Presidente: Lucia Regina Florentino Souto Maria Lucia Frizon Rizzotto - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel (PR), Brasil
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Rubens de Camargo Ferreira Adorno – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil
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INDEXAÇÃO | INDEXATION
Directory of Open Access Journals (Doaj)
História da Saúde Pública na América Latina e Caribe (Hisa)
Literatura Latino–Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs)
Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal (Redalyc)
Scientific Electronic Library Online (SciELO)
Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el
Caribe, España y Portugal (Latindex)
Sumários de Revistas Brasileiras (Sumários)
REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE
VOLUME 42, NÚMERO ESPECIAL 3
RIO DE JANEIRO, NOV 2018
EDITORIAL | EDITORIAL
41 eforma das comunicações: imperativo
R
4 emocracia, direitos humanos,
D para a democracia no Brasil
desigualdade e saúde: que caminhos Communications reform: imperative for
trilhamos? democracy in Brazil
Democracy, human rights, inequality and Bia Barbosa, Helena Martins
health: which paths do we walk?
Ary Carvalho de Miranda, Hermano ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE
Albuquerque de Castro, Lucia Regina Florentino
Souto 54 F aces da desigualdade no Brasil: um
olhar sobre os que ficam para trás
ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE Faces of inequality in Brazil: a look at those
left behind
10 eopolítica internacional: a nova
G Tereza Campello, Pablo Gentili, Monica
estratégia imperial dos Estados Unidos Rodrigues, Gabriel Rizzo Hoewell
International geopolitics: the new imperial
strategy of the United States ENSAIO | ESSAY
José Luís da Costa Fiori
67 Desestabilização do trabalho
18 CF-1988 na Berlinda: trinta anos de
A Work destabilization
disputas por um projeto nacional de Marcio Pochmann
desenvolvimento nos trópicos
The CF-1988 in the spotlight: thirty years of 78 mérica Latina: progressismo, retrocesso
A
disputes over a national development project e resistência
in the tropics Latin America: progressivism, retraction, and
José Celso Pereira Cardoso Junior resistance
Igor Fuser
33 aúde pública e pós-democracia: do
S
Estado Democrático de Direito ao 90 Movimentos e mobilizações sociais no
Estado Pós-Democrático Brasil: de 2013 aos dias atuais
Public health and post-democracy: from Social movements and mobilizations in
the Democratic State of Law to the Post- Brazil: from 2013 to the present day
Democratic State Rudá Guedes Ricci
Rubens Casara
SUMÁRIO | CONTENTS
A CRISE DO CAPITALISMO DE 1929, a partir do crash da bolsa de Nova York, impactou pratica-
mente todo o mundo, com falências de empresas, desemprego e grave impacto social. Um de
seus desfechos foi a tragédia da II Grande Guerra Mundial, que deixou 50 milhões de mortos,
outros milhões de mutilados e dezenas de países destruídos. Foi a receita do capital para suas
próprias contradições.
A crise disseminada no mundo hoje tem sido considerada por especialistas de várias áreas
do conhecimento como a mais grave desde 1929. Em 2008, de repente, evaporaram aproxi-
madamente US$ 40 trilhões do patrimônio global e US$ 14 trilhões de riquezas das famílias.
Quatro milhões de pessoas perderam os empregos; e, de 2008 a 2011, a cada 3 meses, 250 mil
famílias tiveram que sair de suas casas apenas nos EUA1. A crise ganhou a Europa e o resto
do mundo. Uma de suas marcas mais cruéis é o aumento da desigualdade em um mundo já
desigual. Hoje, em todo o planeta, 800 milhões de pessoas têm fome em um cenário em que,
entre 1988 e 2011, a renda dos 10% mais pobres aumentou US$ 65,00, enquanto a do 1% mais
rico aumentou US$ 11.800,00, ou seja, 182 vezes2.
Essa concentração de riqueza não se deve apenas à financeirização desregulamentada
imposta pelas forças hegemônicas do neoliberalismo, mas sua participação é dominante.
Enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) mundial tem crescido entre 1% e 2,5%, as aplicações
financeiras rendem acima de 5%. Cria-se, assim, uma dinâmica em que a capacidade produ-
tiva, vinculada às necessidades sociais, é transformada em patrimônio financeiro, apropriado
por grupos transnacionais monopolizados. Em outras palavras, dinheiro produzindo dinheiro
sem qualquer compromisso social, de tal ordem que apenas nos EUA, em 2008, o volume
de crédito era 365% do PIB. Foi o estouro da bolha que contraditoriamente fez o congresso
nacional daquele país aprovar, em outubro de 2018, US$ 800 bilhões para salvar Wall Street1.
Os efeitos globais não demoraram. No Brasil, um país sem políticas universais de proteção
social, o impacto econômico atinge principalmente as populações mais necessitadas. O golpe
jurídico-parlamentar-midiático de 2016 escancarou as portas para o aumento da desigualda-
de. A aprovação da PEC 95, que congela por 20 anos os investimentos do Estado, e a aprovação
da Reforma Trabalhista, que refina os instrumentos institucionais para o aumento da explo-
ração sobre os trabalhadores, são componentes desse processo que aponta para um cenário
ainda mais preocupante. Aumentou o desemprego e fez cair a renda, com rápidas consequên-
cias sobre as condições sociais, expressas na escalada da violência, no retorno do País ao mapa
da fome, na volta do sarampo e no crescimento da taxa de mortalidade infantil, apenas para
citar alguns componentes da situação atual. Isto é, entramos em um ponto de bifurcação entre
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civilização e barbárie. Uma nação solidária, que enfrente suas desigualdades, não pode jamais
estar a serviço do 1% mais rico.
São tempos difíceis que nos matam 60 mil vezes no ano, a maioria jovem, pobre e negra.
Somos atacados por sermos mulheres, por sermos LGBTI+ e por defendermos os direitos
humanos. Batemos todos os recordes dos crimes contra setores específicos da população. A
violência brasileira é superior a muitos lugares em guerra.
Todo esse retrocesso atingiu também o sistema de saúde em todos os seus níveis de atenção.
Inicia-se com a mudança na Política Nacional de Atenção em Básica (PNAB), em que se retira
a padronização do número de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) por equipe da Estratégia
Saúde da Família (ESF) com a finalidade de reduzir os custos no setor; assim como a reformu-
lação da PNAB, em 2017, que colocou em xeque a integralidade, o trabalho dos ACS e impor-
tantes avanços da ESF3.
O Sistema Único de Saúde (SUS) tem sofrido desde a sua criação um subfinanciamento
crônico, agora agravado, e vive um desabastecimento de insumos de saúde sem precedentes
que condena o País a um colapso de saúde, sanitário e social. Para ilustrar tal fato, caso a PEC
95 estivesse em vigor entre 2003 e 2015, a União teria gasto 42% a menos (257 bilhões) com
ações e serviços públicos de saúde. Os recursos públicos investidos na saúde pelo governo
federal, no ano pós-golpe, em 2017, foram de apenas R$ 101,134 bilhões com um aumento de
2,23% em relação a 2016, quando a inflação do ano foi de 2,95%. O que é alardeado pelas au-
toridades como economia, na verdade, representa a subtração de direitos na saúde pública4.
São necessários investimentos públicos que possam superar as desigualdades sociais com
severo impacto na saúde. Por exemplo, a expectativa de vida ao nascer entre quem vive na
região mais rica e quem vive na mais pobre do País chega a variar 26 anos. A mortalidade in-
fantil em áreas das regiões Norte e Nordeste é sempre maior do que a média nacional – e com
tendência de aumento com a retirada das políticas sociais. Houve uma desaceleração na polí-
tica de saneamento básico, o que contribuiu para o retorno das emergências sanitárias com a
volta de doenças, como foi o caso também da febre amarela. Isso sem considerar os impactos
socioambientais de um modelo de desenvolvimento que privilegia a mineração e o agronegó-
cio, fazendo o País consumir um milhão de toneladas de agrotóxicos ao ano e protagonizar o
maior crime ambiental do mundo decorrente da mineração, como foi o caso do rompimento
da barragem da Samarco, em Mariana (MG).
O Programa Mais Médicos ajudou a enfrentar uma carência histórica de médicos na atenção
básica, em diferentes municípios do País, mas ainda ficou longe de resolver a questão da for-
mação médica e de outros profissionais de saúde que atendam a população rural e urbana que
ficam distantes dos grandes centros do Brasil. O Estado precisa retomar o papel de regulação
e de formação de quadros para o SUS, levando aos locais mais precarizados as ações de saúde.
Uma das propostas em andamento no País é o fomento à uma política aos planos de saúde
para os pobres, o que precariza ainda mais o SUS e acentua a mercantilização do sistema de
saúde brasileiro. É fundamental a resistência para encerrar o ciclo da privatização e do subfi-
nanciamento. A população necessita da atenção integral à saúde, que, para isso, precisa contar
com aumento dos recursos assistenciais. É importante que avancemos na construção de uma
política para o País que torne a atenção primária forte, qualificada, integral, longitudinal e
resolutiva, com a universalização da cobertura em todos os níveis de atenção5.
A possibilidade de conter o retrocesso em curso só será possível com a ampla participação
de todos os setores da sociedade, comprometidos com uma outra concepção de mundo, em
que prevaleçam os respeito às diversas formas de expressão da vida, como raça, gênero e se-
xualidade, assim como com a emancipação dos trabalhadores de todas as formas de opressão,
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6 EDITORIAL | EDITORIAL
Referências
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THE CAPITALIST CRISIS OF 1929 , after the crash of the New York Stock Exchange, rocked vir-
tually the entire world, with corporate failures, unemployment, and serious social impact.
One of its outcomes was the tragedy of World War II, which left 50 million dead, some other
millions mutilated, and dozens of countries destroyed. It was the recipe of the capital for its
own contradictions.
The widespread crisis in the world today has been considered by experts in various fields of
knowledge to be the most serious since 1929. In 2008, approximately US$ 40 trillion in global
wealth and US$ 14 trillion in household wealth suddenly evaporated. Four million people
lost their jobs; and from 2008 to 2011, every three months, 250,000 families had to leave their
homes only in the US1. The crisis took over Europe and the rest of the world. One of its most
cruel traits is the increase in inequality in an already uneven world. Today, around the world,
800 million people are starving in a scenario where, between 1988 and 2011, the income of the
poorest 10% increased by US$ 65.00, while that of the richest 1% increased by US$ 11,800, 00,
that is, 182 times2.
That concentration of wealth is not only due to the deregulated financialization imposed
by the hegemonic forces of neoliberalism, but its participation is dominant. While the world’s
Gross Domestic Product (GDP) has grown between 1% and 2.5%, financial investments yield
more than 5%. This creates a dynamic in which productive capacity, linked to social needs,
is transformed into financial assets, appropriated by monopolized transnational groups. In
other words, money producing money without any social commitment, such that in the US
alone, in 2008, the volume of credit was 365% of GDP. It was the bursting of the bubble that
contradictorily made that country’s national congress approve US$ 800 billion to save Wall
Street in October 20181.
The global effects did not take long. In Brazil, a country without universal policies for social
protection, the economic impact reaches mainly the most needy populations. The judiciary-
parliamentary-media coup of 2016 opened the door to increasing inequality. The approval of
PEC 95, which freezes state investments for 20 years, and the approval of the Labor Reform,
which refines the institutional instruments for increasing the exploitation of workers, are
components of that process which points to an even more worrying scenario. Increasing un-
employment and falling income, with rapid consequences on social conditions, expressed in
the escalation of violence, the return of the country to the hunger map, the return of measles,
and the growth of infant mortality rate, just to name a few components of the current situa-
tion. That is, we enter a point of bifurcation between civilization and barbarism. A nation of
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8 EDITORIAL | EDITORIAL
solidarity, engaged in facing its inequalities, can never be at the service of the richest 1%.
These are difficult times that kill us 60,000 times a year, most of it young, poor and black.
We are attacked for being women, for being LGBTI+, and for defending human rights. We
beat all records of crimes against specific sectors of the population. Brazilian violence is su-
perior to many places at war.
All this setback has also hit the health system at all levels of care. It begins with the change
in the National Policy of Primary Care (PNAB), in which standardization of the number of
Community Health Agents (ACS) by the Family Health Strategy (ESF) team is withdrawn in
order to reduce costs in the sector; as well as the reformulation of the PNAB in 2017, which
put into question the integrality, the work of the ACS, and important advances of the ESF3.
Since its creation, the Unified Health System (SUS) has undergone chronic underfunding,
which is now aggravated, and is experiencing an unprecedented shortage of health supplies
that condemns the country to a health, sanitary, and social collapse. To illustrate that, if PEC
95 were in force between 2003 and 2015, the State would have spent 42% less ($ 257 billion)
on public health actions and services. The public funds invested in health by the federal gov-
ernment in 2017, the post-coup year, were only R$ 101.134 billion, an increase of 2.23% com-
pared to 2016, when inflation for the year was 2.95%. What is vaunted by the authorities as
economizing, in fact, represents the subtraction of rights in public health4.
We need public investments that can overcome social inequalities with a severe impact on
health. For example, the life expectancy at birth among those living in the richest region and
those living in the poorest region of the country may vary up to 26 years. Child mortality in
areas of the North and Northeast is always higher than the national average – and is likely to
increase with the withdrawal of social policies. There was a deceleration in the basic sanita-
tion policy, which contributed to the return of health emergencies with the recurrence of dis-
eases, as was also the case with yellow fever. Not to mention the socio-environmental impacts
of a development model that favors mining and agribusiness, causing the country to consume
one million tons of pesticides per year and to lead the world’s largest environmental crime
resulting from mining, as was the case of the disruption of the Samarco dam in Mariana (MG).
The Mais Médicos (More Doctors) Program has helped address a historical shortage of
primary care physicians in different municipalities in the country, but has remained far from
solving the issue of the training of doctors and other health professionals who serve the rural
and urban population that are far from the great centers of Brazil. The State needs to retake the
role of regulation and staff training for the SUS, taking health actions to the most precarious
places. One of the proposals in course in the country is the promotion of a policy for health
insurances for the poor, which precarizes the SUS even more and accentuates the commodifica-
tion of the Brazilian health system. Resistance to ending the privatization and underfinancing
cycle is essential. The population needs comprehensive health care, which, for this, needs to
count on an increase in healthcare resources. It is important that we advance in the construction
of a policy for the country that makes primary care strong, qualified, comprehensive, longitudi-
nal, and resolutive, with the universalization of coverage at all levels of care5.
The possibility of restraining the setbacks in course will only be possible with the broad
participation of all sectors of society, committed to a different conception of the world, in
which respect for the various forms of expression of life such as race, gender, and sexuality
prevail, as well as the emancipation of workers from all forms of oppression, in a world where
the spirit of solidarity supplants the ongoing violence and exclusion. The construction of the
SUS was only possible due to the wide social participation of health professionals, health
institutions and entities, the city and countryside workers’ unions, the various professional
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councils, the women’s movement, the residents’ associations, the quilombolas and a series of
other movements in a vigorous democratic process. In the rescue of that process, there is hope
of containing the accentuation of the serious scenario that is already under way.
At the moment, it is fundamental to strengthen our Constitution of 1988, the national sov-
ereignty, and the universal rights!
References
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10 ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE
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Geopolítica internacional: a nova estratégia imperial dos Estados Unidos 11
e regimes que sejam considerados uma europeu conquistou e/ou incorporou o ter-
ameaça política ou econômica aos interes- ritório dos demais continentes, impérios e
ses norte-americanos. povos, que foram adotando, aos poucos, as
regras de convivência internacional estabe-
VI – Os EUA, ao mesmo tempo, propõem-se lecidas pela Paz de Westfália depois do fim
a retomar a liderança mundial do processo da Guerra dos 30 Anos (1628-1648).
de inovação tecnológica em todos os campos A Paz de Westfália foi assinada por cerca de
do conhecimento e, em particular, no campo 150 ‘autoridades territoriais’ europeias, mas
da guerra e dos armamentos atômicos. Da só existiam, naquele momento, seis ou sete
mesma forma, assumem seu direito de utili- ‘Estados nacionais’ na sua forma moderna e
zar sua economia e suas sanções econômicas com as fronteiras que se mantiveram depois
como instrumentos de guerra. da guerra. Depois das guerras bonapartistas,
no início da ‘era imperialista’ (1840-1914),
Em síntese, os EUA estão se propondo a esse número cresceu graças às independên-
deixar para trás seu ‘cosmopolitismo liberal’ cias dos Estados americanos; e, no final da
e sua ‘utopia globalista’ do século XX, para se Segunda Guerra Mundial, a carta de criação
converter ao realismo pragmático da velha das Nações Unidas já foi assinada por cerda
‘geopolítica das nações’ inaugurada pela Paz de 60 Estados nacionais independentes.
de Westfália em 1648. Contudo foi na segunda metade do século
XX que o sistema interestatal deu um salto e
se globalizou aceleradamente, de forma que
Uma interpretação hoje existem quase 200 Estados soberanos,
com direito a um assento nas Nações Unidas.
Como explicar essa mudança radical da Contribuíram para esse aumento geo-
política externa norte-americana? Do métrico: o fim do colonialismo europeu e a
nosso ponto de vista, a partir da própria independência dos Estados africanos e asiáti-
dinâmica expansiva do sistema interesta- cos, com destaque especial para a China, que
tal criado pelos europeus há cinco séculos. transformou sua civilização e seu império
Expliquemos melhor nossa hipótese e nosso milenar em um Estado nacional, que se inte-
argumento, considerando que a unidade grou definitivamente a todos os organismos
básica do poder territorial do sistema e regimes internacionais criados depois da
mundial, nesse início do século XXI, segue Segunda Guerra Mundial, e depois do fim
sendo o ‘Estado nacional’, com suas fron- da Guerra em Fria. Por isso, aliás, muitos
teiras claramente delimitadas e com sua analistas americanos falaram, na década de
soberania teoricamente reconhecida pelos 1990, do ‘fim da história’ e do nascimento de
demais membros do sistema. Esse ‘sistema um mundo unipolar, com a vitória da ‘ordem
interestatal’ se formou na Europa durante liberal’ e a universalização do sistema de
o ‘longo século XVI’ (1450-1650) – segundo valores ocidentais, sob a hegemonia dos EUA.
expressão usada pelo historiador francês De fato, nesse período, os EUA alcança-
Fernand Braudel para referir-se às ‘longas ram uma centralidade dentro do sistema
durações’ da história humana –, e desde seu mundial e um nível de poder global sem
‘nascimento’ se expandiu de forma contí- precedentes na história da humanidade, na
nua, para dentro e para fora do continente, mesma hora em que se acreditou na vitória
na forma de grandes ‘ondas explosivas’ que do fenômeno da globalização econômica e
ocorreram, concentradamente, nos séculos na universalização das regras e instituições
XVI e XIX, e na segunda metade do século criadas pela ordem liberal do século XX.
XX. Nesses períodos, o sistema estatal Ao mesmo tempo, essa mesma expansão do
sociedade e o establishment político dos EUA dura até o colapso total do inimigo, ou então
aparecem divididos e radicalizados. Donde se transforma em uma beligerância contínua
se possa também concluir que durante e paralisante das forças que se dividiram e
este período de grande turbulência que foram jogadas umas contra as outras, por
se anuncia pela frente, a direção do poder fatores internos, mas com a contribuição de-
global dos EUA fique cada vez mais nas mãos cisiva da potência interventora.
do seu comando militar, com suas 700 ou Nesse novo contexto, a própria defesa da
mais bases distribuídas ao redor do mundo, democracia e dos direitos humanos – que
somadas aos seus acordos de ‘ajuda’ e/ou marcou a última década do século passado –
‘defesa-mútua’ com cerca 140 países, dentro perdeu relevância, porque são intervenções
de todo o sistema internacional. que não têm limites éticos. Além disso, esta
Essa nova estratégia dos EUA pode ser nova guerra não tem nenhum compromisso
revertida? É muito difícil prever, porque ela com a reconstrução do ‘adversário’, como
é o produto de uma luta interna que ainda aconteceu, por exemplo, com a reconstrução
não acabou. Contudo o mais provável é que do Japão e da Alemanha, e com o próprio
se mantenha no futuro, mesmo depois da Plano Marshall, destinado à reconstrução
administração Trump, a menos que haja europeia, depois do fim da Segunda Guerra
uma mudança na ‘configuração de forças’ Mundial. Não está mais garantido nem
do sistema mundial. O problema, entretanto, mesmo o acesso privilegiado ao mercado
é que para que tal mudança possa aconte- interno dos EUA, como ocorreu com Coreia,
cer, as demais potências terão que seguir a Japão e vários outros países destruídos
mesma cartilha dos americanos, e este é um e depois ajudados pelos EUA. O que tem
caminho que aponta, inevitavelmente, para sido oferecido na situação atual é apenas
um horizonte de ‘guerra contínua’. o cardápio básico das reformas e políticas
neoliberais.
Por analogia, muitos analistas falam de
Na ‘periferia’ do sistema uma nova Guerra Fria, ou de uma Terceira
Guerra Mundial, quando se referem a este
Um tipo de guerra fragmentada e contínua estado de guerra intermitente e contínuo
que deve ser travada sobretudo nas regiões do século XXI. O importante, entretanto,
mais estratégicas da periferia do sistema é compreender que o fenômeno da guerra
mundial; um tipo de guerra que não envolve adquiriu novo significado e nova duração
necessariamente bombardeios, nem o uso dentro do sistema internacional, e dentro
explícito da força, porque seu objetivo prin- da estratégia de poder global dos EUA. Em
cipal é a destruição da vontade política do ad- grande medida, graças à própria necessidade
versário, por meio do colapso físico e moral endógena de reprodução e expansão contí-
do seu Estado, da sua sociedade e de qualquer nua do ‘império militar’ americano, que foi
grupo humano que se queira destruir. Um construído durante a segunda metade do
tipo de guerra no qual se usa a informação século XX, mas que se expandiu significati-
mais do que a força, o cerco e as sanções mais vamente depois do fim da Guerra Fria.
do que o ataque direto, a desmobilização
mais do que as armas, a desmoralização mais O espaço desse novo tipo de império ame-
do que a tortura. Por sua própria natureza e ricano não é contínuo nem homogêneo. Seu
seus instrumentos de ‘combate’, trata-se de poder apoia-se no controle de estruturas
uma ‘guerra ilimitada’ no seu escopo, no seu transnacionais, militares, financeiras, produti-
tempo de preparação e na sua duração. Uma vas e ideológicas de alcance global, mas não
espécie de guerra infinitamente elástica, que suprime os estados nacionais nem elimina a
hierarquia do sistema interestatal. Reconhece Seja como for, é muito importante que se
a existência de Estados que são seus adversá- entenda, sobretudo no caso dos que vivem
rios estratégicos, e exerce seu poder de ma- na ‘periferia norte-americana’, que acabou
neira diferenciada com relação aos demais: definitivamente o tempo da ‘hegemonia be-
vassalagem, no caso de alguns países do Les- nevolente’, com seu compromisso irrestrito
te Asiático e do Oriente Médio; hegemonia no e universal com a democracia, e com sua
caso dos seus aliados europeus. Só no caso da proteção seletiva de alguns casos de desen-
América Latina o poder imperial americano é volvimentismo e bem-estar social. E já não é
exercido sobre o um território contínuo4(63). mais possível retornar. s
Referências
1. Fiori JL. História, estratégia e desenvolvimento. São 4. Fiori JL. Sistema mundial: império e pauperização.
Paulo: Boitempo; 2014. Fiori JL, Medeiros C, organizadores. Polarização
mundial e crescimento. Petrópolis: Vozes; 2001.
2. Presidency of the United States. National Security
Strategy of the United States of America. Washing-
Recebido em 05/08/ 2018
ton, DC; 2017. Aprovado em 09/08/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
3. Fiori JL. O poder global e a nova geopolítica das na-
ções. São Paulo: Boitempo; 2007.
DOI: 10.1590/0103-11042018S302
Apresentação
Este artigo atende a chamamento de forças progressistas ainda presentes na sociedade brasi-
leira, dentro e fora dos aparelhos de Estado em seus diversos níveis de organização e atuação,
com vistas a mais um repensar sobre o Brasil. Em particular, trataremos do papel institucional
desempenhado pelas políticas sociais estruturadas a partir da Constituição Federal de 1988
(CF-1988), com vistas a um projeto nacional de desenvolvimento.
Assim, para além desta breve apresentação, o artigo oferece, na seção 1, uma visão panorâmica
acerca dos três grandes momentos situacionais pelos quais acreditamos ter passado a CF-1988
neste interregno de 30 anos, a saber: i) entre 1988 e 2002: contestação e acomodação; ii) entre
2003 e 2014: acomodação e conciliação; e iii) entre 2016 e 2018: destituição e desconstrução.
Posteriormente, na seção 2, realizamos uma incursão mais amiúde sobre a dimensão social
instituída a partir da CF-1988, enfatizando tanto o caráter híbrido e insuficiente do arranjo
constitucional original como o processo contraditório de implementação, avanços e recuos
desde então. Na seção 3, por sua vez, destacamos o caráter regressivo, excludente e insusten-
tável do novo (porém pior!) arranjo fiscal-social em implementação desde 2016, apontando,
já nas considerações finais, para os riscos sociais e para o retrocesso civilizatório presente na
perspectiva de continuidade desse modelo ao País e a sua população.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 18-32, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
A CF-1988 na Berlinda: trinta anos de disputas por um projeto nacional de desenvolvimento nos trópicos 19
produzidos por ocasião dos 10 anos e, prova- da participação social e controles estatais,
velmente, muitos mais do que parece serão além dos aspectos formais relativos ao fun-
produzidos agora por ocasião dos seus 30 anos. cionamento e (des)equilíbrio entre poderes
Apenas esse fato já dá mostras de quão dife- (Executivo, Legislativo e Judiciário, com o
rentes (pessimista, otimista e novamente pes- Ministério Público tendo nascido e se forta-
simista) vêm sendo as efemérides decenais de lecido desde então) e entre entes federados.
sua existência no País; e isso demonstra a im- Dadas as suas abrangência e profundidade
portância desse esforço no sentido de capturar temáticas, a CF-1988 nunca foi consensual no
e caracterizar o ‘momento constitucional’ atual. Brasil, razão pela qual, desde sua promulga-
Para além de seu tempo formal de vigên- ção, a sociedade brasileira vem se dividindo
cia, a CF-1988 é importante porque sob suas entre aqueles que simplesmente querem
regras gerais o País instituiu e tentou imple- derrogá-la, visando instaurar uma ordem
mentar (não sem resistências de toda ordem, constitucional majoritariamente liberal-con-
várias delas infelizmente exitosas) um servadora, e aqueles que desejam ou mantê-
amplo conjunto de direitos civis, políticos, -la em seus traços fundamentais, ou fazê-la
sociais e econômicos. Grande parte da (ainda avançar em termos sociais, econômicos, po-
que pífia) melhoria distributiva havida, por líticos etc., em um sentido de maior controle
exemplo, entre 1995 e 2015, deveu-se aos estatal sobre a economia e maior congraça-
esforços de implementação de dispositivos mento tanto populacional quanto territorial.
constitucionais atrelados às políticas sociais A questão de fundo, portanto, é que, desde
em suas diversas áreas de atuação, tais como: a promulgação da CF-1988, há no Brasil,
previdência e assistência social, trabalho e grosso modo, dois projetos políticos antagô-
renda, educação e saúde, entre outras. Tal nicos em disputa no debate corrente. De um
resultado distributivo, é bom que se diga, lado, coloca-se novamente em pauta – por
ocorreu pelo lado do gasto público, e foi setores conservadores da sociedade, comu-
contrabalançado por tendências concentra- nidades da política (partidos, sindicatos e
doras advindas tanto da estrutura tributária outras agremiações) e da própria burocracia,
regressiva como da primazia do gasto finan- além da mídia e empresariado – o caminho
ceiro sobre o gasto real, ambos os aspectos, liberal, de orientação privatista e individua-
ou presentes na CF-1988 desde o início, ou lista, que havia vivenciado melhores dias na
posteriormente nela sacramentados por década de 1990, mas que, desde 2016, vem
meio de Emendas Constitucionais (EC) que conseguindo impor uma agenda ‘abrangente,
pioraram aspectos cruciais já problemáticos profunda e veloz’ de retrocessos institucio-
do texto constitucional nesses temas ligados nais em áreas críticas da regulação econômi-
à ordem tributária, econômica e financeira. ca, social e política brasileira.
Por outro lado, a CF-1988 também buscou De outro lado, embora raramente tenha
reorganizar aparatos estatais em diversos tido força política suficiente no cenário na-
campos de atuação, promovendo uma verda- cional, permanece como possibilidade – de-
deira reforma administrativa em termos de fendida por setores do campo progressista,
reestruturação e modos de funcionamento da dentro e fora das estruturas de governo – a via
máquina pública. São exemplos disso os regra- da expansão ou universalização integral dos
mentos postos em operação (também aqui de direitos civis, políticos e sociais, tais quais os
forma diferenciada no tempo e muitas vezes promulgados pela CF-1988. Todavia, é preciso
contraditória entre si) nas áreas do direito ter claro que as bases materiais e as condições
econômico e financeiro, da arrecadação tri- políticas hoje vigentes para a efetivação de
butária, da orçamentação e gastos públicos, tais direitos estão ainda muito distantes das
do planejamento e gestão governamental, mínimas necessárias à sua consecução.
Não por outra razão, talvez seja possí- mandatos de Fernando Henrique Cardoso
vel estabelecer ao menos três momentos (FHC) (1995 a 2002), houve novamente um
por meio dos quais o embate acima vem período forte de contestação e reformas
se desenrolando no País desde o início. constitucionais de grande monta, sobretudo
Resumidamente, entre ‘1988 e 2002’, teria entre 1995 e 1998. O ímpeto destas se arrefe-
vigorado um momento de ‘contestação e aco- ceu ao longo do seu segundo mandato (1999 a
modação’ do pacto constitucional original. 2002), tanto em função das crises econômica
Depois de o governo Sarney ter-se colocado e social em curso como também por causa da
publicamente contra a CF-1988 recém-pro- aglutinação de forças políticas de oposição ao
mulgada, o conturbado governo Collor de governo, que conseguiram barrar ou adiar vo-
Mello buscou contestá-la abertamente, sem, tações importantes ao projeto liberal de refor-
contudo, ter tido êxito em suas tentativas de mas constitucionais. Dessa forma, apesar das
reformas. Após seu impeachment em 1992, o 45 EC aprovadas em seus primeiros 14 anos
Brasil vivenciou, sob o governo provisório de de vigência democrática, a maioria das quais
Itamar Franco, um período de acomodação com caráter claramente contrário ao espíri-
geral, pois, a despeito da revisão constitucio- to original das leis, pode-se dizer que houve
nal havida em 1993, o que estava em jogo era a também certa acomodação de princípios e di-
transição política para as próximas eleições, retrizes constitucionais relevantes aos pactos
que haveria de ser em 1994. Durante os dois sociais e políticos de então.
Por sua vez, entre 2003 e 2014, teria havido em curso, vem conseguindo pautar e sancio-
um momento que poderíamos chamar de nar (até o momento, julho de 2018) 15 EC e
‘acomodação e conciliação’ relativamente à outras tantas reformas infraconstitucionais
CF-1988 e propostas de reformas. Durante os abertamente contrárias ao pacto social e po-
dois mandatos presidenciais de Lula da Silva lítico forjado – e em ‘lenta, gradual e insegu-
(2003 a 2010, mas sobretudo no segundo) e ra acomodação’ – desde a CF-1988.
ainda durante o primeiro mandato de Dilma Em suma, dada a quantidade total de EC
Rousseff (2011 a 2014), a despeito de 45 EC já aprovadas e seu perfil majoritariamente
aprovadas, quase todas elas fruto de embates contrário ao espírito original da CF-1988, é
políticos e ideológicos de monta, de modo que possível afirmar que, 30 anos depois, o ‘Brasil
nem todas possuíram sentido contrário ao possui hoje, na prática, uma Constituição
espírito original das leis, houve também es- Federal Desfigurada, sem, no entanto, ter vi-
forços institucionais no sentido de acomodar venciado, para tanto, uma outra Assembleia
e implementar dispositivos constitucionais Constituinte’. Vale dizer: mudanças feitas
importantes, bem como conciliar a discussão sem consulta, participação nem deliberação
de temas controversos e mesmo postergar a da vontade e soberania popular.
aprovação de medidas contrárias ao ideário Pelo exposto, e sem desconsiderar a dis-
menos liberal dos governos de então. tância que há – a todo o momento e lugar
Por fim, entre ‘2015 e 2018’, já em um con- – entre os fatos e as leis, ou seja, sem jamais
texto de crises econômica e política abertas, acreditar que a mera existência formal da
cujo desfecho institucional foi – por ora – a CF-1988 possa ser posta em movimento tal e
destituição de Dilma Rousseff e a tomada de qual a letra das leis, portanto, cientes de que
poder pelo consórcio liberal-conservador qualquer aparato legal nada mais é do que o
formado por toda a oposição parlamentar resultado (mais ou menos transitório ou per-
de então, e também por parte expressiva da manente) dos embates políticos, econômicos,
coalizão de apoio (de centro e de direita) sociais, culturais etc. de uma dada sociedade
reeleita em 2014, conforma-se um momento em determinado tempo e contexto histórico,
que se vai caracterizando como sendo de vê-se que tais aparatos, por sua vez, trazem
‘destituição e desconstrução’ abrangente, em si determinados princípios, diretrizes e
profunda e veloz dos fundamentos basila- projetos políticos cuja implementação (isto é,
res da CF-1988. Todavia isso apenas se faz sua conversão em fatos da realidade) depende
possível em função das situações (formais e evidentemente da disputa social e política
informais) de ‘excepcionalidade de medidas – idealmente arbitrada por regras suposta-
e criminalização de direitos e atores sociais’ mente republicanas presentes no sistema
que se vem anunciando e produzindo prin- democrático vigente – que se coloca em mo-
cipalmente desde 2015 (com o aguçamento vimento desde a sua promulgação.
da ingovernabilidade já durante o primei- Isso significa que a discussão sobre a
ro ano do segundo mandato de Dilma) e, CF-1988 não está descolada da vida cotidia-
com maior ênfase, desde o golpe em 2016, a na das pessoas e instituições (sejam essas
partir de quando os blocos conservadores no públicas-estatais, não estatais, e privadas), as
comando dos três poderes da República, com quais são criadas, transformadas e mobiliza-
o Ministério Público, os Tribunais de Contas, das para a aplicação ou contestação de cada
a Polícia Federal, a grande mídia corporativa um dos tais normativos legais. Significa, por
e o grande empresariado nacional e interna- isso mesmo, que não é assunto menor ou sem
cional, financeiro e financeirizado, valendo- consequências uma discussão que pretenda
-se da anomia, alienação, desinformação, não apenas proceder a um balanço crítico
cooptação, desalento e/ou resignação social (ainda que não exaustivo) da experiência
décadas, motivo pelo qual o País tão somente da descentralização que não estivessem di-
conseguiu implantar um tipo de universaliza- retamente ligados à eficiência das políticas
ção restrita das suas principais políticas sociais. e, sobretudo, dos gastos sociais. Por isso,
A segunda é que o grande impulso dado falamos apenas em descentralização fiscal
à ‘privatização’ – ou aumento de partici- das políticas sociais, já que, na prática, ela
pação dos setores privados (lucrativos ou não se revestiu, senão em raras exceções até
não) na provisão total de bens e serviços o momento, dos princípios de envolvimento
sociais à população – em áreas-chave, como populacional efetivo e participação social na
saúde, educação e previdência, pode ser gestão da coisa pública.
visto como parte da estratégia social guiada Por sua vez, a ‘focalização’ das políticas
pelo próprio Estado, na medida em que é ele (leia-se: dos recursos) sociais visando ao
quem define o marco regulatório de atuação combate direto à pobreza nasceu e se con-
dos entes privados em cada setor da econo- solidou como princípio ideológico que se
mia, impondo, com isso, a direção, o ritmo e construiu e se implementou, desde os anos
a intensidade da acumulação de capital em 1990, na contramão dos preceitos univer-
cada caso concreto. salizantes impressos na CF-1988. É muito
Outras três estratégias coerentes e com- importante atentar para o fato de que, ao
plementares às anteriores também foram deslocar o foco da discussão do desenvolvi-
se fortalecendo desde a década de 1990. Em mento com inserção pelo trabalho produtivo
primeiro lugar, a descentralização de parte e socialmente útil para o tema do combate
das atribuições fiscais da União para Estados à pobreza via, supostamente, uma mais
e municípios. Em segundo, a focalização das eficiente aplicação dos recursos sociais, a
políticas, programas e ações governamentais focalização na verdade se complementa
sobre parcela considerada mais pobre da po- coerentemente com o conjunto da estraté-
pulação. Finalmente, o aumento da partici- gia social montada nos anos 1990 e ainda
pação social organizada – setor público não vigente neste novo milênio.
estatal, ou setor privado não lucrativo – em Por fim, aliado à focalização da proble-
atividades de cunho social. mática social sobre a pobreza, também se
A ‘descentralização’ nasceu na esteira da observa a construção de certo nível de com-
redemocratização no início dos anos 1980 prometimento de setores públicos não esta-
e se consolidou como um dos princípios tais – ou setores privados não lucrativos – em
fundamentais na discussão constituinte relação à execução de ações sociais voluntá-
acerca do novo formato institucional que as rias ou compartilhadas com o próprio setor
políticas sociais deveriam ter. Princípio ori- público estatal. O aumento da ‘participação
ginalmente ligado à ideia de maior envolvi- social’ organizada – porém compensatória
mento e participação dos entes subnacionais – na composição de certa estratégia geral
e também da sociedade civil na formulação, de atendimento social ao longo das décadas
implementação, gestão, controle e avalia- de 1990 e 2000 esteve originalmente ligado
ção das políticas sociais, a descentralização à ideia de maior envolvimento e participa-
acabou se traduzindo em parte da estratégia ção da sociedade civil na formulação, im-
social do governo federal para transferir plementação, gestão, controle e avaliação
responsabilidades e gastos sociais a Estados das políticas sociais. Contudo, o sentido
e municípios. Ainda que a ideia da descen- desta atuação, bem como os resultados até o
tralização como princípio fundamental de momento alcançados, em termos de efetivi-
gestão pública tenha se mantido no discurso dade das instituições participativas, é ainda
oficial, reinou de fato grande descompro- bastante ambíguo para ser avaliado adequa-
misso dos entes federados com aspectos damente neste momento.
No campo especificamente social, os go- Por tudo o que foi dito acima, o projeto
vernos brasileiros dos anos 1990 já haviam golpista de desenvolvimento, se é que se pode
conduzido várias mudanças no sistema na- chamar de desenvolvimento o ideário liberal-
cional de proteção social, com a justifica- -conservador ora em curso no Brasil, deixa
tiva de que o modelo de proteção inscrito claro que a discussão não é tanto saber se a
na Constituição seria muito custoso para CF-1988 cabe ou não cabe no orçamento na-
a estrutura fiscal do Estado, além de ina- cional. Muito mais importante a constatar
dequado em face das propostas de reforma é que a própria sociedade brasileira, em sua
administrativa e do sistema econômico. heterogeneidade, diversidade, desigualdades,
Por essa razão, o núcleo duro de qualquer pluralidade e necessidades, enfim, é esta que
sistema de bem-estar – a saber: as condi- definitivamente não cabe no projeto golpista.
ções de regulação do mercado de trabalho e Em outras palavras, como reduzir a
o modelo de previdência social – passaram plêiade de manifestações, interesses e ne-
por importantes mudanças institucionais cessidades políticas, econômicas, sociais,
durante a década de 1990. culturais, raciais, sexuais, etárias, artísti-
No caso do mercado de trabalho, em que cas, religiosas, intelectuais, internacionais
praticamente a maior parte da população etc. de uma nação como a brasileira a um
ativa nunca foi contribuinte do sistema de ideário ideológico elitista e excludente?
proteção, a onda de liberalização das regras Simplesmente impossível!
de regulação laboral levada a cabo nos anos Então, a questão não é ajustar e restringir
1990 fez com que a cobertura social no artificialmente toda a grandeza e pujança
âmbito da previdência pública não aumen- da sociedade brasileira a leis fiscais e pa-
tasse significativamente. De acordo com essa râmetros orçamentários como se leis e pa-
assertiva, constata-se hoje que a causa para râmetros fossem imposições da natureza.
a crise do mundo do trabalho no Brasil não A questão é justamente buscar os arranjos
esteve (e não está) ligada à legislação exis- políticos, sociais, institucionais capazes de
tente, mas basicamente à profunda e persis- melhor compatibilizar capacidades estatais
tente crise do Estado e da economia, o que e societais, instrumentos governamentais e
desqualifica as propostas liberais de reforma de mercado, no sentido da ampliação demo-
trabalhista sempre em voga no País. crática da nação – ao invés da sua castração.
Na esfera previdenciária brasileira, a Para tanto, torna-se imprescindível redefinir
reforma governamental iniciada nos anos o papel do mercado e da acumulação capita-
1990 parece também não ter trazido resul- lista em suas relações com o Estado e com o
tados alvissareiros, basicamente por duas poder público instituído.
razões. Em primeiro lugar, porque em con- Pelo lado do financiamento social, sabe-se
texto de grande desigualdade de rendimen- que a estratégia governamental de ampliar
tos, e no qual também os níveis absolutos de e recentralizar a carga tributária esteve
remuneração são bastante baixos, somente colada, principalmente, à política de susten-
uma pequena parte da população ocupada tação financeira da estabilização monetária
pode ter acesso aos sistemas privados de pre- adotada e mantida desde 1994. A necessi-
vidência complementar. Em segundo lugar, as dade do governo federal de robustecer seu
mudanças pretendidas para a resolução dos caixa para viabilizar a estratégia macroeco-
problemas estruturais do sistema de segu- nômica fez com que ele optasse por expan-
ridade púbico sempre foram incompatíveis dir a arrecadação das contribuições sociais
tanto com a heterogeneidade do mercado de na composição total da carga tributária, já
trabalho quanto com as propostas recorrentes que a receita desses tributos não é repassada
de desregulamentação trabalhista. a Estados e municípios. Dado, porém, que
as contribuições sociais existem tendo por Embora não se possa acusar a tributação
trás vinculações orçamentárias constitucio- sobre a folha salarial de regressiva, a situação
nais específicas, foi preciso que o governo na qual os contribuintes desses programas fi-
criasse formas de desvinculação de parte nanciam seus próprios benefícios também se
desses recursos, o que foi feito em diferentes repete nesse caso. Por fim, a tributação sobre
momentos pelo Fundo Social de Emergência a renda e sobre o patrimônio, a despeito de
(FSE), Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) serem bases de incidência detentoras de
e mais recentemente pela Desvinculação de grande potencial quanto à progressividade,
Receitas da União (DRU), agora aumentada é pouco aproveitada no Brasil, haja vista sua
de 20% para 30% da arrecadação primária pequena expressão na carga tributária total.
sobre a qual incide. Assim, olhando a questão Do que foi dito, conclui-se que é
apenas por esse ângulo, pode-se afirmar que pequeno o potencial de combate às desi-
a estratégia de financiamento federal dos gualdades a partir da estrutura tributária
anos 1990 e 2000 no Brasil logrou deslocar nacional atualmente existente, já que o
recursos potenciais do orçamento social princípio do autofinanciamento da políti-
para o ajuste macroeconômico, colocando ca social está nela enraizada. Uma forma
teto à capacidade de gastos sociais em todo o de ver isso é lembrar que praticamen-
período considerado. te dois terços de todo o gasto social está
Outro conjunto de constrangimentos às vinculado a contribuições sociais feitas
finanças sociais brasileiras está relacionado sobre a folha de salários. Ou seja, tendo
com a estrutura tributária regressiva do País. em conta que o principal componente do
Nesse quesito, a discussão sobre a carga e sobre Gasto Social Federal (GSF) é representa-
a estrutura tributária é totalmente estéril se do pelo gasto previdenciário, tem-se que,
desvinculada de pelo menos dois aspectos. em sua maior parte, ele é financiado pelos
Em primeiro lugar, o problema não está neces- próprios beneficiários, sendo o restante
sariamente em quanto o Estado arrecada da indireta e desproporcionalmente finan-
sociedade, mas fundamentalmente em como ciado pelas camadas mais pobres da popu-
arrecada, ou seja, em quão progressiva ou re- lação, por meio dos tributos que incidem
gressiva é a estrutura de arrecadação imposta à sobre o consumo. Tomando por base, por-
sociedade. Em segundo lugar, vem a questão de tanto, a regressividade da estrutura tribu-
como se gasta aquilo que se arrecada, isto é, em tária, bem como o fato de a maior parte
quão progressiva ou regressiva é a estrutura de dos impostos e contribuições devidos por
gastos públicos estatais. empregadores ser repassada aos preços,
Com relação ao primeiro aspecto, a ar- conclui-se que as classes que vivem do tra-
recadação pública está concentrada em tri- balho (e entre estas, as mais pobres) são as
butos sobre o consumo de bens e serviços que, em verdade, financiam a maior parte
cuja incidência é proporcionalmente maior dos gastos sociais no Brasil.
sobre parcelas da população que detêm os Com relação ao segundo aspecto, isto é, a
menores níveis de rendimentos. Tal regres- forma pela qual se efetua a despesa pública,
sividade se torna ainda mais problemática tem havido intenso e permanente desloca-
ao evidenciarmos o fato de que fazem parte mento de recursos reais da área social para
desses tributos determinadas contribui- outras áreas do gasto federal, notadamente
ções sociais destinadas ao custeio de pro- para a cobertura de despesas financeiras.
gramas sociais que são, assim, financiados Assim, tudo o mais constante, a manter-se
indiretamente (por meio do consumo e da a função-objetivo primordial do atual
estrutura tributária regressiva) por seus governo, sob cuja batuta se deu o desalen-
próprios beneficiários. tador aniversário de 30 anos da CF-1988,
Referências
Rubens Casara1
DOI: 10.1590/0103-11042018S303
Introdução
Ao se falar em Estado Democrático de Direito, por evidente, evoca-se, em termos weberianos,
um ‘tipo ideal’ de Estado que tem como principal característica a existência de limites legais
ao exercício do poder. Na realidade, o Estado concreto, para além dos idealismos, mesmo
que aposte na lei e no direito para evitar abusos, convive sempre com uma margem de ile-
galidade produzida por particulares e, principalmente, pelo próprio Estado. Isso porque, ao
contrário do que muitos sustentam, é o poder político que estabelece e condiciona o direito.
Condicionado, o direito acaba afastado, sempre que necessário, à realização do poder, de qual-
quer poder. Há manifestações de poder que escapam da legalidade, porque ao longo da his-
tória, e Marx já havia percebido isso, a legalidade esteve (quase) sempre a serviço do poder; e
sua função se limitava a legitimar ‘a lei do mais forte’.
O que há de novo não é a violação dos limites ao exercício do poder. Em razão da mercan-
tilização do mundo, da sociedade do espetáculo, do despotismo do mercado, do narcisismo
extremo, da reaproximação entre o poder político e o poder econômico, do crescimento do
pensamento autoritário, perdeu-se qualquer pretensão de fazer valer esses limites, que hoje
existem apenas como um simulacro, como um totem que faz lembrar conquistas civilizatórias
que já existiram, mas que, na atualidade, não passam de lembranças que confortam. Mais do
que a violação de limites, o que caracteriza a chamada pós-modernidade é a total desconside-
ração, ou mesmo a ausência, dos limites, que um dia foram pensados, ao poder.
Por ‘pós-democrático’1, entende-se um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder,
isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase
voltam a se identificar, sem pudor. O ganho democrático que se deu com o Estado moderno,
nascido da separação entre o poder político e o poder econômico, desaparece na pós-demo-
1 Fundação Oswaldo Cruz cracia; e, nesse particular, pode-se falar em uma espécie de regressão pré-moderna. Está em
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio vigência uma espécie de absolutismo de mercado.
Arouca (Ensp) – Rio de Pós-democrático, para dar nome à hipótese de que o Estado Democrático de Direito foi
Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid. superado por um Estado sem limites ao exercício do poder, vai ao encontro da tese de que o
org/0000-0002-1419- neoliberalismo está levando à era da pós-democracia2. De fato, o ‘pós-democrático’ é o Estado
3718
rubens.casara@gmail.com compatível com o neoliberalismo, com a transformação de tudo em mercadoria. Um Estado
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Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 33-40, NOVEMBRO 2018
34 Casara R
que, para atender ao ultraliberalismo eco- entre o Estado e a sociedade civil (a socieda-
nômico, necessita assumir a feição de um de civil, locus da atividade mercantil, espaço
Estado Penal, de um Estado cada vez mais ved ado para o Estado), no qual a proprieda-
forte e voltado à consecução dos fins dese- de e a liberdade (entendida como liberdade
jados pelos detentores do poder econômico. para adquirir e possuir sem entraves, liber-
Fins que levam à exclusão social de grande dade originária de onde derivariam todas
parcela da sociedade, ao aumento da violên- as outras liberdades) eram compreendidos
cia (não só da violência física, que cresce de como os dois principais direitos fundamen-
forma avassaladora, como também da vio- tais do indivíduo e no qual o significante ‘de-
lência estrutural, produzida pelo próprio mocrático’ aparecia para frisar a oposição em
funcionamento ‘normal’ do Estado pós- relação ao princípio monárquico do Estado
-democrático), à inviabilidade da agricultura absolutista. Com o agravamento da situação
familiar, à destruição da natureza e ao caos econômica de grande parcela da população,
urbano, mas que necessitam do Estado para o aprofundamento dos conflitos sociais e a
serem defendidos e legitimados. ameaça corporificada nas experiências so-
Não há, ao contrário do que sustentam cialistas, somados à perda da confiança no
os discursos de viés liberal dos que estão sa- funcionamento concreto da ‘mão invisível’
tisfeitos com o Estado Pós-Democrático, a e das ‘leis naturais’ do mercado, o Estado de
diminuição da intervenção estatal na vida Direito Liberal foi gradualmente substituído
da sociedade. Ao contrário, o Estado Pós- por um Estado Social de Direito que nasce
Democrático revela-se um Estado forte e, como uma solução de compromisso entre
possivelmente, o Estado menos sujeito a con- os defensores do status quo e os que lutavam
trole desde a criação do Estado Moderno. Na por transformações sociais (têm razão os que
pós-democracia, o político torna-se, como apontam o efeito mistificador e ideológico do
desejava Carl Schmitt em 1932, o mero espaço Estado Social, que se revelou capaz de frear
da dicotomia amigo e inimigo. Essa diferen- os ímpetos dos movimentos revolucionários
ciação política tem a função de caracterizar e os protestos das classes não capitalistas).
o extremo grau de intensidade da adesão e Como afirma Avelãs Nunes, tratou-se da pri-
funcionalidade à razão neoliberal. No Estado meira tentativa de substituir a ‘mão invisível’
Pós-Democrático, a diferenciação exclusiva- da economia pela mão invisível do direito.
mente política, já que desaparecem as funções No modelo do Estado Social de Direito, em
que constituíam o ‘braço esquerdo’ do Estado que se percebe uma certa prevalência do po-
(tais como as políticas inclusivas e de redução lítico sobre o econômico, o Estado assume a
da desigualdade), é a diferenciação entre função de realizar a ‘justiça social’, assegurar
‘amigo’ do mercado e ‘inimigo’ do mercado, o pleno desenvolvimento de cada um e con-
este último será o indivíduo indesejável sobre cretizar o projeto de vida digna para todos
o qual recairá o poder penal. (princípio da dignidade da pessoa humana).
Em apertada síntese, pode-se afirmar que Porém, em um quadro de crise econômica
o estado capitalista, para sobreviver, exigiu, profunda, no qual a debilidade da economia
em diferentes quadras históricas, o Estado nos países capitalistas não permitia minima-
Liberal de Direito, o Estado Social de Direito, mente a realização das promessas do Estado
o Estado Fascista, o Estado Democrático de Social, com os detentores do poder econômi-
Direito e, agora, o Estado Pós-Democrático. co sedentos por aumentar os seus lucros, o
Para tornar-se hegemônico e superar defi- projeto capitalista teve que assumir a forma
nitivamente o Estado Absolutista, o projeto de um Estado Fascista, antidemocrático e
capitalista exigiu um Estado regulado por antissocialista, que apostava em resposta
leis, em que prevalecia a ideia de separação de força para manter a ordem e resolver os
mais variados problemas sociais, na medida política ao Estado e o direito à lei. Não se pode
em que incentivava a ausência de reflexão. O esquecer também que a modernidade ociden-
Estado Fascista era um estado de direito, mas tal, esse universo de relações de dominação sob
o direito fascista não representava um limite a hegemonia eurocentrada, levou também à
ao arbítrio e à opressão. Com a derrota polí- racionalidade neoliberal que transforma tudo e
tica e militar dos Estados Fascistas, o projeto todos, inclusive o humano, em mercadoria, em
capitalista retoma a aposta em um modelo objetos negociáveis.
de Estado marcado pela existência de limites Para muitos, os direitos humanos não
ao exercício do poder, dentre os quais des- passam de uma espécie de ideologia, uma
tacam-se os direitos fundamentais. A aposta, representação ideológica capaz de mistificar
porém, revelou-se equivocada, na medida a condição humana e tranquilizar as almas
em que os direitos fundamentais passaram a daqueles que, por ação ou omissão, são res-
constituir obstáculos inclusive ao poder eco- ponsáveis pela violência contra as pessoas.
nômico. Com isso, a razão neoliberal, nova Assim, o discurso dos direitos humanos,
forma de governabilidade das economias e percebidos como abstrações, acabaria por
das sociedades baseada na generalização do esconder as violações concretas aos interes-
mercado e na liberdade irrestrita do capital, ses e às necessidades de cada pessoa. Nesse
levou ao Estado Pós-Democrático de Direito. sentido, pode-se afirmar que as concepções
‘abstratas’ dos direitos humanos produzem
efeitos perversos4 que se relevam conexos e
Direito à saúde: de direito integrados: a) efeito ilusório, que dificulta a
fundamental à mercadoria percepção da distância entre o discurso e a
prática, ou melhor, entre os direitos previs-
Os direitos humanos tornaram-se a lingua- tos e os direitos efetivados (a previsão legal
gem hegemônica da dignidade humana. de um direito passa a funcionar como subs-
Aplausos e discursos em defesa dos direitos tituto de sua concretização); b) efeito imobi-
humanos não faltam. Todavia, como percebeu lizador, uma vez que o reconhecimento legal
Boaventura de Souza Santos3, essa hegemonia do direito gera uma sensação de satisfação e
no campo discursivo convive com fato assus- de suficiência, de que não há mais o que se
tador: grande parte da população mundial conquistar (eventuais violações dos direitos
não alcançou a condição de sujeito de direitos humanos seriam meras disfunções atribu-
humanos. Para muitos, reserva-se às pessoas íveis a erros individuais) e que, agora, cabe
a condição de não sujeitos, submetidos às ao aparato estatal concretizar os direitos
várias formas de violência (física, moral, es- humanos; c) efeito de ordem, que reduz os
trutural, simbólica etc.). Em outras palavras, direitos humanos àqueles consagrados na le-
se todos figuram como objetos dos discursos gislação nos termos em que são reconhecidos
sobre direitos humanos, poucas pessoas têm pelas Agências Estatais (em especial, o Poder
reconhecidos e concretizados esses direitos. Judiciário), o que faz com que se aceite que o
Existem diversas concepções e teorias que aparato estatal possa selecionar, identificar,
procuram dar conta do conceito de direitos limitar, excepcionar, relativizar e conter os
humanos. A dificuldade de encontrar um con- direitos humanos em nome da manutenção
ceito adequado aumenta ao perceber que a da ordem; d) efeito de legitimação de uma
maioria das concepções de direitos humanos ordem hegemônica, uma vez que a compre-
são produtos da modernidade ocidental (poder- ensão dos direitos humanos está condicio-
-se-ia dizer: obra do homem branco europeu), nada por uma determinada configuração
um modo de ver e atuar no mundo que se carac- de poder (não raro o significante ‘direitos
terizou por reduzir o conhecimento à ciência, a humanos’ é utilizado para atacar projetos de
poder alternativos, mesmo por governos que sociais (basta lembrar de como o sistema de
violam cotidianamente direitos de parcela justiça brasileiro e seus atores tratam daque-
de sua população) etc. les indesejáveis ao projeto neoliberal de acu-
Fácil, pois, perceber a tensão entre o que mulação ilimitada do capital6).
‘é’ (plano do ‘ser’) e o que deve ser (plano do Chamam-se ‘direitos humanos’ aos direi-
‘dever ser’), bem como a diferença entre ‘o tos que pertencem a todas as pessoas naturais
que deve ser segundo o direito que é’ e ‘o que pelo simples fato de terem nascido. A pessoa
é no mundo-da-vida’. Por fim, ‘o que é’ está o é por ter sido lançada na linguagem. É possí-
longe de se identificar com o que deveria ser vel afirmar a existência de direitos (fenômeno
em um mundo no qual os direitos humanos, que importa comunicação) porque a humani-
reconstruídos para além do referencial do dade é composta de entes que têm seu mundo
‘homem branco europeu’, fossem respeitados. ao modo do que é falado, entes dotados de lin-
Diante desse quadro, ainda com Boaventura guagem e em comunicação. Direitos humanos
de Souza Santos, não há como deixar de ‘sus- referem-se à realização plena da humanidade
peitar’ dos direitos humanos. Como a ideia e englobam todos os direitos necessários à
de direitos humanos pode conviver com uma concretização da dignidade humana. Por essa
realidade que nega a grande parcela da popu- razão, os direitos humanos devem ser apre-
lação mundial as condições necessárias à vida ciados a partir de uma análise conglobante.
minimamente digna? A que direitos se refere, e São, portanto, direitos compartilhados por
a quem pretendem proteger, os defensores dos todos, por todas as singularidades, enquanto
direitos humanos? pessoas naturais.
Ao se falar em direitos humanos, recorre- Os direitos humanos são apontados como
-se a dois significantes: direitos e humanos. direitos universais, posto que deveriam
Trata-se de um conceito complexo, portanto, pertencer a todas as pessoas naturais, sem
uma vez que integrado por dois elementos qualquer exceção, a todos os seres humanos.
vinculados entre si, em uma relação de com- Tanto a Declaração de Independência dos
plementariedade e, ao mesmo tempo, de con- Estados Unidos da América (1776) quanto
tradição. Segundo Alessandro Baratta5(334), a Declaração dos Direitos do Homem e do
há complementariedade, Cidadão (1789) destacam-se pela universali-
dade das afirmações feitas: ‘todos os homens
no sentido de que pertence ao homem en- são criados iguais, dotados pelo seu Criador de
quanto tal, segundo o direito; contradição no certos Direitos inalienáveis’, ‘todos os homens’,
sentido de que o direito não reconhece ao ho- ‘homens’, ‘todos os cidadãos’, ‘cada cidadão’
mem o que lhe pertence enquanto tal. etc. Assim, pretendia-se afastar qualquer
dúvida acerca da intenção de que toda pessoa
Em outras palavras, ao longo da história, o era titular desses direitos pelo simples fato de
direito não reconheceu à pessoa o que é ne- ter nascido, o que, em concreto, era negado
cessário à sua plena realização; ‘humano’ e pelos fenômenos da escravidão e do patriar-
‘direito’ são definidos do ponto de vista ideal cado. Na Constituição Brasileira de 1988, os
em reciprocidade, enquanto no mundo-da- direitos humanos, que tantas vezes são viola-
-vida a pessoa concreta sofre a negação do dos, encontram-se positivados como direitos
direito a uma vida digna. Não raro, a legis- fundamentais, entre os quais, o direito à vida, à
lação (o ‘direito’ reduzido à lei e à interpre- integridade física e mental, à liberdade de ex-
tação dada à lei) se coloca em oposição aos pressão e de pensamento, ao meio ambiente, ao
valores dos direitos humanos, em especial no trabalho digno e à saúde.
que toca a vários segmentos étnicos e sociais A afirmada ‘universalidade’ dos direitos
subalternizados e excluídos das políticas humanos merece problematização. Basta
lembrar que Olympe de Gouges foi guilhoti- desde o fenômeno da colonização), de que os
nada após publicar a Declaração dos Direitos seus valores e as suas ideias devem ser trans-
da Mulher e da cidadã justamente para ques- mitidos e incorporados por outras comuni-
tionar a precária universalidade da decla- dades tidas como inferiores. Tem-se, aqui,
ração francesa. Há uma tensão inafastável mais um exemplo de imposição cultural ao
entre o universal (aquilo que se pode afirmar Outro, que muitas vezes se dá mediante o
como válido independentemente dos con- recurso à violência.
textos) e o fundacional (o que representa Para superar essa violência, típica de
uma identidade especifica, com memória, uma perspectiva colonizadora, que está na
tradição, história e raízes). Basta pesquisar origem do conceito (e do conteúdo hegemô-
a situação dos direitos humanos em diver- nico) de direitos humanos, impõe-se recons-
sas regiões do mundo (ou até em regiões de truir esse conceito a partir de uma dialética
um mesmo país) para chegar à conclusão de intercultural, que não exclua o sul global, os
que inexiste, em concreto, um tratamento povos originários das Américas, as comu-
homogêneo ou mesmo validade universal de nidades tradicionais e quilombolas, como
direitos em contextos políticos, econômicos mecanismo de interação entre as várias cul-
ou culturais diversos. turas. Reconstruir, aqui, significa uma aber-
Em países lançados em uma tradição au- tura para diferenças que foram ignoradas
toritária, os direitos humanos são percebi- na construção eurocentrada do significado
dos como obstáculos à eficiência repressiva atribuído aos direitos humanos. Essa supe-
do Estado (em regra, em favor do mercado), ração dialética terá o potencial de reduzir
enquanto em regiões que foram capazes de as assimetrias de poder, compensar as in-
construir uma cultura democrática, os direi- justiças históricas e socioeconômicas (basta
tos humanos funcionam como condição de pensar na situação de pobreza gerada pela
legitimidade do Estado ou como condição exploração das ex-colônias, pela escravidão,
de possibilidade da própria democracia. Não pelo sucateamento em nome do mercado do
por acaso, há quem sustente que a dimen- Sistema de Saúde etc.) e funcionar como um
são material (substancial) da democracia instrumento de emancipação social.
corresponde à concretização dos direitos Para os fins deste breve escrito, por direi-
fundamentais, ou seja, dos direitos humanos tos humanos, entende-se o comum, tanto as
reconhecidos pelos ordenamentos jurídicos. autorizações para atuar ou não atuar quanto
Em relação aos direitos humanos, não se os deveres de agir e de não agir, necessário à
pode ignorar que uma determinada cultura realização das potencialidades e da dignida-
(situada, pois, no plano fundacional) passou de humana, construído a partir das singulari-
a se afirmar como universal. O que se dades, de pessoas que vivem em relação com
entende hoje por ‘direitos humanos’ é o que o outro, que se define a partir do encontro do
essa cultura particular disse se tratar de um Eu com o tu, e da superação das linhas ide-
universal. Sempre que se fala em ‘universa- ológica que dividem o Norte do Sul (a ‘linha
lidade’, tem-se um processo de imposição abissal’ a que se refere Boaventura de Souza
dos valores e das ideias dominantes de uma Santos) e o público do privado. Com razão,
cultura sobre as demais. Inegavelmente, na Herrera Flores7(14) dizia que
construção da categoria jurídica ‘direitos
humanos’ está embutida uma noção de su- [...] o direito, o pensamento e a prática jurí-
perioridade (espiritual, existencial, política, dica comprometida com os direitos humanos
cultural, bélica etc.) de uma cultura, baseada de todas e todos podem converter-se na pau-
na crença, acompanhada das melhores in- ta política, ética e social que sirva de guia à
tenções (as mesmas que enchem o inferno construção dessa nova racionalidade, sempre
e quando os retirarmos da jaula de ferro que Declaração Universal dos Direitos Humanos
os mantém presos na ideologia de mercado e (1948), que consagrou o direito a uma vida
no correlato formalismo jurídico. adequada para a saúde e bem-estar. Já nesse
momento, a concepção de saúde transcende
Todavia, pode-se também pensar em a mera perspectiva biomédica: não se trata
adotar uma definição puramente formal ou de assegurar tratamentos visando à ausência
estrutural de direitos humanos: são direitos de doenças ou enfermidades, mas de apontar
humanos todos os direitos subjetivos (qual- para uma concepção de direito à saúde que
quer expectativa positiva, de uma prestação, englobe o bem-estar físico, mental e social,
ou negativa, de não sofrer lesões, adstrita a ao mesmo tempo que assegure um conjunto
uma pessoa) que correspondam a todos e a de práticas e vivências benéficas à vida das
todas pelo simples fato de serem pessoas. O pessoas. Ainda sobre esse conceito ampliado
importante em uma perspectiva emancipa- de saúde, há a Declaração de Alma-Ata de 1978,
dora, seja diante de um conceito substancial, que não só enfatiza a atenção primária à saúde
seja diante de um conceito formal, é que como também relaciona esse direito a diferen-
a expressão ‘direitos humanos’ retrate um tes áreas, como a social e a econômica.
instrumento de libertação do indivíduo e de O direito à saúde pública de qualidade é
restauração da capacidade de cada pessoa assegurado na Constituição da República de
concreta relacionar-se inteiramente com as 1988, mais precisamente nos arts. 6º (que o
outras e com a natureza. consagra como um dos direitos sociais fun-
Ao lado dos direitos liberais (negativos), damentais), 193 (que relaciona ordem social
chamados de direitos de primeira geração e ao bem-estar e à justiça social) e 196 (que
típicos do Estado de direito liberal, que es- afirma ser um direito de todos e dever do
tabelecem deveres negativos (de não agir), Estado, garantido mediante políticas sociais
existem direitos sociais que integram o rol e econômicas que visem à redução do risco
dos diretos humanos. Trata-se de direitos de doença e de outros agravos e ao acesso
vitais e, não raro, também são consagradas universal e igualitário às ações e serviços
nas Constituições como direitos fundamen- para sua promoção, proteção e recuperação).
tais. Dentre os direitos humanos de natureza A racionalidade neoliberal, que hoje con-
social, típicos do pós-guerra e reflexos da diciona o modo de ver e de atuar no mundo,
Guerra-Fria (direitos que foram reconheci- transformou o ‘comum’ em privado, o ‘direito
dos pelos detentores do poder político para fundamental’ (entendido como limite in-
tentar reduzir os riscos de uma revolução transponível ao exercício do poder) em
comunista protagonizada pelos trabalhado- mercadoria, a vida e a dignidade da pessoa
res), destacam-se os direitos à alimentação, humana em objetos negociáveis. Da mesma
ao trabalho digno, à habitação, à informação, maneira que o egoísmo foi transformado
à educação e à saúde. em virtude, a doença e a crise do sistema de
Se os direitos de natureza liberal são nega- saúde pública passaram a ser vistas como
tivos, e correspondem a vedações (‘direitos oportunidade para alguns poucos lucrarem e
de’), os direitos de natureza social são positi- acumularem capital.
vos, geram expectativas de comportamento O Estado na pós-democracia deixou de
alheio (‘direitos a’) e correspondem a obri- ser o promotor e o garantidor dos direitos
gações de agir, deveres públicos de fazer. O fundamentais para assumir a função política
direito à saúde, portanto, enquadra-se entre de regulador das expectativas do mercado
os direitos humanos de natureza social. e dos detentores do poder econômico. O
A relação entre direitos humanos e direito, por sua vez, deixou de ser um regula-
saúde acaba formalizada por intermédio da dor social para acabar transformado em mais
um instrumento para o mercado, ele mesmo digna para todos. Uma mercadoria oferecida
transformado em mercadoria; o cidadão, em por mercadores especializados, que moldam
consumidor. Com isso, a solidariedade, a al- a ‘saúde’ ao gosto de critérios de eficiência
teridade e, em consequência, o diálogo são economicista, mesmo que, para isso, seja
negados, enquanto a diferença e os conflitos necessário suprimir direitos ou prejudicar a
capazes de gerar lucros são incentivados. qualidade de vida das pessoas.
O Estado pós-democrático enfoca atender
ao projeto dos detentores do poder econômi-
co, e isso significa, na área da saúde, induzir O que fazer?
medidas que incentivem a saúde privada, os
planos de saúde, a terceirização de serviços e Pode-se afirmar que a passividade da popu-
o desmonte do Sistema Único de Saúde, tudo lação brasileira diante das restrições, das vio-
como forma de aumentar a produtividade (ou lações e da falta de efetividade dos direitos
gerar endividamento, o que interessa ao capita- fundamentais, entre eles do direito à saúde
lismo financeiro) das empresas que exploram a pública de qualidade, constitui um dado
saúde, estabilizar o mercado (leia-se: proteger que, provavelmente, foi levado em conside-
os lucros dos detentores do poder político), ração nas opções políticas (porque o Estado
exercer o controle da qualidade de vida da po- Pós-Democrático resulta de uma opção de
pulação e facilitar a acumulação. Essa lógica natureza política) tomadas em meio às lutas
eficientista, que atende a critérios contábeis e envolvendo agentes e Instituições diversas, a
financeiros, na qual a busca de efeitos adequa- partir de variados interesses materiais e sim-
dos à razão neoliberal afasta qualquer preten- bólicos, que levaram à pós-democracia.
são do Estado voltar-se à realização dos direitos Mudar esse estado inconstitucional de
e garantias fundamentais (efetividade constitu- coisas na área da saúde pública passa necessa-
cional), em especial do direito à saúde pública riamente por um processo de ressimbolização
de qualidade, acaba incorporada pelos cidadãos do mundo. É urgente construir um mundo em
e até por operadores do sistema de saúde, não que a vida digna não seja um privilégio e no
só por questões ideológicas, mas também como qual a saúde de uma pessoa deixe de ser ne-
fórmula para assegurar vantagens pessoais. gociada para gerar lucro. É preciso construir
Com o desaparecimento do valor ‘saúde’, uma cultura democrática, comprometida com
a palavra retorna para nomear algo que a realização dos direitos fundamentais de cada
não passa de um produto, de uma merca- pessoa e que imponha limites ao poder, em es-
doria sem forma ou conteúdo estável, sem pecial ao poder econômico. s
conexão com projeto constitucional de vida
Referências
DOI: 10.1590/0103-11042018S304
Introdução
Vivemos em uma sociedade marcada pelo constante fluxo de comunicação. Televisores, rádios,
celulares, computadores e outros meios permeiam nosso cotidiano. Por meio deles, recebe-
mos conteúdos que nos ajudam a compreender o mundo, formar nossa identidade, elencar os
temas da conversa com amigos, familiares e colegas de trabalho, construir opinião e participar
da vida política do País. No entanto, apesar da centralidade que os meios de comunicação
adquiriram, eles ainda são tratados majoritariamente como espaços privados; já os conteúdos,
como mercadorias trocadas pela publicidade e pela própria audiência. Como resultado disso,
temos a exclusão das maiorias sociais da mídia e o controle da informação.
No Brasil, desde os anos 1930, quando o sistema começou a ser efetivamente organizado,
optou-se pela adoção do modelo comercial para a prestação do serviço de radiodifusão, man-
tendo o controle centralizado no Poder Executivo, especialmente quanto à competência de
conceder outorgas. O modelo privilegiou a acomodação de interesses entre os agentes pri-
vados e o Estado, caso da separação da regulação da infraestrutura e do conteúdo. Na esteira
desse processo, a radiodifusão tornou-se marcada pela concentração da propriedade; presen-
ça dominante de grupos familiares e vinculação às elites políticas locais1, com consequências
seríssimas para a nossa democracia.
Afinal, parte-se da compreensão de que democratizar os meios de comunicação é fun-
1 Intervozes– Coletivo damental para garantir pluralidade de agentes e diversidade de conteúdos e opiniões. Essa
Brasil de Comunicação premissa está respaldada pela Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da
Social – São Paulo (SP),
Brasil. Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)2. Ela, em seu princípio 12, estabelece
Orcid: https://orcid. que monopólios e oligopólios
org/0000-0001-9993-
875X
bia@intervozes.org.br devem estar sujeitos a leis anti-monopólio, uma vez que conspiram contra a democracia ao res-
2 Intervozes – Coletivo tringirem a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à
Brasil de Comunicação informação.
Social – São Paulo (SP),
Brasil. Universidade Federal
do Ceará (UFC) - Fortaleza Em documento de 2009, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH foi
(CE), Brasil.
Orcid: https://orcid. ainda mais explícita ao afirmar que os Estados membros deveriam promover um enfoque
org/0000-0002-3210- pluralista da informação, fomentar o pleno exercício da liberdade de expressão, o acesso aos
4969
mb.helena@gmail.com meios de comunicação e a diversidade de proprietários e fontes por meio, entre outros, de
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 41-53, NOVEMBRO 2018
42 Barbosa B, Martins H
por assinatura, regra estabelecida após a apro- de negócios focado em explorar, ao máximo,
vação da Lei nº 12.485, em 2011. O texto proíbe a capacidade comercial do tempo de TV e a
que empresas de telecomunicações controlem disseminação de conteúdos a partir das cha-
empresas de radiodifusão e vice-versa e impede madas ‘cabeças de rede’, mesmo as transmis-
que os serviços de cada setor sejam prestados sões locais têm uma narrativa praticamente
por um grupo que atua no outro. Contudo, em uniforme, baseada no eixo Rio-São Paulo e
relação à televisão aberta, ao rádio, aos impres- que expressam interesses da classe, do gênero
sos e mesmo à internet, não há limitação. e da etnia das pessoas que os controlam.
Nem o processo de digitalização da televi-
são aberta, iniciado em 2006 e ainda em curso,
Os resultados da possibilitou a desconcentração do setor, já
concentração na que o padrão de TV digital adotado, escolhi-
do pelo Estado sob pressão das empresas de
propriedade dos meios radiodifusão representadas pela Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
Em 2015, a pesquisa Mídia Dados Brasil, (Abert), privilegiou a destinação do espectro
feita pelo Grupo de Mídia de São Paulo6, para a transmissão de sons e imagens em alta
apontava que, apenas com a televisão, a Rede definição – impedindo a ocupação deste bem
Globo chegava a 98,6% dos municípios bra- público por mais agentes.
sileiros; o SBT, a 85,7%; a Record, a 79,3%; já Esse predomínio de poucos grupos comer-
a Band alcançava 64,1% e a Rede TV, 56,7%. ciais controlando a radiodifusão, como afir-
Nenhuma outra emissora chegava a dois mado anteriormente, não é recente. Desde
dígitos. A concentração no setor televisivo que a primeira emissora de rádio se instalou
no Brasil também é aguda quando o tema é no País, nos anos 1930, ele vem sendo pos-
a audiência. Segundo dados do Kantar Ibope sibilitado, por um lado, pela pressão direta
de 2016, a líder Globo obteve naquele ano, em dos capitais particulares e, por outro, pela
média, 36,9%; o SBT, 14,9%. Bem próximo a postura omissa e conivente do Estado brasi-
isso, a Record chegou a 14,7%; enquanto a leiro. Como resultado disso, historicamente,
Band, a 4,1%. Todas as demais emissoras as empresas têm definido as políticas de co-
somadas totalizaram 28,9%. municação. Exemplo ilustrativo dessa lógica,
De acordo com o comparativo do Media o Código Brasileiro de Telecomunicações
Ownership Monitor (MOM), aplicado em (CBT), de 1962 – até hoje a principal lei que
2017 no Brasil pela organização Repórteres rege o setor –, foi bastante influenciado pelas
Sem Fronteiras em parceria com o empresas, que se organizaram e constituíram
Intervozes, o Brasil apresenta o cenário mais a Abert. À época, todos os 52 vetos ao CBT
grave de riscos ao pluralismo em relação aos feitos pelo então Presidente João Goulart no
indicadores de riscos à pluralidade na mídia sentido de ampliar a diversidade de meios
de outros dez países analisado pela iniciativa. no País foram posteriormente derrubados
De acordo com o MOM, apesar de toda a pelo Congresso Nacional por atuação da
diversidade regional existente no Brasil e das Abert7. Aos problemas então constatados
dimensões continentais de nosso território, a por Jango, como o largo prazo das con-
concentração exorbitante dos quatro princi- cessões (15 anos para televisão e 10 para
pais grupos de mídia vem crescendo ainda rádio), somaram-se outros nos últimos
mais diante das estratégias de adaptação de anos. Aprovada quando a transmissão de
tais grupos ao contexto de convergência tec- TV em cores ainda estava em fase de testes,
nológica e do uso de múltiplos dispositivos hoje a lei não responde à reconhecida im-
de comunicação. Ademais, com um modelo portância sobre o papel das comunicações
também deixam claro que quem estiver Constituição, que fixa que a prestação de ser-
no gozo de imunidade parlamentar ou de viços públicos sob o regime de concessão ou
função que assegure foro especial não poderá permissão deverá ocorrer sempre por meio de
exercer a função de diretor ou gerente de licitação. Portanto, se um concessionário não
concessionária, permissionária ou autoriza- deseja ou não tem mais condições de prestar o
da de radiodifusão. serviço de radiodifusão, sua outorga deve ser
Em defesa da aplicabilidade das normas devolvida ao Estado e repassada a outro pres-
citadas, o Ministério Público Federal (MPF) tador mediante nova licitação.
ajuizou ações civis públicas na Justiça A transferência acertada entre pares, sem
Federal contra parlamentares proprietários concorrência ou debate público, impede que
de canais de televisão e de rádio que teriam outros grupos da radiodifusão privada, pública
votado em causa própria, entre janeiro de ou comunitária possam ter acesso às licenças.
2003 e dezembro de 2005, na Comissão Sem o procedimento licitatório, existente exa-
de Ciência, Tecnologia, Comunicação e tamente para garantir legalidade, moralida-
Informática da Câmara Federal. Desde 2015, de, impessoalidade e publicidade em todo o
o órgão tem movido ações em diferentes processo (art. 10 do Decreto nº 52.795/1963),
estados pedindo a anulação de outorgas con- a possibilidade de novas vozes ocuparem esse
cedidas a emissoras controladas por deputa- espaço público acaba sendo inviabilizada.
dos federais e senadores. Já houve decisões Vale lembrar ainda o fenômeno, cada vez
favoráveis ao pleito em primeira instância. mais frequente, do uso totalmente privado e em
No Supremo Tribunal Federal (STF), desrespeito ao interesse público na gestão das
também tramita, desde 2011, uma Arguição por outorgas de rádio e TV: o arrendamento, isto é,
Descumprimento de Preceito Fundamental a comercialização de parte do espaço da pro-
(ADPF), elaborada pelo Intervozes e ajuizada gramação para terceiros. Ele se baseia na nego-
pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), ciação de um bem público também sem prévia
tratando do tema. A ação questiona a outorga licitação. Ao terceirizar parte de sua grade –
e a renovação de concessões de radiodifusão muitas vezes apenas por critérios econômicos,
a pessoas jurídicas que tenham políticos com de quem paga mais –, o concessionário escolhe
mandato eletivo em seu quadro social e pede – e, assim, beneficia – um terceiro que não par-
a proibição da diplomação e a posse de políti- ticipou da competição pela licença, mas que vai
cos que sejam, direta ou indiretamente, sócios ocupar um espaço público. Na prática, ocorre
de pessoas jurídicas concessionárias de radio- uma subconcessão, algo não previsto nas regras
difusão. Apesar da importância da matéria, para a radiodifusão no País. Mesmo se fosse
ainda não há previsão de quando a ADPF será considerada a norma que trata dos serviços pú-
votada. A relatoria está nas mãos do ministro blicos, Araújo10 sustenta que ainda há flagrante
Gilmar Mendes. desrespeito, pois a subconcessão somente é
Outra prática que viola os princípios da admitida no serviço público “desde que expres-
Constituição Federal é a transferência direta samente autorizada pelo poder concedente”,
de outorgas, que ocorre quando uma pessoa devendo ser sempre precedida de concorrên-
jurídica passa para outra (na maioria das cia, segundo o artigo 26 da Lei nº 8.987/1995.
vezes, por meio de contratos comerciais de As empresas costumam se defender ale-
gaveta) a outorga para prestação do serviço gando a possibilidade de venda de espaço da
de radiodifusão. Embora a legislação na- programação para publicidade. No entanto, o
cional autorize a prática, determinando CBT permite a comercialização de até 25% do
que a transferência depende de anuência tempo na programação das estações de radio-
prévia do Poder Executivo, essa autoriza- difusão8 (art. 124 da Lei nº 4.117/1962), ou seja,
ção colide frontalmente com o artigo 175 da 6 horas por dia, incluindo todos os intervalos
comerciais. Essa demarcação também está co- tipos de violações cor, etnia, religião, condição
locada no Decreto nº 52.795/1963 (art. 28,12, c), socioeconômica, orientação sexual ou proce-
mas é flagrantemente descumprida. dência nacional; 7. Identificação de adolescen-
A venda de tempo de publicidade acima tes em conflito com a lei; 8. Violação do direito
do limite legal agride todo o processo de ao silêncio; 9. Tortura psicológica e tratamento
outorga e constitui infração à ordem econô- desumano ou degradante.
mica (art. 36 da Lei nº 12.529/2011). Se para Entretanto, para analisar a programa-
obter uma concessão ou permissão é preciso ção veiculada, sempre posteriormente, e
apresentar uma proposta de programação e decidir se o conteúdo transmitido violou ou
se essa programação é alterada depois, com não as normas estabelecidas, o Ministério
a venda de parcelas que, às vezes, chegam a da Ciência, Tecnologia, Inovações e
100% da grade, está claro que há um proble- Comunicações considera apenas duas
ma. O entendimento do então Ministério das previsões bastante específicas em nossa
Comunicações, expresso em uma nota infor- legislação. Ambas estão no Regulamento
mativa em 2012, é de que o arrendamento não dos Serviços de Radiodifusão (Decreto nº
foi objeto de regulamentação e, por isso, não é 52.795/63): o art. 28, 12, b) não transmitir
possível atuar em relação a esses contratos9, programas que atentem contra o sentimento
o que acaba viabilizando o uso privado de um público, expondo pessoas a situações que,
bem público sem processos públicos e trans- de alguma forma, redundem em constran-
parentes. Hoje, a prática de arrendamentos é gimento, ainda que seu objetivo seja jorna-
praticada sobretudo por igrejas. lístico; e o art. 122, que considera infração
Por fim, e não menos importante, há inú- “promover campanha discriminatória de
meros abusos também no conteúdo veicula- classe, cor, raça ou religião”4. Todo o restante
do sobre os meios de comunicação. Se o art. do marco regulatório brasileiro sobre o tema
221 da Constituição estabelece que a progra- (Constituição Federal, Código Civil, Código
mação das emissoras deve dar preferência a Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente,
finalidades educativas, artísticas, culturais e além de tratados internacionais ratificados
informativas, o cotidiano do que recebemos pelo País) não é levado em conta.
em nossas casas está bastante longe disso. De Como se nota, muito da reforma das comu-
programas humorísticos a novelas, passando nicações que precisa ser feita depende de apri-
pelos chamados ‘programas policialescos’, a moramentos nos marcos normativos do Brasil.
quantidade de violações de direitos humanos No entanto, caso as poucas regras já existentes
no conteúdo veiculado na TV é assustadora. fossem efetivamente respeitadas, o cenário de
Em 2015, pesquisa realizada pela Andi – concentração e de exploração ilegal das outor-
Comunicação e Direitos, em parceria com gas poderia ser enfrentado, com ganhos impor-
o Intervozes10, a artigo 19 e o MPF, revelou tantes para a diversidade de pluralidade dos
que, ao longo de 30 dias, em 28 programas meios e, consequência disso, da sociedade.
policialescos, de 10 estados diferentes, mais
de 4.500 violações de direitos haviam sido
praticadas no período11. Ausência do sistema público
O estudo organizou as violações em nove e de políticas de incentivo à
tipos: 1. Desrespeito à presunção de ino-
cência; 2. Incitação ao crime e à violência;
comunicação comunitária
3. Incitação à desobediência às leis ou às
decisões judiciárias; 4. Exposição indevida de Além de medidas de coibição à concentra-
pessoa(s); 5. Exposição indevida de família(s); ção da propriedade no mercado privado
6. Discurso de ódio e Preconceito de raça; Os de comunicações, a existência de sistemas
públicos e comunitários de radiodifusão faz Provisória (MP) 744, uma das primeiras a ser
parte dos padrões internacionais de garan- enviadas pelo então novo governo Michel
tia de diversidade e pluralidade na mídia. Temer ao Congresso Nacional. Aprovado pelos
Como mencionado anteriormente, essa parlamentares e convertido na Lei nº 13.417/17,
complementaridade está prevista enquanto o texto excluiu da normativa até então em vigor
princípio há 30 anos em nossa Constituição os dois principais mecanismos de autonomia da
Federal. Desde que a radiodifusão chegou empresa de comunicação pública em relação ao
aqui, o Brasil conta com emissoras educati- governo federal: o Conselho Curador, espaço
vas de rádio e televisão em âmbito estadual. que contava com maioria de participação da
entretanto, foi somente a partir de 2008, sociedade civil e que tinha poder deliberati-
com a promulgação da Lei nº 11.652, que o vo sobre os rumos da empresa, e o mandato
embrião de um sistema público de comuni- para presidente da EBC, que impedia que a
cação passou a ser gestado. gestão direta da empresa ficasse subordinada à
A lei instituiu os princípios e objetivos dos vontade do governo federal.
serviços de radiodifusão pública – oferecer O então presidente da EBC, jornalista
mecanismos para debate público acerca de Ricardo Melo, foi demitido. Com a mudança no
temas de relevância nacional e internacional; texto da lei, o caráter público da EBC foi signifi-
desenvolver a consciência crítica do cidadão, cativamente comprometido. Programas na TV
mediante programação educativa, artística, Brasil foram extintos, trabalhadores/as foram
cultural, informativa, científica e promoto- demitidos em função de suas posições políticas
ra de cidadania; fomentar a consolidação da – muitos seguem na empresa, mas perseguidos
democracia e a participação na sociedade, –, os casos de assédio moral se multiplicaram,
garantindo o direito à informação, à livre ex- e as redações das emissoras de rádio e da tele-
pressão do pensamento, à criação e à comu- visão pública sofrem constantes episódios de
nicação; apoiar processos de inclusão social censura interna, visando barrar a divulgação
e socialização da produção de conhecimento de informações que possam gerar críticas ao
garantindo espaços para exibição de produ- governo Temer.
ções regionais e independentes, entre outros Em parecer emitido sobre a MP 744,
– e autorizou o Poder Executivo a constituir na época de sua tramitação no Congresso,
a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). a Procuradoria Federal dos Direitos do
O texto também instituiu a Contribuição Cidadão (PFDC), afirmou:
para o Fomento da Radiodifusão Pública,
visando garantir recursos para a ampliação A estrutura existente na EBC reunia um feixe
da penetração desse serviço, e previu a for- de órgãos que, com suas competências con-
mação da Rede Nacional de Comunicação certadas, impunham limites ao exercício do
Pública, em articulação com as emissoras personalismo de seu diretor-presidente, de
educativas nos estados. seus órgãos de cúpula e traziam em si, so-
Em seus primeiros oito anos de vida, bretudo através do Conselho Curador, uma
a EBC enfrentou inúmeros desafios para requintada forma de controle social que era
colocar em prática os objetivos previstos na exercido em nome do cumprimento dos prin-
lei, de obstáculos para a expansão da trans- cípios e objetivos, bem assim dos valores
missão de seu sinal, em função do conges- constitucionais a que deve atender o serviço
tionamento do espectro em várias capitais público de comunicação12.
do País, à falta da priorização de recursos no
âmbito do Executivo federal. Em 2016, en- Na ocasião, o órgão já alertava que, como
tretanto, o projeto de constituição do sistema consequência da fragilização estrutural
público foi abortado por meio da Medida produzida, abria-se o espaço para a prática
este ano pelo Centro Regional de Estudos os prejuízos aos cofres públicos não sejam
para o Desenvolvimento da Sociedade da maiores. O satélite custou R$ 2,7 bilhões e
Informação (Cetic.br), do Comitê Gestor está há mais de um ano em órbita, sem ope-
da Internet no Brasil. Quando o recorte re- ração. Não há previsão de quando as novas
gional e de classe é feito, fica claro como o conexões à internet estarão disponíveis.
interesse financeiro das operadoras tem Também na contramão da universaliza-
deixado milhões de brasileiros e brasileiras ção do acesso à rede, o governo federal tem
desconectados. Nas classes D e E, apenas tentado aprovar no Congresso Nacional o
30% das residências têm acesso à banda Projeto de Lei da Câmara (PLC) 79/2016,
larga fixa. Na região Norte, somente 48%. No que altera a Lei Geral de Telecomunicações
Nordeste, 49%. Já no Sudeste, são 69% com e entrega mais de R$ 100 bilhões em infra-
conexão. O estudo também mostrou que 28% estrutura de rede pública, hoje exploradas
das pessoas que não acessam a rede em casa pelas operadoras de telefonia fixa mediante
não o fazem porque não há disponibilidade concessão, para as empresas privadas. O PLC
de oferta na região onde moram. transforma as concessões em autorizações,
Nos últimos anos, o crescimento do acesso à retirando das empresas as obrigações de
internet se deu essencialmente por meio de co- universalidade, modicidade tarifária e conti-
nexões móveis, o que significa que grande parte nuidade na oferta do serviço. Como 40% das
da população está sujeita a planos com pacotes conexões de banda larga fixa hoje são feitas
de dados bastante reduzidos e que limitam de por meio da mesma rede que leva o serviço
maneira significativa sua navegação na rede – de telefonia fixa às residências, o impacto da
e, consequentemente, o exercício dos direitos medida pode ser enorme.
acima mencionados. Apesar de, desde 2014, o Se a lógica privatista não prevaleces-
Marco Civil da Internet afirmar o acesso à rede se, o Estado brasileiro poderia usar os
como essencial para o exercício da cidadania mais de R$ 15 bilhões já recolhidos pelo
– o que deveria resultar em políticas públicas Fundo de Universalização dos Serviços de
para sua universalização –, o poder público Telecomunicações (Fust) – que tem sido
caminha no sentido contrário. usados nos últimos governos para fazer
Programas como o Plano Nacional de superavit primário – e os R$ 10 bilhões em
Banda Larga, de 2010, que tinha o objetivo multas devidas pelas empresas de telefonia
de fortalecer a Telebras enquanto empresa por descumprimento de obrigações rela-
pública de telecomunicações, tornando- cionadas com a prestação dos serviços para
-a capaz de garantir a oferta do serviço de garantir que todo cidadão tivesse acesso
conexão na ponta, em parceria com peque- à internet de maneira plena e inclusiva.
nos provedores locais, foram concluídos sem Infelizmente, o que tem ocorrido, diante
que suas metas fossem atingidas. Em 2017, o do aumento mesmo precário das conexões
governo federal anunciou a privatização da móveis, é o crescimento da desigualdade in-
exploração da maior parte da banda de seu formacional e de direitos entre os conectados
primeiro satélite geoestacionário, desenvol- e os não conectados – ainda hoje, segundo o
vido justamente para promover a inclusão Cetic.br, 33% da população.
digital em áreas de difícil acesso à infraes-
trutura de cabos. O leilão do satélite não teve
interessados, e coube à Telebras operá-lo. Novos monopólios digitais
Um contrato, que chegou a ser judicializado,
foi firmado com a empresa norte-americana Dentro do universo dos conectados, as ad-
Viasat, mas a Justiça brasileira autorizou versidades não são menores. Se a chegada
recentemente sua manutenção, para que da internet trouxe com ela uma promessa,
inclusive de políticas que objetivem dividir no centro das decisões regulatórias e do de-
de forma equitativa o espectro eletromag- senvolvimento das políticas públicas para o
nético, de modo que os meios sejam espaços setor. Mudar esse quadro requer uma trans-
mais plurais e diversos17. formação estrutural no âmbito de comunica-
No Brasil, a Constituição Federal dedica ções. Todavia, uma agenda de transição, que
um capítulo ao tema da comunicação, embora garanta o direito à comunicação no tempo
não o reconheça como direito. Em 2013, pela presente, é, sim, possível. Basta vontade po-
primeira vez uma lei brasileira, o Estatuto da lítica, inversão de prioridades e mecanismos
Juventude18, citou de explicitamente o direito de participação popular na condução dos
à comunicação. Ele estabelece que processos. Trata-se de uma agenda da qual
nossa democracia não pode mais prescindir.
o jovem tem direito à comunicação e à livre
expressão, à produção de conteúdo, individu-
al e colaborativo e ao acesso às tecnologias Colaboradores
de informação e comunicação.
Barbosa BC e Martins H contribuíram para
Como visto, ainda estamos longe de reco- a elaboração do artigo com a pesquisa das
nhecer e assegurar tal direito, e de colocá-lo informações e redação do texto. s
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incluyente. 2009 [acesso em 2015 maio 10]. Dispo- em: https://www.ancine.gov.br/media/SAM/Estu-
DOI: 10.1590/0103-11042018S305
RESUMO Este artigo analisou avanços na redução das desigualdades no Brasil durante o período
de 2003 a 2015, para além da perspectiva de renda. Os dados refletem que, embora transfor-
mações relevantes tenham ocorrido, mesmo assim, o Brasil persiste como um dos países mais
desiguais do mundo. Entretanto, ao colocar uma lupa nos dados de acesso a bens e serviços dos
5% e dos 20% mais pobres disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD), os achados se contrapõem ao lugar comum de que só se promoveu acesso à renda e ao
consumo dos mais pobres no período estudado, inexistindo alterações significativas no quadro
de acesso a direitos básicos, políticas públicas de educação, saúde e de infraestrutura.
4 Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS)
– Porto Alegre (RS), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-6140-
6800
gabrielrhoe@gmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás 55
estão excluídos de praticamente todo o acesso humanizada sobre as faces que a desigual-
a direitos, bens e serviços produzidos pelo con- dade pode assumir em uma sociedade como
junto da sociedade. a nossa, agregando empatia ao debate e
O outro estudo refere-se ao Relatório da ampliando uma visão crítica que apoie a
Comissão sobre Medição do Desempenho compreensão sobre as múltiplas situações
Econômico e Progresso Social instituída pela de privações de direitos e as políticas que
União Europeia, coordenado por Joseph podem contribuir estrategicamente para a
Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi4, e mitigação das desigualdades. Há questões
apontam as limitações da comparação entre determinantes aqui. O acesso – ou o não
o Produto Interno Bruto e rendimentos acesso – à água, saneamento, energia, edu-
entre países, em função dos distintos bens e cação, saúde, moradia e bens de consumo,
serviços públicos assegurados aos cidadãos como geladeira, telefone, entre outros, não
em diferentes contextos. Essa análise cor- são dimensões periféricas da desigualdade.
robora as preocupações apresentadas neste A urgência e a prioridade de acesso a esses
artigo. Os autores chamam a atenção para direitos aos mais pobres podem ocorrer con-
a dificuldade de comparar, por exemplo, comitantemente às mudanças estruturais
gastos com saúde entre Estados Unidos que demandam tempo de implementação, ou
da América (EUA) e França, serviço larga- seja, são a longo prazo.
mente privado no primeiro, e público no O que para parte da população é um bem de
segundo. Nos levantamentos dos países que consumo, para os mais pobres é um ‘não direito’
decidem ampliar a oferta pública de alimen- e um limitante, muitas vezes estrutural, às suas
tação escolar, educação, saúde e assistência oportunidades de desenvolvimento e à possibi-
social, há que considerar a ‘gratuidade’ do lidade de uma vida digna e segura.
acesso em relação à necessidade de compra Uma visão reducionista da desigualdade
de serviços nos demais países, em que essa conduz sempre a uma visão reducionista da
oferta não é generalizada. Assim, a análise da emancipação e da liberdade humana. A busca
desigualdade de renda pode não estar incor- pela desnaturalização da desigualdade passa
porando uma parte expressiva do bem-estar pela conscientização de que se trata de um
que não é comprado no mercado, mas que é conjunto de injustiças. A desigualdade social é
provido pelo Estado. sempre uma relação política passível de ser en-
É absolutamente importante discutir a frentada pela ação do Estado e afirmada pelas
desigualdade do ponto de vista da renda, lutas coletivas por direitos, cujo efeito demo-
olhando o estoque de capital e o patrimônio crático pode ser desestabilizador de privilégios
acumulado pelos ricos. No entanto, o olhar historicamente reproduzidos pelas elites.
sobre a desigualdade não pode ignorar a ne-
cessidade de superar a assimetria de acesso
a bens e serviços. Uma parcela expressiva Considerações
da população vem vivendo à margem de metodológicas
condições mínimas de vida. Elevá-las a um
patamar de dignidade não pode ser conside- Para construir os dados apresentados neste
rado um valor secundário no debate sobre artigo, escolhemos dois recortes popula-
desigualdade. Esse tema é, sem dúvida, um cionais: os 5% e os 20% mais pobres com-
dos mais relevantes aprendizados e evidên- parados ao universo da população usando
cias do período de conquistas sociais que o os dados da Pesquisa Nacional por Amostra
Brasil viveu recentemente. de Domicílios (PNAD)5 de 2002 a 2015,
Assim, queremos adicionar ao escopo da que utiliza para o cálculo dos indicadores
análise econômica uma perspectiva mais dos mais pobres: o conjunto da população,
Figura 1. Percentual da população de 15 a 17 anos que frequenta escola no ensino médio ou etapa de ensino posterior, por faixa de renda, e de 18 a 24
anos que frequenta escola no ensino superior (inclusive mestrado e doutorado), por faixa de renda
70% 20%
18%
18%
60%
57,9%
16%
50%
14%
18,9
40,8% 43,4%
12%
40%
10% 9,9%
39,0%
30%
8%
Total da população
30,1
20% 6% 20% mais pobres
16,3%
4,7% 5% mais pobres
4%
10%
10,7% 2%
2,5%
0,3%
0% 0% 0,2%
2002 2009 2015 2002 2009 2015
Fonte: IBGE/PNAD5.
Figura 2. Percentual de domicílios particulares permanentes com acesso à água por rede geral, poço ou nascente com canalização interna, por faixa de
renda, e percentual de domicílios particulares permanentes com energia elétrica, por faixa de renda
99,7%
100% 100%
95,2% 99,2%
88,6% 96,7%
90% 98,6%
85,4%
95%
80%
76,0%
70% 63,3%
90%
88,5%
60%
50% 85%
49,6%
40% 81,3%
Total da população
80%
30% 20% mais pobres
5% mais pobres
20%
75%
10%
0%
70%
2002 2009 2015 2002 2009 2015
Fonte: IBGE/PNAD5.
Um fenômeno a ser valorizado nessa inclu- foi exponencial, passando para 91,2% ( figura
são são os milhões que passam a integrar o 3). A ampliação da renda e do crédito, a de-
consumo, concorrendo para a dinamização soneração da linha branca e a chegada do
do mercado interno. Programa Luz para Todos em territórios sem
Em 2002, o acesso a refrigerador ou energia elétrica explicam parte do aumento
freezer chegava somente a 44,1% dos lares das aquisições desse bem durável pelas
mais pobres. O crescimento nesse segmento camadas mais pobres.
Figura 3. Percentual de domicílios particulares permanentes com geladeira ou freezer, por faixa de renda, percentual de domicílios particulares
permanentes com máquina de lavar, por faixa de renda, e percentual de pessoas de referência dos domicílios com posse de telefone celular, por faixa
de renda
100% 70%
98,2%
95% 95,0% 7,0
91,2% 60% 61,1%
90% 87,3%
85%
50%
80%
75%
40%
70%
33,9%
65% 43,2 30%
28,9%
60%
60,0%
20%
55% 18,1%
50%
10%
45% 5,4%
44,1%
40% 0% 2,9%
100%
90% 91,2%
86,6%
80%
79,3%
70%
60%
50%
40%
Total da população
34,6%
30% 20% mais pobres
5% mais pobres
20%
10% 8,7%
5,1%
0%
2002 2009 2015
Fonte: IBGE/PNAD5.
Figura 4. Taxa de mortalidade infantil no Brasil e por região (por 1.000 nascidos vivos) e média anual de atendimentos médicos e de enfermagem por
habitante na atenção básica
-53%
30 -47%
23,4 25
20 -37%
-36%
12,9 -33%
15
10
2002 2015
Diminuiu
45% 5
0
Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul
2,8 +75%
2,6
2,4
+78%
2,2
+64%
2,0 +60% +53%
1,8
1,6
1,4 +63%
1,2
1,0
0,8
0,6 2002
0,4 2015
0,2
0
Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul Brasil
Figura 5. Variação percentual do rendimento médio domiciliar per capita real entre 2002 e 2015, por quintis de renda
Total 38%
4º quintil 49%
3º quintil 68%
2º quintil 81%
Fonte: IBGE/PNAD5.
assistência social, prevista desde a Constituição do período foram fruto de decisão política,
Federal de 1988, ousou tocar na franja margina- afastando a aceitação de uma condenação
lizada da sociedade; e a resposta foi imediata: natural e inevitável à desigualdade. Registrar
milhões de jovens na escola na idade certa, que continuamos sendo uma nação extrema-
jovens negros e negras nas universidades, mente desigual não é suficiente. A desigual-
queda vertiginosa da mortalidade infantil. dade do Brasil pode e exige ser mudada.
Ao colocar uma lupa sobre os 5% e os
20% mais pobres da sociedade brasileira e
perceber o processo silencioso de inclusão Colaboradores
e redução de parte importante das desi-
gualdades ocorridas, esta perspectiva não se Campello T contribuiu para a análise e in-
encerra em si mesma, mas se soma às demais terpretação dos dados, revisão crítica do
abordagens que buscam compreender os conteúdo e aprovação da versão final do
caminhos para se trilhar a redução das de- manuscrito. Gentili P contribui signifi-
sigualdades. Há muitos desafios e muitas cativamente para a elaboração, redação e
dívidas ainda pendentes. revisão do artigo, aprovando sua versão final.
Este artigo joga luz sobre o que ocorreu Rodrigues M contribuiu para a concepção,
entre 2002 e 2015, evidenciando os resul- planejamento, análise e interpretação dos
tados decorrentes das políticas públicas e dados. Hoewell GR contribuiu para a análise
que estabeleceram novos patamares para a e interpretação dos dados, revisão crítica do
agenda brasileira de combate à pobreza e de conteúdo e aprovação da versão final do ma-
enfrentamento às desigualdades. Os avanços nuscrito. s
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118(1):1-41. Nascidos Vivos. Brasília, DF: Datasus; 2015.
Desestabilização do trabalho
Work destabilization
Marcio Pochmann1
DOI: 10.1590/0103-11042018S306
ABSTRACT This essay analyzes aspects of the destabilization of the world of labor present in the
crisis situations that mark the development of capitalism. The two main structural movements
to destabilize the sense of work are generally based on the exceptional progress of technological
advancement amid the intensification of intercapitalist competition and on the role of the State
regarding the regulation of the growing labor force surplus to the needs of the capital. In this
analytical dimension, we contrast the promises of ascension to the world of labor with the reality
of precariousness and organized resistance.
1 Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp),
Instituto de Economia
e Centro de Estudos
Sindicais e de Economia do
Trabalho – Campinas (SP),
Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-3940-
1536
pochmann@unicamp.br
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 67-77, NOVEMBRO 2018
68 Pochmann M
corporações transnacionais centralizam o con- constitucional (1891) no final do século XIX fa-
trole do sistema de valor operado fragmentada- voreceu a passagem para sociedade de classes
mente em tão somente 300 espaços territoriais movida pelo capitalismo no país herdeiro da
do planeta. A monopolização da produção e antiga sociedade escravista dependente da pri-
distribuição da riqueza em escala global torna mitiva economia mercantil primário-exporta-
a grande corporação transnacional mais econo- dora, incapaz de generalizar qualquer forma de
micamente poderosa que os Estados Nacionais. proteção social e do trabalho.
Somente nove países atualmente registram or- Também foi registrada inovadora con-
çamento público comparável ao faturamento figuração política a partir da Revolução de
dos grandes monopólios privados no mundo. 1930, responsável pelo desencadeamento de
Diante disso, avança a polarização entre inédito ciclo econômico de expansão conferi-
Estados Unidos e China, apontando para uma do pelo projeto de industrialização nacional.
possível transição no interior do centro dinâmi- Com isso, as condições materiais necessárias
co capitalista mundial. A nova fronteira de ex- à instalação do sistema de proteção social e do
pansão capitalista aberta a partir da Ásia, cujo trabalho foram sendo estabelecidas durante
vetor principal tem sido o rápido e considerável a transição da antiga e primitiva sociedade
processo de monopolização do capital por meio agrária para a moderna sociedade urbana e
das cadeias globais de valor, coloca em xeque a industrial, o que permitiu fundar as bases do
hegemonia estadunidense. Estado desenvolvimentista no Brasil.
O deslocamento geográfico do núcleo di- Atualmente, o impasse imposto pelo
nâmico mundial reflete historicamente o Golpe de Estado não deixa de expressar certa
complexo problema de assimetria capitalista reação de parte dos Estados Unidos, enquan-
decorrente da relação entre o centro dinâmi- to decadente centro dinâmico perante o
co e o conjunto de sua periferia. Enquanto avanço das relações do Brasil com os Brics,
a longa decadência do domínio inglês, no por exemplo. A experiência brasileira de
último quartel do século XIX, teve início com constituição da política externa altiva e ativa,
a emergência da segunda revolução industrial com a emergência da internacionalização
e com o fim do capitalismo de livre competi- da grande empresa nacional nos anos 2000,
ção, a grande depressão de 1929 consolidou a indicou um novo caminho de expansão em
hegemonia estadunidense sobre a Alemanha, pareceria com o centro dinâmico mundial
derrotada nas duas grandes Guerras Mundiais em formação e que se assenta na Ásia.
(1914-1918 e 1939-1945). Por fim, o terceiro determinante da deses-
Nos dias de hoje, a reorganização capita- tabilização do mundo do trabalho relaciona-se
lista abre oportunidade para nova articulação com a capacidade de o Estado organizar, pro-
entre centro dinâmico e periferia. No passado, duzir e sustentar no tempo diversas políticas
quando não imaginava solução próxima dis- públicas, especialmente a de proteção social
ponível, o Brasil soube construir convergência e do trabalho. Sabe-se que a principal experi-
política interna capaz de apontar nova direção ência de constituição do sistema de proteção
para o desenvolvimento nacional ante a cen- social e do trabalho transcorreu positivamente
tralidade externa concedida pela Inglaterra durante a interrupção da primeira onda de glo-
até os anos de 1910 e pelos Estados Unidos no balização capitalista verificada entre os anos de
segundo pós-guerra mundial. 1930 e de 1980.
No período entre as décadas de 1880 e 1930, Acontece que, nas décadas de 1870 e 1920,
por exemplo, o esforço nacional foi determi- com o auge da primeira onda de globalização
nante para que os novos rumos aparecessem ao capitalista liderada pelo Reino Unido, o Brasil
Brasil. A realização das reformas política (1881), reafirmou a sua posição subordinada e depen-
laboral (1888), na forma de governo (1889) e dente à antiga DIT. Na época, a dominância
das forças de mercado sobre a política tornava eficazes ao deslocamento da posição brasileira
os partidos existentes (Liberal e Conservador) na DIT de mero exportador de commodities na
no regime da Monarquia (1822 – 1889), equiva- década de 1920 para a 8ª economia industrial
lentes na defesa da não interferência do Estado mais importante do mundo em 1980. Mesmo
mínimo na economia e sociedade. assim, o sistema de proteção social e do tra-
Mesmo com a República Velha (1889 – balho não foi universalizado, mantendo o seu
1930), os princípios liberais foram mantidos, funcionamento na forma de monopólios sociais
mostrando-se insuficientes para estancar as desigualisadores de oportunidades e da ascen-
elevadas desigualdades e preconceitos for- são social para parcela da classe trabalhadora.
jados por quase quatro séculos de hegemo- Somente pela Constituição Federal de 1988
nia escravista. Ao ser identificado pela elite e com a experiência das políticas públicas
como inábil e indolente, a base da pirâmide universais na década de 2000 que o sistema
social foi excluída da estrutura produtiva, de proteção social e do trabalho avançou con-
ocupada crescentemente pela mão de obra sideravelmente no Brasil. Entretanto, foi pela
branca imigrante, base original da organiza- atual reestruturação capitalista imposta pela
ção do velho sindicalismo de ofício. segunda onda de globalização conduzida por
Qualquer iniciativa de regulação do grandes corporações transnacionais e sob a
mercado de trabalho, por exemplo, era con- dominância financeira que a capacidade do
siderada inconstitucional, inaceitável para Estado de sustentar políticas públicas passou
ser exercida pelo Estado mínimo. A questão a contida, trazendo repercussões negativas não
social, por conta disso, seguiu sendo tratada somente à proteção social e do trabalho.
como caso de polícia.
Somente com o interregno da primeira onda
de globalização capitalista no início do século Promessas e realidades
XX que mudanças mais significativas passaram
a ocorrer em relação à proteção social e do tra- Embalados certamente por certo determi-
balho no Brasil. Nesse sentido, as experiências nismo tecnológico e por saltos imaginados
de socialismo real representado pela Revolução na produtividade do trabalho imaterial, uma
Russa (1917), de gravidade na Grande Depressão nova gama de promessas foi sendo forjada
de 1929 e da trágica realização das duas grandes pelos ideólogos do desenvolvimento capitalis-
guerras mundiais, prosseguida pelo rearma- ta em direção à almejada sociedade do tempo
mento inserido na Guerra Fria (1947 – 1991), livre estendida pelo avanço do ócio criativo, da
favoreceram, em grande medida, a fase do de- educação em período integral e da contenção
senvolvimento de ouro no capitalismo regula- do trabalho heterônomo (apenas pela sobrevi-
do a partir da centralidade dos Estados Unidos vência). Penetrados cada vez mais pela cultura
ao longo da segunda metade do século XX. midiática do individualismo e pela ideologia da
Nesse sentido, percebe-se que, no Brasil, competição, o neoliberalismo seguiu amplian-
durante as décadas de 1930 a 1970, a transição do apoiadores no mundo.
da arcaica e longeva sociedade agrária para a Com isso, surgiu a perspectiva de que as
moderna sociedade urbana e industrial trans- mudanças nas relações sociais repercutiriam
correu acompanhada por reformas efetuadas inexoravelmente sobre o funcionamento do
nas esferas da organização do Estado desenvol- mercado de trabalho. Com a transição de-
vimentista. Destacam-se, por exemplo, a demo- mográfica, novas expectativas foram sendo
cratização do regime político, a generalização apresentadas. A propaganda de elevação da
do direito do trabalho, a expansão da instrução expectativa de vida para próximo de 100 anos
pública, entre outras. de idade, como exemplo, deveria abrir inédita
Todas elas se mostraram funcionais e perspectiva à postergação do ingresso no
mercado de trabalho para a juventude comple- democrático. Destaca-se que, na antiga socie-
tar o ensino superior, estudar a vida toda e tra- dade agrária, o começo do trabalho ocorria a
balhar com jornadas semanais de até 12 horas. partir dos 5 a 6 anos de idade para se prolongar
A nova sociedade pós-industrial, assim, até praticamente a morte, com jornadas de tra-
estaria a oferecer um padrão civilizatório balho extremamente longas (14 a 16 horas por
jamais alcançado pelo modo capitalista de dia) e sem períodos de descanso, como férias
produção e distribuição. Assim, foi sob este e inatividade remunerada (aposentadorias e
manto de promessas de maior libertação do pensões). Para alguém que conseguisse chegar
homem do trabalho pela luta da sobrevivên- aos 40 anos de idade, tendo iniciado o trabalho
cia (trabalho heterônomo) por meio da pos- aos 6 anos, por exemplo, o tempo comprometi-
tergação da idade no ingresso ao mercado do somente com as atividades laborais absorvia
de trabalho para somente depois do cum- cerca de 70% de toda a sua vida.
primento do ensino superior, bem como da Na sociedade industrial, o ingresso no
oferta educacional ao longo da vida, que o mercado laboral foi postergado para os 16
racionalismo neoliberal se constituiu. anos de idade, garantindo aos ocupados,
De certa forma, trouxe o entendimento de a partir daí, o acesso a descanso semanal,
que o esvaziamento do peso relativo da econo- férias, pensões e aposentadorias provenien-
mia nacional proveniente dos setores primário tes da regulação pública do trabalho. Com
(agropecuária) e secundário (indústria e cons- isso, alguém que ingressasse no mercado de
trução civil) consagraria expansão superior do trabalho depois dos 15 anos de idade e per-
setor terciário (serviços e comércio). Enfim, manecesse ativo por mais 50 anos teria, pos-
estaria por surgir a sociedade pós-industrial sivelmente, mais alguns anos de inatividade
protagonista de conquistas superiores aos remunerada (aposentadoria e pensão).
marcos do possibilitado desde a década de Assim, cerca de 50% do tempo de toda a
1930, possível sem luta, pois contrária às classes vida estaria comprometido com o exercício do
sociais em uma sociedade fundada no indiví- trabalho heterônomo. A parte restante do ciclo
duo portador de competitividade e promotor da vida, não comprometida pelo trabalho e pela
do seu próprio seguro de vida e previdência, sobrevivência, deveria estar associada à recons-
não mais dependente do Estado. trução da sociabilidade, estudo e formação,
Essas promessas, contudo, não se tornaram cada vez mais exigidos pela nova organização
efetivas, tampouco resultaram da imagina- da produção e distribuição internacionalizada.
da modernização neoliberal. Em pleno curso Isso porque, diante dos elevados e constan-
da transição para a sociedade de serviços, a tes ganhos de produtividade, tornou-se possível
inserção no mercado de trabalho precisa ser reduzir o tempo semanal de trabalho de algo ao
gradualmente postergada, possivelmente para redor das 40 horas para não mais que 20 horas.
o ingresso na atividade laboral somente após a De certa forma, a transição entre as socieda-
conclusão do ensino superior, com idade acima des urbano-industrial e pós-industrial tende-
dos 22 anos, e saída sincronizada do mercado ria a não mais separar nítida e rigidamente o
de trabalho para o avanço da inatividade; tudo tempo do trabalho do não trabalho, podendo
isso acompanhado por jornada de trabalho gerar maior mescla entre os dois, com mais in-
reduzida, o que permitiria que o trabalho hete- tensidade e risco de longevidade ampliada da
rônomo passasse a corresponder a não mais do jornada laboral para além do tradicional local
que 25% do tempo da vida humana. de exercício efetivo do trabalho.
É nesse sentido que se pode identificar É dentro desse contexto que se recolocaria
uma linha perspectiva do trabalho humano em novas bases a relação do tempo de trabalho
associado às lutas de classe e à maior capaci- heterônomo e a vida. Em geral, o funciona-
dade de atuação pública por meio do Estado mento do mercado de trabalho relacionado, ao
longo do tempo, com uma variedade de formas salarial, especialmente aquela conformada
típicas e atípicas de uso e remuneração da mão pela maior proximidade entre a base e o
de obra com excedente de força de trabalho cume da estrutura social.
derivado dos movimentos migratórios internos Assiste-se, assim, à transição das tradicionais
e externos sem controles, conforme apontado classes médias assalariadas e de trabalhadores
originalmente por autores que imaginaram su- industriais para o inédito e extensivo preca-
perior a passagem da antiga sociedade urbana e riado, com importante polarização social per-
industrial para a de serviços (terciária). meada pelo espontaneismo de características
No entanto, após quase quatro décadas de cada vez mais anárquicas. Concomitantemente
geração das promessas neoliberais voltadas à com as novas tecnologias de comunicação, as
construção de uma sociedade superior, regis- mobilizações sociais e trabalhistas transcorrem
tra-se, pelo contrário, o fortalecimento de sinais acima da setorialização e fragmentação da tra-
inegáveis de regressão no interior da socieda- dicional organização sindical, o que gera estra-
de do capital em avanço também no Brasil. Do nhamento e distanciamento entre as estruturas
progresso registrado em torno da construção existentes e as formas de mobilização social e
de uma estrutura social medianizada por po- política espontâneas.
líticas sociais e trabalhistas desde a década de O vazio proporcionado pela desindustria-
1930, constata-se, neste início do século XXI, o lização vem sendo ocupado pela chamada
retorno da forte polarização social. sociedade de serviço, que constitui, nesse
Por uma parte, a degradação da estrutura sentido, uma nova perspectiva de mudança
social herdada da industrialização fordista tem estrutural no mundo do trabalho. Mudança
desconstituído ampla parcela da classe média, esta que torna cada vez maior o padrão de
fortalecendo a expansão do novo precariado exploração do trabalho diante do esvazia-
no conjunto da classe trabalhadora. Por outra, mento da regulação social e trabalhista e das
a concentração de ganhos significativos de promessas de modernidade pelo receituário
riqueza e renda em segmento minoritário da neoliberal que não se realizam.
população gera contexto social inimaginável, A longa jornada de efetivação da regulação
em que somente parcela contida da sociedade do mundo do trabalho no Brasil parece estar
detém parcelas crescentes da riqueza. com seus dias contados perante o sinal verde
Em mais de três décadas de predomínio da concedido pela interdição do governo demo-
regulação neoliberal do capitalismo, as pro- craticamente eleito em 2014. Com o impe-
messas da construção de padrão civilizatório dimento da presidenta Dilma em 2016, uma
superior encontram-se desfeitas. Os avanços série de projetos liberalizantes da legislação
ocorridos têm sido para poucos, enquanto o social e trabalhista que se encontrava repre-
retrocesso observado serve a muitos. sada desde a ascensão em 2003 dos governos
liderados pelo Partido dos Trabalhadores
passou a ser a descortinada.
Desestabilização e resistência Com isso, o Brasil passou a conviver com
no Brasil uma quarta onda de flexibilização do sistema de
proteção social e trabalhista instituído a partir
A confirmação do regresso à fase da desregu- da década de 1930, quando passou a se consoli-
lação e flexibilização das políticas sociais e dar a transição da velha sociedade agrária para
trabalhistas impõe novo padrão de explora- a urbana e industrial. Isso porque a constitui-
ção à classe trabalhadora. Com a decadência ção do mercado nacional de trabalho resultou
do padrão de industrialização e regulação de uma lenta transição de 80 anos, iniciada em
fordista, o Brasil dá sequência ao movimen- 1850, com o fim do tráfico de escravos e com
to maior de desestruturação da sociedade a implantação da lei de terras, a finalizada em
1930, com a superação da condição de merca- social e trabalhista avança. A aprovação das
dos regionais de trabalho. reformas neoliberais desencadeadas mais
Mesmo diante da passagem do Império para recentemente elevará ainda mais o grau de
a República em 1889, a regulação do mercado exclusão no Brasil.
de trabalho terminou sendo postergada ante a Diante disso, destaca-se uma primeira
prevalência da situação de ‘liberdade do tra- onda de flexibilização da legislação social e
balho’ definida pela primeira constituição re- trabalhista transcorrida a partir da segunda
publicana, em 1891. Nem mesmo a aprovação, metade da década de 1960, com a ascensão da
em 1926, da emenda constitucional 29, que Ditadura Militar (1964 – 1985). Na oportuni-
possibilitou ao Congresso Nacional legislar dade, a implantação do Fundo de Garantia por
sobre o tema do trabalho, alterou a perspec- Tempo de Serviço (FGTS), por exemplo, não
tiva liberal de manutenção do Estado fora da apenas interrompeu a trajetória de estabili-
regulação social e trabalhista. dade no emprego, como também inaugurou
A partir da Revolução de 1930, contudo, a enorme rotatividade na contração e demissão
regulação do trabalho passou a ser uma novi- da mão de obra no Brasil.
dade, difundida fragmentadamente, segundo A taxa de rotatividade que atingia cerca
pressão localizada nas categorias mais fortes de 15% da força de trabalho ao ano na década
e mais bem inserida no desenvolvimento de 1960 rapidamente foi acelerada, aproxi-
capitalista. Após uma década de embates, mando-se da metade dos empregos formais
com avanços pontuais na implementação do País. Com isso, a generalização do proce-
de leis dispersas de regulação do emergen- dimento patronal de substituir empregados
te emprego assalariado, foi implementada a de maior salário por trabalhadores de menor
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no remuneração.
ano de 1943, em pleno regime político autori- Na política salarial vigente entre 1964 e
tário do Estado Novo (1937 – 1945). 1994, o resultado foi, em geral, a perda de
Mesmo assim, a maior parte dos trabalha- poder de compra do rendimento dos traba-
dores esteve excluída do código do trabalho lhadores, sobretudo no valor real do salário
diante da oposição liberal conservadora dos mínimo, que atende à base da pirâmide distri-
proprietários rurais, antiga força dominan- butiva do País. Diante da significativa expan-
te na República Velha (1889 – 1930). Até o são da produtividade do trabalho, os salários
ano de 1963, com a aprovação do Estatuto do perderam a corrida para a inflação, o que
Trabalhador Rural, que abriu a possibilidade contribuiu ainda mais para o agravamento da
de incorporação lenta e gradual do trabalho desigualdade de renda no Brasil.
rural, a CLT voltava-se tão somente às relações Essa segunda onda de flexibilização se
de trabalho urbanas. caracterizou por deslocar a evolução dos
Foi pela Constituição Federal de 1988, rendimentos do trabalho do comportamento
ou seja, 45 anos após a implementação da acelerado da produtividade, trazendo, por
CLT, que os trabalhadores rurais passaram consequência, a prevalência de uma econo-
a ter direitos equivalentes aos empregados mia industrial de baixos salários. Ao mesmo
urbanos, embora ainda hoje tenham seg- tempo, uma enorme desigualdade tanto
mentos dos ocupados sem acesso à regulação intrarrendimento do trabalho entre altas e
social e trabalhista. Na década de 1940, por baixas remunerações como entre o rendimen-
exemplo, a CLT mal atingia 10% dos ocu- to do trabalho e as demais formas de renda da
pados, enquanto nos dias de hoje chegou a propriedade ( juros, lucros, aluguéis e outras).
superar os dois terços dos trabalhadores. A terceira onda de flexibilização das rela-
Com a recessão e os retrocessos do atual ções de trabalho pode ser constatada na década
governo golpistas, a involução da proteção de 1990, com a dominação de governos com
orientação neoliberal. Dessa forma, assistiu-se geral dessa nova fase de intensificação da
à generalização de medidas de liberalização da exploração do trabalho.
contratação de trabalhadores por modalidades Como os direitos sociais e trabalhistas
abaixo da orientação estabelecida pela CLT. passam crescentemente a ser tratados pelos
Entre elas, a emergência da terceirização dos empregadores e suas máquinas de agitação
contratos, em plena massificação do desempre- e propaganda enquanto fundamentalmen-
go e precarização das relações de trabalho. te custos, a contratação direta, sem direitos
A partir da metade da década de 2010, sociais e trabalhistas libera a competição indi-
todavia, desencadeou-se uma quarta onda de vidual maior entre os próprios trabalhadores
flexibilização das leis sociais e trabalhistas. em favor dos patrões. Os sindicatos ficam de
Com a recente e parcial derrota dos trabalha- fora da negociação, contribuindo ainda mais
dores imposta pela Câmara dos Deputados pela para esvaziamento do grau de organização em
aprovação da legislação para terceirização, a sua própria base social e territorial.
septuagenária CLT encontra-se novamente Ao depender cada vez mais do rendimen-
ameaçada de ser rebaixada. to diretamente recebido, sem a presença do
A atualidade do projeto de lei da terceiriza- histórico salário indireto (férias, feriado, pre-
ção a ser ainda avaliado pelo Senado Federal e vidência etc.), os fundos públicos voltados
que conta com o apoio antecipado do governo ao financiamento do sistema de seguridade
Temer encontra-se em sua ramificação com a social enfraquecem, quando não contribuem
perspectiva de generalização da ‘Uberismo’ para a prevalência da sistemática do rentis-
laboral neste início do século XXI, bem como mo. A contenção da terceirização, em função
com a destruição do sistema de negociação co- disso, poderia estancar a trajetória difusora
letiva de trabalho e de proteção social e traba- do modo Uber de precarização das contrata-
lhista. Isso porque o modo Uber de organizar ções de trabalho.
e remunerar a força de trabalho distancia-se
crescentemente da regularidade do assalaria-
mento formal, acompanhado geralmente pela Considerações finais
garantia dos direitos sociais e trabalhistas.
Os experimentos de ‘Uberismo’ do trabalho Para um país em tardia busca pelo seu desen-
avançam em forma diversificada no espaço volvimento sustentável, estabelece-se uma das
supranacional. Começaram com iniciativas no poucas vantagens associadas à possibilidade
transporte individual, por meio da desregula- de inversão profunda das prioridades governa-
mentação generalizada na oferta de sistema de mentais até então assumidas. Diante da atual
taxis por aplicativos decorrentes das tecnolo- reestruturação capitalista imposta pela segunda
gias de informação e comunicação, até alcança- onda de globalização conduzida pelas grandes
rem atualmente os contratos de zero hora, cujo corporações transnacionais e sob a dominância
trabalhador permanece em casa aguardando a financeira, o mundo do trabalho tem ocupado
demanda de sua força de trabalho advinda de centralidade na agenda tanto na estratégia de
qualquer parte do mundo. competição internacional como na definição
Tudo isso à margem da regulação nacional das opções do desenvolvimento das nações.
de trabalho, fruto da generalização das Exemplo disso tem sido a lógica do mundo dos
novas tecnologias de informação e comu- negócios invadindo as decisões de reformas
nicação em meio ao enorme excedente de sociais e trabalhistas, capaz de desconstruir di-
mão de obra. O esfacelamento das organi- reitos e restringir a atuação sindical.
zações de representação de interesses dos A retomada do desenvolvimento brasileiro,
trabalhadores (associações, sindicatos e nesse sentido, requer a revisão da perspectiva
partidos) transcorre como consequência neoliberal assentada na produção e difusão da
via individual, não classista do mundo. Por uma descentralizada da produção de bens e ser-
parte, porque a degradação da estrutura social viços pelo mundo, expõe a força de traba-
herdada da industrialização fordista tem des- lho a formas cada vez mais sofisticadas de
constituído ampla parcela da classe média, bem exploração.
como fortalecido a expansão do novo precaria- O protagonismo periférico descortina opor-
do no conjunto da classe trabalhadora. tunidade inédita de mudança substancial na
Por outra, porque a concentração de ganhos ordem mundial, com perspectivas de redução
significativos de riqueza e renda em segmento do brutal grau de desigualdade existente entre
minoritária da população gera contexto social países e classes sociais. Todavia isso ainda pres-
inimaginável, em que somente parcela contida supõe convergência e coordenação global ainda
da população passa a deter mais riqueza que inexistente nos dias de hoje.
a maior parte do conjunto dos habitantes do Ademais, o governo brasileiro atual sequer
Brasil. Em mais de três décadas de predomínio se apresenta preparado para dar conta das
da regulação neoliberal do capitalismo, as pro- perspectivas abertas neste início do século
messas da construção de padrão civilizatório XXI. Pelo contrário, a ruptura democrática
superior encontram-se desfeitas, uma vez que ocorrida a partir de 2016 impôs o predo-
os avanços ocorridos têm sido para poucos; e o mínio de pauta desconstrutiva dos direitos
retrocesso generalizado, para muitos. sociais e trabalhistas.
Na crise atual do capitalismo globali- Por conta disso, a turbulência política deve
zado, o sistema de exploração se defronta seguir o seu turno, acelerando, possivelmente,
com novas possibilidades de protagonizar a maturação de outra convergência para a eco-
um novo salto no uso e remuneração da nomia e sociedade brasileira. As reações por
classe trabalhadora. A consolidação inédita parte dos trabalhadores têm sido importantes,
do sistema de coordenação centralizada ainda que nem sempre suficientes para barrar o
capitalista, com articulação e integração avanço do receituário neoliberal. s
Referência
Recebido em 07/08/2018
Aprovado em 19/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
Igor Fuser1
DOI: 10.1590/0103-11042018S307
ABSTRACT The article examined the crisis of so-called Latin American ‘progressive govern-
ments’ as part of a regional political process in which the dominant local elites ally with the
United States in a political offensive to block the access of leftist forces to the executive branch
throughout the region. It is argued that governments as disparate as Lula’s in Brazil, Chávez’s
in Venezuela, Morales’s in Bolivia, and the Kirchner couple in Argentina, among others, have
strong features in common, among which: strengthening the role of the state in the economy, the
emphasis on social policies, and the search for greater external autonomy. Those projects con-
tinued through successive presidential mandates and provided significant social advances, but
ended up in crisis, in a process attributed in part both to the limitations inherent to this political
1 Universidade
option and to the pressures of US imperialism and its allies. In the end, the notion of ‘end of cycle’
Federal
do ABC (UFABC) – São is discarded and the difficulty of consolidating liberal-conservative projects as an alternative to
Bernardo do Campo (SP), the progressive experiences in the region is pointed out.
Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-0260- KEYWORDS Latin America. Politics. Government.
4062
igorfuser@gmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 78-89, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
América Latina: progressismo, retrocesso e resistência 79
avaliação dos resultados das ações estatais rara- mas em termos bem diferentes daqueles uti-
mente aparece. A agenda pública é intoxicada lizados pelo pensamento hegemônico. O que
por notícias falsas, rumores, preconceitos, pela está terminando, segundo ele, é
reciclagem dos velhos clichês ideológicos da
Guerra Fria. Na Bolívia, em fevereiro de 2016, um período em que a esquerda ocupa deter-
por ocasião do referendo convocado pelo pre- minados espaços na institucionalidade de-
sidente Evo Morales para decidir sobre sua mocrática burguesa e instala governos com
possibilidade de concorrer a mais um mandato traços bonapartistas, por meio dos quais as
além dos previstos pela Constituição, a mídia forças populares conseguem fazer avançarem
fabricou um escândalo para prejudicá-lo. suas próprias causas. Hoje em dia esse espa-
Atribuiu ao presidente um filho que não existia. ço não existe mais. Mudou a correlação de
Quando, finalmente, ficou claro que tudo não forças que permitiu um Estado bonapartista
passava de uma grande mentira, já era tarde – hoje cada vez menos viável. Existem, é claro,
Morales havia sido derrotado no referendo por diferenças de país para país, uns que avança-
uma pequena margem de votos4. ram mais, outros menos. Mas, como tendên-
A semelhança de métodos e de atores, cia geral, o que se percebe é que a direita e o
a coincidência temporal, a onipresença imperialismo conseguiram reduzir os espaços
dos agentes dos EUA em cada episódio de democráticos que nós tínhamos consegui-
mudança ou tentativa de mudança de orien- do abrir. Já não estão dispostos a se alternar
tação política na América Latina, tudo isso no governo com a esquerda. […] Trata-se de
permite supor a existência de uma ofensi- expulsar a esquerda dos espaços institucio-
va política que se realiza além-fronteiras, nais e, em particular, do Poder Executivo, e de
movida por um conjunto de objetivos liquidá-la. Expulsar, fechar a porta e jogar fora
comuns: a) remover os governos progressis- a chave, para que não regresse nunca mais. É
tas instalados a partir da virada do século; para isso que promovem toda essa campanha
b) deslegitimar aos olhos da população as de criminalização dos nossos líderes5.
lideranças, os partidos políticos e os movi-
mentos sociais associados a esses governos; Diante de uma ofensiva de tal agressivi-
c) blindar as instituições do Estado para dade, impõe-se às correntes democráticas e
impedir o regresso de atores políticos de populares o desafio de preservar os espaços
esquerda ao comando do Poder Executivo políticos conquistados, defender os gover-
e seu acesso a posições de influência efetiva nos progressistas, recuperar os espaços
no Legislativo; d) aplicar de modo irrestrito institucionais e criar condições para novos
e em ritmo acelerado as políticas neoliberais avanços. Para as classes dominantes locais e
em sua versão mais extrema; e) facilitar o para o imperialismo, ao contrário, trata-se de
acesso das empresas estrangeiras ao mercado levar até o fim o projeto de destruição políti-
interno e, especialmente, aos recursos natu- ca da esquerda latino-americana.
rais de cada país; f ) realinhar a diplomacia
latino-americana aos interesses dos EUA.
Uma definição bastante precisa da atual Foco nas políticas sociais
ofensiva direitista é que a fez, em entrevis- e na busca da autonomia
ta ao autor deste artigo, o analista político
cubano Roberto Regalado5. Polemizando
externa
com a interpretação bastante difundida de
que estamos diante do ‘fim do ciclo progres- Para entender o que está em jogo, é neces-
sista’. Regalado admite que presenciamos, sário caracterizar com clareza os governos
sim, o fim de um período histórico na região, aqui denominados como ‘progressistas’.
Antes, porém, vale a pena assinalar qual é o salvar um ou outro setor empresarial contra
entendimento adotado sobre dois termos que os azares do mercado). Outro destaque em
perpassam o presente artigo. ‘Progressismo’ todas as gestões progressistas é o esforço
é uma palavra constante no discurso políti- para recuperar o controle estatal sobre os
co das esquerdas desde a primeira metade recursos econômicos naturais, especialmen-
do século XX, no sentido de designar os te o petróleo e o gás. Esses governantes co-
atores políticos favoráveis ao que se costuma locaram em prática políticas sociais de alta
chamar de ‘transformação social’, em con- intensidade, com redistribuição (limitada)
traposição ao conservadorismo e ao eli- da renda, valorização do trabalho e ‘inversão
tismo, geralmente associados às posições das prioridades’, favorecendo os investimen-
da direita6. Refere-se à ideia de ‘progresso tos públicos em saúde, educação, moradia
social’, interpretada como a conquista de e infraestrutura, em benefício das camadas
níveis crescentes de bem-estar para a maioria populares. Em política externa, destacaram-
da população, ampliação dos direitos sociais e -se pela busca de maior autonomia, em uma
igualdade no exercício dos direitos políticos, postura que teve como marco a rejeição, em
desenvolvimento econômico, usufruto das ri- 2005, do projeto estadunidense da Área de
quezas naturais a partir de critérios de sobe- Livre-Comércio das Américas (Alca), enca-
rania nacional. Para o conceito de ‘esquerda’, a rada como uma tentativa de ‘recolonização’.
referência aqui utilizada tem como base a sin- Aproximaram-se das duas potências que riva-
tética definição de Norberto Bobbio, erigida lizam com os EUA na cena global – a China e a
sobre a dicotomia igualdade/desigualdade. Rússia –; e o Brasil chegou a formar com outros
Segundo o filósofo italiano, são ‘de esquerda’ países o Brics, principal referência na busca do
os que encaram a igualdade como um valor multilateralismo no sistema internacional.
primordial, enquanto o campo da ‘direita’ Todos esses países com governos pro-
seria constituído pelos que priorizam a desi- gressistas passaram por longos períodos de
gualdade, valorizada como algo positivo7. forte crescimento econômico. O que se pode
Pontos comuns marcam os objetivos de discutir é em que medida esses bons resul-
todas as gestões governamentais progressis- tados se devem ao contexto global favorável,
tas na América Latina. No plano econômico, graças ao ciclo de altos preços das commo-
busca do crescimento econômico, redução dities agrícolas, minerais e energéticas na
da dependência, ampliação do mercado maior parte da década de 2000, e qual foi o
interno. No plano social, políticas públicas grau de influência da ampliação do mercado
voltadas para a inclusão, redução da pobreza de consumo doméstico. Esses governos con-
e da desigualdade, melhoria geral das con- tabilizam, no plano social, grandes avanços
dições de vida. Tudo isso sem romper com em educação, saúde, moradia, transporte,
as classes dominantes internas nem com o salários, redução da pobreza e da fome –
sistema econômico internacional. uma medida definitiva para avaliar o quanto
As gestões progressistas – tanto nas suas foram vitoriosos. Em contraste com a Europa
versões mais radicais quanto nas mais mode- e com a América do Norte, onde se leva a
radas – compartilham a ideia de que é neces- cabo a sistemática destruição das conquistas
sária uma forte presença estatal na economia e benefícios do ‘Estado do bem-estar social’,
para promover e orientar o desenvolvimento na América Latina, as gestões de esquerda
econômico e social8. Nesse ponto, diferem promovem a ampliação dos direitos dos tra-
totalmente do neoliberalismo, que prioriza o balhadores e, em geral, da maioria desfavore-
mercado e minimiza o setor público (exceto cida. Ao contrário do prognóstico dos céticos
quando se trata de reprimir as classes subal- que previam vida curta para os presidentes
ternas e de recorrer a dinheiro público para oriundos do campo popular, seus projetos
políticos – com exceção do caso do Paraguai regional como a União das Nações da
– mostraram uma admirável longevidade, América do Sul (Unasul), a Comunidade
com sucessivas reeleições (individuais ou dos Estados da América Latina (Celac) e o
do bloco político no poder, como ocorreu no Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS),
Uruguai), sempre em pleitos limpos e de le- além a ampliação do Mercado Comum do
gitimidade incontestável. Sul (Mercosul), para incluir a Venezuela, a
Os governos progressistas podem ser Bolívia e o Equador – o que se concretizou
classificados em dois campos claramente apenas no primeiro caso.
distintos9. De um lado estão os governos A existência simultânea de vários gover-
orientados por uma perspectiva revolucio- nos de esquerda e de centro-esquerda na
nária ou socialista, agrupados na Aliança América Latina apresenta um significado
Bolivariana para as Américas (Alba), o histórico extraordinário. Em primeiro lugar,
projeto de integração regional impulsionado trata-se de um desafio aberto à hegemonia
pela Venezuela. Esses governos apresentam dos EUA. Durante todo o século XX, desde
uma atuação política marcada pelo confron- a Guerra Hispano-Americana, a América
to com o imperialismo estadunidense e com Latina se destaca como a única região do
as elites domésticas. Enfatizam o protago- globo em que a supremacia estadunidense se
nismo popular no cotidiano da política (ao exerceu de modo uniforme, praticamente de-
menos na retórica) e têm a particularidade simpedida, sem a presença de atores internos
de terem elaborado, no seu período inicial, ou externos com capacidade política para fazer
Constituições chamadas de ‘refundadoras’, frente à preponderância da grande nação do
o que, como a palavra indica, expressa o en- Norte nas esferas política, econômica e cultu-
tendimento de cada uma das três respectivas ral10. A Grã-Bretanha, antiga potência hege-
repúblicas (Venezuela, Bolívia e Equador) mônica, retirou-se gradualmente de cena ao
foram incapazes de proporcionar uma ver- longo do século, acompanhando sua trajetória
dadeira cidadania à maioria da população e de declínio global; a Alemanha nazista fracas-
que, portanto, permaneceram incompletas – sou em seus esforços de conquistar aliados na
daí a necessidade de serem, simbolicamente, região; e a influência da União Soviética perma-
recriadas, como que a partir do zero. neceu restrita à dos partidos comunistas a ela
No outro campo, situam-se dos governos alinhados, em níveis muito modestos, apesar
que podem ser chamados de neodesenvol- da histeria direitista sobre o ‘perigo vermelho’.
vimentistas (Brasil, Uruguai, Argentina, Nesse cenário, Cuba é a exceção que confirma a
Paraguai e, segundo alguns critérios, Chile). regra. Eis que, na contramão do discurso hege-
Suas políticas se estruturam a partir de mônico do ‘fim da história’, em meio ao avanço
alguma ideia de conciliação de classes. Em da globalização neoliberal impulsionada a
política externa, são mais pragmáticos na partir de Washington e de Wall Street, países
relação com as potências ocidentais, em es- latino-americanos que juntos representam a
pecial com os EUA. Em lugar do socialismo, maior parte do território e da população desta
propõem-se a melhorar o sistema vigente. No parte do mundo declaram superada a Doutrina
caso da Argentina, o discurso dos Kirchner Monroe e anunciam a disposição de orientar
propunha a construção de um ‘capitalismo sua conduta internacional com base em crité-
sério’ (partindo do princípio de que o prati- rios de independência e soberania11.
cado por seus antecessores não o era). Igualmente, no plano interno, as elites
Apesar de suas diferenças, ‘refundadores’ dominantes latino-americanas, herdeiras do
e ‘neodesenvolvimentistas’ se apoiam ou colonialismo ibérico e dos regimes de traba-
apoiaram mutuamente em todo o período, lho escravocrata e servil, veem-se em uma
articulando-se em projetos de integração situação inédita em que não mais detêm as
as mudanças sem confronto nem ruptura. Essa fim de um ‘ciclo’. O tempo passado das mu-
época ficou para trás, como se depreende das danças políticas em clima de ‘paz e amor’
sucessivas incursões do ‘golpismo suave’, do ficou definitivamente para trás; e o desafio
lawfare, da criminalização dos movimentos das esquerdas, agora, é encontrar novos
sociais, da perseguição a políticos, ativistas e in- caminhos para a resistência, nas ruas, nas
telectuais de esquerda, da sabotagem econômi- disputas eleitorais, nos locais de trabalho e
ca doméstica e internacional, das ameaças (por moradia, na luta de ideias e até, na medida do
enquanto, só ameaças) de intervenção militar possível, nos espaços ainda se mostrar possí-
sob o comando e estímulo dos EUA. vel o exercício do governo; porque a história
Nesse sentido, sim, é que só pode falar do não se repete, e nada será como antes.
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Recebido em 27/08/2018
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Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
16. Fundação Perseu Abramo. Brasil 2016 Recessão e
Golpe. São Paulo: Fundação Perseu Abrama; 2017.
DOI: 10.1590/0103-11042018S308
RESUMO Este artigo trata da diferença conceitual entre as mobilizações do século XXI e os
movimentos sociais do século passado, mais perenes e estruturalmente organizados que os
atuais. Analisa o contexto e as características das mobilizações de junho de 2013, a reação
governamental naquele ano e em 2014, o processo eleitoral e a reação de mobilizações de
extrema-direita em 2015 e em 2016. Conclui que a provisoriedade e a relação instável com o
campo institucional tornaram todas as mobilizações desse curto período inacabadas e sem
consequências políticas visíveis em relação às práticas políticas vigentes.
ABSTRACT This article deals with the conceptual difference between the mobilizations of the 21st
century and the social movements of the last century, which are more perennial and structurally
organized than the present ones. It analyzes the context and characteristics of the mobilizations
of June 2013, the governmental reaction in that year and in 2014, the electoral process and the
reaction of far-right mobilizations in 2015 and 2016. It concludes that the provisional and un-
stable relationship with the institutional field have made all mobilizations of this short period
unfinished and with no visible political consequences regarding current political practices.
1 Instituto
Cultiva – Belo
Horizonte (MG), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-3018-
4053
ricciruda@gmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 90-107, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 91
Fonte: Reis5.
Os vínculos estabelecidos são fortuitos e pro- urbanos, criando uma ‘carnavalização política’,
visórios, estabelecendo laços comunitários que forjada em suas alas e paisagem caótica.
muitos autores sugerem ser ‘espelhados’6, ou Essa dinâmica polissêmica se chocou com
seja, definidos por forte identidade de valores, estruturas analíticas racionais e compacta-
crenças ou ideários, criando uma imagem refle- das, definidas por conceitos totalizantes que
tida que exclui a divergência. pouco dialogavam com essa novidade social.
As redes sociais lacunares (estruturas que Para efeito de síntese, é possível sustentar
possuem buracos nos seus vínculos inter- que as mobilizações de 2013 apresentaram,
nos, tal como sugerem os autores de língua ao menos, cinco características essenciais. O
inglesa que empregam o conceito de struc- leitor perceberá que muitas delas parecem se
tural holes, desenvolvido por Ronald Stuart cruzar em uma espécie de desmembramento
Burt7) promovem núcleos de ‘subculturas’ ou ênfase. São elas:
autorreferentes, a provisoriedade e a ação
social por ‘enxameamento’, percebidas niti- Provisoriedade e descontinuidade
damente em junho de 2013.
Assim, temos certa descontinuidade e frag- Esta característica tem relação direta com
mentação de ações que dão sentido aos cartazes a lógica interna dos movimentos, caracteri-
exibidos ao longo das manifestações juninas zada pela entropia, uma desordem organi-
daquele ano que afirmavam que haviam saído zacional causada pelo estabelecimento da
do Facebook®. A observação era límpida ao descentralização dos núcleos de comuni-
desnudar as inúmeras comunidades espelha- cação interna. Não há um comando organi-
das, fechadas em seus ideários e valores, que zacional ou de comando das mobilizações.
se espalharam sobre as ruas de grandes centros Esta característica debela representações
mesmo da noção de direitos. É a demanda decisões coletivas que se expressa nas mo-
instantânea que passa a ser valorizada e a bilizações de massa no início do século XXI
motivar ações grupais ou associativismos dialoguem com a lógica comunitária que as
em pequena escala. Tal situação engendra, redes sociais possibilitam. Horizontalidade
em muitos casos, o advento do ‘pensamento que preserva as individualidades, as escolhas
mágico’, a exigência pessoal que sua vontade pessoais e até mesmo a mobilidade descom-
deve ser respeitada ou cumprida instantane- promissada dos participantes das diversas
amente como determinação legítima. Todas comunidades virtuais. Algo que remete à au-
as organizações ou os instrumentos de repre- torregulação e à autopreservação.
sentação social de amplo espectro passam a
ser objeto de profunda desconfiança social. Anti-institucionalismo e cultura
Este é o momento da organização social antissistêmica
em forma de mosaico, estilhaçada em inúme-
ros interesses semiautônomos que se apre- Finalmente, a cultura antissistêmica,
sentam com linguagem e valores específicos fundada na desconfiança em relação às
em que os aspectos antropológicos (culturais grandes estruturas organizativas e regras
e fundado em histórias grupais) valorizam as universais de comportamento que suposta-
pequenas narrativas comunitárias e comuns. mente inibiriam a liberdade individual.
O anti-institucionalismo, vale recordar,
Horizontalidade já se expressava nos anos 1980 por meio
dos Novos Movimentos Sociais (NMS) que
Jean-Pierre Dupuy13 percebeu na lógica ci- emergem na Europa Latina e no Brasil,
bernética processos ‘sem sujeitos’, marcada campo de estudos da sociologia europeia
por uma ‘ordem espontânea’. Na prática, e brasileira nos anos 1980 e parte dos 1990.
sustentava que se constituía uma socieda- Naquela quadra, já se disseminava a valori-
de sem hierarquias ou regras gerais com zação entre iguais contra as estruturas de
forte ausência de controle de conjunto ou poder vigentes, compreendidas como estru-
estabelecimento de uma ordem geral. A turas de preservação de poder das elites. Aos
auto-organização, na percepção desse autor, ‘de baixo’, expressão que será recuperada nas
parecia mais programada pelo mercado ou mobilizações de massa da Europa deste início
por forças externas imperceptíveis14. de século XXI (em especial, na Espanha após
A compreensão da lógica cibernética e as grandes mobilizações de 2011), caberia a
das redes sociais, dos anos 1960 aos dias auto-organização e a construção da identi-
atuais, sempre variou entre a percepção de dade pela diferença, procurando impor suas
um total controle externo sobre as ações de demandas mediante uma permanente or-
seus participantes e a sua auto-organização. ganização da base excluída social, política e
Patrice Flichy, em um ensaio de 2001, desta- economicamente, no que se denominou de
cou os princípios estabelecidos por univer- ‘mobilismo’. Aqui já se valorizavam as formas
sidades norte-americanas que colaboraram de democracia direta na tomada de decisões
para o esforço de construção da internet: entre participantes de movimentos sociais, a
comunidade de iguais em que o estatuto e desconfiança em relação às lideranças sociais
os argumentos de autoridade são minimiza- com pouca presença nas organizações de base
dos; colaboração e trabalho em equipe; e um e a rejeição às práticas e terminologias muito
mundo à parte, funcionando de acordo com técnicas ou rebuscadas.
regras particulares14. O anti-institucionalismo gerou, nos anos
É possível depreender que parte do dis- 1980, grande rejeição às negociações e par-
curso da horizontalidade na tomada de ticipações em fóruns institucionalizados,
tema explorado em muitos estudos especia- 4) No Rio Grande do Sul, nada de ‘abertura
lizados1. Contudo, na medida em que houve das planilhas’ do transporte metropolitano
convergência entre movimentos sociais, es- e análise para detectar ‘gorduras’ nos custos
truturas sindicais e a construção de novos do sistema.
partidos políticos, o campo institucional foi
gradualmente sendo ocupado por eleições 5) Em Minas Gerais, nenhum estudo para
de representações delegadas – aquelas em tratar de soluções para a integração ta-
que o representante possui um viés nitida- rifária da região metropolitana de Belo
mente corporativo, representando exclusi- Horizonte.
vamente a base social que o elegeu –, algo
que não se repetiu neste início de século 6) Na Bahia, a Prefeitura de Salvador não
XXI. Ao contrário, a rejeição ao campo ins- detalhou a planilha de gastos de cada uma
titucional foi ainda mais forte, e o valor po- das empresas de ônibus.
lítico da horizontalidade e desconfiança em
relação às lideranças impediu qualquer ne- 7) Também nesse estado, a Assembleia não
gociação com a esfera institucional pública aprovou a PEC, vetando a reeleição do pre-
que fosse estável ou duradoura. As mobiliza- sidente da Casa no mesmo exercício.
ções eram valores em si, ‘utopias realizadas
no presente’, projetos imediatos de tomada 8) No Amazonas, nada de implantação de
dos espaços públicos fundados em profundo zona azul e da comissão para investigar as
desprezo às instâncias formais e institucio- empresas de ônibus.
nalizadas das práticas sociais e políticas.
Um ano após as manifestações de 2013, 9) No Ceará, gaveta para a promessa de
os jornalistas Estelita Carazai e João Pedro plebiscito para aprovar obras polêmicas do
Pitombo15 analisaram a efetividade dos governo.
acordos firmados entre manifestantes e go-
vernos municipais e estaduais. Apenas as 10) Ainda nesse estado, a Câmara Municipal
propostas de curto prazo haviam sido cum- não criou o Conselho de Ética da Casa.
pridas, como a redução das tarifas de ônibus
e descontos para estudantes. O levantamento Esse cenário desolador é similar a quase
que os dois jornalistas realizaram revelou, totalidade de manifestações de mesmo tipo
entre outras situações, que: que se espraiaram no mundo desde o início
do século XXI. Como já expressei no livro
1) Em Pernambuco, a Câmara do Recife não que escrevi sobre as manifestações de massas
realizou concurso público para a redução no início deste século:
dos comissionados.
Com exceção da experiência argentina, todas
2) Ainda nesse estado, a Assembleia que se seguiram tiveram nas redes sociais um
Legislativa enterrou as discussões sobre forte mecanismo de comunicação e convo-
voto aberto e sobre a implementação da lei cação de ações sociais, além de se adequar
de acesso à informação. aos valores políticos de horizontalidade e au-
sência de liderança que todos os protestos de
3) No Paraná, a divulgação mensal dos massa sustentaram. [...]
índices de qualidade dos ônibus e da tarifa Há, contudo, uma diferença nítida da pauta
mais barata fora do horário de pico ainda e evolução das ações políticas das experi-
seguiam na gaveta. ências europeias (Espanha e Islândia) e dos
EUA em relação às demais. Nelas, o conteúdo
anticapitalista e confronto ao vínculo das ter sido uma revolução (a tese foi explicita-
estruturas políticas com os conglomerados da no livro de Boris Fausto17, ex-militante
empresariais deram consistência ideológica do Partido Comunista Brasileiro) e as teses
desde o início. Na América Latina e Ásia, as da nova historiografia brasileira que sugeria
mobilizações de massa foram, muitas vezes, uma disputa entre frações da classe domi-
personalizadas na figura de uma ou outra auto- nante e não propriamente uma revolução18.
ridade pública ou tiveram uma pauta extensa e Da mesma maneira, a interpretação sobre
difusa, muitas vezes negando o campo institu- 2013 se tornou um campo de disputa política.
cional como campo de disputa. Do campo lulista, advém a tese que se tratava
Todas as experiências, contudo, não foram de uma manifestação estimulada por interes-
estáveis e não apontaram alternativas na ses de extrema-direita ou que tais interesses se
estrutura de poder, muito menos no aparato insinuaram sobre as mobilizações que inicial-
institucional de representação e práticas polí- mente pareciam espontâneas. Esse ano teria
ticas. Em todos os casos, o sistema político e aberto uma temporada de ataques às forças de
as elites governantes se mantiveram no poder esquerda do País, desencadeando uma escalada
ou retornaram após um surto catártico das de discursos e mobilizações de caráter fascista.
manifestações de rua. [...] Na outra ponta das análises, temos autores
Em outras palavras, a cultura antiinstituciona- que sustentam que não haveria correspondên-
lista se reproduziu e agregou muitos adeptos. cia entre 2013 e as mobilizações nitidamente de
Mas o que agregou, pela declarada intenção direita que se insurgiram a partir de 2015.
de não liderar ninguém e permitir que todas Com efeito, embora blocos de manifestan-
as vozes tivessem o mesmo peso político, es- tes de direita estivessem presentes nas mobi-
tagnou seu desenvolvimento político-organi- lizações de São Paulo e de Brasília, na maioria
zativo. Como se o lugar deste discurso fosse, dos casos, as manifestações de 2013 tiveram
até o momento, a própria catarse popular, a nítido perfil de esquerda. Em algumas lo-
explosão emocional sem finalidade objetiva, calidades, como em Belo Horizonte, foram
sem conclusão política. adotadas, inclusive, palavras de ordem que
A insatisfação continua latente. Mas as expe- expressavam esta postura (como a palavra de
riências organizativas não passaram de expe- ordem surgida na primeira assembleia aberta
rimentações iniciais16(11-12). das manifestações, preparatória de uma das
concentrações: ‘somos todos de esquerda’).
No Rio de Janeiro e em Porto Alegre, os co-
letivos anarquistas (as duas capitais acolhem
O interregno de 2014 e a as duas maiores federações anarquistas do
avalanche reacionária de País) e autonomistas protagonizaram as
ações de rua. A própria tática Black Bloc19,
2015 e 2016 de origem anarquista, foi fartamente empre-
gada e explorada pela grande imprensa em
Desde 2013, o Brasil mergulhou em uma editoriais que atacavam sem trégua as mani-
disputa de interpretações sobre o legado e festações daquele período.
intencionalidade das mobilizações daquele Uma leitura mais atenta do desenrolar da
ano – uma disputa ideológica e partidária. reação governamental a partir de julho de
Não se trata de uma novidade no Brasil: 2013 indica uma rápida desmontagem das
nos anos 1980, a interpretação sociológica ações dos manifestantes de junho.
e histórica sobre a ascensão do varguismo A primeira reação do governo federal foi,
foi palco de um encarniçado embate teórico já no final das manifestações, em 24 de junho,
entre a versão de historiadores que sugeriam durante uma reunião realizada no Palácio do
e cerco aos manifestantes. Essa tática surgiu que iniciava um esboço de organização e ação
em 1986, quando policiais da cidade alemã coletiva recuou. O segundo semestre de 2014
cercaram por 13 horas 800 pessoas que pro- foi totalmente dedicado às eleições. Eleições
testavam, deixando-as sem comida e água. que se revelariam as mais agressivas do
Tempos depois, esse expediente foi proibido período que sucedeu o regime militar.
na Alemanha. Durante a Copa do Mundo,
contudo, foi recorrentemente empregado,
cercando manifestantes ao redor de praças As eleições de 2014
ou mesmo quarteirões, diminuindo espaços e a emergência das
de locomoção. Em Belo Horizonte26, após o
cerco, a repressão policial liberava lentamen-
organizações de extrema-
te os manifestantes, um a um, e não raro os direita
perseguia quarteirões adiante27.
A soma da repressão policial e a reação de As manifestações de junho de 2013 provo-
camadas médias da sociedade e da grande caram queda da intenção de voto de Dilma
imprensa inibiram os manifestantes de 2013 Rousseff, que despencou entre março e
e 2014. Não houve, ao contrário de certa junho, só se recuperando levemente no
interpretação sobre o desenrolar dos acon- segundo semestre daquele ano, como de-
tecimentos no período, nenhuma reação or- monstra figura 2 da sequência de pesquisas
ganizada da extrema-direita. produzidas pelo Datafolha:
Esfacelada e perseguida, a liderança jovem
58
54
51
35
30
23 26
18 16 16
13
12 17
14
10 8
4 6 6 7
Fonte: Reis5.
Durante o primeiro turno, a candidatura para, então, começar uma constante queda,
de Marina Silva chegou a emparelhar com a até trocar de posição com Aécio Neves, já no
candidatura de Dilma Rousseff em setembro mês de outubro, conforme figura 3.
35%
31%
28% 27%
26%
24%
24%
22%
19% 21%
Fonte: Reis5.
longo do século XX. Estruturas ‘totais e to- e mobilizações de rua. Ao contrário, entre
talizantes’, que abarcavam seus afiliados em 2016 e 2017, várias ações das organizações
um feixe estruturado em representações de- clássicas de esquerda (partidos, sindicatos e
legadas, em estruturas administrativas inter- alguns movimentos sociais) lideraram atos e
nas e em processos decisórios definidos em manifestações gigantes que culminaram com
regras relativamente perenes que garantiam a greve geral de 28 de abril de 2017, conside-
uma forte unidade e identidade coletiva. rada a maior greve dessa natureza realizada
Em 2013, essa lógica organizativa foi con- em nosso país. A despeito desse feito, a partir
testada por manifestações de massa que su- do segundo semestre daquele ano, a mobili-
geriram, em três semanas, uma ‘manifestação zação de esquerda perdeu força, assim como
mosaico’, estilhaçada em múltiplas deman- as mobilizações de extrema-direita que rei-
das e estruturas minimalistas autodenomi- vindicavam a intervenção militar.
nadas de coletivos. Os processos decisórios O Brasil retornou à prostração social do
foram todos assembleísticos, fundados em período anterior a 2013. Agora, contudo, com
mecanismos de democracia direta, em que o as estruturas de representação esfaceladas e
respeito à individualidade e às minorias foi a em profunda crise.
tônica do início ao fim. Mergulhados na maior rejeição popular
A resposta do governo federal às mobili- da história recente do Brasil, o Congresso
zações de 2013 foi errática. Começou apre- Nacional e o governo federal impuseram,
sentando uma proposta de atendimento até meados de 2017, reformas que desestabi-
do que considerava o fulcro das demandas lizaram ainda mais várias das organizações
apresentadas nas ruas para, logo em seguida, sociais oriundas do período de redemocra-
passar a perseguir e a desmontar a fluida e tização do País. Este foi o caso da reforma
ainda tênue novidade organizativa que havia trabalhista que, após sua aprovação, mer-
surgido no final do primeiro semestre. A gulhou as estruturas sindicais em uma crise
perseguição prosseguiu ao longo do segundo de financiamento, com as centrais sindicais
semestre de 2013 e foi ainda mais intensa no perdendo mais de 80% de sua receita no
primeiro semestre de 2014, quando o Brasil final do primeiro semestre de 2018. A partir
sediou a Copa do Mundo de Futebol. de então, o governo federal não conseguiu
Contudo, as manifestações haviam criado liderar forças políticas para emplacar mais
várias fissuras, tanto na popularidade do reformas, tendo a reforma da previdência
governo federal, herdeiro formal dos popu- social como sua maior ambição.
lares governos Lula, quanto no método de Como se percebe, houve um confronto
organização social que emergiu nos anos de modelos de representação e organiza-
1980, durante o processo de redemocratiza- ção (e até mesmo de ocupação dos espaços
ção do País, e que deitou raízes na política públicos e validade do campo institucional)
nacional nos anos seguintes. que se chocaram em 2013 e em 2014 e que
Foi, portanto, uma ruptura de narrativas acabou por abrir uma brecha – pela crise de
políticas e sociais. Este parece ter sido o pano representação que se instalou – às forças de
de fundo desse intenso período político. direita e extrema-direita. Brecha aberta pelo
Essa hipótese explicativa auxilia na com- desencanto com os modelos políticos vigen-
preensão dos motivos para emergir uma forte tes que afetou, em um primeiro momento, o
mobilização de extrema-direita em nosso governo Dilma Rousseff, mas que continuou
país que consegue liderar ações públicas disseminando o sentimento antissistêmico
pelo impeachment de Dilma Rousseff, mas que se instalou em nossa sociedade. A po-
que, já no final de 2016 e durante 2017, já re- lítica de ciclo curto se instalou, como um
velava dificuldades para criar fatos políticos processo permanente de deslegitimação de
todas forças políticas estabelecidas, tanto foi a de revelar esse esgotamento. Todavia,
as que se instalaram após o governo Dilma mesmo a retomada do discurso e de prá-
quanto as que procuraram desautorizar o ticas de extrema-direita – o uso constante
governo Temer, à direita ou à esquerda. da violência como recurso de intimidação e
Um segundo aspecto a destacar é a perseguição política – parece ter sido tópica
mudança de padrão de protesto social no (2015 e 2016, em especial), inserida na crise
Brasil. Do modelo de organização defini- de representação que toma todo o País.
do em 1980 para o modelo fragmentado de Nada mais significativo que o dado re-
2013. Do mobilismo que assegurava força velado pelo Latinobarômetro de 2018:
às lideranças sociais que passavam a nego- somente 7% dos brasileiros confiam nos
ciar com as estruturas de poder vigentes seus conterrâneos, o menor índice de con-
para a provisoriedade à horizontalidade e fiança interpessoal da América Latina32. O
à cultura anti-institucionalista. Do padrão índice de satisfação dos brasileiros com o
de movimentos sociais, mais perenes e es- regime democrático também ficou abaixo
truturados, para o de mobilizações sociais, da média da região (que é de 30%, tendo
mais fluidas e instáveis. Uruguai, com 57%; Nicarágua, com 52%; e
Os dois padrões parecem inscritos na Equador, com 51%, à frente).
vida política nacional, mas sem capacida- Vivemos, enfim, um desencontro entre
de de criar soluções políticas consistentes. representantes e representados, entre as
Uma, por parecer representar uma parte da formas clássicas de representação e as novas
sociedade e encontrar-se, em certa medida, e polissêmicas formas de organização social.
em crise (em especial, no mundo sindi- Desse desencontro, nascem as narrativas das
cal); outra, por se recusar a dialogar com o intensas mobilizações sociais inauguradas
campo institucional. em 2013. Narrativas que procuram inter-
A extrema-direita se insurgiu justamente pretar um divórcio ainda não solucionado
nessa lacuna representativa que indicou que e, em muitos casos, fundadas em desejos de
o pacto redemocratizante dos anos 1980 dava retorno de uma época em que o mundo polí-
sinais de esgotamento. Se 2013 teve alguma tico parecia mais estável. A política de ciclo
participação no fim da hibernação pública curto parece ter se instalado no Brasil. E não
das forças brasileiras de extrema-direita, esta sabemos quando poderá ser superada. s
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Recebido em 12/07/2018
-em-1986-1.866251. Aprovado em 19/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
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Sonia Fleury1
DOI: 10.1590/0103-11042018S309
RESUMO O objetivo deste ensaio foi discorrer sobre as relações entre capitalismo, democracia e
cidadania, tendo como foco as transformações recentes em todos os componentes da tríade Estado-
nacional, mercado capitalista e cidadania, que caracterizaram a construção da modernidade oci-
dental e geraram a democracia de massas, o Welfare State – ou Estado de Bem-Estar Social – e o
mercado regulado. A globalização da economia levou à desterritorialização da produção e circula-
ção de mercadorias e de capitais, em uma fase de predomínio da lógica de acumulação financeira,
dissociando o mercado da dimensão nacional, sob a qual se exerce o poder político estatal. É preciso
entender, no entanto, que as tensões entre capitalismo e democracia, e mesmo entre democracia e
cidadania, são constitutivas dessa relação, nem sempre sendo contradições antagônicas, pois, em
conjunturas específicas, diante das lutas socias e do acúmulo de forças em certas fases do processo
de acumulação, pôde-se construir uma nova correlação de forças e viabilizar propostas contra-he-
gemônicas. A etapa atual deve ser compreendida como parte do acirramento dessas contradições,
não como uma situação implacavelmente estagnada. A proposta é pensar, nesta conjuntura, o lugar
da democracia e da cidadania.
ABSTRACT The aim of this essay was to discuss the relations between capitalism, democracy and
citizenship, focusing on the recent transformations in all components of the triad National-State,
capitalist market and citizenship, which characterized the construction of Western modernity
and generated mass democracy, Welfare State, and regulated market. The globalization of the
economy led to the deterritorialization of the production and circulation of goods and capital, in
a phase of predominance of the logic of financial accumulation, dissociating the market from the
national dimension, under which the political power of the state is exerted. It must be understood,
however, that the tensions between capitalism and democracy, and even between democracy
and citizenship, are constitutive of such relation, not always being antagonistic contradictions,
because, in specific conjunctures, in the face of social struggles and the accumulation of forces in
1 Fundação
certain phases of the process of accumulation, it was possible to build a new correlation of forces
Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Centro de and to achieve viable anti-hegemonic proposals. The current stage must be understood as part of
Estudos Estratégicos (CEE) the aggravation of these contradictions, not as a relentlessly stagnant situation. The proposal is to
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid. think, in this juncture, about place of democracy and citizenship.
org/0000-0002-7678-
7642
profsoniafleury@gmail.com KEYWORDS Democracy. Community participation. Capitalism. Insurgences.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 108-124, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Capitalismo, democracia, cidadania – contradições e insurgências 109
cidadania já não são fruto apenas das lutas da A atual crise do WS, segundo Fraser9,
classe operária em suas reivindicações igua- pode decorrer de inúmeros fatores, mas um
litárias, mas de uma polifonia de sujeitos que fator crucial é a derrocada da velha ordem de
exigem o reconhecimento da diversidade, em gênero, baseada na existência de famílias nas
grupos tais como negros, mulheres, Lésbicas, quais o homem era o provedor do salário que
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e sustentava a todos. Defende que a possiblida-
Transgêneros (LGBT) etc., e políticas distribu- de de suplantar o Welfare industrial depende
tivas e compensatórias que reduzam as discre- da realização da promessa da igualdade de
pâncias e desvantagens acumuladas em prol da gênero, que evolui para um modelo de pro-
homogeneização burocrática do WS8-10. teção de cuidador universal, o que envolve
A cidadania é um status atribuído àqueles princípios de antipobreza, antiexploração,
que participam de uma comunidade política, igualdade salarial, igualdade de respeito,
portanto intrinsicamente relacionada com a igualdade de tempo de lazer, antimarginali-
constituição da nação como um espaço po- zação e o princípio do antiandrocentrismo.
lítico, no interior do qual as diferenças entre Alguns autores, com uma perspectiva
a população são superadas por meio de uma mais pragmática e funcional, colocam como
discussão pública e o respeito à lei, fundada imperativa a mudança do modelo do WS
na noção de bem comum11. O pertencimen- para o que denominam novo paradigma do
to à nação, ou seja, a inclusão na comunida- investimento social13,14, como forma de re-
de de cidadãos, requer a internalização de adequação da proteção social às transfor-
normas partilhadas, implicando a construção mações demográficas, com o aumento do
do homem universal, o cidadão. Incluindo e número de idosos e redução da fertilidade,
integrando alguns, representa, por suposto, mudanças na composição da força de traba-
a exclusão de outros, os não nacionais, mas lho, com crescente incorporação de mão de
também aqueles que são colocados como obra feminina, e o aumento do desemprego
dependentes ou incapazes, enfim, que não se e da flexibilização das relações de trabalho.
enquadram na definição do homem universal. Diante de uma sociedade na qual a produção
O debate atual sobre a cidadania tem le- é cada vez mais baseada no conhecimento,
vantado questionamentos sobre a noção de essa perspectiva privilegia a educação in-
comunidade de cidadãos que está enraizada fantil e treinamento ao longo da vida como
nos princípios do consenso em relação às forma de melhor aproveitamento do capital
normas, mas que ignora o componente insur- humano. Por outro lado, busca atuar na pre-
gente da cidadania que tornou histórica sua venção dos novos riscos:
expansão, ou seja, a incompletude do corpo
político que sempre implica dominação e The social investment perspective also aims
exclusão. Também se discute o encapsula- at modernising the postwar welfare state so
mento da cidadania à dimensão nacional, na as to better address the new social risks and
medida em que o poder político e a produção needs structure of contemporary societies,
e circulação de mercadorias se desterritoria- such as single parenthood, the need to recon-
lizaram8. A esse respeito, Balibar12 afirma: cile work and family life, lack of continuous
careers, more precarious forms of contracts
Indeed, the nation, or the national identity, ho- and possessing low or obsolete skills15(1).
wever effective it has been in modern history,
is only one of the possible institutional forms Embora busquem diferenciar-se das crí-
of the community of citizens, and it neither ticas neoliberais ao WS, na medida em que
encapsulates all of its functions nor comple- o gasto social não é visto como custo, mas
tely neutralizes its contradictions12(438). como investimento que ativa a economia,
compartilham com aquela perspectiva a ne- nível de circulação das mercadorias, dos
cessidade de desenvolver políticas de ativa- capitais e das pessoas, tem acarretado pro-
ção e mantêm a crença na eficácia do sistema blemas de integração para os imigrantes,
de mercados. Distinguem-se dos liberais por excluídos ou colocados em uma condição de
acreditar que as políticas estatais de qualifi- subcidadania em países desenvolvidos.
cação podem gerar alterações no mercado de Se a proteção social no WS havia perdido
trabalho, evitando exclusões e aumento da a perspectiva emancipatória da cidadania
pobreza. As políticas de ativação substituem como conquista de classe para acomodar
o Welfare pelo Workfare, seja por meio da os beneficiários como consumidores, no
redução do benefício, seja por aumento das investimento social, essa perspectiva de
condicionalidades, levando o beneficiário a participação em uma comunidade política
se comprometer em melhorar sua qualifica- é substituída pelos incentivos e controles
ção e inserir-se no mercado de trabalho em para participação no mercado. A bandeira
posições que as políticas públicas lhe ofere- de ‘no welfare without work’ e a afirmação
cem. Ou seja, preparar, mais que reparar. de que a política de ativação pavimentou o
As principais críticas a essa corrente são caminho para a desregulação dos merca-
relativas à instrumentalização das demandas dos de trabalho13 demonstram que a pers-
feministas, com políticas de reconciliação do pectiva do investimento social considera a
trabalho; focar na preparação para o futuro e questão do trabalho como uma atribuição
esquecer os pobres atuais; buscar inserir os individual, visando ao aumento da empre-
trabalhadores em qualquer tipo de trabalho; gabilidade, porém, liberando o mercado de
adotar uma perspectiva economicista que responsabilidades pela crescente expulsão
trata indivíduos como investimentos e capi- dos trabalhadores.
tais em detrimento da justiça social e da ci- Uma visão instrumental da política social
dadania. Em outros termos, aqueles que não deixa de considerar que toda política social
se adequarem à dinâmica produtiva não têm tem uma dimensão metapolítica, na medida
lugar nesse modelo – os dejetos – no qual a em que ela desenha a configuração societária
solidariedade dá lugar à produtividade como que se pretende alcançar. Assim, a questão
organizador da sociedade. fundamental da política social é o enfren-
Além dessas críticas, eu adicionaria a tamento da questão social, entendida como
perspectiva individualista em detrimento aquilo que introduz a perspectiva disruptiva
de uma análise de classes sociais, a aceita- na sociedade, tornando-a incapaz de promo-
ção da dinâmica atual do capitalismo como ver a integração e a coesão social necessárias
imutável e inexorável (o fim da história), e, à legitimação da ordem política.
finalmente, a inexistência de evidências que O trabalho de Wolfgang Streeck16 sobre
provem a relação causal entre aumento da a relação entre capitalismo e democracia
qualificação e transformação da estrutura busca demonstrar que existe uma incompa-
produtiva e social, com redução da pobreza e tibilidade natural entre os dois princípios,
da exclusão. O tema da imigração na Europa, ou regimes que guiariam a alocação no ca-
onde trabalhadores altamente qualificados pitalismo democrático: um deles atendendo
exercem atividades desqualificadas e infor- às forças do livre mercado, e o outro baseado
mais, está ausente das considerações dos in- nas necessidades sociais e direitos certifi-
vestidores sociais, bem como as estatísticas cados pelas escolhas coletivas das políticas
de elevado desemprego de jovens universi- democráticas. Para o autor, a oposição entre
tários e pós-graduados. O fato da cidadania mercado e eleitores é inerente, e sua compa-
continuar a ser um atributo da nacionalida- tibilização só pode se dar em períodos curtos,
de, em um mundo globalizado e com elevado em que um dos princípios é privilegiado em
dos cidadãos ante os mercados internacionais, que permitiria maior redistribuição, e o con-
cujo controle da crise foi tantas vezes prometi- flito se acirra na globalização.
do e nunca realizado por essas políticas. No entanto, os sentidos políticos do po-
O aumento da desigualdade e do desempre- pulismo, que emergem com a agudização
go além das políticas de contenção de gastos dos conflitos, diferenciam-se em populismo
com políticas públicas são cada vez mais inten- de direita e de esquerda: de acordo como os
sos, e as promessas de melhorias não se fizeram efeitos da globalização, são sentidos na so-
sentir. Streeck20 toma de Gramsci o termo ciedade e articulados pelas suas lideranças
interregnum para designar a fase atual como em torno de clivagens étnico-culturais pela
sendo um período de transição, cuja duração direita e em torno da renda e classe social
é incerta, entre o velho que está morrendo e o pela esquerda. Evidencia-se a preocupação
novo que ainda não pode nascer. crescente com a falta de legitimidade que
O ressurgimento do povo na cena política acompanhou a globalização, sendo que os re-
tem levado a inúmeras considerações sobre clamos por abertura dos mercados passam a
a volta do populismo, seja ele de direita ou de ser substituídos pela necessidade de reequi-
esquerda. Como nos ensinou Laclau21, as de- librar as órbitas nacional e global e os ganhos
mandas democráticas não atendidas se trans- que se distribuem de forma tão assimétrica.
formam em demandas populares, constituindo No entanto, as consequências políticas da
assim um povo, ou seja, uma heterogeneidade perda de confiança nos sistemas normativos
que para ser unificada requer a articulação – político e econômico – podem ser desas-
da equivalência das oposições às instituições, trosas para toda a sociedade, como aponta
possibilitada pela presença de um líder que Stiglitz23(137):
as unifique. Portanto, inexiste um conteúdo
inerente ao populismo, mas condições que The breaking of the social bonds and trust
possibilitam sua ocorrência, que levam à pro- – seen in our politics, in our financial sector,
liferação de pontos diversos de antagonismos. and in the workplace – will, inevitably, have
Para Laclau21, se fosse para nomear apenas uma broader societal consequences. Trust and re-
condição para emergência do populismo, ele ciprocal goodwill are necessary not only for
indicaria o capitalismo globalizado. the functioning of markets but also for every
Rodrik22 também crê que a volta do popu- other aspect of societal cooperation. We have
lismo foi causada pela globalização da econo- explained how the long-term success of any
mia, à qual se associam outros fatores, como country requires social cohesion – a kind of
mudanças tecnológicas e erosão da proteção social contract that binds members of socie-
ao trabalho, com vantagens sempre direcio- ty together. Experiences elsewhere have sho-
nadas para o mercado. A fase atual, nomeada wn, however, the fragility of social cohesion.
de hiperglobalização, aumenta a incidência When the social contract gets broken, social
e intensidade dos conflitos, já que a razão cohesion quickly erodes.
entre os custos políticos/distributivos e os
ganhos econômicos é particularmente des- Ao analisar as manifestações de ocupa-
favorável. Particularmente, o diferencial de ção de espaços público (como Occupy New
volatilidade dos capitais em relação ao tra- York), em nome dos 99% contra o 1% mais
balho permite que os primeiros evitem as rico que acumula que acumula a maior fatia
barganhas dos trabalhadores e contratem da riqueza social, o autor mostra como a con-
mão de obra mais barata alhures e possam centração de poder econômico aumentou o
se deslocar, sem serem tão afetados como os poder das corporações sobre o Estado, pas-
trabalhadores, pelos choques em uma econo- sando a desenhar as políticas públicas em
mia nacional. Dessa forma, evitam a taxação favor de uns poucos, de forma predatória. O
Estado de Direito (The Rule of Law), que foi dominação de poucos, Estados de Direito
criado para defender os mais fracos em busca oligárquico, limitados pelo duplo reconhe-
de uma sociedade igualitária, passou a ser cimento da soberania popular e pelas liber-
usado em favor dos poderosos para preser- dades individuais. Nesse sentido, já não se
var e aprofundar as desigualdades. Dowbor24 mantêm as condições originais da democra-
explica que o capitalismo hoje prescinde da cia enunciadas por Lefort27, como um lugar
democracia porque já não há competição vazio, no qual os governantes se encontram
entre múltiplas empresas, sendo que só 147 impedidos de se apoderarem dele, um lugar
grupos controlam 40% do sistema corporati- que não podendo ser incorporado às pessoas
vo mundial, e há 28 gigantes banqueiros que que o exercem permanecerá em busca do seu
controlam as próprias empresas produtivas, fundamento em uma sociedade que acolhe o
articulação que começou em 2008. conflito de opiniões e o debate dos direitos,
A contração da esfera política e sua subordi- já que os marcos de referência da certeza se
nação à dinâmica de acumulação da economia dissolveram27. Entretanto, a impossibilidade
globalizada, representada pela financeirização de o conflito encontrar uma resolução sim-
e pelo poder das corporações, tiveram fortes bólica na esfera política, já que o poder se
impactos sobre o WS, restringindo benefí- mostra dentro da sociedade como algo parti-
cios e acesso às políticas de proteção social, cular, deixa a sociedade despedaçada e inse-
mercantilizando e subordinando à lucrativi- gura. Isso poderia levar a uma sociedade da
dade os setores sociais, redefinindo a sociabi- insegurança total, já que estar protegido não
lidade em bases individualistas e competitivas. é um estado ‘natural’28, mas uma situação
Aprofundaram-se assim as desigualdades. construída, garantida pelo Estado social. O
Piketti25 angariou prestígio mundial ao atual debilitamento do Estado nacional-so-
mostrar evidências de que as desigualdades cial substitui o individualismo positivo, que
se aprofundaram no mundo, recentemente, está na base da cidadania e do seu desenvol-
como consequência de a taxa do rendimen- vimento em busca de igualdade, por um indi-
to privado do capital ser continuamente vidualismo negativo, consequência da perda
mais elevada do que a taxa de crescimento da função integradora do trabalho29. Como
da renda e da produção. A falta de respostas consequência da precarização do emprego,
distributivistas dos Estados nacionais, seja não apenas aumentam as periferias mar-
em termos de taxação progressiva, seja em ginais e o medo às classes perigosas como
investimentos sociais, ameaça os valores de também ocorre a desestabilização dos está-
justiça social e a existência das sociedades veis e a fragilização das famílias, ameaçan-
democráticas. Portanto, a dinâmica da eco- do a coesão social. Castel29 chama atenção
nomia da acumulação capitalista é sempre para as mudanças nas políticas públicas que
política, tanto porque ameaça a sociedade passam de políticas de integração para polí-
democrática quanto porque a ação política ticas de inserção. As políticas de integração
é a única forma de colocar parâmetros extra sendo aquelas que, buscando uma homoge-
econômicos de regulação e distribuição. neização desde o centro, promovem o acesso
Isso nos leva a duas questões imediatamente de todos aos serviços públicos e a redução
relacionadas com o lugar do político na conjun- das desigualdades. Já as políticas de inserção
tura atual: em que tipo de democracia vivemos? obedecem a uma lógica de discriminação po-
E, será que a cidadania ainda é um conceito sitiva e desenvolvem estratégias específicas
capaz de articular a inclusão social? para certos grupos e zonas específicas, com o
A resposta de Rancière26 é que não uso de novas tecnologias de intervenção que
vivemos em democracias, nem em totalita- se distinguem da ajuda social clássica29.
rismos biopolíticos, mas em um sistema de A gestão das diferenças é a essência do
político, e as tentativas de substituição da igual- more concerns culture than structure, further-
dade pela equidade se mostram insuficientes, more, claims to cultural recognition usually are
já que a equidade apenas pode conduzir a uma means to the end of undermining domination or
busca mais exigente de igualdade, mas não a wrongful deprivation10(82,83).
sua substituição30. Assim, a tentativa que as-
sistimos atualmente de substituir o direito uni- A combinação de múltiplas posições es-
versal à saúde pela cobertura universal fazem truturais que condicionam as capacidades e
parte dessa mesma problemática, na qual se privam os indivíduos de liberdades de ação,
abre mão da igualdade, do direito e da cidada- denominadas por Sartre como serialidade, é
nia, com o risco de perpetuar a segmentação aceita por Young10, que faz a ressalva de que
social e inviabilizar a solidariedade que é o essas limitações não determinam, no entanto,
cimento da coesão social31. as identidades individuais. Nosso estudo
A busca da universalidade da cidadania sobre violência institucional em hospitais
não pressupõe a negação das diferenças públicos bem demonstrou como a discrimi-
sociais, mas, sim, das injustiças que se fun- nação se faz com base em séries de atributos.
damentam nas diferenças. O universalismo No entanto, as respostas às discriminações
hoje afasta-se da visão idealista e centra- que se materializavam na peregrinação dos
lizada para propor o reconhecimento da pacientes na rede de atenção mostravam que
diferença, da multiplicidade de sujeitos, havia diferentes repertórios de respostas dos
identidades e desejos. O universal e o parti- sujeitos, envolvendo a submissão, a manipu-
cular devem buscar novas formas de articu- lação clientelista, a revolta e a ação política33.
lação na democracia contemporânea, assim Algumas das críticas à abordagem que traz a
como a cidadania não é um suporte passivo questão da identidade para o centro da discus-
de direitos, que desconhece as exclusões que são da democracia e da cidadania dizem respei-
estiveram na base de sua construção social, to à dificuldade de construir uma ação coletiva
nem uma identidade a mais entre outras. A com sujeitos fragmentados em torno de lutas
cidadania deve ser o princípio articulador de identitárias. Isso, no entanto, não implica que
diferentes subjetividades que partilham um possam haver equivalentes que venham a ar-
conjunto de valores ético-políticos, rompen- ticular essas diferentes posições em torno de
do com a suposição tradicional da cidada- um movimento comum. Outra crítica seria em
nia como domínio público dos indivíduos e relação à ameaça à unidade nacional, questão
oposta ao mundo do privado32. discutida por Kymlinka e Norman34 que ter-
No entanto, a questão da identidade não minam por concluir que, embora só as reivin-
deve ser tomada de um ponto de vista cul- dicações de autogoverno ponham em risco a
turalista para pensar uma democracia que unidade nacional, a cidadania diferenciada di-
comporte as diferenças. Young10 afirma que ficilmente cumpriria uma função integradora.
os indivíduos, e não grupos, constroem suas Poderíamos adicionar que as críticas ao WS
identidades em situações relacionais. Já os relativas à regulação e burocratização, homo-
grupos sociais podem ser culturais ou estru- geneização e não diferenciação de demandas,
turais, e estes últimos são os mais importan- exclusão das mulheres etc. não avançam em
tes nas reivindicações de justiça. E conclui: apontar uma alternativa de economia pós-capi-
talista compatível com a cidadania diferencia-
Differentiations of gender, race or ability are da. Mesmo quando denunciam a convergência
more likely class than ethnicity, I ague, inasmu- entre WS e economia capitalista, terminam
ch as they concern structural relations of power, deslocando o conflito para a esfera da redistri-
resource allocation, and discursive hegemony. buição que depende do crescimento da econo-
Even where the basis of group differentiation mia privada.
exploração. Portanto, elas devem ser des- que legitima a coerção44,45. Se o componente
construídas e ou reinterpretadas40. da dominação e controle é parte intrínseca
Enquanto para Fraser, mesmo uma ca- do Estado de Bem-Estar Social, a estes se
tegoria como classe social, que tem um adiciona o componente da violência quando
fundamento econômico claro, também tem se trata de exclusão social. A dubiedade da
uma dimensão de status, que pode ser en- sociedade brasileira que, ao mesmo tempo,
globada no paradigma da redistribuição, nega a existência e a realidade das favelas e
para Honneth42, as considerações sobre in- a destituição dos direitos de seus moradores,
justiça podem ser unificadas no paradigma relegando-os a uma condição de ilegalidade
do reconhecimento, pois ele estabelece um permanente, enquanto se beneficia dessa
link entre as causas sociais do sentimento de mão de obra barata que está disponível na
injustiça e os objetivos normativos dos movi- vizinhança46, é tanto uma condição de ex-
mentos emancipatórios. ploração de classe quanto de enraizamento
Este importante diálogo traz muitas em base a diferenças raciais e culturais que
contribuições e precisa ser aprofundado, normalizam a exclusão.
embora tenda a concordar com Boaventura O mecanismo da violência como forma de
Santos43 quando ele afirma que a desigualda- dominação ou como forma de transgressão e
de é um fenômeno socioeconômico enquan- insurgência merece ser mais bem estudado
to a exclusão é, sobretudo, um fenômeno na construção da cidadania. Fanon47 desen-
sociocultural fundado em uma normativida- volveu um trabalho seminal sobre as lutas
de que funciona como discurso de verdade, nacionais anticolonialistas, partindo do pres-
interditando e rechaçando o outro em base suposto de que a violência colonial – na qual
à diferença. A desigualdade permite a ex- tudo que é branco é bom e tudo que é negro é
ploração, e a exclusão justifica o extermínio. ruim – despoja os indivíduos de sua condição
No entanto, a exclusão tem um fundamento humana, impedindo-lhes de se converterem
econômico ao permitir tanto a exploração em sujeitos do seu processo social. Fanon47
quanto a expropriação. argumenta que só por meio da mesma mag-
A importância deste debate está em tratar nitude de violência o colonizado pode se
a questão da exclusão como um fenôme- curar de sua inferioridade e constituir-se,
no social que tem uma realidade própria, coletivamente, como nação. Contrária a esta
não podendo ser subsumido no debate da posição encontra-se a de Arendt48, que dis-
cidadania, como sendo algum deficit desse tingue poder de violência por sua natureza
status. O não reconhecimento de morado- distinta e por serem antitéticos. Enquanto o
res de áreas de favelas e periferias urbanas poder emerge e tem sua legitimidade na ação
como sujeitos de direito, excluídos, portan- coletiva, a violência pode ser justificável, mas
to, da condição de cidadania social – ainda nunca será legítima. Trabalhando a questão
que sejam eleitores e a eleição seja a epifania da democracia e da sociedade civil, Cohen e
do seu reconhecimento como partícipes –, Arato49 concluem que os movimentos sociais
torna aceitável para a sociedade a violência são uma dimensão normal da ação políti-
policial e os assassinatos de jovens negros ca nas sociedades civis modernas. Uma das
das favelas. Enquanto os desiguais lutam formas de ação política que eles assumem é
pela preservação dos direitos adquiridos a desobediência civil. Por definição, os mo-
(Welfare State), os excluídos lutam contra o vimentos sociais são extrainstitucionais; e,
extermínio, pela sobrevivência e pelo direito embora seja paradoxal a ideia do direito à de-
a ter direitos (Warfare State). Neste último sobediência civil, os autores consideram que
caso, é o próprio Estado que gera a ilegali- essa forma de ação não viola os princípios da
dade à qual esta população é circunscrita, e sociedade civil democrática. Argumentam
que a desobediência civil é uma ação coletiva movimentos de moradores reivindicando me-
que pressupõe que os direitos e a democra- lhorias e direitos relativos à sua vida e bem-
cia estão parcialmente institucionalizados e -estar cotidianos politizam o seu dia a dia e
que os atos de desobediência civil, embora se organizam de forma associativa em torno
tenham como projeto a utopia democrática, dessas bandeiras. O autor denominou cidada-
são exemplos de autolimitação do radica- nias insurgentes todas as formas associativas
lismo49. Ademais, exemplificam que muitos que encontrou em seu estudo sobre bairros
atos que foram considerados desobediência na periferia de São Paulo, de associações de
civil no passado, como as greves, hoje fazem moradores a facções criminosas, que reivindi-
parte das formas de participação democráti- cam direitos denegados, sejam eles direitos à
ca, porque propiciaram a criação e expansão titularidade da moradia, às lutas dos sem-te-
de direitos e da própria democracia. to, a melhorias nas condições de vida ou nas
A proposição de uma democracia radical condições carcerárias. Enquanto a cidadania
como estratégia para conquista de uma he- formal se situa na esfera pública, aqueles que
gemonia socialista, de Laclau e Mouffe50, são dela excluídos se organizam a partir da
busca identificar as condições discursivas casa, do espaço privado, a partir do qual for-
para a emergência de uma ação coletiva na mulam suas demandas em termos de direitos.
luta contra as desigualdades e relações de su- A expansão da cidadania e a consolidação
bordinação. Trata-se de buscar as condições da democracia implicam a construção de
nas quais uma relação de subordinação se um ordenamento legal e institucional, até
torna uma relação de opressão, constituindo- mesmo em sua constitucionalização52, que
-se em um lugar de antagonismo50. Os autores assegure o gozo dos direitos e sua exigibili-
identificam relações de subordinação como dade. Essas dimensões normativas, legais e
sendo aquelas nas quais um agente submete institucionais tratam do controle e padro-
outro a sua decisão; relações de opressão, nização, portanto da ordem social, seja ela
como aquelas relações de subordinação que fruto de imposição, de conquistas, de pactos
se transformam em lugares de antagonismo, ou deliberações. Sua origem determinará o
e relações de dominação como o conjunto de conteúdo democrático desse ordenamento.
relações de subordinação que são considera- No entanto, a cidadania não se trata de um
das ilegítimas. Entendendo que as formas de mero status atribuído aos indivíduos como
resistência às novas formas de subordinação dizia Marshall6, o que coloca os indivíduos
são polissêmicas, propõem sua articulação na condição de suporte material dos direi-
hegemônica por meio de cadeias de equiva- tos, mas requer a constituição prévia do
lentes. Embora afirmando a necessidade de sujeito, cuja emergência requer a ruptura
radicalização da democracia, por meio das re- com a ordem estabelecida53 antes de impor
lações antagônicas e dos conflitos agônicos, os sua presença como ator que transforma
autores limitam sua proposta para as esquer- esta própria ordem. A ruptura se dá na sua
das assumirem a defesa de um a democracia própria constituição, anteriormente dene-
radical e plural, conflitos agônicos transacio- gada na esfera política, o que não quer dizer
nados dentro das normas democráticas. que sua ação como ator não possa ser refor-
Houston51 identifica na existência de mista ou conservadora.
disjunções nas democracias que não al- Termino deixando em aberto as várias
cançam garantir o conjunto dos direitos de formas de desenvolvimento histórico da ci-
cidadania a todos os seus moradores, em dadania para que possamos pensar a forma
especial para aqueles residentes às margens que melhor se adequaria a atual conjuntura
das grandes metrópoles, a emergência de crítica da democracia e da cidadania às pa-
cidadanias insurgentes. Nessas situações, lavras de Balibar12 para quem a cidadania
ultrapassa a democracia e não tem porque they are sanctioned by `Law’. But the `in-
restringir-se ao território nacional, sendo surrectional’ element that accounts for the
que o essencial é a permanente tensão entre emancipatory effects of the claim of rights
os momentos de insurreição e de constitui- (petitio iuris) can take many forms,
ção, no sentido de relações das forças sociais which have a different phenomenology in
mais estáveis ou menos hegemônicas. terms of campaigns, party mobilization, tem-
poral condensation or distension, violent or
Rights’, both individual and collective (and in nonviolent relationship of forces, rejection or
fact granted to individuals through the efforts use of the existing institutions, juridical forms,
of collective movements), are vindicated [as and so on12(438). s
Mary Wollstonecraft (1792) once wrote] and
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Civilização ou barbárie
Civilization or barbarism
Lucia Regina Florentino Souto1, Gustavo Souto Noronha2, Ana Maria Costa3, Telma Ruth Pereira4,
José Carvalho de Noronha5
DOI: 10.1590/0103-11042018S310
1 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola RESUMO O artigo buscou entender os desafios para a construção de uma sociedade amparada
Nacional de Saúde em direitos sociais e de cidadania dentro da atual crise do capitalismo e do golpe de 2016.
Pública Sergio Arouca
(Ensp), Departamento de Contextualiza o atual cenário com o qual se defronta para, em seguida, discutir o conflito pela
Direitos Humanos, Saúde distribuição da riqueza. Posteriormente, traz a discussão do golpe e mostra as diversas ten-
e Diversidade Cultural
(DIHS) – Rio de Janeiro tativas de desconstrução da Constituição de 1988 que culminam na Emenda Constitucional
(RJ), Brasil. 95. Nesse cenário, observa as perspectivas para o Sistema Único de Saúde (SUS) e conclama à
Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-2270- retomada do espírito de 1988.
8424
luciafsouto@yahoo.com.br
PALAVRAS-CHAVE Democracia. Direitos socioeconômicos. Capitalismo. Constituição e esta-
2 InstitutoNacional de tutos. Sistema Único de Saúde.
Colonização e Reforma
Agrária (Incra) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. ABSTRACT The article seeks to understand the challenges for building a society based on social
Orcid: https://orcid.
org/0000-0001-7860- rights and citizenship within the current crisis of capitalism and the coup of 2016. It contextual-
6641 ises the current scenario we face and then discusses the conflict over the distribution of wealth.
noronha.gustavo@gmail.com
Next, it brings the discussion of the coup and shows the various attempts to deconstruct the 1988
3 Escola Superior de Constitution which culminate in Constitutional Amendment 95. In that scenario, it observes the
Ciências da Saúde (ESCS)
– Brasília (DF), Brasil. perspectives for the Unified Health System (SUS) and calls for a resumption of the spirit of 1988.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-1931-
3969 KEYWORDS Democracy. Socioeconomic rights. Capitalism. Constitution and bylaws. Unified
dotorana@gmail.com Health System.
4 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Iniciativa Brasil
Saúde Amanhã – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-2356-
5544
ruthtelma@gmail.com
(Fiocruz), Instituto de
Comunicação e Informação
Científica e Tecnológica
em Saúde (ICICT) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
noronhajc@gmail.com
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 125-144, NOVEMBRO 2018
126 Souto LRF, Noronha GS, Costa AM, Pereira TR, Noronha JC
consumo torna-se o principal culto da reli- do norte não é reproduzível para o conjunto
gião do capitalismo6. das pessoas do mundo.
É exatamente o modo de produção que Vivenciamos uma crise ecológica sem pre-
permite o atual padrão de consumo que cedentes e, mais uma vez, precisamos voltar
devasta nossas florestas e seca nossos rios, aos clássicos e atentar ao que Marx9(132-133) já
enfim, tem destruído o planeta e seus recur- colocou em ‘O Capital’:
sos naturais. Compromete assim o ciclo de
chuvas, fertilidade do solo e, por consequên- Com a preponderância sempre crescente da
cia, a própria produção de alimentos para a população urbana que amontoa em grandes
população. As terras agriculturáveis vão se centros, a produção capitalista acumula, por
esgotando no atual modo de produzir e no um lado, a força motriz histórica da socieda-
seu avanço sobre as florestas nas fronteiras de, mas perturba, por outro lado, o metabo-
agrícolas, ainda que alguém concorde que lismo entre homem e terra, isto é, o retorno
possa aumentar a produção de alimentos no dos componentes da terra consumidos pelo
curto prazo, não se sustenta no longo prazo. homem, […], à terra, [perturba] portanto a
O próprio padrão de produção agrícola hoje eterna condição natural da fertilidade do solo.
esgota o solo com suas monocultoras e en- […] E cada progresso da agricultura capitalis-
venena a terra, a água e os alimentos que ta não é só um progresso na arte de saquear
consumimos. A vida da nossa espécie encon- o trabalhador, mas ao mesmo tempo na arte
tra-se ameaçada. Os impactos das atividades de saquear o solo, pois cada progresso no
humanas influem no equilíbrio ecológico que aumento da fertilidade por certo período é
permite a sobrevivência da espécie humana. simultaneamente um progresso na ruína das
Friedrich Engels, citado por Rosa de fontes permanentes dessa fertilidade.
Luxemburgo7, nos ensinou algo que, se
podia não estar claro à época, hoje é límpido: Para evitar a barbárie, que, aliás, já se abate
“A sociedade burguesa se encontra diante em várias partes do mundo, há que se agregar
de um dilema: ou avanço para o socialismo a defesa do planeta como parte indissociável
ou recaída na barbárie”. Vivemos tempos da luta pelo socialismo. As crises econômica,
difíceis, tempos de crise financeira, que, na energética, alimentar e ecológica decorrem
verdade, vem se mostrando uma das mais do insustentável padrão de consumo imposto
profundas e resilientes crises econômicas do pelo capitalismo. Desse modo, Mészaros8 nos
capitalismo, cujo futuro é imprevisível. aponta que a alternativa socialista não é só
Não nos parece possível uma saída da apenas possível, mas também necessária para a
crise sem a reversão do modo de ser da so- sobrevivência da Humanidade.
ciedade capitalista, o crescimento econômi-
co como equação linear não resolve. Todavia
a crise não é apenas econômica, é alimentar, A radicalização da tensão
energética e ecológica. É uma crise do atual capitalismo e democracia: o
sistema político e econômico.
Não por outra razão que o dilema socialis-
conflito pela distribuição da
mo ou barbárie, de fundamental importância riqueza
para qualquer discussão política desde o
século XIX, está mais atual que nunca. Ou A sociedade capitalista tal como conhece-
melhor, barbárie se tivermos sorte, nos atu- mos hoje foi moldada sob a ameaça do so-
alizou Mészaros8. O padrão de produção, cialismo realmente existente. O estado de
distribuição, acumulação e consumo hoje bem-estar social ou mesmo a macroecono-
existente nas nações europeias e americanas mia keynesiana e suas preocupações com o
como direcionador das políticas econômicas Se o momento atual não possui o padrão
como também vem se constituindo em um ouro que quando se dissolveu “a própria ci-
sistema devastador para todo o planeta. vilização foi engolfada”14(256-257), a mesma
Na verdade, Polanyi14(232) já nos alertava incompatibilidade entre o capitalismo e a
que “a maior parte da confusão existente na democracia está presente. Polanyi14(264) foi
teoria monetária se devia à separação entre categórico ao afirmar que “não houve um
política e economia”. Os liberais normalmen- único militante liberal que deixasse de ex-
te sempre argumentam que uma espécie de pressar a sua convicção de que a democracia
conspiração coletivista impede os benefícios popular era um perigo para o capitalismo”.
plenos do liberalismo, pois continuamente Isso fica claro quando ele coloca:
mina os esforços para a aplicação da agenda
liberal que salvaria a economia; é interes- A separação de poderes, que Montesquieu
sante notar que eles constantemente alegam (1748) havia inventado nesse intervalo, era
que as medidas adotadas são insuficientes e usada agora para isolar o povo do poder sobre
pedem mais e mais liberalismo. Felizmente a sua própria vida econômica. A constituição
essa ideia já foi desconstruída por Polanyi14. norte-americana, modelada num ambiente
No entanto, Braudel15(579) nos mostra de de fazendeiros e artífices por uma liderança
maneira mais enfática as relações de inter- já precavida pelo cenário industrial inglês,
dependência entre o Estado e o Capital: isolou completamente a esfera econômica
da jurisdição da constituição, colocando a
Os homens de negócios gostam de dizer que propriedade privada sob a mais alta prote-
a política ocupa atualmente o principal papel, ção concebível, e criou a única sociedade de
que o poder do Estado é tal que nem o banco, mercado legalmente constituída no mundo.
nem o grande capital industrial contam com Apesar do sufrágio universal, os eleitores
relação a ele. E, claro, não faltam analistas sé- norte-americanos não tinham poder contra
rios que falam do Estado mastodonte, do Es- os proprietários14(264).
tado que tudo esmaga e retira a iniciativa do
setor privado, da liberdade benéfica do ‘ino- No Brasil atual, a Lei de Responsabilidade
vador’. Dever-se-ia obrigar esse mastodonte Fiscal e a recente Emenda Constitucional
a voltar ao seu antro. Mas também lemos o – EC nº 95 são exemplos concretos do iso-
contrário, ou seja, que a economia e o capital lamento da esfera econômica de qualquer
invadem tudo, esmagam a liberdade dos indi- influência do poder político.
víduos. Na realidade, não nos deixemos enga- O processo de transição do capitalismo
nar, Estado e Capital, ou pelo menos um certo industrial para o capitalismo financeiro nos
capital, o das grandes firmas e dos monopó- últimos 30 anos radicaliza a tensão capitalis-
lios, formam um bom casal, e este último, sob mo e democracia, constituindo-se em um dos
nossos olhos, sai-se muito bem. […] graças desafios cruciais à difícil democracia diante do
às suas boas relações, à sua simbiose com deficit democrático produzido pelo processo
o Estado, distribuidor de vantagens fiscais global de desorganização do Estado democrá-
(para ativar o sacrossanto investimento), de ticos, as democracias sociais, do pós-guerra. Os
encomendas suntuosas, de medidas que lhe neoliberais pretendem desorganizar o Estado
abrem melhor os mercados externos, é que o democrático por meio da inculcação na opinião
‘capitalismo monopolista’ […] prospera. […] pública da suposta necessidade de várias tran-
[O] entendimento entre o Capital e o Estado sições, como menciona Santos16.
não é de hoje. Atravessa os séculos da moder- Streeck17 se refere a esse processo de
nidade, a ponto de, cada vez que o Estado va- transição do capitalismo industrial para
cila […] vermos o capitalismo acusar o golpe. o financeiro nos últimos 30 anos como a
considera que há algo mais em 2016 do que de protagonismo no movimento, ainda que, na
o medo anticomunista de 1964, bem como verdade, fosse um mero instrumento de ma-
algo menos. O pavor irracional ao comunis- nipulação do consórcio golpista elites/mídia.
mo é o ausente atual porque o fantasma do Esse sentimento foi construído com maestria
anticomunismo já não mobiliza como antes, sob a batuta do Jornal Nacional. O segundo
as menções à Cuba não se comparam com a dado decisivo da construção moral desse grupo
proporção que adquiriu a Marcha da Família foi a substituição, construída pouco a pouco,
com Deus pela Liberdade em 1964. O que há das bandeiras por melhores serviços públicos
a mais é o repúdio visceral às políticas distri- pela bandeira – a essa altura ainda abstrata – do
butivas de enfrentamento das desigualdades. combate à corrupção e a Proposta de Emenda
Santos23 descreve que o golpe parlamen- Constitucional – PEC 3722.
tar em sociedades de democracia represen- A integração dessa fração conservadora
tativa de massas significa o sequestro do à dinâmica do golpe foi decisiva. A primeira
poder constituinte do povo. A Constituição tentativa de golpe pelo consórcio golpista,
passa a ser dogmaticamente reinterpretada mídia, congresso comprado e justiça justicei-
pelo governo golpista, sobre o que é constitu- ra estava presente no processo do chamado
cional e o que é crime contra a Constituição. ‘mensalão’ em 2005. O ensaio geral do
Sem o acordo tácito entre considerável mensalão fracassou apesar da feroz campa-
maioria do judiciário e do Legislativo, não há nha midiática; Lula foi reeleito pela adesão
golpe parlamentar. Os golpes parlamentares popular às políticas de inclusão social, pois,
constituem um fenômeno novo na história como comenta Souza, para as camadas po-
das tensões entre capitalismo e democracia. pulares, a corrupção é um dado universal da
Nas palavras de Santos23(8): ‘política dos ricos’22.
elaborado por um conjunto extenso de pes- com emenda do teto dos gastos em percen-
quisadores, detalha os efeitos da EC nº 95, o tual do PIB. A simulação supõe uma taxa
gráfico 1, apresentado no documento, estima de crescimento de 1,7% para 2018 e de 2,5%
as despesas primárias do governo federal para os outros anos.
Gráfico 1. Simulação das despesas primárias do governo federal com a EC 95 – em % do PIB – 2017-2036
25
19,84
23
15,90
15
Demais Despesas
% do PIB
12,42
Demais Educação***
Mínimo Educação**
10 Mínimo Saúde**
Previdência*
Total EC 95****
0
2017
2018
2019
2020
2021
2022
2023
2024
2025
2026
2027
2028
2029
2030
2031
2032
2033
2034
2035
2036
estariam associadas a uma menor incidên- hoje aqueles que, como na África subsaaria-
cia de doenças crônicas e a um aumento da na, mal chegam aos 52 anos? E os bolsões de
idade de início dessas doenças. Entretanto, miseráveis que ainda vivem entre nós e em
inúmeros estudos, desde meados dos anos vários países de renda média?
1970, têm demonstrado que isso não ocorre. Trinta anos após a promulgação da
Uma pessoa que morre aos 65 anos, por Constituição, o Brasil mudou de maneira
infarto agudo do miocárdio, por exemplo, significativa seu perfil demográfico e epi-
consome bem menos serviços e produtos de demiológico. Registrou tendências que,
saúde do que se sobreviver ao infarto e vier grosso modo, não deverão sofrer grandes
a falecer de câncer aos 90 anos. A redução transformações nos 30 anos subsequentes,
da mortalidade não se acompanha neces- representadas na figura 1. Segundo as pro-
sariamente de uma redução da incidência, jeções do Instituto Brasileiro de Geografia e
e aumenta o número de sobreviventes por- Estatística36 (IBGE), a população de maiores
tadores de problemas de saúde que estarão de 65 anos triplicou de 1988 a 2018, atin-
sujeitos à ocorrência de problemas de saúde gindo a cifra de 18,3 milhões, e chegará, em
adicionais. A busca incessante por tecnolo- 2048, a 49 milhões de brasileiros, dos quais
gias de prolongamento exaustivo de nossas 14 milhões com mais de 80 anos.
vidas fará sentido? Como trazer aos dias de
Figura 1. Composição absoluta da população, por idade e sexo – Brasil – 1990, 2020, 2050
Fonte: IBGE36.
período. Em 2016, a média de gasto por pessoa que se supõe dos 20%, mas que, em realidade,
dos planos foi 2,55 vezes mais que o SUS, o pertence ao seu 0,1% sempre comprometido a
gasto per capita dos 6,5 milhões de brasileiros um projeto de país ancorado em um suposto
cobertos pelas seguradoras (3,5% da popu- equilíbrio fiscal, nos paradigmas da economia
lação) foi 4 vezes maior (cálculos a partir de ortodoxa e na inserção subalterna na divisão
dados do Sistema Integrado de Planejamento internacional do trabalho.
e Orçamento – Siop38 e da Agência Nacional Na sua crônica ‘A evolução das espécies
de Saúde Suplementar – ANS39). por seleção artificial’, Diegues43 nos apre-
Outro ponto de destaque são os recursos senta o Homo ricus, desenvolvido a partir de
que deixam de ir para o SUS por conta dedu- uma parcela da população que tem acesso a
ções no imposto de renda de pessoas físicas, serviços avançadíssimos de terapia genética
tanto em planos individuais como em copar- na fronteira tecnológica e acaba dissociada
ticipações em planos coletivos40. Estima-se dos demais Homo sapiens. O uso do planeta
o total de gastos tributários da União para a pelos mais ricos e a não construção de um
função saúde para 2018 em cerca de R$ 39 sistema público universal de saúde que
bilhões, dos quais R$ 18 bilhões referiam-se forneça a toda a população os produtos e ser-
a despesas com assistência à saúde41. viços de saúde mais avançados certamente
Dessa restrição fiscal, configura-se uma ten- transformarão a divisão de classes na divisão
dência à intensificação da concorrência entre de espécies sugerida por Diegues43.
os entes federados e, no interior destes, entre Se essa lógica traduzida na EC 9544 não
os prestadores. Também caminha para invia- for revertida, como os recursos destinados à
bilizar a organização em rede dos serviços com saúde que já são insuficientes para atender
fragmentação e segmentação dos cuidados. à demanda, teríamos que construir câmaras
Reduz-se ainda os investimentos em novas de gás para os cidadãos que atingissem uma
capacidade e cai a qualidade e a segurança dos determinada idade em que o seu custo em
serviços. A iniciativa privada acaba por produ- saúde seria excessivo. Ademais, haveria de
zir novos arranjos assistenciais, como as clíni- existir uma norma que bebês com menos
cas de vizinhança e clínicas populares. Também de um quilo, salvo com cobertura privada,
ocorre o desenvolvimento e fortalecimento de seriam deixados para morrer.
novas modalidades de pré-pagamento: planos Não demoraria para que alguém propu-
populares, Vida Gerador de Benefícios Livres sesse a esterilização em massa das camadas
(VGBL), Saúde e franquias. Isso naturalmen- mais pobres, chegando-se à solução final para
te resultará em um aumento da desigualdade a pobreza: a eliminação física dos pobres – e
territorial por riqueza e da estratificação do com eles a contenção do gasto em saúde com
atendimento, além da concentração dos inves- estas pessoas. Ou pior, como Diegues43 escreve
timentos e inovações no setor privado de ponta. a certa altura, os decadentes Homo sapiens
As medidas compensatórias adotadas pelo seguiam espalhados em desordem pelo planeta,
governo, entre 2000 e 2015, permitiram a re- vagando pelas áreas mais pobres dos continen-
tirada de 28 milhões de pessoas da pobreza, tes, com famílias numerosas e sobrevivência
enquanto a concentração de renda no 1% dos cada vez mais curta.
brasileiros no topo aumentava. Os seis brasi- Até que finalmente “por diversão e
leiros mais ricos do país são tão ricos que os esporte, os Homo ricus passaram a caçar
50% cento mais pobres. A tributação e o gasto os Homo sapiens…”43. Será essa nossa
público não têm reduzido as desigualdades his- escolha? A reversão dessas medidas
tóricas no Brasil42. Sem a reversão da EC nº 95, nos parece indispensável para qualquer
parece se confirmar o Brasil dos 20% descrito projeto nacional que não incorpore solu-
por Souza (2016). Ou ainda mais grave, um país ções finais em suas estratégias.
em última instância, destruíram aquela socie- uma sociedade fundada nos direitos sociais e
dade. As guerras externas apenas apressaram humanos de cidadania, feminista, libertária,
essa destruição. antirracista, compartilhada, diversa e radi-
calmente democrática. O momento histórico
Urge, portanto, dada a incapacidade de res- é de resgatar o espírito de 1988!
posta do liberalismo, repaginado como neolibe-
ralismo, aos problemas do nosso tempo, que se
construa uma alternativa para que o fascismo Colaboradores
não retorne. Esta não é uma tarefa apenas dos
socialistas, dos comunistas ou dos sociais-de- LRF Souto, GS Noronha e JC Noronha par-
mocratas, mas dos seres humanos. ticiparam da concepção, análise, redação do
Estamos diante de mudança de época, artigo e aprovação final do manuscrito. TR
uma crise de grande magnitude entre civi- Pereira e AM Costa participaram da con-
lização ou barbárie. Há que se democratizar cepção, análise, revisão crítica relevante do
a revolução e revolucionar a democracia47. conteúdo intelectual e aprovação final do
Não há saída sem retomada da dignidade manuscrito. s
da política, estratégica para a construção de
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me Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial
Recebido em 14/08/2018
da União. 16 Dez 2016. Aprovado em 20/08/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
DOI: 10.1590/0103-11042018S311
RESUMO O processo político da moderna Reforma Sanitária Brasileira convive, desde o seu nasce-
douro, nos anos 1970, com um espectro que o atormenta: o chamado ‘fantasma da classe ausente’, que
pretende designar a pouca participação das massas populares nas lutas e reivindicações pela saúde.
A experiência de participação popular do processo italiano de reforma sanitária foi a referência dos
sanitaristas brasileiros, a partir da qual o estranhamento com o caso brasileiro se produziu. A histó-
ria do fenômeno, no entanto, como se demonstrou, inscreve-se nos dilemas experimentados pelo
conjunto da classe trabalhadora no Brasil, em franco processo de transição estratégica, no mesmo
período, e se deve também às opções táticas assumidas pelos sanitaristas para a consecução dos ob-
jetivos políticos do movimento sanitário. Conclui-se que o recuo organizativo e combativo da classe
é parte da derrota histórica sofrida com a derrocada do bloco socialista, na virada dos anos 1980. Sua
superação só poderá ser operada pela retomada da construção da luta pela base, atravessando fron-
teiras setoriais e rompendo com a fetichização do Estado, como meio para a emancipação plena dos
trabalhadores, e da ordem ‘democrática’ burguesa, como terreno ‘legítimo’ da luta política.
PALAVRAS-CHAVE Reforma dos serviços de saúde. Política pública. Sistema Único de Saúde.
ABSTRACT The political process of the modern Brazilian Sanitation Reform has been haunted by a
phantom since its beginning, in the 1970s: the so-called ‘ghost of the absent class’, which intends to
designate the little participation of the masses in the fights and claimings for health. Brazilian sani-
tarists had the popular participation experience of the Italian Sanitation Reform as a reference and
it was precisely from it that emerged a certain strangeness to the Brazilian case. The history of the
phenomenon, however, is inscribed in the dilemmas experienced by the Brazilian working class as a
whole, which was under a process of strategic transition then. It is also due to the tactical choices made
by the sanitarists to achieve the political objectives of Brazilian Sanitation Movement. We conclude
that the organizational and combative retreat of the class is part of the historical defeat suffered when
1 Fundação Oswaldo the socialist block fell, in the turn of the 1980s. The overcoming of both the defeat and the phantom will
Cruz (Fiocruz), Escola
Politécnica de Saúde only be accomplished through the resumption of the struggle from the base, crossing sectoral boundar-
Joaquim Venâncio (EPSJV) ies and breaking with the fetishization of the State as a means to the full emancipation of the workers;
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
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org/0000-0002-1053-
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andredantas@fiocruz.br KEYWORDS Health care reform. Public policy. Unified Health System.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 145-157, NOVEMBRO 2018
146 Dantas AV
É certo que prever significa apenas ver hoje mais claramente os seus gargalos, suas
bem o presente e o passado como movimento. ribanceiras e buracos sem fundo.
(Antonio Gramsci) Uma das expressões máximas dessa
derrota tem sido o processo contínuo e, nos
últimos anos, ainda mais acelerado, de des-
Introdução monte do nosso Sistema Único de Saúde
(SUS). Não por coincidência, foi o SUS
Momentos de balanço em perspectiva também a política social de maior enverga-
histórica costumam resultar de derrotas dura que resultou da luta pela retomada do
mais ou menos graves na luta política. Não chamado Estado Democrático de Direito.
parece restar dúvida de que seja o caso da Ante o desastre, que não é de agora e cujos
classe trabalhadora brasileira. A energia de contornos ainda não estão inteiramente de-
luta galvanizada desde a reorganização das limitados, ressurge com força o debate em
forças populares, na luta contra a ditadura torno da incômoda ausência dos trabalhado-
empresarial-militar (1964-1985), a partir dos res organizados e do povo oprimido em geral
anos 1970, exauriu-se de vez com o processo das batalhas pela sua defesa. Estamos diante
ativo de conciliação de classes promovido do célebre ‘fantasma da classe ausente’, na
zelosamente pelos governos petistas (2003- expressão cunhada por Sergio Arouca em
2016). O golpe parlamentar de 2016 contra fins dos anos 1980. Para esse importante sa-
o governo de Dilma Rousseff marcou o fim nitarista, e para uma geração de militantes
do pacto inaugurado – já ele mesmo uma que ao seu lado lutou por uma saúde pública,
derrota – com a nova república, em 1985. universal e de qualidade, paradoxalmente,
A despeito de alguns sinais de retomada a despeito da orientação dos seus esforços
aqui e ali, é constatável o quanto estamos, no sentido das classes trabalhadoras, o mo-
os trabalhadores, aquém da capacidade de vimento sanitário quase nunca pôde contar
resistir à potência e amplitude dos ataques com a sua participação direta na luta.
que viemos sofrendo, bastante agravados e Para nós, não resta dúvida de que a relação
intensificados desde a usurpação que levou dos movimentos sociais com a reforma
Michel Temer à presidência da República. sanitária é um nó crítico que precisamos
É hora de inventariarmos o que produzi- enfrentar2 mas, diríamos, indo além, que o
mos em termos teóricos, práticos e progra- fenômeno que, por ora, nos ocupa atravessa
máticos na luta política emancipatória de as fronteiras setoriais da saúde. Tal enfrenta-
esquerda nas últimas décadas. A análise da mento também nos impõe uma avaliação da
correlação de forças é elemento indispensá- trajetória cumprida até aqui, como fizemos
vel nesta escovação da história a contrapelo1, em estudo anterior; e não será o caso agora
mas não pode ser debitada a ela todos os de recuperar por completo3. Dividiremos
nossos fracassos. Não se trata aqui de uma este trabalho, então, em três momentos: ini-
perspectiva abstrata, idealista, que pretende ciaremos pela caracterização do fenôme-
cobrar dos projetos e das intenções políticas no; na sequência, apresentaremos a nossa
de determinado período a não realização, crítica na intenção de contribuir para a
total ou parcial, de tudo o que foi declarado. identificação da paternidade do fantasma
O balanço da estratégia e das táticas assu- e, por fim, apontaremos elementos atuais
midas na luta em processo, portanto, deve indicativos da persistência das lideran-
servir como ferramenta da própria luta, sem ças do movimento sanitário nas mesmas
a qual a produção de mais derrotas em sequ- linhas estratégicas de ação que, ao fim e ao
ência poderá ter vida longa, pelas mesmas cabo, acreditamos, têm servido como ali-
trilhas que, uma vez testadas, apresentam mento para o espectro que nos ronda.
Mops diante de uma proposta que ela con- de Gerschman e endossasse a sua perspec-
sidera irrealizável e, portanto, improcedente tiva. Lancemos mão ainda, mais uma vez,
para aquela conjuntura: de Escorel11(195) para concluir esta brevís-
sima caracterização da tática de ouro dos
Os delegados do Mops apresentaram uma sanitaristas:
proposta de estatização do setor, sem parti-
cipação nenhuma do setor privado, a qual não A partir de 1983 o movimento sanitário con-
contou com a aprovação da maioria das enti- seguiu pôr em prática uma de suas estraté-
dades representadas, dentre elas o Cebes, a gias, a ‘ocupação dos espaços institucionais’.
Abrasco e as centrais sindicais10(105). Na tentativa de modificar o direcionamento
da política pública, passou a fazer das insti-
Por fim, Gerschman10(112) nos apresenta tuições de saúde um lócus de construção da
a argumentação que se encontra subjacente contra-hegemonia. Com a adoção dessa es-
a toda construção de sua análise: o acerto tratégia, separou-se ainda mais do movimen-
da tática sanitarista reformista, que de tão to popular. Ao privilegiar as instituições de
acertada poderia seguir distante e autono- saúde, relegou a segundo plano a ampliação e
mamente em relação às suas bases em poten- o aprofundamento da aliança com as classes
cial. É verdade, façamos justiça, que ao final populares e trabalhadoras [...]. O processo
do trecho citado há uma reprovação quanto passou a ficar restrito a avanços e recuos no
à forma de condução das divergências pelas âmbito das políticas institucionais e, concen-
lideranças do movimento sanitário, mas nada trado nesse espaço (político-legal ou jurídico-
que equilibre ou relativize o processo de ins- -institucional) de luta, o movimento tendeu
titucionalização ‘como uma exigência do pro- a perder de vista a necessidade de trabalhar
cesso político’, como sacramentou a autora, melhor sua aliança com as classes populares.
expressando o posicionamento do movimen-
to sanitário naquela conjuntura ímpar: E completa a mesma autora:
A mudança no terreno da luta política se expli- Nos primeiros anos da Nova República, o mo-
ca: o Movimento Sanitário, vanguarda do pro- vimento sanitário viveu um ciclo de euforia
cesso de transformação das políticas de saúde, quando, inserido nas instituições de saúde,
tinha como estratégia penetrar nos aparelhos conseguiu promover uma inflexão na dire-
de Estado com o objetivo de tentar implemen- cionalidade da política de saúde como um
tar suas táticas para mudar a direção da polí- todo. Esse período foi caracterizado por al-
tica e, assim, privilegiar o setor público. [...] a guns autores como a institucionalização do
participação nos organismos estatais acabou movimento sanitário, que perdera a base na
sendo uma decisão unilateral do Movimento sociedade civil e abandonara as propostas
Sanitário, o que dificultou sua relação com o transformadoras em favor de simples refor-
Mops no transcorrer da década de 80. mas administrativas. Não há dúvida de que,
excetuando-se a VIII CNS e a luta na Cons-
O antiestatismo do Mops e, especifica- tituinte, a atuação do movimento sanitário
mente no contexto da VIII CNS, a recusa à esteve concentrada no plano das instituições
participação do setor privado no Sistema de de saúde. No entanto, as duas exceções foram
Saúde que se propunha, e sua consequente profundas e marcantes, atenuando as supos-
estatização completa, são os pontos destaca- tas tendências ‘institucionalizantes’11(196).
dos pela autora que nos permitiriam aludir
ao que Lênin chamaria de ‘doença infantil’ Como é possível notar, tanto Gerschman
daquele movimento se tivesse escrito o livro quanto Escorel – que podem ser tomadas
aqui como representativas da visão domi- consequente reação neoliberal burguesa são
nante entre os sanitaristas – apontam com os ingredientes que permanecem na base dos
preocupação o distanciamento entre as ‘li- processos da luta de classes até os dias atuais
deranças’ do movimento e suas bases em no mundo, embora combinados às especifi-
potencial, mas tal como procedeu majorita- cidades regionais. Não é mero acaso crono-
riamente o movimento na sua compreensão lógico que o auge de uma experiência como
de realidade, endossam a tática institucional, o Estado de Bem-Estar Social, no centro do
em última análise, por considerarem-na o capitalismo, tenha sido contemporâneo da
centro da ação estratégica que o momento Guerra Fria e seu desmonte comece a se dar
conjuntural exigia, embora acompanhada no exatamente quando o ‘inimigo vermelho’
encalço do que seria uma contingência incô- vai à lona. Se para a análise das relações de
moda: a ausência da base. força, portanto, como ensina Gramsci13, é
Giovanni Berlinguer12(5), membro do decisivo distinguir o orgânico (movimentos
Partido Comunista Italiano (PCI), liderança relativamente permanentes) do conjuntural
destacada da reforma sanitária daquele país (ocasionais, imediatos), precisamos ter clara
e interlocutor de primeira ordem dos sanita- a curva de descenso global, desde então, da
ristas brasileiros, partindo das mesmas pre- luta dos trabalhadores, a despeito de con-
ocupações de Gerschman, Escorel e outros, quistas e êxitos particulares ou conjunturais.
arrisca uma brevíssima análise sobre outros É ponto pacífico para nós, portanto, que toda
dois processos históricos que resultaram análise sobre uma determinada realidade
na reformulação profunda dos serviços de nacional deve ter em conta esta dinâmica,
saúde. Se na Itália a luta setorial da saúde se além de não poder descuidar dos elementos
caracterizou pela imensa potência do mo- internacionais expressos em cada realidade
vimento popular organizado, este não foi o nacional. Essa pequena digressão nos serviu
caso não só do Brasil. Na Rússia, diz o autor, aqui para reinserir o fantasma de que trata-
onde foi criado o serviço sanitário público mos no mundo dos viventes.
nos anos imediatamente após a revolução de
1917, isso se deveu mais à “sublevação políti-
ca global” do que a reivindicações populares A carne e o osso
específicas. No que diz respeito ao National
Health Service (NHS) inglês, que é de 1948, Se retomarmos a citação de Escorel que ca-
Berlinguer o atribui mais à chegada dos tra- racteriza o objeto que ora nos ocupa, recor-
balhistas ao governo e menos como produto daremos que Arouca não compreende o tal
de um movimento de massas pela saúde. A fantasma, em verdade, como expressão da
despeito de nossa maior ou menor concor- ausência absoluta da classe. Defende que a
dância com as interpretações do autor, os direção geral da luta pela reforma sanitária
casos concretos citados servem para mostrar não pode ser senão da própria classe, embora
que o fenômeno da ‘classe ausente’ é bem o movimento e a atenção dessa mesma classe
mais terreno do que se supõe, posto que tenham estado sempre voltados em menor
indica que as lutas setoriais fazem parte de medida para o campo específico da saúde.
um todo indivisível que não obedece a fron- Não nos parece pouco relevante essa ob-
teiras tão bem claras e delimitadas como servação, dado que indica, a nosso ver, uma
pretendem muitos entre os sanitaristas. compreensão dialética da realidade, em que
Vale ainda um último destaque. O fim do as lutas setoriais não podem ser tomadas
bloco socialista, com a queda do muro de apenas no interior de suas fronteiras, para
Berlim e a dissolução da União Soviética, a compreensão tanto dos êxitos setoriais
na passagem entre os anos 1980 e 1990, e a como dos dilemas e derrotas globais que se
expressam também em cada setor. Essa pers- a questão da saúde pode ser considerada,
pectiva, no entanto, não foi a que prevaleceu dentro dos movimentos, seja como um obje-
no interior do movimento sanitário, por di- tivo exclusivo, seja, ao contrário, como uma
versas razões, tendo sido a tônica de sua ação luta vinculada a várias outras8(50).
política e formulação, sobretudo a partir dos
anos 1990, o insulamento, cuja principal O SUS, portanto, é produto da luta dos
consequência foi restringir-se ao debate em trabalhadores, embora não majoritariamen-
torno da gestão do SUS. O fantasma só fez te tenham empunhando a sua bandeira.
crescer desde então, mas a interpretação Combinado a isso, contou significativamen-
do fenômeno também se apequenou, des- te, claro, o conhecimento técnico-político e a
lizando para uma culpabilização velada da presença de militantes e profissionais do setor
classe trabalhadora pela sua própria derrota. em posições-chave em âmbito acadêmico e
Seu desconhecimento do SUS, sua pouca ou governamental, mas não de modo a perder de
nenhuma consciência sanitária e o seu senso vista – como se faz – a origem da energia que
comum que valoriza o privado em detrimen- redundou no SUS. Apontar para a ausência da
to do público, conjugados ao corporativismo classe, compreendida apenas como movimento
sindical que fortalece o mercado dos planos social setorial – mesmo que com a melhor das
de saúde, tornaram-se peças de acusação de intenções políticas – desqualifica a luta e super-
uso corrente. Cobra-se do fantasma o que o valoriza os arranjos pelo alto.
fantasma não pode dar. Tais constatações, Outro importante ingrediente que pode
embora corretas, ignoram e desconhecem a ajudar a explicar o fantasma diz respeito à
própria base que acusam de ausente. pretensão de pureza do movimento sanitá-
Eis a chave de leitura para o fenômeno. rio quanto à união nacional que seria possí-
Sem pretender negar a sua validade como vel forjar ante as bandeiras civilizatórias da
problema, é nossa intenção mapear os seus saúde. A aposta em um projeto nacional, in-
contornos e dividir as responsabilidades. A cluindo setores da burguesia, no sentido da
autocompreensão do setor saúde na relação construção tardia, no Brasil, de um Estado
com as lutas da classe trabalhadora em geral, de Bem-Estar Social, é a base para enten-
a percepção de sua importância na luta contra dermos o lugar da reforma sanitária nesse
a ditadura, a memória das conquistas que pro- projeto e, no conjunto da esquerda, os seus
tagonizou e a autoproclamação como “campo descaminhos. Não é de ninguém senão de
privilegiado da luta de classes”4(183) – mais au- Sergio Arouca a sua expressão mais clara,
toelogiosa e individualizante do que unitária proferida nada mais nada menos do que na
e aglutinadora – têm funcionado, paradoxal- sessão de abertura da célebre VIII CNS15(39):
mente, como um obstáculo à construção de
laços, pontes, alianças e, em última análise, Há alguns dias atrás, algumas entidades liga-
enraizamentos na base. É Sônia Fleury14(195) das ao setor privado se retiraram da Confe-
quem confirma o nosso diagnóstico: “nós rência [...]. Mas eu lamento profundamente a
fizemos uma luta muito específica e muito sua ausência, porque nesta Conferência está
sem articulação com as outras áreas”. se tratando é de criar um projeto nacional
Souza8, em uma tentativa de responder o que não pretende excluir nenhum dos grupos
que são, como se constituem e como atuam os envolvidos na prestação de serviços, na cons-
movimentos de saúde, concluiu por sua imensa trução da saúde do povo brasileiro. Assim, a
diversidade e, por consequência, grande di- eles queria deixar uma mensagem: que, mes-
ficuldade de apreensão. A intersetorialidade, mo na sua ausência, vamos estar defendendo
aponta, é uma das características mais clara- os seus interesses, desde que estes não sejam
mente identificáveis nos movimentos: os interesses da mercantilização da saúde.
Portanto, todo aquele empresário que está a ideia de ‘Reforma Sanitária’ é pensada, na Itália,
trabalhando seriamente na área da saúde, na desde o início, como algo que não se restringe
qualidade da sua competência técnica e pro- aos limites de um projeto de hegemonia ‘bur-
fissional, não precisa se sentir atemorizado, guês’. Mas sim como algo que visa superá-lo, no
porque aqui ele vai ser defendido. sentido dialético rigoroso do termo.
e da academia para, com ela, e a partir dela, portentosas manifestações de rua de junho,
produzir luta política em nome de pautas tão suspeitamos, produziram energia concen-
abrangentes e necessárias quanto as mazelas trada suficiente para importantes desdo-
profundas que experimentam os trabalhado- bramentos políticos que ainda podem se
res atualmente. concretizar em futuro breve (a conferir). Seu
caráter multitudinário e espontâneo, distan-
te de centrais, sindicatos e partidos, desafia a
Considerações finais nossa compreensão, mas também indica com
certo grau de clareza uma recusa a formas e
A superação de uma estratégia de classe não conteúdos políticos que dirigiram o último
é mero ato de vontade das bases ou de suas ciclo político desde a chamada ‘redemocrati-
lideranças, sabemos. O processo é longo, zação’. Como nos ensina Gramsci21(190):
tortuoso e não tem desfecho infalível, pre-
visível. No entanto, a identificação do des- As classes inferiores, estando historicamente
compasso entre os movimentos concretos na defensiva, não podem adquirir consciên-
da classe e as leituras de realidade dos que são cia de si a não ser por negações, através da
ou se pretendem como suas lideranças é ato de consciência da personalidade e dos limites
vigília constante que nos cabe a todos, posto de classe do adversário: mas justamente este
que se constitui em parte importante do nosso processo ainda é informe, pelo menos em es-
‘inventário’. Dessa forma, aqui neste esforço cala nacional.
final de análise, queremos sugerir algumas
rápidas pistas que indicam, no plano do dis- Não nos parece adequado, portanto, que
curso, a persistência das mesmas práticas polí- cobremos dessa irrupção recente um estágio
ticas e apostas estratégicas, que são expressão de consciência de classe avançado que ela
‘também’ da nossa derrota e apatia atuais. não poderia parir ou expressar, uma vez
Nesse sentido, se estivermos corretos que a sua própria ocorrência tardia, e no
na interpretação dos fatos, as jornadas de formato que assumiu, nos sugere a trajetória
junho de 2013 representaram a explosão de recuo de consciência cumprida até aqui.
de uma concertação social vigente, mais Todavia, ela parece nos indicar o fechamento
notadamente, desde 1988 (em nome de um de um período da história política brasileira,
projeto de nação, com ampliação de direi- perante o esgotamento das formas institu-
tos, à esquerda; mas sob controle, posto cionais e da crise dos modos consagrados de
que ‘lento, gradual e seguro’, à direita) que, produzir a política na relação entre as classes.
crescentemente, retirou das ruas e do con- As evidências desse processo abundam, e as
trole das massas o exercício direto da polí- consequências para os trabalhadores – desa-
tica. Sua crise terminal foi a consequência bituados ao enfrentamento e redescobrindo,
mais visível do processo de garroteamento no susto, a luta de classes – têm alcançado
dos canais institucionais de atendimento às níveis dramáticos. Como principal operado-
demandas populares, que Felipe Demier20 ra política do ciclo que parece se fechar, as
tem chamado de ‘democracia blindada’. A forças dessa fração majoritária da esquerda,
reação ao agravamento da crise econômica e que se autointitula ‘democrática’, literal-
à precariedade dos serviços públicos básicos mente não acusou o golpe e se mantém firme
superou a até então eficiente contenção na aposta de soluções consensuadas, intra-
do movimento sindical e dos movimentos classes, conciliadoras, universais e no estrito
sociais produzida pelos governos petistas. respeito dos limites da ordem do capital.
Mesmo que débeis teórica e organizativa- Não será preciso muito esforço para
mente, carentes de projeto e programa, as evidenciar, em registro atualíssimo, o que
estamos afirmando. Basta que avancemos na até aqui na luta pelo SUS e dos constantes
caracterização desse descompasso, trazen- ataques sofridos desde 1988, com a enorme
do para o diálogo um dos mais importantes ampliação do setor privado e consequente
intelectuais coletivos que falam em nome do enfraquecimento do setor público, aponta-
movimento sanitário e que costuma evocar -se para a necessidade de construção de
o fantasma para a construção dos seus diag- “uma sociedade solidária e democrática” na
nósticos sobre as mesmas derrotas que têm qual se deve buscar “um modelo de Estado
nos atingido a todos, trabalhadores: o Centro onde políticas sociais protegem os cidadãos
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), e reduzem as desigualdades”. Em suma, “um
criado em 1976. Em três documentos recen- Estado democrático cujo centro para o seu
tíssimos, essa entidade manifestou a força desenvolvimento sejam as pessoas e as popu-
viva de uma prática política que resiste, como lações, e não os interesses do mercado”25(6).
dissemos, a despeito (e na contramão) da pe- O terceiro documento a que faremos refe-
dagógica realidade que vivemos. Vejamos. rência é a tese do Cebes para o biênio 2017-
Em editorial intitulado ‘Saúde é demo- 201926. Lançada em fins do mês de julho de
cracia: ontem, hoje e sempre’, presente na 2018, com a assunção de uma nova diretoria,
edição de outubro de 2017, o Cebes reafirma trata-se de um guia geral da ação política do
a sua luta pela democracia e reivindica o seu Centro no período. No entanto, não foge às
importante e representativo papel nas lutas compreensões e diretrizes que apontamos
de décadas atrás pelo direito universal à aqui nos documentos anteriores e, inclusive,
saúde. Faz da realidade o seguinte diagnósti- os repete em determinado conjunto de for-
co: vivemos atualmente, em escala mundial, mulações e ideias-força. Consideramos des-
o aumento da tensão entre democracia e ca- necessário citá-lo diretamente para a coleta
pitalismo, que anuncia o fim do ‘capitalismo de mais evidências, mas a decisão de incluí-lo
democrático’, produto do pacto social do nessas considerações finais se deveu à im-
pós-guerra cujo resultado foi a domesticação portância estratégica conferida a ele por seus
dos mercados pela democracia. E completa: autores para a condução política do Centro, e
do movimento sanitário, no próximo biênio.
a democracia passou a ser dominada pelos Sendo assim, a perspectiva da conciliação
mercados, alterando o contrato social do pós- de classes, que acredita na possibilidade de
-guerra e o equilíbrio que se mantinha entre harmonização dos interesses entre capital e
os interesses do capital e os interesses dos trabalho, no controle do capital pelo Estado
cidadãos22(991). – este conduzido democraticamente pela
vontade geral do conjunto da cidadania –,
Na edição seguinte da mesma revista, não poderia ser mais persistente. Em que
que veio a público em janeiro de 2018, outro pese a importância de reafirmar a luta pela
editorial, sob o título ‘Justiça social, demo- democracia sob uma conjuntura de cassa-
cracia com direitos sociais e saúde: a luta do ção de direitos e desrespeito flagrante aos
Cebes’, insistiu na mesma linha. Recusando mínimos espaços de garantia legal no inte-
o Estado, em última análise, como garanti- rior da ordem burguesa, a constatação que
dor da relação de dominação e extração de salta aos olhos é que continuaremos a pro-
valor que é o capital23 e romantizando a so- duzir uma fantasmagoria voluntária. É de se
ciedade civil como o espaço do consenso e da notar que após 32 anos a síntese do programa
harmonia24, o Cebes novamente nos oferece político da esquerda democrática, vocaliza-
a sua compreensão do real e um programa a do por Arouca na abertura da VIII CNS de
ser buscado pelas forças progressistas. Após 1986, continue a se fazer ouvir.
um rápido balanço da trajetória cumprida Em texto de 1993, analisando o impacto
da atmosfera revolucionária dos anos 1960 forças por meio de reformas, tijolo por tijolo,
e 1970, no Brasil, Jacob Gorender27(14) disse estaria construindo o socialismo (democrá-
tratar-se também de um fantasma a herança tico), que viria como consequência lógica
deixada pela derrota da luta guerrilheira: “o de um potente processo de democratização.
fantasma da revolução brasileira”. É irresistí- Para tanto, e exatamente em função dessa es-
vel a analogia. Serão distintos os fantasmas? tratégia, aderiu taticamente a uma forma de
Acreditamos que não, posto que ambos são fazer política que, em nome das conquistas
produto de derrota. Na sequência do fim do eleitorais e institucionais, crescentemente,
regime ditatorial, a ‘esquerda democráti- relegou a segundo plano a organização e a
ca’ que resultou do movimento de massas, mobilização pela base, produzindo assim, no
embora tenha nascido recusando a concilia- que lhe coube, deliberadamente, mais distan-
ção de classes capitaneada pelo PCB de então, ciamento e ausência do que a correlações de
aos poucos também se afastou, convicta, da forças já nos impunha. À classe que deixamos
revolução e junto dela, acreditava, do seu de enxergar como verdadeiro motor das con-
fantasma vermelho. Elegeu a ‘radicalização quistas civilizatórias e que, depois de desabo-
da democracia’ como nova bandeira, nos nada pelas suas experiências mais radicais,
limites da ordem burguesa e de suas insti- recolheu-se, demos o nome impróprio de
tuições, na expectativa de que acumulando fantasma. É chegada a hora de reencarná-la. s
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Recebido em 31/07/ 2018
Aprovado em 09/08/2018
Conflito de interesses: inexistente
18. Rodriguez Neto E. Saúde – promessas e limites da
Suporte financeiro: não houve
Constituição. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003.
RESUMO O ensaio abordou problemas para refletir, identificar contradições e formular estra-
tégias políticas sobre a privatização do sistema de saúde no Brasil, especialmente as próprias
acepções sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), sobre o que é público e o que é privado.
Constatou-se que as relações entre público e privado apreendidas somente por medidas
(quantidade de unidades, atividades, recursos humanos e financeiros) estão subjacentes a in-
teresses e negociações entre agentes e suas decisões políticas e a dificuldades para discernir
os traços estruturais de um sistema de saúde desigual e segmentado das conjunturas políticas
que os reproduzem. Trinta anos após a Constituição de 1988, houve avanços, impasses e retro-
cessos; assim como adaptações na compreensão do SUS e do setor privado.
ABSTRACT The essay discusses problems to reflect on, identify contradictions, as well as discern
and formulate political strategies on the privatization of the health system in Brazil, especially
the multiple meanings of the Unified Health System (SUS) and about what is public and what
is private. It is observed that the relations between public and private seized only by measures
(quantity of units, activities and human and financial resources) are underlying interests and
negotiations between agents and their political decisions and difficulties to discern the structural
features of an unequal health system and segmented from the political conjunctures that repro-
duce them. Thirty years after the 1988 Constitution, there have been advances, impasses and
1 Universidade Federal do setbacks, as well as adjustments in the understanding of the SUS and the private sector.
Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid. KEYWORDS Unified Health System. Privatization. Private sector.
org/0000-0001-8730-
2244
ligiabahia55@gmail.com
2 Universidade de São
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 158-171, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos 159
têm sido recepcionadas sob o registro do SUS encontraram um equilíbrio duradouro e vir-
para pobres. A hipótese a ser posteriormente tuoso com a segmentação do sistema. O do-
analisada é que a sociedade, sempre que per- cumento da entidade empresarial Instituto
guntada, declarou prioridade para a saúde, Coalizão Saúde, criada em 2015 e liderada
apoio ao SUS, ao pagamento de impostos e a pelo presidente da maior empresa de planos
alocação de recursos em políticas universais. privados de saúde no Brasil, afirma:
No entanto, as coalizões governamentais, os
governos e determinados dirigentes, diante Sempre na defesa intransigente do Sistema Úni-
de restrições fiscais e possivelmente orienta- co de Saúde. E com a convicção de que, como
dos por uma compreensão equivocada sobre determina a nossa Constituição, a coexistência
saúde, acataram e implementaram políticas e a colaboração entre setores público e privado
de saúde orientadas por recortes focalizados. podem e devem proporcionar um melhor aten-
Entretanto, a conjectura sobre a cris- dimento à nossa população - desde a prevenção
talização da compreensão do SUS pelas e atenção básica até o mais sofisticado recurso
instâncias empresariais e governamentais, que a medicina pode oferecer1.
como assistência para pobres, será, por en-
quanto, apenas delineada; obviamente seus Sem definir, portanto, de que SUS estamos
contornos e desdobramentos requerem falando, surgem realidades supostamente
análises específicas, que escapam ao foco inesperadas ou, ao menos, muito distanciadas
do texto. O ponto de partida adotado aqui é daquelas já quase lendárias histórias sobre as
que a perspectiva de um sistema público de disputas sobre o direito à saúde, que antecede-
saúde abrangente e de qualidade ficou de pé. ram o texto constitucional. Não se menciona o
Porém o projeto de SUS efetivamente uni- direito à saúde, e, sim, o SUS e a coexistência
versal nunca foi e não é consensual, inclusive entre o público e o privado para o ‘atendimento’.
no segmento que declara o apoiar.
O SUS constitucional
SUS: um conceito e uma trajetória de
polissêmico implementação pragmática
Após a Constituição, o SUS torna-se um
termo polissêmico, condensando-se, pos- O SUS constitucional tinha um orçamento
teriormente, como rede pública de servi- compatível com a missão da universalização
ços. A operação de substituição do sistema do direito à saúde. As duas novas fontes de
pelos serviços e do universal por assistência custeio (Contribuição para o Financiamento
para os pobres, para quem não pode pagar, da Seguridade Social – Cofins e Contribuição
amputou o conceito ampliado de saúde. Não Social sobre o Lucro Líquido – CSLL) para a
é por acaso que se passou a considerar o seguridade social somadas às anteriores (im-
SUS equivalente ao ‘sistema suplementar’, a postos gerais e contribuição previdenciária)
utilizar expressões como ‘SUS dependente’ seriam suficientes para a expansão de direi-
como se fossem naturais . A acepção de SUS tos sociais. Entretanto, a seguridade social
como serviço público para pobres tornou-se, jamais foi implementada. Mal a Constituição
assim, hegemônica. Para uma parte dos po- foi aprovada, a conversa sobre direitos que
líticos, gestores, técnicos e empresários, as não cabem no orçamento se disseminou.
tensões e as lutas travadas durante o processo Atualmente, predominam ideias errôneas
de debates e de aprovação do SUS constitu- sobre o texto constitucional. As principais
cional em torno da democratização da saúde interpretações incorretas são: 1) o SUS foi
promulgado sem o devido financiamento; tiveram mandatos curtos (entre 1985 e 1988)
2) houve um conchavo dos sanitaristas com e foram sucedidos por Jader Barbalho. Hesio
setores conservadores em torno da permis- Cordeiro permaneceu na presidência do
são para a atuação da iniciativa privada. Instituto Nacional de Assistência Médica da
A história, no entanto, é mais interessan- Previdência Social (Inamps) entre 1985 e 1988
te do que suas versões estilizadas e está bem e foi substituído por um médico, que havia
documentada. As entidades da sociedade participado da gestão de Jarbas Passarinho,
civil se organizaram em torno de arenas de conterrâneo e ligado à família presidencial.
negociação específicas nos debates sobre a Já em 1989, o documento ‘Adult Health
Constituição. Na saúde, os sanitaristas esta- in Brazil: adjusting to new challanges’, do
beleceram acordos com parlamentares pro- Banco Mundial4, afirmava que seria impossí-
gressistas. Além disso, o setor privado buscou vel financiar com recursos públicos a saúde
apoio no centrão2 (parlamentares que repre- para todos, avançando propostas sobre a
sentavam setores sociais mais conservadores, configuração público-privada mais adequa-
maioria na Constituinte, expressaram-se em da para o Brasil: os pobres teriam melhores
votações importantes, como a questão da serviços de saúde se o “setor público imitas-
reforma agrária, na qual foi preservada a dis- se o setor industrial brasileiro moderno con-
tribuição desigual da terra). A aprovação do tratando serviços das empresas de planos de
SUS foi uma inequívoca conquista. Sua via- saúde”4(48). Collor de Mello, cujo mandato
bilidade, porém, era reconhecidamente um iniciou em 1990, seguiu os preceitos do tripé:
enorme desafio. desestatização, desregulamentação e libera-
Havia fragilidades amplamente reconhe- lização de preços e salários. Seu discurso de
cidas pelos sanitaristas3. A origem da propos- posse explicitou sua concepção sobre a natu-
ta de mudança, técnicos e pesquisadores das reza assistencialista das políticas sociais:
universidades, implicava a mobilização, con-
vencimento e participação dos trabalhadores O Estado deve ser apto, permanentemente
e de suas entidades. No final dos anos 1980, apto a garantir o acesso das pessoas de bai-
trabalhadores especializados já estavam vin- xa renda a determinados bens vitais. Deve
culados a esquemas assistenciais privados, prover o acesso à moradia, à alimentação, à
e seria imprescindível que apoiassem a des- saúde, à educação e ao transporte coletivo a
tinação das contribuições previdenciárias quantos dele dependam [...]5.
para um fundo comum e que integrassem as
fileiras de combate ao modelo privatizante Após a Constituição, o projeto de efeti-
que se pretendia superar. Analogamente, var um SUS universal foi dramaticamen-
estava estabelecida a urgência de buscar te restringido pela redução dos recursos
apoio para o projeto da Reforma Sanitária para a saúde (para patamares menores do
entre os profissionais de saúde. que as despesas em 1987). Como o SUS,
O desenrolar dos acontecimentos impli- especialmente, o financiamento para as
cou a revisão de tais expectativas. Mudanças ações da rede pública de saúde encontrou
no cenário internacional e a inclinação con- apoiadores no movimento municipalista.
servadora do governo Sarney impuseram Consequentemente, a ação política desse
imensas dificuldades à implementação do movimento ampliou as bases políticas do
SUS. É preciso recordar que os três minis- SUS, contudo, o protagonismo de prefeitos
tros progressistas da Previdência na Nova e secretários de saúde acompanhou-se pela
República, Waldir Pires (que cunhou a ex- ênfase nas dimensões administrativo-insti-
pressão ‘a Previdência é viável’), Raphael tucionais da rede de serviços. O subfinancia-
de Almeida Magalhães e Renato Archer, mento, o teor eminentemente contencionista
Tabela 2. Número de leitos (SUS e planos privados) segundo especialidades selecionadas, Brasil, 2018
Gráfico1. Número de equipamentos de tomografia (planos privados, SUS e % SUS), Brasil 2008 a 2018
3000 49,0
48,0
2500
47,0
2000 46,0
45,0 SUS
1500
44,0
Não SUS
% SUS
1000 43,0
42,0
500
41,0
0 40,0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: CNES14.
Gráfico 2. Leitos de CTI (planos privados, SUS e % SUS), Brasil 2008 a 2018
35000 60,0
30000
50,0
25000
40,0
20000
30,0 SUS
15000 Não SUS
% SUS
20,0
10000
10,0
5000
0 0,0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: CNES14.
Quadro 1. Legislação selecionada* relacionada com o apoio à oferta e demanda de serviços e planos e seguros privados de saúde no período pós-
Constituição de 1988
Quadro 1. (cont.)
Gráfico 3. Variação do número de clientes, receitas de empresas de planos (corrigidas IPCA 2016), PIB real e inflação,
Brasil, 2001 a 2016
25,00
20,00
15,00
10,00 Clientes
Receitas
PIB
5,00 Inflação
0,00
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
-5,00
-10,00
mis ou de uma nação sempre fadada ao fracas- no âmbito do Poder Legislativo. A maturação
so. Retomar a ambiguidade do termo Estado, de um projeto de Reforma Sanitária envolveu
como regulador que assegura a reprodução e esforços teóricos e gerou novas formas de in-
acumulação e enquanto detentor de institui- serção de instituições de ensino e pesquisa na
ções estatais ativas e autônomas que deveriam vida política do País, sendo que a mais notável
transcender interesses parciais de grupos espe- foi a convocação de uma conferência de saúde
cíficos e se organizarem em torno de objetivos com participação popular em 1986.
gerais, poderá contribuir para reencontrar o fio Havia divergências entre o PT e o então
da meada. Nesse sentido, as sugestões conver- PCB em torno da ‘estatização’, tensão que, por
gem em torno do fortalecimento das institui- sua vez, tinha como substrato a compreensão
ções públicas, das suas burocracias e da geração sobre o processo de ruptura com o capitalis-
de atividades voltadas às políticas universais, mo. Para uns, o núcleo das transformações da
ou seja, do fechamento de canais de ações go- Reforma Sanitária consistia na necessidade de
vernamentais de suporte à privatização. travar a batalha por consciência da determi-
Com o passar do tempo, diversas interpreta- nação social sobre o processo saúde-doença.
ções sobre a ‘história’ do SUS ganharam status Assim, tratava-se de ‘gramscianamente’ rea-
de ‘verdade’. Entre as inúmeras versões que lizar mudanças radicais na consciência e nas
circulam, especialmente no movimento social, práticas. Para outros, a concepção de reforma
situam-se duas antagônicas: uma delas atribui e não ruptura parecia inadequada às condições
o SUS a um processo de conquista dos movi- concretas de um País com inserção periférica.
mentos sociais, uma articulação ‘por baixo’; a Em termos práticos, uma das vias propostas
outra, a um processo de negociação nos debates para a reforma, a via congressual, a Assembleia
durante a Constituição de 1988. Como a princi- Nacional Constituinte, afigurava-se como uma
pal força política que formulou o SUS, o antigo alternativa ‘por cima’.
Partido Comunista Brasileiro (PCB), perdeu Tais polêmicas merecedoras de maior apro-
potência social até mesmo para resgatar seus fundamento parecem, no entanto, ter ficado
acertos e erros nas lutas pela redemocratização, em um passado remoto. Durante o processo
a tendência entre os militantes de esquerda, que de implementação do SUS, a proximidade com
não participaram diretamente das lutas pela le- o chamado ‘centrão’ das coalizões governa-
gitimação do direito à saúde, é a de adotarem, mentais atravessou barreiras setoriais. Talvez,
mesmo que por vezes de forma pouco clara, a ainda que com as devidas desculpas pela sim-
versão do ‘conchavo’. plificação, possa-se admitir como hipótese
Contudo, a ideia de que houve um ‘toma lá que, após a derrota das forças conversadoras e
dá cá’ protagonizado por sanitaristas que pro- privatizantes na saúde no processo de debates
punham uma reforma radical obscurece dois da Constituição, houve uma reacomodação das
fenômenos relevantes à análise das condições forças políticas pró-privatização dinamizadas
concretas das disputas políticas na saúde. O pela presença de técnicos do movimento sani-
primeiro é a correlação de forças setoriais. O tário em destacados cargos de gestão do SUS e
SUS foi apoiado pelos parlamentares ‘anti- pela permanente articulação ‘por fora’, espe-
-centrão’ e certamente galvanizou apoios de cialmente nos ministérios da área econômica,
setores progressistas do então Movimento partidos políticos e Congresso Nacional.
Democrático Brasileiro (MDB) em função
das repetidas crises do setor privado, naquele
momento acusado de fraudes e inimigo de uma Considerações finais
saúde digna. O segundo feixe de circunstâncias
refere-se à atuação dos sanitaristas tanto por A presença ativa de empresários da saúde e de
dentro dos fóruns do movimento social quanto seus representantes em partidos e coalizões
políticas que governam o País não é vista com da Concorrência (Cade) aprova a aquisição de
maus olhos. Pelo contrário, o atendimento de empresas por grupos que vendem serviços para
políticos de diversas origens e vinculações secretárias estaduais e municipais de saúde.
partidárias em hospitais particulares paulistas A atuação dos empresários da saúde, antes
e a presença em festas de proprietários bilio- predominantemente articulada em torno de
nários de negócios setoriais foram registrados agendas bastante particularizadas, foi substan-
em colunas sociais. Tal exibição de intimidade cialmente modificada. A criação da entidade
parece expressar ora admiração pelo empre- Instituto Coalizão Saúde (Icos), no contexto
ender bem-sucedido misturada com o assenti- das eleições para a presidência da república de
mento ou resignação com um sistema de saúde 2014, representou um marco na articulação de
clivado pelo atendimento a pobres e a ricos, ora grupos econômicos das indústrias (equipamen-
preconceitos e incompreensão sobre os siste- tos, medicamentos) com aqueles que atuam
mas universais. Partidos e lideranças políticas precipuamente na assistência médico-hospita-
terminam por corroborar o senso comum sobre lar. A explicitação da liderança de São Paulo (a
a capacidade de estratégias individualizadas entidade é coordenada pelo ex-superintenden-
responderem a problemas de saúde que são te do hospital Albert Einstein, atual presidente
coletivos. Consequentemente, no âmbito da da maior empresa de planos de saúde e por um
política, também prevalece o ideário sobre a professor da Universidade de São Paulo – USP
eficiência do privado em relação ao público, ex-secretário de saúde da cidade de São Paulo)
bem como a inversão das relações causais, afirma inequivocamente a localização no
segundo a qual os sistemas universais Sudeste para a ‘medicina de qualidade’ no País.
seriam determinados pela igualdade social As centrais sindicais de trabalhadores apoia-
e, portanto, não se constituem como vetor de ram e apoiam o SUS, mas suas bases demandam
redução de desigualdades. planos privados de saúde. Não é raro que um
No âmbito técnico-burocrático setorial, sindicalista pronuncie que os planos privados
também se observa que a compreensão do são benéficos ao SUS, por diminuírem a fila nas
SUS como atenção básica para pobres foi in- instituições públicas. Há aqueles que inclusive
corporada, inclusive nos textos legais, como individualizam o raciocínio ao dizer: “assim
portarias do Ministério da Saúde, que passam deixo meu lugar na fila para alguém pobre”.
a localizar ações focalizadas, como o Programa Embora os conflitos entre o empregador
Rede Cegonha, entre outras nos ‘municípios que paga, em parte ou totalmente, o plano
do Programa Brasil sem Miséria’. A universa- privado e as demissões por doença do titular
lização (igualdade) também deixou de para- ou de seus familiares existam, o assunto não
metrizar as políticas de regulação do acesso adquire visibilidade.
entre clientes de planos e as demais pessoas Os conselhos de saúde tampouco se dedicam
pela iniciativa da Agência Nacional de Saúde ao debate sobre a privatização realizada pelos
Suplementar (ANS) de incluir a obrigatoriedade grandes grupos econômicos. Os representan-
de cobertura de medicamentos antineoplásicos tes das entidades sindicais de profissionais de
orais. A partir de 2013, a relação dos medica- saúde que os integram tendem a valorizar
mentos para clientes de planos passou a ser as demandas trabalhistas decorrentes da
mais ampla do que a recomendada para o SUS. contratação precarizada de servidores. Os
Duas políticas públicas explicitamente diferen- processos aquisição-fusão, abertura e valo-
ciadas segundo capacidade direta ou indireta de rização de capitais, preços de monopólio e
pagamento e não critérios clínicos. Em outras presença dos representantes empresariais
instâncias da burocracia pública, vigora o com- nos núcleos decisórios governamentais são
pleto desrespeito à relevância pública das ações pouco ou nada debatidos pelas entidades de
de saúde. Por exemplo, o Conselho de Defesa participação social.
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Recebido em 02/08/2018
12. Pinto LF, Giovanella L. Do Programa à Estratégia Saúde Aprovado em 19/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
da Família: expansão do acesso e redução das interna-
Suporte financeiro: não houve
DOI: 10.1590/0103-11042018S313
RESUMO Muitos estudos examinaram os efeitos das crises econômicas e políticas de austeridade
em países de renda alta. Contudo, são muito recentes e esparsos os estudos sobre os efeitos sobre
países de renda média e baixa. Neste ensaio, revisitam-se os estudos recentes, procurando destacar o
que pode ter incidência mais imediata sobre a saúde pública, com especial interesse sobre os grupos
de maior vulnerabilidade. Optou-se por tratar de forma conjunta os efeitos da crise econômica e
da política de austeridade percorrida até o presente momento no Brasil por entender que os deficit
de investimento em políticas sociais e suas implicações sobre a cobertura e sobre qualidade dos
1 Fundação Oswaldo Cruz serviços ofertados estão associados aos dois fenômenos. As publicações recentes indicam a piora de
(Fiocruz), Instituto René indicadores básicos de saúde nacionais, sugerindo que a redução de investimentos em saúde já se
Rachou – Belo Horizonte
(MG), Brasil. faz sentir nas políticas de promoção, prevenção e atenção. O debate econômico atual apresenta er-
Orcid: https://orcid. roneamente as medidas de austeridade como único caminho para um regime de responsabilidade
org/0000-0002-3384-
6657 fiscal. O País precisa rever sua rota de desenvolvimento não apenas para enfrentar os efeitos da crise
romulo.paes@minas. econômica em curso, mas também para recuperar sua trajetória de inclusão social e econômica e de
fiocruz.br
melhora da saúde de sua população.
2 Universidade Federal da
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 172-182, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Política econômica e saúde pública: equilíbrio fiscal e bem-estar da população 173
com riscos e cuidados de saúde. As altera- A desigualdade de renda aferida pelo Índice
ções quanto à dieta e ao aumento do estresse de Gini vem apresentando crescimentos
foram registradas em muitos países. Já o ta- sucessivos desde abril de 2014, saltando de
bagismo e o uso abusivo de álcool foram afe- 0,5636 nesse mês para 0,5915 em fevereiro
tados de forma diversa: ora reduzidos devido de 20189. Dessa forma, o Brasil de 2018 apre-
à perda do poder aquisitivo, ora aumentados senta uma distribuição de renda mais desi-
como resposta à expansão das tensões de- gual que o mesmo país há quatro anos.
correntes do agravamento da pobreza fa- Além dos impactos imediatamente identi-
miliar. A redução ou iminente redução do ficáveis, existem as consequências de longo
poder aquisitivo alterou a busca de serviços prazo igualmente significativas. Uma di-
de saúde, sendo o adiamento ou a supressão mensão relevante e complementar à análise
da busca desses serviços pela redução dos de renda é a mobilidade social, que sugere
gastos familiares ou como forma de evitar o o desafio enfrentado para que filhos de fa-
estigma de portador de saúde débil e, por- mílias de baixa renda possam ascender a
tanto, vulnerável a ser incluído no grupo dos patamares de renda menos desfavorecidos.
prioritários em caso de demissão5. Dados da OCDE sobre o desafio de transi-
tar da baixa para a média renda indicam, no
País, o segundo mais longo desafio de quebra
Crise e austeridade no desse ciclo intergeracional de pobreza, em-
Brasil patado com a África do Sul e atrás apenas
da Colômbia10. No Brasil, são esperadas, em
A crise econômica enfrentada pelo Brasil já média, nove gerações para que a condição
acumula alguns anos, e suas consequências de renda baixa seja superada, evidenciando
revelam um quadro crítico. Entre os indica- as dificuldades enfrentadas na tentativa de
dores que mais claramente ilustram tal situ- ascensão social. O dado indica que os impac-
ação, podemos citar os números de pobreza e tos no arrefecimento do combate à pobreza
extrema pobreza no País. A série histórica di- terão efeito em inúmeras gerações vindou-
vulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia ras; consequentemente, o agravamento no
e Estatística (IBGE), que começa em 1992 quadro de saúde da população de maior vul-
utilizando dados da Pesquisa Nacional por nerabilidade tende a perdurar ainda mais em
Amostra de Domicílios (PNAD), apresenta decorrência da dinâmica social brasileira.
expressiva redução a partir de 2003, quando Corroboram para essa leitura as evidên-
41,8 milhões e 12,9 milhões de pessoas se cias apresentadas por Vieira e Benevides4
encontravam em situações de pobreza e que, em uma revisão de estudos sobre a crise
extrema pobreza, respectivamente. O indi- nos países de alta renda e suas lições para o
cador de pobreza alcançou seu menor nível Brasil, concluíram que as crises econômi-
em 2014, quando 14,1 milhões estavam nessa cas podem agravar os problemas sociais e
situação, enquanto a pobreza extrema estava aumentar as desigualdades, levando à piora
no segundo menor nível da história com 5,2 da situação de saúde da população. Já as
milhões de pessoas. Como reflexo dos efeitos medidas de austeridade fiscal, que estabe-
da crise e das políticas de austeridade, ambos lecem a redução do gasto com programas
os indicadores foram significativamente im- de proteção social, tendem a agravar os
pactados. Enquanto mais de 20 milhões se efeitos da crise sobre a situação de saúde,
encontravam em situação de pobreza ao final em particular, e as condições sociais, de
de 2017, alarmantes 11,8 milhões de pessoas forma mais geral. Diante disso, os autores
estavam em situação de pobreza extrema, recomendam a preservação dos programas
valor não captado pelas PNAD desde 20048. de proteção social como medida importante
para proteção da saúde da população e para mais de 1 milhão de famílias, além da redução
a retomada do crescimento econômico em do escopo de programas como Brasil Sem
prazo mais curto. Miséria e expressivos cortes orçamentários
Schramm et al.5 especulam que, em países em outras iniciativas de proteção social como o
de modelo híbrido de saúde como o Brasil, com Programa Cisternas e o Programa de Aquisição
forte presença dos setores público e privado, de Alimentos, que enfrentaram reduções de
a redução do acesso aos bens e serviços pode 90% e 99%, respectivamente10. Ainda que
ocorrer em vários trajetos simultâneos. O setor não seja possível traçar uma correlação direta
público pode ser pressionado pelo aumento da entre as medidas e algumas consequências ve-
demanda de populações que, até o período an- rificadas recentemente, acontecimentos, como
terior à crise, eram atendidas pelo setor privado, o recente surto de sarampo13, sugerem forte
porém tiveram parte desse acesso revogado em impacto negativo pelo enfraquecimento da
decorrência da redução da atividade econômica rede pública de saúde.
e aumento do desemprego justamente quando Com o intuito de avaliar em maior pro-
o próprio setor público enfrenta uma grande fundidade os impactos de longo prazo dessa
retração no seu financiamento e maior dificul- das medidas de austeridade, Rasella et al.2
dade para oferecer a cobertura necessária. buscaram avaliar o impacto da redução dos
As evidências dão conta de que a tentati- gastos públicos nas Metas de Desenvolvimento
va de equilíbrio das contas públicas no País Sustentável por meio dos indicadores de saúde.
resultou em medidas de austeridade com Tendo em vista o longo alcance da Emenda
severa redução da rede de proteção social. Os Constitucional 95, que visa limitar os gastos pú-
gastos totais com saúde em 2017 foram pra- blicos por um horizonte temporal de 20 anos,
ticamente os mesmos que os realizados em os autores buscaram avaliar o efeito esperado
2016, ainda que o Índice Nacional de Preços na mortalidade e hospitalização de crianças
ao Consumidor Amplo (IPCA) de 2016 tenha de até 5 anos entre 2017 e 2030 (data final
registrado alta nos preços de 6,29%. O orça- para apuração das metas de Desenvolvimento
mento total para a saúde previa gastos de R$ Sustentável estabelecidas pela Organização das
114,7 bilhões, e o piso constitucional indicava Nações Unidas – ONU).
que deveriam ser aplicados ao menos R$ 109 Os programas com grande probabilidade
bilhões11. Contudo, a aplicação efetiva dos de sofrer contração pelas medidas de aus-
recursos ficou aquém de ambas as referên- teridade econômica são o BF e a Estratégia
cias, totalizando R$ 107,2 bilhões e registran- Saúde da Família (ESF). Estudos sugerem
do, pela primeira vez, gastos abaixo do piso que ambos os programas tiveram impac-
constitucional10. Morosini et al.12 apontam tos positivos na redução da mortalidade de
que alterações realizadas em 30 de agosto crianças e desigualdades na saúde, contri-
2017 na Política Nacional de Atenção Básica buindo para o alcance de uma das metas do
tendem a enfraquecer esse nível de atenção Objetivo 3 de Desenvolvimento do Milênio
quanto a: cobertura universal, acesso, equipe (redução de dois terços da mortalidade de
profissional, organização do processo de crianças de até 5 anos de idade).
trabalho e coordenação nacional da política. A metodologia adotada no estudo im-
Para as autoras, a flexibilização pretendida plicou um levantamento da população nos
no modelo em um contexto de escassez de municípios brasileiros; e, a partir de análises
recursos levará ao rebaixamento do volume de impacto previamente conduzidas nas po-
e da qualidade dos serviços prestados. pulações de 2000 e 2010, foram estimadas
Inúmeros outros programas sociais probabilidades associadas ao impacto de
também enfrentaram cortes expressivos. Em programas de redução da pobreza. A ex-
2017, foram excluídas do Bolsa Família (BF) trapolação dessas probabilidades foi usada
Gráfico 1. As taxas médicas de mortalidade infantil de menores de cinco anos (por mil nascidos vivos) sob uma crise
econômica intermediária e cenários de resposta de políticas para 2010-2030
21 Crise econômica
Intermediária EC 95
20
Crise econômica
19 Intermediária
Manutenção BF
18
17
16
15
14
Figura 1. As taxas médicas de mortalidade infantil de menores de cinco anos (por mil nascidos vivos) para causas selecionadas do período 2010-2030
no cenário de crise econômica intermediária e duas respostas políticas (austeridade e manutenção da proteção social)
Taxa de mortalidade de menores de cinco anos Taxa de mortalidade de menores de cinco anos
por desnutrição por doenças diarreicas
0.35
Taxa de mortalidade 0.7
de menores de cinco
anos por desnutrição Taxa de mortalidade
0.30 EC 95 0.6 de menores de cinco anos
por doenças diarreicas
Taxa de mortalidade EC 95
0.25 de menores de cinco 0.5
anos por desnutrição Taxa de mortalidade
Manutenção BF de menores de cinco anos
0.4 por doenças diarreicas
0.20 Manutenção BF
0.3
0.15
0.2
0.10
2010 2015 2020 2025 2030 2010 2015 2020 2025 2030
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Recebido em 05/08/2018
24. Melo Neto, JC. Poesias completas: 1940-1965. 2. ed. Aprovado em 09/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
Rio de Janeiro: J. Olympio. 1975.
Suporte financeiro: não houve
DOI: 10.1590/0103-11042018S314
ABSTRACT The text seeks to present the discussion of the Brazilian agrarian issue from the per-
spective of the conflict between two models for the countryside, one focused on the agribusiness,
and one another focusing on family farming, agrarian reform, and traditional communities. The
present article intends to visit such dispute, to update it in the context of the coup d’etat of 2016,
and to present possible alternatives to the countryside in Brazil in search of new paradigms.
2 Universidade Federal do
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 183-198, NOVEMBRO 2018
184 Noronha GS, Falcón MLO
0,88
0,86
0,84
Gini da Terra
0,82
0,8
0,78
0,76
1920 1940 1950 1960 1967 1972 1978 1985 1992 1995 1998 2000 2006
Ano
Fonte: Elaboração própria baseado em dados do IBGE2; Incra3.
O Brasil é o país da reforma agrária a reforma agrária tendo sido uma etapa ne-
perene. Ao contrário de outros países onde cessária no desenvolvimento de nações hoje
se realizou uma reformulação completa da consideradas desenvolvidas, o Brasil teria
estrutura fundiária, nosso país segue cha- perdido esse bonde da história.
mando de reforma agrária uma política que De pouco adianta a essas pessoas argu-
precariamente fiscaliza a função social da mentos sobre a eficiência maior da agricul-
propriedade da terra. tura familiar, sobre a produção de alimentos
Discutir a função social da propriedade é que é garantida por esse modo de produção,
primordial para relativizar o direito absoluto de qualquer efeito multiplicador dessa po-
sobre a propriedade. Entretanto, Caio Prado lítica sobre a economia, enfim, qualquer
Júnior4 já nos alertava que as manchas defesa mais enfática da necessidade de uma
de solo de pior qualidade são aquelas que reforma agrária.
acabam ficando na mão dos pequenos e Um dos pontos levantados por essas
médios proprietários e que a desapropriação pessoas é que não há público para essa
apenas das grandes propriedades improduti- reforma agrária e que haveria necessidade,
vas perpetuaria este cenário. no máximo, de atuar pontualmente nos con-
A fiscalização do cumprimento da função flitos existentes e assentar as cerca de 120
social sob os aspectos da produtividade, am- mil famílias acampadas no País. Isso é uma
biental e trabalhista é um dever constitucio- falácia. Os dados do Censo Agropecuário do
nal do estado, mas não pode ser entendida Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
como reforma agrária. Reforma agrária tem (IBGE) de 2017 mostram uma demanda
começo, meio e fim. muito maior, como pode ser observado na
Há, contudo, os que entendem que mesmo tabela 1 abaixo:
Fonte: IBGE5.
os menores valores para essas medidas no produtos mais elementares da dieta do bra-
País são, respectivamente, cinco e dois hec- sileiro, arroz e feijão, com as áreas plantadas
tares. A tabela 1 acima mostra que a demanda e quantidade produzida da soja (voltada ao
existente por reforma agrária, consideran- mercado externo) e cana-de-açúcar (voltada
do apenas as áreas abaixo da menor fração tanto para a produção do açúcar, boa parte
mínima de parcelamento e os produtores exportada, como para a produção do etanol,
sem área, apresenta um público potencial a o álcool combustível).
ser atendido pela democratização do acesso Em números, tínhamos, em 2002, uma
à terra no Brasil seria de mais de 1,15 milhão área plantada de 3.171.955 hectares de arroz,
de famílias. Se incluirmos todos os minifún- 4.321.809 hectares de feijão, 5.206.656 hec-
dios na conta, áreas abaixo de cinco hectares, tares de cana-de-açúcar e 16.376.035 hecta-
teríamos mais 817.425 microproprietários, ou res de soja. Em 2016, os hectares plantados
seja, a demanda por reforma agrária poderia eram 2.004.643 de arroz, 2.946.801 de feijão,
ser considerada algo como um pouco menos 10.245.102 de cana-de-açúcar e 33.309.865
de 2 milhões de família. hectares de soja. Uma diminuição da área
plantada dos produtos da dieta básica do bra-
sileiro em um período que a população saltou
A disputa territorial entre de mais de 176 milhões para cerca de 202
os modelos agrícolas milhões de pessoas. Isto evidencia um modelo
de desenvolvimento adotado pelo País.
Mencionamos antes que vivemos uma crise O argumento subsequente seria de que
alimentar e que ela também é resultante do a diminuição da área plantada seria com-
atual padrão de consumo. O melhor exemplo pensada por um aumento da produtividade.
disso é que, com o esgotamento das reservas Independentemente de qualquer melhoria
de combustíveis fósseis, tem-se colocado na produtividade, o gráfico 1 deixa claro que a
como alternativa a produção de agrocom- quantidade produzida dos alimentos básicos
bustíveis. Na prática, os agrocombustíveis da dieta do brasileiro tem diminuído (no caso
competem pelas terras férteis com a produ- do feijão) ou se mantido estável (no caso do
ção de alimentos. A discussão do modelo de arroz) mesmo diante do crescimento popu-
exploração ideal das terras é vital para a dis- lacional, ao contrário da cana-de-açúcar e da
cussão de como alimentaremos os 7 bilhões soja. Em números, saímos de 10.445.986 tone-
de habitantes do planeta. Ainda assim, nossa ladas de arroz, 3.064.228 de feijão, 364.389.416
sociedade prefere a lógica do automóvel in- de cana-de-açúcar e 42.107.618 de soja em
dividual à do transporte coletivo eficiente. 2002 para 10.622.189 toneladas de arroz,
Temos de um lado o agronegócio das 2.615.832 de feijão, 768.678.382 de cana-de-
monoculturas, do deserto verde, do uso in- -açúcar e 96.296.714 de soja em 2016.
tensivo dos agrotóxicos e da manipulação É importante destacar que, de acordo com
genética de impactos, no mínimo, incertos. o Censo Agropecuário do IBGE de 2006,
O que temos no Brasil é que as áreas volta- cerca de 4,3 milhões de estabelecimentos da
das para alimentos de consumo interno da agricultura familiar ocupam somente 24,3%
população brasileira estão a perder espaço da área agricultável e produzem 70% dos
para culturas de exportação ou que produ- alimentos consumidos no País e emprega
zem insumos não alimentícios para outras 74,4% dos trabalhadores rurais, além de
indústrias. O gráfico 2 abaixo, elaborado a ser responsável por mais de 38% da receita
partir da Pesquisa Mensal Agrícola do IBGE bruta da agropecuária brasileira2. A relação
com dados entre 2002 e 2016, compara a entre a proporção da produção de alimen-
série histórica de áreas plantadas dos dois tos oriundos da agricultura familiar e a de
Gráfico 2. Área plantada ou destinada à colheita (arroz, feijão, cana-de-açúcar e soja), em hectares
Arroz (em casca) Cana-de-açúcar Feijão (em grão) Soja (em grão)
33.309.865
30.000.000
25.000.000
20.000.000
15.000.000
10.000.000
5.000.000
0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Fonte: IBGE6.
assentamentos da reforma agrária e comuni- formula essa tipologia são elementos inovado-
dades tradicionais e está fortemente vincula- res. O IBGE coteja os tradicionais indicadores
do à produção de alimentos para o mercado agrários e agrícolas – número e tamanho dos
interno, além da subsistência familiar. estabelecimentos, a propriedade da terra, valor
e volume da produção etc. – com indicadores
Mesmo assim, o potencial do Brasil rural é tão sociais obtidos por meio do acesso a bens civi-
grande que ao mesmo tempo em que se torna- lizatórios (ou direitos sociais) como educação,
va uma das maiores economias industriais do acesso à justiça e acesso a políticas públicas,
mundo, o país estruturava uma importante base tecnologia e informação. Mais além, coloca no
agropecuária e terminaria o século XX como um mapa os fluxos desses sistemas produtivos e
dos principais produtores agrícolas mundiais, identifica a Rede de Cidades que assiste e ma-
exportando alimentos para muitos outros paí- terializa os mercados nas diversas escalas logís-
ses. Ao lado de uma agropecuária de base patro- ticas, do regional até a exportação. Finalmente,
nal – que se expandiu e modernizou, avançando afirma que não é mais possível, em nenhum
na direção do centro-oeste –, se desenvolveu dos dois modelos e suas variantes territoriais,
uma agropecuária organizada em bases familia- separar a economia do rural e a do urbano. As
res, que predomina em três porções distintas do rendas e receitas que estão mantendo o sistema
amplo território nacional: a região sul, o nordeste produtivo ‘rodando’, seja no agronegócio, seja
(com destaque para a região semiárida) e a re- na agricultura familiar, há muito já são geradas
gião amazônica. A primeira estrutura se destaca em atividades integradas e simultâneas aos in-
pelos seus níveis de produtividade elevados e divíduos e empresas.
tem o mercado mundial como destino de seus
excedentes. A segunda, mais diversificada e vol- Com efeito, o debate atual em torno das rela-
tada para o mercado interno, se diferencia pela ções entre o rural e o urbano e da introdução
sua capacidade de gerar ocupação para milhões da abordagem das dinâmicas territoriais im-
de produtores e suas famílias. Ambas reafirmam plica na compreensão de novas ramificações
as potencialidades do Brasil rural7(33). temáticas que giram em torno das articula-
ções territoriais e interdependências do rural
No entanto, como a realidade sempre com o urbano, na medida em que empirica-
é mais complexa que os modelos teóri- mente o campo apresenta cada vez mais in-
cos, além dos espaços de conflito, existem junções com a cidade e suas funções, alteran-
espaços de integração e convivência entre os do a estrutura e a dinâmica de suas relações.
dois modelos, com resultados benignos e ma- A análise do espaço rural brasileiro acompa-
lignos em diferentes gradações. Dois estudos nhada pelas informações geográficas elabo-
seminais detectaram essa complexidade radas pelo IBGE contempla, portanto, não só
e apontaram os mercados de disputa e os o setor agropecuário estrito senso, como a
mercados de integração em que os modelos geografia da rede urbana local e da regional,
operam. Trata-se do Atlas do Espaço Rural, pois é nesse espaço que muitos produtores
elaborado pela Diretoria de Geociências do rurais encontrarão fontes de renda e emprego
IBGE, publicado em 2011 com dados de anos complementares, vitais para a preservação da
variados; e da Tipologia Regionalizada dos própria atividade agrícola8(11).
Espaços Rurais Brasileiros, publicado pelo
Instituto Interamericano de Cooperação A integração econômica rural-urbano leva
para a Agricultura (IICA) em 2017. os serviços financeiros, tecnologia, comuni-
No Atlas encontramos um conjunto de 33 cações, transporte, entre muitos outros, para
tipos de territórios rurais de povoamento em o cotidiano rural e traz o padrão de consume
todo o Brasil, mas o que sobressai da análise que das atividades rurais para o mundo urbano.
Forma e conforma, assim, uma nova cultura Com efeito, a expansão da fronteira agrícola do
da ruralidade, em que tanto a exclusão social território brasileiro nas últimas décadas tem signi-
rural – os sem terra – quanto a exclusão ficado um adensamento técnico-informacional e
urbana – os sem teto – são o outro lado da normativo com a participação decisiva de grandes
moeda do avanço do capitalismo no conjunto empresas ligadas ao agronegócio. A distribuição
da economia e da sociedade, quando não en- de tais densidades de fluxos, no entanto, é seleti-
contra barreiras políticas para a concentra- va, uma vez que apenas algumas áreas e pontos
ção da riqueza e da propriedade. do Território Nacional se inserem de forma mais
Três cartogramas explicam bem esse fenô- completa nas redes, cadeias e complexos agroin-
meno socioeconômico, sendo o Cartograma dustriais delineados a partir da ‘organização em
1 ilustrativo de como as mercadorias percor- rede’ da agropecuária nacional, emergente nos
rem o espaço definindo regiões e construindo anos de 1990 do século passado.
cadeias produtivas agroindustriais, seja para o Assim sendo, a agropecuária brasileira passa a ser
mercado intern