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REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE

VOLUME 42, NÚMERO ESPECIAL 3


RIO DE JANEIRO, NOV 2018
ISSN 0103-1104

Crise atual do capitalismo,


desigualdade e
o impacto na saúde
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES) SAÚDE EM DEBATE
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REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE
VOLUME 42, NÚMERO ESPECIAL 3
RIO DE JANEIRO, NOV 2018

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES


Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104
REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE
VOLUME 42, NÚMERO ESPECIAL 3
RIO DE JANEIRO, NOV 2018

EDITORIAL | EDITORIAL
41  eforma das comunicações: imperativo
R
4  emocracia, direitos humanos,
D para a democracia no Brasil
desigualdade e saúde: que caminhos Communications reform: imperative for
trilhamos? democracy in Brazil
Democracy, human rights, inequality and Bia Barbosa, Helena Martins
health: which paths do we walk?
Ary Carvalho de Miranda, Hermano ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE
Albuquerque de Castro, Lucia Regina Florentino
Souto 54 F aces da desigualdade no Brasil: um
olhar sobre os que ficam para trás
ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE Faces of inequality in Brazil: a look at those
left behind
10  eopolítica internacional: a nova
G Tereza Campello, Pablo Gentili, Monica
estratégia imperial dos Estados Unidos Rodrigues, Gabriel Rizzo Hoewell
International geopolitics: the new imperial
strategy of the United States ENSAIO | ESSAY
José Luís da Costa Fiori
67 Desestabilização do trabalho
18  CF-1988 na Berlinda: trinta anos de
A Work destabilization
disputas por um projeto nacional de Marcio Pochmann
desenvolvimento nos trópicos
The CF-1988 in the spotlight: thirty years of 78  mérica Latina: progressismo, retrocesso
A
disputes over a national development project e resistência
in the tropics Latin America: progressivism, retraction, and
José Celso Pereira Cardoso Junior resistance
Igor Fuser
33  aúde pública e pós-democracia: do
S
Estado Democrático de Direito ao 90 Movimentos e mobilizações sociais no
Estado Pós-Democrático Brasil: de 2013 aos dias atuais
Public health and post-democracy: from Social movements and mobilizations in
the Democratic State of Law to the Post- Brazil: from 2013 to the present day
Democratic State Rudá Guedes Ricci
Rubens Casara
SUMÁRIO | CONTENTS

Capitalismo, democracia, cidadania –


108 183 
A disputa entre modelos para o campo:
contradições e insurgências apontamentos sobre a questão agrária no
Capitalism, democracy, citizenship – Brasil em busca de um novo paradigma
contradictions and insurgencies The dispute between models for the
Sonia Fleury countryside: notes on the agrarian issue in
Brazil in search of a new paradigm
125 Civilização ou barbárie Gustavo Souto Noronha, Maria Lúcia de Oliveira
Civilization or barbarism Falcón
Lucia Regina Florentino Souto, Gustavo Souto
Noronha, Ana Maria Costa, Telma Ruth Pereira, Um projeto para as cidades brasileiras e
199
José Carvalho de Noronha o lugar da saúde pública
A project for Brazilian cities and the place of
Saúde, luta de classes e o ‘fantasma’
145 public health
da Reforma Sanitária Brasileira: Erminia Maricato, Paolo Colosso, Francisco de
apontamentos para sua história e crítica Assis Comarú
Health, class struggle and the ‘ghost’ of the
Brazilian Sanitation Reform: notes for history Reforma tributária no Brasil: por onde
212
and criticism começar?
André Vianna Dantas Tax reform in Brazil: where to begin?
Fernando Gaiger Silveira, Luana Passos, Dyeggo
O SUS e o setor privado assistencial:
158 Rocha Guedes
interpretações e fatos
The Unified Health System (SUS) and the 226
 valiação no SUS: uma crítica
A
private assistance sector: interpretations and à ideologia do produtivismo no
facts capitalismo contemporâneo
Ligia Bahia, Mario Scheffer Evaluation of the Unified Health System:
a critique of the productivism ideology in
172 
Política econômica e saúde pública: contemporary capitalism
equilíbrio fiscal e bem-estar da Luci Maria Teston, Áquilas Mendes, Leonardo
população Carnut, Virginia Junqueira
Economic policy and public health: fiscal
balance and population wellbeing
Rômulo Paes-Sousa, Davide Rasella, Julio
Carepa-Sousa
4 EDITORIAL | EDITORIAL

Democracia, direitos humanos,


desigualdade e saúde: que caminhos
trilhamos?
DOI: 10.1590/0103-11042018S300

A CRISE DO CAPITALISMO DE 1929, a partir do crash da bolsa de Nova York, impactou pratica-
mente todo o mundo, com falências de empresas, desemprego e grave impacto social. Um de
seus desfechos foi a tragédia da II Grande Guerra Mundial, que deixou 50 milhões de mortos,
outros milhões de mutilados e dezenas de países destruídos. Foi a receita do capital para suas
próprias contradições.
A crise disseminada no mundo hoje tem sido considerada por especialistas de várias áreas
do conhecimento como a mais grave desde 1929. Em 2008, de repente, evaporaram aproxi-
madamente US$ 40 trilhões do patrimônio global e US$ 14 trilhões de riquezas das famílias.
Quatro milhões de pessoas perderam os empregos; e, de 2008 a 2011, a cada 3 meses, 250 mil
famílias tiveram que sair de suas casas apenas nos EUA1. A crise ganhou a Europa e o resto
do mundo. Uma de suas marcas mais cruéis é o aumento da desigualdade em um mundo já
desigual. Hoje, em todo o planeta, 800 milhões de pessoas têm fome em um cenário em que,
entre 1988 e 2011, a renda dos 10% mais pobres aumentou US$ 65,00, enquanto a do 1% mais
rico aumentou US$ 11.800,00, ou seja, 182 vezes2.
Essa concentração de riqueza não se deve apenas à financeirização desregulamentada
imposta pelas forças hegemônicas do neoliberalismo, mas sua participação é dominante.
Enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) mundial tem crescido entre 1% e 2,5%, as aplicações
financeiras rendem acima de 5%. Cria-se, assim, uma dinâmica em que a capacidade produ-
tiva, vinculada às necessidades sociais, é transformada em patrimônio financeiro, apropriado
por grupos transnacionais monopolizados. Em outras palavras, dinheiro produzindo dinheiro
sem qualquer compromisso social, de tal ordem que apenas nos EUA, em 2008, o volume
de crédito era 365% do PIB. Foi o estouro da bolha que contraditoriamente fez o congresso
nacional daquele país aprovar, em outubro de 2018, US$ 800 bilhões para salvar Wall Street1.
Os efeitos globais não demoraram. No Brasil, um país sem políticas universais de proteção
social, o impacto econômico atinge principalmente as populações mais necessitadas. O golpe
jurídico-parlamentar-midiático de 2016 escancarou as portas para o aumento da desigualda-
de. A aprovação da PEC 95, que congela por 20 anos os investimentos do Estado, e a aprovação
da Reforma Trabalhista, que refina os instrumentos institucionais para o aumento da explo-
ração sobre os trabalhadores, são componentes desse processo que aponta para um cenário
ainda mais preocupante. Aumentou o desemprego e fez cair a renda, com rápidas consequên-
cias sobre as condições sociais, expressas na escalada da violência, no retorno do País ao mapa
da fome, na volta do sarampo e no crescimento da taxa de mortalidade infantil, apenas para
citar alguns componentes da situação atual. Isto é, entramos em um ponto de bifurcação entre

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Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
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EDITORIAL | EDITORIAL 5

civilização e barbárie. Uma nação solidária, que enfrente suas desigualdades, não pode jamais
estar a serviço do 1% mais rico.
São tempos difíceis que nos matam 60 mil vezes no ano, a maioria jovem, pobre e negra.
Somos atacados por sermos mulheres, por sermos LGBTI+ e por defendermos os direitos
humanos. Batemos todos os recordes dos crimes contra setores específicos da população. A
violência brasileira é superior a muitos lugares em guerra.
Todo esse retrocesso atingiu também o sistema de saúde em todos os seus níveis de atenção.
Inicia-se com a mudança na Política Nacional de Atenção em Básica (PNAB), em que se retira
a padronização do número de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) por equipe da Estratégia
Saúde da Família (ESF) com a finalidade de reduzir os custos no setor; assim como a reformu-
lação da PNAB, em 2017, que colocou em xeque a integralidade, o trabalho dos ACS e impor-
tantes avanços da ESF3.
O Sistema Único de Saúde (SUS) tem sofrido desde a sua criação um subfinanciamento
crônico, agora agravado, e vive um desabastecimento de insumos de saúde sem precedentes
que condena o País a um colapso de saúde, sanitário e social. Para ilustrar tal fato, caso a PEC
95 estivesse em vigor entre 2003 e 2015, a União teria gasto 42% a menos (257 bilhões) com
ações e serviços públicos de saúde. Os recursos públicos investidos na saúde pelo governo
federal, no ano pós-golpe, em 2017, foram de apenas R$ 101,134 bilhões com um aumento de
2,23% em relação a 2016, quando a inflação do ano foi de 2,95%. O que é alardeado pelas au-
toridades como economia, na verdade, representa a subtração de direitos na saúde pública4.
São necessários investimentos públicos que possam superar as desigualdades sociais com
severo impacto na saúde. Por exemplo, a expectativa de vida ao nascer entre quem vive na
região mais rica e quem vive na mais pobre do País chega a variar 26 anos. A mortalidade in-
fantil em áreas das regiões Norte e Nordeste é sempre maior do que a média nacional – e com
tendência de aumento com a retirada das políticas sociais. Houve uma desaceleração na polí-
tica de saneamento básico, o que contribuiu para o retorno das emergências sanitárias com a
volta de doenças, como foi o caso também da febre amarela. Isso sem considerar os impactos
socioambientais de um modelo de desenvolvimento que privilegia a mineração e o agronegó-
cio, fazendo o País consumir um milhão de toneladas de agrotóxicos ao ano e protagonizar o
maior crime ambiental do mundo decorrente da mineração, como foi o caso do rompimento
da barragem da Samarco, em Mariana (MG).
O Programa Mais Médicos ajudou a enfrentar uma carência histórica de médicos na atenção
básica, em diferentes municípios do País, mas ainda ficou longe de resolver a questão da for-
mação médica e de outros profissionais de saúde que atendam a população rural e urbana que
ficam distantes dos grandes centros do Brasil. O Estado precisa retomar o papel de regulação
e de formação de quadros para o SUS, levando aos locais mais precarizados as ações de saúde.
Uma das propostas em andamento no País é o fomento à uma política aos planos de saúde
para os pobres, o que precariza ainda mais o SUS e acentua a mercantilização do sistema de
saúde brasileiro. É fundamental a resistência para encerrar o ciclo da privatização e do subfi-
nanciamento. A população necessita da atenção integral à saúde, que, para isso, precisa contar
com aumento dos recursos assistenciais. É importante que avancemos na construção de uma
política para o País que torne a atenção primária forte, qualificada, integral, longitudinal e
resolutiva, com a universalização da cobertura em todos os níveis de atenção5.
A possibilidade de conter o retrocesso em curso só será possível com a ampla participação
de todos os setores da sociedade, comprometidos com uma outra concepção de mundo, em
que prevaleçam os respeito às diversas formas de expressão da vida, como raça, gênero e se-
xualidade, assim como com a emancipação dos trabalhadores de todas as formas de opressão,

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6 EDITORIAL | EDITORIAL

em um mundo onde o espírito da solidariedade suplante a violência e a exclusão em curso. A


construção do SUS só foi possível devido à ampla participação social dos profissionais, en-
tidades e instituições da saúde, dos sindicatos dos trabalhadores da cidade e do campo, dos
diversos conselhos profissionais, do movimento das mulheres, das associações de moradores,
dos quilombolas e de uma série de outros movimentos em um vigoroso processo democrático.
No resgate desse processo, está a esperança da contenção da acentuação do grave cenário que
já está em curso.
Neste momento, é fundamental fortalecer nossa Constituição de 1988, a soberania nacional
e os direitos universais!

Ary Carvalho de Miranda


Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) –
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Hermano Albuquerque de Castro


Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) –
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Lucia Regina Florentino Souto


Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) –
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Referências

1. Varoufakis Y. O Minotauro Global. A Verdadeira Saúde Pública. 2017; 33(1):1-4.


Origem da Crise Financeira e o Futuro da Economia
Global. São Paulo: Editora Autonomia Literária; 2016. 4. Vieira FS, Benevides RPS. Os impactos do novo regime
fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde
2. Dowbor L. A Era do Capital Improdutivo. A nova ar- e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Brasília,
quitetura do poder, sob dominação financeira, seques- DF: IPEA; 2016.
tro da democracia e destruição do planeta. São Paulo:
Editoras Outras Palavras e Autonomia Literária; 2017. 5. Fontenelle LF. Mudanças recentes na Política Nacional
de Atenção Básica: uma análise crítica. Rev bras med
3. Morosini MVGC, Fonseca AF. Revisão da Política fam comunidade. 2012 jan-mar; 7(22):5-9.
Nacional de Atenção Básica numa hora dessas? Cad

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EDITORIAL | EDITORIAL 7

Democracy, human rights, inequality


and health: which paths do we walk?
DOI: 10.1590/0103-11042018S300

THE CAPITALIST CRISIS OF 1929 , after the crash of the New York Stock Exchange, rocked vir-
tually the entire world, with corporate failures, unemployment, and serious social impact.
One of its outcomes was the tragedy of World War II, which left 50 million dead, some other
millions mutilated, and dozens of countries destroyed. It was the recipe of the capital for its
own contradictions.
The widespread crisis in the world today has been considered by experts in various fields of
knowledge to be the most serious since 1929. In 2008, approximately US$ 40 trillion in global
wealth and US$ 14 trillion in household wealth suddenly evaporated. Four million people
lost their jobs; and from 2008 to 2011, every three months, 250,000 families had to leave their
homes only in the US1. The crisis took over Europe and the rest of the world. One of its most
cruel traits is the increase in inequality in an already uneven world. Today, around the world,
800 million people are starving in a scenario where, between 1988 and 2011, the income of the
poorest 10% increased by US$ 65.00, while that of the richest 1% increased by US$ 11,800, 00,
that is, 182 times2.
That concentration of wealth is not only due to the deregulated financialization imposed
by the hegemonic forces of neoliberalism, but its participation is dominant. While the world’s
Gross Domestic Product (GDP) has grown between 1% and 2.5%, financial investments yield
more than 5%. This creates a dynamic in which productive capacity, linked to social needs,
is transformed into financial assets, appropriated by monopolized transnational groups. In
other words, money producing money without any social commitment, such that in the US
alone, in 2008, the volume of credit was 365% of GDP. It was the bursting of the bubble that
contradictorily made that country’s national congress approve US$ 800 billion to save Wall
Street in October 20181.
The global effects did not take long. In Brazil, a country without universal policies for social
protection, the economic impact reaches mainly the most needy populations. The judiciary-
parliamentary-media coup of 2016 opened the door to increasing inequality. The approval of
PEC 95, which freezes state investments for 20 years, and the approval of the Labor Reform,
which refines the institutional instruments for increasing the exploitation of workers, are
components of that process which points to an even more worrying scenario. Increasing un-
employment and falling income, with rapid consequences on social conditions, expressed in
the escalation of violence, the return of the country to the hunger map, the return of measles,
and the growth of infant mortality rate, just to name a few components of the current situa-
tion. That is, we enter a point of bifurcation between civilization and barbarism. A nation of

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meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 4-9, NOV 2018
8 EDITORIAL | EDITORIAL

solidarity, engaged in facing its inequalities, can never be at the service of the richest 1%.
These are difficult times that kill us 60,000 times a year, most of it young, poor and black.
We are attacked for being women, for being LGBTI+, and for defending human rights. We
beat all records of crimes against specific sectors of the population. Brazilian violence is su-
perior to many places at war.
All this setback has also hit the health system at all levels of care. It begins with the change
in the National Policy of Primary Care (PNAB), in which standardization of the number of
Community Health Agents (ACS) by the Family Health Strategy (ESF) team is withdrawn in
order to reduce costs in the sector; as well as the reformulation of the PNAB in 2017, which
put into question the integrality, the work of the ACS, and important advances of the ESF3.
Since its creation, the Unified Health System (SUS) has undergone chronic underfunding,
which is now aggravated, and is experiencing an unprecedented shortage of health supplies
that condemns the country to a health, sanitary, and social collapse. To illustrate that, if PEC
95 were in force between 2003 and 2015, the State would have spent 42% less ($ 257 billion)
on public health actions and services. The public funds invested in health by the federal gov-
ernment in 2017, the post-coup year, were only R$ 101.134 billion, an increase of 2.23% com-
pared to 2016, when inflation for the year was 2.95%. What is vaunted by the authorities as
economizing, in fact, represents the subtraction of rights in public health4.
We need public investments that can overcome social inequalities with a severe impact on
health. For example, the life expectancy at birth among those living in the richest region and
those living in the poorest region of the country may vary up to 26 years. Child mortality in
areas of the North and Northeast is always higher than the national average – and is likely to
increase with the withdrawal of social policies. There was a deceleration in the basic sanita-
tion policy, which contributed to the return of health emergencies with the recurrence of dis-
eases, as was also the case with yellow fever. Not to mention the socio-environmental impacts
of a development model that favors mining and agribusiness, causing the country to consume
one million tons of pesticides per year and to lead the world’s largest environmental crime
resulting from mining, as was the case of the disruption of the Samarco dam in Mariana (MG).
The Mais Médicos (More Doctors) Program has helped address a historical shortage of
primary care physicians in different municipalities in the country, but has remained far from
solving the issue of the training of doctors and other health professionals who serve the rural
and urban population that are far from the great centers of Brazil. The State needs to retake the
role of regulation and staff training for the SUS, taking health actions to the most precarious
places. One of the proposals in course in the country is the promotion of a policy for health
insurances for the poor, which precarizes the SUS even more and accentuates the commodifica-
tion of the Brazilian health system. Resistance to ending the privatization and underfinancing
cycle is essential. The population needs comprehensive health care, which, for this, needs to
count on an increase in healthcare resources. It is important that we advance in the construction
of a policy for the country that makes primary care strong, qualified, comprehensive, longitudi-
nal, and resolutive, with the universalization of coverage at all levels of care5.
The possibility of restraining the setbacks in course will only be possible with the broad
participation of all sectors of society, committed to a different conception of the world, in
which respect for the various forms of expression of life such as race, gender, and sexuality
prevail, as well as the emancipation of workers from all forms of oppression, in a world where
the spirit of solidarity supplants the ongoing violence and exclusion. The construction of the
SUS was only possible due to the wide social participation of health professionals, health
institutions and entities, the city and countryside workers’ unions, the various professional

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EDITORIAL | EDITORIAL 9

councils, the women’s movement, the residents’ associations, the quilombolas and a series of
other movements in a vigorous democratic process. In the rescue of that process, there is hope
of containing the accentuation of the serious scenario that is already under way.
At the moment, it is fundamental to strengthen our Constitution of 1988, the national sov-
ereignty, and the universal rights!

Ary Carvalho de Miranda


Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz) – Sergio Arouca National School of Public Health (Ensp) –
Rio de Janeiro (RJ), Brazil.

Hermano Albuquerque de Castro


Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz) – Sergio Arouca National School of Public Health (Ensp) –
Rio de Janeiro (RJ), Brazil.

Lucia Regina Florentino Souto


Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz) – Sergio Arouca National School of Public Health (Ensp) –
Rio de Janeiro (RJ), Brazil.

References

1. Varoufakis Y. O Minotauro Global. A Verdadeira Saúde Pública. 2017; 33(1):1-4.


Origem da Crise Financeira e o Futuro da Economia
Global. São Paulo: Editora Autonomia Literária; 2016. 4. Vieira FS, Benevides RPS. Os impactos do novo regime
fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde
2. Dowbor L. A Era do Capital Improdutivo. A nova ar- e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Brasília,
quitetura do poder, sob dominação financeira, seques- DF: IPEA; 2016.
tro da democracia e destruição do planeta. São Paulo:
Editoras Outras Palavras e Autonomia Literária; 2017. 5. Fontenelle LF. Mudanças recentes na Política Nacional
de Atenção Básica: uma análise crítica. Rev bras med
3. Morosini MVGC, Fonseca AF. Revisão da Política fam comunidade. 2012 jan-mar; 7(22):5-9.
Nacional de Atenção Básica numa hora dessas? Cad

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10 ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE

Geopolítica internacional: a nova estratégia


imperial dos Estados Unidos*
International geopolitics: the new imperial strategy of the United
States

José Luís da Costa Fiori1

* O texto deste artigo DOI: 10.1590/0103-11042018S301


reúne e reorganiza,
de forma particular
e autorizada, vários
relatórios da nossa
pesquisa sobre ‘As
grandes transformações
contemporâneas do
sistema mundial’, que O aparecimento de uma potência emergente é sempre um fator de
vêm sendo desenvolvidos
e publicados na forma de desestabilização e mudança do sistema mundial, porque sua ascen-
textos autônomos pelo são ameaça o monopólio das potências estabelecidas. Na verdade,
INEEP, Instituto de Estudos
Estratégicos do Petróleo, porém, os grandes desestabilizadores do sistema são os próprios
Gás e Biocombustíveis, Estados líderes ou hegemônicos, pois eles não podem parar de se
disponíveis em: <www.
ineep.org.br/jose-luisis- expandir para manterem sua hegemonia – e para se manterem à
fiori>. frente dos demais, eles precisam desafiar continuamente as regras
e instituições que foram estabelecidas por eles mesmos, mas que
podem estar bloqueando sua necessidade de inovar e expandir
mais do que todos os demais1(30-31).
(José Luís da Costa Fiori)

Introdução muitas coisas relevantes que estão aconte-


cendo neste momento ao redor do mundo.
Este artigo se propõe fazer uma fotografia Decidimos centrar nossa atenção no epicen-
rápida, quase instantânea, da geopolítica tro do tsunami: a luta interna do establishment
internacional de meados de 2018. Deve-se americano e o ‘fenômeno Trump’; a nova
1 Universidade Federal do saber, desde logo, que é quase impossível ‘doutrina de segurança nacional’ dos Estados
Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil. que uma fotografia desse tipo consiga incluir Unidos da América (EUA) e seus impactos
Instituto de Estudos todos os tabuleiros, conflitos e contradições na relação entre as três grandes potências
Estratégicos do Petróleo,
Gás e Biocombustíveis de uma conjuntura que vem se caracterizan- que deverão comandar o jogo geopolítico
(INEEP) – Rio de Janeiro do pela rapidez e radicalidade de suas ruptu- mundial durante o século XXI: o próprio
(RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid. ras e transformações. Por isso, em um artigo EUA, a Rússia e a China; e, finalmente, alguns
org/0000-0002-8132- desta extensão, fomos obrigados a fazer esco- ‘respingos’ da nova configuração de forças
7181
jlfiori@uol.com.br lhas e tomar decisões que deixaram de lado sobre a ‘periferia’ do sistema.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 10-17, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Geopolítica internacional: a nova estratégia imperial dos Estados Unidos 11

O ‘racha’ americano ‘grande estratégia’ dos EUA, no campo in-


ternacional, segue sempre em frente, a des-
A polarização da sociedade americana e a peito das ‘trepidações internas’ da sociedade
luta fratricida de suas elites, nesse início do americana, orientada por dois objetivos fun-
século XXI, devem prosseguir e aumentar damentais: i) a ‘segurança estratégica’ dos
de intensidade nos próximos anos, mas não EUA, envolvendo a eliminação de toda e
devem alterar a direção, nem a velocidade qualquer ameaça a seus interesses nacionais,
do crescimento do poder militar global dos em qualquer ponto do mundo, junto com
EUA. Esse tipo de divisão e luta interna o controle naval e aeroespacial de todos os
não é fenômeno novo nem excepcional, e ‘fluxos’ relevantes para o exercício dessa su-
se repetiu em vários momentos do século premacia; ii) com uma ênfase particular na
XX, toda vez que foi necessário responder ‘segurança energética’ dos EUA e de todos os
a grandes desafios e tomar decisões cruciais seus principais aliados, por meio do mono-
no plano internacional. pólio ou do controle do acesso às principais
Foi o que aconteceu, por exemplo, com fontes de energia concentradas em alguns
a decisão dos EUA de participar das duas poucos países do sistema mundial.
grandes guerras mundiais do século XX, e É a partir desse consenso básico que
também com a decisão de se envolver e de se deve ler a ‘nova doutrina de segurança
se retirar das guerras da Coreia e do Vietnã, nacional’ do governo de Donald Trump,
assim como em vários outros momentos anunciada no dia 18 de dezembro de 2017
mais recentes da política externa norte- – 28 anos depois da Guerra do Golfo, que
-americana, sem que essas divisões tenham inaugurou, em 1991, a ordem mundial do
afetado ou alterado a ‘marcha forçada’ dos pós-Guerra Fria. Esses documentos oficiais
EUA na direção do ‘poder global’ que acabou definem periodicamente os principais ob-
conquistando depois do fim da Segunda jetivos estratégicos dos EUA, junto com a
Guerra Mundial. outrossim, o mesmo deve identificação de seus principais inimigos
acontecer de novo, neste momento, indepen- e concorrentes, de todo tipo, e em todos os
dentemente do que venha a acontecer com lugares do mundo. Todavia engana-se quem
o mandato do presidente Donald Trump nos pensar que esse novo documento cumpre
próximos dois anos. Existem dois consensos apenas com uma obrigação burocrática ou
fundamentais, dentro da elite americana, se restrinja às idiossincrasias do presidente
que se mantêm constantes, e por cima de Trump. Ele foi preparado, em conjunto, pelo
todas as suas divisões e lutas internas envol- Departamento de Estado, pelo Pentágono,
vendo seus partidos e facções governantes: pela Central Intelligence Agency (CIA) e por
todas as agências de informação do governo
1. no campo das ideias: a convicção de que americano, junto com seu Departamento do
os EUA devem manter permanentemente Comércio e sua Secretaria do Tesouro, e tudo
sua liderança econômica e militar dentro indica que transcenderá o tempo de duração
do sistema mundial; da atual administração norte-americana.

2. e no campo material: a convicção de que


os EUA não podem deixar de financiar a A nova estratégia
reprodução e a expansão permanente da
infraestrutura indispensável ao exercício Do ponto de vista estritamente teórico, o
deste poder global. novo documento estratégico dos EUA se
situa na tradição do realismo internacio-
Graças a esse consenso fundamental, a nal de Edward Carr e Hans Morghentau,

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12 Fiori JLC

atualizado no fim do século XX pelo ‘rea- I – Os EUA abandonam a ideia do sistema


lismo ofensivo’ de John Mearsheimer, que mundial como lugar de uma luta global
sempre se opôs às teses clássicas do ‘cosmo- entre o ‘bem’ e o ‘mal’, e o redefinem como
politismo liberal’, introduzidas no cenário um espaço de competição permanente pelo
internacional pelo presidente americano ‘poder global’, entre Estados nacionais so-
Woodrow Wilson depois do fim da Primeira beranos que seguem sendo o melhor ins-
Guerra Mundial. Do ponto de vista prático, trumento para a construção de uma ordem
entretanto, o novo documento norte-ameri- mundial pacífica.
cano representa uma ruptura revolucionária
com relação ao passado da política externa II – Os EUA reconhecem que seus valores
dos EUA, do século XX, e um gigantesco não são universais e que nada assegura a
ponto de interrogação com relação ao futuro ‘vitória final’ dos valores americanos, em
dos EUA e de todo o sistema internacional. um mundo onde cada povo tem sua própria
A parte mais lida e menos inovadora do cultura e seus valores éticos particulares.
texto é exatamente a que define os objeti-
vos estratégicos dos EUA: i) proteger o povo We will pursue this beautiful vision – a world
americano e seu modo de vida: ii) promo- of strong, sovereign, and independent nations,
ver a prosperidade econômica e a liderança each with its own cultures and dreams, thri-
tecnológica americana; iii) preservar a paz ving side by side in prosperity, freedom, and
mundial por meio da força; e iv) avançar a peace [...]. We are also realistic and unders-
influência global dos EUA. Bem como a que tand that the American way of life cannot be
identifica, logo em seguida, os principais imposed upon others, nor is it the inevitable
inimigos ou concorrentes dos norte-ame- culmination of progress 2(II-4).
ricanos: i) Rússia e China, as duas grandes
‘potências revisionistas’ que querem alterar
a hierarquia do poder mundial, segundo os III – Os EUA reconhecem, portanto, im-
norte-americanos; ii) Coreia e Irã, os dois plicitamente, que não existem ‘valores
grandes ‘Estados predadores’ que ameaçam universais’, nem existe um ‘destino histó-
seus vizinhos e o equilíbrio geopolítico do rico convergente’ de toda a humanidade,
nordeste da Ásia e do Oriente Médio, respec- e, como consequência, desistem do velho
tivamente; e, finalmente, iii) o ‘terrorismo projeto messiânico de conversão de todos
jihadista’ e todo tipo de organização crimi- os povos aos ‘valores éticos ocidentais’.
nosa internacional que propague a violência
por meio do tráfico de armas e drogas. IV – Os EUA declaram explicitamente que,
No entanto, a grande novidade da nova a partir de agora, competirão e negociarão
estratégia de segurança nacional dos EUA com os demais membros do sistema estatal
não está em nenhum desses pontos. Está com base apenas nos seus interesses nacio-
escondida nas entrelinhas do documento no nais, e sempre a partir de uma ‘posição de
qual aparecem suas premissas e definições força’.
fundamentais, que são apresentadas como
se fossem uma coisa trivial ou consensual, V – Os EUA, portanto, abrem mão da ideia
quando, na verdade, não são, pelo menos de uma hegemonia ética e cultural univer-
na tradição americana. De forma sintética, sal e optam pelo uso da força e das armas,
quase telegráfica, é possível listar os princi- se necessário, para impor seus interes-
pais pontos em que se sustenta a nova visão ses em todos os tabuleiros geopolíticos e
do mundo da política externa americana: geoeconômicos do mundo – mesmo que
seja por meio da mudança de governos

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Geopolítica internacional: a nova estratégia imperial dos Estados Unidos 13

e regimes que sejam considerados uma europeu conquistou e/ou incorporou o ter-
ameaça política ou econômica aos interes- ritório dos demais continentes, impérios e
ses norte-americanos. povos, que foram adotando, aos poucos, as
regras de convivência internacional estabe-
VI – Os EUA, ao mesmo tempo, propõem-se lecidas pela Paz de Westfália depois do fim
a retomar a liderança mundial do processo da Guerra dos 30 Anos (1628-1648).
de inovação tecnológica em todos os campos A Paz de Westfália foi assinada por cerca de
do conhecimento e, em particular, no campo 150 ‘autoridades territoriais’ europeias, mas
da guerra e dos armamentos atômicos. Da só existiam, naquele momento, seis ou sete
mesma forma, assumem seu direito de utili- ‘Estados nacionais’ na sua forma moderna e
zar sua economia e suas sanções econômicas com as fronteiras que se mantiveram depois
como instrumentos de guerra. da guerra. Depois das guerras bonapartistas,
no início da ‘era imperialista’ (1840-1914),
Em síntese, os EUA estão se propondo a esse número cresceu graças às independên-
deixar para trás seu ‘cosmopolitismo liberal’ cias dos Estados americanos; e, no final da
e sua ‘utopia globalista’ do século XX, para se Segunda Guerra Mundial, a carta de criação
converter ao realismo pragmático da velha das Nações Unidas já foi assinada por cerda
‘geopolítica das nações’ inaugurada pela Paz de 60 Estados nacionais independentes.
de Westfália em 1648. Contudo foi na segunda metade do século
XX que o sistema interestatal deu um salto e
se globalizou aceleradamente, de forma que
Uma interpretação hoje existem quase 200 Estados soberanos,
com direito a um assento nas Nações Unidas.
Como explicar essa mudança radical da Contribuíram para esse aumento geo-
política externa norte-americana? Do métrico: o fim do colonialismo europeu e a
nosso ponto de vista, a partir da própria independência dos Estados africanos e asiáti-
dinâmica expansiva do sistema interesta- cos, com destaque especial para a China, que
tal criado pelos europeus há cinco séculos. transformou sua civilização e seu império
Expliquemos melhor nossa hipótese e nosso milenar em um Estado nacional, que se inte-
argumento, considerando que a unidade grou definitivamente a todos os organismos
básica do poder territorial do sistema e regimes internacionais criados depois da
mundial, nesse início do século XXI, segue Segunda Guerra Mundial, e depois do fim
sendo o ‘Estado nacional’, com suas fron- da Guerra em Fria. Por isso, aliás, muitos
teiras claramente delimitadas e com sua analistas americanos falaram, na década de
soberania teoricamente reconhecida pelos 1990, do ‘fim da história’ e do nascimento de
demais membros do sistema. Esse ‘sistema um mundo unipolar, com a vitória da ‘ordem
interestatal’ se formou na Europa durante liberal’ e a universalização do sistema de
o ‘longo século XVI’ (1450-1650) – segundo valores ocidentais, sob a hegemonia dos EUA.
expressão usada pelo historiador francês De fato, nesse período, os EUA alcança-
Fernand Braudel para referir-se às ‘longas ram uma centralidade dentro do sistema
durações’ da história humana –, e desde seu mundial e um nível de poder global sem
‘nascimento’ se expandiu de forma contí- precedentes na história da humanidade, na
nua, para dentro e para fora do continente, mesma hora em que se acreditou na vitória
na forma de grandes ‘ondas explosivas’ que do fenômeno da globalização econômica e
ocorreram, concentradamente, nos séculos na universalização das regras e instituições
XVI e XIX, e na segunda metade do século criadas pela ordem liberal do século XX.
XX. Nesses períodos, o sistema estatal Ao mesmo tempo, essa mesma expansão do

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poder americano contribuiu decisivamente alianças e guerras serão possíveis, em qual-


para o ‘ressurgimento’ da Rússia, para o salto quer momento e lugar. Um sistema em que
econômico da China e para a ascensão de cada país terá que fazer valer seus interesses
várias outras potências regionais, que passa- nacionais por si mesmo, mediante o aumento
ram a utilizar-se das regras do sistema inte- contínuo do seu poder econômico e militar, e
restatal e de suas mesmas normas, regimes e por intermédio de uma corrida tecnológica
instituições, para questionar o novo mundo que deve levar a humanidade a um patamar
liberal e unipolar americano. Em particular, sem precedente de inovação armamentista.
a Rússia, no campo militar, e a China, no
campo econômico. Também o Irã, a Turquia,
a Coreia do Norte e vários outros países, que Rússia e China e o futuro
se utilizam hoje da ‘diplomacia de Westfália’
e da ‘geopolítica das nações’, inventada pelos Dessa perspectiva, é muito difícil acreditar
europeus, para questionar a própria hierar- no sucesso final da aproximação ou acordo
quia desse sistema liderado pelos EUA. entre EUA e Rússia proposto por Donald
Do nosso ponto de vista, foram exata- Trump, durante sua campanha eleitoral, e
mente essa convergência e homogeneiza- que deu seus primeiros passos concretos
ção normativa do sistema interestatal, junto na reunião entre Donald Trump e Vladimir
com a centralização do poder americano, Putin, realizada na cidade de Helsinki, em
que levaram ao aumento do poder daqueles julho de 2018. O presidente Barack Obama já
Estados que acabaram questionando a ‘Pax havia concebido a mesma mudança de rumo
Americana’ a partir da própria retórica, e no início do seu primeiro mandato, mas foi
das próprias regras e instituições criadas e prontamente demovido desse seu objetivo
sustentadas pelos norte-americanos. Dessa inovador, pelo establishment americano e
forma, os EUA decidem abdicar de sua por seu próprio partido. Esse projeto exigiria
‘universalidade moral’ e desistem do velho da Rússia a aceitação e legitimação do poder
projeto iluminista de ‘conversão’ dos povos global americano, e envolveria, como contra-
aos valores da razão e da ética ocidentais. Ao parte, a aceitação norte-americana da exis-
mesmo tempo, abrem mão de sua condição tência de áreas compartidas e/ou exclusivas
de guardiões éticos e de árbitros de todos os de influência ou controle russo. Além disso,
conflitos do sistema mundial; mas atenção, a aproximação entre esses dois países deixa-
porque os EUA não deixam de considerar ria vago o lugar ocupado pela Rússia nesse
que seus valores nacionais são superiores último século e meio, como ‘inimigo princi-
aos demais, e se assumem como um ‘povo pal’ da estratégia asiática da Inglaterra, na
escolhido’ destinado a exercer o poder, por segunda metade do século XIX, e da estra-
meio da força e da promoção unilateral da tégia global dos EUA, na segunda metade do
divisão e dispersão dos seus concorrentes, de século XX. O mesmo inimigo comum que
todo tipo. Ou seja, os EUA se assumem como cumpriu, durante quase dois séculos, o papel
um ‘povo escolhido’ e abdicam de sua ‘uni- de organizador e hierarquizador dos objeti-
versalidade moral’, para alcançar a condição vos estratégicos e do planejamento militar
de um ‘império militar’ global. Um império, das duas grandes potências anglo-saxônicas
entretanto, que reconhece a importância dos e, em menor grau, também da França e da
Estados nacionais e valoriza o sistema inte- Alemanha, dentro da Europa. Por isso, hoje
restatal, propondo-se sustentar uma com- de novo, sem o ‘inimigo russo’, o ‘império
petição permanente com as outras grandes militar’ americano perderia sua ‘bússola’ e
potências, em uma luta que não terá árbi- teria que sucatear parte importante de sua
tros nem posições neutras, e onde todas as infraestrutura global que foi construída com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 10-17, NOVEMBRO 2018


Geopolítica internacional: a nova estratégia imperial dos Estados Unidos 15

o objetivo específico de conter, enfrentar passada. Desse ponto de vista, é possível


e derrotar a Rússia, envolvendo um inves- prever que:
timento em recursos materiais e humanos
absolutamente gigantesco. i. a nova estratégia americana de descons-
O ingresso da China é a grande novidade do trução dos velhos parâmetros ideológicos
sistema interestatal nas duas primeiras décadas e morais, e de questionamento das antigas
do século XXI e representa, de fato, uma alianças e lealdades, deve provocar uma
ameaça de médio prazo à supremacia econômi- grande fragmentação dentro do sistema
ca e militar dos EUA no Leste Asiático e na Ásia interestatal, com a multiplicação dos seus
Central. Ademais, deve-se reconhecer que hoje conflitos locais, em que os EUA estarão
o sistema de estados e economias nacionais da sempre estimulando as divisões internas de
Ásia está cada vez mais igual ao velho modelo cada país e de cada região;
europeu de acumulação de poder e de riqueza,
que foi a verdadeira origem do nosso sistema ii. essa mesma fragmentação deve alcançar
internacional e capitalista. A Ásia é a zona de um nível muito mais grave e incontrolável
maior dinamismo econômico do mundo, e é no Leste da Ásia e na Europa, onde deverá
no Leste Asiático que está em curso a luta mais reacender o militarismo do Japão e da
intensa e explícita por uma hegemonia regio- Alemanha;
nal, envolvendo a China, o Japão e a Coreia,
mas também a Rússia e os EUA, em uma com- iii. e que esta guerra contínua e fragmen-
petição que deverá ser o embrião da luta pelo tada deve alimentar e realimentar uma
poder global da segunda metade do século XXI. corrida tecnológica e armamentista sem
Muitos analistas costumam anunciar um precedentes entre os três grandes ‘jogado-
grande confronto ‘hegemônico’ entre os EUA res’ e produtores/fornecedores de armas
e a China. Entretanto, o mais provável, do deste novo caleidoscópio mundial: EUA,
nosso ponto de vista, é que não ocorra nada Rússia e China.
disso, e que o sistema mundial atravesse um
prolongado período de grandes turbulências
e guerras provocadas por mudanças súbitas Está cada vez mais claro que o centro nevrál-
e inesperadas, e por alianças cada vez mais gico da nova competição geopolítica mundial
instáveis, como se todo o mundo estivesse envolverá pelo menos duas potências – Esta-
reproduzindo agora, e em escala planetária, dos Unidos e China – que são cada vez mais
o que foi a história passada de formação da complementares de ponto de vista econômico
própria Europa. Sobretudo porque a China e financeiro e que hoje já são indispensáveis
ainda não é uma ameaça global, e ainda não para o funcionamento expansivo da economia
foi transformada no foco central da ‘grande mundial. Além disso, o novo eixo da geopolí-
estratégia’ norte-americana porque ainda tica mundial deve envolver cada vez mais três
não dispõe da capacidade atômica russa de Estados ‘continentais’ – os Estados Unidos, a
enfrentar o poder militar e atingir seriamen- Rússia e a China – que detém, em conjunto,
te o território americano. cerca de um quarto da superfície territorial
É muito difícil de fazer previsões em um do mundo e mais de um terço da população
momento de grande ruptura e mudança, global3(39).
ainda mais com relação a uma estratégia
como a norte-americana, que se distingue Assim mesmo, mantém-se a grande di-
por sua imprevisibilidade radical. Assim ficuldade de saber e prever o que venha a
mesmo, é possível formular algumas con- ser exatamente o ‘interesse nacional ameri-
jecturas a partir da experiência histórica cano’ em um momento histórico em que a

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 10-17, NOVEMBRO 2018


16 Fiori JLC

sociedade e o establishment político dos EUA dura até o colapso total do inimigo, ou então
aparecem divididos e radicalizados. Donde se transforma em uma beligerância contínua
se possa também concluir que durante e paralisante das forças que se dividiram e
este período de grande turbulência que foram jogadas umas contra as outras, por
se anuncia pela frente, a direção do poder fatores internos, mas com a contribuição de-
global dos EUA fique cada vez mais nas mãos cisiva da potência interventora.
do seu comando militar, com suas 700 ou Nesse novo contexto, a própria defesa da
mais bases distribuídas ao redor do mundo, democracia e dos direitos humanos – que
somadas aos seus acordos de ‘ajuda’ e/ou marcou a última década do século passado –
‘defesa-mútua’ com cerca 140 países, dentro perdeu relevância, porque são intervenções
de todo o sistema internacional. que não têm limites éticos. Além disso, esta
Essa nova estratégia dos EUA pode ser nova guerra não tem nenhum compromisso
revertida? É muito difícil prever, porque ela com a reconstrução do ‘adversário’, como
é o produto de uma luta interna que ainda aconteceu, por exemplo, com a reconstrução
não acabou. Contudo o mais provável é que do Japão e da Alemanha, e com o próprio
se mantenha no futuro, mesmo depois da Plano Marshall, destinado à reconstrução
administração Trump, a menos que haja europeia, depois do fim da Segunda Guerra
uma mudança na ‘configuração de forças’ Mundial. Não está mais garantido nem
do sistema mundial. O problema, entretanto, mesmo o acesso privilegiado ao mercado
é que para que tal mudança possa aconte- interno dos EUA, como ocorreu com Coreia,
cer, as demais potências terão que seguir a Japão e vários outros países destruídos
mesma cartilha dos americanos, e este é um e depois ajudados pelos EUA. O que tem
caminho que aponta, inevitavelmente, para sido oferecido na situação atual é apenas
um horizonte de ‘guerra contínua’. o cardápio básico das reformas e políticas
neoliberais.
Por analogia, muitos analistas falam de
Na ‘periferia’ do sistema uma nova Guerra Fria, ou de uma Terceira
Guerra Mundial, quando se referem a este
Um tipo de guerra fragmentada e contínua estado de guerra intermitente e contínuo
que deve ser travada sobretudo nas regiões do século XXI. O importante, entretanto,
mais estratégicas da periferia do sistema é compreender que o fenômeno da guerra
mundial; um tipo de guerra que não envolve adquiriu novo significado e nova duração
necessariamente bombardeios, nem o uso dentro do sistema internacional, e dentro
explícito da força, porque seu objetivo prin- da estratégia de poder global dos EUA. Em
cipal é a destruição da vontade política do ad- grande medida, graças à própria necessidade
versário, por meio do colapso físico e moral endógena de reprodução e expansão contí-
do seu Estado, da sua sociedade e de qualquer nua do ‘império militar’ americano, que foi
grupo humano que se queira destruir. Um construído durante a segunda metade do
tipo de guerra no qual se usa a informação século XX, mas que se expandiu significati-
mais do que a força, o cerco e as sanções mais vamente depois do fim da Guerra Fria.
do que o ataque direto, a desmobilização
mais do que as armas, a desmoralização mais O espaço desse novo tipo de império ame-
do que a tortura. Por sua própria natureza e ricano não é contínuo nem homogêneo. Seu
seus instrumentos de ‘combate’, trata-se de poder apoia-se no controle de estruturas
uma ‘guerra ilimitada’ no seu escopo, no seu transnacionais, militares, financeiras, produti-
tempo de preparação e na sua duração. Uma vas e ideológicas de alcance global, mas não
espécie de guerra infinitamente elástica, que suprime os estados nacionais nem elimina a

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 10-17, NOVEMBRO 2018


Geopolítica internacional: a nova estratégia imperial dos Estados Unidos 17

hierarquia do sistema interestatal. Reconhece Seja como for, é muito importante que se
a existência de Estados que são seus adversá- entenda, sobretudo no caso dos que vivem
rios estratégicos, e exerce seu poder de ma- na ‘periferia norte-americana’, que acabou
neira diferenciada com relação aos demais: definitivamente o tempo da ‘hegemonia be-
vassalagem, no caso de alguns países do Les- nevolente’, com seu compromisso irrestrito
te Asiático e do Oriente Médio; hegemonia no e universal com a democracia, e com sua
caso dos seus aliados europeus. Só no caso da proteção seletiva de alguns casos de desen-
América Latina o poder imperial americano é volvimentismo e bem-estar social. E já não é
exercido sobre o um território contínuo4(63). mais possível retornar. s

Referências

1. Fiori JL. História, estratégia e desenvolvimento. São 4. Fiori JL. Sistema mundial: império e pauperização.
Paulo: Boitempo; 2014. Fiori JL, Medeiros C, organizadores. Polarização
mundial e crescimento. Petrópolis: Vozes; 2001.
2. Presidency of the United States. National Security
Strategy of the United States of America. Washing-
Recebido em 05/08/ 2018
ton, DC; 2017. Aprovado em 09/08/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
3. Fiori JL. O poder global e a nova geopolítica das na-
ções. São Paulo: Boitempo; 2007.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 10-17, NOVEMBRO 2018


18 ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE

A CF-1988 na Berlinda: trinta anos de


disputas por um projeto nacional de
desenvolvimento nos trópicos
The CF-1988 in the spotlight: thirty years of disputes over a national
development project in the tropics

José Celso Pereira Cardoso Junior1

DOI: 10.1590/0103-11042018S302

Apresentação
Este artigo atende a chamamento de forças progressistas ainda presentes na sociedade brasi-
leira, dentro e fora dos aparelhos de Estado em seus diversos níveis de organização e atuação,
com vistas a mais um repensar sobre o Brasil. Em particular, trataremos do papel institucional
desempenhado pelas políticas sociais estruturadas a partir da Constituição Federal de 1988
(CF-1988), com vistas a um projeto nacional de desenvolvimento.
Assim, para além desta breve apresentação, o artigo oferece, na seção 1, uma visão panorâmica
acerca dos três grandes momentos situacionais pelos quais acreditamos ter passado a CF-1988
neste interregno de 30 anos, a saber: i) entre 1988 e 2002: contestação e acomodação; ii) entre
2003 e 2014: acomodação e conciliação; e iii) entre 2016 e 2018: destituição e desconstrução.
Posteriormente, na seção 2, realizamos uma incursão mais amiúde sobre a dimensão social
instituída a partir da CF-1988, enfatizando tanto o caráter híbrido e insuficiente do arranjo
constitucional original como o processo contraditório de implementação, avanços e recuos
desde então. Na seção 3, por sua vez, destacamos o caráter regressivo, excludente e insusten-
tável do novo (porém pior!) arranjo fiscal-social em implementação desde 2016, apontando,
já nas considerações finais, para os riscos sociais e para o retrocesso civilizatório presente na
perspectiva de continuidade desse modelo ao País e a sua população.

1. CF 30 anos: ciclos de contestação, acomodação e


desconstrução constitucional
Como se sabe, em outubro de 2018, a CF-1988 completará 30 anos desde sua promulga-
1 Instituto de Pesquisa ção. Até o momento, esta é (ou terá sido) a Constituição Federal mais longeva da história
Econômica Aplicada (Ipea) republicana brasileira, a viger sob regras democráticas por ela mesma estabelecidas – e
– Brasília (DF), Brasil.
Orcid: https://orcid. obedecidas! –, ao menos até 2016.
org/0000-0002-8463- Em termos bibliográficos, vários trabalhos relevantes sobre a CF-1988 foram produzi-
6844
zcelsojr@gmail.com dos por ocasião dos seus 20 anos de vigência1-13. Muitos mais, aliás, que os que haviam sido

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 18-32, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
A CF-1988 na Berlinda: trinta anos de disputas por um projeto nacional de desenvolvimento nos trópicos 19

produzidos por ocasião dos 10 anos e, prova- da participação social e controles estatais,
velmente, muitos mais do que parece serão além dos aspectos formais relativos ao fun-
produzidos agora por ocasião dos seus 30 anos. cionamento e (des)equilíbrio entre poderes
Apenas esse fato já dá mostras de quão dife- (Executivo, Legislativo e Judiciário, com o
rentes (pessimista, otimista e novamente pes- Ministério Público tendo nascido e se forta-
simista) vêm sendo as efemérides decenais de lecido desde então) e entre entes federados.
sua existência no País; e isso demonstra a im- Dadas as suas abrangência e profundidade
portância desse esforço no sentido de capturar temáticas, a CF-1988 nunca foi consensual no
e caracterizar o ‘momento constitucional’ atual. Brasil, razão pela qual, desde sua promulga-
Para além de seu tempo formal de vigên- ção, a sociedade brasileira vem se dividindo
cia, a CF-1988 é importante porque sob suas entre aqueles que simplesmente querem
regras gerais o País instituiu e tentou imple- derrogá-la, visando instaurar uma ordem
mentar (não sem resistências de toda ordem, constitucional majoritariamente liberal-con-
várias delas infelizmente exitosas) um servadora, e aqueles que desejam ou mantê-
amplo conjunto de direitos civis, políticos, -la em seus traços fundamentais, ou fazê-la
sociais e econômicos. Grande parte da (ainda avançar em termos sociais, econômicos, po-
que pífia) melhoria distributiva havida, por líticos etc., em um sentido de maior controle
exemplo, entre 1995 e 2015, deveu-se aos estatal sobre a economia e maior congraça-
esforços de implementação de dispositivos mento tanto populacional quanto territorial.
constitucionais atrelados às políticas sociais A questão de fundo, portanto, é que, desde
em suas diversas áreas de atuação, tais como: a promulgação da CF-1988, há no Brasil,
previdência e assistência social, trabalho e grosso modo, dois projetos políticos antagô-
renda, educação e saúde, entre outras. Tal nicos em disputa no debate corrente. De um
resultado distributivo, é bom que se diga, lado, coloca-se novamente em pauta – por
ocorreu pelo lado do gasto público, e foi setores conservadores da sociedade, comu-
contrabalançado por tendências concentra- nidades da política (partidos, sindicatos e
doras advindas tanto da estrutura tributária outras agremiações) e da própria burocracia,
regressiva como da primazia do gasto finan- além da mídia e empresariado – o caminho
ceiro sobre o gasto real, ambos os aspectos, liberal, de orientação privatista e individua-
ou presentes na CF-1988 desde o início, ou lista, que havia vivenciado melhores dias na
posteriormente nela sacramentados por década de 1990, mas que, desde 2016, vem
meio de Emendas Constitucionais (EC) que conseguindo impor uma agenda ‘abrangente,
pioraram aspectos cruciais já problemáticos profunda e veloz’ de retrocessos institucio-
do texto constitucional nesses temas ligados nais em áreas críticas da regulação econômi-
à ordem tributária, econômica e financeira. ca, social e política brasileira.
Por outro lado, a CF-1988 também buscou De outro lado, embora raramente tenha
reorganizar aparatos estatais em diversos tido força política suficiente no cenário na-
campos de atuação, promovendo uma verda- cional, permanece como possibilidade – de-
deira reforma administrativa em termos de fendida por setores do campo progressista,
reestruturação e modos de funcionamento da dentro e fora das estruturas de governo – a via
máquina pública. São exemplos disso os regra- da expansão ou universalização integral dos
mentos postos em operação (também aqui de direitos civis, políticos e sociais, tais quais os
forma diferenciada no tempo e muitas vezes promulgados pela CF-1988. Todavia, é preciso
contraditória entre si) nas áreas do direito ter claro que as bases materiais e as condições
econômico e financeiro, da arrecadação tri- políticas hoje vigentes para a efetivação de
butária, da orçamentação e gastos públicos, tais direitos estão ainda muito distantes das
do planejamento e gestão governamental, mínimas necessárias à sua consecução.

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Não por outra razão, talvez seja possí- mandatos de Fernando Henrique Cardoso
vel estabelecer ao menos três momentos (FHC) (1995 a 2002), houve novamente um
por meio dos quais o embate acima vem período forte de contestação e reformas
se desenrolando no País desde o início. constitucionais de grande monta, sobretudo
Resumidamente, entre ‘1988 e 2002’, teria entre 1995 e 1998. O ímpeto destas se arrefe-
vigorado um momento de ‘contestação e aco- ceu ao longo do seu segundo mandato (1999 a
modação’ do pacto constitucional original. 2002), tanto em função das crises econômica
Depois de o governo Sarney ter-se colocado e social em curso como também por causa da
publicamente contra a CF-1988 recém-pro- aglutinação de forças políticas de oposição ao
mulgada, o conturbado governo Collor de governo, que conseguiram barrar ou adiar vo-
Mello buscou contestá-la abertamente, sem, tações importantes ao projeto liberal de refor-
contudo, ter tido êxito em suas tentativas de mas constitucionais. Dessa forma, apesar das
reformas. Após seu impeachment em 1992, o 45 EC aprovadas em seus primeiros 14 anos
Brasil vivenciou, sob o governo provisório de de vigência democrática, a maioria das quais
Itamar Franco, um período de acomodação com caráter claramente contrário ao espíri-
geral, pois, a despeito da revisão constitucio- to original das leis, pode-se dizer que houve
nal havida em 1993, o que estava em jogo era a também certa acomodação de princípios e di-
transição política para as próximas eleições, retrizes constitucionais relevantes aos pactos
que haveria de ser em 1994. Durante os dois sociais e políticos de então.

Tabela 1: Total de Emendas por mandato presidencial. Brasil.

Momentos Mandatos Presidenciais Nº das Emendas Total 1988-2018


Momento 1: Contestação e Acomodação 1988 – 1989: José Sarney 0
1990 – 1992: F.Collor de Mello EC 1 - EC 2 2
1993 – 1994: Itamar Franco EC 3 - EC 4 8
ECR* 1 - ECR 6
1995 – 1998: FHC-1 EC 5 - EC 20 16
1999 – 2002: FHC-2 EC 21 - EC 39 19
Total de Emendas Momento 1 45
Momento 2: Acomodação e Conciliação 2003 – 2006: Lula-1 EC 40 - EC 53 14
2007 – 2010: Lula-2 EC 54 - EC 67 14
2011 – 2014: Dilma-1 EC 68 - EC 84 17
Total de Emendas Momento 2 45
Momento 2: Destituição e Desconstrução 2015 – 2016: Dilma-2 EC 85 - EC 95 11
2016 – 2018: Temer EC 96 - EC 99 4
Total de Emendas Momento 3 15
Total 1988-2018 105

Fontes: Elaboração própria baseada na Constituição Federal de 1988.


*ECR - Emendas Constitucionais de Revisão.

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A CF-1988 na Berlinda: trinta anos de disputas por um projeto nacional de desenvolvimento nos trópicos 21

Por sua vez, entre 2003 e 2014, teria havido em curso, vem conseguindo pautar e sancio-
um momento que poderíamos chamar de nar (até o momento, julho de 2018) 15 EC e
‘acomodação e conciliação’ relativamente à outras tantas reformas infraconstitucionais
CF-1988 e propostas de reformas. Durante os abertamente contrárias ao pacto social e po-
dois mandatos presidenciais de Lula da Silva lítico forjado – e em ‘lenta, gradual e insegu-
(2003 a 2010, mas sobretudo no segundo) e ra acomodação’ – desde a CF-1988.
ainda durante o primeiro mandato de Dilma Em suma, dada a quantidade total de EC
Rousseff (2011 a 2014), a despeito de 45 EC já aprovadas e seu perfil majoritariamente
aprovadas, quase todas elas fruto de embates contrário ao espírito original da CF-1988, é
políticos e ideológicos de monta, de modo que possível afirmar que, 30 anos depois, o ‘Brasil
nem todas possuíram sentido contrário ao possui hoje, na prática, uma Constituição
espírito original das leis, houve também es- Federal Desfigurada, sem, no entanto, ter vi-
forços institucionais no sentido de acomodar venciado, para tanto, uma outra Assembleia
e implementar dispositivos constitucionais Constituinte’. Vale dizer: mudanças feitas
importantes, bem como conciliar a discussão sem consulta, participação nem deliberação
de temas controversos e mesmo postergar a da vontade e soberania popular.
aprovação de medidas contrárias ao ideário Pelo exposto, e sem desconsiderar a dis-
menos liberal dos governos de então. tância que há – a todo o momento e lugar
Por fim, entre ‘2015 e 2018’, já em um con- – entre os fatos e as leis, ou seja, sem jamais
texto de crises econômica e política abertas, acreditar que a mera existência formal da
cujo desfecho institucional foi – por ora – a CF-1988 possa ser posta em movimento tal e
destituição de Dilma Rousseff e a tomada de qual a letra das leis, portanto, cientes de que
poder pelo consórcio liberal-conservador qualquer aparato legal nada mais é do que o
formado por toda a oposição parlamentar resultado (mais ou menos transitório ou per-
de então, e também por parte expressiva da manente) dos embates políticos, econômicos,
coalizão de apoio (de centro e de direita) sociais, culturais etc. de uma dada sociedade
reeleita em 2014, conforma-se um momento em determinado tempo e contexto histórico,
que se vai caracterizando como sendo de vê-se que tais aparatos, por sua vez, trazem
‘destituição e desconstrução’ abrangente, em si determinados princípios, diretrizes e
profunda e veloz dos fundamentos basila- projetos políticos cuja implementação (isto é,
res da CF-1988. Todavia isso apenas se faz sua conversão em fatos da realidade) depende
possível em função das situações (formais e evidentemente da disputa social e política
informais) de ‘excepcionalidade de medidas – idealmente arbitrada por regras suposta-
e criminalização de direitos e atores sociais’ mente republicanas presentes no sistema
que se vem anunciando e produzindo prin- democrático vigente – que se coloca em mo-
cipalmente desde 2015 (com o aguçamento vimento desde a sua promulgação.
da ingovernabilidade já durante o primei- Isso significa que a discussão sobre a
ro ano do segundo mandato de Dilma) e, CF-1988 não está descolada da vida cotidia-
com maior ênfase, desde o golpe em 2016, a na das pessoas e instituições (sejam essas
partir de quando os blocos conservadores no públicas-estatais, não estatais, e privadas), as
comando dos três poderes da República, com quais são criadas, transformadas e mobiliza-
o Ministério Público, os Tribunais de Contas, das para a aplicação ou contestação de cada
a Polícia Federal, a grande mídia corporativa um dos tais normativos legais. Significa, por
e o grande empresariado nacional e interna- isso mesmo, que não é assunto menor ou sem
cional, financeiro e financeirizado, valendo- consequências uma discussão que pretenda
-se da anomia, alienação, desinformação, não apenas proceder a um balanço crítico
cooptação, desalento e/ou resignação social (ainda que não exaustivo) da experiência

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22 Cardoso Junior JCP

constitucional brasileira ao longo desses 30 previdenciários aos trabalhadores oriundos


anos de existência (1988-2018), perscrutan- do mundo rural. Em segundo lugar, trans-
do o teor ou sentido das mudanças havidas formou o conjunto de ações assistencialistas
nas diversas fases de contestação, acomo- do passado em embrião para a construção
dação, conciliação e desconstrução efetiva de uma política de assistência social ampla-
ora em curso, como também oferecer uma mente inclusiva, ao prever a Lei Orgânica
visão prospectiva e propositiva, perfilada ao da Assistência Social (Loas) e o arco de
projeto de construção e desenvolvimento da programas governamentais que lhe dão sus-
nação, que lhe é evidente. tentação. Em terceiro, estabeleceu o marco
Nesse sentido, cabe, na sequência, a tarefa institucional inicial para a construção de
de acompanhar mais amiúde o tema das po- uma estratégia de universalização das políti-
líticas sociais tais quais emanaram da ordem cas de educação e saúde.
social da CF-1988 e vieram sendo concreta- Nos três casos, há mudança qualitativa
mente implementadas em meio às disputas quanto ao status das políticas sociais re-
políticas e projetos de país mais evidentes lativamente a suas respectivas condições
desde então. pretéritas de funcionamento. Além disso,
ao propor novas e mais amplas fontes de fi-
2. CF 30 anos: da constituição cidadã nanciamento, alteração esta consagrada na
à cidadania restrita criação do Orçamento da Seguridade Social,
estabeleceu condições materiais objetivas
Como amplamente reconhecido, a CF-1988 para efetivação e preservação dos novos di-
é um marco na história das políticas sociais reitos de cidadania inscritos na ideia de se-
brasileiras. Em seu capítulo dedicado aos di- guridade e na prática da universalização.
reitos sociais, ela promove mudança formal No entanto, apesar desse conjunto de
sem precedentes na trajetória de construção avanços legais, uma combinação de fatores
da intervenção do Estado no campo social. (econômico-estruturais e político-conjuntu-
Trata-se de alteração qualitativa muito im- rais) fez com que uma nova estratégia social
portante em termos da concepção de pro- fosse sendo gestada e implementada ao longo
teção que havia vigorado no País até então, da década de 1990, em grande medida na
pois inseriu os princípios da ‘seguridade contracorrente das inovações sociais cons-
social’ e da ‘universalização’ em áreas vitais titucionalizadas em 1988. Essa nova estra-
da reprodução social. tégia social se caracterizaria por combinar
No caso brasileiro, ambas as influências es- cinco diretrizes gerais no campo da proteção
tiveram presentes nos processos nacionais de social: ‘universalização restrita, privatização
redemocratização e reconstitucionalização dos crescente, descentralização fiscal, focali-
anos 1980, e não foi à toa que os princípios da zação sobre a pobreza e aumento da parti-
‘seguridade social’ e da ‘universalização’ acaba- cipação social compensatória’. Trata-se de
ram – felizmente – se inscrevendo na CF-1988, reforma social de orientação liberalizante,
apesar do contexto histórico mundial já forte- em termos da concepção, implementação e
mente adverso à época, matizado pela nova fase gestão das políticas sociais em várias áreas
de hegemonia liberal que se propagava desde do mundo do bem-estar (trabalho, previdên-
os EUA de Ronald Reagan e da Inglaterra de cia e assistência social, saúde, educação, ha-
Margareth Thatcher. bitação, segurança pública etc.).
A Constituição Federal brasileira de Muito embora a CF-1988 tenha deixado
1988, não obstante, rompeu com a necessi- em aberto a participação dos setores privados
dade do vínculo empregatício-contributivo (lucrativos e não lucrativos) na complemen-
na estruturação e concessão de benefícios tação da provisão estatal de proteção social,

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A CF-1988 na Berlinda: trinta anos de disputas por um projeto nacional de desenvolvimento nos trópicos 23

parece-nos bastante evidente que a estraté- os benefícios concedidos, o Regime Geral


gia social levada a cabo ao longo das últimas de Previdência Social – Urbano (RGPS-
três décadas, vista retrospectivamente como urbano) teve, na verdade, poder bastante
a resultante do embate de forças políticas e limitado para ampliar sua cobertura na
ideológicas presentes tanto na disputa entre década liberal. Isso se deveu, fundamen-
os setores público e privado como intrasse- talmente, à exigência de contribuição
tores públicos, exacerbou esta característica prévia à concessão de benefícios, fulcro
pró-mercado das políticas sociais, em detri- por excelência do modelo europeu-con-
mento do princípio público e universalizan- tinental (ou meritocrático-contributivo),
te que, na verdade, está na base do capítulo em contexto de alargamento da informa-
constitucional relativo à ordem social. lização e precarização das relações de
Não por outra razão, cunhamos aqui a trabalho no País. Como a estrutura de re-
expressão ‘universalização restrita’ para munerações vinculadas ao RGPS-urbano é
nos referir ao fato de que a universalidade historicamente baixa no Brasil, o nível dos
da cobertura e do atendimento, quanto ao benefícios acaba por refletir e sancionar a
conjunto de políticas de seguridade (saúde, péssima distribuição de renda produzida
previdência e assistência social) e educação, pelo setor privado, abrindo espaço, dessa
não se firmou nem como princípio ideoló- forma, para o surgimento de um setor de
gico geral nem como prática do Estado na previdência complementar com potencial
implementação concreta de tais políticas, para capturar as franjas média e superior
passados já 30 anos (1988-2018) da promul- da distribuição de rendimentos.
gação da Carta Constitucional. No caso da assistência social, embora se
Porquanto a provisão de saúde e a educa- constitua em área de atendimento exclusiva-
ção fundamental tenham alcançado níveis mente voltada para camadas pobres e desas-
bastante elevados de cobertura e, mais impor- sistidas da população, possui também poder
tante, consolidado, ao menos formalmente, o limitado de ampliação da cobertura, devido,
caráter universalizante (público e gratuito) basicamente, aos estreitos limites estabeleci-
dos programas e ações governamentais por dos pelos critérios de renda domiciliar ‘per
todo o território nacional, isso não impediu capita’ que são utilizados como condição de
o avanço e a concorrência (muito mais que elegibilidade aos benefícios. Em um país no
a cooperação/complementação) dos setores qual um contingente muito grande da po-
privados, tanto na saúde, pela oferta limitada pulação percebe rendimentos muito baixos,
e pela qualidade questionável dos serviços tais que os colocariam, em outras condições
públicos, como na educação, em virtude da de civilidade, abaixo de linhas de pobreza
ênfase conferida pelo Estado ao ensino funda- não tão reduzidas, critérios restritivos para a
mental, tendo o mercado privado de escolas concessão de benefícios assistenciais acabam
de ensino médio e faculdades e universidades sendo a forma encontrada pelo Estado para
particulares crescido fortemente desde 1988. regular o gasto social nessa área e, portanto,
Por sua vez, as áreas de previdência impedir pressões indesejadas sobre a estru-
e assistência social também tiveram a tura geral de financiamento público.
universalidade da cobertura e do atendi- Pelo exposto, pelo menos duas questões
mento limitada ao longo dos anos 1990. devem ser ressaltadas.
No caso da previdência, com exceção do A primeira delas é que o esforço de fi-
grande aumento de cobertura obtido pela nanciamento para uma estratégia social
implementação da previdência rural, cujo amplamente universalizante, no caso brasi-
avanço social reside no fato de que não leiro, teria de ser superior ao esforço de fato
guarda vínculo contributivo direto com realizado pelo Estado ao longo dessas três

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24 Cardoso Junior JCP

décadas, motivo pelo qual o País tão somente da descentralização que não estivessem di-
conseguiu implantar um tipo de universaliza- retamente ligados à eficiência das políticas
ção restrita das suas principais políticas sociais. e, sobretudo, dos gastos sociais. Por isso,
A segunda é que o grande impulso dado falamos apenas em descentralização fiscal
à ‘privatização’ – ou aumento de partici- das políticas sociais, já que, na prática, ela
pação dos setores privados (lucrativos ou não se revestiu, senão em raras exceções até
não) na provisão total de bens e serviços o momento, dos princípios de envolvimento
sociais à população – em áreas-chave, como populacional efetivo e participação social na
saúde, educação e previdência, pode ser gestão da coisa pública.
visto como parte da estratégia social guiada Por sua vez, a ‘focalização’ das políticas
pelo próprio Estado, na medida em que é ele (leia-se: dos recursos) sociais visando ao
quem define o marco regulatório de atuação combate direto à pobreza nasceu e se con-
dos entes privados em cada setor da econo- solidou como princípio ideológico que se
mia, impondo, com isso, a direção, o ritmo e construiu e se implementou, desde os anos
a intensidade da acumulação de capital em 1990, na contramão dos preceitos univer-
cada caso concreto. salizantes impressos na CF-1988. É muito
Outras três estratégias coerentes e com- importante atentar para o fato de que, ao
plementares às anteriores também foram deslocar o foco da discussão do desenvolvi-
se fortalecendo desde a década de 1990. Em mento com inserção pelo trabalho produtivo
primeiro lugar, a descentralização de parte e socialmente útil para o tema do combate
das atribuições fiscais da União para Estados à pobreza via, supostamente, uma mais
e municípios. Em segundo, a focalização das eficiente aplicação dos recursos sociais, a
políticas, programas e ações governamentais focalização na verdade se complementa
sobre parcela considerada mais pobre da po- coerentemente com o conjunto da estraté-
pulação. Finalmente, o aumento da partici- gia social montada nos anos 1990 e ainda
pação social organizada – setor público não vigente neste novo milênio.
estatal, ou setor privado não lucrativo – em Por fim, aliado à focalização da proble-
atividades de cunho social. mática social sobre a pobreza, também se
A ‘descentralização’ nasceu na esteira da observa a construção de certo nível de com-
redemocratização no início dos anos 1980 prometimento de setores públicos não esta-
e se consolidou como um dos princípios tais – ou setores privados não lucrativos – em
fundamentais na discussão constituinte relação à execução de ações sociais voluntá-
acerca do novo formato institucional que as rias ou compartilhadas com o próprio setor
políticas sociais deveriam ter. Princípio ori- público estatal. O aumento da ‘participação
ginalmente ligado à ideia de maior envolvi- social’ organizada – porém compensatória
mento e participação dos entes subnacionais – na composição de certa estratégia geral
e também da sociedade civil na formulação, de atendimento social ao longo das décadas
implementação, gestão, controle e avalia- de 1990 e 2000 esteve originalmente ligado
ção das políticas sociais, a descentralização à ideia de maior envolvimento e participa-
acabou se traduzindo em parte da estratégia ção da sociedade civil na formulação, im-
social do governo federal para transferir plementação, gestão, controle e avaliação
responsabilidades e gastos sociais a Estados das políticas sociais. Contudo, o sentido
e municípios. Ainda que a ideia da descen- desta atuação, bem como os resultados até o
tralização como princípio fundamental de momento alcançados, em termos de efetivi-
gestão pública tenha se mantido no discurso dade das instituições participativas, é ainda
oficial, reinou de fato grande descompro- bastante ambíguo para ser avaliado adequa-
misso dos entes federados com aspectos damente neste momento.

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A CF-1988 na Berlinda: trinta anos de disputas por um projeto nacional de desenvolvimento nos trópicos 25

3. CF 30 anos: ruptura diversa, acaba, no caso brasileiro, contribuindo


democrática e retrocesso para a sensação de que tentativas de racionali-
zação e definição de princípios tributários mais
civilizatório justos para o financiamento social estariam
fadadas ao fracasso, seja pela complexidade em
Em termos gerais, é possível dizer que a es- si de tal empreitada, seja pelo conjunto de inte-
tratégia social dos governos que administra- resses divergentes envolvidos.
ram as políticas públicas brasileiras desde a Embora saibamos que os marcos gerais
CF-1988 era também uma estratégia para re- dessa institucionalidade tributária derivem
solver o problema do financiamento das po- de circunstâncias e fatores de ordem econô-
líticas sociais, ainda que fosse uma estratégia mica e de interesses e disputas políticas im-
tão somente implícita, jamais declarada. portantes em cada arena decisória, não deixa
‘Universalização restrita, focalização sobre de ser sintomático verificar que:
a pobreza, descentralização fiscal, participa- • ‘Primeiro’, os princípios que deveriam
ção social e privatização’ da parte rentável estruturar os esquemas de financiamen-
das políticas sociais concorrem, conjunta e to das políticas sociais no País, embora em
estruturalmente, para limitar as necessida- grande parte consagrados na legislação, não
des de financiamento do gasto público social, têm sido, por inteiro, aplicados na orçamen-
notadamente em âmbito federal, o que é tação da Seguridade Social;
também coerente e necessário à estratégia • ‘Segundo’, que isso acaba contrapondo,
mais geral de contenção fiscal do governo na luta cotidiana por recursos, interesses e
em face dos constrangimentos macroeconô- setores inteiros das áreas sociais, os quais,
micos (auto) impostos pela primazia da es- de outra maneira, poderiam convergir,
tabilização monetária sobre qualquer outra tendo em vista princípios comuns de justiça
alternativa de política econômica. distributiva;
Não obstante, é importante mencionar que • ‘Terceiro’, por fim, que o arranjo tribu-
a estrutura de financiamento da área social tário em cada caso concreto das políticas
no Brasil foi alterada, a partir da CF-1988, sociais mascara (mas não esconde!) diversos
rumo a promover incremento de recursos graus de injustiça (e, portanto, ineficácia)
apoiado na diversificação de bases tributá- distributiva, tal qual exemplificamos rapida-
rias. Isso, aliado a vinculações sociais espe- mente abaixo, tendo como referência apenas
cíficas, estabeleceria melhores condições alguns casos paradigmáticos:
materiais para a efetivação e preservação
dos direitos inscritos na ideia de seguridade ▪ Ensino Fundamental: embora redistribu-
e na prática da universalização. Importa res- tivo no gasto, sobretudo, o é por atender aos
saltar a existência de grande diversidade nos setores populacionais mais mal posiciona-
esquemas de financiamento das diversas po- dos na estrutura social desigual do País.
líticas sociais, diversidade esta que congrega Os programas da área, embora financiados
as seguintes fontes: recursos orçamentários com recursos gerais do orçamento público,
provenientes de impostos, contribuições incorrem em certa dose de injustiça distri-
sociais, contribuições econômicas e outras butiva pelo simples fato de que é a própria
de menor importância. estrutura tributária brasileira regressiva
Conquanto essa diversidade de fontes quanto ao financiamento em geral;
possa ser característica institucional positi-
va em contexto nacional marcado por grande ▪ Saúde: o gasto é distributivo, sobretudo,
heterogeneidade social, a exigir soluções por atender aos segmentos mais pobres
diferenciadas para problemas de natureza da estrutura social brasileira, sendo o

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26 Cardoso Junior JCP

financiamento parcialmente injusto por restos a pagar referentes às despesas primá-


depender, em grande parte, de contribui- rias. No caso de descumprimento do limite
ções que, embora incidentes sobre bases estabelecido, o Poder Executivo deverá ajus-
variadas, são onerosas para os setores pro- tar-se, já no exercício subsequente, por meio
dutivos da economia e regressivas em seus do congelamento de subsídios e vedando a
próprios termos; ampliação de desonerações tributárias que
provoquem renúncia de receita. Por fim, a
▪ RGPS-urbano: embora parcialmente justo EC 95/2017 afirma que as vedações intro-
no esquema de financiamento, certamente duzidas pelo novo regime fiscal não consti-
é não redistributivo do ponto de vista do tuirão obrigação de pagamento futuro pela
gasto, pois tal modelo tende sempre a san- União ou direitos de outrem sobre o erário.
cionar a estrutura de distribuição existente; Pelo exposto, concluímos que estudos que
procuram avaliar o impacto distributivo das
▪ RGPS-rural: conquanto seja bastante políticas sociais somente pelo lado dos gastos
redistributivo no gasto, é relativamente não são capazes de gerar resultados meto-
injusto no financiamento, posto que se vale dologicamente satisfatórios. Dada a comple-
das contribuições de empregadores e traba- xidade das relações que existem entre, por
lhadores urbanos para financiar-se; um lado, a estrutura de financiamento social
e, por outro, o padrão fiscal-financeiro dos
▪ Seguro-desemprego: carrega certa dose gastos públicos, não é possível avaliar adequa-
de injustiça distributiva na medida em que damente os impactos sociais dos gastos sem
se destina exclusivamente a trabalhadores considerar também, como dimensão crucial
desempregados do setor formal da econo- dos problemas de efetividade e eficácia distri-
mia. No entanto, este é um programa finan- butivas, o lado do financiamento das políticas
ciado basicamente com recursos do Fundo e programas governamentais da área social.
de Amparo ao Trabalhador – FAT (PIS/ Essa afirmação, compartilhada por
Pasep – Programa de Integração Social Associação Nacional dos Auditores Fiscais
e Programa de Formação do Patrimônio da Receita Federal do Brasil (Anfip) e
do Servidor Público), fundo patrimonial Federação Nacional do Fisco Estadual e
recolhido sobre o faturamento de empre- Distrital (Fenafisco) (2018), leva-nos a
sas que não necessariamente têm, em seu sugerir que parte dos problemas de eficá-
corpo funcional, apenas trabalhadores cia distributiva de algumas importantes
formalizados. políticas sociais de nível federal no Brasil
resida nos arranjos tributários que susten-
Tais aspectos – é importante dizer – não tam o financiamento social. Por um lado,
apenas não serão resolvidos pela EC 95/2017 a tributação sobre o consumo de bens e
como, provavelmente, serão severamente serviços incide mais que proporcional-
agravados durante a vigência, por 20 exercí- mente sobre as camadas de menores ren-
cios financeiros seguidos, do chamado novo dimentos da população; por outro, ela é
(porém pior!) regime fiscal brasileiro. A EC historicamente a base de incidência mais
95/2017 fixa, em cada ano, um limite indivi- importante para a composição da carga
dualizado para a despesa primária total do tributária nacional. Adicionalmente, é
Executivo e demais poderes da esfera federal. preciso mencionar a baixa utilização
Para fins de verificação do cumprimento do que se faz da propriedade como base de
limite estabelecido a cada ano, será conside- composição da carga tributária nacional.
rado o somatório das despesas que afetam o Nunca mais que 1,5% do Produto Interno
resultado primário no exercício, incluídos os Bruto (PIB) é arrecadado anualmente

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A CF-1988 na Berlinda: trinta anos de disputas por um projeto nacional de desenvolvimento nos trópicos 27

no Brasil em nome das diversas formas • O fato de que transferências monetárias


de propriedade existentes, a despeito do de caráter assistencialista, ao visarem tão
caráter potencialmente progressivo desta somente atenuar os resultados sociais do pro-
base de incidência. cesso distributivo, ainda que possam servir
Não obstante, vários autores conservadores como estratégia direta de combate à pobreza,
argumentam que o potencial de arrecadação não constituem solução estrutural para o pro-
de tributos sobre a renda é reduzido no Brasil blema da desigualdade de renda do País.
porque o nível de rendimentos gerais é muito
baixo e a base de incidência do Imposto sobre a Em resumo, queremos chamar atenção
Renda da Pessoa Física (IRPF) é muito estreita. para o fato de que qualquer estratégia de am-
Por este motivo, acreditam que reformas tribu- pliação das políticas (e, portanto, dos gastos)
tárias, no contexto brasileiro, deveriam se preo- sociais só pode ter efeito redistributivo mais
cupar, quase que exclusivamente, com aspectos potente se colado a uma estrutura tributária
ligados à racionalização dos impostos sobre (lado da arrecadação) condizente com prin-
o consumo, ainda que isso não seja suficiente cípios conhecidos de justiça distributiva.
para reverter a regressividade dessa forma de No caso concreto que estamos analisando,
tributação. Assim, defendem que se procure isso equivale a pensar uma estrutura tribu-
resolver o problema da desigualdade de ren- tária centrada sobre o patrimônio (ou seja,
dimentos da sociedade brasileira mediante estoque de riqueza real e financeira, tanto de
utilização de créditos fiscais e transferências pessoas físicas como jurídicas, cuja estrutura
monetárias aos segmentos ocupados de baixa de distribuição no Brasil é vexatória) e pro-
renda e àqueles cobertos pelos programas foca- gressiva no que tange aos fluxos de renda.
lizados de combate à pobreza.
Ora, tanto o diagnóstico acima exposto
quanto a proposta de solução parecem não Considerações finais: o
levar adequadamente em consideração os golpe de 2016 e o futuro da
seguintes aspectos:
proteção social no Brasil
• O quadro de extrema desigualdade e hete-
rogeneidade que marca a estrutura de ren- Desde a CF-1988, setores rentáveis das po-
dimentos das pessoas ocupadas no Brasil; líticas sociais (notadamente: previdência,
saúde, educação, cultura, esportes, trabalho
• Os princípios de justiça distributiva e pro- e segurança pública) convivem com cons-
gressividade contidos nos impostos sobre a trangimentos tecnopolíticos à universali-
renda de pessoas físicas e de empresas; zação de fato de seus principais programas,
e paulatinamente se observa o crescimento
• O potencial não utilizado de arrecada- normativo, regulatório e ideológico da pro-
ção sobre a renda e sobre o patrimônio visão dessas políticas sob a égide privada.
das classes média-alta e alta da sociedade Por sua vez, as chamadas políticas sociais de
brasileira; nova geração (direitos humanos e de cida-
dania para públicos e situações específicas),
• A regressividade intrínseca de qualquer depois de uma fase de institucionalização
base tributária centrada sobre o consumo promissora até 2014, encontram-se material
de bens e serviços, especialmente aquela e ideologicamente inibidas, sobretudo desde
proveniente da grande desigualdade e he- o golpe de 2016, com a reorientação regres-
terogeneidade presentes na estrutura de siva, excludente e insustentável das políticas
consumo da sociedade brasileira; públicas dele decorrente.

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28 Cardoso Junior JCP

No campo especificamente social, os go- Por tudo o que foi dito acima, o projeto
vernos brasileiros dos anos 1990 já haviam golpista de desenvolvimento, se é que se pode
conduzido várias mudanças no sistema na- chamar de desenvolvimento o ideário liberal-
cional de proteção social, com a justifica- -conservador ora em curso no Brasil, deixa
tiva de que o modelo de proteção inscrito claro que a discussão não é tanto saber se a
na Constituição seria muito custoso para CF-1988 cabe ou não cabe no orçamento na-
a estrutura fiscal do Estado, além de ina- cional. Muito mais importante a constatar
dequado em face das propostas de reforma é que a própria sociedade brasileira, em sua
administrativa e do sistema econômico. heterogeneidade, diversidade, desigualdades,
Por essa razão, o núcleo duro de qualquer pluralidade e necessidades, enfim, é esta que
sistema de bem-estar – a saber: as condi- definitivamente não cabe no projeto golpista.
ções de regulação do mercado de trabalho e Em outras palavras, como reduzir a
o modelo de previdência social – passaram plêiade de manifestações, interesses e ne-
por importantes mudanças institucionais cessidades políticas, econômicas, sociais,
durante a década de 1990. culturais, raciais, sexuais, etárias, artísti-
No caso do mercado de trabalho, em que cas, religiosas, intelectuais, internacionais
praticamente a maior parte da população etc. de uma nação como a brasileira a um
ativa nunca foi contribuinte do sistema de ideário ideológico elitista e excludente?
proteção, a onda de liberalização das regras Simplesmente impossível!
de regulação laboral levada a cabo nos anos Então, a questão não é ajustar e restringir
1990 fez com que a cobertura social no artificialmente toda a grandeza e pujança
âmbito da previdência pública não aumen- da sociedade brasileira a leis fiscais e pa-
tasse significativamente. De acordo com essa râmetros orçamentários como se leis e pa-
assertiva, constata-se hoje que a causa para râmetros fossem imposições da natureza.
a crise do mundo do trabalho no Brasil não A questão é justamente buscar os arranjos
esteve (e não está) ligada à legislação exis- políticos, sociais, institucionais capazes de
tente, mas basicamente à profunda e persis- melhor compatibilizar capacidades estatais
tente crise do Estado e da economia, o que e societais, instrumentos governamentais e
desqualifica as propostas liberais de reforma de mercado, no sentido da ampliação demo-
trabalhista sempre em voga no País. crática da nação – ao invés da sua castração.
Na esfera previdenciária brasileira, a Para tanto, torna-se imprescindível redefinir
reforma governamental iniciada nos anos o papel do mercado e da acumulação capita-
1990 parece também não ter trazido resul- lista em suas relações com o Estado e com o
tados alvissareiros, basicamente por duas poder público instituído.
razões. Em primeiro lugar, porque em con- Pelo lado do financiamento social, sabe-se
texto de grande desigualdade de rendimen- que a estratégia governamental de ampliar
tos, e no qual também os níveis absolutos de e recentralizar a carga tributária esteve
remuneração são bastante baixos, somente colada, principalmente, à política de susten-
uma pequena parte da população ocupada tação financeira da estabilização monetária
pode ter acesso aos sistemas privados de pre- adotada e mantida desde 1994. A necessi-
vidência complementar. Em segundo lugar, as dade do governo federal de robustecer seu
mudanças pretendidas para a resolução dos caixa para viabilizar a estratégia macroeco-
problemas estruturais do sistema de segu- nômica fez com que ele optasse por expan-
ridade púbico sempre foram incompatíveis dir a arrecadação das contribuições sociais
tanto com a heterogeneidade do mercado de na composição total da carga tributária, já
trabalho quanto com as propostas recorrentes que a receita desses tributos não é repassada
de desregulamentação trabalhista. a Estados e municípios. Dado, porém, que

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A CF-1988 na Berlinda: trinta anos de disputas por um projeto nacional de desenvolvimento nos trópicos 29

as contribuições sociais existem tendo por Embora não se possa acusar a tributação
trás vinculações orçamentárias constitucio- sobre a folha salarial de regressiva, a situação
nais específicas, foi preciso que o governo na qual os contribuintes desses programas fi-
criasse formas de desvinculação de parte nanciam seus próprios benefícios também se
desses recursos, o que foi feito em diferentes repete nesse caso. Por fim, a tributação sobre
momentos pelo Fundo Social de Emergência a renda e sobre o patrimônio, a despeito de
(FSE), Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) serem bases de incidência detentoras de
e mais recentemente pela Desvinculação de grande potencial quanto à progressividade,
Receitas da União (DRU), agora aumentada é pouco aproveitada no Brasil, haja vista sua
de 20% para 30% da arrecadação primária pequena expressão na carga tributária total.
sobre a qual incide. Assim, olhando a questão Do que foi dito, conclui-se que é
apenas por esse ângulo, pode-se afirmar que pequeno o potencial de combate às desi-
a estratégia de financiamento federal dos gualdades a partir da estrutura tributária
anos 1990 e 2000 no Brasil logrou deslocar nacional atualmente existente, já que o
recursos potenciais do orçamento social princípio do autofinanciamento da políti-
para o ajuste macroeconômico, colocando ca social está nela enraizada. Uma forma
teto à capacidade de gastos sociais em todo o de ver isso é lembrar que praticamen-
período considerado. te dois terços de todo o gasto social está
Outro conjunto de constrangimentos às vinculado a contribuições sociais feitas
finanças sociais brasileiras está relacionado sobre a folha de salários. Ou seja, tendo
com a estrutura tributária regressiva do País. em conta que o principal componente do
Nesse quesito, a discussão sobre a carga e sobre Gasto Social Federal (GSF) é representa-
a estrutura tributária é totalmente estéril se do pelo gasto previdenciário, tem-se que,
desvinculada de pelo menos dois aspectos. em sua maior parte, ele é financiado pelos
Em primeiro lugar, o problema não está neces- próprios beneficiários, sendo o restante
sariamente em quanto o Estado arrecada da indireta e desproporcionalmente finan-
sociedade, mas fundamentalmente em como ciado pelas camadas mais pobres da popu-
arrecada, ou seja, em quão progressiva ou re- lação, por meio dos tributos que incidem
gressiva é a estrutura de arrecadação imposta à sobre o consumo. Tomando por base, por-
sociedade. Em segundo lugar, vem a questão de tanto, a regressividade da estrutura tribu-
como se gasta aquilo que se arrecada, isto é, em tária, bem como o fato de a maior parte
quão progressiva ou regressiva é a estrutura de dos impostos e contribuições devidos por
gastos públicos estatais. empregadores ser repassada aos preços,
Com relação ao primeiro aspecto, a ar- conclui-se que as classes que vivem do tra-
recadação pública está concentrada em tri- balho (e entre estas, as mais pobres) são as
butos sobre o consumo de bens e serviços que, em verdade, financiam a maior parte
cuja incidência é proporcionalmente maior dos gastos sociais no Brasil.
sobre parcelas da população que detêm os Com relação ao segundo aspecto, isto é, a
menores níveis de rendimentos. Tal regres- forma pela qual se efetua a despesa pública,
sividade se torna ainda mais problemática tem havido intenso e permanente desloca-
ao evidenciarmos o fato de que fazem parte mento de recursos reais da área social para
desses tributos determinadas contribui- outras áreas do gasto federal, notadamente
ções sociais destinadas ao custeio de pro- para a cobertura de despesas financeiras.
gramas sociais que são, assim, financiados Assim, tudo o mais constante, a manter-se
indiretamente (por meio do consumo e da a função-objetivo primordial do atual
estrutura tributária regressiva) por seus governo, sob cuja batuta se deu o desalen-
próprios beneficiários. tador aniversário de 30 anos da CF-1988,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 18-32, NOVEMBRO 2018


30 Cardoso Junior JCP

no sentido de manter superavit primários serviços ofertados à sociedade, é patente


elevados para garantir o refinanciamento e antiga a baixa qualidade geral destes e, a
da dívida pública, e transmitir a sensação de despeito do movimento relativamente rápido
credibilidade e de governabilidade em prol de ampliação da cobertura em vários casos
da estabilização monetária, duas consequ- (vejam-se, por exemplo, as áreas de saúde,
ências imediatas se manifestam do ponto de educação, previdência e assistência social
vista da gestão social: etc.), nada justifica o adiamento dessa agenda
da melhoria da qualidade com vistas à legi-
• As políticas sociais setoriais tornam-se timação política e à preservação social das
insuficientes, diante do quadro de restri- conquistas obtidas até agora. A agenda da
ções macroeconômicas, para combater a qualidade, por sua vez, guarda estreita relação
estrutura profunda de desigualdades da com as duas outras mencionadas anterior-
sociedade brasileira; mente: as dimensões do financiamento e do
planejamento.
• Os gastos sociais tradicionais tendem a No caso do financiamento, é preciso en-
se transformar (depois da infraestrutura frentar tanto a questão dos montantes a
social: saneamento e habitação) em fron- disponibilizar para determinadas políticas
teira politicamente possível do superavit – ainda claramente insuficientes em vários
primário. Tal parece ser, aliás, o objetivo casos – como a difícil questão da relação
de medidas tais como as contidas na EC entre arrecadação tributária e gastos públi-
95/2017, bem como daquelas destinadas cos. Há muitas evidências empíricas e muita
à desvinculação do salário mínimo como justificação teórica acerca dos malefícios
indexador dos benefícios da previdência e que estruturas tributárias altamente regres-
da assistência social, e à desvinculação que sivas, como a brasileira, trazem para o resul-
as contribuições sociais e demais impostos tado das políticas públicas e para a própria
possuem em relação aos principais compo- distribuição de renda e riqueza no País.
nentes do gasto social federal. Em outras palavras, o impacto agrega-
do destas, quando considerado em termos
É claro que restam ainda outras questões dos objetivos que pretendem alcançar, tem
e problemas a enfrentar, estes também de di- sido negativamente compensado, no Brasil,
mensões consideráveis, a saber: pelo perfil regressivo da arrecadação, que
tem penalizado proporcionalmente mais
• Incremento de ‘qualidade’ dos bens e ser- os pobres que os ricos. Se essa situação não
viços públicos disponibilizados à sociedade; mudar, rumo a uma estrutura tributária mais
progressiva, tanto em termos dos fluxos de
• Equacionamento dos esquemas de ‘finan- renda como dos estoques de riquezas (físicas
ciamento’ para diversas políticas públicas e financeiras) existentes no País, dificilmen-
de orientação federal; e te haverá espaço adicional robusto para a
redução das desigualdades econômicas,
• Aperfeiçoamentos institucionais-legais sociais e regionais, que clamam, há tempos,
no espectro amplo do ‘planejamento’ go- por soluções mais rápidas e eficazes.
vernamental para a execução adequada Por fim, no caso da ‘função planeja-
(vale dizer: eficiente, eficaz e efetiva) e ade- mento governamental’, trata-se não só de
rente (às realidades socioeconômicas) das promover aperfeiçoamentos legais rela-
diversas políticas públicas em ação pelo País. tivos aos diversos marcos institucionais
que regulam a operacionalização cotidia-
Com relação à qualidade dos bens e na das políticas públicas, mas também de

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A CF-1988 na Berlinda: trinta anos de disputas por um projeto nacional de desenvolvimento nos trópicos 31

estimular e difundir novas técnicas, ins- • A ‘revolução técnico-científica-produ-


trumentos e práticas de formulação, im- tiva’: ancorada nos fundamentos da eco-
plementação e gestão de políticas e ações nomia verde, com ênfase em educação
governamentais no espaço ainda discricio- ambiental desde a primeira infância, pro-
nário que os gestores possuem. dução e difusão de tecnologias limpas, pro-
Nesse particular, é preciso ter claro que a motora de encadeamentos inovativos de
política social brasileira, comumente consi- amplo alcance, ou seja: inovação produtiva
derada, por analistas e setores conservadores e institucional de processos e produtos;
da sociedade, como peso morto e elemento
antagônico ao crescimento econômico, pode • A ‘refundação dos poderes Legislativo e
e deve, na verdade, dentro da perspectiva Judiciário’: a reforma do sistema repre-
ética e analítica aqui adotada, ser vista como sentativo e de partidos políticos, o fortale-
parte integrante de um projeto de desen- cimento dos instrumentos de democracia
volvimento de longo prazo para o País, pois direta e dos mecanismos coletivos de par-
coloca a população – particularmente aquela ticipação e deliberação, a desconcentração
vinculada ou circundada pelo salário mínimo econômica e democratização dos meios de
– no centro dessa estratégia. comunicação e do sistema de justiça;
Para além dos princípios gerais acima
sugeridos, há, evidentemente, uma agenda • A ‘revolução na cultura dos direitos’: ins-
de reformas concretas inadiáveis, que aqui titucionalização e substantivação dos direi-
apenas se enunciam de modo não exaustivo, tos humanos, econômicos, sociais, culturais
já que a concertação política necessária à sua e ambientais.
viabilidade institucional e implementação
no âmbito do Estado brasileiro depende ob- É essa a aposta (e a utopia!) analítico-in-
viamente da restauração democrática de fato terpretativa sugerida por este balanço crítico
e de direito no País. São elas: acerca dos 30 anos da CF-1988, e é essa a
aposta político-institucional de construção
• A ‘reforma tributária e fiscal’: progressiva coletiva que os governantes brasileiros deve-
na arrecadação e redistributiva nos gastos; riam se impor neste século XXI. s

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32 Cardoso Junior JCP

Referências

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mento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. 25 Anos: a construção da democracia & liberdade de
São Paulo: Malheiros; 2005. expressão: o Brasil antes, durante e depois da cons-
tituinte. Rio de Janeiro: Instituto Vladimir Herzog;
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leira Revisitada: recuperação histórica e desafios
atuais das políticas públicas nas áreas econômica e 9. Grau ER. A Ordem Econômica na Constituição de
social. Brasília, DF: IPEA; 2009. 1988:interpretação e crítica. São Paulo: Malheiros,
2008.
3. Cardoso Jr JC, Castro PF, Mota D, organizadores.
A Constituição Brasileira Revisitada: recuperação 10. Lopes JAV. A Carta da Democracia: o processo
histórica e desafios atuais das políticas públicas constituinte da ordem pública de 1988. Rio de Ja-
nas áreas regional, urbana e ambiental. Brasília, DF: neiro: Topbooks, 2008.
IPEA; 2009. 2 v.
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5. Fiocca D, Grau ER, organizadores. Debate sobre a Constituição. São Paulo: Paulus; 2008.
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13. Ribeiro PH, Guerra AM, Bernardes WL, et al. 25
6. Fonseca F, Brelàz G, Gomes MV, organizaadores. A Anos da Constituição Brasileira de 1988: democra-
Constituição Federal de 1988: avanços e desafios. cia e direitos fundamentais no Estado Democrático
São Paulo: Hucitec; 2010. de Direito. São Paulo: D’Plácido; 2013.

7. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Políti-


Recebido em 24/07/ 2018
cas Sociais: acompanhamento e análise. Vinte Anos Aprovado em 24/08/2018
Conflito de interesses: inexistente
da Constituição Federal. Brasília, DF: IPEA; 2009.
Suporte financeiro: não houve

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ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE 33

Saúde pública e pós-democracia: do Estado


Democrático de Direito ao Estado Pós-
Democrático
Public health and post-democracy: from the Democratic State of Law
to the Post-Democratic State

Rubens Casara1

DOI: 10.1590/0103-11042018S303

Introdução
Ao se falar em Estado Democrático de Direito, por evidente, evoca-se, em termos weberianos,
um ‘tipo ideal’ de Estado que tem como principal característica a existência de limites legais
ao exercício do poder. Na realidade, o Estado concreto, para além dos idealismos, mesmo
que aposte na lei e no direito para evitar abusos, convive sempre com uma margem de ile-
galidade produzida por particulares e, principalmente, pelo próprio Estado. Isso porque, ao
contrário do que muitos sustentam, é o poder político que estabelece e condiciona o direito.
Condicionado, o direito acaba afastado, sempre que necessário, à realização do poder, de qual-
quer poder. Há manifestações de poder que escapam da legalidade, porque ao longo da his-
tória, e Marx já havia percebido isso, a legalidade esteve (quase) sempre a serviço do poder; e
sua função se limitava a legitimar ‘a lei do mais forte’.
O que há de novo não é a violação dos limites ao exercício do poder. Em razão da mercan-
tilização do mundo, da sociedade do espetáculo, do despotismo do mercado, do narcisismo
extremo, da reaproximação entre o poder político e o poder econômico, do crescimento do
pensamento autoritário, perdeu-se qualquer pretensão de fazer valer esses limites, que hoje
existem apenas como um simulacro, como um totem que faz lembrar conquistas civilizatórias
que já existiram, mas que, na atualidade, não passam de lembranças que confortam. Mais do
que a violação de limites, o que caracteriza a chamada pós-modernidade é a total desconside-
ração, ou mesmo a ausência, dos limites, que um dia foram pensados, ao poder.
Por ‘pós-democrático’1, entende-se um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder,
isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase
voltam a se identificar, sem pudor. O ganho democrático que se deu com o Estado moderno,
nascido da separação entre o poder político e o poder econômico, desaparece na pós-demo-
1 Fundação Oswaldo Cruz cracia; e, nesse particular, pode-se falar em uma espécie de regressão pré-moderna. Está em
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio vigência uma espécie de absolutismo de mercado.
Arouca (Ensp) – Rio de Pós-democrático, para dar nome à hipótese de que o Estado Democrático de Direito foi
Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid. superado por um Estado sem limites ao exercício do poder, vai ao encontro da tese de que o
org/0000-0002-1419- neoliberalismo está levando à era da pós-democracia2. De fato, o ‘pós-democrático’ é o Estado
3718
rubens.casara@gmail.com compatível com o neoliberalismo, com a transformação de tudo em mercadoria. Um Estado

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 33-40, NOVEMBRO 2018
34 Casara R

que, para atender ao ultraliberalismo eco- entre o Estado e a sociedade civil (a socieda-
nômico, necessita assumir a feição de um de civil, locus da atividade mercantil, espaço
Estado Penal, de um Estado cada vez mais ved ado para o Estado), no qual a proprieda-
forte e voltado à consecução dos fins dese- de e a liberdade (entendida como liberdade
jados pelos detentores do poder econômico. para adquirir e possuir sem entraves, liber-
Fins que levam à exclusão social de grande dade originária de onde derivariam todas
parcela da sociedade, ao aumento da violên- as outras liberdades) eram compreendidos
cia (não só da violência física, que cresce de como os dois principais direitos fundamen-
forma avassaladora, como também da vio- tais do indivíduo e no qual o significante ‘de-
lência estrutural, produzida pelo próprio mocrático’ aparecia para frisar a oposição em
funcionamento ‘normal’ do Estado pós- relação ao princípio monárquico do Estado
-democrático), à inviabilidade da agricultura absolutista. Com o agravamento da situação
familiar, à destruição da natureza e ao caos econômica de grande parcela da população,
urbano, mas que necessitam do Estado para o aprofundamento dos conflitos sociais e a
serem defendidos e legitimados. ameaça corporificada nas experiências so-
Não há, ao contrário do que sustentam cialistas, somados à perda da confiança no
os discursos de viés liberal dos que estão sa- funcionamento concreto da ‘mão invisível’
tisfeitos com o Estado Pós-Democrático, a e das ‘leis naturais’ do mercado, o Estado de
diminuição da intervenção estatal na vida Direito Liberal foi gradualmente substituído
da sociedade. Ao contrário, o Estado Pós- por um Estado Social de Direito que nasce
Democrático revela-se um Estado forte e, como uma solução de compromisso entre
possivelmente, o Estado menos sujeito a con- os defensores do status quo e os que lutavam
trole desde a criação do Estado Moderno. Na por transformações sociais (têm razão os que
pós-democracia, o político torna-se, como apontam o efeito mistificador e ideológico do
desejava Carl Schmitt em 1932, o mero espaço Estado Social, que se revelou capaz de frear
da dicotomia amigo e inimigo. Essa diferen- os ímpetos dos movimentos revolucionários
ciação política tem a função de caracterizar e os protestos das classes não capitalistas).
o extremo grau de intensidade da adesão e Como afirma Avelãs Nunes, tratou-se da pri-
funcionalidade à razão neoliberal. No Estado meira tentativa de substituir a ‘mão invisível’
Pós-Democrático, a diferenciação exclusiva- da economia pela mão invisível do direito.
mente política, já que desaparecem as funções No modelo do Estado Social de Direito, em
que constituíam o ‘braço esquerdo’ do Estado que se percebe uma certa prevalência do po-
(tais como as políticas inclusivas e de redução lítico sobre o econômico, o Estado assume a
da desigualdade), é a diferenciação entre função de realizar a ‘justiça social’, assegurar
‘amigo’ do mercado e ‘inimigo’ do mercado, o pleno desenvolvimento de cada um e con-
este último será o indivíduo indesejável sobre cretizar o projeto de vida digna para todos
o qual recairá o poder penal. (princípio da dignidade da pessoa humana).
Em apertada síntese, pode-se afirmar que Porém, em um quadro de crise econômica
o estado capitalista, para sobreviver, exigiu, profunda, no qual a debilidade da economia
em diferentes quadras históricas, o Estado nos países capitalistas não permitia minima-
Liberal de Direito, o Estado Social de Direito, mente a realização das promessas do Estado
o Estado Fascista, o Estado Democrático de Social, com os detentores do poder econômi-
Direito e, agora, o Estado Pós-Democrático. co sedentos por aumentar os seus lucros, o
Para tornar-se hegemônico e superar defi- projeto capitalista teve que assumir a forma
nitivamente o Estado Absolutista, o projeto de um Estado Fascista, antidemocrático e
capitalista exigiu um Estado regulado por antissocialista, que apostava em resposta
leis, em que prevalecia a ideia de separação de força para manter a ordem e resolver os

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Saúde pública e pós-democracia: do Estado Democrático de Direito ao Estado Pós-Democrático 35

mais variados problemas sociais, na medida política ao Estado e o direito à lei. Não se pode
em que incentivava a ausência de reflexão. O esquecer também que a modernidade ociden-
Estado Fascista era um estado de direito, mas tal, esse universo de relações de dominação sob
o direito fascista não representava um limite a hegemonia eurocentrada, levou também à
ao arbítrio e à opressão. Com a derrota polí- racionalidade neoliberal que transforma tudo e
tica e militar dos Estados Fascistas, o projeto todos, inclusive o humano, em mercadoria, em
capitalista retoma a aposta em um modelo objetos negociáveis.
de Estado marcado pela existência de limites Para muitos, os direitos humanos não
ao exercício do poder, dentre os quais des- passam de uma espécie de ideologia, uma
tacam-se os direitos fundamentais. A aposta, representação ideológica capaz de mistificar
porém, revelou-se equivocada, na medida a condição humana e tranquilizar as almas
em que os direitos fundamentais passaram a daqueles que, por ação ou omissão, são res-
constituir obstáculos inclusive ao poder eco- ponsáveis pela violência contra as pessoas.
nômico. Com isso, a razão neoliberal, nova Assim, o discurso dos direitos humanos,
forma de governabilidade das economias e percebidos como abstrações, acabaria por
das sociedades baseada na generalização do esconder as violações concretas aos interes-
mercado e na liberdade irrestrita do capital, ses e às necessidades de cada pessoa. Nesse
levou ao Estado Pós-Democrático de Direito. sentido, pode-se afirmar que as concepções
‘abstratas’ dos direitos humanos produzem
efeitos perversos4 que se relevam conexos e
Direito à saúde: de direito integrados: a) efeito ilusório, que dificulta a
fundamental à mercadoria percepção da distância entre o discurso e a
prática, ou melhor, entre os direitos previs-
Os direitos humanos tornaram-se a lingua- tos e os direitos efetivados (a previsão legal
gem hegemônica da dignidade humana. de um direito passa a funcionar como subs-
Aplausos e discursos em defesa dos direitos tituto de sua concretização); b) efeito imobi-
humanos não faltam. Todavia, como percebeu lizador, uma vez que o reconhecimento legal
Boaventura de Souza Santos3, essa hegemonia do direito gera uma sensação de satisfação e
no campo discursivo convive com fato assus- de suficiência, de que não há mais o que se
tador: grande parte da população mundial conquistar (eventuais violações dos direitos
não alcançou a condição de sujeito de direitos humanos seriam meras disfunções atribu-
humanos. Para muitos, reserva-se às pessoas íveis a erros individuais) e que, agora, cabe
a condição de não sujeitos, submetidos às ao aparato estatal concretizar os direitos
várias formas de violência (física, moral, es- humanos; c) efeito de ordem, que reduz os
trutural, simbólica etc.). Em outras palavras, direitos humanos àqueles consagrados na le-
se todos figuram como objetos dos discursos gislação nos termos em que são reconhecidos
sobre direitos humanos, poucas pessoas têm pelas Agências Estatais (em especial, o Poder
reconhecidos e concretizados esses direitos. Judiciário), o que faz com que se aceite que o
Existem diversas concepções e teorias que aparato estatal possa selecionar, identificar,
procuram dar conta do conceito de direitos limitar, excepcionar, relativizar e conter os
humanos. A dificuldade de encontrar um con- direitos humanos em nome da manutenção
ceito adequado aumenta ao perceber que a da ordem; d) efeito de legitimação de uma
maioria das concepções de direitos humanos ordem hegemônica, uma vez que a compre-
são produtos da modernidade ocidental (poder- ensão dos direitos humanos está condicio-
-se-ia dizer: obra do homem branco europeu), nada por uma determinada configuração
um modo de ver e atuar no mundo que se carac- de poder (não raro o significante ‘direitos
terizou por reduzir o conhecimento à ciência, a humanos’ é utilizado para atacar projetos de

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poder alternativos, mesmo por governos que sociais (basta lembrar de como o sistema de
violam cotidianamente direitos de parcela justiça brasileiro e seus atores tratam daque-
de sua população) etc. les indesejáveis ao projeto neoliberal de acu-
Fácil, pois, perceber a tensão entre o que mulação ilimitada do capital6).
‘é’ (plano do ‘ser’) e o que deve ser (plano do Chamam-se ‘direitos humanos’ aos direi-
‘dever ser’), bem como a diferença entre ‘o tos que pertencem a todas as pessoas naturais
que deve ser segundo o direito que é’ e ‘o que pelo simples fato de terem nascido. A pessoa
é no mundo-da-vida’. Por fim, ‘o que é’ está o é por ter sido lançada na linguagem. É possí-
longe de se identificar com o que deveria ser vel afirmar a existência de direitos (fenômeno
em um mundo no qual os direitos humanos, que importa comunicação) porque a humani-
reconstruídos para além do referencial do dade é composta de entes que têm seu mundo
‘homem branco europeu’, fossem respeitados. ao modo do que é falado, entes dotados de lin-
Diante desse quadro, ainda com Boaventura guagem e em comunicação. Direitos humanos
de Souza Santos, não há como deixar de ‘sus- referem-se à realização plena da humanidade
peitar’ dos direitos humanos. Como a ideia e englobam todos os direitos necessários à
de direitos humanos pode conviver com uma concretização da dignidade humana. Por essa
realidade que nega a grande parcela da popu- razão, os direitos humanos devem ser apre-
lação mundial as condições necessárias à vida ciados a partir de uma análise conglobante.
minimamente digna? A que direitos se refere, e São, portanto, direitos compartilhados por
a quem pretendem proteger, os defensores dos todos, por todas as singularidades, enquanto
direitos humanos? pessoas naturais.
Ao se falar em direitos humanos, recorre- Os direitos humanos são apontados como
-se a dois significantes: direitos e humanos. direitos universais, posto que deveriam
Trata-se de um conceito complexo, portanto, pertencer a todas as pessoas naturais, sem
uma vez que integrado por dois elementos qualquer exceção, a todos os seres humanos.
vinculados entre si, em uma relação de com- Tanto a Declaração de Independência dos
plementariedade e, ao mesmo tempo, de con- Estados Unidos da América (1776) quanto
tradição. Segundo Alessandro Baratta5(334), a Declaração dos Direitos do Homem e do
há complementariedade, Cidadão (1789) destacam-se pela universali-
dade das afirmações feitas: ‘todos os homens
no sentido de que pertence ao homem en- são criados iguais, dotados pelo seu Criador de
quanto tal, segundo o direito; contradição no certos Direitos inalienáveis’, ‘todos os homens’,
sentido de que o direito não reconhece ao ho- ‘homens’, ‘todos os cidadãos’, ‘cada cidadão’
mem o que lhe pertence enquanto tal. etc. Assim, pretendia-se afastar qualquer
dúvida acerca da intenção de que toda pessoa
Em outras palavras, ao longo da história, o era titular desses direitos pelo simples fato de
direito não reconheceu à pessoa o que é ne- ter nascido, o que, em concreto, era negado
cessário à sua plena realização; ‘humano’ e pelos fenômenos da escravidão e do patriar-
‘direito’ são definidos do ponto de vista ideal cado. Na Constituição Brasileira de 1988, os
em reciprocidade, enquanto no mundo-da- direitos humanos, que tantas vezes são viola-
-vida a pessoa concreta sofre a negação do dos, encontram-se positivados como direitos
direito a uma vida digna. Não raro, a legis- fundamentais, entre os quais, o direito à vida, à
lação (o ‘direito’ reduzido à lei e à interpre- integridade física e mental, à liberdade de ex-
tação dada à lei) se coloca em oposição aos pressão e de pensamento, ao meio ambiente, ao
valores dos direitos humanos, em especial no trabalho digno e à saúde.
que toca a vários segmentos étnicos e sociais A afirmada ‘universalidade’ dos direitos
subalternizados e excluídos das políticas humanos merece problematização. Basta

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Saúde pública e pós-democracia: do Estado Democrático de Direito ao Estado Pós-Democrático 37

lembrar que Olympe de Gouges foi guilhoti- desde o fenômeno da colonização), de que os
nada após publicar a Declaração dos Direitos seus valores e as suas ideias devem ser trans-
da Mulher e da cidadã justamente para ques- mitidos e incorporados por outras comuni-
tionar a precária universalidade da decla- dades tidas como inferiores. Tem-se, aqui,
ração francesa. Há uma tensão inafastável mais um exemplo de imposição cultural ao
entre o universal (aquilo que se pode afirmar Outro, que muitas vezes se dá mediante o
como válido independentemente dos con- recurso à violência.
textos) e o fundacional (o que representa Para superar essa violência, típica de
uma identidade especifica, com memória, uma perspectiva colonizadora, que está na
tradição, história e raízes). Basta pesquisar origem do conceito (e do conteúdo hegemô-
a situação dos direitos humanos em diver- nico) de direitos humanos, impõe-se recons-
sas regiões do mundo (ou até em regiões de truir esse conceito a partir de uma dialética
um mesmo país) para chegar à conclusão de intercultural, que não exclua o sul global, os
que inexiste, em concreto, um tratamento povos originários das Américas, as comu-
homogêneo ou mesmo validade universal de nidades tradicionais e quilombolas, como
direitos em contextos políticos, econômicos mecanismo de interação entre as várias cul-
ou culturais diversos. turas. Reconstruir, aqui, significa uma aber-
Em países lançados em uma tradição au- tura para diferenças que foram ignoradas
toritária, os direitos humanos são percebi- na construção eurocentrada do significado
dos como obstáculos à eficiência repressiva atribuído aos direitos humanos. Essa supe-
do Estado (em regra, em favor do mercado), ração dialética terá o potencial de reduzir
enquanto em regiões que foram capazes de as assimetrias de poder, compensar as in-
construir uma cultura democrática, os direi- justiças históricas e socioeconômicas (basta
tos humanos funcionam como condição de pensar na situação de pobreza gerada pela
legitimidade do Estado ou como condição exploração das ex-colônias, pela escravidão,
de possibilidade da própria democracia. Não pelo sucateamento em nome do mercado do
por acaso, há quem sustente que a dimen- Sistema de Saúde etc.) e funcionar como um
são material (substancial) da democracia instrumento de emancipação social.
corresponde à concretização dos direitos Para os fins deste breve escrito, por direi-
fundamentais, ou seja, dos direitos humanos tos humanos, entende-se o comum, tanto as
reconhecidos pelos ordenamentos jurídicos. autorizações para atuar ou não atuar quanto
Em relação aos direitos humanos, não se os deveres de agir e de não agir, necessário à
pode ignorar que uma determinada cultura realização das potencialidades e da dignida-
(situada, pois, no plano fundacional) passou de humana, construído a partir das singulari-
a se afirmar como universal. O que se dades, de pessoas que vivem em relação com
entende hoje por ‘direitos humanos’ é o que o outro, que se define a partir do encontro do
essa cultura particular disse se tratar de um Eu com o tu, e da superação das linhas ide-
universal. Sempre que se fala em ‘universa- ológica que dividem o Norte do Sul (a ‘linha
lidade’, tem-se um processo de imposição abissal’ a que se refere Boaventura de Souza
dos valores e das ideias dominantes de uma Santos) e o público do privado. Com razão,
cultura sobre as demais. Inegavelmente, na Herrera Flores7(14) dizia que
construção da categoria jurídica ‘direitos
humanos’ está embutida uma noção de su- [...] o direito, o pensamento e a prática jurí-
perioridade (espiritual, existencial, política, dica comprometida com os direitos humanos
cultural, bélica etc.) de uma cultura, baseada de todas e todos podem converter-se na pau-
na crença, acompanhada das melhores in- ta política, ética e social que sirva de guia à
tenções (as mesmas que enchem o inferno construção dessa nova racionalidade, sempre

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e quando os retirarmos da jaula de ferro que Declaração Universal dos Direitos Humanos
os mantém presos na ideologia de mercado e (1948), que consagrou o direito a uma vida
no correlato formalismo jurídico. adequada para a saúde e bem-estar. Já nesse
momento, a concepção de saúde transcende
Todavia, pode-se também pensar em a mera perspectiva biomédica: não se trata
adotar uma definição puramente formal ou de assegurar tratamentos visando à ausência
estrutural de direitos humanos: são direitos de doenças ou enfermidades, mas de apontar
humanos todos os direitos subjetivos (qual- para uma concepção de direito à saúde que
quer expectativa positiva, de uma prestação, englobe o bem-estar físico, mental e social,
ou negativa, de não sofrer lesões, adstrita a ao mesmo tempo que assegure um conjunto
uma pessoa) que correspondam a todos e a de práticas e vivências benéficas à vida das
todas pelo simples fato de serem pessoas. O pessoas. Ainda sobre esse conceito ampliado
importante em uma perspectiva emancipa- de saúde, há a Declaração de Alma-Ata de 1978,
dora, seja diante de um conceito substancial, que não só enfatiza a atenção primária à saúde
seja diante de um conceito formal, é que como também relaciona esse direito a diferen-
a expressão ‘direitos humanos’ retrate um tes áreas, como a social e a econômica.
instrumento de libertação do indivíduo e de O direito à saúde pública de qualidade é
restauração da capacidade de cada pessoa assegurado na Constituição da República de
concreta relacionar-se inteiramente com as 1988, mais precisamente nos arts. 6º (que o
outras e com a natureza. consagra como um dos direitos sociais fun-
Ao lado dos direitos liberais (negativos), damentais), 193 (que relaciona ordem social
chamados de direitos de primeira geração e ao bem-estar e à justiça social) e 196 (que
típicos do Estado de direito liberal, que es- afirma ser um direito de todos e dever do
tabelecem deveres negativos (de não agir), Estado, garantido mediante políticas sociais
existem direitos sociais que integram o rol e econômicas que visem à redução do risco
dos diretos humanos. Trata-se de direitos de doença e de outros agravos e ao acesso
vitais e, não raro, também são consagradas universal e igualitário às ações e serviços
nas Constituições como direitos fundamen- para sua promoção, proteção e recuperação).
tais. Dentre os direitos humanos de natureza A racionalidade neoliberal, que hoje con-
social, típicos do pós-guerra e reflexos da diciona o modo de ver e de atuar no mundo,
Guerra-Fria (direitos que foram reconheci- transformou o ‘comum’ em privado, o ‘direito
dos pelos detentores do poder político para fundamental’ (entendido como limite in-
tentar reduzir os riscos de uma revolução transponível ao exercício do poder) em
comunista protagonizada pelos trabalhado- mercadoria, a vida e a dignidade da pessoa
res), destacam-se os direitos à alimentação, humana em objetos negociáveis. Da mesma
ao trabalho digno, à habitação, à informação, maneira que o egoísmo foi transformado
à educação e à saúde. em virtude, a doença e a crise do sistema de
Se os direitos de natureza liberal são nega- saúde pública passaram a ser vistas como
tivos, e correspondem a vedações (‘direitos oportunidade para alguns poucos lucrarem e
de’), os direitos de natureza social são positi- acumularem capital.
vos, geram expectativas de comportamento O Estado na pós-democracia deixou de
alheio (‘direitos a’) e correspondem a obri- ser o promotor e o garantidor dos direitos
gações de agir, deveres públicos de fazer. O fundamentais para assumir a função política
direito à saúde, portanto, enquadra-se entre de regulador das expectativas do mercado
os direitos humanos de natureza social. e dos detentores do poder econômico. O
A relação entre direitos humanos e direito, por sua vez, deixou de ser um regula-
saúde acaba formalizada por intermédio da dor social para acabar transformado em mais

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Saúde pública e pós-democracia: do Estado Democrático de Direito ao Estado Pós-Democrático 39

um instrumento para o mercado, ele mesmo digna para todos. Uma mercadoria oferecida
transformado em mercadoria; o cidadão, em por mercadores especializados, que moldam
consumidor. Com isso, a solidariedade, a al- a ‘saúde’ ao gosto de critérios de eficiência
teridade e, em consequência, o diálogo são economicista, mesmo que, para isso, seja
negados, enquanto a diferença e os conflitos necessário suprimir direitos ou prejudicar a
capazes de gerar lucros são incentivados. qualidade de vida das pessoas.
O Estado pós-democrático enfoca atender
ao projeto dos detentores do poder econômi-
co, e isso significa, na área da saúde, induzir O que fazer?
medidas que incentivem a saúde privada, os
planos de saúde, a terceirização de serviços e Pode-se afirmar que a passividade da popu-
o desmonte do Sistema Único de Saúde, tudo lação brasileira diante das restrições, das vio-
como forma de aumentar a produtividade (ou lações e da falta de efetividade dos direitos
gerar endividamento, o que interessa ao capita- fundamentais, entre eles do direito à saúde
lismo financeiro) das empresas que exploram a pública de qualidade, constitui um dado
saúde, estabilizar o mercado (leia-se: proteger que, provavelmente, foi levado em conside-
os lucros dos detentores do poder político), ração nas opções políticas (porque o Estado
exercer o controle da qualidade de vida da po- Pós-Democrático resulta de uma opção de
pulação e facilitar a acumulação. Essa lógica natureza política) tomadas em meio às lutas
eficientista, que atende a critérios contábeis e envolvendo agentes e Instituições diversas, a
financeiros, na qual a busca de efeitos adequa- partir de variados interesses materiais e sim-
dos à razão neoliberal afasta qualquer preten- bólicos, que levaram à pós-democracia.
são do Estado voltar-se à realização dos direitos Mudar esse estado inconstitucional de
e garantias fundamentais (efetividade constitu- coisas na área da saúde pública passa necessa-
cional), em especial do direito à saúde pública riamente por um processo de ressimbolização
de qualidade, acaba incorporada pelos cidadãos do mundo. É urgente construir um mundo em
e até por operadores do sistema de saúde, não que a vida digna não seja um privilégio e no
só por questões ideológicas, mas também como qual a saúde de uma pessoa deixe de ser ne-
fórmula para assegurar vantagens pessoais. gociada para gerar lucro. É preciso construir
Com o desaparecimento do valor ‘saúde’, uma cultura democrática, comprometida com
a palavra retorna para nomear algo que a realização dos direitos fundamentais de cada
não passa de um produto, de uma merca- pessoa e que imponha limites ao poder, em es-
doria sem forma ou conteúdo estável, sem pecial ao poder econômico. s
conexão com projeto constitucional de vida

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40 Casara R

Referências

1. Cruch C. Posdemocracia. Madrid: Taurus; 2004. 6. Casara R. Estado Pós-Democrático: neo-obscuran-


tismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Ci-
2. Dardot P, Laval C. A nova razão de mundo. São Pau- vilização Brasileira; 2017.
lo: Boitempo; 2016.
7. Herrera Flores J. 16 premisas de una teoría crítica
3. Santos BS, Chauí M. Direitos humanos, democracia del derecho. In: Proner C, Correas O. Teoría Críti-
e desenvolvimento. São Paulo: Cortez; 2014. ca dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: Fórum;
2011, p. 14.
4. Escrivão Filho A, Souza Junior JG. Para um deba-
te teórico-conceitual e político sobre os direitos hu-
Recebido em 24/08/2018
manos. Belo Horizonte: De Plácido, 2016. Aprovado em 10/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
5. Baratta Alessandro, organizador. Criminología y
sistema penal. D de F: Montevideo; 2014.

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ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE 41

Reforma das comunicações: imperativo para


a democracia no Brasil
Communications reform: imperative for democracy in Brazil

Bia Barbosa1, Helena Martins2

DOI: 10.1590/0103-11042018S304

Introdução
Vivemos em uma sociedade marcada pelo constante fluxo de comunicação. Televisores, rádios,
celulares, computadores e outros meios permeiam nosso cotidiano. Por meio deles, recebe-
mos conteúdos que nos ajudam a compreender o mundo, formar nossa identidade, elencar os
temas da conversa com amigos, familiares e colegas de trabalho, construir opinião e participar
da vida política do País. No entanto, apesar da centralidade que os meios de comunicação
adquiriram, eles ainda são tratados majoritariamente como espaços privados; já os conteúdos,
como mercadorias trocadas pela publicidade e pela própria audiência. Como resultado disso,
temos a exclusão das maiorias sociais da mídia e o controle da informação.
No Brasil, desde os anos 1930, quando o sistema começou a ser efetivamente organizado,
optou-se pela adoção do modelo comercial para a prestação do serviço de radiodifusão, man-
tendo o controle centralizado no Poder Executivo, especialmente quanto à competência de
conceder outorgas. O modelo privilegiou a acomodação de interesses entre os agentes pri-
vados e o Estado, caso da separação da regulação da infraestrutura e do conteúdo. Na esteira
desse processo, a radiodifusão tornou-se marcada pela concentração da propriedade; presen-
ça dominante de grupos familiares e vinculação às elites políticas locais1, com consequências
seríssimas para a nossa democracia.
Afinal, parte-se da compreensão de que democratizar os meios de comunicação é fun-
1 Intervozes– Coletivo damental para garantir pluralidade de agentes e diversidade de conteúdos e opiniões. Essa
Brasil de Comunicação premissa está respaldada pela Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da
Social – São Paulo (SP),
Brasil. Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)2. Ela, em seu princípio 12, estabelece
Orcid: https://orcid. que monopólios e oligopólios
org/0000-0001-9993-
875X
bia@intervozes.org.br devem estar sujeitos a leis anti-monopólio, uma vez que conspiram contra a democracia ao res-
2 Intervozes – Coletivo tringirem a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à
Brasil de Comunicação informação.
Social – São Paulo (SP),
Brasil. Universidade Federal
do Ceará (UFC) - Fortaleza Em documento de 2009, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH foi
(CE), Brasil.
Orcid: https://orcid. ainda mais explícita ao afirmar que os Estados membros deveriam promover um enfoque
org/0000-0002-3210- pluralista da informação, fomentar o pleno exercício da liberdade de expressão, o acesso aos
4969
mb.helena@gmail.com meios de comunicação e a diversidade de proprietários e fontes por meio, entre outros, de

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 41-53, NOVEMBRO 2018
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sistemas transparentes de concessão de li- (dadas a emissoras de caráter local) e con-


cenças e, conforme o caso, regramentos efi- cessões (de caráter nacional) para executar o
cazes que impeçam a concentração indevida serviço de radiodifusão. No caso da televisão,
da propriedade dos meios de comunicação3. o texto normativo permite até cinco gerado-
ras operando na frequência VHF (Very High
O texto afirma que o controle dos meios de Frequency) por proprietário em todo o País,
comunicação como um monopólio ou oligopó- sendo, no máximo, duas por estado.
lio afeta a democracia, visto que esta necessita Na prática, porém, a formação de redes
do enfrentamento de ideias. A concentração, tem sido historicamente utilizada pelos di-
ao contrário, leva à redução de fontes informa- versos grupos econômicos que controlam a
tivas; homogeneização de gêneros e formatos; radiodifusão no País para ir além dos limites
unificação de linha editorial; resistência de legais autorizados, fazendo com que uma
grupos concentrados a desempenhar funções cabeça de rede – como a TV Globo Rio de
de serviço público; conflitos de interesses por Janeiro – imponha a transmissão de sua pro-
parte dos grupos que, além de possuírem veí- gramação para afiliadas em todo o País.
culos, participam de outros mercados; desen- A constituição de redes é apontada pela
volvimento de um sistema de apropriação de Agência Nacional do Cinema (Ancine) como
direitos exclusivos de transmissão de espetá- fundamental na definição do mercado de
culos e esportes; centralização geográfica da TV aberta no Brasil. No Mapeamento da TV
programação e da produção de conteúdos e aberta de 2010, a agência reconheceu que as
autocensura por parte dos trabalhadores, con- afiliadas “oferecem audiência às emissoras,
forme aponta o documento. em troca de programação, gerando assim
Adequada, do ponto de vista normativo, aos mais audiência e anúncios a ambas”5(23).
padrões internacionais de promoção da liber- Notou ainda que as geradoras funcionam
dade de expressão e da diversidade e da plurali- como retransmissoras de programação e
dade, a Constituição Federal brasileira4 de 1988 que a infraestrutura pública serve para dar
trouxe uma série de princípios que deveriam suporte, de Norte a Sul, a negócios priva-
– pelo menos desde sua aprovação – balizar o dos. Apesar dessa importância, a Ancine
funcionamento do sistema de comunicação assinalou que nem a Agência Nacional de
no País. Fruto da participação de entidades da Telecomunicações (Anatel) nem o então
sociedade civil no processo constituinte, nossa Ministério das Comunicações possuíam o
Carta Magna traz artigos progressistas sobre o mapeamento das redes de TV.
tema. Estabelece, por exemplo, princípios nor- Outras questões importantes e comuns ao
teadores da produção e da programação das ordenamento jurídico, inclusive de demo-
emissoras de rádio e televisão (art. 221), proíbe cracias liberais, como a dos Estados Unidos,
o monopólio e o oligopólio nos meios de comu- não foram adotadas na legislação brasileira,
nicação (art. 220) e fixa que os sistemas público, resultando em ainda maior concentração dos
privado e estatal devem ser complementares meios. A proibição da propriedade cruzada
(art. 223), entre outras medidas. Esses três – grupos que controlam emissoras de rádio
artigos, contudo, não encontram detalhamento e TV não podendo, por exemplo, operar no
na legislação infraconstitucional, tornando-se mercado de jornais e revistas – não faz parte
letra quase morta. da nossa realidade. Pelo contrário, a proprie-
As poucas regras objetivas que tratam da dade de mídias diversas é uma das principais
regulação do setor datam ainda do período características da comunicação comercial
da ditadura militar. É o art. 12 do Decreto- existente no País. Esse tipo de acúmulo é
Lei nº 236/1967 que estabelece a quantia proibido apenas no caso dos Serviços de
que cada entidade pode ter de permissões Acesso Condicionado (SeAC), como a TV

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Reforma das comunicações: imperativo para a democracia no Brasil 43

por assinatura, regra estabelecida após a apro- de negócios focado em explorar, ao máximo,
vação da Lei nº 12.485, em 2011. O texto proíbe a capacidade comercial do tempo de TV e a
que empresas de telecomunicações controlem disseminação de conteúdos a partir das cha-
empresas de radiodifusão e vice-versa e impede madas ‘cabeças de rede’, mesmo as transmis-
que os serviços de cada setor sejam prestados sões locais têm uma narrativa praticamente
por um grupo que atua no outro. Contudo, em uniforme, baseada no eixo Rio-São Paulo e
relação à televisão aberta, ao rádio, aos impres- que expressam interesses da classe, do gênero
sos e mesmo à internet, não há limitação. e da etnia das pessoas que os controlam.
Nem o processo de digitalização da televi-
são aberta, iniciado em 2006 e ainda em curso,
Os resultados da possibilitou a desconcentração do setor, já
concentração na que o padrão de TV digital adotado, escolhi-
do pelo Estado sob pressão das empresas de
propriedade dos meios radiodifusão representadas pela Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
Em 2015, a pesquisa Mídia Dados Brasil, (Abert), privilegiou a destinação do espectro
feita pelo Grupo de Mídia de São Paulo6, para a transmissão de sons e imagens em alta
apontava que, apenas com a televisão, a Rede definição – impedindo a ocupação deste bem
Globo chegava a 98,6% dos municípios bra- público por mais agentes.
sileiros; o SBT, a 85,7%; a Record, a 79,3%; já Esse predomínio de poucos grupos comer-
a Band alcançava 64,1% e a Rede TV, 56,7%. ciais controlando a radiodifusão, como afir-
Nenhuma outra emissora chegava a dois mado anteriormente, não é recente. Desde
dígitos. A concentração no setor televisivo que a primeira emissora de rádio se instalou
no Brasil também é aguda quando o tema é no País, nos anos 1930, ele vem sendo pos-
a audiência. Segundo dados do Kantar Ibope sibilitado, por um lado, pela pressão direta
de 2016, a líder Globo obteve naquele ano, em dos capitais particulares e, por outro, pela
média, 36,9%; o SBT, 14,9%. Bem próximo a postura omissa e conivente do Estado brasi-
isso, a Record chegou a 14,7%; enquanto a leiro. Como resultado disso, historicamente,
Band, a 4,1%. Todas as demais emissoras as empresas têm definido as políticas de co-
somadas totalizaram 28,9%. municação. Exemplo ilustrativo dessa lógica,
De acordo com o comparativo do Media o Código Brasileiro de Telecomunicações
Ownership Monitor (MOM), aplicado em (CBT), de 1962 – até hoje a principal lei que
2017 no Brasil pela organização Repórteres rege o setor –, foi bastante influenciado pelas
Sem Fronteiras em parceria com o empresas, que se organizaram e constituíram
Intervozes, o Brasil apresenta o cenário mais a Abert. À época, todos os 52 vetos ao CBT
grave de riscos ao pluralismo em relação aos feitos pelo então Presidente João Goulart no
indicadores de riscos à pluralidade na mídia sentido de ampliar a diversidade de meios
de outros dez países analisado pela iniciativa. no País foram posteriormente derrubados
De acordo com o MOM, apesar de toda a pelo Congresso Nacional por atuação da
diversidade regional existente no Brasil e das Abert7. Aos problemas então constatados
dimensões continentais de nosso território, a por Jango, como o largo prazo das con-
concentração exorbitante dos quatro princi- cessões (15 anos para televisão e 10 para
pais grupos de mídia vem crescendo ainda rádio), somaram-se outros nos últimos
mais diante das estratégias de adaptação de anos. Aprovada quando a transmissão de
tais grupos ao contexto de convergência tec- TV em cores ainda estava em fase de testes,
nológica e do uso de múltiplos dispositivos hoje a lei não responde à reconhecida im-
de comunicação. Ademais, com um modelo portância sobre o papel das comunicações

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 41-53, NOVEMBRO 2018


44 Barbosa B, Martins H

em sociedade democráticas, tampouco aos senadores, prefeitos, ministros e secretários


desafios da convergência tecnológica, que de governo, em benefício das elites políticas
tem levado à ampliação da concentração. do País, coloca tais veículos a serviço de seus
Outro elemento que contribui para per- proprietários, seja para atacar adversários
petuar o controle de emissoras e redes de ou para propagandear aliados eleitorais.
comunicação nas mãos de poucos grupos é O episódio marcante desse uso
a ausência de transparência e discussão no ocorreu durante a gestão de José Sarney
processo de outorga das concessões. A legis- na Presidência da República. O então
lação vigente aponta que, após o vencimento Ministro das Comunicações Antônio Carlos
do prazo da outorga (15 anos para televisão Magalhães distribuiu nada menos que 1.028
e 10 para rádio), deve haver a avaliação da outorgas durante sua gestão. Apenas no mês
prestação do serviço e do cumprimento das anterior à promulgação da Constituição de
finalidades estabelecidas, para então ser via- 1988, foram distribuídos 25% desse total.
bilizada a renovação do serviço (art. 67, pará- O objetivo era claro: trocar as concessões
grafo único, da Lei nº 4.117/1962)8. por apoio às propostas defendidas pelo
Ocorre que, segundo a Constituição governo na Assembleia Constituinte. ACM
Federal (artigos 49, XII e art. 223), a outorga não deixou, inclusive, de se beneficiar com
e a renovação dos serviços de radiodifusão outorgas. Na época, ele também convenceu
são de responsabilidade do Poder Executivo Roberto Marinho a transformar a TV Bahia,
(Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações de sua propriedade, em afiliada da Rede
e Comunicações e Presidência da República, Globo. A relação foi fundamental para a ma-
no caso de televisão) e devem ser confirmadas nutenção do poder da família Magalhães2.
pelo Congresso Nacional. Todavia essa renova- O mesmo ocorreu com a família Collor, em
ção em geral ocorre de forma automática, sem Alagoas, e Barbalho, no Pará, entre outras.
transparência ou participação da sociedade. É fundamental lembrar que a posse de con-
Situação que se explica também porque a não cessões por políticos contraria o que diz o art.
renovação das outorgas depende do voto aberto 54 da Constituição Federal, que declara que de-
de dois quintos do Parlamento (Câmara dos putados federais e senadores não podem, desde
Deputados e Senado Federal, em sessão con- a expedição de seu diploma parlamentar,
junta). Em um contexto em que 32 deputados e
8 senadores (números da atual legislatura, que firmar ou manter contrato com pessoa jurí-
se encerra em 2018) são proprietários diretos dica de direito público, autarquia, empresa
de emissoras de radiodifusão, a não renovação pública, sociedade de economia mista ou
de uma licença parece impensável. empresa concessionária de serviço público,
salvo quando o contrato obedecer a cláusu-
las uniformes4.
O vale tudo na exploração
das outorgas Após a posse, os parlamentares ficam
proibidos de
Para além do impacto no âmbito legal, a
posse de meios de comunicação por políti- ser proprietários, controladores ou diretores
cos – resultado de décadas de uso das con- de empresa que goze de favor decorrente de
cessões de rádio e TV como moeda de troca contrato com pessoas jurídicas de direito pú-
política – gera distorções preocupantes nos blico, ou nela exercer função remunerada4.
processos democráticos, sobretudo em pe-
ríodos eleitorais. O uso político de canais de O CBT (art. 38, parágrafo único) e o
radiodifusão por deputados, governadores, Decreto nº 52.795/1963 (art. 15, §5º, b)

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Reforma das comunicações: imperativo para a democracia no Brasil 45

também deixam claro que quem estiver Constituição, que fixa que a prestação de ser-
no gozo de imunidade parlamentar ou de viços públicos sob o regime de concessão ou
função que assegure foro especial não poderá permissão deverá ocorrer sempre por meio de
exercer a função de diretor ou gerente de licitação. Portanto, se um concessionário não
concessionária, permissionária ou autoriza- deseja ou não tem mais condições de prestar o
da de radiodifusão. serviço de radiodifusão, sua outorga deve ser
Em defesa da aplicabilidade das normas devolvida ao Estado e repassada a outro pres-
citadas, o Ministério Público Federal (MPF) tador mediante nova licitação.
ajuizou ações civis públicas na Justiça A transferência acertada entre pares, sem
Federal contra parlamentares proprietários concorrência ou debate público, impede que
de canais de televisão e de rádio que teriam outros grupos da radiodifusão privada, pública
votado em causa própria, entre janeiro de ou comunitária possam ter acesso às licenças.
2003 e dezembro de 2005, na Comissão Sem o procedimento licitatório, existente exa-
de Ciência, Tecnologia, Comunicação e tamente para garantir legalidade, moralida-
Informática da Câmara Federal. Desde 2015, de, impessoalidade e publicidade em todo o
o órgão tem movido ações em diferentes processo (art. 10 do Decreto nº 52.795/1963),
estados pedindo a anulação de outorgas con- a possibilidade de novas vozes ocuparem esse
cedidas a emissoras controladas por deputa- espaço público acaba sendo inviabilizada.
dos federais e senadores. Já houve decisões Vale lembrar ainda o fenômeno, cada vez
favoráveis ao pleito em primeira instância. mais frequente, do uso totalmente privado e em
No Supremo Tribunal Federal (STF), desrespeito ao interesse público na gestão das
também tramita, desde 2011, uma Arguição por outorgas de rádio e TV: o arrendamento, isto é,
Descumprimento de Preceito Fundamental a comercialização de parte do espaço da pro-
(ADPF), elaborada pelo Intervozes e ajuizada gramação para terceiros. Ele se baseia na nego-
pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), ciação de um bem público também sem prévia
tratando do tema. A ação questiona a outorga licitação. Ao terceirizar parte de sua grade –
e a renovação de concessões de radiodifusão muitas vezes apenas por critérios econômicos,
a pessoas jurídicas que tenham políticos com de quem paga mais –, o concessionário escolhe
mandato eletivo em seu quadro social e pede – e, assim, beneficia – um terceiro que não par-
a proibição da diplomação e a posse de políti- ticipou da competição pela licença, mas que vai
cos que sejam, direta ou indiretamente, sócios ocupar um espaço público. Na prática, ocorre
de pessoas jurídicas concessionárias de radio- uma subconcessão, algo não previsto nas regras
difusão. Apesar da importância da matéria, para a radiodifusão no País. Mesmo se fosse
ainda não há previsão de quando a ADPF será considerada a norma que trata dos serviços pú-
votada. A relatoria está nas mãos do ministro blicos, Araújo10 sustenta que ainda há flagrante
Gilmar Mendes. desrespeito, pois a subconcessão somente é
Outra prática que viola os princípios da admitida no serviço público “desde que expres-
Constituição Federal é a transferência direta samente autorizada pelo poder concedente”,
de outorgas, que ocorre quando uma pessoa devendo ser sempre precedida de concorrên-
jurídica passa para outra (na maioria das cia, segundo o artigo 26 da Lei nº 8.987/1995.
vezes, por meio de contratos comerciais de As empresas costumam se defender ale-
gaveta) a outorga para prestação do serviço gando a possibilidade de venda de espaço da
de radiodifusão. Embora a legislação na- programação para publicidade. No entanto, o
cional autorize a prática, determinando CBT permite a comercialização de até 25% do
que a transferência depende de anuência tempo na programação das estações de radio-
prévia do Poder Executivo, essa autoriza- difusão8 (art. 124 da Lei nº 4.117/1962), ou seja,
ção colide frontalmente com o artigo 175 da 6 horas por dia, incluindo todos os intervalos

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comerciais. Essa demarcação também está co- tipos de violações cor, etnia, religião, condição
locada no Decreto nº 52.795/1963 (art. 28,12, c), socioeconômica, orientação sexual ou proce-
mas é flagrantemente descumprida. dência nacional; 7. Identificação de adolescen-
A venda de tempo de publicidade acima tes em conflito com a lei; 8. Violação do direito
do limite legal agride todo o processo de ao silêncio; 9. Tortura psicológica e tratamento
outorga e constitui infração à ordem econô- desumano ou degradante.
mica (art. 36 da Lei nº 12.529/2011). Se para Entretanto, para analisar a programa-
obter uma concessão ou permissão é preciso ção veiculada, sempre posteriormente, e
apresentar uma proposta de programação e decidir se o conteúdo transmitido violou ou
se essa programação é alterada depois, com não as normas estabelecidas, o Ministério
a venda de parcelas que, às vezes, chegam a da Ciência, Tecnologia, Inovações e
100% da grade, está claro que há um proble- Comunicações considera apenas duas
ma. O entendimento do então Ministério das previsões bastante específicas em nossa
Comunicações, expresso em uma nota infor- legislação. Ambas estão no Regulamento
mativa em 2012, é de que o arrendamento não dos Serviços de Radiodifusão (Decreto nº
foi objeto de regulamentação e, por isso, não é 52.795/63): o art. 28, 12, b) não transmitir
possível atuar em relação a esses contratos9, programas que atentem contra o sentimento
o que acaba viabilizando o uso privado de um público, expondo pessoas a situações que,
bem público sem processos públicos e trans- de alguma forma, redundem em constran-
parentes. Hoje, a prática de arrendamentos é gimento, ainda que seu objetivo seja jorna-
praticada sobretudo por igrejas. lístico; e o art. 122, que considera infração
Por fim, e não menos importante, há inú- “promover campanha discriminatória de
meros abusos também no conteúdo veicula- classe, cor, raça ou religião”4. Todo o restante
do sobre os meios de comunicação. Se o art. do marco regulatório brasileiro sobre o tema
221 da Constituição estabelece que a progra- (Constituição Federal, Código Civil, Código
mação das emissoras deve dar preferência a Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente,
finalidades educativas, artísticas, culturais e além de tratados internacionais ratificados
informativas, o cotidiano do que recebemos pelo País) não é levado em conta.
em nossas casas está bastante longe disso. De Como se nota, muito da reforma das comu-
programas humorísticos a novelas, passando nicações que precisa ser feita depende de apri-
pelos chamados ‘programas policialescos’, a moramentos nos marcos normativos do Brasil.
quantidade de violações de direitos humanos No entanto, caso as poucas regras já existentes
no conteúdo veiculado na TV é assustadora. fossem efetivamente respeitadas, o cenário de
Em 2015, pesquisa realizada pela Andi – concentração e de exploração ilegal das outor-
Comunicação e Direitos, em parceria com gas poderia ser enfrentado, com ganhos impor-
o Intervozes10, a artigo 19 e o MPF, revelou tantes para a diversidade de pluralidade dos
que, ao longo de 30 dias, em 28 programas meios e, consequência disso, da sociedade.
policialescos, de 10 estados diferentes, mais
de 4.500 violações de direitos haviam sido
praticadas no período11. Ausência do sistema público
O estudo organizou as violações em nove e de políticas de incentivo à
tipos: 1. Desrespeito à presunção de ino-
cência; 2. Incitação ao crime e à violência;
comunicação comunitária
3. Incitação à desobediência às leis ou às
decisões judiciárias; 4. Exposição indevida de Além de medidas de coibição à concentra-
pessoa(s); 5. Exposição indevida de família(s); ção da propriedade no mercado privado
6. Discurso de ódio e Preconceito de raça; Os de comunicações, a existência de sistemas

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Reforma das comunicações: imperativo para a democracia no Brasil 47

públicos e comunitários de radiodifusão faz Provisória (MP) 744, uma das primeiras a ser
parte dos padrões internacionais de garan- enviadas pelo então novo governo Michel
tia de diversidade e pluralidade na mídia. Temer ao Congresso Nacional. Aprovado pelos
Como mencionado anteriormente, essa parlamentares e convertido na Lei nº 13.417/17,
complementaridade está prevista enquanto o texto excluiu da normativa até então em vigor
princípio há 30 anos em nossa Constituição os dois principais mecanismos de autonomia da
Federal. Desde que a radiodifusão chegou empresa de comunicação pública em relação ao
aqui, o Brasil conta com emissoras educati- governo federal: o Conselho Curador, espaço
vas de rádio e televisão em âmbito estadual. que contava com maioria de participação da
entretanto, foi somente a partir de 2008, sociedade civil e que tinha poder deliberati-
com a promulgação da Lei nº 11.652, que o vo sobre os rumos da empresa, e o mandato
embrião de um sistema público de comuni- para presidente da EBC, que impedia que a
cação passou a ser gestado. gestão direta da empresa ficasse subordinada à
A lei instituiu os princípios e objetivos dos vontade do governo federal.
serviços de radiodifusão pública – oferecer O então presidente da EBC, jornalista
mecanismos para debate público acerca de Ricardo Melo, foi demitido. Com a mudança no
temas de relevância nacional e internacional; texto da lei, o caráter público da EBC foi signifi-
desenvolver a consciência crítica do cidadão, cativamente comprometido. Programas na TV
mediante programação educativa, artística, Brasil foram extintos, trabalhadores/as foram
cultural, informativa, científica e promoto- demitidos em função de suas posições políticas
ra de cidadania; fomentar a consolidação da – muitos seguem na empresa, mas perseguidos
democracia e a participação na sociedade, –, os casos de assédio moral se multiplicaram,
garantindo o direito à informação, à livre ex- e as redações das emissoras de rádio e da tele-
pressão do pensamento, à criação e à comu- visão pública sofrem constantes episódios de
nicação; apoiar processos de inclusão social censura interna, visando barrar a divulgação
e socialização da produção de conhecimento de informações que possam gerar críticas ao
garantindo espaços para exibição de produ- governo Temer.
ções regionais e independentes, entre outros Em parecer emitido sobre a MP 744,
– e autorizou o Poder Executivo a constituir na época de sua tramitação no Congresso,
a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). a Procuradoria Federal dos Direitos do
O texto também instituiu a Contribuição Cidadão (PFDC), afirmou:
para o Fomento da Radiodifusão Pública,
visando garantir recursos para a ampliação A estrutura existente na EBC reunia um feixe
da penetração desse serviço, e previu a for- de órgãos que, com suas competências con-
mação da Rede Nacional de Comunicação certadas, impunham limites ao exercício do
Pública, em articulação com as emissoras personalismo de seu diretor-presidente, de
educativas nos estados. seus órgãos de cúpula e traziam em si, so-
Em seus primeiros oito anos de vida, bretudo através do Conselho Curador, uma
a EBC enfrentou inúmeros desafios para requintada forma de controle social que era
colocar em prática os objetivos previstos na exercido em nome do cumprimento dos prin-
lei, de obstáculos para a expansão da trans- cípios e objetivos, bem assim dos valores
missão de seu sinal, em função do conges- constitucionais a que deve atender o serviço
tionamento do espectro em várias capitais público de comunicação12.
do País, à falta da priorização de recursos no
âmbito do Executivo federal. Em 2016, en- Na ocasião, o órgão já alertava que, como
tretanto, o projeto de constituição do sistema consequência da fragilização estrutural
público foi abortado por meio da Medida produzida, abria-se o espaço para a prática

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da censura de natureza política, ideológica do Sul modificaram, na última década, seus


e artística; e, por isso, considerava a MP in- marcos regulatórios para fazer justamente
constitucional. Atualmente, um pedido da o inverso: promover, de maneira estrutu-
PFDC para a entrada de uma Ação Direta de ral, a comunicação pública e comunitária.
Inconstitucionalidade (ADI) no STF contra Em 2007, no Uruguai, por exemplo, a lei de
as alterações institucionais praticadas na Serviço de Radiodifusão Comunitária esta-
EBC aguarda decisão da Procuradora Geral beleceu a reserva de, pelo menos, um terço
da República, Raquel Dodge. das frequências disponíveis em cada região
No fim de 2017, o quadro se agravou. geográfica para emissoras comunitárias. O
Expressão desse cenário, o Conselho de mesmo ocorreu em 2012, na Argentina, com
Administração (Consad) da EBC aprovou a Ley de Medios.
a retirada do conceito de ‘comunicação No Brasil, a Lei nº 9.612/1998 regulou o
pública’ do mapa estratégico da empresa, do- serviço impondo regras bastante restritas de
cumento que orienta seus objetivos e ações. atuação, como limitação a 1 km de alcance,
Na versão anterior, constava como horizon- potência de 25 Watts para os transmissores,
te da EBC ‘ser referência em Comunicação proibição de atuação em rede e de veiculação
Pública’. Agora, consta ‘ser uma empresa re- de publicidade. Somando o processo burocrati-
ferência em comunicação’. zado de obtenção das autorizações, o resultado
A Ouvidoria-Geral, único instrumento é que a imensa maioria das rádios comunitárias
preservado pela MP de Temer, manifestou hoje se encontra em situação de ilegalidade ou
nos boletins de 2017 preocupação quanto ao de impossibilidade de sobrevivência.
que chamou de ‘excessivo governismo nas
pautas’, em especial no programa comandado
pela ex-jornalista do sistema Globo de Rádio, O desafio do acesso à
Roseann Kennedy. Bastam poucos minutos do internet
‘Corredores do Poder’ para que o telespecta-
dor verifique que a apresentadora consegue, Reformar as comunicações passa também
por exemplo, defender melhor as reformas por efetivar mudanças na estrutura das te-
da Previdência e trabalhista propostas por lecomunicações brasileiras e universalizar o
Temer do que o próprio ministro da Fazenda. acesso a um serviço já considerado essencial
A EBC também sofreu com a política de pela nossa legislação que é suportado pelas
cortes imposta pelo governo. Inicialmente redes: a conexão à internet, hoje imprescin-
previsto em R$ 708.409.651 pela Lei dível não apenas para o exercício da liberda-
Orçamentária Anual para 2017, seu orçamen- de de expressão e para o acesso à informação,
to teve uma redução de 57,7% em sua execu- bem como para o acesso ao conhecimento, à
ção. Assim, no último ano, a EBC executou cultura, ao direito à organização, à participa-
um total de R$ 299.657.282, montante bem ção política e ao desenvolvimento social.
abaixo da média orçamentária de 2010-2015. Assim como na radiodifusão, o cenário
O corte no orçamento produziu consequên- brasileiro é de grande concentração nas
cias graves no que diz respeito tanto ao tra- telecomunicações, com as três maiores
balho dos profissionais quanto à qualidade companhias do setor controlando 94% das
do produto entregue ao espectador/leitor conexões em banda larga fixa; 94% da te-
dos veículos que compõem a EBC. lefonia fixa e 81% da telefonia móvel. Tal
Enquanto o Brasil não conseguiu conso- concentração está na raiz da exclusão digital
lidar um sistema público de comunicação – de 39% das casas brasileiras que ainda não
que, agora, passa por um sistêmico processo têm acesso à internet. Os números são da
de desmonte –, países vizinhos na América pesquisa TIC Domicílios 2017, lançada

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Reforma das comunicações: imperativo para a democracia no Brasil 49

este ano pelo Centro Regional de Estudos os prejuízos aos cofres públicos não sejam
para o Desenvolvimento da Sociedade da maiores. O satélite custou R$ 2,7 bilhões e
Informação (Cetic.br), do Comitê Gestor está há mais de um ano em órbita, sem ope-
da Internet no Brasil. Quando o recorte re- ração. Não há previsão de quando as novas
gional e de classe é feito, fica claro como o conexões à internet estarão disponíveis.
interesse financeiro das operadoras tem Também na contramão da universaliza-
deixado milhões de brasileiros e brasileiras ção do acesso à rede, o governo federal tem
desconectados. Nas classes D e E, apenas tentado aprovar no Congresso Nacional o
30% das residências têm acesso à banda Projeto de Lei da Câmara (PLC) 79/2016,
larga fixa. Na região Norte, somente 48%. No que altera a Lei Geral de Telecomunicações
Nordeste, 49%. Já no Sudeste, são 69% com e entrega mais de R$ 100 bilhões em infra-
conexão. O estudo também mostrou que 28% estrutura de rede pública, hoje exploradas
das pessoas que não acessam a rede em casa pelas operadoras de telefonia fixa mediante
não o fazem porque não há disponibilidade concessão, para as empresas privadas. O PLC
de oferta na região onde moram. transforma as concessões em autorizações,
Nos últimos anos, o crescimento do acesso à retirando das empresas as obrigações de
internet se deu essencialmente por meio de co- universalidade, modicidade tarifária e conti-
nexões móveis, o que significa que grande parte nuidade na oferta do serviço. Como 40% das
da população está sujeita a planos com pacotes conexões de banda larga fixa hoje são feitas
de dados bastante reduzidos e que limitam de por meio da mesma rede que leva o serviço
maneira significativa sua navegação na rede – de telefonia fixa às residências, o impacto da
e, consequentemente, o exercício dos direitos medida pode ser enorme.
acima mencionados. Apesar de, desde 2014, o Se a lógica privatista não prevaleces-
Marco Civil da Internet afirmar o acesso à rede se, o Estado brasileiro poderia usar os
como essencial para o exercício da cidadania mais de R$ 15 bilhões já recolhidos pelo
– o que deveria resultar em políticas públicas Fundo de Universalização dos Serviços de
para sua universalização –, o poder público Telecomunicações (Fust) – que tem sido
caminha no sentido contrário. usados nos últimos governos para fazer
Programas como o Plano Nacional de superavit primário – e os R$ 10 bilhões em
Banda Larga, de 2010, que tinha o objetivo multas devidas pelas empresas de telefonia
de fortalecer a Telebras enquanto empresa por descumprimento de obrigações rela-
pública de telecomunicações, tornando- cionadas com a prestação dos serviços para
-a capaz de garantir a oferta do serviço de garantir que todo cidadão tivesse acesso
conexão na ponta, em parceria com peque- à internet de maneira plena e inclusiva.
nos provedores locais, foram concluídos sem Infelizmente, o que tem ocorrido, diante
que suas metas fossem atingidas. Em 2017, o do aumento mesmo precário das conexões
governo federal anunciou a privatização da móveis, é o crescimento da desigualdade in-
exploração da maior parte da banda de seu formacional e de direitos entre os conectados
primeiro satélite geoestacionário, desenvol- e os não conectados – ainda hoje, segundo o
vido justamente para promover a inclusão Cetic.br, 33% da população.
digital em áreas de difícil acesso à infraes-
trutura de cabos. O leilão do satélite não teve
interessados, e coube à Telebras operá-lo. Novos monopólios digitais
Um contrato, que chegou a ser judicializado,
foi firmado com a empresa norte-americana Dentro do universo dos conectados, as ad-
Viasat, mas a Justiça brasileira autorizou versidades não são menores. Se a chegada
recentemente sua manutenção, para que da internet trouxe com ela uma promessa,

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parcialmente cumprida, de ampliar fontes de São poucas as corporações de mídia tradicio-


informação e de, justamente, permitir o exer- nais que conseguem espaço nessa disputa;
cício da liberdade de expressão nesse novo e, não à toa, o Grupo Globo está entre elas,
ambiente de debate público, nos últimos porque teve capital para testar desenvolver
anos, o que se tem constatado é um quadro novas estratégias de atuação nesse cenário
em que muitos falam para muito poucos e de convergência. Em 2012, a família Marinho
muito poucos falam para milhões, também criou um serviço sob demanda, o Globo.tv+.
no mundo digital. Segundo dados da empresa Acessível pelo computador e por dispositivos
BigData Corp, há 10 milhões de sites ativos no como smartphones e tablets, ele disponibi-
Brasil. Destes, cerca de 5,5 milhões são blogs. lizava os conteúdos do grupo na íntegra, in-
Porém, de acordo com o relatório ‘Internet clusive novelas e outras produções de sucesso
Health Report v.0.1’13, 55% dos brasileiros que já haviam ido ao ar. Em 2014, os canais
não conseguem diferenciar o Facebook da Globosat passaram a ser disponibilizados em
internet. Perguntados se concordavam com uma plataforma por demanda, a Globosat
a afirmação ‘O Facebook é a internet’, mais Play, voltada para os assinantes da TV paga.
da metade dos entrevistados do País respon- O serviço foi apontado como uma resposta
deu que sim. Foi uma das maiores taxas do ao crescimento de plataformas de vídeo sob
mundo, atrás apenas da Nigéria, Indonésia demanda, com destaque para Netflix.
e Índia. Nos Estados Unidos, somente 5% Em outubro de 2015, executivos do grupo
dos entrevistados responderam que sim. apresentaram o GloboPlay, nova plataforma
Hoje, além de controlar a maior rede social de distribuição, a qual se conformou como
do mundo, o Facebook também é dono do principal espaço para distribuição de con-
WhatsApp e do Instagram, e é dono de 3 dos teúdo do grupo na internet, possibilitando
15 sites mais acessados no planeta. o acesso tanto à programação ao vivo e a
Outro gigante global da internet, o Google, trechos de programas, gratuitamente, quanto
também é monopolista no mercado de buscas a programas sob demanda. Hoje, por meio
no País, ferramenta que se tornou uma das do GloboPlay, é possível visualizar inclusive
principais portas de entrada para acessar conteúdos que ainda não foram ao ar na TV
informações na rede. Atualmente, de acordo aberta. A plataforma já conta com mais de 20
com a pesquisa Concentração e Diversidade milhões de assinantes e anuncia mudanças
na Camada de Aplicação e Conteúdos da para concorrer com o Netflix, que domina
Internet14, o Google é responsável por 95% o mercado brasileiro neste campo. Ainda
do tráfego relativo a buscas no Brasil. A pes- no campo da gestão do conteúdo, o Grupo
quisa lembra a decisão da União Europeia Globo tem apostado em referências cruzadas
que multou a empresa em € 2,4 bilhões (equi- entre seus veículos, exibindo, por exemplo,
valente a mais de R$ 10 bilhões) por favore- repórteres e notícias do portal G1 na TV
cer, por meio de seu motor de busca, serviços aberta, e produzido webseries específicas
e conteúdos do próprio Google, criando pro- para a internet, além de outros conteúdos de
blemas de concorrência e gerando um con- entretenimento, os quais estão reunidos no
trole deletério para a diversidade on-line. portal GShow, que pode ser acessado como
Além do sistema operacional Android, aplicativo para celular.
para celulares, o Google também é dono do Para além do risco de reprodução da
YouTube, entre várias outras empresas de concentração dos meios tradicionais no am-
tecnologia digital. biente digital, outras dinâmicas e novos fe-
Ou seja, os novos gatekeepers da comu- nômenos do mundo on-line podem impactar
nicação são globais, e qualquer competição seriamente o acesso à informação e liberda-
envolve uma cadeia de serviços internacional. de de expressão, como no caso do controle

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 41-53, NOVEMBRO 2018


Reforma das comunicações: imperativo para a democracia no Brasil 51

editorial de conteúdos por algoritmos e me- da liberdade de expressão e do acesso à in-


canismos de inteligência artificial; da pro- formação, já garantidos desde a Declaração
pagação das chamadas notícias falsas; do Universal dos Direitos Humanos em 1948
discurso de ódio que visa silenciar grupos mi- – passou a ser afirmado diante da desigual-
noritários e historicamente marginalizados; dade dos fluxos comunicacionais entre os
da mediação do debate público pelas poucas países. Em torno da construção do conceito
redes sociais e sua potencial manipulação de direito à comunicação, estava a percepção
por robôs e formação de bolhas ideológicas. de que outros direitos, como a liberdade de
Isso sem falar nas preocupações trazidas pela expressão, não respondiam totalmente aos
coleta e tratamento massivo e indiscriminado desafios colocados por uma sociedade em
de dados pessoais nas redes, que seguem em vias de midiatização, na qual a possibili-
curso diante da ausência de uma Lei Geral de dade de circular informação passa, em boa
Proteção de Dados em vigor no Brasil. medida, pelo acesso à mídia. Indo além de
Tamanho poder concentrado nas grandes uma abordagem individual e pautada pela
plataformas tem colocado em pauta o debate ideia da liberdade negativa, a perspectiva
sobre a necessidade e sobre o modelo de do direito à comunicação afirma justamente
regulação das aplicações que operam na que o Estado deve eliminar as restrições eco-
chamada camada de conteúdo da internet. nômicas e sociais impostas a diversos grupos
Para não incorrermos no risco de compro- para que possam se comunicar por meio de
meter o caráter ainda aberto e inovador da veículos massivos.
internet, tal regulação não pode ser excessi- Com a afirmação desse direito, pretende-se
va. Uma total desregulação nesse setor, en- estimular um ciclo positivo de interação e
tretanto, pode justamente comprometer, em diálogo, de modo que todas as pessoas tenham
definitivo, talvez em curtíssimo prazo, o que condições para se expressar livremente, ser
se entende por diversidade e pluralidade no produtoras de conteúdo e fazer circular essas
mundo on-line. manifestações, sejam elas opiniões, informa-
ções ou produções culturais16.
Em 1980, o relatório da Organização
Reformar as comunicações das Nações Unidas para a Educação, a
para garantir o direito à Ciência e a Cultura (Unesco) ‘Um Mundo,
Muitas Vozes’, conhecido como ‘Relatório
comunicação MacBride’, tornou-se um marco desse pro-
cesso ao destacar a importância da mídia e a
Os desafios, como visto, são enormes e cres- necessidade de os países adotarem políticas
centes. Contudo é imperativo, para qualquer públicas para garantir igualdade nos meios
país que pretenda se consolidar enquanto de comunicação. No documento, o organis-
uma democracia, garantir um sistema de ra- mo aponta que a concentração da proprie-
diodifusão plural e uma internet livre e aberta dade da imprensa pelos monopólios de rádio
para todos. Do contrário, novas ameaças de e TV, a censura e o controle governamen-
ruptura democrática, tendo o setor midiático tal infringem a liberdade de informação17.
comercial como agente, como visto em 2016, Ao contrário, a Unesco afirma que a todos
poderão sempre se reproduzir. Tão impe- deveria ser assegurado o direito de receber
rativo quanto é reconhecer, como princípio e difundir informação e opinião, formulação
desse processo de reforma, a comunicação que levou adiante o desenvolvimento con-
como um direito fundamental. ceitual da comunicação como um direito18.
Objeto de reflexões pelo menos desde os Com vistas à concretização dele, defende o
anos 196015, esse novo direito – que vai além desenvolvimento políticas de comunicação,

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52 Barbosa B, Martins H

inclusive de políticas que objetivem dividir no centro das decisões regulatórias e do de-
de forma equitativa o espectro eletromag- senvolvimento das políticas públicas para o
nético, de modo que os meios sejam espaços setor. Mudar esse quadro requer uma trans-
mais plurais e diversos17. formação estrutural no âmbito de comunica-
No Brasil, a Constituição Federal dedica ções. Todavia, uma agenda de transição, que
um capítulo ao tema da comunicação, embora garanta o direito à comunicação no tempo
não o reconheça como direito. Em 2013, pela presente, é, sim, possível. Basta vontade po-
primeira vez uma lei brasileira, o Estatuto da lítica, inversão de prioridades e mecanismos
Juventude18, citou de explicitamente o direito de participação popular na condução dos
à comunicação. Ele estabelece que processos. Trata-se de uma agenda da qual
nossa democracia não pode mais prescindir.
o jovem tem direito à comunicação e à livre
expressão, à produção de conteúdo, individu-
al e colaborativo e ao acesso às tecnologias Colaboradores
de informação e comunicação.
Barbosa BC e Martins H contribuíram para
Como visto, ainda estamos longe de reco- a elaboração do artigo com a pesquisa das
nhecer e assegurar tal direito, e de colocá-lo informações e redação do texto. s

Referências

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Recebido em 06/08/2018
[acesso em 2018 julho 28]. Disponível em: http:// Aprovado em 10/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-
Suporte financeiro: não houve
-apoio/temas-de-atuacao/comunicacao-social/sai-
ba-mais/legislacao-1/nota-tecnica-07-2016-pfdc-
-mpf.

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54 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Faces da desigualdade no Brasil: um olhar


sobre os que ficam para trás
Faces of inequality in Brazil: a look at those left behind

Tereza Campello1, Pablo Gentili2, Monica Rodrigues3, Gabriel Rizzo Hoewell4

DOI: 10.1590/0103-11042018S305

RESUMO Este artigo analisou avanços na redução das desigualdades no Brasil durante o período
de 2003 a 2015, para além da perspectiva de renda. Os dados refletem que, embora transfor-
mações relevantes tenham ocorrido, mesmo assim, o Brasil persiste como um dos países mais
desiguais do mundo. Entretanto, ao colocar uma lupa nos dados de acesso a bens e serviços dos
5% e dos 20% mais pobres disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD), os achados se contrapõem ao lugar comum de que só se promoveu acesso à renda e ao
consumo dos mais pobres no período estudado, inexistindo alterações significativas no quadro
de acesso a direitos básicos, políticas públicas de educação, saúde e de infraestrutura.

PALAVRAS-CHAVE Iniquidade social. Equidade. Renda. Pobreza.


1 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) – Brasília (DF), ABSTRACT This article analyzed advances in the reduction of inequalities in Brazil during the
Brasil. period from 2003 to 2015, in addition to the income perspective. The data reflect that, although
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-9905- relevant transformations have occurred, nevertheless, Brazil persists as one of the most unequal
9453 countries in the world. However, by placing a magnifying glass on the data about access to goods
tereza.campello@gmail.com
and services of the poorest 5% and 20% made available by the National Household Sample Survey
2 Universidad de Buenos
(PNAD), the findings contradict the commonplace that only access to income and the consump-
Aires (UBA) – Buenos
Aires, Argentina. tion of the poorest was promoted in the period studied, without significant changes in the frame-
Orcid: https://orcid. work of access to basic rights, public policies of education, health, and infrastructure.
org/0000-0002-7607-
4167
pgentili@clacso.edu.ar KEYWORDS Social inequity. Equity. Income. Poverty.
3 Pontifícia
Universidade
Católica de São Paulo
(PUC-SP) – São Paulo (SP),
Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0001-5725-
9791
monica@zabele.net

4 Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS)
– Porto Alegre (RS), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-6140-
6800
gabrielrhoe@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás 55

Introdução todos os quintis tenha se ampliado signifi-


cativamente, a renda dos mais pobres (pri-
O Brasil vivenciou uma inédita e sistemática meiro e segundo quintis) aumentou mais
queda da desigualdade no período recente, do que a do resto da população. O processo
mas continua a ocupar a posição de um dos reverteu uma tendência à concentração de
países mais desiguais do mundo. A expectati- renda que vivia o Brasil desde a ditadura
va, com os dados apresentados neste artigo, é militar e que ficou estagnada no início do
mostrar como foi possível, em pouco mais de período democrático. Entre 1980 e 2001,
uma década, alterar situações de desigualda- o Coeficiente de Gini ficou congelado no
de dadas como irreversíveis e, principalmen- elevado patamar de 0,59, caindo, em 2015,
te, impactar o senso comum que naturaliza a ao seu nível mais baixo, 0,49. O aumento real
pobreza e a desigualdade e que acaba por do salário mínimo, a crescente formalização
desmobilizar parte da sociedade na luta por do mercado de trabalho, a incorporação dos
direitos. O estudo que originou este artigo mais pobres ao orçamento federal, por meio
foi uma contribuição ao Programa Agenda de políticas de inclusão social e distribuição
Igualdade desenvolvido pela Faculdade efetiva de renda, e a promoção de uma políti-
Latino-Americana de Ciências Sociais, com ca social integrada explicam, em boa medida,
apoio do Conselho Latino-Americano de essa transformação.
Ciências Sociais e da Fundação Ford, e se Dois estudos recentes ajudam a compor
tornou uma publicação, em novembro de um campo de análise sobre o que ocorreu
2017, com o título ‘Faces da desigualdade no no Brasil. O estudo de Marc Morgan2, utili-
Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás’1. zando metodologia desenvolvida por Piketty
A opção de análise aqui foi enfrentar as e Saez3, explicita os níveis históricos de de-
lacunas do debate sobre a desigualdade em sigualdade de riqueza no Brasil, combinan-
países como o Brasil, onde uma parcela im- do as informações do Imposto de Renda de
portante da população é excluída de direitos Pessoa Física com as pesquisas domiciliares
básicos. Propomos uma reflexão sobre a de- e as contas nacionais, e, neste caso, valori-
sigualdade como um fenômeno multidimen- zando os dados do ponto de vista do patri-
sional e relacional, indo além de abordagens mônio acumulado pelos ricos. Nesse sentido,
recorrentemente discutidas. tendem a refletir uma dimensão oculta que
A mensuração de desigualdade mais é a desigualdade de patrimônio, certamente
conhecida é a da concentração de renda maior que a de renda no Brasil. O estudo de
apurada pelo Coeficiente de Gini. Ela aponta Marc Morgan2 revela que a concentração
a diferença entre os rendimentos dos mais de riqueza no topo da pirâmide social entre
pobres e dos mais ricos e vem cumprindo um 2001 e 2015 permaneceu inalterada.
papel inegável, ao expor uma das faces mais No caso brasileiro e de países com uma
estruturantes do fenômeno, a desigualdade expressiva parcela da população pobre, entre-
de renda. Entretanto, apresenta limitações tanto, o uso apenas da metodologia acima é
por olhar um único aspecto do problema: a insuficiente para explicar o que, de fato, ocorre
renda monetária. com a camada mais vulnerável da população,
Os dados do Coeficiente de Gini, todavia, por dois motivos: 1) na sua quase totalidade,
são claros ao evidenciar uma queda na de- esses instrumentos não captam a realidade nas
sigualdade de renda no período de 2002 a faixas mais baixas de renda, e os pobres conti-
2015, em patamares e com uma qualidade nuam, portanto, excluídos das estatísticas sobre
como não havia ocorrido na história brasilei- desigualdade ou diluídos em uma abordagem
ra. Durante o período, a riqueza acumulada geral; 2) o nível de exclusão a que estão subme-
no País aumentou e, ainda que a renda de tidos não é só o de acumulação de riqueza, pois

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018


56 Campello T, Gentili P, Rodrigues M, Hoewell GR

estão excluídos de praticamente todo o acesso humanizada sobre as faces que a desigual-
a direitos, bens e serviços produzidos pelo con- dade pode assumir em uma sociedade como
junto da sociedade. a nossa, agregando empatia ao debate e
O outro estudo refere-se ao Relatório da ampliando uma visão crítica que apoie a
Comissão sobre Medição do Desempenho compreensão sobre as múltiplas situações
Econômico e Progresso Social instituída pela de privações de direitos e as políticas que
União Europeia, coordenado por Joseph podem contribuir estrategicamente para a
Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi4, e mitigação das desigualdades. Há questões
apontam as limitações da comparação entre determinantes aqui. O acesso – ou o não
o Produto Interno Bruto e rendimentos acesso – à água, saneamento, energia, edu-
entre países, em função dos distintos bens e cação, saúde, moradia e bens de consumo,
serviços públicos assegurados aos cidadãos como geladeira, telefone, entre outros, não
em diferentes contextos. Essa análise cor- são dimensões periféricas da desigualdade.
robora as preocupações apresentadas neste A urgência e a prioridade de acesso a esses
artigo. Os autores chamam a atenção para direitos aos mais pobres podem ocorrer con-
a dificuldade de comparar, por exemplo, comitantemente às mudanças estruturais
gastos com saúde entre Estados Unidos que demandam tempo de implementação, ou
da América (EUA) e França, serviço larga- seja, são a longo prazo.
mente privado no primeiro, e público no O que para parte da população é um bem de
segundo. Nos levantamentos dos países que consumo, para os mais pobres é um ‘não direito’
decidem ampliar a oferta pública de alimen- e um limitante, muitas vezes estrutural, às suas
tação escolar, educação, saúde e assistência oportunidades de desenvolvimento e à possibi-
social, há que considerar a ‘gratuidade’ do lidade de uma vida digna e segura.
acesso em relação à necessidade de compra Uma visão reducionista da desigualdade
de serviços nos demais países, em que essa conduz sempre a uma visão reducionista da
oferta não é generalizada. Assim, a análise da emancipação e da liberdade humana. A busca
desigualdade de renda pode não estar incor- pela desnaturalização da desigualdade passa
porando uma parte expressiva do bem-estar pela conscientização de que se trata de um
que não é comprado no mercado, mas que é conjunto de injustiças. A desigualdade social é
provido pelo Estado. sempre uma relação política passível de ser en-
É absolutamente importante discutir a frentada pela ação do Estado e afirmada pelas
desigualdade do ponto de vista da renda, lutas coletivas por direitos, cujo efeito demo-
olhando o estoque de capital e o patrimônio crático pode ser desestabilizador de privilégios
acumulado pelos ricos. No entanto, o olhar historicamente reproduzidos pelas elites.
sobre a desigualdade não pode ignorar a ne-
cessidade de superar a assimetria de acesso
a bens e serviços. Uma parcela expressiva Considerações
da população vem vivendo à margem de metodológicas
condições mínimas de vida. Elevá-las a um
patamar de dignidade não pode ser conside- Para construir os dados apresentados neste
rado um valor secundário no debate sobre artigo, escolhemos dois recortes popula-
desigualdade. Esse tema é, sem dúvida, um cionais: os 5% e os 20% mais pobres com-
dos mais relevantes aprendizados e evidên- parados ao universo da população usando
cias do período de conquistas sociais que o os dados da Pesquisa Nacional por Amostra
Brasil viveu recentemente. de Domicílios (PNAD)5 de 2002 a 2015,
Assim, queremos adicionar ao escopo da que utiliza para o cálculo dos indicadores
análise econômica uma perspectiva mais dos mais pobres: o conjunto da população,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018


Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás 57

exclusive moradores na condição de pen- Agregamos dados sobre saúde em um


sionistas, empregados domésticos e filhos bloco à parte por ter uma fonte e uma
de empregados domésticos, moradores de base de análise diferenciadas. Os dados de
domicílios sem declaração de rendimentos e mortalidade infantil tiveram como fonte
domicílios sem rendimento. A pergunta que o Sistema de Informação sobre Nascidos
orienta este olhar é: quem eram os 5% e os Vivos (Sinasc)7 e o Sistema de Informações
20% mais pobres em 2002 e quem são agora? sobre Mortalidade (SIM) da Secretaria de
A proposta foi adotar um indicador para Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.
enxergar os que estão no fim da fila, os es- Já os dados de atendimentos de serviços
quecidos, levando em conta o que orienta de saúde são do Sistema de Informação em
a agenda 2030 das Nações Unidas – que Saúde para a Atenção Básica (Siab/Sisab).
‘ninguém seja deixado para trás’. Em cada Isso decorre do fato de que não há dados de
recorte específico, elegemos dimensões que saúde na PNAD nem dados administrativos
consideramos mais reveladoras das transfor- na saúde que permitam análises com os recor-
mações referentes ao acesso a direitos. tes de renda. Entretanto, a saúde é fortemente
Uma das referências utilizadas foi o painel determinada por condições sociais, econômi-
do Banco Mundial6, que desenvolveu indica- cas e ambientais, como saneamento básico,
dores de pobreza crônica multidimensional. moradia, trabalho, educação etc. Alguns de
Essa metodologia detalhada por Lopez- seus indicadores, como a mortalidade infan-
Calva, Lachs e Fruttero7 considera aspectos til, permitem avaliar aspectos das condições
além da renda e produz o índice de pobreza de vida da população mais vulnerável.
crônica multidimensional, que agrega três
ou mais privações em cada uma das dimen-
sões sociais: frequência escolar, escolarida- Resultados
de, saneamento, água segura, eletricidade,
moradia e bens duráveis. São dimensões Alguns elementos foram essenciais para a
consideradas sensíveis na transição e vulne- redução da desigualdade na forma que será
rabilidade em relação à pobreza. apresentada. A escolha do período de 2002
Para proceder com nossa análise, adapta- a 2015 não é acidental. Este é um recorte de
mos as variáveis à realidade brasileira, com tempo em que um conjunto de decisões políti-
as seguintes dimensões: cas – nas esferas social e econômica – visou à
redução da pobreza e da desigualdade no Brasil.
• Acesso à educação: adolescentes e jovens Entre 2002 e 2015, foram 12 milhões de
de 15 a 17 anos ao ensino médio; jovens de famílias negras cujos pais e mães passa-
18 a 24 anos ao ensino superior (graduação, ram a ter ensino fundamental completo, 22
mestrado e doutorado); chefes de família com milhões de lares passaram a ter acesso à água
ensino fundamental. de qualidade, e 24 milhões de domicílios, a
possuir geladeira.
• Acesso a serviços de infraestrutura: água Nesse sentido, o conceito de ‘bem de
de qualidade; escoamento sanitário; energia capital’ é relativo quando, por exemplo,
elétrica. refletimos sobre o que é um investimento
para um agricultor familiar pobre com uma
• Acesso à habitação: moradia precária. pequena propriedade no semiárido brasilei-
ro. Ter uma cisterna, acessar energia elétrica
• Acesso a bens de consumo: geladeira ou fre- e dispor de crédito para sua produção podem
ezer; máquina de lavar; celular; computador significar a diferença entre passar fome
com internet. ou não, manter-se em sua terra, produzir e

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58 Campello T, Gentili P, Rodrigues M, Hoewell GR

viver com dignidade, gerar um excedente, ou 1) Avanço do número de jovens ingressando


abandoná-la acarretando mais pobreza nos no ensino médio na idade certa; 2) Acesso ao
grandes centros urbanos e mais concentra- ensino superior; 3) Pais e mães concluindo o
ção fundiária no campo. Esses bens não são ensino fundamental.
contabilizados nas estatísticas que avaliam A análise do percentual da população de
patrimônio e renda. 15 a 17 anos que frequenta a escola no ensino
médio ou etapa posterior ( figura 1) é estraté-
Educação gica por ser uma variável de fluxo hipersen-
sível às mudanças. Em 2002, somente 10,7%
Se há um consenso em estratégia para o dos jovens mais pobres ultrapassavam o
desenvolvimento de um país, este é o in- muro dos que conseguiam chegar ao ensino
vestimento em educação. A manutenção da médio na idade certa. Com o aumento de
desigualdade em educação é um dos fatores 264%, este patamar chegou a 39%.
que mais determinam a dinâmica de exclu- Sabemos que continua baixo, mas mostra
são e a perpetuação da pobreza. Escolhemos que prioridade estatal e política intensivas
três indicadores que permitem depreender foram capazes de reverter um cenário em
as transformações em curso na redução das que o fracasso escolar dos pobres foi sempre
desigualdades em educação relacionadas naturalizado.
com os estratos mais pobres da população:

Figura 1. Percentual da população de 15 a 17 anos que frequenta escola no ensino médio ou etapa de ensino posterior, por faixa de renda, e de 18 a 24
anos que frequenta escola no ensino superior (inclusive mestrado e doutorado), por faixa de renda

70% 20%

18%
18%
60%
57,9%
16%

50%
14%
18,9
40,8% 43,4%
12%
40%

10% 9,9%
39,0%
30%
8%
Total da população
30,1
20% 6% 20% mais pobres
16,3%
4,7% 5% mais pobres
4%
10%
10,7% 2%
2,5%
0,3%
0% 0% 0,2%
2002 2009 2015 2002 2009 2015

Fonte: IBGE/PNAD5.

No período de 2002 a 2015, o acesso ao multiplicado 23 vezes. Uma barreira histórica


ensino superior, incluindo mestrado e doutora- para estudantes das escolas públicas começou
do, foi ampliado para toda a sociedade ( figura a ser rompida pelos jovens que enfrentam os
1). Enquanto o acesso ao conjunto da população desafios da desigualdade social, no entanto
quase dobrou, para os 20% mais pobres, ele foi ainda é apenas uma brecha, que não comporta

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018


Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás 59

contingentes massivos de estudantes de baixa Infraestrutura


renda. O ensino superior continua sendo um
espaço elitizado no Brasil. Em 2002, o acesso à água de qualidade
Uma geração de jovens conquistou o chegava a quase 90% do total da população
lugar dos primeiros membros de suas fa- brasileira. Considerando que a água é um bem
mílias a terem acesso à universidade. Em escasso no mundo, poderíamos supor que o
2015, por exemplo, 35% dos formandos que Brasil estava em uma posição de ampla cober-
fizeram o Exame Nacional de Desempenho tura. Ao colocarmos a lente nos mais pobres,
de Estudantes (Enade) eram os primeiros da o quadro muda drasticamente: menos da
família a serem diplomados. metade (49,6%) dos 5% mais pobres tinham
Ter um dos adultos com ensino funda- garantia de acesso à água de qualidade.
mental completo no domicílio é um dos No ano de 2015, o percentual entre os 5%
requisitos estratégicos de resistência para a mais pobres progredira para 76%. A amplia-
família não entrar em situação de pobreza ção beneficiou o conjunto dos brasileiros e foi
crônica. Significa mais acesso à informação, 7 vezes mais rápida entre os 5% mais pobres,
aproveitamento de oportunidades, expansão ou seja, enquanto para o total da população
do exercício de cidadania. A escolaridade aumentou 7%, para os mais pobres, foi am-
da mãe é um dos determinantes na redução pliado em 53% ( figura 2). Buscar simultanea-
da mortalidade infantil e nas condições de mente atingir a universalização e a equidade
aprendizagem dos filhos. Portanto, é um dos foi a chave nesse processo. Políticas públicas
elementos que dimensionam a importância inovadoras como cisternas, articuladas pelo
da evolução deste indicador e seus impactos. Estado brasileiro, conseguiram mostrar que
Em 2002, menos de 7% dos mais pobres con- é possível alterar, em curto espaço de tempo,
cluíam o ensino fundamental. Após 13 anos, um quadro tão grave.
esse índice passa para 30,3%.

Figura 2. Percentual de domicílios particulares permanentes com acesso à água por rede geral, poço ou nascente com canalização interna, por faixa de
renda, e percentual de domicílios particulares permanentes com energia elétrica, por faixa de renda

99,7%
100% 100%
95,2% 99,2%
88,6% 96,7%
90% 98,6%
85,4%
95%
80%
76,0%
70% 63,3%
90%
88,5%
60%

50% 85%
49,6%
40% 81,3%
Total da população
80%
30% 20% mais pobres
5% mais pobres
20%
75%
10%

0%
70%
2002 2009 2015 2002 2009 2015

Fonte: IBGE/PNAD5.

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60 Campello T, Gentili P, Rodrigues M, Hoewell GR

Saneamento é um dos investimentos pú- as desigualdades e priva muitos brasileiros


blicos em infraestrutura mais dispendiosos e de ter um lar digno e de ter a esperança de
de longo tempo de maturação. Esse é um dos uma vida mais segura. Um indicador que
motivos que levam a não ser priorizado por apoia a compreensão desse fenômeno é o de
muitos governos; e em raras situações obser- domicílios precários, que está concentrado
vam-se profundas alterações no curto prazo. entre as parcelas mais pobres da população.
Por isso, é tão significativo ressaltar que o Os dados da PNAD, no período de 2002 a
acesso ao escoamento sanitário mais do que 2015, expõem a situação de 16,1% das famí-
dobrou entre os 5% mais pobres entre 2002 lias pertencentes aos 5% mais pobres, que re-
e 2015, resultando em uma ampliação seis sidiam em domicílios precários, sem paredes
vezes mais rápida do que para o conjunto da de alvenaria, madeira ou revestimento
população. Ou seja, enquanto para a popu- adequado. Entre os mais pobres, o número
lação aumentou 18%, para os mais pobres, o de famílias por esse tipo de domicílio caiu
avanço passa de 114%. para 7,5%, sendo reduzido em mais de 50%
Para o universo da população, persiste, e beneficiando lares chefiados por mulheres
ainda no ano de 2015, a ausência de escoa- e negros. Essa realidade começou a ser al-
mento sanitário para 19,4%. Além disso, mais terada em compasso com as demandas dos
grave, metade da população entre os 5% mais movimentos de luta por moradia, por meio
pobres continua sem acesso. de um conjunto de políticas, em especial a
O Brasil alcançou, em 2002, a marca de urbanização de favelas e programas como
apenas 3,3% dos brasileiros sem energia elé- o Minha Casa Minha Vida. É fundamental
trica. É um cenário que, avaliado por qual- considerar, também, o aumento da renda dos
quer critério internacional, permitiria ao País mais pobres, que permitiu um amplo e silen-
anunciar a universalização do acesso a esse cioso processo de benfeitorias, reformas e
serviço. Um olhar acurado sobre a parcela ampliação nos imóveis particulares.
mais pobre contradiz essa afirmativa. Nesse
mesmo ano, quase 19% da população entre os Bens de consumo
5% mais pobres não sabiam o que é conviver
com eletricidade em suas casas ( figura 2). Bens duráveis, como geladeira e máquina de
As barreiras de acesso à energia se con- lavar, constituem-se em itens básicos para
centravam na área rural, nas regiões Norte e o funcionamento de uma casa em qualquer
Nordeste, entre as pessoas pobres e públicos lugar. Um contingente representativo de fa-
específicos, como quilombolas ou morado- mílias pobres brasileiras passou a conhecer
res de áreas remotas. Comunidades inteiras as comodidades de seus usos somente na
conquistaram acesso à eletricidade, vendo as última década.
condições de vida e de bem-estar de suas fa- É notável o crescimento de acesso a
mílias se transformarem instantaneamente. esses bens no período de 2002 a 2015, que,
O Brasil universalizou o direito à luz. distante de constituir um comportamento
Alguns públicos específicos em territórios consumista, representa melhorias objetivas,
isolados ainda remanescem, como o caso de liberação de tempo gasto em tarefas domés-
comunidades extrativistas e quilombolas. O ticas, melhoria na autoestima das famílias
Estado terá que construir estratégias para e ampliação das possibilidades de acesso a
chegar a esses territórios. outras oportunidades. É o caso do telefone
celular e do computador com acesso à in-
Habitação ternet, que deixam de ser privilégio de uma
parte do Brasil e passam a compor o dia a
O processo de urbanização excludente acirra dia das famílias negras e dos mais pobres.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018


Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás 61

Um fenômeno a ser valorizado nessa inclu- foi exponencial, passando para 91,2% ( figura
são são os milhões que passam a integrar o 3). A ampliação da renda e do crédito, a de-
consumo, concorrendo para a dinamização soneração da linha branca e a chegada do
do mercado interno. Programa Luz para Todos em territórios sem
Em 2002, o acesso a refrigerador ou energia elétrica explicam parte do aumento
freezer chegava somente a 44,1% dos lares das aquisições desse bem durável pelas
mais pobres. O crescimento nesse segmento camadas mais pobres.

Figura 3. Percentual de domicílios particulares permanentes com geladeira ou freezer, por faixa de renda, percentual de domicílios particulares
permanentes com máquina de lavar, por faixa de renda, e percentual de pessoas de referência dos domicílios com posse de telefone celular, por faixa
de renda

100% 70%
98,2%
95% 95,0% 7,0
91,2% 60% 61,1%
90% 87,3%

85%
50%
80%

75%
40%
70%
33,9%
65% 43,2 30%
28,9%
60%
60,0%
20%
55% 18,1%

50%
10%
45% 5,4%
44,1%
40% 0% 2,9%

2002 2009 2015 2002 2009 2015

100%

90% 91,2%

86,6%
80%
79,3%

70%

60%

50%

40%
Total da população
34,6%
30% 20% mais pobres
5% mais pobres
20%

10% 8,7%

5,1%
0%
2002 2009 2015

Fonte: IBGE/PNAD5.

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62 Campello T, Gentili P, Rodrigues M, Hoewell GR

Foi significativa a ampliação de lares no presença dos aparelhos entre os 5% mais


Brasil com máquina de lavar roupa no período pobres cresceu de 5,1% em 2002 para 79,3%
de 2002 a 2015, sendo que o maior crescimen- em 2015; e entre os 20% mais pobres, o índice
to ocorreu entre os 5% e os 20% mais pobres. foi de 8,7% para 86,6%, muito próximo ao do
No ano de 2015, constata-se que 18,1% dos do- total de domicílios, que atingiu 91,2%. Os
micílios mais pobres contavam com esse bem telefones celulares atualmente representam
de consumo, sendo ainda um patamar muito mais do que um instrumento de comunica-
baixo ( figura 3). É uma situação que indica ção e informação. Para os mais pobres, eles
a dificuldade presente das famílias pobres carregam a possibilidade de ampliar o acesso
em adquirir um item determinante no uso a novas oportunidades, incrementar empre-
do tempo dedicado aos afazeres domésticos, endimentos e renda, além de garantir segu-
principalmente das mulheres. rança para os membros da família.
A desigualdade de acesso a bens de
consumo entre brancos e negros fica eviden- Saúde
te, e vai além da questão de renda. Analisando
a população brasileira em sua totalidade, A saúde é um reflexo direto das condições
observamos que enquanto 42 milhões de socioeconômicas da população. O cresci-
pessoas brancas residiam em domicílios com mento desordenado das cidades, a falta de
máquina de lavar em 2002, entre as famí- saneamento básico e água de qualidade, as
lias de cor negra, eram apenas 15 milhões, condições de moradia e de trabalho, a ali-
mesmo sendo maioria na população. Entre mentação, a educação, questões étnicas/
2002 e 2015, o aumento garantiu que novos raciais, aspectos vistos até agora neste tra-
40 milhões de negros e negras alcançassem balho enquanto dimensões da desigualdade,
essa comodidade. são fortes Determinantes Sociais de Saúde.
A inclusão digital é um dos principais Alguns indicadores de saúde podem ser
vetores de acesso à informação. Nesse considerados resultantes diretos das demais
aspecto, o Brasil de 2002 sofreu uma políticas públicas, ou da ausência delas.
mudança impressionante em relação a 2015, Mortalidade infantil (em crianças menores
sendo observada a alteração no padrão de de 1 ano) certamente é o mais marcante
consumo de bens duráveis dos brasileiros, ( figura 4). O indicador vem caindo de forma
seguindo o ritmo das mudanças tecnoló- sistemática no Brasil. De 2002 a 2015, saiu
gicas. O acesso a telefones celulares e, nos de 23,4 por mil nascidos vivos para 12,9 . Os
últimos anos, a aparelhos com conectividade valores até 20/mil nascidos vivos estão na
e múltiplas funções é expressão desse com- faixa considerada baixa pela Organização
portamento ( figura 3). Mundial de Saúde.
A maior presença de computadores nos A queda foi mais acentuada no Norte e
domicílios também é verificada, mas em no Nordeste, exatamente onde os índices
menor intensidade em todas as classes eram maiores, e onde mais se ampliaram as
sociais, refletindo o processo de substituição políticas públicas, como vimos anteriormen-
de tecnologias ante as novas funcionalidades te. É um indicador síntese do esforço bem-
dos telefones celulares. -sucedido de redução da pobreza, de acesso
O acesso aos celulares foi uma das si- à água, da ampliação da escolaridade das
tuações que mais proporcionalmente se mães, entre outros fatores.
igualaram em todas as faixas de renda. A

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018


Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás 63

Figura 4. Taxa de mortalidade infantil no Brasil e por região (por 1.000 nascidos vivos) e média anual de atendimentos médicos e de enfermagem por
habitante na atenção básica

-53%
30 -47%

23,4 25

20 -37%
-36%
12,9 -33%
15

10
2002 2015
Diminuiu
45% 5

0
Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul

2,8 +75%
2,6
2,4
+78%
2,2
+64%
2,0 +60% +53%
1,8
1,6
1,4 +63%
1,2
1,0
0,8
0,6 2002
0,4 2015
0,2
0
Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul Brasil

Fonte: Sinasc/SIM7, 2015.

Além disso, em 2002, a cobertura popula- as Unidades Básicas Fluviais de Saúde, as


cional em atenção básica era de 31,8%, e, em Unidades Móveis de Saúde Bucal, a Política
2015, passou para 63,2%. Associada à forte Nacional de Saúde Integral da População
expansão, as políticas de saúde passaram a Negra, entre outras, somaram-se à expansão
reconhecer especificidades geradas pelas si- da rede e ao aumento dos atendimentos no
tuações de vulnerabilidade social e exigiram Sistema Único de Saúde. Essas estratégias
novos modelos de organização dos serviços. chegaram a diferentes públicos, que perma-
Iniciativas como o Programa Mais neciam excluídos dos esforços de universa-
Médicos, os Núcleos de Apoio à Saúde da lização da cobertura de serviços ( figura 4).
Família (Nasf ), os Consultórios na Rua,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018


64 Campello T, Gentili P, Rodrigues M, Hoewell GR

Conclusões ao total da população, é ainda mais revelador


do crescimento acima da média da renda dos
Transitamos até aqui por diversos indica- mais pobres. É inegável a redução da desi-
dores que permitiram aferir a queda da de- gualdade de renda usando os dados da PNAD.
sigualdade em múltiplas faces entre 2002 e O crescimento real da renda do conjunto da
2015. A opção de apresentar um indicador população chegou a 38% e foi ainda mais
de desigualdade de renda na parte final acentuado entre os mais pobres. A renda dos
deste artigo não é fortuita. A discussão sobre 20% mais pobres cresceu quase 4 vezes mais
renda, em geral, monopoliza os debates sobre rápido que a dos 20% mais ricos ( figura 5).
pobreza e desigualdade, mesmo entre os que A ampliação acima da inflação ocorreu para
defendem uma avaliação multidimensional. todas as faixas de renda, apesar dos efeitos
O recorte utilizado ao longo da publica- da crise econômica que já se fizeram sentir a
ção, os 5% e os 20% mais pobres comparados partir de 2012.

Figura 5. Variação percentual do rendimento médio domiciliar per capita real entre 2002 e 2015, por quintis de renda

Total 38%

5º quintil 23% 20% mais ricos

4º quintil 49%

3º quintil 68%

2º quintil 81%

1º quintil 84% 20% mais pobres

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90%

Fonte: IBGE/PNAD5.

A ampliação da renda, que se refletiu Família. A consequência direta desse proces-


em mais direitos, mais acesso e, sim, mais so foi o fortalecimento do mercado interno.
consumo, é resultado direto da política de A expansão dos investimentos em infraes-
valorização do salário mínimo, formalização trutura foi direcionada para chegar às perife-
do trabalhador, criação de novos empregos rias, aos bairros operários e ao campo. Fomos
– inclusive os decorrentes de investimen- buscar nos indicadores de água, saneamento
tos como habitação popular, equipamentos e energia como isso se reflete para os que
sociais e política de conteúdo nacional –, historicamente ficaram para trás.
ampliação do acesso à aposentadoria urbana A busca da universalização e do enfrenta-
e rural, benefícios assistenciais e do Bolsa mento das iniquidades em educação, saúde e

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018


Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás 65

assistência social, prevista desde a Constituição do período foram fruto de decisão política,
Federal de 1988, ousou tocar na franja margina- afastando a aceitação de uma condenação
lizada da sociedade; e a resposta foi imediata: natural e inevitável à desigualdade. Registrar
milhões de jovens na escola na idade certa, que continuamos sendo uma nação extrema-
jovens negros e negras nas universidades, mente desigual não é suficiente. A desigual-
queda vertiginosa da mortalidade infantil. dade do Brasil pode e exige ser mudada.
Ao colocar uma lupa sobre os 5% e os
20% mais pobres da sociedade brasileira e
perceber o processo silencioso de inclusão Colaboradores
e redução de parte importante das desi-
gualdades ocorridas, esta perspectiva não se Campello T contribuiu para a análise e in-
encerra em si mesma, mas se soma às demais terpretação dos dados, revisão crítica do
abordagens que buscam compreender os conteúdo e aprovação da versão final do
caminhos para se trilhar a redução das de- manuscrito. Gentili P contribui signifi-
sigualdades. Há muitos desafios e muitas cativamente para a elaboração, redação e
dívidas ainda pendentes. revisão do artigo, aprovando sua versão final.
Este artigo joga luz sobre o que ocorreu Rodrigues M contribuiu para a concepção,
entre 2002 e 2015, evidenciando os resul- planejamento, análise e interpretação dos
tados decorrentes das políticas públicas e dados. Hoewell GR contribuiu para a análise
que estabeleceram novos patamares para a e interpretação dos dados, revisão crítica do
agenda brasileira de combate à pobreza e de conteúdo e aprovação da versão final do ma-
enfrentamento às desigualdades. Os avanços nuscrito. s

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018


66 Campello T, Gentili P, Rodrigues M, Hoewell GR

Referências

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olhar sobre os que ficam para trás. Brasília, DF: Fa- Janeiro: IBGE; 2015.
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Bank Group; 2015 [acesso em 2017 jul 31]. Disponí-
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vey and Fiscal Data, 2001-2015 [internet]. In: 70. 7. Lopez-Calva L, Lachs S, Fruttero A. Medir pobre-
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States 1913-1998. Quarterly J Econom. 2013 fev; 8. Sistema Único de Saúde. Sistema de Informações de
118(1):1-41. Nascidos Vivos. Brasília, DF: Datasus; 2015.

4. Stiglitz J, Sen A, Fitoussi JP. Relatório da Comissão


Recebido em 01/08/2018
sobre a Mensuração de Desempenho Econômico e Aprovado em 09/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
Progresso Social. Curitiba: SESI/PR; 2012.
Suporte financeiro: não houve

5. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pes-

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 54-66, NOVEMBRO 2018


ENSAIO | ESSAY 67

Desestabilização do trabalho
Work destabilization

Marcio Pochmann1

DOI: 10.1590/0103-11042018S306

RESUMO O presente ensaio analisou aspectos da desestabilização do mundo do trabalho pre-


sente nas situações de crise que marcam o desenvolvimento do capitalismo. Os dois princi-
pais movimentos estruturais a desestabilizar a sentido do trabalho assentam-se, em geral, no
excepcional progresso do avanço tecnológico em meio ao acirramento da competição inter-
capitalista e no papel do Estado em relação à regulação do crescente excedente de força de
trabalho às necessidades do capital. Nessa dimensão analítica, contrastam-se promessas de
ascensão ao mundo do trabalho com a realidade da precarização e resistência organizada.

PALAVRAS-CHAVE Trabalho. Política. Sociedades.

ABSTRACT This essay analyzes aspects of the destabilization of the world of labor present in the
crisis situations that mark the development of capitalism. The two main structural movements
to destabilize the sense of work are generally based on the exceptional progress of technological
advancement amid the intensification of intercapitalist competition and on the role of the State
regarding the regulation of the growing labor force surplus to the needs of the capital. In this
analytical dimension, we contrast the promises of ascension to the world of labor with the reality
of precariousness and organized resistance.

KEYWORDS Work. Politics. Societies.

1 Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp),
Instituto de Economia
e Centro de Estudos
Sindicais e de Economia do
Trabalho – Campinas (SP),
Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-3940-
1536
pochmann@unicamp.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 67-77, NOVEMBRO 2018
68 Pochmann M

Introdução permitindo questionar, inclusive, a concepção


consolidada a respeito de sua centralidade
para a humanidade. Os dois principais movi-
[...] uma calamidade social é basicamente um mentos estruturais a desestabilizar a sentido
fenômeno cultural e não um fenômeno econô- do trabalho no desenvolvimento capitalista
mico que pode ser medido por cifras de ren- assentam-se, mais uma vez, no excepcional
dimentos ou estatísticas populacionais. [...] a progresso do avanço tecnológico em meio ao
Revolução Industrial [foi] um terremoto econô- acirramento da competição intercapitalista e
mico que em menos de meio século transformou no papel do Estado em relação à regulação do
grandes massas de habitantes do campo inglês crescente excedente de força de trabalho às
de gente estabelecida em migrantes ineptos. To- necessidades do capital.
davia, se desmoronamentos destrutivos como No âmbito do verdadeiro salto tecnológico
esses são excepcionais na história das classes, percebido, as principais alterações transcorri-
eles são uma ocorrência comum na esfera dos das no interior do padrão de competição inter-
contatos culturais entre povos de raças diferen- capitalista têm sido protagonizadas por parte
tes. Intrinsecamente, as condições são as mes- da formação de grandes corporações transna-
mas. A diferença está principalmente no fato de cionais em meio ao avanço da globalização ne-
que uma classe social é parte de uma sociedade oliberal, acompanhada da transição de modelos
que habita a mesma área geográfica, enquanto o organizacionais (taylorismo, fordismo, kalma-
contato cultural ocorre geralmente entre socie- rismo, toytismo e outros) na produção e, por
dades estabelecidas em diferentes regiões geo- consequência, no trabalho. Embora se assista
gráficas. Em ambos os casos o contato pode ter inegável crescimento na concentração e cen-
um efeito devastador sobre a parte mais fraca. A tralização do capital, as grandes corporações
causa da degradação não é portanto a explora- transnacionais avançaram na forma de cadeias
ção econômica, como se presume muitas vezes, fragmentadas de produção.
mas a desintegração do ambiente cultural da ví- Com isso, a dispersão crescente das unida-
tima. O processo econômico pode naturalmente des produtivas em distintas regiões do mundo,
fornecer o veículo da destruição, e quase invaria- estimuladas por transformações tecnológicas
velmente a inferioridade econômica fará o mais de informação e comunicação, bem como pela
fraco se render, mas a causa imediata da sua gigante onda de rebaixamento dos custos de
ruína não é essa razão econômica – ela está no trabalho, com menores restrições à segurança
ferimento letal infligido às instituições nas quais ambiental e ao pagamento tributário. Tudo isso
a sua existência social está inserida. O resultado patrocinado pela generalização das políticas
é a perda do auto respeito e dos padrões, seja a neoliberais, cada vez mais questionadoras do
unidade um povo ou uma classe, quer o proces- sistema interestatal difundido no período após
so resulte do assim chamado ‘conflito cultural’ a Segunda Guerra Mundial, em oposição à do-
ou de uma mudança na posição de uma classe minância da era dos grandes impérios.
dentro dos limites de uma sociedade1(176). Para os Estados vigentes, a generalização
do receituário neoliberal a questionar tanto as
O tema acerca do futuro do trabalho segue fronteiras nacionais como a valorizar políti-
despertando intensos e diversificados debates. cas de sentido antilabor possibilitou o ataque
Mesmo que controvertido entre especialistas, aos sistemas de proteção social e trabalhista.
identificam-se convergências importantes em O reaparecimento do desemprego massivo,
relação ao curso das mudanças no interior das acompanhado da massificação da pobreza e da
sociedades urbanas e industriais. extrema desigualdade na distribuição do poder,
Neste primeiro quarto do século XXI, o sig- riqueza e renda, somente comparável ao início
nificado do próprio trabalho parece alterar-se, do século XX, expressou a subordinação da

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 67-77, NOVEMBRO 2018


Desestabilização do trabalho 69

agenda do trabalho, com apequenamento das inclusive, o reposicionamento desafiador das


entidades representativas dos trabalhadores, instituições de organização e representação
como sindicatos e partidos políticos. existentes no mundo do trabalho. No passado,
Em função disso, o presente artigo preten- assistiu-se ao reposicionamento dos traba-
de trazer elementos de análise a respeito da lhadores perante os momentos de profundas
agenda do trabalho neste primeiro quartel crises e reestruturação do capitalismo mundial,
do século XXI. Inicialmente, apresentam-se como na Grande Depressão de 1873 a 1896, que
aspectos relevantes acerca do movimento de terminou sendo superada por nova expansão
desestabilização da estrutura organizacional econômica associada à Divisão Internacional
do mundo do trabalho na antiga sociedade do Trabalho (DIT) entre a produção de ma-
urbana e industrial. nufaturas nos países industrializados e a con-
Na sequência, considera-se a realidade do centração da exportação de matérias primas e
mundo do trabalho ante as promessas original- alimentos nos países agrários, como o Brasil.
mente apresentadas nos debates sobre a transi- Dado o conservadorismo da oligarquia rural
ção para a nova sociedade de serviços. Trata-se prevalecente em grande parte dos países agrá-
de finalizar o artigo focando a experiência bra- rios, os esforços reformistas do final do século
sileira de reação à desestabilização do mundo XIX terminaram sendo contidos às econo-
do trabalho. mias industrializadas diante do novo ciclo de
prosperidade. Mesmo assim, a modalidade de
organização dos trabalhadores qualificados
Desestabilização do mundo nos sindicatos de ofício, embora combativos e
do trabalho na sociedade ousados, pouco conseguiu avançar em termos
de elevação das condições de vida do conjunto
urbana e industrial da classe trabalhadora.
Além disso, com o avanço do processo
O entendimento a respeito da desestabilização de mecanização, o trabalho humano se
do mundo do trabalho no capitalismo encon- tornou apêndice da produção urbana e
tra-se associado a três determinantes funda- industrial. Perdeu, assim, o protagonismo
mentais. O primeiro referente às históricas do trabalho humano consistente com as
crises do capitalismo que revelam não apenas antigas sociedades agrárias.
maiores dificuldades à classe trabalhadora, mas O resultado disso foi a instalação de enorme
também oportunidades para a sua profunda heterogeneidade no interior da classe traba-
reação e reestruturação. lhadora, com mecanismos de proteção social
Nesses momentos especiais, constata-se e do trabalho proporcionados pelos sindicatos
que as velhas formas de valorização do capital de ofício de atuação predominantemente anar-
sinalizam esgotamentos ao passo que as novas cossindical (fundos de ajuda mútua e coope-
formas ainda não se apresentam suficiente- rativas de autoajuda) aos ocupados mais bem
mente maduras para dinamizar o sistema ca- inseridos no desenvolvimento capitalista. Ao
pitalista. Por conta disso, formas ainda mais contrário da brava elite operária sob a tutela
sofisticadas de exploração da classe trabalha- dos sindicatos de ofício, a parte majoritária da
dora se encontram em experimentação, muitas classe trabalhadora permaneceu exposta à livre
delas subentendidas no movimento maior de fi- competição, sem organização, salvo momentos
nanceirização do estoque da riqueza existente. especiais, cuja organização e manifestação se
A aplicação dos novos métodos de inten- apresentavam fundamentalmente espontânea
sificação e extensão no uso e remuneração da e desconectada da elite operária em seus aguer-
força de trabalho testa recorrentemente a capa- ridos sindicatos de ofício.
cidade de reação dos trabalhadores, exigindo, Na Grande Depressão iniciada em 1929, o

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 67-77, NOVEMBRO 2018


70 Pochmann M

mundo do trabalho experimentou novamente de trabalho convive com a experimentação de


uma onda de inéditas lutas até então ao sistema formas cada vez mais sofisticadas de intensifi-
capitalista que se mostraram capazes de impor cação e extensão laboral.
um novo ciclo de prosperidade, com elevação Em relação a isso, identifica-se a experi-
das condições de vida no conjunto dos ocupa- mentação de formas de maior exploração
dos. A formação e a extensão do fundo público, capitalista do trabalho humano por meio do
com o avanço da tributação sobre os ricos e a avanço da terceirização e ‘Uberismo’ do traba-
universalização das políticas de oferta de bens lho. Simultaneamente, percebe-se o avanço da
e serviços públicos, concederam ao Estado de degradação das conquistas dos trabalhadores
bem-estar social a tarefa primordial de redução no ambiente de flexibilização e desregulação
das desigualdades, sem alterar a natureza do sistema de proteção social e trabalhista que
privada dos meios de produção. desafiam o formato tradicional de organização
O aparecimento e a difusão do novo sindica- e representação dos interesses dos ocupados
lismo, em oposição ao velho sindicato de ofício, ante a explosão sucessiva de manifestações
permitiram a generalização dos contratos de sociais de natureza espontânea, desconectadas
trabalho responsável pela repartição menos e desarticuladas de um projeto maior de trans-
desigual dos ganhos de produtividade dos ocu- formação do capitalismo.
pados. Essa nova realidade, embora centraliza- O segundo determinante fundamental da de-
da nas economias de capitalismo avançado, não sestabilização do mundo do trabalho refere-se
deixou de se manifestar também em países de aos distintos padrões de desenvolvimento de-
industrialização tardia, como no Brasil. sigual e combinado do capitalismo que estabe-
Em menos de cinco décadas, alguns países lecem a base material pela qual a condição da
em distintas regiões do planeta se tornaram proteção social e do trabalho pode se manifes-
urbanos, com áreas industriais avançadas. A tar. Isso porque o processo de acumulação do
instalação do sistema de proteção social e tra- capital pressupõe a existência de um centro
balhista e os avanços, mesmo que contidos, nas dinâmico capaz de combinar desigualmente o
relações de trabalho possibilitaram uma plata- conjunto da periferia territorial que o circunda.
forma de conquistas superiores ao período an- Em síntese, o centro dinâmico compre-
terior de exploração dos trabalhadores herdado ende três funções básicas: (i) o poder da
da grande crise do final do século XIX. moeda como meio de troca, reserva de valor
Dessa forma, os empregados assalariados e unidade de conta internacional; (ii) o poder
passaram a contar com uma regulação mínima, militar capaz de impor pela força o que a di-
capaz de oferecer jornada máxima de trabalho, plomacia não alcança pelo diálogo; e (iii) a
limites às arbitrariedades patronais na contra- capacidade hegemônica de produzir e difun-
tação, demissão e aposentadoria. Em síntese, dir o progresso técnico.
conquistas laborais jamais identificadas an- É nesse sentido que as revoluções indus-
teriormente no desenvolvimento capitalista, triais e tecnológicas se destacam, uma vez
como a redução da jornada de trabalho e o que restabelecem o formato da competição
pleno emprego da força de trabalho. intercapitalista e a possibilidade de mudança
Na crise atual do capitalismo globalizado, o no centro dinâmico do capitalismo. Exemplo
sistema de exploração defronta-se com novas disso pode ser percebido desde o final do
possibilidades de protagonizar um novo salto ciclo de expansão fordista na década de 1970,
no uso e remuneração da classe trabalhadora. com a emergência de uma nova e profunda
Por meio da consolidação inédita do sistema de revolução industrial e tecnológica assentada
coordenação centralizada capitalista, com ar- no surgimento de inédito ator global repre-
ticulação e integração descentralizada da pro- sentado pelas corporações transnacionais.
dução de bens e serviços pelo mundo, a força Atualmente, não mais do que 500 grandes

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 67-77, NOVEMBRO 2018


Desestabilização do trabalho 71

corporações transnacionais centralizam o con- constitucional (1891) no final do século XIX fa-
trole do sistema de valor operado fragmentada- voreceu a passagem para sociedade de classes
mente em tão somente 300 espaços territoriais movida pelo capitalismo no país herdeiro da
do planeta. A monopolização da produção e antiga sociedade escravista dependente da pri-
distribuição da riqueza em escala global torna mitiva economia mercantil primário-exporta-
a grande corporação transnacional mais econo- dora, incapaz de generalizar qualquer forma de
micamente poderosa que os Estados Nacionais. proteção social e do trabalho.
Somente nove países atualmente registram or- Também foi registrada inovadora con-
çamento público comparável ao faturamento figuração política a partir da Revolução de
dos grandes monopólios privados no mundo. 1930, responsável pelo desencadeamento de
Diante disso, avança a polarização entre inédito ciclo econômico de expansão conferi-
Estados Unidos e China, apontando para uma do pelo projeto de industrialização nacional.
possível transição no interior do centro dinâmi- Com isso, as condições materiais necessárias
co capitalista mundial. A nova fronteira de ex- à instalação do sistema de proteção social e do
pansão capitalista aberta a partir da Ásia, cujo trabalho foram sendo estabelecidas durante
vetor principal tem sido o rápido e considerável a transição da antiga e primitiva sociedade
processo de monopolização do capital por meio agrária para a moderna sociedade urbana e
das cadeias globais de valor, coloca em xeque a industrial, o que permitiu fundar as bases do
hegemonia estadunidense. Estado desenvolvimentista no Brasil.
O deslocamento geográfico do núcleo di- Atualmente, o impasse imposto pelo
nâmico mundial reflete historicamente o Golpe de Estado não deixa de expressar certa
complexo problema de assimetria capitalista reação de parte dos Estados Unidos, enquan-
decorrente da relação entre o centro dinâmi- to decadente centro dinâmico perante o
co e o conjunto de sua periferia. Enquanto avanço das relações do Brasil com os Brics,
a longa decadência do domínio inglês, no por exemplo. A experiência brasileira de
último quartel do século XIX, teve início com constituição da política externa altiva e ativa,
a emergência da segunda revolução industrial com a emergência da internacionalização
e com o fim do capitalismo de livre competi- da grande empresa nacional nos anos 2000,
ção, a grande depressão de 1929 consolidou a indicou um novo caminho de expansão em
hegemonia estadunidense sobre a Alemanha, pareceria com o centro dinâmico mundial
derrotada nas duas grandes Guerras Mundiais em formação e que se assenta na Ásia.
(1914-1918 e 1939-1945). Por fim, o terceiro determinante da deses-
Nos dias de hoje, a reorganização capita- tabilização do mundo do trabalho relaciona-se
lista abre oportunidade para nova articulação com a capacidade de o Estado organizar, pro-
entre centro dinâmico e periferia. No passado, duzir e sustentar no tempo diversas políticas
quando não imaginava solução próxima dis- públicas, especialmente a de proteção social
ponível, o Brasil soube construir convergência e do trabalho. Sabe-se que a principal experi-
política interna capaz de apontar nova direção ência de constituição do sistema de proteção
para o desenvolvimento nacional ante a cen- social e do trabalho transcorreu positivamente
tralidade externa concedida pela Inglaterra durante a interrupção da primeira onda de glo-
até os anos de 1910 e pelos Estados Unidos no balização capitalista verificada entre os anos de
segundo pós-guerra mundial. 1930 e de 1980.
No período entre as décadas de 1880 e 1930, Acontece que, nas décadas de 1870 e 1920,
por exemplo, o esforço nacional foi determi- com o auge da primeira onda de globalização
nante para que os novos rumos aparecessem ao capitalista liderada pelo Reino Unido, o Brasil
Brasil. A realização das reformas política (1881), reafirmou a sua posição subordinada e depen-
laboral (1888), na forma de governo (1889) e dente à antiga DIT. Na época, a dominância

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das forças de mercado sobre a política tornava eficazes ao deslocamento da posição brasileira
os partidos existentes (Liberal e Conservador) na DIT de mero exportador de commodities na
no regime da Monarquia (1822 – 1889), equiva- década de 1920 para a 8ª economia industrial
lentes na defesa da não interferência do Estado mais importante do mundo em 1980. Mesmo
mínimo na economia e sociedade. assim, o sistema de proteção social e do tra-
Mesmo com a República Velha (1889 – balho não foi universalizado, mantendo o seu
1930), os princípios liberais foram mantidos, funcionamento na forma de monopólios sociais
mostrando-se insuficientes para estancar as desigualisadores de oportunidades e da ascen-
elevadas desigualdades e preconceitos for- são social para parcela da classe trabalhadora.
jados por quase quatro séculos de hegemo- Somente pela Constituição Federal de 1988
nia escravista. Ao ser identificado pela elite e com a experiência das políticas públicas
como inábil e indolente, a base da pirâmide universais na década de 2000 que o sistema
social foi excluída da estrutura produtiva, de proteção social e do trabalho avançou con-
ocupada crescentemente pela mão de obra sideravelmente no Brasil. Entretanto, foi pela
branca imigrante, base original da organiza- atual reestruturação capitalista imposta pela
ção do velho sindicalismo de ofício. segunda onda de globalização conduzida por
Qualquer iniciativa de regulação do grandes corporações transnacionais e sob a
mercado de trabalho, por exemplo, era con- dominância financeira que a capacidade do
siderada inconstitucional, inaceitável para Estado de sustentar políticas públicas passou
ser exercida pelo Estado mínimo. A questão a contida, trazendo repercussões negativas não
social, por conta disso, seguiu sendo tratada somente à proteção social e do trabalho.
como caso de polícia.
Somente com o interregno da primeira onda
de globalização capitalista no início do século Promessas e realidades
XX que mudanças mais significativas passaram
a ocorrer em relação à proteção social e do tra- Embalados certamente por certo determi-
balho no Brasil. Nesse sentido, as experiências nismo tecnológico e por saltos imaginados
de socialismo real representado pela Revolução na produtividade do trabalho imaterial, uma
Russa (1917), de gravidade na Grande Depressão nova gama de promessas foi sendo forjada
de 1929 e da trágica realização das duas grandes pelos ideólogos do desenvolvimento capitalis-
guerras mundiais, prosseguida pelo rearma- ta em direção à almejada sociedade do tempo
mento inserido na Guerra Fria (1947 – 1991), livre estendida pelo avanço do ócio criativo, da
favoreceram, em grande medida, a fase do de- educação em período integral e da contenção
senvolvimento de ouro no capitalismo regula- do trabalho heterônomo (apenas pela sobrevi-
do a partir da centralidade dos Estados Unidos vência). Penetrados cada vez mais pela cultura
ao longo da segunda metade do século XX. midiática do individualismo e pela ideologia da
Nesse sentido, percebe-se que, no Brasil, competição, o neoliberalismo seguiu amplian-
durante as décadas de 1930 a 1970, a transição do apoiadores no mundo.
da arcaica e longeva sociedade agrária para a Com isso, surgiu a perspectiva de que as
moderna sociedade urbana e industrial trans- mudanças nas relações sociais repercutiriam
correu acompanhada por reformas efetuadas inexoravelmente sobre o funcionamento do
nas esferas da organização do Estado desenvol- mercado de trabalho. Com a transição de-
vimentista. Destacam-se, por exemplo, a demo- mográfica, novas expectativas foram sendo
cratização do regime político, a generalização apresentadas. A propaganda de elevação da
do direito do trabalho, a expansão da instrução expectativa de vida para próximo de 100 anos
pública, entre outras. de idade, como exemplo, deveria abrir inédita
Todas elas se mostraram funcionais e perspectiva à postergação do ingresso no

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Desestabilização do trabalho 73

mercado de trabalho para a juventude comple- democrático. Destaca-se que, na antiga socie-
tar o ensino superior, estudar a vida toda e tra- dade agrária, o começo do trabalho ocorria a
balhar com jornadas semanais de até 12 horas. partir dos 5 a 6 anos de idade para se prolongar
A nova sociedade pós-industrial, assim, até praticamente a morte, com jornadas de tra-
estaria a oferecer um padrão civilizatório balho extremamente longas (14 a 16 horas por
jamais alcançado pelo modo capitalista de dia) e sem períodos de descanso, como férias
produção e distribuição. Assim, foi sob este e inatividade remunerada (aposentadorias e
manto de promessas de maior libertação do pensões). Para alguém que conseguisse chegar
homem do trabalho pela luta da sobrevivên- aos 40 anos de idade, tendo iniciado o trabalho
cia (trabalho heterônomo) por meio da pos- aos 6 anos, por exemplo, o tempo comprometi-
tergação da idade no ingresso ao mercado do somente com as atividades laborais absorvia
de trabalho para somente depois do cum- cerca de 70% de toda a sua vida.
primento do ensino superior, bem como da Na sociedade industrial, o ingresso no
oferta educacional ao longo da vida, que o mercado laboral foi postergado para os 16
racionalismo neoliberal se constituiu. anos de idade, garantindo aos ocupados,
De certa forma, trouxe o entendimento de a partir daí, o acesso a descanso semanal,
que o esvaziamento do peso relativo da econo- férias, pensões e aposentadorias provenien-
mia nacional proveniente dos setores primário tes da regulação pública do trabalho. Com
(agropecuária) e secundário (indústria e cons- isso, alguém que ingressasse no mercado de
trução civil) consagraria expansão superior do trabalho depois dos 15 anos de idade e per-
setor terciário (serviços e comércio). Enfim, manecesse ativo por mais 50 anos teria, pos-
estaria por surgir a sociedade pós-industrial sivelmente, mais alguns anos de inatividade
protagonista de conquistas superiores aos remunerada (aposentadoria e pensão).
marcos do possibilitado desde a década de Assim, cerca de 50% do tempo de toda a
1930, possível sem luta, pois contrária às classes vida estaria comprometido com o exercício do
sociais em uma sociedade fundada no indiví- trabalho heterônomo. A parte restante do ciclo
duo portador de competitividade e promotor da vida, não comprometida pelo trabalho e pela
do seu próprio seguro de vida e previdência, sobrevivência, deveria estar associada à recons-
não mais dependente do Estado. trução da sociabilidade, estudo e formação,
Essas promessas, contudo, não se tornaram cada vez mais exigidos pela nova organização
efetivas, tampouco resultaram da imagina- da produção e distribuição internacionalizada.
da modernização neoliberal. Em pleno curso Isso porque, diante dos elevados e constan-
da transição para a sociedade de serviços, a tes ganhos de produtividade, tornou-se possível
inserção no mercado de trabalho precisa ser reduzir o tempo semanal de trabalho de algo ao
gradualmente postergada, possivelmente para redor das 40 horas para não mais que 20 horas.
o ingresso na atividade laboral somente após a De certa forma, a transição entre as socieda-
conclusão do ensino superior, com idade acima des urbano-industrial e pós-industrial tende-
dos 22 anos, e saída sincronizada do mercado ria a não mais separar nítida e rigidamente o
de trabalho para o avanço da inatividade; tudo tempo do trabalho do não trabalho, podendo
isso acompanhado por jornada de trabalho gerar maior mescla entre os dois, com mais in-
reduzida, o que permitiria que o trabalho hete- tensidade e risco de longevidade ampliada da
rônomo passasse a corresponder a não mais do jornada laboral para além do tradicional local
que 25% do tempo da vida humana. de exercício efetivo do trabalho.
É nesse sentido que se pode identificar É dentro desse contexto que se recolocaria
uma linha perspectiva do trabalho humano em novas bases a relação do tempo de trabalho
associado às lutas de classe e à maior capaci- heterônomo e a vida. Em geral, o funciona-
dade de atuação pública por meio do Estado mento do mercado de trabalho relacionado, ao

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longo do tempo, com uma variedade de formas salarial, especialmente aquela conformada
típicas e atípicas de uso e remuneração da mão pela maior proximidade entre a base e o
de obra com excedente de força de trabalho cume da estrutura social.
derivado dos movimentos migratórios internos Assiste-se, assim, à transição das tradicionais
e externos sem controles, conforme apontado classes médias assalariadas e de trabalhadores
originalmente por autores que imaginaram su- industriais para o inédito e extensivo preca-
perior a passagem da antiga sociedade urbana e riado, com importante polarização social per-
industrial para a de serviços (terciária). meada pelo espontaneismo de características
No entanto, após quase quatro décadas de cada vez mais anárquicas. Concomitantemente
geração das promessas neoliberais voltadas à com as novas tecnologias de comunicação, as
construção de uma sociedade superior, regis- mobilizações sociais e trabalhistas transcorrem
tra-se, pelo contrário, o fortalecimento de sinais acima da setorialização e fragmentação da tra-
inegáveis de regressão no interior da socieda- dicional organização sindical, o que gera estra-
de do capital em avanço também no Brasil. Do nhamento e distanciamento entre as estruturas
progresso registrado em torno da construção existentes e as formas de mobilização social e
de uma estrutura social medianizada por po- política espontâneas.
líticas sociais e trabalhistas desde a década de O vazio proporcionado pela desindustria-
1930, constata-se, neste início do século XXI, o lização vem sendo ocupado pela chamada
retorno da forte polarização social. sociedade de serviço, que constitui, nesse
Por uma parte, a degradação da estrutura sentido, uma nova perspectiva de mudança
social herdada da industrialização fordista tem estrutural no mundo do trabalho. Mudança
desconstituído ampla parcela da classe média, esta que torna cada vez maior o padrão de
fortalecendo a expansão do novo precariado exploração do trabalho diante do esvazia-
no conjunto da classe trabalhadora. Por outra, mento da regulação social e trabalhista e das
a concentração de ganhos significativos de promessas de modernidade pelo receituário
riqueza e renda em segmento minoritário da neoliberal que não se realizam.
população gera contexto social inimaginável, A longa jornada de efetivação da regulação
em que somente parcela contida da sociedade do mundo do trabalho no Brasil parece estar
detém parcelas crescentes da riqueza. com seus dias contados perante o sinal verde
Em mais de três décadas de predomínio da concedido pela interdição do governo demo-
regulação neoliberal do capitalismo, as pro- craticamente eleito em 2014. Com o impe-
messas da construção de padrão civilizatório dimento da presidenta Dilma em 2016, uma
superior encontram-se desfeitas. Os avanços série de projetos liberalizantes da legislação
ocorridos têm sido para poucos, enquanto o social e trabalhista que se encontrava repre-
retrocesso observado serve a muitos. sada desde a ascensão em 2003 dos governos
liderados pelo Partido dos Trabalhadores
passou a ser a descortinada.
Desestabilização e resistência Com isso, o Brasil passou a conviver com
no Brasil uma quarta onda de flexibilização do sistema de
proteção social e trabalhista instituído a partir
A confirmação do regresso à fase da desregu- da década de 1930, quando passou a se consoli-
lação e flexibilização das políticas sociais e dar a transição da velha sociedade agrária para
trabalhistas impõe novo padrão de explora- a urbana e industrial. Isso porque a constitui-
ção à classe trabalhadora. Com a decadência ção do mercado nacional de trabalho resultou
do padrão de industrialização e regulação de uma lenta transição de 80 anos, iniciada em
fordista, o Brasil dá sequência ao movimen- 1850, com o fim do tráfico de escravos e com
to maior de desestruturação da sociedade a implantação da lei de terras, a finalizada em

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Desestabilização do trabalho 75

1930, com a superação da condição de merca- social e trabalhista avança. A aprovação das
dos regionais de trabalho. reformas neoliberais desencadeadas mais
Mesmo diante da passagem do Império para recentemente elevará ainda mais o grau de
a República em 1889, a regulação do mercado exclusão no Brasil.
de trabalho terminou sendo postergada ante a Diante disso, destaca-se uma primeira
prevalência da situação de ‘liberdade do tra- onda de flexibilização da legislação social e
balho’ definida pela primeira constituição re- trabalhista transcorrida a partir da segunda
publicana, em 1891. Nem mesmo a aprovação, metade da década de 1960, com a ascensão da
em 1926, da emenda constitucional 29, que Ditadura Militar (1964 – 1985). Na oportuni-
possibilitou ao Congresso Nacional legislar dade, a implantação do Fundo de Garantia por
sobre o tema do trabalho, alterou a perspec- Tempo de Serviço (FGTS), por exemplo, não
tiva liberal de manutenção do Estado fora da apenas interrompeu a trajetória de estabili-
regulação social e trabalhista. dade no emprego, como também inaugurou
A partir da Revolução de 1930, contudo, a enorme rotatividade na contração e demissão
regulação do trabalho passou a ser uma novi- da mão de obra no Brasil.
dade, difundida fragmentadamente, segundo A taxa de rotatividade que atingia cerca
pressão localizada nas categorias mais fortes de 15% da força de trabalho ao ano na década
e mais bem inserida no desenvolvimento de 1960 rapidamente foi acelerada, aproxi-
capitalista. Após uma década de embates, mando-se da metade dos empregos formais
com avanços pontuais na implementação do País. Com isso, a generalização do proce-
de leis dispersas de regulação do emergen- dimento patronal de substituir empregados
te emprego assalariado, foi implementada a de maior salário por trabalhadores de menor
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no remuneração.
ano de 1943, em pleno regime político autori- Na política salarial vigente entre 1964 e
tário do Estado Novo (1937 – 1945). 1994, o resultado foi, em geral, a perda de
Mesmo assim, a maior parte dos trabalha- poder de compra do rendimento dos traba-
dores esteve excluída do código do trabalho lhadores, sobretudo no valor real do salário
diante da oposição liberal conservadora dos mínimo, que atende à base da pirâmide distri-
proprietários rurais, antiga força dominan- butiva do País. Diante da significativa expan-
te na República Velha (1889 – 1930). Até o são da produtividade do trabalho, os salários
ano de 1963, com a aprovação do Estatuto do perderam a corrida para a inflação, o que
Trabalhador Rural, que abriu a possibilidade contribuiu ainda mais para o agravamento da
de incorporação lenta e gradual do trabalho desigualdade de renda no Brasil.
rural, a CLT voltava-se tão somente às relações Essa segunda onda de flexibilização se
de trabalho urbanas. caracterizou por deslocar a evolução dos
Foi pela Constituição Federal de 1988, rendimentos do trabalho do comportamento
ou seja, 45 anos após a implementação da acelerado da produtividade, trazendo, por
CLT, que os trabalhadores rurais passaram consequência, a prevalência de uma econo-
a ter direitos equivalentes aos empregados mia industrial de baixos salários. Ao mesmo
urbanos, embora ainda hoje tenham seg- tempo, uma enorme desigualdade tanto
mentos dos ocupados sem acesso à regulação intrarrendimento do trabalho entre altas e
social e trabalhista. Na década de 1940, por baixas remunerações como entre o rendimen-
exemplo, a CLT mal atingia 10% dos ocu- to do trabalho e as demais formas de renda da
pados, enquanto nos dias de hoje chegou a propriedade ( juros, lucros, aluguéis e outras).
superar os dois terços dos trabalhadores. A terceira onda de flexibilização das rela-
Com a recessão e os retrocessos do atual ções de trabalho pode ser constatada na década
governo golpistas, a involução da proteção de 1990, com a dominação de governos com

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76 Pochmann M

orientação neoliberal. Dessa forma, assistiu-se geral dessa nova fase de intensificação da
à generalização de medidas de liberalização da exploração do trabalho.
contratação de trabalhadores por modalidades Como os direitos sociais e trabalhistas
abaixo da orientação estabelecida pela CLT. passam crescentemente a ser tratados pelos
Entre elas, a emergência da terceirização dos empregadores e suas máquinas de agitação
contratos, em plena massificação do desempre- e propaganda enquanto fundamentalmen-
go e precarização das relações de trabalho. te custos, a contratação direta, sem direitos
A partir da metade da década de 2010, sociais e trabalhistas libera a competição indi-
todavia, desencadeou-se uma quarta onda de vidual maior entre os próprios trabalhadores
flexibilização das leis sociais e trabalhistas. em favor dos patrões. Os sindicatos ficam de
Com a recente e parcial derrota dos trabalha- fora da negociação, contribuindo ainda mais
dores imposta pela Câmara dos Deputados pela para esvaziamento do grau de organização em
aprovação da legislação para terceirização, a sua própria base social e territorial.
septuagenária CLT encontra-se novamente Ao depender cada vez mais do rendimen-
ameaçada de ser rebaixada. to diretamente recebido, sem a presença do
A atualidade do projeto de lei da terceiriza- histórico salário indireto (férias, feriado, pre-
ção a ser ainda avaliado pelo Senado Federal e vidência etc.), os fundos públicos voltados
que conta com o apoio antecipado do governo ao financiamento do sistema de seguridade
Temer encontra-se em sua ramificação com a social enfraquecem, quando não contribuem
perspectiva de generalização da ‘Uberismo’ para a prevalência da sistemática do rentis-
laboral neste início do século XXI, bem como mo. A contenção da terceirização, em função
com a destruição do sistema de negociação co- disso, poderia estancar a trajetória difusora
letiva de trabalho e de proteção social e traba- do modo Uber de precarização das contrata-
lhista. Isso porque o modo Uber de organizar ções de trabalho.
e remunerar a força de trabalho distancia-se
crescentemente da regularidade do assalaria-
mento formal, acompanhado geralmente pela Considerações finais
garantia dos direitos sociais e trabalhistas.
Os experimentos de ‘Uberismo’ do trabalho Para um país em tardia busca pelo seu desen-
avançam em forma diversificada no espaço volvimento sustentável, estabelece-se uma das
supranacional. Começaram com iniciativas no poucas vantagens associadas à possibilidade
transporte individual, por meio da desregula- de inversão profunda das prioridades governa-
mentação generalizada na oferta de sistema de mentais até então assumidas. Diante da atual
taxis por aplicativos decorrentes das tecnolo- reestruturação capitalista imposta pela segunda
gias de informação e comunicação, até alcança- onda de globalização conduzida pelas grandes
rem atualmente os contratos de zero hora, cujo corporações transnacionais e sob a dominância
trabalhador permanece em casa aguardando a financeira, o mundo do trabalho tem ocupado
demanda de sua força de trabalho advinda de centralidade na agenda tanto na estratégia de
qualquer parte do mundo. competição internacional como na definição
Tudo isso à margem da regulação nacional das opções do desenvolvimento das nações.
de trabalho, fruto da generalização das Exemplo disso tem sido a lógica do mundo dos
novas tecnologias de informação e comu- negócios invadindo as decisões de reformas
nicação em meio ao enorme excedente de sociais e trabalhistas, capaz de desconstruir di-
mão de obra. O esfacelamento das organi- reitos e restringir a atuação sindical.
zações de representação de interesses dos A retomada do desenvolvimento brasileiro,
trabalhadores (associações, sindicatos e nesse sentido, requer a revisão da perspectiva
partidos) transcorre como consequência neoliberal assentada na produção e difusão da

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 67-77, NOVEMBRO 2018


Desestabilização do trabalho 77

via individual, não classista do mundo. Por uma descentralizada da produção de bens e ser-
parte, porque a degradação da estrutura social viços pelo mundo, expõe a força de traba-
herdada da industrialização fordista tem des- lho a formas cada vez mais sofisticadas de
constituído ampla parcela da classe média, bem exploração.
como fortalecido a expansão do novo precaria- O protagonismo periférico descortina opor-
do no conjunto da classe trabalhadora. tunidade inédita de mudança substancial na
Por outra, porque a concentração de ganhos ordem mundial, com perspectivas de redução
significativos de riqueza e renda em segmento do brutal grau de desigualdade existente entre
minoritária da população gera contexto social países e classes sociais. Todavia isso ainda pres-
inimaginável, em que somente parcela contida supõe convergência e coordenação global ainda
da população passa a deter mais riqueza que inexistente nos dias de hoje.
a maior parte do conjunto dos habitantes do Ademais, o governo brasileiro atual sequer
Brasil. Em mais de três décadas de predomínio se apresenta preparado para dar conta das
da regulação neoliberal do capitalismo, as pro- perspectivas abertas neste início do século
messas da construção de padrão civilizatório XXI. Pelo contrário, a ruptura democrática
superior encontram-se desfeitas, uma vez que ocorrida a partir de 2016 impôs o predo-
os avanços ocorridos têm sido para poucos; e o mínio de pauta desconstrutiva dos direitos
retrocesso generalizado, para muitos. sociais e trabalhistas.
Na crise atual do capitalismo globali- Por conta disso, a turbulência política deve
zado, o sistema de exploração se defronta seguir o seu turno, acelerando, possivelmente,
com novas possibilidades de protagonizar a maturação de outra convergência para a eco-
um novo salto no uso e remuneração da nomia e sociedade brasileira. As reações por
classe trabalhadora. A consolidação inédita parte dos trabalhadores têm sido importantes,
do sistema de coordenação centralizada ainda que nem sempre suficientes para barrar o
capitalista, com articulação e integração avanço do receituário neoliberal. s

Referência

1. Polanyi K. A grande transformação. 2. ed. Rio de Ja-


neiro: Campus; 2000.

Recebido em 07/08/2018
Aprovado em 19/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 67-77, NOVEMBRO 2018


78 ENSAIO | ESSAY

América Latina: progressismo, retrocesso e


resistência
Latin America: progressivism, retraction, and resistance

Igor Fuser1

DOI: 10.1590/0103-11042018S307

RESUMO O artigo examinou a crise dos chamados ‘governos progressistas’ latino-americanos


como parte de um processo político regional em que as elites dominantes locais se aliam aos
Estados Unidos em uma ofensiva política para bloquear o acesso de forças de esquerda ao
Poder Executivo em toda a região. Argumenta-se que governos tão díspares quanto os de Lula
no Brasil, de Chávez na Venezuela, de Morales na Bolívia e do casal Kirchner na Argentina,
entre outros, possuem fortes traços em comum, entre os quais: o fortalecimento do papel do
Estado na economia, a ênfase nas políticas sociais e a busca de maior autonomia externa. Esses
projetos se mantiveram por sucessivos mandatos presidenciais e proporcionaram avanços
sociais significativos, mas terminaram por entrar em crise, em um processo atribuído, em
parte, tanto às limitações inerentes a essa opção política quanto às pressões do imperialismo
estadunidense e seus aliados. Ao final, descarta-se a noção de ‘fim de ciclo’ e aponta-se a difi-
culdade de consolidação de projetos liberais-conservadores como alternativa às experiências
progressistas na região.

PALAVRAS-CHAVE América Latina. Política. Governo.

ABSTRACT The article examined the crisis of so-called Latin American ‘progressive govern-
ments’ as part of a regional political process in which the dominant local elites ally with the
United States in a political offensive to block the access of leftist forces to the executive branch
throughout the region. It is argued that governments as disparate as Lula’s in Brazil, Chávez’s
in Venezuela, Morales’s in Bolivia, and the Kirchner couple in Argentina, among others, have
strong features in common, among which: strengthening the role of the state in the economy, the
emphasis on social policies, and the search for greater external autonomy. Those projects con-
tinued through successive presidential mandates and provided significant social advances, but
ended up in crisis, in a process attributed in part both to the limitations inherent to this political
1 Universidade
option and to the pressures of US imperialism and its allies. In the end, the notion of ‘end of cycle’
Federal
do ABC (UFABC) – São is discarded and the difficulty of consolidating liberal-conservative projects as an alternative to
Bernardo do Campo (SP), the progressive experiences in the region is pointed out.
Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-0260- KEYWORDS Latin America. Politics. Government.
4062
igorfuser@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 78-89, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
América Latina: progressismo, retrocesso e resistência 79

Introdução liderada por Mauricio Macri na Argentina, en-


cerrando a sequência de governos ligados ao
A derrubada da presidenta Dilma Rousseff peronismo de esquerda, a América Latina e,
e a perseguição judicial ao ex-presidente Luiz especialmente, a América do Sul destacaram-
Inácio Lula da Silva, marcos políticos do retro- -se no cenário internacional pela presença de
cesso autoritário e elitista em curso no Brasil, um conjunto de governos que desafiaram as
só podem ser entendidos no contexto mais orientações políticas e econômicas emanadas
amplo da ofensiva liberal-conservadora contra no centro do sistema capitalista mundial. Nesse
governos progressistas, personalidades de período, que alguns autores denominam de ‘a
esquerda e movimentos populares em toda a onda rosa’1, a busca de melhoria das condições
América Latina. Na Argentina, a ex-presidente de vida das maiorias desfavorecidas, de maior
Cristina Kirchner também é alvo de uma ten- autonomia no cenário internacional e da re-
tativa de criminalização, com acusações tão tomada de ideais desenvolvimentistas passou
inconsistentes quanto as lançadas contra Lula. a dar a tônica para as políticas públicas e para
Ataques semelhantes são desfechados contra a inserção externa de um grupo de países que
o ex-presidente do Equador, Rafael Correa, e inclui, além dos já citados (Brasil, Argentina,
contra o vice-presidente eleito naquele país Equador e Venezuela), também Uruguai,
em 2016, Jorge Glas, posteriormente desti- Bolívia, Paraguai, Nicarágua e El Salvador, aos
tuído e encarcerado em um processo judicial quais vieram a se somar Cuba – com um regime
com evidentes sinais de parcialidade. Em todos e trajetória histórica muito diferentes – e, em
esses processos, nota-se o protagonismo exer- alguma medida, Chile nos mandatos presiden-
cido por atores políticos que têm em comum a ciais da presidenta Michelle Bachelet2,3.
ligação com os setores sociais e econômicos do- Algumas dessas experiências políticas já
minantes nos respectivos países durante todo foram encerradas, seja pela via eleitoral, seja
o século XX, para não retroceder mais do que por meio de golpes jurídico-parlamentares,
isso no nosso olhar para a história: as camadas enquanto os governos progressistas rema-
superiores do Judiciário, os proprietários das nescentes se veem sob forte assédio dos seus
grandes empresas de comunicação, os acionis- opositores internos e de um poderoso opositor
tas de várias das maiores empresas no âmbito externo, o governo dos EUA. Em todos esses
nacional. Mais do que isso, também se verifica a países, as alianças antiesquerdistas apresentam
sintonia entre esses atores e as posições da po- a mesma configuração social: a elite do Poder
lítica externa dos Estados Unidos da América Judiciário, os grandes grupos empresariais de
(EUA), de distanciamento em relação aos go- mídia, as principais organizações patronais,
vernos frequentemente qualificados no discur- segmentos importantes das classes média e
so político estadunidense como ‘populistas’ e, média-alta (o que garante a presença de ma-
em casos como o da Venezuela, de confronto nifestantes nas ruas em número suficiente
aberto. Claramente, todos os fatos acima men- para dar a esse movimento uma dimensão de
cionados se inserem de um mesmo processo massas) e os religiosos conservadores, tudo isso
político regional, movido pela intenção de en- com o apoio das autoridades e de aparatos pri-
cerrar um período muito específico na história vados estadunidenses.
contemporânea latino-americana. Os métodos de ação são semelhantes:
Durante um intervalo de pouco mais de 15 o uso intensivo do escândalo político, as
anos, entre janeiro de 1999, quando se inau- denúncias sem provas, a desconstrução
gurou na Venezuela o primeiro mandato gradativa da legitimidade do governo pela
presidencial de Hugo Chávez, dando início à exploração midiática de todas as brechas
chamada Revolução Bolivariana, e dezembro possíveis. Não se discutem projetos de
de 2015, data do triunfo da coligação direitista longo alcance ou concepções ideológicas; a

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avaliação dos resultados das ações estatais rara- mas em termos bem diferentes daqueles uti-
mente aparece. A agenda pública é intoxicada lizados pelo pensamento hegemônico. O que
por notícias falsas, rumores, preconceitos, pela está terminando, segundo ele, é
reciclagem dos velhos clichês ideológicos da
Guerra Fria. Na Bolívia, em fevereiro de 2016, um período em que a esquerda ocupa deter-
por ocasião do referendo convocado pelo pre- minados espaços na institucionalidade de-
sidente Evo Morales para decidir sobre sua mocrática burguesa e instala governos com
possibilidade de concorrer a mais um mandato traços bonapartistas, por meio dos quais as
além dos previstos pela Constituição, a mídia forças populares conseguem fazer avançarem
fabricou um escândalo para prejudicá-lo. suas próprias causas. Hoje em dia esse espa-
Atribuiu ao presidente um filho que não existia. ço não existe mais. Mudou a correlação de
Quando, finalmente, ficou claro que tudo não forças que permitiu um Estado bonapartista
passava de uma grande mentira, já era tarde – hoje cada vez menos viável. Existem, é claro,
Morales havia sido derrotado no referendo por diferenças de país para país, uns que avança-
uma pequena margem de votos4. ram mais, outros menos. Mas, como tendên-
A semelhança de métodos e de atores, cia geral, o que se percebe é que a direita e o
a coincidência temporal, a onipresença imperialismo conseguiram reduzir os espaços
dos agentes dos EUA em cada episódio de democráticos que nós tínhamos consegui-
mudança ou tentativa de mudança de orien- do abrir. Já não estão dispostos a se alternar
tação política na América Latina, tudo isso no governo com a esquerda. […] Trata-se de
permite supor a existência de uma ofensi- expulsar a esquerda dos espaços institucio-
va política que se realiza além-fronteiras, nais e, em particular, do Poder Executivo, e de
movida por um conjunto de objetivos liquidá-la. Expulsar, fechar a porta e jogar fora
comuns: a) remover os governos progressis- a chave, para que não regresse nunca mais. É
tas instalados a partir da virada do século; para isso que promovem toda essa campanha
b) deslegitimar aos olhos da população as de criminalização dos nossos líderes5.
lideranças, os partidos políticos e os movi-
mentos sociais associados a esses governos; Diante de uma ofensiva de tal agressivi-
c) blindar as instituições do Estado para dade, impõe-se às correntes democráticas e
impedir o regresso de atores políticos de populares o desafio de preservar os espaços
esquerda ao comando do Poder Executivo políticos conquistados, defender os gover-
e seu acesso a posições de influência efetiva nos progressistas, recuperar os espaços
no Legislativo; d) aplicar de modo irrestrito institucionais e criar condições para novos
e em ritmo acelerado as políticas neoliberais avanços. Para as classes dominantes locais e
em sua versão mais extrema; e) facilitar o para o imperialismo, ao contrário, trata-se de
acesso das empresas estrangeiras ao mercado levar até o fim o projeto de destruição políti-
interno e, especialmente, aos recursos natu- ca da esquerda latino-americana.
rais de cada país; f ) realinhar a diplomacia
latino-americana aos interesses dos EUA.
Uma definição bastante precisa da atual Foco nas políticas sociais
ofensiva direitista é que a fez, em entrevis- e na busca da autonomia
ta ao autor deste artigo, o analista político
cubano Roberto Regalado5. Polemizando
externa
com a interpretação bastante difundida de
que estamos diante do ‘fim do ciclo progres- Para entender o que está em jogo, é neces-
sista’. Regalado admite que presenciamos, sário caracterizar com clareza os governos
sim, o fim de um período histórico na região, aqui denominados como ‘progressistas’.

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América Latina: progressismo, retrocesso e resistência 81

Antes, porém, vale a pena assinalar qual é o salvar um ou outro setor empresarial contra
entendimento adotado sobre dois termos que os azares do mercado). Outro destaque em
perpassam o presente artigo. ‘Progressismo’ todas as gestões progressistas é o esforço
é uma palavra constante no discurso políti- para recuperar o controle estatal sobre os
co das esquerdas desde a primeira metade recursos econômicos naturais, especialmen-
do século XX, no sentido de designar os te o petróleo e o gás. Esses governantes co-
atores políticos favoráveis ao que se costuma locaram em prática políticas sociais de alta
chamar de ‘transformação social’, em con- intensidade, com redistribuição (limitada)
traposição ao conservadorismo e ao eli- da renda, valorização do trabalho e ‘inversão
tismo, geralmente associados às posições das prioridades’, favorecendo os investimen-
da direita6. Refere-se à ideia de ‘progresso tos públicos em saúde, educação, moradia
social’, interpretada como a conquista de e infraestrutura, em benefício das camadas
níveis crescentes de bem-estar para a maioria populares. Em política externa, destacaram-
da população, ampliação dos direitos sociais e -se pela busca de maior autonomia, em uma
igualdade no exercício dos direitos políticos, postura que teve como marco a rejeição, em
desenvolvimento econômico, usufruto das ri- 2005, do projeto estadunidense da Área de
quezas naturais a partir de critérios de sobe- Livre-Comércio das Américas (Alca), enca-
rania nacional. Para o conceito de ‘esquerda’, a rada como uma tentativa de ‘recolonização’.
referência aqui utilizada tem como base a sin- Aproximaram-se das duas potências que riva-
tética definição de Norberto Bobbio, erigida lizam com os EUA na cena global – a China e a
sobre a dicotomia igualdade/desigualdade. Rússia –; e o Brasil chegou a formar com outros
Segundo o filósofo italiano, são ‘de esquerda’ países o Brics, principal referência na busca do
os que encaram a igualdade como um valor multilateralismo no sistema internacional.
primordial, enquanto o campo da ‘direita’ Todos esses países com governos pro-
seria constituído pelos que priorizam a desi- gressistas passaram por longos períodos de
gualdade, valorizada como algo positivo7. forte crescimento econômico. O que se pode
Pontos comuns marcam os objetivos de discutir é em que medida esses bons resul-
todas as gestões governamentais progressis- tados se devem ao contexto global favorável,
tas na América Latina. No plano econômico, graças ao ciclo de altos preços das commo-
busca do crescimento econômico, redução dities agrícolas, minerais e energéticas na
da dependência, ampliação do mercado maior parte da década de 2000, e qual foi o
interno. No plano social, políticas públicas grau de influência da ampliação do mercado
voltadas para a inclusão, redução da pobreza de consumo doméstico. Esses governos con-
e da desigualdade, melhoria geral das con- tabilizam, no plano social, grandes avanços
dições de vida. Tudo isso sem romper com em educação, saúde, moradia, transporte,
as classes dominantes internas nem com o salários, redução da pobreza e da fome –
sistema econômico internacional. uma medida definitiva para avaliar o quanto
As gestões progressistas – tanto nas suas foram vitoriosos. Em contraste com a Europa
versões mais radicais quanto nas mais mode- e com a América do Norte, onde se leva a
radas – compartilham a ideia de que é neces- cabo a sistemática destruição das conquistas
sária uma forte presença estatal na economia e benefícios do ‘Estado do bem-estar social’,
para promover e orientar o desenvolvimento na América Latina, as gestões de esquerda
econômico e social8. Nesse ponto, diferem promovem a ampliação dos direitos dos tra-
totalmente do neoliberalismo, que prioriza o balhadores e, em geral, da maioria desfavore-
mercado e minimiza o setor público (exceto cida. Ao contrário do prognóstico dos céticos
quando se trata de reprimir as classes subal- que previam vida curta para os presidentes
ternas e de recorrer a dinheiro público para oriundos do campo popular, seus projetos

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políticos – com exceção do caso do Paraguai regional como a União das Nações da
– mostraram uma admirável longevidade, América do Sul (Unasul), a Comunidade
com sucessivas reeleições (individuais ou dos Estados da América Latina (Celac) e o
do bloco político no poder, como ocorreu no Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS),
Uruguai), sempre em pleitos limpos e de le- além a ampliação do Mercado Comum do
gitimidade incontestável. Sul (Mercosul), para incluir a Venezuela, a
Os governos progressistas podem ser Bolívia e o Equador – o que se concretizou
classificados em dois campos claramente apenas no primeiro caso.
distintos9. De um lado estão os governos A existência simultânea de vários gover-
orientados por uma perspectiva revolucio- nos de esquerda e de centro-esquerda na
nária ou socialista, agrupados na Aliança América Latina apresenta um significado
Bolivariana para as Américas (Alba), o histórico extraordinário. Em primeiro lugar,
projeto de integração regional impulsionado trata-se de um desafio aberto à hegemonia
pela Venezuela. Esses governos apresentam dos EUA. Durante todo o século XX, desde
uma atuação política marcada pelo confron- a Guerra Hispano-Americana, a América
to com o imperialismo estadunidense e com Latina se destaca como a única região do
as elites domésticas. Enfatizam o protago- globo em que a supremacia estadunidense se
nismo popular no cotidiano da política (ao exerceu de modo uniforme, praticamente de-
menos na retórica) e têm a particularidade simpedida, sem a presença de atores internos
de terem elaborado, no seu período inicial, ou externos com capacidade política para fazer
Constituições chamadas de ‘refundadoras’, frente à preponderância da grande nação do
o que, como a palavra indica, expressa o en- Norte nas esferas política, econômica e cultu-
tendimento de cada uma das três respectivas ral10. A Grã-Bretanha, antiga potência hege-
repúblicas (Venezuela, Bolívia e Equador) mônica, retirou-se gradualmente de cena ao
foram incapazes de proporcionar uma ver- longo do século, acompanhando sua trajetória
dadeira cidadania à maioria da população e de declínio global; a Alemanha nazista fracas-
que, portanto, permaneceram incompletas – sou em seus esforços de conquistar aliados na
daí a necessidade de serem, simbolicamente, região; e a influência da União Soviética perma-
recriadas, como que a partir do zero. neceu restrita à dos partidos comunistas a ela
No outro campo, situam-se dos governos alinhados, em níveis muito modestos, apesar
que podem ser chamados de neodesenvol- da histeria direitista sobre o ‘perigo vermelho’.
vimentistas (Brasil, Uruguai, Argentina, Nesse cenário, Cuba é a exceção que confirma a
Paraguai e, segundo alguns critérios, Chile). regra. Eis que, na contramão do discurso hege-
Suas políticas se estruturam a partir de mônico do ‘fim da história’, em meio ao avanço
alguma ideia de conciliação de classes. Em da globalização neoliberal impulsionada a
política externa, são mais pragmáticos na partir de Washington e de Wall Street, países
relação com as potências ocidentais, em es- latino-americanos que juntos representam a
pecial com os EUA. Em lugar do socialismo, maior parte do território e da população desta
propõem-se a melhorar o sistema vigente. No parte do mundo declaram superada a Doutrina
caso da Argentina, o discurso dos Kirchner Monroe e anunciam a disposição de orientar
propunha a construção de um ‘capitalismo sua conduta internacional com base em crité-
sério’ (partindo do princípio de que o prati- rios de independência e soberania11.
cado por seus antecessores não o era). Igualmente, no plano interno, as elites
Apesar de suas diferenças, ‘refundadores’ dominantes latino-americanas, herdeiras do
e ‘neodesenvolvimentistas’ se apoiam ou colonialismo ibérico e dos regimes de traba-
apoiaram mutuamente em todo o período, lho escravocrata e servil, veem-se em uma
articulando-se em projetos de integração situação inédita em que não mais detêm as

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América Latina: progressismo, retrocesso e resistência 83

rédeas do poder. As novas lideranças insta- Limites e vulnerabilidades


ladas no comando do Executivo expressam, da experiência progressista
claramente, sua ligação com as camadas
subalternas da sociedade, seja pelos vín- Mesmo com os pontos fortes acima men-
culos políticos, seja pela origem étnica ou cionados, os governantes da ‘onda rosa’
social. Lula, um ex-operário, nasceu em uma logo deixaram visíveis vulnerabilidades que
família de retirantes nordestinos. Morales, abriram espaço para a atual ofensiva liberal-
líder dos plantadores de coca da Bolívia, -conservadora. As limitações têm a ver, antes
é filho de indígenas. Semelhantemente, o de tudo, com a própria origem dessas expe-
venezuelano Chávez descende de brancos, riências políticas. Com a única exceção dos
negros e índios; é filho de uma professora socialistas chilenos (melhor seria chamá-los
primária. Mesmo nos casos em que os go- de social-democratas), a chegada da esquer-
vernantes provêm da ‘elite branca’, sua tra- da aos governos ocorre como uma reação
jetória política se vincula a instrumentos de do eleitorado ao fracasso das políticas neo-
representação das demandas populares na liberais da década de 1990 em proporcionar
esfera pública: o partido peronista (Néstor e melhorias econômicas e sociais. Mesmo nos
Cristina Kirchner), a Frente Ampla uruguaia países onde as propostas do Consenso de
(Tabaré Vázquez e Pepe Mujica), o catoli- Washington obtiveram sucesso em conter
cismo popular da Teologia da Libertação (o a hiperinflação, os bons resultados iniciais
presidente deposto do Paraguai, Fernando logo se diluíram diante do cenário sombrio
Lugo), a intelectualidade antioligárquica (o que marcou o final do século XX na região,
economista equatoriano Rafael Correa). com baixos índices de crescimento, desin-
Todos eles foram eleitos em contendas po- dustrialização, aumento do desemprego e da
líticas caracterizadas como expressão de um exclusão social, agravamento das desigual-
conflito social definido a partir da dicotomia dades e desmanche das estruturas de prote-
pobres/ricos. Não por acaso, os presidentes ção social, que já eram precárias.
progressistas obtiveram apoio amplamente As maiorias desprivilegiadas se viram
majoritário nas faixas sociais de renda mais abandonadas à sua própria sorte, sem poder
baixa, em contraste com a rejeição e com contar com o Estado como instrumento de
índices menores de apoio entre os eleitores proteção. A dramática derrubada do pre-
das camadas sociais privilegiadas. Tampouco sidente argentino Fernando de la Rúa, em
é casual a postura hostil que a mídia dominan- dezembro de 2001, simboliza, mais do que
te em todos esses países adotou contra essas qualquer outro evento, o colapso das elites
lideranças e suas respectivas organizações políticas tradicionais, incapazes de atender
partidárias, situadas à esquerda do espectro po- às demandas da sociedade e, em particular,
lítico. Os governos progressistas foram ou são de suas camadas mais pobres. Na maré de
alvos permanentes de campanhas virulentas insatisfação que varreu a América do Sul, os
das elites dominantes locais. Por toda parte, os partidos políticos ligados ao modelo neoli-
atores políticos situados no campo conservador beral foram afastados do poder em todos os
deixaram claro seu inconformismo com o novo países, com exceção da Colômbia e do Chile.
estado de coisas e se mobilizaram para debilitar Uma limitação mais concreta decorre
os governantes de esquerda ou centro-esquer- do fato de que os governos progressistas se
da, seja com o uso sistemático dos meios de constituíram por meio de eleições, ao contrá-
comunicação para apresentá-los de modo ne- rio, por exemplo, do regime cubano, fruto de
gativo, seja com o recurso de meios ilegais para uma revolução armada vitoriosa. Em alguns
afastá-los do poder (com sucesso, em alguns casos, a vitória eleitoral das forças de esquer-
casos, e fracasso, em outros). da na América Latina foi precedida de uma

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sublevação popular, em outros, não. Contudo rígidos às possibilidades de planejamento,


o elemento comum, sempre, é a aceitação dos obrigando os governos a se reger por uma
métodos da democracia representativa, ainda lógica de curto-prazo, imediatista. Para der-
que com a inclusão eventual de elementos da rotar seus adversários em eleições sempre
democracia participativa e, na maioria dos competitivas, algumas delas duríssimas, era
países, com a presença de uma forte dose de necessário oferecer à população sempre be-
personalismo no exercício do poder e o reforço nefícios concretos nos prazos mais curtos
das capacidades do Executivo. Em nenhum possíveis, o que, certamente, inviabilizou
país, os governos progressistas conseguiram projetos de reforma estrutural de maior
superar – nem sequer alterar significativamen- alcance e duração – e que talvez alienassem
te – as estruturas econômicas existentes desde partes da base de apoio eleitoral oficialista.
o período colonial. Permaneceram, todos os Ao comentar o conjunto de políticas sociais
países envolvidos na ‘onda rosa’, a exercer um implementadas por Chávez, Hetland13 afirma
papel subalterno na divisão global do trabalho que a maior parte dos projetos voltados para
– o de exportadores de bens primários e im- redução da pobreza, da desigualdade e da
portadores de mercadorias mais sofisticados, exclusão social era financiada pela empresa
sobretudo produtos industriais12. petrolífera estatal (PDVSA), que, para finan-
Do ponto de vista político, os governos pro- ciar essas ação, foi obrigada a abrir mão de
gressistas, apesar de serem permanentemente boa parte das receitas que originalmente
acusados de ‘autoritários’ pela oposição direi- haviam sido destinadas para investimentos
tista e pelos EUA, pouco avançaram no con- com o objetivo de aumentar sua eficiência e
trole daqueles aparatos que constituem, na introduzir novas tecnologias.
visão dos autores marxistas, os instrumentos Também em referência ao caso da Venezuela,
essenciais para o exercício do poder burguês. Edgardo Lander, uma das vozes mais críticas
A mídia permaneceu nas mãos da classe do- aos governos progressistas em uma perspectiva
minante; e a burocracia do Estado, de modo de esquerda, avalia que a valiosa receita petro-
geral, manteve-se à margem do esforço de leira obtida durante o governo de Chávez re-
transformação da sociedade, adotando, em presentou, ao mesmo tempo, um fator de força
certos casos, uma atitude hostil e, até mesmo, para o processo político naquele país e uma
golpista. Nem sempre os presidentes tiveram limitação para as possibilidades de transforma-
ao seu lado maiorias estáveis no Legislativo ção radical da sociedade:
tampouco, com exceção da Venezuela, foram
capazes de controlar o Judiciário. No curto prazo, a renda petroleira facilitou a
O foco da gestão governamental nas elei- legitimidade e estabilidade política em con-
ções representou, ao mesmo tempo, uma dições extraordinariamente adversas, tornou
vantagem e uma desvantagem para a es- possíveis as missões e demais políticas pú-
querda sul-americana nessa experiência blicas e financiou sucessivas iniciativas inter-
recente. As maiorias eleitorais, sem dúvida, nacionais de alto impacto. Mas isto se faz ao
foram decisivas para conferir legitimidade custo de reforçar a cultura rentista centrada
aos governos progressistas, de tal modo que, no Estado. [...] Esse modelo contribui para re-
mesmo diante dos mais ferozes ataques, forçar um padrão de consumo maciço de hi-
sempre foi possível aos seus defensores res- drocarbonetos que é incompatível tanto com
ponderem: ‘Esse é um governo democrático, a possibilidade de uma alternativa radical ao
eleito livremente pelo povo’. Por outro lado, modelo civilizatório e produtivo hegemônico
a dependência da dinâmica eleitoral, com a da sociedade capitalista, bem como com a
necessidade de ganhar todas, absolutamen- preservação das condições que fazem possí-
te todas as muitas eleições, impôs limites vel a vida no planeta Terra14(66-67).

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América Latina: progressismo, retrocesso e resistência 85

Os governos progressistas falharam todas essas experiências políticas. O papel


também naquilo que o jargão de esquerda decisivo de lideranças carismáticas (Lula,
chama de ‘luta de ideias’. Não houve um Néstor & Cristina Kirchner, Evo Morales,
empenho oficial (ao menos em um nível que Chávez) garantiu a unidade política de um
pudesse ser considerado satisfatório) para amplo leque de grupos, indivíduos, partidos
associar as inegáveis conquistas e avanços e movimentos sociais em torno de projetos
sociais com a orientação política dos gover- audaciosos de transformação17. Ademais,
nantes. A população mais pobre, a grande a confiança de amplos setores da popula-
beneficiária das iniciativas no campo social, ção nos governantes de esquerda sempre
permaneceu em posição passiva, a de recebe- foi inseparável da confiança depositada na
dora dos benefícios, sem participar das deci- pessoa de cada um desses líderes: sem eles,
sões nem se envolver em debates capazes de nada do que ocorreu teria sido possível. Por
proporcionar um grau maior de consciência outro lado, os militantes e dirigentes acaba-
sobre as questões políticas relacionadas com ram por se tornar dependentes de lideranças
esse ou aquele programa governamental. Em literalmente insubstituíveis. Outrossim, o
texto publicado a partir da experiência de processo político de esquerda nesses países
ambos os autores na Bolívia, Paula Klachko foi afetado pelo fato de que esses líderes são
e Katu Arkonada afirmam que humanos – cometem erros, são incapazes de
saber tudo e de estar em todos os lugares ao
Os governos progressistas redistribuíram a mesmo tempo e, de vez em quando, morrem.
riqueza sem politização social [...]. As classes
médias de origem popular não encontraram
alternativa, ao elevar seus níveis de renda e Burguesias locais,
de consumo, além do American way of life, ou protagonistas do retrocesso
cultura do shopping. O ciclo progressista não
conseguiu derrotar a hegemonia do capitalis- A ação intervencionista dos EUA com o
mo no plano cultural, e uma vez que as clas- objetivo de reverter a onda progressista
ses populares alcançam níveis de consumo na América Latina é um fato objetivo, am-
que até pouco tempo atrás pertenciam a ou- plamente comprovado por documentos.
tras classes sociais, acabam interiorizando as Entretanto, o papel do imperialismo não
preferências políticas dessas classes15(301-302). anula o protagonismo das classes dominan-
tes locais nos esforços – bem-sucedidos em
No Brasil, às vésperas da eleição presidencial alguns países; em outros, nem tanto – para
de 2014, uma pesquisa com pessoas de baixa expulsar a esquerda dos espaços conquista-
renda que, indiscutivelmente, melhoraram de dos no poder estatal5. Nenhum país latino-
situação, seja por aumento no salário real, seja -americano foi invadido, como o Iraque ou
pela participação em programas de governo a Líbia. Em todos os casos verificados até
que democratizaram o acesso à universidade, agora, o conflito político em torno da manu-
pediu aos entrevistados que apontassem qual tenção ou remoção dos governos progressis-
foi o fator decisivo para a sua melhoria de vida. tas se apresenta como um conflito interno,
As três principais respostas, pela ordem, foram uma realidade que pode se modificar no
as seguintes: ‘Deus’, ‘minha família’ e ‘meu futuro imediato, a depender dos desdobra-
esforço pessoal’16. mentos da ostensiva ingerência estaduni-
Outro problema diz respeito à burocrati- dense na Venezuela, que envolve até mesmo
zação, ineficiência, despreparo para o exercí- ameaças de intervenção militar proferidas
cio de funções de gestão pública. Há ainda a pelo presidente Donald Trump e por alguns
presença de um forte personalismo em quase de seus auxiliares.

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O que ocorreu no Brasil é bastante ex- Rousseff e surgiram dificuldades econô-


pressivo. O golpe jurídico, midiático e parla- micas ligadas à crise internacional, esses
mentar de 2016 atropelou as ilusões de quem empresários em lugar de darem apoio (aos
acreditava nas virtudes infinitas da política projetos oficiais) foram progressivamen-
de conciliação de classes – a ideia de que te se afastando do governo, como se cada
seria possível superar o apartheid social e o gesto para efetivar o rol de medidas por eles
subdesenvolvimento econômico sem con- mesmos propostos, fizesse crescer o temor
fronto com as elites dominantes, mas apenas do ‘estatismo’, criando desconfiança, avalia
por meio do crescimento da economia. Singer19. Em suma, a burguesia local aceitou
Verificou-se, na prática, uma notável coesão todas as benesses, pressionou (em geral, com
das classes dominantes no golpe contra o sucesso) por vantagens setoriais aqui e ali.
governo legítimo de Dilma Rousseff. Com No entanto, no campo político se limitou, no
a óbvia exceção dos empreiteiros da enge- máximo, a tolerar os governos ‘de esquerda’
nharia pesada, envolvidos judicialmente na como uma extravagância temporária em uma
Operação Lava Jato – que claramente inclui trajetória histórica de cinco séculos de poder
entre os seus objetivos a destruição desse irrestrito da elite dominante. Quando surgiu
setor estratégico da economia nacional, o a oportunidade, agiu em bloco para golpear a
que se viu na mobilização pelo impeachment democracia, conforme assinala a obra coleti-
foi um verdadeiro quem-é-quem da burgue- va publicada pela Fundação Perseu Abramo,
sia brasileira. Lá estavam, unidos ao redor da do PT, em que faz um balanço do golpe de
palavra de ordem ‘fora Dilma’, os banqueiros, 2016: “Cada um dos setores da elite contem-
os barões do agronegócio, os magnatas da plados por políticas no início do governo
mídia, os caciques da indústria brasileira re- Dilma acabou por voltar-se contra ele”16(69).
manescente, lado a lado com agrupamentos Tal conduta não é exclusiva da burguesia
fascistas, os políticos de duvidosas creden- brasileira, mas se reproduz país por país,
ciais éticas e os expoentes de um Judiciário com mínimas variações. Na Argentina, por
dominado pela extrema-direita. exemplo, a vitória eleitoral de Macri foi im-
Na vanguarda, marchava a influente pulsionada por uma aliança que envolve o
Federação das Indústrias do Estado de São amplo leque das classes dominantes daquele
Paulo (Fiesp), justamente a entidade que, país, inclusive os setores que haviam sido
ao longo da história brasileira, desempe- amplamente beneficiados pelas políticas
nhou o papel de principal porta-voz de uma neodesenvolvimentistas dos governos dos
burguesia ‘nacional’ ou ‘interna’. A adesão Kirchner. O golpismo da burguesia pode
maciça do empresariado surpreendeu os ser explicado por sua opção estratégica pela
intelectuais que atribuíam a longevidade associação com o capital externo e pela re-
dos governos liderados pelo Partido dos núncia a qualquer projeto autônomo de de-
Trabalhadores (PT) a uma suposta ‘frente senvolvimento nacional e regional, conforme
neodesenvolvimentista’, formada a partir da analisa19. Após três décadas de um inces-
convergência de interesses entre os traba- sante processo de desnacionalização eco-
lhadores e setores da burguesia supostamen- nômica, as burguesias latino-americanas se
te em ‘contradição’ com o capital externo18. mostram atualmente plenamente dispostas
Esses empresários, na maioria do setor in- a se adaptarem a uma divisão internacional
dustrial, favorecidos com linhas de crédito e do trabalho que relega aos países da região
com todo tipo de apoio oficial, amealharam, o papel de fornecedores de matérias-primas
de fato, lucros fabulosos no ciclo de governos agrícolas e minerais e de serviços energéti-
progressistas no Brasil, especialmente no cos para as economias do centro do sistema
governo Lula. Porém, quando veio o governo capitalista, com a integração subalterna

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América Latina: progressismo, retrocesso e resistência 87

das remanescentes indústrias da região às desde o início da década de 1990, quando se


cadeias produtivas globais. Do ponto de vista colocou em marcha o projeto neoliberal do
desses empresários, já não há um projeto na- Consenso de Washington. Os grandes con-
cional a implementar ou defender. flitos se definem, desde então, ao redor da
Nesse contexto, articula-se o discurso do privatização das empresas estatais ou do seu
‘fim do ciclo progressista’ como um instru- fortalecimento como agentes a serviço do in-
mento retórico funcional à ofensiva política teresse público, da expansão ou da restrição
liberal-conservadora. O viés determinista das políticas sociais e dos serviços prestados
dessa ideia é evidente. Quem aceita que já pelo Estado à sociedade, da inserção subor-
não existem condições para a instalação de dinada no capitalismo global ou da busca de
governos de esquerda e, particularmente, algum tipo de desenvolvimento nacional em
governos com a agenda de reformas sociais e bases soberanas. Essas clivagens se mantêm
soberania política implementada nos países como elemento permanente da nossa época,
da ‘onda rosa’ está condenado a esperar pas- muito além dos resultados circunstanciais
sivamente, com resignação fatalista, por um das eleições, da remoção ou da manutenção
algum momento, em um futuro indefinido, de determinados atores à frente do Executivo.
em que se abram novamente as condições Cabe perguntar, diante disso: qual é o
para um novo ciclo de mudanças sociais. projeto dos direitistas que recuperaram re-
O discurso do ‘fim de ciclo’, ideológico no centemente o controle de alguns governos
pior sentido do termo, apresenta também um nacionais e dos empresários que lhes dão
grave problema lógico. Se o que caracteriza sustentação política? A resposta é simples:
um ciclo político é a existência de uma de- aprofundar o neoliberalismo e a submissão
terminada agenda política, um contexto es- aos EUA e ao capitalismo global. Em síntese,
pecífico e atores políticos definidos a partir uma agenda indefensável socialmente, pro-
desses elementos, quais seriam os tópicos postas ‘impopulares’ que necessitam ser es-
definidores de um novo ciclo pós-progres- condidas durante os embates eleitorais, dado
sista? Para o sociólogo e vice-presidente bo- o repúdio que inevitavelmente geram. Ao
liviano Álvaro García Linera, contrário do que ocorria três décadas atrás,
a ideia da ‘globalização’ já não se mostra
O fim de ciclo constitui o aborto ideológico atraente às multidões de latino-americanos,
dessa teleologia história que pretende fazer portadores de amargas lembranças dos go-
crer que as sociedades se movem sob o im- vernos neoliberais do passado recente. “Não
pulso de leis independentes e por cima das há projeto, o que há são construções do dis-
próprias sociedades, na forma de princípios curso aproveitando as debilidades e erros co-
quase-religiosos que pretendem explicar a metidos pelos governos de esquerda”15(300).
dinâmica do mundo. [...] Ao se colocar o ‘fim De fato, a direita só tem a oferecer às nossas
de ciclo’ como algo inelutável e irreversível se sociedades o agravamento da miséria e da
busca mutilar a práxis humana como motor desagregação social, a concentração ainda
do próprio futuro humano e fonte explicativa maior da riqueza, um cenário tenebroso de
da história, lançando a sociedade à impotên- desemprego, ignorância, violência e caos.
cia de uma contemplação derrotista perante Certamente, o período político que se
acontecimentos que, supostamente, se situ- encerrou na nossa região é outro – aquele
am à margem da própria ação humana20. tempo em que a esquerda ainda conseguia
governar mediante um convívio relativa-
Concretamente, na América Latina do mente pacífico com a burguesia e com o
presente momento, o grande embate político imperialismo; o tempo em que havia alguma
e social em curso é, no essencial, o mesmo margem para a conciliação de classes, para

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88 Fuser I

as mudanças sem confronto nem ruptura. Essa fim de um ‘ciclo’. O tempo passado das mu-
época ficou para trás, como se depreende das danças políticas em clima de ‘paz e amor’
sucessivas incursões do ‘golpismo suave’, do ficou definitivamente para trás; e o desafio
lawfare, da criminalização dos movimentos das esquerdas, agora, é encontrar novos
sociais, da perseguição a políticos, ativistas e in- caminhos para a resistência, nas ruas, nas
telectuais de esquerda, da sabotagem econômi- disputas eleitorais, nos locais de trabalho e
ca doméstica e internacional, das ameaças (por moradia, na luta de ideias e até, na medida do
enquanto, só ameaças) de intervenção militar possível, nos espaços ainda se mostrar possí-
sob o comando e estímulo dos EUA. vel o exercício do governo; porque a história
Nesse sentido, sim, é que só pode falar do não se repete, e nada será como antes.

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90 ENSAIO | ESSAY

Movimentos e mobilizações sociais no Brasil:


de 2013 aos dias atuais
Social movements and mobilizations in Brazil: from 2013 to the
present day

Rudá Guedes Ricci1

DOI: 10.1590/0103-11042018S308

RESUMO Este artigo trata da diferença conceitual entre as mobilizações do século XXI e os
movimentos sociais do século passado, mais perenes e estruturalmente organizados que os
atuais. Analisa o contexto e as características das mobilizações de junho de 2013, a reação
governamental naquele ano e em 2014, o processo eleitoral e a reação de mobilizações de
extrema-direita em 2015 e em 2016. Conclui que a provisoriedade e a relação instável com o
campo institucional tornaram todas as mobilizações desse curto período inacabadas e sem
consequências políticas visíveis em relação às práticas políticas vigentes.

PALAVRAS-CHAVE Participação social. Política. Brasil. Participação da comunidade.


Extremismo.

ABSTRACT This article deals with the conceptual difference between the mobilizations of the 21st
century and the social movements of the last century, which are more perennial and structurally
organized than the present ones. It analyzes the context and characteristics of the mobilizations
of June 2013, the governmental reaction in that year and in 2014, the electoral process and the
reaction of far-right mobilizations in 2015 and 2016. It concludes that the provisional and un-
stable relationship with the institutional field have made all mobilizations of this short period
unfinished and with no visible political consequences regarding current political practices.

KEYWORDS Social participation. Politics. Brazil. Community participation. Extremism.

1 Instituto
Cultiva – Belo
Horizonte (MG), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-3018-
4053
ricciruda@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
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Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 91

Entre movimentos sociais e noção monossêmica, em que as ações coleti-


mobilizações vas eram galvanizadas a partir de pautas que
possuíam um sentido articulador entre seus
O conceito de movimento social é, até o participantes, uma agenda de luta por direi-
momento, muito delimitado. Originalmente, foi tos que cimentaria a unidade interna.
embebido em um estranhamento conservador, No Brasil, sociólogos vinculados ao Centro
expresso pela pena de Lorenz Von Stein, em Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
1840, em relação à emergência do movimento sugeriram que os movimentos sociais que
operário francês e das reações populares ao ressurgiram nos anos 1980 se constituíram a
processo de urbanização que não conseguia ab- partir de um ideário comunitarista anti-ins-
sorver a mão de obra vinda do meio rural. titucionalista que mais significavam instru-
Ao longo do século XX, o conceito passou a mentos de intermediação de interesses que
incorporar uma prática reativa, relativamen- sistemas de representação social. Assim, mo-
te estável e perene, fundada no sentimento bilizavam por direitos dos seus participantes,
de marginalização e em uma multiplicidade opunham-se à ordem institucional vigente,
de carências e demandas específicas. Alguns mas não alteraram estruturas de poder.
autores observaram nessa lógica política Contudo, já nos anos 1990, autores como
por direitos (não observados pelo poder Alberto Melucci3 percebiam algumas mani-
constituído ou por novos direitos ainda não festações de movimentos sociais mais frag-
inscritos em lei) um desenho corporativo ou mentários, gerando forte imprevisibilidade.
até mesmo um tipo novo de clientelismo1,2. Naquela quadra da história social, já se insi-
Teorias norte-americanas oscilaram entre nuavam as formas e meios de comunicação
as escolhas racionais que definiriam ciclos que tinham nas redes sociais suas referên-
de protestos e dissensos que poderiam pro- cias. Algo mais fluido e provisório.
vocar crises políticas e institucionais, ame- Temos, a partir de então, um divisor de
açando provocar anomia. Já os europeus águas sobre os estudos e compreensão sobre
priorizaram a leitura de formação de iden- movimentos sociais. Do conceito monossê-
tidades e cultura política comum. Sempre mico para a polissemia; da estabilidade da
houve alguma dúvida se o fenômeno dos mo- organização e identidade interna dos mo-
vimentos sociais abraçaria a lógica societal vimentos sociais para a provisoriedade e
(de construção de unidade e diálogo entre imprevisibilidade de suas ações; do espírito
desconhecidos e diferentes, em uma espécie coletivo para a manutenção da individuali-
de comunicação dialógica e democrática) dade como elemento de respeito e preser-
ou meramente comunitária (definida por vação das liberdades civis. As mudanças das
identidade entre iguais, com fortes laços afe- estruturas societais, aquelas que definem as
tivos que consolidam a unidade interna em relações em uma sociedade complexa, mais
oposição os diferentes ou expressões sociais racionais e com baixos vínculos afetivos,
externas). Contudo, sempre houve consen- passaram a determinar as alterações nas ca-
so a respeito da sua cristalização e da sua racterísticas das ações sociais.
unidade interna a partir do sentimento de O quadro 1 abaixo sintetiza as mudan-
injustiça e exclusão social. De certa maneira, ças essenciais na lógica das ações sociais
o conceito foi construído a partir dessa de massa:

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Quadro 1. Os comportamentos distintos de mobilizações sociais nos séculos XX e XXI

MOBILIZAÇÕES DO SÉCULO XX MOBILIZAÇÕES DO SÉCULO XXI


Preservação da individualidade Predominância do coletivo
Adesão por convicção e emoção Militância segue orientação da organização
Vincula-se pontualmente a uma ação Vincula-se a um programa ou meta

Como o quadro 1 sugere, vivemos uma do Espírito Santo. As organizações, pro-


alteração importante na lógica comuni- fundamente fragmentadas e dispersas,
cativa e organizacional das mobilizações promoveram a polifonia que desorienta
sociais. Se na segunda metade do século qualquer estrutura organizacional mais
passado havia certa previsibilidade e orga- perene e verticalizada. O historiador
nicidade nas mobilizações que, não tendo Peter Lamborn Wilson, conhecido nas
sua pauta atendida, perpetuavam-se em redes sociais pelo pseudônimo Hakim
movimentos sociais compostos por estru- Bey, chegou a sugerir a configuração de
turas próprias (de formação política de Zonas Autônomas Temporárias (TAZ) –
sua base social, de liderança e comunica- do inglês Temporary Autonomous Zone,
ção, entre outros), no atual século, a lógica cujas características centrais seriam o não
é mais provisória e dinâmica. A estrutura estabelecimento de lideranças fixas, lide-
de organização é lacunar, ou seja, não tem ranças temporárias locais, lideranças des-
todas suas estruturas internas preenchi- centralizadas e ausência de padronização
das (cúpula, corpo administrativo ou de do movimento.
organização interna e militância de base). A figura 1 apresentada em seguida
Não são tão horizontalizados como seu sugere uma estrutura organizacional radi-
marketing sugere, mas utilizam expe- cular e randômica. Um participante desta
dientes de consulta permanente aos seus rede pode se relacionar diretamente com
componentes, quase sempre por meio de vários outros participantes ou comunida-
recursos disponíveis na internet, como des que nem sempre estão conectadas di-
WhatsApp ou instrumentos de comunica- retamente entre si. O participante inicial
ção rápida e de baixo custo, mais afeita à torna-se um pivô das múltiplas relações e
lógica comunitária fechada. conexões sem, contudo, sentir-se obrigado
A provisoriedade foi denominada a estabelecer tais nexos. Nem mesmo sua
por alguns autores de ‘enxameamento’ participação em todas as relações origi-
(swarming, na literatura de língua inglesa), nalmente estabelecidas pode ser mantida
analisado por Fábio Malini4, pesquisador por muito tempo.
de redes sociais da Universidade Federal

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Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 93

Figura 1. A estrutura de relacionamento nas redes sociais

Fonte: Reis5.

Os vínculos estabelecidos são fortuitos e pro- urbanos, criando uma ‘carnavalização política’,
visórios, estabelecendo laços comunitários que forjada em suas alas e paisagem caótica.
muitos autores sugerem ser ‘espelhados’6, ou Essa dinâmica polissêmica se chocou com
seja, definidos por forte identidade de valores, estruturas analíticas racionais e compacta-
crenças ou ideários, criando uma imagem refle- das, definidas por conceitos totalizantes que
tida que exclui a divergência. pouco dialogavam com essa novidade social.
As redes sociais lacunares (estruturas que Para efeito de síntese, é possível sustentar
possuem buracos nos seus vínculos inter- que as mobilizações de 2013 apresentaram,
nos, tal como sugerem os autores de língua ao menos, cinco características essenciais. O
inglesa que empregam o conceito de struc- leitor perceberá que muitas delas parecem se
tural holes, desenvolvido por Ronald Stuart cruzar em uma espécie de desmembramento
Burt7) promovem núcleos de ‘subculturas’ ou ênfase. São elas:
autorreferentes, a provisoriedade e a ação
social por ‘enxameamento’, percebidas niti- Provisoriedade e descontinuidade
damente em junho de 2013.
Assim, temos certa descontinuidade e frag- Esta característica tem relação direta com
mentação de ações que dão sentido aos cartazes a lógica interna dos movimentos, caracteri-
exibidos ao longo das manifestações juninas zada pela entropia, uma desordem organi-
daquele ano que afirmavam que haviam saído zacional causada pelo estabelecimento da
do Facebook®. A observação era límpida ao descentralização dos núcleos de comuni-
desnudar as inúmeras comunidades espelha- cação interna. Não há um comando organi-
das, fechadas em seus ideários e valores, que zacional ou de comando das mobilizações.
se espalharam sobre as ruas de grandes centros Esta característica debela representações

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fixas fundadas em lideranças perenes, estáveis solidariedade mecânica, ao contrário da


ou únicas. As relações com o campo institucio- orgânica, é aquela definida pela identidade
nal são profundamente prejudicadas por esta afetiva entre seus membros. Ocorre em agru-
característica e há exemplos disponíveis em pamentos menores, em que todos se conhe-
profusão. Em 2013, nos meses que se seguiram cem e sua história coletiva define valores que
às mobilizações de junho, alguns governos esta- cimentam a unidade grupal. Por esse motivo,
duais (como o mineiro) procuraram estabelecer não são afeitos à tolerância em relação às
diálogos com comitês temáticos que permane- críticas ou aos valores e opiniões que diver-
ceram atuantes, como foi o caso dos comitês gem dessa identidade comunitária. Em 2013,
de mobilidade urbana ou de educação. As ne- essa solidariedade se revestiu pela noção do
gociações, contudo, revelaram-se infrutíferas ‘comum’, elaboração cara a Antonio Negri.
na medida em que os participantes-ativistas se Em seu livro ‘Multidão: guerra e democracia
recusavam a se apresentar como representan- na era do Império’, Hardt e Negri8 sustentam
tes, gerando um rodízio permanente de pautas a possibilidade de constituição da multidão
e ativistas presentes nas mesas de negociação. como agente político. Propõe Negri9(2):
Em 2018, durante a greve dos caminhoneiros,
situação similar ocorreu ao se estabelecer um Quando falamos de multidão falamos de um
acordo entre dirigentes sindicais da categoria e conjunto, mais do que uma soma, de singu-
governo federal, acordo assinado e fartamente laridade cooperantes. A multidão pode ser
divulgado pelos meios de comunicação que definida como o conjunto de singularidades
se revelou, no dia seguinte, um engodo, dado cooperantes que se apresentam como uma
que os núcleos de caminhoneiros autônomos rede, uma network, um conjunto que define as
espalhados pelo País permaneceram parados, singularidades em suas relações umas com as
dando continuidade ao movimento. As lideran- outras. Este fato levanta problemas e é pre-
ças oficiais se revelaram protocolares e formais. ciso esclarecer que são essas singularidades
Dias depois, um novo acordo colocou fim à que se movem desta maneira e que se colo-
mobilização, embora não tenha contemplado a cam nesta relação. A primeira característica
maioria das demandas da categoria. O governo que aparece vem definida pelo fato de que
federal afirmou que negociou em duas frentes, não estamos aqui diante de individualidade e
com os dirigentes constituídos e a partir de sim diante de singularidades. Individualidade
conversas realizadas em ‘grupos de WhatsApp’. significa algo que está inserido em uma rea-
A paralisação foi se desfazendo lentamente. lidade substancial, algo que tem uma alma,
Mesmo depois de algumas lideranças de base uma consistência, por separação em relação à
decidirem retomar a mobilização em virtude totalidade, em relação ao conjunto. É algo que
do não cumprimento integral do acordo esta- tem uma potência centrípeta. [Na] multidão
belecido, foi impossível retomar a organização [...], vivemos com os outros, a multidão é o
da categoria. A provisoriedade e a descentra- reconhecimento do outro. A singularidade é o
lização são marcas dessa nova forma de fazer homem que vive na relação com o outro, que
política neste século que se inicia. se define na relação com o outro. Sem o outro
ele não existe em si mesmo.
Comunitarismo, auto-organização e
espelhamento A multidão, ao contrário da tradição
conservadora, é apresentada como provida
As comunidades fechadas reforçam o que de certa racionalidade cooperativa, confor-
um dos fundadores da sociologia france- mando uma rede. Algo não necessariamen-
sa, Émile Durkheim, desenvolveu a partir te observado em grandes mobilizações cuja
do conceito de solidariedade mecânica. A característica é a soma de comunidades

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Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 95

autorreferentes, apartadas entre si. Contudo, manifestações que ocorreram em junho na


para Negri9, as singularidades – que o autor capital mineira. Nas reuniões públicas que
distingue de individualidades – se reconhe- ocorriam embaixo de um viaduto no centro
cem, e a multidão ganha um estatuto políti- de Belo Horizonte, havia sempre um co-
co, próximo da noção rousseauniana. ordenador (ou motivador) da assembleia à
Muitos coletivos autonomistas emergi- frente da multidão e outro, empunhando um
ram em 2013 empunhando essa politização microfone, que se misturava ao aglomerado
das ações coletivas de grandes dimensões. de 1,5 mil pessoas. A intenção deste segundo
Foram além e sugeriam a ocupação de era dar voz aos mais tímidos ou aos que não
espaços públicos para construção, in loco, da eram iniciados na lógica dos movimentos
utopia da comunhão em rede. Um projeto organizados que, não raro, invocavam ques-
novo de relações sociais, portanto. tões de ordem e outros códigos empregados
Vale destacara que a definição dos auto- por ativistas mais experientes. A ‘mesa’ que
nomistas não é das mais fáceis, como susten- se postava atrás do ‘coordenador de palco’
ta a antropóloga Alana Moraes10: da assembleia era sorteada entre os presen-
tes, em uma clara oposição à composição a
É difícil definir o que são os movimentos au- partir das principais forças organizadoras do
tonomistas hoje, é uma constelação bastante evento. Evitavam-se desaprovações ostensi-
diversa de pequenos grupos que vêm mistu- vas a propostas rejeitadas pela assembleia,
rando debates sobre formas de organização buscando respeitar as minorias. Enfim, havia
mais horizontais com outros debates sobre uma nítida preocupação em não impor uma
concepção de luta revolucionária, sobre o ordem preestabelecida que pudesse coibir
papel da classe trabalhadora, formas de cons- manifestações individuais ou mesmo de mi-
cientização, trabalho de base, tática etc. Po- norias ali presentes.
dem misturar, por exemplo, como influências
de forma de organização o zapatismo, mas, do Individualismo
ponto de vista da relação com a classe traba-
lhadora, apostar em estratégias de ‘proletari- No final dos anos 1960, Licklider e Taylor11
zação’ de seus militantes, como os trotskistas já haviam sugerido que as novas tecnologias
faziam aqui na década de 1970 nas fábricas. criavam uma visão da sociedade totalmente
focada na realização dos indivíduos. As opções
O autonomismo foi uma referência re- individuais se ampliam a partir da possibili-
corrente de lideranças de junho de 2013 dade de escolha quanto à qual comunidade
que, muitas vezes, cruzava-se com princí- deseja pertencer. Logo em seguida, Richard
pios e teses anarquistas. A noção de coletivo Sennett12 publica um instigante ensaio sobre
(pequeno agrupamento de natureza comu- a emergência de um profundo ressentimen-
nitária e libertária) e de horizontalidade (de to social a respeito de qualquer autoridade
caráter assembleístico, sem lideranças fixas) pública, o que propicia um fechamento es-
passaram a orientar as formas organizativas pontâneo dos indivíduos em seus círculos
naquele período. Estruturas totalizantes e mais íntimos e comunidades fechadas, pre-
verticais, com nítida intenção integrador, servando seus valores em uma sociedade que
foram refutadas. Até mesmo as formas de se apresenta promíscua e recheada de privilé-
decisão coletiva nas assembleias que ocor- gios para quem ascende socialmente.
riam nas ruas de grandes centros urbanos A marca do hiperindividualismo que passa
no período foram inovadoras e seguiram a determinar escolhas fragmenta a socieda-
tais orientações. Esse é o caso da Assembleia de em necessidades e interesses múltiplos,
Popular Horizontal, realizada durante as em detrimento de valores universais e até

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mesmo da noção de direitos. É a demanda decisões coletivas que se expressa nas mo-
instantânea que passa a ser valorizada e a bilizações de massa no início do século XXI
motivar ações grupais ou associativismos dialoguem com a lógica comunitária que as
em pequena escala. Tal situação engendra, redes sociais possibilitam. Horizontalidade
em muitos casos, o advento do ‘pensamento que preserva as individualidades, as escolhas
mágico’, a exigência pessoal que sua vontade pessoais e até mesmo a mobilidade descom-
deve ser respeitada ou cumprida instantane- promissada dos participantes das diversas
amente como determinação legítima. Todas comunidades virtuais. Algo que remete à au-
as organizações ou os instrumentos de repre- torregulação e à autopreservação.
sentação social de amplo espectro passam a
ser objeto de profunda desconfiança social. Anti-institucionalismo e cultura
Este é o momento da organização social antissistêmica
em forma de mosaico, estilhaçada em inúme-
ros interesses semiautônomos que se apre- Finalmente, a cultura antissistêmica,
sentam com linguagem e valores específicos fundada na desconfiança em relação às
em que os aspectos antropológicos (culturais grandes estruturas organizativas e regras
e fundado em histórias grupais) valorizam as universais de comportamento que suposta-
pequenas narrativas comunitárias e comuns. mente inibiriam a liberdade individual.
O anti-institucionalismo, vale recordar,
Horizontalidade já se expressava nos anos 1980 por meio
dos Novos Movimentos Sociais (NMS) que
Jean-Pierre Dupuy13 percebeu na lógica ci- emergem na Europa Latina e no Brasil,
bernética processos ‘sem sujeitos’, marcada campo de estudos da sociologia europeia
por uma ‘ordem espontânea’. Na prática, e brasileira nos anos 1980 e parte dos 1990.
sustentava que se constituía uma socieda- Naquela quadra, já se disseminava a valori-
de sem hierarquias ou regras gerais com zação entre iguais contra as estruturas de
forte ausência de controle de conjunto ou poder vigentes, compreendidas como estru-
estabelecimento de uma ordem geral. A turas de preservação de poder das elites. Aos
auto-organização, na percepção desse autor, ‘de baixo’, expressão que será recuperada nas
parecia mais programada pelo mercado ou mobilizações de massa da Europa deste início
por forças externas imperceptíveis14. de século XXI (em especial, na Espanha após
A compreensão da lógica cibernética e as grandes mobilizações de 2011), caberia a
das redes sociais, dos anos 1960 aos dias auto-organização e a construção da identi-
atuais, sempre variou entre a percepção de dade pela diferença, procurando impor suas
um total controle externo sobre as ações de demandas mediante uma permanente or-
seus participantes e a sua auto-organização. ganização da base excluída social, política e
Patrice Flichy, em um ensaio de 2001, desta- economicamente, no que se denominou de
cou os princípios estabelecidos por univer- ‘mobilismo’. Aqui já se valorizavam as formas
sidades norte-americanas que colaboraram de democracia direta na tomada de decisões
para o esforço de construção da internet: entre participantes de movimentos sociais, a
comunidade de iguais em que o estatuto e desconfiança em relação às lideranças sociais
os argumentos de autoridade são minimiza- com pouca presença nas organizações de base
dos; colaboração e trabalho em equipe; e um e a rejeição às práticas e terminologias muito
mundo à parte, funcionando de acordo com técnicas ou rebuscadas.
regras particulares14. O anti-institucionalismo gerou, nos anos
É possível depreender que parte do dis- 1980, grande rejeição às negociações e par-
curso da horizontalidade na tomada de ticipações em fóruns institucionalizados,

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Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 97

tema explorado em muitos estudos especia- 4) No Rio Grande do Sul, nada de ‘abertura
lizados1. Contudo, na medida em que houve das planilhas’ do transporte metropolitano
convergência entre movimentos sociais, es- e análise para detectar ‘gorduras’ nos custos
truturas sindicais e a construção de novos do sistema.
partidos políticos, o campo institucional foi
gradualmente sendo ocupado por eleições 5) Em Minas Gerais, nenhum estudo para
de representações delegadas – aquelas em tratar de soluções para a integração ta-
que o representante possui um viés nitida- rifária da região metropolitana de Belo
mente corporativo, representando exclusi- Horizonte.
vamente a base social que o elegeu –, algo
que não se repetiu neste início de século 6) Na Bahia, a Prefeitura de Salvador não
XXI. Ao contrário, a rejeição ao campo ins- detalhou a planilha de gastos de cada uma
titucional foi ainda mais forte, e o valor po- das empresas de ônibus.
lítico da horizontalidade e desconfiança em
relação às lideranças impediu qualquer ne- 7) Também nesse estado, a Assembleia não
gociação com a esfera institucional pública aprovou a PEC, vetando a reeleição do pre-
que fosse estável ou duradoura. As mobiliza- sidente da Casa no mesmo exercício.
ções eram valores em si, ‘utopias realizadas
no presente’, projetos imediatos de tomada 8) No Amazonas, nada de implantação de
dos espaços públicos fundados em profundo zona azul e da comissão para investigar as
desprezo às instâncias formais e institucio- empresas de ônibus.
nalizadas das práticas sociais e políticas.
Um ano após as manifestações de 2013, 9) No Ceará, gaveta para a promessa de
os jornalistas Estelita Carazai e João Pedro plebiscito para aprovar obras polêmicas do
Pitombo15 analisaram a efetividade dos governo.
acordos firmados entre manifestantes e go-
vernos municipais e estaduais. Apenas as 10) Ainda nesse estado, a Câmara Municipal
propostas de curto prazo haviam sido cum- não criou o Conselho de Ética da Casa.
pridas, como a redução das tarifas de ônibus
e descontos para estudantes. O levantamento Esse cenário desolador é similar a quase
que os dois jornalistas realizaram revelou, totalidade de manifestações de mesmo tipo
entre outras situações, que: que se espraiaram no mundo desde o início
do século XXI. Como já expressei no livro
1) Em Pernambuco, a Câmara do Recife não que escrevi sobre as manifestações de massas
realizou concurso público para a redução no início deste século:
dos comissionados.
Com exceção da experiência argentina, todas
2) Ainda nesse estado, a Assembleia que se seguiram tiveram nas redes sociais um
Legislativa enterrou as discussões sobre forte mecanismo de comunicação e convo-
voto aberto e sobre a implementação da lei cação de ações sociais, além de se adequar
de acesso à informação. aos valores políticos de horizontalidade e au-
sência de liderança que todos os protestos de
3) No Paraná, a divulgação mensal dos massa sustentaram. [...]
índices de qualidade dos ônibus e da tarifa Há, contudo, uma diferença nítida da pauta
mais barata fora do horário de pico ainda e evolução das ações políticas das experi-
seguiam na gaveta. ências europeias (Espanha e Islândia) e dos
EUA em relação às demais. Nelas, o conteúdo

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anticapitalista e confronto ao vínculo das ter sido uma revolução (a tese foi explicita-
estruturas políticas com os conglomerados da no livro de Boris Fausto17, ex-militante
empresariais deram consistência ideológica do Partido Comunista Brasileiro) e as teses
desde o início. Na América Latina e Ásia, as da nova historiografia brasileira que sugeria
mobilizações de massa foram, muitas vezes, uma disputa entre frações da classe domi-
personalizadas na figura de uma ou outra auto- nante e não propriamente uma revolução18.
ridade pública ou tiveram uma pauta extensa e Da mesma maneira, a interpretação sobre
difusa, muitas vezes negando o campo institu- 2013 se tornou um campo de disputa política.
cional como campo de disputa. Do campo lulista, advém a tese que se tratava
Todas as experiências, contudo, não foram de uma manifestação estimulada por interes-
estáveis e não apontaram alternativas na ses de extrema-direita ou que tais interesses se
estrutura de poder, muito menos no aparato insinuaram sobre as mobilizações que inicial-
institucional de representação e práticas polí- mente pareciam espontâneas. Esse ano teria
ticas. Em todos os casos, o sistema político e aberto uma temporada de ataques às forças de
as elites governantes se mantiveram no poder esquerda do País, desencadeando uma escalada
ou retornaram após um surto catártico das de discursos e mobilizações de caráter fascista.
manifestações de rua. [...] Na outra ponta das análises, temos autores
Em outras palavras, a cultura antiinstituciona- que sustentam que não haveria correspondên-
lista se reproduziu e agregou muitos adeptos. cia entre 2013 e as mobilizações nitidamente de
Mas o que agregou, pela declarada intenção direita que se insurgiram a partir de 2015.
de não liderar ninguém e permitir que todas Com efeito, embora blocos de manifestan-
as vozes tivessem o mesmo peso político, es- tes de direita estivessem presentes nas mobi-
tagnou seu desenvolvimento político-organi- lizações de São Paulo e de Brasília, na maioria
zativo. Como se o lugar deste discurso fosse, dos casos, as manifestações de 2013 tiveram
até o momento, a própria catarse popular, a nítido perfil de esquerda. Em algumas lo-
explosão emocional sem finalidade objetiva, calidades, como em Belo Horizonte, foram
sem conclusão política. adotadas, inclusive, palavras de ordem que
A insatisfação continua latente. Mas as expe- expressavam esta postura (como a palavra de
riências organizativas não passaram de expe- ordem surgida na primeira assembleia aberta
rimentações iniciais16(11-12). das manifestações, preparatória de uma das
concentrações: ‘somos todos de esquerda’).
No Rio de Janeiro e em Porto Alegre, os co-
letivos anarquistas (as duas capitais acolhem
O interregno de 2014 e a as duas maiores federações anarquistas do
avalanche reacionária de País) e autonomistas protagonizaram as
ações de rua. A própria tática Black Bloc19,
2015 e 2016 de origem anarquista, foi fartamente empre-
gada e explorada pela grande imprensa em
Desde 2013, o Brasil mergulhou em uma editoriais que atacavam sem trégua as mani-
disputa de interpretações sobre o legado e festações daquele período.
intencionalidade das mobilizações daquele Uma leitura mais atenta do desenrolar da
ano – uma disputa ideológica e partidária. reação governamental a partir de julho de
Não se trata de uma novidade no Brasil: 2013 indica uma rápida desmontagem das
nos anos 1980, a interpretação sociológica ações dos manifestantes de junho.
e histórica sobre a ascensão do varguismo A primeira reação do governo federal foi,
foi palco de um encarniçado embate teórico já no final das manifestações, em 24 de junho,
entre a versão de historiadores que sugeriam durante uma reunião realizada no Palácio do

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Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 99

Planalto, envolvendo 27 governadores e 26 treinamento de forças de repressão estaduais


prefeitos de capitais convidados. Naquela e federais nos Estados Unidos22. Foram trei-
oportunidade, o governo federal apresen- nados 22 agentes e policiais militares para
tou a proposta de pacto nacional lastreado desenvolverem atividades ‘antiterroristas’. O
em cinco eixos temáticos: responsabilidade curso foi ministrado pela Blackwater Personal
fiscal, reforma política, saúde, transporte e edu- Security Detail, hoje Academi, uma organi-
cação. A polêmica maior se concentrou no eixo zação ‘terceirizada’ de mercenários, que é
reforma política, tendo como carro-chefe a conhecida, justamente, por ter auxiliado os
convocação de um plebiscito para decidir sobre Estados Unidos, em vários países do mundo,
a convocação de um processo constituinte es- em atividades de terrorismo de Estado, com
pecífico destinado a fazer a reforma política. denúncias de ataques a civis, como no caso
No mesmo período, a Presidente Dilma de um tiroteio descontrolado contra uma
Rousseff convocou uma reunião com li- multidão desarmada de civis iraquianos, que
deranças sociais nacionais de todo o País, deixou um saldo de 17 mortos e dezenas de
também realizada no Palácio do Planalto. feridos, na Praça Nisour, em Bagdá.
Nessa reunião, diversas lideranças convoca- O segundo movimento foi o da publicação
das manifestaram estranheza por não terem do ‘Manual de garantia da lei e da ordem’
sido requisitadas antes e por não estarem que, em determinado momento, sugere
envolvidos nas manifestações de junho. As acompanhamento e repressão a movimentos
propostas governamentais não vingaram. sociais, embora em seu início destaque ações
Em outubro de 2013, a estratégia gover- contra atos terroristas23.
namental se alterou. O então ministro da A guinada repressiva do governo ganha
Justiça, José Eduardo Cardozo, convocou robustez após a morte de um cinegrafista
os secretários de Segurança Pública de São da Band News, em 6 de fevereiro de 2014.
Paulo e do Rio de Janeiro para discutir ações O cinegrafista Santiago Andrade foi atin-
conjuntas a fim de evitar o que qualificou gido por um rojão que teria sido disparado
como atos de vandalismo em manifestações por manifestantes, durante protestos contra
públicas. O ministro sustentou: a Copa de Futebol realizada na Central do
Brasil, no Rio de Janeiro. Dois manifestantes
Discutiremos medidas de segurança públi- foram acusados e presos. A reação da grande
ca que devem ser tomadas para evitar esses imprensa foi imediata, procurando vincular
atos. O que não significa que devamos repri- o incidente com as práticas Black Bloc que
mir a liberdade de expressão20. se projetaram a partir do final das manifesta-
ções de junho de 2013.
O temor de que as manifestações se alas- O ano 2014 teve início com os ânimos
trassem pelo País e acabassem por conta- exacerbados. Logo no primeiro mês do ano,
minar a realização da Copa do Mundo de os rolezinhos, encontros fortuitos de pré-
Futebol que se realizaria em meados de 2014, -adolescentes e adolescentes residentes em
assim como o processo eleitoral que reele- periferias de grandes centros urbanos, pas-
geria Dilma Rousseff, fez o governo federal saram a ser percebidos por parte da grande
apertar o cerco aos manifestantes de junho. imprensa e setores mais abastados da socie-
Em fevereiro de 2014, uma nova reunião dade como perigos iminentes.
convocada pelo ministro da Justiça envolve- Os rolezinhos foram mais um fenômeno
ria todos os secretários de segurança das 12 passageiro no período e, de certa maneira,
cidades-sede da Copa de Futebol21. revelaram novos personagens sociais oriun-
Antes, contudo, duas ações preparam dos das mudanças recentes pelas quais
o terreno para a ofensiva. A primeira, o passou o Brasil. Residentes das periferias,

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adolescentes de baixa renda e, em sua muitos deles tiveram buscas e apreensões


maioria, negros acessavam as redes sociais, em suas casas, onde policiais recolhiam com-
em especial o Facebook® (que, na época, putadores e celulares que configurassem a
acolhia 58 milhões de brasileiros ativos, articulação dos atos considerados abusivos
sendo os adolescentes e jovens o principal ou criminosos. Em São Paulo, a Polícia Militar
público), para estabelecer conexões entre si, chegou a empregar bombas de gás lacrimogê-
tendo como único objetivo a diversão. Desde neo e efeito moral, além de balas de borracha,
o seu início, houve relação com o funk. Em contra um grupo de aproximadamente mil
São Paulo, funkeiros passaram a utilizar pessoas que se reuniram para um rolezinho
essas conexões a partir de suas páginas no no Shopping Itaquera, na zona leste da cidade.
Facebook®, procurando incentivar reação Tal expediente repressivo e de inibição
a um projeto de lei que proibia bailes nas de atos infanto-juvenis se espraiou pelo País
ruas da capital paulista. Rapidamente evo- naquele início de 2014 em uma escalada que
luíram para um tipo de organização social atingiu seu ápice durante a realização da
fechada, comunitária, em que um jovem Copa do Mundo de Futebol.
agregava seguidores nas suas páginas e, em A ação repressiva estatal era estimulada
troca, divulgava fotos, vídeos e elogios a eles. por manchetes agressivas contra o descon-
Em seguida, a multidão que foi se forman- trole e contra a violência desencadeada pelas
do ao redor dessas páginas (houve registros práticas Black Bloc, que se somaram à reação
de mais de 100 mil seguidores em diversas de segmentos da classe média do centro-sul
páginas) passou a se concentrar em encon- do País contra o abuso e contra a invasão de
tros nos shoppings centers instalados nas pe- camadas pobres da sociedade em ambientes
riferias dos grandes centros urbanos. Nesses até então de uso exclusivo das classes mais
encontros presenciais, seguidores dos abastadas brasileiras, como shoppings centers,
‘líderes’ (como eram nomeados os proprietá- aeroportos, restaurantes e concessionárias de
rios das páginas mais seguidas no Facebook®) venda de veículos domésticos. As reações dis-
os presenteavam com CDs, camisetas e bonés, seminadas nas redes sociais foram intensas e
o que estimulou uma disputa entre ‘líderes’ rapidamente evoluíram para ataques pessoais,
para capturar mais seguidores. Os encontros muitas vezes racistas25.
presenciais se tornaram grandes eventos que Não havia, contudo, nenhuma reação
arrastaram multidões juvenis aos shoppings, organizada ou agrupamentos de extrema-
multidões que entoavam as letras agressivas -direita liderando ou motivando tais reações.
e erotizadas do funk. Expunha-se o que mais O que tínhamos, até então, era um caldo de
tarde seria conhecido como o ‘funk ostentação’, cultura forjado na intolerância de classe que
baseado no aumento de consumo de marcas de se expunha publicamente.
grife e superexposição de seus expoentes. Durante a Copa do Mundo de Futebol, a
Muitas direções de shoppings centers reagi- ação repressiva foi intensificada. Em muitas
ram de maneira negativa, procurando respaldo capitais, as mobilizações contra o evento
judicial para fazer a triagem de clientes. Vários esportivo – coordenadas pelos Comitês da
centros comerciais empregaram força policial Copa organizados nas 12 cidades-sede dos
ou fecharam suas portas para impedir o afluxo jogos – foram muito menores que as reali-
das multidões adolescentes. zadas no ano anterior, durante a Copa das
A reação exagerada repercutiu e motivou Confederações. Mesmo assim, a reação re-
a convocação de rolezinhos país afora, no pressiva foi muito mais agressiva.
nordeste, sudeste e sul do Brasil24. Em diversas localidades, as Polícias
Muitas decisões judiciais impuseram Militares empregaram o ‘Caldeirão de
multas vultosas aos líderes de rolezinhos e Hamburgo’ como instrumento de intimidação

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Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 101

e cerco aos manifestantes. Essa tática surgiu que iniciava um esboço de organização e ação
em 1986, quando policiais da cidade alemã coletiva recuou. O segundo semestre de 2014
cercaram por 13 horas 800 pessoas que pro- foi totalmente dedicado às eleições. Eleições
testavam, deixando-as sem comida e água. que se revelariam as mais agressivas do
Tempos depois, esse expediente foi proibido período que sucedeu o regime militar.
na Alemanha. Durante a Copa do Mundo,
contudo, foi recorrentemente empregado,
cercando manifestantes ao redor de praças As eleições de 2014
ou mesmo quarteirões, diminuindo espaços e a emergência das
de locomoção. Em Belo Horizonte26, após o
cerco, a repressão policial liberava lentamen-
organizações de extrema-
te os manifestantes, um a um, e não raro os direita
perseguia quarteirões adiante27.
A soma da repressão policial e a reação de As manifestações de junho de 2013 provo-
camadas médias da sociedade e da grande caram queda da intenção de voto de Dilma
imprensa inibiram os manifestantes de 2013 Rousseff, que despencou entre março e
e 2014. Não houve, ao contrário de certa junho, só se recuperando levemente no
interpretação sobre o desenrolar dos acon- segundo semestre daquele ano, como de-
tecimentos no período, nenhuma reação or- monstra figura 2 da sequência de pesquisas
ganizada da extrema-direita. produzidas pelo Datafolha:
Esfacelada e perseguida, a liderança jovem

Figura 2. Intenção de voto para presidente em 2014

Dilma Marina Aécio Eduardo Campos

58
54
51

35
30

23 26

18 16 16
13
12 17
14
10 8
4 6 6 7

13 Dez 20/21 6/7 27/28 7/9


2012 Março 2013 Junho Junho Agosto

Fonte: Reis5.

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102 Ricci RG

Durante o primeiro turno, a candidatura para, então, começar uma constante queda,
de Marina Silva chegou a emparelhar com a até trocar de posição com Aécio Neves, já no
candidatura de Dilma Rousseff em setembro mês de outubro, conforme figura 3.

Figura 3. Intenção de voto para presidente

Dilma Marina Aécio

45% 45% 45% 44%


42%

35%

31%
28% 27%
26%
24%
24%
22%
19% 21%

19 Set 26 Set 30 Set 02 Out 04 Out

Fonte: Reis5.

A queda de intenção de votos em Marina do eleitorado não cativo. A agressividade


Silva foi produto de uma intensa campanha empregada gerou uma reação em escala
de desconstrução de sua imagem, fenômeno dos adversários, que passaram a assumir,
que se repetiria no segundo turno em relação durante e após o processo eleitoral, revolta
à candidatura de Aécio Neves, desta feita e indignação. Esse foi o movimento que pro-
acusado de agressor de mulheres. A intenção moveu a aproximação de algumas lideran-
da campanha adversária era a de comover o ças de oposição ao lulismo (em especial, do
eleitorado feminino que, naquele momento, Partido da Social Democracia Brasileira e de
era responsável pelo maior contingente de in- outras agremiações aliadas) às organizações
decisos. Uma pesquisa interna realizada pela juvenis de extrema-direita que começavam a
campanha de Dilma Rousseff teria revelado se estruturar. Ao final do segundo turno, já
que parte significativa desse contingente fe- se contabilizavam quinze mil jovens arre-
minino de indecisos teria casos de violência gimentados em comunidades formadas nas
intrafamiliar na infância ou na vida adulta. redes sociais que apoiavam abertamente a
A campanha agressiva passou a atingir candidatura de Aécio Neves e se opunham
o perfil e biografia dos adversários, em ferrenhamente ao governo Dilma Rousseff e
uma nítida tentativa de reduzir a empatia ao lulismo. Começava a organização, de fato,

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Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 103

de uma parcela da juventude que se afirmava propaga concepções de direita e propostas


como de direita28,29. programáticas ultraliberais, bem como recebe
Em 2014, foi fundado o Movimento Brasil recursos de fundações, corporações e doações
Livre (MBL), que protagonizaria, nos anos individuais. Entre seus patrocinadores, estão os
seguintes, uma ofensiva de direita tendo como irmãos Koch, empresários do setor de petróleo e
primeiro objetivo a deposição do governo gás. No Brasil, ela mantém 12 parcerias, algumas
Dilma Rousseff. Matérias divulgadas na grande vinculadas à organização estudantil Estudiantes
imprensa nacional indicaram o financiamen- por la Libertad, ramificação da Studentes For
to dessa organização de direita por partidos Liberty, que, no País, possui como afiliadas a
políticos. O portal UOL foi um dos veículos Estudantes Pela Liberdade (em Belo Horizonte)
que divulgaram esses vínculos. Em matéria e Students For Liberty Brasil (em São Paulo)32.
intitulada ‘Áudios mostram que partidos fi- O MBL se vinculou direta e indiretamente
nanciaram MBL em atos pró-impeachment’, a essas organizações por intermédio da Red
publicada em 27 de maio de 2016, o portal de Liberal de América Latina (Relial), criada em
notícias informava que30: 2004. Seu vice-presidente é Ricardo Gomes,
também membro do Conselho Deliberativo do
O MBL (Movimento Brasil Livre), entidade ci- Instituto de Estudos Empresariais do Rio de
vil criada em 2014 para combater a corrupção Janeiro. A autora revela que o MBL e o Instituto
e lutar pelo impeachment da presidente Dilma Millenium apareciam em uma listagem de par-
Rousseff (PT), recebeu apoio financeiro, como ceiros dessas organizações, listagem de 201633.
impressão de panfletos e uso de carros de som, Não há, portanto, nenhum registro de es-
de partidos políticos como o PMDB e o Soli- trutura organizativa articulada nacionalmen-
dariedade. Quando fundado, o movimento se te antes de 2014. Muito menos coletivos ou
definia como apartidário e sem ligações finan- organizações de extrema-direita com fluxo de
ceiras com siglas políticas. financiamento de partidos políticos ou redes
internacionais como as identificadas com
Repercutindo esta matéria, a revista forte atuação a partir de 2014 e 2015.
‘Exame’31 sustentou o envolvimento do Teríamos, na verdade, um desencontro de
Partido da Social Democracia Brasileira narrativas sobre um processo político-social
(PSDB), Democratas (DEM) e Partido do que colocou em xeque as estruturas de repre-
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB): sentação hegemônicas do século XX: estruturas
verticais, de organização duradoura, com forte
Em áudios, um dos coordenadores do MBL, Re- coesão interna e focadas em programas ou direi-
nan Antônio Ferreira dos Santos, e o secretário tos objetivados em pautas definidas entre seus
da Mobilização da Juventude do PSDB do Rio membros. É deste desencontro que se trata o
de Janeiro, Ygor Oliveira, confirmam a ajuda do período que vai de 2013 a 2017.
PSDB, DEM e PMDB para realizar os protestos
do dia 13 de março deste ano.
O desencontro de narrativas
Pesquisa realizada por Kátia Gerab Baggio e formas de organização
demonstrou vínculos de várias organizações
estudantis e juvenis (entre elas, o MBL) com
social
redes de organizações de direita lideradas
pela Atlas Network32. Esta organização, que A tese central que estou propondo neste
possui 484 parceiros em 92 países, é uma think texto é que 2013 promoveu uma ruptura com
tank norte-americana, cuja sede está situada modelos organizativos tipicamente modernos
em Washington, D.C. Fundada em 1981, ela e que foram hegemônicos em nosso país ao

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longo do século XX. Estruturas ‘totais e to- e mobilizações de rua. Ao contrário, entre
talizantes’, que abarcavam seus afiliados em 2016 e 2017, várias ações das organizações
um feixe estruturado em representações de- clássicas de esquerda (partidos, sindicatos e
legadas, em estruturas administrativas inter- alguns movimentos sociais) lideraram atos e
nas e em processos decisórios definidos em manifestações gigantes que culminaram com
regras relativamente perenes que garantiam a greve geral de 28 de abril de 2017, conside-
uma forte unidade e identidade coletiva. rada a maior greve dessa natureza realizada
Em 2013, essa lógica organizativa foi con- em nosso país. A despeito desse feito, a partir
testada por manifestações de massa que su- do segundo semestre daquele ano, a mobili-
geriram, em três semanas, uma ‘manifestação zação de esquerda perdeu força, assim como
mosaico’, estilhaçada em múltiplas deman- as mobilizações de extrema-direita que rei-
das e estruturas minimalistas autodenomi- vindicavam a intervenção militar.
nadas de coletivos. Os processos decisórios O Brasil retornou à prostração social do
foram todos assembleísticos, fundados em período anterior a 2013. Agora, contudo, com
mecanismos de democracia direta, em que o as estruturas de representação esfaceladas e
respeito à individualidade e às minorias foi a em profunda crise.
tônica do início ao fim. Mergulhados na maior rejeição popular
A resposta do governo federal às mobili- da história recente do Brasil, o Congresso
zações de 2013 foi errática. Começou apre- Nacional e o governo federal impuseram,
sentando uma proposta de atendimento até meados de 2017, reformas que desestabi-
do que considerava o fulcro das demandas lizaram ainda mais várias das organizações
apresentadas nas ruas para, logo em seguida, sociais oriundas do período de redemocra-
passar a perseguir e a desmontar a fluida e tização do País. Este foi o caso da reforma
ainda tênue novidade organizativa que havia trabalhista que, após sua aprovação, mer-
surgido no final do primeiro semestre. A gulhou as estruturas sindicais em uma crise
perseguição prosseguiu ao longo do segundo de financiamento, com as centrais sindicais
semestre de 2013 e foi ainda mais intensa no perdendo mais de 80% de sua receita no
primeiro semestre de 2014, quando o Brasil final do primeiro semestre de 2018. A partir
sediou a Copa do Mundo de Futebol. de então, o governo federal não conseguiu
Contudo, as manifestações haviam criado liderar forças políticas para emplacar mais
várias fissuras, tanto na popularidade do reformas, tendo a reforma da previdência
governo federal, herdeiro formal dos popu- social como sua maior ambição.
lares governos Lula, quanto no método de Como se percebe, houve um confronto
organização social que emergiu nos anos de modelos de representação e organiza-
1980, durante o processo de redemocratiza- ção (e até mesmo de ocupação dos espaços
ção do País, e que deitou raízes na política públicos e validade do campo institucional)
nacional nos anos seguintes. que se chocaram em 2013 e em 2014 e que
Foi, portanto, uma ruptura de narrativas acabou por abrir uma brecha – pela crise de
políticas e sociais. Este parece ter sido o pano representação que se instalou – às forças de
de fundo desse intenso período político. direita e extrema-direita. Brecha aberta pelo
Essa hipótese explicativa auxilia na com- desencanto com os modelos políticos vigen-
preensão dos motivos para emergir uma forte tes que afetou, em um primeiro momento, o
mobilização de extrema-direita em nosso governo Dilma Rousseff, mas que continuou
país que consegue liderar ações públicas disseminando o sentimento antissistêmico
pelo impeachment de Dilma Rousseff, mas que se instalou em nossa sociedade. A po-
que, já no final de 2016 e durante 2017, já re- lítica de ciclo curto se instalou, como um
velava dificuldades para criar fatos políticos processo permanente de deslegitimação de

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Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 105

todas forças políticas estabelecidas, tanto foi a de revelar esse esgotamento. Todavia,
as que se instalaram após o governo Dilma mesmo a retomada do discurso e de prá-
quanto as que procuraram desautorizar o ticas de extrema-direita – o uso constante
governo Temer, à direita ou à esquerda. da violência como recurso de intimidação e
Um segundo aspecto a destacar é a perseguição política – parece ter sido tópica
mudança de padrão de protesto social no (2015 e 2016, em especial), inserida na crise
Brasil. Do modelo de organização defini- de representação que toma todo o País.
do em 1980 para o modelo fragmentado de Nada mais significativo que o dado re-
2013. Do mobilismo que assegurava força velado pelo Latinobarômetro de 2018:
às lideranças sociais que passavam a nego- somente 7% dos brasileiros confiam nos
ciar com as estruturas de poder vigentes seus conterrâneos, o menor índice de con-
para a provisoriedade à horizontalidade e fiança interpessoal da América Latina32. O
à cultura anti-institucionalista. Do padrão índice de satisfação dos brasileiros com o
de movimentos sociais, mais perenes e es- regime democrático também ficou abaixo
truturados, para o de mobilizações sociais, da média da região (que é de 30%, tendo
mais fluidas e instáveis. Uruguai, com 57%; Nicarágua, com 52%; e
Os dois padrões parecem inscritos na Equador, com 51%, à frente).
vida política nacional, mas sem capacida- Vivemos, enfim, um desencontro entre
de de criar soluções políticas consistentes. representantes e representados, entre as
Uma, por parecer representar uma parte da formas clássicas de representação e as novas
sociedade e encontrar-se, em certa medida, e polissêmicas formas de organização social.
em crise (em especial, no mundo sindi- Desse desencontro, nascem as narrativas das
cal); outra, por se recusar a dialogar com o intensas mobilizações sociais inauguradas
campo institucional. em 2013. Narrativas que procuram inter-
A extrema-direita se insurgiu justamente pretar um divórcio ainda não solucionado
nessa lacuna representativa que indicou que e, em muitos casos, fundadas em desejos de
o pacto redemocratizante dos anos 1980 dava retorno de uma época em que o mundo polí-
sinais de esgotamento. Se 2013 teve alguma tico parecia mais estável. A política de ciclo
participação no fim da hibernação pública curto parece ter se instalado no Brasil. E não
das forças brasileiras de extrema-direita, esta sabemos quando poderá ser superada. s

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106 Ricci RG

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Movimentos e mobilizações sociais no Brasil: de 2013 aos dias atuais 107

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-t%C3%A1tica- criada-por-alem%C3%A3es-
Recebido em 12/07/2018
-em-1986-1.866251. Aprovado em 19/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
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108 ENSAIO | ESSAY

Capitalismo, democracia, cidadania –


contradições e insurgências
Capitalism, democracy, citizenship – contradictions and insurgencies

Sonia Fleury1

DOI: 10.1590/0103-11042018S309

RESUMO O objetivo deste ensaio foi discorrer sobre as relações entre capitalismo, democracia e
cidadania, tendo como foco as transformações recentes em todos os componentes da tríade Estado-
nacional, mercado capitalista e cidadania, que caracterizaram a construção da modernidade oci-
dental e geraram a democracia de massas, o Welfare State – ou Estado de Bem-Estar Social – e o
mercado regulado. A globalização da economia levou à desterritorialização da produção e circula-
ção de mercadorias e de capitais, em uma fase de predomínio da lógica de acumulação financeira,
dissociando o mercado da dimensão nacional, sob a qual se exerce o poder político estatal. É preciso
entender, no entanto, que as tensões entre capitalismo e democracia, e mesmo entre democracia e
cidadania, são constitutivas dessa relação, nem sempre sendo contradições antagônicas, pois, em
conjunturas específicas, diante das lutas socias e do acúmulo de forças em certas fases do processo
de acumulação, pôde-se construir uma nova correlação de forças e viabilizar propostas contra-he-
gemônicas. A etapa atual deve ser compreendida como parte do acirramento dessas contradições,
não como uma situação implacavelmente estagnada. A proposta é pensar, nesta conjuntura, o lugar
da democracia e da cidadania.

PALAVRAS-CHAVE Democracia. Participação da comunidade. Capitalismo. Insurgências.

ABSTRACT The aim of this essay was to discuss the relations between capitalism, democracy and
citizenship, focusing on the recent transformations in all components of the triad National-State,
capitalist market and citizenship, which characterized the construction of Western modernity
and generated mass democracy, Welfare State, and regulated market. The globalization of the
economy led to the deterritorialization of the production and circulation of goods and capital, in
a phase of predominance of the logic of financial accumulation, dissociating the market from the
national dimension, under which the political power of the state is exerted. It must be understood,
however, that the tensions between capitalism and democracy, and even between democracy
and citizenship, are constitutive of such relation, not always being antagonistic contradictions,
because, in specific conjunctures, in the face of social struggles and the accumulation of forces in
1 Fundação
certain phases of the process of accumulation, it was possible to build a new correlation of forces
Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Centro de and to achieve viable anti-hegemonic proposals. The current stage must be understood as part of
Estudos Estratégicos (CEE) the aggravation of these contradictions, not as a relentlessly stagnant situation. The proposal is to
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid. think, in this juncture, about place of democracy and citizenship.
org/0000-0002-7678-
7642
profsoniafleury@gmail.com KEYWORDS Democracy. Community participation. Capitalism. Insurgences.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 108-124, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Capitalismo, democracia, cidadania – contradições e insurgências 109

Introdução da liberdade da ação coletiva na transação de


conflitos sob normas aceitas. Impõe-se um
O objetivo deste ensaio é discorrer sobre as regime de verdade no qual imperam os inte-
relações entre capitalismo, democracia e ci- resses do mercado, sem espaço para que os
dadania, tendo como foco as transformações Estados cumpram uma função de capitalista
recentes em todos os componentes da tríade geral, capaz de preservar a hegemonia com a
Estado-nacional, mercado capitalista e cida- concessão de medidas redistributivas, deslo-
dania, que caracterizaram a construção da cando assim o conflito produtivo.
modernidade ocidental e geraram a demo- É preciso entender, no entanto, que as
cracia de massas, o Welfare State (WS) – ou tensões entre capitalismo e democracia, e
Estado de Bem-Estar Social – e o mercado mesmo entre democracia e cidadania, são
regulado. A globalização da economia levou constitutivas dessa relação, nem sempre
à desterritorialização da produção e circu- sendo contradições antagônicas, pois, em
lação de mercadorias e de capitais, em uma conjunturas específicas, diante das lutas
fase de predomínio da lógica de acumulação socias e do acúmulo de forças em certas fases
financeira, dissociando o mercado da dimen- do processo de acumulação, pôde-se cons-
são nacional, sob a qual se exerce o poder truir uma nova correlação de forças e viabi-
político estatal. A ausência de regulação da lizar propostas contra-hegemônicas, como o
movimentação internacional do capital fi- próprio Estado Social. A etapa atual deve ser
nanceiro e o poder concentrado das grandes compreendida como parte do acirramento
corporações transnacionais reduziram o dessas contradições, não como uma situação
poder de taxação e controle dos Estados, implacavelmente estagnada.
transformados em grandes devedores, o que Este trabalho não é uma resenha no
limita a legitimidade dos governos, incapa- sentido tradicional, mas um olhar dirigido
zes de responder às demandas cidadãs e ga- sobre a bibliografia atual, em campos como
rantir os direitos de proteção social. economia, política, filosofia, com vistas a
As consequências dessas transformações identificar fundamentos neste debate que
são apontadas como produzindo severas res- nos permitam defender algumas ideias
trições nas bases de sustentação do modelo acerca das transformações na relação entre
social democrata que possibilitou a incorpo- capitalismo, democracia e cidadania:
ração das lutas pela expansão da cidadania e
pela redistribuição da riqueza produzida. Ao a) Essa relação, ainda que seja determinada
contrário, predomina a ideologia neoliberal, pela dinâmica da acumulação capitalista,
cujos valores do individualismo e da merito- não pode ser limitada a ela, caindo assim
cracia não têm sido capazes de evitar o es- no fetiche da razão econômica, pois as
garçamento da coesão social e a emergência características do desenvolvimento da de-
de articulação das insatisfações populares mocracia e da cidadania têm uma dinâmica
por líderes, de direita ou de esquerda, que própria, que interage com a economia, in-
tentam responder, dessa forma, ao aumento fluenciando-a. O resgate do político é parte
das desigualdades, do desemprego, da exclu- de um contramovimento de preservação da
são social e às ameaças de redução dos siste- possibilidade de coesão social e depende da
mas de proteção social. ação política e da institucionalidade exis-
O processo de desdemocratização ocorre, tentes em cada sociedade.
seja em democracias eleitorais consolidadas,
seja em democracias emergentes, cujos pro- b) A complexificação da sociedade gerou
jetos de inclusão social se tornam insustentá- uma polifonia de sujeitos e de novas formas
veis, ante a restrição do político, como reino de ação política, cada vez mais distanciados

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 108-124, NOVEMBRO 2018


110 Fleury S

da representação e dos partidos tradicionais, entre os interesses particulares que competem


reivindicando inovações democráticas que no mercado e o interesse público, assegurado a
comportem a participação, a comunicação e a todos por meio de um aparato estatal legal e co-
deliberação, que sejam capazes de contemplar ercitivo e pela existência de uma esfera pública
assim as demandas dos movimentos sociais. distinta em que os conflitos podem ser dirimi-
dos de acordo a regras estabelecidas.
c) Esses novos sujeitos rompem a divisão O modo de produção de mercadorias
liberal entre o cidadão como dimensão pressupõe que sua realização só possa se
pública e o indivíduo como dimensão dar a partir da circulação, momento que
privada, introduzindo questões anterior- requer a troca entre sujeitos livres e igua-
mente consideradas privadas no debate lados diante da lei, distinguindo, portanto,
sobre justiça e direitos sociais. A construção o indivíduo concreto do cidadão abstrato.
da proteção social é parte intrínseca da ar- Essa separação, na medida em que se insti-
quitetura democrática e deverá contemplar tucionalize, permite que o Estado funcione
novas cidadanias e estratégias de inclusão, como ‘interesse geral do capital’ e que a lei
para além da homogeneidade, capazes de cumpra o papel de mediar as contradições
incorporar a diversidade sem abrir mão da entre a igualdade formal e a desigualda-
igualdade, em cidadanias diferenciadas. de substantiva na produção capitalista. Só
assim a exploração da mais valia incorpora-
d) A questão social a ser enfrentada diz da à mercadoria se realiza como uma troca
respeito tanto à desigualdade quanto à espontânea e natural. No entanto, o pleno
exclusão, que são fenômenos distintos e desenvolvimento de normas legais, impes-
requerem abordagens próprias. As lutas soais, públicas e administradas constitu-
contra a desigualdade se situam dentro do cionalmente somente tem lugar quando as
universo do Estado de Direito, onde direito relações capitalistas estão amadurecidas em
igualitário não se realiza plenamente. O uma dada sociedade, o que pressupõe uma
componente normativo da exclusão parte correlação de forças na qual o Estado precisa
de diferenças injustamente utilizadas e regular a relação capital-trabalho1.
reforça a dimensão socioeconômica, legiti- As lutas sociais, contudo, não são ex-
mando-a socialmente. Na exclusão, a violên- teriores ao Estado, elas o atravessam e se
cia e a substituição do Estado de Direito pelo inscrevem em sua materialidade, levando
Estado de Exceção – do WF pelo Warfare o Estado a organizar a hegemonia ao fixar
State – são naturalizadas e banalizadas no compromissos entre as classes dominantes e
tratamento de populações e territórios con- dominadas, e até mesmo impor às primeiras
siderados à margem da comunidade de direi- certas perdas materiais2 em proveito do in-
tos. Porém, a desobediência, a transgressão e teresse geral do capital. Gramsci3 nos ensina
a insurgência são componentes centrais da que o Estado, em suas atividades práticas e
expansão da cidadania e redirecionamento teóricas, não somente justifica e mantém
do processo produtivo. a dominação, mas busca obter o consenso
ativo dos governados, elevando a massa da
população a um determinado nível cultural
Contradições, retrocessos e e moral que corresponde às necessidades de
insurgências desenvolvimento das forças produtivas.
Ao definir a cidadania como uma hipó-
O Estado capitalista diferencia-se das formas tese jurídica no Estado capitalista, chamo
anteriores de poder pela suposição de uma atenção para as lutas sociais em torno da re-
diferenciação entre economia e política, alização da igualdade formal e sua negação

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Capitalismo, democracia, cidadania – contradições e insurgências 111

pela desigualdade social4. Ou seja, o desen- Fatores como a urbanização e industriali-


volvimento da cidadania, portanto, da demo- zação estiveram na origem desse processo,
cracia de cidadãos, será fruto da correlação gerando uma sociedade de massas, na qual os
de forças e das lutas que se processam a vínculos de solidariedade orgânica e as rela-
partir dessa situação paradoxal na qual a ções tradicionais de autoridade foram subs-
ordem política se assenta sobre a noção de tituídos por organizações de trabalhadores e
igualdade em uma sociedade que se funda na partidos que pressionaram pela expansão da
desigualdade e exploração de classes. igualdade formal para formas substantivas
de redistribuição. A expansão do capitalismo
[...] a conquista da cidadania através da im- industrial e da produção de riquezas, reque-
plementação das políticas sociais é sempre o rendo maior produtividade do trabalho, fa-
resultado concreto de uma relação de forças voreceram a atenção a essas reivindicações.
das classes em luta pela institucional das re- A confluência de outros fenômenos, como
lações de força estabelecidas historicamente as guerras e o enfrentamento a ideologias do
entre as classes e mediatizadas pelo Estado comunismo e do fascismo, também incidiram
[...]5(95). na mesma direção de reconstrução da hege-
monia capitalista em um processo de trans-
Estudando o desenvolvimento da cidada- formismo, por meio da democracia de massas
nia na Inglaterra, Marshall6 reconhece que o e da proteção social nos países do capitalismo
princípio igualitário da cidadania permitiu central. O fortalecimento do Estado com uma
maior integração social preservando a estru- administração burocrática racional e impes-
tura de desigualdade de classes. No entanto, soal foi imprescindível para que o tratamento
ele também introduz um princípio de justiça diante da lei fosse considerado igualitário.
social e a consciência de que a igualdade de A expansão da proteção social e o amadu-
direitos não é suficiente, guiando as lutas recimento dos Estados de Bem-Estar, todavia,
políticas igualitárias que deram origem aos passaram a colocar questões relativas à sua
direitos sociais da cidadania. Polanyi7 vê no viabilidade e à dinâmica de construção da ci-
contramovimento que levou à intervenção dadania. O próprio WF foi visto como tendo
estatal na economia e na proteção aos traba- transformado os benefícios alcançados com
lhadores uma reação espontânea às ameaças o reconhecimento da classe trabalhadora
que o liberalismo representou para a destrui- como um ator coletivo, em consumo indivi-
ção da própria sociedade. dualizado, minando assim as próprias bases
O desenvolvimento dos Estados de Bem- que o sustentavam. Por outro lado, a sinergia
Estar Social nos países centrais faz parte entre a política econômica Keynesiana e a
desse contramovimento, já que representou redistribuição via políticas sociais que esti-
uma reação ao liberalismo, transformis- mulava o consumo foi rompida com a crise
mo que deu lugar à hegemonia da social- do capitalismo a partir dos anos 1970, dando
-democracia, cuja política intervencionista lugar à hegemonia neoliberal, pregando a
foi capaz, nas condições de um capitalismo redução do Estado e a lógica competitiva do
regulado, de promover um novo período de mercado, a partir dos anos 1980. A proteção
expansão e hegemonia. Apesar das diferen- trabalhista e social passou a ser vista como
tes modalidades de proteção social corres- uma rigidez que impede a reorganização ca-
pondentes a distintas ideologias, correlações pitalista ante a crise, ou, evita que o seu custo
de forças e instituições existentes que deter- seja repassado ao trabalho.
minavam a relação entre Estado e Sociedade, Por outro lado, a diversificação e a com-
a proteção social se expandiu incorporando plexificação da sociedade atual mostram
novos direitos e grupos sociais à cidadania. que as lutas pela expansão dos direitos de

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112 Fleury S

cidadania já não são fruto apenas das lutas da A atual crise do WS, segundo Fraser9,
classe operária em suas reivindicações igua- pode decorrer de inúmeros fatores, mas um
litárias, mas de uma polifonia de sujeitos que fator crucial é a derrocada da velha ordem de
exigem o reconhecimento da diversidade, em gênero, baseada na existência de famílias nas
grupos tais como negros, mulheres, Lésbicas, quais o homem era o provedor do salário que
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e sustentava a todos. Defende que a possiblida-
Transgêneros (LGBT) etc., e políticas distribu- de de suplantar o Welfare industrial depende
tivas e compensatórias que reduzam as discre- da realização da promessa da igualdade de
pâncias e desvantagens acumuladas em prol da gênero, que evolui para um modelo de pro-
homogeneização burocrática do WS8-10. teção de cuidador universal, o que envolve
A cidadania é um status atribuído àqueles princípios de antipobreza, antiexploração,
que participam de uma comunidade política, igualdade salarial, igualdade de respeito,
portanto intrinsicamente relacionada com a igualdade de tempo de lazer, antimarginali-
constituição da nação como um espaço po- zação e o princípio do antiandrocentrismo.
lítico, no interior do qual as diferenças entre Alguns autores, com uma perspectiva
a população são superadas por meio de uma mais pragmática e funcional, colocam como
discussão pública e o respeito à lei, fundada imperativa a mudança do modelo do WS
na noção de bem comum11. O pertencimen- para o que denominam novo paradigma do
to à nação, ou seja, a inclusão na comunida- investimento social13,14, como forma de re-
de de cidadãos, requer a internalização de adequação da proteção social às transfor-
normas partilhadas, implicando a construção mações demográficas, com o aumento do
do homem universal, o cidadão. Incluindo e número de idosos e redução da fertilidade,
integrando alguns, representa, por suposto, mudanças na composição da força de traba-
a exclusão de outros, os não nacionais, mas lho, com crescente incorporação de mão de
também aqueles que são colocados como obra feminina, e o aumento do desemprego
dependentes ou incapazes, enfim, que não se e da flexibilização das relações de trabalho.
enquadram na definição do homem universal. Diante de uma sociedade na qual a produção
O debate atual sobre a cidadania tem le- é cada vez mais baseada no conhecimento,
vantado questionamentos sobre a noção de essa perspectiva privilegia a educação in-
comunidade de cidadãos que está enraizada fantil e treinamento ao longo da vida como
nos princípios do consenso em relação às forma de melhor aproveitamento do capital
normas, mas que ignora o componente insur- humano. Por outro lado, busca atuar na pre-
gente da cidadania que tornou histórica sua venção dos novos riscos:
expansão, ou seja, a incompletude do corpo
político que sempre implica dominação e The social investment perspective also aims
exclusão. Também se discute o encapsula- at modernising the postwar welfare state so
mento da cidadania à dimensão nacional, na as to better address the new social risks and
medida em que o poder político e a produção needs structure of contemporary societies,
e circulação de mercadorias se desterritoria- such as single parenthood, the need to recon-
lizaram8. A esse respeito, Balibar12 afirma: cile work and family life, lack of continuous
careers, more precarious forms of contracts
Indeed, the nation, or the national identity, ho- and possessing low or obsolete skills15(1).
wever effective it has been in modern history,
is only one of the possible institutional forms Embora busquem diferenciar-se das crí-
of the community of citizens, and it neither ticas neoliberais ao WS, na medida em que
encapsulates all of its functions nor comple- o gasto social não é visto como custo, mas
tely neutralizes its contradictions12(438). como investimento que ativa a economia,

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Capitalismo, democracia, cidadania – contradições e insurgências 113

compartilham com aquela perspectiva a ne- nível de circulação das mercadorias, dos
cessidade de desenvolver políticas de ativa- capitais e das pessoas, tem acarretado pro-
ção e mantêm a crença na eficácia do sistema blemas de integração para os imigrantes,
de mercados. Distinguem-se dos liberais por excluídos ou colocados em uma condição de
acreditar que as políticas estatais de qualifi- subcidadania em países desenvolvidos.
cação podem gerar alterações no mercado de Se a proteção social no WS havia perdido
trabalho, evitando exclusões e aumento da a perspectiva emancipatória da cidadania
pobreza. As políticas de ativação substituem como conquista de classe para acomodar
o Welfare pelo Workfare, seja por meio da os beneficiários como consumidores, no
redução do benefício, seja por aumento das investimento social, essa perspectiva de
condicionalidades, levando o beneficiário a participação em uma comunidade política
se comprometer em melhorar sua qualifica- é substituída pelos incentivos e controles
ção e inserir-se no mercado de trabalho em para participação no mercado. A bandeira
posições que as políticas públicas lhe ofere- de ‘no welfare without work’ e a afirmação
cem. Ou seja, preparar, mais que reparar. de que a política de ativação pavimentou o
As principais críticas a essa corrente são caminho para a desregulação dos merca-
relativas à instrumentalização das demandas dos de trabalho13 demonstram que a pers-
feministas, com políticas de reconciliação do pectiva do investimento social considera a
trabalho; focar na preparação para o futuro e questão do trabalho como uma atribuição
esquecer os pobres atuais; buscar inserir os individual, visando ao aumento da empre-
trabalhadores em qualquer tipo de trabalho; gabilidade, porém, liberando o mercado de
adotar uma perspectiva economicista que responsabilidades pela crescente expulsão
trata indivíduos como investimentos e capi- dos trabalhadores.
tais em detrimento da justiça social e da ci- Uma visão instrumental da política social
dadania. Em outros termos, aqueles que não deixa de considerar que toda política social
se adequarem à dinâmica produtiva não têm tem uma dimensão metapolítica, na medida
lugar nesse modelo – os dejetos – no qual a em que ela desenha a configuração societária
solidariedade dá lugar à produtividade como que se pretende alcançar. Assim, a questão
organizador da sociedade. fundamental da política social é o enfren-
Além dessas críticas, eu adicionaria a tamento da questão social, entendida como
perspectiva individualista em detrimento aquilo que introduz a perspectiva disruptiva
de uma análise de classes sociais, a aceita- na sociedade, tornando-a incapaz de promo-
ção da dinâmica atual do capitalismo como ver a integração e a coesão social necessárias
imutável e inexorável (o fim da história), e, à legitimação da ordem política.
finalmente, a inexistência de evidências que O trabalho de Wolfgang Streeck16 sobre
provem a relação causal entre aumento da a relação entre capitalismo e democracia
qualificação e transformação da estrutura busca demonstrar que existe uma incompa-
produtiva e social, com redução da pobreza e tibilidade natural entre os dois princípios,
da exclusão. O tema da imigração na Europa, ou regimes que guiariam a alocação no ca-
onde trabalhadores altamente qualificados pitalismo democrático: um deles atendendo
exercem atividades desqualificadas e infor- às forças do livre mercado, e o outro baseado
mais, está ausente das considerações dos in- nas necessidades sociais e direitos certifi-
vestidores sociais, bem como as estatísticas cados pelas escolhas coletivas das políticas
de elevado desemprego de jovens universi- democráticas. Para o autor, a oposição entre
tários e pós-graduados. O fato da cidadania mercado e eleitores é inerente, e sua compa-
continuar a ser um atributo da nacionalida- tibilização só pode se dar em períodos curtos,
de, em um mundo globalizado e com elevado em que um dos princípios é privilegiado em

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detrimento do outro. Isto acarretará, inevita- a desdemocratização apoiando-se em dois


velmente, punições, como a perda da maioria argumentos. Por um lado, porque a solução
por haver negligenciado as demandas dos proposta por Streeck16 passa pelo fortaleci-
eleitores ou pela perda de suporte político das mento dos Estados Nacionais para aumentar
forças de mercado que acusam o governo de a capacidade de regulação dos mercados, o
disfunções econômicas. Conclui-se, portanto, que lhe parece uma opção nostálgica. A in-
que a crise é o estado natural do capitalismo, ternacionalização é um fato que tem benefi-
sendo os anos de ouro do capitalismo demo- ciado o mercado, mas deveria ser o caminho
crático, do pós-guerra até as décadas de 1960 para o fortalecimento da cidadania na relação
e 1970, uma conjunção rara entre crescimento com os Estados. Enquanto a economia está
econômico e distribuição. A partir de então, globalmente integrada, a política está frag-
cresceu a oposição entre o ‘povo do mercado’ mentada e deveria buscar formas de maior
e o ‘povo do Estado’, estes últimos, os cidadãos cooperação internacional para fazer frente a
que dependem das políticas públicas distri- essa defasagem. Por outro lado, afirma:
butivas ameaçadas com o possível fim do WS.
Políticas inflacionárias, aumento do débito Más bien, tengo la impresión de que Streeck
privado e público, políticas de austeridade e subvalora el efecto candado de las normas
de liberação financeira foram implementadas constitucionales válidas no solo desde el pun-
diante dos ciclos de crise econômica que se to de vista jurídico sino también del complejo
tornaram mais rápidos. Os Estados, que antes democrático existente de hecho: la persis-
eram arrecadadores, transformaram-se em tencia de las instituciones, reglas y prácti-
grandes devedores. cas familiarizadas y asentadas en culturas
políticas17(38).
Yet democracy is as much at risk as the eco-
nomy in the current crisis, if not more. Not Ambos os autores apontam as contradições
only has the ‘system integration’ of contem- e desequilíbrios nas relações entre Estado,
porary societies – that is, the efficient functio- mercado e cidadania, entendendo seu acirra-
ning of their capitalist economies – become mento na fase atual do capitalismo como um
precarious, but so has their ‘social integra- fator de aprofundamento das crises tanto da
tion’. With the arrival of a new age of austeri- democracia como do capitalismo. O importan-
ty, the capacity of national states to mediate te nessa contribuição de Habermas é o resgate
between the rights of citizens and the require- da política como um espaço de liberdade, ainda
ments of capital accumulation has been seve- que as contingências econômicas tenham redu-
rely affected16(25). zido substancialmente as margens de manobra
dos Estados nacionais. No entanto, a saída
Enfim, a economia globalizada reduz a passa por resgatar e criar formas globalizadas
capacidade política dos Estados nacionais de valorização da política e da cidadania.
de dar uma resposta alternativa; e a po- Pierson18, em seus estudos sobre a rees-
pulação está cada vez mais desencantada truturação do WS nas democracias afluen-
com a representação. tes em tempos de permanente austeridade,
Habermas17 concorda com o diagnóstico parece corroborar a tese de que as institui-
feito por Streeck16 e crê que o maior mérito ções e culturas democráticas podem ser um
de sua análise foi ter provado que a imposição importante antídoto perante as políticas
de endividamento aos Estados pelos organis- de austeridade. Seus estudos mostram que
mos internacionais só beneficia o mercado e as mudanças que estão ocorrendo no WS
aprofunda a crise. No entanto, critica a visão estão sendo desenhadas tanto pelas pres-
pessimista e, de certa forma, fatalista sobre sões por austeridade quanto pela duradoura

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Capitalismo, democracia, cidadania – contradições e insurgências 115

popularidade dos sistemas de proteção na Grécia, em razão da ideologia dos parti-


social. Para ele, todos estão sofrendo pres- dos de esquerda e sua penetração na socie-
sões para reestruturação, e as mudanças podem dade portuguesa. Os resultados positivos em
até transformar antigos vícios em novas virtu- termos de desenvolvimento social e econô-
des, eliminando ineficiências e iniquidades. Já mico têm angariado suporte interno para o
as fontes de resistência política às medidas de governo, ainda que medidas mais radicais
austeridade são de dois tipos diversos: os in- demandadas pela esquerda provavelmente
centivos eleitorais em programas que mantêm não sejam implementadas. Além disso, alerta
alta popularidade e a rigidez institucional que para a possibilidade de ameaças externas
resiste aos imperativos de reforma. Juntos, desestabilizarem o governo diante do cres-
esses fatores criam tremenda resiliência em cente deficit público e para a possibilidade
face das duas décadas de ‘crise’ do WS18. O fato de imposição de cortes nos gastos públicos19.
de reconhecer que a adesão ao WS e a resis- Esse caso difere das democracias estudadas
tência institucional são fatores políticos que por Pierson18, em que o enraizamento do WS
variam de acordo com os próprios modelos na cultura política da sociedade e sua trajetó-
de WS, resistindo ao seu desmantelamento de ria institucional atuam conjuntamente para
acordo ao enraizamento do sistema na cultura fortalecer resiliências diante de um contexto
política e dependendo também da trajetória de permanente austeridade. Ao contrário, no
institucional, não implicam que mudanças e caso português, a construção das políticas
inovações não estejam ocorrendo e nem que de proteção social foi muito mais recente, e
as pressões econômicas sejam irrelevantes. Ao estas começaram a ser desmanteladas pelos
contrário, a proteção social sempre dependeu governos anteriores que impuseram medidas
do desenvolvimento econômico e foi por ele de austeridade de redução dos benefícios. Só
condicionada em suas possibilidades e limites. mesmo a história política do país parece ser o
A recuperação da política no debate fator explicativo para dar conta de tal anoma-
sobre desenvolvimento e políticas sociais lia, no contexto europeu.
tem tido como exemplo concreto a situ- O objetivo de trazer o caso de Portugal foi o
ação atual do governo de Portugal com a de ressaltar a importância da política em uma
implementação da política da ‘Geringonça’, era na qual os ditames da política de austeri-
termo usado para designar o atual governo dade tornam o discurso econômico do neoli-
do Partido Socialista que tem como apoia- beralismo como cláusula pétrea, e, mesmo que
dores o Partido Comunista Português, que contra factual, continua-se propondo imple-
nunca aderiu ao eurocomunismo, e o Bloco mentar novas medidas que aprofundam a crise
de Esquerda, que tem suas origens no movi- econômica e a ruptura da coesão social.
mento revolucionário dos anos 197019. Esse O aumento do interesse dos eleitores em
governo, pressionado por seus aliados de es- buscar, por meio do voto, reverter a subor-
querda, levou adiante suas promessas de in- dinação das ações estatais aos interesses do
subordinação em relação às recomendações mercado, na tentativa de recuperar seu papel
dos organismos internacionais de manu- de atenção às necessidades dos cidadãos, tem
tenção da política de austeridade: reverteu sido denominado como uma onda de retorno
os cortes anteriores em salários e pensões, do populismo. Streek20, em alusão ao contra-
suspendeu as privatizações e restaurou os movimento como reação societal às ameaças do
acordos nas negociações coletivas. Em sua liberalismo, denominou essa tendência como
análise, Finn encontra as explicações para a o retorno do reprimido, depois de décadas
sustentação desse governo que se opõe aos de globalização e políticas neoliberais, que
ditames das políticas de austeridade na zona ameaçam, sob pressão econômica e moral, com
do Euro, diferentemente do que aconteceu a dissolução da sociabilidade e com a incerteza

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dos cidadãos ante os mercados internacionais, que permitiria maior redistribuição, e o con-
cujo controle da crise foi tantas vezes prometi- flito se acirra na globalização.
do e nunca realizado por essas políticas. No entanto, os sentidos políticos do po-
O aumento da desigualdade e do desempre- pulismo, que emergem com a agudização
go além das políticas de contenção de gastos dos conflitos, diferenciam-se em populismo
com políticas públicas são cada vez mais inten- de direita e de esquerda: de acordo como os
sos, e as promessas de melhorias não se fizeram efeitos da globalização, são sentidos na so-
sentir. Streeck20 toma de Gramsci o termo ciedade e articulados pelas suas lideranças
interregnum para designar a fase atual como em torno de clivagens étnico-culturais pela
sendo um período de transição, cuja duração direita e em torno da renda e classe social
é incerta, entre o velho que está morrendo e o pela esquerda. Evidencia-se a preocupação
novo que ainda não pode nascer. crescente com a falta de legitimidade que
O ressurgimento do povo na cena política acompanhou a globalização, sendo que os re-
tem levado a inúmeras considerações sobre clamos por abertura dos mercados passam a
a volta do populismo, seja ele de direita ou de ser substituídos pela necessidade de reequi-
esquerda. Como nos ensinou Laclau21, as de- librar as órbitas nacional e global e os ganhos
mandas democráticas não atendidas se trans- que se distribuem de forma tão assimétrica.
formam em demandas populares, constituindo No entanto, as consequências políticas da
assim um povo, ou seja, uma heterogeneidade perda de confiança nos sistemas normativos
que para ser unificada requer a articulação – político e econômico – podem ser desas-
da equivalência das oposições às instituições, trosas para toda a sociedade, como aponta
possibilitada pela presença de um líder que Stiglitz23(137):
as unifique. Portanto, inexiste um conteúdo
inerente ao populismo, mas condições que The breaking of the social bonds and trust
possibilitam sua ocorrência, que levam à pro- – seen in our politics, in our financial sector,
liferação de pontos diversos de antagonismos. and in the workplace – will, inevitably, have
Para Laclau21, se fosse para nomear apenas uma broader societal consequences. Trust and re-
condição para emergência do populismo, ele ciprocal goodwill are necessary not only for
indicaria o capitalismo globalizado. the functioning of markets but also for every
Rodrik22 também crê que a volta do popu- other aspect of societal cooperation. We have
lismo foi causada pela globalização da econo- explained how the long-term success of any
mia, à qual se associam outros fatores, como country requires social cohesion – a kind of
mudanças tecnológicas e erosão da proteção social contract that binds members of socie-
ao trabalho, com vantagens sempre direcio- ty together. Experiences elsewhere have sho-
nadas para o mercado. A fase atual, nomeada wn, however, the fragility of social cohesion.
de hiperglobalização, aumenta a incidência When the social contract gets broken, social
e intensidade dos conflitos, já que a razão cohesion quickly erodes.
entre os custos políticos/distributivos e os
ganhos econômicos é particularmente des- Ao analisar as manifestações de ocupa-
favorável. Particularmente, o diferencial de ção de espaços público (como Occupy New
volatilidade dos capitais em relação ao tra- York), em nome dos 99% contra o 1% mais
balho permite que os primeiros evitem as rico que acumula que acumula a maior fatia
barganhas dos trabalhadores e contratem da riqueza social, o autor mostra como a con-
mão de obra mais barata alhures e possam centração de poder econômico aumentou o
se deslocar, sem serem tão afetados como os poder das corporações sobre o Estado, pas-
trabalhadores, pelos choques em uma econo- sando a desenhar as políticas públicas em
mia nacional. Dessa forma, evitam a taxação favor de uns poucos, de forma predatória. O

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Capitalismo, democracia, cidadania – contradições e insurgências 117

Estado de Direito (The Rule of Law), que foi dominação de poucos, Estados de Direito
criado para defender os mais fracos em busca oligárquico, limitados pelo duplo reconhe-
de uma sociedade igualitária, passou a ser cimento da soberania popular e pelas liber-
usado em favor dos poderosos para preser- dades individuais. Nesse sentido, já não se
var e aprofundar as desigualdades. Dowbor24 mantêm as condições originais da democra-
explica que o capitalismo hoje prescinde da cia enunciadas por Lefort27, como um lugar
democracia porque já não há competição vazio, no qual os governantes se encontram
entre múltiplas empresas, sendo que só 147 impedidos de se apoderarem dele, um lugar
grupos controlam 40% do sistema corporati- que não podendo ser incorporado às pessoas
vo mundial, e há 28 gigantes banqueiros que que o exercem permanecerá em busca do seu
controlam as próprias empresas produtivas, fundamento em uma sociedade que acolhe o
articulação que começou em 2008. conflito de opiniões e o debate dos direitos,
A contração da esfera política e sua subordi- já que os marcos de referência da certeza se
nação à dinâmica de acumulação da economia dissolveram27. Entretanto, a impossibilidade
globalizada, representada pela financeirização de o conflito encontrar uma resolução sim-
e pelo poder das corporações, tiveram fortes bólica na esfera política, já que o poder se
impactos sobre o WS, restringindo benefí- mostra dentro da sociedade como algo parti-
cios e acesso às políticas de proteção social, cular, deixa a sociedade despedaçada e inse-
mercantilizando e subordinando à lucrativi- gura. Isso poderia levar a uma sociedade da
dade os setores sociais, redefinindo a sociabi- insegurança total, já que estar protegido não
lidade em bases individualistas e competitivas. é um estado ‘natural’28, mas uma situação
Aprofundaram-se assim as desigualdades. construída, garantida pelo Estado social. O
Piketti25 angariou prestígio mundial ao atual debilitamento do Estado nacional-so-
mostrar evidências de que as desigualdades cial substitui o individualismo positivo, que
se aprofundaram no mundo, recentemente, está na base da cidadania e do seu desenvol-
como consequência de a taxa do rendimen- vimento em busca de igualdade, por um indi-
to privado do capital ser continuamente vidualismo negativo, consequência da perda
mais elevada do que a taxa de crescimento da função integradora do trabalho29. Como
da renda e da produção. A falta de respostas consequência da precarização do emprego,
distributivistas dos Estados nacionais, seja não apenas aumentam as periferias mar-
em termos de taxação progressiva, seja em ginais e o medo às classes perigosas como
investimentos sociais, ameaça os valores de também ocorre a desestabilização dos está-
justiça social e a existência das sociedades veis e a fragilização das famílias, ameaçan-
democráticas. Portanto, a dinâmica da eco- do a coesão social. Castel29 chama atenção
nomia da acumulação capitalista é sempre para as mudanças nas políticas públicas que
política, tanto porque ameaça a sociedade passam de políticas de integração para polí-
democrática quanto porque a ação política ticas de inserção. As políticas de integração
é a única forma de colocar parâmetros extra sendo aquelas que, buscando uma homoge-
econômicos de regulação e distribuição. neização desde o centro, promovem o acesso
Isso nos leva a duas questões imediatamente de todos aos serviços públicos e a redução
relacionadas com o lugar do político na conjun- das desigualdades. Já as políticas de inserção
tura atual: em que tipo de democracia vivemos? obedecem a uma lógica de discriminação po-
E, será que a cidadania ainda é um conceito sitiva e desenvolvem estratégias específicas
capaz de articular a inclusão social? para certos grupos e zonas específicas, com o
A resposta de Rancière26 é que não uso de novas tecnologias de intervenção que
vivemos em democracias, nem em totalita- se distinguem da ajuda social clássica29.
rismos biopolíticos, mas em um sistema de A gestão das diferenças é a essência do

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político, e as tentativas de substituição da igual- more concerns culture than structure, further-
dade pela equidade se mostram insuficientes, more, claims to cultural recognition usually are
já que a equidade apenas pode conduzir a uma means to the end of undermining domination or
busca mais exigente de igualdade, mas não a wrongful deprivation10(82,83).
sua substituição30. Assim, a tentativa que as-
sistimos atualmente de substituir o direito uni- A combinação de múltiplas posições es-
versal à saúde pela cobertura universal fazem truturais que condicionam as capacidades e
parte dessa mesma problemática, na qual se privam os indivíduos de liberdades de ação,
abre mão da igualdade, do direito e da cidada- denominadas por Sartre como serialidade, é
nia, com o risco de perpetuar a segmentação aceita por Young10, que faz a ressalva de que
social e inviabilizar a solidariedade que é o essas limitações não determinam, no entanto,
cimento da coesão social31. as identidades individuais. Nosso estudo
A busca da universalidade da cidadania sobre violência institucional em hospitais
não pressupõe a negação das diferenças públicos bem demonstrou como a discrimi-
sociais, mas, sim, das injustiças que se fun- nação se faz com base em séries de atributos.
damentam nas diferenças. O universalismo No entanto, as respostas às discriminações
hoje afasta-se da visão idealista e centra- que se materializavam na peregrinação dos
lizada para propor o reconhecimento da pacientes na rede de atenção mostravam que
diferença, da multiplicidade de sujeitos, havia diferentes repertórios de respostas dos
identidades e desejos. O universal e o parti- sujeitos, envolvendo a submissão, a manipu-
cular devem buscar novas formas de articu- lação clientelista, a revolta e a ação política33.
lação na democracia contemporânea, assim Algumas das críticas à abordagem que traz a
como a cidadania não é um suporte passivo questão da identidade para o centro da discus-
de direitos, que desconhece as exclusões que são da democracia e da cidadania dizem respei-
estiveram na base de sua construção social, to à dificuldade de construir uma ação coletiva
nem uma identidade a mais entre outras. A com sujeitos fragmentados em torno de lutas
cidadania deve ser o princípio articulador de identitárias. Isso, no entanto, não implica que
diferentes subjetividades que partilham um possam haver equivalentes que venham a ar-
conjunto de valores ético-políticos, rompen- ticular essas diferentes posições em torno de
do com a suposição tradicional da cidada- um movimento comum. Outra crítica seria em
nia como domínio público dos indivíduos e relação à ameaça à unidade nacional, questão
oposta ao mundo do privado32. discutida por Kymlinka e Norman34 que ter-
No entanto, a questão da identidade não minam por concluir que, embora só as reivin-
deve ser tomada de um ponto de vista cul- dicações de autogoverno ponham em risco a
turalista para pensar uma democracia que unidade nacional, a cidadania diferenciada di-
comporte as diferenças. Young10 afirma que ficilmente cumpriria uma função integradora.
os indivíduos, e não grupos, constroem suas Poderíamos adicionar que as críticas ao WS
identidades em situações relacionais. Já os relativas à regulação e burocratização, homo-
grupos sociais podem ser culturais ou estru- geneização e não diferenciação de demandas,
turais, e estes últimos são os mais importan- exclusão das mulheres etc. não avançam em
tes nas reivindicações de justiça. E conclui: apontar uma alternativa de economia pós-capi-
talista compatível com a cidadania diferencia-
Differentiations of gender, race or ability are da. Mesmo quando denunciam a convergência
more likely class than ethnicity, I ague, inasmu- entre WS e economia capitalista, terminam
ch as they concern structural relations of power, deslocando o conflito para a esfera da redistri-
resource allocation, and discursive hegemony. buição que depende do crescimento da econo-
Even where the basis of group differentiation mia privada.

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Capitalismo, democracia, cidadania – contradições e insurgências 119

O respeito às diferenças encaminha a geral, que chega a conclusões em base a infe-


proposta de democracia deliberativa, em rências e de forma desapaixonada, uma teoria
que cada um que seja afetado pela decisão democrática comunicativa deve comportar
possa participar do debate em uma esfera outras formas de comunicação mais afeitas às
pública na qual as regras sejam conhecidas mulheres e também às classes populares, que
e as opiniões sejam argumentadas de forma ‘puxam o pensamento por meio do desejo’,
razoável. Assim, espera-se que sejam supe- ou seja, a partir de situações emotivas e par-
rados os problemas decorrentes da formação ticulares, incluindo tipos de discursos como a
de uma maioria numérica na democracia Saudação, a Retórica, e a Narração39.
representativa, que prescinde do debate de Outra limitação crucial das democracias
ideias entre os participantes, propiciando o participativas é relativa ao fato de que as de-
reconhecimento do outro como um igual em cisões tomadas em processos deliberativos
termos de respeitabilidade e reciprocidade, deveriam ser vinculantes, ou compulsoria-
que as decisões sejam tomadas em base a mente implementadas, o que não acontece
princípios de justiça, que a argumentação com a quase totalidade das instituições parti-
possa levar à mudança de pontos de vista e cipativas no Brasil, à exceção do Orçamento
que, enfim, esse seja um processo de troca de Participativo, cuja metodologia transforma
informações que melhorem a qualidade da prioridades em valores orçamentários.
própria cidadania35-38. A polêmica estabelecida por Fraser40 em
A experiência brasileira com os Conselhos relação à proposta de Honneth41 acerca da
Setoriais antecedeu o próprio desenvolvi- adoção de um paradigma moral para balizar
mento da teoria da democracia deliberativa, os conflitos sociais busca desvendar a falsa
mas pode ilustrar tanto suas possibilidades antítese entre dois distintos paradigmas de
como limitações. Uma limitação da nossa ex- justiça, o redistributivo e o do reconheci-
periência de participação é que se distancia mento. Fraser40 identifica as características
da proposta de democracia deliberativa por dos dois paradigmas e suas decorrências
não ser um processo aberto a todos os que em termos de enfrentamento das injustiças:
serão afetados pelas decisões ali tomadas, por um lado, o paradigma redistributivo tem
tendo um sistema de representação embu- como foco as injustiças socioeconômicas,
tido na definição dos participantes. Dessa tais como a exploração, a marginalização
forma, muitas vezes, os interesses corpora- econômica e a privação; por outro, o para-
tivos ou até mesmo pessoais podem prevale- digma do reconhecimento visa as injustiças
cer sobre a construção do interesse público. culturais que levam a padrões de dominação
Uma limitação inerente ao modelo delibe- cultural, não reconhecimento e desrespeito.
rativo decorre da crença que está na base da O paradigma da redistribuição fundamen-
concepção da esfera pública habermasiana, ta-se na teoria Marxista para propor medidas
acerca da existência de um espaço público que envolvem a distribuição da riqueza, re-
discursivo sob normas comuns, em que os organização da produção e da propriedade,
participantes usem da argumentação razoá- democratização dos investimentos e trans-
vel para convencimento dos demais, ou para formação da estrutura econômica. Já o pa-
buscar a convergência. Young39 defende que radigma do reconhecimento tem suas raízes
a democracia deliberativa proponha um novo na teoria social weberiana, na qual o status
modelo da comunicação, que não privilegie dos grupos sociais é definido pelas relações
o embasamento científico nem a competição, de reconhecimento, estima e prestígio que
já que esse desenho comunicacional termina lhe são atribuídos no interior da sociedade.
por favorecer o discurso masculino e elitista. As diferenças, como raça, gênero, etnicidade,
Ao contrário do discurso formal e de caráter são utilizadas como formas de dominação e

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exploração. Portanto, elas devem ser des- que legitima a coerção44,45. Se o componente
construídas e ou reinterpretadas40. da dominação e controle é parte intrínseca
Enquanto para Fraser, mesmo uma ca- do Estado de Bem-Estar Social, a estes se
tegoria como classe social, que tem um adiciona o componente da violência quando
fundamento econômico claro, também tem se trata de exclusão social. A dubiedade da
uma dimensão de status, que pode ser en- sociedade brasileira que, ao mesmo tempo,
globada no paradigma da redistribuição, nega a existência e a realidade das favelas e
para Honneth42, as considerações sobre in- a destituição dos direitos de seus moradores,
justiça podem ser unificadas no paradigma relegando-os a uma condição de ilegalidade
do reconhecimento, pois ele estabelece um permanente, enquanto se beneficia dessa
link entre as causas sociais do sentimento de mão de obra barata que está disponível na
injustiça e os objetivos normativos dos movi- vizinhança46, é tanto uma condição de ex-
mentos emancipatórios. ploração de classe quanto de enraizamento
Este importante diálogo traz muitas em base a diferenças raciais e culturais que
contribuições e precisa ser aprofundado, normalizam a exclusão.
embora tenda a concordar com Boaventura O mecanismo da violência como forma de
Santos43 quando ele afirma que a desigualda- dominação ou como forma de transgressão e
de é um fenômeno socioeconômico enquan- insurgência merece ser mais bem estudado
to a exclusão é, sobretudo, um fenômeno na construção da cidadania. Fanon47 desen-
sociocultural fundado em uma normativida- volveu um trabalho seminal sobre as lutas
de que funciona como discurso de verdade, nacionais anticolonialistas, partindo do pres-
interditando e rechaçando o outro em base suposto de que a violência colonial – na qual
à diferença. A desigualdade permite a ex- tudo que é branco é bom e tudo que é negro é
ploração, e a exclusão justifica o extermínio. ruim – despoja os indivíduos de sua condição
No entanto, a exclusão tem um fundamento humana, impedindo-lhes de se converterem
econômico ao permitir tanto a exploração em sujeitos do seu processo social. Fanon47
quanto a expropriação. argumenta que só por meio da mesma mag-
A importância deste debate está em tratar nitude de violência o colonizado pode se
a questão da exclusão como um fenôme- curar de sua inferioridade e constituir-se,
no social que tem uma realidade própria, coletivamente, como nação. Contrária a esta
não podendo ser subsumido no debate da posição encontra-se a de Arendt48, que dis-
cidadania, como sendo algum deficit desse tingue poder de violência por sua natureza
status. O não reconhecimento de morado- distinta e por serem antitéticos. Enquanto o
res de áreas de favelas e periferias urbanas poder emerge e tem sua legitimidade na ação
como sujeitos de direito, excluídos, portan- coletiva, a violência pode ser justificável, mas
to, da condição de cidadania social – ainda nunca será legítima. Trabalhando a questão
que sejam eleitores e a eleição seja a epifania da democracia e da sociedade civil, Cohen e
do seu reconhecimento como partícipes –, Arato49 concluem que os movimentos sociais
torna aceitável para a sociedade a violência são uma dimensão normal da ação políti-
policial e os assassinatos de jovens negros ca nas sociedades civis modernas. Uma das
das favelas. Enquanto os desiguais lutam formas de ação política que eles assumem é
pela preservação dos direitos adquiridos a desobediência civil. Por definição, os mo-
(Welfare State), os excluídos lutam contra o vimentos sociais são extrainstitucionais; e,
extermínio, pela sobrevivência e pelo direito embora seja paradoxal a ideia do direito à de-
a ter direitos (Warfare State). Neste último sobediência civil, os autores consideram que
caso, é o próprio Estado que gera a ilegali- essa forma de ação não viola os princípios da
dade à qual esta população é circunscrita, e sociedade civil democrática. Argumentam

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Capitalismo, democracia, cidadania – contradições e insurgências 121

que a desobediência civil é uma ação coletiva movimentos de moradores reivindicando me-
que pressupõe que os direitos e a democra- lhorias e direitos relativos à sua vida e bem-
cia estão parcialmente institucionalizados e -estar cotidianos politizam o seu dia a dia e
que os atos de desobediência civil, embora se organizam de forma associativa em torno
tenham como projeto a utopia democrática, dessas bandeiras. O autor denominou cidada-
são exemplos de autolimitação do radica- nias insurgentes todas as formas associativas
lismo49. Ademais, exemplificam que muitos que encontrou em seu estudo sobre bairros
atos que foram considerados desobediência na periferia de São Paulo, de associações de
civil no passado, como as greves, hoje fazem moradores a facções criminosas, que reivindi-
parte das formas de participação democráti- cam direitos denegados, sejam eles direitos à
ca, porque propiciaram a criação e expansão titularidade da moradia, às lutas dos sem-te-
de direitos e da própria democracia. to, a melhorias nas condições de vida ou nas
A proposição de uma democracia radical condições carcerárias. Enquanto a cidadania
como estratégia para conquista de uma he- formal se situa na esfera pública, aqueles que
gemonia socialista, de Laclau e Mouffe50, são dela excluídos se organizam a partir da
busca identificar as condições discursivas casa, do espaço privado, a partir do qual for-
para a emergência de uma ação coletiva na mulam suas demandas em termos de direitos.
luta contra as desigualdades e relações de su- A expansão da cidadania e a consolidação
bordinação. Trata-se de buscar as condições da democracia implicam a construção de
nas quais uma relação de subordinação se um ordenamento legal e institucional, até
torna uma relação de opressão, constituindo- mesmo em sua constitucionalização52, que
-se em um lugar de antagonismo50. Os autores assegure o gozo dos direitos e sua exigibili-
identificam relações de subordinação como dade. Essas dimensões normativas, legais e
sendo aquelas nas quais um agente submete institucionais tratam do controle e padro-
outro a sua decisão; relações de opressão, nização, portanto da ordem social, seja ela
como aquelas relações de subordinação que fruto de imposição, de conquistas, de pactos
se transformam em lugares de antagonismo, ou deliberações. Sua origem determinará o
e relações de dominação como o conjunto de conteúdo democrático desse ordenamento.
relações de subordinação que são considera- No entanto, a cidadania não se trata de um
das ilegítimas. Entendendo que as formas de mero status atribuído aos indivíduos como
resistência às novas formas de subordinação dizia Marshall6, o que coloca os indivíduos
são polissêmicas, propõem sua articulação na condição de suporte material dos direi-
hegemônica por meio de cadeias de equiva- tos, mas requer a constituição prévia do
lentes. Embora afirmando a necessidade de sujeito, cuja emergência requer a ruptura
radicalização da democracia, por meio das re- com a ordem estabelecida53 antes de impor
lações antagônicas e dos conflitos agônicos, os sua presença como ator que transforma
autores limitam sua proposta para as esquer- esta própria ordem. A ruptura se dá na sua
das assumirem a defesa de um a democracia própria constituição, anteriormente dene-
radical e plural, conflitos agônicos transacio- gada na esfera política, o que não quer dizer
nados dentro das normas democráticas. que sua ação como ator não possa ser refor-
Houston51 identifica na existência de mista ou conservadora.
disjunções nas democracias que não al- Termino deixando em aberto as várias
cançam garantir o conjunto dos direitos de formas de desenvolvimento histórico da ci-
cidadania a todos os seus moradores, em dadania para que possamos pensar a forma
especial para aqueles residentes às margens que melhor se adequaria a atual conjuntura
das grandes metrópoles, a emergência de crítica da democracia e da cidadania às pa-
cidadanias insurgentes. Nessas situações, lavras de Balibar12 para quem a cidadania

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122 Fleury S

ultrapassa a democracia e não tem porque they are sanctioned by `Law’. But the `in-
restringir-se ao território nacional, sendo surrectional’ element that accounts for the
que o essencial é a permanente tensão entre emancipatory effects of the claim of rights
os momentos de insurreição e de constitui- (petitio iuris) can take many forms,
ção, no sentido de relações das forças sociais which have a different phenomenology in
mais estáveis ou menos hegemônicas. terms of campaigns, party mobilization, tem-
poral condensation or distension, violent or
Rights’, both individual and collective (and in nonviolent relationship of forces, rejection or
fact granted to individuals through the efforts use of the existing institutions, juridical forms,
of collective movements), are vindicated [as and so on12(438). s
Mary Wollstonecraft (1792) once wrote] and

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Recebido em 03/08/2018
Diplomatique Brasil. 2013 fev; 6(67):8-9. Aprovado em 21/08/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

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ENSAIO | ESSAY 125

Civilização ou barbárie
Civilization or barbarism

Lucia Regina Florentino Souto1, Gustavo Souto Noronha2, Ana Maria Costa3, Telma Ruth Pereira4,
José Carvalho de Noronha5

DOI: 10.1590/0103-11042018S310

1 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola RESUMO O artigo buscou entender os desafios para a construção de uma sociedade amparada
Nacional de Saúde em direitos sociais e de cidadania dentro da atual crise do capitalismo e do golpe de 2016.
Pública Sergio Arouca
(Ensp), Departamento de Contextualiza o atual cenário com o qual se defronta para, em seguida, discutir o conflito pela
Direitos Humanos, Saúde distribuição da riqueza. Posteriormente, traz a discussão do golpe e mostra as diversas ten-
e Diversidade Cultural
(DIHS) – Rio de Janeiro tativas de desconstrução da Constituição de 1988 que culminam na Emenda Constitucional
(RJ), Brasil. 95. Nesse cenário, observa as perspectivas para o Sistema Único de Saúde (SUS) e conclama à
Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-2270- retomada do espírito de 1988.
8424
luciafsouto@yahoo.com.br
PALAVRAS-CHAVE Democracia. Direitos socioeconômicos. Capitalismo. Constituição e esta-
2 InstitutoNacional de tutos. Sistema Único de Saúde.
Colonização e Reforma
Agrária (Incra) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. ABSTRACT The article seeks to understand the challenges for building a society based on social
Orcid: https://orcid.
org/0000-0001-7860- rights and citizenship within the current crisis of capitalism and the coup of 2016. It contextual-
6641 ises the current scenario we face and then discusses the conflict over the distribution of wealth.
noronha.gustavo@gmail.com
Next, it brings the discussion of the coup and shows the various attempts to deconstruct the 1988
3 Escola Superior de Constitution which culminate in Constitutional Amendment 95. In that scenario, it observes the
Ciências da Saúde (ESCS)
– Brasília (DF), Brasil. perspectives for the Unified Health System (SUS) and calls for a resumption of the spirit of 1988.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-1931-
3969 KEYWORDS Democracy. Socioeconomic rights. Capitalism. Constitution and bylaws. Unified
dotorana@gmail.com Health System.
4 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Iniciativa Brasil
Saúde Amanhã – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-2356-
5544
ruthtelma@gmail.com

5 Fundação Oswaldo Cruz

(Fiocruz), Instituto de
Comunicação e Informação
Científica e Tecnológica
em Saúde (ICICT) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
noronhajc@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 125-144, NOVEMBRO 2018
126 Souto LRF, Noronha GS, Costa AM, Pereira TR, Noronha JC

O panorama que nos Os atuais padrões de consumo da humani-


defrontamos dade são insustentáveis. Anualmente, cerca
de um terço de toda a produção mundial de
alimentos (1,3 bilhão de toneladas com valor
Oito bilionários possuem tanta riqueza quanto estimado de US$ 1 trilhão) é desperdiçada. A
3,6 bilhões de pessoas no planeta. O 1% mais degradação das terras, o declínio da fertili-
rico possui mais riqueza que os outros 99%. dade do solo, o uso insustentável da água, a
Nos próximos 20 anos, 500 pessoas passarão pesca predatória e a degradação do ambiente
mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdei- marinho estão deteriorando a capacidade de
ros, mais que o Produto Interno Bruto (PIB) atendimento da oferta de alimentos baseada
da Índia com seus 1,2 bilhão de habitantes. no uso dos recursos naturais. Caso a popu-
Enquanto a renda dos 10% mais pobres au- lação atual do mundo adotasse o padrão de
mentou cerca de US$ 65 entre 1988 e 2011, a do consumo dos Estados Unidos da América
1% mais rico cresceu cerca de US$ 11.800, 182 (EUA), seriam necessárias hoje 4,1 Terras, o
vezes mais. Um diretor executivo de qualquer padrão da França, 2,5 Terras3. Menos de 3%
uma das 100 companhias com maior valor de das reservas de água do mundo é potável,
mercado da Bolsa de Londres ganha o mesmo das quais 2,5% encontram-se congeladas
em um ano que 10 mil pessoas que trabalham nas regiões ártica, antártica e em geleiras,
em fábricas de vestuário em Bangladesh. Uma ainda assim a humanidade polui as fontes
pesquisa recente realizada pelo economista de recursos hídricos mais rapidamente
Thomas Piketty1 nos Estados Unidos revela que a capacidade natural de recuperação
que, nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais de rios e lagos. Ao mesmo tempo que o uso
pobres permaneceu inalterada em face de um excessivo de água contribui para a escassez
aumento de 300% do 1% mais rico. O homem hídrica, um bilhão de pessoas não tem acesso
mais rico do Vietnã ganha mais em um dia do à água potável. O consumo energético nos
que a pessoa mais pobre ganha em dez anos2. países da Organização para a Cooperação
Piketty1 demonstra, por meio de séries e Desenvolvimento econômico (OCDE)
históricas seculares, que a desigualdade é crescerá 35% até 2020 e, apesar dos ganhos
inerente ao capitalismo. Com base em pres- tecnológicos que tem promovido ganhos
supostos plausíveis (que os ricos poupem de eficiência, apenas um quinto da energia
o suficiente), a proporção entre riqueza utilizada no mundo em 2013 foi de fontes
herdada e renda (ou salários) continuará a renováveis4. Os Estados Unidos, com menos
crescer desde que a taxa média de retorno de 5% da população mundial, consome um
do capital exceda a taxa de crescimento da quarto das reservas globais de combustíveis
economia. Ele sustenta que esse é o padrão fósseis – 25% do carvão mineral, 26% do pe-
histórico, exceto durante a primeira metade tróleo e 27% do gás natural5.
do século XX, quando tivemos duas guerras Dito isso, lembramos que o capital vai
mundiais e a revolução russa. Desse modo, sempre criar necessidades irrelevantes.
vivemos em um modelo no qual a desi- Devemos sempre lembrar que, na atual
gualdade crescerá a níveis nunca vividos. lógica, os produtos vão se tornando rapida-
Os argumentos de Piketty1, ainda que não mente obsoletos e que nos vemos obrigados
se amparem em qualquer noção de luta de a consumir para não ficarmos obsoletos.
classes, reforçam o questionamento de que A cada ano, lança-se um novo aparelho de
os modelos neoclássicos tendem a desconsi- telefonia móvel; e, mesmo com o anterior
derar a alocação inicial dos fatores. Ou seja, funcionando perfeitamente, as pessoas sen-
se começamos desiguais, seremos cada vez tem-se impelidas ao consumo, comprando os
mais desiguais. modelos de última geração. Em realidade, o

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Civilização ou barbárie 127

consumo torna-se o principal culto da reli- do norte não é reproduzível para o conjunto
gião do capitalismo6. das pessoas do mundo.
É exatamente o modo de produção que Vivenciamos uma crise ecológica sem pre-
permite o atual padrão de consumo que cedentes e, mais uma vez, precisamos voltar
devasta nossas florestas e seca nossos rios, aos clássicos e atentar ao que Marx9(132-133) já
enfim, tem destruído o planeta e seus recur- colocou em ‘O Capital’:
sos naturais. Compromete assim o ciclo de
chuvas, fertilidade do solo e, por consequên- Com a preponderância sempre crescente da
cia, a própria produção de alimentos para a população urbana que amontoa em grandes
população. As terras agriculturáveis vão se centros, a produção capitalista acumula, por
esgotando no atual modo de produzir e no um lado, a força motriz histórica da socieda-
seu avanço sobre as florestas nas fronteiras de, mas perturba, por outro lado, o metabo-
agrícolas, ainda que alguém concorde que lismo entre homem e terra, isto é, o retorno
possa aumentar a produção de alimentos no dos componentes da terra consumidos pelo
curto prazo, não se sustenta no longo prazo. homem, […], à terra, [perturba] portanto a
O próprio padrão de produção agrícola hoje eterna condição natural da fertilidade do solo.
esgota o solo com suas monocultoras e en- […] E cada progresso da agricultura capitalis-
venena a terra, a água e os alimentos que ta não é só um progresso na arte de saquear
consumimos. A vida da nossa espécie encon- o trabalhador, mas ao mesmo tempo na arte
tra-se ameaçada. Os impactos das atividades de saquear o solo, pois cada progresso no
humanas influem no equilíbrio ecológico que aumento da fertilidade por certo período é
permite a sobrevivência da espécie humana. simultaneamente um progresso na ruína das
Friedrich Engels, citado por Rosa de fontes permanentes dessa fertilidade.
Luxemburgo7, nos ensinou algo que, se
podia não estar claro à época, hoje é límpido: Para evitar a barbárie, que, aliás, já se abate
“A sociedade burguesa se encontra diante em várias partes do mundo, há que se agregar
de um dilema: ou avanço para o socialismo a defesa do planeta como parte indissociável
ou recaída na barbárie”. Vivemos tempos da luta pelo socialismo. As crises econômica,
difíceis, tempos de crise financeira, que, na energética, alimentar e ecológica decorrem
verdade, vem se mostrando uma das mais do insustentável padrão de consumo imposto
profundas e resilientes crises econômicas do pelo capitalismo. Desse modo, Mészaros8 nos
capitalismo, cujo futuro é imprevisível. aponta que a alternativa socialista não é só
Não nos parece possível uma saída da apenas possível, mas também necessária para a
crise sem a reversão do modo de ser da so- sobrevivência da Humanidade.
ciedade capitalista, o crescimento econômi-
co como equação linear não resolve. Todavia
a crise não é apenas econômica, é alimentar, A radicalização da tensão
energética e ecológica. É uma crise do atual capitalismo e democracia: o
sistema político e econômico.
Não por outra razão que o dilema socialis-
conflito pela distribuição da
mo ou barbárie, de fundamental importância riqueza
para qualquer discussão política desde o
século XIX, está mais atual que nunca. Ou A sociedade capitalista tal como conhece-
melhor, barbárie se tivermos sorte, nos atu- mos hoje foi moldada sob a ameaça do so-
alizou Mészaros8. O padrão de produção, cialismo realmente existente. O estado de
distribuição, acumulação e consumo hoje bem-estar social ou mesmo a macroecono-
existente nas nações europeias e americanas mia keynesiana e suas preocupações com o

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128 Souto LRF, Noronha GS, Costa AM, Pereira TR, Noronha JC

emprego só foram possíveis e viabilizados como austeridade, é algo nocivo à sociedade.


em um contexto da ameaça do socialismo As decisões de políticas públicas deveriam
soviético, uma face humana do capitalismo se pautar, portanto, pela responsabilidade
fazia-se necessária para evitar o comunismo. econômica e social sintetizada nas variáveis
A simples ideia de um capitalismo democrá- inflação e emprego, bem como na construção
tico só fazia sentido diante do ‘sucesso’ do de um Estado de Bem-Estar Social.
socialismo real. O fim da utopia construída O argumento dos economistas que defen-
desde aquele fatídico outubro trouxe de dem a austeridade parte da interpretação
volta a forma mais violenta do capitalismo smithiana de moeda enquanto uma merca-
de livre mercado, o neoliberalismo. doria. Entretanto, Innes10 demonstrou que
Entender como funcionou essa forma mais a moeda é uma relação de crédito e débito.
ou menos inclusiva do capitalismo requer A aceitação de um débito de um determi-
compreender as nuances do debate econômi- nado agente por outro é o ato que em si cria
co, que antes se encerrava na dicotomia capi- a moeda. De forma bastante simplificada,
talismo versus socialismo e hoje se concentra como há a obrigação do pagamento dos tri-
entre uma maior ou menor intervenção do butos, entende-se, portanto, que a moeda
Estado na economia. Subjacente a essa dis- em última instância seria uma criatura do
cussão está a controvérsia sobre a construção Estado11. Sob esta ótica, ainda de maneira
de um estado de bem-estar social com um bastante abreviada, o dispêndio público seria
sistema de seguridade social que proteja a financiado sempre pela emissão monetária,
população do desemprego e da perda da ca- enquanto a tributação e o endividamento do
pacidade de trabalho (por doença ou velhice). estado seriam apenas formas de reduzir a
As diversas sociedades se organizam em siste- quantidade de moeda em poder do público.
mas políticos que pendem entre uma ou outra Desse entendimento, deriva-se a ideia das
opção, podendo variar conforme o tempo. finanças funcionais, um contraponto à ideia
O grande dilema para o estabelecimento das finanças saudáveis que tem embasado
efetivo de uma sociedade na qual o Estado todo o pensamento de austeridade e coloca
garanta o bem-estar social de seus cidadãos os governos reféns dos resultados fiscais12.
sempre foi sua capacidade de financiar o Nessa perspectiva, rejeita-se a ideia de equi-
sistema de seguridade e garantir serviços públi- librar o orçamento governamental em um
cos básicos como saúde e educação. A grande ano ou qualquer outro período arbitrário
sacada da direita liberal foi associar toda a dis- para que o gasto público seja orientado pelo
cussão sobre orçamento público que é comple- nível do emprego e pela taxa de inflação.
xa a uma linguagem que iguala a economia do Kalecki13 ressaltava, em 1942, na abertura
setor público à economia doméstica, de forma de seu ‘Aspectos políticos do pleno emprego’,
que se repete à exaustão o mantra de que o ‘o que uma maioria consolidada dos economis-
governo não pode gastar mais do que arrecada’. tas já seria da opinião de que, mesmo em um
Nesse sentido, é preciso reafirmar que sistema capitalista, o pleno emprego poderia
não há objeção alguma à ampliação do gasto ser assegurado por um programa de gastos
público para um país emissor de sua própria do governo, desde que houvesse um plano
moeda, com oferta suficiente de trabalho e adequado para empregar toda a força de
matérias-primas e sem restrições externas. trabalho existente, e desde que a oferta de
Sempre que ocorrer deficit no setor público, matérias-primas estrangeiras necessárias
haverá superavit no setor privado e, portan- pudesse ser obtida em troca de exportações.
to, o superavit público significa um deficit das Kalecki13 continua correto.
empresas e das famílias. Dito de outra forma, No mesmo texto, entretanto, Kalecki13
a responsabilidade fiscal, também conhecida colocava que apesar de a maioria dos

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Civilização ou barbárie 129

economistas concordar que o pleno emprego capitalistas se oporem a qualquer política de


poderia ser alcançado pelos gastos do pleno emprego são as eventuais mudanças
governo, não teria sido este o caso, mesmo no políticas e sociais dele decorrentes. O natural
passado recente (passado recente em relação empoderamento da classe trabalhadora em
ao seu texto). Kalecki13 classifica os oposito- um regime no qual a demissão não teria
res da doutrina do pleno emprego como pro- mais o seu caráter disciplinador. O poder de
eminentes e autointitulados ‘especialistas barganha e a consciência de classe do tra-
econômicos’ estreitamente ligados à banca e balhador aumentariam, seriam naturais o
à indústria. Fica evidente, portanto, que, pelo aumento das greves e do tensionamento po-
menos desde os anos 1940, as razões de natu- lítico. Ainda que com maiores rendimentos,
reza política prevalecem na defesa de políti- Kalecki13 nos coloca que:
cas de austeridade pelo mundo. Kalecki13 nos
apresenta três dessas razões. a ‘disciplina nas fábricas’ e a ‘estabilidade po-
Primeiro, em um sistema de livre mercado, lítica’ são mais apreciadas do que os lucros
o nível de emprego depende sobretudo da pelos líderes empresariais. Seu instinto de
confiança dos agentes. Isso dá aos capitalis- classe lhes diz que um pleno emprego dura-
tas, segundo Kalecki13, um poderoso contro- douro é inaceitável a partir do seu ponto de
le indireto sobre a política governamental: vista, e que o desemprego é uma parte inte-
tudo o que pode abalar o estado de confiança grante do sistema capitalista ‘normal’.
deve ser evitado porque isso causaria uma
crise econômica. Em outras palavras, é preciso desempre-
A segunda razão das oposições políticas go para colocar a classe trabalhadora no seu
advém da direção do gasto público. Primeiro, devido lugar.
se o investimento público ocorre em qual- Caso um governo que busque o pleno
quer direção em que o capital possa com- emprego se mantenha por um longo período,
petir com o Estado, ele não será bem-vindo, certamente haverá uma aliança entre a in-
ou, na melhor das hipóteses, será aceito de dústria e a banca para desmontar esse tipo de
forma precária. Um sistema público de saúde política. Kalecki13 profetiza que há de se en-
eficiente e funcional elimina, por exemplo, contrar mais de um economista para decla-
o mercado de planos de saúde, o mesmo se rar que a situação era manifestamente frágil.
aplica à educação pública em contraponto ao Esse conjunto de forças necessariamente in-
ensino privado ou à existência de empresas duziria uma guinada rumo a uma política or-
estatais que concorrem (ou monopolizam) todoxa para reduzir os deficit orçamentários.
nos mais diversos mercados. Somente na recessão subsequente os gastos
Ainda na direção do dispêndio público, governamentais voltariam a ser aceitos. Por
mesmo os subsídios ao consumo de massa fim, conclui seu texto dizendo que:
(transferências às famílias, subsídios a bens de
primeira necessidade etc.) não são bem vistos. Se o capitalismo puder se ajustar ao pleno em-
Mesmo não embarcando em qualquer tipo de prego, uma reforma fundamental terá sido incor-
empreendimento e ainda aumentando o lucro porada nele. Caso contrário, se mostrará um sis-
das empresas, Kalecki13 nos alerta que a oposi- tema ultrapassado que deverá ser descartado13.
ção a esse tipo de gasto costuma ser mais vio-
lenta que ao investimento público, pois, neste As digressões dele foram feitas em uma
caso, está em jogo um dos princípios morais ba- palestra proferida à Sociedade Marshall,
silares do sistema capitalista, ‘você deve ganhar em Cambridge, na primavera de 194213. A
o seu pão com seu suor’. história nos mostrou que o capitalismo não
Por fim, a terceira e última razão para os apenas não incorporou o pleno emprego

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130 Souto LRF, Noronha GS, Costa AM, Pereira TR, Noronha JC

como direcionador das políticas econômicas Se o momento atual não possui o padrão
como também vem se constituindo em um ouro que quando se dissolveu “a própria ci-
sistema devastador para todo o planeta. vilização foi engolfada”14(256-257), a mesma
Na verdade, Polanyi14(232) já nos alertava incompatibilidade entre o capitalismo e a
que “a maior parte da confusão existente na democracia está presente. Polanyi14(264) foi
teoria monetária se devia à separação entre categórico ao afirmar que “não houve um
política e economia”. Os liberais normalmen- único militante liberal que deixasse de ex-
te sempre argumentam que uma espécie de pressar a sua convicção de que a democracia
conspiração coletivista impede os benefícios popular era um perigo para o capitalismo”.
plenos do liberalismo, pois continuamente Isso fica claro quando ele coloca:
mina os esforços para a aplicação da agenda
liberal que salvaria a economia; é interes- A separação de poderes, que Montesquieu
sante notar que eles constantemente alegam (1748) havia inventado nesse intervalo, era
que as medidas adotadas são insuficientes e usada agora para isolar o povo do poder sobre
pedem mais e mais liberalismo. Felizmente a sua própria vida econômica. A constituição
essa ideia já foi desconstruída por Polanyi14. norte-americana, modelada num ambiente
No entanto, Braudel15(579) nos mostra de de fazendeiros e artífices por uma liderança
maneira mais enfática as relações de inter- já precavida pelo cenário industrial inglês,
dependência entre o Estado e o Capital: isolou completamente a esfera econômica
da jurisdição da constituição, colocando a
Os homens de negócios gostam de dizer que propriedade privada sob a mais alta prote-
a política ocupa atualmente o principal papel, ção concebível, e criou a única sociedade de
que o poder do Estado é tal que nem o banco, mercado legalmente constituída no mundo.
nem o grande capital industrial contam com Apesar do sufrágio universal, os eleitores
relação a ele. E, claro, não faltam analistas sé- norte-americanos não tinham poder contra
rios que falam do Estado mastodonte, do Es- os proprietários14(264).
tado que tudo esmaga e retira a iniciativa do
setor privado, da liberdade benéfica do ‘ino- No Brasil atual, a Lei de Responsabilidade
vador’. Dever-se-ia obrigar esse mastodonte Fiscal e a recente Emenda Constitucional
a voltar ao seu antro. Mas também lemos o – EC nº 95 são exemplos concretos do iso-
contrário, ou seja, que a economia e o capital lamento da esfera econômica de qualquer
invadem tudo, esmagam a liberdade dos indi- influência do poder político.
víduos. Na realidade, não nos deixemos enga- O processo de transição do capitalismo
nar, Estado e Capital, ou pelo menos um certo industrial para o capitalismo financeiro nos
capital, o das grandes firmas e dos monopó- últimos 30 anos radicaliza a tensão capitalis-
lios, formam um bom casal, e este último, sob mo e democracia, constituindo-se em um dos
nossos olhos, sai-se muito bem. […] graças desafios cruciais à difícil democracia diante do
às suas boas relações, à sua simbiose com deficit democrático produzido pelo processo
o Estado, distribuidor de vantagens fiscais global de desorganização do Estado democrá-
(para ativar o sacrossanto investimento), de ticos, as democracias sociais, do pós-guerra. Os
encomendas suntuosas, de medidas que lhe neoliberais pretendem desorganizar o Estado
abrem melhor os mercados externos, é que o democrático por meio da inculcação na opinião
‘capitalismo monopolista’ […] prospera. […] pública da suposta necessidade de várias tran-
[O] entendimento entre o Capital e o Estado sições, como menciona Santos16.
não é de hoje. Atravessa os séculos da moder- Streeck17 se refere a esse processo de
nidade, a ponto de, cada vez que o Estado va- transição do capitalismo industrial para
cila […] vermos o capitalismo acusar o golpe. o financeiro nos últimos 30 anos como a

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Civilização ou barbárie 131

desdemocratização do capitalismo – ou o remuneradas por emissores de papéis podres,


que designa como hayekização do capita- dando-lhes melhores notas, a farra dos paraísos
lismo. Hayek, citado por Streeck17, em 1939, fiscais e diversas e sofisticadas formas de mani-
escreveu artigo precursor do que viria a pulação do mercado financeiro18.
ser a configuração da União Europeia, pro- A anarquia global, para Streeck18, aparece-
pondo uma instância técnica, restrita à es- ria em um quadro de instabilidade crescente
pecialistas, a partir de argumentos como: diante da dificuldade de os EUA continuar a
intervenções políticas no mercado seriam exercer o papel de centro monetário digno de
intoleráveis e prejudiciais; e a necessidade confiança, como a Grã-Bretanha, na década
de restringir o alcance e a profundidade da de 20, e os Estados Unidos, entre 1945-1970.
política econômica de cada Estado-membro, Todavia, da mesma forma como descrito por
como, por exemplo, ter política monetária Tavares19, para o final dos anos 1970 e início
própria. Essa configuração ‘política’ cria a da década de 1980, os EUA parecem voltar
farsa de ‘especialistas’, não políticos, dispo- à estratégia da retomada da sua hegemonia
rem da vida de milhões de pessoas em nome por meio do dólar forte, como agora, sob a
da técnica, da economia. égide de Donald Trump.
O custo tem se mostrado elevado. O estudo As políticas de austeridade, como
de Piketty1 sobre as dinâmicas que movimen- comenta Santos16, visam esvaziar a democra-
tam a acumulação e a distribuição do capital cia representativa das políticas de inclusão
constata que a taxa de rendimento do capital social alimentando a tensão democracia e
supera o crescimento econômico, o que se capitalismo. Para ele, as resistências podem
reflete em uma concentração cada vez maior ser construídas a partir das causas ou a partir
de riqueza e aumento das desigualdades. Um das consequências dessas políticas. Quando
ciclo vicioso de desigualdade que ameaça os construída a partir das causas, a captura do
valores democráticos. Estado por forças antidemocráticas com sua
Streeck18 afirma que estaríamos vivendo enorme concentração de renda e restrição de
a agonia do capitalismo. Os sintomas seriam direitos, a resistência se assenta na amplia-
cinco doenças sistêmicas do capitalismo: estag- ção de direitos e na convicção de que são po-
nação, redistribuição oligárquica, pilhagem do líticas arbitrárias e injustas, que optam por
setor público, corrupção e anarquia global. salvar bancos e impor pobreza às famílias.
A redistribuição oligárquica implica o Quando a resistência é construída a partir
descolamento dos capitalistas da econo- das consequências das políticas de austeri-
mia. A pilhagem do setor público se dá pela dade, apoia-se na convicção de que estas são
apropriação privada do Estado: no mesmo resultados dos excessos de bem-estar, de di-
compasso em que os ganhos de renda se reitos e proteção social16.
concentram no 1% mais rico, o setor público Aqui é importante resgatar a ideia de que,
das economias capitalistas encolhe de forma após o colapso, as ideias neoliberais se tor-
dramática. A austeridade imposta à socieda- naram hegemônicas, todavia, após a crise de
de é mais uma expressão do deslocamento 2008, concepções do século XIX parecem
da economia dos oligarcas da economia das retornar, pois:
pessoas comuns.
O domínio do setor financeiro na economia tudo que era tido como sólido e estável se
e as finanças como indústria colocam a corrup- desmancha no ar, tudo quanto era sagra-
ção em um patamar ilimitado. A crise de 2008 do é profanado, e os homens são obriga-
transpareceu apenas a ponta de um iceberg, dos, enfim, a encarar de frente, sem ilusões,
mas que expôs a extravagância da corrupção suas condições de existência e sua relação
como as agências de classificação de risco recíproca20(55).

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132 Souto LRF, Noronha GS, Costa AM, Pereira TR, Noronha JC

Os eventos de 2008 desmancharam no ar as à época, por Carlos Lacerda a ilegalidade de


sólidas análises das agências de classificação de sua vitória por ter recebido votos de comu-
risco e desmistificaram a utopia neoliberal. nistas, cujo Partido Comunista Brasileiro
Isso se desenrola em um cenário no qual o (PCB) estava na ilegalidade. As denúncias de
sistema internacional parece cada vez mais corrupção são novamente utilizadas como
caótico. Há um novo arranjo global, como parte das justificativas, com a bandeira do
demonstrou Fiori21, em que nos deparamos anticomunismo, para a derrubada de João
com uma mudança no sistema internacional Goulart. O ponto comum entre os golpistas
em que a ordem internacional fundada numa é a rejeição a um progresso econômico com
ética de referência comum global, desapare- políticas distributivas e direitos de cidadania.
ceu. Um sistema no qual há um país (China) Souza22(112) comenta que em toda a história
recém-incorporado à ordem internacional republicana “o mote da corrupção é sempre
capitalista com um quinto da população do usado como arma letal para o inimigo de classe
mundo, cuja civilização nada tem a ver com da elite e seus aliados”. Como ressalta, isso
a civilização cristã ocidental. sempre ocorre toda vez que se pratica políticas
de inclusão dos setores marginalizados, com
Este sistema, neste momento, está girando menor participação no orçamento dos endi-
com uma regra só, […] acabou-se a possibi- nheirados e aumento relativo do salário dos
lidade de arbitragem ética internacional, não trabalhadores, ou quando o Estado conduz po-
tem mais árbitro e, portanto, o que vale aqui é líticas de desenvolvimento de longo prazo.
o interesse americano, ali vale o interesse rus-
so e lá vale o interesse chinês. E este é o famo- A ideia é que a riqueza do país já tem dono,
so sistema de Westfália, criado em 1648, que ou seja, ela é privada e deve ser privatizada.
virou em guerra permanente até o século XIX, São esses os dois crimes que estão, verda-
quando finalmente em Viena se estabelecia deiramente por trás de toda manipulação da
uma regra básica de convivência entre as po- corrupção brasileira22(112).
tências. Porque no sistema de Westfália, que
estamos neste momento, só tem uma regra: O golpe de 2016 expressou a reiteração
é cada um por si e, na divergência, a guerra21. do pacto das elites do dinheiro e do conhe-
cimento vigente desde o fim da escravidão
e do nascimento do capitalismo moderno
entre nós22. Souza24 coloca que ‘no Brasil
Um golpe nos direitos do atual prospera uma sociedade sem culpa e
povo sem remorso, que humilha e mata os pobres’.
As interpretações hegemônicas ancoradas
Fingindo-se indignada com a corrupção, a no patrimonialismo e no populismo atuam
elite brasileira patrocinou a destituição da na reprodução e eternização de privilégios.
presidenta Dilma Rousseff no processo do A tese do patrimonialismo oculta a captura
golpe de 2016. O tema da corrupção – como do Estado pelo mercado via sua demoniza-
mostram vários autores, Souza22, Santos23 ção e exaltação do mercado virtuoso. O tema
– sempre foi uma retórica utilizada para do populismo desqualifica qualquer coisa
ocultar a reação das elites brasileiras escra- oriunda das camadas populares, incapazes
vocratas e subalternas diante das derrotas de reflexão e sempre sujeitas à manipulação
eleitorais para projetos de cunho democráti- por líderes populistas.
co popular e afirmação de políticas de cunho Além da diferença essencial entre os
social, de soberania. A mesma retórica foi uti- golpes de 1964 e 2016, relativa à técnica
lizada contra Juscelino, sendo até aventada, adotada, o golpe parlamentar, Santos23

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Civilização ou barbárie 133

considera que há algo mais em 2016 do que de protagonismo no movimento, ainda que, na
o medo anticomunista de 1964, bem como verdade, fosse um mero instrumento de ma-
algo menos. O pavor irracional ao comunis- nipulação do consórcio golpista elites/mídia.
mo é o ausente atual porque o fantasma do Esse sentimento foi construído com maestria
anticomunismo já não mobiliza como antes, sob a batuta do Jornal Nacional. O segundo
as menções à Cuba não se comparam com a dado decisivo da construção moral desse grupo
proporção que adquiriu a Marcha da Família foi a substituição, construída pouco a pouco,
com Deus pela Liberdade em 1964. O que há das bandeiras por melhores serviços públicos
a mais é o repúdio visceral às políticas distri- pela bandeira – a essa altura ainda abstrata – do
butivas de enfrentamento das desigualdades. combate à corrupção e a Proposta de Emenda
Santos23 descreve que o golpe parlamen- Constitucional – PEC 3722.
tar em sociedades de democracia represen- A integração dessa fração conservadora
tativa de massas significa o sequestro do à dinâmica do golpe foi decisiva. A primeira
poder constituinte do povo. A Constituição tentativa de golpe pelo consórcio golpista,
passa a ser dogmaticamente reinterpretada mídia, congresso comprado e justiça justicei-
pelo governo golpista, sobre o que é constitu- ra estava presente no processo do chamado
cional e o que é crime contra a Constituição. ‘mensalão’ em 2005. O ensaio geral do
Sem o acordo tácito entre considerável mensalão fracassou apesar da feroz campa-
maioria do judiciário e do Legislativo, não há nha midiática; Lula foi reeleito pela adesão
golpe parlamentar. Os golpes parlamentares popular às políticas de inclusão social, pois,
constituem um fenômeno novo na história como comenta Souza, para as camadas po-
das tensões entre capitalismo e democracia. pulares, a corrupção é um dado universal da
Nas palavras de Santos23(8): ‘política dos ricos’22.

A trapaça nacional compõe capítulo subur-


bano de eminente processo de longa duração As resistências contra a
em que as utopias de sociedades fundadas na Constituição Cidadã
solidariedade foram dizimadas pela horda dos
acumuladores e concentradores de lucros. A Constituição de 1988 inaugurou etapa inédita
Esta história tem um sentido disputado por de construção da cidadania, um sistema de pro-
filósofos e analista sociais. teção social inspirado em valores de Estado de
Bem-Estar Social que sofrem longo processo de
Para Souza22, a associação de uma justiça reação a essas conquistas.
escancaradamente seletiva, um parlamento Logo no seu alvorecer, o então presidente
comprado, uma mídia partidarizada, uma José Sarney afirmou que o País ficaria ‘ingo-
base social radicalizada criou o clima insur- vernável’ se aprovado o capítulo da ordem
recional que possibilitou o golpe. Em sua social. Em 1990, após a eleição de Fernando
análise da dinâmica social do golpe sobre as Collor, chegou ao Brasil o grande consenso
jornadas de junho de 2013, comenta o prota- favorável às políticas de ajuste e às contrar-
gonismo da classe média conservadora como reformas do Consenso de Washington, uma
base social do golpe, uma fração privilegiada, agenda que foi parcialmente interrompida
branca e bem-vestida, que passava a impres- com impeachment. Itamar Franco, apesar da
são de defender o ‘interesse nacional’: uma estabilização da economia, trouxe com ele o
mudança para o melhor para todos. Fundo Social de Emergência (Posteriormente,
O componente moral também foi decisi- Desvinculação de Receitas da União – DRU)
vo e atuou em dois sentidos. O primeiro foi que permitiu a desvinculação de 20% das
incutir nessa fração de classe o sentimento fontes financiamento constitucionais.

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134 Souto LRF, Noronha GS, Costa AM, Pereira TR, Noronha JC

Fernando Henrique Cardoso, em social universal, o Brasil destoa dos países


seu último discurso no Senado antes de que dispõem de sistemas universais na com-
assumir a presidência, anunciou ‘o fim da posição entre arranjos públicos e privados
era Vargas’. Introduziram-se aí as políticas de financiamento e provisão de serviços. Os
de austeridade com a institucionalização gastos per capita mostram a distância entre o
do superavit primário e com a limitação da tamanho dos gastos públicos no Brasil e nos
política fiscal do governo federal com a Lei países desenvolvidos, medidos em paridade
de Responsabilidade Fiscal. Foi feita uma de poder de compra: 611 para o Brasil, 3.288
reforma da previdência com a incorpora- para o Reino Unido, 4.408, Suécia, 3.574,
ção de critérios financeiros e atuariais nos França, e 4.696 para os EUA26,27.
regimes previdenciários, além do fim da
aposentadoria por tempo de serviço, sendo
substituída pelo tempo de contribuição. A A EC 95 e a devastação
política monetária foi recorrentemente re- anunciada
cessiva, inclusive com a revogação do limite
constitucional de 12% para a taxa de juros. A Constituição de 1988 fixou 25% da receita
Além disso, foram feitas diversas privatiza- de contribuições da Seguridade Social para
ções, sempre a partir de uma estratégia de o financiamento federal das ações e servi-
desenvolvimento subalterna à potência he- ços de saúde. A DRU, vigente desde o Fundo
gemônica, os EUA Social de Emergência do governo Itamar
No início da década de 2000, o sistema Franco, impediu que prosperasse a vincula-
de saúde brasileiro encontrava-se fraturado ção; e, em 2000, a EC nº 29 vinculou recei-
em dois. De um lado, um sistema para ricos tas de estados e municípios em 12% e 15%,
e remediados, com redução ou quebra de respectivamente (regulamentada pela Lei
cobertura nas doenças crônicas e na velhice, Complementar nº 141/2012)28, e rompeu,
que obtém algum grau de regulação com a para a União, com a dedicação das contri-
aprovação da Lei nº 9.656/1998. De outro, o buições sociais à Saúde e associou seu cres-
Sistema Único de Saúde (SUS), de caráter cimento a variações nominais do PIB.
público e nominalmente universal, utilizado Os anos 1990 trouxeram o engessamento
por 75% da população, ainda fragmentado, do executivo federal com alguns pontos da
múltiplo, descentralizado, com escassa coor- Lei de Responsabilidade Fiscal e da DRU,
denação e articulação, sub-remunerado, com entretanto, a aprovação da EC nº 95/2016
ênfase nas prestações médico-assistenciais estabeleceu um padrão ainda mais radical de
sem definição de prioridades e orientado contenção do Estado. O novo regime fiscal
pela oferta de serviços. só foi feito na forma de uma emenda consti-
A complexa explicação da privatização seto- tucional porque os recursos de saúde e edu-
rial decorre principalmente de políticas econô- cação possuíam regras constitucionais que
micas articuladas com concessão de benefícios protegiam seus gastos29.
e tributos, que permitiu ganhar a adesão de O que está em questão é a visão neolibe-
empregadores e empregados e, de forma per- ral de uma recorrente crise fiscal fruto do
versa, estabeleceu uma conjugação de bases do aumento de gastos sociais da Constituição
financiamento e incentivos oriundos do fundo Federal de 1988 que não caberia no orça-
público, modelando uma assistência fragmen- mento. A ideologia é a mesma de Margaret
tada e estratificada na sociedade e no interior Thatcher e Ronald Reagan com o pensamen-
das próprias empresas25. to único na economia, pois ‘não há alternati-
A despeito de a saúde integrar a seguri- va’ (Tina, there is no alternative).
dade social e assumir a condição de direito O documento ‘Austeridade e retrocesso’,

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Civilização ou barbárie 135

elaborado por um conjunto extenso de pes- com emenda do teto dos gastos em percen-
quisadores, detalha os efeitos da EC nº 95, o tual do PIB. A simulação supõe uma taxa
gráfico 1, apresentado no documento, estima de crescimento de 1,7% para 2018 e de 2,5%
as despesas primárias do governo federal para os outros anos.

Gráfico 1. Simulação das despesas primárias do governo federal com a EC 95 – em % do PIB – 2017-2036

25

19,84
23

15,90

15
Demais Despesas
% do PIB

12,42
Demais Educação***

Mínimo Educação**

10 Mínimo Saúde**

Previdência*

Total EC 95****

0
2017

2018
2019

2020
2021

2022
2023

2024
2025

2026
2027

2028
2029

2030
2031

2032
2033

2034
2035

2036

Fonte: Dweck, Oliveir, Rossi30.


* Para os gastos com a previdência, assumiu-se que uma reforma manterá o RGPS com o mesmo percentual do PIB a partir de 2020.
**Dados do Relatório Resumido de Execução Orçamentária de dezembro de 2017, Mínimo Educação é 18% da Receita Líquida de
impostos, Mínimo da Saúde, 15% da Receita Corrente Líquida.
*** são os demais pagamentos da função educação que contam para o Teto de Gastos, mas não estão sujeitos ao mínimo, de acordo com
relatório do Tesouro Nacional.
**** Teto de gastos de acordo com o Relatório Quadrimestral de Cumprimento das Metas Fiscais do 3º quadrimestre de 2017 e
considerando a simulação acima referida.

Uma vez que as civilizações humanas de capitalização da previdência nos moldes


do século XXI parecem achar reprováveis feitos pela ditadura de Pinochet no Chile
estratégias de solução final, e o gráfico já serão cada vez mais frequentes.
incorpora uma reforma radical da previdên- Como já dissemos, não há nenhum óbice
cia, ou teremos um desmonte absoluto do que obrigue um país como o Brasil a autoimpor
Estado, ou uma privatização completa da um teto ao gasto público. Assim, os gastos em
previdência, de forma que o capital possa saúde, previdência ou qualquer outro gasto do
se apropriar de toda a área verde. Propostas governo deveriam ser orientados pelos seus

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136 Souto LRF, Noronha GS, Costa AM, Pereira TR, Noronha JC

impactos econômicos e sociais. Do ponto de ciência, onde o alvorecer da química cientí-


vista econômico, os gastos em saúde e educação fica confluiu com a busca da pedra filosofal
possuem um alto efeito multiplicador31. e do elixir da longa vida. A medicina, desde
Entretanto, Kalecki13 nos apresentou as seu nascedouro, se não buscava a imortalida-
razões de natureza política que prevalecem de, sempre tratou de adiar a visita da morte.
na defesa de políticas de fiscais restritivas. Ocorre que ela sempre retornava.
Desse modo, um SUS estruturado, funcional Não bastasse o retorno da morte, sua au-
e sem subfinanciamento cria muitas dificul- sência acarretaria problemas dramáticos, re-
dades, quando não inviabiliza, à atuação do tratados na literatura pelo prêmio Nobel em
capital tanto no mercado de planos de saúde literatura José Saramago em ‘As intermitên-
quanto no provimento de serviços privados cias da morte’. O livro conta o que acontece
de saúde. Corte de gastos públicos, portanto, quando, em um país qualquer, as pessoas sim-
não tem relação com modernizar o Estado e plesmente param de morrer. Outro escritor
torná-lo eficiente. português, Tavares33, publicou ‘Uma viagem à
Dessa forma, as políticas de austeridade Índia’, à moda de uma epopeia lírica contem-
não têm a ver com qualquer tipo de restrição porânea, em que uma de suas estrofes entoa:
orçamentária para os gastos públicos, mas
com as razões políticas que se manifestam As várias gerações são egoístas, sem dúvi-
nos diversos diplomas legais que impõem da. Porque se os dias emperrassem numa
a doutrina das finanças saudáveis. O que se geração específica – como roldana sem óleo
afirma aqui é que não se deve olhar os gastos que não avança –, estaríamos diante de uma
sociais (saúde, previdência ou educação, por magnífica raça eterna. O que muito faria con-
exemplo) sob a ótica de um resultado fiscal ar- tentes uns e incomodaria outros: aqueles que
bitrário, de um ano ou qualquer outro período ainda não nasceram.
que se queira, mas que se faça uma análise dos
seus resultados econômicos e sociais. A duração da vida tem um limite? Vários
estudiosos se dedicaram a analisar a evolu-
ção da duração da vida ao longo do tempo.
Ninguém quer a morte, logo Embora de maneira desigual, a esperança de
a velhice chegará vida ao nascer tem aumentado, fundamen-
talmente graças à redução da mortalidade
Desde seus primórdios, a humanidade busca na infância. Robine34 identificou uma idade
a imortalidade. As religiões do passado e do modal de morte com relativa estabilidade
presente (quiçá do futuro) manifestam a per- que passa a ser detectável na Suécia aos fins
plexidade com a finitude da vida humana e do século XVIII, e na Suíça no século XIX,
propõem soluções diversas para o que aconte- e se situa em torno dos 75 anos. O Japão,
ce após a morte. Magias, rituais e milagres se para os anos 1950, evidenciaria o que seria o
ocuparam, se ocupam e certamente se ocupa- fim da transição epidemiológica, situando a
rão dos modos de prolongar a vida na Terra. idade modal em torno dos 80 anos, bastan-
Até as ciências baseadas na razão tratam te próxima da atual em todos os países do
do pós-vida. O filósofo britânico Gray32 pu- mundo desenvolvido.
blicou um livro intitulado ‘A Comissão da Fries35 introduziu a ideia da ‘Compressão
Imortalização’, que tem como subtítulo ‘a da Morbidade’, sugerindo que o aumento
ciência e a estranha busca de trapacear a da esperança de vida se faria acompanhar
morte’, em que visita essa tentativa com de um encurtamento da extensão da vida
humor, concisão e abrangência. A imorta- com morbidade. As mesmas forças que re-
lidade aqui na própria Terra foi objeto da sultaram na diminuição da mortalidade

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Civilização ou barbárie 137

estariam associadas a uma menor incidên- hoje aqueles que, como na África subsaaria-
cia de doenças crônicas e a um aumento da na, mal chegam aos 52 anos? E os bolsões de
idade de início dessas doenças. Entretanto, miseráveis que ainda vivem entre nós e em
inúmeros estudos, desde meados dos anos vários países de renda média?
1970, têm demonstrado que isso não ocorre. Trinta anos após a promulgação da
Uma pessoa que morre aos 65 anos, por Constituição, o Brasil mudou de maneira
infarto agudo do miocárdio, por exemplo, significativa seu perfil demográfico e epi-
consome bem menos serviços e produtos de demiológico. Registrou tendências que,
saúde do que se sobreviver ao infarto e vier grosso modo, não deverão sofrer grandes
a falecer de câncer aos 90 anos. A redução transformações nos 30 anos subsequentes,
da mortalidade não se acompanha neces- representadas na figura 1. Segundo as pro-
sariamente de uma redução da incidência, jeções do Instituto Brasileiro de Geografia e
e aumenta o número de sobreviventes por- Estatística36 (IBGE), a população de maiores
tadores de problemas de saúde que estarão de 65 anos triplicou de 1988 a 2018, atin-
sujeitos à ocorrência de problemas de saúde gindo a cifra de 18,3 milhões, e chegará, em
adicionais. A busca incessante por tecnolo- 2048, a 49 milhões de brasileiros, dos quais
gias de prolongamento exaustivo de nossas 14 milhões com mais de 80 anos.
vidas fará sentido? Como trazer aos dias de

Figura 1. Composição absoluta da população, por idade e sexo – Brasil – 1990, 2020, 2050

Pirâmide Etária - Brasil = 1990


80+
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70-74
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Homens 60-64 Mulheres
55-59
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-10.000.000 -8.000.000 -6.000.000 -4.000.000 -2.000.000 0 2.000.000 4.000.000 6.000.000 8.000.000 10.000.000

Pirâmide Etária - Brasil = 2020


80+
75-79
70-74
65-69
Homens 60-64 Mulheres
55-59
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Figura 1. (cont.)

Pirâmide Etária - Brasil = 2020


80+
75-79
70-74
65-69
Homens 60-64 Mulheres
55-59
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Pirâmide Etária - Brasil = 2050


80+
75-79
70-74
65-69
60-64

Homens 55-59 Mulheres


50-54
45-49
40-44
35-39
30-34
25-29
20-24
15-19
10-14
5-9
0-4
-10.000.000 -8.000.000 -6.000.000 -4.000.000 -2.000.000 0 2.000.000 4.000.000 6.000.000 8.000.000 10.000.000

Fonte: IBGE36.

É um desafio quase impossível pensar um da Saúde, reduziu suas condicionalidades


sistema de saúde equitativo para o quinto programáticas e agravou a fragmentação do
país em extensão territorial do mundo, maior sistema público e, indiretamente, como ocor-
que a União Europeia, com 27 unidades fe- rera na década de 199037, estimulou os arran-
deradas e mais de 5 mil municípios de di- jos privados. A receita bruta das operadoras
mensões territoriais e populacionais, biomas de planos de saúde, em 2016, foi aproxima-
e uso do solo, condições sociais e econômicas damente 1,5 vez o orçamento do Ministério
bastantes diversas. da Saúde. Ademais, se por um lado os gastos
O corte de gastos no setor público, acentu- somados dos três níveis de governo no SUS
ado pela revisão, no final de 2017, dos meca- cresceram 0,5% em termos reais entre 2012 e
nismos das transferências do governo federal 2016, por outro, os planos e seguros de saúde
para municípios adotada pelo Ministério viram a receita bruta subir 27,0% no mesmo

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Civilização ou barbárie 139

período. Em 2016, a média de gasto por pessoa que se supõe dos 20%, mas que, em realidade,
dos planos foi 2,55 vezes mais que o SUS, o pertence ao seu 0,1% sempre comprometido a
gasto per capita dos 6,5 milhões de brasileiros um projeto de país ancorado em um suposto
cobertos pelas seguradoras (3,5% da popu- equilíbrio fiscal, nos paradigmas da economia
lação) foi 4 vezes maior (cálculos a partir de ortodoxa e na inserção subalterna na divisão
dados do Sistema Integrado de Planejamento internacional do trabalho.
e Orçamento – Siop38 e da Agência Nacional Na sua crônica ‘A evolução das espécies
de Saúde Suplementar – ANS39). por seleção artificial’, Diegues43 nos apre-
Outro ponto de destaque são os recursos senta o Homo ricus, desenvolvido a partir de
que deixam de ir para o SUS por conta dedu- uma parcela da população que tem acesso a
ções no imposto de renda de pessoas físicas, serviços avançadíssimos de terapia genética
tanto em planos individuais como em copar- na fronteira tecnológica e acaba dissociada
ticipações em planos coletivos40. Estima-se dos demais Homo sapiens. O uso do planeta
o total de gastos tributários da União para a pelos mais ricos e a não construção de um
função saúde para 2018 em cerca de R$ 39 sistema público universal de saúde que
bilhões, dos quais R$ 18 bilhões referiam-se forneça a toda a população os produtos e ser-
a despesas com assistência à saúde41. viços de saúde mais avançados certamente
Dessa restrição fiscal, configura-se uma ten- transformarão a divisão de classes na divisão
dência à intensificação da concorrência entre de espécies sugerida por Diegues43.
os entes federados e, no interior destes, entre Se essa lógica traduzida na EC 9544 não
os prestadores. Também caminha para invia- for revertida, como os recursos destinados à
bilizar a organização em rede dos serviços com saúde que já são insuficientes para atender
fragmentação e segmentação dos cuidados. à demanda, teríamos que construir câmaras
Reduz-se ainda os investimentos em novas de gás para os cidadãos que atingissem uma
capacidade e cai a qualidade e a segurança dos determinada idade em que o seu custo em
serviços. A iniciativa privada acaba por produ- saúde seria excessivo. Ademais, haveria de
zir novos arranjos assistenciais, como as clíni- existir uma norma que bebês com menos
cas de vizinhança e clínicas populares. Também de um quilo, salvo com cobertura privada,
ocorre o desenvolvimento e fortalecimento de seriam deixados para morrer.
novas modalidades de pré-pagamento: planos Não demoraria para que alguém propu-
populares, Vida Gerador de Benefícios Livres sesse a esterilização em massa das camadas
(VGBL), Saúde e franquias. Isso naturalmen- mais pobres, chegando-se à solução final para
te resultará em um aumento da desigualdade a pobreza: a eliminação física dos pobres – e
territorial por riqueza e da estratificação do com eles a contenção do gasto em saúde com
atendimento, além da concentração dos inves- estas pessoas. Ou pior, como Diegues43 escreve
timentos e inovações no setor privado de ponta. a certa altura, os decadentes Homo sapiens
As medidas compensatórias adotadas pelo seguiam espalhados em desordem pelo planeta,
governo, entre 2000 e 2015, permitiram a re- vagando pelas áreas mais pobres dos continen-
tirada de 28 milhões de pessoas da pobreza, tes, com famílias numerosas e sobrevivência
enquanto a concentração de renda no 1% dos cada vez mais curta.
brasileiros no topo aumentava. Os seis brasi- Até que finalmente “por diversão e
leiros mais ricos do país são tão ricos que os esporte, os Homo ricus passaram a caçar
50% cento mais pobres. A tributação e o gasto os Homo sapiens…”43. Será essa nossa
público não têm reduzido as desigualdades his- escolha? A reversão dessas medidas
tóricas no Brasil42. Sem a reversão da EC nº 95, nos parece indispensável para qualquer
parece se confirmar o Brasil dos 20% descrito projeto nacional que não incorpore solu-
por Souza (2016). Ou ainda mais grave, um país ções finais em suas estratégias.

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140 Souto LRF, Noronha GS, Costa AM, Pereira TR, Noronha JC

Retomando o espírito de De uma forma ou de outra, no quadro


1988 recessivo vigente no Brasil (com medidas
econômicas que não procuram aliviar esta
O golpe de 2016 se deu em um contexto de situação) e com o avanço das pautas de re-
uma crise de hegemonia no sentido gramscia- trocessos em direitos como a contrarreforma
no com uma separação das grandes massas de trabalhista, a EC nº 95, entre outras, podem
suas ideologias tradicionais e com o abandono ocorrer revoltas populares que fiquem fora
de suas crenças anteriores45. Os representados de controle. A crise de hegemonia deve
da nossa democracia não mais se enxergam em se acentuar; e convém recordar a analo-
seus representantes. Neste momento, a grande gia de Brecht entre o fascista e o burguês
mídia assume a liderança da classe dominante assustado, o crescimento de candidaturas
e impõe sua pauta. Por outro lado, no campo ultraconservadoras.
progressista, após a virada para austeridade em Resta saber como enfrentaremos tal
2015, a desconfiança dificulta a superação dos ameaça: com uma capitulação de algo como
sectarismos e ampliação das alianças na classe o que ocorreu com a Coligação da Esquerda
dominada de forma a se articular para tentar Radical (Syriza), com uma articulação política
assumir como nova classe dominante. nos termos da Geringonça em Portugal, ou se
teremos enfrentamentos cada vez mais radi-
Neste quadro, [...] a classe dominante perdeu cais na rua. Se, por acaso, isso resultar no fas-
seu consenso, isto é, não é ‘dirigente’, mas cismo, teremos pleno emprego sem objeções
apenas ‘dominante’, exercendo apenas a for- da burguesia e, claro, com todo seu pacote de
ça coercitiva, isto significa exatamente que maldades. Antes que seja tarde, abandonemos a
as grandes massas se separam de suas ide- responsabilidade fiscal em proveito da respon-
ologias tradicionais e não mais creem no que sabilidade econômica e social.
costumavam crer anteriormente, etc. A crise Nesse sentido, retomamos mais uma vez
consiste precisamente no fato de que o velho Polanyi14(289):
está morrendo e o novo ainda não pode nas-
cer. Nesse interregno, uma grande variedade A civilização do século XIX não foi destruída
de sintomas mórbidos aparece45(275-276). por ataques de bárbaros externos ou internos;
sua vitalidade não foi solapada pelas devas-
As crises de hegemonia podem apresentar tações da Primeira Guerra Mundial, nem pela
diferentes desenlaces. A classe dominante revolta de um proletariado socialista ou de
mantém o seu status quo no curto prazo por uma classe média baixa fascista. Seu fracasso
meio da coerção, apostando que, em médio não foi conseqüência de alguma suposta lei
prazo, pode ocorrer uma recomposição de de economia, como a taxa de lucros decres-
sua hegemonia. Já as classes dominadas pre- centes, a do subconsumo ou a da superpro-
cisam ampliar alianças, evitando o sectaris- dução. Ela se desintegrou como resultado de
mo, para poder subverter a ordem e assumir um conjunto de causas inteiramente diferen-
como nova classe dominante46. tes: as medidas que a sociedade adotou para
Os desdobramentos da ruptura democrática não ser aniquilada, por sua vez, pela ação do
de 2016 isolaram cada vez mais os mecanismos mercado auto-regulável. À parte as circuns-
de pressão popular sobre o Estado. As diversas tâncias excepcionais que existiram na Amé-
tentativas de interdição não apenas da candida- rica do Norte, na época da fronteira aberta, o
tura à presidência, mas do próprio direito de o conflito entre o mercado e as exigências ele-
ex-presidente Lula dar entrevistas colocam em mentares de uma vida social organizada tanto
xeque as possibilidades de disputa de hegemo- proporcionou ao século a sua dinâmica como
nia dentro do atual status quo. produziu as tensões e pressões típicas que,

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Civilização ou barbárie 141

em última instância, destruíram aquela socie- uma sociedade fundada nos direitos sociais e
dade. As guerras externas apenas apressaram humanos de cidadania, feminista, libertária,
essa destruição. antirracista, compartilhada, diversa e radi-
calmente democrática. O momento histórico
Urge, portanto, dada a incapacidade de res- é de resgatar o espírito de 1988!
posta do liberalismo, repaginado como neolibe-
ralismo, aos problemas do nosso tempo, que se
construa uma alternativa para que o fascismo Colaboradores
não retorne. Esta não é uma tarefa apenas dos
socialistas, dos comunistas ou dos sociais-de- LRF Souto, GS Noronha e JC Noronha par-
mocratas, mas dos seres humanos. ticiparam da concepção, análise, redação do
Estamos diante de mudança de época, artigo e aprovação final do manuscrito. TR
uma crise de grande magnitude entre civi- Pereira e AM Costa participaram da con-
lização ou barbárie. Há que se democratizar cepção, análise, revisão crítica relevante do
a revolução e revolucionar a democracia47. conteúdo intelectual e aprovação final do
Não há saída sem retomada da dignidade manuscrito. s
da política, estratégica para a construção de

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titucionais Transitórias, para instituir o Novo Regi-
me Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial
Recebido em 14/08/2018
da União. 16 Dez 2016. Aprovado em 20/08/2018
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

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ENSAIO | ESSAY 145

Saúde, luta de classes e o ‘fantasma’ da


Reforma Sanitária Brasileira: apontamentos
para sua história e crítica
Health, class struggle and the ‘ghost’ of the Brazilian Sanitation
Reform: notes for history and criticism

André Vianna Dantas1

DOI: 10.1590/0103-11042018S311

RESUMO O processo político da moderna Reforma Sanitária Brasileira convive, desde o seu nasce-
douro, nos anos 1970, com um espectro que o atormenta: o chamado ‘fantasma da classe ausente’, que
pretende designar a pouca participação das massas populares nas lutas e reivindicações pela saúde.
A experiência de participação popular do processo italiano de reforma sanitária foi a referência dos
sanitaristas brasileiros, a partir da qual o estranhamento com o caso brasileiro se produziu. A histó-
ria do fenômeno, no entanto, como se demonstrou, inscreve-se nos dilemas experimentados pelo
conjunto da classe trabalhadora no Brasil, em franco processo de transição estratégica, no mesmo
período, e se deve também às opções táticas assumidas pelos sanitaristas para a consecução dos ob-
jetivos políticos do movimento sanitário. Conclui-se que o recuo organizativo e combativo da classe
é parte da derrota histórica sofrida com a derrocada do bloco socialista, na virada dos anos 1980. Sua
superação só poderá ser operada pela retomada da construção da luta pela base, atravessando fron-
teiras setoriais e rompendo com a fetichização do Estado, como meio para a emancipação plena dos
trabalhadores, e da ordem ‘democrática’ burguesa, como terreno ‘legítimo’ da luta política.

PALAVRAS-CHAVE Reforma dos serviços de saúde. Política pública. Sistema Único de Saúde.

ABSTRACT The political process of the modern Brazilian Sanitation Reform has been haunted by a
phantom since its beginning, in the 1970s: the so-called ‘ghost of the absent class’, which intends to
designate the little participation of the masses in the fights and claimings for health. Brazilian sani-
tarists had the popular participation experience of the Italian Sanitation Reform as a reference and
it was precisely from it that emerged a certain strangeness to the Brazilian case. The history of the
phenomenon, however, is inscribed in the dilemmas experienced by the Brazilian working class as a
whole, which was under a process of strategic transition then. It is also due to the tactical choices made
by the sanitarists to achieve the political objectives of Brazilian Sanitation Movement. We conclude
that the organizational and combative retreat of the class is part of the historical defeat suffered when
1 Fundação Oswaldo the socialist block fell, in the turn of the 1980s. The overcoming of both the defeat and the phantom will
Cruz (Fiocruz), Escola
Politécnica de Saúde only be accomplished through the resumption of the struggle from the base, crossing sectoral boundar-
Joaquim Venâncio (EPSJV) ies and breaking with the fetishization of the State as a means to the full emancipation of the workers;
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid. and through the restoration of the bourgeois ‘democratic’ order as a rightful locus of political struggle.
org/0000-0002-1053-
7392
andredantas@fiocruz.br KEYWORDS Health care reform. Public policy. Unified Health System.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 145-157, NOVEMBRO 2018
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É certo que prever significa apenas ver hoje mais claramente os seus gargalos, suas
bem o presente e o passado como movimento. ribanceiras e buracos sem fundo.
(Antonio Gramsci) Uma das expressões máximas dessa
derrota tem sido o processo contínuo e, nos
últimos anos, ainda mais acelerado, de des-
Introdução monte do nosso Sistema Único de Saúde
(SUS). Não por coincidência, foi o SUS
Momentos de balanço em perspectiva também a política social de maior enverga-
histórica costumam resultar de derrotas dura que resultou da luta pela retomada do
mais ou menos graves na luta política. Não chamado Estado Democrático de Direito.
parece restar dúvida de que seja o caso da Ante o desastre, que não é de agora e cujos
classe trabalhadora brasileira. A energia de contornos ainda não estão inteiramente de-
luta galvanizada desde a reorganização das limitados, ressurge com força o debate em
forças populares, na luta contra a ditadura torno da incômoda ausência dos trabalhado-
empresarial-militar (1964-1985), a partir dos res organizados e do povo oprimido em geral
anos 1970, exauriu-se de vez com o processo das batalhas pela sua defesa. Estamos diante
ativo de conciliação de classes promovido do célebre ‘fantasma da classe ausente’, na
zelosamente pelos governos petistas (2003- expressão cunhada por Sergio Arouca em
2016). O golpe parlamentar de 2016 contra fins dos anos 1980. Para esse importante sa-
o governo de Dilma Rousseff marcou o fim nitarista, e para uma geração de militantes
do pacto inaugurado – já ele mesmo uma que ao seu lado lutou por uma saúde pública,
derrota – com a nova república, em 1985. universal e de qualidade, paradoxalmente,
A despeito de alguns sinais de retomada a despeito da orientação dos seus esforços
aqui e ali, é constatável o quanto estamos, no sentido das classes trabalhadoras, o mo-
os trabalhadores, aquém da capacidade de vimento sanitário quase nunca pôde contar
resistir à potência e amplitude dos ataques com a sua participação direta na luta.
que viemos sofrendo, bastante agravados e Para nós, não resta dúvida de que a relação
intensificados desde a usurpação que levou dos movimentos sociais com a reforma
Michel Temer à presidência da República. sanitária é um nó crítico que precisamos
É hora de inventariarmos o que produzi- enfrentar2 mas, diríamos, indo além, que o
mos em termos teóricos, práticos e progra- fenômeno que, por ora, nos ocupa atravessa
máticos na luta política emancipatória de as fronteiras setoriais da saúde. Tal enfrenta-
esquerda nas últimas décadas. A análise da mento também nos impõe uma avaliação da
correlação de forças é elemento indispensá- trajetória cumprida até aqui, como fizemos
vel nesta escovação da história a contrapelo1, em estudo anterior; e não será o caso agora
mas não pode ser debitada a ela todos os de recuperar por completo3. Dividiremos
nossos fracassos. Não se trata aqui de uma este trabalho, então, em três momentos: ini-
perspectiva abstrata, idealista, que pretende ciaremos pela caracterização do fenôme-
cobrar dos projetos e das intenções políticas no; na sequência, apresentaremos a nossa
de determinado período a não realização, crítica na intenção de contribuir para a
total ou parcial, de tudo o que foi declarado. identificação da paternidade do fantasma
O balanço da estratégia e das táticas assu- e, por fim, apontaremos elementos atuais
midas na luta em processo, portanto, deve indicativos da persistência das lideran-
servir como ferramenta da própria luta, sem ças do movimento sanitário nas mesmas
a qual a produção de mais derrotas em sequ- linhas estratégicas de ação que, ao fim e ao
ência poderá ter vida longa, pelas mesmas cabo, acreditamos, têm servido como ali-
trilhas que, uma vez testadas, apresentam mento para o espectro que nos ronda.

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O espectro do inimigo ‘interno’ aparentemente derro-


tado pelo arranjo da ‘normalização demo-
Como atesta Sarah Escorel4(186), ‘fantasma crática’ eram os óbices colocados para a luta
da classe ausente’ é a expressão que pretende política daqueles tempos e ajudam a explicar
designar o distanciamento dos movimentos o fenômeno, que de espectral só tem o nome.
sociais, dos trabalhadores organizados e suas Para tornar a equação ainda mais com-
instituições representativas, das lutas setoriais plexa, o que fazer diante do refluxo dos
na saúde. Para Arouca, isso se configurava movimentos de base, populares, sindicais,
como uma limitação, à medida que expressava combinada à chance real de fazer-se governo,
a incapacidade do movimento sanitário de se por meio das eleições diretas para a presi-
articular sistematicamente com esses setores e, dência da República, como era o caso no ano
por isso, punha mesmo em xeque a sua repre- de 1989, com a candidatura de Luís Inácio
sentatividade e legitimidade na condução da Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores
luta política do setor. Vale, no detalhe, a carac- (PT)?5. Como conceber uma sociedade civil
terização da própria autora: que, em nome de uma democracia suposta-
mente universal, reunia, no plano estrito da
[Arouca] chama de ‘fantasma’ porque ‘assus- política, classes e frações de classe material-
ta, mas não existe’, ou seja, o Movimento Sa- mente tão distintas em favor da anistia, das
nitário questiona periodicamente sua própria Diretas Já, do respeito às liberdades indivi-
legitimidade enquanto intelectual coletiva- duais, do fim da censura, do direito à saúde,
mente orgânico por não contemplar em suas do fim do próprio regime ditatorial? Como
discussões e decisões ‘cotidianas’ organis- lidar com um Estado que, na aparência, des-
mos formalmente representativos das classes privatizava-se com o retorno da democracia
trabalhadoras como os sindicatos operários, e poderia ser disputado de modo a cumprir
as centrais sindicais e até mesmo os partidos as conquistas civilizatórias historicamente
progressistas. No entanto, a classe operária negadas ao povo trabalhador brasileiro?
não está ausente, no sentido de que seus va- Decerto não eram óbvias as respostas
lores e necessidades direcionam a luta pela políticas a serem dadas ante uma conjun-
Reforma Sanitária. tura tão complexa. A partir desses dados
de realidade e dos muitos desafios estraté-
A base material do fantasma, como gicos, táticos, teóricos e programáticos que
acreditamos e seu próprio criador parece daí desdobravam, os sanitaristas tomaram
concordar, é a crise estratégica, teórica e or- opções que, ao lado da correlação de forças
ganizativa da classe trabalhadora desde os desfavorável, contribuíram também para o
anos 1970/1980, em termos globais, com o fim alargamento do fosso que os separavam de
do bloco socialista, a ascensão do neolibera- suas bases, reais ou pretendidas. A autocrí-
lismo e a chamada reestruturação produtiva tica em relação à absolutização da via insti-
do capital. No Brasil, por uma especificidade tucional e o consequente abandono da luta
conjuntural, a rebordosa desse desastre de construída pela base já foram realizados, em
grandes proporções se manifestou em uma parte, pelo movimento sanitário, mas não o
quadra histórica de soerguimento dos mo- suficiente para desabonar a tática e abalar
vimentos de base, populares, trabalhistas, o lugar fetichizado da democracia – como
contra a ditadura. A absorção da derrota em único terreno legítimo da luta política, por
todos os seus aspectos, sua compreensão excelência – e do Estado – entendido me-
profunda em registro nacional, algo distinto ramente como máquina a serviço dos ven-
em face da energia de luta acumulada – ainda cedores de pleitos eleitorais. É verdadeira
que em descenso –, e a percepção do poder a constatação sobre a “ausência de partidos

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e organizações sindicais na base de apoio à em ‘estratégias’ que opõem os militantes dos


reforma”, mas que isso tenha “como conse- partidos (Partido dos Trabalhadores, Parti-
quência o deslocamento da luta para dentro do Comunista Brasileiro, Partido Comunista
do aparelho de Estado”6(209), é verdade do Brasil) que participam do movimento. A
apenas como opção política e elemento a ser maioria a favor do caminho da ‘institucio-
considerado na análise, e não como relação nalização’ está organizada por delegados de
causal, como se quer. O enfraquecimento Goiás, Sul do Pará, Mato Grosso, Zona Leste de
paulatino da pujança da luta popular que ex- São Paulo e Rio de Janeiro [...]. O caminho da
plodiu nos anos 1970 e 1980 e, mais tarde, a institucionalização vai prevalecer inclusive do
sua quase completa retirada do cenário polí- ponto de vista da luta democrática, como se
tico a partir dos anos 1990 são, para nós, uma constata na ampla aceitação pelas esquerdas,
derrota de dupla face: imposta de fora para em 1984, da eleição indireta para a presidência
dentro da esquerda, mas também produzi- da República, realizada por meio de um colé-
da de dentro para fora. Fomos fisgados pelo gio eleitoral predominantemente de direita. É a
canto de sereia que nos conduziu de peito ‘transição pactuada’ entre militares e civis9(23).
aberto para o terreno de luta dos nossos ini-
migos, como se fosse o nosso próprio. Nesse Devemos a Silvia Gerschmann10(70) uma
sentido, temos contribuído ativamente para boa caracterização das relações difíceis
desencarnar a classe que no minuto seguinte entre as lideranças do movimento sanitário
chamamos de ‘fantasma’. e o que seriam as suas bases. Para a autora,
Contudo vejamos o problema mais de que se refere ao processo político que se
perto. Diante da deficiente abordagem, na deu durante a VIII Conferência Nacional
saúde coletiva, da temática dos movimentos de Saúde (CNS), a essência do problema se
sociais e também da difícil apreensão desse concentrava nos movimentos populares, ex-
objeto quando se trata de definir o grau de pressos por intermédio de outra ‘ausência’,
sua interseção com as bandeiras da saúde7,8, dessa vez de ‘maturidade’ para compreender
para abordarmos a relação das lideranças e aceitar os rumos institucionalizantes da luta.
do movimento sanitário com suas bases, De início, é possível notar certo pesar pelo
tomaremos como expressão representati- abandono, por parte do Mops, do que seria uma
va desses grupos o Movimento Popular em escala evolutiva que o teria levado da posição
Saúde (Mops), nascido em 1981, fruto do de movimento social de base à condição de ator
III Encontro Nacional de Experiências em da disputa pelo aparelho de Estado:
Medicina Comunitária (Enemec). Segundo a
compreensão das forças populares envolvidas Precisamente no momento em que o Mops
no processo, a formação do Mops viria em esteve mais próximo das decisões políticas
socorro da “necessidade de lutar por mudan- substantivas, a ausência de maturidade para
ças no modelo de assistência à saúde”9(23). No absorver a institucionalização como uma exi-
entanto, divergências quanto à pertinência gência do processo político no setor se tradu-
política de investir na institucionalização da ziu em cisão interna.
medicina comunitária impõem duras tensões
ao recém-criado movimento. Para início de Na sequência, em que pese a complexida-
conversa, observemos, na citação a seguir, a de do debate acerca da viabilidade prática
complexidade do processo que apontamos: de uma estatização imediata do sistema de
saúde brasileiro – embora não se tratasse
O Mops já nasce ‘rachado’. O pano de fundo (ou não devesse se tratar) de um debate me-
das divergências é de cunho político geral: a ramente pragmático, mas eminentemente
radicalização das divergências fundamenta-se tático –, a autora destaca o isolamento do

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Mops diante de uma proposta que ela con- de Gerschman e endossasse a sua perspec-
sidera irrealizável e, portanto, improcedente tiva. Lancemos mão ainda, mais uma vez,
para aquela conjuntura: de Escorel11(195) para concluir esta brevís-
sima caracterização da tática de ouro dos
Os delegados do Mops apresentaram uma sanitaristas:
proposta de estatização do setor, sem parti-
cipação nenhuma do setor privado, a qual não A partir de 1983 o movimento sanitário con-
contou com a aprovação da maioria das enti- seguiu pôr em prática uma de suas estraté-
dades representadas, dentre elas o Cebes, a gias, a ‘ocupação dos espaços institucionais’.
Abrasco e as centrais sindicais10(105). Na tentativa de modificar o direcionamento
da política pública, passou a fazer das insti-
Por fim, Gerschman10(112) nos apresenta tuições de saúde um lócus de construção da
a argumentação que se encontra subjacente contra-hegemonia. Com a adoção dessa es-
a toda construção de sua análise: o acerto tratégia, separou-se ainda mais do movimen-
da tática sanitarista reformista, que de tão to popular. Ao privilegiar as instituições de
acertada poderia seguir distante e autono- saúde, relegou a segundo plano a ampliação e
mamente em relação às suas bases em poten- o aprofundamento da aliança com as classes
cial. É verdade, façamos justiça, que ao final populares e trabalhadoras [...]. O processo
do trecho citado há uma reprovação quanto passou a ficar restrito a avanços e recuos no
à forma de condução das divergências pelas âmbito das políticas institucionais e, concen-
lideranças do movimento sanitário, mas nada trado nesse espaço (político-legal ou jurídico-
que equilibre ou relativize o processo de ins- -institucional) de luta, o movimento tendeu
titucionalização ‘como uma exigência do pro- a perder de vista a necessidade de trabalhar
cesso político’, como sacramentou a autora, melhor sua aliança com as classes populares.
expressando o posicionamento do movimen-
to sanitário naquela conjuntura ímpar: E completa a mesma autora:

A mudança no terreno da luta política se expli- Nos primeiros anos da Nova República, o mo-
ca: o Movimento Sanitário, vanguarda do pro- vimento sanitário viveu um ciclo de euforia
cesso de transformação das políticas de saúde, quando, inserido nas instituições de saúde,
tinha como estratégia penetrar nos aparelhos conseguiu promover uma inflexão na dire-
de Estado com o objetivo de tentar implemen- cionalidade da política de saúde como um
tar suas táticas para mudar a direção da polí- todo. Esse período foi caracterizado por al-
tica e, assim, privilegiar o setor público. [...] a guns autores como a institucionalização do
participação nos organismos estatais acabou movimento sanitário, que perdera a base na
sendo uma decisão unilateral do Movimento sociedade civil e abandonara as propostas
Sanitário, o que dificultou sua relação com o transformadoras em favor de simples refor-
Mops no transcorrer da década de 80. mas administrativas. Não há dúvida de que,
excetuando-se a VIII CNS e a luta na Cons-
O antiestatismo do Mops e, especifica- tituinte, a atuação do movimento sanitário
mente no contexto da VIII CNS, a recusa à esteve concentrada no plano das instituições
participação do setor privado no Sistema de de saúde. No entanto, as duas exceções foram
Saúde que se propunha, e sua consequente profundas e marcantes, atenuando as supos-
estatização completa, são os pontos destaca- tas tendências ‘institucionalizantes’11(196).
dos pela autora que nos permitiriam aludir
ao que Lênin chamaria de ‘doença infantil’ Como é possível notar, tanto Gerschman
daquele movimento se tivesse escrito o livro quanto Escorel – que podem ser tomadas

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aqui como representativas da visão domi- consequente reação neoliberal burguesa são
nante entre os sanitaristas – apontam com os ingredientes que permanecem na base dos
preocupação o distanciamento entre as ‘li- processos da luta de classes até os dias atuais
deranças’ do movimento e suas bases em no mundo, embora combinados às especifi-
potencial, mas tal como procedeu majorita- cidades regionais. Não é mero acaso crono-
riamente o movimento na sua compreensão lógico que o auge de uma experiência como
de realidade, endossam a tática institucional, o Estado de Bem-Estar Social, no centro do
em última análise, por considerarem-na o capitalismo, tenha sido contemporâneo da
centro da ação estratégica que o momento Guerra Fria e seu desmonte comece a se dar
conjuntural exigia, embora acompanhada no exatamente quando o ‘inimigo vermelho’
encalço do que seria uma contingência incô- vai à lona. Se para a análise das relações de
moda: a ausência da base. força, portanto, como ensina Gramsci13, é
Giovanni Berlinguer12(5), membro do decisivo distinguir o orgânico (movimentos
Partido Comunista Italiano (PCI), liderança relativamente permanentes) do conjuntural
destacada da reforma sanitária daquele país (ocasionais, imediatos), precisamos ter clara
e interlocutor de primeira ordem dos sanita- a curva de descenso global, desde então, da
ristas brasileiros, partindo das mesmas pre- luta dos trabalhadores, a despeito de con-
ocupações de Gerschman, Escorel e outros, quistas e êxitos particulares ou conjunturais.
arrisca uma brevíssima análise sobre outros É ponto pacífico para nós, portanto, que toda
dois processos históricos que resultaram análise sobre uma determinada realidade
na reformulação profunda dos serviços de nacional deve ter em conta esta dinâmica,
saúde. Se na Itália a luta setorial da saúde se além de não poder descuidar dos elementos
caracterizou pela imensa potência do mo- internacionais expressos em cada realidade
vimento popular organizado, este não foi o nacional. Essa pequena digressão nos serviu
caso não só do Brasil. Na Rússia, diz o autor, aqui para reinserir o fantasma de que trata-
onde foi criado o serviço sanitário público mos no mundo dos viventes.
nos anos imediatamente após a revolução de
1917, isso se deveu mais à “sublevação políti-
ca global” do que a reivindicações populares A carne e o osso
específicas. No que diz respeito ao National
Health Service (NHS) inglês, que é de 1948, Se retomarmos a citação de Escorel que ca-
Berlinguer o atribui mais à chegada dos tra- racteriza o objeto que ora nos ocupa, recor-
balhistas ao governo e menos como produto daremos que Arouca não compreende o tal
de um movimento de massas pela saúde. A fantasma, em verdade, como expressão da
despeito de nossa maior ou menor concor- ausência absoluta da classe. Defende que a
dância com as interpretações do autor, os direção geral da luta pela reforma sanitária
casos concretos citados servem para mostrar não pode ser senão da própria classe, embora
que o fenômeno da ‘classe ausente’ é bem o movimento e a atenção dessa mesma classe
mais terreno do que se supõe, posto que tenham estado sempre voltados em menor
indica que as lutas setoriais fazem parte de medida para o campo específico da saúde.
um todo indivisível que não obedece a fron- Não nos parece pouco relevante essa ob-
teiras tão bem claras e delimitadas como servação, dado que indica, a nosso ver, uma
pretendem muitos entre os sanitaristas. compreensão dialética da realidade, em que
Vale ainda um último destaque. O fim do as lutas setoriais não podem ser tomadas
bloco socialista, com a queda do muro de apenas no interior de suas fronteiras, para
Berlim e a dissolução da União Soviética, a compreensão tanto dos êxitos setoriais
na passagem entre os anos 1980 e 1990, e a como dos dilemas e derrotas globais que se

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expressam também em cada setor. Essa pers- a questão da saúde pode ser considerada,
pectiva, no entanto, não foi a que prevaleceu dentro dos movimentos, seja como um obje-
no interior do movimento sanitário, por di- tivo exclusivo, seja, ao contrário, como uma
versas razões, tendo sido a tônica de sua ação luta vinculada a várias outras8(50).
política e formulação, sobretudo a partir dos
anos 1990, o insulamento, cuja principal O SUS, portanto, é produto da luta dos
consequência foi restringir-se ao debate em trabalhadores, embora não majoritariamen-
torno da gestão do SUS. O fantasma só fez te tenham empunhando a sua bandeira.
crescer desde então, mas a interpretação Combinado a isso, contou significativamen-
do fenômeno também se apequenou, des- te, claro, o conhecimento técnico-político e a
lizando para uma culpabilização velada da presença de militantes e profissionais do setor
classe trabalhadora pela sua própria derrota. em posições-chave em âmbito acadêmico e
Seu desconhecimento do SUS, sua pouca ou governamental, mas não de modo a perder de
nenhuma consciência sanitária e o seu senso vista – como se faz – a origem da energia que
comum que valoriza o privado em detrimen- redundou no SUS. Apontar para a ausência da
to do público, conjugados ao corporativismo classe, compreendida apenas como movimento
sindical que fortalece o mercado dos planos social setorial – mesmo que com a melhor das
de saúde, tornaram-se peças de acusação de intenções políticas – desqualifica a luta e super-
uso corrente. Cobra-se do fantasma o que o valoriza os arranjos pelo alto.
fantasma não pode dar. Tais constatações, Outro importante ingrediente que pode
embora corretas, ignoram e desconhecem a ajudar a explicar o fantasma diz respeito à
própria base que acusam de ausente. pretensão de pureza do movimento sanitá-
Eis a chave de leitura para o fenômeno. rio quanto à união nacional que seria possí-
Sem pretender negar a sua validade como vel forjar ante as bandeiras civilizatórias da
problema, é nossa intenção mapear os seus saúde. A aposta em um projeto nacional, in-
contornos e dividir as responsabilidades. A cluindo setores da burguesia, no sentido da
autocompreensão do setor saúde na relação construção tardia, no Brasil, de um Estado
com as lutas da classe trabalhadora em geral, de Bem-Estar Social, é a base para enten-
a percepção de sua importância na luta contra dermos o lugar da reforma sanitária nesse
a ditadura, a memória das conquistas que pro- projeto e, no conjunto da esquerda, os seus
tagonizou e a autoproclamação como “campo descaminhos. Não é de ninguém senão de
privilegiado da luta de classes”4(183) – mais au- Sergio Arouca a sua expressão mais clara,
toelogiosa e individualizante do que unitária proferida nada mais nada menos do que na
e aglutinadora – têm funcionado, paradoxal- sessão de abertura da célebre VIII CNS15(39):
mente, como um obstáculo à construção de
laços, pontes, alianças e, em última análise, Há alguns dias atrás, algumas entidades liga-
enraizamentos na base. É Sônia Fleury14(195) das ao setor privado se retiraram da Confe-
quem confirma o nosso diagnóstico: “nós rência [...]. Mas eu lamento profundamente a
fizemos uma luta muito específica e muito sua ausência, porque nesta Conferência está
sem articulação com as outras áreas”. se tratando é de criar um projeto nacional
Souza8, em uma tentativa de responder o que não pretende excluir nenhum dos grupos
que são, como se constituem e como atuam os envolvidos na prestação de serviços, na cons-
movimentos de saúde, concluiu por sua imensa trução da saúde do povo brasileiro. Assim, a
diversidade e, por consequência, grande di- eles queria deixar uma mensagem: que, mes-
ficuldade de apreensão. A intersetorialidade, mo na sua ausência, vamos estar defendendo
aponta, é uma das características mais clara- os seus interesses, desde que estes não sejam
mente identificáveis nos movimentos: os interesses da mercantilização da saúde.

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152 Dantas AV

Portanto, todo aquele empresário que está a ideia de ‘Reforma Sanitária’ é pensada, na Itália,
trabalhando seriamente na área da saúde, na desde o início, como algo que não se restringe
qualidade da sua competência técnica e pro- aos limites de um projeto de hegemonia ‘bur-
fissional, não precisa se sentir atemorizado, guês’. Mas sim como algo que visa superá-lo, no
porque aqui ele vai ser defendido. sentido dialético rigoroso do termo.

A saúde como campo privilegiado da luta Insistamos um pouco na comparação. É


de classes combina-se, sem crises, aos olhos conhecida a forte presença de militantes do
do movimento sanitário, com a percepção do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no mo-
setor saúde em posição superior, acima do vimento sanitário, a começar pelo próprio
conflito entre as classes. A unidade em torno Arouca17. O projeto conciliador de classes
de um projeto de nação não fazia claras dis- liderado por esse partido, expresso na sua
tinções dessas fronteiras, consideradas em Estratégia Democrático-Nacional (EDN),
vias de superação em um terreno suposta- que pressupunha a existência de uma bur-
mente democrático e universal ou combi- guesia interessada em um desenvolvimento
náveis em um possível jogo de ganha-ganha. nacional que pudesse retirar o País da condi-
Eis as táticas consequentes ao projeto e à ção subjugada em relação às potências impe-
leitura de realidade dos sanitaristas: rialistas e superar o atraso representado pela
aristocracia agrária, guiou as pretensões po-
o Movimento Sanitário fez valer uma de suas líticas e as leituras de realidade do movimen-
outras características que é o estabelecimen- to sanitário3, como acabamos de notar. Em
to de alianças com setores progressistas, po- profunda crise interna, que desembocaria,
pulares ou não, comprometidos com a luta. O em 1992, no seu desmantelamento, o PCB
que lhe permitiu consolidar alianças, manter- adotou postura acanhada e conservadora
-se enquanto movimento orgânico e organi- durante a chamada ‘transição democrática’,
zado, foi ‘conceber a unidade como valor es- produzindo a contenção do movimento sin-
tratégico’ e tratar a questão da saúde como dical, por temor de um retrocesso autoritário
questão nacional 4(186). do processo de distensão do regime. Por essa
razão, colocou-se contra a criação do PT e
Teixeira e Mendonça6(206) são ainda mais da Central Única dos Trabalhadores (CUT),
diretas: “o movimento sanitário preservou distanciando-se assim do movimento de
sempre seu caráter suprapartidário e poli- massas, sindical e popular, que renascera a
classista, condição essencial para manuten- partir dos anos 19702. Como atesta Stotz2(4):
ção da unidade política”.
A resposta mais comum a essa crítica já o movimento da reforma sanitária, contudo,
abordamos algumas páginas atrás: a via ins- desenvolveu-se à margem do movimento ope-
titucional teria sido o caminho que restou rário, tendo inclusive abandonado uma alter-
diante da desmobilização popular em torno nativa de enraizamento operário proposto com
da reforma sanitária. A analogia imedia- a criação do Departamento Intersindical de Es-
ta que está sugerida é com o caso italiano, tudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes
em que a reforma sanitária, como se sabe, de Trabalho – Diesat, fundado em agosto de
contou não só com uma classe numerosa e 1980. Optou por manter-se dentro da coalizão
mobilizada em torno das bandeiras da saúde política (Aliança Democrática) que promovia,
(mas não só) como também com o enraiza- sob hegemonia burguesa, a transição do poder
mento popular do PCI, que conduziu a luta. dos militares para os civis. Foi também o que
É Jaime A. Oliveira16(20), estabelecendo uma propiciou a participação dos quadros do PCB e
comparação Brasil-Itália, quem nos socorre: de sua área de influência no governo do general

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Saúde, luta de classes e o ‘fantasma’ da Reforma Sanitária Brasileira: apontamentos para sua história e crítica 153

Figueiredo, por meio do Conasp – Conselho (ou fantasmagorização, se preferirmos) da


Consultivo de Administração de Saúde Previ- luta organizada dos trabalhadores não é
denciária, em 1981. nova para a burguesia, como sabemos.
O abandono, pelas forças de esquerda
É difícil não elencar esse enfraqueci- mais representativas, de bandeiras antirre-
mento acelerado da identidade do PCB na gime, que pretendem ir além do ‘existente’,
classe trabalhadora como um dos elementos tem sido, a um só tempo, causa e consequ-
que ajudam a explicar a ausência da mesma ência do nosso desarme quando se trata de
classe das lutas específicas da saúde, tão entender em profundidade as formas clássi-
reclamada pelas lideranças sanitaristas. A cas de dominação burguesa, que atravessam
frágil base social do movimento sanitário, temporalidades e conjunturas, na relação
ao contrário do que poderia fazer supor a com as especificidades de cada espaço-tem-
VIII CNS, expressa-se, por exemplo, no fato po histórico. Entender e combater a apatia e
de que a emenda popular da saúde angariou a desmobilização dos trabalhadores hoje, no
pouco mais de 50 mil assinaturas, enquanto Brasil, passa, portanto, pela reavaliação das
as emendas favoráveis à reforma agrária e ao apostas ‘democráticas’ que temos feito e suas
ensino público conseguiram juntas quatro possibilidades de realização concreta.
milhões de assinaturas18. E se era já frágil no Se debelar o fantasma não pode ser apenas
setor saúde, logo no momento seguinte se obra do nosso desejo, ao menos podemos
enfraqueceu também toda a mobilização e parar de alimentar toda e qualquer aura de
capacidade de organização social que tinha mistério que insistir em pairar ao seu redor.
se acumulado na luta contra a ditadura. Recusemos a equação ilógica que atribui
Para conseguirmos captar essa profunda nossas derrotas (setoriais ou não) à falta de
transformação, em pleno curso, do que cha- povo e nossas vitórias à luta institucional.
mamos de sociedade civil e, em associação Dito de outra forma, não é possível asso-
direta, do Estado e da democracia, é urgente ciar as conquistas na Saúde, bem como suas
que voltemos a tentar compreender em pro- crises e seus fracassos, à existência ou não
fundidade a dinâmica capitalista no Brasil e de movimentos populares organizados em
as formas políticas que por aqui o processo torno das bandeiras da saúde. Embora, no
de acumulação tem produzido. A resposta Brasil, os movimentos sociais nunca tenham
do capital à energia da luta popular dos anos fortemente se organizado por essa demanda,
1970 e 1980 tem sido uma intensa campa- a única explicação razoável e historicamente
nha antiestado como forma de atingir tudo correta, como atestou Arouca, é que a força
o que soe como público, emancipatório ou do movimento organizado da classe é autora
socializante. Na esteira da propalada inefi- do SUS e das conquistas dos últimos 40 anos.
ciência, corrupção e gigantismo da máquina A expertise, o conhecimento profundo das
pública, tem entrado pesadamente em cena questões de saúde, a capacidade formula-
a expansão seletiva de uma sociedade civil dora e habilidade política dos sanitaristas se
dita ‘do bem’, incolor e inodora, reduzindo beneficiaram do ambiente de luta política do
o debate democrático e as lutas democrati- período. Essa equação não pode ser inverti-
zantes a aspectos meramente gerenciais. A da, posto que a ordem dos fatores, nesse caso,
política praticada pelos trabalhadores e por alteraria o produto. O desmonte do SUS é re-
suas lideranças (in memoriam), cada vez sultado do desmonte da classe e de sua luta
mais marcada pela distância de suas formas organizada, na Saúde ou fora dela. É tarefa do
classistas, tem sido chamada pelas forças do movimento sanitário sair em busca da classe
capital a legitimar a sua própria inserção su- que sugere ‘ausente’ fora do estreito campo
balternizada19. A agenda de apassivamento da saúde e da institucionalidade do Estado

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154 Dantas AV

e da academia para, com ela, e a partir dela, portentosas manifestações de rua de junho,
produzir luta política em nome de pautas tão suspeitamos, produziram energia concen-
abrangentes e necessárias quanto as mazelas trada suficiente para importantes desdo-
profundas que experimentam os trabalhado- bramentos políticos que ainda podem se
res atualmente. concretizar em futuro breve (a conferir). Seu
caráter multitudinário e espontâneo, distan-
te de centrais, sindicatos e partidos, desafia a
Considerações finais nossa compreensão, mas também indica com
certo grau de clareza uma recusa a formas e
A superação de uma estratégia de classe não conteúdos políticos que dirigiram o último
é mero ato de vontade das bases ou de suas ciclo político desde a chamada ‘redemocrati-
lideranças, sabemos. O processo é longo, zação’. Como nos ensina Gramsci21(190):
tortuoso e não tem desfecho infalível, pre-
visível. No entanto, a identificação do des- As classes inferiores, estando historicamente
compasso entre os movimentos concretos na defensiva, não podem adquirir consciên-
da classe e as leituras de realidade dos que são cia de si a não ser por negações, através da
ou se pretendem como suas lideranças é ato de consciência da personalidade e dos limites
vigília constante que nos cabe a todos, posto de classe do adversário: mas justamente este
que se constitui em parte importante do nosso processo ainda é informe, pelo menos em es-
‘inventário’. Dessa forma, aqui neste esforço cala nacional.
final de análise, queremos sugerir algumas
rápidas pistas que indicam, no plano do dis- Não nos parece adequado, portanto, que
curso, a persistência das mesmas práticas polí- cobremos dessa irrupção recente um estágio
ticas e apostas estratégicas, que são expressão de consciência de classe avançado que ela
‘também’ da nossa derrota e apatia atuais. não poderia parir ou expressar, uma vez
Nesse sentido, se estivermos corretos que a sua própria ocorrência tardia, e no
na interpretação dos fatos, as jornadas de formato que assumiu, nos sugere a trajetória
junho de 2013 representaram a explosão de recuo de consciência cumprida até aqui.
de uma concertação social vigente, mais Todavia, ela parece nos indicar o fechamento
notadamente, desde 1988 (em nome de um de um período da história política brasileira,
projeto de nação, com ampliação de direi- perante o esgotamento das formas institu-
tos, à esquerda; mas sob controle, posto cionais e da crise dos modos consagrados de
que ‘lento, gradual e seguro’, à direita) que, produzir a política na relação entre as classes.
crescentemente, retirou das ruas e do con- As evidências desse processo abundam, e as
trole das massas o exercício direto da polí- consequências para os trabalhadores – desa-
tica. Sua crise terminal foi a consequência bituados ao enfrentamento e redescobrindo,
mais visível do processo de garroteamento no susto, a luta de classes – têm alcançado
dos canais institucionais de atendimento às níveis dramáticos. Como principal operado-
demandas populares, que Felipe Demier20 ra política do ciclo que parece se fechar, as
tem chamado de ‘democracia blindada’. A forças dessa fração majoritária da esquerda,
reação ao agravamento da crise econômica e que se autointitula ‘democrática’, literal-
à precariedade dos serviços públicos básicos mente não acusou o golpe e se mantém firme
superou a até então eficiente contenção na aposta de soluções consensuadas, intra-
do movimento sindical e dos movimentos classes, conciliadoras, universais e no estrito
sociais produzida pelos governos petistas. respeito dos limites da ordem do capital.
Mesmo que débeis teórica e organizativa- Não será preciso muito esforço para
mente, carentes de projeto e programa, as evidenciar, em registro atualíssimo, o que

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Saúde, luta de classes e o ‘fantasma’ da Reforma Sanitária Brasileira: apontamentos para sua história e crítica 155

estamos afirmando. Basta que avancemos na até aqui na luta pelo SUS e dos constantes
caracterização desse descompasso, trazen- ataques sofridos desde 1988, com a enorme
do para o diálogo um dos mais importantes ampliação do setor privado e consequente
intelectuais coletivos que falam em nome do enfraquecimento do setor público, aponta-
movimento sanitário e que costuma evocar -se para a necessidade de construção de
o fantasma para a construção dos seus diag- “uma sociedade solidária e democrática” na
nósticos sobre as mesmas derrotas que têm qual se deve buscar “um modelo de Estado
nos atingido a todos, trabalhadores: o Centro onde políticas sociais protegem os cidadãos
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), e reduzem as desigualdades”. Em suma, “um
criado em 1976. Em três documentos recen- Estado democrático cujo centro para o seu
tíssimos, essa entidade manifestou a força desenvolvimento sejam as pessoas e as popu-
viva de uma prática política que resiste, como lações, e não os interesses do mercado”25(6).
dissemos, a despeito (e na contramão) da pe- O terceiro documento a que faremos refe-
dagógica realidade que vivemos. Vejamos. rência é a tese do Cebes para o biênio 2017-
Em editorial intitulado ‘Saúde é demo- 201926. Lançada em fins do mês de julho de
cracia: ontem, hoje e sempre’, presente na 2018, com a assunção de uma nova diretoria,
edição de outubro de 2017, o Cebes reafirma trata-se de um guia geral da ação política do
a sua luta pela democracia e reivindica o seu Centro no período. No entanto, não foge às
importante e representativo papel nas lutas compreensões e diretrizes que apontamos
de décadas atrás pelo direito universal à aqui nos documentos anteriores e, inclusive,
saúde. Faz da realidade o seguinte diagnósti- os repete em determinado conjunto de for-
co: vivemos atualmente, em escala mundial, mulações e ideias-força. Consideramos des-
o aumento da tensão entre democracia e ca- necessário citá-lo diretamente para a coleta
pitalismo, que anuncia o fim do ‘capitalismo de mais evidências, mas a decisão de incluí-lo
democrático’, produto do pacto social do nessas considerações finais se deveu à im-
pós-guerra cujo resultado foi a domesticação portância estratégica conferida a ele por seus
dos mercados pela democracia. E completa: autores para a condução política do Centro, e
do movimento sanitário, no próximo biênio.
a democracia passou a ser dominada pelos Sendo assim, a perspectiva da conciliação
mercados, alterando o contrato social do pós- de classes, que acredita na possibilidade de
-guerra e o equilíbrio que se mantinha entre harmonização dos interesses entre capital e
os interesses do capital e os interesses dos trabalho, no controle do capital pelo Estado
cidadãos22(991). – este conduzido democraticamente pela
vontade geral do conjunto da cidadania –,
Na edição seguinte da mesma revista, não poderia ser mais persistente. Em que
que veio a público em janeiro de 2018, outro pese a importância de reafirmar a luta pela
editorial, sob o título ‘Justiça social, demo- democracia sob uma conjuntura de cassa-
cracia com direitos sociais e saúde: a luta do ção de direitos e desrespeito flagrante aos
Cebes’, insistiu na mesma linha. Recusando mínimos espaços de garantia legal no inte-
o Estado, em última análise, como garanti- rior da ordem burguesa, a constatação que
dor da relação de dominação e extração de salta aos olhos é que continuaremos a pro-
valor que é o capital23 e romantizando a so- duzir uma fantasmagoria voluntária. É de se
ciedade civil como o espaço do consenso e da notar que após 32 anos a síntese do programa
harmonia24, o Cebes novamente nos oferece político da esquerda democrática, vocaliza-
a sua compreensão do real e um programa a do por Arouca na abertura da VIII CNS de
ser buscado pelas forças progressistas. Após 1986, continue a se fazer ouvir.
um rápido balanço da trajetória cumprida Em texto de 1993, analisando o impacto

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156 Dantas AV

da atmosfera revolucionária dos anos 1960 forças por meio de reformas, tijolo por tijolo,
e 1970, no Brasil, Jacob Gorender27(14) disse estaria construindo o socialismo (democrá-
tratar-se também de um fantasma a herança tico), que viria como consequência lógica
deixada pela derrota da luta guerrilheira: “o de um potente processo de democratização.
fantasma da revolução brasileira”. É irresistí- Para tanto, e exatamente em função dessa es-
vel a analogia. Serão distintos os fantasmas? tratégia, aderiu taticamente a uma forma de
Acreditamos que não, posto que ambos são fazer política que, em nome das conquistas
produto de derrota. Na sequência do fim do eleitorais e institucionais, crescentemente,
regime ditatorial, a ‘esquerda democráti- relegou a segundo plano a organização e a
ca’ que resultou do movimento de massas, mobilização pela base, produzindo assim, no
embora tenha nascido recusando a concilia- que lhe coube, deliberadamente, mais distan-
ção de classes capitaneada pelo PCB de então, ciamento e ausência do que a correlações de
aos poucos também se afastou, convicta, da forças já nos impunha. À classe que deixamos
revolução e junto dela, acreditava, do seu de enxergar como verdadeiro motor das con-
fantasma vermelho. Elegeu a ‘radicalização quistas civilizatórias e que, depois de desabo-
da democracia’ como nova bandeira, nos nada pelas suas experiências mais radicais,
limites da ordem burguesa e de suas insti- recolheu-se, demos o nome impróprio de
tuições, na expectativa de que acumulando fantasma. É chegada a hora de reencarná-la. s

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Recebido em 31/07/ 2018
Aprovado em 09/08/2018
Conflito de interesses: inexistente
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Suporte financeiro: não houve
Constituição. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 145-157, NOVEMBRO 2018


158 ENSAIO | ESSAY

O SUS e o setor privado assistencial:


interpretações e fatos
The Unified Health System (SUS) and the private assistance sector:
interpretations and facts

Ligia Bahia1, Mario Scheffer2

* Este artigo baseia-se em DOI: 10.1590/0103-11042018S312


apresentação no Centro
de Estudos Estratégicos
da Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) em um dos
debates da série: Futuros
para o SUS: ideias para a
ação, em julho de 2017.

RESUMO O ensaio abordou problemas para refletir, identificar contradições e formular estra-
tégias políticas sobre a privatização do sistema de saúde no Brasil, especialmente as próprias
acepções sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), sobre o que é público e o que é privado.
Constatou-se que as relações entre público e privado apreendidas somente por medidas
(quantidade de unidades, atividades, recursos humanos e financeiros) estão subjacentes a in-
teresses e negociações entre agentes e suas decisões políticas e a dificuldades para discernir
os traços estruturais de um sistema de saúde desigual e segmentado das conjunturas políticas
que os reproduzem. Trinta anos após a Constituição de 1988, houve avanços, impasses e retro-
cessos; assim como adaptações na compreensão do SUS e do setor privado.

PALAVRAS-CHAVE Sistema Único de Saúde. Privatização. Setor privado.

ABSTRACT The essay discusses problems to reflect on, identify contradictions, as well as discern
and formulate political strategies on the privatization of the health system in Brazil, especially
the multiple meanings of the Unified Health System (SUS) and about what is public and what
is private. It is observed that the relations between public and private seized only by measures
(quantity of units, activities and human and financial resources) are underlying interests and
negotiations between agents and their political decisions and difficulties to discern the structural
features of an unequal health system and segmented from the political conjunctures that repro-
duce them. Thirty years after the 1988 Constitution, there have been advances, impasses and
1 Universidade Federal do setbacks, as well as adjustments in the understanding of the SUS and the private sector.
Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid. KEYWORDS Unified Health System. Privatization. Private sector.
org/0000-0001-8730-
2244
ligiabahia55@gmail.com

2 Universidade de São

Paulo (USP) – São Paulo


(SP), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0001-8931-
6471
mscheffer@uol.com.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 158-171, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos 159

Introdução meio a tantos números favoráveis ou desfa-


voráveis ao público, ou ao privado, fica difícil
De um tempo para cá, temos recorrido a separar os traços estruturais de um sistema
figuras de linguagem nas quais o Sistema de saúde desigual e segmentado das conjun-
Único de Saúde (SUS), como sujeito de turas políticas que os reproduzem e até os
orações, localiza-se em espaços conflitantes: ampliam. Trinta anos após a Constituição de
‘o SUS na encruzilhada’, ‘o SUS na mira’, o ‘SUS 1988, houve avanços, impasses e retrocessos;
sob ataque’; e, após a Emenda Constitucional assim como adaptações na compreensão do
95, que reduz gastos públicos: ‘Desmonte SUS e do setor privado.
do SUS’. Tais expressões ora alertam para a Nessa conjuntura, caracterizada pela
perda de rumos ou risco iminente de derrota, crise econômica e política e por cortes de
ora conotam a necessidade de proteger o SUS recursos para a saúde, torna-se especialmen-
de desvios dos caminhos e ataques de inimi- te relevante estabelecer um debate sobre
gos. São alusões úteis à aproximação da re- as relações entre a recessão, as políticas de
alidade. Certamente, as políticas sociais (e a austeridade, a situação de saúde e o SUS. As
saúde não é exceção) estão sendo submetidas tarefas para dimensionar possíveis tendên-
a restrições que descaracterizam completa- cias de piora de indicadores e buscar res-
mente a acepção original de seguridade social postas concretas para reduzir riscos sociais,
da Constituição de 1988. ambientais e individuais e atendimento a
No entanto, faltaria sustentação às me- problemas de saúde, tais como doenças crô-
táforas sobre o SUS caso o tempo fosse nicas, violências, obesidade e arboviroses,
considerado. Governos anteriores também são incontornáveis. No entanto, este texto
‘atacaram’ o SUS. A rigor, a acepção de um enfoca apenas um dos aspectos do sistema de
SUS como coisa concreta, quase sempre uma saúde no Brasil: a segmentação e estratificação
rede assistencial pública e vigilância sanitária assistencial. A intenção – ainda que a relevân-
e epidemiológica, tampouco é aquela aprova- cia dos processos gerais e de longo prazo seja
da em 1988. Quando se restringe a política de inquestionável – é jogar luzes sobre elementos
saúde ao que ‘acontece com o SUS’ (reduzido conjunturais contemporâneos, e, dessa forma,
ao Ministério e Secretárias de Saúde), parte evitar a desatenção para as iniciativas em curso
importante dinâmica dos conflitos e interes- e recursos financeiros e simbólicos concentra-
ses setoriais fica oculta. A acepção de um jogo dos em determinados agentes sociais.
limitado a movimentos declarados de parcela Assim, a equação que orienta a reflexão é
dos agentes públicos dificulta identificar e a de que os movimentos que afetam a pro-
explicar os processos não lineares que marca- priedade, finanças e responsabilidade do
ram a trajetória do SUS. setor público são causa, e não tão somente
Entre os problemas para refletir, iden- consequência de determinantes gerais, de
tificar contradições bem como discernir e desigualdades impostas por um ‘Estado’ e
formular estratégias políticas sobre a privati- sociedade estruturalmente hostis às polí-
zação do sistema de saúde no Brasil, situam- ticas públicas universais. As práticas efeti-
-se as próprias acepções sobre SUS e acerca vas de agentes envolvidos, suas atividades
do que é público e do que é privado. As rela- táticas, seus cálculos e especialmente o
ções entre público e privado costumam ser substrato cognitivo que informa essas ações
apreendidas por medidas (quantidade de delimitam objetivamente o âmbito de alter-
unidades, atividades e recursos humanos, nativas políticas. O pressuposto desta breve
financeiros) e, nem sempre, pelas expres- e necessariamente sintética reflexão é que as
sões manifestas de interesses e negociações estratégias políticas de forças sociais concor-
entre agentes e suas decisões políticas. Em rentes com o SUS público e universal foram e

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160 Bahia L, Scheffer M

têm sido recepcionadas sob o registro do SUS encontraram um equilíbrio duradouro e vir-
para pobres. A hipótese a ser posteriormente tuoso com a segmentação do sistema. O do-
analisada é que a sociedade, sempre que per- cumento da entidade empresarial Instituto
guntada, declarou prioridade para a saúde, Coalizão Saúde, criada em 2015 e liderada
apoio ao SUS, ao pagamento de impostos e a pelo presidente da maior empresa de planos
alocação de recursos em políticas universais. privados de saúde no Brasil, afirma:
No entanto, as coalizões governamentais, os
governos e determinados dirigentes, diante Sempre na defesa intransigente do Sistema Úni-
de restrições fiscais e possivelmente orienta- co de Saúde. E com a convicção de que, como
dos por uma compreensão equivocada sobre determina a nossa Constituição, a coexistência
saúde, acataram e implementaram políticas e a colaboração entre setores público e privado
de saúde orientadas por recortes focalizados. podem e devem proporcionar um melhor aten-
Entretanto, a conjectura sobre a cris- dimento à nossa população - desde a prevenção
talização da compreensão do SUS pelas e atenção básica até o mais sofisticado recurso
instâncias empresariais e governamentais, que a medicina pode oferecer1.
como assistência para pobres, será, por en-
quanto, apenas delineada; obviamente seus Sem definir, portanto, de que SUS estamos
contornos e desdobramentos requerem falando, surgem realidades supostamente
análises específicas, que escapam ao foco inesperadas ou, ao menos, muito distanciadas
do texto. O ponto de partida adotado aqui é daquelas já quase lendárias histórias sobre as
que a perspectiva de um sistema público de disputas sobre o direito à saúde, que antecede-
saúde abrangente e de qualidade ficou de pé. ram o texto constitucional. Não se menciona o
Porém o projeto de SUS efetivamente uni- direito à saúde, e, sim, o SUS e a coexistência
versal nunca foi e não é consensual, inclusive entre o público e o privado para o ‘atendimento’.
no segmento que declara o apoiar.

O SUS constitucional
SUS: um conceito e uma trajetória de
polissêmico implementação pragmática
Após a Constituição, o SUS torna-se um
termo polissêmico, condensando-se, pos- O SUS constitucional tinha um orçamento
teriormente, como rede pública de servi- compatível com a missão da universalização
ços. A operação de substituição do sistema do direito à saúde. As duas novas fontes de
pelos serviços e do universal por assistência custeio (Contribuição para o Financiamento
para os pobres, para quem não pode pagar, da Seguridade Social – Cofins e Contribuição
amputou o conceito ampliado de saúde. Não Social sobre o Lucro Líquido – CSLL) para a
é por acaso que se passou a considerar o seguridade social somadas às anteriores (im-
SUS equivalente ao ‘sistema suplementar’, a postos gerais e contribuição previdenciária)
utilizar expressões como ‘SUS dependente’ seriam suficientes para a expansão de direi-
como se fossem naturais . A acepção de SUS tos sociais. Entretanto, a seguridade social
como serviço público para pobres tornou-se, jamais foi implementada. Mal a Constituição
assim, hegemônica. Para uma parte dos po- foi aprovada, a conversa sobre direitos que
líticos, gestores, técnicos e empresários, as não cabem no orçamento se disseminou.
tensões e as lutas travadas durante o processo Atualmente, predominam ideias errôneas
de debates e de aprovação do SUS constitu- sobre o texto constitucional. As principais
cional em torno da democratização da saúde interpretações incorretas são: 1) o SUS foi

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O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos 161

promulgado sem o devido financiamento; tiveram mandatos curtos (entre 1985 e 1988)
2) houve um conchavo dos sanitaristas com e foram sucedidos por Jader Barbalho. Hesio
setores conservadores em torno da permis- Cordeiro permaneceu na presidência do
são para a atuação da iniciativa privada. Instituto Nacional de Assistência Médica da
A história, no entanto, é mais interessan- Previdência Social (Inamps) entre 1985 e 1988
te do que suas versões estilizadas e está bem e foi substituído por um médico, que havia
documentada. As entidades da sociedade participado da gestão de Jarbas Passarinho,
civil se organizaram em torno de arenas de conterrâneo e ligado à família presidencial.
negociação específicas nos debates sobre a Já em 1989, o documento ‘Adult Health
Constituição. Na saúde, os sanitaristas esta- in Brazil: adjusting to new challanges’, do
beleceram acordos com parlamentares pro- Banco Mundial4, afirmava que seria impossí-
gressistas. Além disso, o setor privado buscou vel financiar com recursos públicos a saúde
apoio no centrão2 (parlamentares que repre- para todos, avançando propostas sobre a
sentavam setores sociais mais conservadores, configuração público-privada mais adequa-
maioria na Constituinte, expressaram-se em da para o Brasil: os pobres teriam melhores
votações importantes, como a questão da serviços de saúde se o “setor público imitas-
reforma agrária, na qual foi preservada a dis- se o setor industrial brasileiro moderno con-
tribuição desigual da terra). A aprovação do tratando serviços das empresas de planos de
SUS foi uma inequívoca conquista. Sua via- saúde”4(48). Collor de Mello, cujo mandato
bilidade, porém, era reconhecidamente um iniciou em 1990, seguiu os preceitos do tripé:
enorme desafio. desestatização, desregulamentação e libera-
Havia fragilidades amplamente reconhe- lização de preços e salários. Seu discurso de
cidas pelos sanitaristas3. A origem da propos- posse explicitou sua concepção sobre a natu-
ta de mudança, técnicos e pesquisadores das reza assistencialista das políticas sociais:
universidades, implicava a mobilização, con-
vencimento e participação dos trabalhadores O Estado deve ser apto, permanentemente
e de suas entidades. No final dos anos 1980, apto a garantir o acesso das pessoas de bai-
trabalhadores especializados já estavam vin- xa renda a determinados bens vitais. Deve
culados a esquemas assistenciais privados, prover o acesso à moradia, à alimentação, à
e seria imprescindível que apoiassem a des- saúde, à educação e ao transporte coletivo a
tinação das contribuições previdenciárias quantos dele dependam [...]5.
para um fundo comum e que integrassem as
fileiras de combate ao modelo privatizante Após a Constituição, o projeto de efeti-
que se pretendia superar. Analogamente, var um SUS universal foi dramaticamen-
estava estabelecida a urgência de buscar te restringido pela redução dos recursos
apoio para o projeto da Reforma Sanitária para a saúde (para patamares menores do
entre os profissionais de saúde. que as despesas em 1987). Como o SUS,
O desenrolar dos acontecimentos impli- especialmente, o financiamento para as
cou a revisão de tais expectativas. Mudanças ações da rede pública de saúde encontrou
no cenário internacional e a inclinação con- apoiadores no movimento municipalista.
servadora do governo Sarney impuseram Consequentemente, a ação política desse
imensas dificuldades à implementação do movimento ampliou as bases políticas do
SUS. É preciso recordar que os três minis- SUS, contudo, o protagonismo de prefeitos
tros progressistas da Previdência na Nova e secretários de saúde acompanhou-se pela
República, Waldir Pires (que cunhou a ex- ênfase nas dimensões administrativo-insti-
pressão ‘a Previdência é viável’), Raphael tucionais da rede de serviços. O subfinancia-
de Almeida Magalhães e Renato Archer, mento, o teor eminentemente contencionista

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162 Bahia L, Scheffer M

e descentralizador da implementação do de saúde da família aumentou de 4.114 em


SUS, conduzida por gestores6, bem como a 1999 para 54.205 em 2017. Neste mesmo ano,
retomada das posições relevantes de influên- as equipes estavam localizadas em 4.995 mu-
cia de hospitais privados aliados a empresas nicípios, sendo potencialmente responsá-
de planos de saúde no Congresso Nacional e veis pela cobertura de cerca de 127 milhões
ao Poder Executivo resultaram em esforços de pessoas10. Existem evidências sobre a
notáveis para a ampliação do acesso. Tais atenção propiciada pelas equipes de saúde
iniciativas, porém, não se direcionaram à da família e a redução na taxa de mortalida-
compreensão e à tradução operacional do de infantil pós-neonatal (amplamente atri-
conceito ampliado de saúde. O Brasil é o buível à redução no número de mortes por
único país da América do Sul que possui um doença diarreica e por infecções do aparelho
sistema universal de saúde. No entanto, não é respiratório)11 e ainda diminuição de inter-
a nação do continente que gasta mais recur- nações hospitalares potencialmente evitá-
sos com saúde pública. Existe uma contradi- veis12. Além de ações ambulatoriais básicas,
ção estrutural: apesar do sistema universal, o SUS realiza, entre outras atividades, trans-
os gastos com saúde são menores do que os plantes e fornece medicamentos caros para
de países vizinhos, e as despesas privadas as pessoas vivendo com HIV/Aids e portado-
são maiores do que as públicas7. res de doenças raras.
A oferta de leitos hospitalares da rede
de serviços do SUS é abrangente e diversi-
SUS: magnitude da oferta e ficada, inclusive para pediatria, obstetrícia
acesso e oncologia. No entanto, o acesso e o uso
de determinados serviços especializados
Entre 2003 e 2013, houve uma significativa pela rede SUS são racionados, em função
ampliação do acesso da população a cuida- da existência de tetos orçamentários e de
dos de saúde: a proporção de pessoas que uma oferta, constituída majoritariamente
se consultaram com médicos aumentou de por prestadores privados, que só atendem a
54,7% em 1998 para 71,2% em 20138. Em clientelas dos planos de saúde. Por exemplo:
2014, mais de 90% dos que se declararam a oferta pública (privada contratada) pre-
ser hipertensos ou diabéticos e 88% dos dominou na terapia renal substitutiva (con-
portadores de doença pulmonar obstrutiva siderando estabelecimentos cadastrados e
crônica obtiveram os remédios prescritos9. que podem ser identificados pela especia-
As estratégias para expansão de coberturas, lidade) em 2016. No entanto, os estabele-
especialmente investimentos na atenção cimentos de radioterapia registrados estão
básica, foram positivas. O número de equipes voltados às demandas privadas.

Tabela 1. Estabelecimentos de saúde selecionados segundo procedimento no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de


Saúde (CNES), Brasil, 2017
Procedimento Privada Pública Filantrópica Total SUS %
Hemodiálise 102 4 0 106 80 75,47
Radioterapia 81 0 5 86 20 23,26

Fonte: Elaboração própria, baseada em dados do Datasus13.

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O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos 163

Algumas especialidades, como, por estratégicas, como oftalmologia, gastroen-


exemplo, o atendimento para queimados em terologia e otorrinolaringologia, é eminen-
hospitais e transplantes, são praticamente temente direcionada ao atendimento de
exclusividade da rede SUS. Contudo, a oferta clientelas privadas (tabela 2).
de leitos cirúrgicos para especialidades

Tabela 2. Número de leitos (SUS e planos privados) segundo especialidades selecionadas, Brasil, 2018

Especialidades SUS Não SUS Total % SUS


Queimado Adulto 189 17 206 91,75
Pediátricos 39657 10926 50583 78,40
Obstétricos 39746 13503 53249 74,64
Neurocirurgia 3617 1420 5037 71,81
Oncologia 4105 2034 6139 66,87
Cirurgia geral 37684 22240 59924 62,89
Ginecologia cirúrgica 4338 2674 7012 61,87
Cardiologia cirúrgica 3083 2304 5387 57,23
Oftalmologia 1169 1444 2613 44,74
Gastroenterologia 913 1150 2063 44,26
Otorrinolaringologia 795 1341 2136 37,22
Fonte: Elaboração própria, baseada em dados do Datasus13.

Observa-se ainda insuficiência e propor- para o desvelamento dos enclaves corpo-


ção declinante para a demanda pública de rativistas e empresariais subjacentes às
equipamentos de tomografia computado- lacunas e distribuição da oferta pública.
rizada (47,8% em 2008 e 43,3% em 2018) Houve ampliação do acesso a determinadas
exposta no gráfico 1. Paradoxalmente, 30% ações ambulatoriais e hospitalares, mas não
de clientes de planos de saúde possuem para todas. Simultaneamente, observa-se o
acesso potencial a 60% de equipamentos predomínio da oferta da rede SUS em espe-
para exames de imagem de maior custo. A cialidades associadas à realização de proce-
oferta de leitos de Centro de Tratamento dimentos caros, mas também não para todas.
Intensivo (CTI) também é desequilibrada e Consequentemente, o gargalo do SUS não é,
manteve-se relativamente estável, especial- como se diz por aí, a ‘alta e média complexi-
mente entre 2014 e 2018 (gráfico 2). dade’, e, sim, as políticas de divisão público-
Essa ‘especialização’ da rede SUS não -privada de procedimentos, ações e valores
admite interpretações simplificadas; e o de remuneração orientada por interesses
termo ‘complexidade’ e os adjetivos alta particulares.
e média frequentemente não contribuem

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164 Bahia L, Scheffer M

Gráfico1. Número de equipamentos de tomografia (planos privados, SUS e % SUS), Brasil 2008 a 2018

3000 49,0

48,0
2500
47,0

2000 46,0

45,0 SUS
1500
44,0
Não SUS
% SUS
1000 43,0

42,0
500
41,0

0 40,0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Fonte: CNES14.

Gráfico 2. Leitos de CTI (planos privados, SUS e % SUS), Brasil 2008 a 2018

35000 60,0

30000
50,0

25000
40,0

20000
30,0 SUS
15000 Não SUS
% SUS
20,0
10000

10,0
5000

0 0,0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Fonte: CNES14.

Expansão das bases contraposto ao mercado, também contri-


financeiras e políticas do buem para a apreensão difusa do termo
SUS. Não são poucos os gestores, técnicos e
setor privado assistencial agora até mesmo sanitaristas que se valem
da dicotomia SUS e ‘saúde suplementar’
Definições e dimensionamentos equivoca- para explicar o sistema de saúde no Brasil.
dos sobre o setor privado, especialmente Consequentemente, não são poucas as expli-
quando mobilizados para afirmar o público cações sobre os problemas da saúde baseadas

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O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos 165

na existência de dois subsistemas que, por de planos privados de saúde do mundo.


sua vez, hiperinflacionaram a difusão de pro- Porém, o tamanho e o peso do ‘mercado e
posições de articulação e integração entre o público’ dependem de métricas que, se usadas
público e o privado. Essas acepções seriam a gosto do freguês, poderão sugerir ora o pre-
inócuas se não fosse o fato de elas embasarem domínio do público, ora o do privado, sem
a falsa suposição de que existe um equilíbrio, que se responda à necessidade de identificar
que as proporções entre a demanda ‘pagante’ e de explicar os fluxos público-privados e
correspondem à oferta disponível e às des- acumulação de recursos financeiros e polí-
pesas. Na realidade, a oferta e as despesas ticos. Uma análise mais realista permite ob-
para o SUS são menores do que as deman- servar a existência de um nexo causal entre
das. Inversamente, a oferta e as despesas do políticas públicas das coalizões nucleadas
setor privado assumem proporções maiores pelo Partido da Social Democracia Brasileira
do que as demandas. Ou seja, o senso comum (PSDB) e Partido dos Trabalhadores (PT)
sobre mercados do tamanho dos bolsos dos à expansão do setor privado. Foram muitas
indivíduos e seu desdobramento relativo à as iniciativas mobilizadas para alavancar
virtude do privado para ‘desonerar’ o SUS o mercado de planos privados de saúde. O
não resistem às evidências. quadro 1 relaciona alguns dos incentivos es-
O Brasil possui o segundo maior mercado tratégicos à oferta e demanda.

Quadro 1. Legislação selecionada* relacionada com o apoio à oferta e demanda de serviços e planos e seguros privados de saúde no período pós-
Constituição de 1988

Governo Incentivos à Oferta Incentivos à Demanda


Sarney Decreto-Lei nº 7.713, de 1988 (amplia os limites
do abatimento do imposto de renda com des-
pesas com saúde)
Collor /Itamar Lei nº 8620, de 5 de janeiro de 1993, (desconto e parcelamento de débitos de
hospitais contratados ou conveniados com o Instituto Nacional Inamps)
FHC – BNDES Apoio a investimentos na rede privada de serviços médico-hospitalares Lei nº 9.250, de 1995 (as despesas com saúde
(hospitais e unidades de diagnóstico) passam a ser objeto de dedução integral do
– BNDES Modernização de hospitais filantrópicos e estratégicos para o SUS (com imposto de renda)
participação da Caixa Econômica Federal) Lei nº 9.527, de 1997 (altera o artigo 230 da Lei
– Decretos nº 3.504, de 2000, nº 4.499, de 2002, nº 4.327, de 2002 e nº 4.588, nº 8.122, de 1990 – Regime Jurídico Único ao in-
de 2002 (alteração da Lei nº 8.212, de 1991, flexibilização dos parâmetros para a troduzir a possibilidade de a assistência à saúde
concessão do certificado de filantropia; introduz alternativas: ou 60% das interna- do servidor ser realizada mediante contrato)
ções para o SUS, ou aplicação de parte da receita bruta em gratuidade ou classifi- Decreto nº 3.000, de 1999 (atualiza os artigos
cação do hospital como estratégico para o SUS). 17 e 18 da Lei nº 4.506, de 1964, que tratam
– Decreto nº 4.481, de 2002 (redução da prestação de serviços dos sistemas de da isenção do cálculo do rendimento bruto os
alta complexidade das entidades filantrópicas destinados ao atendimento univer- serviços médicos, pagos, ressarcidos ou man-
sal para 20%) tidos pelo empregador em beneficio de seus
– Medida Provisória nº 2.158-35, de 2001 (deduções da base de cálculo das des- empregados)
pesas operacionais e reservas técnicas das contribuições sociais para empresas
de planos de saúde)
Lula – BNDES Apoio a investimentos na rede privada de serviços médico-hospitalares Lei nº 11.302, de 2006 (altera o artigo 230 da
hospitais, ‘leitos não SUS’ e unidades de diagnóstico Lei nº 8.122, de 1990 – Regime Jurídico Único
– BNDES Modernização de hospitais filantrópicos e estratégicos para o SUS ao introduzir a possibilidade de assistência ao
– Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal nº 480, de 2004 (promul- servidor mediante a forma de auxílio – ressarci-
ga a separação das contas dos serviços de terceiros – entre os quais os médicos mento do valor parcial dos gastos com planos
e autoriza a dedução de impostos e contribuições sociais para profissionais de ou seguros privados de assistência à saúde)
cooperativas e associações médicas)

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166 Bahia L, Scheffer M

Quadro 1. (cont.)

Lula – Decreto nº 5.895, de 2006 (introdução de novos critérios para a concessão do


certificado de filantropia: oferta de serviços no percentual mínimo de 60% ou
realização de projetos de apoio ao desenvolvimento institucional do SUS nas se-
guintes áreas de atuação: 1) estudos de avaliação e incorporação de tecnologias;
2) capacitação de recursos humanos; 3) pesquisas de interesse público em saúde;
4) desenvolvimento de técnicas e operação de gestão em serviços de saúde)
– Lei nº 11.345, de 2006, e Decreto nº 6.187, de 2007 (criação de fonte de re-
cursos –Timemania – parte da arrecadação é enviada para o Fundo Nacional de
Saúde e destinada a Santas Casas, entidades hospitalares sem fins econômicos e
entidades de reabilitação de portadores de deficiência e parcelamento de débitos
tributários)
– Lei nº 10.833, de 2004 (preservação do regime de redução da alíquota da Con-
tribuição de para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) de 7,6% para 3%
para estabelecimentos privados de saúde)
– Resoluções ANS nº 195 e nº 196 de 2009, permite a comercialização de planos
de saúde por coletivos por adesão (ampliação das vendas de contratos que ‘esca-
pam’ das regras de reajuste e rescisão) e admite a intermediação de administra-
doras nas relações entre clientes e empresas de planos
Dilma – BNDES Apoio a investimentos na rede privada de serviços médico-hospitalares Resolução Receita Federal RFB nº 1.500/2014
hospitais, ‘leitos não SUS’ e unidades de diagnóstico Dedução do imposto de renda de cirurgias
– BNDES Reestruturação das dívidas bancárias e com fornecedores das Santas plásticas estéticas e despesas com saúde no
Casas e entidades filantrópicas exterior
– BNDES empréstimos para empresas de planos privados de saúde
– Lei nº13.097, de 2105, novas e amplas exceções à vedação constitucional à par-
ticipação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros nas atividades de
assistência à saúde, inclusive hospitais filantrópicos
– Resolução Normativa ANS nº 396, janeiro de 2016 desconto nas multas de
empresas de planos de saúde

Fonte: Sicon15, Sijut16, BNDES17.


* Levantamento incompleto e não sistemático.

Os estímulos governamentais ao setor (com valores corrigidos), no período de 2001


privado especializado na comercialização a 2016, foi significativamente superior ao
de planos e seguros de saúde associados ao Produto Interno Bruto (PIB), à inflação; e
aumento da formalização dos empregos manteve-se estável mesmo quando houve
e renda contribuíram para a expansão do queda do número de clientes. O descolamen-
mercado e aprofundamento da fragmen- to das receitas da base concreta de clientes
tação e segmentação do sistema de saúde. tem sido considerado um sinal de inserção
Observa-se no gráfico 3 que o crescimento de grupos econômicos do setor de planos e
das receitas das empresas de planos de saúde seguros no regime de dominância financeira.

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O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos 167

Gráfico 3. Variação do número de clientes, receitas de empresas de planos (corrigidas IPCA 2016), PIB real e inflação,
Brasil, 2001 a 2016

25,00

20,00

15,00

10,00 Clientes
Receitas
PIB
5,00 Inflação

0,00
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

-5,00

-10,00

Fonte: Ipeadata18, ANS19, Banco Central20.

Assim, as repercussões da magnitude do recorre-se à luta de Davi (os aguerridos sanita-


volume de recursos financeiros mobilizada ristas) contra Golias (os capitalistas que atuam
pelas empresas de planos e seguros não se no setor). Porém, tanto a versão que se apoia
restringem às dimensões econômicas, a finan- na dimensão temporal quanto a que embute
ceirização implica atuação ativa de grupos de uma avaliação de correlação ficcional de forças
interesse na definição das políticas públicas. deixam de lado o papel dos governos e do
debate político.
Ainda que o potencial explicativo de analo-
O fio da meada gias entre projetos e construções sociais com
ciclos biológicos de vida ou em uma estrutura
Parcela significativa de profissionais de saúde imutável seja baixo, as equivalências são ten-
e entidades da sociedade civil que apoiaram os tadoras e absolvem. Além disso, enaltecem o
governos do PT adotou um discurso defensivo passado de árduas lutas por direitos sociais. E
sobre os obstáculos ao SUS. Por vezes, recorre- se não for relevante compreender o presente, as
-se a metáforas sobre o SUS e a democracia no afirmações sobre a existência de um processo
Brasil, associando-os à infância ou à adoles- de conquistas ainda imaturo, em construção,
cência, remetendo-os, em termos temporais, dão bem para o gasto. Abstrair o presente faci-
à Constituição de 1988, mas também às difi- lita emitir avaliações otimistas ou pessimistas,
culdades de crescimento, como se não tives- mais afeitas às profecias sobre o destino inexo-
sem se tornado ‘adultos’. Em outras ocasiões, ravelmente grandioso de um país de riquezas

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 158-171, NOVEMBRO 2018


168 Bahia L, Scheffer M

mis ou de uma nação sempre fadada ao fracas- no âmbito do Poder Legislativo. A maturação
so. Retomar a ambiguidade do termo Estado, de um projeto de Reforma Sanitária envolveu
como regulador que assegura a reprodução e esforços teóricos e gerou novas formas de in-
acumulação e enquanto detentor de institui- serção de instituições de ensino e pesquisa na
ções estatais ativas e autônomas que deveriam vida política do País, sendo que a mais notável
transcender interesses parciais de grupos espe- foi a convocação de uma conferência de saúde
cíficos e se organizarem em torno de objetivos com participação popular em 1986.
gerais, poderá contribuir para reencontrar o fio Havia divergências entre o PT e o então
da meada. Nesse sentido, as sugestões conver- PCB em torno da ‘estatização’, tensão que, por
gem em torno do fortalecimento das institui- sua vez, tinha como substrato a compreensão
ções públicas, das suas burocracias e da geração sobre o processo de ruptura com o capitalis-
de atividades voltadas às políticas universais, mo. Para uns, o núcleo das transformações da
ou seja, do fechamento de canais de ações go- Reforma Sanitária consistia na necessidade de
vernamentais de suporte à privatização. travar a batalha por consciência da determi-
Com o passar do tempo, diversas interpreta- nação social sobre o processo saúde-doença.
ções sobre a ‘história’ do SUS ganharam status Assim, tratava-se de ‘gramscianamente’ rea-
de ‘verdade’. Entre as inúmeras versões que lizar mudanças radicais na consciência e nas
circulam, especialmente no movimento social, práticas. Para outros, a concepção de reforma
situam-se duas antagônicas: uma delas atribui e não ruptura parecia inadequada às condições
o SUS a um processo de conquista dos movi- concretas de um País com inserção periférica.
mentos sociais, uma articulação ‘por baixo’; a Em termos práticos, uma das vias propostas
outra, a um processo de negociação nos debates para a reforma, a via congressual, a Assembleia
durante a Constituição de 1988. Como a princi- Nacional Constituinte, afigurava-se como uma
pal força política que formulou o SUS, o antigo alternativa ‘por cima’.
Partido Comunista Brasileiro (PCB), perdeu Tais polêmicas merecedoras de maior apro-
potência social até mesmo para resgatar seus fundamento parecem, no entanto, ter ficado
acertos e erros nas lutas pela redemocratização, em um passado remoto. Durante o processo
a tendência entre os militantes de esquerda, que de implementação do SUS, a proximidade com
não participaram diretamente das lutas pela le- o chamado ‘centrão’ das coalizões governa-
gitimação do direito à saúde, é a de adotarem, mentais atravessou barreiras setoriais. Talvez,
mesmo que por vezes de forma pouco clara, a ainda que com as devidas desculpas pela sim-
versão do ‘conchavo’. plificação, possa-se admitir como hipótese
Contudo, a ideia de que houve um ‘toma lá que, após a derrota das forças conversadoras e
dá cá’ protagonizado por sanitaristas que pro- privatizantes na saúde no processo de debates
punham uma reforma radical obscurece dois da Constituição, houve uma reacomodação das
fenômenos relevantes à análise das condições forças políticas pró-privatização dinamizadas
concretas das disputas políticas na saúde. O pela presença de técnicos do movimento sani-
primeiro é a correlação de forças setoriais. O tário em destacados cargos de gestão do SUS e
SUS foi apoiado pelos parlamentares ‘anti- pela permanente articulação ‘por fora’, espe-
-centrão’ e certamente galvanizou apoios de cialmente nos ministérios da área econômica,
setores progressistas do então Movimento partidos políticos e Congresso Nacional.
Democrático Brasileiro (MDB) em função
das repetidas crises do setor privado, naquele
momento acusado de fraudes e inimigo de uma Considerações finais
saúde digna. O segundo feixe de circunstâncias
refere-se à atuação dos sanitaristas tanto por A presença ativa de empresários da saúde e de
dentro dos fóruns do movimento social quanto seus representantes em partidos e coalizões

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O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos 169

políticas que governam o País não é vista com da Concorrência (Cade) aprova a aquisição de
maus olhos. Pelo contrário, o atendimento de empresas por grupos que vendem serviços para
políticos de diversas origens e vinculações secretárias estaduais e municipais de saúde.
partidárias em hospitais particulares paulistas A atuação dos empresários da saúde, antes
e a presença em festas de proprietários bilio- predominantemente articulada em torno de
nários de negócios setoriais foram registrados agendas bastante particularizadas, foi substan-
em colunas sociais. Tal exibição de intimidade cialmente modificada. A criação da entidade
parece expressar ora admiração pelo empre- Instituto Coalizão Saúde (Icos), no contexto
ender bem-sucedido misturada com o assenti- das eleições para a presidência da república de
mento ou resignação com um sistema de saúde 2014, representou um marco na articulação de
clivado pelo atendimento a pobres e a ricos, ora grupos econômicos das indústrias (equipamen-
preconceitos e incompreensão sobre os siste- tos, medicamentos) com aqueles que atuam
mas universais. Partidos e lideranças políticas precipuamente na assistência médico-hospita-
terminam por corroborar o senso comum sobre lar. A explicitação da liderança de São Paulo (a
a capacidade de estratégias individualizadas entidade é coordenada pelo ex-superintenden-
responderem a problemas de saúde que são te do hospital Albert Einstein, atual presidente
coletivos. Consequentemente, no âmbito da da maior empresa de planos de saúde e por um
política, também prevalece o ideário sobre a professor da Universidade de São Paulo – USP
eficiência do privado em relação ao público, ex-secretário de saúde da cidade de São Paulo)
bem como a inversão das relações causais, afirma inequivocamente a localização no
segundo a qual os sistemas universais Sudeste para a ‘medicina de qualidade’ no País.
seriam determinados pela igualdade social As centrais sindicais de trabalhadores apoia-
e, portanto, não se constituem como vetor de ram e apoiam o SUS, mas suas bases demandam
redução de desigualdades. planos privados de saúde. Não é raro que um
No âmbito técnico-burocrático setorial, sindicalista pronuncie que os planos privados
também se observa que a compreensão do são benéficos ao SUS, por diminuírem a fila nas
SUS como atenção básica para pobres foi in- instituições públicas. Há aqueles que inclusive
corporada, inclusive nos textos legais, como individualizam o raciocínio ao dizer: “assim
portarias do Ministério da Saúde, que passam deixo meu lugar na fila para alguém pobre”.
a localizar ações focalizadas, como o Programa Embora os conflitos entre o empregador
Rede Cegonha, entre outras nos ‘municípios que paga, em parte ou totalmente, o plano
do Programa Brasil sem Miséria’. A universa- privado e as demissões por doença do titular
lização (igualdade) também deixou de para- ou de seus familiares existam, o assunto não
metrizar as políticas de regulação do acesso adquire visibilidade.
entre clientes de planos e as demais pessoas Os conselhos de saúde tampouco se dedicam
pela iniciativa da Agência Nacional de Saúde ao debate sobre a privatização realizada pelos
Suplementar (ANS) de incluir a obrigatoriedade grandes grupos econômicos. Os representan-
de cobertura de medicamentos antineoplásicos tes das entidades sindicais de profissionais de
orais. A partir de 2013, a relação dos medica- saúde que os integram tendem a valorizar
mentos para clientes de planos passou a ser as demandas trabalhistas decorrentes da
mais ampla do que a recomendada para o SUS. contratação precarizada de servidores. Os
Duas políticas públicas explicitamente diferen- processos aquisição-fusão, abertura e valo-
ciadas segundo capacidade direta ou indireta de rização de capitais, preços de monopólio e
pagamento e não critérios clínicos. Em outras presença dos representantes empresariais
instâncias da burocracia pública, vigora o com- nos núcleos decisórios governamentais são
pleto desrespeito à relevância pública das ações pouco ou nada debatidos pelas entidades de
de saúde. Por exemplo, o Conselho de Defesa participação social.

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170 Bahia L, Scheffer M

O enfrentamento da privatização requer a a ações privatizantes, como no caso da anistia


produção de conhecimentos aprofundados e às multas das empresas de planos de saúde, os
atualizados sobre o setor privado da saúde. Os lobbies privados lograram encontrar uma alter-
esforços para a compreensão dos processos nativa administrativa para aprovar seu pleito.
recentes de inserção do setor no padrão de Consequentemente, é necessário debater
dominância financeira e seus desdobramen- com técnicos dos ministérios da área econô-
tos econômicos, sociais, culturais e políticos mica, da justiça, bem como com o Ministério
são incipientes. É preciso priorizar a temática Público e Poder Judiciário, os problemas da
‘grandes grupos econômicos na saúde’ e de- saúde e do sistema de saúde para apresentar e
senvolver estudos específicos sobre as inter-re- testar alternativas de redução do uso do fundo
lações entre público e privado sobre os fluxos público para a privatização. São gritantes con-
de acumulação de capital e poder. A recusa tradições as deduções e isenções fiscais, os
peremptória de generalizações – do tipo: o pro- estabelecimentos filantrópicos-privados, o pa-
blema é o velho patrimonialismo – é essencial gamento de planos muito caros para servidores
para a definição de perguntas de pesquisa. públicos, o pagamento de taxas elevadas de ad-
As forças progressistas que atuam na saúde ministração para terceirizações e a corrupção.
não podem continuar ignorando ou consen- As portas giratórias precisam ser identificadas
tindo passivamente com a privatização da e, quando possível, controladas ou fechadas.
saúde. Encontrar um espaço de intervenção Não se trata de criminalizar e de denunciar
para a desprivatização requer reconhecer que conflitos de interesses mas de constatar que a
as articulações entre o público e o privado se influência do setor privado na saúde é muito
estendem desde a atuação de profissionais de extensa e intensa.
saúde em ambos os setores até no uso de fundos
públicos e privados nacionais e internacionais.
No entanto, os processos em curso que viabili- Colaboradores
zam a criação de novos mercados não têm sido
detectados. Políticas de privatização recentes Bahia L e Scheffer M contribuíram para o
foram implementadas praticamente sem opo- planejamento, análise, revisão crítica do
sição parlamentar e dos movimentos sociais. conteúdo e aprovação da versão final do ma-
Mesmo quando foi possível antepor barreiras nuscrito. s

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O SUS e o setor privado assistencial: interpretações e fatos 171

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Recebido em 02/08/2018
12. Pinto LF, Giovanella L. Do Programa à Estratégia Saúde Aprovado em 19/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
da Família: expansão do acesso e redução das interna-
Suporte financeiro: não houve

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172 ENSAIO | ESSAY

Política econômica e saúde pública:


equilíbrio fiscal e bem-estar da população
Economic policy and public health: fiscal balance and population
wellbeing

Rômulo Paes-Sousa1, Davide Rasella2, Julio Carepa-Sousa3

DOI: 10.1590/0103-11042018S313

RESUMO Muitos estudos examinaram os efeitos das crises econômicas e políticas de austeridade
em países de renda alta. Contudo, são muito recentes e esparsos os estudos sobre os efeitos sobre
países de renda média e baixa. Neste ensaio, revisitam-se os estudos recentes, procurando destacar o
que pode ter incidência mais imediata sobre a saúde pública, com especial interesse sobre os grupos
de maior vulnerabilidade. Optou-se por tratar de forma conjunta os efeitos da crise econômica e
da política de austeridade percorrida até o presente momento no Brasil por entender que os deficit
de investimento em políticas sociais e suas implicações sobre a cobertura e sobre qualidade dos
1 Fundação Oswaldo Cruz serviços ofertados estão associados aos dois fenômenos. As publicações recentes indicam a piora de
(Fiocruz), Instituto René indicadores básicos de saúde nacionais, sugerindo que a redução de investimentos em saúde já se
Rachou – Belo Horizonte
(MG), Brasil. faz sentir nas políticas de promoção, prevenção e atenção. O debate econômico atual apresenta er-
Orcid: https://orcid. roneamente as medidas de austeridade como único caminho para um regime de responsabilidade
org/0000-0002-3384-
6657 fiscal. O País precisa rever sua rota de desenvolvimento não apenas para enfrentar os efeitos da crise
romulo.paes@minas. econômica em curso, mas também para recuperar sua trajetória de inclusão social e econômica e de
fiocruz.br
melhora da saúde de sua população.
2 Universidade Federal da

Bahia (UFBA), Instituto


de Saúde Coletiva (ISC) PALAVRAS-CHAVE Modelos econômicos. Qualidade de vida. Estratégia Saúde da Família.
– Salvador (BA), Brasil. Proteção social.
Imperial College London,
Department of Primary
Care and Public Health, ABSTRACT Many studies have observed the effects of economic crises and austerity policies on
Public Health Policy
Evaluation Unit – Londres, high income countries. However, few and very recent ones start to cover the effects on low and
Inglaterra. Fundação medium income countries. In this perspective, we revise the recent studies focusing on the im-
Oswaldo Cruz (Fiocruz),
Centro de Pesquisas mediate effects on public health, specially on the most vulnerable population. We preferred to
Gonçalo Moniz – Salvador consider the joint effects of the economic crises and austerity for understanding that the funding
(BA), Brasil.
Orcid: https://orcid. deficits of social policies and their implications on coverage and quality of service provision are
org/0000-0002-7260- interlinked. Recent publications indicate the decline of basic public health indicators, suggesting
4386
davide.rasella@gmail.com that the reduction of investments can already be felt on policies for health promotion, preven-
3 Pesquisador
tion and care. The currently economic debate falsely presents austerity measures as the single
autônomo
- Belo Horizonte (MG), alternative for promoting fiscal responsibility. Brazil needs to change its development route not
Brasil. only to fight the effects of the economic crises but also to recover the way for improvement on
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-7195- socioeconomic inclusion and public health.
8094
jcarepa@gmail.com
KEYWORDS Economic models. Quality of life. Family Health Strategy. Social protection.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
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Política econômica e saúde pública: equilíbrio fiscal e bem-estar da população 173

Introdução Os impactos da crise


econômica sobre a saúde
Muitos estudos examinaram os efeitos das
crises econômicas e políticas de austeri-
dos países de renda alta
dade em países de renda alta, contudo, são
muito recentes e esparsos os estudos sobre Os efeitos da crise econômica e das políti-
os efeitos sobre países de renda média e cas de austeridade fiscal sobre a saúde dos
baixa. No caso brasileiro, estudos recém- países de renda alta foram extensamen-
-publicados alertam para a possível rápida te estudados pela comunidade científica.
degradação dos serviços públicos de saúde Schramm et al.5 reviram 885 estudos cobrin-
no País e seus efeitos deletérios sobre os do os efeitos sobre os riscos à saúde, sobre
indicadores de saúde da população1. Cabe o perfil epidemiológico e sobre os sistemas
especial atenção aos efeitos sobre a popu- e serviços de saúde no período de 2006 a
lação infantil, particularmente as crianças 2017. Os estudos cobrem principalmente os
que pertencem a famílias pobres e residem países da Organização para a Cooperação e
em municípios cuja maioria da população é Desenvolvimento Econômico (OCDE) e os
constituída de pobres2. demais países europeus que não pertencem
Conforme o que foi descrito em outros a esta Organização. Os países não abordados
artigos deste número especial, o Brasil apre- no âmbito do artigo de Schramm et al.5 apa-
sentou um quadro de recessão econômica nos recem em publicações esparsas.
anos de 2015 e 2016, produzindo recuperação Alguns achados desta revisão são funda-
tímida em 2017. Estima-se que o baixo cresci- mentais para a compreensão do contexto
mento deve se prolongar até 2020, ano este brasileiro. Reeves et al.6, ao analisarem os
em que, provavelmente, o País deverá retornar efeitos das políticas de austeridade sobre o
ao patamar de crescimento de 20143, sendo, gasto em saúde de 27 países europeus, ob-
todavia, incapaz de repor as perdas do período servaram que o orçamento da saúde não
recessivo. A Emenda Constitucional 95 foi pro- foi preservado nas crises econômicas. Os
duzida como resposta à crise em 2016, sendo autores também assinalaram que os cortes
implementada a partir de 2017, e tendo como não são consequências inexoráveis de: re-
eixo articulador a supressão o piso mínimo cessões, mudança anual do Produto Interno
de investimento social, conforme previsto na Bruto (PIB) per capita, perdas cumulativas
Constituição de 1988, e limitação do aumento no PIB. Curiosamente, eles não encontraram
de gastos públicos aos níveis de inflação4. Tais correlação entre a ideologia dos partidos go-
iniciativas tendem a comprometer o já deficitá- vernantes e os cortes em saúde, indicando
rio orçamento da saúde pública no Brasil. que partidos ou coalisões tanto de esquerda
Neste ensaio, revisitamos os estudos quanto de direita lançaram mão de medidas
recentes procurando destacar o que pode de austeridade no enfrentamento da crise.
ter incidência mais imediata sobre a saúde Também, partidos de orientação ideológica
pública, com especial interesse sobre os oposta optaram por medidas de desenvol-
grupos de maior vulnerabilidade. Optamos vimento no enfrentamento de seus desafios
por tratar os efeitos da crise econômica e da nacionais. Ainda no estudo de Reeves et al.6,
política de austeridade percorrida até o pre- foi encontrada correlação entre o aumento
sente momento no Brasil por entendermos da dívida pública e cortes no gasto em saúde,
que os deficit de investimento em políticas havendo cortes maiores entre os que fizeram
sociais e suas implicações sobre a cobertura acordo com o Fundo Monetário Internacional.
e qualidade dos serviços ofertados estão as- Ademais, os autores destacam que países
sociados aos dois fenômenos5. adeptos do sistema de seguro social foram

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174 Paes-Sousa R, Rasella D, Carepa-Sousa J

menos suscetíveis às políticas de austeridade, transferências sociais. No tocante aos fatores


mas foram mais suscetíveis à queda do PIB per sociais, os autores identificaram estudos que
capita no período de 1995 a 20116. dão conta ainda dos efeitos sobre a saúde do
Os efeitos da crise econômica sobre a desemprego, precarização do trabalho, perda
Grécia, pela sua contundência e conflu- do seguro saúde, medo da perda do emprego
ência com a crise política, apresentaram e suas consequências, perda da moradia ou
fortes impactos sobre a saúde pública. Em redução de qualidade da moradia, assim
uma revisão sobre os estudos publicados como redução do consumo de alimentos.
sobre esse país entre 2009 e 2013, Simou e Segundo os autores, alcoolismo e tabagismo
Koutsogeorgou7 observaram a redução do apresentaram resultados divergentes, indi-
gasto público em saúde, tanto na provisão de cando que o consumo poderia ser estimulado
serviços quanto em gestão, ocorrendo ainda pela dinâmica da crise e, ao mesmo tempo,
importantes efeitos sobre a força de trabalho ser refreado pela ausência de recursos para
da saúde. Para esse grupo de trabalhadores, sua aquisição.
foi observado: extinção de postos de traba- Schramm et al.5, ao analisarem os sistemas
lho com demissão dos titulares, redução da de saúde segundo uma tipologia de financia-
carga horária, além de perdas salariais e pre- mento da saúde, encontraram referências
videnciárias importantes. No tocante à infra- à redução expressiva do gasto em saúde.
estrutura, as autoras verificaram a redução O setor saúde foi afetado nos países que
na oferta de serviços de saúde, incluindo os dispõem de sistema nacional de saúde, como
serviços providos por hospitais universitá- Reino Unido e Suécia; de seguro social, como
rios. Há registros, inclusive, de fechamento Alemanha e Japão; e de seguro privado, como
de equipamentos de saúde. Em relação à pro- Estados Unidos e Austrália. Nos Estados
dução de fármacos, as autoras observaram o Unidos, observaram significativa redução
aumento do consumo no início do período do acesso aos serviços de saúde em função
observado – sobretudo de medicamentos do desemprego e consequente redução do
para o tratamento de doenças psíquicas –, seguro saúde. Também nos Estados Unidos,
seguido pelo declínio do consumo em função observaram a redução das doações aos ser-
da ausência de recursos financeiros para sua viços de medicina filantrópica. De maneira
aquisição pelo Estado e pelos indivíduos, geral, a literatura revista indicou o impacto
que levou ao fechamento de fábricas de me- da redução de financiamento na promoção,
dicamentos no país. Na Grécia, conforme as prevenção e atenção em saúde. Tanto os
autoras, também ocorreu a redução no finan- investimentos em pesquisa e desenvolvi-
ciamento de pesquisa biomédica7. mento como em gestão foram afetados em
Em relação ao perfil epidemiológico que decorrência de uma redução de gastos. Dessa
emergiu em consequência da crise e da forma, os estudos indicam a redução na rede
austeridade, Schramm et al.5 encontraram: prestadora de serviços em vários países, as-
transtornos mentais (suicídio, tentativas de sociados à redução dos recursos humanos e
suicídios e depressão), doenças infeccio- dos insumos. Os efeitos da escassez por seu
sas (HIV, Tuberculose, Malária e Febre do turno tiveram repercussão sobre a qualida-
Nilo), Doenças Crônicas Não Transmissíveis de dos serviços prestados, afetando a capa-
(Doenças cardiovasculares) e Doenças da in- cidade administrativa, gerencial e, ainda, a
fância (asma e acidentes domésticos). Trata- qualidade dos serviços prestados. No âmbito
se de um perfil compatível ao crescimento intradomiciliar, a combinação da redução da
da pobreza, aumento de exposição a riscos renda do trabalho com a redução das trans-
de infecção, e ao estresse vinculado à escas- ferências sociais afetou os hábitos e atitudes
sez de renda proveniente do trabalho ou das das populações mais pobres em sua relação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 172-182, NOVEMBRO 2018


Política econômica e saúde pública: equilíbrio fiscal e bem-estar da população 175

com riscos e cuidados de saúde. As altera- A desigualdade de renda aferida pelo Índice
ções quanto à dieta e ao aumento do estresse de Gini vem apresentando crescimentos
foram registradas em muitos países. Já o ta- sucessivos desde abril de 2014, saltando de
bagismo e o uso abusivo de álcool foram afe- 0,5636 nesse mês para 0,5915 em fevereiro
tados de forma diversa: ora reduzidos devido de 20189. Dessa forma, o Brasil de 2018 apre-
à perda do poder aquisitivo, ora aumentados senta uma distribuição de renda mais desi-
como resposta à expansão das tensões de- gual que o mesmo país há quatro anos.
correntes do agravamento da pobreza fa- Além dos impactos imediatamente identi-
miliar. A redução ou iminente redução do ficáveis, existem as consequências de longo
poder aquisitivo alterou a busca de serviços prazo igualmente significativas. Uma di-
de saúde, sendo o adiamento ou a supressão mensão relevante e complementar à análise
da busca desses serviços pela redução dos de renda é a mobilidade social, que sugere
gastos familiares ou como forma de evitar o o desafio enfrentado para que filhos de fa-
estigma de portador de saúde débil e, por- mílias de baixa renda possam ascender a
tanto, vulnerável a ser incluído no grupo dos patamares de renda menos desfavorecidos.
prioritários em caso de demissão5. Dados da OCDE sobre o desafio de transi-
tar da baixa para a média renda indicam, no
País, o segundo mais longo desafio de quebra
Crise e austeridade no desse ciclo intergeracional de pobreza, em-
Brasil patado com a África do Sul e atrás apenas
da Colômbia10. No Brasil, são esperadas, em
A crise econômica enfrentada pelo Brasil já média, nove gerações para que a condição
acumula alguns anos, e suas consequências de renda baixa seja superada, evidenciando
revelam um quadro crítico. Entre os indica- as dificuldades enfrentadas na tentativa de
dores que mais claramente ilustram tal situ- ascensão social. O dado indica que os impac-
ação, podemos citar os números de pobreza e tos no arrefecimento do combate à pobreza
extrema pobreza no País. A série histórica di- terão efeito em inúmeras gerações vindou-
vulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia ras; consequentemente, o agravamento no
e Estatística (IBGE), que começa em 1992 quadro de saúde da população de maior vul-
utilizando dados da Pesquisa Nacional por nerabilidade tende a perdurar ainda mais em
Amostra de Domicílios (PNAD), apresenta decorrência da dinâmica social brasileira.
expressiva redução a partir de 2003, quando Corroboram para essa leitura as evidên-
41,8 milhões e 12,9 milhões de pessoas se cias apresentadas por Vieira e Benevides4
encontravam em situações de pobreza e que, em uma revisão de estudos sobre a crise
extrema pobreza, respectivamente. O indi- nos países de alta renda e suas lições para o
cador de pobreza alcançou seu menor nível Brasil, concluíram que as crises econômi-
em 2014, quando 14,1 milhões estavam nessa cas podem agravar os problemas sociais e
situação, enquanto a pobreza extrema estava aumentar as desigualdades, levando à piora
no segundo menor nível da história com 5,2 da situação de saúde da população. Já as
milhões de pessoas. Como reflexo dos efeitos medidas de austeridade fiscal, que estabe-
da crise e das políticas de austeridade, ambos lecem a redução do gasto com programas
os indicadores foram significativamente im- de proteção social, tendem a agravar os
pactados. Enquanto mais de 20 milhões se efeitos da crise sobre a situação de saúde,
encontravam em situação de pobreza ao final em particular, e as condições sociais, de
de 2017, alarmantes 11,8 milhões de pessoas forma mais geral. Diante disso, os autores
estavam em situação de pobreza extrema, recomendam a preservação dos programas
valor não captado pelas PNAD desde 20048. de proteção social como medida importante

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 172-182, NOVEMBRO 2018


176 Paes-Sousa R, Rasella D, Carepa-Sousa J

para proteção da saúde da população e para mais de 1 milhão de famílias, além da redução
a retomada do crescimento econômico em do escopo de programas como Brasil Sem
prazo mais curto. Miséria e expressivos cortes orçamentários
Schramm et al.5 especulam que, em países em outras iniciativas de proteção social como o
de modelo híbrido de saúde como o Brasil, com Programa Cisternas e o Programa de Aquisição
forte presença dos setores público e privado, de Alimentos, que enfrentaram reduções de
a redução do acesso aos bens e serviços pode 90% e 99%, respectivamente10. Ainda que
ocorrer em vários trajetos simultâneos. O setor não seja possível traçar uma correlação direta
público pode ser pressionado pelo aumento da entre as medidas e algumas consequências ve-
demanda de populações que, até o período an- rificadas recentemente, acontecimentos, como
terior à crise, eram atendidas pelo setor privado, o recente surto de sarampo13, sugerem forte
porém tiveram parte desse acesso revogado em impacto negativo pelo enfraquecimento da
decorrência da redução da atividade econômica rede pública de saúde.
e aumento do desemprego justamente quando Com o intuito de avaliar em maior pro-
o próprio setor público enfrenta uma grande fundidade os impactos de longo prazo dessa
retração no seu financiamento e maior dificul- das medidas de austeridade, Rasella et al.2
dade para oferecer a cobertura necessária. buscaram avaliar o impacto da redução dos
As evidências dão conta de que a tentati- gastos públicos nas Metas de Desenvolvimento
va de equilíbrio das contas públicas no País Sustentável por meio dos indicadores de saúde.
resultou em medidas de austeridade com Tendo em vista o longo alcance da Emenda
severa redução da rede de proteção social. Os Constitucional 95, que visa limitar os gastos pú-
gastos totais com saúde em 2017 foram pra- blicos por um horizonte temporal de 20 anos,
ticamente os mesmos que os realizados em os autores buscaram avaliar o efeito esperado
2016, ainda que o Índice Nacional de Preços na mortalidade e hospitalização de crianças
ao Consumidor Amplo (IPCA) de 2016 tenha de até 5 anos entre 2017 e 2030 (data final
registrado alta nos preços de 6,29%. O orça- para apuração das metas de Desenvolvimento
mento total para a saúde previa gastos de R$ Sustentável estabelecidas pela Organização das
114,7 bilhões, e o piso constitucional indicava Nações Unidas – ONU).
que deveriam ser aplicados ao menos R$ 109 Os programas com grande probabilidade
bilhões11. Contudo, a aplicação efetiva dos de sofrer contração pelas medidas de aus-
recursos ficou aquém de ambas as referên- teridade econômica são o BF e a Estratégia
cias, totalizando R$ 107,2 bilhões e registran- Saúde da Família (ESF). Estudos sugerem
do, pela primeira vez, gastos abaixo do piso que ambos os programas tiveram impac-
constitucional10. Morosini et al.12 apontam tos positivos na redução da mortalidade de
que alterações realizadas em 30 de agosto crianças e desigualdades na saúde, contri-
2017 na Política Nacional de Atenção Básica buindo para o alcance de uma das metas do
tendem a enfraquecer esse nível de atenção Objetivo 3 de Desenvolvimento do Milênio
quanto a: cobertura universal, acesso, equipe (redução de dois terços da mortalidade de
profissional, organização do processo de crianças de até 5 anos de idade).
trabalho e coordenação nacional da política. A metodologia adotada no estudo im-
Para as autoras, a flexibilização pretendida plicou um levantamento da população nos
no modelo em um contexto de escassez de municípios brasileiros; e, a partir de análises
recursos levará ao rebaixamento do volume de impacto previamente conduzidas nas po-
e da qualidade dos serviços prestados. pulações de 2000 e 2010, foram estimadas
Inúmeros outros programas sociais probabilidades associadas ao impacto de
também enfrentaram cortes expressivos. Em programas de redução da pobreza. A ex-
2017, foram excluídas do Bolsa Família (BF) trapolação dessas probabilidades foi usada

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 172-182, NOVEMBRO 2018


Política econômica e saúde pública: equilíbrio fiscal e bem-estar da população 177

para, a partir de 2010, mensurar o impacto intermediário, para o qual os resultados de


dos programas BF e Saúde da Família, com Austeridade, Saúde e Proteção Social são
seus respectivos orçamentos ajustados pelas apresentados em seguida2.
medidas de austeridade, na população es- Como resposta à crise econômica, dois
timada de idade inferior a 5 anos até 2030, cenários de políticas foram simulados.
obedecendo a dinâmica populacional proje- Austeridade fiscal: iniciado a partir de 2017.
tada para o Brasil nesse período2. Estimativas foram baseadas em simulações
Foram simulados três cenários de crise de impacto de medidas de austeridade já
econômica utilizando taxas de pobreza e implementadas (principalmente em decor-
renda per capita média a partir da PNAD rência da EC 95) nos orçamentos de prote-
para os anos de 2011 a 2015 e estimativas do ção social e atenção à saúde até 20304,14,15.
Banco Mundial: no cenário 1, uma crise mais Reduções nas coberturas do BF e da ESF
amena, com aumento na taxa de pobreza de proporcionais à redução do orçamento.
0,55% durante 3 anos (2015 a 2017); o cenário Proteção Social: manutenção da cobertura
2 estima uma crise média com aumento de de assistência social e atendimento de saúde
0,8% na taxa de pobreza por 5 anos (2015 a em resposta à crise no período entre 2017 e
2019); o cenário 3 estima aumento da taxa 2030. Essa resposta foi projetada como incre-
de pobreza de 0,8% por um prazo total de mento da cobertura de BF e ESF proporcio-
7 anos (2015 a 2021). O cenário 2 é aquele nal ao aumento da taxa de pobreza durante o
considerado mais provável pelos autores, período de crise, seguida de redução no BF
portanto, para fins deste ensaio, a análise proporcional à redução à pobreza e retorno
será concentrada no caso de crise econômica do ESF a níveis pré-crise2.

Gráfico 1. As taxas médicas de mortalidade infantil de menores de cinco anos (por mil nascidos vivos) sob uma crise
econômica intermediária e cenários de resposta de políticas para 2010-2030

Crise econômica intermediária


22

21 Crise econômica
Intermediária EC 95
20
Crise econômica
19 Intermediária
Manutenção BF
18

17

16

15

14

2010 2015 2020 2025 2030

Fonte: Rasella D, Basu S, Hone T, et al.2.


BF – Bolsa Família; ESF – Estratégia Saúde da Família.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 172-182, NOVEMBRO 2018


178 Paes-Sousa R, Rasella D, Carepa-Sousa J

Os resultados sugerem que os níveis de austeridade são consistentes com a avalia-


mortalidade de crianças de até 5 anos no ção retrospectiva que atribuiu ao conjunto
Brasil tendem a ser substancialmente dife- de programas BF e ESF um efeito mais im-
rentes para cada cenário de gastos públicos, portante na redução da mortalidade dessas
contrastando o cenário de redução da co- causas que na mortalidade em geral16, além
bertura de programas de combate à pobreza de estudos que indicam que essas doenças
e cuidados primários e a manutenção dos são fortemente associadas à pobreza17. Os
níveis de proteção social para atendimen- impactos estimados de redução da cober-
to das populações de maior vulnerabilida- tura de BF e ESF como medidas de austeri-
de. As estimativas indicam que, no cenário dade podem ocorrer por meio de inúmeros
de manutenção da proteção social, a Taxa mecanismos. Evidências sugerem que o BF
de Mortalidade de Crianças de até 5 anos melhora quantidade e qualidade da alimen-
(TMCA5) seria 8,6% mais baixa que a en- tação de famílias pobres8, acarretando
contrada no cenário de austeridade, com melhor estado nutricional de crianças nas
um impacto de aproximadamente 20 mil regiões mais pobres do Brasil9: e provavel-
mortes evitadas de crianças até 5 anos entre mente explicam reduções na TMCA516,18. O
2017 e 2030. A TMCA5 de doenças diarrei- programa BF também melhora condições de
cas e subnutrição seria 39,3% e 35,8% mais saúde da criança diretamente mediante pro-
baixas, respectivamente, e haveria 123 mil moção de cuidados pré-natal para gestantes,
hospitalizações de crianças até 5 anos com a cobertura de vacinação e acompanhamentos
manutenção da proteção social. Segundo as de rotina como condicionantes para o rece-
estimativas do estudo, a redução nas cobertu- bimento do benefício.
ras de BF e ESF teriam impactos despropor- Acerca da ESF, os dados sugerem que a
cionalmente mais elevados em municípios expansão do programa reduz a mortalidade,
mais pobres, contribuindo ainda mais para promovendo acesso a cuidados pré-natal
as desigualdades na saúde e comprometen- e ampliando a cobertura de vacinação18,19.
do os esforços para alcance do terceiro e Ademais, o programa amplia a disponibili-
do décimo Objetivos de Desenvolvimento dade de atividades médicas básicas e visitas
Sustentável (ODS). domiciliares na área de cobertura19, bem
De acordo com os autores, as estimativas como reduz desigualdades, com impacto
de mortalidade mais elevada em decorrên- ainda maior em municípios com Índice de
cia de diarreia e subnutrição no cenário de Desenvolvimento Humano mais baixos18.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 172-182, NOVEMBRO 2018


Política econômica e saúde pública: equilíbrio fiscal e bem-estar da população 179

Figura 1. As taxas médicas de mortalidade infantil de menores de cinco anos (por mil nascidos vivos) para causas selecionadas do período 2010-2030
no cenário de crise econômica intermediária e duas respostas políticas (austeridade e manutenção da proteção social)

Taxa de mortalidade de menores de cinco anos Taxa de mortalidade de menores de cinco anos
por desnutrição por doenças diarreicas

0.35
Taxa de mortalidade 0.7
de menores de cinco
anos por desnutrição Taxa de mortalidade
0.30 EC 95 0.6 de menores de cinco anos
por doenças diarreicas
Taxa de mortalidade EC 95
0.25 de menores de cinco 0.5
anos por desnutrição Taxa de mortalidade
Manutenção BF de menores de cinco anos
0.4 por doenças diarreicas
0.20 Manutenção BF

0.3
0.15
0.2

0.10

2010 2015 2020 2025 2030 2010 2015 2020 2025 2030

Fonte: Rasella D, Basu S, Hone T, et al.2.


BF – Bolsa Família; ESF – Estratégia Saúde da Família.

Foi implementado, no Brasil, um con- Conclusão: a reemergência


junto de políticas sociais ousadas com o das ‘mortes severinas’
intuito de reduzir a pobreza e alcançar
cobertura de saúde universal ao longo dos Em um dos poemas mais conhecidos da lite-
últimos 20 anos20,21, sendo dois terços da ratura brasileira, João Cabral de Melo Neto
população hoje coberta pelo ESF, e um indica uma tipologia própria do morrer no
quarto, pelo BF16,17,22,23. Essas políticas agreste pernambucano. A morte severina
contribuíram para melhorias importantes
nos indicadores e reduziram desigualda- que é a morte que se morre de velhice antes
des na saúde21. Os resultados encontrados dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de
por Rasella et al.2 sugerem que a crise fome um pouco por dia, (de fraqueza e de do-
econômica atual, aliada a um pacote de ença [...] em qualquer idade, e até gente não
medidas de austeridade, pode compro- nascida)24(204).
meter ainda mais os ganhos em redução
de pobreza e melhoria dos indicadores Em um tratamento menos literário, have-
de saúde, especialmente entre os mais ríamos de incluir entre as ‘mortes severinas’
pobres. O constante monitoramento dos as infecções associadas à desnutrição. Afinal,
impactos em pobreza e saúde das políticas para os menores de 5 anos, por exemplo,
de austeridade no Brasil e em qual medida infeções e desnutrição estão fortemente
essas restrições comprometem o alcance associadas. Para esse grupo etário, 50% de
de ODS terão grande valor para agentes todos os óbitos são devidos a cinco doenças
públicos mundo afora. infeciosas que estão usualmente associadas à

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 172-182, NOVEMBRO 2018


180 Paes-Sousa R, Rasella D, Carepa-Sousa J

desnutrição25. Esta produz imunodeficiência, primeiros efeitos de um significativo agra-


enquanto a infeção está associada à má nu- vamento do quadro de saúde no País, em
trição e às alterações nutricionais25. Embora especial para a população de baixa renda.
o País não tenha tido sucesso na redução da O debate econômico atual apresenta erro-
mortalidade por causas violentas, os avanços neamente as medidas de austeridade fiscal
nas políticas públicas de saúde e de assistên- como único caminho para um regime de
cia social contribuíram decisivamente para a responsabilidade fiscal. É interessante que
prevalência residual dos óbitos por desnutri- o Brasil observe o que Portugal e a Espanha
ção e doenças diarreicas em crianças. estão fazendo, após um ciclo desgastante
Desde o final do primeiro semestre de de austeridade e piora do bem-estar social.
2018, os jornais informam a piora de in- Portugal, que refez sua rota de desenvolvi-
dicadores básicos de saúde. Há relatos de mento há mais tempo, apresenta a melhora
situações como o crescimento dos óbitos tanto dos seus indicadores econômicos como
infantis26, o surto de 822 casos de sarampo dos sociais. A Espanha passa a viver um novo
registrados até 25 de julho de 201827, a pre- momento de otimismo após anos de deses-
ocupação do Ministério da Saúde com o alto perança. O Brasil precisa rever sua rota de
risco de retorno da pólio em pelo menos 312 desenvolvimento não apenas para enfrentar
cidades brasileiras27, a redução da cobertura os efeitos da crise econômica em curso, mas
vacinal de sarampo que apresentou redução também para recuperar sua trajetória de in-
de 95,4% para 83,9% no período de 2016 a clusão social e econômica e de melhora da
201828. A piora desses indicadores sugere saúde de sua população.
que a redução de investimentos em saúde
se faz sentir na atenção básica, afetando a
oferta de serviços de promoção, prevenção Colaboradores
e atenção. É particularmente preocupante
porque o Brasil tem grande domínio da tec- Paes-Sousa R contribuiu para elaboração do
nologia de vacinas, na qual é uma das grandes ensaio com as seguintes atividades: desenho,
referencias no mundo. Vacinar é muito mais redação geral e edição final. Rasella D con-
simples do que controlar vetores, como, por tribuiu para a revisão crítica do manuscrito.
exemplo, combater os mosquitos transmisso- Carepa-Sousa J contribuiu para elaboração
res de dengue, Chikungunya, Zika e malária. de versões preliminares do artigo e revisão
Esses episódios recentes indicam os de importante conteúdo intelectual. s

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 172-182, NOVEMBRO 2018


Política econômica e saúde pública: equilíbrio fiscal e bem-estar da população 181

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Fome; 2018.

Recebido em 05/08/2018
24. Melo Neto, JC. Poesias completas: 1940-1965. 2. ed. Aprovado em 09/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
Rio de Janeiro: J. Olympio. 1975.
Suporte financeiro: não houve

25. Katona P, Katona-Apte J. The interaction betwe-


en nutrition and infection. Clin Infect Dis. 2008;
46(10):1582-1588.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 172-182, NOVEMBRO 2018


ENSAIO | ESSAY 183

A disputa entre modelos para o campo:


apontamentos sobre a questão agrária no
Brasil em busca de um novo paradigma
The dispute between models for the countryside: notes on the agrarian
issue in Brazil in search of a new paradigm

Gustavo Souto Noronha1, Maria Lúcia de Oliveira Falcón2

DOI: 10.1590/0103-11042018S314

RESUMO O texto procura apresentar a discussão da questão agrária brasileira na perspectiva


do conflito entre dois modelos para o campo: um voltado para o agronegócio e outro voltado
para a agricultura familiar, reforma agrária e comunidades tradicionais. O presente artigo pre-
tende visitar essa disputa, atualizá-la no contexto do golpe de Estado de 2016 e apresentar
possíveis alternativas para o campo no Brasil em busca de novos paradigmas.

PALAVRAS-CHAVE Agricultura. Desenvolvimento regional. Planejamento social. Agroindústria.


Agricultura sustentável.

ABSTRACT The text seeks to present the discussion of the Brazilian agrarian issue from the per-
spective of the conflict between two models for the countryside, one focused on the agribusiness,
and one another focusing on family farming, agrarian reform, and traditional communities. The
present article intends to visit such dispute, to update it in the context of the coup d’etat of 2016,
and to present possible alternatives to the countryside in Brazil in search of new paradigms.

KEYWORDS Agriculture. Regional development. Social planning. Agribusiness. Sustainable


1 Instituto
agriculture.
Nacional de
Colonização e Reforma
Agrária (Incra) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0001-7860-
6641
noronha.gustavo@gmail.com

2 Universidade Federal do

Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio


de Janeiro (RJ), Brasil.
Universidade Federal do
Sergipe (UFS) – Aracaju
(SE), Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-0900-
8458
lucia.falcon@yahoo.com.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 183-198, NOVEMBRO 2018
184 Noronha GS, Falcón MLO

Apresentação o tamanho da propriedade rural e a reforma


agrária. Na sequência, entramos no debate do
A questão agrária talvez seja um dos debates de golpe de 2016 e a destruição das políticas agrá-
importância civilizatória mais emblemáticos rias. Por fim, procuramos na conclusão sugerir
e acalorados do Brasil; uma discussão natural experiências a serem estudadas para a constru-
para o quinto país em extensão territorial do ção de um novo paradigma.
mundo com enorme área agriculturável. O
cerne da controvérsia é uma disputa territorial
entre dois modelos: o primeiro ligado ao agro- A reforma agrária perene
negócio patronal, que, apesar de atender parte
do mercado interno, está inserido no mercado A discussão sobre a reforma agrária no Brasil
internacional de commodities; o segundo, com começou no século XIX, com José Bonifácio
foco na agricultura familiar, reforma agrária e de Andrada e Silva, e nunca saiu do debate
comunidades tradicionais, apresenta um maior nacional, tendo sido abordada por Joaquim
vínculo com a produção de alimentos para o Nabuco, Ignácio Rangel, Caio Prado Júnior,
mercado interno e a subsistência. entre outros autores clássicos do pensamento
O presente ensaio pretende visitar essa brasileiro que sempre apontaram a necessida-
disputa, atualizá-la no contexto do golpe de de da democratização da propriedade da terra
2016 e apresentar possíveis alternativas para o como uma etapa necessária ao desenvolvimen-
campo no Brasil. A primeira seção apresenta o to brasileiro. O presidente João Goulart, pouco
caráter perene da discussão da reforma agrária antes de ser derrubado, fez um discurso avassa-
no País. A segunda parte apresenta a disputa lador em defesa de reforma agrária. A ditadura
territorial entre os modelos agrícolas. Depois, trouxe o Estatuto da Terra1, a redemocratiza-
procuramos apresentar a conformação social e ção dos planos nacionais de reforma agrária.
econômica da agricultura brasileira e seus con- Entretanto, historicamente pouco se alterou o
flitos agrários nos anos de 2010 a 2020. A seguir, índice de Gini da Terra no Brasil.
discutimos alguns aspectos econômicos sobre

Gráfico 1. Concentração de terras no Brasil

0,88

0,86

0,84
Gini da Terra

0,82

0,8

0,78

0,76
1920 1940 1950 1960 1967 1972 1978 1985 1992 1995 1998 2000 2006
Ano
Fonte: Elaboração própria baseado em dados do IBGE2; Incra3.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 183-198, NOVEMBRO 2018


A disputa entre modelos para o campo: apontamentos sobre a questão agrária no Brasil em busca de um novo paradigma 185

O Brasil é o país da reforma agrária a reforma agrária tendo sido uma etapa ne-
perene. Ao contrário de outros países onde cessária no desenvolvimento de nações hoje
se realizou uma reformulação completa da consideradas desenvolvidas, o Brasil teria
estrutura fundiária, nosso país segue cha- perdido esse bonde da história.
mando de reforma agrária uma política que De pouco adianta a essas pessoas argu-
precariamente fiscaliza a função social da mentos sobre a eficiência maior da agricul-
propriedade da terra. tura familiar, sobre a produção de alimentos
Discutir a função social da propriedade é que é garantida por esse modo de produção,
primordial para relativizar o direito absoluto de qualquer efeito multiplicador dessa po-
sobre a propriedade. Entretanto, Caio Prado lítica sobre a economia, enfim, qualquer
Júnior4 já nos alertava que as manchas defesa mais enfática da necessidade de uma
de solo de pior qualidade são aquelas que reforma agrária.
acabam ficando na mão dos pequenos e Um dos pontos levantados por essas
médios proprietários e que a desapropriação pessoas é que não há público para essa
apenas das grandes propriedades improduti- reforma agrária e que haveria necessidade,
vas perpetuaria este cenário. no máximo, de atuar pontualmente nos con-
A fiscalização do cumprimento da função flitos existentes e assentar as cerca de 120
social sob os aspectos da produtividade, am- mil famílias acampadas no País. Isso é uma
biental e trabalhista é um dever constitucio- falácia. Os dados do Censo Agropecuário do
nal do estado, mas não pode ser entendida Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
como reforma agrária. Reforma agrária tem (IBGE) de 2017 mostram uma demanda
começo, meio e fim. muito maior, como pode ser observado na
Há, contudo, os que entendem que mesmo tabela 1 abaixo:

Tabela 1. Demanda potencial da reforma agrária – (Produtores sem área e minifúndios)


Tipo de estabelecimento Total de Estabelecimentos
Produtores sem área 76.671
Maior que 0 e menor que 0,1 75.121
De 0,1 a menos de 0,2 54.800
De 0,2 a menos de 0,5 174.551
De 0,5 a menos de 1 303.467
De 1 a menos de 2 467.982
Demanda potencial 1.152.592

Fonte: IBGE5.

O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 minifúndio, a legislação brasileira também


de novembro de 1964) estabelece como obje- prevê a fração mínima de parcelamento a
tivo da reforma agrária eliminar o latifúndio área mínima que um imóvel pode ter. Tanto
e o minifúndio. No Brasil, uma área infe- o módulo fiscal quanto a fração mínima de
rior a um módulo fiscal é considerada um parcelamento são definidos por município,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 183-198, NOVEMBRO 2018


186 Noronha GS, Falcón MLO

os menores valores para essas medidas no produtos mais elementares da dieta do bra-
País são, respectivamente, cinco e dois hec- sileiro, arroz e feijão, com as áreas plantadas
tares. A tabela 1 acima mostra que a demanda e quantidade produzida da soja (voltada ao
existente por reforma agrária, consideran- mercado externo) e cana-de-açúcar (voltada
do apenas as áreas abaixo da menor fração tanto para a produção do açúcar, boa parte
mínima de parcelamento e os produtores exportada, como para a produção do etanol,
sem área, apresenta um público potencial a o álcool combustível).
ser atendido pela democratização do acesso Em números, tínhamos, em 2002, uma
à terra no Brasil seria de mais de 1,15 milhão área plantada de 3.171.955 hectares de arroz,
de famílias. Se incluirmos todos os minifún- 4.321.809 hectares de feijão, 5.206.656 hec-
dios na conta, áreas abaixo de cinco hectares, tares de cana-de-açúcar e 16.376.035 hecta-
teríamos mais 817.425 microproprietários, ou res de soja. Em 2016, os hectares plantados
seja, a demanda por reforma agrária poderia eram 2.004.643 de arroz, 2.946.801 de feijão,
ser considerada algo como um pouco menos 10.245.102 de cana-de-açúcar e 33.309.865
de 2 milhões de família. hectares de soja. Uma diminuição da área
plantada dos produtos da dieta básica do bra-
sileiro em um período que a população saltou
A disputa territorial entre de mais de 176 milhões para cerca de 202
os modelos agrícolas milhões de pessoas. Isto evidencia um modelo
de desenvolvimento adotado pelo País.
Mencionamos antes que vivemos uma crise O argumento subsequente seria de que
alimentar e que ela também é resultante do a diminuição da área plantada seria com-
atual padrão de consumo. O melhor exemplo pensada por um aumento da produtividade.
disso é que, com o esgotamento das reservas Independentemente de qualquer melhoria
de combustíveis fósseis, tem-se colocado na produtividade, o gráfico 1 deixa claro que a
como alternativa a produção de agrocom- quantidade produzida dos alimentos básicos
bustíveis. Na prática, os agrocombustíveis da dieta do brasileiro tem diminuído (no caso
competem pelas terras férteis com a produ- do feijão) ou se mantido estável (no caso do
ção de alimentos. A discussão do modelo de arroz) mesmo diante do crescimento popu-
exploração ideal das terras é vital para a dis- lacional, ao contrário da cana-de-açúcar e da
cussão de como alimentaremos os 7 bilhões soja. Em números, saímos de 10.445.986 tone-
de habitantes do planeta. Ainda assim, nossa ladas de arroz, 3.064.228 de feijão, 364.389.416
sociedade prefere a lógica do automóvel in- de cana-de-açúcar e 42.107.618 de soja em
dividual à do transporte coletivo eficiente. 2002 para 10.622.189 toneladas de arroz,
Temos de um lado o agronegócio das 2.615.832 de feijão, 768.678.382 de cana-de-
monoculturas, do deserto verde, do uso in- -açúcar e 96.296.714 de soja em 2016.
tensivo dos agrotóxicos e da manipulação É importante destacar que, de acordo com
genética de impactos, no mínimo, incertos. o Censo Agropecuário do IBGE de 2006,
O que temos no Brasil é que as áreas volta- cerca de 4,3 milhões de estabelecimentos da
das para alimentos de consumo interno da agricultura familiar ocupam somente 24,3%
população brasileira estão a perder espaço da área agricultável e produzem 70% dos
para culturas de exportação ou que produ- alimentos consumidos no País e emprega
zem insumos não alimentícios para outras 74,4% dos trabalhadores rurais, além de
indústrias. O gráfico 2 abaixo, elaborado a ser responsável por mais de 38% da receita
partir da Pesquisa Mensal Agrícola do IBGE bruta da agropecuária brasileira2. A relação
com dados entre 2002 e 2016, compara a entre a proporção da produção de alimen-
série histórica de áreas plantadas dos dois tos oriundos da agricultura familiar e a de

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A disputa entre modelos para o campo: apontamentos sobre a questão agrária no Brasil em busca de um novo paradigma 187

sua participação na receita da agropecuária produção de alimentos do País em um para-


ajuda a inferir que os preços dos alimentos digma agroecológico.
podem baixar diante de uma mudança no Por fim, é importante retomar a questão
paradigma produtivo do meio rural. Ademais, colocada por Caio Prado Junior4 e anterior-
o desperdício de alimento na cadeia produ- mente citada de que as piores terras ficam
tiva do agronegócio é 10 vezes maior que na na mão dos pequenos e médios proprietários
cadeia produtiva do modo produção campe- e que a desapropriação apenas das grandes
sino. Desse modo, não está errado afirmar propriedades improdutivas perpetua este
que a produção orgânica e sustentável vem cenário. Ou seja, mais uma vez retomamos a
da agricultura familiar. É mais fácil garantir necessidade, por um outro viés, de discutir
uma produção livre de veneno com o agri- uma limitação ao tamanho máximo da pro-
cultor familiar que no agronegócio. Ou seja, priedade rural.
é preciso discutir uma reorganização da

Gráfico 2. Área plantada ou destinada à colheita (arroz, feijão, cana-de-açúcar e soja), em hectares

Arroz (em casca) Cana-de-açúcar Feijão (em grão) Soja (em grão)
33.309.865

30.000.000

25.000.000

20.000.000

15.000.000

10.000.000

5.000.000

0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

Fonte: IBGE6.

Conformação social e materializa também e primeiramente na


econômica da agricultura disputa pela terra. O primeiro modelo está
definido pelo agronegócio patronal, que
brasileira e seus conflitos atende parte do mercado interno por meio de
agrários nos anos 2010 a cadeias agroindustriais, mas principalmen-
2020 te está inserido no mercado internacional de
commodities, sustentando a acumulação de
O cerne da controvérsia é a disputa políti- cadeias agroindustriais estrangeiras. O segundo
ca e econômica entre dois modelos, que se modelo tem por moldura a agricultura familiar,

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188 Noronha GS, Falcón MLO

assentamentos da reforma agrária e comuni- formula essa tipologia são elementos inovado-
dades tradicionais e está fortemente vincula- res. O IBGE coteja os tradicionais indicadores
do à produção de alimentos para o mercado agrários e agrícolas – número e tamanho dos
interno, além da subsistência familiar. estabelecimentos, a propriedade da terra, valor
e volume da produção etc. – com indicadores
Mesmo assim, o potencial do Brasil rural é tão sociais obtidos por meio do acesso a bens civi-
grande que ao mesmo tempo em que se torna- lizatórios (ou direitos sociais) como educação,
va uma das maiores economias industriais do acesso à justiça e acesso a políticas públicas,
mundo, o país estruturava uma importante base tecnologia e informação. Mais além, coloca no
agropecuária e terminaria o século XX como um mapa os fluxos desses sistemas produtivos e
dos principais produtores agrícolas mundiais, identifica a Rede de Cidades que assiste e ma-
exportando alimentos para muitos outros paí- terializa os mercados nas diversas escalas logís-
ses. Ao lado de uma agropecuária de base patro- ticas, do regional até a exportação. Finalmente,
nal – que se expandiu e modernizou, avançando afirma que não é mais possível, em nenhum
na direção do centro-oeste –, se desenvolveu dos dois modelos e suas variantes territoriais,
uma agropecuária organizada em bases familia- separar a economia do rural e a do urbano. As
res, que predomina em três porções distintas do rendas e receitas que estão mantendo o sistema
amplo território nacional: a região sul, o nordeste produtivo ‘rodando’, seja no agronegócio, seja
(com destaque para a região semiárida) e a re- na agricultura familiar, há muito já são geradas
gião amazônica. A primeira estrutura se destaca em atividades integradas e simultâneas aos in-
pelos seus níveis de produtividade elevados e divíduos e empresas.
tem o mercado mundial como destino de seus
excedentes. A segunda, mais diversificada e vol- Com efeito, o debate atual em torno das rela-
tada para o mercado interno, se diferencia pela ções entre o rural e o urbano e da introdução
sua capacidade de gerar ocupação para milhões da abordagem das dinâmicas territoriais im-
de produtores e suas famílias. Ambas reafirmam plica na compreensão de novas ramificações
as potencialidades do Brasil rural7(33). temáticas que giram em torno das articula-
ções territoriais e interdependências do rural
No entanto, como a realidade sempre com o urbano, na medida em que empirica-
é mais complexa que os modelos teóri- mente o campo apresenta cada vez mais in-
cos, além dos espaços de conflito, existem junções com a cidade e suas funções, alteran-
espaços de integração e convivência entre os do a estrutura e a dinâmica de suas relações.
dois modelos, com resultados benignos e ma- A análise do espaço rural brasileiro acompa-
lignos em diferentes gradações. Dois estudos nhada pelas informações geográficas elabo-
seminais detectaram essa complexidade radas pelo IBGE contempla, portanto, não só
e apontaram os mercados de disputa e os o setor agropecuário estrito senso, como a
mercados de integração em que os modelos geografia da rede urbana local e da regional,
operam. Trata-se do Atlas do Espaço Rural, pois é nesse espaço que muitos produtores
elaborado pela Diretoria de Geociências do rurais encontrarão fontes de renda e emprego
IBGE, publicado em 2011 com dados de anos complementares, vitais para a preservação da
variados; e da Tipologia Regionalizada dos própria atividade agrícola8(11).
Espaços Rurais Brasileiros, publicado pelo
Instituto Interamericano de Cooperação A integração econômica rural-urbano leva
para a Agricultura (IICA) em 2017. os serviços financeiros, tecnologia, comuni-
No Atlas encontramos um conjunto de 33 cações, transporte, entre muitos outros, para
tipos de territórios rurais de povoamento em o cotidiano rural e traz o padrão de consume
todo o Brasil, mas o que sobressai da análise que das atividades rurais para o mundo urbano.

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A disputa entre modelos para o campo: apontamentos sobre a questão agrária no Brasil em busca de um novo paradigma 189

Forma e conforma, assim, uma nova cultura Com efeito, a expansão da fronteira agrícola do
da ruralidade, em que tanto a exclusão social território brasileiro nas últimas décadas tem signi-
rural – os sem terra – quanto a exclusão ficado um adensamento técnico-informacional e
urbana – os sem teto – são o outro lado da normativo com a participação decisiva de grandes
moeda do avanço do capitalismo no conjunto empresas ligadas ao agronegócio. A distribuição
da economia e da sociedade, quando não en- de tais densidades de fluxos, no entanto, é seleti-
contra barreiras políticas para a concentra- va, uma vez que apenas algumas áreas e pontos
ção da riqueza e da propriedade. do Território Nacional se inserem de forma mais
Três cartogramas explicam bem esse fenô- completa nas redes, cadeias e complexos agroin-
meno socioeconômico, sendo o Cartograma dustriais delineados a partir da ‘organização em
1 ilustrativo de como as mercadorias percor- rede’ da agropecuária nacional, emergente nos
rem o espaço definindo regiões e construindo anos de 1990 do século passado.
cadeias produtivas agroindustriais, seja para o Assim sendo, a agropecuária brasileira passa a ser
mercado interno, seja para exportação ( figura cada vez mais, e, sistematicamente, pautada por
1). O Cartograma 2 mostra como os municípios lógicas antes comuns apenas aos outros setores
brasileiros geram renda por meio da integração da economia e o imperativo da competitividade
dos setores primário (agricultura), secundário apodera-se da produção e da logística de distri-
(indústria) e terciário (serviços) ( figura 2). O buição em todas as suas etapas, ressaltando aí
Cartograma 3 mostra a ocorrência de ativida- os mecanismos financeiros, econômicos e, prin-
des simultâneas à agricultura que geram renda cipalmente, os inúmeros avanços tecnológicos
para o produtor fora do estabelecimento rural, que permitiram aos agentes hegemônicos articu-
sendo já essa uma característica do rural em larem-se e estruturarem-se para atender tanto ao
quase todo o País ( figura 3). mercado interno quanto ao mercado externo8(11).

Figura 1. Dimensões do espaço regional sob a ótica dos fluxos produtivos agroindustriais

Fonte: IBGE8(293).

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190 Noronha GS, Falcón MLO

Figura 2. Origem da renda municipal segundo setor econômico

Fonte: IBGE8(250).

Figura 3. Atividades remuneradas fora do estabelecimento rural

Fonte: IBGE8(251).

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A disputa entre modelos para o campo: apontamentos sobre a questão agrária no Brasil em busca de um novo paradigma 191

Finalmente, do estudo do IICA, no qual As personagens são permanentes visíveis


também é formulada uma tipologia de ter- ou permanentes invisíveis. Aqui o critério de
ritórios rurais com 26 tipos, chega-se à visibilidade se baseia em registros formais
conclusão que parte significativa (37%) da de trocas sociais, políticas e econômicas.
população brasileira vive essencialmente Geralmente as relações entre as permanen-
uma experiência de ruralidade. O que é exa- tes visíveis são predominantemente formais,
tamente essa condição? enquanto as relações entre as visíveis e in-
visíveis são predominantemente informais.
A contribuição principal que advém do debate São permanentes visíveis em uma formação
conceitual é a que nega o rural como sinôni- produtiva territorial o gerente do banco, o
mo apenas de espaço da produção agropecu- agrônomo/veterinário/zootecnista/técnico
ária. Contestando esta visão economicista, o agrícola/etc., o pequeno produtor e sua
estudo assumiu uma leitura de corte socio- família (com terra), o trabalhador rural, o
cultural do rural, a exemplo do que se faz em trabalhador rural sem-terra, o empresário-
muitos países e do que prevalece em vários -proprietário da terra, o médio produtor
estudos recentes. Seguindo esta orientação, a rural, o juiz/oficial de cartório/ defensoria e
tipologia parte da visão de que: ‘A ruralidade promotor, o padre/pastor/liderança religio-
diz respeito a uma forma pela qual se organiza sa, o prefeito/vereadores/deputados/políti-
a vida social’7( 34). cos de outra escala federativa.
São permanentes invisíveis os interme-
Com base nas análises dos dados e nas diários da comercialização, os transporta-
conclusões desses estudos, apresentamos um dores, os prepostos da ilegalidade (agiota,
desenho das relações sociais entre os atores madeireiro, servidor público corrupto, crime
que performam na nova ruralidade brasileira, organizado etc.), lideranças locais empresa-
definindo as arenas onde as disputas e integra- riais e de produtores familiares, lideranças
ções podem acontecer. Milton Santos9 teorizou religiosas, advogados, cabos eleitorais e lide-
sobre esses novos atores que surgem com a ranças políticas, entre outros.
maior densidade informacional e técnica dos As figuras visualizam as relações sociais
espaços rurais que se integram nas redes de da tipologia de (con)formação socioeco-
produção capitalista. São alçados a autoridades nômica da ruralidade brasileira atual. À
locais o agrônomo, o veterinário, o gerente do esquerda, tem-se o modelo hegemônico
banco, entre tantas outras personagens da so- do agronegócio, já absorvido pelas cadeias
cioeconomia do Brasil no século XXI. globais de valor e coordenados pelos crité-
O sistema unificado da ruralidade bipolar rios do sistema financeiro, por meio do qual
do agronegócio e da agricultura familiar acessa a tecnologia, a hegemonia cultural
amalgama em cada território os diferentes e política local, regional e nacional. Por ele
atores e suas relações formais e informais, são instrumentalizados racionalmente os
e aponta conflitos bem como pontos de in- demais atores do sistema produtivo
tegração nos seguintes subsistemas: a) nas Ao centro, tem-se o modelo hegemônico
organizações públicas dos três níveis fede- da agricultura familiar em que a coordena-
rativos; b) no acesso ao mercado financeiro ção é feita por meio de agentes públicos, com
e à educação financeira; c) no acesso à tec- mediação do sistema financeiro para acesso
nologia, assistência e aos insumos; d) na co- a todos os inputs do sistema produtivo: terra,
mercialização em diferentes escalas (bolsa tecnologia, equipamentos, comunicação etc.
de mercadorias internacional, contratos Interessante que essa coordenação estatal é a
agroindustriais, feiras regionais e locais, co- base desse modelo mesmo nos países capitalis-
operativas); e) no acesso à terra. tas mais desenvolvidos. Sem essa coordenação,

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192 Noronha GS, Falcón MLO

a probabilidade de destruição dos sistemas pro- familiares que se torna sócia de um empre-
dutivos é extremamente alta. endedor privado com experiência agroin-
Finalmente, à direita, propomos uma dustrial/comercial, integrando a produção
construção nova, com mediação comercial- e a apropriação dos lucros, aportando tec-
-financeira e autocoordenação dos produ- nologia de produção e de comercialização.
tores rurais. Nossa fonte de inspiração é o A permanência do apoio até a primeira su-
modelo PPPC10 – Parceira Público-Privada cessão geracional da agricultura familiar é a
Comunitária – testado em vários sistemas chave do sucesso desse modelo, permitindo
produtivos no Acre, destacando-se o em- a elevação do conhecimento técnico (filhos
preendimento agroindustrial de pescado de agricultores) sem perda do conhecimento
e rações. Nesse caminho, o Estado apoia tácito (dos agricultores e assentados).
e fomenta a cooperativa dos agricultores

Figura 4. Modelos de tipologia da ruralidade brasileira

Fonte: Elaboração própria.

Esse modelo associa e evolui as políticas de Aspectos econômicos sobre


promoção aos sistemas e arranjos produtivos o tamanho da propriedade
locais, corrige aos poucos a injustiça cognitiva e
eleva a produtividade da agricultura brasileira. É
rural e a reforma agrária
também um caminho novo de promoção da agri-
cultura orgânica e sustentável, com desenvolvi- Diversos estudos econômicos sobre econo-
mento de inovações tecnológicas nos sistemas mias de escala na agricultura demonstram
integrados da ruralidade no século XXI. Mais que a grande propriedade possui custos
detalhes desse ciclo de novas políticas públicas crescentes de escala12-19. Custos de gerencia-
para a agricultura familiar estão tratados no mento, logística e mão de obra, a imprevisi-
livro da RedeSist sobre 20 anos de experiências bilidade meteorológica, a volatilidade dos
com arranjos produtivos locais, em que Falcón, preços internacionais, além do descolamen-
Lastres, Cassiolato e Andreatta11 formulam alter- to entre o tempo de trabalho e o tempo de
nativas para uma política industrial e de inovação produção são alguns fatores que nos permi-
baseada em APLs da agroindústria familiar. tem afirmar que o setor agrícola não possui

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A disputa entre modelos para o campo: apontamentos sobre a questão agrária no Brasil em busca de um novo paradigma 193

características de uma atividade capitalista preços desse mercado explica-se, em parte,


no senso comum. por um problema de oferta insuficiente, mas
Ademais, todas as nações cujo padrão de de- também pela vinculação de determinados
senvolvimento é idealizado pela grande maioria produtos aos mercados internacionais de
da sociedade brasileira passaram por um pro- commodities. Logo, um primeiro passo é
cesso, quase sempre radical, de democratização buscar desvincular os preços dos alimentos
do acesso à terra. Leite e Ávila20(800), a partir de dos mercados externo e interno.
uma revisão de autores com perspectivas teóri- Nesse sentido, é importante lembrar que a
cas distintas, confrontam a “dimensão residual grande propriedade produz principalmente
e compensatória na qual o pensamento con- para o mercado externo, não afeta sobrema-
servador, na melhor das hipóteses, confinou o neira a curva de oferta interna de alimentos.
tema do acesso à terra”. O consumo interno desses itens também não
Veiga21 argumenta pela necessidade de afeta seu preço, mas, sim, as variações no
realizar uma ruptura sociopolítica para des- mercado internacional. A agricultura familiar,
travar o desenvolvimento econômico. Ele como já demonstrado, é responsável pela maior
entende que algumas novas lideranças do parte do alimento na mesa do brasileiro. Desse
setor empresarial brasileiro estariam dis- modo, para reduzir a inflação, particularmente
postas a reconhecer que sem distribuição quando uma de suas causas é um choque de
da riqueza não haveria como o País avançar, oferta de alimentos, é preciso ampliar o número
teríamos então a possibilidade de rediscu- de agricultores familiares.
tir as políticas para a agricultura familiar
e, consequentemente, o tema da reforma
agrária. Essa ideia está presente nas teses de O golpe de 2016 e a
Rostow22 quando discorre sobre as pré-con- destruição das políticas
dições para o arranco e menciona a necessi-
dade uma ruptura com as elites tradicionais.
agrárias
A reforma agrária também pode ser
um meio bastante eficaz de erradicação O golpe de 2016 trouxe entre suas medidas
da pobreza23. Todavia, a problemática da mais duras a Emenda Constitucional nº 95
pobreza rural não pode ser reduzida a uma que impôs o congelamento em valores reais
mera questão social, até porque o modo de das despesas governamentais. Uma medida de
intervenção feito a partir dessa visão não ajuste fiscal permanente e que desconsidera os
enfrenta as causas estruturais do problema. ciclos econômicos. Os impactos dessa emenda
É preciso discutir, em última instância, o à Constituição são de tal ordem que desmon-
modelo produtivo. tam todas as políticas agrárias do Brasil24.
Outro aspecto econômico relevante é o O governo Temer é um governo dos
viés de combate à inflação de uma política de setores mais atrasados do campo brasileiro,
reforma agrária. As causas de um processo atrasado e sem nenhum compromisso com
inflacionário podem ser diversas: aqueci- a soberania e com o desenvolvimento nacio-
mento da economia; choques de oferta; con- nal. A estrondosa vitória dos novos coronéis
flito distributivo entre capital e trabalho; ou da República Velha apareceu aos poucos na
resultado das projeções dos agentes. agenda governista. Em julho de 2016, Michel
Sem aprofundar as demais causas infla- Temer assumiu diversos compromissos com
cionárias, uma parte relevante da inflação a Frente Parlamentar da Agropecuária, o
recente tem relação com problemas na oferta nome oficial da bancada ruralista. Entre
de alimentos. A demanda por alimentos é os acordos, foi acertada a revisão de diver-
quase inelástica, desse modo, a variação nos sas políticas públicas, como licenciamento

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194 Noronha GS, Falcón MLO

ambiental, a demarcação de terras indíge- Em busca de alternativas


nas e a regulação da compra de terras por
estrangeiros. No início de 2018, anunciou-se A construção de uma alternativa passa ne-
‘regras’ para o trabalho escravo, fazendo o cessariamente pela revisão da Emenda
País deixar de ser referência mundial no Constitucional nº 95 e de alguns aspectos
combate a esta prática. da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)
O processo de aquisição de terras por es- para permitir a retomada da capacidade
trangeiros é regulado pela Lei nº 5.709/1971 intervenção do Estado na economia sem
que, reforçado por parecer da Advocacia-Geral ameaças de impeachment, uma vez que as
da União (AGU) de 2010, impõe limites ao que pedaladas que justificaram o afastamento
os não nacionais podem adquirir. O argumen- de Dilma foram por violações a dispositivos
to do ministro da Fazenda para a liberação das da LRF. Entretanto, há regras específicas
restrições se deve a um suposto aumento nos para o financiamento de uma efetiva política
investimentos: “O Brasil precisa de crescimen- agrária no Brasil. O Estatuto da Terra (Lei
to e de investimento. O agronegócio foi a área nº 4.504/1964) assegura o financiamento
que mais cresceu em janeiro. Temos que inves- da reforma agrária por meio da criação do
tir, gerar mais emprego”25. Se é uma área que já Fundo Nacional da Reforma Agrária que
vem crescendo, segundo as palavras do próprio garantia, entre outros recursos, a destina-
ministro, não parece ser uma área que precise ção específica de 3% da receita tributária da
de investimentos estrangeiros. União. Esse dispositivo acabou alterado pelo
A bancada ruralista também arrancou a Decreto-Lei nº 2.431/1988 que criou o Fundo
Medida Provisória (MP) nº 759/2016, con- Nacional da Reforma e do Desenvolvimento
vertida na Lei nº 13.465/2017, que afeta não Agrário (Funmirad), destinado a fornecer
apenas o campo, mas também o processo de os meios necessários para o financiamento
regularização fundiária urbana. Essa medida da reforma agrária e dos órgãos incumbidos
é um reflexo da inflexão que o governo Temer da sua execução. Entre as fontes de finan-
promove na forma de atuação do Instituto ciamento do Funmirad estavam o Fundo de
Nacional de Colonização e Reforma Agrária Investimento Social (Finsocial) administra-
(Incra) mudando sua prioridade para a ti- do pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
tulação (uma política importante, mas que Econômico e Social (BNDES) cujos recursos
não é reforma agrária) das áreas reformadas não chegam ao Incra.
em detrimento da obtenção de novas áreas. Ademais, o Decreto-Lei nº 1.146, de 1970,
Diversas entidades lançaram uma Carta ao garante ao Incra receitas vinculadas que, de
Brasil26 apontando os riscos e retrocessos acordo com exposições públicas da presi-
do novo marco legal. Destes, destacamos: a dência da autarquia antes do impeachment,
privatização em massa, e na surdina, do pa- apresentada como a contribuição social da
trimônio da União; a anistia a desmatadores agroindústria, superavam o valor de R$ 1,2
e grileiros na Amazônia; a ameaça à Política bilhão, recursos estes que nos últimos anos
Nacional de Reforma Agrária; e a financeiri- não foi destinado para as atividades fins do
zação da terra urbana e rural. Incra. Uma atualização dos valores da Taxa
Em última instância, a medida regulariza de Serviços Cadastrais, de que trata o art.
o assalto às terras públicas, o grilo e recon- 5º do Decreto-Lei nº 57, de 18 de novembro
centração ilegal de áreas reformadas, neste de 1966, com as alterações do art. 2º da Lei
último caso sem sequer ter dado às famílias nº 6.746, de 10 de dezembro de 1979, e do
assentadas a estrutura, crédito e assistência Decreto-Lei nº 1.989, de 28 de dezembro de
técnica mínimos para que pudessem alcan- 1982, pode garantir um incremento de R$
çar sua independência. 500 milhões ao orçamento do Incra.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 183-198, NOVEMBRO 2018


A disputa entre modelos para o campo: apontamentos sobre a questão agrária no Brasil em busca de um novo paradigma 195

Outra forma de incrementar o orçamento à revolução verde. Ali foi desenvolvida uma
da reforma agrária seria uma eventual par- plataforma que combinava métodos cien-
ceria do Incra com a Receita Federal na fis- tificamente comprovados, conhecimentos
calização do Imposto Territorial Rural que autóctones e sabedoria tradicional.
poderia elevar a arrecadação deste tributo,
de acordo com o Sindicato Nacional dos Os objetivos iniciais da agricultura sustentá-
Peritos Federais Agrários, de cerca de R$ vel gerida pela comunidade eram proporcionar
850 milhões para cerca de R$ 8,3 bilhões. Se alimentos saudáveis, colheitas saudáveis, solo
10% destes recursos fossem destinados ao saudável e vida saudável. As práticas de manejo
Incra, já haveria um aumento orçamentário sem pesticidas e conservação do solo foram in-
de mais de R$ 800 milhões27. troduzidas por meio de Escolas de Campo para
A transformação do Funmirad, um Agricultores (FFS), onde os próprios fazendeiros
fundo contábil, em um Fundo Nacional de podiam tomar suas próprias decisões sobre as
Desenvolvimento Agrário (FNDA) como abordagens à gestão. As instituições locais fo-
um fundo especial contábil de natureza fi- ram a chave para o sucesso da transição. Elas
nanceira, vinculado ao Incra, pode garantir abrangiam grupos de autoajuda, federações
ainda uma relativa autonomia da autarquia municipais de fazendeiros (reunindo todos os
em relação ao orçamento da União livran- fazendeiros praticantes da agricultura sustentá-
do-a dos constrangimentos impostos pela vel, cada domicílio sendo representado por um
Emenda Constitucional nº 95 e dos suces- homem e uma mulher), e a federação distrital de
sivos ajustes fiscais que todos os últimos fazendeiros. O primeiro investimento foi na for-
governos fizeram. Esse fundo poderia ser mação da instituição. Então, quando a platafor-
turbinado pelo uso das áreas preservadas ma ficou pronta, foi provido apoio para a criação
em assentamentos no mercado de cotas de de capacidade produtiva. Não havia subsídios
reserva ambiental e crédito de carbono. aos insumos. Na CMSA, todos os insumos são
internalizados, de modo que o custo do cultivo é
reduzido drasticamente. O grosso da produção
Um paradigma para o é destinado a assegurar primeiro a alimentação
futuro local. O excedente da produção é vendido a mer-
cados próximos e a nichos de mercado com pre-
É preciso buscar outros paradigmas sociais ço elevado, como produtos isentos de pesticidas.
que não os dos EUA ou da Europa. Kerala, Todos os elementos essenciais, como adminis-
província indiana com população seme- tração de programas e ampliações, são liderados
lhante à do Brasil e com forte influência do pelas comunidades29(39).
Partido Comunista Indiano na construção
de suas políticas públicas, apresenta os me- Outro exemplo importante de transição que
lhores indicadores sociais da Índia, mesmo merece ser mencionado é o caso de Cuba.
sem uma economia robusta. Alguns números Quando do colapso soviético, o País tinha
apresentados: 95% de taxa de alfabetização 57% de sua demanda de alimentos aten-
(61% no resto da Índia); expectativa de vida dida pelo exterior com 30% de suas terras
de 75/78 anos (63 na Índia); um índice de 12 agriculturáveis dedicadas exclusivamente à
a 14 de mortalidade infantil a cada mil nasci- cana-de-açúcar. Cuba não possuía soberania
dos vivos (58 no restante do País)28. alimentar e era completamente dependen-
Ainda na Índia, temos o modelo de agri- te do comércio exterior. O País montou um
cultura sustentável gerida pela comuni- sistema baseado em cooperativas de créditos
dade em Andhra Pradesh em que 300 mil e serviços e promoveu uma mudança radical
fazendeiros fizeram uma opção alternativa na forma de abordar a agricultura com um

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196 Noronha GS, Falcón MLO

papel fundamental da agroecologia nesta Por fim, a inovação tecnológica, chegando


transição, o resultado foi agora com a indústria 4.0 e intensificando a
produção da agricultura, além da mudança
o maior crescimento percentual per capita na de valores e consumo nos centros urbanos,
produção de alimentos em toda a América La- criará desafios diferentes para o agronegócio
tina e Caribe, com um crescimento anual de e para a agricultura familiar. Acesso ao conhe-
4,2% de 1996 a 200529(38). cimento técnico é o maior desafio para os pe-
quenos produtores; e a produção sustentável
Essas mudanças já têm uma inciativa é o maior desafio para o agro. Nada indica que
lançada em 2012 pelo governo brasileiro, a o governo do golpe tem políticas para enfren-
Política Nacional de Agroecologia e Produção tar esses desafios. A agricultura brasileira está
Orgânica (PNAPO), com a edição do Decreto sob alto risco no médio prazo.
nº 7.794, de 20 de agosto de 2012, desenvolvi-
da a partir do Plano Nacional de Agroecologia
e Produção Orgânica (Planapo). Embora Colaboradores
busque construir estratégias para uma tran-
sição agroecológica com uma metodologia Noronha GS contribuiu para a concepção,
participativa, é mais uma política pública análise, redação e aprovação final do artigo.
comprometida com os constrangimentos im- Falcón MLO contribuiu para a elaboração da es-
postos pelo desmonte do Estado a partir da trutura do artigo, análise de modelo s sociopro-
Emenda Constitucional nº 95. dutivos, revisão e aprovação da versão final. s

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Recebido em 01/08/ 2018


27. Sindicatos dos Peritos Federais Agrários. Apresen- Aprovado em 31/10/2018
Conflito de interesses: inexistente
tação do SindPFA à direção do Incra em 26/06/2015.
Suporte financeiro: não houve
[acesso em 2017 out 21]. Disponível em: https://

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ENSAIO | ESSAY 199

Um projeto para as cidades brasileiras e o


lugar da saúde pública
A project for Brazilian cities and the place of public health

Erminia Maricato1, Paolo Colosso2, Francisco de Assis Comarú3

DOI: 10.1590/0103-11042018S315

RESUMO O artigo reconstituiu marcos fundamentais da urbanização brasileira, com o objetivo


de argumentar pela necessidade de construção social de um projeto para as cidades do Brasil
capaz não apenas de trazer formulações intelectuais progressistas, mas também, sobretudo,
de convergir forças sociais em torno de uma agenda que vise à consecução de cidades mais
justas em termos socioespaciais, ambientalmente sustentáveis, economicamente dinâmicas e
culturalmente plurais. Para tanto, em um primeiro momento, tratam-se aspectos estruturais
da urbanização brasileira ao longo do século XX, bem como salientam-se experiências vir-
tuosas de governos locais no fim dos anos 1980 e 1990. Em seguida, analisam-se contradições
engendradas nos anos 2000 e, por fim, elencam-se algumas das primeiras propostas minima-
mente consensuadas até aqui.

PALAVRAS-CHAVE Urbanização. Planejamento de cidades. Brasil. Distribuição espacial da


1 Universidade de São população.
Paulo (USP), Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo
(FAU) – São Paulo (SP), ABSTRACT The article reconstructs fundamental milestones of Brazilian urbanization, with
Brasil. the objective of arguing for the need of social construction of a project for our cities, capable
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-1085- not only of making progressive theoretical formulations, but also, above all, of converging
6238 social forces around an agenda aimed at achieving cities that are more just socio-spatially,
erminia@usp.br
environmentally sustainable, economically dynamic and culturally plural. For that, we first
2 Universidade de São
deal with the structural aspects of Brazilian urbanization throughout the 20th century and
Paulo (USP), Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências highlight virtuous experiences of local governments in the late 1980s and 1990s. Then, we
Humanas (FFLCH) – São analyze contradictions engendered in the 2000s and, finally, we list some of the first propos-
Paulo (SP), Brasil.
Orcid: https://orcid. als minimally agreed upon so far.
org/0000-0003-4606-
0378
paolocolosso@usp.br KEYWORDS Urbanization. City planning. Brazil. Residence characteristics.
3 Universidade Federal do
ABC (UFABC), Centro de
Engenharia, Modelagem e
Ciências Sociais Aplicadas
(Cecs) – Santo André (SP),
Brasil.
Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-1091-
2156
francisco.comaru@ufabc.
edu.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 199-211, NOVEMBRO 2018
200 Maricato E, Colosso P, Comarú FA

Introdução atendimento à saúde: diminuiu a mortalida-


de infantil e a taxa de natalidade; aumentou
Vivemos um período de transição no mundo a expectativa de vida. As migrações, que
e no Brasil. As mudanças estão em curso e tinham como destino predominante a região
serão feitas com ou sem a participação das geoeconômica centro-sul, reorientaram-se
forças democráticas da sociedade. Garantir para o Centro-Oeste, o Norte e o Nordeste.
um futuro com mais justiça social, econômi- Todas as regiões cresceram mais economica-
ca, ambiental, territorial e urbana depende mente do que a Sudeste, embora esta ainda se
da nossa participação. conserve como pólo mais dinâmico do País.
Dez anos após o colapso financeiro de Essas são algumas das razões fundamen-
2008, cujos ônus sociais ainda são sentidos tais que justificam a necessidade de repensar
pelos quatro cantos do globo, poucas saídas coletivamente um projeto para as cidades
foram postas para além do receituário ne- do Brasil capaz de convergir forças sociais
oliberal de austeridade fiscal com direi- progressistas em torno de uma agenda que
tos sociais, perdão de dívidas de grandes vise à consecução de cidades mais justas
empresas e subserviência aos ditames do em termos socioespaciais, ambientalmente
mercado financeiro. Não apenas sua eficácia sustentáveis, economicamente dinâmicas e
na recuperação econômica é discutível como culturalmente plurais.
também, sobretudo, tais medidas recolocam Dessa forma, o objetivo deste artigo é
os países nos descaminhos da concentra- avançar em pontos centrais desse diagnós-
ção de renda e aumento de abismos sociais, tico, mas também apontar algumas linhas
como já bem descreveram Stiglitz1 e Piketty2. de força para esse projeto de médio e longo
Desde os anos 1980, nosso país vive, por prazo. Nesta perspectiva, em um primeiro
sua vez, um processo de internacionalização, momento, reconstituímos aspectos estru-
desindustrialização e financeirização que nos turais da urbanização brasileira ao longo
leva ao retorno à condição de agroexportador do século XX e salientamos experiências
– grãos, carnes, celulose, minérios e etanol. A virtuosas de governos locais progressistas
participação da indústria no Produto Interno no fim dos anos 1980 e 1990. Em seguida,
Bruto (PIB) do País decresceu a níveis das pri- analisamos contradições engendradas nos
meiras décadas do século passado3. anos 2000 e, por fim, elencamos algumas das
No que diz respeito às cidades, houve primeiras propostas minimamente consen-
transformações positivas e negativas. As me- suadas até aqui.
trópoles que mais cresceram nos últimos 30
anos estão nas regiões Centro-Oeste, Norte,
Nordeste. De modo geral, o fenômeno do Aspectos estruturais da
crescimento intenso atingiu mais as cidades urbanização brasileira e
de porte médio que apresentaram taxas mais
elevadas que as das metrópoles, em popu-
experiências democráticas
lação e em PIB. Percebeu-se um processo pós-ditadura
notável de dispersão urbana e uma nova
onda de especulação fundiária para além Em nosso país, urbanização e industrializa-
dos grandes centros, sobretudo nos anos de ção se deram, tardiamente, durante o século
crescimento econômico entre os anos 2000 XX. Entre 1940 e 1970, o Brasil cresceu a
e meados de 2010. taxas de, aproximadamente, 7% ao ano.
Nesse período, a dinâmica populacional Nesse período, a população urbana passou
mudou, em grande parte, devido ao proces- de 12,9 milhões para 52 milhões. Sem acesso
so de urbanização, avanço do saneamento e ao mercado residencial formal e sem acesso

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 199-211, NOVEMBRO 2018


Um projeto para as cidades brasileiras e o lugar da saúde pública 201

às políticas públicas urbanas, uma imensa à habitação social, os corredores de ônibus5.


massa de migrantes se instalou como pôde, es- Além disso, um conjunto impressionante de
pecialmente nos grandes centros, com parcos leis se seguiram à Constituição Federal de
recursos, constituindo uma mão de obra farta 1988: Estatuto da Cidade, Leis de Consórcio
e barata. Esta teve um papel funcional para o Públicos, Lei do Fundo de Habitação de
processo de acumulação de base industrial. Interesse Social, Lei do Saneamento Básico,
O resultado desse processo foi a constru- Lei da Mobilidade Urbana, Lei dos Resíduos
ção de gigantescas periferias ilegais e pre- Sólidos e Estatuto da Metrópole, entre outras.
datórias à vida dos trabalhadores e ao meio A Emenda Popular Constitucional de Reforma
ambiente. À industrialização dos baixos salá- Urbana constituiu um ponto alto dessa traje-
rios correspondeu a urbanização dos baixos tória, pois logrou incluir, na Constituição de
salários4. Em contraposição, outra cidade, 1988, a Função Social da Cidade e a Função
mais visível, hegemônica, restrita, concen- Social da Propriedade; e, mais tarde, na
trou os investimentos públicos e privados em Reforma Constitucional de 2000, no art. 6º, o
favor de um mercado imobiliário altamente Direito à Moradia.
especulativo e de luxo, promovendo assim
a abissal desigualdade social que reafirma,
parcialmente, a herança de quatro séculos Anos 2000: crescimento
de exploração do trabalho escravo. Nos anos econômico, desigualdade e
1980 e 1990, com o impulso das lutas pela
redemocratização do País, em que pese a
impactos na saúde
ausência de investimentos públicos devido a
políticas de austeridade fiscal e forte presen- A partir de 2002, com o início do ciclo de
ça do Fundo Monetário Internacional (FMI) governos federais Lula e Dilma, houve a im-
e Banco Mundial, muitas cidades viveram plementação de políticas públicas visando
experiências inovadoras em governos locais, diminuir as desigualdades sociais no Brasil
conhecidos posteriormente como ‘prefei- sem, no entanto, tocar nos fundamentos mais
turas democrático-populares’. Movimentos estruturantes e seculares da nossa formação
sociais, pesquisadores, professores, Ongs social. Essas políticas implementadas pelos
e profissionais se organizaram no deno- dois governos Lula (2003-2010) e pelo pri-
minado Movimento pela Reforma Urbana, meiro governo Dilma Rousseff (2011-2014)
cujas propostas – sistematizadas nos Fóruns fizeram a diferença para milhões de brasi-
da Reforma Urbana – faziam parte das leiros. Uma das maiores conquistas desse
Reformas de Base. Tratava-se de uma grande período foi, talvez, retirar o Brasil do Mapa
convergência que, desde o início dos anos da Fome da Organização das Nações Unidas
1960, buscava superar o subdesenvolvimento (ONU)6. Entre 2002 e 2012, o Brasil reduziu
e a desigualdade social no Brasil. em 82% sua população de desnutridos, o que
Novos personagens ligados às lutas urbanas significou 36 milhões de pessoas. Entre os
criaram uma agenda nacional de propostas. projetos que mais contribuíram para com-
Entre os muitos projetos implementados, bater a fome, está o Programa Bolsa Família,
estavam os Centros Integrados de Educação uma política social de transferência de renda
Pública (Cieps), concebidos por Darcy para a mãe de família com a condição de
Ribeiro enquanto Secretário de Educação do que seus filhos frequentem escolas. Ao lado
Governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, desse programa, outros fatores contribuíram
o Orçamento Participativo, com repercussão para erradicação da fome e para ampliar
e acolhida no mundo todo, a urbanização de o mercado interno de consumo popular, o
favelas e áreas precárias, a assistência técnica que ajudou a criar 22 milhões de empregos.

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202 Maricato E, Colosso P, Comarú FA

Entre 2002 e 2015, o aumento real do salário conjunto de forças que tomaram o comando
mínimo foi de 77%. Outros projetos impor- das cidades no contexto dos megaeventos
tantes mudaram as condições de vida dos e do pós-crise de 2008 incluem obviamen-
brasileiros, como o Luz para Todos, que te os executivos e legislativos municipais,
levou energia elétrica para 3,14 milhões de a quem cabe a competência constitucional
famílias; o Programa de Fortalecimento da sobre a regulação do uso e da ocupação do
Agricultura da Agricultura Familiar (Pronaf ) solo urbano. Proprietários locais, algumas
e, ligado a ele, o Programa de Aquisição de empresas nacionais e poucos parceiros in-
Alimento (PAA)3; o Programa de Construção ternacionais foram os maiores ganhadores
de Cisternas na região do semiárido, que com esse grande movimento.
apoiou a construção de 1,2 milhão de cister- Antes de discorrer sobre os dados que
nas. Já o Programa Mais Médicos, resultan- comprovam as grandes mudanças pelas
te de uma parceria com o governo cubano, quais passaram as cidades em um período do
levou médicos a regiões remotas do País. É ‘boom imobiliário’ no Brasil, é preciso buscar
importante lembrar também que o orçamen- explicações para essa mudança que foi apre-
to federal para educação cresceu 218% entre sentada aqui sem nuances. O que mudou
2002 e 2014 e que o número de estudantes entre o cenário das cidades que viveram a
universitários cresceu de 3,5 milhões para 7,1 democracia direta do orçamento partici-
milhões. O acesso de negros, índios e brancos pativo nos 1990 para o cenário das cidades
pobres modificou o perfil das universidades7. dominadas pelos capitais ligados ao mercado
Em relação à política para as cidades, en- fundiário e imobiliário?
tretanto, houve forte regressão, apesar da As forças sociais que na década de 1980
criação do Ministério das Cidades com seu conquistaram o novo ciclo democrático
Conselho Nacional, das Conferências parti- foram crescentemente absorvidas pela insti-
cipativas Municipais, Estaduais e Federais, tucionalização da política centrada, cada vez
um arcabouço legal urbanístico inovador. mais, na disputa eleitoral. A força oriunda
Por mais contraditório que possa parecer, da organização capilarizada, situada em
essa regressão se dá exatamente, e certamen- bairros e sindicatos, esmaeceu. O repertório
te por isso mesmo, quando o governo federal da luta pela Reforma Urbana comprova essa
retoma em escala significativa, depois de afirmação. Nos anos 2000, o foco estava na
décadas, o investimento em infraestrutura e aprovação de novas leis, novos conselhos
moradia. Grandes empreiteiras, incorpora- participativos, novos planos diretores, novos
dores imobiliários, proprietários de terra e órgãos de governo. A correlação de forças
capital financeiro orientaram muito do que também apresenta uma mudança que passa
seria construído, mas especialmente onde despercebida pelos partidos de esquerda ou
seria construído. Em termos gerais, a locali- progressistas (de modo geral). Apenas em
zação de conjuntos habitacionais, o traçado 2013, com os protestos de junho, ganha visi-
dos metrôs, o traçado dos Veículos Leves bilidade a quebra da hegemonia do Partido
Sobre Trilhos (VLT) ou dos corredores de dos Trabalhadores nos eventos de rua.
ônibus obedecem à lógica do rentismo fun- Passemos aos dados entretanto. Entre
diário/imobiliário: agregam ‘valor’ ao metro 2009 e 2015, os setores imobiliários e da
quadrado no entorno das propriedades da- construção civil alavancam o PIB. O governo
queles que pressionam o poder público. As federal tentou enfrentar a crise internacio-
cidades, pouco a pouco, retomaram o rumo nal de 2008 com investimentos em obras e
do aprofundamento da desigualdade, su- desonerações fiscais como incentivo para o
cumbindo à ampliação das forças conserva- consumo interno. Nesse período, as cidades
doras no interior da política de coalizão. Esse receberam aproximadamente R$ 800

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 199-211, NOVEMBRO 2018


Um projeto para as cidades brasileiras e o lugar da saúde pública 203

bilhões de investimentos para produção de ano; desse total, 59% são emitidos por auto-
moradias provenientes do Fundo de Garantia móveis, enquanto cerca de 21% correspon-
Por Tempo de Serviço (FGTS), Sistema de aos ônibus. Tais números mostram que
Brasileiro de Poupança e Empréstimo o automóvel seguiu como uma prioridade
(SBPE) e Orçamento Geral da União (OGU)8. indiscutível em termos de investimentos
O Programa de Aceleração do Crescimento públicos, ao mesmo tempo que gera o maior
(PAC) da Mobilidade investiu aproximada- impacto ambiental e na saúde pública. Além
mente R$ 90 bilhões em obras, muitas das disso, não é o meio mais utilizado pela popu-
quais relacionadas com os Megaeventos lação, tampouco é mais eficiente em termos
Copa e Olimpíadas9. No entanto, o mercado energéticos e de deslocamento. Essa ainda é
aquecido elevou o valor dos imóveis em uma uma tendência se percebermos que, no total
proporção de 2 a 3 vezes acima da inflação de viagens, a participação do transporte co-
média no período, obviamente também muito letivo caiu 1,5% entre 2003 e 2014; já o trans-
acima da valorização dos salários. O caso de porte individual aumentou 2,2%10.
São Paulo é gritante: o valor de venda dos A ausência de investimentos massivos e
imóveis aumentara 235,32% entre janeiro de permanentes nos sistemas de transportes
2008 e julho de 2018, permanecendo estável públicos, coletivos e de alta e média capa-
mesmo nos últimos dois anos, de recessão e cidade agravam as condições ambientais e
estagnação. No Rio de Janeiro não foi dife- a saúde da população. Pesquisas cientificas,
rente: nos últimos dez anos, o valor de venda a partir de monitoramento de parâmetros
acumula uma alta de 229%, segundo o índice ambientais e sanitários em dias de parali-
Fipezap; nesse mesmo período, a inflação sação e greve dos sistemas de transporte,
(Índice Nacional de Preços ao Consumidor revelam, por exemplo, que os benefícios do
Amplo – IPCA) acumulada é de 84,28%. metrô para a saúde pública, em uma me-
A prioridade dada ao automóvel pela polí- trópole como São Paulo, valorados apenas
tica de desoneração tributária fez com que o com base na mortalidade evitada de idosos
número de veículos individuais aumentasse e considerando apenas o efeito do Material
desproporcionalmente ao crescimento po- Particulado MP 10 (portanto subdimensio-
pulacional, impondo um alto custo econômi- nados e subvalorados), representa uma eco-
co, social, ambiental e na saúde. Reforçou-se nomia anual de cerca de US$ 11 bilhões, valor
o paradigma do denominado ‘rodoviarismo’. suficiente para construção de cerca de 73 km
Em 2014, os investimentos públicos com de linhas de metrô11.
mobilidade eram estimados em R$ 12,1 Nesse sentido, o investimento em trans-
bilhões por ano, sendo 77% relativos ao uso porte público de massa, como o sistema de
dos modos individuais, sobretudo destina- metrô, que possui um custo de implantação
dos à manutenção de vias e em acidentes. médio de US$ 150 milhões/km, deve ser
Entretanto, o transporte individual não é o considerado não apenas viável, mas também
que viabiliza a maior proporção de viagens: sustentável e, por isso, prioritário na cons-
essas se dividem entre 36% a pé, 4% de bici- trução de uma agenda urbana que interna-
cleta, mais 29% em transporte coletivo e 31% lize os benefícios ambientais e sociais aos
em transporte individual. Em termos de dis- custos finais11.
tância percorrida, 60% do total refere-se ao Os investimentos e a regulação pública na
transporte coletivo, 35% em transporte indi- área da mobilidade urbana têm incentivado
vidual (carro e moto)10. No que diz respeito um aumento dos problemas gerais para a po-
à emissão de poluentes locais – monóxido pulação (poluição atmosférica, por exemplo)
de carbono, óxidos de nitrogênio e enxofre e o aumento de problemas relacionados com
–, os veículos emitem 528 mil toneladas por as abissais desigualdades e iniquidades.

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Somente na cidade de São Paulo, por com a ajuda da flexibilização da regulação


exemplo, estima-se que são perdidos, em fundiária, um radical espraiamento urbano,
média, de 1,5 a 2 anos de vida em função da em especial nas cidades de porte médio (mas
poluição atmosférica. Deslocar-se diariamen- observado também tanto nas metrópoles,
te na metrópole paulista equivale a fumar quanto em cidades menores), aumentando
quatro cigarros por dia12. A análise sobre os os custos da urbanização, favorecendo a es-
dados de poluição em agravos em saúde nas peculação com terras, ampliando as viagens
cidades brasileiras mostra que nos defronta- diárias. Essa dinâmica lançou os trabalhado-
mos com um quadro de extremas externalida- res de baixa renda para a periferia da perife-
des negativas e injustiças socioambientais, na ria em bairros resultantes da autoconstrução
medida em que os custos da degradação eco- ou de conjuntos habitacionais de promoção
lógica e dos agravos em saúde não são pagos público/privada, altamente subsidiados.
pelos responsáveis pela sua geração11. No que se refere a indicadores de sanea-
A respeito das iniquidades, sabe-se que mento e saúde, em que pese os desafios gigan-
São Paulo e Nova Iorque são as cidades tescos, podemos observar avanços, sobretudo
que possuem a maior frota de helicópteros entre 2004 e meados de 2010: no abastecimen-
do mundo. Na capital paulista, estima-se to de água potável, no esgotamento sanitário,
que ocorram mais de 20 mil viagens por no manejo de resíduos sólidos, na drenagem
ano, tendo como origem/destino a Região e manejo de águas pluviais urbanas. Um dos
Metropolitana de São Paulo (RMSP) em principais instrumentos para viabilização
mais de 500 aeronaves. A presença desse tipo do saneamento básico no Brasil fora o Plano
de veículos nas cidades gera inúmeros impac- Nacional de Saneamento Básico (Plansab)
tos, entre os quais, atmosféricos e sonoros. Em aprovado em 2013.
2001, estimava-se que havia 109 helipontos na As atividades de planejamento do setor
cidade; e, em 2010, eram cerca de 400, muitos foram ampliadas naqueles anos por meio de
dos quais operando ilegalmente, sem licença do inúmeros planos municipais de saneamen-
poder público local13. As disparidades chegam to e investimentos massivos associados ao
a tal ponto que, na região da rua Funchal na PAC. No entanto, nota-se que as disparidades
Vila Olímpia, por exemplo, havia 25 helipontos e desigualdades inter-regionais mantêm-se,
enquanto esta mesma região contava com 24 apesar dos investimentos. Ainda há muito
paradas de ônibus locais13. o que realizar para garantir o acesso à água
Vale lembrar que sobre veículos como potável para todos os brasileiros. O acesso à
helicópteros, lanchas e iates não incidem rede geral, ou poço, ou nascente com cana-
impostos ordinários como o Imposto sobre lização cresceu nos domicílios urbanos de
Propriedade de Veículos Automotores 95% para 97% em 2000 e 2013 no Brasil14. As
(IPVA), em um flagrante incentivo ao privi- regiões Nordeste e Norte avançaram conside-
légio de classes, de um lado, e desprezo pela ravelmente nas últimas duas décadas. Na pri-
noção e pela prática de justiça social e am- meira, em 2000, 88% dos domicílios urbanos
biental, de outro. Para enfrentar o problema apresentam condição de acesso à água potável
da extrema pobreza e miséria urbana, será por rede de distribuição, passando para 95%
necessário enfrentar os injustificáveis pri- em 2006 e chegando a 94% em 201314.
vilégios que alimentam e perpetuam as ini- Com relação ao acesso ao serviço de
quidades, ou seja, as desigualdades evitáveis, esgotos sanitários com tratamento, o
injustas e estruturais. Índice de Esgoto Tratado Referido à Água
Alinhados ao primado do rodoviaris- Consumida mostra que, em 1998, cerca de
mo e do mercado imobiliário dirigido para 19% do esgoto gerado do País era tratado. Em
poucos, governos municipais promoveram, 2013, esse indicador passou para cerca de

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Um projeto para as cidades brasileiras e o lugar da saúde pública 205

39% do total de esgoto gerado14. Os valores mestrado e doutorado sobre casos de mu-
extremos mostram, por sua vez, como o País é nicípios nas regiões de grandes empreendi-
marcado por fortes desigualdades regionais. mentos, como as Usinas de Santo Antonio e
Na região Centro-Oeste, o índice de esgoto Jirau no Rio Madeira no estado de Rondônia
tratado referido à água consumida equivalia e Usina Belo Monte no Rio Xingu no estado
a 11% em 1998 e a 46% em 2013; já na região do Pará, têm mostrado inúmeros impactos
Sudeste, o mesmo indicador equivalia a 22% diretos e indiretos na saúde humana.
e 44% nessas mesmas respectivas datas; e na Entre os impactos urbanos e na saúde,
região Sul, a 11% e 35%. que consideram os determinantes sociais e
Se indicadores mostram uma melhoria ambientais do processo saúde-doença, re-
desde 2004 até 2013, devido à mudança na gistrados na literatura, citamos: o aumento
política social e política de saneamento, após populacional e fluxo migratório, espraia-
2015, no Brasil, a situação do saneamento mento urbano, aumento da demanda por
vem se agravando novamente, a ponto de, na moradia, aumento no preço da terra e da
organização do evento internacional Fórum moradia, aumento no número de remoções e
Mundial da Água, inúmeros movimentos atingidos, aumento de acidentes de trânsito,
sociais se articularem na construção do aumento da incidência de doenças sexual-
Fórum Mundial Alternativo da Água (Fama). mente transmissíveis DST/Aids, aumento da
Estas articulações têm produzido reflexões e prostituição geral e infanto-juvenil, aumento
propostas que passam pela ampliação da ga- do custo de vida local, aumento do comércio
rantia da água como direito humano, da água e consumo de drogas e bebidas alcoólicas,
como bem comum, por um lado, e como um aumento da incidência de gravidez na adoles-
contraponto da intenção do governo atual cência, aumento das doenças hidrotransmis-
em promover a privatização do setor e mer- síveis, proliferação de doenças infecciosas e
cantilização da água no País. parasitárias, aumento da exposição a metais
Urge também reconhecer que os grandes pesados, aumento na geração de resíduos
projetos de desenvolvimento regional e na- sólidos, aumento dos conflitos sociais, ex-
cional, apesar de reconhecidamente impor- clusão social, aumento da demanda por sa-
tantes para o desenvolvimento econômico neamento ambiental, impactos nos meios
do Brasil, no mais das vezes, agravaram de subsistência dos povos tradicionais e na
enormemente as condições de vida das po- segurança alimentar, perdas de elementos da
pulações mais vulneráveis. cultura local, expulsão de populações indí-
Altamira, no estado do Pará, por exemplo, genas de suas terras originárias, mudanças
município situado na região em que ocorreu nos hábitos alimentares, aumento da obesi-
a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo dade, aumento da poluição das águas, solo
Monte, tornou-se o mais violento entre os e ar, aumento da emissão de gases de efeito
mais de 5.500 municípios do Brasil, segundo estufa, aumento nos acidentes de trabalho,
o Atlas da Violência, com a incrível taxa de aumento dos problemas de saúde mental,
105,2 homicídios para cada 100 mil habitan- entre eles estresse, depressão e suicídio18-20.
tes em 201515,16. A exemplo de outras cidades É plausível considerar que essa monta
brasileiras, a violência urbana atinge pre- impressionante de problemas, questões e
ponderantemente a população jovem, pobre, desafios, repita-se, com algumas variações,
negra e masculina. Ressalte-se que o inicio do em outras regiões no interior do Brasil, palco
aumento mais significativo da violência coin- da implantação dos chamados ‘grandes pro-
cide com a aprovação do Licenciamento do jetos de desenvolvimento’, como indústrias
empreendimento e com o início das obras17. extrativas e de mineração, grandes obras
Além dos homicídios, pesquisas de de rodovias e ferrovias, usinas hidrelétricas

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e outros projetos de energia, transportes Considerando as forças que dirigem o


ou exploração de commodities. Ainda a processo pós-impeachment de desmanche
respeito do impacto de grandes obras, na do ainda parco bem-estar social, de entrega
RMSP, vale mencionar o rastro de destrui- de patrimônios públicos e de manutenção
ção socioambiental que ficou conhecido de privilégios, podemos esperar um cenário
como ‘filhos do Rodoanel’21. análogo ao dos anos 1980: pauperização,
Todos esses fatores ocasionam impac- concentração de renda no topo da pirâ-
tos urbanos, ambientais, sociais, econô- mide, crescimento de favelas, aumento de
micos, na vida das pessoas e no sistema de pessoas em situação de rua, aumento da vio-
saúde. Parte significativa desses problemas, lência, sobretudo contra mulheres e jovens
efeitos e impactos não tem sido enfren- negros. Tais tendências já se verificam em
tada de forma satisfatória por meio dos estudo recente do Instituto de Estudos
instrumentos conhecidos como Estudo Socioeconômicos (Inesc)23.
de Impacto Ambiental (EIA), Relatório de
Impacto Ambiental (Rima), Licenciamento Apontamentos pela construção so-
Ambiental e Plano Diretor. cial de um projeto para as cidades do
Diante desses desafios, diversos ativistas Brasil
ligados ao setor saúde têm defendido o uso
da metodologia de Avaliação de Impacto à De saída, é fundamental lembrar que
Saúde como mais uma ferramenta especí- estamos em um Brasil urbano. No último
fica que auxilie e fortaleça o diagnóstico e censo do Instituto Brasileiro de Geografia
compreensão dos diversos impactos gerados e Estatística (IBGE)24, entre 190 milhões
por projetos, programas e políticas públicas, de brasileiras e brasileiros, 160 milhões
a partir de uma abordagem dos determi- moravam em cidades, isto é, 84% do total.
nantes socioambientais do processo saúde Todas as grandes mazelas urbanas vividas
doença, principalmente considerado que pela maioria da sociedade estão ligadas à
os processos de avaliação de impacto am- produção do espaço urbano sob a forma
biental e licenciamento ambiental não têm hegemônica da mercadoria: segregação, dis-
sido capazes de captar aspectos tanto gerais persão, periferização, carência de serviços,
quanto específicos da saúde humana15,22. epidemias decorrentes da ausência de dre-
Quando, em 2014 e 2015, a crise eco- nagem ou terrenos abandonados, violência,
nômica, adiada pelos investimentos em longas viagens diárias, ausência de áreas
grandes obras de construção civil e deso- verdes, ocupação de áreas com risco de des-
neração tributária a indústrias, tornou-se moronamento, impermeabilização exagera-
incontornável, a maior parte da população da do solo, enchentes, poluição de recursos
trabalhadora, favorecida pelas políticas de hídricos, ocupação de áreas ambientalmente
inclusão pelo consumo, é a mais atingida. Se frágeis, desmatamento, entre outras.
as reformas pró-cidadania e justiça social Um projeto coletivo deve mostrar em
foram adiadas – nas esferas fundiária, de que medida a prioridade dada aos negó-
mobilidade, de saneamento, e meio ambien- cios com o solo urbano tem nos levado a
te – a partir de 2016, um conjunto de outras uma modernização regressiva de aspectos
reformas – corte de gastos em saúde e educa- múltiplos. Será necessário construir bases
ção, terceirização, trabalhista, previdência, sociais sólidas junto das quais possamos
Medida Provisória 759 – dá a entender que a defender uma outra prioridade, a saber, o
tragédia urbana brasileira vai se aprofundar urbano como lugar favorecido do acesso
e, agora, de forma ainda mais radical diante aos bens e direitos fundamentais, da su-
da ruptura com a democracia. peração da desigualdade estrutural e da

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Um projeto para as cidades brasileiras e o lugar da saúde pública 207

participação direta nas decisões coletivas, mencionamos neste texto o conjunto de


aquelas que tocam todas e todos, porque leis federais recentes que compõem um
dizem respeito à vida em comum. arcabouço muito avançado, mas frequen-
Para tanto, ao contrário do que se pode temente desconhecido pelos Executivos e
pensar, não faltam planos, não faltam leis Legislativos Municipais27 ou pelo Ministério
e não falta competência técnica. De fato, Público e Judiciário28. O caso mais extrava-
toda cidade brasileira com mais de 20 mil gante pode ser encontrado nos loteamentos
habitantes tem Plano Diretor, que é obri- fechados, denominados convenientemente de
gatório pelo art. 182, §1º da Constituição condomínios horizontais, nos quais o produto
Federal, ou pelo Estatuto da Cidade (Lei nº vendido é o lote, a não a construção. Estes são
10.257/2001). Plenos de boas intenções, os regidos pela Lei Federal nº 6.766, de 1979, e
Planos Diretores têm implementação discri- implicam a doação das ruas e áreas verdes e
minatória: aquilo que contraria os interesses institucionais ao poder público municipal. No
dominantes, em especial relacionados com entanto, muros extensos e guaritas policiadas,
o rentismo fundiário e com o mercado imo- em todo o Brasil urbano, impedem cidadãs e
biliário, não é implementado25,26. Os Planos cidadãos de usarem as ruas (que são públicas)
Diretores não orientam, de modo geral, o in- e as áreas verdes (públicas) ou institucionais.
vestimento público nem as principais ações Eventualmente, pode-se propor alguma
do Estado no território. É muito comum que nova lei, como é o caso da formulação do
o investimento em obras contrarie a orienta- Sistema Unificado da Mobilidade Urbana
ção de crescimento urbano dada pelo Plano (Sumu) ou do Sistema do Desenvolvimento
Diretor. Constata-se, portanto, que o grande Urbano (SDU), que, a exemplo do Sistema
problema não está na ausência de novas leis, Único de Saúde (SUS), pretendem definir atri-
mas muito mais na aplicação das existentes. buições mais claras para cada um dos entes fe-
Devemos exigir de executivos e legis- derativos. Além disso, o Estatuto da Metrópole,
lativos municipais, Promotores, Juízes e promulgado em 2015, poderia ser um exemplo
Desembargadores o reconhecimento da de lei que veio para resolver o óbvio problema
precedência dos direitos urbanos, que se da falta de integração entre municípios e entre
fundamentam na função social da cidade e municípios e Estados no planejamento e gestão
da propriedade – previstos na CF 88 e no de Regiões Metropolitanas.
Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257) – sobre os Deve ser recuperado o protagonismo dos
patrimônios privados ociosos improdutivos. municípios – isoladamente e integrados em
Será necessária uma campanha nacional que regiões metropolitanas ou núcleos – e dos
cobre o cumprimento dessas leis urbanísticas. cidadãos nos destinos das cidades. Os inves-
Os Planos Diretores devem ser orientados timentos – finalidade e localização – devem
pela realidade social, econômica, territorial estar subordinados aos indicadores de vul-
e ambiental, definidos não apenas pela parti- nerabilidade social e ambiental e, ainda, ao
cipação social, mas também por indicadores controle social, de modo a afastar a influ-
que dão a conhecer os problemas e as ne- ência dos lobbies privados ligados ao ren-
cessidades sociais. Por exemplo, a Pesquisa tismo imobiliário e aos financiamentos de
Origem-Destino deve definir o investimento campanha eleitoral. Para tanto, os canais da
na área da mobilidade urbana, e não o interes- democracia representativa e da participa-
se de empreiteiras ou capitais imobiliários. ção são necessários, mas não suficientes. É
Tais Planos são complementados por preciso retomar um processo capilarizado
Leis de Uso e Ocupação do Solo, Leis territorialmente de formação de cidadãos
de Parcelamento do Solo, Códigos de informados sobre as cidades, seus proble-
Edificações e Legislação ambiental. Já mas e seus direitos.

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208 Maricato E, Colosso P, Comarú FA

Fortalecer o governo local, mais próximo emprego e riqueza, que devem obedecer aos
do território, pode ser providencial na imple- ciclos da redução do consumo, reuso e recicla-
mentação de políticas públicas mais atentas gem. Para completar as ações públicas na ur-
à diversidade das necessidades habitacionais banização das periferias insalubres, invisíveis,
e, ainda, no que tange aos diferentes portes ilegais e abandonadas pelo Estado, é preciso
e características geográficas e ambientais de levar até elas o serviço de arquitetos, engenhei-
cada cidade. Este é um consenso mínimo: a ros, advogados e assistentes sociais por meio da
política habitacional precisa superar o pen- Assistência Técnica, conforme Lei Federal nº
samento único fixado nos grandes conjuntos, 11.888. Desse modo, levar segurança jurídica e
no mais das vezes distante do tecido urbano. combate à insalubridade habitacional nas áreas
Já está claro que são necessárias linhas pro- de alta densidade de ocupação.
gramáticas capazes de atender às demandas Os projetos e investimentos urbanos de
por urbanização, regularização e integração requalificação, projetos viários, ferroviários,
de assentamentos precários, além da promo- obras de usinas de geração de energia, pro-
ção da locação social e da produção de uni- jetos de mineração a agronegócio precisam
dades, com valorização da autogestão e da incorporar um critério de justiça territorial.
Assistência Técnica. Em alguma medida, tais Segundo esse critério, por exemplo, todos os
pontos vêm sendo consensuados no Plano projetos de desenvolvimento local, regional
Nacional de Habitação (2009) e na recente ou nacional têm que garantir a melhoria das
carta do Conselho e do Instituto de Arquitetos condições de vida dos residentes do entorno
do Brasil (2018). Este último reforça a impor- que certamente são e serão atingidos e
tância de estruturar a política habitacional de sofrem inúmeros impactos tangíveis e intan-
modo coordenado com a política de mobili- gíveis. Nesse sentido, por exemplo, nenhuma
dade, com governança inovadora e democra- família poderia ser removida para uma condi-
tização na gestão de territórios. ção inferior em temos de qualidade e de loca-
Outros apontamentos são dignos de nota. lização da moradia em função de um projeto
Se está evidente que o rodoviarismo é um pa- de desenvolvimento. Um projeto de desenvol-
radigma inviável e falido, é preciso defender vimento para os países que, do ponto de vista
de uma vez por todas a prioridade ao trans- local, aprofunde desigualdades, iniquidades
porte coletivo eficiente e integrado, além do e promova injustiças mereceria a reprovação
fomento dos meios de transporte não moto- dos setores e segmentos compromissados
rizados e à mobilidade ativa. Para isso, temos com o princípio da dignidade humana.
a Lei Federal da Mobilidade Urbana – nº Esses são temas conhecidos cuja defesa
12.587/2012. vai exigir ânimos renovados nesse ciclo que
Da mesma forma, é inadiável promover se abre. Assim como a proteção efetiva das
o saneamento ambiental garantindo a uni- reservas hídricas, de Área de Preservação
versalidade de bens básicos à vida digna, Permanente, Área de Preservação de
saudável e segura como o acesso à água Mananciais, mangues e dunas; a proteção
potável, esgoto, drenagem e coleta de resídu- efetiva e despoluição de cursos de água; a
os sólidos (Lei federal do saneamento Básico cidade de uso misto e compacta bem como
nº 11.445/2007 e Lei federal dos Resíduos ampliar áreas verdes e a arborização dos
Sólidos nº 12.305/2010). Atualmente, re- espaços de uso coletivo. Ademais, a esses
verter esse quadro exige a abordagem de tópicos conhecidos, será necessário inte-
práticas ambientalmente responsáveis de grar temas mais recentes, como a agricul-
captação, distribuição, uso e reuso da água, tura urbana, soberania alimentar e ligados
além de descarte do esgoto. O mesmo deve à saúde pública. As lutas e planos urbanos
ser feito com os resíduos sólidos, fonte de devem se articular às lutas camponesas,

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Um projeto para as cidades brasileiras e o lugar da saúde pública 209

especialmente na defesa da agricultura fami- técnico-profissionais e dos movimentos


liar e da agroecologia. sociais. Por isso, a construção social será
Uma nova agenda para as cidades no tripartite. O conhecimento técnico e o te-
Brasil deve incorporar a produção social órico-crítico permitem aprofundar temas
da saúde como um critério para a tomada complexos e desenvolver mais detalhada-
de decisões sobre investimentos públicos mente uma agenda para as cidades, no curto,
e privados, considerando a priorização no médio e no longo prazo. Todavia, a força
dos grupos historicamente vulneráveis social necessária à implementação desse
do nosso país, como: populações pobres, projeto vem do protagonismo dos movimen-
mulheres, crianças, jovens, idosos, tos sociais, sindicatos, centros acadêmicos,
pessoas com deficiências, negros, indíge- coletivos diversos, em especial aqueles par-
nas, caiçaras, Lésbicas, Gays, Bissexuais, ticipantes da democracia direta. Já temos
Transsexuais, Queer e Intersexuais. muitos desses situados em escolas, igrejas,
Também cabe a nós compreender como centros comunitários. Como já nos ensina-
se dá, nas cidades, o nó estrutural entre desi- ra Paulo Freire30, o conhecimento pode ser
gualdades de classe, raça e gênero. Isto para um instrumento de libertação. Formular
sabermos ouvir as vozes dos personagens diagnósticos e propostas para as cidades
que entram em cena e protagonizam um com adesão popular é um grande desafio e
novo ciclo de lutas: do movimento negro, ajudará a combater a massacrante domina-
dos feminismos, dos coletivos artísticos das ção ideológica protagonizada pela grande
periferias, da cultura emergente de apropria- mídia e em discursos oficiais conservadores.
ção dos espaços públicos e dos secundaristas, As universidades têm o papel fundamental
cuja disposição e irreverência surpreenderam de produzir pesquisas implicadas e, ainda,
a todos29. Ainda que enfrentem adversidades cursos e projetos de extensão acadêmica
específicas, esses atores coletivos têm pontos que incidam na realidade. Com isso, evita-
em comum: são comunidades políticas que mos também o risco secular de alienação do
clamam pela efetivação de direitos sociais e pensamento colonizado, ainda existente em
políticos, por formas inclusivas de sociabilida- parte das nossas universidades.
de e modos mais horizontais de decisão, pela Já está claro que, para realizarmos essas
cidade como arena de participação de todas e latências, será necessário assumirmos um
todos, como lugar do uso e do encontro. projeto coletivo e pactuado, com capilari-
zação, presença na opinião pública e base
social, estruturado nessa cooperação entre
Considerações finais movimentos sociais, universidades, entida-
des técnicas e profissionais.
Um projeto como o que brevemente apre-
sentamos acima não terá capacidade de
implementação apenas pela clareza de Colaboradores
sua formulação intelectual. A construção
social de uma agenda para as cidades não Maricato E, Colosso P, Comarú FA contribuí-
pode deixar de prever a convergência do ram para a concepção, análise, planejamento e
conhecimento teórico-crítico, dos saberes interpretação dos dados contidos no artigo. s

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210 Maricato E, Colosso P, Comarú FA

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Recebido em 31/07/2018
24. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cen- Aprovado em 09/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
so 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [acesso em 2018
Suporte financeiro: não houve
set 26]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.
br/.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 199-211, NOVEMBRO 2018


212 ENSAIO | ESSAY

Reforma tributária no Brasil: por onde


começar?
Tax reform in Brazil: where to begin?

Fernando Gaiger Silveira1, Luana Passos2, Dyeggo Rocha Guedes3

DOI: 10.1590/0103-11042018S316

RESUMO O debate político-econômico nacional, no período recente, tem apontado para a ne-
cessidade de o Brasil realizar reformas estruturais que o permitam sair de uma das maiores
crises econômicas de sua história. Este texto trabalha, essencialmente, com as questões que
envolvem uma Reforma Tributária para o País, realçando o arcabouço teórico que a orienta no
plano internacional (a Teoria da Tributação Ótima) e a necessidade de corrigir as principais
distorções (diretas e indiretas) oriundas do atual arranjo tributário nacional. Com base nesses
aspectos, o objetivo principal do artigo foi discutir, à luz da experiência internacional e do
acúmulo teórico e empírico da literatura nacional, caminhos que podem ser trilhados pelo
Brasil que contribuam para uma Reforma Tributária que seja ao mesmo tempo promotora
tanto de eficiência quanto de equidade. Conclui-se que uma melhor calibração do sistema
tributário brasileiro pode ser alçada com a mudança na tributação indireta a favor de um
Imposto sobre Valor Adicionado, e que a justiça fiscal, pode ser galgada acentuando a tribu-
1 Institutode Pesquisa tação sobre capital e patrimônio, em conformidade com as proposições teóricas da revisão da
Econômica e Aplicada teoria da tributação ótima.
(Ipea) – Brasília (DF),
Brasil. Centro Universitário
Grupo Educacional Ceuma PALAVRAS-CHAVE Reforma Tributária. Eficiência. Equidade. Tributação Ótima.
(Unieuro) – Brasília (DF),
Brasil. Universidade Federal
Fluminense (UFF) – Niterói ABSTRACT The national political-economic debate in the recent times has pointed to the need for
(RJ), Brasil
Orcid: http://orcid. Brazil to carry out structural reforms that will enable it to overcome one of the greatest economic
org/0000-0002-1507- crises in its history. This text deals mainly with issues involving a Tax Reform for the country,
5844
gaiger@ipea.gov.br highlighting the theoretical framework that guides it at the international level (the Optimal Tax
2 Universidade Federal
Theory) and the need to correct the main (direct and indirect) distortions arising from current
Fluminense (UFF) – Niterói national tax arrangement. Based on those aspects, the main objective of the article was to discuss,
(RJ), Brasil. in the light of international experience and of the theoretical and empirical accumulation of the
Orcid: http://orcid.
org/0000-0002-5470- national literature, the paths that Brazil can follow that contribute to a Tax Reform that is at
7349 the same time a promoter of efficiency and equity. It is concluded that a better calibration of the
luanapassos_s@hotmail.com
Brazilian tax system can be offset by the change in indirect taxation in favor of a Value-Added
3 Universidade Federal Tax, and that tax justice to be able to be increasing taxation on capital and equity, in compliance
do Sul e Sudeste do Pará
(Unifesspa) – Marabá with the theorical propositions of optimal tax theory.
(PA), Brasil.
Orcid: http://orcid.
org/0000-0003-3699- KEYWORDS Tax Reform. Efficiency. Equity. Optimal Taxation.
4468
dyeggorguedes@unifesspa.
edu.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 212-225, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Reforma tributária no Brasil: por onde começar? 213

Introdução seu baixo impacto redistributivo, é impor-


tante sublinhar os avanços alcançados em
Após a Segunda Guerra Mundial, presen- termos de construção de um Estado de Bem-
ciou-se, nos países desenvolvidos, uma Estar Social e do papel que os gastos sociais
mudança de paradigma a favor do papel obtiveram na última década em direção à
distributivo da tributação. A tributação promoção da justiça fiscal. Desse modo,
sobre a renda por meio da elevação das alí- tendo em mente o potencial da política
quotas tanto da pessoa física como jurídica fiscal, mais detidamente do gasto social para
se tornou algo importante, com a ampliação a suavização da pobreza e da desigualdade,
da oferta pública e a construção dos Estados é que se deve buscar uma reforma tributária
de Bem-Estar Social. O Brasil, com um viés inclusiva, ou seja, promotora de desenvolvi-
menos progressista em termos de alíquo- mento e equidade. Apesar da atual agenda de
tas do imposto sobre a renda do que países viés conservador, em nível global, cujo papel
desenvolvidos nesse período, ampliou sua distributivo do Estado tende a ser colocado
margem de tributação sobre os rendimen- de lado, o cenário parece ser favorável a uma
tos de 20% para 65% entre os anos de 1940 reforma tributária de cunho solidário. Tal
e a metade da década de 19601, embora com perspectiva se assenta no próprio processo
ausência de robustez na provisão dos bens de revisão que a Teoria da Tributação Ótima
públicos, fator que em muito esteve também (TTO) enfrenta, bem como das próprias de-
amparado na estrutura rural e informal da mandas florescidas nesse período de crise
economia, nos níveis elevados de desigual- fiscal e econômica pelo qual o Brasil passa.
dade, na frágil governança e qualidade ins- Posto isso, o objetivo desse texto é discutir, à
titucional, e no poder das elites econômicas. luz da experiência internacional e do acúmulo
Todavia, se por um lado o Brasil foi menos teórico e empírico da literatura nacional sobre
progressivo em termos de tributação da o tema, propostas que podem orientar uma
renda do que parte dos países desenvolvidos, Reforma Tributária no Brasil promotora de
por outro, seguiu fielmente os preceitos da eficiência e equidade. Para isso, o artigo é di-
Tributação Ótima nos anos de 1980 e 1990. Esse vidido em três seções além desta introdução
período foi marcado por alterações no sistema e das considerações finais. Na primeira seção,
tributário mundial a favor da eficiência, com- apresenta-se a teoria mainstream da tributa-
petitividade e equidade horizontal, bem como ção, a TTO, realçando suas principais críti-
pela redução dos tributos sobre o comércio in- cas. A segunda seção introduz o debate sobre
ternacional, a consolidação da tributação sobre Reforma Tributária no Brasil. Já a terceira
o valor agregado e a suavização dos níveis e da seção discorre sobre algumas propostas para
quantidade de alíquotas do imposto de renda. reformulação da tributação direta e indireta no
Assim, do ponto de vista histórico, o Brasil não País com um viés revisionista sobre a teoria tri-
aderiu, de fato, à onda favorável à promoção butária convencional.
da justiça fiscal no período de consolidação
dos Estados de Bem-Estar, porém, em sentido
contrário, optou pelo caminho da Tributação Tributação Ótima: princípios
Ótima cuja justificava seguia dois argumentos: e a hora da revisão
i) suavização da progressividade ou adoção de
um imposto de renda linear, e; ii) redução ou A TTO foi – e, em certa medida, ainda é –
eliminação da tributação sobre as rendas oriun- uma das principais bases teóricas a inspirar
das do capital2,3. a construção dos sistemas tributários em
Em que pese a estrutura ainda regressiva nível internacional. Pautada nos conceitos,
da tributação no Brasil contemporâneo e o modelos e métodos analíticos do Equilíbrio

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 212-225, NOVEMBRO 2018


214 Silveira FG, Passos L, Guedes DR

Geral da Teoria Neoclássica, tal teoria uma arrecadação muito aquém do que se
procura apontar os caminhos que devem ser pretendia. Para Lagemann5, as recomenda-
seguidos pelos sistemas tributários para que ções da Tributação Ótima dizem respeito
tenham menor efeito distorcivo na decisão à montagem de um sistema tributário que
dos agentes ao mesmo tempo que possibilita considere os distintos comportamentos da
uma arrecadação mais eficiente. demanda de bens e serviços e da oferta de
Para Barbosa e Siqueira4, o arcabouço ana- fatores de produção, estando atento ao trade
lítico da TTO tem por pressupostos os crité- off entre as soluções eficientes e justas. Em
rios de otimalidade, uma vez que considera síntese, para o autor, as proposições dessa
a especificação das preferências dos agentes teoria estão relacionadas com uma tribu-
econômicos e do bem-estar social, e a mode- tação sobre o consumo e sobre a renda. No
lagem das questões de eficiência e equidade. primeiro caso, o imposto deveria considerar
Para tanto, a solução ideal, segundo essa a regra da complementariedade na qual os
teoria, seria tributar as habilidades naturais bens complementares ao lazer devem apre-
dos indivíduos, uma característica defini- sentar maior peso da tributação do que os
dora da capacidade de adquirir renda, e que bens que apresentam menor complementa-
constitui elemento de diferenciação pessoal riedade ao tempo livre. No segundo, quando
dos contribuintes. Todavia, essas informa- houver a possibilidade de tributar a renda do
ções imprescindíveis para a determinação trabalho, devem-se aplicar alíquotas margi-
dos tributos são privadas e não estão perfei- nais nulas nos extremos inferior e superior,
tamente reveladas na economia, o que difi- apesar de a teoria não definir a alíquota para
culta a definição ótima da tributação. as faixas intermediárias de renda. Esse resul-
Se as informações privadas dos indivídu- tado deriva do pressuposto de que a oferta
os pudessem ser obtidas a um custo zero, o de trabalho se mostra elástica para os mais
governo poderia ter uma tributação perfeita habilitados, sendo sensível a alterações na
ao valer-se do lump sum tax, um imposto renda pós-tributação. Assim, alíquotas mar-
de montante fixo que é eficiente na medida ginais elevadas impactariam negativamente
em que sua arrecadação não depende do o trabalho mais qualificado e produtivo6. É
comportamento dos agentes, e, sim, de suas importante destacar que, quanto ao imposto
características. Como, na prática, isso não é de renda do capital, a Teoria considera que
possível, o governo fica restrito à utilização ele não necessariamente precisa compor o
de impostos que distorcem a decisão dos sistema tributário ideal5.
agentes e, desse modo, geram ineficiências. Entre os modelos que sustentam a TTO, o
Assim, dada a impossibilidade de utilizar pioneiro foi o de Ramsey7 que, adotando hipó-
a solução ideal do tipo lump sum, deve-se teses bem simplificadoras e levando em conta
acessar a segunda melhor solução (second apenas um agente representativo, demos-
best), qual seja, de o fisco considerar indica- tra que as alíquotas ótimas sobre consumo
dores – renda, consumo, patrimônio, entre devem apresentar relação inversa com a
outros – que lhes possibilite apreender de elasticidade-preço de demanda. Esse modelo,
modo indireto as habilidades e capacidade que considera apenas questões de eficiência
de contribuição dos indivíduos. na economia, é regressivo, dado que, pela
Uma das grandes contribuições da TTO, regra do inverso das elasticidades, os bens de
portanto, é apontar a necessidade de, na primeira necessidade, que possuem menor
elaboração dos sistemas tributários, consi- elasticidade-preço da demanda, deveriam ter
derar os efeitos distorcivos (efeito-renda e uma alíquota mais elevada.
efeito-substituição) nas decisões dos agentes Por mais de 40 anos, esse modelo teve
econômicos que, ao cabo, podem refletir em centralidade na definição da estrutura do

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Reforma tributária no Brasil: por onde começar? 215

imposto ótimo sobre o consumo, pois seu dessa Teoria é tida como frágil pelos adeptos
aprimoramento se deu apenas com o modelo da public choice, uma vez que é inconsisten-
de Diamond e Mirrlees8 cujas considera- te considerar o homem um egoísta maxi-
ções distributivas passaram a ser levadas em mizador da própria utilidade, mas que, na
conta. O modelo de Diamond e Mirrlees8, em atividade política, age como um benfeitor,
termos práticos, é uma extensão do resulta- maximizando o bem-estar social. Barbosa e
do de Ramsey7 ao considerar uma econo- Siqueira4 também destacam que, a despeito
mia com vários agentes. Com a modelagem de essa teoria propor em sua análise a combi-
desses autores, a Tributação Ótima passou nação dos critérios de equidade, simplicida-
a, de fato, incorporar o conflito entre efici- de e eficiência, pouca atenção é concedida ao
ência e equidade. Desse modo, quanto maior critério da simplicidade e essa compreende
for a preocupação social com os agentes uma de suas maiores limitações teórica.
mais pobres, menor deverá ser a variação da Gobetti6, por sua vez, ressalta outra falha
demanda desses agentes devido ao imposto. A na TTO: as recomendações em relação a não
estrutura ótima da tributação tem que buscar tributação do capital. Para o autor, a propo-
o equilíbrio entre eficiência e equidade; e, sição de que a parcela da renda poupada não
para tanto, a estrutura das alíquotas deve ser deveria ser tributada porque já o foi na forma
determinada pela seletividade, de acordo com de salários e que criaria um incentivo para
a ponderação dada aos bens consumidos pelos consumir mais renda no presente é pouco
mais pobres. Portanto, enquanto as conside- realista, o que tem feito expoentes econo-
rações apenas relacionadas com a eficiência mistas apontarem inclusive os benefícios da
apontam para uma maior tributação de bens tributação sobre a poupança.
necessários, as questões distributivas revelam É importante sublinhar que as críticas à
a necessidade de algum tipo de progressivida- TTO também devem ser encaixadas no campo
de na tributação sobre bens. dos resultados que suas proposições geraram,
Vale destacar que muitas controvérsias porque embora nenhum sistema tributário
rondam a TTO, sendo que as críticas se di- tenha sido modelado completamente confor-
recionam aos argumentos teóricos e econô- me suas orientações, as influências exercidas
micos que a sustentam, em especial, àqueles foram muitas. Nesse campo, Piketty9 e segui-
relacionados com economia do bem-estar dores dão grande contribuição ao desnudar
e com sua pouca aderência à realidade. A a concentração do capital no século XXI e a
suposição de que os indivíduos agem como premente demanda pela ressignificação da
agentes racionais, com informações plenas Tributação Ótima e seus preceitos de não tri-
e que têm livre escolha entre o trabalho e butação dos mais ricos e do capital. Gobetti6
tempo livre mudando suas decisões confor- aponta também que a espinha dorsal dos te-
me o nível que se estabeleça a tributação é oremas e modelos da Tributação Ótima tem
um exemplo dessa distância entre teoria e sido revisitada, em especial as proposições de
realidade observável. menor progressividade tributária e menor tri-
Além dos problemas de essência, a TTO butação das rendas do capital, tanto por eco-
é limitada, pois desconsidera em sua mode- nomistas neoclássicos da nova geração como
lagem os custos administrativos, incerteza pelos da velha guarda.
e objetivos macroeconômicos. Ademais, Nos momentos de crise, como a que o
ela não define claramente quais devem ser mundo enfrenta atualmente, as teorias e suas
as alíquotas dos impostos sobre consumo prescrições são analisadas e revistas em seus
e renda. Corroborando essas ideais, alcances e fragilidades, não estando a TTO
Lagemann5 aponta que a presumida ordem alheia a essa realidade. Assim, uma onda de
política e aplicabilidade das recomendações reformas propostas por uma corrente, por

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216 Silveira FG, Passos L, Guedes DR

assim dizer, mais progressista da TTO tem crescimento econômico, e que seu emprego
colocado em relevo a necessidade de majo- é fundamental para se reduzir a desigual-
ração da tributação do capital, do patrimônio dade de renda. Esse debate, no entanto, não
e das altas rendas das pessoas físicas, com parece ofuscar o papel central dos gastos
reflexos positivos tanto para a justiça como públicos sociais para promoção da equidade,
para a arrecadação fiscal. apenas se coadunando com a busca de uma
Tendo em mente esse cenário de propos- sociedade mais justa e solidária.
tas mais favoráveis à equidade pela própria No caso brasileiro, as resistências e dis-
TTO, que por muito tempo foi completa- sensos em relação a uma reforma tributá-
mente avessa ao uso da tributação para fins ria perpassam diversos setores e grupos de
distributivos, cabe ponderar a tônica da interesses que terão perdas se as mudanças
reforma tributária brasileira, o que será en- tiverem a tônica internacional. Assim, há
vidado na próxima seção. bloqueios, pelos mais e menos conservado-
res, tanto na direção de uma reforma tributá-
ria que reduza a carga dos tributos indiretos
Reforma Tributária no como uma que amplie a tributação sobre a
Brasil: o debate renda da pessoa física e sobre a riqueza. Os
argumentos evocados são que, dado o nível
Não sintonizado com o movimento inter- de renda, o grau de informalidade e a ne-
nacional, as ideias e interesses presentes no cessidade de atração de capitais/poupanças,
debate da reforma tributária brasileira não não parece salutar alterar significativamente
acompanham o movimento de renovação do a composição da carga, devendo a reforma se
pensamento dominante na mesma propor- concentrar em dois problemas: o caráter dis-
ção. Essa revisão da tributação tem se dado funcional dos tributos indiretos e a hetero-
tanto na TTO como nas proposições de orga- geneidade de tratamento das contribuições
nismos multilaterais em relação à progressi- sobre salários e rendimentos para o finan-
vidade tributária, com foco na tributação sobre ciamento previdenciário. Ou seja, defendem
a pessoa física, em especial nos rendimentos a harmonização da tributação indireta, com
não relacionados com o trabalho, rendimen- base no valor adicionado e no destino do
tos do trabalho e de aposentadorias. Ademais, produto, e sustentam que se pode reduzir o
esses atores vêm defendendo que alíquotas custo das contribuições sobre a folha com
marginais superiores e a tributação sobre o alterações no sistema de proteção social.
capital não implicam perdas de eficiência como Há bloqueios na reforma também por
outrora se imaginava10. Essa mudança se con- parte dos próprios defensores da justiça
solida não pela ruptura com o arcabouço analí- fiscal, pautada no receio de que as mudanças
tico da TTO, mas com seu enriquecimento com regridam a provisão afiançada pelo Estado
hipóteses mais realistas e com a incorporação de Bem-Estar. Nesse terreno, são aciona-
de contribuições da economia comportamental das preocupações com a dissociação entre
e da desigualdade. Diamond e Saez11 chegam os tributos e contribuições com as políticas
a alíquotas máximas para a pessoa física da sociais, que para esses atores é imperativo
ordem de 60%, considerando elasticidades para a sua manutenção.
oferta de trabalho não tão elevadas – menores No entanto, que muitas vezes fica escamo-
de 0,9 – e baixo grau de elisão6. teado no debate em relação à provisão estatal
O debate mundial sobre tributação hoje é a captura de certos benefícios fiscais pelas
comparece mais consensual em relação à elites econômicas, e a própria regressivi-
conclusão de que a tributação progressi- dade que esteia os gastos. Embora hoje o
va sobre a renda não implica obstáculos ao país conte com um sistema previdenciário,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 212-225, NOVEMBRO 2018


Reforma tributária no Brasil: por onde começar? 217

de educação básica e de saúde pública com expressivas no sistema tributário, pois a


índices de cobertura muito expressivos, o mudança na composição pode afetar as fi-
perfil do financiamento é regressivo. Isso nanças dos governos, as rubricas de gastos, os
porque suas fontes de financiamentos são setores produtivos e as regiões. Efetivamente,
os tributos sobre o consumo e sobre a folha. coloca-se em cheque alterações no atual
Efetivamente, o PIS/Cofins (Programa desenho do sistema em razão das incertezas
de Integração Social/Contribuição para o quanto aos seus efeitos na arrecadação e na
Financiamento da Seguridade Social) e o discricionariedade dos entes federados, bem
Imposto sobre Circulação de Mercadorias como nas fontes de financiamento das po-
e Serviços (ICMS) são fundamentais no fi- líticas públicas, notadamente as de caráter
nanciamento da seguridade, da educação e social. Tais inseguranças implicam, assim,
da saúde públicas, respectivamente; e, como pouca disposição em sustentar mudanças no
dito, os principais gastos sociais contam arcabouço tributário, mesmo naquilo que se
com arcabouço legal em que as vinculações conta com grande consenso ou necessidade.
a fontes específicas de financiamento têm Por conseguinte, não há como realizar
papel central, o que se observa, por exemplo, uma reforma tributária sem processar alte-
no financiamento da seguridade (previdên- rações no desenho do financiamento das po-
cia, assistência e saúde), no salário educação líticas sociais e nas obrigações e capacidades
e nos mínimos constitucionais para educa- dos entes federados.
ção e saúde. Tem-se, portanto, um conjun- No atual quadro, é possível alimentar es-
to de vinculações entre fontes – tributos e peranças de mudanças em duas direções que
contribuições – e rubricas de gastos, o que se coadunam com as tendências observadas
torna a estrutura de gastos bastante rígida. nos países centrais, são elas: i) o fortaleci-
Logo, ao se buscar alterar a composição dos mento do Imposto sobre Valor Agregado (IVA)
tributos, há que se propor necessariamente com ampliação da base de incidência, em que a
alterações nas regras e vinculações relativas tributação sobre serviços e a economia digital
ao gasto social. O que, implica, por outro se destacam, e; ii) a redução dos tratamentos
lado, mudanças nas relações federativas, diferenciados aos rendimentos de pessoas
pois a harmonização e a redução da tributa- físicas oriundos do capital. Concretamente, é
ção indireta reduzem a discricionariedade de se esperar que sejam harmonizados os tri-
dos estados e municípios que, junto com o butos indiretos e que a tributação sobre a renda
crescimento de importância dos impostos atinja aos lucros e dividendos distribuídos. Não
sobre renda e riqueza, alteram a importância se pode creditar esse relativo consenso na tri-
das bases de incidência e o peso das transfe- butação de lucros e dividendos aos novos ares
rências entre os entes. Ademais, não se tem do mainstream econômico, mas, sim, à necessi-
segurança quanto aos efeitos sobre o volume dade de ampliar os recursos fiscais, dada a si-
de recursos disponíveis aos entes subnacio- tuação crítica das contas governamentais. Essa
nais e para as políticas sociais. Sendo assim, mudança pró-equidade em função da situação
as pactuações necessárias para uma reforma fiscal ocorreu, recentemente, em estados e mu-
tributária não são, em nada, triviais, na nicípios que, com alterações nas alíquotas e na
medida em que podem afetar privilégios e progressividade do Imposto de Transmissão e
proteções asseguradas na Carta Magna. Causa Mortis e Doação (ITCMD) e do Imposto
Cabe apontar ainda que, dado o tamanho Predial e Territorial Urbano (IPTU), amplia-
da carga tributária nacional, quando com- ram as receitas desses impostos.
parado a países de renda similar, os diver- Em relação às contribuições sobre a folha
sos atores sociais se mostram reticentes salarial, o debate se concentra na necessi-
em apoiar efetivamente mudanças mais dade de ampliar as fontes de financiamento

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218 Silveira FG, Passos L, Guedes DR

da previdência social, uma vez que o quadro porém observa-se, no cenário internacional,
atual e as tendências no mercado de traba- a criação de tributos de corte ambiental e do
lho vêm fragilizando as fontes de tributação emprego da taxação sobre exportações de pro-
ligadas às relações assalariadas. Ademais, dutos primários com baixo valor agregado.
os tributos e contribuições incidentes sobre
a folha salarial impactam negativamente
a competitividade dos bens e serviços no Em busca da eficiência
mercado internacional, pois não é possível a e equidade: a reforma
desoneração das contribuições sobre a folha,
em razão da impossibilidade de individuali-
necessária para o Brasil
zá-las por bem ou serviço.
É com esse norte que se assiste às mu- Propostas para reformulação da tri-
danças no financiamento da proteção social butação indireta
em direção ao emprego de outras bases tri-
butárias, como o IVA e o Imposto de Renda Como destacam os manuais de finanças
de Pessoa Física (IRPF). No caso brasileiro, públicas, o IVA constitui o mecanismo par
a desoneração das contribuições patronais excellence de neutralidade tributária, uma
sobre a folha, instituídas a partir de 2012, vez que incide sobre todas as etapas do
buscava melhorar as condições de competiti- processo de produção independentemen-
vidade da economia afetada pela continuada te da sua organização. Considerando esse
valorização cambial. A experiência das de- aspecto relacionado com um imposto sobre
sonerações, assim como da constituição do o consumo de bens e serviços e com a atual
regime tributário simplificado para as micro composição da carga tributária brasilei-
e pequenas empresas (Simples), mostra o ra, cuja centralidade da arrecadação está
risco de medidas voltadas para determina- baseada na tributação indireta, o debate em
dos setores e tipos de empresas de serem torno de uma reforma do sistema tributário
capturados por outros grupos que não o nacional deve: i) considerar propostas que
público objeto desses benefícios tributários. visem corrigir o atual peso da composição
Assim, as desonerações que se destinavam dos tributos indiretos e diretos na carga tri-
em sua origem a três setores, os mais afeta- butária total do País, sem prejudicar a sus-
dos pela competição internacional, foram tentabilidade entre receitas e gastos, e; ii)
sendo concedidas a outros setores produti- reorganizar a estrutura de regimes especiais
vos, chegando a atingir dezenas deles. Já no como isenções e incentivos fiscais por meio
caso do Simples, o limite de faturamento da de uma reformulação simplificadora baseada
empresa para inscrição no regime é de cerca na fusão de tributos sobre bens e serviços e
de US$ 1,2 milhão, quase dez vezes supe- criação de um IVA em linha com a experi-
rior ao segundo maior limite em vigor nos ência tributária internacional. Assim, a apre-
países que contam com programas similares. sentação de uma reforma tributária baseada
Mudanças no sentido de reduzir os setores nas alterações instrumentais do atual arranjo
beneficiados pela desoneração da folha e o de tributação indireta no Brasil destaca
limite de faturamento apresentam enormes algumas ideias essenciais relacionadas com
obstáculos políticos, com a produção legis- o princípio do destino, a base de cálculo do
lativa recente atuando em sentido contrário. imposto, alíquotas, bem como aspectos que
Por fim, a discussão sobre tributos am- consideram fiscalização e arrecadação.
bientais e dos incidentes sobre a exporta- Diferentemente dos padrões internacionais,
ção de commodities tem presença marginal que adotam, em sua maioria, o IVA como prin-
no debate da Reforma Tributária brasileira, cipal imposto sobre o consumo, a tributação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 212-225, NOVEMBRO 2018


Reforma tributária no Brasil: por onde começar? 219

sobre bens e serviços no Brasil é feita com base para definição delas. Vale destacar que esses
em quatro tributos, são eles: i) PIS/Cofins e são apenas alguns exemplos que contribuem
o Imposto sobre Produtos Industrializados para a atual complexidade do sistema tributá-
(IPI), que competem a União, e; ii) o ICMS e o rio nacional sobre bens e serviços. Com vistas
Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, a corrigir alguns desses problemas, a adoção de
ISS(QN), que são, respectivamente, de compe- um modelo novo de tributação no País passa,
tência dos estados e municípios. necessariamente, pela reformulação da tribu-
Em linhas gerais, o regime do PIS/Cofins tação indireta por meio da adoção de um IVA
tem ampla base de tributação, incide apenas que incida sobre todas as operações que envol-
sobre as empresas e é dividido em dois, vam os bens e serviços. No entanto, para evitar
um cumulativo e outro não cumulativo. efeitos distorcivos principalmente no lado da
Enquanto o regime cumulativo aplica uma arrecadação e, como já apontado, desequilíbrio
alíquota de 3,65% sobre a receita da empresa político em função das necessidades dos entes
e incide sobre todas as etapas do proces- federados, é importante que as mudanças, ao
so de produção, o regime não cumulativo, invés de pontuais – marca histórica da estrutu-
criado em substituição ao regime cumulati- ra tributária recente15 –, sejam feitas de modo
vo, entre os anos de 2003 e 2004, aplica uma gradual, ou ‘fatiado’, com objetivos bem defini-
alíquota de 9,25% sobre o valor adicionado. dos de curto, médio e de longo prazo.
Os setores industriais, de cadeia produtiva Desse modo, primeiro haveria a neces-
longa, durante o tempo, migraram para o sidade de racionalizar a gestão por meio da
regime não cumulativo, enquanto o setor de distribuição das competências pela especia-
serviços permanece no regime cumulativo. O lização das bases, ou seja, ao invés de manter
IPI, por sua vez, apesar de não ser cumulati- a União responsável por todas as bases, as
vo, possui muitas alíquotas, e a incidência é competências seriam distribuídas entre os
definida por uma tabela específica e bastan- entes da federação por base de incidência do
te detalhada. Além disso, apesar de incidir tributo, o que permitiria a especialização das
sobre a industrialização, ocorre indefinição administrações tributárias, dotando-as de
acerca de onde termina o aspecto industrial mais eficiência na execução das atividades de
do produto e onde começa o da distribui- fiscalização e arrecadação. Diferentemente
ção – em específico, tais indefinições geram do modelo atual, essa nova distribuição man-
contencioso12 que é contornado, em geral, teria a União responsável pelos tributos rela-
por regimes especiais. Ademais, o ISS(QN) é cionados com a renda, com a previdência e
um tributo cumulativo que onera os investi- com os regulatórios, como a Contribuição de
mentos e cuja indefinição a respeito de onde Intervenção no Domínio Econômico (Cide),
termina a sua incidência se confunde com a por exemplo, enquanto os estados seriam
base de incidência do ICMS13. responsáveis pelos de consumo e de previ-
Além desses fatores que tornam o sistema dência dos seus funcionários; e os municí-
tributário nacional complexo, contudo, pios, por aqueles relacionados à propriedade
soma-se a eles: i) o elevado tempo despendido e previdência dos seus servidores.
com obrigações tributárias acessórias (2.600 Segundo, no atual modelo, o imposto sobre
horas/ano, mais que o dobro do segundo co- circulação de mercadorias é cobrado de
locado no ranking do Banco Mundial); ii) a maneira dividida, ou seja, no estado de origem
‘Guerra Fiscal’, e; iii) a quantidade de normas destas, o que equivale a tributar a produção, e
tributárias vigentes – mais de 25 mil normas no destino das mercadorias, o que equivale a
atualmente, segundo o Instituto Brasileiro de tributar o consumo. Essa característica cria
Planejamento Tributário (2016)14 – cuja princi- fortes estímulos para que os estados utilizem
pal causa é a liberdade dos entes da federação o imposto com outras finalidades que não a de

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220 Silveira FG, Passos L, Guedes DR

arrecadação tributária. No País, esses estímu- nesse novo arranjo tributário. Nesse quesito,
los têm contribuído para a conhecida ‘Guerra a legislação deve ser precisa para garantir
Fiscal’ que, apesar de ilegal, tornou-se prática simplificação para o contribuinte e capacida-
comum entre os estados. Assim, uma medida de de fiscalização dos órgãos competentes14.
que corrigiria tal distorção seria utilizar um Por isso, seria importante uma legislação
IVA que prezasse apenas pelo princípio do única que abrangesse os dois tributos, garan-
destino na tributação. tindo a autonomia dos Estados para fixar as
Terceiro, para evitar o problema da cumu- alíquotas, harmonizando os interesses dos
latividade e não neutralidade na tributação entes da federação e dos contribuintes.
sobre o consumo, bem como ampliar os ob- Ademais, é importante ponderar que tais
jetivos arrecadatórios, a base de cálculo do medidas, mesmo que corrijam as distorções
imposto deve ser ampla e clara, qual seja: o relacionadas com a neutralidade do tributo,
IVA deve incidir sobre o valor das operações devem compensar seus efeitos regressivos.
com bens e serviços – lidando também, como A ampla base de incidência com aplicação
anteriormente esboçado, com a nova econo- de uma ou poucas alíquotas implicará a re-
mia da informação (bens intangíveis etc.) – oneração dos chamados produtos da cesta
e descontar o imposto pago nas operações básica, beneficiados por desonerações e
anteriores da cadeia de produção. Além de isenções pelo governo federal e por várias
garantir que o tributo incida apenas sobre unidades da federação e poderia alcançar
o valor agregado dos produtos, tal medida também os serviços que atualmente são
tornaria o sistema mais simples, pois não pouco tributados. É por conta desses riscos
restringiria o ressarcimento do crédito dos que se defende que tais alterações sejam re-
valores pagos ao longo da cadeia (salvo nos alizadas de maneira gradual e que se façam
casos de exceção) e, por consequência, faria acompanhar de outras que permitam reduzir
com que o sistema fosse eficaz. o peso dos tributos indiretos, como a amplia-
Em acordo com as medidas anteriores, a ção da tributação sobre a renda, a riqueza e o
quarta e quinta medidas deveriam enfatizar a patrimônio, tema da subseção que se segue.
alíquota do IVA e os aspectos relacionados com Logo, uma reformulação que respeitas-
a legislação, fiscalização e arrecadação. O IVA se, de modo geral, tais medidas e que fosse
ideal, como aponta a literatura, segue com alí- realizada de modo gradual, considerando
quota única ou com poucas alíquotas para não as dificuldades políticas e econômicas que
distorcer o tributo. A Dinamarca adota uma alí- envolvem os diversos atores da sociedade,
quota única de 25%, enquanto Portugal, Irlanda traria benefícios, pois: i) tornaria o sistema
e Bélgica, por exemplo, possuem três tipos de de tributação indireta do Brasil mais enxuto;
taxas para o IVA, a normal, a intermediária e a ii) melhoraria a qualidade das normas tribu-
reduzida. As dificuldades de aplicação de uma tárias bem como a sua interpretação, e; iii)
taxa única no Brasil, como destacadas, são di- dada a racionalidade a que estaria subme-
versas, desde a necessidade de arrecadação de tido, garantiria maior segurança jurídica às
cada ente da federação, bem como as especifi- relações de produção e comércio nacional.
cidades dos bens e serviços prestados etc. Uma
opção que contornaria tais divergências no País Propostas para reformulação da tri-
seria a adoção de dois IVA, um federal e outro butação direta
subnacional, os quais consolidariam as bases do
PIS/Cofins, ICMS e ISS(QN), respectivamente. Dois fatos chamam a atenção no que diz
Além disso, alguma forma de tributação se- respeito à tributação direta no Brasil: a redu-
letiva sobre bens cujo consumo traz consigo zida expressão do IRPF e o peso relativo da
externalidades negativas deve ser desenhada tributação incidente sobre a pessoa jurídica.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 212-225, NOVEMBRO 2018


Reforma tributária no Brasil: por onde começar? 221

Efetivamente, enquanto os tributos sobre a rendimentos anuais superiores à R$ 1.301,8


renda da pessoa física respondem por menos mil –, cerca de 160 salários mínimos anuais.
de 10% da carga tributária brasileira, para Há que sublinhar ainda a opacidade entre
a média dos países da Organização para a os rendimentos do trabalho e do capital de-
Cooperação e Desenvolvimento Econômico corrente da transmutação de pessoa física
(OCDE), essa participação é da ordem de em pessoa jurídica que os sistemas simplifi-
um quarto. Por outro lado, a participação cados de tributação possibilitam, tornando
dos tributos sobre a renda da pessoa jurídi- rendimentos caracteristicamente do traba-
ca é bastante semelhante, ao redor de 9% da lho, logo sujeitos à tributação progressiva,
carga tributária. Adiciona-se a isso a reduzi- em rendimentos do capital, que contam com
da importância dos tributos patrimoniais na isenção do imposto de renda. Efetivamente, a
carga tributária, em especial nos recorren- isenção dos rendimentos oriundos de lucros
tes – IPTU e Imposto sobre a Propriedade e dividendos distribuídos e dos ganhos
Territorial Rural (ITR) – e nos incidentes de sócios de micro e pequenas empresas
sobre a riqueza – ITCMD e Imposto sobre tornam inúmeras relações de trabalho e as-
Grandes Fortunas (IGF). Concretamente, no salariamento em relações de caráter comer-
caso brasileiro, esses tributos patrimoniais cial, com os rendimentos se configurando
respondem por 2% da carga tributária, ao como oriundos de lucros e dividendos. Esse
passo que, na média dos países da OCDE, tal fenômeno denominado de ‘pejotização’ não
participação é superior a 4%. se deve, no entanto, somente à menor one-
É patente, portanto, a baixa tributação ração sobre os rendimentos do capital, mas,
sobre a renda da pessoa física no Brasil, que também, pela possibilidade de se reduzir os
se deve, de um lado, às isenções, com desta- custos com os tributos destinados à previ-
que para a concedida aos lucros e dividen- dência, no caso, as contribuições incidentes
dos distribuídos, as deduções e a reduzida sobre a massa salarial.
alíquota marginal superior. De outro, o nível Assim, as propostas de alterações na tri-
de renda e o grau de informalidade da eco- butação direta passam necessariamente
nomia nacional reduzem a base de incidên- por combater a suboneração das rendas
cia do IRPF, característica sublinhada por do capital na pessoa física, mas, também,
aqueles analistas que sustentam não haver pela redução da tributação incidente sobre
espaço para o crescimento da tributação a folha, pelo aprimoramento, por meio da
sobre a renda da pessoa física. Ainda que se melhor focalização, das políticas de inclu-
conte com esse limite quanto ao universo são previdenciária e fiscal, e pela conces-
da população objeto do imposto de renda, o são de benefícios fiscais relacionados aos
tratamento preferencial aos rendimentos do investimentos. Outrossim, como no caso
capital e o cipoal de deduções e isenções res- dos tributos indiretos que se busca reduzir
pondem de modo substancial pela reduzida e harmonizar, as mudanças na tributação
participação do imposto de renda e por sua direta requerem alterações nos esquemas de
atenuada progressividade. Gobetti e Orair1 financiamento e de gestão das diversas polí-
mostram, com base nos dados do ano calen- ticas públicas: educação, saúde, previdência,
dário 2013, quão reduzidas são as alíquotas assistência, entre outros.
efetivas, com os maiores valores situando- No que concerne ao IRPF, o fim da isenção
-se ao redor de 12% para os declarantes com de lucros e dividendos e dos rendimentos/
renda anual entre R$ 162,7 mil e R$ 325,4 lucros dos sócios de micro e pequenas em-
mil – ao redor de 20 a 40 salários mínimos presas é o primeiro passo que se concreti-
mensais. A partir de então se reduzem, che- zará em curto espaço de tempo, mais, como
gando a somente 6,7% para as pessoas com dito, pela necessidade de buscar fontes de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 212-225, NOVEMBRO 2018


222 Silveira FG, Passos L, Guedes DR

arrecadação no atual momento de crise fiscal pessoa física apresenta baixa incidência e pro-
do que pelos efeitos redistributivos. Como gressividade, a incidente sobre a pessoa jurí-
tais rendimentos serão tributados é assunto dica conta com alíquotas estatutárias bastante
controverso, havendo, grosso modo, duas elevadas – 34% – ante a experiência internacio-
propostas: aplicar a tabela progressiva ou nal, o que, contudo, não se reflete nas alíquotas
tributar linearmente em 15%, que é a alíquo- efetivas que, em razão do variado espectro de
ta modal aplicada aos ganhos realizados em regimes e benefícios, encontram-se, em grande
operações nos mercados financeiros. Pode- parte dos casos, em patamares inferiores.
se, assim, preservar determinados benefícios Soma-se a isso o fato de que existem diferentes
para os rendimentos de capital na pessoa tratamentos aos rendimentos do capital com
física ou tratar igualmente as duas fontes de viés favorável aos ativos financeiros perante os
renda. Vale destacar que, mesmo, nos países ativos produtivos16.
que seguem o modelo amplo, concedem-se Com base nesse cenário, sustenta-se que
benefícios aos ganhos de capital de longo se deve buscar, como já apontado, a redução
prazo e a outras modalidades de poupança. da tributação incidente sobre a pessoa ju-
Há um leque de modelos duais, que se distin- rídica, a eliminação dos tratamentos dife-
guem pelos tipos de tratamento concedidos renciados aos rendimentos do capital e a
a determinados rendimentos do capital, com melhor calibragem dos sistemas tributários
destaque para aplicação de alíquotas e/ou simplificados, que, associados à tributação
progressividade menores ou mais brandas, e sobre lucros e dividendos e à redução dos
para a aplicação de alíquotas proporcionais a benefícios decorrentes das deduções com os
rendimentos selecionados. gastos em saúde e educação e das isenções
A tributação sobre os rendimentos do capital aos rendimentos oriundos de aposentadorias
na pessoa física requer avaliar o desenho da e pensões, tornaria a tributação direta mais
tributação sobre a pessoa jurídica. Os modelos progressiva, reduziria as possibilidades de
duais, ao concederem determinados benefícios transfiguração da pessoa física em jurídica,
aos rendimentos do capital na pessoa física, ob- concederia tratamento diferenciado para os
jetivam integrar a tributação da renda da pessoa investimentos e aprimoraria a focalização
física com a tributação da pessoa jurídica, com dos benefícios dos regimes simplificados nas
vistas a dar coerência à tributação sobre os ren- micro e pequenas empresas.
dimentos do capital, conceder tratamento iso- Com essas alterações, a criação de novas alí-
nômico às diferentes fontes de renda, reforçar quotas marginais superiores aos atuais 27,5%
a progressividade dos rendimentos do trabalho implicaria maior arrecadação e progressivida-
e aos retornos excedentes da poupança. Fala-se de do IRPF. Propõe-se a criação de três novas
em modulação da tributação do capital, ou alíquotas: de 32,5% para rendimentos mensais
seja, equalizar a oneração do capital tributado superiores à R$ 8 mil, de 37,5% para rendimen-
na pessoa jurídica e física às outras fontes de tos acima de R$ 20 mil e, por último, de 40%
renda. Em outras palavras, não tornar a tribu- para os rendimentos que superem à R$ 40
tação conjunta – nas pessoas jurídica e física mil. Somente a tributação progressiva sobre
– incidente sobre o capital superior a incidente os lucros e dividendos do IRPF implicaria um
sobre outras fontes de renda. É isso o que reali- crescimento da arrecadação da ordem de 25%
zam aqueles países que tributam o lucro/renda e uma redução do Índice de Gini da renda das
da pessoa jurídica a uma alíquota linear e em pessoas adultas de cerca de 3%17.
sua distribuição para as pessoas físicas oneram Com relação aos impostos patrimoniais, a
esses rendimentos com base em uma tabela reduzida importância desses na carga tributá-
mais branda nas alíquotas e na progressividade. ria nacional decorre da defasagem dos valores
No caso brasileiro, se a tributação sobre a dos imóveis nos registros administrativos das

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 212-225, NOVEMBRO 2018


Reforma tributária no Brasil: por onde começar? 223

prefeituras, da fragilidade das administrações progressivas. Em outras palavras, deve-se


fiscais da maior parte dos municípios, dos empregar a tributação sobre tais imóveis
obstáculos legais à progressividade e ao nível como um mecanismo que dificulte seu uso
das alíquotas, entre outros. A defasagem das de modo especulativo e antissocial.
plantas de valores dos imóveis é presente na
maioria dos munícipios, mesmo naquelas
com administrações tributárias mais capaci- Considerações finais
tadas, e pode ser, em grande medida, credita-
da aos empecilhos políticos e jurídicos para a Para discutir os caminhos que podem ser aces-
sua atualização. A experiência demonstra que sados para melhoria da política fiscal no Brasil,
todos os prefeitos que buscaram incrementar este trabalho buscou apontar as incongruên-
a tributação do IPTU tiveram dificuldades cias do sistema tributário e os elementos que
em aprovar as medidas nas casas legislativas, afastam o País das boas práticas internacionais,
com casos de votos contrários das bancadas tanto em termos de eficiência quanto em equi-
de esquerda na oposição. Isso quando não so- dade, bem como realçar algumas medidas que
freram ações judiciais que impediram a con- têm potencial de contribuir para sua melhoria
cretização das mudanças. em ambas as direções.
No caso do imposto sobre heranças e Como visto, a ineficiência do sistema tri-
doações – o ITCMD –, conta-se hoje com butário brasileiro se apresenta em diversos
a limitação legal – constitucional – da alí- aspectos que vão desde a complexidade dos
quota máxima de 8%, quando na maioria tributos até especificações mal calibradas e
dos países as alíquotas superiores chegam a peso desproporcional sobre a pessoa jurídi-
atingir 40%/50%. Ademais, até recentemen- ca. Além disso, a confusão de tributos e le-
te o judiciário não autorizava a aplicação de gislação complexa torna o sistema tributário
alíquotas progressivas tanto no IPTU como brasileiro custoso, pouco eficiente e de difícil
no ITCMD, o que implica a quase neutrali- compreensão. Outro fator é a ênfase tribu-
dade do IPTU, segundo os dados da Pesquisa tária brasileira sobre os bens e serviços que
de Orçamentos Familiares de 2008/0916. Há, são, via de regra, mais sensíveis aos ciclos
portanto, que se alterar a legislação com a econômicos e, por isso, contribuem para um
elevação da alíquota máxima do ITCMD caráter pró-cíclico da arrecadação fiscal. A
para um patamar da ordem de 30%, bem delegação da tributação de bases móveis às
como a aplicação de alíquotas progressivas instâncias regionais também tem originado
segundo o valor do espólio ou doação. conflitos federativos ao possibilitar guerra
No que concerne aos impostos recorren- fiscal. Ademais, as empresas brasileiras são
tes sobre o patrimônio imobiliário – IPTU e em excesso oneradas na tributação, com
ITR, propõe-se aplicar as normas constitu- incidência sobre a folha de pagamentos
cionais quanto ao cumprimento da função estando acima de 40% ao se considerar as
social da propriedade, seja urbana, seja contribuições previdenciárias do empregado
rural, com a aplicação de sanções – maiores e do empregador, o seguro acidente, o Fundo
alíquotas – aos imóveis que não atendem de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS),
a esse princípio. Concretamente, imóveis o salário educação e as contribuições do
urbanos desocupados, terrenos sem utiliza- Sistema S. Esse leque de tributos tem efeitos
ção e estabelecimentos agropecuários com distorcivos para o crescimento econômico ao
baixa utilização das terras, uso de mão de fragilizar a competitividade das empresas,
obra em condições similares à escravidão e incentivar a informalidade e a elisão fiscal.
em descumprimento das normas ambientais A solução para equacionar esses proble-
devem ser objeto de alíquotas majoradas e mas destacou, portanto, a necessidade de

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224 Silveira FG, Passos L, Guedes DR

uma reforma tributária simplificadora, por simultaneamente em prol de sociedades mais


meio da fusão (ou substituição) de vários justas e solidárias. As propostas, portanto,
tributos por um IVA e por uma reforma pari vão na direção de aprimorar o sistema tri-
passu na tributação direta (renda e riqueza). butário brasileiro promovendo, concomitan-
Tendo em vista que a essência do IVA é a temente, eficiência e equidade. Entende-se,
neutralidade, entende-se que o arranjo de contudo, que ainda falta disposição política e
medidas propostas tem franco potencial de mobilização social para essa batalha.
favorecer o crescimento econômico, uma
vez que soluciona o problema da cumula-
tividade, simplifica o sistema tributário e Colaboradores
suaviza a guerra fiscal. Por outro lado, dado
que a mudança no IVA sozinha não implica Silveira FG, Passos L e Guedes DR contribu-
a melhora distributiva do sistema, destacou- íram para a concepção e planejamento, para
-se aqui medidas que contribuem para essa elaboração do rascunho, revisão crítica e
direção por reformar o IRPF e os demais aprovação final do manuscrito.
impostos que incidem sobre a riqueza acu-
mulada dos indivíduos.
Por fim, vale sublinhar que o mundo Agradecimentos
aparenta estar adentrando em um novo pa-
radigma da tributação, no qual eficiência e Os autores agradecem a Pedro Henrique
equidade não são mais vistos como um trade Oliveira de Souza pelo auxílio na formatação
off, mas um objetivo que pode ser alçado inicial do texto. s

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Reforma tributária no Brasil: por onde começar? 225

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Recebido em 16/08/2018
Fiscal Monitor: Tackling Inequality. Washington, Aprovado em 17/09/2018
Conflito de interesses: inexistente
October 2017.
Suporte financeiro: não houve

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 212-225, NOVEMBRO 2018


226 ENSAIO | ESSAY

Avaliação no SUS: uma crítica à ideologia do


produtivismo no capitalismo contemporâneo
Evaluation of the Unified Health System: a critique of the
productivism ideology in contemporary capitalism

Luci Maria Teston1, Áquilas Mendes2, Leonardo Carnut3, Virginia Junqueira4

DOI: 10.1590/0103-11042018S317

RESUMO A atual fase do capitalismo é marcada por uma crise que atinge profundamente a eco-
nomia em uma perspectiva global. As soluções escolhidas para amenizar os seus efeitos envolvem
a adoção, pelas políticas austeras, de enérgicas reduções no gasto público, especialmente no gasto
relacionado com as políticas sociais, impactando a saúde e, consequentemente, o processo de ava-
liação em saúde. Imersa nessa fase de crise do capitalismo com predomínio do capital financeiro, a
avaliação em saúde tende a ser permeada pela lógica utilitarista, refletindo a ideologia do produti-
vismo, ao ser pautada pelas leis de mercado, em que a saúde de uma população é medida por meio
do consumo de serviços e produtos médico-hospitalares, o que não significa, necessariamente, me-
lhoria das condições de saúde dessa população. Nesse cenário, vem se tornando essencial a constru-
ção de uma crítica ao processo produtivista. Para isso, dialoga-se com a literatura crítica, mediante
uma interpretação marxista do processo atual, no sentido de repensar a política de avaliação em
1 Universidade Federal do saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Entende-se que a avaliação em saúde deve se
Acre (Ufac) – Rio Branco constituir em uma prática social, não se limitando a cumprir regras e normas, mas ser uma ferra-
(AC), Brasil.
Orcid: https://orcid. menta para a consolidação da democracia, afirmação de direitos e empoderamento dos cidadãos.
org/0000-0002-9565-
6162
luci_teston@hotmail.com PALAVRAS-CHAVE Capitalismo. Política de saúde. Avaliação em saúde. Sistema Único de Saúde.
2 Universidade de São

Paulo (USP) – São Paulo ABSTRACT The current phase of capitalism is marked by a crisis that deeply affects the economy in
(SP), Brasil. a global perspective. The solutions chosen to mitigate their effects involve the adoption, by austere
Orcid: http://orcid.
org/0000-0002-5632- policies, of strong reductions in public spending, especially in the spending related to social policies,
4333 impacting health and, consequently, the health evaluation process. Immersed in this phase of crisis of
aquilasmendes@gmail.com
capitalism with a predominance of financial capital, health evaluation tends to be permeated by utili-
3 Universidade Federal de tarian logic, reflecting the ideology of productivism, being is ruled by market laws, where the health of a
São Paulo (Unifesp) - São
Paulo (SP), Brasil. population is measured by means of the consumption of services and medical-hospital products, which
Orcid: https://orcid. does not necessarily mean an improvement in the health conditions of that population. In that scenario,
org/0000-0001-6415-
6977 the construction of a critique of the productivist process has become essential. In order to do so, we are
leonardo.carnut@gmail.com in dialogue with the critical literature, through a Marxist interpretation of the current process, in order
4 Universidade Federal to rethink the health evaluation policy within the Unified Health System (SUS). We believe that health
de São Paulo (Unifesp) – evaluation should be a social practice, not just complying with rules and standards, but being a tool for
Santos (SP), Brasil.
Orcid: https://orcid. consolidating democracy, affirming rights and empowering citizens.
org/0000-0002-7921-
5682
virginiaj@uol.com.br KEYWORDS: Capitalism. Health policy. Health evaluation. Unified Health System.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 226-239, NOVEMBRO 2018 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Avaliação no SUS: uma crítica à ideologia do produtivismo no capitalismo contemporâneo 227

Introdução ideia de bem-estar social. Como admitimos


que, nessas circunstâncias, o trabalhador
O Sistema Único de Saúde (SUS), desde antes será cada vez mais explorado em sua situação
do seu nascedouro, nunca vivenciou um de expropriação5, o processo de avaliação
período de bonança1. Forjado há 30 anos, em em saúde no SUS tem sido um nicho fecundo
um momento histórico no qual as políticas do dessa nova forma de ‘superintensificação’.
Estado Social2 perdiam espaço para o modelo Assim, a ideologia produtivista assume a
neoliberal, o SUS vem vivenciando mais um dianteira dos processos avaliativos nos diver-
processo de fragilização oriundo da dinâmica sos setores, e na saúde isso não seria diferente.
do movimento do capital, em grande parte, O objetivo do processo avaliativo é redefinido
comandado por forças aliadas ao capital por- e passa a ser ‘diminuição do tempo de rotação
tador de juros (capital financeiro). do ciclo repetitivo do processo de trabalho’
Filiado à tradição das políticas públicas na medida em que persegue a produção de
antes mesmo de sua concepção3 e integrante metas, aliando-se à lógica de mercado típica
de um sistema de proteção social, denomina- de sistema capitalista financeirizado.
do na Constituição de 1988 por seguridade Logo, o objetivo deste ensaio é realizar uma
social, o SUS sofre os impactos desde a sua crítica à ideologia do produtivismo na avalia-
existência. Tem sido vítima permanente da ção no SUS demonstrando como essa forma
tensão entre a garantia da universalidade e a de avaliar é, em última instância, uma conse-
contenção de gastos. Essa tensão fica eviden- quência do capitalismo contemporâneo finan-
te quando se verifica a forma como têm sido ceirizado. A opção pelo ensaio teórico como
conduzidas as políticas de gestão e, especi- modalidade textual recaiu na possibilidade de
ficamente, aquelas referidas ao processo de transgredir melhor as fronteiras disciplinares,
avaliação em saúde. algo que o aporte metodológico rígido tende a
Nossa atenção, portanto, volta-se para impedir6. Para tanto, usaremos os argumentos
o processo de avaliação em saúde adotado de autores filiados à tradição marxista7-14 para
nos últimos cinco anos no SUS, no sentido localizar a crítica em questão.
de entendê-lo como consequência de um Para conectar os argumentos dos autores
movimento do capitalismo contemporâneo supracitados ao processo de avaliação em
e de sua crise estrutural. Para isso, faz-se ne- saúde no SUS, usaremos de exemplos con-
cessário, inicialmente, compreender o poder cretos das políticas de avaliação em saúde
assumido pelo capital financeiro e sua ca- adotadas nos últimos anos e como essas polí-
pacidade de intensa espoliação do trabalho, ticas proporcionaram a invasão da ideologia
já que, para alguns analistas, a exemplo de produtivista na produção dos serviços de
Krugman, citado por Roberts4, parece que saúde. Para demonstrar essa tese, usaremos
a financeirização do capital não tem ligação os argumentos de autores que têm se dedica-
direta com o processo produtivo. No entanto, do a catalogarem esses eventos15-18.
a dominância desse capital tem desencade- Para conduzir a argumentação, o artigo
ado uma crise que contamina o mundo do está estruturado em quatro partes. A primei-
trabalho em uma perspectiva global. ra apresenta, de forma breve, as transforma-
Para amenizar os efeitos da crise, o capital, ções recentes que caracterizam o capitalismo
para reproduzir-se, depende cada vez mais contemporâneo. A segunda parte comenta
de políticas austeras e reduções enérgicas a atuação do Estado como expressão da
no gasto público, especialmente naqueles lógica do capital comandado pelo capital
setores relacionados com o investimento financeiro, provocando atuações da política
no ‘social’. Nesse cenário, o Estado passa a pública em consonância a esse quadro. A
adotar medidas neoliberais, afastando-se da terceira parte discute o sentido mais geral

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da lógica contemporânea do capitalismo, na movimentos da queda das taxas de lucros


sua marca utilitarista, valorizando a ideolo- a partir da Segunda Guerra Mundial. Ao
gia do produtivismo na avaliação em saúde, tomar como referência os Estados Unidos,
particularmente no processo avaliativo que demonstrou que a taxa de lucro vem caindo
veio sendo adotado pelo SUS, com ênfase desde meados de 1949 até 2001, em torno
numa perspectiva crítica. Por fim, a quarta de 41,3%. Ela não se moveu em uma linha
parte apresenta breves considerações finais, reta: depois da guerra subiu, mas voltou a
do que, na visão dos autores, pode ser um diminuir na chamada Idade de Ouro (1948
caminho para adensar este debate. a 1965). A rentabilidade continuou a cair,
também, de 1965 em diante.
Com a decorrente redução da taxa de lucro
Transformações no capital produtivo, assiste-se à proliferação
recentes do capitalismo de instituições financeiras e à integração de
uma grande quantidade de agentes econômi-
contemporâneo cos nos mercados financeiros. Dos recursos
que são emprestados, decorrem juros a partir
Parte-se da discussão sobre a constituição do de um mecanismo especulativo no qual o di-
capital financeiro e de suas consequências nheiro transforma-se em dinheiro sem sair da
no estabelecimento da crise do capitalismo esfera financeira e cujo estágio final é a consti-
contemporâneo. É sabido que o processo de tuição de um capital fictício representado, por
acumulação flexível e de financeirização se exemplo, por dividendos e por juros da dívida7.
intensificaram a partir dos anos 1970. Esses Assim, em um movimento cada vez mais
processos provocaram importantes impactos agressivo, o capital tende a se reordenar na
no âmbito da saúde pública, na medida em esfera financeira como contratendência à
que, para amenizar a crise, a opção comu- queda da taxa de lucro. Tem-se, a partir de
mente adotada relaciona-se com a redução então, a liderança do capital financeiro na di-
dos direitos sociais para a classe trabalhadora. nâmica do capitalismo contemporâneo. Para
A atual fase do capitalismo é marcada por Chesnais7, o capital portador de juros, ainda
uma crise estrutural que atinge profundamen- que improdutivo, não pode ser considerado
te a economia em uma perspectiva global. Ela parasitário, pois desempenha função útil e
tem início a partir da década de 1970, quando indispensável à circulação do capital.
se começa a observar duas tendências: a) a Mesmo se apropriando da mais-valia
queda tendencial da taxa de lucro das empre- sem produzi-la diretamente, desempenha
sas nas economias capitalistas, ressaltando-se o papel de adiantar capital-dinheiro para
a norte-americana; b) a migração das empre- que o capital produtivo possa executar a
sas para o mercado financeiro em busca de produção e, portanto, realizar a mais-valia.
recursos para viabilizar as suas atividades, Chesnais7 ainda argumenta que a posse do
visando aumentar a taxa de lucro1,7. capital-dinheiro dá ao seu proprietário o
Na literatura marxista, a posição defen- direito ao lucro sob a forma de juros. Esses
dida principalmente por autores como Alex juros referem-se à dedução de lucro, que é
Callinicos9, Carchedi e Roberts12 e Andrew originado na mais valia a ser alcançada pelo
Kliman19 é aquela na qual a crise eclodiu a capital comercial ou industrial.
partir do declínio na taxa de lucro. Para essa Entretanto, esse capital pode tornar-se
corrente de pensamento, a taxa de lucro é a parasitário e especulativo na forma assumida
variável-chave para compreender o movi- de capital fictício. O capital fictício, entende
mento da economia capitalista moderna. Chesnais20, é representado por massas de
Nesse cenário, Kliman19 analisou os capital-dinheiro à procura de valorização, em

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Avaliação no SUS: uma crítica à ideologia do produtivismo no capitalismo contemporâneo 229

posse de instituições, a exemplo de bancos, e especialização das funções, resultando em


sociedades de seguros e fundos de pensão, ganhos de produtividade; por aumentos sa-
cuja finalidade é valorizar seus haveres sem lariais acompanhando a evolução dos preços
sair da esfera dos mercados de títulos e de e da própria produtividade; uma acumulação
ativos fictícios derivados de títulos. A valori- pautada principalmente na produção e no
zação não passa diretamente pela produção, consumo assalariado de massa22.
concentrando-se no âmbito financeiro. Nessa forma de estruturação do trabalho,
No processo de mundialização financei- não havia uma distinção clara entre a gestão
ra, esse capital especulativo e parasitário do processo de trabalho individual com a do
promove impactos nos sistemas econômicos processo de trabalho total, haja vista que,
dos países, na medida em que estes, abertos como um processo de forte especialização
mundialmente, não encontram alternativas a do trabalho, apenas o próprio trabalhador
não ser a de aderir à lógica financeira em um seria capaz de avaliá-lo de forma coerente.
processo que culmina em sérios endivida- Nesse sentido, a avaliação não estava des-
mentos e no qual os juros da dívida pública colada do processo de trabalho individual.
se apropriam de grande parte do orçamento. Assim, avaliar o seu trabalho era função pre-
Estamos nos referindo a um processo de cípua do próprio trabalhador a pena de, se a
acumulação financeira correspondendo, avaliação não fosse correta, comprometer o
para Chesnais7, à centralização de lucros andamento da linha de produção.
industriais não reinvestidos e de rendas não Dessa forma, a avaliação se constituía uma
consumidas em instituições especializa- forma de controle do trabalhador sobre sua
das, as quais buscam valorizá-los por meio própria atividade. Isso era totalmente coe-
da aplicação em ativos financeiros (divisas, rente com a divisão parcelar e especializada
obrigações e ações), mantendo-os fora da do trabalho, em que cada indivíduo possuía
produção de bens e serviços. De acordo a autonomia sobre seu microprocesso, con-
com esse autor, com o aumento do poder do tribuindo com o todo quando realizado em
capital financeiro ressurgem os mercados escala. Por isso, era possível ganhos na pro-
especializados, a citar, os mercados de títulos dução em função de um modo de avaliar que
de empresas ou mercados de obrigações. estava submetido ao crivo do especialista do
O predomínio do capital fictício é microprocesso. No processo repetitivo, rara-
marcado, de um lado, por profundas e re- mente a falha ocorria, e quando aparecia, a
correntes crises e, de outro, por uma inédita avaliação individual rapidamente a detectava.
polarização determinada por grandiosa Entretanto nem sempre foi assim. Com o
riqueza material ao lado de profunda e cres- declínio da lucratividade do setor produtivo,
cente miséria em grande parte do mundo21. especialmente após a década de 1970, a ne-
Há crises estruturais do capital estendidas cessidade de uma reestruturação produtiva
em escala econômica global. Para entender- passou a ser questionada. A lucratividade
mos a crise atual, partimos do sistema fordis- financeira passou a ter um papel central, e
ta e de seu declínio, a partir dos anos 1970, as empresas multinacionais, cada vez mais
como resultado da queda tendencial na taxa proeminentes, submetiam a lógica da pro-
de lucro das empresas. dução à exploração do máximo de possibili-
De forma geral, deve-se entender o for- dades de lucro, desvinculando a produção e
dismo como um regime de acumulação, o investimento de padrões regulatórios que
principalmente vigente entre meados das viessem a promover o crescimento econô-
décadas de 1940 e 1970, sendo marcado por: mico ou manter as condições salariais e de
uma organização do trabalho com mecani- consumo suficientes. A regulação fordista,
zação do processo produtivo e forte divisão portanto, entra em crise estrutural.

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230 Teston LM, Mendes A, Carnut L, Junqueira V

Agravada pelo choque do petróleo, a re- suficiente em relação ao capital investido.


cessão de 1973 produziu um movimento de Então, o capital deve autodestruir-se para
reestruturação econômica e de reajusta- restaurar a lucratividade e começar tudo de
mento social e político nas décadas de 1970 novo, tal qual vimos durante o período cor-
e 1980, os quais provocaram uma série de respondente às duas grandes guerras.
novas experiências no campo da organização Isso significa, para os referidos autores,
industrial e da vida social e política. que uma massa suficiente de capitais mais
Para Harvey14, essas experiências podem fracos não rentáveis deve ir à falência, tec-
sinalizar os primeiros movimentos da pas- nologias antigas devem ser substituídas por
sagem para um regime de acumulação to- outras novas, mais eficientes e o desemprego
talmente novo, relacionado com um distinto suficiente deve ser gerado. Seria necessário
sistema de regulamentação política e social. haver uma destruição maciça do capital acu-
A política estatal passou a favorecer a faci- mulado durante os períodos de crescimento
litação da entrada de capitais financeiros. e de boom, uma destruição que envolveria o
Assim, entende Mascaro13(122), o “planeja- capital na forma de ativo fixo, mas, também,
mento de tipo fordista cede lugar a políticas em sua forma financeira. Essa seria uma das
neoliberais de redução da taxação dos fluxos alternativas para resolver a crise.
especulativos”. Nesse contexto, os estados Em paralelo, a literatura7,9,12,19 aponta
nacionais começaram a apresentar dificul- outras duas soluções. Uma é a exploração de
dades em sustentar uma reprodução econô- novas frentes de produção, como observamos
mica de bem-estar social. na abertura de linhas produtivas na China e
Nesse cenário, entende Callinicos9, países em outros países do sudeste asiático. A outra
do Terceiro Mundo que haviam sido incen- saída relaciona-se com a intensificação da ex-
tivados por bancos ocidentais a emprestar ploração da classe trabalhadora expressa, por
durante a década de 1970 foram confronta- exemplo, na redução de benefícios sociais e
dos com crescentes dívidas e pagamentos de no uso de técnicas/ferramentas de gestão que
juros, o que criou condições favoráveis para promovam mais exploração do trabalhador
a exportação de políticas neoliberais. Assim, (uma superexploração). Essa última tem sido
o Consenso de Washington, materializado a estratégia hegemonicamente utilizada, razão
em 1990, começou a se cristalizar. pela qual a crise se estende desde os anos 1970
Internamente, nos Estados Unidos, a e se mantém até os dias atuais.
virada para o neoliberalismo, em meio à re- A crise em si deve criar a condição de
cessão global de 1979-1982, ajudou a forçar sua própria solução, ou seja, a destruição de
uma contração e uma reorganização da capital. Somente quando suficientes quan-
indústria de transformação, em especial, tidades de capitais forem destruídas, as
envolvendo confrontos com grupos de tra- unidades produtivas mais eficientes podem
balhadores organizados, que sofreram uma começar a produzir novamente em escala
série de derrotas devastadoras. Na Grã- ampliada. Disso resulta que, se o impacto
Bretanha, esse processo culminou com a da crise for adiado, também se adia a sua re-
greve dos mineiros de 1984-1985. Apesar da cuperação. Nesse cenário, observamos que,
pressão sobre a produtividade e sobre os sa- apesar do aumento do número de empregos,
lários reais, a taxa de lucro não retornou aos a taxa de exploração também sobe muito.
níveis de 1950 e 19609. No cômputo geral, a melhora de curto
Pelos argumentos apresentados por prazo na produção, no emprego, no PIB e na
Carchedi e Roberts12, a causa da crise, em balança comercial esconde os salários reais
primeiro lugar, encontra-se no fracasso mais baixos e maior taxa de exploração do
da produção capitalista para gerar lucro trabalho elevando a espoliação a dimensões

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Avaliação no SUS: uma crítica à ideologia do produtivismo no capitalismo contemporâneo 231

sobre-humanas. Apesar das aparências, as con- subserviente à classe que domina economi-
sequências da desvalorização competitiva são camente em certo período histórico.
negativas tanto para o capital como para o tra- Tomado a partir de sua forma política, o
balho; se não imediatamente, em longo prazo12. Estado possui relativa autonomia, na medida
O neoliberalismo representou o quadro político em que está inserido no emaranhado de re-
e ideológico no qual tal reestruturação e reor- lações capitalistas. Para Mascaro13, o Estado
ganização do capital ocorreram9. mostra-se como um instrumento necessário
A crise segue desde então. Para Mendes1, as para a reprodução capitalista ao assegurar a
políticas neoliberais não dão conta de restaurar troca de mercadorias e a própria exploração
a lucratividade no setor produtivo. Essas polí- da força de trabalho assalariada. Ele passa a
ticas promoveram uma pequena recuperação criar mecanismos que separam explorados e
da taxa de lucro após a década de 1980, mas exploradores por meio da consolidação das
também reduziram os salários dos trabalha- instituições jurídicas.
dores, impondo condições de trabalho mais A real exterioridade do Estado ante a econo-
precárias, principalmente, a partir da redução mia é questionada por Poulantzas25(23). Para ele,
de gastos públicos sociais. As alternativas cons-
truídas em longo prazo envolveram o aumento [...] esta separação é a forma precisa que en-
da taxa de exploração do trabalho e uma desva- cobre, sob o capitalismo, a presença consti-
lorização maciça de capital. tutiva do político nas relações de produção e,
A primeira alternativa não restaurou a taxa dessa maneira, em sua produção.
de lucro aos seus níveis de 1950-1960. Já a
segunda, de desvalorização maciça de capital, Esse Estado, complementa Harvey26, es-
foi bloqueada pela decisão de resgate aos tabelece a estrutura legal e institucional que
bancos. Os salvamentos dos bancos envolveram, serve como canal por meio do qual o capital
no entendimento de Callinicos9, uma variedade portador de juros circule nas diferentes ati-
de medidas diferentes por parte do Estado, a vidades, a exemplo da dívida do consumidor
exemplo das aplicações de capital para recons- e no financiamento de moradias.
truir o capital próprio, bem como a compra de Esse mesmo Estado acaba por absorver
bancos com problemas. Exploraremos mais parte do fluxo desse capital que rende juros
esse argumento na seção a seguir. na forma de dívida pública. Ainda, cabe
acrescentar que as privatizações das empre-
sas de serviço público e o acirramento dos
O Estado na lógica do processos de privatização dos sistemas de
capital comandado pelo previdência e de saúde, especialmente nos
países de capitalismo avançado, constituem
capital financeiro a marca central das políticas governamentais
de apoio aos mercados financeiros7.
Para uns, o Estado é apenas ideação Esse entrelaçamento do Estado com
moderna23, para outros, é derivado das a economia não pode ser compreendido
contradições da sociabilidade capitalista24. simplesmente como a dominação política
Nas sociedades pré-capitalistas, o poder desta em relação àquele. Ou seja, o Estado
econômico e o poder político eram, quase apresenta uma estrutura material própria
sempre, indistintos. No modo de produção que não pode ser reduzida à simples domi-
capitalista, por outro lado, observamos que o nação política. Para Castel27, o Estado não
domínio econômico e o político, em muitas é um árbitro neutro entre os interlocutores
ocasiões, não coincidem em questões espe- sociais. Tampouco é um instrumento exclu-
cíficas13. Nesse processo, o Estado torna-se sivo da dominação de uma classe.

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Sobre esse aspecto, Poulantzas25 acres- Reagan, no início da década de 1980, e con-
centa que o Estado não é integralmente tinuadas no agigantamento da acumulação
produzido pelas classes dominantes nem to- financeira a partir dos anos 19907.
talmente monopolizado por elas. A domina- Nelas, a massa de riqueza à procura de
ção política – a partir do poder da burguesia, valorização que não passa pelo circuito da
pois estamos falando de Estado capitalista produção encontra espaço. É justamente
– está inscrita no que ele chama de ‘mate- na Inglaterra e nos Estados Unidos que as
rialidade institucional do Estado’. Outra políticas neoliberais começam a consoli-
contribuição importante é a de Kliman19, re- dar-se, promovidas por uma ideologia das
ferente ao objetivo das intervenções estatais. classes rentistas em defesa dos espaços
Para esse autor, essas intervenções não têm o do mercado livre para o ganho fácil da
objetivo de enriquecer os já ricos ou mesmo finança especulativa1.
proteger a sua riqueza, mas têm o propósito Não se vê, portanto, o neoliberalismo
de salvar o sistema capitalista. com uma simples ideologia de uma classe
Ao tratar da urgência de elaborar uma (burguesa) para aprimorar a opressão
crítica ao Estado, Mészáros11 alerta para da classe trabalhadora, mas como uma
o fato de o Estado tornar-se a ‘expressão orientação geral e como um programa
política do capital’. Este acaba por repro- de governo em favor do mercado, que
duzir um círculo vicioso historicamen- se dirige a dar um suporte estatal mais
te insustentável. Dessa forma, são cada adequado e eficiente para fazer seguir o
vez maiores os problemas do Estado no sistema capitalista.
processo de aprofundamento da crise es- Dessa forma, conclui Mendes1, a auto-
trutural do capital. Isso porque o Estado nomia do Estado é relativa, pois reflete a
não consegue oferecer a solução para os própria reprodução capitalista, ou seja, essa
problemas que perturbam o cenário atual, autonomia está fixada na dependência estru-
vindo por realizar tentativas de medidas tural e existencial da reprodução capitalista.
corretivas que parecem agravar os proble- Em síntese, o Estado, por meio de sua violên-
mas, apesar das garantias em contrário. cia, desempenha um importante papel na re-
Entretanto, para Mészáros11, a questão vai produção econômica do sistema capitalista.
muito além das intervenções emergenciais Na atual crise do capitalismo contempo-
periódicas. Envolve políticas liberais que râneo sob a dominância do capital financei-
afetam os direitos dos trabalhadores con- ro, o Estado passa a adotar rígidas políticas
quistados na era de ouro do capitalismo. O promotoras da redução dos direitos sociais,
Estado torna-se um defensor da ordem es- provocando consequências importantes na
tabelecida, independentemente dos perigos política de saúde. Nesse contexto, são esta-
para o futuro da sobrevivência da humanida- belecidos desafios quanto à universalidade
de; e isso representa, para o autor, um obs- plena do SUS.
táculo do tamanho de uma ‘montanha’, que Esses desafios refletem-se na avaliação em
não deve ser menosprezado caso se queira saúde, a qual passa a ser realizada na lógica
transformar a ordem estabelecida. O Estado do capitalismo financeirizado. A política de
não se retira da economia nos tempos de vi- avaliação em saúde vem sendo compreen-
gência do neoliberalismo: ele atua de forma dida como positiva caso alcance determina-
particular na economia. das metas e resultados em uma perspectiva
É no quadro neoliberal que se encontram caracterizada por um modelo capitalista de
as políticas econômicas promotoras de des- produção, a qual estabelece a política pública
regulamentação e de abertura financeira, como sendo uma política de resultados com
iniciadas por Margaret Thatcher e Ronald base nas leis de mercado.

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Avaliação no SUS: uma crítica à ideologia do produtivismo no capitalismo contemporâneo 233

A ideologia do produtivismo de acumulação fordista para o padrão de


na avaliação em saúde acumulação flexível, passa a lançar mão de
mecanismos de gestão com base no controle
No contexto do capitalismo contemporâneo, da qualidade, subordinando o saber operário
sob a tutela do capital financeiro, toma forma ao capital (o saber sobre seu microprocesso
o debate sobre a fragilidade das políticas de trabalho) para potencializá-lo como fator
públicas e sua relação, especialmente com de produtividade e controle, cujo objetivo
a saúde. Inserida na lógica do capital finan- é a racionalização orçamentaria. Para isso,
ceiro, podemos enxergar a natureza contra- o processo de avaliação deve ser destituído
ditória da política pública: de um lado busca do trabalhador individual e ser entregue a
fazer saúde, mas, de outro, responde (com gestores especialistas em avaliar o processo
mais afinco) à lógica do capital em manter o produtivo, utilizando-se da avaliação como
processo de acumulação. um processo de controle de gastos e, por
Estamos, portanto, vivendo um processo conseguinte, de redução de custos28.
no qual a lógica da política e dos direitos Isso teve seu início no primeiro momento
está, cada vez mais, inserida em um processo da reestruturação produtiva, no modelo Just-
racionalizador e mecanicista. Assim, torna- in-time, tradicionalmente conhecido como
-se necessário problematizar a contradição um modelo de gestão para cortar custos e
que existe entre, por um lado, as conquistas otimizar o processo produtivo ‘sem perder
democráticas inclinadas a ampliar e incluir qualidade’. No fordismo, a qualidade era
as pessoas e, por outro, a dinâmica de um uma preocupação do trabalhador especia-
modelo econômico historicamente produtor lizado que se preocupava no ‘desempenho’
de grande desigualdade, condutor do apro- adequado de sua atividade para que a ‘peça’
fundamento da exclusão. obtivesse a qualidade necessária para não
A lógica utilitarista, refletida na ideolo- travar a linha de produção. Todavia, se antes
gia do produtivismo no processo de avalia- o desempenho era um atributo/dimensão da
ção em saúde, está alinhada a esse processo qualidade, agora a qualidade é um atributo/
de fortalecimento do capital financeiro em dimensão do desempenho.
escala global. Essa lógica se verifica, confor- No Just-in-time, graças à ‘flexibilidade’, a
me nos esclarece Martins et al.16(10), quando qualidade passou a ser objeto de verificação
a atividade humana é medida de forma de membros que não executam a ativida-
quantitativa e quando os dados resultantes de. Portanto, a qualidade deixa de ser uma
dessa quantificação justificam certas políti- preocupação do trabalhador individual e é
cas sobre “a vida e a morte, sobre o corpo e a mensurada no processo final por uma equipe
saúde, sobre o pensamento e a ação, sobre a especialista em ‘controle de qualidade’29.
razão e a emoção”. Foi assim que o conceito de qualidade total
Assim, em um cenário com predomínio se tornou uma forma de gerir a produção
do capital financeiro globalizado, o processo focada em resultado e melhoria de proces-
de avaliação em saúde tende a ser permeado sos, minimizar erros e assegurar a qualidade
pela lógica utilitarista (ou seja, aquela que do ‘produto final’.
tem como ética a busca do fim em si mesmo), É nesse esteio que a avaliação ganha
refletindo a ideologia do produtivismo. O uma proporção exterior ao processo de tra-
capital financeiro acentua e intensifica a balho e útil ao controle do resultado final.
produção por metas, a rotinização, a frag- Nos processos intangíveis, como no caso da
mentação e, consequentemente, o produti- saúde, educação (só para ficar nesses dois
vismo em uma lógica de mercado. setores sociais), a avaliação passa a compa-
O capitalismo, na passagem do padrão tibilizar tudo sob o campo dos números, da

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234 Teston LM, Mendes A, Carnut L, Junqueira V

quantidade a ser mensurada, ultrapassando os a forma de avaliação em saúde no SUS um


campos admissíveis para a sua atuação. Passa instrumento emancipatório. Emancipatório
a ser informada pela lógica competitiva privi- no sentido de se promover políticas públicas,
legiando o resultado e o desempenho. Isso vai com ampliação dos espaços participativos e
contra o tempo e contra as condições neces- auxiliar na democratização do Estado.
sárias ao pensamento distanciado que exigem A lógica utilitarista é aplicada em deter-
a construção de um saber reflexivo e crítico minados campos, especialmente no das or-
sobre o mundo que nos cerca e ao trabalho pa- ganizações formais, por permitir acertos na
ciente do cuidado e da atenção às pessoas15. tomada de decisão dentro de prazos fixos,
Portanto, ao transladar a ideia da avaliação recursos limitados e metas a atingir. O pro-
no Just-in-time fabril ao exercício dos direitos blema, segundo Martins et al.16, é quando se
sociais, há a construção de uma racionaliza- tenta generalizar o utilitarismo para todas
ção de que tudo é passível de avaliação pela as esferas da vida social. Essa generalização
mesma forma e que se trata de uma questão acaba por ameaçar o SUS visto que, nesse
meramente técnica, subtendendo, com isso, padrão consumista, o usuário é tratado como
seus modos de superexploração. Por isso, um consumidor de serviços18.
entende-se, especialmente na saúde, que A expansão da lógica utilitarista com base
a avaliação sobre a lógica do produtivismo na ideologia do produtivismo no campo da
transforma a ‘avaliação das atividades’ em saúde pública apressa mudanças de padrões
‘avaliação do trabalhador’ que as executam, e de crenças culturais, com efeitos no capital
tornando-se mais uma forma de exacerbar a médico e na lógica mercantil. No capital
desconfiança, hipocrisia e rivalidade exacer- médico, temos como consequência a busca
bada15 e, quando não, a ação persecutória. pelo monopólio das decisões sobre pesqui-
Nesses moldes, avaliar a situação de saúde sas científicas, produção de medicamen-
da população, na qual o usuário é visto como tos e processos de diagnóstico e prescrição
um consumidor de serviços, aproxima-se médica, sendo estabelecidos como núcleos
dos princípios do modelo neoliberal, no qual de poder os laboratórios farmacêuticos, as
o utilitarismo apresenta-se como a filosofia firmas produtoras de equipamentos médico-
moral e a exploração e o consumo ilimitados -hospitalares, as empresas de seguro privado
são a essência da condição humana16. A ava- e os grandes grupos hospitalares privados.
liação em saúde tende a seguir um modelo Em se tratando da lógica mercantil, esta, de
normativo, em que a realidade é considerada forma especulativa, apropria-se dos recursos
de forma objetiva e quantificável. públicos destinados à saúde pública por meio
Pela visão utilitarista, a doença é entendida de transferências ratificadas por projetos go-
como algo que deve ser combatido de forma vernamentais. Essa lógica médico-mercantil fa-
isolada, sem relacioná-la com o contexto cul- vorece que as práticas médicas sejam reduzidas
tural, social, ambiental ou psicológico no qual a um jogo de interesses econômicos e utilitários
está inserida. A busca por novas tecnologias entre ‘médicos-capitalistas’ e ‘doentes-con-
e terapêuticas de cura é constante, mas sem sumidores’. Nesse contexto, a saúde finda por
necessariamente haver a preocupação em re- seguir as regras do mercado, consumindo
solver o que está ocasionando o adoecimento. cada vez mais tecnologias médicas, consultas,
Por outro lado, se considerarmos um exames e medicamentos16.
modelo com foco na integralidade, estaremos Diante desse cenário, como garantir
concebendo a saúde como consequência de uma proteção social para toda a sociedade
fatos políticos, econômicos e ideológicos, ou brasileira em um cenário com predomínio
seja, resultado de um produto social17. Assim, do capital financeiro? Como assegurar
questiona-se em que medida é possível tornar fontes de recursos suficientes e seguras

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Avaliação no SUS: uma crítica à ideologia do produtivismo no capitalismo contemporâneo 235

para a saúde pública brasileira no âmbito determinados grupos ou indivíduos, perma-


de um Estado atado e constrangido pela nente aprendizado, processos transparentes e
dinâmica do movimento do capital? Como fortalecimento da sociedade, em especial, da-
emancipar a avaliação em saúde no SUS de queles grupos tradicionalmente excluídos32.
um processo de fragmentação baseado na Nesse sentido, podemos compartilhar o
lógica produtivista? pensamento de Mészáros10(41) no sentido
A saúde pública e, especificamente, a ava- de haver um esforço para se transformar a
liação em saúde devem perpassar a interven- ordem estabelecida em outra, na qual sejam
ção e constituir-se em uma prática social, não removidos “os perigos de autodestruição da
se limitando a cumprir regras e normas, mas humanidade”. Para esse autor,
ser uma ferramenta para a consolidação da
democracia, afirmação de direitos e empo- [...] não pode haver progresso sem cresci-
deramento dos cidadãos. Nesse contexto, a mento qualitativamente definido, empreen-
avaliação em saúde deve ser entendida como dido para corrigir radicalmente as profundas
um importante elemento de autorreflexão desigualdades do sistema do capital.
por parte daqueles que atuam na política, e
não apenas ser vista como um processo de Dessa forma, faz-se necessária a crítica
atribuir valor a uma determinada política, diante da autoexpansão e do crescimento
simplesmente para decidir sobre sua conti- ilimitados do capital, causadores de sérias
nuidade ou não30. iniquidades, bem como o questionamento
Deve ser percebida como uma democrá- ao tipo de crescimento que queremos: se
tica ferramenta no sentido de contribuir desejamos, de fato, um crescimento baseado
para o empoderamento dos cidadãos quanto na expansão do capital. Para Mészáros10, um
à afirmação de seus direitos18. Para Martins sistema incapaz de fixar limites para a auto-
et al.16(16), o caminho a ser trilhado é o de expansão do capital em um mundo no qual
superar a visão de sociedade como uma os recursos são finitos é, evidentemente, in-
“soma aritmética de interesses individuais”, sustentável em longo prazo.
que reforça o utilitarismo, mas compreendê-
-la como ‘redes de pertencimento e de soli-
dariedade’ existentes fora da esfera de ação Considerações finais
do Estado e do mercado e que foram inten-
sivamente submetidas e fragmentadas pela Vivemos tempos desafiadores para o SUS e,
lógica utilitarista e individualista. Dessa especificamente, para a avaliação em saúde.
forma, entendem Gomes e Bezerra18(92), “o São desafiadores, pois provocam questiona-
SUS, com seus princípios, se constitui como mentos em relação ao processo de avaliação
um espaço de resistência dentro do sistema, em saúde. Desafios que são a expressão da
o que justifica os muitos ataques sofridos”. fase atual do capitalismo, marcada pelo pre-
Em tempos recentes, novos enfoques ou domínio do capital financeiro que almeja
modelos de avaliação alternativos denomi- obter lucro com base no capital fictício e pa-
nados ‘enfoques emergentes’31 encontram rasitário, à medida que ocorre o declínio da
espaço e questionam os modelos tradicio- lucratividade no setor produtivo.
nais e positivistas. Esses enfoques, além de Com a queda tendencial da taxa de lucro,
visarem à melhoria da gestão dos progra- as economias nos países, para viabilizar suas
mas, também assumem o desafio de propor atividades por meio de suas empresas e al-
medidas no sentido de impulsionar proces- cançarem lucros, migram para o mercado
sos relacionados com a democratização das financeiro. Do empréstimo de recursos,
instituições de saúde, atribuição de poder a começam a decorrer juros em um movimento

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no qual o dinheiro se transforma em dinheiro Esse amplo cenário acaba por trazer im-
sem sair da esfera financeira. Esse modo de pactos para a avaliação em saúde no âmbito
lucrar, necessariamente, implica constantes do SUS. Isso porque a lógica marcada pelo
crises, visto que não é possível sua sustenta- capital financeiro leva em consideração re-
ção, pois, sendo um capital parasitário, gera sultados em termos quantitativos, ou seja,
lucros sobre juros, e não sobre a produção. quantidade de serviços e produtos médico-
Nesse processo, estabelecem-se crises -hospitalares consumidos traduzidos, por
estruturais econômicas e globais. Elas não exemplo, na quantidade de consultas realiza-
levam ao colapso do sistema capitalista, pois das independentemente da qualidade dessas
existem alternativas para contorná-las. No consultas, na quantidade de medicamentos
entanto, a saída frequentemente utilizada consumidos em uma lógica que desfavorece
impõe sérias pressões sobre a força de traba- a proteção e a prevenção das doenças, bem
lho, resultando na perda de garantias e direi- como na quantidade de exames realizados
tos sociais. Nesse processo, o Estado assume em uma perspectiva que prioriza a média e a
um importante papel. alta complexidade.
Considerado um aliado de toda hora do Conforme esclarecem Gomes e Bezerra17,
capital, o Estado acaba por incorporar uma a inserção da política social em saúde no
agenda em consonância com os anseios do contexto do capitalismo econômico mundial
capital financeiro em busca de valoriza- se dá por meio de um conjunto de bens, ser-
ção, injetando dinheiro quando há alguma viços, indústrias, equipamentos e tecnolo-
ameaça de colapso ou, mais frequentemen- gias. Conjunto este entendido pelo sistema
te, realizando desde grosseiras às mais sutis capitalista como mercadorias e, portanto,
manobras no sentido de retirar garantias comercializáveis.
sociais historicamente conquistadas. A medicina oficial assenta-se sobre a
O Estado, portanto, acaba por se afastar expansão do utilitarismo médico de forma
de suas antigas funções relacionadas com a direta, a exemplo da expansão das empresas
proteção social, ao priorizar a contenção de privadas, e indireta, como na redefinição dos
gasto público. Procura manter a lógica do orçamentos hospitalares a partir de critérios
valor e, por meio de sua violência, desem- utilitaristas baseados nos custos da doença,
penha um importante papel no processo de de forma a desconsiderar o que acontece do
reprodução econômica do sistema capitalis- lado de fora do consultório médico ou nos
ta. Vemos a fragilidade do sistema de prote- corredores dos hospitais33.
ção social estatal e o fortalecimento de um É uma forma fragmentada de fazer ava-
estado com sua face neoliberal. liação. Essa lógica de avaliar a saúde é típica
Esse fortalecimento de um Estado alinha- de um modelo liberal, no qual o utilitarismo
do à lógica do capitalismo globalmente finan- torna-se o motor que movimenta o processo
ceirizado implica importantes desafios para de avaliação. No modo de produção capita-
o SUS. Trata-se de um Sistema que tem por lista em geral, e na sua fase contemporânea
base os princípios da universalidade, equida- de dominância financeira, em particular,
de e integralidade dos serviços de saúde, mas distanciamo-nos de uma perspectiva huma-
que vem concorrendo com a lógica imposta nista, na qual, como nos diz Martins33(21), a
pelo capital. É só observamos, por exemplo, a “vida teria prioridade sobre a ganância”.
constante disputa dos recursos destinados para Teoricamente, podemos pensar um
a saúde pública e as tentativas ventiladas sobre ‘modelo ideal’, mas, na prática, há uma
a dificuldade de manter o caráter universal do série de variáveis impostas à avaliação para
sistema e, para isso, da necessidade de garantir esta se tornar, de fato, reconhecida como
‘cobertura’, em um sentido mais restrito. um elemento importante no processo de

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Avaliação no SUS: uma crítica à ideologia do produtivismo no capitalismo contemporâneo 237

desenvolvimento e manutenção do SUS. Tais pública. Nesse processo, algumas questões


variáveis não devem ser desprezadas nem se mantêm consistentes: que tipo de avalia-
acometidas por interesses que refletem o ção estamos realizando? Que elementos con-
modelo hegemônico atual, no qual impera o sideramos quando avaliamos a saúde de uma
capitalismo financeirizado. população? A institucionalização da avalia-
Em todo o caso, a avaliação em saúde pode ção é suficiente para promover uma constru-
servir a interesses hegemônicos e contra- ção mais democrática da política de saúde e
-hegemônicos, a depender da escolha feita. da política do SUS? Que caminhos podem ser
Podemos fazer a escolha – e a fizemos – por construídos no sentido de tornar a avaliação
enfoques emergentes que procuram fazer a em saúde um processo menos fragmenta-
crítica ao processo de avaliação baseado no do, dissociado da lógica produtivista que
utilitarismo e no produtivismo. Emergentes permeia a saúde pública nesses tempos de
no sentido de buscar democratizar as insti- crise do capitalismo contemporâneo? Como
tuições de saúde, de atribuir poder a grupos garantir uma proteção social para toda a so-
ou indivíduos, de dar transparência aos ciedade brasileira no âmbito de um Estado
processos e de fortalecer a sociedade. Há o atado e constrangido pela dinâmica do mo-
reconhecimento de que o Estado está sob a vimento do capital?
proteção do grande capital financeiro, mas Sabemos da dificuldade de produzir res-
devem ser abertos espaços de discussão na postas, pois estamos falando em emancipar a
perspectiva de construirmos um diálogo avaliação em saúde no âmbito de uma socie-
visando à construção de um processo avalia- dade capitalista. Entretanto, essas questões
tivo que esteja direcionado à uma política de reforçam o reconhecimento de que ganha
saúde emancipada. força a crítica ao processo atual de avaliação
Há necessidade de fazer essa crítica, de em saúde no SUS.
externalizar o processo atual de avaliação Há poucos espaços nos quais é possível
em saúde no contexto da crise do capitalis- estabelecer um diálogo sobre a emancipa-
mo contemporâneo. Isso porque acredita- ção da avaliação dentro da lógica do lucro.
mos que a avaliação no SUS deve, aos poucos, Quais serão as estratégias que deverão
emancipar-se dessa lógica imposta pelo ca- ser adotadas para emancipar a avaliação
pitalismo financeirizado, no qual importa em saúde da ideologia do produtivismo
mais o consumo dos serviços do que propria- presente na fase atual de crise do capita-
mente a saúde das pessoas. lismo contemporâneo? A resposta caberá
Estamos cientes da complexidade e da àqueles que criticamente questionam os
dificuldade de propor algo na contramão da caminhos trilhados pela atual forma de
lógica atual, ou seja, da lógica do capitalismo avaliar a saúde pública brasileira.
financeirizado sempre à procura da maxi-
mização dos lucros para enfrentar a crise
atual que vem se arrastando por décadas. Colaboradores
No entanto, é um horizonte que deve ser
vislumbrado e, a partir dele, dar passos ini- Teston LM contribuiu substancialmente
ciais rumo ao que chamados de emancipação para a concepção e o planejamento, e para
da avaliação, a partir de um processo mais a análise e a interpretação dos dados; con-
abrangente e solidário. tribuiu significativamente na elaboração
Neste estudo, questionamos como a do rascunho e revisão crítica do conteúdo;
avaliação em saúde no SUS pode encontrar e participou da aprovação da versão final
alternativas para se contrapor à lógica finan- do manuscrito. Mendes A contribuiu para a
ceira que se estabelece no campo da saúde concepção e o planejamento, para a análise

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238 Teston LM, Mendes A, Carnut L, Junqueira V

e a interpretação dos dados, e participou da significativamente na elaboração do rascunho


aprovação da versão final do manuscrito. e revisão crítica do conteúdo; e participou
Carnut L contribuiu substancialmente para a da aprovação da versão final do manuscrito.
concepção e o planejamento, e para a análise Junqueira V participou da aprovação e da
e a interpretação dos dados; contribuiu redação da versão final do manuscrito. s

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Suporte financeiro: não houve

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A revista aceita, no máximo, cinco autores por artigo. As infor- não houve conflito de interesses na concepção deste trabalho” será
mações devem ser incluídas apenas no formulário de submissão, suficiente.
contendo: nome completo, nome abreviado para citações biblio-
gráficas, instituições de vínculo com até três hierarquias, código b) Colaboradores. Devem ser especificadas as contribuições in-
ORCID ID (Open Researcher and Contributor ID) e e-mail. dividuais de cada autor na elaboração do artigo. Segundo o crité-
rio de autoria do ICMJE, os autores devem contemplar as seguin-
PROCESSO DE AVALIAÇÃO tes condições: 1) contribuir substancialmente para a concepção e
o planejamento ou para a análise e a interpretação dos dados; 2)
Todo original recebido pela revista ‘Saúde em Debate’ é subme- contribuir significativamente na elaboração do rascunho ou revi-
tido à análise prévia. Os trabalhos não conformes às normas de são crítica do conteúdo; e 3) participar da aprovação da versão
publicação da revista são devolvidos aos autores para adequação final do manuscrito.
e nova submissão.
c) Agradecimentos. (Opcional).
Uma vez cumpridas integralmente as normas da revista, os ori-
ginais são apreciados pelo Comitê Editorial, composto pelo OS DOCUMENTOS RELACIONADOS A SEGUIR DEVEM
editor-chefe e por editores associados, que avalia a originalida- SER DIGITALIZADOS E ENVIADOS PELO SISTEMA DA
de, abrangência, atualidade e atendimento à política editorial da REVISTA NO MOMENTO DO CADASTRO DO ARTIGO.
revista. Os trabalhos recomendados pelo Comitê serão avaliados
por, no mínimo, dois pareceristas, indicados de acordo com o 1. Declaração de responsabilidade e cessão de direitos autorais
tema do trabalho e sua expertise, que poderão aprovar, recusar e/
ou fazer recomendações de alterações aos autores. Todos os autores e coautores devem preencher e assinar as de-
clarações conforme modelo disponível em: http://revista.saudee-
A avaliação é feita pelo método duplo-cego, isto é, os nomes dos mdebate.org.br/public/declaracao.doc.
autores e dos pareceristas são omitidos durante todo o processo
de avaliação. Caso haja divergência de pareceres, o trabalho será 2. Parecer de Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
encaminhado a um terceiro parecerista. Da mesma forma, o Co-
mitê Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer. Cabe No caso de pesquisas que envolvam seres humanos, realizadas
aos pareceristas recomendar a aceitação, recusa ou reformulação no Brasil, nos termos da Resolução nº 466, de 12 de dezembro
dos trabalhos. No caso de solicitação de reformulação, os autores de 2012 do Conselho Nacional de Saúde, enviar documento de
devem devolver o trabalho revisado dentro do prazo estipulado. aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da ins-
Não havendo manifestação dos autores no prazo definido, o tra- tituição onde o trabalho foi realizado. No caso de instituições que
balho será excluído do sistema. não disponham de um CEP, deverá ser apresentado o documento
do CEP pelo qual ela foi aprovada. Pesquisas realizadas em outros
O Comitê Editorial possui plena autoridade para decidir sobre a acei- países, anexar declaração indicando o cumprimento integral dos
tação final do trabalho, bem como sobre as alterações efetuadas. princípios éticos e das legislações específicas.

SAÚDE DEBATE
Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

DOCUMENTAÇÃO OBRIGATÓRIA A SER ENVIADA critério dos autores. Neste caso, a tradução será feita por profis-
APÓS A APROVAÇÃO DO ARTIGO sional qualificado, com base em uma lista de tradutores indicados
pela revista. O artigo traduzido deve vir acompanhado de decla-
1. Declaração de revisão ortográfica e gramatical ração do tradutor.

Os artigos aprovados deverão passar por revisão ortográfica e Endereço para correspondência
gramatical feita por profissional qualificado, com base em uma
lista de revisores indicados pela revista. O artigo revisado deve vir Avenida Brasil, 4.036, sala 802
acompanhado de declaração do revisor. CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ),
Brasil
2. Declaração de tradução Tel.: (21) 3882-9140/9140
Fax: (21) 2260-3782
Os artigos aprovados poderão ser traduzidos para o inglês a E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

SAÚDE DEBATE
Instructions to authors for preparation and submission of articles

Saúde em Debate Committee and/or the database of referees in their specific areas.

INSTRUCTIONS TO AUTHORS Before being sent for peer review, articles submitted to the journal
‘Saúde em Debate’ undergo plagiarism-detecting softwares
UPDATED IN JANUARY 2018
Plagiarisma and Copyspider. Thus, it is possible that the authors
are questioned about information identified by the tool to
guarantee the originality of the manuscripts, referencing all the
sources of research used. Plagiarism is an unacceptable editorial
behavior, so if its existence is proven, the authors involved will not
SCOPE AND EDITORIAL POLICY be able to submit new articles to the journal.

NOTE: Cebes editorial production is a result of collective work and


The journal ‘Saúde em Debate’ (Health in Debate), created in
of institutional and individual support. Authors’ contribution for
1976, is published by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
the continuity of ‘Saúde em Debate’ journal as a democratic space
(Cebes) (Brazilian Center for Health Studies), that aims to
for the dissemination of critical knowledge in the health field shall
disseminate studies, researches and reflections that contribute to
be made by means of association to Cebes. In order to become an
the debate in the collective health field, especially those related
associate, please access http://www.cebes.org.br.
to issues regarding policy, planning, management, work and
assessment in health. The editors encourage contributions from
different theoretical and methodological perspectives and from
GUIDELINES FOR THE PREPARATION AND SUBMISSION
various scientific disciplines.
OF ARTICLES

Articles should be submitted on the website: www.


The journal is published on a quarterly basis; the Editors may saudeemdebate.org.br. After registering, the author responsible
decide on publishing special issues, which will follow the same for the submission will create his login name and a password.
submission and assessment process as the regular issues.
When submitting the article, all information required must be
‘Saúde em Debate’ accepts unpublished and original works that bring supplied with identical content as in the uploaded file.
relevant contribution to scientific knowledge in the health field.
Types of texts accepted for submission
Authors are entirely and exclusively responsible for the submitted
manuscripts, which must not be simultaneously submitted to 1. Original article: result of scientific research that may be
another journal, be it integrally or partially. It is Cebes’ policy to generalized or replicated. The text should comprise a maximum
own the copyright of all articles published in the journal. of 6,000 words.

2. Essay: critical analysis on a specific theme relevant and of


In case of approval and publication of the work in the journal,
interest to Brazilian and/or international topical health policies.
the copyrights referred to it will become property of the journal,
The text should comprise a maximum of 7,000 words.
which adopts the Creative Commons License CC-BY (https://
creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt) and the open
3. Systematic or integrative review: critical review of literature
access policy, so the texts are available for anyone to read,
on topical theme in health. Systematic review rigorously
download, copy, print, share, reuse and distribute, with due
synthesises research related to an issue. Integrative review
citation of the source and authorship. In such cases, no permission
provides more comprehensive information on the subject. The
is required from authors or publishers.
text should comprise a maximum of 8,000 words.

No fees are charged from the authors for the submission or 4. Opinion article: exclusively for authors invited by the
publication of articles; nevertheless, once the article has been Editorial Board. No abstract or summary are required. The text
approved for publication, the authors are responsible for the should comprise a maximum of 7,000 words.
language proofreading (mandatory) and the translation into
English (optional), based on a list of proofreaders and translators 5. Case study: description of academic, assistential or extension
provided by the journal. experiences that bring significant contributions to the area. The
text should comprise a maximum of 5,000 words.
The journal has an Editorial Board that contributes to the definition
of its editorial policy. Its members are part of the Editorial 6. Critical review: review of books on subjects of interest to

SAÚDE DEBATE
Instructions to authors for preparation and submission of articles

the field of public health, by decision of the Editorial Board. and ICMJE, whose addresses are available at http://www.icmje.
Texts should present an overview of the work, its theoretical org. Whenever a trial registration number is available, authors
framework and target audience. The text should comprise a should list it at the end of the abstract.
maximum of 1,200 words. A high resolution cover should be
sent through the journal’s system. Ethics in research involving human beings: the publication
of articles with results of research involving human beings is
7. Document and testimony: works referring to themes of conditional on compliance with the ethical principles contained in
historical or topical interest, by decision of the Editorial Board. the Declaração de Helsinki, of 1964, reformulated in 1975, 1983,
1989, 1996, 2000 and 2008, of the World Medical Association;
Important: in all cases, the maximum number of words includes besides complying with the specific legislations of the country
the body of the article and references. It does not include title, in which the research was carried out, when existent. Articles
abstract, keywords, tables, charts, figures and graphs. with research involving human beings should make it clear, in
the material and methods section, the compliance with ethical
principles and send a declaration of responsibility in the act of
Text preparation and submission submission.

The text may be written in Portuguese, Spanish or English. It The journal respects the authors’ style and creativity regarding
should be typed in Microsoft® Word or compatible software, in the text composition; nevertheless, the text must contemplate
doc or docx format, to be attached in the corresponding field of conventional elements, such as:
the submission form. It must not contain any information that
makes it possible to identify the authors or institutions to which Introduction: with clear definition of the investigated problem
they are linked. and its rationale;

Type in standard size page A4 (210X297mm); all four margins Material and methods: objectively described in a clear and
2.5cm wide; font Times New Roman in 12pt size; line spacing 1.5. objective way, allowing the reproductbility of the research. In case
it involves human beings, the approval number of the Research
The text must comprise: Ethics Committee (CEP) must be registered;

Title: expressing clearly and briefly the contents of the text, in no more Results and discussion: may be presented together or separately;
than 15 words. The title should be in bold font, using capital letters
only for proper nouns. Texts written in Portuguese and Spanish should Conclusions or final considerations: depending on the type of
have the title in the original idiom and in English. The text in English research carried out;
should have the title in English and in Portuguese.
References: only cited authors should be included in the text and
Abstract: in Portuguese and English or in Spanish and English, follow the Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to
comprising no more than 200 words, clearly outlining the aims, Biomedical Journals, of the ICMJE, used for the preparation of
the method used and the main conclusions of the work. It should references (known as ‘Vancouver Style’). For further clarification,
not be structured, without topics (introduction, methods, results we recommend consulting the Reference Normalization Manual
etc.); citations or abbreviations should not be used, except for (http://revista.saudeemdebate.org.br/public/manualvancouver.
internationally recognized abbreviations. pdf) prepared by the Cebes editorial.

Keywords: at the end of the abstract, three to five keywords NOTES:


should be included, separated by period (only the first letter in
capital), using terms from the structured vocabulary (DeCS) The journal does not use underlines and bold as an emphasis.
available at www.decs.bvs.br. Use single quotes to draw attention to expressions or titles of
works. Examples: ‘gateway’; ‘Saúde em Debate’. Words in other
Clinical trial registration: ‘Saúde em Debate’ journal supports languages should be written in italics, except for proper names.
the policies for clinical trial registration of the World Health
Organization (WHO) and the International Committee of Medical Avoid using capital letters in the text, except for absolutely
Journal Editors (ICMJE), thus recognizing its importance to the necessary ones.
registry and international dissemination of information on clinical
trial. Thus, clinical researches should contain the identification Testimonials of subjects should be presented in italics and in
number on one of the Clinical Trials registries validated by WHO double quotation marks in the body of the text (if less than three

SAÚDE DEBATE
Instructions to authors for preparation and submission of articles

lines). If they have more than three lines, they should be written ‘Saúde em Debate’ uses the double-blind review method, which
in italics, without quotes, highlighted in the text, with a 4 cm means that the names of both the authors and the reviewers are
backspace, simple space and font 11. concealed from one another during the entire assessment pro-
cess. In case there is divergence between the reviewers, the article
Footnotes should not be used in the text. If absolutely necessary, will be sent to a third reviewer. Likewise, the Editorial Board may
footnotes should be indicated with sequential superscript also produce a third review. The reviewers’ responsibility is to re-
numbers. commend the acceptance, the refusal, or the reformulation of the
works. In case there is a reformulation request, the authors shall
Repetition of data or information in the different parts of the text return the revised work until the stipulated date. In case this does
should be avoided. not happen, the work shall be excluded from the system.

Figures, graphs, charts and tables should be supplied in high


resolution, in black-and-white or in gray scale, and on separate The Editorial Board has full authority to decide on the final accep-
sheets, one on each sheet, following the order in which they tance of the work, as well as on the changes made.
appear in the work (they should be numbered and comprise title
and source). Their position should be clearly indicated on the
page where they are inserted. The quantity of figures, graphs, No additions or changes will be accepted after the final approval
charts and tables should not exceed five per text. The file should of the work. In case the journal’s Editorial Board has any sugges-
be editable (not taken from other files) and, in the case of images tions regarding changes on the structure or contents of the work,
(photographs, drawings, etc.), it must be in high resolution with these shall be previously agreed upon with the authors by means
at least 300 DPI. of e-mail communication.

In case there are photographs, subjects must not be identified,


unless they authorize it, in writing, for the purpose of scientific The typeset article proof will be sent by e-mail to the correspon-
dissemination. ding author; it must be carefully checked and returned until the
stipulated date.

Information about authors


Complementary information (should be sent in a separate file)

The journal accepts a maximum of five authors per article. In-


formation should be included only in the submission form, con- a) Conflict of interest. The works submitted for publication must
taining: full name, abbreviated name for bibliographic citations, comprise information on the existence of any type of conflict of
linked institutions with up to three hierarchies, ORCID ID (Open interest. Financial conflict of interest, for example, is related not
Researcher and Contributor ID) code and e-mail. only to the direct research funding, but also to employment link.
In case there is no conflict, it will suffice to place on the title page
the statement “I declare that there has been no conflict of interest
ASSESSMENT PROCESS regarding the conception of this work”.

Every manuscript received by ‘Saúde em Debate’ is submitted to b) Contributors. Individual contributions of each author should
prior analysis. Works that are not in accordance to the journal pu- be specified at the end of the text. According to the authorship
blishing norms shall be returned to the authors for adequacy and criteria developed by the International Committee of Medical
new submission. Once the journal’s standards have been entirely Journal Editors (ICMJE), authorship should be based on the follo-
met, manuscripts will be appraised by the Editorial Board, com- wing conditions: a) substantial contribution to the conception and
posed of the editor-in-chief and associate editors, for originality, the design of the work, or to the analysis and interpretation of
scope, topicality, and compliance with the journal’s editorial po- data for the work; b) substantial contribution to drafting the work
licy. Articles recommended by the Board shall be forwarded for or critically revising the contents; and c) participation at the final
assessment to at least two reviewers, who will be indicated accor- approval of the version to be published.
ding to the theme of the work and to their expertise, and who will
provide their approval, refusal, and/or make recommendations to
the authors. c) Acknowledgements. (Optional).

SAÚDE DEBATE
Instructions to authors for preparation and submission of articles

MANDATORY DOCUMENTATION TO BE DIGITALIZED MANDATORY DOCUMENTATION TO BE SENT AFTER


AND SENT THROUGH THE JOURNAL’S SYSTEM AT THE APROVAL OF THE ARTICLE
MOMENT OF THE ARTICLE REGISTER
1. Statement of spelling and grammar proofreading
1. Declaration of responsibility and assignment of copyright
Upon acceptance, articles must be proofread by a qualified pro-
All the authors and co-authors must fill in and sign the statements fessional to be chosen from a list provided by the journal. After
following the models available at: http://revista.saudeemdebate. proofreading, the article shall be returned together with a state-
org.br/public/declaration.docx. ment from the proofreader.

2. Approval statement by the Research Ethics Committee (CEP) 2. Statement of translation

In the case of researches involving human beings, carried out The articles accepted may be translated into English on the au-
in Brazil, in compliance with Resolution 466, of 12th December thors’ responsibility. In this case, the translation shall be carried
2012, from the National Health Council (CNS), the research ap- out by a qualified professional to be chosen from a list provided by
proval statement of the Research Ethics Committee from the in- the journal. The translated article shall be returned together with a
stitution where the work has been carried out must be forwarded. statement from the translator.
In case the institution does not have a CEP, the document is-sued
by the CEP where the research has been approved must be for- Correspondence address
warded. Researches carried out in other countries: attach decla-
ration indicating full compliance with the ethical principles and Avenida Brasil, 4.036, sala 802
specific legislations. CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Tel.: (21) 3882-9140/9140
Fax: (21) 2260-3782
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

SAÚDE DEBATE
Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos

Saúde em Debate Antes de que sean enviados para la evaluación por los pares, los artí-
culos sometidos a la revista ‘Saúde em Debate’ pasan por un software
Instrucciones para los autores detector de plagio, Plagiarisma y Copyspider. Así es posible que los
autores sean cuestionados sobre informaciones identificadas por la
ACTUALIZADAS EN ENERO DE 2018 herramienta para garantizar la originalidad de los manuscritos y las
referencias a todas las fuentes de investigación utilizadas. El plagio es
un comportamiento editorial inaceptable y, de esa forma, en caso de
que sea comprobada su existencia, los autores involucrados no po-
drán someter nuevos artículos para la revista.
ALCANCE Y POLÍTICA EDITORIAL
NOTA: La producción editorial de Cebes es el resultado de apoyos
La revista ‘Saúde em Debate’ (Salud en Debate), creada en 1976, institucionales e individuales. La colaboración para que la revista
es una publicación del Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Ce- ‘Saúde em Debate’ continúe siendo un espacio democrático de
bes). Su objetivo es divulgar estudios, investigaciones y reflexio- divulgación de conocimientos críticos en el campo de la salud se
nes que contribuyan para el debate en el campo de la salud co- dará por medio de la asociación de los autores al Cebes. Para aso-
lectiva, en especial aquellos que tratan de temas relacionados con ciarse entre al site http://www.cebes.org.br.
la política, la planificación, la gestión y la evaluación de la salud.
La revista le otorga importancia a trabajos con abordajes teórico- ORIENTACIONES PARA LA PREPARACIÓN Y LA SUJE-
metodólicos diferentes que representen contribuciones de las va- CIÓN DE LOS TRABAJOS
riadas ramas de las ciencias.
Los trabajos deben ser presentados en el site: www.saudeemdebate.
La periodicidad de la revista es trimestral. Y de acuerdo al cri- org.br. Después de su registro, el autor responsable por el envío creará
terio de los editores son publicados números especiales que si- su logín y clave para el acompañamiento del trámite.
guen el mismo proceso de sujeción y evaluación de los números
regulares. Modalidades de textos aceptados para publicación
‘Saúde em Debate’ acepta trabajos originales e inéditos que apor-
ten contribuciones relevantes para el conocimiento científico acu- 1. Artículo original: resultado de una investigación científica
mulado en el área. que pueda ser generalizada o replicada. El texto debe contener
un máximo 6.000 palabras.
Los trabajos enviados a la revista son de total y exclusiva respon-
sabilidad de los autores y no pueden ser presentados simultánea- 2. Ensayo: un análisis crítico sobre un tema específico de re-
mente a otra, ni parcial ni integralmente. levancia e interés para la coyuntura de las políticas de salud
brasileña e internacional. El trabajo debe contener un máximo
En el caso de la aprobación y publicación del artículo en la revista, de 7.000 palabras.
los derechos de autor referidos al mismo se tornarán propiedad
de la revista que adopta la Licencia Creative Commons CC-BY
(https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt) y la po- 3. Revisión sistemática o integradora: revisiones críticas de
lítica de acceso abierto, por lo tanto, los textos están disponibles la literatura de un tema actual de la salud. La revisión sistemá-
para que cualquier persona los lea, baje, copie, imprima, compar- tica sintetiza rigurosamente investigaciones relacionadas con
ta, reutilice y distribuya, con la debida citación de la fuente y la una cuestión. La integrativa proporciona una información más
autoría. En estos casos, ningún permiso es necesario por parte de amplia sobre el tema. El texto debe contener un máximo de
los autores o de los editores. 8.000 palabras.

‘Saúde em Debate’ no cobra tasas a los autores para la evaluación 4. Artículo de opinión: exclusivamente para autores invitados
de sus trabajos. Si el artículo es aprobado queda bajo la responsa- por el Comité Editorial, con un tamaño máximo de 7.000 pala-
bilidad de estos la revisión (obligatoria) del idioma y su traducción bras. En este formato no se exigirán resumen y abstract.
para el inglés (opcional), teniendo como referencia una lista de
revisores y traductores indicados por la revista.
5. Relato de experiencia: descripciones de experiencias aca-
La revista cuenta con un Consejo Editorial que contribuye a la de- démicas, asistenciales o de extensión con hasta 5.000 pala-
finición de su política editorial. Sus miembros integran el Comité bras y que aporten contribuciones significativas para el área.
Editorial y/o el banco de árbitros en sus áreas específicas.

SAÚDE DEBATE
Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos

6. Reseña: reseñas de libros de interés para el área de la salud mismos. En este sentido, las investigaciones clínicas deben conte-
colectiva de acuerdo al criterio del Comité Editorial. Los textos ner el número de identificación en uno de los registros de Ensayos
deberán presentar una visión general del contenido de la obra, Clínicos validados por la OMS y ICMJE y cuyas direcciones están
de sus presupuestos teóricos y del público al que se dirigen, disponibles en: http://www.icmje.org. En estos casos, el número
con un tamaño de hasta 1.200 palabras. La portada en alta re- de la identificación deberá constar al final del resumen.
solución debe ser enviada por el sistema de la revista.
Ética en investigaciones que involucren seres humanos: la pu-
blicación de artículos con resultados de investigaciones que in-
7. Documento y declaración: a criterio del Comité Editorial,
volucra a seres humanos está condicionada al cumplimiento de
trabajos referentes a temas de interesse histórico o coyuntural.
los principios éticos contenidos en la Declaração de Helsinki, de
1964, reformulada en 1975, 1983, 1989, 1996, 2000 y 2008 de la
Importante: en todos los casos, el número máximo de palabras Asociación Médica Mundial, además de atender a las legislacio-
incluye el cuerpo del artículo y las referencias. No incluye título, nes específicas del país en el cual la investigación fue realizada,
resumen, palabras-clave, tablas, cuadros, figuras y gráficos. cuando las haya. Los artículos con investigaciones que involucrar
a seres humanos deberán dejar claro en la sección de material y
Preparación y sujeción del texto métodos el cumplimiento de los principios éticos y encaminar una
declaración de responsabilidad en el proceso de sometimiento.
El texto puede ser escrito en portugués, español o inglés. Debe
La revista respeta el estilo y la creatividad de los autores para la
ser digitalizado en el programa Microsoft®Word o compatible y
composición del texto; sin embargo, el texto debe observar ele-
grabado en formato doc o docx, para ser anexado en el campo co-
mentos convencionales como:
rrespondiente del formulario de envío. No debe contener ninguna
información que permita identificar a los autores o las institucio-
Introducción: con una definición clara del problema investigado,
nes a las que se vinculan.
su justificación y objetivos;

Y digitalizado en hoja patrón A4 (210x297mm), margen de 2,5 en


Material y métodos: descritos en forma objetiva y clara, permi-
cada uno de los cuatro lados, letra Times New Roman tamaño 12, es-
tiendo la replicación de la investigación. En caso de que ella en-
pacio entre líneas de 1,5.
vuelva seres humanos, se registrará el número de opiniones apro-
batorias del Comité de Ética en Pesquisa (CEP);
El trabajo debe contener:
Resultados y discusión: pueden ser presentados juntos o en
Título: que exprese clara y sucintamente el contenido del texto en
ítems separados;
un máximo de 15 palabras. El título se debe escribir en negritas,
sólo con iniciales mayúsculas para nombres propios. El texto en
Conclusiones o consideraciones finales: que depende del tipo de
español y portugués debe tener el título en el idioma original y en
investigación realizada;
Inglés. El texto en Inglés debe tener el título en Inglés y portugués.
Referencias: Deben constar sólo los autores citados en el texto
Resumen: en portugués y en Inglés o Español y en Inglés con no
y seguir los Requisitos Uniformes de Manuscritos Sometidos a
más de 200 palabras, en el que queden claros los objetivos, el
Revistas Biomédicas del ICMJE, utilizados para la preparación de
método utilizado y las principales conclusiones. Debe ser no es-
referencias (conocidos como ‘Estilo de Vancouver’). Para mayores
tructurado, sin emplear tópicos (introducción, métodos, resulta-
aclaraciones, recomendamos consultar el Manual de Normaliza-
dos, etc.), citas o siglas, a excepción de abreviaturas reconocidas
ción de Referencias (http://revista.saudeemdebate.org.br/public/
internacionalmente.
manualvancouver.pdf).

Palabras-clave: al final del resumen, debe incluirse de tres a cinco


OBSERVACIONES
palabras-clave, separadas por punto (sólo la primera inicial ma-
yúscula), utilizando los términos presentados en el vocabulario La revista no utiliza subrayados ni negritas para resaltar partes
estructurado (DeCS), disponibles en: www.decs.bvs.br. del texto. Utiliza comillas simples para llamar la atención de ex-
presiones o títulos de obras. Ejemplos: ‘puerta de entrada’; ‘Salud
Registro de ensayos clínicos: la revista ‘Saúde em Debate’ apoya en Debate’. Las palabras en otros idiomas se deben escribir en
las políticas para el registro de ensayos clínicos de la Organización cursivas, con la excepción de nombres propios.
Mundial de Salud (OMS) y del International Committee of Me-
dical Journal Editors (ICMJE), reconociendo su importancia para Se debe evitar el uso de iniciales mayúsculas en el texto, con la
el registro y la divulgación internacional de informaciones de los excepción de las absolutamente necesarias.

SAÚDE DEBATE
Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos

Los testimonios de sujetos deberán ser presentados igual- La evaluación es hecha por el método del doble ciego, esto
mente en cursivas y entre comillas dobles en el cuerpo del es, los nombres de los autores y de los evaluadores son omi-
texto (si son menores de tres líneas). Si son mayores de tres tidos durante todo el proceso de evaluación. En caso de que
líneas, deben escribirse en de la misma manera, sin comillas, se presenten divergencias de opiniones, el trabajo será enca-
desplazadas del texto, con retroceso de 4 cm, espacio simple minado a un tercer evaluador. De la misma manera, el Comité
y fuente 11. Editorial puede, a su criterio, emitir un tercer juicio. Cabe a los
evaluadores, como se indicó, recomendar la aceptación, re-
No se debe utilizar notas al pie de página en el texto. Las chazo o la devolución de los trabajos con indicaciones para su
marcas de notas a pie de página, cuando sean absolutamente corrección. En caso de una solicitud de corrección, los autores
indispensables, deberán ser numeradas y secuenciales. deben devolver el trabajo revisado en el plazo estipulado. Si
los autores no se manifiestan en tal plazo, el trabajo será ex-
Se debe evitar repeticiones de datos o informaciones en las cluido del sistema.
diferentes partes que componen el texto.
El Comité Editorial tiene plena autoridad para decidir la
Las figuras, gráficos, cuadros y tablas deben estar en alta re- aceptación final del trabajo, así como sobre las alteraciones
solución, en blanco y negro o escala de grises, y sometidos en efectuadas.
archivos separados del texto, uno a uno, siguiendo el orden
en que aparecen en el estudio (deben ser numerados y conte- No se admitirán aumentos o modificaciones después de la
ner título y fuente). En el texto sólo tiene que identificarse el aprobación final del trabajo. Eventuales sugerencias de mo-
lugar donde se deben insertar. El número de figuras, gráficos, dificaciones de la estructura o del contenido por parte de los
cuadros o tablas debe ser de un máximo de cinco por texto. editores de la revista serán previamente acordadas con los
El archivo debe ser editable (no extraído de otros archivos) y, autores por medio de la comunicación por e-mail.
cuando se trate de imágenes (fotografías, dibujos, etc.), tiene
que estar en alta resolución con un mínimo de 300 DPI. La versión diagramada (prueba de prensa) será enviada igual-
mente por correo electrónico al autor responsable por la co-
En el caso del uso de fotografías, los sujetos involucrados en rrespondencia de la revisión final y deberá devolverla en el
estas no pueden ser identificados, a menos que lo autoricen, plazo estipulado.
por escrito, para fines de divulgación científica.
Información complementaria (deben enviarse en un archivo
Información sobre los autores separado)

La revista acepta, como máximo, cinco autores por artículo. a) Conflicto de intereses. Los trabajos encaminados para la
La información debe incluirse sólo en el formulario de some- publicación deben informar si tienen algún tipo de conflicto
timiento conteniendo: nombre completo, nombre abreviado de inte-rés. Los conflictos de interés financiero, por ejemplo,
para citas bibliográficas, instituciones a las que están vincula- no están relacionados solo con la financiación directa de la
dos con hasta tres jerarquías, código ORCID ID (Open Resear- investigación, sino también con el propio vínculo de trabajo. Si
cher and Contributor ID) y correo electrónico. no hay conflicto, será suficiente la información “Declaro que no
hubo conflictos de intereses en la concepción de este trabajo” en la
PROCESO DE EVALUACIÓN hoja de presentación del artículo.

Todo original recibido por la revista ‘Saúde em Debate’ es so- b) Colaboradores. Deben estar especificadas las contribucio-
metido a un análisis previo. Los trabajos que no estén de acuer- nes individuales de cada autor en la elaboración del artículo.
do con las normas de publicación de la revista serán devueltos Según el criterio de autoría do ICMJE, los autores deben con-
a los autores para su adecuación y una nueva evaluación. templar las siguientes condiciones: 1) contribuir substancial-
mente en la concepción y la planificación o en el análisis y
Una vez complidas integralmente las normas de la revista, los ori-
la interpretación de los datos; 2) contribuir significativamente
ginales serán valorados por el Comité Editorial, compuesto por el
en la elaboración del borrador o la revisión crítica del conte-
editor jefe y por editores asociados, quienes evaluarán la origina-
nido; y 3) participar de la aprobación de la versión final del
lidad, el alcance, la actualidad y la relación con la política editorial
manuscrito.
de la revista. Los trabajos recomendados por el comité serán eva-
luados, por lo menos, por dos arbitros indicados de acuerdo con el c) Agradecimentos. (Opcional).
tema del trabajo y su expertisia, quienes podrán aprobar, rechazar
y/o hacer recomendaciones a los autores.

SAÚDE DEBATE
Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos

LOS DOCUMENTOS RELACIONADOS A SEGUIR DEBEN DOCUMENTOS OBLIGATORIOS QUE DEBEN SER EN-
SER DIGITALIZADOS Y ENVIADOS POR EL SISTEMA VIADOS DESPUÉS DE LA APROBACIÓN DEL ARTÍCULO
DE LA REVISTA EN EL MOMENTO DEL REGISTRO DEL
ARTÍCULO 1. Declaración de revisión ortográfica y gramatical

1. Declaración de responsabilidad y cesión de derechos de autor


Los artículos aprobados deberán ser revisados ortográfica y gra-
Todos los autores y coautores deben llenar y firmar las declaracio- maticalmente por un profesional cualificado, según una lista de
nes según el modelo disponible en: http://revista.saudeemdebate. revisores indicados por la revista. El artículo revisado debe estar
org.br/public/declaracion.docx. acompañado de la declaración del revisor.
2. Declaración de traducción
2. Dictamen de Aprobación del Comité de Ética en Investigación
(CEP) Los artículos aprobados podrán ser, a criterio de los autores, tra-
ducidos al inglés. En este caso, la traducción debe ser hecha igual-
En el caso de investigaciones que involucren a seres humanos mente por un profesional cualificado, siempre de acuerdo a una
realizadas en Brasil, en los términos de la Resolución 466 del 12 lista de traductores indicados por la revista. El artículo traducido
de diciembre de 2012 del Consejo Nacional de Salud, debe enviar- debe estar acompañado de la declaración del traductor.
se el documento de aprobación de la investigación por el Comi-
Dirección para correspondencia
té de Ética en Investigación de la institución donde el trabajo fue
realizado. En el caso de instituciones que no dispongan de un CEP, Avenida Brasil, 4.036, sala 802
deberá presentarse el documento del CEP por el cual fue aproba- CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
da. Las investigaciones realizadas en otros países, deben anexar Tel.: (21) 3882-9140/9140
la declaración indicando el cumplimiento integral de los principios Fax: (21) 2260-3782
éticos y de las legislaciones específicas. E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

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Diagramação e editoração eletrônica
Layout and desktop publishing

Rita Loureiro
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Design de Capa
Cover design

Alex I. Peirano Chacon

Normalização, revisão e tradução de texto


Normalization, proofreading and translation

Ana Luísa Moreira Nicolino (inglês)


Carina Munhoz de Lima (normalização)
Luiza Nunes (normalização)
Mariana Acorse (normalização)
Wanderson Ferreira da Silva (português e inglês)

Impressão
Printing

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Tiragem
Number of copies

300 exemplares/copies

Capa em papel cartão ensocoat LD 250 g/m²


Miolo em papel couché matte LD 90 g/m²

Cover in ensocoat LD 250 g/m²


Core in couché matte LD 90 g/m²

Site: www.cebes.org.br • www.saudeemdebate.org.br


E–mail: cebes@cebes.org.br • revista@saudeemdebate.org.br

Saúde em Debate: Revista do Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Cebes –
n.1 (1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde, Cebes, 2018.

v. 42. n. especial 3; 27,5 cm




ISSN 0103–1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Cebes


CDD 362.1
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