia de gripe suína (H1N1) em 200915. em dia, é a defesa de um trabalho digno, seguro e
A suspensão parcial e/ou total das medidas de não adoecedor, bem como de direitos trabalhistas
distanciamento físico tem resultado no aumento de historicamente conquistados. Todos esses fatores
mortes por Covid-19 no Brasil. Não por acaso, em somados culminam com o cenário social e sanitário
torno de 70% das mortes que ocorreram no País até extremamente complicado que vivenciamos hoje, o
meados de agosto de 2020 foram confirmadas justa- qual impõe desafios históricos àqueles e àquelas que
mente nos meses de junho e julho, coincidindo com dependem da sua força de trabalho para sobreviver.

‘E daí?’ Indiferença e negacionismo durante a


pandemia de covid-19
Diego de Oliveira Souza

1. SOUZA, D. O. A pandemia
de COVID-19 para além das Introdução No Brasil, a pandemia assume contornos dramá-
Ciências da Saúde: reflexões
A pandemia de Covid-19 revela-se um fenômeno ticos em maio de 2020, ultrapassando 10 mil mortos
sobre sua determinação social.
Ciênc. Saúde Colet., v. 25, supl.
de interesse científico geral, extrapolando as ciências logo nos primeiros dias do mês2. O esperado seria uma
1, p. 2469-2477, 2020.
da saúde, sobremodo pela relação direta que seu en- condução político-sanitária incisiva no enfrentamento
2. BRASIL. Painel Coronavírus.
Disponível em: https://covid. frentamento possui em face de decisões políticas e, do problema, de articulação nacional, com produção
saude.gov.br/. Acesso em: 23
dez. 2020. inclusive, na área econômica, quando da necessidade de informação epidemiológica precisa e apoio aos que
da garantia das condições de reprodução social dos estão na linha de frente do combate. Além disso, a
indivíduos em tempos de ‘distanciamento social’. empatia pelas milhares de famílias que perderam seus
Diríamos até que, antes de tudo isso, a dimensão entes seria a postura esperada da parte de qualquer
econômica é uma das determinações da complexa di- governante, ainda que representando uma instituição
nâmica da pandemia. Sua rápida propagação encontra tipicamente capitalista – o Estado.
as condições ideais no estilo de vida mundial conso- É nesse contexto que apresentamos o ensaio, a
ante com a atual fase contemporânea do capitalismo fim de refletir sobre a postura do presidente da Re-
(acelerado, de grande trânsito pelo mundo, de busca pública Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro.
pelo interesse individual etc.) em combinação com Como recorte particular, partimos da frase “E daí?
as características inerentes ao próprio Sars-CoV-21. Lamento. Quer que eu faça o quê?” do presidente,
301

em 28 de abril de 2020, ao ser interpelado sobre o tentamentos de parte da população ante escândalos
fato de o número de óbitos no Brasil ter ultrapassado de corrupção de governos anteriores. Sob a falácia
o da China, país de origem da pandemia3. populista de ser antissistêmico mais o apoio de um 3. GARCIA, G. ‘E daí? Lamento.
Quer que eu faça o quê?’, diz
A concatenação, a partir do materialismo his- aparato ideológico com ampla penetração no mundo Bolsonaro sobre mortes por
coronavírus; ‘Sou Messias, mas
tórico, considera a concepção de saúde enquanto digital, esse projeto, personificado em Bolsonaro, não faço milagre’. G1. Disponível
em: https://g1.globo.com/politica/
processo social, determinado pela articulação entre venceu as eleições e transformou tudo aquilo que noticia/2020/04/28/e-dai-lamen-
forças produtivas e relações sociais de produção, se relaciona à perspectiva progressista em algo que to-quer-que-eu-faca-o-que-di-
z-bolsonaro-sobre-mortes-por-co-
mas, conjunturalmente constituído com importante faz parte de um suposto sistema corrompido e que ronavirus-no-brasil.ghtml. Acesso
em: 23 dez. 2020.
participação da esfera política. deve ser combatido. Até mesmo a defesa da vida ou
4. KELLER, R. J., et al. “Liberal
do conhecimento, quando não se alinha aos interes-
A indiferença (de classe) do Estado burguês na ses de tal projeto, é desqualificada e atacada. Não
na economia e conservador nos
costumes” um arranjo sincrético
na política brasileira pós-golpe
sua face mais bárbara surpreende, assim, que a indiferença à vida, quase de 2016. Fronteras, v. 13, p.
44-52, 2019.
A frase dita por Bolsonaro – que tomamos por sempre camuflada, a exemplo de outras nações ca-
5. MÉSZÁROS, I. Para além do
mediação de análise – expressa a falta de pesar pelos pitalistas (devido às variações dos ‘ingredientes’ e da Capital: rumo a uma teoria da
transição. São Paulo: Boitempo
óbitos decorrentes da pandemia de Covid-19 e a indi- correlação de forças), apareça nua e crua em alguns Editorial, 2009.
ferença daquele que deveria ser o principal implicado países, como no Brasil. 6. GRAMSCI, A. Os Indiferentes.
no processo de enfrentamento de problemas no País. A nosso ver, esse é o caráter que subjaz à indi- Disponível em: https://www.
marxists.org/portugues/grams-
Para além, essa mediação manifesta, barbaramen- ferença presidencial, lembrando, quando afirma que: ci/1917/02/11.htm. Acesso em:
23 dez. 2020.
te, o tipo de postura que o espírito capitalista é capaz “A indiferença atua poderosamente na história. Atua
de produzir, mais especificamente, na personificação passivamente, mas atua”6.
de um líder de Estado, representante de um projeto A argumentação de Gramsci6 é direcionada aos in-
político de extrema-direita em ascensão. Projeto mar- diferentes às lutas de classe, em especial aos omissos no
cado pela máxima “liberal na economia e conservador que tange à sua própria posição de classe. Não obstante,
nos costumes”, por mais sincrética que pareça, porque podemos ampliar a análise sobre a indiferença a partir
“as expressões da realidade brasileira evidenciam que é desse princípio e de seu papel na história, localizando-a
possível ser liberal e conservador ao mesmo tempo, na no seio do capital e de seus representantes, quando
defesa de preceitos como a meritocracia, a propriedade se trata de perceber as necessidades efetivamente hu-
privada, a redução do Estado, a valorização de insti- manas. Considerando que capitalistas e trabalhadores
tuições tradicionais e o corte de direitos sociais”4(51). representam classes diametralmente opostas, o ato de se
Tal dinâmica atinge seu apogeu, em termos in- importar com qualquer necessidade dos trabalhadores
ternacionais, com a implosão do taylorismo/fordismo, (consequentemente, afeita à emancipação humana), no
quando as crises até então cíclicas do capital assumem limite, é incompatível à natureza do capital.
um caráter crônico, o que torna evidente os limites Note-se que se trata de uma indiferença à vida,
desse sistema para se (auto)reproduzir. Segundo mas, sobretudo, quando essas vidas são da classe
Mészáros5, a partir da década de 1970, o capitalismo trabalhadora, justamente ela que está no front contra
entra em outro tipo de crise, de caráter estrutural, a pandemia. Trata-se, portanto, de uma indiferença
duradouro, que afeta a totalidade do sistema. No de classe (da burguesia) em relação às necessidades
entanto, a dinâmica capitalista continua se arrastando da classe trabalhadora, consubstanciada na dinâmica
graças, entre outras, à articulação neoliberal entre do antagonismo de classe (de acúmulo versus pau-
Estado e economia, com a hipertrofia da especulação perismo) expressa na sua faceta política e, conse-
financeira que lhe é corolária. Por vezes, no interior quentemente, contra a emancipação humana. É uma
dos momentos cíclicos da crise estrutural, é preciso indiferença cujo sentido é favorecer os interesses da
“pesar a mão” na implementação das medidas neoli- burguesia (sobretudo econômicos), também evidente
berais, em especial nas economias dependentes, como na narrativa presidencial quando conclama pela volta
o Brasil. Com isso, a face mais vil da desumanidade à normalidade, às atividades econômicas, dos serviços
capitalista erupciona e, mesmo no bojo da maior etc., sobrepondo-se à ciência e à vida.
crise humana em tempos, não consegue ser contida.
A trajetória política recente do Brasil trouxe
Negacionismo: a afirmação dos interesses de
todos os ‘ingredientes’ necessários à consubstan- classe
ciação dessa face bárbara, visto que a correlação de Articulado ao desdém particularizado no “E
forças atual produziu um projeto conservador, da daí?”, o presidente da República Federativa do Bra-
ultradireita, que obteve êxito em emular os descon- sil nega insistentemente a gravidade da Covid-19
302

7. UOL. ‘Gripezinha’: leia a


íntegra do pronunciamento equiparando-a à “gripezinha/resfriadinho”7. Postura a classe trabalhadora seja dizimada, pois não existe
de Bolsonaro sobre covid-19. contrária às evidências científicas, negando, inclusive, produção de capital sem os trabalhadores. Some-se
UOL. Disponível em: https://
noticias.uol.com.br/politica/ exemplos de nações que retardaram intervenções a isso o fato de que as circunstâncias em países de
ultimas-noticias/2020/03/24/
leia-o-pronunciamento-do-presi- para contenção da pandemia e viram seus sistemas capitalismo avançado (que não têm os ‘ingredientes’
dente-jair-bolsonaro-na-integra.
htm?cmpid=copiaecola. Acesso de saúde colapsarem. Novamente constatamos o tipo peculiares do Brasil atual) não suprem o lastro ne-
em 23 dez. 2020. de político forjado pela face mais vil do capitalismo cessário para que suas autoridades façam ecoar os
na sua forma desnuda, sem véus ou maquilagens, no pensamentos negacionistas que, por vezes, transcen-
Brasil de 2020. dem o surreal. Devemos lembrar que Giuseppe Conte
Cumpre destacar que o negacionismo é um me- (primeiro-ministro da Itália) foi contra as medidas de
canismo há tempos utilizado para a afirmação dos distanciamento social em um primeiro momento, mas
interesses de classe, haja vista, por exemplo, a negação precisou se desculpar, tendo em vista a grande quan-
do Estado Medieval sobre as descobertas iluministas, tidade de óbitos na Itália, que se tornou o epicentro
o que, naquele momento, interessava à classe nobre da pandemia naquela oportunidade. Em seguida, o
(senhores feudais e clero). Porém, enquanto corrente epicentro da pandemia passou a ser os EUA, país no
política sistematizada, com reflexos inclusive acadê- qual o presidente, Donald Trump, também apresentou
micos, o negacionismo surge como subterfúgio para resistência às medidas de distanciamento por ocasião
negar o holocausto e todas as responsabilidades do dos primeiros casos no País. A reprise veio com Boris
8. MORAES, L. E. S. O Negacio- governo alemão da época8. Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, acrescido
nismo e as Disputas de Memória:
reflexões sobre intelectuais de Diante disso, o negacionismo comparece en- do fato de ter ele mesmo contraído a doença.
extrema-direita e a negação do
quanto artifício político utilizado por determinados Em algumas ocasiões, o capitalismo atua de
holocausto. Disponível em: http://
encontro2008.rj.anpuh.org/resour-
grupos com fins de mistificação (ou, mesmo, falsea- modo mais sutil ou faz concessões a fim de manter o
ces/content/anais/1212957377_
ARQUIVO_Artigo-ANPUH-2008. mento) das origens, motivações e resultados de seus essencial, sobretudo nos países centrais, mostrando
pdf. Acesso em: 23 dez. 2020.
próprios atos ou de seus aliados, no passado, no uma face que os próprios burgueses classificam como
9. GASTALDI, F. C. Gramsci e o
negacionismo climático estaduni- presente ou no que pode vir a ser. Analogamente, civilizada. Esse não é o caso do Brasil de 2020, tendo
dense: A Construção do Discurso
o termo também tem sido utilizado em relação às em vista o negacionismo em face da Covid-19, inci-
Hegemônico no Antropoceno.
Neiba, v. 7, n. 1, p. 1-19. 2018. alterações climáticas, com caráter similar, quando se sivamente reproduzido pelo seu presidente, mesmo
defende que as mudanças climáticas não possuem com o aumento de casos e mortes.
relação com a ação humana ou, até mesmo, afirma-se O desprezo pela ciência, pela universidade, pelo
que não existem alterações climáticas, pois tudo não SUS e pelos trabalhadores brasileiros é expressão da
passaria de uma invenção conspiratória9. postura capitalista na sua forma mais transparente de
No caso da Covid-19, isso se traduz na negação ser, consubstanciada em um chefe de Estado fabricado
da importância epidemiológica da doença, contra- pela aliança do grande capital com a política (neo)
riando os dados; das preocupações científicas ante fascista, a fim de concretizar seu projeto extremista,
as incertezas de cura e imunização; e das orientações custe o que custar. Resta saber até quando esse tipo
dos especialistas em saúde pública, quando alertam bárbaro será útil ao Estado burguês, com sua fugaci-
sobre a capacidade dos sistemas de saúde em face da dade e demandas mutantes, muitas vezes oscilantes
velocidade da pandemia. Ou seja, negar as evidências entre estratégias mais eufemísticas ou mais incisivas.
se faz necessário quando elas ultrapassam os limites da Enquanto isso, o prejuízo à vida vai se efetivando a
incorporação socio-metabólica pelo capital, ameaçan- largos passos, talvez sem precedentes mundiais desde
do o seu projeto internacional, ou, no caso, sua face as duas grandes Guerras. Resistir às investidas contra a
nacional. As personificações do capital mais bárbaras humanidade e, mais do que isso, atacar o sistema desde
são evocadas a fim de, sem pudor, contraporem-se às suas raízes revelam-se, cada vez mais, imprescindíveis.
evidências, inclusive propagando dados e fatos falsos
sobre o assunto. Ainda que a história vá demonstran-
À guisa de conclusão
do que os negacionistas estão errados, eles sempre A indiferença e o negacionismo do presidente
podem lançar mão da mesma postura para falsear o do Brasil se juntam a uma série de outras questões
passado e deslocar suas responsabilidades a outrem. que inviabilizam um projeto consistente de combate à
Em outras nações, o negacionismo inicial na pandemia no País, haja vista as constantes trocas, por
pandemia esbarrou nos interesses do próprio siste- exemplo, de ministro da Saúde (até julho de 2020,
ma, sobretudo pela ameaça à reprodução da força foram duas trocas de ministro com a pandemia em
de trabalho. Ou seja, ainda que o capitalismo seja curso) e o frágil (ou ausente) planejamento tripartite
mortificante por natureza, não interessa a ele que para conter os casos e os óbitos.
303

Como resultado dessas questões, o Brasil se por meio do home office, sobrepondo a jornada
tornou um dos epicentros da pandemia desde maio de de trabalho com as tarefas domésticas.
2020. Até 11 de agosto, o Brasil apresentava 3.057.470 Finalmente, a falta de estrutura dos serviços de
casos e 101.752 óbitos, ficando atrás apenas dos EUA10. saúde – agora especialmente no que diz respeito à 10. JOHNS HOPKINS UNIVER-
SITY. COVID-19 Dashboard by
Modulada pela indiferença de classe, a pan- segurança dos trabalhadores da linha de frente – e the Center for Systems Science
demia de Covid-19 se volta, com mais violência, a debilidade da proteção social aos trabalhadores and Engineering (CSSE). Disponí-
vel em: https://gisanddata.maps.
contra os trabalhadores. Em especial, os efeitos que já viviam no limite (ou além dele) são elementos arcgis.com/apps/opsdashboard/
index.html#/bda7594740f-
são sentidos sobre aqueles que estão na linha de que fizeram a Covid-19 assumir tamanha gravidade. d40299423467b48e9ecf6. Acesso
em: 23 dez. 2020.
frente contra o novo coronavírus, a exemplo dos Deve-se considerar que a negação das evidências
trabalhadores da saúde, mas também nos trabalha- sobre a melhor maneira, científica, de combater a
dores de supermercados, aplicativos de entregas pandemia não é nenhuma surpresa tendo em vis-
de alimentos e outros produtos, de frigoríficos, ta a incompatibilidade desse sistema com a vida
da limpeza urbana, entre outros. humanamente plena. Que isso seja ignorado por
Com efeito, as reverberações da pandemia alguns líderes mundiais, colocando em risco a to-
acentuam a degradação da saúde dos trabalhado- dos e, principalmente, os trabalhadores, também
res, em alto patamar desde antes. Acentuam-se, não surpreende, embora sempre seja impactante.
sobremodo, as estratégias de precarização do A pandemia apenas ratifica, com mais pujança, que
trabalho disfarçadas de empreendedorismo e as a indiferença de classe adoece e mata.
formas de prolongamento da jornada de trabalho,

Foto: Arquivo DCO

No fundo da mina: mineração e Saúde do


Trabalhador 1
1. Parte dos resultados publicada
em ‘Na boca do inferno: os traba-
lhadores da mineração’, Coluna
Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves Opinião, 14/05/2020, site https://
www.multiplicadoresdevisat.
com/. O autor agradece o apoio
de Larissa Santhomé e Danniella
Castro, da Superintendência
Os desastres da mineração ocorridos em Ma- o modelo de mineração no Brasil é um modelo de Vigilância em Saúde da
riana (MG) (novembro de 2015) e Brumadinho predatório do ambiente e da ST. Secretaria de Saúde do Estado
de Goiás.
(MG) ( janeiro de 2019), provocados por rom- Com efeito, além das barragens, os riscos da
pimentos de barragens de rejeitos de minério mineração compreendem uma larga rede extrativa
de ferro, demonstraram que esse setor extrativo que conecta minas a céu aberto ou subterrâneas,
representa um problema ambiental, político e pilhas de estéril, minerodutos, ferrovias, siderúrgicas
econômico que requer atenção crítica. Esses even- e terminais portuários. Essa rede extrativa representa,
tos, que também podem ser compreendidos como ao mesmo tempo, uma rede de impactos na saúde dos
‘acidentes de trabalho ampliados’, revelaram que trabalhadores e de conflitos ambientais. Todavia, no
304

presente texto, selecionamos resultados de pesquisas de trabalhadores expostos ao sol, como se estivessem
em uma mina a céu aberto localizada em Goiás para dentro da ‘boca do inferno’.
problematizar a relação entre mineração e ST. No fundo da mina, o trabalho extenuante pro-
Demonstra-se que, nos territórios extrativos, a voca o esgotamento da saúde dos trabalhadores na
deterioração ambiental é indissociável da fratura da mesma medida da dilapidação dos minérios. É um
saúde-trabalho. Essa constatação foi observada na processo de maquinação dos bens territoriais e da
mina Boa Vista, de propriedade da empresa CMOC saúde dos trabalhadores. Por consequência, a mina
Brasil (subsidiária da corporação China Molybdenum), pode ser considerada um ‘território de adoecimento’.
responsável pelos processos de extração e de meta- Se a mineração promove a pilhagem de terra, água e
lurgia de nióbio em Catalão (GO) e Ouvidor (GO). minério, ela implica também a fratura do corpo dos
A mina Boa Vista é uma megacava perfurada em trabalhadores por meio de doenças respiratórias,
negativo na crosta terrestre. Esse empreendimen- amputação de membros, perda auditiva e adoecimento
to transformou lugares ocupados por agricultores psíquico. A extração de minérios promove também a
2. GROSSI, Y. S. Mina de Morro familiares em um território de explotação mineral ‘extração do homem’2.
Velho, a extração do homem:
uma história de experiência em grande escala. Por isso, é um território que exige Os riscos dos agravos à saúde dos trabalhadores da
operária. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1981.
atenção e ação enérgicas e efetivas de Vigilância em mineração promovem a ‘morte lenta no trabalho’3 ou a
3. REBOUÇAS, A. J. A., et al.
Saúde do Trabalhador ( Visat). ‘morte imediata’ por meio de acidentes. Assim, a inserção
Morte lenta no trabalho. São Com efeito, a partir do mapeamento dessa re- direta no ambiente da mina Boa Vista e as entrevistas com
Paulo: Oboré Editorial, 1989.
alidade e com o objetivo de identificar e intervir na trabalhadores contribuíram para a identificação dos riscos
prevenção dos riscos de agravos à saúde dos trabalha- de acidentes e deterioração do trabalho na mineração.
dores da mina Boa Vista, fiscais da Superintendência Nas entrevistas, os trabalhadores descreveram aspectos do
de Vigilância em Saúde (Suvisa) do estado de Goiás cotidiano na mina ao se referirem à monotonia, trabalho
coordenaram uma ação de fiscalização sanitária em ST noturno, repetitividade de funções, horas extras e carga
nesse empreendimento minerário em julho de 2019. de trabalho extenuante.
Além dos fiscais da Suvisa, essa ação local contou com Quanto à percepção de risco, os entrevistados re-
representantes sindicais, servidores do Centro de Re- conheceram potenciais riscos de agravos à saúde, como
ferência em Saúde do Trabalhador (Cerest) Regional exposição à poeira, calor, ruído, vibração, manuseio de
Itumbiara, da Regional de Saúde Estrada de Ferro, produtos químicos, radiação solar, desmoronamento,
da Vigilância Sanitária Municipal de Catalão e pes- colisão e atropelamento, postura e levantamento de peso.
quisadores da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Igualmente, foram nomeados outros riscos, entre eles:
A ação conjunta de Visat na mina propiciou pro- uso de explosivos para desmonte de rochas, prensamento
cedimentos de observação direta dos ambientes e re- de membros, torção, queda e tropeço nos fragmentos de
lações de trabalho, bem como aplicação de entrevistas rochas soltas no fundo da mina.
estruturadas e mapeamento de riscos ocupacionais. Insuflados em um ambiente de maquinários
Posteriormente, a análise de material documental da pesados, desmonte de rochas por uso de explosivos,
empresa permitiu a descrição do perfil dos trabalha- poeiras, vibrações e ruídos, os trabalhadores entre-
dores e o aprofundamento da percepção dos riscos vistados descreveram distintos sinais e sintomas que
de exposição aos ambientes e processos de trabalho sublinham a deterioração do trabalho. Os relatos
na mina Boa Vista. Por exemplo, identificou-se que de cansaço mental, cansaço físico agudo, dores nas
há 726 trabalhadores no complexo da mina Boa Vista, pernas, braços e coluna, ardor nos olhos e uso de
dos quais 59,3% (430) do total são contratos diretos; medicamentos antidepressivos demonstram que uma
e 40,7% (296) são terceirizados. mina a céu aberto é um “território de deterioração
Adentrar o interior de uma mina é como se afun- do trabalho ou de adoecimento”.
dar em uma grande cova. No fundo da mina a céu Por consequência, os trabalhadores da mineração
aberto, a sensação é a de estar entranhado em um requerem a ação contínua, cotidiana e sistemática da
ambiente arruinado e esterilizado. A ação vertical e Visat. Pois, a ausência dela continuará expondo esses
avassaladora da mineração provoca a destruição irre- sujeitos a mais acidentes, doenças, sofrimentos e mor-
versível das paisagens locais. As tonalidades de cinza e tes no trabalho. Além disso, no campo da ST, a luta
amarelo ilustram as cores da degradação cancerosa de contra os ‘territórios de adoecimento’ é contínua para
ecossistemas. Ademais, observa-se o fluxo ininterrupto que no horizonte possível todos possam viver, morar,
de maquinários e caminhões, o barulho estrepitoso trabalhar, alimentar, brincar e sorrir em territórios
de perfuratrizes, o calor abrasivo e a movimentação plenos de saúde, solidariedade, justiça e dignidade.
305

Foto: Agência Nacional de Mineração


Mina Boa Vista, GO.

A poeira dos dias: saúde e memória dos


mineiros da Morro Velho
Tádzio Peters Coelho

Um vagão emerge lentamente das profundezas a representar quase 2% das exportações brasileiras3.
da abissal mina de Morro Velho. O pequeno vagão se Em 1980, contava com um efetivo de 2.138 mineiros
move em direção à saída da mina, onde longe figura no subsolo e 3.619 operários no total2.
um raio de luz. Sabemos que o vagão está em meio à Ao longo do século XX, o trabalho dos mineiros na
escuridão por causa de uma pequena lanterna. Não é Morro Velho era realizado sem as condições apropriadas.
possível ver os mineiros transportados pelos trilhos, Não havia instrumentos de proteção que impedissem a
mas sabemos que estão lá, em algum lugar em meio inalação do pó da sílica suspenso pela mina. Dessa forma, 1. COELHO, T. Tantos e
ao breu. Também não conseguimos ver o vagão chegar dentro dos túneis subterrâneos da mina, muitos dos mi- quantos: os Mineiros do Morro
Velho. 2017. Vídeo (43,25 min).
ao destino. O corte da filmagem antes da chegada do neiros adquiriram um tipo de pneumoconiose, a silicose, Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=0YJj-
vagão à saída da mina passa a sensação claustrofóbica uma doença pulmonar obstrutiva crônica decorrente da Q3H-RSc&t=3s. Acesso em: 23
dez. 2020.
de aqueles mineiros se perderam para sempre na inalação da poeira da sílica. As partículas da sílica instaladas
2. GROSSI, Y. S. Mina de Morro
mina. O que acabo de descrever é a cena final do no pulmão endurecem e reduzem progressivamente a Velho, a extração do homem:
documentário ‘Tantos e Quantos: os mineiros do capacidade respiratória da vítima, desenvolvendo a tuber- uma história de experiência
operária. Paz e Terra: Rio de
Morro Velho’1, que produzi entre os anos de 2010 e culose pulmonar, o câncer de pulmão e a insuficiência Janeiro, 1981.

2014. No vagão das memórias, o gatilho que destrava renal4. A poeira da sílica pode ser encontrada em diversas 3. LIBBY, D. Trabalho escravo
e capital estrangeiro no Brasil.
essa lembrança é a terrível pandemia de Sars-CoV-2. atividades associadas à mineração, tais como a extração Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
1985.
Localizada em Nova Lima (MG) e municípios do de ouro, o beneficiamento de granito e pedras em geral e
4. TERRA FILHO, M., et al.
entorno, a mina de Morro Velho – hoje pertencente no jateamento de areia. Em 2007, estimava-se que 67,6% Silicose. J. bras. pneumol., v.
à mineradora sul-africana Anglo Gold Ashanti – foi, dos trabalhadores em Minas Gerais ocupados no setor 32, supl. 2, p. S41-S47, 2006.

durante parte do século XX, a mais profunda do mun- extrativo mineral (41.761 trabalhadores) estavam expostos 5. RIBEIRO, F. S. N. (Coord.).
O mapa da exposição à sílica
do com 2.543 metros de profundidade2. Iniciou-se à sílica5. Em tempos de pandemia, essa situação é ainda no Brasil. Rio de Janeiro: UERJ,
Ministério da Saúde, 2010.
a explotação mineral na Morro Velho em 1693; e, mais preocupante, pois as doenças pulmonares crônicas
6. ORGANIZAÇÃO PAN-AME-
em 1834, foi comprada pela empresa inglesa Saint são um fator de risco para o agravamento da Covid-196. RICANA DA SAÚDE. Folha in-
John Del Rey Mining Company, que manteve sua Descrita pela população de Nova Lima e região formativa COVID-19 – Escritório
da OPAS e da OMS no Brasil.
propriedade até 1959. Para ter uma noção da impor- como ‘doença da poeira’, a silicose está terrivelmente Disponível em: https://www.
paho.org/pt/covid19. Acesso em:
tância da Morro Velho, em 1866, essa mina chegou associada à história dessas cidades. No brasão da 23 dez. 2020.
306

7. MINAYO, M. C. S. De ferro
e flexíveis. Garamond: Rio de
cidade de Raposos (MG), há um lenço roxo repre- dos Silicóticos, que buscava indenizações para 694
Janeiro, 2004. sentando as viúvas dos mineiros que morreram de trabalhadores aposentados da Mineração Morro Velho.
8. MARTINS, R. T. O. Saúde silicose. Também eram frequentes os acidentes dentro Houve um acordo judicial em 1999, no qual a empresa
do Trabalhador: mineiros de
Nova Lima/MG e a luta contra da mina, alguns envolvendo centenas de vítimas, como deveria pagar 20 mil reais por trabalhador, e a metade
a silicose. Coletiva, n. 2, 2010.
Disponível em: http://coletiva. o incêndio de 1857 e o desmoronamento de 18843. do valor seria paga em lotes8. Em ações mais recentes,
labjor.unicamp.br/index.php/
artigo/saude-do-trabalhador-mi-
O medo do ‘choco’ aparece nos relatos dos mineiros, as indenizações chegaram a 120 mil reais9. Em 2001,
neiros-de-nova-limamg-e-a-luta- a rocha que desmorona e que tem esse nome pelo foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito na
-contra-a-silicose/. Acesso em:
23 dez. 2020. som emitido quando atinge o chão. Os extremos de Assembleia Legislativa de Minas Gerais com o objetivo
9. TRIBUNAL SUPERIOR DO temperatura na mina, assim como o frio das partes de apurar possíveis irregularidades nas minas da Mine-
TRABALHO. Justiça aumenta
em mais de 10 vezes indeniza-
mais próximas à superfície e o calor das entranhas da ração Morro Velho Ltda10, então subsidiária da Anglo
ção para família de vítima de
silicose. Disponível em: http://
terra, também prejudicavam a saúde dos mineiros. Gold Ashanti. Entre 2008 e 2014, entrevistei dezenas
www.tst.jus.br/pmnoticias/-/ Entretanto, a memória dos mineiros da Morro Velho de ex-trabalhadores da Morro Velho que ainda lutavam
asset_publisher/89Dk/content/
id/5991398. Acesso em: 23 não é marcada somente por tragédias, mas também por pelas indenizações, todos faleceram sem ver o fim de
dez. 2020.
luta. Eles formaram um dos primeiros núcleos no Brasil seus processos.
10. MINAS GERAIS.
Assembleia Legislativa. CPI
do Partido Comunista na década de 19302. Na primeira A reparação passa também pela memória. Poderí-
ouve denúncias sobre atividade
de mineradora. Disponível em:
fase da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), grande amos esperar que houvesse algum tipo de processo de
https://www.almg.gov.br/acom- parte dos trabalhadores vinha da Morro Velho, trazendo reparatório, buscando a verdade sobre o acontecido e a
panhe/noticias/arquivos/2001/12/
Not294391.html. Acesso em: 23 de lá a bagagem organizativa, o que foi uma das causas produção de memória coletiva. A memória é resultado de
dez. 2020.
da primeira greve da história da CVRD ocorrida em 1945. um processo de interação social. Por meio dela, pensamos
Pouquíssimo dessa greve ficou registrado, demonstrando no passado subjetivado, o que afeta diretamente nossa
a ação eficaz da própria empresa em desmemoriá-la da percepção do presente. A memória é elemento funda-
coletividade operária7. Eram quatro os líderes da greve, mental para a compreensão de práticas do presente. As
e todos vieram da Morro Velho. Como eram capatazes, construções coletivas do presente guardam memórias de
utilizaram de sua hierarquia intermediária para mobilizar experiências passadas. A memória da injustiça constitui
os operários, destruindo alojamentos e oficinas. A reação importante papel na construção de um regime demo-
veio por meio de um destacamento de 60 policiais de crático porque a memória não é apenas individual, mas
Belo Horizonte enviado à Itabira para repressão da greve. é construída socialmente. A memória anda lado a lado
Os líderes foram demitidos, e nada se sabe do rumo que com a verdade e com a justiça.
tomaram após o episódio7. Por fim, os mineiros da Morro Na poeira dos dias de pandemia, resgato em minha
Velho foram uma das únicas categorias que iniciaram memória esse período de quando os acompanhei na
uma greve após o golpe civil-militar, em 1964, o que luta diária por reconhecimento e reparação. As visitas à
gerou forte repressão com a ocupação de Nova Lima Associação Brasileira de Vítimas da Mineração (Abravim),
por forças militares2. às casas de seus filhos, sobrinhos e netos, o Sindicato dos
O modelo de reparação pautado pelas demandas Mineiros, na boca da mina a morte à espreita. Rememorar
das empresas de mineração, que se percebe nos rompi- essas pessoas não é um processo pacato, pois emerge
mentos de barragens da Vale, já existia nos processos dos da escuridão da mina uma impotência secular. O senti-
mineiros da Morro Velho. A maioria dos trabalhadores mento causado pela injustiça se manifesta com um nó na
acometidos pela silicose faleceu sem receber qualquer garganta e nessa prosa sem rumo. Na poeira dos dias, o
tipo de indenização. Em 1991, surgiu o Movimento esquecimento ainda vitima esses mineiros.

Saint John Del Rey Mining


Foto: Augusto Riedel

Company em Morro Velho,


Nova Lima, 1868.
307

Se Ramazzini e Semmelweis fossem vivos... 1


1. Textos adaptados dos artigos
publicados em 10/07/2020 e

A centralidade do trabalho seria considerada na pandemia


15/04/20 no site https://www.
2 multiplicadoresdevisat.com/.

2. Agradecemos ao Prof. Volney


de Magalhães Câmara pelo
Rosangela Gaze estímulo a este ensaio.
Rodrigo Emídio Silva

Este ensaio desenvolve argumentação alicerçada a Covid-19? Por que os metalúrgicos pararam as
em fatos divulgados durante a pandemia a partir da atividades na indústria automotiva italiana em
contribuição de dois médicos de períodos históricos meados de março, no início da explosão de casos
e contextos sociais diversos. Mediante recursos da no norte da Itália?”.
narrativa ficcional, imaginando-se na posição de Ber-

Foto: Wikimedia Commons


nardino Ramazzini3 (Carpi/Itália, 1633 – Pádua/Itália, 3. FÓRUM INTERSINDICAL. Se
Ramazzini fosse vivo... Boletim
1714) e de Ignaz Semmelweis4 (Budapeste/Hungria, Informativo do Fórum Intersind.
Saúde Trab. Direito. Ano II, n. 24,
1818 – Viena/Áustria, 1865), aborda-se a contribuição p. 1-9, 2017.
do legado ético-científico desses pesquisadores na 4. GAZE, R. Se Semmelweis
fosse vivo... Opinião, MVisat,
compreensão e enfrentamento da pandemia. 15/04/20. Disponível em:
A Covid-19 aportou na China desencadeando https://15557d4b-846d-4ca4-a-
9f7-0518a88199e2.usrfiles.com/
investigações epidemiológicas, anatomopatológicas, ugd/15557d_4804c4fd44814e-
c9a41b52306c87d2dc.pdf.
biomoleculares, clínicas e outras. Infográficos georre- Acesso em: 23 dez. 2020.
ferenciados monitoram a ocorrência diária de casos e 5. GAZE, R., et al. VERGONHA!
óbitos; analisam a distribuição espacial, sexual e etária; Entenda porque a categoria
Trabalho é tão negligenciada.
a evolução de internações e a demanda por leitos. ‘Atualize-se em tempo de
coronavírus’-MVisat. Disponível
A variável ocupação5 permanece ausente do em: https://48209fd4-9e-
54-4385-b712-c09bfc7c2b87.
monitoramento (em tempo real) dos casos e óbitos filesusr.com/ugd/15557d_ff7eee-
e das análises epidemiológicas. A ocorrência de casos e392c546a0a2564e82bb5e5eff.
pdf. Acesso em: 23 dez. 2020.
e mortes entre profissionais da saúde e em categorias 6. RAMAZZINI, B. As doenças
profissionais classicamente expostas a risco biológico dos trabalhadores. 4. ed. São
Paulo: Fundacentro, 2016.
reconhecido gera perplexidade, comoção e grati- Escutaria os trabalhadores da indústria do Norte
dão. Outras categorias – consideradas essenciais à da Itália:
manutenção da vida – despertaram interesses pela Não foram impostas quaisquer restrições às operações
dependência, e receio de contaminação de toda a das grandes empresas, que continuam mandando os
sociedade, aos serviços prestados por comerciários trabalhadores para as abarrotadas linhas de montagem
de mercados, farmácias, motoristas de transporte co- e sugando os lucros da força de trabalho, enquanto os
letivo, de entrega em domicílio, bancários, operários trabalhadores e suas famílias são infectados por uma
doença intratável e potencialmente fatal.
de frigoríficos...
[...] a Fiat Chrysler anunciou o fechamento da planta de
Seriam esses os trabalhadores expostos ao risco
Pomigliano, assim como das instalações em Melfi, Atessa e
da Covid-19? Cassino [...alegando] que as fábricas seriam ‘higienizadas’
para, em seguida, tentar forçar os trabalhadores a voltar
Se Ramazzini fosse vivo... ao trabalho – demonstrando seu desprezo criminoso
Bernardino Ramazzini3 (1633-1714) – Pai da pelo perigo de contágio entre os operários e outros
funcionários das fábricas.
Saúde do Trabalhador – foi um médico italiano do
norte da Itália. Estudou e escreveu sobre ‘As Doenças Os trabalhadores do estaleiro Fincantieri [...] Ligúria,
paralisaram o trabalho após um operário ter sido testa-
dos Trabalhadores’ (1700)6, cujo legado ensina os do positivo para o coronavírus, e a greve se espalhou
que desejam compreender o adoecimento e a morte rapidamente para outros estaleiros [...].
no trabalho. Os trabalhadores estão em greve contra o coronavírus,
Se Ramazzini fosse vivo... ou melhor, contra o governo que mantém as fábricas
Ouviria o que metalúrgicos brasileiros, italianos, funcionando apesar do coronavírus.
americanos, canadenses estão dizendo. Questionaria... As paralisações estão também afetando toda a indústria
“Onde, como, em que grupos de pessoas se espalha siderúrgica italiana.
308

Mais de 450 operários da indústria têxtil Corneliani, Evitar ambientes com aglomerações; monitoramento
em Mântua, paralisaram [...] contra o fracasso do de colaboradores que possam apresentar qualquer
governo... em ordenar o fechamento das empresas sintoma relacionado ao COVID-19; liberação para
que não estão envolvidas na luta contra o vírus. realizar o exame do Coronavírus por meio do convê-
A onda de greves foi silenciada quase por completo pela nio médico; procurar atendimento médico imediato
mídia corporativa internacional: a classe dominante está no caso de sintomas respiratórios como tosse e co-
apavorada que a mesma explosiva raiva esteja crescen- riza, além de febre e dores pelo corpo; comunicar
do em toda parte e que o exemplo dos trabalhadores o serviço médico da CSN no caso de surgimento de
7. MORROW, W., et al. italianos seja seguido em todo o mundo7. qualquer dos sintomas acima; reforçamos ainda que
Greves selvagens estouram na não está indicado o uso profilático de máscaras10.
Itália exigindo fechamento de O armazém não é desinfetado, as ferramentas não
fábricas durante pandemia do são desinfetadas.
coronavírus. WSWS. Disponível Se Ramazzini fosse vivo..., em uma indústria
em: https://www.wsws.org/pt/
articles/2020/03/17/ital-m17.html.
[...] a maioria dos trabalhadores não tem máscaras em que o trabalho em equipe é comum, pergun-
Acesso em: 23 dez. 2020. protetoras. taria aos trabalhadores:
8. LOTITO, D. Explosão de Eles só nos dão um par por dia. E o álcool-gel não
greves espontâneas na Itália é visto há muito tempo. Podem largar de repente a placa de aço que cortam,
pelo coronavírus: “Nossa saúde em dupla com um colega, para cobrir a boca com o
antes de seus lucros”. Esquerda Contra os patrões e o coronavírus, nossa saúde vem
Diário. Disponível em: http:// cotovelo ao espirrar e tossir? Podem interromper o
www.esquerdadiario.com.br/ antes que seus benefícios. trabalho, de imediato e sem punições, para procu-
Surto-de-greves-espontaneas-
-na-Italia-pelo-coronavirus-Nos- Não somos carne de matadouro8. rarem atendimento e comunicarem os sintomas? Um
sa-saude-antes-de-seus-lucros. colega com quem trabalhou testou positivo? Levam
Acesso em: 23 dez. 2020. Se Ramazzini fosse vivo, perguntaria: seus uniformes de trabalho para lavar em casa?
9. CHODORGE, S. [Récap]
Quelles usines françaises ont Por que não se tem noticiado estes movimentos es- Seus pais moram com você? Mesmo sem sintomas
fermé à cause du Covid-19?
pontâneos de trabalhadores? Estas falas sobre o que aparentes, sentindo-se cansados ‘além do normal’
L’Usine Nouvelle. Disponível em:
https://www.usinenouvelle.com/ se passa de fato nas fábricas – muitas ‘dedicadas’ podem interromper suas atividades?
article/recap-quelles-usines-fran-
à produção de bens supérfluos como carros e vestes
caises-ont-ferme-a-cause-du-co- Estas são apenas algumas das perguntas não
vid-19.N942191. Acesso em: 23 de luxo – poderiam adicionar elementos sobre o
dez. 2020.
‘comportamento’ do vírus? Conhece-se o ‘mecanismo’ respondidas às quais sanitaristas e epidemiolo-
10. COMPANHIA SIDERÚR- de produção de vítimas por este vírus, mas quais gistas poderiam se debruçar. Estatísticas 11 não
GICA NACIONAL. Cuidados
Contra o Coronavírus. Disponível as rotas de propagação que lhe são mais propícias? são evidências. Ao olhar a questão – bem como
em: https://www.csn.com.br/ os números –, torna-se possível compreender os
cuidados-contra-o-coronavirus/. E seguiria questionando...
Acesso em: 23 dez. 2020. fatos. Escutar os envolvidos para as estatísticas
“Por que não se divulga que o parque indus-
11. GAZE, R. “Coração de es- não serem vazias e falaciosas ao se ‘grafarem’
tudante”. ‘Atualize-se em tempo trial francês9 está praticamente inoperante? Há
de coronavírus’-MVisat. Dispo- em belas imagens coloridas e interativas. Há
nível em: https://48209fd4-9e- intencionalidade nesta falta de transparência?
dor nesses traços...
54-4385-b712-c09bfc7c2b87. O que a Covid-19 está causando em ‘campos de
filesusr.com/ugd/15557d_7711c- Valorizar o que diziam os trabalhadores do
da65ef648eba81e5dc1dd3fa7e8. batalha’ menos visíveis?”.
pdf. Acesso em: 23 dez. 2020. norte da Itália, também os franceses, espanhóis,
Na indústria brasileira, por que Volta Redon-
12. GOULART, S., et al. Com americanos e outros, talvez tivesse contido a
casos crescentes de coronavírus da, em 7 de abril de 2020, liderava o ranking de
comunidades relatam tamanho onda avassaladora de mortes que segue mundo
do desafio. O Globo. Disponível incidência (20,15 casos/100 mil hab.) no Rio de
afora...
em: https://oglobo.globo.com/rio/ Janeiro? Por que destoava tanto da capital com
com-casos-crescentes-de-coro- Trabalhadores do modesto parque industrial
navirus-comunidades-relatam-ta- incidência de 6,43 e do estado (8,46)? Distorção
manho-do-desafio-1-24355769. brasileiro precisam ser ouvidos pelos estudiosos
Acesso em: 23 dez. 2020. estatística pela amplitude discrepante das popu-
da Covid-19...
13. VASCONCELLOS, L. C. F. lações?
Comunicação verbal. Orientação Os locais de moradia dos trabalhadores bra-
de produção lítero-acadêmica.
Ramazzini acrescentaria outras perguntas...
çais no Brasil estão longe de serem espaços em
04 out. 2005. “A realidade do chão das indústrias é co-
que um vírus invisível horrorize mais do que o
nhecida por pesquisadores? Ou ‘acredita-se’ –
medo cotidiano 12 da morte violenta, incomode
fechando-se hipocritamente os olhos – que as
mais do que o fedor da vala negra, adoeça mais
empresas cumpram o prometido?”
que a eterna falta d’água, desespere mais que a
Consta no site da Companhia Siderúrgica
fome... Moram em favelas por ser o possível para
Nacional10 (em 6 de abril de 2020) que, “Diante
sua renda, por ser o pagamento que as relações
dos casos crescentes do novo coronavírus Brasil,
capital-trabalho consideram justo.
a CSN está tomando todas as medidas à prevenção
Ramazzini finalizaria recomendando que a
da circulação interna do vírus – alinhadas com os
escuta a esses brasileiros esteja envolta de respei-
protocolos da OMS e Ministério da Saúde”. Dentre
to. Apreço dos que reconhecem que “Enquanto
essas medidas, estão no mesmo site:
navegam, navios destroem quem os constrói”13.
309

Se Semmelweis fosse vivo... Ignaz diria ainda:


Ignaz Semmelweis14 (1818-1865), o médico hún- Formulem novas questões para investigar o novo cená- 14. GAZE, R. “Não queria ser
o mar me bastava a fonte”.
garo que instituiu a lavagem das mãos com hipoclorito rio. Pode ser que o princípio da lavagem das mãos pre- Opinião, MVisat, 10/01/20. Dis-
de cálcio pelos médicos, controlando um surto de cise ser adaptado aos pacientes de Covid-19. Máscaras ponível em: https://48209fd4-9e-
54-4385-b712-c09bfc7c2b87.
e luvas cirúrgicas e o arsenal de insumos descartáveis
infecção puerperal no Hospital Geral de Viena/Áustria filesusr.com/ugd/15557d_
de ambientes de saúde que vocês inventaram precisam a87c7b61f7954318af7f8d-
em 1847, tem sido lembrado nos dias da Covid-1915. de fato ser descartáveis.
060c421f42.pdf. Acesso em: 23
dez. 2020.
Foto: Wikimedia Commons

As luvas se tornaram a segunda pele dos profissionais da 15. LÓPEZ, A. Ignaz Sem-
saúde e precisam ser trocadas a cada paciente. Este é o melweis, o médico que descobriu
como evitar contágios apenas
princípio da lavagem das mãos! Não podem faltar nem lavando as mãos. EL PAÍS.
ser reutilizadas, sob ameaças de demissão, como vocês Disponível em: https://brasil.
elpais.com/ciencia/2020-03-20/
têm visto em denúncias anônimas de diversas fontes16. ignaz-semmelweis-o-medico-
-que-descobriu-como-evitar-con-
Ignaz Semmelweis teria muito a falar nestes tagios-apenas-lavando-as-maos.
html. Acesso em: 23 dez. 2020.
tempos sombrios: 16. AMARAL, M., et al.
Profissionais do SUS enfrentam
Vocês inventaram respiradores, monitores cardíacos, o coronavírus no corpo a
bombas de infusão de hidratação venosa e medicamen- corpo e reivindicam testes,
equipamentos de proteção, e
tos. Teriam mantido a vida de algumas parturientes informação por parte de gestores
de minha época. e autoridades. UOL. Disponível
em: https://operamundi.uol.com.
Mas, vejam, pelo princípio da lavagem das mãos, estes br/coronavirus/63836/profissio-
nais-de-saude-ou-a-gente-se-
equipamentos precisam ser esterilizados de forma ade- -cuida-ou-adoece. Acesso em:
quada entre um paciente e outro e isto requer tempo. 23 dez. 2020.

A Covid-19, diria daqui dos meus parcos conhecimen-


tos sobre as ‘partículas cadavéricas’ [designação dos
‘micróbios’ à época], mantém-se ativo nas superfícies
e ‘intimidades’ desses equipamentos. As bactérias tam-
Resgata-se o sentimento primordial que o mo- bém costumam fazer destes locais seu meio de cultivo.
Vocês têm observado complicações por infecção hospi-
bilizou – indignação pelas mortes14 das puérperas e talar nas pessoas internadas por Covid-19? Talvez seja
bebês – bradando para impedirem o adoecimento e decorrente do reuso de descartáveis, da pressa com
morte dos trabalhadores das equipes da saúde que que um paciente precisa ser acomodado após a alta
estão na linha de frente da pandemia. (ou óbito) de outro, e de um sem-número de situações
Aplausos às janelas aos heróis da saúde são que precisam ser observadas, detectadas e controladas
importantes. enquanto novas questões sob o princípio da lavagem
das mãos são elaboradas e enfrentadas.
E vaias aos seus assassinos, não? Equipes da saúde
acossadas por gestores para trabalharem à exaustão e O lugar de fala de Semmelweis era o das ges-
sem EPI e EPC (equipamentos de pressão negativa com tantes, os sentidos deste médico estavam alertas a
limpeza frequente de filtros etc.)... Esses equipamentos todos os pressupostos, seguiu em sua pesquisa-ação,
e testagem periódica das equipes à Covid-19 preservam superando retrocessos, incorporando saberes das
vidas de trabalhadores. A tática de ação deste vírus é a parteiras e pacientes, mas mantendo o foco de que
velocidade com que se propaga, e as ações de saúde o inimigo era a infecção puerperal.
pública precisam ser mais ágeis para evitar o colapso. A pandemia da Covid-19 é o inimigo atual a vencer!
A evolução da pandemia atesta que o Sars-Cov-2 A Covid-19 não especula, mata!
desafia os sistemas de saúde por atingir a capacidade A capacidade de resposta à pandemia depende da
instalada cronicamente subestimada, a sociedade preservação da saúde das equipes multiprofissionais
por atingir o modelo individualista e competitivo de da saúde capacitadas para combatê-la. Não se pode
convivência e a economia por colocar na balança a especular no mercado, negociando a produção ou
cruel e falaciosa escolha ‘o dinheiro ou a vida’. elevando preços de materiais essenciais à vida.
Se Semmelweis fosse vivo, diria que a pandemia Os ‘esforços de guerra’ precisam desses produ-
se tornou inimiga mundial porque o vil metal disputa tos para vencer o combate. Para isso, os que foram
poder com o saber científico, atormenta e despreza eleitos para governar para todos os cidadãos e os que
a humanidade. “A sociedade robotizada que vocês vivem de preservar e multiplicar suas fortunas devem
criaram, [diria Ignaz] supõe ter adquirido vida pró- aliar-se na execução das medidas sanitárias impostas
pria e que sobreviverá aos humanos. Esta é a razão pela pandemia. Esse, sim, seria um esforço de guerra
central da distopia que vocês estão vivendo.” para todos, não só para os profissionais de saúde e
310

outros profissionais essenciais e, principalmente, para rerão. O princípio da lavagem das mãos é prioridade
a população confinada ou não, em que tantos mor- no enfrentamento da pandemia.

O princípio de que ‘o ouro afunda no mar’


17. GENTIL, E. O ouro e a (O ouro e a madeira, Ederaldo Gentil, 1973)17,
madeira. Intérprete: Beth Carva-
lho.1975. Vídeo (3,33 min). Dis- mais do que nunca, é fato.
ponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=uwAks8wArWU.
Se Ramazzini e Semmelweis fossem vivos, formulariam mais questões
Acesso em: 23 dez. 2020. aos trabalhadores invisíveis em todas as frentes!
Se a Vigilância em Saúde do Trabalhador fosse viva...
...os trabalhadores e suas famílias não estariam
adoecendo e morrendo aos milhares
sem que sequer se conheça ‘Qual é o seu ofício?’
...os trabalhadores e suas famílias não estariam adoecendo e morrendo aos milhares
sem investigação das ‘cadeias produtivas’ de vítimas do Sars-Cov-2 no trabalho.
...os aplausos iriam para todos os trabalhadores invisíveis e visíveis,
essenciais ou não,
nas linhas de frente e nas retaguardas...
311

Sobre os Autores
Adriana Nalesso – Sindicato dos Bancários/RJ
Adriana Skamvetsakis – Cerest Vales/RS
Alba Regina Silva Medeiros – Universidade Federal do Mato Grosso/MT
Álvaro Egea – Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB)/DF
Ana Cristina Simões Rosa – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Ana Inês Simões Cardoso de Melo – Serviço Social/Uerj
Ana Maria Cheble Bahia Braga – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Anamaria Testa Tambellini – Cesteh/Ensp/Fiocruz. Iesc/UFRJ
André Gustavo Bittencourt Villela – Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
André Luiz de Oliveira – Conselho Nacional de Saúde-Mesa Diretora Gestão 2018/2021
Andrea Garboggini Melo Andrade – Cesat/BA
Angela Maria Lourenço – Sintrucad/RJ
Angélica dos Santos Vianna –Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ
Aparecida Mari Iguti – Unicamp
Ariane Leites Larentis – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Arnaldo Marcolino Silva Filho – Plenária de Saúde do Trabalhador de São Paulo
Ary Carvalho de Miranda – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Augusto Campos – Renast on-line
Bruno Chapadeiro – Universidade Metodista/SP
Bruno de Almeida Pedersoli – Sindicato dos Metalúrgicos de Ipatinga/MG
Caio Antunes – Univ. Fed. Goiás
Canindé Pegado – União Geral dos Trabalhadores (UGT)/DF
Carlos Aparício Clemente – Sind. Metal. Osasco e Região. Espaço da Cidadania/SP
Carlos dos Santos Silva – Cebes/RJ
Carlos Fidelis da Ponte – Fiocruz. Asfoc-SN. Cebes/RJ
Carlos Minayo Gomez – Fiocruz/RJ
Carmem Regina Giongo – Universidade Feevale/RS
Carmen Foro – Central Única dos Trabalhadores (CUT)/DF
Carmen Ildes Rodrigues Fróes-Asmus – Faculdade de Medicina da UFRJ
Cássia Gonçalves Santos da Silveira – Sintuperj
Cláudia Gouveia dos Santos – Cerest Caxias/RJ. Coord. Saúde do Trabalhador/Fiocruz
Claudia Rejane de Lima – Especialista em Saúde Pública
Cleber Cremonese – Universidade Federal da Bahia
Cristiane Queiroz Barbeiro Lima –USP
Cristina Kaway Stamato – Advogada trabalhista/RJ
Daniele Correia – Diesat/SP
Daniele Moretti – Sindicato dos Trabalhadores Empregados no Comércio/RJ
Danilo Fernandes Costa – Delegacia Regional do Trabalho/SP
Daphne Braga – Cerest Município/RJ
Dário Frederico Pasche – Univ. Fed. Rio Grande do Sul
Debora Lopes de Oliveira – Cerest Caxias/RJ. Faculdade de Serviço Social/Uerj
Diego de Oliveira Souza – Univ. Fed. Alagoas / Maceió e Arapiraca/AL
Dolores Sanches Wünsch – Univ. Fed. Rio Grande do Sul
Eduardo Bonfim da Silva – Diesat/SP
Eguimar Felício Chaveiro – Univ. Fed. Goiás. Grupo de Estudos Dona Alzira/GO
Elaine Junger Pelaez – Conselho Nacional de Saúde-Mesa Diretora Gestão 2018/2021
Eliana Guimarães Félix – Cesteh/Ensp/Fiocruz
Élida Azevedo Hennington – Cesteh/Ensp/Fiocruz
312

Elizabeth Costa Dias – Universidade Federal de Minas Gerais


Fabiane Konowaluk Santos Machado – Doutora Serviço Social/PUC-RS
Fábio Luiz Mobarak Iglessia – Procurador do Trabalho/RJ
Fátima Cristina Rangel Sant’Anna – Cesteh/Ensp/Fiocruz
Fátima Sueli Neto Ribeiro – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Fernanda Giannasi – Associação Brasileira de Expostos ao Amianto
Fernanda Stipp – Anamatra. AJD
Fernando Ribas Feijó – Univ. Fed. Recôncavo da Bahia/BA
Fernando Zasso Pigatto – Conselho Nacional de Saúde-Mesa Diretora Gestão 2018/2021
Flávia Nogueira Ferreira de Sousa – Coord. Ger. Saúde do Trabalhador (CGSAT)/MS
Francisco Pedra – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz/RJ
Geordeci Souza – Conselho Nacional de Saúde. CISTT/CNS
Georgina Maria Véras Motta – Fórum SPST/MG
Gideon Borges dos Santos – Cesteh/Ensp/Fiocruz
Gilberto Almazan – Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e Região/SP
Gisele Akemi Carneiro – Cerest Estadual Tocantins
Giselle Bondim Lopes Ribeiro – Anamatra. AJD
Gustavo Tadeu Alkmim – Tribunal Regional do Trabalho - 1ª Região/RJ
Heleno Rodrigues Corrêa Filho – Universidade de Brasília/DF
Hermano Albuquerque de Castro – Ensp/Fiocruz/RJ
Ildeberto Muniz de Almeida – Fac. Med. Botucatu/FMB-Unesp
Ilquias Araujo Lopes do Nascimento – Sindicato dos Metalúrgicos/RJ
Isabella de Sousa Maio – Fórum Intersindical Saúde-Trabalho-Direito/RJ
Jacinta de Fatima Sena Silva – Universidade de Brasília
Jacira Azevedo Cancio – Cerest/BA
Jandira Maciel da Silva – Universidade Federal de Minas Gerais
Jesem Douglas Yamall Orellana – Inst. Leônidas e Maria Deane/Fiocruz/AM
Joana Alice Ribeiro de Freitas – Univ. Fed. Goiás
João Carlos Juruna Gonçalves – Força Sindical/SP
João Donizeti Scaboli – Conselho Nacional de Saúde/DF
Joel da Conceição Ferreira Nascimento – CTB-Maranhão
Jorge Mesquita Huet Machado – Fundação Oswaldo Cruz/Fiocruz/Brasília
José Amadeu Antunes Alvarenga – Bancário sindicalista/RJ/DF
José Carlos do Carmo – Delegacia Regional do Trabalho/SP
José Marcos da Silva – Universidade Federal de Pernambuco/PE
José Reginaldo Inácio – Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST)/DF
José Roberto Pereira Novaes – Núcleo Movimentos Sociais/UFRJ
Juliana Souza Bravo de Menezes – HFB/MS/RJ. Frente Nac. contra a Privatização da Saúde
Jurandi Frutuoso Silva – Conselho Nacional de Saúde-Mesa Diretora Gestão 2018/2021
Jussara Maria Rosa Mendes – Univ. Fed. Rio Grande do Sul/UFRGS
Karla Freire Baeta – Anvisa/DF
Katia Reis de Souza – Cesteh/Ensp/Fiocruz
Kleber Rangel Silva – Coordenação Geral Saúde do Trabalhador/MS/DF
Leandro Vargas Barreto de Carvalho – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Leticia Coelho da Costa Nobre – Cerest Estadual da Bahia
Letícia Pessoa Masson – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Letícia Rodrigues de Souza – Mestranda em Saúde Coletiva/FMB-Unesp
Lia Giraldo da Silva Augusto – Laboratório Saúde e Ambiente Fiocruz Pernambuco/PE
Liliane Reis Teixeira – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Livia de Oliveira Borges – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMG
Lucas de Oliveira Couto – Fundação Oswaldo Cruz/RJ
Luci Praun – Univ. Fed. Acre/AC
313

Lucia Regina Florentino Souto – Fiocruz. Cebes/RJ


Lucia Rotenberg – Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz
Luciana Gomes – Cesteh/Ensp/Fiocruz
Luciene de Aguiar Dias – SMS/Macaé. Fórum Intersindical Saúde-Trabalho-Direito/RJ
Luís Henrique da Costa Leão – Universidade Federal do Mato Grosso/MT
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos – DIHS/Ensp/Fiocruz/RJ
Luiz Claudio Meirelles – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Luiza Dantas – Sintsaúde-RJ/CUT. CISTT/RJ
Luizinho (do Eisa) Oliveira – Metalúrgico. Ativista Sindical. Fórum Intersindical/RJ
Madalena Margarida da Silva Teixeira – Secret. Nac. Saúde do Trabalhador CUT/DF
Magna Dias Leite – Cerest Estadual Tocantins
Marcia Bandini – Unicamp
Márcio Ayer – Sindicato dos Trabalhadores Empregados no Comércio/RJ
Marco Antonio Pereira Querol – Dpto. Engenharia Agronômica/Univ. Fed. Sergipe
Marcos Besserman Vianna – DIHS/Ensp/Fiocruz. Asfoc-SN/RJ
Maria Blandina Marques dos Santos – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Maria Cecília de Souza Minayo – Fiocruz. Revista Ciência & Saúde Coletiva
Maria Cristina Strausz – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Maria da Graça Druck de Faria – Universidade Federal da Bahia
Maria de Fátima Siliansky de Andreazzi – UFRJ. Centro Brasil. Solidariedade aos Povos/RJ
Maria Helena Barros de Oliveira – DIHS/Ensp/Fiocruz. Nupegre/Emerj
Maria Inês Monteiro – Unicamp
Maria Inês Souza Bravo – Uerj. Frente Nacional contra a Privatização da Saúde
Maria Juliana Moura Corrêa – Ensp/Fiocruz/RJ
Maria Maeno – Fundacentro/SP
Mariana Nada – Editora Hucitec/SP
Mariana Olívia Santana dos Santos – Laboratório Saúde, Ambiente e Trabalho – Fiocruz/PE
Marilena Villela Correa – Instituto de Medicina Social/Uerj
Mariza Gomes de Almeida – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Marta de Freitas – Faculdade de Engenharia de Minas Gerais
Marta Gislene Pignati – Universidade Federal do Mato Grosso/MT
Mauricio Torres-Tovar – Universidade Nacional da Colômbia
Miriam Amaral Queiroz – Federação Servidores Públicos Municipais/RJ
Mônica Angelim Gomes de Lima – Universidade Federal da Bahia
Moysés Longuinho Toniolo de Souza – CNS-Mesa Diretora Gestão 2018/2021
Murilo da Silva Alves – Universidade Estadual de Santa Cruz/BA
Mychelle Alves Monteiro – Asfoc-SN/RJ
Neilton Araújo de Oliveira – Conselho Nacional de Saúde-Mesa Diretora Gestão 2018/2021
Nelson Rodrigues dos Santos – Inst. Direito Sanitário Aplicado/Campinas/SP
Nilton Freitas – ICM para América Latina e Caribe
Olga Rios – Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador (CGSAT)/MS/DF
Paulo Antonio Barros Oliveira – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Paulo Ernani Lima de Oliveira – Siemaco/RJ
Paulo Gilvane Lopes Pena – Universidade Federal da Bahia
Paulo Henrique Scrivano Garrido – Asfoc-SN/RJ
Paulo Victor Rodrigues de Azevedo Lira – Doutorando/Fiocruz/PE
Pedro Paulo de Salles Dias Filho – Doutor em Ciências/Ensp/Fiocruz/RJ
Priscilla Viégas Barreto de Oliveira – CNS-Mesa Diretora Gestão 2018/2021
Raimunda Leone – Fitmetal. União Brasileira de Mulheres/RJ
Raquel Rodrigues Braga – Associação Brasileira de Juristas para a Democracia
Regina de Fátima de Souza – Sintuperj
Regina Helena Simões Barbosa – UFRJ
Renato Bonfatti – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
René Mendes – Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores
Rene Vicente dos Santos – CTB/SP
Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves – UEG. PoEMAS-Polít/Econ/Miner/Amb/Socied/GO
Ricardo Lara – Univ. Fed. Santa Catarina/UFSC
Rita de Cássia Peralta Carvalho – Secretaria de Estado de Saúde da Bahia
Rodolfo Andrade Gouveia Vilela – Fac. Saúde Pública/FSP-USP
Rodrigo Emídio Silva – Rede Estad. e Munic. Goiânia. Grupo de Estudos Dona Alzira/GO
Rogério Lucas Martins – Tribunal Regional do Trabalho - 1ª Região/RJ
Ronald Ferreira dos Santos – Ex-Presidente Conselho Nacional de Saúde
Ronaldo Teodoro – Inst. Medicina Social/UERJ
Rosangela Gaze – UFRJ. Fórum Intersindical Saúde-Trabalho-Direito/RJ
Rosmari Barbosa Malheiros – Contag. CTB Nacional/MA
Sandra Hacon – Fundação Oswaldo Cruz
Sebastião José – Sintrucad/RJ
Simone Alves dos Santos – Cerest Estadual de São Paulo
Simone Santos Oliveira – Cesteh/Ensp/Fiocruz/RJ
Stênio Dias Pinto Rodrigues – Sindsprev/RS
Suerda Fortaleza de Souza – Cesat/Bahia
Tádzio Peters Coelho – Univ. Fed. Viçosa. PoEMAS-Polít/Econ/Miner/Amb/Socied/MG
Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro – Faculdade de Medicina UFMG
Tereza Carlota Pires Novaes – Fundacentro/MTb
Ubiratan de Paula Santos – Universidade de São Paulo
Vanja Andréa Reis dos Santos – Conselho Nacional de Saúde-Mesa Diretora Gestão 2018/2021
Vilma Sousa Santana – Universidade Federal da Bahia
Volney de Magalhães Câmara – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva/UFRJ
Wagner Gomes – Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB)/DF
Wanderlei Antônio Pignati – Universidade Federal do Mato Grosso/MT
Almas estilhaçadas por perdas
Afagos distanciados
Legislações que disfarçam a ditadura
Múltiplas curvas sem faces trabalhadoras
Abandonos
Trabalhadores invisíveis
Ramazzini e Semmelweis esquecidos
A história desprezada
Busca pelo que se perde
Afeto e garra
Luta para conquistar
Humanidade ameaçada
Abandonos
Direitos suprimidos
Opressão
Rotas transnacionais da pandemia
Abandonos
Novas caras da morte
Abandonos
Política do necrocapital
Abandonos
Negacionismo
Direitos perdidos
Economia da necropolítica
Mineração mortal
Indiferença pandêmica
Abandonos
R Gaze, EF Chaveiro e LC Fadel
Vivemos um cenário de inúmeros ataques à população brasileira, intensificados
nos últimos anos, com perdas de direitos, reformas que beneficiam o patronato
em detrimento da classe trabalhadora e o desfinanciamento do Sistema Único de
Saúde (SUS) e das políticas sociais. Soma-se a isso a pandemia da Covid-19, uma das
maiores crises sanitárias do mundo, que atingiu em cheio milhões de trabalhadores e
trabalhadoras.
É nesse contexto que nasce esta oportuna publicação do Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde (Cebes), em parceria com o Sindicato dos Servidores de Ciência,
Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública (Asfoc-SN) e com o Conselho
Nacional de Saúde (CNS).
Aqui estão reunidos textos, ensaios, experiências pessoais, relatos e sínteses
de artigos científicos que amplificam as reflexões sobre os atuais caminhos de luta
e de resistência da saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras, a articulação com a
conjuntura econômica e sanitária do SUS e com o controle social.
São tempos difíceis, e perseverar na luta é necessário. O conteúdo que você
encontra nestas páginas, fruto de muitas mãos, olhares e corações, é um importante
aliado da resistência e da esperança!
Fernando Pigatto
Presidente do
Conselho Nacional de Saúde

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