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PSICANALÍTICA

Orgão Oficial da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro


ISSN 1679-074X

EDITORES Sérgio de Freitas e Elie Cheniaux

COMISSÃO EDITORIAL Claudio Laks Eisirik


Eliane MacCord
Eronides Borges Fonseca
Jaques Vieira Engel
José Alberto Zusman
Juan Ramon A. Conde Martinez
Rejane Sabbagh Armony
Renato Oliveira Barauna
Ronaldo Victer
Rosana Igor Rehfeld
Vera Lúcia Benchimol
Victor Manuel Andrade
Waldemar Zusman

DIRETOR DA BIBLIOTECA Ricardo Fabião Gomes

SECRETARIA ADMINISTRATIVA
SUPERVISORA Loretta Passaro
SECRETÁRIA Selma Pereira Conceição
ASSISTENTE ADMINISTRATIVO Agnaldo Marins Teixeira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E Imagem & Texto Ltda.


PRODUÇÃO GRÁFICA

SOCIEDADE PSICANALÍTICA DO RIO DE JANEIRO


Rua Fernandes Guimarães, 92 - Botafogo
Rio de Janeiro - RJ - CEP 22290-000
Tel.: (21) 2543-4998 - Tel./Fax: (21) 2295-3148
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Este número da PSICANALÍTICA encontra-se na home-page da SPRJ no endereço:
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Diretoria da SPRJ - 2006/2007
Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro
Filiada à International Psychoanalytical Association

CONSELHO DIRETOR
PRESIDENTE Alexandre Kahtalian
SECRETÁRIA E VOGAL ASSOCIADO Maria Aparecida Duarte Barbosa
TESOUREIRA Maria Inês Pinto MacCulloch
VOGAL EFETIVO Rosa Sender Lang

COMISSÃO CIENTÍFICA
DIRETORA Veronica Portella Nunes
MEMBROS Isis de Souza Figueiredo
Sandra Maria Martins Pereira
Thereza Christina Rosa Pegado Ribeiro
Vanja Rodrigues Mattos

DEPTO. DE ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA


DIRETORA Rejane Sabbagh Armony
MEMBROS Regina Maria C. Chagas Lessa
Rosana Igor Rehfeld
Vera Lúcia Benchimol

INSTITUTO DE ENSINO DA PSICANÁLISE


DIRETOR Idésio Milani Tavares
SUBDIRETORA DE SELEÇÃO Maria Eliana Mello Helsinger
MEMBROS Tania Leão Pedroso
Vera Márcio Ramos
SUBDIRETORA DE AVALIAÇÃO Cynthia Ladvocat
MEMBROS Frida Hoirisch
Ramon Fandiño
Rosália Milsztajn
SUBDIRETOR DE ENSINO Carlos Antonio Garrido Pereira

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Sumário

Editorial ....................................................................................... 5
Entrevista Charles Hanly ............................................................ 9

ARTIGOS
O analista como objeto persecutório ......................................... 19
Maria Inês Neuenschwander Escosteguy Carneiro

A influência alemã na
psicanálise no Rio de Janeiro ................................................... 39
Hans Füchtner

O desejo de nada ou a completude de vazios ........................... 59


Tania Leão Pedrozo

Principais Contestações da
Psicanálise na Atualidade .......................................................... 71
Alexandre Kahtalian

Scheherazade, a mulher-menina ou
a princesa que encantou o sultão ............................................... 77
Ambrozina Amalia Coragem Saad

ARTIGOS INTERNACIONAIS
Ser e Sexualidade: contribuição ou confusão? .......................... 91
Lesley Caldwell

Sobre a latência: quando a mentalização é deficiente ............. 105


Paul Wiener

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SESSAO TEMÁTICA: PSIQUISMO E FIGURAS CORPORAIS
O mundo objetal anoréxico e a violência
bulímica em meninas adolescentes ......................................... 121
Marina Ramalho Miranda

O discurso multidisciplinar
sobre o tema obesidade ............................................................ 151
Terezinha de Souza Agra Belmonte

Lesões corporais e trauma ....................................................... 165


Sara Angela Kislanov

ENSAIOS
Velocidade e repressão ............................................................. 181
Marcelo Coelho

Sonhos e devaneios em Dom Casmurro e


Esaú e Jacó, de Machado de Assis........................................... 199
Dayane Celestino de Almeida

MONOGRAFIA
A pele como forma de expressão ............................................. 213
Ondina Lúcia Ceppas Resende

HOMENAGEM
Manhães da Psicanálise .......................................................... 233
Vera Márcia Ramos

RESENHAS
O Poder das Organizações: a dominação das
multinacionais sobre os indivíduos ........................................ 253
Autores: Max Pages , Vincent de Gaulejac,
Michel Bonetti e Daniel Descendre
Resenhado por: Kátia Barbosa Macêdo

Psicanálise interminável ou com fim possível? ...................... 259


Autor: Theodor Lowenkron
Resenhado por: Moacyr Spitz

O Livro de Ouro da Psicanálise – O pensamento de


Freud, Jung, Melanie Klein, Lacan, Winnicott e outros ......... 261
Organização: Manuel da Costa Pinto
Resenhado por: Pedro Rosaes

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Editorial

Nas páginas que se seguem da revista Psicanalítica, está presente extenso e


variado material psicanalítico que submetemos à apreciação e reflexão dos
leitores. Concepções teóricas, o campo clínico e a teoria da prática clínica são
objeto de diversos trabalhos.
A revista Psicanalítica, entretanto, inicia este número tratando de questões
de equivalente relevância: política institucional. Publicamos* uma entrevista
exclusiva com Charles Hanly, futuro presidente da IPA que sucederá a Cláudio
Eizirik. Com essa finalidade formou-se um grupo composto pelos colegas
Alexandre Kahtalian, Rosa Reis e Idésio Milani, que formularam dez questões
abrangendo vasta área de interesse, como as estratégias e projetos da IPA para
a América Latina e para o Brasil, em especial. Outras, ainda, dizem respeito
não só a questões estritamente societárias, mas que se encontram no centro
dos debates como, por exemplo, sobre critérios na escolha de candidatos à
formação psicanalítica, entre outras de igual significância.
Veremos ainda, nesta edição, a história da psicanálise no Brasil, através da
publicação do trabalho do Prof. Hans Füchtner, da Universidade Kassel, na
Alemanha. Pesquisador do movimento psicanalítico no Brasil, Füchtner aborda
a influência de psicanalistas alemães no desenvolvimento da psicanálise no
Rio de Janeiro e em São Paulo. E ainda, paralelamente aos textos técnicos, um
interessante ensaio do articulista do jornal Folha de São Paulo, Marcelo Coelho,
que, a partir de exemplos literários extraídos principalmente dos poemas de
William Wordsworth e do pensamento de Bergson, busca estabelecer uma
relação entre conceitos como temporalidade e infância, impulso e disciplina,
duração e ritmo, baseando-se não só em evidentes conhecimentos de
psicanálise, como também em sua própria experiência pessoal.
Além do trabalho de Marcelo Coelho, na seção Ensaios encontraremos artigo
de Dayane Celestino de Almeida, do Departamento de Letras da USP, no qual
articula uma interseção de psicanálise e literatura, analisando, com base na teoria
freudiana, episódios de sonhos e devaneios na obra de Machado de Assis.

*
A versão em inglês desta entrevista estará disponível no site da SPRJ (www.sprj.org.br).

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Na seção Artigos Internacionais, contamos com a colaboração da


psicanalista inglesa Lesley Caldwell, da Bristish Psychoanalytical Association
e editora do Winnicott Trust, por onde publicou seu livro mais recente Sex
and Sexuality: Winnicottian Perspectives e prepara o próximo Reading
Winnicott. Ela esteve aqui entre nós, na SPRJ, em maio deste ano, quando
apresentou a elogiada conferência From object to space and the nature of the
transition. Para a Psicanalítica, Lesley Caldwell nos homenageou com um
artigo original intitulado Ser e Sexualidade: contribuição ou confusão?.
Da França, mais especificamente do Laboratório de Psicopatologia da
Universidade de Paris VII, contamos com o interessante artigo Sobre a
latência: quando a mentalização é falha, do Prof. Paul Wiener, autor do
reconhecido livro no meio acadêmico e psicanalítico francês Structure et
processus dans la psychose. No artigo que apresenta especialmente para a
Psicanalítica, Wiener discute as diferentes variações de funcionamento psíquico
que se pode incluir na definição de Repressão, a partir de certas características
do mecanismo de suplência no recalcamento, na fase de latência do
desenvolvimento infantil.
Neste número, a Seção Temática “Psiquismo e figuras corporais” trata
de questões ligadas a diversas experiências subjetivas relacionadas ao corpo.
Abordando problemas de diferentes etiologias, a conjunção dos trabalhos desta
seção encontra-se na relação psicológica estabelecida pelo sujeito com certos
aspectos fantasiados, e mesmo distorcidos, de sua imagem corporal, e da
projeção dessas fantasias e conflitos no corpo e nas experiências corporais. O
primeiro deles é de autoria de Marina Miranda, colega da SBPSP, que
apresentou no Congresso Brasileiro deste ano, em Porto Alegre, em mesa
redonda sobre transtornos alimentares, interessante trabalho baseado em sua
larga experiência nestas questões, que permanecem para a psicanálise, é preciso
ressaltar, como um enigma teórico e, sobretudo, clínico. No artigo que
publicamos, extraído de sua tese de Doutoramento, Marina aborda os graves
problemas da anorexia e da bulimia na adolescência.
Do vazio anorético ao excesso, chegamos ao trabalho de Terezinha Agra
Belmonte sobre obesidade, tema ao qual se dedica como professora e
pesquisadora desde 1976. Fundamentando-se em Winnicott e Kohut, o trabalho
traz um panorama histórico da relação mítica do homem com o corpo. Ainda
sobre as relações do sujeito com o corpo, embora sob outra perspectiva, Sara
Kislanov trata dos efeitos psíquicos de lesões corporais e traumas provenientes
de região especialíssima do corpo: o rosto. Partindo de reflexão teórica e
trabalhando conceitos como desamparo, função especular e outros, a autora
alcança problemas relacionados à técnica no tratamento psicanalítico de
pacientes submetidos a processo de reconstrução da face.
Da chamada anorexia nervosa para a anorexia mental, na seção Artigos
Tânia Leão Pedroso aborda a experiência de vazio existencial na contempo-

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raneidade e, aqui também, a ação do psíquico sobre o corpo, embora neste


caso figurado em estados depressivos. Na mesma seção, o artigo de Maria Inês
Neuenschwander Escosteguy Carneiro, O Analista como Objeto Persecutório,
reflete a consistência teórica do conjunto de seus trabalhos e sua vasta
experiência na clínica psicanalítica da criança.
Alexandre Kahtalian trata de algumas das atuais contestações à psicanálise.
De dois tipos. Daquelas que de tempos em tempos retornam à superfície em
busca de oxigênio e, por esta razão, com elas já nos habituamos ao debate _
como a velha discussão sobre a cientificidade ou o que seria a verdadeira
psicanálise e, também, a respeito do uso e da importância de medicamentos.
O segundo tipo de contestação refere-se a certas objeções mais recentes, como
o efeito na psicanálise das chamadas novas terapias e de certas modalidades
de auto-ajuda. Fecha a seção de artigos o trabalho de Ambrozina Saad, colega
da Sociedade de Psicanálise de Brasília, cuja paciente em análise, tal
Scheherazade com suas mil e uma histórias, a encanta ao mesmo tempo em
que a horroriza.
Manteve-se a seção que se destina a Monografias indicadas pela Comissão
de Avaliação e que se destina a estimular os candidatos a produzirem seus
primeiros artigos. Ondina Ceppas Resende foi a indicada e apresenta texto,
baseado em sua monografia, sobre a influência de fatores emocionais no
desencadeamento e agravamento de diversas patologias da pele.
Também apresentamos neste número três resenhas. Na primeira, Kátia
Barbosa Macedo ocupa-se do livro O Poder das Organizações: a dominação
das multinacionais sobre os indivíduos. Os autores são professores do
departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Paris VII e procuram
discutir as formas de instituição de poder e a dinâmica psíquica inconsciente
constatada em certas formas de organização institucional. Em seguida, Moacyr
Spitz nos apresenta o livro do Prof. Theodor Lowenkron Psicanálise
interminável ou com fim possível?, sobre as possibilidades de término de uma
análise. E Pedro Rosaes nos fala sobre O livro de ouro da Psicanálise – O
pensamento de Freud, Jung, Melanie Klein, Lacan, Winnicott e outros, uma
compilação de artigos de vários autores, organizada por Manuel da Costa Pinto.
Por fim, uma homenagem aos 90 anos da nossa Doutora Maria Manhães,
por Vera Márcia Ramos, que nos representa a todos. O universo da psicanálise
já rendeu diferentes homenagens à Dra. Manhães, ainda que todas sejam
insuficientes para exprimir a dimensão das suas contribuições, como autora
de obra sempre original, como terapeuta, pioneira em tantos e tão ricos
sentidos, e, em especial, como uma das principais precursoras da psicanálise
da criança e do adolescente no Brasil.
Como vimos, o conteúdo da revista é diversificado, cobre e, espera-se que
suscite, extensa área de interesse dos leitores. Extensão de temas que nos tem
levado, aliás, à reflexão seguinte.

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Uma revista de psicanálise, talvez diferentemente de outras publicações,


parece exigir que se faça uma escolha entre duas possibilidades: estabelecer temas
específicos para cada edição ou permiti-los livres e variados. O resultado desta
escolha pode facilitar à publicação o alcance de seus objetivos básicos: transmitir
conhecimento teórico que fundamente a prática, difundir experiência,
promover o debate de novas teorias e conceitos e, sobretudo, mobilizar o
interesse pela investigação que tenha o inconsciente como objeto central.
Diante dessa premissa, pergunta-se: optando pela unicidade temática nos
aproximamos de tais objetivos, na medida em que, em lugar da variação de
temas, discutiríamos de forma mais profunda os problemas apresentados? Ou,
ao contrário, o tema único nos limitaria, obrigando-nos a tratar de problemas
distantes dos estudos específicos e da prática de muitos colegas? A liberdade
de uma publicação em acolher temas sobre os quais os colegas se sintam, por
variadas razões, estimulados a tratar, não amplia o universo de investigação
e, indiretamente, não leva a um aprofundamento do que se pesquisa e escreve?
O debate permanece em aberto.
No momento, a revista Psicanalítica assume, psicanaliticamente, uma
solução de compromisso: acolhe temas livre e democraticamente, mas reunindo
em uma seção temática assuntos que, por alguma razão, mereçam discussão
destacadamente.
O fato relevante é que sobre a produção científica de uma instituição
psicanalítica, exposta em uma publicação, entre outras manifestações, recai
enorme responsabilidade, nem sempre devidamente valorizada. Ela quase
sempre corresponde a uma reputação que lhe é atribuída, como um julgamento
de valor, ou seja, se é ou não de qualidade, mas deve, na verdade, ser entendida
como algo que está para além dessas considerações: ela é a guardiã da
autenticidade e legitimidade da psicanálise e dos psicanalistas, das sociedades
e de seus membros, para usar uma metáfora consagrada por Freud sobre uma
das funções do sonho, a de guardião do sono. É a produção científica, nestes
tempos de sociedades “psicanalíticas” evangélicas, que nos identifica e protege.
A nós, analistas, e à sociedade em geral.
Sem idealizar o saber teórico, embora sem superestimar a intuição, é certo
que, no momento em que se discutem a conveniência e formas de regulamen-
tação da Psicanálise, uma sociedade psicanalítica que expõe sua produção
regulamenta, secundariamente e “avant la lettre”, as relações com o meio social
no qual seus membros exercem o seu ofício.
É compreensível que a comunidade se interrogue sobre a formação e a
competência de seus analistas. Devemos nos preparar, sem espanto ou aflições,
para uma discussão a respeito de critérios e exigências para a formação
analítica. Propomos, desde já, a questão da regulamentação para a nossa
próxima seção temática.
Sergio de Freitas e Elie Cheniaux

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ENTREVIST A*:

Charles Hanly

Na entrevista que a revista Psicanalítica publica a seguir, Charles Hanly,


presidente eleito da IPA, responde, por e-mail, às questões formuladas
pelos colegas Alexandre Kahtalian, Rosa Reis e Idésio Milani.

RP - No Brasil já tivemos várias experiências de “site visit” e muitas delas


foram bastante traumáticas, levando algumas sociedades a precisar de um
longo tempo para se recuperarem das seqüelas sofridas. Por esta razão,
gostaríamos de saber de que maneira estaria sendo planejado o “oversight”?
C.H. - Estou ciente das dificuldades que ocorreram com os “site visits” da
IPA, no Brasil, alguns anos atrás. Entendo que alguns colegas, por alguma
razão, tenham ficado preocupados com o “oversight” exigido pelos três
novos modelos de formação.
Os “site visits” com os três modelos padrões ocorrerão quando o Instituto
da Sociedade componente escolher um dos três modelos que diferem do
modelo previamente seguido. Esses “site visits” serão de natureza colegial
e consultiva. Sua proposta será a de ajudar o instituto a encontrar a maneira
mais efetiva para que seus membros adotem e sigam o modelo escolhido.
O propósito das consultas é ajudar o Instituto a oferecer a melhor formação
possível para seus candidatos, de acordo com os métodos e exigências do
modelo escolhido.

*
Tradução: Luzia Mara Moniz Freire.

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RP - É visível a força da “marca” IPA na Europa e nos EUA. Que


estratégias a IPA pensa desenvolver com a finalidade de fortalecer esta
“marca” na América Latina, mais especificamente no Brasil, onde existe
atualmente um verdadeiro “mercado” de formações psicanalíticas de
qualidade bastante duvidosa?
C.H. - É muito importante que no Brasil, nas Américas e no mundo, as
letras “IPA” signifiquem que qualquer um com o título de membro da IPA
recebeu uma formação da mais alta qualidade na prática psicanalítica- “o
padrão ouro”, como é conhecido. A IPA formalmente adotou essa
designação para diferenciar os psicanalistas qualificados por ela dos
psicanalistas formados de acordo com padrões menos exigentes.
Por causa das diferenças lingüísticas no uso de termos como “Fellow”, foi
acordado que cada região deveria escolher a categoria apropriada de
designação. A América do Norte escolheu “FIPA”.
Se quisermos ser verdadeiramente convincentes para o público, será
necessário instituir procedimentos que mostrem nossa determinação em
manter os altos padrões de formação e prática tipicamente exigidos pelas
outras profissões clínicas junto com o nosso padrão de ética e formação.
Entre esses, poderíamos colocar a revisão dos membros que fazem análise
de formação, exigência de estudos continuados para os membros, um
modelo básico de currículo, etc. Estes passos requerem estudo cuidadoso
e debate meticuloso, mas algumas dessas tarefas em um nível apropriado
(a IPA talvez apoiando a implementação local) poderiam contribuir para
demonstrar nosso cuidado e alto padrão de práticas para o público.
Tenho a impressão que a designação FIPA ainda não pegou na América.
Penso que essa política precisa ser revista e avaliada. É possível que a
designação IPA, em função dos nomes e educação dos membros deveria
ser mais comunicativa: “Jane Jones, MD, IPA”.
Em geral nós deveríamos nos identificar como membros da IPA, usando o
emblema nas propagandas das conferências, exibições, etc., que
organizamos para o público em geral e, sempre que pudermos, deveríamos
nos esforçar para tornar esses eventos de qualidade tão boa, que o público
passaria a associar os psicanalistas da IPA a um padrão de excelência.
A IPA agora tem um Comitê Publico de informação, chefiado pelo Sergio
Nick. Ele vem fazendo um excelente trabalho de implementação das formas
e meios para se aumentar a conscientização pública para a psicanálise como
ciência e terapia.

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RP - Pode se dizer que o reconhecido pluralismo teórico da psicanálise


brasileira se contrapõe às correntes teóricas européias e americanas,
mais homogêneas. Em geral, os psicanalistas brasileiros consideram
positivo este pluralismo, porém, é certo que isto também pode ser visto
como falta de uma identidade da psicanálise brasileira. O que o sr. acha
a esse respeito?
C.H. - Eu tenho a impressão que o pluralismo teórico está amplamente
disseminado nas Américas do Norte e do Sul e suas questões indicam que
essa impressão é verdadeira no Brasil.
Psicanalistas devem especular sobre as teorias alternativas e testá-las em
oposição à observação clínica. Esse trabalho é útil para avaliar as teorias
existentes e para encontrar novas e melhores formas de substituí-las
quando as experiências clínicas não são mais satisfatórias. Especulações
oferecem possibilidades de novas observações. O desenvolvimento da
psicanálise em Freud é um testamento para a necessidade e utilidade do
trabalho de teste existente e para a busca de novas hipóteses de explicações.
Nós encontramos esse vital pensamento científico nas revisões de Freud
da teoria da psicanálise, da teoria da sedução , da dualidade do
desenvolvimento do impulso e relações de objeto, do modelo topográfico
e estrutural, da conversão à teoria dos signos da ansiedade, das teorias do
gênero idêntico ao gênero diferenciado do complexo de Édipo.
A meu ver, os membros da IPA são atualmente mais engajados nas
especulações do que nos testes clínicos das especulações. Eu penso que há
três direções e objetivos úteis para os psicanalistas tomarem atualmente
para alcançar a necessária, mas evitar a não necessária proliferação das
teorias de psicanálise:
a) Nós poderíamos tentar equilibrar especulação com observação.
b) Quando qualificamos uma teoria existente ou apresentamos uma nova
teoria, acrescentando uma inequívoca afirmação da teoria e suas
implicações, deveríamos especificar com clareza quais observações
clínicas a confirmariam e quais observações clínicas a falsificariam –
essa última é essencial porque nós sempre precisamos estar atentos
para as instâncias negativas.
c) Deveríamos ser tão empenhados em fazer referências cruzadas e
integrar teorias existentes como em formular novas teorias.

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RP - De que maneira a IPA pode auxiliar a FEPAL no trabalho de


implementação de novos núcleos de formação em países latino-americanos?
C.H. - A IPA, em cooperação com a FEPAL, recentemente estabeleceu o
Instituto Latino Americano de Psicanálise para estimular, guiar e facilitar
o desenvolvimento da psicanálise na América Latina e, especificamente,
em alguns países da América Latina que ainda não têm sociedades
componentes ou que possam não ter membros da IPA. Basicamente, o
mandato do Instituto Latino Americano está para a América Latina como
o mandato do Instituto Han Groen-Prakken está para o Leste Europeu. O
Instituto do Leste Europeu também deve sua origem à cooperação entre o
corpo regional, nesse caso o EPF e a IPA. O Instituto do Leste Europeu
tem sido bem sucedido. Eu antevejo que o Instituto da América Latina,
agora instalado e funcionando com uma liderança capaz, será também
bem sucedido. A IPA deve continuar a apoiar junto com a FEPAL, o bom
trabalho do novo Instituto regional. A IPA pode se beneficiar da experiência
do Instituto da América Latina em seu esforço para facilitar o desenvolvi-
mento da psicanálise na Ásia e Oriente Médio.

RP - O sr. acredita que se possa viabilizar uma maior adequação da


contribuição financeira feita pelas sociedades latino-americanas à IPA?
C.H. - Uma vantagem significativa do atual método é sua objetividade. O
método remove qualquer possibilidade de “acordos políticos” ou
tratamento “especial”. A conseqüência significativa dessa vantagem é que
ela acaba com a atitude dos membros que pagam taxas “cheias”, de olhar
com desconfiança ou condescendência para os membros das sociedades
componentes que pagam taxas reduzidas. Também não há nenhuma
regionalização para redução das taxas no atual sistema. O critério é aplicado
a todas as regiões e a todas as sociedades componentes de forma equânime.
Essa é uma importante vantagem que ajuda a promover relações saudáveis
entre as sociedades componentes. Desse modo, nós não gostaríamos de
fazer nenhuma mudança que a comprometesse. Contudo, embora não haja
plano atual para mudar o método existente, eu estaria interessado em
qualquer proposta que melhorasse esse método, acabando com qualquer
iniqüidade que possa surgir e que não comprometa suas vantagens.

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RP - Qual a sua visão a respeito da discussão entre psicanálise e psicote-


rapia?
C.H. - Minha própria experiência clínica tem me persuadido que formação
em psicanálise é também formação em psicoterapia psicanalítica. Contudo,
como a literatura deixa claro, é preciso ter atenção especial na freqüência
e nos tipos de interpretação de transferência usados em psicoterapia
psicanalítica. A adaptação para menos sessões e a relação face a face com
os pacientes é mais fácil por que a regra básica e a técnica de associação de
interpretação e transferência é preservada. Analistas que têm dificuldade
em fazer análises, deveriam procurar supervisão com psicoterapeutas
psicanalistas mais experientes e bem sucedidos. Nós sabemos que Freud
fez psicoterapia psicanalítica em vários cenários, algumas vezes
improvisados. Em circunstâncias ideais, é possível facilitar um processo
de análise em psicoterapia psicanalítica. Existem outras psicoterapias.
Analistas, ao aumentar o elemento de apoio na terapia, são capazes de
ajudar pacientes que passam por severas depressões e que não
responderam aos medicamentos ou somente à psicoterapia de apoio, etc.
Além disso, bem treinados psicoterapeutas que não são psicanalistas,
podem oferecer efetiva psicoterapia. Em minha opinião, há uma base
segura para a cooperação entre psicanalistas e psicoterapeutas que são
psicanaliticamente orientados e informados.
A filial em Toronto da Sociedade Psicanalítica Canadense, muitos anos
atrás, iniciou um avançado treinamento de psicoterapeutas e psiquiatras
em psicoterapia psicanalítica. O programa de treinamento não pode ser
confundido de maneira alguma com psicanálise. Esse é um projeto da
Sociedade e não do Instituto. Essa oportunidade de treinamento é
especialmente válida porque nem os departamentos de psicologia das
universidades, nem o corpo docente das faculdades de serviço social ou
faculdade de medicina, oferecem treinamento adequado em psicoterapia
psicodinâmica na nossa jurisdição. Nosso programa preenche uma lacuna
no treinamento de psicoterapeutas de alto nível profissional. Pode-se
acrescentar que ele ultrapassa as expectativas, já que alguns dos graduados
no nosso programa de psicoterapia psicanalítica se tornam candidatos em
nosso programa de psicanálise.

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RP - .O sr. acredita que exista uma crise da psicanálise em termos de


paradigma científico. Esta crise não estaria levando a um crescimento
de correntes biológicas, neurocientíficas, etc, que têm atraído muitas
pessoas interessadas em processos terapêuticos?
C.H. - Por algum tempo houve um conflito entre psiquiatria farmacológica
e psicanálise. Quando eu comecei minha carreira, todas as cadeiras de
psiquiatria em Ontário (e o mesmo certamente ocorria nas maiores escolas
de medicina dos Estados Unidos) eram dominadas por psicanalistas. No
presente, que eu saiba, nenhum psicanalista tem esse cargo em nenhum
lugar na América do Norte. Na América do Norte, a batalha está perdida.
É minha impressão, talvez resultado do fato de acreditar que o “pasto do
vizinho é mais verde”, que essa mudança tem sido menos radical na
América Latina. No corpo docente de medicina da minha universidade,
há agora muito poucos psicanalistas.
Há uma guerra ocorrendo, na qual alguns biólogos e neurologistas estão
atirando nos psicanalistas. Um exemplo de um biólogo é Richard Dawkins
(cujas noções de evolução cultural e conceito de mneme poderiam
provavelmente ser enriquecidas pelo entendimento psicanalítico das
contribuições para identificação do desenvolvimento geracional), um outro
médico e biólogo, é Peter Medawar. Nós frequentemente lemos a alegação
dos neurologistas de que algumas descobertas neurológicas refutam a
teoria do sonho de Freud, etc. Na verdade, uma leitura cuidadosa desses
resultados, baseados num entendimento adequado de psicanálise, revelará
que essas descobertas são perfeitamente compatíveis com várias teorias
psicanalíticas. É meu ponto de vista que, quando tudo se acalmar,
saberemos que, quanto mais se aprende sobre a evolução do ser humano e
sobre a maneira que o cérebro trabalha, mais essas ciências corroborarão
a psicanálise. Nesse meio tempo, a psicanálise pode deixar de lado a
herança Lamarckiana de características adquiridas, sem a perda de
nenhuma hipótese ou essencial explanação para isso.
Essa relação com a biologia e a neurologia tem a ver com as bases científicas
da psicanálise, já que somos animais evoluídos com vidas psíquicas que
devem sua existência ao cérebro e ao sistema nervoso central. Mas no
presente, pelo menos, parece que a psicanálise como terapia é improvável
de se alterar com essas descobertas. Nós devemos sustentar o bom nome
da terapia psicanalítica oferecendo efetivo tratamento para as neuroses e
desordens de caráter. A munição que nós precisamos para vencer a batalha
da terapia psicanalítica é conseguir análises bem sucedidas e boas
publicações sobre psicanálise como ciência e terapia.

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RP - Levando-se em conta que os psicanalistas de língua portuguesa são


aproximadamente 20% do total de membros da IPA, há perspectivas para
que o português seja uma das línguas oficiais da IPA?
C.H. - O problema do idioma oficial da IPA é essencialmente financeiro.
Isso tem sido um problema que nos acompanha há muito tempo, e ele só
tende a se tornar mais difícil. Nos anos 80, a questão da substituição do
alemão pelo italiano ou português foi levantada. A decisão naquele momento
foi a de não fazer mudanças porque o alemão era o idioma de Freud e o
custo do quinto idioma oficial era proibitivo. Nada foi feito. Talvez seja a
hora de se conduzir uma análise de custo e beneficio e ver o que os membros
gostariam de fazer sobre a igualdade de direitos de idioma na IPA.

RP - Sabe-se que em alguns países são admitidos para formação


psicanalítica, profissionais que não são médicos ou psicólogos. O sr. é
favorável à entrada destes profissionais?
C.H. - Deixe-me, de cara, mostrar restrição em relação a essa pergunta.
Eu não sou nem psicólogo, nem médico. Meu Ph.D. é em Filosofia. Antes
de me tornar psicanalista, eu era acadêmico. Meu primeiro paciente foi
meu primeiro caso de supervisão. Mas eu acredito que indivíduos que não
são médicos, psicólogos ou assistentes sociais devam ser formados para
praticar a psicanálise baseado em duas considerações. No livro ‘The
question of lay analysis’ (A questão da análise leiga), Freud foca seu caso
geral em candidatos com conhecimentos humanístico e científico, e não
em candidatos das áreas médicas ou de psicologia acadêmica. Alguns dos
que mais contribuíram para o campo da inquirição psicológica e da prática
terapêutica foram pessoas com formação humanística, como Melanie Klein,
Anna Freud, Erik Erikson, Robert Waelder, Ernst Kris, Marie Bonaparte,
Janine Chasseguet-Smirgel e Joyce McDougall.

RP - Em sua opinião, a análise de formação deve ter um número específico


de sessões pré-programadas ou deve ficar a critério da dupla analista-
analisando?
C.H. - Eu acho que uma boa análise, uma análise que apresente reais
melhoras no modo como se vive a vida, é equivalente a uma grande obra
de literatura, com princípio, meio e fim. O mesmo ocorre com uma boa
formação analítica. Quanto tempo o processo levará, o tempo que o

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analisando precisará para alcançar um ponto no qual a auto-análise passe


a se dar automaticamente, não como uma identificação idealizada com o
analista, mas como resultado de solução de conflitos e fortalecimento de
sua capacidade de crescimento psíquico independente de auto-
conhecimento e compreensão, é uma questão pessoal. Não pode ser
receitada.
Uma análise de formação é fundamentalmente pessoal. Contudo, ela é
também parte essencial da preparação do candidato para analisar os outros.
As exigências da formação sobrevêm em um ponto. Um candidato deveria
ter as vantagens de estar em análise enquanto faz análises supervisionadas,
em parte ou no todo.

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ARTIGOS

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O analista como
objeto persecutório*
Maria Inês Neuenschwander Escosteguy Carneiro**

Aos pacientes dos psicanalistas,


com os quais aprendemos
nosso ofício.

Resumo
Através de um caso clínico, a autora procura demonstrar como a
relação primitiva dominante, correspondendo àquele padrão que
mais se repete na relação mãe-bebê, se impõe na transferência, em
busca de soluções para os impasses dos encontros primitivos. Tal
repetição na transferência pode ser tão intensa, o objeto-analista
tão idealizado , o controle e a onipotência tão agudos, que tornam
as análises de pacientes desse tipo às vezes impossíveis, quando
alguma ameaça externa de fato acontece.
Unitermos: relação primitiva dominante; impasses relacionais;
objeto persecutório.

*
Primeira versão desse trabalho publicada no Boletim Científico 18, 1996, Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
**
Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.

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Summary
Through the description of a clinical material the author formulates
the hypothesis of a pattern, in the primitive mother/child relation,
which is mostly repeated there and which the author calls “the
domineering primitive relation”. Such pattern comes to the fore in
the transference as a possibility for solving primitive impasses.
Nevertheless, the repetition of such a pattern in the transference
can be so intense, the analyst so idealized, control and omnipotence
so acute that sometimes the whole analytical process becomes
impossible, mainly in cases when an external threat really occurs.
Key-words: domineering primitive relation; relational impasses;
persecutory

I- Algumas considerações introdutórias

Desde o início mais precoce do desenvolvimento mental, há uma


constante relação entre os objetos reais e aqueles objetos instalados no
self , como diz Melanie Klein em seu artigo de 1935, A contribution to the
Psychogenesis of Manic- Depressive States (7) .Os objetos instalados no
self são sinônimos para mundo interno, sendo este, em última instância, o
resultado da interação dos processos de introjeção e projeção, sempre
relacionados à fantasia inconsciente, que dá identidade e colorido às
identificações projetivas . A literatura sobre mundo interno, de kleinianos
ou não, é significativa. Também já é conhecido em demasia, e sua aplicação
extensa, o conceito de identificação projetiva, apresentado por Melanie
Klein em 1946. Sem dúvida Melanie Klein foi quem, primeiramente,
estabeleceu um conceito de mundo interno, organizado em torno de
relações objetais. Não é meu propósito, todavia, transformar o que pretende
ser um relato clínico, numa compilação de trabalhos. Correria o risco de
ficar descritiva em excesso, teórica em demasia, e este não é o objetivo
deste relato, e sim, mostrar através da clínica como se apresentam tais
conceitos. Assim, as referências teóricas serão as que me pareceram
necessárias e devidas para alguns esclarecimentos . O mundo interno é
povoado por objetos apreendidos do mundo externo, mas transformados
pelas fantasias. Essa autonomia interna, para gerar e alimentar fantasias,
propicia que as mesmas possam ser modificadas também, em direção à

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realidade. Tais modificações ocorrem por várias razões, externas e internas,


mas principalmente porque existem sempre novas possibilidades
relacionais, nessa constante e fantástica qualidade de renovar, inerente
ao ser humano. Entretanto, tais possibilidades relacionais inovadoras nem
sempre são possíveis, e muito menos o são , invariavelmente, de natureza
benigna. Se as interações relacionais no mundo interno se configuram,
em sua maioria, de natureza persecutória, a reedição de modelos anteriores
será sempre dominante, pelo menos até que mudanças psíquicas possam
ocorrer. Naturalmente, refiro-me às conseqüências do estado interno na
vida do sujeito como um todo, não apenas em relação ao que experimenta
dentro, mas como esse estado interno compromete o que está fora. O
analista pode vir a funcionar como um dos objetos persecutórios, como
tentarei expor a seguir.

II- O mundo interno e alguns de seus teóricos

Joan Riviere (12) , a respeito do mundo interno, diz com clareza e


elegância : “...é um daqueles conceitos psicanalíticos que muitos acham
especialmente difíceis de aceitar e compreender. É um mundo de figuras
formadas a partir do padrão das pessoas que primeiramente amamos e
odiamos na vida, as quais também representam aspectos de nós mesmos”.
Ogden (11) lembra-nos de que Freud, mesmo não usando o termo objetos
internos , na Interpretação dos Sonhos (4), fala em traços de lembranças
inconscientes , com o poder de perpetuar os sentimentos presentes nas
experiências primitivas . Em Luto e Melancolia (5), Freud fala em
identificação com o objeto perdido, cuja sombra se abate sobre o ego. Tal
identificação tomaria o lugar do objeto dentro do ego, fazendo, assim, parte
do mundo interno. Creio que está claro que o termo interno não se refere
a nada semelhante a um lugar, mas fundamental e exclusivamente, a um
evento mental: o mundo interno é o somatório das fantasias inconscientes.
Melanie Klein (8) mostra-nos que a fase das experiências primitivas, desde
o nascimento até o primeiro ano de vida, é caracterizada por intensificação
do sadismo, que tende a diminuir, todavia, ainda nesse primeiro ano.
Correspondendo à diminuição do sadismo, a situação edípica se
configuraria no começo da posição depressiva, a partir, portanto, das
relações primitivas. Como o desenvolvimento infantil é pautado por
movimentos de projetar e introjetar, necessariamente a noção de
internalização conterá, no início da vida relacional, o splitting do ego em

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partes boas e más, exatamente como o splitting do objeto . Projetando o


bom , introjetará o bom , e assim também será quando projetar o mau .
Como estamos falando num evento mental , portanto em fantasia, sem
dúvida os impulsos agressivos projetados no objeto serão introjetados como
partes más do objeto, transformando-os em persecutórios . A repetição
desses mecanismos (bom/mau, projeção/introjeção) em constante
interação com o mundo externo, é o que permitiria, numa evolução
satisfatória, que ocorresse a boa relação de objeto. Bion (1) criou o
importante conceito de reverie, que seria, resumidamente, a capacidade
materna de transformar, através de sua função alfa, a angústia do bebê,
projetada para dentro dela, em algo que seja tolerável para o próprio bebê.
Esse modelo, o do continente/contido, é a matriz que proporcionará a
capacidade de pensamento ser desenvolvida , supondo-se que haja um
bom entrosamento entre mãe e bebê, e que as características pessoais de
cada um funcionem em harmonia. Caso tal possibilidade não ocorra,
acredito que uma repetição primordial dos momentos de impasse
continuarão a ocorrer, em busca de solução. Chamo esse modelo do
impasse em busca de soluções de relação primitiva dominante. É o modelo
de relação que mais se repetiria para cada par , nos moldes dos encontros
e desencontros das relações primitivas. Naturalmente, a relação primitiva
dominante poderá ter sua repetição primordial de natureza benigna; nesse
caso, servirá de atenuante para os momentos de maiores perturbações,
que certamente ocorrem mesmo nas relações mais harmoniosas. Todavia,
nos casos em que a repetição primordial é de natureza persecutória, o que
se repetirá é o impasse, em busca de soluções para o modelo relacional
primitivo. Esse é, justamente, o ponto de maior interesse no caso que mais
adiante passarei a relatar e comentar. O desejo de expulsar o objeto (na
transferência, a analista) nada mais é, como lembra Paula Heimann (6),
do que uma reação ao aspecto persecutório que o objeto pode tomar;
porém, o medo de perder o objeto e seus bons aspectos é das mais severas
ansiedades vividas pelo ser humano. Concordo inteiramente com Paula
Heimann . Creio que esta particularidade também será parte de qualquer
relato clínico, pois na transferência o objeto bom e mau sempre será o
analista. Fundamental, para um desenvolvimento emocional integrado,
será a aquisição, pelo sujeito, da capacidade para superar seu pânico
paranóide dos perseguidores internos, ou seja, vivendo a experiência
reparadora na fase de transição das relações parciais de objeto para as
relações totais de objeto na posição depressiva. É o que chamamos, num
processo psicanalítico de termo satisfatório, de mudança psíquica.

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Uma das hipóteses que faço para o caso clínico aqui relatado é a de que
tal transição não pôde ocorrer na vigência contemporânea da relação mãe/
bebê, gerando uma inexorabilidade na repetição desse modelo primitivo,
o dos objetos persecutórios.
Pessoas com tais características paranóides desenvolve, ao longo da
vida, um agudo senso de observação do mundo externo, para controlá-lo
e, assim, onipotentemente, minimizar suas ansiedades. Acredito que não
chegam a formar uma organização patológica, como diz Steiner (15), onde
há um enrigecimento defensivo entre as posições, ou no interior de uma
ou de outra. As defesas, como no caso aqui apresentado, não são rígidas,
ao contrário, afrouxam-se a qualquer ameaça e aumentam o pânico.
Entretanto, o sentido de realidade é freqüentemente distorcido, o que faz
com que o mundo externo seja visto pela ótica do ser ou não persecutório,
apenas, e a repetição de um impasse relacional primitivo é o resultado .
Como sabemos que, desde o princípio do desenvolvimento, há constante
interação entre o interno e o externo, é fácil entender o porquê dessa ótica
distorcida: apenas quando o objeto é vivido como um todo e, como tal, amado
e sentido como confiável, é que a falta pode ser sentida como um todo, e não
apenas como sinal de um objeto mau e perseguidor. Se as dificuldades na
introjeção de um objeto bom inteiro e reparado não se amainaram, o modelo
relacional que o sujeito levará será o dos objetos persecutórios.
A análise do mundo interno , portanto, a análise das relações de
objetos internos, deverá centrar-se em explorar tais relações e as
maneiras pelas quais o paciente resiste, alterando essas relações internas
inconscientes para as experiências presentes, diz Ogden (11). Essa é uma
clara compreensão sobre o que deverá ocorrer num processo psicanalítico.
Nesse mesmo trabalho de 1983, Ogden(11) refere-se ao fato de Melanie
Klein misturar idéias de que as relações de objetos internos são fantasias
e, ao mesmo tempo, relações entre duas instâncias com capacidade para
sentir, pensar, perceber, etc. Parece-me que seria mais próprio considerar
uma relação entre fantasias inconscientes. Nesse tipo de pacientes, existe
uma equiparação do objeto às fantasias a ele relacionadas. Não há uma
simbolização desenvolvida o suficiente para representar mentalmente o
objeto, como mostra Segal (14), mas sim, uma equação simbólica, a
equiparação do objeto às fantasias a ele relacionadas. Portanto, os objetos
tornam-se altamente ameaçadores . Na transferência, espera-se que o
analista esteja integrado o suficiente para receber as projeções de seus
pacientes e processá-las, devolvendo-as, pelas interpretações, de maneira
menos ameaçadora. Em certos casos, como no que relatarei, as experiências

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primitivas mantêm-se tão aterradoras, que facilmente farão sucumbir as


tentativas incipientes de reparação no mundo interno.
Nos primeiros momentos de vida mental, onde, segundo as concepções
kleinianas, existe um ego incipiente, mas já com compatível capacidade
para projetar, fantasiar e defender-se, a idealização do objeto é uma das
defesas necessárias. Esse objeto idealizado, naquele momento, protege o
ego de suas próprias projeções violentas, pois, na fantasia, o objeto ideali-
zado é inatingível . Mas só quando o objeto é percebido como total, e portanto,
não como uma entidade boa ou má, é que surge a terrível realidade: não
mais o objeto idealizado é o atacado, e sim, o bom objeto. A tarefa de
reparação é a mais sofisticada missão da mente: todavia, nem sempre é
possível levá-la a termo com razoável qualidade: maior suscetibilidade e
vulnerabilidade ocorrerão, se o mundo interno estiver fundamentalmente
povoado por objetos persecutórios. E nas relações de uma dupla analítica,
mesmo que haja um bom processo de análise em andamento, e que o
analista seja capaz de conter as projeções do paciente e mostrar-se inteiro
e criativo, do ponto de vista do paciente esta relação será frágil.
Fairbairn (3) fala de um fenômeno de lealdade ao mau objeto interna-
lizado: diante da dificuldade do estabelecimento de um bom e tranquili-
zador objeto, é melhor o mau objeto que nenhum. Segundo ele, a saúde
mental dependerá primordialmente das relações de objeto e de como estas
poderão se repetir nas relações humanas, e principalmente, na relação
paciente/terapeuta. Riesenberg-Malcolm (12) lembra-nos da equivalência
do superego aos objetos internos. Este, que começa a ser formado desde o
início da vida mental, pode passar por várias vicissitudes em sua
constituição. Se excessivamente rígido, contribui para que as características
dos objetos primitivos persecutórios permaneçam inalteradas. Stephen (16)
reforça essa idéia, mostrando que, em caso de severidade extrema, ao invés
de se transformar numa instância amistosa e norteadora, imporá ao sujeito
uma crueldade que , acredito, se reproduzirá nas relações objetais atuais,
sendo a relação analítica uma delas.
Como diz Meissner (9), a qualidade das relações de objetos está sempre
influenciada pela organização psíquica de cada um. Meissner (9) enfatiza
bastante a importância das relações infantis primitivas, que poderão ou
não ser modificadas com o desenvolvimento do ego.
A respeito do mundo interno e seus objetos e alinhada ao pensamento
kleiniano, penso que aquele contém o resultado final das experiências
primitivas da criança e seus objetos, tanto parciais como totais, e que
englobam projeções e introjeções dos objetos, também; para sempre

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estarão interagindo o mundo dos impulsos e suas motivações, sendo a


relação objetal em si o resultado dessas interações, o que, fatalmente,
conterá as qualidades inerentes ao objeto: portanto, numa dupla, ambos
estarão funcionando sob o mesmo princípio. Meissner(9) resume assim:
a conexão entre o que é internalizado e as relações com os objetos são
mutuamente determinantes e reciprocamente correlatos.
Outro importantíssimo aspecto relacionado aos processos de interna-
lização é a sublimação. Heimann (6) nos lembra de que a capacidade para
sublimar é a descarga dos impulsos em direção à criação. Certamente não
se refere apenas ao ato supremo de criação, a procriação, mas a qualquer
ato criativo, entre os quais inclue-se o processo analítico, que deverá levar a
uma aproximação maior com a realidade . No entanto, Heimann(6) nos
adverte, muito apropriadamente, que a sublimação e consequente assimi-
lação dos objetos internos não conduz a uma condição estática : o mundo
interno é um eterno drama de ação e vida, onde se misturam amor e ódio,
sempre ansiando por sublimações . E naturalmente, não estão abolidos os
conflitos apenas porque uma capacidade para sublimar foi bem sucedida.
Lois Munro (10), em seu relato clínico sobre internalização e identi-
ficação, afirma que alguns pacientes, a princípio, sentem o analista como
uma coleção repetida de objetos primitivos , e não como uma pessoa total,
capaz de entendê-lo, ser um bom analista e ao mesmo tempo, precisar
ausentar-se. Tais pacientes seriam reedições de bebês vorazes, sádicos,
constantemente ameaçados pela falta da mãe. Haveria, ainda, da parte do
sujeito, uma crença na capacidade destrutiva de seus ataques fantasiosos.
No entanto, ainda de acordo com Munro (10), a repetição transferencial
desse padrão seria a tentativa de lidar com a primeira perda do objeto.
Interessante é a ideia de Munro(10), de que é preciso, em primeiro lugar,
restaurar os objetos parcialmente, um a um, conforme apareçam, para
depois restaurá-los e vivê-los como um todo.Um bom termo para o trabalho
analítico seria a diferenciação, integração e reparação dos objetos
primitivos, através da capacidade de reconhecer e experimentar os
impulsos e emoções referentes a cada um desses objetos primitivos.
A ideia de Munro (10) é que esse tipo de paciente (como creio ser o
aqui apresentado), acumula identificações mais do que integram-nas ao
ego. São indivíduos levados a acting-outs e tendem a repetir compulsi-
vamente o passado.
Gostaria, ainda, de citar Marjorie Brierley in Internal Objects and
Theory (2), em dois momentos: o primeiro deles, num exemplo do que é
um evento psicológico , como diz a autora:

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Um indivíduo com excesso de acidez estomacal, come maçã verde e


amarga e provavelmente sentirá dor. Sobre a dor, poderá dizer: “Aquela
maçã está fazendo um buraco no meu estômago.” Efetivamente, é uma
fantasia. Os processos que ocorrem no estômago fazem com que se sinta
dessa maneira. O que realmente ocorre no estômago será mais
acuradamente descrito por um médico .
O segundo momento diz respeito às diversas correntes teóricas sobre
os objetos e suas relações com a psicanálise: Este é um assunto que deve
ser longamente e detalhadamente investigado, e necessita do esforço e
cooperação de todos os analistas que trabalham .
Quero completar com minha opinião: mais que um assunto fundamen-
talmente teórico, o mundo interno e as relações de objeto são temas
clínicos.
É meu desejo que o relato a seguir possa despertar algum interesse e,
principalmente, servir como troca de experiências.

III - O paciente, sua história, sua análise

a) Primeiro contato
Ainda como analista em formação, recebi uma ficha para atendimento
pela Clínica, de um paciente que até hoje motiva-me a pensar . Chamou-
me a atenção a pobreza vocabular: das queixas explícitas, apenas duas :
sente-se deprimido e sem vontade de viver. Informa, ainda, ser frustrado
no trabalho, além de ganhar pouco. Sua idade, 40 anos. Divorciado, pai de
duas filhas, grau universitário, sem exercer a profissão na qual se graduou.
Quando chamo o número telefônico informado,há um recado na secretária
eletrônica, gravado com voz masculina bastante descontraída, onde Oscar
se identifica. À noite, responde à minha mensagem e concordou, sem
nenhuma restrição, com o horário que lhe ofereci para a entrevista.

b) As entrevistas
Chega pontualmente e cumprimenta-me com educação, até mesmo com
formalidade e pompa, curvando a cabeça. Sua postura poderia ser descrita
como a de quem vai tratar de negócios .Tem aparência cuidada, veste-se
com simplicidade, com barba cerrada e longa e cabelos grisalhos. Parece
desenvolto, exatamente o oposto da precária comunicação da ficha
.Todavia, há algo em toda essa atmosfera atenuante que transmite extrema

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frieza. Não demonstra, por exemplo, ser o deprimido a que se refere na


ficha. Pensei que o não parecer deveria esconder uma depressão genuína,
com a qual não tem contato. Oscar informa que chegou à Clínica por
indicação de um psicanalista de quem é “amigo pessoal”, e que também o
tratou três vezes por semana. Como o preço ficou inviável e não aceitou a
primeira sugestão, tratar-se em grupo, aceitou a segunda, procurar a
Clínica. Indago sobre o quê, basicamente, o levou a buscar ajuda. Responde
que foi um sentimento constante de frustração , que era entendido na
análise como um boicote meu a mim mesmo, pois faço sempre as piores
escolhas para não dar certo. Pergunto-lhe em que situações isto ocorria,
e Oscar começa a falar sobre a vida dele, mas, ao invés de ser um relato
vivo, personalizado, parece o de alguém narrando um fato alheio, sem a
emoção de principal personagem. O pai, de origem européia, foi muito
rico. Casou-se com uma brasileira e tiveram dois casais de filhos de idades
próximas , sendo Oscar o mais velho; pouco fala de seu irmão, referindo-
se a ele como um inexpressivo, e mesmo às duas irmãs refere-se
esporadicamente . Até seus vinte e quatro anos, usufruiu dos fartos recursos
familiares: dinheiro, viagens, carro, etc... mas ,informa Oscar: Meu pai,
muito rígido, não me deixava aproveitar, me obrigava a trabalhar e
estudar. Esta é uma característica acentuada de Oscar, observada mais
tarde: o excesso de identificações projetivas faz com que sinta que possui
tudo, portanto, seria normal e natural sua expectativa de receber, sem
necessariamente dar nada em troca. Em contrapartida, com frequência
refere-se a si mesmo como um vazio . A pobreza vocabular, que me chamara
a atenção, transformou-se no seguinte: a verdadeira pobreza de Oscar era
a falta de contato com as experiências emocionais, o que se traduz em
extrema frieza aparente. Hoje acrescentaria a compreensão de que vivia
em pânico persecutório, acuado por objetos que perseguem e são
perseguidos, daí a necessidade de imobilizar-se . A maneira como
descreveu sua separação da mãe de suas duas filhas e namorada desde a
adolescência, deixa bem claro esse funcionamento: No primeiro dia, foi
ruim; o segundo dia, nem tanto; uma semana depois, estava achando
ótimo . Na ocasião, mantinha um relacionamento, onde tudo é muito
misturado , com a ex-mulher do ex-cunhado. Eis como informa: Ainda
casados, os quatro freqüentávamos o sítio do nosso sogro. A gente se
queixava de nossas vidas conjugais, um para o outro. Um dia, começou
uma conversa maliciosa, dei um beijo nela e foi adiante. A necessidade
de controle onipotente dos objetos faz com que Oscar se misture com as
pessoas: passa a fazer parte delas e as pessoas, a fazer parte dele. Assim,

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constantemente vive lidando com angústias destrutivas de tal monta, que


só poderia tolerar por intenso splitting . Evidentemente, não percebia seus
mecanismos mentais. Depois que saiu da primeira entrevista, noto que
esquecera a bolsa encostada à estante, ao lado da cadeira em que se sentara.
Alcancei-o na porta e lhe dei a bolsa. Para a segunda entrevista, dois dias
após, chega sorrindo e senta-se. Começa logo a falar, dizendo-se intrigado
com aquele esquecimento da bolsa com todos os documentos. Comenta :
Logo eu, que nunca me esqueço de nada! Deve haver uma explicação
racional e lógica. Achei conveniente dizer-lhe que uma explicação racional
e lógica talvez não houvesse, mas que poderíamos entender de outra
maneira: aquele gesto comunicava que ele já havia deixado aspectos
importantes dele comigo, para que eu tomasse conta. E ele respondeu:
Interessante, esta forma de entender as coisas...Pode ser, pois desde
ontem estou preocupado com o que posso pagar, pois me interessei em
vir aqui.É muito pouco, quem sabe uns ... (fala uma quantia absolutamente
baixa e inaceitável). Teoricamente, meu pai poderia me ajudar, mas minha
mãe é uma terrível sovina e não deixa. Fiz a fantasia de que estaria me
testando, para ver se eu era sovina, ou se poderia aceitá-lo como ele era,
sem me dar muito, mas equivocadamente acreditando que já me dera
muito, como mostrou no episódio da bolsa. Digo-lhe que ambos sabíamos,
pois eu o chamei, que o pagamento seria menor que o convencional, mas
não aquém de suas possibilidades financeiras. De imediato, concorda e
me pareceu aliviado, oferecendo o dobro, com esforço, apertando ,
completa. Aceita as regras da análise que então lhe comunico: cinco vezes
por semana, férias, horários, duração das sessões... Então, olha o divã e
me interrompe, perguntando-me se terá que deitar-se. Digo que deitar-se
é a melhor maneira para se trabalhar, tanto para mim, quanto para eles e
que eu sugeria, sim, que ele se deitasse. Informa que nunca se deitou, mas
que tentará, completando: Com o outro analista, era uma porrada só.
Todos os dias muita discussão. Insistia para que eu levasse sonhos.
Imagina! Nunca me lembro, só se escrever. E eu respondo que ele estava
querendo saber como eu seria: se eu impusesse situações, querendo mudá-
lo, teríamos uma análise de porrada . Oscar olha-me e concorda com a
cabeça. Assim iniciamos o que viria a ser nossa curta trajetória.

c) Alguns aspectos importantes das sessões


Tentarei ilustrar, com partes que me pareceram mais pertinentes, o
modelo de relação que Oscar me trazia e que tentava repetir comigo.Nesse
modelo primitivo, o esvaziamento dos sentimentos para fugir da angústia

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era freqüentemente referido, e as conseqüências, sempre persecutórias.


Na primeira sessão senta-se e mostra-se incomodado, bem diferente da
atitude solta das entrevistas. Com a cabeça baixa, diz: Vou ter um pouco
de dificuldade de falar o que me vier à cabeça. Sei que vou.Eu me acho
uma pessoa absolutamente fria. Já perdi algumas pessoas queridas e
não senti nada. Um grande amigo meu sofreu um acidente e morreu no
hospital. Não senti nada! A minha irmã perdeu um filho aos seis meses.
Quando foram me avisar, estava dormindo e respondi: Ah, é? E continuei
a dormir. Quando levantei, tomei banho e fui para a casa dela. E daí vi
aquela criança, fria e sem vida. Eu não sei onde enfio as informações. É
como se eu as recebesse, e separasse de mim.Acho que assim é prático.
Digo-lhe que dessa maneira que descreveu ele tenta destituir-se de aspectos
dele mesmo, assim frios e sem vida, e fica sem saber onde os enfia, e ele
concorda, completando que sente que tem que se proteger sempre de algo
que não vê. Acredito que Oscar referia-se a viver num clima interno de
pânico constante, do qual quer livrar-se, espalhando-se projetivamente,
para controlar o pânico de fora, dessa forma que ele classifica de prática.
Durante o tempo que durou meu trabalho com Oscar, um curto e intenso
período de cinco meses, na maioria das sessões vi-me diante de um homem
em pleno vigor de sentimentos primitivos , principalmente de cunho
violento e sem elaboração. Seus momentos mais integrados foram efêmeros
e fugidios, o que seria de se esperar, numa análise ainda se iniciando.
Entretanto, foi um paciente assíduo e pontual. Creio que era uma forma
de mostrar que tentava fazer uma boa aliança comigo, embora sob seu
controle. Apesar da alegada dificuldade, deitou-se com poucas sessões, e
nesse dia fala de um armário que a mãe mantém fechado, cheio de coisas
importadas, as quais não usa e não dá para ninguém. Creio que Oscar estava
me mostrando, e é o que lhe digo, que temia que eu fosse roubá-lo do que
ele possuia dentro dele, mesmo que esse conteúdo, como o do tal armário,
estivesse sem uso. Oscar freqüentemente diz que sente a cabeça oca . Mas
diz também que quando sai das sessões, sente-se mais alegre, mais
tolerante. No entanto, tais sentimentos são muito tênues, embora ele tente
usar a relação comigo e a possibilidade de ser compreendido como proteção
contra impulsos destrutivos. Por exemplo: numa sessão, Oscar informa
que na noite anterior estava insone e com frio. Buscou um édredon e se
cobriu. E começou a pensar numa briga que teve com o cunhado, um grosso
, a respeito de antiga dívida daquele com seu pai . Sentiu-se triste, pois
achava que tinha sido injusto com o cunhado e pensou que, quem sabe,
um dia, poderia pedir desculpas. Nesse momento, diz que ,embora não se

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lembre exatamente em relação a quê , pensou em mim e no som da minha


voz falando com ele .Acredito que foi uma tentativa clara de me buscar
dentro dele como uma proteção-édredon, que o ajudasse a tolerar seus
ataques raivosos e destruidores, e foi isso que lhe disse. Penso serem os
pacientes como Oscar pessoas que necessitam internamente, mesmo que
não o digam, de um analista que possa ser percebido como absolutamente
disponível, em todos os momentos, como o édredon que ele pode puxar,
quando necessita. Como essa é uma exigência inócua, pois tal objeto
inefavelmente disponível não existe, as relações terapêuticas tornam-se
muito frágeis, embora aparentemente vigorosas. Mesmo que não
tivéssemos tido tempo para desenvolver uma análise completa, creio que
tais pacientes vivem os aspectos invejosos e vorazes com grande
intensidade, embora só apareçam com mais clareza a violência e o
conseqüente estado persecutório, principalmente no início, como acontece
no caso aqui descrito. Em outra sessão, Oscar fíca silencioso por alguns
minutos. Percebo que a sessão está vazia. Senti, então, que o vazio estava
prestes a me envolver também. Surge-me a imagem de Oscar como uma
represa toda selada, que, quando explode, leva tudo. Assim, o silêncio teria
a finalidade de nos proteger a ambos. Quando rompe o silêncio, diz: Estou
me sentindo vazio, e ao mesmo tempo, cheio de ódio. Tenho vontade de
arrebentar tudo! Digo-lhe que talvez por isso tenha se calado, para que
nós dois ficássemos inteiros. Ele responde : Engraçado, na minha outra
análise não deixava o analista falar! Era uma pancadaria na mesa, eu
metia o dedo na cara dele, ele contestava, era o maior bate-boca. Aquele
meu amigo que morreu fazia análise . Uma vez ele me falou como era, e
agora me pareceu bem semelhante com o que faço aqui. É um outro
registro, mais para dentro, sei lá! Oscar, a seu modo, percebeu que era
seu mundo interno que estava sendo exposto . A associação imediata foi
com o amigo morto. A análise estava colocando-o diante de situações
internas ameaçadoras, e eu sabia que, como em qualquer análise, teria
que ser assim. Era preciso mostrar a ele, no entanto, que a dor que viria a
sentir na análise seria em nome de prazeres legítimos que ele não estava
podendo viver: por exemplo, à fantasia de esvaziar-se ou encher-se de ódio,
correspondia um empobrecimento da percepção para os sentimentos
amorosos. Oscar referiu-se muitas vezes como um baú furado, ligando ao
fato de o pai ter perdido a fortuna. A fantasia dele é a de que somente seria
apreciado pelos bens que o pai um dia teve. Não sente que possa existir
outro tipo de bens, as riquezas de seu mundo interno, desconhecidas para
ele até então. Oscar fala pouco da mãe. Descreve-a como uma bruxa egoísta

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e pouco afetiva. Para que eu não me torne o mesmo, ele precisava sentir
que eu era muito poderosa . Isto me manteria, aparentemente, a salvo,
mas ao mesmo tempo me transformava em uma mãe idealizada. E o objeto
idealizado, ao contrário, se for mantido assim, não protege, pois é um objeto
frágil também, sujeito a se esfacelar diante de qualquer eventualidade . O
splitting de que lança mão para manter esse quadro comprometem
grandemente sua capacidade de compreender. Seu pensamento é cada vez
mais concreto e absoluto. Seguem-se alguns fragmentos de sessões, que
ilustram o seu funcionamento.
Não sei se você já ouviu uma música que fala que a vida vai e vem,
como ondas? Eu estava pensando nisso ontem, sobre a minha transa com
a Beth. Não tem meio termo: ou é paixão ou desprezo.Parece que eu corto
um fio, as coisas não fluem, ou está tudo absolutamente bom, ou
completamente ruim. Respondo-lhe que se sente impossibilitado de se
comunicar com sentimentos de qualidade diferente, convivendo ao mesmo
tempo dentro dele, não só em relação à Beth, é uma forma de funcionar
com todos, inclusive comigo. Ele diz : No Play-Center tem um dos
brinquedos mais cruéis que já vi. É um labirinto de espelhos, você se vê
espalhado por todo canto, sem achar a saída. Se as pessoas ficarem lá
muito tempo, enlouquecem. Não tem guia nenhum. É quase insuportável,
até se achar a saída. Ih, por que me lembrei disso? Não tem nada a ver.
Digo-lhe que lembrou-se provavelmente porque espera que eu seja uma
boa guia, para conduzi-lo por esses caminhos de amor e ódio de que
falávamos . É preciso que eu seja muito boa, mesmo, pois ele teme
enlouquecer ao buscar a saída, que, afinal, é o que se espera de um processo
de análise . Oscar sorri com certa tristeza. É um momento intenso na sessão.
Quando volta a falar, sua voz é mais baixa, mais reservada: Eu andei
criando umas plantas carnívoras lá em casa. Tinha uma, cujo nome não
me lembro agora, mas era um nome feminino, que eu nunca consegui
criar direito. A partir de uma determinada fase, elas faziam o que bem
queriam, e não havia conhecimento científico que desse jeito... Ih, olha
eu divagando... Oscar comunica que seus objetos internos, sentidos como
malévolos e devoradores, são expelidos fantasiosamente, para dentro de
mim. Portanto, eu também posso, a qualquer momento, me transformar
numa planta carnívora autônoma, que irá destruí-lo. Penso que não é só a
autonomia da violência que ele teme: receia também que suas tentativas
onipotentes de controle não dêem conta de manter as coisas separadas, e
precisa de meu conhecimento científico, a análise, para nos proteger a
ambos. No dia seguinte, começa contando: Quando eu adestrava cães -

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eu tinha um canil de rotweillers - às vezes eu perdia o saco... bom, era


preciso muita tenacidade e paciência. Uns respondiam melhor, outros
não... quando isso ocorria, me enfezava de tal maneira, que cheguei a
matar uns dois no chute... Digo-lhe que temia que eu fizesse o mesmo ,
caso não correspondesse ao que acreditava que eu esperava dele, um
desempenho adestrado, calmo, sem raiva. Mostrando o que é capaz de
fazer com sua raiva, Oscar me adverte, naturalmente, de que tem medo
daquilo que suas identificações projetivas causam em mim: eu seria capaz
de matá-lo, também. Entretanto, como já mencionei neste trabalho, através
de toda essa turbulência Oscar tentava estabelecer uma relação boa comigo.
Pouco antes de minhas férias de dez dias, e sobre as quais havia sido avisado
com antecedência, Oscar diz o seguinte: Acho muito boa a sua maneira
de entender o que lhe conto. Fui operado do ouvido por uma médica. Eu
admiro as mulheres assim, são mais aptas para a vida, mais sensíveis,
mais inteligentes, além de mais bonitas. Quando me recuperei, com a
prótese, a surdez melhorou tanto, a sensibilidade auditiva era tanta, que
me senti como um cego que volta a enxergar, e nem senti dor... Oscar,
comparando-me à médica que operou nele maravilhas, mostrava que me
via como uma analista sensível, possivelmente capaz de ajudá-lo a mudar.
À sua maneira, mostrou-me que poderia também me admirar... mas só
que eu não poderia falhar.

d) As férias
Nas semanas antes das férias, as sessões de Oscar mudam de tom e são
francamente queixosas: são queixas do trabalho, da ex-mulher, da
namorada, dos pais. Deseja que algo aconteça, que não o faça dependente
da namorada, para que possa viver a própria vida. Digo a ele que a
iminência das férias faz com que ele fique apreensivo, pois sente-se tão
dependente de mim, que se vê sem vida própria se eu não estiver disponível,
ao que responde que depender, em qualquer modalidade, é extremamente
humilhante. E Oscar, que afirmara não sonhar nunca e não se lembrar de
sonhos, três dias antes de minha saída , traz o primeiro sonho: Sonhei
com um filhotinho de collie . Você conhece collie? É um cachorro bobo.
Demanda cuidados constantes, senão fica com um cheiro insuportável.
É um cachorro muito trabalhoso. Bom, no sonho o tal filhote estava solto
pela rua, indefeso e eu, na calçada fazia sinais para os carros, para não
atropelarem o cachorro. Não sei se consegui, pois acordei. É evidente
que Oscar sente-se francamente desprotegido com meu afastamento, à
mercê de desastres e atropelos, que fazem parte de seu mundo interno

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atemorizado . Tenta identificar-se comigo como zelosa, porém... acorda


sem saber se será capaz de levar para as férias esse aspecto para protegê-
lo, ou se ficará entregue ao seu ódio, de cheiro insuportável. Diretamente
relacionados comigo na transferência, surgem sentimentos muito
primitivos de abandono, desintegração e muito medo.

e) Os antecedentes da interrupção
Na volta das férias, Oscar está francamente ressentido: continua a se
queixar, ora do chefe, que está impondo uma mudança que não interessa
a ele; do pai, que não emprestou dinheiro; da mãe, que provavelmente foi
quem proibiu; das filhas, que estão desrespeitosas...Diz: Tem alguma coisa
errada comigo, não sei o que é. Nesses dias sem análise, eu não sei muito
bem como explicar isso... eu tentava me distanciar de mim mesmo, me
olhar de fora, e me perguntava: Eu sou só isso? Só isso? Só queixas e
mágoas, mais nada? Mostro que ele teme me enxergar somente com os
olhos da mágoa e do ressentimento, e ao me reencontrar, só enxergar a
analista que o abandonou. Conta, então, um episódio ocorrido nas férias:
escrevera à irmã, que mora em outro país, pedindo US$ 5,000
emprestados. Ela negou, mandando um cartão em preto e branco, de uma
águia, com os dizeres: “Aos meus amigos, dou até a minha roupa. Mas
você nunca foi meu amigo.” Uma ave de rapina! Ela me comparou a uma
ave de rapina! Juro que vou colocar numa moldura para nunca mais
esquecer. Eu não quero jamais esquecer. Digo a Oscar que ele está me
vendo e sentindo dessa forma, como uma ave de rapina, que levou consigo
a capacidade dele de se proteger, abandonando-o à mercê dos medos e
ressentimentos. Sente que eu não fui amiga dele. Na verdade, Oscar ouviu
da irmã, da maneira mais penosa e crua,uma referência à maneira pela
qual se relaciona com as pessoas: tenta controlá-las onipotentemente,
exigindo que o sirvam. Os dias que se seguiram foram raivosos. Oscar falava
com os dentes trincados sobre qualquer assunto. Tal raiva era sinal, me
parece, de outro sentimento: o de perceber-se incapaz até mesmo de
manter um bom objeto dentro dele, o que configuraria uma dependência
benigna e criativa. Minha ausência potencializou o contato com o aspecto
que caracterizou como humilhante, a dependência . A recusa da irmã,
acusando-o, mobilizou seu ódio ao objeto. Como suas figuras parentais
internas são cheias de descaso e egoísmo , eu também estava me tornando
assim: não me importei com ele, abandonei-o, deixando-o exposto a
sentimentos vorazes, atacadores dele próprio, que estão constantemente
projetados nos objetos, os quais tenta controlar, com a onipotêncía que

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atribui à sua raiva. Como tal defesa só é eficaz na sua fantasia, o resultado
é esse ressentimento constante em que vive, sua “pobreza” interna, sempre
se sentindo roubado, incompreendido.

f) A interrupção
Nesse momento delicado e intenso da análise de Oscar, precisei cancelar
duas sessões, pois minha filha adoecera e precisou ser hospitalizada. Não
encontrei Oscar e deixei um recado na secretária eletrônica, informando
que não compareceria . Oscar telefonou quatro vezes, até conseguir falar
comigo, pois ligara para minha casa, e quem o atendeu informou que eu
estava no hospital com minha filha. Está , ao telefone, muito aflito,
perguntando se estava tudo bem, para minha surpressa perguntando-me
sobre minha filha. Eu não sabia que fora informado da hospitalização. Digo
a ele que minha filha estivera doente, mas que já estava bem, e que, no dia
seguinte, retomaríamos nosso trabalho. Quando retorno, Oscar me olha
com muita preocupação, pergunta-me mais uma vez pela minha filha. Digo
que já está bem e agradeço. Então, deita-se, e sua primeira comunicação é
a seguinte: Hoje acordei pensando na minha mãe. Quando eu era
pequeno, com uns dois anos mais ou menos, ela viajou com o meu pai por
três meses, pela Europa. Minha avó ficou comigo. Quando ela voltou, ,
enderecei uma vingança para ela. Eu perguntei: “Quem é essa moça? “
Sabe, ela nunca esqueceu disso. Mostro a Oscar que esse sentimento de
vingança é muito atual, pois para ele eu também não soube cuidar dos
filhos, deixando-os adoecerem, ficarem ressentidos, me ausentando...
Oscar diz que tem o “pressentimento” de que todos os seus problemas
vêm da mãe, pois não se lembra de ter sido cuidado, nem mesmo
amamentado. E imagino Oscar, na sua raiva infantil, exasperado de ódio,
prescindindo fantasiosamente dos cuidados maternos, exatamente por
desejá-los tanto! Nessa mesma semana, relata o seguinte sonho: Tive um
sonho engraçado... era mais engraçado que outra coisa... Eu estava indo
a um médico, não me lembro por causa de que doença. Tinha um elevador
mínimo, que me deixava espremido. Na sala do médico tinha duas
mulheres, também vestidas de branco. Sentaram-se junto a mim, uma
de cada lado. Uma me acariciava a mão, colocava sobre a barriga dela,
me pareceu uma coisa assim sexual, de marido e mulher, sabe? Eu até
gostava. Quando o marido sente o bebê, sabe? A outra, em compensação,
pegou uma seringa e veio me aplicar uma injeção. Eu disse: “Ei! Eu tenho
uma consulta, calma!” Ela respondeu que eu tinha que tomar aquilo e foi
me dando a injeção. Nem tive tempo de perguntar se a agulha era limpa.

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Quando, terminou, atirou a seringa pelo chão, com o maior desleixo. Não
me deterei em demasia em outros aspectos desse sonho, que, sem dúvida,
são muitos e importantes, como a relação transferencial sexualizada de
marido e mulher. O aspecto mais emergente, indubitavelmente, é a ameaça
pela aproximação de duas analistas agindo dentro dele. Há uma parte
adulta que se relaciona comigo como uma dupla, um casal, que se tratam
bem e dividem prazeres e preocupações. Entretanto, Oscar, no sonho,
aparece espremido entre esta parte e outra, assustada, em dúvida sobre o
que realmente recebe de mim, sentindo-me pouco cuidadosa e inadequada,
como uma injeção desnecessária e sem assepsia. Como veremos a seguir,
a aliança criativa sucumbiu. Eu me tornara, naquele momento, franca-
mente um de seus objetos persecutórios. Na sessão seguinte, ele não
compareceu. Na subseqüente, informa que o chefe lhe impusera uma
mudança de função, que ele não desejou, não pediu, mas que era compul-
sória, principalmente porque precisava do emprego a qualquer preço.
Tal mudança implicaria em viagens semanais, e pelo menos uma vez por
mês, deveria viajar por dez dias, como eu recentemente fizera nas férias.
Assim, não poderia continuar a análise. Relaciono com os últimos
acontecimentos, falo novamente sobre o sonho, sobre a falta, e como ele
tentava livrar-se da análise que ele e eu estávamos criando, pois naquele
momento não me via como uma analista capaz de cuidar. Oscar abaixa a
cabeça pensativo, pois não se deitara nessa sessão. Volta no dia seguinte
para dizer que ficou com insônia até às três da manhã, pensando no que
eu lhe dissera. Tentara livrar-se do novo cargo, mas não conseguira.
Pergunta-me se poderá voltar, quando acabar a tal função; e eu respondo
que, se assim o desejar, que me telefone quando achar necessário. Despede-
se de mim, agradecendo o que fiz por ele . Sai, duro, e o clima é o dos
primeiros encontros: frio, distante e pouco afetivo. Não podendo livrar-se
do cargo, livrara-se de mim, a analista descuidada, reedição, naquele
momento, de um encontro primitivo cheio de ameaças e frustrações .

IV- Considerações Finais

Ao mesmo tempo em que Oscar sentiu-se ameaçado de perder a boa


analista, que ele transformou em descuidada e relapsa, torno-me também
um objeto interno persecutório, capaz de destruir sua própria capacidade
de guardar coisas boas. No episódio do armário trancado, creio que Oscar
fala de um modelo internalizado por ele, com as cores que sua voracidade,

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vivida como insaciável, e sua inveja avassaladora deram às suas


necessidades: sua fantasia é a de que, se não forem trancados a sete chaves,
os bons objetos não existirão, sucumbirão. Este funcionamento recorrente
fez com que a experiência criativa que iniciara comigo , como mostra no
episódio do collie, fosse aniquilada por aquilo que Oscar vivia como
inexorável: a impossibilidade de guardar o bom objeto, tanto no sentido
de que ele pudesse preservá-lo, quanto no de que eu fosse capaz de protegê-
lo, mantendo-me “inteira”, pois se o bom objeto não é preservado, é
destruído por ele, fica incapacitado, incapacidade que passa a ser, no
mundo interno de Oscar, do próprio objeto: tornara-me, claramente, um
de seus objetos persecutórios. Relembrando: o pavor da perda do bom
objeto interno é uma fonte perpétua de ansiedade. Por outro lado, toda
experiência sugestiva de perda no mundo externo estimula e alimenta este
pavor .Este é o modelo que se repetirá nas transferências. Se as experiências
primitivas tiverem um maior número de repetições favoráveis, é provável
que neste molde se faça também a relação analítica. No caso aqui descrito,
a experiência emocional está primordialmente vinculada a desencontros
e excessivaas frustrações; este parece ter sido o modelo da relação
primitiva dominante como vivida por Oscar, ou seja: assim estão as coisas
em seu mundo interno, e a partir daí, a realidade é experimentada . Num
processo de análise, este mesmo modelo deverá ser repetido, para que o
impasse , reprocessado na transferência, possa trazer mudança psíquica.
Não nos esqueçamos, contudo, que o vigor das experiências primitivas é
intenso. Um mundo interno vivido como destruído e destruidor, e ao
mesmo tempo, como sendo criação pessoal, portanto o que se possui de
seu, fatalmente irá se impor. E aí está a dificuldade dessas análises. É como
se Oscar sentisse como imperativo repetir e reviver seu modelo primitivo,
na tentativa de ir adiante. Inveja minha capacidade de cuidar, dele e de
minha filha, sente a mim como muito boa e ele sem nada, se não estou
constantemente a seu dispor. Portanto, projeta seu ódio e frustração pela
dependência, transformando-me apenas na mãe descuidada de suas
fantasias .Diante da intensidade do ódio, a figura protetora é ineficaz
.Sabemos que, à percepção de um objeto total, corresponde a possível
tolerância para experimentar o pesar pelos danos ao objeto. Hipótese bem
provável é a de que Oscar tenha encontrado severos impedimentos na
elaboração de suas experiências esquizoparanóides, comprometendo o
porvir de suas experiências depressivas. Não podemos responder pela real
incapacidade de sua mãe; a mãe que está no seu mundo interno é
determinante , nesse momento . Quanto ao real desempenho de sua mãe,

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até quando durou sua análise, não foi possível nada ser esclarecido. Em
relação à análise, existiu, de fato, um fator externo real que me fez ausente.
Não acredito que tenha sido determinante para a interrupção. .No
momento em que me tornei um objeto persecutório por força de um modelo
mental de Oscar, a análise transformou-se num desastre e foi interrompida
, possivelmente para que Oscar e eu nos mantivéssemos a salvo. Dois meses
após a interrupção, recebo um recado de um “paciente” que me telefonara
e voltaria a ligar. Nenhum de meus pacientes me telefonou. É provável
que tenha sido Oscar, ou este, quem sabe, foi o meu desejo. Quem quer
que tenha sido, não voltou a fazê-lo. Acredito ser a experiência
transferencial o melhor veículo para restauração de um mundo interno
devastado. Por isso somos analistas: não apenas para isso, pois, como no
caso aqui relatado, não nos é sempre possível realizar eficazmente nossa
função. Apenas perseverar, talvez seja o que nos cabe a cada dia.

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A influência alemã na psicanálise


no Rio de Janeiro*
Hans Füchtner**

Resumo
O autor aborda a questão da influencia da psicanálise de língua alemã
no Brasil, depois de mencionar algumas dificuldades para pesquisar
a Psicanálise no país. Mostra a importância dos primeiros psiquiatras
brasileiros interessados na psicanálise, que leram Freud no original,
e quais foram as primeiras traduções em português dos textos de
Freud. Inclui caracterizações dos alemães mais importantes para o
desenvolvimento da psicanálise, em São Paulo e no Rio de Janeiro,
com destaque para Adelheid Koch e o casal Werner e Katrin Kemper.
Finaliza apresentando aspectos atuais do tema.

Summary
The author investigates the role of the influence of German-language
psychoanalysis in Brazil, after elaborating some difficulties in
researching the history of psychoanalysis in the country. He shows
the importance of the first Brazilian psychiatrists interested in
psychoanalysis, who read Freud in the original, and who were the
first translators of Freud into Portuguese. The most important
German analysts for the development of psychoanalysis in Rio de
Janeiro and Sao Paulo are portrayed, especially Adelheid Koch, and
couple Werner and Katrin Kemper. Finally he points out the
contemporary relevance of the topic.

*
Apresentado na Reunião Científica da SPRJ em 20 de março de 2007.
**
Professor de Ciências Sociais da Universidade Kassel (Alemanha) e pesquisador da
História do Movimento Psicanalítico no Brasil.

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Observações gerais

Farei primeiro algumas observações gerais sobre as dificuldades de se


pesquisar a psicanálise como cientista social. Não é algo fácil. E não somente
no Brasil. As instituições psicanalíticas não gostam de dar informações e
muito menos de permitir o acesso aos documentos existentes. Isso é
naturalmente um erro delas, embora compreensível. É de supor que os
psicanalistas receiem um resultado do tipo que a poetisa inglesa Edith Sitwell
(1887 – 1964), ironizando o serviço do pesquisador, formulou. Ela disse
que a diferença entre a lavagem numa lavanderia e uma pesquisa por
historiadores é que, freqüentemente, se recebe de volta o material entregue
aos historiadores mais sujo do que antes. Talvez por isso muitos psicanalistas
não gostem de pesquisas históricas exatas. E até achem preferível esconder
o material “sujo” ou tentem censurar os documentos existentes. Mas,
justamente psicanalistas deveriam saber que só a verdade pode libertar.
Na História da Psicanálise há exemplos famosos como a primeira edição
censurada e incompleta da troca de cartas de Freud e Wilhelm Fliess. Prova
que censurar documentos pode prejudicar muito mais a psicanálise do
que liberar um material com todos os seus prós e contras. Esconder e
censurar favorece sempre a longo prazo os inimigos da psicanálise.
Neste contexto posso mencionar que pesquisando a psicanálise no Brasil
fiz uma experiência extraordinária. O ensaio que escrevi há uns anos atrás
sobre Werner Kemper, o fundador da SPRJ, sofreu três tentativas de
censura (Füctner, 2000). Uma no Brasil, uma na Alemanha e uma na
França. Consegui driblar todas estas tentativas e entretempo o ensaio é de
acesso fácil nas três línguas desses países. Mas algumas pessoas não
gostaram. Seja porque não querem reconhecer que erraram em sua
avaliação dos fatos ou porque nem querem saber dos fatos... Assim, aprendi
também que tal problema não é especificamente um problema brasileiro.
Porém, existe uma dificuldade na pesquisa no Brasil que penso que
seja talvez maior do que em outros países. Baseio-me nas numerosas
entrevistas que fiz aqui com psicanalistas de várias gerações. Nestas
entrevistas recebi muitas vezes informações que, mais tarde, pesquisando
nos respectivos documentos, pude avaliá-las somente como informações
falsas. Pior ainda, ouvi tantas “fofocas”, que fiquei às vezes, literalmente,
boquiaberto. Naturalmente não posso fazer uso delas como cientista. Sei
que a psicanálise é uma disciplina na qual a subjetividade tem um papel
particularmente grande, mas mesmo assim não sei até hoje como avaliar
exatamente a função destas fofocas na cena psicanalítica.

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Uma outra dificuldade que gostaria de mencionar, antes de entrar


propriamente no assunto da influência da psicanálise alemã no Rio de
Janeiro, é o fato - este bem brasileiro - que é também muito difícil se
conseguir aqui material de pesquisa de publicações já fora de circulação.
Muitas publicações de grande importância não são encontradas nem na
Biblioteca Nacional, que deveria ter no seu acervo as obras mais
importantes das ciências e da cultura brasileira. Para dar um exemplo:
Júlio Pires Porto-Carrero era o mais importante psiquiatra nos anos vinte
e trinta do século passado no Rio de Janeiro. Ele era especialista em
medicina legal e foi co-fundador em 1928 da primeira sociedade
psicanalítica no Rio de Janeiro. Quando há uns anos atrás tentei
familiarizar-me com sua obra, achei apenas um livro dele na Biblioteca
Nacional. Até hoje não consegui as suas obras completas. A única solução
que tive foi vasculhar praticamente todos os grandes sebos no Rio. Às vezes
saí de um para outro sebo, depois de algumas horas de procura, suado,
com os braços e o rosto sujos, mas não raro feliz por ter achado, por acaso,
alguns livros incríveis, dos quais nem estava à procura. Um exemplo: “O
suicídio de Getúlio Vargas através da psicanálise na interpretação de
Gastão Pereira da Silva” (Queiroz Junior, 1957), e do próprio Gastão
Pereira da Silva (sem data): “Getúlio Vargas e a Psicanálise das Multidões”.
Dessa maneira consegui cinco livros importantes de autoria de Porto-
Carrero. Recebi também prestativa ajuda em algumas das bibliotecas que
consultei. E neste contexto, aproveito aqui para agradecer a Dona Íris dos
Santos, até recentemente bibliotecária da SPRJ, que por várias vezes me
ajudou na procura de publicações de difícil acesso.
Felizmente o interesse na história da psicanálise brasileira aumentou
nos últimos anos. Sobretudo nas universidades, pesquisadores vêm
produzindo estudos valiosos e bem pesquisados. E entre os próprios
psicanalistas há um maior interesse. Mas a meu ver ainda não suficiente.
Afinal, eles fazem a história da psicanálise e são eles que deveriam cuidar
dos documentos que vão permitir mais tarde reconstruir o passado.
Ao mencionar acima Porto-Carrero, já comecei a falar indiretamente
da influência da psicanálise alemã no Rio de Janeiro. Mas, para continuar
nesse assunto tenho de esclarecer ainda um detalhe. Na verdade, vou falar
mais exatamente da influência da psicanálise e de psicanalistas de língua
alemã. Quem não está familiarizado com a História da Alemanha nem
pode entender porque Freud, que nasceu no império duplo da Áustria-
Hungria, era alemão em termos jurídicos. Ele teria sido austríaco, se tivesse
nascido uns 15 anos mais tarde no mesmo lugar. Isto é, depois da fundação

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do império alemão em 1871. Até lá os austríacos eram alemães tanto quanto


os prussianos, os bávaros, os hamburgueses, etc. Mas a fundação do
império alemão foi feita excluindo a Áustria. E a partir daí os nascidos na
Áustria passaram a ser somente austríacos.

Os primórdios da influencia alemã

No fim do Século 19, quando a psicanálise foi percebida no Brasil e


Freud citado pela primeira vez, provavelmente por Juliano Moreira, o
estudo da psicanálise foi então, de um lado, favorecido, mas dificultado
de outro. Os brasileiros eram na época mais orientados intelectualmente
na França. Mas a ciência alemã, de uma maneira geral, gozava de uma
ótima reputação no Brasil. E principalmente na psiquiatria da época, as
teorias de Emil Kraepelin já eram muito difundidas. Enquanto na França,
depois da confrontação com a Alemanha na guerra de 1870/71 e sobretudo
na Primeira Guerra Mundial, tão sangrenta e horrorosa, a psicanálise foi
recusada como uma ciência germânica por muitos psiquiatras por razões
ideológicas. Este fato é mencionado no Brasil em 1919 numa palestra do
jornalista, político e poeta José Joaquim Medeiros e Albuquerque
intitulada “A psicologia de um Neurologista. Freud e suas teorias sexuais”
(In: Medeiros e Albuquerque, 1922, pgs.103-143). Medeiros e Albuquerque
enviou o seu manuscrito a Freud que o apreciou e supostamente teria
deixado até publicar o texto em alemão.
De outro lado, a implantação da psicanálise no Brasil foi durante
bastante tempo dificultada pelo fato que nas poucas cidades importantes
do país quase não havia classe média. A burguesia urbana era pequena e
fraca diante da oligarquia rural. O Brasil era ainda predominantemente
rural com massas de pobres trabalhadores rurais e camponeses dominados
por coronéis poderosos. Nos anos vinte houve finalmente acontecimentos
no país nos quais membros da classe média manifestaram o seu
descontentamento em relação às condições políticas, sociais e culturais.
Jovens oficiais - os tenentes - rebelaram-se no Rio de Janeiro e mais tarde
em São Paulo e exigiram reformas. Intelectuais e artistas se manifestaram
e iniciaram o desenvolvimento deliberado e consciente de novas formas
de expressão de uma subjetividade realmente brasileira, que não fossem
somente imitações de modelos europeus. E com a famosa “Semana de Arte
Moderna” em São Paulo, em 1922, teve início o modernismo brasileiro. E
nele a psicanálise teve um importante papel.

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Mas voltemos aos primórdios da psicanálise no Rio. Vários pesquisa-


dores brasileiros mostraram o uso da psicanálise que fizeram os psiquiatras
brasileiros no início do Século XX. Eles lidavam com as doenças mentais
que faziam parte da miséria das massas pobres numa tentativa de sanear
os problemas sociais e morais como eles os percebiam. Eles tentaram
aproveitar a psicanálise como uma doutrina capaz de dar conta não só da
explicação dos sintomas e das origens dos problemas mentais, mas
sobretudo da prevenção, detecção e correção das anomalias. (Ponte, 1999,
pg.17). A psicanálise não era vista por eles como uma ciência totalmente
nova, mas sim, como uma corrente nova na psiquiatria. Nesta perspectiva,
os psiquiatras brasileiros fizeram um uso bastante pragmático da
psicanálise nos seus primórdios, mas que freqüentemente não correspon-
dia à essência da psicanálise.

Pioneiros brasileiros da assimilação da psicanálise

É interessante relevar que os psiquiatras que trabalharam naqueles


primeiros tempos no Rio de Janeiro tinham acesso direto aos textos
psicanalíticos em alemão. Juliano Moreira, que veio em 1903 da Bahia
para o Rio de Janeiro, lia alemão sem problema. Ele tinha feito uma viagem
de estudos à Europa e visitado nessa ocasião várias clínicas psiquiátricas
na Alemanha. Teve então contato com vários psiquiatras alemães.
O psiquiatra pernambucano Porto-Carrero fez seus estudos no Rio de
Janeiro e começou a trabalhar como psicanalista a partir de 1923. Ele
traduziu “O futuro de uma ilusão”, de Freud, diretamente do original
alemão, em 1927. O seu livro “Ensaios de Psychanalyse” contém a seguinte
dedicatória a Freud: “A. S. Ex. o Sr. Professor Sigmund Freud – veneração
pelo seu vulto de sábio – gratidão pelo acolhimento dado ao meu esforço.”
(Porto-Carrero, 1929)
O psiquiatra Artur Ramos, alagoano de nascimento, veio da Bahia para
o Rio de Janeiro em 1934. Ele também recebeu respostas elogiosas de Freud
pelo seu trabalho. Em 1927 Freud lhe escreveu agradecendo o envio de
seu estudo “Primitivo e loucura” (Ramos, 1926) e em 1931 em agradeci-
mento ao seu livro “Estudos de psicanálise”(Ramos, 1931).
No caso de Porto-Carrero e ainda mais no de Artur Ramos é fascinante
ver com que facilidade esses psiquiatras lidavam com a literatura
psicanalítica alemã da época. Eles citam com a maior naturalidade não
somente Freud, mas também obras psicanalíticas de outros psicanalistas

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alemães importantes como Karl Abraham, August Aichhorn, Otto Rank,


Oskar Pfister, Herbert Silberer, Adolf Josef Storfer. E vários outros
psicanalistas autores de ensaios como Siegfried Bernfeld, Hermine Hug-
Helmuth, etc., dos quais mais tarde ninguém conheceria nem os nomes
no Brasil.

Traduções da obra de Freud por editoras cariocas

Na década de trinta foram publicadas mais de cinqüenta obras de Freud,


traduzidas diretamente do alemão, por editoras do Rio de Janeiro.
Sobretudo a Editora Guanabara Waissmann-Koogan “ao longo dos anos
1930 publicou uma série de 52 títulos formando sete volumes, onde em
alguns pode-se ler “traduzido com autorização do autor”. (Oliveira, 2006,
pg.128)
Em 1958, a Editora Delta, do Rio de Janeiro, publicou finalmente pela
primeira vez em língua portuguesa as “Obras Completas de Freud” em
dez volumes. Foram utilizadas e adaptadas parcialmente algumas das
velhas traduções de Porto-Carrero e colegas que já haviam traduzido Freud
diretamente do alemão.
É curioso que a figura mais importante da psicanálise em São Paulo,
Durval Marcondes, tenha ignorado estas traduções. Carmen Valladares
de Oliveira, que pesquisou a psicanálise em São Paulo, relata que “até
meados dos anos 1970, a leitura das obras de Freud, assim como as citações
bibliográficas de psicanalistas formados pela IPA paulista, provinham de
traduções em língua espanhola.” (Oliveira, 2006, pg.130).
Seria interessante, mas difícil de verificar, se esta diferença na utilização
das fontes psicanalíticas causou diferenças na assimilação da psicanálise
em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ao contrario, é relativamente fácil dizer
que a posterior publicação das obras completas de Freud nos anos 70, de
uma tradução da Standard Edition em inglês, não pode ter favorecido o
entendimento de Freud no Brasil. Pois ela vale como particularmente ruim.

A visita de Wilhelm Stekel (1868 – 1940) no Rio de Janeiro

Sem querer sobreestimar a influência de pessoas individuais, desejo


mencionar aqui o único psicanalista importante da primeira geração de
Viena que passou no Rio de Janeiro: Wilhelm Stekel. Ele veio ao Rio em

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1936 para fazer algumas palestras. Stekel foi analisando de Freud e


fundador da famosa “Sociedade Psicológica das Quartas-feiras” em Viena.
Ele tinha uma posição importante no início do movimento psicanalítico
alemão. Mas se afastou em 1911 – 1912 e se tornou um dissidente em termos
teóricos. Após a anexação da Áustria pela Alemanha nazista, ele teve de
fugir dos nazistas e se radicou em Londres, onde veio a ter bastante sucesso
profissional. Ele se tornou conhecido também por causa da forma de
psicoterapia analítica abreviada que desenvolveu denominada “análise
ativa”.

Karl Weissmann

Gostaria de mencionar ainda uma figura de menor importância sobre


a qual não consegui até agora dados suficientes. Sobretudo, não me foi
possível verificar quanto tempo ele viveu no Rio de Janeiro. Trata-se de
Karl Weissmann. Ele veio ainda jovem da Áustria para o Brasil. E
primeiramente sobreviveu aqui dando aulas de inglês e alemão. Descobriu
aqui a psicanálise, através de um livro de Ernest Jones traduzido para o
português e se tornou um fervente seguidor de Freud. Ele praticava e
defendia também o hipnotismo. Por isso, não se pode falar no caso dele de
uma influência direta da psicanálise alemã no Brasil. Mas vale a pena
mencioná-lo como um dos seguidores de Freud no Rio de Janeiro. Uma
carta que lhe enviou Freud, em resposta ao envio de seu trabalho intitulado
“O dinheiro na vida erótica” (Weissmann, 1937), está reproduzida na
biografia de Ernest Jones sobre Freud. Por boas razões. A carta foi escrita
em 21 de março de 1938, coincidentemente alguns dias depois que Hitler
entrou triunfante em Viena e um dia antes que Anna Freud foi forçada a
depor durante longas horas na Gestapo. Além do mais, Freud já se
encontrava gravemente doente. Mesmo assim, ele se esforçou em
responder ao desconhecido que se tinha engajado pela psicanálise no Brasil.
Weissmann escreveu ainda outros livros sobre psicanálise. E trabalhou
mais tarde como psicólogo na Penitenciária Neves, em Belo Horizonte.
Ele menciona numa carta a Ernest Jones que contou num seminário de
Werner Kemper suas experiências com os criminosos na penitenciária.
Em 1964 ele apoiou ideologicamente o golpe de Estado no Brasil, no seu
livro “Masoquismo e Comunismo. Contribuição à Patologia do
Pensamento Político” (Weissmann, 1964). Nele, defende a tese que o
comunismo é uma conseqüência do masoquismo. Abstenho-me de

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comentário. Mas dois anos mais tarde, ele foi agraciado no Rio de Janeiro
com o título de “Carioca Honorário”.

O encolhimento da psicanálise como conseqüência da


implantação da psicanálise ipeista

Nos anos em que não havia ainda psicanalistas analisados no Brasil e a


IPA ainda não tinha representantes no país, a psicanálise foi utilizada
também como um pensamento novo, que permitia discutir-se uma série
de assuntos numa perspectiva nova. Discutia-se não somente a sua
utilidade na psiquiatria, na medicina e na educação. Mas também na
criminalidade, no folclore, no cinema, nos cultos afro-brasileiros, na
psicologia social, na civilização brasileira, no espiritismo, nas artes
plásticas, na literatura e até nas questões políticas.

Na medida que a psicanálise no Brasil foi sendo dominada pela


psicanálise organizada pela IPA, ela foi literalmente encolhendo quanto
ao nível da teoria. Tanto no sentido qualitativo, porque os assuntos
passaram a ser predominantemente apenas ainda relacionados ao trabalho
psicanalítico – psicoterápico, como no sentido quantitativo, porque a
produção científica dos membros das sociedades psicanalíticas ligadas a
IPA foi durante muitos anos muito escassa.

A vinda de didatas estrangeiros

Adelheid Koch (1896 – 1980)


A influência mais direta de psicanalistas alemães, principalmente no
Rio de Janeiro e em São Paulo, começa com a vinda dos primeiros analistas
enviados pela IPA. Os psiquiatras brasileiros interessados em promover a
vinda de didatas estrangeiros dispostos a ficar uns anos no Brasil tiveram
grandes dificuldades de conseguí-lo. O Brasil não era então muito
interessante para os psicanalistas europeus. Nem mesmo para aqueles que
tinham de fugir do nazismo. A Inglaterra e os Estados Unidos eram mais
interessantes por várias razões. Entre as quais, a barreira da língua falada
no Brasil. Ernest Jones, o presidente da IPA na época, não conseguiu
durante bastante tempo atender os pedidos dos brasileiros de enviar
didatas para cá. Finalmente em 1936 a psicanalista alemã recém formada,

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Adelheid Koch (1896 – 1980), que era judia e tinha de fugir da perseguição
nazista, aceitou o convite da IPA para vir para São Paulo. Ela havia sido
recomendada por Otto Fenichel, seu didata. E, de fato, ela fundou no correr
dos anos a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Assim, deu
certo a aventura de ter-se carregado com tanta responsabilidade e trabalho
uma psicanalista tão inexperiente. E provavelmente porque Adelheid Koch
era – como é descrita - uma pessoa muito conscienciosa e aplicada. Foi-
lhe obviamente de grande importância a ajuda de Durval Marcondes, que
organizou a sua vinda.

Mark Burke (1900 – 1975)


Para o Rio de Janeiro foram enviados sucessivamente dois analistas
muito diferentes. O primeiro, Mark Burke (1900 -1975), polonês,
naturalizado inglês, era desde 1939, membro associado da British Psycho-
Analytical Society. Ele viera para a Inglaterra ainda jovem, na metade dos
anos vinte, a fim de estudar medicina. Fez sua formação de psicanalista
entre 1932 e 1938 com James Strachey. Burke também não era qualificado
para trabalhar como didata. Mas por razões pessoais, ficou logo muito
interessado em vir para o Rio de Janeiro. Ernest Jones o aceitou sem
consultar previamente o presidente da British Psycho-Analytical Society,
John Rickman, na época. Rickman chegou a ter uma conversa com Burke
antes de sua partida para o Brasil e pretendeu posteriormente que Burke
estava num estado mental paranóico (paranoid state of mind) ao deixar
Londres, em 1948.1 Falei sobre isso aqui no Rio com algumas testemunhas
que conheceram Burke e elas me confirmaram, em parte, o diagnóstico de
Rickman. Neste sentido, parece que o mínimo que se pode dizer de sua
personalidade é que ele era uma pessoa bastante difícil.

Werner Kemper (1899 – 1975)


O único psicanalista que em termos científicos e pela experiência prática
tinha a qualificação necessária para vir trabalhar aqui como didata foi
Werner Kemper (1899 – 1975). Ele representa a influência da psicanálise
alemã de forma mais direta. Mas vários psicanalistas consideram como
não boa a sua influência aqui e isso já na sua época e ainda mais na
retrospectiva. As razões alegadas: que ele teria sido nazista e que não teria

1
Carta de Rickman a W. Kemper datada de 13.02.1951.

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tido conhecimentos suficientes. O argumento seria porque durante muitos


anos ele não teria podido acompanhar o desenvolvimento da psicanálise
no mundo, uma vez que na Alemanha nazista ele não pudera ter acesso às
publicações psicanalíticas internacionais. Considerarei sucessivamente os
dois argumentos.

A questão do nazismo

Kemper formou-se em medicina e se especializou em ginecologia


cirúrgica. Em 1928, começou sua formação psicanalítica no famoso
Instituto de Berlim. Seu didata foi Carl Müller-Braunschweig e seus
supervisores foram Otto Fenichel, Wilhelm Reich, Ernst Simmel e Felix
Boehm. Em 1931, ele se tornou membro associado da Sociedade
Psicanalítica Alemã. e em 1933 seu membro efetivo. Kemper era com
certeza um analista de talento conforme testemunhou Otto Fenichel. Mas
é fato que sua nomeação em 1933 como revisor das finanças da Sociedade
Psicanalítica Alemã e sua promoção a docente do comitê de formação do
Instituto da sociedade, foi indubitavelmente uma conseqüência da
expulsão de colegas judeus. Naquela altura já não havia mais muitos colegas
qualificados na sociedade. A partir de 1936, ele passou a trabalhar como
didata. Nesse mesmo ano foi nomeado também para o cargo de terceiro
diretor da sociedade ao lado de Müller-Braunschweig e Felix Boehm. Estes
dois eram dezoito anos mais velhos do que Kemper e dirigiram a sociedade
até a sua dissolução pelos nazistas em 1938. E, a partir de 1938, os
psicanalistas foram enquadrados no então denominado Instituto Alemão
de Pesquisas Psicológicas e de Psicoterapia, dito Instituto Goering. Seu
diretor, um psiquiatra de orientação adleriana, era primo do Marechal
Hermann Goering. Nesse instituto tiveram de colaborar terapeutas de
diferentes orientações para o desenvolvimento de uma pretensa “ciência
alemã da terapia da alma”. Kemper também colaborou nele como docente
da turma dos psicanalistas. Mas ele clinicava em consultório particular.
Somente em 1941 passou a trabalhar também na policlínica do Instituto,
como colaborador independente e se tornou colaborador fixo em 1942.
Em 1943 foi nomeado diretor da policlínica depois da morte do psicanalista
John Rittmeister. Rittmeister foi um dos poucos psicanalistas que resistiu
ao regime nazista e pagou com sua vida por isso.
Note-se que fazer resistência ao regime nazista era uma coisa que exigia
muita coragem. Foram poucos os que fizeram. Quem era descoberto tinha

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poucas chances de sobreviver. Além de Rittmeister, deve-se citar a


psicanalista Edith Jacobson. Ela foi presa e adoeceu na prisão. Ao ter
licença para se tratar fora, conseguiu fugir da prisão com a ajuda de Otto
Fenichel e outros psicanalistas. Outra resistente foi Käthe Dräger. Ela fazia
parte de uma rede clandestina de comunistas. Mas os dois diretores da
Sociedade Psicanalítica Alemã, Müller-Braunschweig e Felix Boehm se
comprometeram claramente com o regime nazista. Müller-Braunschweig
escreveu inclusive ensaios, nos quais tentou mostrar que a psicanálise
combinava muito bem com o nazismo. E Boehm era anti-semita. Ele
participou nos anos 1941-1945 como oficial de saúde e perito do Exército
em julgamentos de execução de soldados condenados como simuladores,
desertores e homossexuais.
Não teria sido estranho, se também Kemper tivesse se comprometido
com o regime nazista. O material que foi reunido a respeito de Kemper
por pesquisadores alemães para a exposição sobre a psicanálise no dito
Terceiro Reich, por ocasião do 34. Congresso Internacional da IPA em
Hamburgo, em 1985, parecia comprovar que Kemper havia sido também
um colaborador convicto do regime nazista.(Brecht; Friedrich; Hermanns
u.a., 1985). Comecei com esta hipótese minha pesquisa sobre Kemper. Mas,
achando no seu decorrer fatos que contradiziam essa hipótese, procurei
averiguar cuidadosamente as provas apresentadas de que ele teria apoiado
o regime nazista ou teria sido inclusive nazista. Neste sentido, nenhum
dos fatos alegados pôde sustentar tais acusações. Maiores detalhes podem
ser lidos no meu ensaio sobre Kemper em português.2 Aqui, desejo apenas
me limitar a afirmar que a tese defendida pelo psicanalista francês René
Major e Dona Helena Besserman Vianna, segundo a qual o “caso Lobo”
teria sido uma conseqüência do fato de que Werner Kemper fora nazista
na Alemanha nazista, não tem fundamento.
Mas apesar de Kemper não ter tido simpatia pelo nazismo e de ter até
ajudado pessoas perseguidas pelo regime nazista, resta o fato que ele viveu
e trabalhou na Alemanha naqueles anos como psicanalista, ou mais exata-
mente, como psicoterapeuta originariamente de formação psicanalítica.
Oficialmente a psicanálise deixara de existir na Alemanha. Ele também
não se opôs à expulsão dos membros judeus de sua sociedade. E durante
anos trabalhou num instituto que servia em parte aos fins de um regime

2
(Füchtner, 2000) Acessivel em http://www.estadosgerais.org/mundial_rj/
trabGeral.htm. (2003)

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criminoso. A rigor, isto pode ser avaliado também como culpa. Mas para
tirar conclusões negativas a respeito do caráter de outrem, deve-se
perguntar primeiramente a si mesmo, se numa ditadura tão violenta se
teria a coragem de arriscar a própria vida. Seja como for, está provado que
Kemper não era nazista.

A questão da competência de Kemper

Que a qualificação de Kemper não teria sido na altura do desenvol-


vimento da psicanálise, porque ele não teria tido acesso às publicações
psicanalíticas internacionais na Alemanha nazista, não me parece
convincente. Kemper mostrou-se capaz de recuperar esse atraso, apesar
dele ter freqüentemente demorado a chegar a uma conclusão sobre com
qual teoria concordava e com qual não. A razão de ele ter sido criticado no
Brasil como teoricamente atrasado, deveu-se ao fato de seus rivais
psicanalistas, os seus adversários, serem kleinianos. Ele provou em muitas
publicações que era um teórico freudiano ortodoxo de nível.
O interesse de Kemper, já com quase cinqüenta anos, em aceitar o
convite para vir trabalhar uns anos no Rio de Janeiro como didata, tinha a
ver naturalmente com a sua situação na Alemanha. Ele vivia com sua
família em Berlim, na época uma cidade totalmente destruída, passando
fome e sofrendo de frio. Além disso, sob o medo de que os russos ocupassem
a cidade, após o bloqueio de Berlim. Todos os seus colegas psicanalistas
alemães viviam na mesma situação e todos eram, tanto quanto ele,
interessados em sair da Alemanha. Numa visita então à Alemanha, o
representante da IPA, John Rickman, considerou Kemper como único
apropriado para a tarefa no Brasil, nos termos da qualificação profissional
e humana necessárias.

Conflitos entre os grupos psicanalíticos no Rio

No começo dos anos cinqüenta existiam no Rio de Janeiro três grupos


psicanalíticos rivais. O grupo de Burke, o grupo de Kemper e o grupo dos
ditos argentinos. Eram médicos que não tinham querido esperar até que
viesse um analista didata para o Brasil e tinham ido fazer a sua formação
psicanalítica na Argentina. Quando eles retornaram ao Rio de Janeiro, no
fim da década de 40 e início da década de 50, não puderam mais ter o

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papel de pioneiros que bem gostariam de ter tido aqui. E em vista da


experiência da formação feita na já bem organizada Associação
Psicanalítica Argentina, eles desaprovavam rigorosamente as relações
caóticas que existiam no Rio de Janeiro. Naqueles primeiros tempos de
construção de uma sociedade psicanalítica, não podiam aceitar que a
mesma pessoa fosse ao mesmo tempo analista, didata, professor,
supervisor, diretor do Instituto e que os analisandos também fossem
envolvidos de várias maneiras na construção da sociedade. Os ditos
argentinos acabaram se unindo aos burkianos. E, junto com alguns
psicanalistas que tinham feito formação na Inglaterra, formaram mais
tarde a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Não posso
tratar aqui das razões de “todos” os conflitos entre os três grupos. Mas
obviamente a personalidade de Burke não facilitava a convivência com os
kemperianos. Também, a atitude severa e incompreensiva dos argentinos
contribuiu para envenenar as relações entre os três grupos. As agressões
eram violentas. O fato que em 1955 Kemper foi preso temporariamente
sob a acusação de trabalhar ilegalmente como médico, não se deveu a uma
hostilidade de parte das autoridades ou de psiquiatras visando a psicanálise
mas, sim, a uma calúnia de colegas psicanalistas.3

O papel de Anna Kattrin Kemper(1905 -1979) 4

A meu ver, provavelmente a causa mais importante dos intermináveis


conflitos entre os três grupos foi a posição de Kemper a respeito da ambição
de sua esposa, Anna Kattrin Kemper, de trabalhar como psicanalista. Isso
teve efeito permanentemente. Fora a razão já do primeiro conflito, no
Instituto Brasileiro de Psicanálise, que havia organizado a vinda de
Kemper. Kemper acabou sendo expulso do Instituto, porque permitiu que
Dona Katarina começasse a trabalhar como psicanalista, pouco tempo
depois de ela ter chegado com ele ao Brasil e não muito tempo depois como
didata.5 Este fato foi realmente muito problemático, como pude esclarecer
na minha pesquisa com base em documentos.

3
A respeito da relação entre o estado e a psicanálise veja Füchtner, H. (2003): A Psicanálise
organizada e o Estado no Brasil. Em: Trieb, Vol.II, Nr.2, 267-290.
4
Para maiores detalhes veja (Füchtner, 2007)
5
As datas respectivas se encontram em (Serio, 1998)

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Kattrin Kemper vinha de uma família pobre e, apesar de inteligente,


não chegou a concluir nem a escola primária. Segundo os seus currículos,
ela teria deixado a casa dos pais aos dezesseis anos e ido morar em Munique
com a família abastada de uma prima. Durante dois anos teria recebido
aulas particulares. Em seguida, teria sido interna quatro anos num
educandário feminino em Bad Altheide, na Silésia. Nos dois últimos anos
nesse educandário, feito um estágio em Economia Doméstica e Agricultura,
que concluiu com um certificado com distinção. Depois, foi trabalhar em
Berlim como empregada doméstica e na educação de crianças. Trabalhou
ainda como ajudante de uma ourives e num escritório. E a partir de 1933,
trabalhou como auxiliar no consultório médico do Dr. Werner Kemper,
com o qual se casou em 1934.
Em 1936, Kattrin Kemper iniciou uma formação de “grafóloga
científica”, que concluiu em 1938. Independentemente do que a tenha
motivado a tal escolha profissional, esta tinha certamente a grande
vantagem de não fazer exigência de diploma escolar para sua admissão.
Além disso, seu aprendizado era relativamente curto. Em 1938 nasceu o
seu primeiro filho, Jochen Christian. Em 1940 o segundo, Christian
Mathias, e em 1943 o terceiro, Mathias Andreas.
Em 1941, ela começou uma psicoterapia com uma terapeuta jungiana.
Em seguida fez entre 1941 e1942 uma terapia analítica com a psicoterapeuta
Margareta Seiff, membro desde 1935 da Sociedade Psicanalítica Alemã
(DPG) e, a partir de 1940, analista didata e de supervisão no Instituto
Göring. A partir de outubro de 1943 até o outono de 1948, Kattrin Kemper
fez análise de instrução com Seiff (...) “a princípio no intuito de se preparar
para analisar crianças e visando mais tarde também adultos. Além de sua
análise de instrução, ela efetuou também análises de controle e formação
teórica sistemática. Não houve nesta ocasião uma conclusão formal de
aprendizado” (atestado de M. Seiff datado de 18.12.1959). Ela freqüentou
ainda seminários teóricos e práticos durante dois semestres.
Não está claro em que medida Kattrin Kemper trabalhou como
terapeuta. Ela teria feito umas horas de supervisão com Adelheid Fuchs-
Kamp e com Harald Schultz-Hencke. Este valia como o psicanalista mais
importante no Instituto Göring e, mais tarde ainda, durante muitos anos
na Sociedade Psicanalítica Alemã (DPG). Schultz-Hencke era colega de
Werner Kemper, amigo da família e padrinho do segundo filho dos
Kemper. Kattrin Kemper o admirava tanto, que pretendia até que ele
teria sido o seu didata. Mas segundo seus dados biográficos, isso não
pode ter sido possível.

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Resumindo: Kattrin Kemper chegou no Brasil como grafóloga e com


dois semestres de formação psicanalítica. Com esse mínimo de formação
e de conhecimentos, ela se convenceu, já nas suas primeiras experiências
clínicas, de que era capaz de trabalhar como psicanalista. É difícil
compreender a maneira como o seu marido, Werner Kemper, a apoiou
nesta intenção e como ela conseguiu atingir o seu objetivo. De um lado,
ela não foi muito escrupulosa em apresentar provas de sua competência,
que não eram provas mesmo. Um exemplo extremo: com a intenção de se
tornar membro da IPA, ela fez em 1953 um exame na Associação
Psicanalítica Alemã, mas não passou. No dizer de um membro da banca
examinadora, o seu exame foi um desastre. Mas, mesmo assim, os colegas
alemães lhe deram um atestado de que ela seria capaz de trabalhar como
psicanalista. Isso lhe permitiu retornar da Alemanha pretendendo que
tinha passado no exame. E continuou aqui sua formação na sociedade
psicanalítica, ainda em construção, de Kemper. Um ano mais tarde ela
conseguiu o status de membro associado da Sociedade Brasileira
Psicanalítica de São Paulo e, assim, também o de membro da IPA.
Apesar de sua formação psicanalítica insuficiente, Kattrin Kemper teve
muito rapidamente bastante sucesso profissional e foi procurada por uma
clientela numerosa. E fez sucesso também como didata na SPRJ. Mas, a
sua maneira nada convencional e freqüentemente em contradição com as
regras da IPA, foi uma fonte permanente de conflitos na SPRJ. Em 1969,
dois anos depois do retorno de Werner Kemper para a Alemanha, ela
fundou junto com alguns colaboradores o Círculo Psicanalítico do Rio de
Janeiro. E saiu da SPRJ no início de 1970.
É uma ironia do destino que Kattrin Kemper tenha morrido em 1978
elogiada pela imprensa como a “grande dama da psicanálise”. Ela deu nome
a uma rua no Rio e, segundo alguns comentaristas, teria até sido ela quem
trouxe a psicanálise para o Rio de Janeiro. Enquanto a morte de Werner
Kemper, ocorrida três anos antes em Berlim, passara aqui praticamente
despercebida.
No caso de Kattrin Kemper, pode-se mencionar uma influência teórica
especificamente alemã na sua maneira de trabalhar: a influência de
Schultz-Hencke. Ela é evidente muitas vezes na terminologia que usava.
Ela se referia ao seu conceito de”homem inibido”, falava de comportamento
intencional e supunha uma fase pré-oral intencional, entre outras. E, como
Schultz-Hencke, menosprezava a teoria da libido.
Na prática da psicanálise, tanto Werner Kemper como Kattrin Kemper
acentuaram a importância de um engajamento social da psicanálise. No

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final da década de 50, Werner Kemper inaugurou um Departamento de


Assistência Psicológica (DAP) na SPRJ, destinado a atender pacientes
menos abastados. O Correio da Manhã, de 13.01.1959, publicou a seguinte
notícia:”Psicanálise não é privilégio das pessoas mais abastadas. A
Sociedade Psicanalítica abre consultório para os mais pobres.” Na inaugu-
ração do DAP, Kemper se referiu ao modelo da Policlínica de Berlim dos
anos 20. Mas ele não conseguiu realizar o seu objetivo de tornar a
policlínica uma parte central da SPRJ. (Sério, 1998), pg. 275). Quatorze
anos mais tarde, Kattrin Kemper, então membro do Círculo Psicanalítico
do Rio de Janeiro, fundou junto com Hélio Pelegrino e colegas de várias
instituições psicanalíticas, a Clínica Social de Psicanálise, que funcionou
durante dezenove anos apesar de muitas dificuldades.

A importância das diferenças culturais

Vários comentários de Adelheid Koch e de Werner Kemper mostram


que para eles foi muito difícil e até doloroso adaptar-se à vida no Brasil. A
cultura e as condições socias brasileiras eram muito diferentes daquilo
que conheciam e apreciavam na Alemanha. Vindos de Berlim, uma cidade
que era, antes do nazismo, uma capital mundial das artes e ciências, eles
acharam respectivamente São Paulo e Rio de Janeiro muito provincianas.
Kattrin Kemper já viveu a nova vida no Brasil de forma diferente. Aqui
ela conseguiu realizar o seu sonho de se tornar psicanalista, o que
provavelmente não teria conseguido na Alemanha. Ela ficou particular-
mente fascinada com a flora brasileira e gostou muito também da música
brasileira. Isso é fácil de entender. Não tive a ocasião de conhecê-la
pessoalmente, mas me pergunto como ela pôde exercer tanta fascinação
aqui como psicanalista e nos seus contatos sociais, apesar de sua figura
germânica imposante – como dizem - e do seu sotaque alemão bem pesado.
A meu ver, isso se deve provavelmente a traços de caráter seus como
vivacidade e informalidade, válidos como não tipicamente alemães e que
lhe devem ter facilitado a identificação com os brasileiros.

Outros aspectos da influência alemã.

É difícil verificar a influência da psicanálise alemã na introdução e


expansão do ensino de psicanálise nas universidades brasileiras. Não

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disponho de dados para dizer algo a respeito. O mesmo vale quanto à


influência da psicanálise alemã de hoje no Brasil. Em parte, porque o campo
psicanalítico é hoje muito amplo e heterogêneo. De todas as maneiras,
esta influência não deve ser muito grande, porque, hoje em dia, a
psicanálise alemã é totalmente integrada no sistema de seguro de saúde.
Os psicanalistas alemães trabalham quase todos como psicoterapeutas e
não fazem praticamente mais análises no sentido tradicional. Na maioria,
eles não têm muitos outros interesses que vão além do campo psicoterápico.
Nas universidades trabalham alguns psicanalistas e cientistas sociais que
lidam com a psicanálise como ciência social e que produzem coisas
interessantes. Mas raramente essas publicações se tornam conhecidas no
Brasil. Isto se deve principalmente ao fato de que na década de 70 a
influência francesa começou a dominar a cena psi no Brasil. Atualmente a
maior diferença entre a psicanálise alemã e a psicanálise brasileira é
justamente o fato de que no Brasil Lacan ganhou uma importância enorme
e na Alemanha, não. Há poucos lacanianos na Alemanha. Algumas partes
da teoria de Lacan ficaram conhecidas, mas a teoria geral de Lacan não
tem muita influência. Os lacanianos nem aparecem como clínicos, inclusive
porque a formação deles não corresponde às leis que regem o exercício do
trabalho de psicoterapeutas na Alemanha desde 1999. Portanto, com a
expansão dos lacanianos aqui, as afinidades teóricas entre psicanalistas
alemães e brasileiros diminuíram muito.
Além do mais, a crise da psicanálise que ocorre no mundo inteiro afeta
diferentemente os psicanalistas na Alemanha e no Brasil. Na Alemanha,
os psicanalistas têm uma clientela garantida, na medida em que são pagos
pelos seguros de saúde. Mas para isso, eles têm de atender várias exigências
formais, incompatíveis com um trabalho psicanalítico no sentido próprio.
Antes de começar uma terapia, eles têm de apresentar um parecer sobre o
paciente e o seu diagnóstico; fazer uma prognose de quanto tempo a terapia
deve durar, etc. Dessa perspectiva se impõe a questão: quanto tempo a
psicanálise poderá ainda sobreviver sob essas condições e se sobreviver,
de que forma. Alguns psicanalistas franceses acham que o que se passa na
Alemanha significa a morte da psicanálise (Froté, 1998). O número de
candidatos para a formação psicanalítica diminuiu notavelmente na
Alemanha. E no Brasil também. Mas aqui, diminuiu também muito o
número de clientes capazes de pagar e dispostos a fazer um tratamento
psicanalítico. Dessa maneira, a crise da psicanálise atinge de uma forma
muito mais direta os psicanalistas brasileiros. Mas em ambos os países se
observam também fenômenos semelhantes, como a concorrência da

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indústria farmacêutica, as terapias rápidas e baratas, principalmente as


terapias comportamentais no caso da Alemanha; as dificuldades de se
defender continuamente a psicanálise contra os seus críticos, para os quais
toda ciência tem de ter as qualidades das ciências naturais... E, eviden-
temente, os problemas clínicos, que não possuem características nacionais.
A meu ver, em tempos de globalização, a questão das influências teóricas
nacionais perde em importância e interesse.

A importância de pesquisas psicanalíticas

Em princípio, a intenção de minha palestra foi frisar a importância de


se pesquisar a História da Psicanálise e de estimular o interesse e
engajamento aqui neste sentido. Quem for ao Congresso da IPA em Berlim
neste ano, sentirá essa mesma preocupação. Acho que a escolha do tema
do congresso e, principalmente, o programa cultural que lá será oferecido
paralelamente, mostram que os psicanalistas alemães aprenderam a lição
da História. No 30. Congresso da IPA realizado em Jerusalém em 1977,
alguns psicanalistas alemães propuseram a cidade de Berlim para o
congresso seguinte da IPA. Mas ficaram muito consternados ao perceber
que muitos psicanalistas ficaram horrorizados com a idéia. Eles não
entenderam logo essa reação, porque o assunto psicanálise e nazismo era
ainda um tabu na Alemanha. Custou mais alguns anos, até que jovens
psicanalistas alemães conseguissem finalmente, no começo dos anos
oitenta, quase 40 anos depois do fim do dito Terceiro Reich, que o
problema do comportamento dos psicanalistas alemães, que tinham
permanecido na Alemanha durante o nazismo, fosse aprovado como tema
de discussão nas sociedades psicanalíticas. No primeiro congresso da
IPA na Alemanha, depois da guerra, realizado em Hamburgo em 1985,
foi apresentada uma exposição muito bem documentada sobre a
psicanálise alemã durante o nazismo. Pôde-se entender então porque
este assunto tinha sido um tabu durante tanto tempo. Os historiadores
acharam muita “sujeira”... Mas sem este trabalho sobre esse passado, não
seria possível, ainda hoje em dia, se realizar o próximo congresso da IPA
em Berlim. A influência alemã na escolha do tema deste congresso é óbvia:
“Recordar, repetir e elaborar na psicanálise e na cultura hoje”. E, para que
não se trate somente de recordações subjetivas, tem de se pesquisar. A
grande vantagem de pesquisas históricas é que elas não somente permitem
destruir mitos e lendas. Elas possibilitam também uma distância emocional

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para com o passado, o que facilita evitar os freqüentes conflitos entre os


psicanalistas.

Referências bibliograficas
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eine sehr merkwürdige Weise weiter...” Zur Geschichte der Psychoanalyse in
Deutschland. Hamburg: Michael Kellner.
Froté, P. (Hg.)(1998): Cent ans après. Paris: Gallimard.
Füchtner, H. (2000): O caso Werner Kemper: psicanalista, seguidor do nazismo,
nazista, homem da Gestapo, militante marxista? In: Pulsional, Vol. 10 / 2000,
49-89.
Füchtner, H. (2007): “Fremdartiger bunter Vogel” oder “Große Dame” der
Psychoanalyse? Zur atypischen Berufsbiographie von Anna Kattrin Kemper.
In: Luzifer-Amor, Bd. 39, 80-117.
Medeiros e Albuquerque, J. J. d. C. d. C.(1922): Graves e Fúteis. Rio de Janeiro:
Livraria Editora Leite Ribeiro.
Oliveira, C. L. M. V. d.(2006): História da psicanálise. São Paulo. São Paulo: Escuta.
Ponte, C. F. d.(1999): Médicos, Psicanalistas e Loucos: Uma contribuicao à História
da Psicanálise no Brasil. Rio de Janeiro (Diss. Mestrado Escola Nacional de
Saúde Publica).
Porto-Carrero, J. P.(1929): Ensaios de Psychanalyse. Rio de Janeiro: Flores e Mano.
Queiroz Junior, J.(1957): O Suicidio de Getúlio Vargas através da psicanálise na
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Ramos, A. d. A. P.(1926): Primitivo e Loucura. Bahia.
Ramos, A. d. A. P.(1931): Estudos de Psicanálise. Bahia: Livraria Cientifica Editora.
Sério, N. M. F.(1998): Reconstruindo “Farrapos”. A trajetória histórica da SPRJ:
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Silva, G. P. d.(o.J.): Getúlio Vargas e a Psicanálise das Multidões. Rio de Janeiro:
Zelio de Valverde.
Weissmann, K.(1937): O Dinheiro na Vida Erotica. Rio de Janeiro:Brasilia Editora.
Weissmann, K.(1964): Masoquismo e Comunismo. Contribuicao à Patologia do
Pensamento Político. São Paulo: Martins.

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O desejo de nada ou a
completude de vazios*
Tania Leão Pedrozo**

“Ando muito completo de vazios.


Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do acaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.”
Manoel de Barros
O Livro das Ignorãças

Resumo
A autora aborda um aspecto da clínica contemporânea com
pacientes que se caracterizam por falta de energia vital e
desinvestimento quase total do mundo exterior, como se houvesse
uma morte simbólica. Organização do vazio como forma de
evitação, de fuga do eu ? Falha na constituição do sujeito a partir
da assunção da falta ? Desorganização da ancoragem do sujeito na
rede significante ?

*
Trabalho apresentado no XX Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Brasília, em
novembro de 2005.
**
Analista Didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.

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O fato é que esses pacientes apresentam uma pobreza associativa,


uma falha na constituição da fantasia, um não-engajamento ao seu
desejo. São comuns as manifestações psicossomáticas e o uso do
dispositivo da adicção às drogas. Alguns fragmentos clínicos
exemplificam isso.
A investigação do contexto desses pacientes nos revela uma riqueza
de sugestões clínicas mas tambem nos leva à constatação de que a
contribuição dos analistas a essa questão é muito insatisfatória.
Nomear depressão o mal estar da tristeza dilui as diferenças
subjetivas e clínicas, já que em cada sujeito se articula um diferente
significado da depressão.
Freud não se preocupou em explicar a depressão em si mesma, aliás
o termo por ele mais utilizado é melancolia.
Jacques Lacan se referiu à tristeza como “covardia moral”.
No início do terceiro milênio, sabemos como psicanalistas que os
“deprimidos”precisam ser escutados cuidadosamente para que a “dor
de existir”possa dar lugar à alegria de viver que se sustenta no desejo.
Unitermos: depressão, melancolia, anorexia mental, clínica do
vazio, dor de existir, falta-a-ser, desejo.

Summary
The author considers an aspect of the contemporary clinic in which
the patients are deprived of vital energy and they are not able to
invest the external world as there was a kind of symbolic death.
Would it be an organized emptiness as a form of avoiding, a running
away from the Me? Would it be a failed constitution of the subject
from the assumption of the fault? Disorganization in the anchorage
of the subject in the significant chain?
These patients show a poor capacity of associating, a lack in the
constitution of fantasy, a non-engagement to their desire. The
psychosomatic manifestations are common as well it is the drugs
addiction. Some clinical examples are presented.
In this field the Psychoanalysis contribution is not satisfactory. It is
not precise to nominate depression the feeling of sadness because
in doing that we dilute the subjective and clinical differences. Freud
himself was not worried in explaining depression by itself, he rather
used the word melancholy.
Jacques Lacan named sadness a “moral cowardice”.

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In the beginning of the third millenium, we all know as psychoana-


lysts that the depressed subjects need to be listened carefully in order
to substitute “the pain of existence” for the joy of living.
Key words: clinic of emptiness, pain of the existence, desire,
depression, melancholy, mental anorexia.

Introdução

A depressão não existe. Na clínica, o que encontramos são estados


depressivos que ocorrem na vida de uma pessoa de forma muito
diversificada já que inseridos numa história subjetiva precisa. Nem mesmo
podemos falar de “depressões”, pois não há como descrever tipos que
tenham alguma consistência.
No entanto, não temos como duvidar de que esta é a civilização do mal–
estar, onde os acontecimentos da depressão emergem quase como
epidemia, ora em queixas dos pacientes, ora em diagnósticos médicos e/
ou psicanalíticos.
A estandardização e o anonimato superegóico dos modos de vida, a
deterioração dos laços sociais, as catástrofes mundiais, são acontecimentos
que determinam no sujeito uma experiência de morte do Outro, deixando-
o sem as antigas crenças no universal e as grandes causas do passado.
O que provoca a dor psíquica? Desde Freud, a psicanálise tem estado
às voltas com o fenômeno depressivo em suas várias formas, sem recuar
diante dos obstáculos; ainda que a psicanálise apresente uma duplicidade
em relação à tristeza, ao mesmo tempo acusando os afetos tristes de
complacência e deixando cair os semblantes que dão uma certa ilusão de
felicidade.
Os estados de tristeza provam de maneira exemplar a onipotência do
mental sobre o corpo e assim apaixonaram Freud desde os primórdios. A
princípio, como retração da libido, determinando efeitos de mortificação,
a explicação freudiana para os estados depressivos foi mudando para o
conflito inconsciente, a libido do eu, a pulsão de morte.
Para além dos estados de espírito, numa perspectiva transpsicológica,
temos a clínica do vazio e das modalidades de experiência do vazio,
passando dos diversos sentimentos de falta no neurótico até as psicoses
com seu peso de real abolindo toda tradução metafórica.

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Momento de fechamento do inconsciente determinando verdadeiras


orgias de auto-censuras e auto-comiseração ? Anorexia mental como forma
heróica de sustentar o desejo numa época em que todos os gozos estão ao
alcance? Identificação com o vazio na psicose melancólica ?
Neste trabalho, procuro pensar a questão da depressão, não só em
termos da falta, mas especialmente em termos de ausência da dor própria
do luto ou dos estados depressivos sem culpa, da tristeza sem afeto.
Meu desejo é por em evidência uma clínica do vazio em oposição à
clínica da falta, tentando dar um suporte para o trabalho com esses sujeitos
que nos procuram para que lhes demos sentido para a sua vida, com esses
sujeitos que abriram mão de seu desejo, “sem pouso sem guarita sem algo
que lhes dê garantia”( Cazuza ).

Tristeza, depressão e melancolia

Depressão não é uma estrutura clínica. Freud usou a palavra depressão


para falar de um luto patológico. Na depressão o sujeito reluta em
abandonar o objeto, não quer se reconhecer como sujeito faltoso, o que o
remeteria à castração. O fato do sujeito dizer que está deprimido por
uma razão evidente não significa que se trata de um luto; ao contrário,
pode ser a falta de luto, não querer se referenciar na perda, o que produz
a depressão.
O estado depressivo não se reduz ao afeto de tristeza, pois o sujeito
desesperado nem sempre está deprimido e o deprimido pode estar
indiferente em relação aos sentimentos.
A depressão, mais do que a dimensão do afeto, evoca uma perda de
interesse ou de capacidade. É algo que diz respeito à própria animação do
sujeito e que repercute ao nível mesmo de seus empreendimentos em
efeitos de inércia. Onde estaria a causa de tal deflação de libido?
Freud, em Inibição, Sintoma e Angústia e Lacan, em seu Seminário X:
A angústia, mostram que a tristeza depressiva não é a angústia, o tipo de
afeto relacionado a um real inassimilável; tampouco é um sintoma, já que
não possui a sua estrutura nem sua consistência; é, antes, um estado do
sujeito, variável e compatível com as diferentes estruturas clínicas.
Esse estado doloroso, por um lado, corresponde à emergência de um
excesso de gozo que rompe a barreira do simbólico; por outro lado, essa
dor está ligada à castração à qual o sujeito é remetido a cada perda. A dor
da depressão é a nostalgia do Ideal, da completude sonhada, do vazio de

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ser do sujeito, da falta-a-ser. Dor relativa à sua própria existência como


vazio, a qual Lacan, a partir do budismo, veio a nomear dor de existir.
Em Para além do princípio do prazer, Freud descreve o prazer aliado
à dor, dor que é a satisfação da pulsão de morte, em suas diversas
manifestações: perversão masoquista, gozo do sintoma, melancolia.
Os estados depressivos da neurose e a melancolia se caracterizam por
baixa auto-estima, auto-depreciação e auto-acusações, sendo que na
depressão não existe a tendência a se humilhar na frente dos outros como
se houvesse uma satisfação nesse rebaixamento. Tais auto-recriminações
se restringem a situações privadas. Além disso, na melancolia, as auto-
acusações são delirantes a ponto de, em seu delírio de “petitesse”
(pequenês), o melancólico ser megalomaníaco. Ele se considera
responsável por todos os males do mundo, se denuncia como o Ser Supremo
em maldade, identificando-se com Das Ding, a consistência real mais
temível do objeto a, objeto ao mesmo tempo causa e resto. A ele Freud se
referia ao dizer: “A sombra do objeto caiu sobre o eu”. Já na depressão,
por ser neurose, as auto-acusações são dialetisáveis.
Tanto na depressão como na melancolia, ao contrário do luto, o sujeito
sabe o que perdeu ou a quem perdeu, mas não o que com ele foi perdido.
Como na melancolia, as auto-recriminações do deprimido se dirigem na
verdade a quem ama , amou ou deveria amar. A diferença é que na
melancolia essa pessoa funcionava como bengala imaginária e, na
depressão, como depositário do Ideal do eu.
Em sua inapetência apática e dolorosa, os estados depressivos possuem
uma dimensão de inibição que Freud considerou um efeito da divisão do
sujeito devido à defesa paralisante contra o retorno do recalcado ou às
interdições punitivas do supereu. Freud precisou inclusive que a inibição
é global nos estados depressivos, congelando as funções libidinais.

O mal-estar do desejo

Lacan definiu depressão como covardia moral frente ao dever de se


referenciar na estrutura, ou seja, se reconhecer como sujeito desejante. O me-
lancólico rejeita o desejo e se coloca fora do simbólico. A suspensão da causa
do desejo na psicose melancólica determina a saída do jogo, a perda da rela-
ção com o mundo, o ser petrificado do sujeito que se tornou o objeto rejeitado.
Ali onde o desejo cai, o gozo sobe, assim é que o estado depressivo é uma
forma de gozar, como vemos frequentemente na clínica desses pacientes.

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O que leva alguém a renunciar a seu desejo? Lacan fala que essas
pessoas, os depressivos, não querem renunciar ao ideal do Tudo, sempre
se comparando com a perfeição e a onipotência, frente a que só podem se
sentir um nada. Um paciente que não se decide a estudar para as provas,
na verdade, teme é perder a imagem ideal que deveria ou poderia ter. Afinal
de contas, se ele não estuda para um exame pode continuar pensando que
não se deu bem porque não estudou o suficiente, em vez de se confrontar
com as suas possibilidades.
Essa é uma estratégia de evitação, de fuga do eu, em que o sujeito se
nega a lutar por algo como uma forma de arranjo para evitar o confronto
com algo que o angustia. Na inibição, o sujeito se defende do real através
de um dispositivo de renúncia que dribla a divisão subjetiva e a
determinação inconsciente. Evocando um momento de subtração do
sujeito da rede significante, a inibição implica em que essas pessoas não
articulam seu desejo pela palavra ou, então, denuncia uma relação
mortífera com o Outro em que a Morte é o Senhor.
Cabe ao supereu a responsabilidade pela inibição dos atos, uma vez
que ele funciona como “a instância judiciária do psiquismo”. Por suas
funções de censor e de ideal, o supereu poderia ser designado o agente da
depressão. E como já foi dito, é no sofrimento da depressão que a pessoa
goza, pois “nada força ninguém a gozar, senão o supereu”.
Qual o gozo do melancólico? Freud responde que, ao desmascarar a
si mesmo como alguém desprezível e demais atributos negativos, o
sujeito melancólico obtém satisfação, pois, na verdade, é ao objeto
perdido que suas acusações se dirigem. O melancólico não apenas se
tortura, mas tortura todo o mundo à sua volta. É uma pessoa pesada,
parada, sem iniciativa, sempre falando sobre o mesmo tema. A doença
gira em torno de um amor marcado por uma renúncia impossível; por
sua fragilidade, o investimento amoroso se esgota e, em vez do amor
pelo objeto buscar um substituto, o sujeito se identifica com o objeto
perdido. Na base da depressão, há o gozo de reter algo e assim impedir
o saber da falta.
Lacan diz que, no luto, trata-se menos da falta do objeto perdido do
que uma identificação à falta de que ele era objeto. Nessa falta, o sujeito
encontra seu lugar de objeto causa do desejo para um Outro. Em certas
montagens toxicomaníacas, o luto interminável é uma forma de eternização
da falta. A substância química preenche imaginariamente a falta no Outro,
em vez da pessoa tecer representações da perda sobre o buraco do
desaparecimento.

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Uma vinheta clínica do uso da maconha para preencher o vazio:


A paciente tem 19 anos e passa a maior parte dos seus dias em casa
fazendo nada ou fumando maconha que ela compra em pacotes. Mantém
uma relação homossexual com uma amiga dois anos mais velha, jornalista,
extremamente possessiva em relação a N.( a paciente ). A procura de
tratamento foi proposta pela mãe e aceita por N. não sem alguma
relutância. À mãe causava mal-estar a indolência da filha e o uso de drogas;
N. se aflige com a Faculdade onde está inscrita na área de Comunicação,
mas que não freqüenta em realidade e também se diz incomodada com
essa relação amorosa. Não faz associações, apenas queixas, se diz sempre
muito cansada para pensar, na verdade, não sabe o que pensar, são muitos
silêncios, nada a comentar. A frase que resume bem seu modo de estar na
vida é “eu nunca desejei nada”.
Por outro lado, o recurso às drogas pode ser a única forma da pessoa
escapar ao caráter totalitário da escolha narcísica, a essa paixão triste do
melancólico. Não existiria aí uma falha na constituição da fantasia? Esses
pacientes, desinteressados que estão do mundo externo, parecem estar
com todas as vias sublimatórias falidas e grande parte de sua atividade
sexual impedida. A droga lhes dá essa sensação de plenitude, já que a
divisão própria do sujeito lhes é insuportável. A miragem da perfeição faz
a lei para esses pacientes, sua causa última é o gozo. Nada lhes basta, vivem
sob a égide do “mais, ainda!”.
Mas, como em toda estratégia perversa, o sujeito se situa ali onde a lei
falha, a lei existe sob a forma de sua recusa, então, quanto mais transgride
suas interdições, mais se remete simbolicamente a ela.
Não há dúvida de que muitos dos “actings mortíferos” desses
dependentes químicos constituem uma forma particular de lidar com a
castração e uma tentativa de fazer a falta no Outro. Como forma desatinada
de interrogar o desejo do Outro, esses actings out podem ser a maneira do
sujeito colocar à prova o amor de seus pais - “Podem eles me perder?”.

A dor de existir

A melancolia como pura cultura da pulsão de morte desvela o


masoquismo primário do sujeito. Se, nas neuroses, o Outro se ausenta,
sua falta é abandono e covardia, pois para o inconsciente o Outro é culpado,
na melancolia a rejeição do inconsciente induz uma culpa delirante que
determina o gozo. Falar de masoquismo primário é falar daquilo que na

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vida não quer sarar, só quer morrer, só quer silenciar. Lugar fora do
simbólico, para-além do princípio do prazer, a dor de existir é a dor de que
nos fala o sujeito melancólico.
Para o budismo, a dor de existir é primária, uma vez que originalmente
“tudo é dor: o nascimento, o envelhecimento, a doença, a morte, a tristeza,
os tormentos, etc.”. Nenhum ser escapa à dor porque tudo o que existe
compõe-se de elementos de duração limitada.
A dor de existir está estritamente vinculada à ausência de um si mesmo.
É dor ligada ao vazio de ser do sujeito, à falta-a-ser, ou seja, à sua própria
existência como vazio. Situa-se em um ponto do real anterior ao ser.
Se o desejo aponta para um mais além dos objetos mundanos e se
expressa em demandas, a dor de existir é a dor de saber sobre a castração
que não pode ser subjetivada, se insere em um contexto sem palavras. O
paciente não tem o que dizer, não faz associações, “dá um branco quando
penso em mim mesmo”(sic).
Quando não há palavras para falar da vida, estamos frente ao
masoquismo primário, nos diz Lacan. Na clínica da melancolia, muitas
vezes nos deparamos com uma ausência de associações do paciente, o que
não é resistência, não é da ordem do recalcado, mas, sim, uma falta de
palavras. O sentimento não é de angústia, às vezes tristeza, porém, é comum
a ausência de sentimentos. O silêncio fala de um vazio. A pulsão de morte
é silenciosa. Instado a falar o que pensa, a resposta é: “-Não penso nada,
deu um branco, não sei”, ditos com um ar de perplexidade. Além disso, a
vida desses pacientes atesta esse vazio de vida, pois nada os empolga, e,
nos casos onde há alguma atividade, ela parece ser da ordem da
necessidade, não sendo vivida como escolha e nada acrescentando ao
sentimento de existir. Tomar quantidade de comprimidos para dormir, e/
ou de ansiolíticos, tem sido descrito por um paciente meu como forma do
tempo passar mais rápido. A ponto de ter tido uma retenção urinária, certa
vez e ter desmaiado, se machucando ao cair no banheiro.

A clínica

A abordagem do psicanalista frente esse vazio de representações visa


implicar o sujeito naquilo que ele experimenta, assumir sua tristeza,
implicá-lo em seus afetos. O instrumento mais valioso do analista é o
desejo. A paciente, em momento de vacilação durante o processo
psicanalítico, fala em despedida, a empatia não foi suficiente, mas talvez

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tenha valido a pena. A analista pontua a expressão “valeu a pena” para


afirmar o desejo da paciente, uma pessoa sem vida amorosa, com laços
sociais muito tênues, que dorme quase todo o tempo em que está em casa
sob efeito de soníferos. Ou, em outra sessão quando, em um dos raros
momentos de reflexão, após dois anos de tratamento, a paciente descreve
sua vida como “sem graça, sem sentido”, e se pergunta exclamando, quase
no final, “fim!?” Quando então a analista enfatiza a interrogação para
construir uma questão.
A implicação subjetiva há que ser mais do que uma catarse confessional,
deve ser uma autonomia em relação às prisões imaginárias da tristeza do
sujeito para que ele possa entrar em contato com o gozo do seu sintoma.
Aí será possível tornar tristeza a dor de existir, algo passível de uma
formulação subjetiva e de um enquadramento imaginário.
A prática metódica da droga constitui um “tratamento médico do mal-
estar do desejo” onde o artefato ou artifício droga produz um gozo que
busca a completude, às custas da supressão de sentido, do preenchimento
da divisão própria do sujeito.
Na clínica das toxicomanias, o trabalho de análise visa retificar a
montagem produzida pela droga, através da construção de um sintoma,
ou seja, da problematização do próprio uso da droga. Fica claro, portanto
que não se trata de interpretar o ato de se drogar, uma vez que, pelo menos
no início do tratamento, não estamos frente a alguém que traz questões,
algo a ser decifrado, origem do sintoma. Mas, sim, através do fazer falar, o
analista demandar ao sujeito que de passar ao ato passe ao dizer. Em outras
palavras, trata-se de obter essa interpretação que é o próprio trabalho do
inconsciente. Na clínica isso, não raro, determina momentos de muita
angústia diante de uma pergunta acerca de situação anterior ao uso de
drogas.
Nessa perspectiva em que o sujeito age a dor, incapaz de representá-la,
o analista se vê diante de um psiquismo inundado por angústia. Na
transferência, a vivência e atualização da dor constituem uma oportunidade
de nomear os afetos, tirando do estado de dissociação as experiências
traumáticas. Nesse processo, inclui-se uma dimensão de corporeidade
tanto do analista como do analisando, já que o traumático da subjetividade
está para além da representação. O corpo é a última certeza que o sujeito
pode ter, lugar privilegiado de ancoragem por fazer parte do mundo das
coisas.

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O desejo de nada

O que pode levar alguém a renunciar ao seu desejo? Na anorexia mental,


Lacan situou um gozo que ele denominou “apetite de morte”, relacionado
a uma rejeição da simbolização, obstáculo para a associação livre. Se a
anorexia exprime um desejo, que desejo é este que não se articula no
discurso? Ou estaria denunciando uma relação mortífera em que a Morte
é o Senhor? O anoréxico nada demanda, denunciando uma paixão pela
ignorância, ele nada quer saber sobre os efeitos de seus atos. São os outros
que lhe demandam: que ele coma, que fale, que trabalhe, que se divirta,
que faça amigos, etc.. Ao anoréxico nada lhe falta, ele está preenchido de
comida e também em outros níveis. Não se reduz a anorexia a uma ausência
de apetite, a questão central é uma inapetência generalizada, uma espécie
de deslibidinização do corpo assexualizado que atua.
Trata-se de uma manobra radical para produzir a falta no Outro como
forma de construir um desejo, ainda que seja um desejo de nada. Há,
portanto uma demanda muda, não articulada em palavras, que o torna
escravo tanto do seu ato como do seu não-dizer. Daí que o seu não-dito
pode ser abordado como uma forma de adicção sem drogas, marcado pelo
gozo auto-erótico, representante da pulsão de morte. Em seu próprio corpo
o anoréxico denuncia que onde o sujeito não diz, ele faz. “Aquilo que o
sujeito não pode dizer, ele o grita por todos os poros de seu ser”. (Lacan)
Diante desse sujeito que interpela o analista como Outro, mas não lhe
endereça nenhuma demanda, já que perguntar é por em evidência a falta
daquilo que o sujeito não suportaria saber, o que o analista tem a oferecer?
Como transformar o silêncio em enigma? Como instalar a transferência
frente a formações psíquicas mais próximas do fazer do que do dizer?
Contra o não querer desejar como forma desesperada de querer desejo,
o psicanalista tem a oferecer uma escuta singular para possibilitar a
passagem de uma boca forçada a se fechar a uma boca que põe em palavras
o seu sofrimento mudo e não dialetizado, transformando o silêncio em
enigma.

Considerações finais

Na contemporaneidade, a concepção radicalmente individualista da


vida manifesta-se, no âmbito social, por indiferença em face das questões
públicas e por enfraquecimento do sentimento de pertencer a uma

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coletividade. Na cena psicanalítica, observa-se uma exacerbação do


narcisismo determinando formas específicas apresentadas pelas
psicopatologias. Uma de suas características mais marcantes é o
sentimento de vazio, aliado a uma atitude de indiferença em relação ao
outro. O outro ocupa o lugar de mais um objeto de consumo e a vida é uma
competição de desempenhos.
Portanto, o mal-estar contemporâneo apresenta modalidades
específicas, o que demanda uma reflexão sobre a teoria freudiana a respeito
da dor psíquica. Em vez dos conflitos neuróticos, regulados pela lógica da
castração, temos as patologias traumáticas, expostas ao terror e à angústia
de aniquilamento.
A anorexia, a bulimia, as drogadicções e todos os tipos de compulsões,
a apatia, os estados depressivos apontam para uma falha no processo de
subjetivação. A re-encenação, na transferência, dos afetos vinculados ao
traumático dessas situações, permite dar forma a esses afetos, funcionando
o analista como barreira erótica e como condutor para a sua transformação.
A capacidade do analista de conter, com seu próprio corpo, com sua
vitalidade, a dor do analisando torna possível que a dor se transforme em
expressão. Mas, não se trata apenas da dimensão do afeto, pois se verifica
nesses analisandos uma suspensão do desejo, uma inapetência apática e
dolorosa.
Em tempos de esvaziamento das subjetividades, mais do que nunca a
Psicanálise se faz necessária. Não para oferecer significados, mas, para
despir de excesso de sentido as falas daqueles que nos procuram. Só então,
a verdade do sujeito poderá surgir e o estupor ante o vazio dar lugar à falta
estruturante do sujeito.

Referências bibliograficas
Freud, S. (1969). Luto e melancolia . In S. Freud, Edição standard brasileira da
obras psicológicas completas de Sigmund Freud ( J. Salomão, trad., Vol.14).
Rio de Janeiro: Imago. ( Trabalho original publicado em 1915).
Freud, S. (1969). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud ( J. Salomão,
trad., Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920).
Freud, S. (1969). Inibição, sintoma e angústia. In S. Freud, Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud ( J. Salomão,
trad., Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago. ( Trabalho original publicado em 1926).

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VIII – Número 1 – 2007

Kalimeros- Escola Brasileira de Psicanálise- Rio de Janeiro(1997). Consuelo Pereira


de Almeida e José Marcos Moura (Orgs.). A dor de existir e suas formas
clínicas: tristeza, depressão, melancolia. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.
Kalimeros- Escola Brasileira de Psicanálise – Rio de Janeiro(1998). Lenita Bentes
e Ronaldo Fabião Gomes (Orgs.). O brilho da infelicidade. Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria.
Lacan, J. (1966). Kant avec Sade. In J. Lacan, Écrits. Paris: Seuil. (Trabalho original
publicado em 1963).
Lacan, J. (1974). Télévision. Paris: Seuil.
Lacan, J. (1986). Le Séminaire, livre VII: L´éthique de la psychanalyse, 1959-1960.
Paris: Seuil ( Trabalho original publicado em1960).

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Principais Contestações da
Psicanálise na Atualidade
Alexandre Kahtalian*

Resumo
O autor discute, utilizando o contexto em que a Psicanálise se situa
no inicio desta nova década, as mais comuns argumentações contra
a existência do mundo inconsciente descoberto por Freud e seus
seguidores. Discute as questões: cientificidade, auto-ajuda, mito da
verdadeira Psicanálise, desatualização profissional dos analistas,
neurociências e drogas medicamentosas.

Summary
The author discuss , contextualizing \Psychoanalisis in the beggining
of this century , the most common conflits about the existence of a
Unconcious mind, discovered by Freud and theirs followers a hundred
years ago. The issues are : Psychoanalysis as a a Science, Help-self,
mith like the True Psychoanalysis, Neurosciences, drugs, no up to
dating psychoanalytical studies by the professionals and so on.

Introdução

O tema é bem oportuno, por duas razões principais : a primeira delas é


a retomada das contestações , elas mesmas, à semelhança das que
ocorreram no início do século XX, quando a Psicanálise foi instituída por

*
Membro titular da SPRJ (Rio 1).

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Freud. Como sabemos, a Psicanálise foi muito questionada pela Ciência e


pela Cultura em geral na época vienense, o que obrigou a Freud e seus
seguidores a se organizarem para não deixar a Psicanálise falecer no seu
berço nascente. Foi por esta necessidade básica que Freud pensou em Jung,
suíço de Zurich para ser o depositário da expansão do movimento
psicanalítico, já que a Suíça abrigava importante peso no desenvolvimento
das ciências psiquiátricas da época. Assim como criou o grupo do círculo
dos anéis e a IPA para impulsionar o movimento para outros países, de
modo a angariar seguidores e proporcionar a difusão da Psicanálise.
A segunda e mais importante é que atravessamos um momento mundial
enraizado em mudanças da arquitetura social e dos fenômenos que nos
assolam : uma sociedade dita do espetáculo, a velocidade dos aconte-
cimentos, naquilo que Bauman tem descrito como modernidade fluida,
onde leis do mercado prevalecem ordenando direções futuras para a
sociedade. Adicione -se a isto, a desconstrução da família tradicional e os
novos arranjos na malha dos acasalamentos e a presença da Infoera, como
descrito por João Antonio Zuffo da USP.
Como somos psicanalistas e gostamos de nossa profissão, temos que
enfrentar os desafios desta argumentação retórica contra a Psicanálise,
eventuais substitutos , suas mudanças e os questionamentos quanto ao
seu lugar no mundo atual. O termo contestação que aqui tomo, tem o
sentido mais amplo do que um ataque e a necessidade de defesa da
Psicanálise, tem um sentido mais de reflexão.

Contestações
Cientificidade
É bem antiga e conhecida, e já muitas vezes debatida, é a de que a
Psicanálise não tem leito garantido no vértice das ciências. Se ela não pode
ser enquadrada como ciência da natureza, ou do campo físico-matemático,
isto não a retira do seu caráter de ser ciência. Como diz Dilthey, uma ciência
empírica de sentido e de significado, ou como quer Muniz Resende, uma
ciência Pós-paradigmática, cujo objeto de estudo é o sujeito consciente x
sujeito do inconsciente e que tem a interpretação como agente operativo
deste campo. É também, ao meu ver, uma ciência constitutiva, relacional
e contextualizada do ser. Mesmo o problema da Verdade, uma exigência
do absolutismo científico, pode ser suportada pela Psicanálise em vários
de seus conceitos. Igualmente, se tomarmos o parâmetro subjetivo da

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verdade, ela pode ser encontrada na experiência da análise, levando-se


em conta a multideterminação fatorial dos fenômenos observados.A
diversidade de formas de apresentação não isenta a Psicanálise de ser uma
ciência. Para exemplificar, os pacientes portadores de Psoriase, todos eles,
sofreram de angústia de separação, por ocasião do aparecimento das lesões
cutâneas, que podem ser evidenciadas nos relatos anamnésticos e ou
vivenciada nos relatos psicoterápicos ou psicanalíticos .
Acho que os psicanalistas não tem discutido suficientemente esta
questão e assim não conseguem defendê-la em fóruns interdisciplinares
ou midiáticos. Penso que muito disto se deve a um campo onde pululam
opiniões de um leito bem fornido de “abelhudos intelectuais”, que sabem
trabalhar melhor o conceito de verdade por vértices que não são os nossos.
No campo laico temos contestações menos nobres, porém de muita força
social e abrangência, constituindo o que denominamos de área de auto-
ajuda.

Auto Ajuda

É uma outra arma e muito poderosa nos efeitos contestadores da


Psicanálise. É fácil de tê-la, e-mails, livros, ongs, religiões e seitas, encontro
de casais, associações anti-tudo. Isto provavelmente está a nos indicar que
não estamos fazendo que nosso instrumento de ajuda chegue à população.
O acesso à análise ainda continua difícil. Claro está que tais agentes sociais
fazem parte da função terapêutica que a sociedade demanda. Não há tantos
profissionais disponíveis. A questão que mais se faz sentir é que o
imaginário popular ache que isto seja psicanálise , mas não só ele, também
em ambientes mais educados e letrados, que vão a conferências, mesmo
de nível universitário, isto ocorre. Livros, pregações, discursos, salas de
palestras onde a cultura é fashion. São instrumentos de conquista onde se
transmite a idéia de que preceitos sendo seguidos vão revelar a norma,
aliviar os sentimentos de culpa, vão finalmente tranqüilizar e resolver os
dilemas. Um salmo fumegante, uma palestra filosófica, uma confissão
artística vão trazer a redenção do ser e da paz de espírito. Um Caminho de
Santiago trará a glória e a salvação desejada. Além do que é mais barato,
accessível, descompromissado e tem muito mais força simbólica.

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Verdadeira Psicanálise

Outro grande descrédito (ou desserviço) a contemplar a Psicanálise é a


babel de teorias de que dispomos e que tentamos impor à nossa
comunidade ou fora dela, de que sabemos e temos a verdadeira Psicanálise.
Muitos de nós têm procurado entender este fenômeno, quando pacientes
trazem, na primeira entrevista, a indefectível pergunta : qual é a sua linha?
O desconhecimento ingênuo ou leigo indica que deve haver uma verdadeira
psicanálise, quem sabe a linha tal, geralmente aconselhado por familiares
e ou amigos do mesmo mundo cientifico.
Esta confusão de línguas teóricas não é um fenômeno novo na
comunidade analítica, vem desde a época das batalhas dos idos de 40 na
British Society. Wallerstein, em 1987, no Congresso da IPA, em Roma,
questionava o que poder-se ia ter como terreno comum para que pudesse
se chamar Psicanálise. Esta questão ressurge agora com o fato de que
teorias intersubjetivas trazem novamente a questão do que seria a
verdadeira Psicanálise, questionando modelos clássicos de uma certa
ortodoxia freudiana. Este é um problema atual na psicanálise contem-
porânea. Estamos diante de uma teoria de mente pulsional, relacional ou
de ambas.
Afora esta questão , diria, de caráter mais ideológico, estamos tendo
que conviver com simulacros de formação psicanalítica, trazidos por grupos
religiosos e mesmo de proveniência universitária que acreditam que cursos
teóricos de dois anos de duração, supervisões precárias e pouca experiência
da prática de psicoterapia, “transmitem a Psicanálise” e autorizam o
candidato a se intitular analista.

Desatualização Profissional

Esta questão diz mais respeito aos psicanalistas, pois é através deles
que a psicanálise é veiculada, perdendo crédito como instrumento de
conhecimento progressivo, assim como o de tratamento psicanalítico.
Outrora a procura psicanalítica se fazia mais para aliviar sofrimentos
longamente cultivados, para lidar com conflitos sexuais bem delimitados,
existenciais por vezes, que acompanhavam o individuo sofredor. Hoje, a
demanda tem sido diferente, ela, demanda, é a própria procura para o
tratamento analítico. O sujeito trocou sofrimento psíquico por dor psíquica.
Uma psicanálise de conflitos por uma psicanálise do trauma. A sexualidade

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foi desreprimida , anda de avião a jato nos meios midiáticos : telejornais,


chats, nas entrevistas de bate-papo, nas revistas semanais. Falar de sexo,
comentar sobre sexo , ministrar aulas de sexo, tem para todo gosto. O que
não se fala neste campo, e não se discute, é a perplexidade do ser e da
constituição da cidadania amorosa. Quem nos procura hoje quer o alívio
da dor, quer o aprendizado de ser. Não mais o alívio do sofrimento e a
procura da reparação. Quer solucionar a depressão vazia, a fragmentação
pessoal. Outra questão que tem ser debatida é o tempo de duração das
análises, pois não dispomos tanto do tempo bergsoniano da continuidade,
interferindo no correr do processo analítico, impondo limites.
A Psicanálise tem sido freqüentemente procurada como droga, um
suporte para o mundo hostil aos sentimentos de viver na comunidade dos
homens. Precisamos lidar e investigar as psicopatologias que exigem do
terapeuta um alcance mais intrusivo das suas ferramentas de trabalho :
psicossomatoses, distúrbios alimentares, distúrbios do narcisismo,
perversões, adições, traumas os mais diversos, distúrbios do aprendizado
infantil, etc Tais ocorrências exigem a atualização e uma pesquisa de nossa
metodologia de trabalho. Penso que sempre é bem vinda a atualização
profissional e deveria inspirar os analistas a se aprofundarem em
freqüentes e novas propostas, ampliando seu olhar e escuta destes
pacientes difíceis

Neuropsicanálise & Medicamentos

Outra causa que contribui para o descrédito de nossa ciência é o


desconhecimento que temos sobre a neurociência, área que desperta pouco
interesse ainda em nosso meio, embora ela não conteste o valor e a
importância que a Psicanálise revela para o seu próprio desenvolvimento.
Não só as neurociências mas outras áreas do saber como a Psicofisiologia,
a Neuroendócrino Psicanálise, a Psicossomática de modo geral. Tais
conhecimentos agregam saber aos psicanalistas. Por exemplo, estuda-se
muito o desenvolvimento no nascedouro das crianças e pouco se estuda o
processo do morrer, etapa importante para se compreender os fenômenos
destrutivos do ser humano. As neurociências não têm poder para contestar
a Psicanálise e o substrato que ela estuda não é tão desconhecido para
alguns de nós, que até experiência desta inter-relação mente-corpo já
vivemos e até apreciamos. Um paciente entra no consultório trazendo a
Hemicrania como queixa na sessão e após a mesma sai sem ela : algo se

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passou, o processo de análise, a interpretação, produziram uma reação


química em nível cerebral. Já não é novidade que a interpretação traz
mudanças corporais e humorais, por lidar com circuitos neuro-endócrinos
e humorais. A medicina Psicossomática é prenha de tais acontecimentos.
O que quero salientar aqui é que há um mundo medicamentoso
concorrendo com nossa profissão, porque não nos apossamos de mais
conhecimentos sobre a relação mente-corpo. A Psiquiatria tem rebatizado,
configurando o status de transtornos e classificando-os como T.P, TEPT,
TOC, TAG por aí a fora, conferindo uma via diagnóstica pela qual a
população médica, e também a população de enfermos, pode ter acesso.
Assim posto, a população pode procurar a Psiquiatria para se aliviar da
“dor psíquica”. Vende-se muitos remédios, os sintomas são reduzidos ou
terminam sendo controlados. É mais barato, mais rápido e a população
não fica desassistida.

Conclusões

As considerações aqui expostas não pretenderam abordar em mais


profundidade o universo de aspectos que se levantou e sim oferecer um
buffet self service para que vocês façam suas escolhas. De outra maneira,
poderíamos saciar nossa fome, porém teríamos que escrever um grosso
compendio, o que no momento, para o autor, seria uma forma de mantê-
lo com excesso de peso.

Referencias bibliográficas
Freud, S. - St Editions – Obras Completas
Muniz Resende, A – O Paradoxo da Psicanálise – Via Lettera Editora e Livraria,
2000.
Soczek, D, - Utopia e Realidade : uma reflexão a partir do pensamento de Zygmund
Bauman – Rev. Sociol. Pol. – vol. 23 , 2004.
Perestrello, D. Medicina da Pessoa – 4ª Edição.

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Scheherazade, a mulher-menina ou
a princesa que encantou o sultão*
Ambrozina Amalia Coragem Saad**

“Vou dobrar-me à regra nova de viver.


Ser outro que não eu, até agora musicalmente
agasalhado na voz de minha mãe, que cura doenças,
escorado no bronze de meu pai, que afasta os raios.

Ou vou ser - talvez isso - apenas eu


unicamente eu, a revelar-me
na sozinha aventura em terra estranha?
Agora me retalha o canivete desta descoberta:
eu não quero ser eu, prefiro continuar
objeto de família.”

Carlos Drummond de Andrade


(Fim da casa paterna)

Resumo
A autora descreve a sua relação com uma paciente em análise, a
quem chama de Scheherazade - aquela que encantou o sultão com
mil e uma histórias - que, regredida, mostra defesas poderosas, um
arranjo que lhe tem permitido lidar com a sua aguda angústia de
existir e extrema dor psíquica.

*
Trabalho apresentado como Tema Livre no XX Congresso Brasileiro de Psicanálise.
Brasilia DF, 11 a 14 de novembro de 2005.
**
Membro Titular da Sociedade de Psicanálise de Brasilia.

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No estar com a analista, Scheherazade vai desfiando uma a uma


sofridas histórias de encantamento e horror. Tais relatos envolvem a
ambas num clima emocional peculiar, onde o sofrimento e o gozo da
paciente se enroscam, hipnotizando-a e envolvendo a analista em
estado mental de curiosidade e fascinação - como os tentáculos imagi-
nários de um polvo - num verdadeiro cenário das mil e uma noites.
Assim, a cada sessão-noite, trabalhando como lhes tem sido possível,
a princesa e o sultão vêm se encontrando e buscando o
desenvolvimento pessoal da dupla.
Palavras-chave: Neurose; clínica

Summary
The author describes her relationship with a patient, whom she cals
Sheherazade – the one who enchanted the sultan for one thousand
and one nights. Regressed, she shows powerful defences, an
arrangement that has allowed her to cope with her acute anxietyand
psychic pain. When with her analyst, Sheherazade unfolds one by
one painful stories of enchantment and horror. These narratives
involve both patient and analyst in a peculir emotional compact, in
which the patient’s pain and pleasute become entangled, hypnotising
her and involving the analyst in a mental state of curiosity and
fascination – like the imaginary tentacles of an octopus – in a real
scene of 1001 nights. In each evening meeting, the princess and the
sultan meet, and look for the personal development of the couple in
order to pursue their personal development.
Key words: Neurosis; clinic

Scheherazade chegou.
Veio porque “teve uma crise nervosa e está muito mal”.
Eis Scheherazade à minha porta, acompanhada da filha, quase
carregada, cambaleando. Deparo-me com uma mulher bem tratada,
pequena, bonita e aparentando fragilidade extrema.
Chora muito e relata a sua “crise”. Tivera uma discussão com o marido,
“que afinal nem foi discussão porque só quem falava era ele”. Falou tanto,
mas tanto
Aquela boca se derramou sobre ela, jorrando um enorme rumor de
palavras. Deslimites (entendi). Um desacontecimento, verdadeiro susto

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para ela e para todo mundo. Olhos arregalados - dela e de todos! O choro
não cedia... e tanto, atacou, depreciou e menosprezou, “e foi tanto barulho
nos meus ouvidos que de repente comecei a chorar e a gritar descontrolada,
sem poder parar, sem entender”.
Depois, veio a depressão. Não sair da cama, não comer nada, não querer
nada, não-nada...No âmbito da sucedência, precisou ser medicada e
dormiu.
Situação muitíssimo gravíssima.
Assim aconteceu. E assim ela está: deprimida. Corpo dormente,
formigando, principalmente nos braços, mãos e dedos, que ela massageia
e movimenta continuamente, enquanto conversa comigo.
(Penso: uma histérica clássica. Uma daquelas maravilhosas mulheres
tratadas por Freud. Na verdade, tal e qual...)
Fala-me da dificuldade de relacionamento com o marido, que é frio,
distante e vive recriminando-a, fazendo-a sentir-se com a sua auto-estima
lá em baixo. No chão mesmo e ainda por cima pisoteada. Uma amarga
corrosão no seu cotidiano. Dilaceramento. Coitadeza que ela desconsegue
fazer acabar.
Pois é. Scheherazade é sedutora e no início de nosso contato, nos
primeiros dias em que estive com ela (e ela vinha de segunda a sexta feira),
surpreendia-me a mim mesma, olhos arregalados, fascinada com as
histórias (ou seriam estórias?) que me contava. E pensava, enquanto
aguardava a sua chegada: qual será a história de hoje?
Shahriar, o sultão, tinha razão....
As mil e uma noites. Maravilha e espanto.
Sim, freqüentemente, durante as sessões, precisava eu mesma chamar-
me à atenção por causa desse encantamento. Era bom ouvi-la. Lembrava-
me meu neto ouvindo as minhas historinhas, estrelas acesas nos olhinhos
presos aos meus, um susto no ar. O sultão com a bela princesa, que ele
ouvia a cada noite, noite a dentro. Mil e uma noites... Histórias contadas
para evitar a morte... espremidas do apalpamento das intimidades do seu
mundo, fruto de - será? - fantasias paralisantes insistentemente reencenadas.
Histórias de desencantar. Era como se me dissesse: -”Preciso do desperdício
das palavras para conter-me.” (Obrigada, Manoel de Barros).
Scheherazade julga-se feia. Tem uma irmã “lindíssima, parece uma
princesa, muito loira e de olhos azuis”, que sempre chamou a atenção de
todo mundo. [Dinarzade vem-me à mente]. Ela não, nem loira, nem olhos
azuis, magrinha e mirrada, “cabia numa caixa de sapatos quando nasceu”.
Então, ficava escondida atrás da saia da mãe, quando chegavam visitas.

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- “Que linda!” diziam, referindo-se à irmã.


- “E essa aí? É sua filha também? Engraçadinha...”
É. “De princesa, não tinha nada. Estava mesmo mais para Gata
Borralheira”, segundo as suas próprias palavras.

As mil noites e uma história

Nos seus relampejos de lembranças, levantando as pontas do seu viver,


ela desfolhava lamentos. E informa que, quando se casou, Scheherazade
era ainda uma adolescente, sonhadora e romântica. Nos primeiros tempos,
sofreu uma grave doença infecciosa., que a deixou na cama durante meses
(infecção sem nome? Ela não sabe.). O marido não se aproximava muito,
não lhe fazia nenhum carinho, não a tocava, “com medo de pegar a
bactéria”.
Sentiu-se muito só e foi para a casa da mãe, que então cuidou dela. Ah!
tão bom sentir-se aconchegada pela mãe! Retornar ao seu colo. Apossar-
se dele, deixar-se ficar naquelas envolvências...
Grávida do primeiro filho, ela se sentiu muito grande, engordou demais,
ficou deformada. E se olhava no espelho... tão feia... desiluminada...
No dia do nascimento do bebê, a terrível surpresa: a criança, uma
menina, em sua estréia de ser, veio morta, enforcada pelo cordão umbilical.
Decepção, tristeza, lágrimas (dela e do marido). Uma grande perda. Luto.
Experiência de muita dor.
Posteriormente, teve outra filha que lhe deu uma netinha. Mãe solteira,
produção independente.
Essa filha é a sua questão, desde há algum tempo. Homossexual
assumida (“sapatão!”, diz ela para a filha, com raiva e desilusão, para
agredi-la e “ver se ela reage” ), mora com a companheira e a filhinha, neta
de Scheherazade.
- “Não me conformo. Minha filha é tão linda, tão capaz, tem tudo para
ter uma vida maravilhosa, e fica desse jeito... Morro de vergonha! O pai e
eu já falamos, brigamos, fizemos o que pudemos, mas não adianta”.
Ouvidos moucos. Destino funesto.
Que forças barulham o tempo todo, mal dispondo o mundo ao seu redor?
A terceira filha é solteira e morava com os pais. Agora tem o seu próprio
apartamento. Até recentemente estava meio empacada na vida, mas acabou
deslanchando e está progredindo profissionalmente. É sensível, tímida e
carinhosa. Tem um noivo e vai se casar brevemente.

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Scheherazade teve uma outra gravidez. Nasceu uma menina, mais uma
vez. Família de mulheres... Na época, não existiam ultrassonografias e ela
só soube do problema quando a criança nasceu: tinha uma deformidade e
portava também uma série de complicações (uma cardiopatia grave,
principalmente).
Outro choque. Um sofrimento que durou todo o tempo de vida do bebê.
Scheherazade dedicou-se, à ocasião, exclusivamente a essa criança. Vivia
com ela nos hospitais em que era internada, na própria cidade e em centros
mais avançados também. Cirurgias, recuperações, cuidados constantes,
dia e noite.
Choravam muito, ela e o marido. E, um dia, a filha se foi... Ela desvivia
de tanta dor. Essa doença de estar viva...
Scheherazade guarda experiências dolorosas de doença e de morte.
Lutos que - percebo - não foram elaborados.
E penso: teria ela uma fantasia fundamental de destruição? De ser
mediadora da doença e da morte? Uma mãe assassina, que gera e mata?
Ela estraga o que toca, bem ao contrário do Rei Midas, que tudo
transformava em ouro com o seu toque.
Scheherazade... A menininha mirrada é extremamente poderosa...
Nos nossos encontros, ela continua desfiando suas histórias bem assim:
- “Hoje, vou falar da minha primeira filha.”
- “Hoje, vou falar do meu pai.”
- “Hoje, vou continuar a história da vez passada, sobre a minha filha.”
Parece estar lendo um livro para mim ou falando um discurso que nada tem
a ver com ela mesma. É como se estivesse hipnotizada pelas próprias histórias
(ou seria pela sua própria fala? Pela sua oralidade?) e assim vai, como um
autômato, desfiando relatos para mim, sua analista, afogada em lembranças
de vastas amarguras. Todavia, raramente apreendo emoção de verdade nos
relatos. Chamo a sua atenção para isso. Ela se surpreende. Parece não
entender a minha observação. Ora, pois, ela não vive apenas em rascunho?
Os afetos... Ah! Os afetos... Onde estão? Como estão? O que são?
Anestesia psíquica?
Ao terminar as sessões, sai flutuando levemente, como se fora uma
pluma ou uma menininha travessa. Esvaziada dos incômodos que habitam
as veias da sua alma, voa leve como borboleta.
Há dias em que aparece nas sessões extremamente produzida,
perfumada, maquiada, bem vestida, como se fosse para uma festa. Outros
dias, surge desarrumada, cara lavada, cabelo que ela mesma tesourou e
com falhas no corte, desqualquerficada. E faz questão de me dizer isso:

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quando não está bem, corta os próprios cabelos. Assim sempre fora, desde
há quase uma vida.
Scheherazade é também, segunda ela, mãe da neta, “porque a minha
filha não cuida”. É ela que leva e vai buscar a neta na escola, no balé, no
curso de inglês e seja onde for. Sua vida gira em torno dessa menina, seu
xodó. Ensina tarefas, escova o cabelo dela, serve o lanche e tudo o que for
preciso. Ama a neta, de paixão. Para ela, todas as demasias do seu coração.
Assim mesmo, demasiando uma doçura docemente doce. E tem ciúmes
do fascínio que a mãe (sua filha) exerce sobre a criança.
Tento fazê-la discriminar entre “ser mãe” e “ser avó”. Ouve e dá lá o seu
risinho... dissolvida naquela pausa, numa fulminância de relâmpejo.
Desliza...
Sheherazade tem medo das conseqüências da homossexualidade da mãe
sobre a garota. A companheira da mãe “é um tipo vulgar, meio hippie,
cabelão sujo, ensebado, é grosseira”. Uma vez, ela me relatou que a neta
lhe contou, achando muito estranho, que a tia estava tomando banho e a
chamou para vir também. A menina entrou no banheiro e se assustou com
o tamanho do clitóris da tia. - “Vovó, era uma coisa tão grande e
esquisita!...” Scheherazade receia que a menina fique gostando dessa tia e
a ela se apegue. Teme ser substituída, trocada. Afinal, aquele clitóris-pênis-
falo, ela não tem. É da tia!
E assim Scheherazade vai vivendo no seu tear de entrexistências, ruando
por aí, desmapeada e sem destino.
E vamos vivendo a análise. Scheherazade precisa ficar grudada ve-ge-
tal-men-te naquelas pessoas que ama... Pregada. Viscosidade de libido.
Ilusão de fusão, ela se cola em mim, sua analista e fica, assim, con-fundida.
Fica ficando. Con-fusão.
Scheherazade tem muitos medos. Tempestades, trovoadas, elevadores,
metrô, confinamentos, multidões. “Sou muito medrosa e insegura”, vive
repetindo para mim.
Scheherazade é assim: dependente, regredida, infantil. Queixa-se das
limitações que a dependência impõe à sua vida. Mas, por outro lado, reco-
nhece também as vantagens secundárias que obtém disso. Comodidades
gostosas, pseudo-proteções das quais não se dispõe a abrir mão.
- Para que crescer, apropriar-se de si e de sua vida, se isso vai exigir
dela tanto esforço e desacomodação? Peter Pan de saias. Para ela, ser
criança traz lá suas benesses... Muito bom ser “objeto de família”.
Conversamos sobre isso. Ela ri. Acha muito engraçado. E varre para
debaixo do tapete. Não se toca, não se deixa atingir.

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A família: ninho. Penso, então: ninho e jaula.


Certa feita, adentra a sala de análise com a fisionomia diferente. Está
transtornada. [Indago-me: o que será?]
Nem bem me vê, vai falando com voz enrugada, enquanto se encaminha
para o divã, chorosa e em desconformidade: :
- “A minha mãe... o médico suspeita de câncer!”.
Deita-se, chorando suavemente, baixinho. E relata o problema da mãe.
Scheherazade e a irmã, acompanharam a mãe ao oncologista e aos exames.
O pai, coitado, está abalado, “eles são muito unidos e amorosos” e ele tem
também o seu câncer de próstata.
Scheherazade está tonta - literalmente - e com os braços formigando.
Fala muito sobre a mãe e a sua doença.
Ora, já não se dizia em Tizangara, que “o mundo não é o que existe,
mas o que acontece”? Está, novamente, acontecendo...
No dia seguinte não vem à sessão. E nem no dia posterior. Recebo um
comunicado pelo telefone que ela sofreu uma crise de labirintite e está
fazendo repouso. Muita tontura e vômitos. A ligação com a mãe... a doença
da mãe... um soco no estômago. Tontura de labirintoar o seu momento.
Nesse intermezzo, a mãe teve confirmado o diagnóstico e extrai
cirurgicamente o útero. Não há metástases e Scheherazade leva os pais
para a sua casa, para cuidar deles - ela que também precisa de cuidados.
Logo depois vem ao consultório e no final de uma sessão que muito a
mobilizou, sente uma uma forte tontura e telefona para a irmã vir buscá-
la: não dá para voltar para casa sozinha. Dinarzade vem e saem as duas
abraçadas, a irmã amparando-a firmemente, docemente.
Scheherazade permanece uma semana de repouso. Quando retorna às
sessões, parece muito bem, nem de longe mostra alguma marca de
abatimento. Entre o feito e o desfeito, restou nada daquele seu original
formato. Apenas os movimentos ela os faz mais lentos, “para não sentir
tonturas”, me adverte.
Scheherazade tem medo dos atalhos errantes da sua “loucura pessoal”.
Quando menina e também adolescente, se apavorava com pessoas que
eventualmente via na rua, mendigos em desfarrapos, descabelados, cabelos
arrepiados, que eu lhe digo representarem para ela a sua própria “loucura
de dentro”, que a faz tosar os cabelos quando se sente angustiada - assim
como se fosse para cortar e jogar fora essa loucura que está abrigada em
seu âmago.
Cirurgia de cabelos. (Lembro-me, então, da cabeleira sebosa da tia
homossexual).

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Nas sessões, as queixas do marido têm sido constantes. Frio, distante,


castrador, ele vive chamando a sua atenção para os defeitos que vê nela e
para tudo que ela faz de errado. Demasiado palavroso, esbanja julgamentos.
E o pior é que ela só faz errado... E me diz: - “Será que não tenho nada de
bom? Nenhuma qualidade, só defeitos? Ele não vê nada de bom em mim...
Dele, eu reconheço as qualidades e os defeitos...”
Vez por outra acena-me a implicância do marido com a sua análise.
“Ele quer que eu faça só duas sessões”. “Ele disse para eu parar com isso,
porque estou ficando muito mudada, topetuda”. (Das 5 sessões semanais
do início, ao longo do percurso passamos para 4 e depois para 3 sessões).
“ Falo que não, argumento e digo que ele também tá precisando e muito..
Mas como é ele quem paga...”
“Afinal, eu compreendo porque ele é assim. Ele teve uma infância muito
difícil, sofreu demais com os maus-tratos do pai, que era louco. A mãe,
coitada, uma santa! Eram manhã todos os dias, obrigado pelo pai. Não sei
como minha sogra suportou tanta violência muitos filhos, surras freqüentes
e ninguém podia dizer nada. A mãe, se falasse, também acabava
apanhando”. “Às vezes, ele chegava em casa e acordava os filhos tarde da
noite para surrá-los. Meu marido, desde os dez anos de idade, teve que
trabalhar e se levantava às 5 horas da e tanto sofrimento” causados por
aquele que era desavençado com a ordem. E vai assim, falando de enfiada,
rosariando palavras e desencavando sucedências.
“Quando meu sogro morreu, foi impressionante: ninguém chorou.” Um
alívio, o desaparecimento do carrasco.
Penso: que mundo interno é esse, o da gueixa/queixa! Que fantasias,
ameaças, perigos, perseguição... morte!
“Entre ela e ela, há vastidões bastantes”, como diria Cecília Meireles.
Scheherazade anda às voltas com a doença da mãe, que teve de voltar
à mesa de cirurgia devido a complicações surgidas após a histerectomia.
No momento, dedica-se a cuidar dela com muito empenho. Fica muito
aflita imaginando que a mãe pode morrer e não sabe o que será dela e
do pai.
Scheherazade não cresceu. Só pensa em coisas “com efeitos de
antes”(como bem o diz Manoel de Barros...), desprezível ser que prefere
ficar sentada no sofá da sala e consumir pacotes e mais pacotes de bolachas,
pipocas e balinhas, sofredora que é, “de carteirinha”.
Não cresceu : encroou , como teria dito minha avó.
Essa parada de desenvolvimento a fez permanecer menina, ligada pré-
edipicamente à mãe e edipicamente ao pai. Malabarismo que ela soube

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muito bem realizar e que garante a paga do ônus correspondente. O bom é


ter direito de não ter deveres.
Uma menina, mulher-menina que, “para escapar das tristezas dos
grandes”, tem agora “as das crianças... que doem muito mais”, para usar
os termos de Korczak em “Se eu voltasse a ser criança”. Uma menina que
não tem condições de se assumir. Por isso, permanece na dependência
das figuras parentais (mãe, pai, marido) e tendo feito uma curta e grossa
cisão: os pais = objeto bom; o marido = objeto mau.
E assim, vivendo mergulhada nos seus mistérios, vai bordando a sua
vida-tapeçaria, enquanto é urdida dentro dela. Ela que não é ela, mas que
é uma quem-não-sei.
Porém, como nenhum desejo é de ficar sem gozo, ela dá lá o seu jeito
de providenciar o que pode de prazer para si. Nesses muitos aposentos da
vida, nos fundos, há um espaço solitário em que a intimidade consigo
mesma pode ser experimentada, sem qualquer percepção e que lhe serve
de socorro, proteção e defesa. Afinal, fantasmas e assombrações podem
estar soltos por aí...
Imagino que, se pudesse, Scheherazade diria, poeticamente:

“Todo mundo tem sua riqueza


só eu pareço desprovido.
Meu espírito é o de um ignorante
porque é muito lento.
Todo mundo é clarividente
só eu estou na obscuridade.
Todo mundo tem o espírito perspicaz
só o meu é confuso
e flutua como o mar, e sopra como o vento.
Todo mundo tem seu objetivo
só eu tenho o espírito obtuso como um camponês.
Só eu sou diferente dos outros homens,
porque insisto em sugar o seio de minha Mãe.”
TAO ( Tao Te King, XX, 85.)

Ah! Schererazade e a mãe, a Grande Mãe de fartos seios... como uma


Vênus esteatopígia pré-histórica. Scheherazade pré-edípica.
Todavia, há também, coexistindo com esta mulher-menina, uma outra
Scheherazade. A edípica. Aquela que, quando se vê tomada pela doença

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da mãe, imagina a sua morte e pensa: -”O que será de mim e do meu pai?”
- “O que acontecerá conosco, na ausência da minha mãe?”
Sentido dúbio, evidentemente... porém sem formato no pensamento.
E com Scheherazade, a princesa (ou será a anti-princesa?) que vai
roçando a superfície das coisas com suas histórias por demais admirosas,
já que tem uma fantasia fundamental destrutiva, todo cuidado é pouco,
não é mesmo?
- Afinal, não é ela que abriga “uma bactéria dentro de si”, que a fez
adoecer e afastou o marido, morto de medo de pegar a dita-cuja?
E por falar nisso, penso que essa destrutividade que ela acredita ter -
fatal na sua eficácia - está relacionada com a inveja que sente no seu âmago.
Inveja de Dinarzade, a sua belíssima irmã de olhos de turquesa; inveja da
filha, absolutamente livre no seu viver e também inveja do marido, um
homem de sucesso e poder, que tem vida própria, independente. Mas ela,
não tem nada. Desconseguiu tudo. Desvalia. Ou melhor, tem sim: coisas
terríveis e cruéis dentro de si. - Não é ela que gera, deforma e mata suas
próprias crias? - Não é ela tão competente para gestar e dar à luz produtos
defeituosos, sempre? Filha natimorta, filha doente, “sapatão”...
Ela, a princesa-que-encantou-o-sultão, é “mulher ensolarada por fora
e plena de sombras, dentro” - como tão bonito nos diz Lia Luft. Encharcada
em chuva de lágrimas. Marcada por vincos duradouros, nem tenta
remendar cá e lá as descosturas do tempo...
Essa é a vida que está podendo ter. Família: abrigo e prisão. Ninho e
gaiola. Proteção e jaula.
Scheherazade tem muito medo de, acreditando-se habitada de
possibilidades, sair por aí, girando insanamente nessa vertigem de ilusão,
e de repente ver-se entregue a si mesma, autônoma, independente, senhora
de si. Como? Ela? O que fazer com isso? Impossível!... Sua crença parece
ser a de ter nascido mal-equipada para viver. Quer que tomem conta dela.
Será que não existe a proteção de uma pele? Até mesmo o doce e fresco ar
da manhã pode provocar feridas?
Ela, até que um dia, lá longe-bem-distante-no passado, experimentou
a candura de crer que tudo poderia ser felicidade...
- Mas será que existe mesmo essa tal felicidade? Assim tão inteira e
plena?
Melhor ir vivendo como o faz, fingindo apenas dormir ou se divertir,
enquanto não está certa de que haveria de verdade uma outra alternativa
de vida ardente, lucidez para enxergá-la e competência para geri-la. Isso
pode doer como uma facada no peito. E fazer sangrar até morrer...

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Assim, Édipo mal elaborado, Narciso exigente dentro, identificações


precariamente definidas e paradoxais, levaram a princesa-que-cabia-
numa-caixa-de-sapatos a desenvolver defesas potentes (como a fixação/
regressão, a cisão, o recalque, esse aterro que encobre...) numa
configuração histérica como o caminho mais fácil ou atalho possível para
ir atravessando a vida.
Angústias vigorosas e primitivas asssolam-na com frequência,
provocando sofrimentos insuportáveis que, vez em quando, com a
inundação, fazem romper as comportas causando turbulência e estragos.
Sucessão de sustos.
A menina não quer/ não pode crescer. Peter Pan de saias, fascinada
pelos pais, vive alucinada (alucinose, conforme diria Bion).
Scheherazade - a mulher-menina que, para evitar a morte, inventou as
mil noites e uma história.
Scheherazade...

Referências bibliográficas
BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997.
BION, W.R. A atenção e interpretação: o acesso científico à intuição em psicanálise
e grupos. Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 46.
FREUD, S. (1895) “Historiales clínicos” In: Obras Completas, vol I. Madrid:
Editorial Biblioteca Nueva, 1948, p. 33-103.
LUFT, Lia. O Rio do Meio. São Paulo: Mandarim, 1996.
YALON, D. Irwin. Quando Nietzsche chorou. São Paulo: Ediouro, 2005.

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ARTIGOS INTERNACIONAIS

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Ser e Sexualidade:
contribuição ou confusão?*
Lesley Caldwell**

Resumo
Este trabalho trata das tentativas de Winnicott de discutir
sexualidade , usando Freud e diferenciando-se dele. Descreve as
descobertas que ocorrem ao se ler as anotações que Winnicott fazia
em seu consultório, e a sua perspicácia clínica, especialmente no
que se refere ao seu trabalho sobre elementos femininos e
masculinos.Leva em consideração sua tentativa de desenvolver uma
idéia de diferença baseada na diversidade sexual e sua manifestação
na transferência , menos convincente do que a discussão do
crescimento do self em seu encontro com um outro- a mãe ou o
analista- elaborada através da distinção entre o ser e o fazer.
Segundo a autora, ele pretende unir esses elementos, sem sucesso,
com idéias de feminino e masculino.

Summary
This paper engages with some of Winnicott’s own attempts to
engage with sexuality, while both using freud and differentiating
himself from him. It describes the insights to be gained from the
records of Winnicott at work in the consulting room, and the clinical

*
Tradução: Veronica Portella Nunes.
**
Psicanalista, membro da British Psychoanalytical Society. É editora do Winnicott Studies
e do Winnicott Trust. Escreve atualmente, com Ângela Joyce, um novo livro Reading
Winnicott, pela New Library editora.

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acuteness he displays, especially in the paper on male and female


elements. But it considers his attempt to develop an idea of difference
based on sexual difference and its manifestation in the transference
less convincing than his discussion of the growth of the self through
the encounter with an other – the mother or the analyst – elaborated
through the distinction between being and doing. In the view of the
author, he aims to link this, unsuccessfully, with ideas of male and
female.

Em seu primeiro livro, Psychoanalysis and Feminism (1974), Mitchell


discutiu a psicanálise como uma teoria capaz de explicar o processo pelo
qual homens e mulheres vêm internalizar a diferença como opressão.
Propondo esta equivalência, ela afirmava um dos problemas das teorias
feministas da época, e discutia a psicanálise como um caminho para
entender porque isto acontecia.
Nos seus comentários de abertura, na comemoração de 20 anos de seu
livro, no Museu Freud, ela disse: O que nós, como feministas, perguntamos
sobre a teoria freudiana foi o mesmo que Freud perguntou, como um
homem histérico: O que é uma mulher? O que é a diferença entre os sexos?
(1995). Esta foi uma pergunta razoável e relevante a se fazer, especialmente
porque foi ela que permitiu a Freud “formular os complexos de Édipo e de
castração como uma espécie de resposta”. Porém, Mitchell segue em
frente, fazendo a distinção entre o que pode ser perguntado como feminista,
ativista, teórica; e o que pode ser perguntado como clínica, uma posição
que ela identificou como envolvendo uma técnica de escutar e ouvir de
uma maneira particular (p.128). Uma prática como esta dá lugar a
diferentes questões. Essa discussão de Winnicott, e, por extensão, o mundo
psicanalítico que nos todos habitávamos, reconhece perguntas que não
foram ou não haviam sido feitas sobre a ,e acerca, da sexualidade ,como
esta se manifesta nos consultórios, nos trabalhos clínicos e debates e suas
implicações para os terapeutas, oferecendo uma tentativa de envolvimento
com questões que podem, e devem, ser perguntadas.
Em muito do material clínico de Winnicott, especialmente em The
Piggle:relato do tratamento psicanalítico de uma menina, e outros
exemplos de seus trabalhos com crianças, no extenso material de Holding
e Interpretação (um privilégio poder ler um relato de um tratamento como
este!) e no trabalho Sobre os elementos masculinos e femininos ex-cindidos
(split-off)(1966), há uma franqueza sobre corpos, origens e desejo, que,

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juntos, oferecem uma real contribuição ao nosso entendimento da


sexualidade do bebê e da criança, e às confusas e fluidas identificações em
torno das quais a sexualidade adulta pode ser agrupada. Mas há muito
pouco diretamente sobre a sexualidade da mãe, ou sobre as embaraçadas
e embaraçosas identificações produzidas no encontro com seu bebê, nem
sobre as implicações deste relacionamento na sua vida subseqüente.
Certamente, isto não é uma ausência apenas em Winnicott, mas no próprio
Freud, e em muitos dos trabalhos britânicos da época. Há trabalhos sobre
mulheres como mães, e mães como mulheres. No entanto, trabalhos sobre
suas relações com suas próprias mães e seus efeitos, ainda são muito raros.
Os significados da palavra sexo no OED (Oxford English Dictionary)
giram em torno de divisão, se dirigindo a esses termos usados para indicar
a divisão básica entre os seres orgânicos (pessoas, animais ou plantas),
em macho e fêmea, e a qualidade da diferença que isto acarreta. Num uso
mais recente, uma noção mais precisa concernente às diferenças na
estrutura e função dos órgãos reprodutores e as conseqüências fisiológicas
que as acompanham, são reconhecidas. Partindo daí, seres orgânicos são
reconhecidos como macho e fêmea e, na espécie humana, esta distinção é
feita entre homem e mulher. A definição de sexualidade aparece como: “a
qualidade de ser sexual ou fazer sexo”; a posse de poderes sexuais ou
capacidade de sentimentos sexuais; o reconhecimento ou preocupação com
o que é sexual. Uma formulação, se clara, um tanto insossa.
Na original formulação freudiana, uma das coisas mais interessantes
na psicanálise é a atenção dada à sexualidade, e à ampliada definição na
qual ela vai operar. Junto com o inconsciente, a sexualidade é fundamental
e lhe é atribuída considerável, senão determinante, importância na vida
mental e no desenvolvimento do indivíduo. E propondo a existência de
uma sexualidade infantil, Freud propõe um desafio ao modo de pensar o
sujeito humano que ainda hoje está sendo absorvido. O conceito freudiano
de sexualidade é extremamente compreensivo, discordando das
explicações psicológicas mais comuns que viam o instinto sexual como
um comportamento predeterminado pelas espécies, tendo um objeto
relativamente fixo-um parceiro do sexo oposto e com um objetivo óbvio-a
união dos genitais no ato sexual.
Em Freud, a sexualidade enfatiza três áreas relacionadas: a distinção
sexual entre meninos e meninas e sua instituição por volta do complexo
de Édipo e de castração, as conseqüências disto para o indivíduo e para as
idéias de masculinidade e feminilidade, e a importância da vida consciente
e inconsciente. Inicialmente, ao menos, não enfatiza o objeto.

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Foi a convicção de Freud sobre o significado dos estados do corpo nas


histéricas, como sintomas envolvendo uma condensação de corpo e mente,
que produziu a psicanálise. Esta ligação entre estados da mente e sintomas
corporais também teve grande importância para Winnicott, cujos registros
do desenvolvimento primitivo faz os mecanismos e estruturas psíquicas
decorrerem de uma crescente consciência do corpo. A psicanálise enfatiza
a importância do corpo para a psique- o ego é antes e acima de tudo um
ego corporal - o corpo é entendido em relação com ambas experiências
consciente e inconsciente, e diz, também, que o corpo é sempre investido
libidinalmente. Há a experiência do corpo, há a percepção do corpo e há,
winnicottinianamente falando, a apercepção do corpo, de modo que a
experiência deste corpo é sempre mediada por percepções conscientes e
inconscientes do próprio, e não apenas um reflexo do corpo nos processos
mentais (Adams, p.29). Para a criança winnicottiana, no princípio, corpo
e mundo são indistintos e misturados, e a primeira imagem do corpo, a
consciência deste, quando começa a se desenvolver não tem gênero. Mas
corpos são sempre sexuados, no sentido de que a descrição social do sexo,
baseada na observação de atributos corporais, precede o reconhecer do
bebe de que o sexo tem gênero e se define pela diferença. Precede, também,
os tipos de cuidados corporais e emocionais, que cada vez mais são
compreendidos (não só por conta de Winnicott) como fundamentais pela
menina e pelo menino, mulher ou homem, de como é ser uma ou outro. A
Psicanálise tornou essencial o reconhecimento de que o corpo vem a ser
através da diferença de gênero.
Discutindo o desenvolvimento da capacidade física do bebê, por volta
de 5 ou 6 meses, Winnicott foca especialmente nas suas implicações
emocionais e psicológicas. A consciência de uma entidade, o self, ainda
que rudimentar, é a consciência de sua localização em um corpo, e que o
corpo é tanto condição quanto fronteira de um terreno em que sentimentos
e fantasias sobre impulsos instintuais serão entendidos. A descoberta disso
envolve a descoberta de si e, portanto, do outro. São os primórdios da
separação, e tudo isso emerge daquilo que aconteceu com o bebê e sua
mãe nos meses anteriores.
O bebê Winnicottiano confronta e sustenta as experiências instintuais
a partir do momento em que começa a entender como um indivíduo
diferenciado.
A sexualidade infantil é significante apenas depois que o movimento
de desintegração à integração foi efetuado. Esta revisão do modelo de Freud
constitui uma explícita divergência sobre a origem e formação da

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individualidade humana e da dificuldade humana; ela não prioriza que a


sexualidade e a diferença entre os sexos sejam primárias, mas reconhece
sua centralidade. A noção winnicottiana de libido desprovida de objeto e
objetivo, embora desdenhada por Kristeva, traz um estado paradoxal de
facilitação, porque antes da constituição de sujeito, objeto e signo,
Winnicott demonstrou grande interesse nos indicadores somáticos dos
estados psíquicos. Seu desejo em especular (de maneira convincente) sobre
os fatos que derivam de uma observação extraordinariamente próxima,
evidente nos trabalhos ‘Sobre o desenvolvimento emocional primitivo’ (1945)
e ‘A observação de crianças no set analítico’ (1941), oferecem uma teoria de
como o bebe se torna um ser humano. Esta teoria é baseada em um estudo
intensivo, que continuou por toda a vida, e no qual argumenta que são as
condições sem as quais as pulsões não poderão ser suficientemente
acomodadas para que o sujeito possa começar sua vida normalmente (com
todo o anormal, psicanaliticamente falando, que isto comporta). Isto inclui
primeiro ser, depois a existência de corpo, mente e instinto como conflito,
em constante articulação com questões do eu e do outro, com a pressão
instintual, e com a consciência generacional .Estes são problemas humanos
fundamentais; estão implícitos na extensão da preocupação de Winnicott
com a família e o mundo externo para a psicanálise; e na leitura de Levi
Strauss para muitas e muitas versões do mito de Édipo.
A explicação de Levi-Strauss é organizada em torno da inabilidade, para
uma cultura que acredita no ser humano autóctone, em achar uma transição
satisfatória entre a suposição explicativa e o saber de que seres humanos
realmente nascem da união de um homem e uma mulher. O problema não
pode ser resolvido, mas para Levi-Strauss, ‘o mito fornece um tipo de
ferramenta lógica que relaciona o problema original- nascido de um ou
nascido de dois- ao problema derivado: nascido de diferentes ou nascido
dos mesmos’. Sua explicação insiste que não apenas Sófocles, mas também
Freud deve ser incluído entre as versões registradas do mito de Edipo (1977,
p.217). “Apesar do problema de Freud ter deixado de ser o do autóctone
versus reprodução bissexual, é ainda o problema de compreender como um
pode nascer de dois: Como é que podemos ter um pai e uma mãe, em vez de
um só procriador?”(p.217). Neste capítulo, Levi-Strauss reconhece os
problemas compartilhados pelos seres humanos e seus vários esforços para
achar soluções para as irrespondíveis condições de sua existência.
Na bibliografia compilada por Harry Karnac (19), estão listados vinte e
um volumes do trabalho de Winnicott, incluindo a edição Rodman de cartas
reunidas, O Gesto Espontâneo (1987;1999). Existem dois títulos usando

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psiquiatria e desordens clínicas, e quatro incluindo pediatria e psicanálise;


isto é, seis títulos incluem os campos da especialidade profissional que
concerne D. W., e que elucidava áreas centrais de uma pesquisa prática,
focada na consulta e na sala de consulta. Duas mencionam o mundo
externo, três ligam, explicitamente, mães e bebês; uma menciona os pais;
cinco, crianças; uma menciona a casa; três, a família; duas, o desenvolvi-
mento; uma, a privação e a delinqüência.
Os títulos que mencionam explicitamente o desenvolvimento, ligam-
no com a família: A Família e o Desenvolvimento Individual (1965), com a
combinação do ambiente, indivíduos e emoções, The Maturational
Processes and Facilatating Environment: Studies in the Theory of
Emotional Development (1965) Eles são a fundação de um interesse no
desenvolvivento que é tanto psicanalítico quanto social. Então, há dois
títulos convocando o campo maior da existência humana, ‘O Brincar e a
Realidade’ (1971), e ‘A Natureza Humana’ (1988). Quando os títulos não
estipulam um campo especifico, juntos são significativos, e são os títulos
menos técnicos, agrupados em torno de ‘casa’, ‘família’, ‘mundo externo’,
que aludem às áreas que Winnicott insistiu, tão decididamente, terem seu
lugar na prática e no pensamento psicanalítico. É fácil subestimar, hoje, o
que na época foi certamente contencioso, levar a psicanálise ao domínio
da vida cotidiana, e sua insistência no valor e na necessidade disto.
Na extensa sabedoria histórica, sociológica e antropológica sobre a
família, as famílias sempre envolvem relações que se prolongam,
possivelmente com diferentes significados e formas, através de gerações e
dos sexos. Elas sempre envolvem mais de uma pessoa e implicam numa
série de relacionamentos, embora estes tenham sido vividos e entendidos
de maneira diferente em épocas diferentes. Mesmo nos tempos modernos,
quando uma família pode ser composta por pais do mesmo sexo, que
adotam uma criança do mesmo sexo, os intratáveis fatos da existência
humana exigem que, em algum momento, a biológica contribuição dos
dois sexos se fez necessária. O que, mais à frente, significa que, para toda
e qualquer criança, a questão das origens ,e das raízes da criança no mundo
que a precedeu, aparece.
Na literatura psicanalítica, e na de ciências humanas e culturais, origens
implicam em corpos e processos corporais, mas a psicanálise insiste nas
implicações psíquicas dos romances familiares e sua centralidade para
qualquer compreensão da subjetividade e da personalidade. Fantasia,
imaginação, narrativa e mito também provêm formas de combater com as
grandes questões da existência humana.

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No ensaio ‘Criatividade e suas Origens’ (1971), reproduzido com material


clínico extra, como o Cap. 8 de Explorações Psicanalíticas (1989), Winnicott
faz uma declaração sobre a criatividade, na seção “Sobre os elementos
masculinos e femininos ex-cindidos (split-off)”.

Eu proponho que a criatividade é um dos denominadores comuns


de homens e mulheres. Em outra linguagem, entretanto, criatividade
é uma prerrogativa de mulheres e, ainda em outra língua, é uma
característica masculina.

Aqui, Winnicott mistura e desliza entre os registros; a divisão básica, o


sexo e a atribuição dos sexos entre as duas classes, macho e fêmea. é
indicado primeiro, no título, e então, os verdadeiros representantes dessas
duas classes de humanos, homens e mulheres, e só aí, então, ele introduz
a forma adjetiva masculina. Não há uma equivalencia necessária entre
esses termos. No exemplo clínico que ele relata, de impressionante
interesse e insight, ele segue dizendo: ‘Alcancei algo que é novo para mim.
Tem a ver com a forma com que estou lidando com o elemento não-
masculino de sua personalidade (p.73). Isto é explicado por sua
interpretação e na troca que se segue.

‘DW Estou ouvindo uma menina. Sei perfeitamente que você é


homem, mas estou ouvindo uma menina. Estou dizendo a esta
menina: Você está falando da sua inveja do pênis.
O efeito imediato foi aceitação intelectual, alívio. Aí o paciente disse:
se eu fosse falar a alguém sobre esta menina, seria chamado de
louco.
Winnicott foi adiante , o que, segundo ele, alcançou a questão.
DW Não foi você que disse isto a alguém, fui eu que vi e ouvi uma
menina falando, quando na verdade há um homem em meu divã. O
louco sou eu.
O paciente replicou que se sentia são, num ambiente insano.

Winnicott explica que embora este material concordasse com o trabalho


que eles já haviam feito, ele começa a pensar sobre isto de maneira
diferente. Na sessão seguinte de segunda-feira, o paciente conta que fez
amor com sua esposa na sexta, e pegou uma infecção no sábado. Winnicott
relata que entendeu isto como um convite a interpretar no nível
psicossomático (uma evasão da estrutura psíquica revelada na sessão

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anterior). É aqui, e na discussão seguinte, que a complexidade da


configuração mental da sexta-feira é elaborada.

“Você sente que tem que estar agradecido por ter havido uma
interpretação da minha parte que libertou o comportamento
masculino. A garota com que falei, entretanto, não deseja um homem
libertado e, realmente, não está interessada nele. O que ela quer é
um conhecimento maior sobre si mesma e de seus direitos sobre o
seu corpo. Sua inveja do pênis, especialmente, inclui a inveja que
tem de você, como homem”. Continuei, “sentir-se mal é um protesto
do self feminino, esta garota, porque ela esperou que a análise iria,
de fato, descobrir que este homem, você, é ,e sempre foi , uma menina
(e passar mal, é uma gravidez pre-genital). O único fim que esta
moça pode ver para a análise é a descoberta de que você é, na
verdade, uma moça”. Daí começamos a entender sua convicção de
que a análise jamais terminaria. (1971, p.75)

Na discussão que se segue a esta interpretação e a resposta do paciente


a ela, Winnicott propõe o que ele chama de dissociação entre os elementos
macho e fêmea, e a dificuldade cada vez maior de localizar esta dissociação
em pacientes mais saudáveis, porque ela põe em questão “uma aceitação
da bissexualidade como uma qualidade da unidade ou do self total”.
Bissexualidade, Freud escreve a Fliess, em 1899 (1 de agosto), “Eu estou
certo de que você tem razão sobre ela. E estou me acostumando a ver o ato
sexual como um evento entre, pelo menos, quatro indivíduos.” (O Ego e o
Id, 1923, S.E., XIX, p.33, nota de rodapé 1).
Winnicott, então, levanta algumas questões clínicas sobre essas
diferentes partes da pessoa, que ele chama de elementos masculinos e
femininos : que a parte dissociada, seja macho ou fêmea, tende a
permanecer numa certa idade. Suas palavras, ‘homem’ e ‘menina’, deixam
isto claro; que para o analista vai sempre se colocar a questão de quem ou
que parte está sendo analisada, ou seja, quais os elementos que estão sendo
apresentados a cada momento e porque. E outra consideração que ele
identifica são as implicações para as relações de objeto. Os termos usados
são macho e fêmea, mas ele insiste que a questão não é a mesma tratada
pela psicanálise como masculino/feminino, ativo/passivo. A parte macho,
neste caso, de um homem (mas poderia ser uma mulher) faz ambos os
lados, de sujeito/ativo e objeto/passivo; há instinto nos dois, a pulsão
sendo, para Winnicott como para Freud, sempre masculino/ ativa.

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Ele prossegue afirmando que, no caso descrito, o puro elemento


feminino (mais uma vez, compara com a referência anterior ao ‘self
feminino-esta garota’, que parece muito diferente) encontrou uma unidade
primária com o analista, o que deu ao homem a sensação de começar a
viver, porque o puro elemento feminino está em relação com o seio e com
o bebê se tornando o seio, no sentido de que o objeto é o sujeito, para
Winnicott, condição da qual depende a emergência de um self que precisa
viver em um mundo da diferença sexual.
Desta forma, os instintos se tornam importantes apenas após a
emergência daquele self, o elemento feminino envolve uma concepção
diferente e primitiva de relação com o objeto, um relacionamento que é
parte do ser e, para Winnicott, não-instintual. O elemento masculino de
qualquer paciente se aproxima do objeto em termos ativos ou passivos, no
qual o macho carrega o impulso, mas é secundário, do ponto de vista do
desenvolvimento, ao elemento feminino, que nada procura por que suas
condições de busca, consciência de desejo pelo outro, ausência e perda,
ainda não se formaram inteiramente, ainda não houve a separação que
tornaria isto possível. Embora possa tornar-se uma futura elaboração de
seu progressivo interesse no desenvolvimento do self, a ligação desta
situação às idéias de macho e fêmea parece cair numa evidência cultural e
futuro endosso de uma teoria de que é preciso poder ser, antes de fazer.
Winnicott parece estar tentando descrever duas atitudes, duas maneiras
de se relacionar com um objeto; e duas maneiras que existem em seqüência:
primeiro ser-depois fazer. Pode-se ser o objeto- Winnicott liga isto com a
identificação primária; ou pode-se fazer algo por ele- ser absorvido, imerso
ou usá-lo para algum propósito. E o objeto, é claro, pode ser uma pessoa
ou mesmo uma obra de arte. Ao procurarmos por esses elementos
femininos e masculinos, eles podem não estar nem aqui nem lá , eles não
precisam ter gênero para serem de interesse. (Phillips,2000, p.44)
O verdadeiro problema para mim, aqui, é saber de que forma este
elemento, puro ou contaminado (mas, pelo quê?), tomou parte na evolução
da sexualidade deste paciente, e como isto é demonstrado no desenvolvi-
mento da dinâmica de transferência. Com esta interpretação de si mesmo,
desempenhando o papel de uma mãe louca que vê uma menina onde,
biológica e socialmente, há um menino, Winnicott alcança a complexidade
de identificações em jogo nas primeiras relações deste homem, e suas raízes
nos representantes mentais de confusas imagens corporais.
Essas imagens foram formadas pela introjeção e projeção de uma
imposição de desejo inicial, uma mensagem inconsciente que, no mundo

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que cruza a vida real e a análise, registros em torno da sexualidade, mesmo


quando esta diferença sexual é armada em relação a um modelo que propõe
um jogo diferente de prioridades para o recém-nascido.
No caso discutido, a confusão de identidades, de elementos, de partes
da pessoa chamada ‘menina’ e ‘homem’, e especialmente a força da menina,
e seu desejo de triunfo, aparentemente tem pouco a ver com o ser e o
elemento feminino; e tudo, inicialmente, com um ambiente externo e
interno produzido pela mãe, uma mulher que não pode ou não quis ver o
menininho, e conseqüentemente, não pode se conectar com as neces-
sidades primárias de seu bebê. Para pensar adiante acerca das implicações
para o homem adulto deitado no divã de Winnicott, que reconhece sua
internalização do desejo da mãe por algo que ele não é, e da força desta
‘menina’ e de sua vontade de triunfar, abre-se um debate sobre o poder da
mãe cuidadora na estruturação do inconsciente da criança e do adulto, e
suas implicações transferenciais.
Reconhecer o impacto fundamental do mundo inconsciente dos pais
no desenvolvimento da criança liga Winnicott a Ferenczi e Laplanche,
através da consistente importância que cada um atribui às mensagens
parentais inconscientes e as tentativas infantis de darem sentido a elas.
Esta é a importância, inconscientemente, dos pais, neste caso da mãe, como
sexual. Enquanto Ferenczi e Laplanche evidentemente atribuem
importância à transmissão transgeracional, a patologia materna, e o
impacto do inconsciente parental nas possibilidades que se abrirão para o
bebê, estes temas também estão em Winnicott como o fundamento de uma
discussão aparentemente inócua, sobre lar e família.
A famosa frase ‘não existe essa coisa, o bebê’ , pode ter mudado nosso
pensamento sobre bebês, mas também convida a pensar sobre a situação
do outro- a mãe- para quem a noção de que não há um bebê (sem uma
mãe) pode, potencialmente, conter todas as formas de emoção, muitas
delas provocando ansiedade e tudo o mais, só não é reconfortante.
Esta idéia foi útil, porém, impressionante, uma vez que nos permite
falar de bebês, mas embaça e dificulta pensar sobre as mães (e, por
extensão, os clínicos).
Um passo provisório é dizer que se a maior preocupação de Winnicott
com as mulheres diz respeito a seu status como mães e, talvez, a implicação
disto para elas, mas mais particularmente, com certeza, para seus bebês,
de sua imersão neste papel, a sexualidade materna é negligenciada.
Nos registros que temos, ou ao menos nos que conheço, a análise de
uma mãe não aparece, mulheres como mães não aparecem ou falam como

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pacientes analíticas, e mulheres pacientes não discutem esta função e os


problemas que a acompanham, possivelmente porque não são mães. Ainda
assim, a mãe nunca está ausente, na verdade, é insistentemente presente
na psicanálise britânica.
“Em termos de seio-mãe-bebê (não estou dizendo que o seio é
fundamental como veículo do amor materno) o bebê tem impulsos
instintuais e idéias predatórias, a mãe tem o seio e o poder de produzir
leite e a idéia de que gostaria de ser atacada por um bebê faminto” (1945,
p.152) Esta afirmação de “Desenvolvimento Emocional Primitivo” (1945)
constitui uma franca asserção da ambivalência essencial no coração da
relação de amamentação, que é, através do apoio da pulsão na necessidade,
como ‘sexualidade infantil se liga a uma das funções somáticas vitais’
(Freud, S.E. 7, p.182). O encontro descrito aqui é um que vê a relação mãe/
bebê em função de um desejo recíproco de agressão e sexualidade. De fato,
Winnicott fala, algumas frases depois, de uma criança “excitada”. A última
das dezoito razões que as mães têm para odiar seus bebês também tem
conseqüências para ambos participantes: “ele a excita, mas frustra – ela
não pode devorá-lo ou dar-lhe sexo em troca”. Enquanto Winnicott não
vai além na complexidade para a dupla, Laplanche insiste que o diálogo
mãe/bebê é organizado em torno de uma disjunção radical. Um encontro
entre um indivíduo cujas estruturas psicossomáticas estão situadas
principalmente no nível da necessidade, e significantes emanando de um
adulto. Estes significantes pertencem à satisfação dessas necessidades, mas
também conduzem ao potencial puramente interrogativo da mensagem
do outro – e essas mensagens do outro são sexuais. Essas enigmáticas
mensagens colocam para a criança a difícil, ou mesmo impossível, tarefa
de dominar e simbolizar, e a tentativa de dar conta disso deixa,
inevitavelmente, resíduos inconscientes... Não estamos lidando com uma
vaga confusão de línguas, como Ferenczi diria, mas com uma altamente
específica inadequação de linguagens (1987, p.130).
Eis um trecho, tomado quase ao acaso, do trabalho Sobre Objetos
Transicionais e Fenômenos Transicionais:” A mãe suficientemente-boa,
como disse, começa com uma quase completa adaptação às necessidades
do bebê e, com o tempo, vai se adaptando menos e menos gradualmente,
de acordo com a crescente capacidade do bebê em lidar com sua falta.”
(1971, p.10).
Do ponto de vista das necessidades do bebê, isto representa uma espécie
de ideal, mas onde, e como, uma completa adaptação como esta pode caber
nos desejos e aspirações de uma mãe que é descrita em sintonia quase

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perfeita com a criança? Onde, numa descrição como esta, está o


reconhecimento do inconsciente da mãe, e onde está o mundo social, com
suas demandas, no sentido de sua vida e de sua existência como mulher,
assim como mãe. Como pode, sabendo o que sabemos sobre o inconsciente,
uma afirmação dessas coexistir tão inquestionavelmente com isto?
Tampouco acredito que isto possa ser respondido apelando para o pai
dentro do pensamento materno, embora isto seja importante. Onde tanta
responsabilidade (Rose, 2002) nos deixa, enquanto mulheres?
O que quer que entendamos como a preocupação materna primária; a
relação entre o nível de vida psíquico e o nível da realidade na qual a mãe
cuida de seu bebê, jamais pode ser igual. Isto, Winnicott reconhece através
da desilusão inevitável (e necessária) que a mãe causa ao bebê, e através
do cuidado normal, ao qual Winnicott dispensa atenção tão cuidadosa, a
inter-relação do sexual no ser humano, o sexual como parte do ser, é
transmitido para o bebê, recipiente do cuidado materno, particularmente
pelo corpo. Junto com muito da tradição britânica de relações objetais, o
que Winnicott expressa, mais ou menos claramente, são as implicações da
sexualidade da mãe, de seus desejos, de seu inconsciente, e seu lugar no
desenvolvimento do bebê e do futuro adulto que ele ou ela se tornará.
Voltando ao exemplo anterior, do paciente cuja mãe enxergou uma
criança de um sexo, uma menina, onde havia uma criança de outro sexo,
um menino, a patologia materna é um ponto a se considerar; outro, o
persistente apego do homem a isto, e, possivelmente, as decisões do
analista a este respeito. Tudo isto contribuiu como a psicopatologia do
paciente foi sendo construída, transmitida e continuamente aderida em
sua vida, e no presente da análise, na transferência com Winnicott.
O que parece ser uma contínua falta em nosso trabalho, porém não no
nosso trabalho de consultório, é a falta de dilemas reais sobre ser uma
mulher, podendo ser articuladas não apenas com a formação reativa na
relação com suas próprias mães, mas com a experiência vivida de si mesmas
como mães.
Como seus analistas e terapeutas respondem ao que, para mulheres,
implica em um dos principais meios como nossa cultura entende ser uma
mulher, tem progressivas implicações inconscientes para mulheres que
são mães e para aquelas que não são. Também tem implicações para
aqueles clínicos que estão abertos aos pacientes e suas inúmeras projeções,
às trocas de configurações de gênero que podem se dar em qualquer sessão.

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Sobre a latência: quando a


mentalização é deficiente*
Paul Wiener**

Resumo
Não há criança entre os 6 e 10 anos que seja estudiosa ou quieta.
Muitas são agitadas ou mesmo insuportáveis. Podemos então nos
perguntar se elas estão realmente na latência. Algumas não, mas
outras apesar de alteradas parecem estar. Contudo, o recalque não
funciona adequadamente para elas. Paul Denis, num texto
recentemente publicado na revista Information Psychiatrique,
qualifica de “repressão” o mecanismo de suplência do recalque que
permite a estas crianças entrar na latência apesar de tudo. Procuro
neste trabalho apreender um pouco mais sobre as diferentes
variedades de funcionamento que se poderia classificar sob o termo
repressão.

Summary
There are no quiet or hardworking children between the ages of 6
to 10.Many are restless and many are unbearable. We could then
wonder if they are really going through latency.Some aren’t, but
others, in spite of looking a little altered, are. However, repression
doesn’t work properly to them. Paul Denis, in a recently published
article, in the Information Psychiatrique journal qualifies as

*
Publicado no l’Information Psychiatrique volume 81, N° 3, Mars 2005, pp.211-217.
Tradução: Marion Konczyk Kaplan
**
Psiquiatra e Psicanalista, Professor da Universidade de Paris VII.

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repression the mechanism of replacement of refoulement, which


allows these children to enter latency, in spite of all. In this paper, I
try to further explain the different variations of the mechanism that
could be classified as repression.

A latência, uma pausa de 5 ou 6 anos no desenvolvimento psicossexual


da criança, instala-se, como se sabe, nos dois sexos em torno dos 5 ou 6
anos e dura de 4 a 6 anos. Ela se manifesta nos meninos, entre outros,
pelo abandono da masturbação. Esta será retomada na adolescência. Este
eclipse da sexualidade parece estar em relação com a infância prolongada
do homem, hipótese formulada por S. Freud. Seria cómodo postular que a
latência se instale favorecendo a supressão ou a rarefação das estimulações
erógenas internas, essencialmente hormonais, geneticamente progra-
madas. Será que podemos encontrar alguns argumentos neste sentido? O
nível de excitabilidade erótica diminui incontestavelmente nas crianças
em latência. Mas a hipótese de uma taxa dos hormônios sexuais não parece
confirmada pelos dados endocrinológicos.1 Se o fim da latência é assinalado
por uma intensa secreção hormonal, nenhuma secreção hormonal maior
é notada durante os anos edipianos e, então, nenhuma apresenta queda
em torno dos 5 ou 6 anos de idade, para retomar depois durante a pré-

1
Nos meninos a concentração de testosterona diminui ao nascer. Ela aumenta novamente
entre os dois e quatro meses de idade, associada à multiplicação das celulas de LEYDIG.
Os testículos permanecem então relativamente inativos, o que se relaciona com a
supressão da atividade hipotalo-pituitária-gonádica, no início da puberdade. Os
testículos aumentam de tamanho por volta do décimo ano, traduzindo o aumento da
secreção de gonadotropina e o desenvolvimento dos canalículos seminipares. Após
o primeiro ano de vida as glândulas suprarenais das crianças secretam pequenas
quantidades de DHEA, de DHEAS e de hormônios andrógenos até o início da
“adrenarche” (termo médico anglo-saxão que designa, nos meninos, o periodo que
chamamos de pré- puberdade), que se produz habitualmente en torno dos sete ou oito
anos, precedendo o início da puberdade em mais ou menos dois anos. O “adrenarche” é
independente da puberdade. A secreção de DHEA e de DHEAS aumenta até a idade
adulta para posteriormente diminuir.
Nas meninas, o alto nível de gonadotrofinas observado durante os primeiros meses
de vida diminui em torno de um a tres anos e permanece baixo durante a infância. Uma
secreção de gonadotrofina pode ser observada pelos seis anos e o desenvolvimento
dos ovários perto dos oito anos. A evolução da função fisiológica sexual é especialmente
complicada em meninas.
WOOD D. F. FRANKS S. Reproductive endocrinology in, BROOK C.G.D. HINDMARSCH
P.C. Clinical Pediatric Endocrinology, Oxford,Blackwell Science, 512 pages p 182.

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puberdade. Ao lado das secreções hormonais maiores bastante conhecidas,


constatou-se outras numerosas secreções menos exploradas, sendo que
algumas poderiam exercer influência. Atualmente, não podemos descartar
completamente e nem confirmar a idéia de um eventual pano de fundo
orgânico da latência. Um certo determinismo fisiológico deveria, apesar
de tudo, intervir na sua qualidade e no seu desenrolar.
Na falta de determinismo biológico conhecido, numerosos autores
notaram a influência do meio. James Gammill não foi o primeiro a indicar
“que não é somente o desenvolvimento biológico que assegura um
verdadeiro período de latência. Este também é o resultado de todo um
processo psíquico de desenvolvimento, no quadro de relações de objetos
suficientes em quantidade e qualidade”.2 O período de latência acarreta
não somente uma nítida diminuição das atividades auto-eróticas, mas
também dos fantasmas relacionados a estas.3 É um período favorável à
sublimação em vista do trabalho escolar, menos à criação. A chama criativa
do começo da puberdade indica que o motor pulsional faltou. A amnésia
infantil parece constituir-se durante a latência. Sabe-se que influências
desfavoráveis do meio podem impedir sua instalação.
Um trabalho estimulante de Paul Denis, psicanalista francês, atribui a
dois mecanismos, ao recalque e à repressão, a configuração do período de
latência.4 Como se sabe, pode-se falar longamente sobre o recalque. Paul
Denis apresenta-o de maneira clara e simples. “O recalque é um sistema
onde uma representação portadora de afeto ou excitação é remetida a um
pano de fundo pelo superinvestimento de outra representação, colocada à
frente”. No recalque normal, as ligações associativas entre as represen-
tações subsistem e as passagens entre representações mais ou menos
excitantes permanecem numa certa medida reversíveis. A capacidade de
prazer da criança é preservada. Quando a excitação continua a invadir
regularmente o funcionamento psíquico, a latência não acontece. Um abuso
sexual pode ser a causa. Mas existem casos, segundo Paul Denis, onde
apesar da impossibilidade de montar mecanismos de recalque, a latência
instala-se apesar de tudo, a criança conseguindo bloquear as excitações

2
GAMMILL J, Pour préparer une véritable période de latence … in A partir de Mélanie
KLEIN, Meyzieu CESURA, 1988. 292 pages p. 163.
3
LEBOVICI S., SOULE M. La connaissance de l’enfant par la psychanalyse, PUF Paris,
1972, 631 pages, pp 175 et 470.
4
DENIS P, La période de latence, L’Information Psychiatrique, N° 8, octobre 2003, pp.
693-701.

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psíquicas de outras maneiras, por exemplo, motoras. A excitação psíquica


sai então do registro das representações para passar ao da motricidade.
Nestes casos, Paul Denis fala em “repressão”. Ele não se aprofunda nas
razões desta impossibilidade de se montar mecanismos de recalque. A
repressão não aparece seguramente como um mecanismo tão claramente
individualizável quanto o recalque. Gostaria aqui de detalhar um pouco
mais o que se pode entender por este termo. Nos dois casos, trata-se
obviamente de mecanismos de defesa.
Em consultas de pedopsiquiatria não focalizamos nossa atenção na
qualidade da latência. Outros problemas chamam a nossa atenção. Mas,
lá pelo fim da conversa, digo a mim mesmo, bastante frequentemente:
esta criança está efetivamente na latência. Assim, uma interrogação que
diz respeito à existência da latência, numa criança de 6 a 10 anos, é sempre
presente em como pano de fundo na mente do profissional. O problema
merece atenção. A leitura da apresentação de Paul Denis, me faz repensar
a descrição de certos aspectos do funcionamento psíquico feita pelo
especialista em psicossomática Pierre Marty.5 Segundo ele, são as pessoas,
no caso as crianças, bem mentalizadas, que são capazes de recalque. Os
outros, uma minoria significativa, são obrigados a recorrer a métodos mais
primitivos. Assim, uma condição necessária para proceder aos recalques
é a preexistência de um nível suficiente de evolução libidinal e operacio-
nalização da primeira tópica freudiana, ou seja, Consciente, Pré-consciente
e Inconsciente. De fato, a capacidade de mentalização depende, em larga
medida, da constituição de um pré-consciente funcional.
A elaboração, com ou sem mentalização suficiente, é um processo de
base do funcionamento psíquico. P. Marty individualiza seus componentes
e suas diferentes variedades, segundo os indivíduos: a mentalização, o
curso da ação e a resposta caractérial. A mentalização é a capacidade do
sujeito, nutrido de seu inconsciente via pré-consciente, de retomar, pelo
pensamento, os termos dos problemas que lhe são colocados. Em tais
sujeitos, desejos, conflitos, ambivalência, frustrações, perda do objeto, tudo
encontra expressão no nível mental. O que se traduz por uma vida fantas-
mática e onírica rica, das capacidades de associação e de criação. O recalque
é, em tais pessoas, largamente usado no funcionamento psíquico. Sujeitos
desprovidos de boas capacidades de mentalização têm frequentemente

5
MARTY Pierre, Les mouvements individuels de vie et de mort. Payot, Paris, 1976, 244
pages.

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possibilidades acrescidas de passagem ao ato . Os representantes pulsionais


não são retomados nos processos mentais, mas tem tendência a traduzir-
se diretamente na ação. Trata-se de um acting, mas não necessariamente
de um acting out, já que a ação engajada pode permanecer pertinente. Se
podemos considerar a preponderância do acting como constituindo uma
variedade do que é normal, a propensão a respostas caracteriais parece,
na maioria das vezes, patológica. Todavia, paradoxalmente, a persona-
lidade do caractérial pode ser mais bem organizada do que aquele que se
utiliza do acting. O desenvolvimento libidinal deste último se ressentiu
de uma desorganização relativa.
Mentalização, acting e reações caracteriais: temos aqui três modali-
dades do funcionamento psíquico. A afetividade às vezes constitui também
uma modalidade autônoma de elaboração. Certas pessoas reagem não por
uma mentalização, nem pelo acting ou pela deformação caractérial, mas
por uma reação afetiva, que pode ser bastante diferente de uma pessoa
para outra. Assim, existem várias possibilidades de substituição das
capacidades de recalques deficientes.
Como nos adultos, existem grandes diferenças entre as crianças com
relação a suas possibilidades de representar mentalmente os elementos
aceitáveis de sua vida psíquica. Os jogos são mais ou menos inventivos ou
repetitivos, segundo seus dons, suas capacidades e sua personalidade. As
predisposições e a história pessoal têm um papel relevante neste
desenvolvimento. As capacidades de mentalização se observam bastante
cedo pela qualidade do jogo. Uma criança considerada normal que não
consegue brincar muito bem, poderá posteriormente apresentar
insuficiências de mentalização. As crianças suficientemente mentalizadas
sonham e possuem certa riqueza verbal. Porém, uma criança tendo visíveis
dificuldades no desenlvovimento da linguagem pode todavia dispor de uma
mentalização suficiente. Algumas crianças ou adultos, de bom nível verbal,
possuem boas capacidades virtuais de mentalização, sem que seu
funcionamento quotidiano se beneficie delas. Sonham raramente e suas
possibilidades de associação só se expressam excepcionalmente. No resto
do tempo, ou seja, na maioria das vezes, apelam ao acting ou às reações
caracteriais. É como se existisse uma cisão temporária um pouco mais
freqüente, um tipo de impermeabilidade intermitente, uma desconti-
nuidade do funcionamento entre o Consciente e o Inconsciente, uma
desafetuosidade de Pré-consciente.
Existem crianças bem mentalizadas que, em alguns momentos, por
pressão familiar, perdem suas capacidades de mentalização, se sentem

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inundadas e então passam ao ato. É o caso de “crianças-escudo” de suas


famílias, estima uma experiente psicoterapeuta. Estas crianças se acalmam
em psicoterapia praticamente já na primeira sessão. Retomam rapidamente
o caminho da elaboração e quando encontram um obstáculo, mostram-no
e aceitam serem ajudados. Precisam de um certo enquadramento para se
servirem, parcial ou completamente, de suas capacidades de mentalização.
O quadro da terapia é conveniente e elas percebem isto rapidamente. Será
que sofreram um traumatismo? Quando a terapia funciona bem, significa
que os pais modificaram também sua maneira de agir.
No limiar da latência, de toda forma, as possibilidades de elaboração
da criança já foram estabelecidas. Assim, no decorrer da latência, se o nível
de mentalização não permite recorrer suficientemente ao recalque, outras
modalidades de elaboração do deslocamento intervêm. Pode-se falar de
repressão nestes casos, como faz P. Denis, já que o acting e a reação
caracterial afastam as representações indesejadas. Da mesma forma, no
que diz respeito à reação afetiva. A capacidade de prazer da criança e a
versatilidade de seu funcionamento psíquico ficam assim diminuídas.
A motricidade pode se apresentar no primeiro plano, o que corresponde
a uma variedade do acting. Trata-se de investimentos, ou melhor, de
contra-investimentos, mais ou menos patológicos, que substituem,
afastam, os investimentos normais que se tornaram impossíveis. É a única
forma de repressão evocada por Paul Denis que não detalha as diferentes
variedades da motricidade profusa. Podemos distinguir um anseio global
de movimento reencontrado ulteriormente em alguns esportistas ou
dançarinos. Ele é a vezes acompanhado de certa propensão a sonhos de
movimentos. Por exemplo, um jovem dançarino sonhava que se colocava
subitamente em posição horizontal, colado contra a parede pela sola dos
pés, flutuando assim no ar. Sentia-se, no sonho, mais do que se via,
executando este movimento. A hiperatividade, com suas diferentes formas,
constitui uma das variedades de elaboração (ou de recusa de elaboração,
por tratar-se de repressão) pela motricidade. A criança que não pode ficar
sentada e que se move permanentemente é uma figura bem conhecida
dos educadores. Encontrei uma que não se deslocava, mas se contorcia
sentada na cadeira, como um verdadeiro trapezista. Um outro estilo de
movimento é observado em algumas das crianças que tocam em tudo o
que vêem, que convêm chamar hoje em dia de “hiperativos”. Estes
espalham os objetos, ou os procuram de forma maníaca, em todo lugar, e
não os acham, ou não os acham como os querem, como se dissessem para
eles mesmos: “não é isto, também não é aquilo…”. Segundo Christian

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Flavigny, a instabilidade psicomotora é uma variação da posição viril do


menino, pertencente, do ponto de vista diagnóstico, às desarmonias de
evolução, com constante tendência depressiva latente, falta de elaboração
do conflito edipiano, portanto, insuficiência das capacidades de recalque,
como lembrou Paul Denis. Do que se refere à mãe, existiria uma
proximidade dos fantasmas de morte com relação à criança do sexo
masculino, facilmente mascarados por uma atitude superprotetora
funcionando como uma solicitação incestuosa.6 Eu mesmo constatei que
numerosas crianças de perfil hiperativo, são meninos (mais raramente as
meninas)excessivamente mimados pela mãe, simbiotizados, que precisam
fazer o luto de suas relações privilegiadas com suas mães, e que possuem
variadas razões para querer evitar a depressão.
A agitação de outras crianças não parece emanar de uma defesa
maníaca, no sentido antidepressivo. Seria, segundo Maurice Berger, uma
camada de agitação: “…ela atua como uma espécie de pára-excitação
protética, paradoxal, já que se constitui como uma camada de excitação de
elementos beta; ela é destinada a atenuar as carências das camadas do Eu
que normalmente deveriam ter se constituído”.7 Na minha opinião, a agitação
maníaca e uma camada de agitação podem coexistir. A segunda é mais
arcaica. Quando a agitação maníaca cede em psicoterapia, poderemos
encontrar tristeza e manifestações corporais eventualmente hipocondríacas.
Como uma criança que, ao que parecia, melhorava em sua vida quotidiana,
mas chegava à sessão com queixas somáticas. Porém, não ruía mais as unhas,
ficava menos adesiva e seu contato parecia mais autentico. Claude Smadja
e Gérard Szwec sublinham a função tranqüilizadora destas condutas de
excitação.8 Estimam que tais procedimentos acalmam o sujeito, mas não
a ponto satisfazê-lo, já que o confinam em um sistema repetitivo. “O
procedimento tranqüilizador luta contra a excitação pela volta periódica
a um estado de inexcitabilidade, que não dura. O procedimento
tranqüilizador confunde a excitação com o ambiente. Enquanto substituto
do recalque, ele coloca no ambiente o que deveria ter sido recalcado”.

6
LAVIGNY (Ch.) Psychodynamique de l’instabilité infantile. Psychiatrie de l’enfant, XXXI,
2, 1988, pp. 445-473.
7
BERGER M, Les troubles du développement cognitif. DUNOD, Paris, 1966, 214 pages,
pp. 43-44.
8
SMADJA C., A propos des procédés autocalmants du Moi, Revue Française de
psychosomatique, N° 4, 9-26. SZWEC G., Les procédés autocalmants par la recherche
de l’excitation ; Revue Française de psychosomatique, N° 4, 27-52.

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Eles atribuem importância ao descomedimento do ideal do Ego , à


procura do colossal, do gigantesco, presente nestas condutas, segundo eles.
Na minha opinião, o descomedimento nem sempre é observável, ao menos
nas crianças em idade de latência. Ele é mais visível em adolescentes e,
neste caso, não se deve subestimar o papel da procura do sublime.9 A
vivência do sublime possui um papel chave na economia psíquica dos
adolescentes. Atualmente, a maioria deles encontra esta experiência
principalmente no rock. Querer atravessar o Atlântico a remo, exemplo de
processo tranqüilizador, lembrado por Gerard Szwec, me parece vir
também de uma procura desesperada pelo vivido do sublime, por parte de
um adulto que manteve uma economia psíquica centrada na necessidade
vital deste vivido. Na verdade, toda conduta normal ou patológica, com ou
sem perspectiva de descomedimento, pode vir a ter uma finalidade
tranqüilizadora.
Algumas crianças precisam ocupar suas mães permanentemente.
Rasgam pedaços de papel, deslocam objetos, etc. Vejo uma certa analogia
destes casos com as estereotipias, os procedimentos nomeados auto-
sensuais, estudados por F. Tustin nos autistas.10 Esta atividade manual
estéril centraliza por alguns momentos o funcionamento psíquico e ganha
um valor libidinal, justamente como nos autistas, sem abertura para
qualquer direção funcional.
Estas crianças que evitam o recalque, sendo que algumas delas são
levemente patológicas, recusam durante a latência o investimento de
representações inaceitáveis, que permanecem ameaçadoras, já que não
são recalcadas. Elas tem, talvez, antecedentes de dificuldades de
representação, portanto, de mentalização como descreve Maurice Berger,
que acredita tratar-se de dificuldades de representação de si mesmo (p.
80-82). Em minha opinião, sua deficiência de mentalização diz respeito
a todos os domínios. Maurice Berger também pensa que estes sujeitos
não se beneficiaram de um mundo exterior suficientemente estável,
responsivo e maleável. Podemos, segundo ele, elaborar o sentido destes
atos no enquadramento da terapia, convocando “o ambiente testemunha
dos atos” na presença da criança (p. 83). Com relação aos defeitos da
mentalização como conseqüências de patterns patológicos de apego,

9
WIENER P. Le sublime, un vécu de l’adolescence, Adolescence, 1989, 7, 2, pp. 141-158.
10
TUSTIN F. Autistic States in Children, Routledge, Kegan Paul, London, Boston 1981.
Revised understanding of psychogenic autisme, Int. J. Psycho-Anal (1991) 72, 585-590.

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podemos ler P. Fonagy.11 Ele insiste na origem traumática das insuficiências


de mentalização. Levando-se em conta o caráter quase sempre repetitivo
das manifestações de substituição, estou inclinado em lhe dar razão.
Dispomos, então, de algumas hipóteses sobre a origem de certas variações
de insuficiência de mentalização.
Em crianças difíceis na escola, desde o maternal, existem aqueles,
perfeitamente normais, que possuem muita energia e pouca oportunidade
para gastá-la. No que se transformam durante a latência? O acting, no
sentido do ato que ocupa o lugar da elaboração mental, é bem representado
pelos meninos “terríveis” que, em casos de dificuldades, ao invés de uma
elaboração qualquer, brigam imediatamente.
A. Lazartigues estima que no sistema familiar consensual, que sucede
atualmente ao sistema de autoridade de antigamente, o hedonismo é o
centro da economia psíquica, os conflitos são resolvidos pelas relações de
força do momento, as crianças são dependentes das práticas familiares
concretas, mais do que de seus ideais. A simetria da relação fragiliza o
aprendizado que depende da aceitação de uma relação assimétrica. O
tempo vivido permanece cíclico, como na pequena infância e não cederia
o lugar ao tempo vetorial.12 É mesmo no decorrer da latência que normal-
mente os ciclos do tempo se prolongam suficientemente para se tornarem
lineares e contínuos com relação à vida quotidiana. A passagem do tempo
cíclico ao tempo vetorial é mais difícil na ausência de uma boa menta-
lização. Os pervertidos e certos psicopatas não conseguem isto. Ficam, no
que diz respeito ao manejo dos seus investimentos, em um funcionamento
cíclico. São ciclos estereotipados da perversão que se instalam, passados
os primeiros momentos criativos, como os da toxicomania, ou ainda da
passagem ao ato. Outros sujeitos, de perfil neurótico, abandonam o
presente para se projetar inteiramente no futuro. Este tempo também não
é vetorial, o sujeito se delicia em uma idealização estática e irrealista. Estas
evoluções respondem a insuficiências da mentalização e, com exceção da
toxicomania, formam-se durante a latência.
Algumas formas de acting estão entretanto a serviço da sublimação.
Sabemos que os desenhos de crianças perdem sua qualidade criativa na

11
FONAGY P. Pathological Attachements and Therapeutic Action 1999, http:/
psychematters.com/papers/fonagy3.htm 14 pages, pp 1-3.
12
LAZARTIGUES A. La famille contemporaine « fait » elle de nouveaux enfants ?
Neuropsychiatrie Enfance Adolesc 2001, ; 49 : 264-276.

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instalação da latência. Culpa-se a escola. Mas não é por acaso que a escola
primária receba a criança em torno dos 6 anos. A diminuição da pressão
pulsional, a ausência relativa de preocupações sexuais da criança nesta
idade, permitem ignorar a sexualidade durantes os primeiros anos da escola
primária. A aprendizagem começa efetivamente melhor no clima apaziguado
da latência. A queda relativa de criatividade não se deve à escolarização,
mas à diminuição da tensão pulsional. Ela talvez defenda a criança contra a
função expressiva do desenho. Esta também é uma elaboração de fantasmas.
Alguns destes fantasmas se tornaram indesejáveis no começo da latência.
É somente a apropriação eventual, no momento da puberdade, de
capacidades pulsionais mais promotoras de sublimação, que vai permitir
mais tarde a retomada da função expressiva. P. Marty acredita que existam
pintores nos quais os fantasmas criadores, oriundos dos míni traumatismos
da infância, eu diria, não são mentalmente elaborados e passam, de alguma
forma, diretamente para as mãos, para serem traduzidos em obra. Os
mecanismos de sublimação são, apesar de tudo, ativos.
É difícil falar de verdadeiros carateriais na idade da latência. Observa-
se, entretanto, reações carateriais que ignoramos o que se tornarão
posteriormente. Réplicas verbais quase que estereotipadas, usadas em
situações variadas, sendo que algumas demandariam uma adaptação mais
suave, são desta natureza. Nota-se os “não gosto”, ou “não me agrada”,
como respostas que ficaram muito freqüentes nos últimos anos. Dentro
das menos comuns, podemos notar reações paranóicas ou mesmo
perversas. Sempre tive dificuldade em falar de perversão nas crianças em
idade de latência, mas fui sendo obrigado a admitir a perversidade de um
menino quando, a cada sessão, trazia o relato de uma nova ação distorcida.
Encontrei as reações caracteriais mais espetaculares, de perfil psicótico-
histérico, em uma menininha. Apesar de sua estrutura psicótica, eram estas
reações carateriais que apareciam em primeiro plano. O que ocupou, nesta
menina, o lugar do recalque? Ela sabe tudo, pega a luva que não lhe foi
jogada, quer sempre levar vantagem. A projeção é massiça, sua expressão
é caractérial. Ela está em psicoterapia desde os quatro anos e meio. Tem
hoje doze anos. E esteve também em tratamento comigo por vários anos.
A latência não se instalou. Paradoxalmente, ela ficou muito mais calma no
momento da pré-puberdade. Ela tem sido visivelmente mais bem tolerada
na escola. Será que ela está iniciando uma latência tardia, ou podemos ser
suficientemente otimistas para pensar que a terapia começa a dar os seus
frutos? As reações caracteriais preexistiam à latência, mas permaneceram
ativas durante este período.

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A emotividade pode funcionar como defesa principal durante a latência.


Todos conhecemos crianças, muitas vezes bem pequenas, um pouco mais
raras hoje em dia do que antigamente, que desencadeiam choros intensos
pela mais simples razão.
O trabalho de Bion sobre os laços pode ser evocado no que diz respeito
aos mecanismos que agem durante a latência. No caso de ataques contra
os laços entre a Consciência e o Inconsciente, (seriam ataques ou uma
certa distensão destes laços, inerentes à latência?), as ligações destruídas
são tomadas por uma atividade de “empilhamento”, que coloca os objetos
em contato uns com os outros, os ordena, os arruma, lhes dá um lugar,
mas não explora todas as suas possibilidades. Maurice Berger pensa, como
se viu, que a agitação pode ter um papel de laço interno: “é graças a seus
movimentos incessantes que certas crianças percebem como religadas
entre elas as diferentes partes de seu corpo. A agitação significa, então,
articulação”. (p. 43-44).
Sobre o ataque aos laços, Bion escreve: “a personalidade psicótica, ou
a parte psicótica da personalidade, usou a clivagem e a identificação
projetiva como um substituto do recalque. Lá, onde a parte não psicótica
da personalidade recorre ao recalque para dissociar certas tendências
da mente, ao mesmo tempo da consciência e de outras formas de
manifestação e de atividade, a parte psicótica da personalidade tenta se
livrar do aparelho que o psiquismo precisa para o bom funcionamento
dos recalques”.13 Existem crianças que colecionam durante a latência. Será
que não se trata de arrumar, alinhar, os objetos de identificação que não
têm, de início, verdadeiros laços entre eles? A coleção, por definição, já
que se coleciona objetos de uma determinada natureza, permite estabelecer
uma relação em um meta nível, imaginário, estético ou mesmo científico
(J. Piaget começou, se não me engano, sua coleção de conchas ainda muito
pequeno). Numa perspectiva kleiniana, todas as pessoas abrigam uma
parte psicótica em sua personalidade. Assim, a prevalência da repressão,
no sentido de P. Denis, talvez diga respeito a esta parte mais ou menos
patológica da organização psíquica, que nem todos nomeariam de psicótica.
Um caso peculiar é o de crianças cuja estruturação psíquica já é relati-
vamente comprometida no início da latência, às vezes no sentido de uma
organização de cunho patológico, como por exemplo em algumas com
traços histéricos. Nestes casos, o destino dos recalques segue a dinâmica

13
BION W.R. Réflexion faite, Paris, P.U.F. 1983. 191 pages.

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histérica, mas esta se encontra atenuada. Após a latência, na puberdade e


na adolescência, a sintomatologia histérica muitas vezes se agrava
consideravelmente.
O enfraquecimento dos enquadramentos familiares, axiológicos e
sociais, compensado somente parcialmente por novas formas de
funcionamento, gera e banaliza os distúrbios de comportamento nos quais
o DSM IV vê oposição e provocação. Os profissionais da área de saúde
franceses estão mais atentos ao peso que tem o sofrimento.14 A menta-
lização, ou seja, os mecanismos de recalque estão evidentemente pertur-
bados. Mas, na maioria das crianças atendidas em psiquiatria infantil
durante o período de latência, são os distúrbios instrumentais que
predominam, como os atrasos de linguagem, as dificuldades de apren-
dizagem onde, por trás dos sintomas, se procura, num primeiro momento,
as particularidades do funcionamento psíquico. Nestes casos, a estrutu-
ração do psiquismo fica freqüentemente, de maneira global ou parcial,
atrasada, o que se vê nos desenhos, se observa na falta de concentração e
nas dificuldades de apreensão do sentido das categorias. Estas crianças
não podem se beneficiar verdadeiramente da latência. O aprendizado da
escrita coloca um problema árduo, e não simplesmente para as crianças
mal mentalizadas. Não parece racional ensinar ortografia, como a francesa,
para crianças que, em sua maioria, jamais conseguirão, nas condições
socioculturais atuais, se apropriar dela. Nesta área, como em tantas outras,
a imobilidade prevalece. Mas existem casos onde as dificuldades da tarefa
não estão em questão e onde, como se sabe, a ortografia ou alguns de seus
aspectos se erotizam e ficam submetidos a recalques, tornando seu uso
impossível. Os recalques não estão sempre lá onde se precisa deles. Existem
alguns bastante incômodos.
Os atrasos de linguagem inscrevem-se muitas vezes num contexto
familiar de simbiose mãe-criança ou de superproteção. Toda a evolução
edipiana parece perturbada nos casos mais graves e a criança não acessa,
como sabemos, os manejos dos mecanismos do recalque. Na medida em
que os investimentos da criança continuam a girar essencialmente em torno
da mãe e das satisfações encontradas junto a ela, organizar a repressão de
seus fantasmas não é indispensável para o sujeito. Nem é preciso dizer

14
MILLE C., GUYOMARD C., NIESEN N, Evolution des formes psychopathologiques et
des modalités d’accès aux soins en pédopsychiatrie. L’Information Psychiatrique, 79,
N° 8, octobre 2003, pp 675-682.

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que a latência não se instalará, pelo menos não na época normal, e sem
psicoterapia. As disgrafias nos meninos são ao mesmo tempo menos
incômodas e mais tenazes que os distúrbios de linguagem. Elas se
inscrevem neste mesmo contexto de imaturidade. A disgrafia é um
distúrbio motor e podemos nos perguntar se não trás a mesma função
defensiva que a instabilidade psicomotora, à qual alias, pode ser associada.
Quando a identidade sexual biológica de um menino é posta em questão,
antes da latência, por uma identificação feminina muito grande
(originalmente à mãe), ela persiste mais ou menos confirmada durante a
latência e a saída não parece ser decidida neste momento. Estes meninos
que “preferem” meninas , por vezes as idealizam, lastimam não ser uma,
não expressam evidentemente seu comportamento sexual. Podemos nos
perguntar se eles verdadeiramente entraram na latência, levando em conta
seu apego a estes fantasmas. E eles são por vezes muito bem mentalizados.
Durante a latência os jogos sexuais permanecem, nota P. Denis. As
crianças se escondem dos adultos e brincam entre elas. Porém, me parece
que não é a masturbação que está no centro das atividades sexuais ocultas
das crianças, mas sim a exploração da diferença de sexos. Já a A. Gesell
notou que nesta idade “Os dois sexos procedem a investigações mútuas
que trazem respostas precisas aos problemas das diferenças sexuais”.15
Meninas e meninos brincam juntos e descobrem suas diferenças, sem
dúvida não só as anatômicas, mas também fisiológicas, reacionais, suas
sensibilidades. Nem todas as crianças têm irmãos, que preparam a chegada
da puberdade e da adolescência, mas que tornam impossível a procura
por estes jogos sexuais sem as devidas conseqüências. Trata-se então de
uma importante mudança com relação ao período edipiano, na própria
função dos jogos de toques nos órgãos sexuais , mudança esta que não
parece habitualmente notada pelos observadores da latência. Enquanto
que antes da latência as crianças procuram satisfazer uma excitação
essencialmente edipiana, durante a latência elas adquirem conhecimentos
indispensáveis para o sucesso ulterior da puberdade e da adolescência.

15
GESELL A. et FRANCES L. ILG. L’enfant de 5 à 10 ans. PUF, Paris, 1980, 492 pages, p. 335.

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SEÇÃO TEMÁTICA:

PSIQUISMO E
FIGURAS CORPORAIS

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O mundo objetal anoréxico e a


violência bulímica em
meninas adolescentes*
Marina Ramalho Miranda**

Resumo
Nascida do encontro analítico surge a percepção de que a anorexia
e a bulimia são manifestações de um sofrimento psíquico, sintomas
orais que escondem angústias arcaicas, ligadas a momentos
primitivos da constituição da psique, especialmente no que concerne
a rupturas precoces na relação com a figura materna internalizada.
Uma história de paixões, mãe e filha unidas numa intensa
dependência e paradoxalmente sentindo um horror a esta
dependência que nutre a relação, aprisionadas num mesmo corpo-
cárcere, numa perversão do querer, numa eterna busca de
completude para um vazio interior oriundo de seu mundo objetal
violento, procurando sentido para afetos estampados no corpo e
registrados na concretude de seus atos.
Unitermos: Anorexia – Bulimia – Alimentação – Relação mãe-filha
– Angústias arcaicas

*
Este artigo constitui-se como desdobramento da tese de Doutorado defendida pela autora
em Maio de 2003 na PUC-SP intitulada “Anorexia Nervosa e Bulimia à luz da Psicanálise
– a complexidade da relação mãe-filha” e foi originalmente publicado na Revista Brasileira
de Psicanálise de São Paulo, vol. 38, no. 2, 2004.
**
Psicanalista – membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Mestre e Doutora em Psicologia Clínica do Núcleo de Psicanálise da PUC-SP. Especialista
e supervisora clínica pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.

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Summary
The psychological approach arouses the perception that anorexia
and bulimia are manifestations having origin in psychological
suffering, oral symptoms which hinds archaic anguish, linked to
primitive stages of the mind development, specially as early ruptures
with an internalized maternal image. A story of passion, mother
and daughter bound together, dependent on each other, but at the
same time feeling haunted by the dependence which involves their
relationships, fused in a corporeal prison, in a desire perversion, in
eternal search for filling an empty interior that comes from their
violent objectal world, looking for sense to some affects printed on
their body and on their acting - out.
Key-words: Anorexia – Bulimia – Nourishment – Mother-daughter
relationship – Archaic anguish
Unitermos: Anorexia – Bulimia – Alimentação – Relação mãe-filha
– Angústias arcaicas
Palavras perdidas
(poesia inspirada na clínica)

Idade da flor,
Triste menina
Vaga e franzina,
Encolhida e distante
Procura o amor.

Olhar devorador
Corpo de fome
Sensação de limite
Angústia e dor
Procura o amor.

Silenciosa e pálida
Distante da vida
Anseia por vida
Mente fechada
Procura perdão.

Mulher da fronteira
Habitante do nada
Estado de penitência
Sensação de rasteira
Procura clemência.

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Trêmula e assustada
Mãe engolida...confusão
Fusão com desafeto
Corpo fetiche
Procura separação.

Vazio mortífero
Emoção nefasta
Expõe vísceras
Desnuda o interior
Procura o calor.

Sonhos de caminho
Clama por ajuda
Busca quem é
Encontra quem não é
Procura o ninho.

Anseio de compreensão
Sombras minhas...
Medo do abismo profundo
O mundo interno
Vácuo sem fundo!

Tolerar a frustração
Da incompreensão
Agüentar a pausa
Do lugar vazio
Da não-cousa.

Um par se forma
Duas mentes se aproximam
Monstros se transformam
Coloridos se resgatam
Encontra a interioridade.

Quem sabe um dia


Deixará de sentir frio
E mais nenhum vazio
Cessará a dor
Chegará ao esplendor!

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Uma menina de treze anos, franzina, semi-esquelética, pálida, trêmula,


com ar assustado entra em meu consultório. Chama-se Eliana1. Traz
consigo uma atmosfera grave, pouco colorida, uma avalanche de angústias,
difusas e esparsas, as quais ela pouco consegue definir. Mas sabe que não
está bem. Porque sofre e porque se sente saturada, sem vontade, sem
anseios, sem sonhos, sem fome. Vazia de recursos e de pensamentos, mas
cheia de ansiedade, com pouca disponibilidade para pensar, transbordando
dor, comunicando penitência.
Uma boca que pouco come, um psiquismo que pouco elabora.
Esta é Eliana.
Espaços internos ocupados, não há mais lugar, nem no estômago, nem
na mente. (Será que haverá lugar para a análise?) Com um mundo de coisas
que gostaria que eu soubesse, mas sem palavras para transmiti-las a mim
ou a qualquer outro. Percebe-se carente, mas não sabe de quê.
Magra, de carne, de idéias, boca fechada para a comida, mente fechada
a reflexões. Corpo que mostra os ossos, que desnuda a dor, que expõe o
que não é para ser visto: o sinistro.
Assim ela se apresenta a mim. Ela está ali, bem na minha frente.
Penetrou pela minha porta adentro, portanto me refaço otimista, procuro
achar, desse modo, notícias de vida, de movimento, de ação. Mas o fundo
continua branco e preto, uma sombra depressiva em suas primeiras falas:
“Não posso comer...não consigo comer...se eu não comer, vão me
internar..tenho muito medo, não quero ir para um hospital.”
“Choro muito, porque dou muito trabalho para minha mãe. Ela fica
aflita porque eu não como. Eu não consigo, não sei por quê. Sinto que
pareço um balão estufado, que vai se perder no céu.”.
Medo, angústia de morte, incerteza, um sombreado negro, uma
sensação frustrada de desencontros, de busca errada, de constantes
enganos.
Um mundo sem palavras, sem sustento, sem sentido.
O corpo franzino, o cabelo ralo, a pele seca, a brancura, o arroxeado de
seus lábios revelam-me a violência do auto-ataque, o poder destrutivo desta
menina aparentemente tão inofensiva. Sou informada pelo médico de que
Eliana está em adiantado estado de desnutrição, mas que tem “algum
tempo” antes de uma inevitável internação.

1
Nomes das pacientes e histórias misturados com a ficção, para resguardar o sigilo da
sala de análise.

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“Não me gosto, sou feia, detesto tudo o que faço”.


Sente-se atormentada, assombrada pela gordura, acusada pela magreza,
rodeada de fantasmas que ela não vê, não identifica, similares a inimigos
invisíveis.
Depara-se sempre com a falta, sente-se devendo. Não sabe o quê, nem
a quem.
“Estou sempre gelada, tenho a impressão de ser como a neve, aliás, eu
adoro o branco...”
Um estado de mente num mundo carente de objetos, branco, onde
outrora uma neve caiu, congelando qualquer viabilidade de significação e
impingindo uma vida de fendas glaciais, onde a analista não poderá cair.
Eliana faz constantes referências à neve e sangue em seus sonhos e a
sensações de “gelado” em suas experiências.
Ela “adora” este estado – branco - que tem a ver com o puro, limpo e,
portanto, bom. Algo vivo dentro dela foi destruído, mas há uma recusa em
ver “sangue sobre a neve”. Um mundo objetal congelado?
Causa-me intenso impacto a força do olhar de Eliana, a sensação de
que estou diante de dualidades de emoções, que me perturbam ao mesmo
tempo em que me fascinam. Um olhar de menina carente, porém
transmitindo a presença de uma mulher que de nada precisa; gestos de
pedido de ajuda, implorando cumplicidade, ao mesmo tempo em que vejo
desdém e desprezo em suas falas.
Alguém vazio, e ao mesmo tempo alguém tão cheio, atormentado por
fantasmas que a consomem e a conduzem a uma sepultura em vida.
Lembro-me de antigos rituais religiosos, nos quais evitar a ingestão de
alimentos, como o jejum, carrega em si a conotação de busca de um estado
puro e também de pagamento de uma dívida que sempre está se renovando
(anorexias sagradas, santas).2
Um terreno perigoso, onde apenas fragmentos são apresentados, pois
o todo da experiência é por demais violento. Percebo que estou transitando

2
As santas da Igreja Católica em sua anorexia sagrada se originavam especialmente da
Itália, onde o regime patriarcal era muito severo. Santa Catarina de Sienna é a mais
freqüentemente descrita na literatura, assim como Santa Tereza DÁvila e Santa Maria
Egipcíaca, que teve sua vida contada por Cecília Meirelles em Oratório de Santa Maria
Egipcíaca (Ed. Nova Fronteira). Podemos pensar que tanto as anoréxicas de hoje como
as medievais adotam um comportamento subversivo, de protesto e inversão, pela
supressão das necessidades básicas fisiológicas, negando a dor, a fome, a vontade sexual,
o cansaço, escondendo os “atrativos” femininos, caminhando na contra-mão da natureza
o tempo todo.

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em áreas de vida e de morte, e que o que pude intuir deste encontro é


quase nada diante do que esta menina está vivendo. Foi apenas um
vislumbre da tragédia que a acometeu.
“Todos dizem para eu comer. Minha mãe diz o dia todo: coma, coma,
coma, ninguém percebe que eu vou entrar em estado de coma!”
Um jogo de palavras que expressa pré – morte...e quem sabe, uma vontade
de que alguém perceba esse estado de desencontros e mal-entendidos.
Anunciação de que trabalharemos em clima de U.T.I..
Foi desta maneira que decidi estudar e pesquisar o funcionamento
mental da mulher anoréxica e bulímica, na especificidade da relação com
sua mãe, inspirada por esta menina, quase uma criança, que tanto me
sensibilizou no sentido de corresponder ao seu chamado. Por isso, este
artigo tem este início, que preliminarmente apresenta Eliana, conduzindo
o leitor pelas mesmas trilhas de pesquisa, repletas de emoções impactantes
transferenciais e contra-transferenciais, (com a certeza das dificuldades,
mas com a convicção da esperança) para que juntos possamos rastrear, no
decorrer destes encontros e no avançar destas páginas, os processos que
levam ao conhecimento, vasculhando e digerindo o que ainda não pôde
ser visto, percebido e pensado.
Uma busca de clareiras no meio da escuridão, ou seja, a busca de um
aparelho de pensar que promova expansão, nomeação e luz em mundos
até então terroríficos.
Fiquei motivada para ingressar nesta empreitada com ela, pois percebi
que dentro dessa anorexia mental havia uma porta de entrada, na verdade
uma pequena fresta ou uma estreita fenda por onde iríamos, nós duas,
tentar passar e viver o que parecia se apresentar como uma derradeira
tentativa de busca para a dissolução deste terror que se apresentou em
minha sala de análise, após uma longa sucessão de enganos de seu
psiquismo em achar o caminho de volta para a vida.
A mãe de Eliana, rendida à confusão psíquica instaurada e sentida por
meio das angústias da filha, sentiu o medo de perdê-la e percebeu as suas
próprias fragilidades misturadas na relação e aceitou a proposta de iniciar
sua própria análise.
A anorexia e a bulimia caracterizam-se por evocar intensas emoções,
tanto em quem as sofre, quanto em quem as trata, pois estão diretamente
relacionadas à oposição morte-vida; trata-se de um tema mobilizador e
impactante por tratar da alimentação, essência, combustível e permissão
para a vida, ao mesmo tempo em que nos remonta a cenários de morte e
dor, sofrimento e destrutividade.

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A anorexia e a bulimia têm ocupado um lugar de destaque em nossos


dias devido, principalmente, à alta demanda de meninas púberes e adultos
jovens em nossos consultórios e serviços públicos de saúde mental.
Muitas mulheres sofrem dessas perturbações3 e necessitam de ajuda,
preferencialmente por um “time” que delas cuide, formado por uma equipe
multidisciplinar, pois devido à complexidade envolvida nesses quadros,
um profissional isolado não deveria ter o patrimônio do atendimento,
postura esta que já de antemão irá servir de modelo contra o pensamento
onipotente que permeia o funcionamento mental anoréxico-bulímico o
tempo todo.
Refiro-me à anorexia da paciente bulímica e à bulimia da paciente
anoréxica, desta maneira reproduzindo espontaneamente o cruzamento e
o revezamento das características paradoxais de ambas as perturbações.
Leslie Sohn, psicanalista inglês de inspiração bion-kleiniana, ensina-
nos que a anoréxica esconde demandas bulímicas na falta de apetite e na
falta de interesse, pois no interior de seus objetos reside uma impossibi-
lidade de satisfação dos desejos. A mente bulímica, por sua vez, apresenta
as mesmas qualidades da mente anoréxica, uma falta de apetite dirigida
às possibilidades e buscas específicas, não encontrando uma real satisfação
em coisa alguma.
Compartilho sobremaneira da compreensão de Sohn:

“Neste artigo pretendo discutir a anorexia do paciente bulímico e a


bulimia do paciente anoréxico – e sua inter-relação, tal como é
manifesta na transferência.” (tradução livre)

A contribuição da psicanálise

Definição dos termos:


Anorexia: palavra que vem do grego orexis, que significa desejo em
geral e não apenas desejo de comer, precedida do prefixo a de negação,
anorexia quer dizer negação do desejo. Podemos constatar desde aqui

3
As pesquisas apontam para o fato de que 90% das pessoas acometidas pela anorexia são
jovens mulheres, o mesmo ocorrendo com a bulimia: dados extraídos do Current Medical
Diagnosis & Treatment, ed. Lawrence Thierney, Stephen McPhee, Maxine Papadakis.
Stamford: Appleton & Lange, 1999.

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que esta perturbação está originalmente implicada com conflitos na área


do desejo e com suas mais bizarras formas de expressão. Vontade e contra-
vontade, os pares de opostos, as duplas antagonistas ou as idéias antitéticas
de que nos falava Freud (1892-3) localizam-se na base destas perturbações.

Bulimia: termo que também deriva do grego, significando fome de


boi, bulimia refere-se a uma vontade incontrolável de comer, de forma
indiscriminada, gulosamente, em pouco espaço de tempo com compro-
metimento do senso crítico em relação à quantidade, qualidade ou
combinação dos alimentos. Fome de boi sugere apetite animalesco, que
extrapola o humano e migra para o reino animal, onde sabemos, o pensa-
mento simbólico não tem lugar. Segue-se a esses episódios, (que geralmente
ocorrem às escondidas e com maneiras pouco elegantes) um intenso
sentimento de culpa e medo de engordar, o que leva à indução de vômitos
e/ou uso de laxantes e diuréticos como meios de evitar o ganho de peso.
A expressão binge eating é freqüentemente encontrada na literatura
sobre o tema para fazer referência ao rápido e indiscriminado consumo de
grande quantidade de comida num tempo curto, típico dos episódios
bulímicos anteriormente referidos, levando a pessoa a um desconforto
físico e psíquico, sono e vontade de vomitar, gerando, na seqüência, um
humor depressivo.

O mal-estar da contemporaneidade

Questões de identidade, falhas no processo identificatório, áreas do


desenvolvimento mental que ficaram sem representação e portanto
impedidas de desdobramentos, mentes que burlam a possibilidade de
pensar a dor: sinais dos nossos tempos, as lacunas (equivalentes ao que
Eliana denominava como “brancos”) da chamada “era contemporânea”
dão a luz a aparelhos psíquicos que não conseguem abrigar áreas de
representabilidade do afeto. Daí anorexia e bulimia (assim como a chamada
“síndrome do pânico, alcoolismo, drogadicções) serem consideradas hoje
como perturbações pertinentes à era contemporânea, pela concretude de
suas expressões, pelo vazio de significações, pelos sucessivos actings, pelos
constantes splittings e pela impulsividade das ações violentas em
detrimento da ponderação elaborada do pensamento.
Meninas anoréxicas/bulímicas que se mostram sombrias, assustadas e
que relatam uma sensação frustrada de desencontros, de constantes buscas

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erradas, de incertezas e indefinições. Sentem-se imersas num mundo sem


palavras, sem sustento e sem sentido.
Patologias dos contrários, dos paradoxos, construções psíquicas
fundadas ao mesmo tempo nos excessos e nas faltas, antagonismos e
incoerências que ocupam o lugar central dessas perturbações, anorexia e
bulimia constituem-se como o protótipo da configuração ilógica do
inconsciente, expressões ilustrativas da dinâmica profunda da mente
perturbada por culpas e penitências.
Vivemos hoje em contato direto com a violência explícita, gratuita,
invasões de toda ordem que me reportam à violência bulímica e à destru-
tividade anoréxica, onde a presença de um objeto intrusivo outorga ao
mundo interno dessas meninas uma sensação constante de estarem sendo
agredidas e arrombadas. Relatos constantes de “vazio interior”, sensação
de “oco por dentro” ou ainda vivências de “balão estufado que se for solto
se perderá no espaço”4 mostram tentativas de representações simbólicas
que se confundem com a concretude que impera no modo de funcionar
anoréxico e bulímico, possíveis seqüelas das falhas no processo identi-
ficatório, onde self e objeto muitas vezes se fundem sem alternativas de
singularidade.
Vivemos numa época em que o indivíduo expressa muito de sua maneira
de pensar e expõe seu perfil e, ainda, inscreve suas angústias e conflitos
através da forma como lida com seu corpo e com sua alimentação. O
conceito alimentar contemporâneo configura-se como severamente
repressor e está imbuído de interdições e penalidades para aquelas que
antigamente se diziam “gordas felizes” e hoje dizem, indignadas, em nossos
consultórios : “Como uma mulher pode ser feliz gorda?”
As pacientes anoréxicas retratam com fidedignidade as áreas nebulosas
das emoções irrepresentáveis, dessa maneira marcando uma identidade
própria da clínica psicanalítica contemporânea.
Pergunta-nos Julia Kristeva (2002), em recente publicação:
“Você tem alma? Essa pergunta – filosófica, teológica ou simplesmente
incongruente – encerra hoje uma nova dimensão. Confrontada aos
neurolépticos, à aeróbica e ao massacre da mídia, a alma ainda existe?”
E, (acrescento), confrontada com a ditadura da magreza, dos padrões
severos, cruéis e particularmente ambivalentes da moralidade alimentar
de hoje e com a proibição do envelhecer há espaço para a subjetividade?

4
Expressões extraídas de relatos de jovens pacientes em análise.

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Continua Kristeva:

“Não se dispõe nem do tempo nem do espaço necessários para


constituir uma alma (...) Umbilicado sobre seu quanto –a – mim, o
homem moderno é um narcisista talvez cruel, mas sem remorso. O
sofrimento o prende ao corpo – ele somatiza (...) O homem moderno
está perdendo a sua alma. Mas não sabe disso, pois é precisamente
o aparelho psíquico que registra as representações e seus valores
significantes para o sujeito. Ora, a câmara escura está avariada.”
(grifos meus)

Kristeva em seu trabalho sobre as novas doenças da alma sinaliza como


a carência de representação interfere no funcionamento biológico dos
indivíduos, uma vez que leva a um entrave na vida sensorial, sexual e
intelectual.
Sob esta égide, os pacientes estão pedindo aos analistas, de modo claro
ou disfarçado, que eles restaurem os buracos que ficaram em sua vida
psíquica, que lhes permitam serem donos de um corpo falante e de uma
vida mais feliz.
Precisamos, pois, estar preparados com nossas teorias para nos
defrontarmos com as “doenças da alma” que surgem no cenário cultural da
Pós- Modernidade onde a manutenção de um corpo jovem e belo dominam
o discurso da mulher e do homem, de modo especial no nosso país.
Ainda nesse contexto, temos que nos países onde existe fartura e riqueza
há um constante convite para o consumo de deliciosos e calóricos pratos e
valorização das artes culinárias, concomitantemente com a pressão da
obrigatoriedade em ser magra, jovem e elegante; é muito comum que lojas
de griffe, típicas das altas classes sociais não tenham em seus estoques
roupas de manequins maiores, limitando-se a oferecer tamanhos
pequenos, desta maneira interditando a gordura e ditando as regras das
medidas. As duplicidades das mensagens embutidas nesses contextos
alimentares são analogamente observadas reinando no mundo interno das
meninas acometidas por perturbações na alimentação.
Herscovici e Bay (1997) demonstram que tanto nos Estados Unidos
quanto na Europa as pessoas parecem ter perdido a noção de seu próprio
corpo: 70% das mulheres, especialmente as adolescentes, se sentem com
sobrepeso, embora sejam magras ou normais. Segundo elas, existe um
aumento da incidência das dificuldades alimentares, o que é preocupante
e existem poucos estudos epidemiológicos a respeito.

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As autoras comentam que neste século, apesar de toda a pobreza


reinante no mundo, há uma abundância de alimentos calóricos e a
obesidade prevalece nas camadas inferiores da população, ao contrário
do que ocorria no século XIX, quando a comida abundante e a obesidade
denotavam um poder econômico e nível social mais elevado; os quilos a
mais atualmente já não são mais motivos de orgulho, muito pelo contrário,
são temidos e condenados.
Conforme mencionado, as pesquisas mais recentes apontam para o fato
de que 90% das pessoas acometidas pela anorexia são jovens mulheres, o
mesmo ocorrendo com a bulimia.
Por que com as mulheres?
Porque a dinâmica é basicamente feminina, tendo a alimentação, o
corpo, a reprodução, a sexualidade e a relação mãe – filha como elementos
nucleares, mostra-nos a clínica e ensinam-nos os estudiosos, mas penso
também que a mulher contemporânea, mais do que o homem é exposta,
subjugada e fiscalizada pelos ditames repressores da cultura, da mídia e
da publicidade: rendida ao trinômio juventude, beleza e saúde, mostram
autores como Marilyn Lawrence 1991 que a mulher do século XXI não
tem a permissão para envelhecer, apesar de, ironicamente, a longevidade
estar sendo alvo da medicina atual. Antigamente, esses ditames repressores
localizavam suas interdições no comportamento sexual, hoje o foco está
no comportamento alimentar. Além disso, as mulheres (de novo, mais do
que os homens...) não têm permissão para comer. Aprendem desde
pequenas que são nutridoras, mas que a comida não é para elas: o ato de
comer, especialmente quando apresenta excesso, é visto como pouco
feminino. Frases como essas são comuns entre as mulheres:

“Tenho bom apetite, mas se estou saindo pela primeira vez com um
namorado, fico ciscando a comida, como se não estivesse interessada
nela. Não é muito romântico comer como um boi, não é? Deixo para
comer quando chegar em casa, sozinha, na intimidade da minha
cozinha.”

Da neurose nutricional à “anorexia nervosa em moças jovens”


FREUD JÁ FALAVA...

A investigação de Freud, no início da construção da teoria psicanalítica,


é preciosa para este estudo, não só à guisa de fundamentação teórica, mas

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para destacar que as questões psicopatológicas envolvidas na anorexia e


na bulimia já aconteciam e por ele eram percebidas e pesquisadas em 1893,
em pacientes do sexo feminino.
Freud (1893-95) descreve os “casos clínicos,” nos quais a anorexia figura
e é referida como um sintoma de quadros clínicos denominados por ele
como “histerias”, “neurose infantil” ou ainda, usando a expressão de
Charcot “histerique d´occasion”. Em 1895, Freud já usava o termo atual
quando se reportava à “anorexia nervosa em moças jovens” e ao descrever
os sintomas anoréxicos observados em suas primeiras pacientes, mulheres,
diagnosticadas por ele e por Breuer como histéricas. Seus achados clínicos
levantam questões sobre a sexualidade e feminilidade equivalentes às
encontradas na dinâmica psíquica das jovens anoréxicas e bulímicas por
mim atendidas.
Existe uma carta a Fliess, que, segundo os editores da Standard Edition,
não tinha data; guiados pelo carimbo do correio no envelope que julgam
pertencer a ela, os primeiros editores situaram-na como sendo de 7 de
janeiro de 1895, o que corresponde e faz sentido com as idéias que Freud
vinha desenvolvendo sobre histeria e melancolia: é o Rascunho G,
documento precioso no qual ele diz ter observado anorexia nervosa em
moças jovens, estabelecendo uma intensa ligação com conteúdos
melancólicos.
Vejamos:
“(a) O afeto correspondente à melancolia é o do luto – ou seja, o
desejo de recuperar algo que foi perdido. Assim, na melancolia, deve
tratar-se de uma perda – uma perda na área da vida instintual.
(b) A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A
famosa anorexia nervosa de moças jovens, segundo me parece
(depois de cuidadosa observação) é uma melancolia em que a
sexualidade não se desenvolveu. A paciente afirmava que não tinha
se alimentado simplesmente porque não tinha nenhum apetite, não
havia qualquer outro motivo. Perda do apetite – em termos sexuais,
perda da libido.

Portanto, não seria muito errado partir da idéia de que a melancolia


consiste em luto por perda da libido.
Restaria saber se essa fórmula explica a ocorrência e as características
dos pacientes melancólicos”.
Em outro momento (1924), Freud reflete que foi a partir dos estudos
com as jovens histéricas, nas quais um desejo sexual reprimido

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transformou-se num sintoma penoso, que a psicanálise começou a mostrar


que ela era capaz de lançar luz sobre outras atividades que não a atividade
mental patológica, a saber, sobre qualquer questão investigativa do mundo
interno.
Assinalo esta reflexão de Freud porque ela conduz, a meu ver, a um
ponto de intersecção fundamental nessas três patologias: as meninas
anoréxicas, as histéricas e as melancólicas, a quem Freud se refere,
apresentam um imenso componente de culpa e destrituvidade e tiveram
sua investigação viabilizada por conta do estudo de Emmy, Anna Ó e
Elizabeth Von R., a quem devemos a compreensão atual do uso do corpo
como fetiche (na anorexia e na bulimia), encobrindo e renegando qualquer
falta e, historicamente, serviram de ponto de partida para as posteriores
descobertas em psicanálise.
Penso que as meninas anoréxicas e bulímicas de hoje expressam
sintomas organizados em antigas patologias, ou seja, seus corpos revelam,
de modo original, singular e contemporâneo, enredos históricos de vidas
comprometidas com vínculos de intensa paixão, transmitidos transgeracio-
nalmente.
Por que transgeracionalmente?5
Porque nesses conflitos de mulheres, a relação fusional mãe-filha e suas
ascendências e heranças afetivas serão evocadas o tempo todo, consti-
tuindo-se, a meu ver, no núcleo principal dos distúrbios alimentares.
Na transmissão transgeracional, a menina, ancorada na história de seus
ascendentes (mãe, avó, bisavó,...) recebe um material psíquico que não
foi eficientemente metabolizado pelas gerações anteriores, dificultando
uma nova integração, responsável por sentimentos de vazio e falhas no
processo identificatório.
Nesse sentido, o crescente interesse contemporâneo acerca dos
transtornos alimentares adquire utilidade de pesquisa, por provocar a
abertura de caminhos para novas descobertas sobre épocas arcaicas do
psiquismo e, por conseqüência, expandindo a compreensão das histórias
mais primitivas de relações de objeto.

5
Maria Cecília Pereira da Silva aborda esse tema em sua tese de doutorado A herança
psíquica na clínica psicanalítica, defendida na PUCSP em 2002.

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A clínica é soberana

Confusão e fusão com desafeto


Numa certa manhã, conheci Juliana. Procurou-me pressionada pelo
seu medo de estar ficando louca. Conta-me, angustiada que passa grande
parte de seu dia entre dois lugares: a academia e a cozinha. Sente-se
esvaziada, triste, com uma sensação de “oco por dentro” e “odeia” o seu
corpo, “se pudesse, teria outro com tudo, tudo diferente”.
Corpo e comida representam sua razão de viver. Não tem namorado,
detesta os homens por já ter sido “vítima da falta de caráter deles”.6
Está eternamente de regime, come muito pouco, quase nada. Passa
horas de seu dia exercitando-se em casa ou na academia. Não sente fome,
é magra. Mas...à noite...tem muita insônia, fica acordada, pensando,
nervosa, agitada e sente muita fome. Uma “fome de boi”... e corre para a
cozinha, abre a geladeira e come até se fartar.
“Como tudo o que vejo: feijão com arroz, frio mesmo, queijo, macarrão,
purê, tomo uns três copos de leite. Ontem tinha bolo de chocolate que fiz
de manhã e devorei metade. Depois tomei mais dois copos de coca-cola,
uma barra de chocolate e meio pacote de suspiros. Quando terminei esse
ataque, sentei no chão, encostada na geladeira e chorei, acho que chorei
por meia-hora, como criança, chorei de raiva de mim, chorei de pena de
mim, chorei muito.
Fui para o banheiro, pus o dedo na garganta e vomitei. Vomitei tudo o
que comi, porque não posso engordar, e além do mais aquela comilança
estava me fazendo muito mal, fiquei enjoada e tonta”.

“Veneno é comida que faz adoecer”


S. Freud, 1933

Juliana adora cozinhar, seu hobby predileto; é entendida em menus,


organiza livros sobre culinária, pesquisa diferentes hábitos alimentares
dos povos antigos e modernos, organizando seus achados em apostilas e
pastas bastante ordenadas.
Conta-me que após fazer os pratos e arrumá-los à mesa, fica obser-
vando-os por alguns minutos, às vezes por uma hora, num verdadeiro

6
Juliana foi noiva e às vésperas do casamento descobriu que o noivo a traía com várias
mulheres.

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estado de êxtase, para em seguida fotografá-los. Porém, nada come. Chama


a empregada da casa para experimentá-los e em seguida manda desfazer
a mesa, sem que possa provar nenhum deles. Essas fotos são posterior-
mente reveladas e organizadas em álbuns, com a data em que cada prato
foi feito. Orgulha-se em inventar novas receitas e diz-se bastante criativa
e eficiente no preparo e na organização da cozinha, na arrumação da mesa
e na escolha da louça.
Nas palavras de Jeammet (1984):

“Não há anoréxica que não tema tornar-se bulímica(...) O medo de


engordar, o desejo de emagrecer ainda mais, o cuidado com as calo-
rias ingeridas, a triagem de alimentos, a ingestão de laxantes e diuré-
ticos, o controle ansioso de sua forma física, aparecem como uma
forma de contra-investimentos de um desejo bulímico tirânico que
se expressa mais diretamente através de sua “paixão” pelo alimento:
coleção de receitas, fascínio pelas exposições de alimentos, roubo
de comida, ingestão escondida, vontade de alimentar os outros...”

A forma como lida com os alimentos, assim como o seu interesse


exagerado pela culinária e pela fabricação e montagem dos pratos é
completamente paradoxal à atitude que toma no momento de se sentar à
mesa e começar a comer. Surge nesse momento a denúncia de um estado
de horror à comida que fica escondido atrás de uma aparente “paixão”.
Porque na verdade o psiquismo de Juliana “disfarça” o ódio e o conseqüente
veneno que está inserido neste contexto de alimentação.
Da mesma maneira, Juliana lida com seus exercícios físicos,
dissociando-se da dor, afastando-se da realidade, ficando imersa num
mundo onde o pensar está interditado.
Põe-se em risco, graças ao estado alienante em que o seu psiquismo
funciona. Aos rituais físicos, seguem-se rituais na alimentação; houve uma
época (há quatro anos) em que Juliana comia quantidades enormes de
cenouras e tinha que obedecer a um número exato delas; daí o colorido
alaranjado de seus braços e mãos.
As sessões com Juliana mostram um alto grau de agressividade no
conteúdo de suas histórias, muita desconfiança em relação aos outros,
críticas severas e rigorosidade nos contatos, sentidos a partir de vivências
transferenciais.
Hostilidade e rispidez em sua voz predominam na relação analítica,
parecendo “impermeável”, muitas vezes às minhas falas. Sinto uma capa

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refratária entre nós, que muito nos conta sobre a sua anorexia e sobre os
ataques bulímicos aos objetos.
No início da análise, conversávamos muito sobre telas de pintores
famosos, como Edvard Münch, trazidas por Juliana em xerox, telas com
temas de vampiros, sangue, amores imortais e vida após a morte, e foi
com a ajuda das imagens que pudemos, aos poucos, acessar áreas de
representabilidade do afeto, tão interditadas pelas lacunas identificatórias
que Juliana trazia, responsáveis pelas palavras muitas vezes perdidas.
Briga muito com a mãe, que a acusa de ser parecida com a avó. Após
algum tempo de análise, Juliana conta-me:

“Quando minha mãe se descontrola comigo, faz uma confissão: diz


que eu tenho todo o gênio ruim da mãe dela, que era considerada
louca pela família, que eu sou a encarnação dela e que ela vai ter
que agüentar isso tudo de novo.”

A avó materna suicidou-se há mais de 20 anos, Juliana não a conheceu


e me conta que este assunto é “tabu” na família , que evita falar sobre isso.
Penso que este é um exemplo claro da transmissão de um material bruto
emocional que atravessa gerações sem condições de digestão e que atinge
a herdeira cruelmente, assombrando-a e brindando-a com nítida
apropriação da loucura familiar.
Quando a conheci, exatamente em fevereiro de 2000, Juliana estava
muito confusa quanto ao que eu chamei de “orifícios de entradas e saídas”
de seu corpo.
Dizia-me ela em nossos primeiros encontros:
J. - Fico em dúvida entre o que comer e o que não comer. Para
começar a comer, preciso antes ir ao banheiro para fazer xixi.
M – O que tem a ver a boca com a uretra ou o estômago com a
bexiga?
J. - Aparentemente nada, mas para mim tem tudo...
M. – Precisa fazer espaço?
J. - (aliviada) Exatamente...já estou muito cheia.
M. -Tomara que tenha sobrado um espacinho para caber as minhas
palavras ou as nossas palavras aqui.
J. – Ri, com humor e diz simpaticamente: Já tenho esse espaço, já
está entrando. Quando você falou em espaço, senti que se abriu
algum espaço.
M. – Talvez começamos a dar nome ao vazio, ou ao superlotado.

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Vemos aqui o que Meltzer (1967) chamou de “confusão das zonas na


geografia do corpo”, onde boca, uretra, vagina, ânus são confundidos e
misturados enquanto representantes dos orifícios de entradas e saídas
entre o mundo interior e o mundo exterior. As fantasias de engravidar
pela boca, o ânus que deixa de expelir as fezes, a boca que não é usada
para comer e sim para soltar as “porcarias” `a noite, a vagina que não
pode receber o pênis nem expelir o sangue menstrual (Juliana não
menstrua há um ano), transformam-se numa mesma equação simbólica.
Sinto que Juliana está numa fronteira, prestes a cair num abismo
psicótico e que preciso ser muito firme para poder estar com ela lá, sem
entrar em tentativas narcísicas de curá-la, ou de querer ensiná-la a separar
e ordenar sua loucura. Porém, percebo que precisarei trazê-la para um
novo percurso, de retomada de sentido daquilo que ficou perdido ou
fraturado no passado e que hoje pede para ser resignificado.
Em alguns momentos da análise, especialmente neste início, precisei
interpretar relatos de Juliana num ritmo de conta-gotas, respeitando as
possibilidades dela poder me ouvir. Muitas vezes nem um gotejamento
foi possível e tive que me calar ou correria o risco de perder a viabilidade
do trabalho, sem deixar de transmitir que minha escuta permanecia atenta
e interessada.
Houve épocas em que Juliana me telefonava pedindo mais uma sessão
na semana, passando a vir diariamente ao consultório. Mas, em outros
momentos, faltava repetidamente, sem avisar ou justificar as seguidas
ausências.
Entendi que Juliana comunicava numa linguagem de acting out (a
linguagem a que ela estava acostumada em sua vida) o seu funcionamento
pelos contrastes: ora se priva, fechando a boca para as comidas e a mente
para reflexões, ora se farta, abrindo a boca para comer ou para vomitar,sem
conter qualquer alimento. Ou alimenta a analista seduzindo-a ao parecer
vinculada no processo, ou vomita a análise em cruéis golfadas.

O lugar da sensorialidade

“Ao olhar para o prato de comida que minha mãe, coitada, preparou
com tanto carinho e com tanta preocupação, fico parada, com o
olhar perdido, nem parece que estou enxergando aquelas
comidas...fico pensando... por onde vou começar?...será que dou
uma mordida naquele pedaço de tomate? Engorda menos... mas...

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não tenho a menor vontade. Mas, vou comer mesmo assim. Pego,
levo um tempo para levar à boca, minha mãe diz que levo uma
eternidade para levar a comida do prato à boca. Continuo olhando
para o tomate, sem comê-lo. Começo a analisá-lo: é lisinho, geladinho,
vermelho.. de repente...lembro-me de sangue: ah! Que nojo! Não
consigo mais colocá-lo na boca, perdi o embalo, não consigo. Minha
mãe fica desesperada, fico com muita pena dela porque percebo o
sofrimento e o trabalhão que dou, mas... eu não posso fazer nada,
não tenho culpa de não conseguir comer como os outros”

Assim desabafa Márcia, uma adolescente de 16 anos, que vive com muita
intensidade as características típicas de um psiquismo de predominância
anoréxica, mas que contém em si em estado de stand by os fortes traços
bulímicos, que nem sempre emergem em seu comportamento.
Márcia continua em outro momento:

“Ontem, tive uma sensação... enquanto tentava comer, que pensei


que deveria não me esquecer para poder te contar: era hora do
jantar, eu estava na mesa com o papai, a mamãe e a Carla. Quando
fui comer o bife, e espetei ele no garfo saiu um suco dele e lembrei-
me de sangue novamente...mas desta vez pus a carne na boca e
comecei a mastigar. Devagar, bem devagar, fui mastigando, foi
saindo para a minha boca aquele gosto salgado, a minha boca se
encheu de água, salgada da minha saliva, as fibras daquele pedaço
de carne grudaram no meu dente e a cada mastigada eu sentia que
aquilo era agressivo para mim, aquela carne nojenta que eu ia ter
que engolir e que ia levar para dentro de mim... essa carne de repente
cresceu na minha boca em vez de diminuir para ser engolida.
Cresceu e ficou gigante, estava me fazendo mal, até que cuspi tudo
no prato e saí correndo para vomitar.”

Uma comunicação tomada por registros sensoriais e imagens difusas,


que nos conduzem a épocas iniciais, primitivas da vida mental (uma atração
à fase do pictograma descrito por Piera Aulagnier?7) e que nesse momento
a memória sensorial evoca, angústias persecutórias, confusão entre comida
que alimenta e comida tóxica, ataques difusos, fantasmas sem lugar.

7
Para o leitor interessado, consultar sua obra principal La violence de l’interprétacion,
Paris: Presses Universitaires de France, 1991.

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Se seguirmos a idéia aulagneriana de que as manifestações somáticas


serão vistas pelo analista como mensageiros entre o corpo e a psique, então,
o corpo torna um pouco mais visíveis os registros da emoção e do sofrimen-
to somático.
Piera Aulagnier em seu artigo “Nascimiento de un cuerpo, origen de
una história” alerta para o fato de que precisamos dar crédito ao mundo
sensível e entender que a realidade corresponde a ele.
A realidade humana (não mítica) não se deixa apreender, a não ser
pela via de uma atividade sensorial, que serve de seletor e também de ponte
entre a realidade psíquica e espaço somático.
Freud nos ensinou que a realidade última é incognoscível; o real difere
da realidade, porquanto é aquilo que resiste ‘a realidade do ser humano.
Aulagnier (1991) alerta para o fato de que neste humano precisamos incluir
a pessoa do analista, restrito e limitado à natureza que o seu próprio
psiquismo impõe ao trabalho do seu pensamento, ao seu objetivo de
conhecimento.
É neste ponto que aludo novamente a ela:

“Ainda que espaço psíquico e espaço somático sejam indissociáveis,


ainda que nenhuma existência exterior possa ser conhecida como
tal, tudo o que afeta a psique, tudo o que modifica suas próprias
experiências, responderá a um único postulado do autoengen-
dramento. A psique imputará à atividade das zonas sensoriais o
poder de engendrar suas próprias experiências (prazer ou
sofrimento), seus próprios movimentos de investimentos ou
desinvestimentos e, com ele, a única “evidência” que poderia existir
neste despertar da vida (...) a realidade é autoengendrada pela
atividade sensorial”. (tradução livre)

As sucessivas representações do corpo levam à evolução da vida somática,


mas o corpo guardará conformidade com as motivações inconscientes que
são decisivas nas escolhas do lugar que o corpo ocupa na historização do seu
tempo e da sua vida (seu nascimento, seu futuro, sua morte futura).
Este é o pressuposto que põe em movimento e que dá prosseguimento
ao processo identificatório.
Aulagnier mostra que o afeto é a parte visível do iceberg, mas a fonte, o
que está por baixo é a emoção que se refere a uma vivência que modifica o
estado somático; será por meio destes sinais corporais que se efetuam as
comunicações.

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O papel da sensorialidade é o de produzir a posta em vida do aparato


psíquico, pois a emoção modifica o estado somático e põe em movimento
o corpo.
A partir do momento em que o corpo sensorial se conecta a um corpo
relacional, a psique passa a ter uma função de mensageira das mani-
festações somáticas e igualmente ler nas respostas dadas, as mensagens
que vêm do corpo e a ele estão dirigidas. Mas este é um processo mais
desenvolvido, que as meninas anoréxicas ainda não alcançaram.
No contato com Márcia percebo que tenho os rastros do que foi a história
daquele ser, pela história que seu corpo magro e desnudado desvela, como
uma fresta de luz através da qual ambas enveredaremos.
Bion, em artigo de 1974, também se refere ao caráter arcaico do
funcionamento mental nos distúrbios da alimentação, apontando para o
fato de que ao recebermos uma menina anoréxica estamos nos deparando
com um bebê prematuro ou com um feto que ainda não nasceu e,
simultaneamente, com a paciente em sua idade cronológica.
Ensina-nos Bion:

“(...) Isto não é uma doença, mas tem uma longa história. De fato,
quase poderia dizer que me soa como se tivesse iniciado antes do
nascimento. Se permitirmos que nossa imaginação visual, pictórica
flua, poderemos quase visualizar um bebê recém-nascido, que não
se alimenta e que poderia, estar faminto e indefeso. Agora, o que é
mais complexo é dizer, na mesma imagem (picture), exatamente o
oposto (...) um bebê gordo e muito atlético.”

Mundo objetal violento – as palavras perdidas


O poder destrutivo dos sucessivos ataques ao self, assim como a
impossibilidade da introjeção de elementos nutritivos para o psiquismo
enfraquecem o ego pela força e pela violência desses ataques orais. A
repulsa (repugnância) tão exaustivamente pesquisada por Freud no caso
Dora entra como coadjuvante desta anorexia de pensamento, numa mente
que impede a condição do pensar e que investe no ato de comer um afeto
que não lhe pertence.
Márcia constantemente me diz que “Eu não tenho problema algum com
a comida e sim com a vontade de comer”. Percebe agora, depois de quase
um ano de análise, que há uma interdição na satisfação dos seus desejos,
porque eles estão negados, distanciados, perdidos dentro dela.

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Aqui está a principal diferença diagnóstica entre os fenômenos


anoréxicos e os histéricos, mesmo que muitas vezes encontremos traços
de ambas as patologias misturadas: estamos em áreas de negação do
desejo, enquanto que na histeria há a repressão do desejo.
O funcionamento psicótico encontrado nas perturbações alimentares -
especialmente as distorções na imagem corporal, as dissociações e os
conteúdos alucinatórios – encontra na ótica kleiniana, concordante com
os demais vértices teóricos aqui apontados, um ponto inicial de
desencadeamento, a saber: os medos persecutórios intensos e o uso
excessivo de mecanismos de cisão no início da vida desequilibram as
defesas do ego, enfraquecem os desejos orais e afetam as relações de objeto
a ponto do ego também ficar vulnerável a cisões em seu interior.
Nas palavras de Klein (1946):

“Quanto mais o sadismo prevalece no processo de incorporação do


objeto e quanto mais o objeto é sentido como estando em pedaços,
mais o ego corre o perigo de cindir-se em correspondência aos
fragmentos do objeto internalizado.”

Um mundo interno povoado de objetos escravizados ou congelados,


ou ainda intensamente atacados como forma de controle da ação de mentes
que estão perdidas e sem autonomia.
Melanie Klein, ao fazer referência em sua obra quanto à negação do
objeto, fala em triunfo sobre ele, onde controle e desprezo tomam o lugar
dos sentimentos depressivos; esta é uma organização maníaca, que conduz
à dissociação, negação, idealização e projeção, ou seja, basicamente tratam-
se de mecanismos esquizóides, porém organizados para defender e
proteger o ego da ansiedade depressiva.
Klein (1935) associa dificuldades de alimentação em crianças pequenas
com o medo do perigo dos objetos internos, à semelhança do que se
apresenta no inconsciente anoréxico / bulímico.
Vejamos:

“A ansiedade paranóide de que os objetos destruídos pelo sadismo


se tornem fonte de veneno e perigo dentro do corpo do próprio
indivíduo faz com que, apesar da força de seus ataques sádico-orais,
ele tenha uma profunda desconfiança dos objetos, ao mesmo tempo
em que os incorpora.
Isso leva ao enfraquecimento dos desejos orais. Uma manifestação
desse fato pode ser observada na dificuldade que crianças muito

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pequenas apresentam em aceitar o alimento; em minha opinião essa


dificuldade é de origem paranóide. Quando a criança ou o adulto se
identifica de forma mais completa com um objeto bom, os anseios
libidinais aumentam: ela desenvolve amor e desejo vorazes de
devorar esse objeto, e o mecanismo de introjeção é reforçado.”

O aspecto nuclear da anorexia e da bulimia:


A complexidade da relação mãe-filha

Estamos frente a perturbações que se caracterizam por transitar em


áreas de fronteiras, como se o fio de ligação entre o mundo neurótico e o
psicótico ameaçasse constantemente se romper.
Os investimentos narcísicos da mãe e da filha impedem a troca afetiva
e apagam o traço e o reconhecimento do outro. A tradicional frase: “Eu
não tenho fome” demonstra a fantasia inconsciente de se situar além da
carne, além das necessidades básicas de sobrevivência e acima do finito,
da vida.
Marilyn Lawrence (2001), psicanalista do grupo britânico, já citada,
afinada com a leitura kleiniana dos distúrbios alimentares, diz em recente
artigo:

“Algumas pacientes anoréxicas, mais do que outras, estão


preparadas para passar fome a ponto de morrer. Penso que o grau
de homicidade em direção ao self e ao corpo reflete a extensão do
propósito assassino com relação aos pais internos e suas relações.”

A partir da constatação de que há 10 mulheres anoréxicas para 1 homem,


Marilyn Lawrence (2002) continua em artigo posterior a apresentar suas
considerações sobre a feminilidade e a relaciona à hipótese de que as
mulheres que desenvolveram anorexia foram, quando crianças,
receptáculos de invasões ou vítimas de violências físicas ou psíquicas.
A dinâmica do mundo interno que é observada denuncia a presença de
um objeto intrusivo instalado na mente dessas mulheres, que não tiveram,
necessariamente, antecedentes de experiências externas de intrusão.
A intensidade das fantasias de que algo perigoso e ameaçador se instalou
dentro de seu próprio corpo é diretamente proporcional às fantasias de
ataque ao corpo da mãe e quanto mais a menina nega a relação entre
os pais, maior será a intrusividade do objeto.

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A menina usa a mãe como escudo protetor dessas fantasias, ao invés de


senti-la como continente e capaz de metabolizar seus medos e fantasias
agressivas.8
As conseqüências psíquicas da falha da menina em internalizar o casal
parental conduzem a uma fusão da menina com a mãe. Identificada com
as partes faltantes da mãe fragilizada, a menina desenvolverá um vazio
que tentará a todo custo preencher em busca da completude ou de um
engajamento e carecerá de um desenvolvimento simbólico adequado.
Explica-nos Lawrence:

“Fechada psiquicamente na fantasia de uma fusão pré-edípica com


a mãe, com ansiedades sem continência sobre sua sexualidade
feminina, sua mente dominada por uma figura que é intrusiva e
destrutiva, elas não podem nada simbolizar, nem pensar ou usar
palavras como tentativas de lidar com o problema.” (tradução livre)

Em Farrell (1995) e Linda Miller (1997) também psicanalistas do grupo


britânico, dão especial atenção à complexidade da relação mãe-filha na
anorexia e na bulimia reforçando a idéia de que a falha na internalização
do triângulo edípico resulta na falha em integrar a observação à experiência,
o que dificulta a separação da identidade da menina e da mãe.
O phallus 9 é invocado para tentar dar limites à intrusividade materna,
pois a menina teme as seqüelas deste objeto intrusivo.
Miller vê também as perturbações alimentares como defesas contra essa
fusão e uma tentativa de alcance da individuação, uma vez que outras
defesas fracassaram e manifesta a importância da inclusão da mãe num
trabalho analítico.
Maud Mannoni (1971) no atendimento a Sidonie, uma adolescente de
17 anos, com grave anorexia, entende que a menina anoréxica quer morrer
no seu corpo, a fim de que o seu ser escape à morte. É exatamente desta

8
Em Diários da Anorexia (referências na bibliografia), poderemos ler trechos dos diários
escritos por uma mãe e uma filha norte-americanas, diários estes iniciados anos antes
do grave distúrbio alimentar (anorexia e bulimia) que acometeu a filha e que prosseguiu
durante sua terapia e internações.
9
Danna Birksted-Breen (1996) faz uma distinção entre phallus e pênis, o phallus como
um modo pré-simbólico de pensamento, pleno do poder e da onipotência buscados pela
anoréxica. Por outro lado, o pênis faz a ligação dos pais, representando o reconhecimento
de que são figuras diferentes, porém unidas. É estruturante e impede a fusão mãe-filha.

143

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compreensão que participo, quando evidencio o fato de que o psiquismo


destas meninas experimentou um grande engano ao escolher um caminho
de morte, para cumprir um objetivo que não é de morte, mas de vida, de
busca de vida, de renascimento de um ser que genuinamente
seja seu, nem que seja na fantasia ou na imortalidade delirante;
daí ter destacado, no início deste artigo, o tema da identidade, de busca do
eu, feminino e integrado, diferenciado das figuras parentais.
Estas são idéias que, se presentes na mente do analista, irão favorecer
a percepção, por parte da menina anoréxica, de que ele não participa do
conluio tácito de condenação e desânimo que freqüentemente reina no
clima familiar e por que não dizer, no cenário terapêutico, pois é grande o
convite para que os profissionais percam o apetite para o trabalho.
Concordo com Mannoni, quando ela assim interpreta os sintomas
anoréxicos:

“A anorexia, nesse contexto, não é uma doença, mas a única maneira


de o sujeito chegar a nascer como um sujeito desejoso, fora do desejo
da mãe.”

É como se a paciente se perguntasse: Para que viver, se viver representa


condenar seus desejos à morte?
A estreita e entrelaçada relação mãe-filha, em toda sua especificidade,
necessita ser profundamente compreendida pelo analista que se depara
com transtornos alimentares, uma vez que o “tornar-se mulher” nasce a
partir do reconhecimento de que a mãe, em sua feminilidade, integra
(alternando em seu mundo interno) seus aspectos maternos e femininos.10

“Do cru ao cozido”11

Penso ser de interesse para este artigo uma breve referência à história
da alimentação, uma vez que o comer está comprometido com modelos
alimentares e identidades culturais que nos levarão a um aumento de
compreensão do mundo interno daqueles que usam a comida e o ato de

10
Para o leitor interessado, consultar o artigo de Florence Guignard “Maternal ou feminino?
A “rocha de origem” como guardiã do tabu do incesto com a mãe”. Conferência realizada
em agosto de 1999 na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
11
Expressão de Levi-Strauss.

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comer - ou de não-comer - como uma expressão de sentimentos, desejos,


sonhos, pesadelos, medos, terrores...Do mesmo modo, os alimentos e seus
temperos, como o óleo e o sal, tantas vezes referidos em sessão pelas
pacientes também estão imbricados com um simbolismo particular, de
significado profundo, passado transgeracionalmente através dos séculos.
Historicamente, como uma forma de resposta às necessidades individuais,
a alimentação tornou-se progressivamente elemento essencial na
estruturação dos grupos, de expressão de uma identidade própria e origem
de um pensamento simbólico.
Segundo Flandrim (1998):

“As mais antigas receitas de cozinha que conhecemos são


mesopotâmicas e datam do segundo milênio a.C.. Não se pode
concluir daí que os mesopotâmicos inventaram a cozinha.
Simplesmente, eles tiveram seus motivos para escreverem suas
receitas e foram os primeiros, juntos com os egípcios, a poder fazê-
lo: sem escrita, não poderia haver receitas. (grifo meu)

Mas a ausência de receitas não exclui a eventualidade de preocupações


gastronômicas e de uma arte culinária refinada. Assim, os egípcios, que
não tinham sentido a necessidade de formulá-la por escrito, deixaram-
nos, contudo, vestígios muito elucidativos em algumas tumbas, a partir
do quarto milênio. Tampouco foram eles, porém a inventar a cozinha.
Há 500 mil anos, o homem teria dominado o fogo, diferenciando-se de
forma definitiva de seus ancestrais hominídeos, que ainda viviam num
estado de animalidade. Os historiadores da pré-história parecem admitir
que, de início, o fogo foi utilizado para cozer os alimentos e só bem mais
tarde foi empregado para outros fins. Daí a se afirmar que a cozinha faz o
homem e que tanto um como outro têm 500 mil anos, é um passo.”
Quando o fogo começou a ser utilizado, o fato de preparar os alimentos
em um fogo coletivo para cozer os alimentos favoreceu o seu consumo em
comum, outorgando a função social à alimentação e o desenvolvimento
da comensalidade.
Até no comportamento das feras carnívoras, pode-se observar uma certa
cumplicidade no ato de comer junto e a atenção à hierarquia de poder
entre elas, diferentemente do que é visto nos herbívoros, concluindo-se
daí a importância que a carne fresca institui nos banquetes.
Alguns povos preferem a comida crua, outros, a cozida. No processo de
cozimento, desde os primórdios existe uma intencionalidade em tornar

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os alimentos digeríveis e não nocivos, muito mais do que apenas


aprimorar o seu sabor.
O momento de humanização das condutas alimentares parece então
estar ligado ao surgimento da possibilidade de cozinhar com fogo, ou seja,
ao transformar o alimento cru em cozido, o homem avançou muito no seu
desenvolvimento e começou a formar hábitos alimentares diretamente
ligados a gostos e crenças de cada cultura.
Avançar em seu desenvolvimento significa buscar novos padrões de
vida, que atendam melhor suas necessidades; tornar o que está cru em
cozido é uma forma de progresso, pois o processo de cozimento assim como
o de macerar, coar, cozer e temperar conduzem a uma prática culinária
que podemos chamar de cozinha.
O processo psicanalítico também não estaria envolvido com questões
semelhantes? O movimento de expansão do psiquismo ao incluir a
possibilidade de pensar as emoções não estaria transformando aspectos
“crus”, pouco diferenciados, em material mais facilmente digerido pelo
psiquismo, como perceberam os pioneiros a usar o fogo para cozinhar suas
caças?
Cada par analítico tem a sua culinária e a sua forma própria de proceder
à sua cozinha. Eu e Juliana objetivamos novos padrões de funcionamento
psíquico e a transformação de material emocional difuso, indiferenciado
(elementos beta em Bion), o cru em cozido, os elementos alfa, que geram
e criam pensamentos oníricos, assim nutrindo a vida mental. Em outros
momentos, a culinária analítica vai tratar de percorrer o sentido oposto,
procurando o “cru” perdido em meio a um cozimento exagerado (“passado
do ponto”).
Os alimentos, após cozidos, apresentavam-se como elementos
simbólicos de definição da civilização.
Flandrim e Montanari 1998 continuam:

“Os “bárbaros” não fazem a cozinha porque ignoram o uso do fogo


e contentam-se em consumir alimentos crus (ou, quando muito,
aquecidos ao calor do sol...): eis um lugar-comum muito presente
na literatura antiga(...)”

E, mais à frente:

“... a arte da cozinha consiste em não apenas tornar o sabor dos


alimentos mais agradável, mas também, e ao mesmo tempo,

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transformar a natureza dos produtos adaptando-os às necessidades


nutricionais dos homens; nessa perspectiva, a nutrição e a saúde
chegam quase a se confundir, como teorizam explicitamente os
autores gregos e latinos de textos de dialética, a partir de
Hipócrates.”

Com certeza, a arte de combinar diferentes substâncias na elaboração


dos pratos, assim como a integração das receitas e seus complexos
preparados, a inclusão de mais ingredientes, enfim, todo tipo de
transformações que as cozinheiras trazem a elas, não tem como papel
principal a nutrição.
O movimento integrador, sintetizador e metabolizador do ato de
cozinhar é, a meu ver, um ato criativo, que transforma e restaura.
Diante de uma panela, os mercadores selavam acordos comerciais nas
tabernas, assim como os sumérios descreviam os banquetes dos deuses e
príncipes, ocasiões onde eram iniciados debates preciosos, conversas que
tinham uma função emocional.
No divã, analista e analisando examinam a comida possível de ser ali
produzida e torcem para que seja nutritiva e não tóxica para ambos. Uma
cozinha especial, que tem de a todo momento manter a atenção para que
suas panelas estejam sempre limpas para proceder ao ato de cozinhar.
Segundo Antonino Ferro12:

“No dia em que o analista cozinha com suas próprias panelas sujas,
freqüentemente o paciente tem dor de barriga.”

Movimentos de vida surgem em lugar de mecanismos mortíferos que


impediam seu desenvolvimento.

Considerações finais

As meninas adolescentes, viradas do avesso pela anorexia e pela bulimia,


chegam aos nossos consultórios intoxicadas, como se tivessem sido
tomadas por uma carga emocional venenosa, que se espalhou pelo seu ser

12
Citação de Luiz Meyer (Março de 2003) em seus Comentários sobre o Seminário: “O
Sonhar do Analista” de Antonino Ferro, apresentado em reunião na SBPSP.

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e que transformou seu corpo num fetiche, assim deslocando o lugar da


mente para o corpo. O pensar e o investir têm que ser buscados na história
libidinal e identificatória desse corpo e desse eu infantil.
Ao final deste artigo retorno a Eliana, a pré-adolescente das primeiras
páginas, aqui representante das meninas que, afastadas de sua própria
subjetividade, deliram e alucinam, inventando padrões surreais de vida,
que mais parecem de morte. Gradativamente, com colheradas suaves de
alimento analítico, com todo o apoio e esforço desmedido da equipe
médica, com a solidez da terapia familiar e especialmente com a preciosa
contribuição da análise da mãe, Eliana voltou a ser a criadora de seu mundo.
Conseguimos, em nossa união terapêutica, que Eliana não fosse internada,
ao resgatar as palavras perdidas em meio à desorganização de seu mundo,
desobstruindo a condição do pensar e do investir.
Contei aqui histórias de meninas que repetem padrões por elas criados e
copiam a si mesmas sem perspectivas de saída, sua possibilidade criativa
anulada, como adictas, drogadas de si, viciadas em si mesma, pois sua anore-
xia mental, o fechamento à penetração do outro impede a evolução e garante
a eterna repetição compulsiva da auto-cópia daquilo que já existe nelas.
A gordura, em sua mente e em seu corpo, é a vilã e a responsável por
toda essa tragédia, pois ocupa também o lugar da loucura ou daquilo que
se tornou incontrolável ou intolerável para elas.
Como bebês-esponjas, que, em épocas arcaicas de sua vida, serviram
de receptáculos para emoções brutas e desorganizadas e dessa maneira
tornaram-se refratárias a introjeções13, as meninas anoréxicas / bulímicas
precisam encontrar uma mente que possa aproximar-se desta porosidade,
num ritmo cauteloso, porém persistente, delicado, porém firme, capaz de
tocá-las como se tivesse uma flor entre os dedos, ou um cristal muito fino,
que, na eventualidade de qualquer movimento brusco, corre o risco de
sofrer fraturas e rompimentos.
Vamos tentar buscá-las em suas fendas glaciais, procurando
acompanhá-las no fio que as separa do abismo psicótico, trazendo-as de
volta para a luz do dia, aquecidas pelo calor de um acolhimento pensante,
que possa conter as suas duplicidades, sintonizado com suas necessidades
afetivas, conduzindo-as para uma vida alimentada por sentidos e
significados, para que elas voltem a ser as criadoras de seus mundos.

13
Em função do excesso de projeções parentais, esses bebês desenvolvem o mecanismo
defensivo “no entry” descrito por Gianna Williams em 1997.

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Quem sabe, encontrarão as palavras...e as comidas.


Cada par da sala de análise deixa- nos claro que temos tantas coisas a
conversar e que nossos encontros têm se mostrado férteis e cheios de
desdobramentos, que indicam uma escalada para a vida mais iluminada,
em contraste com o escuro sombrio dos inícios. Percebemos que tantas
são as frentes que se abrem a cada nova descoberta...

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VIII – Número 1 – 2007

O discurso multidisciplinar
sobre o tema obesidade*
Terezinha de Souza Agra Belmonte**

Do luto à luta
A Teogonia é uma sinopse não só de mitos mas uma
sinopse do próprio processo cosmogônico.
Ela mostra que neste canto arcaico pulsa já o primeiro
impulso do pensamento racional

Resumo
A idéia nesse trabalho de conclusão da disciplina a História da
Psicanálise (Arquivo, Arqueologia e Memória) ministrada no
Instituto de Psicologia no Programa de Pós – Graduação em Teoria
Psicanalítica, é apresentar a perplexidade e a admiração perante o
conhecimento que adquiri durante o seu período de duração (abril
a junho de 2006 ) e como ela contribuiu para a reflexão sobre a
área de interesse da minha pesquisa – a obesidade – (do latim

*
Trabalho de conclusão da disciplina - História da Psicanálise (Arquivo – Arqueologia e
Memória )– Pós Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro no Estágio Probatório para o doutorado no IPUB- PROPSAM – UFRJ ( 2005/2006).
**
Membro Associado da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Prof. Adjunto da Escola
de Medicina e Cirurgia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em
Endocrinologia. Especialista em Endocrinologia e Psiquiatria.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VIII – Número 1 – 2007

obesus: ob – muito, edere: comer) doença crônica, de abordagem


multidisciplinar em que a ordem do discurso é tratar e reabilitar
através de reeducação alimentar, atividades físicas e cirurgia
bariátrica para qualificar a vida do cidadão portador dessa
patologia responsável pela alta prevalência de complicações
médicas, levando inclusive à morte, tornando-se essa pessoa,
excluída da sociedade, muitas vezes, desde os primórdios de sua
existência, pois a mídia, na sociedade atual, impõe um estilo
corporal.
Unitermos: obesidade, doença crônica, multidisciplinar

Summary
The idea of this paper on the conclusion of the discipline The History
of the Psychoanalysis: file, archeology and memory, is to show the
perplexity and the admiration towards the accomplishments he
learned during its period , as well as the way it contributed efficiently
on the searchet area of the present paper work : the obesity (from
Latin “obesus”: ob = too much; edere: eating too much). A chronic
disease having a multidisciplinary approach in which the object of
the discourse is to treat and rehab through the alimentary
reeducation; physical activities and bariatric surgeries, in order to
improve the citizen’s life who portraits this kind of pathology which
is responsible for the high amount of medical complications, leading
even to death. Also this problem turns the person excluded from the
society, which many of the times it may occur since his / her early
existence, due to the body slim performance demanded by the
current media in our today’s society.
Key Words: psychoanalysis, obesity, chronic disease,
multidisciplinar

Introdução

O tema obesidade é objeto de pesquisa da autora desde 1976. Ela, em


sua experiência clínica, no atendimento aos que se queixavam de
obesidade, percebia na relação médico-paciente que alguns não eram

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obesos, outros apresentavam sobrepeso (IMC * de 27 ou mais = 20% de


excesso de peso) e os portadores de excesso de sobrepeso (IMC de 31 =
40% de sobrepeso), eram de difícil tratamento. Eles, muitas vezes, apesar
de não conseguirem aderir ao tratamento, continuavam a ir às consultas,
pois gostavam de conversar. Às vezes acontecia a catarse (descarga dos
afetos patogênicos). Ela, psicanalista em 1996 e psiquiatra em 1997 , nas
suas inquietações sobre o assunto aprende que o tema faz parte
principalmente do capítulo da saúde da mulher. As pessoas acometidas
desse sofrimento são classificadas no capítulo V da CID – 10: Transtornos
Mentais e de Comportamento, nas categorias - Transtornos neuróticos e
relacionados ao estresse e somatoformes (F.40 – F.48), Transtornos de
humor (F.30 – F.39), Transtornos alimentares (F.50 – F.50.9) e no capítulo
IV da CID – 10: Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas:
Obesidade (E.66).
A compreensão da psicopatologia dessa doença está associada ao grupo
de transtornos alimentares e a DSM – IV – TR ***, que inclui no capítulo B.
(conjunto de critérios e eixos propostos para estudos adicionais), a
categoria-Transtorno de Compulsão Periódico. O esclarecimento da
fisiopatologia desse mal, que acomete a humanidade, atualmente está
melhor compreendido.
A autora identifica no seu ambiente de trabalho a variedade de casos
em profissionais de saúde, principalmente nos alunos de medicina quando
chegam à metade do ciclo clínico da graduação em medicina.
Stone, 1999, no capítulo 27 do livro A Cura da Mente comenta que a
qualidade de vida das mulheres, grupo em que a doença é mais prevalente
melhorou em relação à inclusão social,embora isso exija um grande
sacrifício da pessoa acometida devido as recidivas pela cronicidade da
doença, quanto mais precoce ela aparece,mostrando que a permanência
de elementos residuais de problemas de personalidade não resolvidos,
como os conflitos da condição de esposa, gravidez e maternidade, surgindo
tipicamente ou de relacionamentos mãe e filha perturbada ou de pais que
depreciavam as mulheres. A indicação de um longo período de psicoterapia
psicanalítica é geralmente necessário.

*
IMC - Índice de Massa Corporal-razão entre peso em quilogramas e o quadrado da altura
em metros. **CID – 10 – Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento
***DSM- IV – TR – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais

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Os estudos de Sigmund Freud sobre a fase de desenvolvimento libidinal


chamado narcisismo, ajudam no esclarecimento sobre o tema. Isso é
complementado pelas investigações de Donald Winnicott, H. Kohut e
outros. O método de observação mãe – bebê (método Esther Bick) ajudou
na clínica das intervenções psicoterápicas pais - bebês, pois os sintomas
de alteração na função alimentar são uma das expressões de mau
funcionamento familiar nos primórdios dessa integração que se perpetua
no meio ambiente a posteriori, caso não seja identificado e tratado.
O desenho de suas indagações foi complementado pelo contato com a
disciplina da História da Psicanálise: Arquivo, Arqueologia e Memória.
Ao redigir o trabalho de conclusão dessa disciplina, lembrou –se que
participou de uma mesa redonda sobre Mitos em 2004 (introdução das
humanidades em medicina na Escola de Medicina da Unirio) e do
Congresso de Mitos na cidade do Rio de Janeiro em 2000. Encontrou na
Vênus de Willendorf ( ilustração que acompanha os artigos, livros e
congressos de obesidade ), a questão: Matriarcado – História ou Mito?

Matriarcado – História ou Mito?

Alguns autores descrevem uma fase na pré – história, 35000 a.C. da


existência de uma sociedade (Europa e Ásia), que desconhecia a guerra e a
violência sistemática, que celebrava a vida a ponto de adorar a natureza,
que não oprimia mulheres nem homens, com um modo de vida matrifocal,
agrário e não violento. As armas eram usadas apenas para caçar, as cidades
não tinham muros e os homens não tinham treinamento militar. As
mulheres ocupariam posições de poder e seriam honradas pela capacidade
de conceber sendo a descendência marcada pela linhagem materna. Esse
período foi conhecido como período matriarcal, em que elas eram
referenciadas como sacerdotisas, cultuando uma deusa – mãe, a Natureza.
Os traços dessa cultura foram sendo progressivamente extintos a partir de
4.000 a.C. , quando invasores (uma cultura nômade e com espírito de lutas)
vindos das estepes russas teriam introduzido os idiomas originais indo –
europeu, o cavalo, as divindades guerreiras e o conceito da inferioridade
feminina na Europa, conquistando os continentes e introduzidos na
cultura, à sociedade patriarcal. A hipótese matriarcal surgiu em 1861,
quando os pesquisadores da chamada era do gelo (40.000 – 10.000 a.C.)
desencavaram grande quantidade de estátuas femininas conhecidas como
Vênus (a Vênus de Willendorf – A grande mãe? - 1908 e tida por muito

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tempo como imagem religiosa). O arqueólogo britânico Arthur Evans, em


1901, achou a civilização minóica (Grécia – século 27 e 11 a.C.). Em 1958 a
cidade de Catalhouyk na Turquia foi encontrada e tem uma referência do
período neolítico (8000 – 5000 a.C.). A arqueóloga lituana Marija
Gimbutas, em 1960, defendeu a tese que todas essas sociedades
compartilhavam uma mesma matriz cultural . Ela estudou esses artefatos
da velha Europa.. Foram encontradas esculturas de cabeças de boi em
santuários, que foram apontadas como símbolos de uma deusa antiga, pois
representariam o útero (cabeça) e as trompas de falópio (chifres).
A antropóloga americana Cynthia Eller, em 2000, uma estudiosa do
movimento neo – pagão, declara que o fato de cultuar uma deusa não
implica numa vida boa para as mulheres, dando o exemplo do mau sistema
de vida para as mulheres na Índia e as inúmeras deusas que lá existem.

As Vênus

Vênus, a deusa romana da formosura e do amor é a origem da palavra


venereal (venéreo).
A Vênus da mitologia romana equivale a Afrodite na mitologia grega e
a Iemanjá na mitologia africana.
As Vênus representam as mulheres na qualidade de objeto.
Os especialistas da pré – histórica comentam que as estátuas de deusas
- mães aparecem segurando crianças, parindo ou copulando.
O pesquisador Cláudio Quintino, autor de A Religião da Grande Deusa
mostra que a nossa sociedade sofre de uma carência do elemento feminino
que se manifestam na religião várias vezes ao longo da história, sem haver
continuidade entre essas manifestações.

A Alimentação
A questão do conhecimento da ciência da nutrição que envolve aspectos
do ser humano e a sua relação com o alimento e os diferentes rituais
alimentares ao longo da história da civilização, marcando cada etapa do
processo de civilização e a modificação dos seus hábitos tornam-se um
campo de estudo a ser investigado. Atualmente as doenças nutricionais
estão sendo causadas pelos excessos alimentares e pelos atuais e errôneos
estilos de vida da nova gastronomia.

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A História da Beleza
Busse, 2004 em seu livro: Anorexia, Bulimia e Obesidade explicita que
o conceito de beleza ao longo da história, encontra-se ligado ao de perfeição,
com traços que afastam o ser humano da animalidade. A beleza é uma
obrigação feminina e é um sistema monetário semelhante ao padrão ouro.
O padrão estético de beleza relacionado à mulher, na maioria das culturas,
está ligado a irrealidade e ao esquecimento da maternidade. Já vimos que
a Vênus de Willendorf, da horda primitiva, representava a deusa mãe, nas
sociedades matriarcais e nas sociedades mais estruturadas aparece
Nefertiti e Cleópatra, no Egito e Helena de Tróia , na Grécia. Na Idade
Média, temos a mulher mãe (Eva, primeira mãe, imagem feminina, branca,
pura, corpo virginal e tão delgado que poderia ser cercado com duas mãos)
e a mulher amante (Lilith, aquela que se rebela do domínio do deus
masculino e passa a viver entre os demônios). O século XIII é marcado
pelas santas medievais, autosacrifício, com ingestão somente da eucaristia,
abstinência sexual, e rejeição ao casamento, aparecendo no final desse
período à mulher Branca de Neve e no século XIX, a mulher burguesa,
mãe de família e honesta que se contrapõem as santas e anoréxicas.
O século XX é marcado pela mulher magra que é sinônimo de saúde,
dona de casa, mãe e esposa !?
Eco, 2004, narra que a religião estética começa no início da segunda
metade do século XIX: período vitoriano na Inglaterra, o Segundo Império
na França, no qual dominam as sólidas virtudes burguesas e os princípios
de um capitalismo em expansão. A classe operária toma consciência da
própria situação. O artista, diante da opressão do mundo industrial, do
crescimento das metrópoles percorridas por multidões imensas e
anônimas, do surgimento de novas classes cujas necessidades não incluem
a estética, o fendido pela forma das novas máquinas que ostentam a pura
funcionalidade de novos materiais, sente ameaçados os próprios ideais ,
percebe como inimigas as idéias democráticas que avançam gradualmente,
decide se fazer “diverso”.
A Beleza vitoriana é um valor primário a ser realizado a qualquer custo,
a tal ponto que muitos viverão a própria vida como obra de arte. Ela acaba
por coincidir não mais com o supérfluo, mas com o valor. O espaço ocupado
pelo vago, indeterminado, agora é preenchido pela função prática do objeto.
O burguês não tem dilemas morais: é moralista e puritano em casa,
hipócrita e libertino com as jovens de bairros proletários..
É nesse contexto que surge a Psicanálise: com um corpo teórico, uma
metodologia de investigação e a busca de um tratamento para a Doença

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Nervosa Moderna. Sigmund Freud resgata esses saberes descontínuos pré-


históricos e históricos, para aplicar na clínica psiquiátrica da época, que
não conseguia encontrar elementos anatômicos alterados para explicar a
psicopatologia e a fisiopatologia desse sofrimento e é através da procura
da essência da narrativa dessa pessoa que o procura, que ele aprende a
resgatar a saúde desse ser humano, repetindo o aprendizado descrito na
Teogonia, pelas Musas.
O texto Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna (1908) foi
a primeira de longas exposições de Freud sobre o antagonismo entre
civilização e vida instintual, pois num memorando escrito em 1897, ele
fala que o incesto é anti - social e a civilização consiste numa renuncia
progressiva ao mesmo.
As extraordinárias realizações dos tempos modernos, as descobertas,
as invenções em todos os setores e a manutenção do progresso, apesar da
crescente competição, só foram alcançados e só podem ser conservados
por meio de um grande esforço mental.
Em todas as classes aumentam as necessidades individuais e a ânsia de
prazeres materiais; um luxo sem precedentes atingiu camadas da
população a que até então era totalmente estranho; a falta de religiosidade,
o descontentamento, e a cobiça intensificam-se em amplas esferas sociais.
A vida urbana torna-se cada vez mais sofisticada e intranqüila. Os nervos
exaustos buscam refúgio em maiores estímulos e em prazeres intensos,
caindo em ainda maior exaustão.A observação clínica permitiu-nos
distinguir dois tipos de distúrbios nervosos: as neuroses e as psiconeuroses.
A evolução da civilização levou o homem , a renunciar a sua satisfação
instintual e a oferecer à divindade como um sacrifício ( e assim ele é
declarado santo ).A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original
por outro, não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro,
chama-se sublimação. Parece-nos que a constituição inata do indivíduo é
que irá decidir qual parte do seu instinto sexual será capaz de sublimar e
utilizar. A criança tem um estágio autoerótico que depois passa para a fase
de amor objetal e então autonomia das zonas erógenas, o que é inibido no
seu desenvolvimento caso seja inútil à função reprodutora (nos casos
favoráveis ela é sublimada e em outros temos os pervertidos e os
homossexuais). A educação das mulheres impede que se ocupem da
questão sexual por se tratar de assunto pouco feminino e pecaminoso. As
mulheres ao sofrerem as desilusões do casamento contraem graves
neuroses. A experiência nos ensina que existe para a imensa maioria das
pessoas um limite além do quais suas constituições não podem atender às

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exigências da civilização. Acredito que a inegável inferioridade intelectual


de muitas mulheres pode ser atribuída à inibição do pensamento necessária
à supressão sexual . Uma esposa neurótica, insatisfeita, torna-se uma mãe
excessivamente terna e ansiosa, transferindo para o filho sua necessidade
de amor e o desperta para a precocidade sexual. Além disso, o mau
relacionamento dos pais excita a vida emocional da criança, fazendo-a
sentir amor e ódio em graus muito elevados ainda em tenra idade e que
agravado numa educação rígida que não tolera qualquer atividade dessa
vida sexual precocemente despertada, vai em auxílio da força supressora
e esse conflito fornece todos os elementos ao aparecimento de uma doença
nervosa que durará toda a vida

As mulheres no século XXI

Os estudos epidemiológicos no século XXI mostram que a depressão é


uma das três principais causas de doença entre mulheres, levando a um
significativo impacto em sua qualidade de vida e funcionamento social. O
estudo dos últimos trinta anos demonstrou que elas , a partir da infância,
passando pela menarca, início de vida adulta, período gestacional e pós
gestacional, maturidade, menopausa e pós menopausa, sofrem de
transtornos de humor específicos incluindo disforia pré – menstrual,
depressão perinatal e perimenopáusica, assim como transtornos de humor
e de ansiedade associados à infertilidade e a gestações abortadas. As
mulheres sofrem mais de transtornos alimentares, transtornos de
ansiedade generalizada , transtornos de estresse pós traumático e doenças
auto imunes. Elas são também menos tolerantes ao uso do álcool e possuem
uma maior prevalência de transtornos de dor. Elas são influenciadas em
maior grau pela sazonalidade, sofrem mais de problemas advindos da
mudança de fuso horário nas viagens e do trabalho em turnos rotativos e,
por ultimo, mas não em importância, metabolizam as drogas de forma
diferente dos homens. As mulheres estão mais expostas que os homens a
estressores incontroláveis tanto psicológicos como físicos, incluindo
violência, abuso e estupro, a partir de idade precoce. Entretanto nem todas
as mulheres que se depara com situações estressantes desenvolvem esses
transtornos. Sugere-se que a resposta de um indivíduo às agressões
ambientais é moderada pela sua constituição genética. As mulheres desde
a infância são expostas aos efeitos das flutuações nos esteróides gonadais
durante o seu ciclo vital, sendo essas desencadeadas por estresse do eixo

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hipotálamo – pituitário – adrenal de uma forma não completamente


compreendida e que é o campo de estudos da Medicina Psicossomática
desde Groddeck (contemporâneo de Freud) até as atuais escolas
psicossomáticas. O tema obesidade se inclui nesse contexto. Os estudos
em neurociências mostram que os cérebros de homens e mulheres são
anatômica, química e funcionalmente distintos e algumas dessas variações
ocorrem em várias áreas do cérebro envolvidas na emoção, cognição,
memória e comportamento. A esperança é na identificação de marcadores
genéticos específicos que possam ajudar no reconhecimento dessa
modulação neurológica para que a prevenção em relação á questão
ambiental possa se dar da melhor forma possível (séries complementares
do Freud- orgânico e psíquico – volume XVI- pág. 406).

As Musas
As Musas são filhas de Zeus, com Mnemosyne (Memória), elas são a
combinação do esplendor fulgurante de Zeus com a potente presença da
negação do esquecimento, a memória. É por essa filiação, por essa gênese,
que as Musas têm por prerrogativa dizer a verdade (dar a ouvir revelações).
Na Grécia Antiga, essa palavra cantada tinha o poder de restaurar a saúde
dos enfermos, na medida em que os punha em contato com as forças
primevas e pulsantes da vida que estariam adormecidas ou esquecidas,
arrancando-os da obscuridade mortífera do silêncio. É em profunda
solidariedade com esse poder da palavra que a psicanálise se funda como
talking cure, como a batizou uma paciente de Breuer, Anna O.
O analisante dedica-se ao relato (uma das traduções possíveis de
mythos), como o poeta arcaico.

Mito e Medicina – O Caos – O Corpo – O Eu


Os mitos são metáforas do homem, de sua vida, de seus anseios, da sua
percepção de mundo. Representam sonhos coletivos, que descrevem a nossa
história passada, presente e futura. Os mitos são princípios organizadores
da atividade psíquica. Os mitos antigos representam o papel do modelo da
aldeia primitiva (conjunto de tabas circundadas pela selva) e centrada em
volta dos signos totêmicos, que lhe asseguram sua unidade, sua coesão, seu
sentido. São eles que podem ajudar o paciente a encontrar o sentido da
fragmentação, a descobrir nela as linhas de uma organização possível e
operar as separações necessárias na sociedade contemporânea que não se
propõe a uma ordem simbólica viva e que os pais não são capazes de supri - la.

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Existem trabalhos que falam de um mito pessoal e que muitas vezes


num trabalho terapêutico, a resistência acontece por ser o mito do terapeuta
diferente do mito do paciente e o terapeuta não empatizar com essa questão
e não procurar acolhe-la. (O Mito Pessoal na Contratransferência – Antonio
Santamaría – Os Mitos no Campo Psicanalítico- XXI Congrego Latino
Americano de Psicanálise).

Mito e realidade
O desejo de conhecer a origem das coisas caracteriza a cultura ocidental.
Para a psicanálise, o verdadeiro primordial é o “primordial humano”, a
primeira infância. A criança vive num tempo mítico, paradisíaco. A
Psicanálise elaborou técnicas capazes de nos revelar os “primórdios” de
nossa história pessoal e, sobretudo, de identificar o evento preciso que
pôs fim a beatitude da infância e decidiu a orientação futura de nossa
existência. Traduzindo isso em termos de pensamento arcaico, pode-se
dizer que um paraíso (para a psicanálise, o estado pré - natal ou o período
que se estende até a ablactação) e uma “ruptura”, uma “catástrofe” (o
traumatismo infantil) e que, seja qual for à atitude do adulto em face desses
eventos primordiais, eles não são menos constitutivos do seu ser. A técnica
psicanalítica permite que o indivíduo volte atrás ao seu tempo mítico de
origem e reatualize determinados eventos decisivos da primeira infância.
Nas sociedades arcaicas, uma comunidade inteira, revivia, por meio de
rituais, os acontecimentos narrados nos mitos.

A questão do corpo
Estudando –se o corpo, percebe-se que ele se apresenta ao conheci-
mento em dois momentos: antes da razão científica, estágio natural, onde
era visto pelos traços da tradição e da auto – regulação moral e na
Modernidade, estágio da liberdade, com a criação do homem e o conceito
de corpo/organismo pela razão do conhecimento científico e das práticas
institucionais médicas.
O corpo no período medieval se fundia em matéria e espírito, tudo que
se fizesse à matéria ou vice- versa ofendia o espírito. A cremação era
proibida, pois se acreditava que a ressurreição através do espírito não se
faria, caso isso fosse permitido. O corpo era visto com algo sagrado e a
dissecação de cadáveres era considerada uma profanação ao corpo humano.
Esse rito pertencia aos bárbaros pagãos e criminosos graves ou hereges. O
sentido da tortura e da dor era que a punição sobre o físico era também

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sobre a alma. A casa do camponês medieval era de um cômodo, e a noção


de privacidade não existia. Na Idade Moderna, a sociedade passa a ter um
cômodo para dormir, outro para a higiene corporal, outro para o preparo
dos alimentos, outro para excretar. O corpo em sua transformação da idade
média para a idade moderna passa a ser propriedade individual,
instrumento de treinamento, de disciplina, passa a se articular e fundir-se
entre o processo da técnica e dos recursos tecnológicos, juntamente com o
consumo desses bens de produção para os corpos livres da moral, com o
advento da teoria liberal capitalista, possível de regeneração estética,
cirúrgica ou genética.
Corpo este que só poderá morrer por acaso.
O corpo numa visão antropológica identifica que não existe sociedade
que não perfure ou inscreva de alguma forma o corpo de seus membros,
cada uma delas se especializa em determinados tipos de corpos para a
produção de insígnias da identidade grupal. Cada cultura modela ou fabrica
à sua maneira um corpo humano. A obesidade e a magreza, bronzeamento
ou clareamento de pele, tatuagens, cortes de cabelo, etc., encontram-se
nesse contexto, que nem sempre estão relacionados à saúde. O corpo é
consciente e inconsciente, ou melhor, o cérebro seleciona e processa as
informações que lhe são fornecidas pelos órgãos dos sentidos, que são
submetidos a uma gramática culturalmente estabelecida. Do feudalismo
ao capitalismo, o poder sobre o corpo produziu saberes que vão do
refinamento dos bons hábitos corporais criados pela Aristocracia da corte
européia na Idade Média ao aprimoramento das técnicas corporais pela
classe média burguesa em ascenção, com o liberalismo econômico na Idade
Moderna. O corpo no século XVIII passa a ser uma apropriação do saber
médico. A loucura e a doença são confinadas em instituições capacitadas
para esse destino.

Considerações finais

A autora conclui o trabalho após uma investigação arqueológica do


arquivo que compõe as diferentes estruturas de saberes que compõe a
investigação desse conhecimento. Ela interroga se o poder médico ao
enunciar a questão da epidemia da obesidade, está denunciando o caos
global, a impotência em imprimir nesse sujeito a ordem da nova estética e
“o coloca numa instituição”, impossibilitando-o de ter uma vida com
alguma qualidade, com a sublimação em algum nível, das pulsões sexuais.

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Numa cultura do excesso, é difícil o desejo de conviver com a falta, inclusive


necessária para a saúde. Na clínica atual, do gozar a qualquer preço, o
paciente obeso não deseja aprender uma reeducação alimentar e exercícios,
mas almeja uma medicação mágica e a cirurgia bariátrica.
Estará a Psicanálise, no setting institucional, na interconsultoria,
oferecendo um instrumento de ajuda numa equipe multidisciplinar,
capacitando uma equipe de saúde que não conhece o discurso da relação
médico – paciente, dos mitos e do império do gozo? Estará a Psicanálise
no setting individual do ambulatório e do consultório, buscando nesse
corpo tatuado pelo rito, esse tempo mítico feminino esquecido da mulher?
O sentimento de vazio existencial (a clínica da angustia), produto de
uma sociedade em que tudo é explicado pelo discurso científico, em que
falta o élan vital, uma cultura sem Deus, é preenchido pelas drogas - pela
compulsão das compras - pelo alimento em excesso - pelas cirurgias
plásticas - pelo lazer a todo custo – por muito trabalho - pelas inúmeras
academias de ginásticas - pelas tatuagens, pelo milagre da eterna juventude
como se o envelhecimento e a morte não existissem.
A anorexia nervosa, a bulimia nervosa – o transtorno do comer
compulsivo esporádico - a obesidade seriam inscrições condensadas nesses
corpos sem a história da pessoa, de sua família, de sua comunidade e de
sua ancestralidade?
O assunto é multidisciplinar, o que proporciona a pesquisa em diversas
áreas de saberes.
A exigência do desempenho e da escultura do corpo na sociedade atual
exclui os portadores de obesidade no processo de socialização desde a
infância e a fixação do sintoma no corpo no arco reflexo alimentar, condu-
zindo ao aumento de incidência dos demais tipos de transtornos alimen-
tares. Como fica a qualidade de vida desses pacientes?
O Psicanalista e os diferentes profissionais de saúde precisam ser
capacitados nessa área do saber.
Concluindo citarei o que Naomi Wolf comenta em o Mito da Beleza: A
cultura moderna reprime o apetite oral da mulher da mesma forma que a
cultura vitoriana reprimia o apetite sexual feminino.

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corporais. Revista dos pós- graduandos de sociologia daUFP- n.2, junho
de2002 - Disponível em <Par’a’aiwa> julhode 2006.

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Lesões corporais e trauma


Sara Angela Kislanov*

“The only revolutionary force is


the force of human creativity”
Joseph Beuys

Resumo
O trabalho apresenta aspectos teóricos e clínicos sobre lesões
corporais e trauma originados a partir de uma área específica do
corpo: o rosto. Desenvolve o tema com apoio nas noções de
desamparo, trauma, identificação, ilusão, um “rosto estranho” e
função especular. Do ponto de vista da clínica, destaca o papel do
terapeuta, a dimensão corporal da transferência e o holding como
vias de acesso ao processo de reconstrução do rosto.
Palavras-chaves: desamparo, reconstrução da face, psicanálise.

Summary
Regarding the knowledge and understanding of traumatic events,
the theme grows supported ideas of helplessness and trauma, by
the current meaning of scheme and body image, and by the

*
Psicanalista, membro efetivo e docente da SPRJ. Doutora em Psicologia pela UFRJ.
Psicóloga do Hospital dos Servidores do Estado. Professora Supervisora do Depto. de
Psicologia da PUC-Rio.

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subjective construction of the face, which by its turn requires


elucidation of illusion and identification processes, and of the
importance of the mirror ring function in the facial reconstruction.
It was equally reconsidered both the “uncanny”, non-familiar face
as the reinterpretation of this uncanny face, and of the chaos in an
attempt to set up another structure and ways to speed up the
dynamic of the process of the reconstruction of the patient. From
the clinic point of view, the transference, in addition to the holding,
is characterized as a tool of access to the patient, as a possible way
to reach the identification of a new face, of the self physical image
and of itself, making reconstructions possible.
Keywords: helplessness, facial reconstruction, psychoanalysis.

As idéias apresentadas neste trabalho originam-se de minha tese de


Doutorado intitulada Em busca de um rosto – Uma clínica psicanalítica
com pacientes submetidos à cirurgias reconstrutoras da face. Tratam-
se, portanto, de lesões corporais em uma área bastante específica, o rosto.
Trabalhando junto a um Serviço de Microcirurgia Reconstrutiva, tomei
contato com uma paciente que, muito jovem, cerca de dezoito anos, sofreu
um grave acidente automobilístico que culminou com o desfiguramento
de seu rosto.
Tendo passado por inúmeros serviços cirúrgicos e várias propostas de
reconstrução de seu rosto, exclamou em sua primeira consulta com o
cirurgião que lhe propôs uma reconstrução a partir do interior para o
exterior: “gostei daqui porque é de dentro para fora”. Presente também à
consulta, e ouvindo sua declaração, de imediato lembrei-me do conto de
Machado de Assis, O espelho: “Nada menos de duas almas. Cada criatura
humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra
que olha de fora para dentro... a alma exterior pode ser um espírito, um
fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação... quem perde
uma das metades, perde naturalmente a metade da existência; e casos há,
não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira”.
Segundo Winnicot toda a experiência é tanto física quanto não-física.
As idéias acompanham e enriquecem a função corporal e o funcionamento
corporal acompanha e realiza a ideação.

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Ficou claro com esta declaração da paciente que seria necessária


também uma reconstrução de seu mundo interno para que pudesse voltar
a reconhecer-se, a resgatar o sentimento de si mesma.
A partir daí, nasceu meu interesse no tema e passei a desenvolver uma
pesquisa junto a um serviço de Cirurgia Buco-Maxilo Facial, na cidade do
Rio de Janeiro, escutando e entrevistando pacientes acometidos por graves
desfiguramentos súbitos da face provenientes de diferentes tipos de
acidentes, a maioria acidentes de trânsito, mas também por outros
acidentes geralmente ocasionados por situações de violência.
A proposta da pesquisa foi a de acompanhar esses pacientes durante o
processo de reconstrução de seu rosto, inclusive durante as etapas
cirúrgicas, no pré e no pós operatório.
A gravidade da situação e a escuta apontaram para a noção de desam-
paro (hilflosigkeit) levantada por Freud. Fragilidade, desproteção e extrema
dependência a um outro, em função da “turbulência” pulsional que ocorre
por ocasião do nascimento e para a qual a única saída será através de um
auxílio externo é, basicamente, o que apresenta Freud inicialmente sobre o
estado de desamparo. Posteriormente, sobretudo em seus derradeiros textos,
aponta ainda para a fragilidade e vulnerabilidade humanas diante dos
caminhos da vida, da civilização, falando também de nossa pequenez frente
à Natureza. Nomeia tais condições em vários e diferentes momentos como
desamparo. Amplia tal situação, portanto, analisando-a mais detalhada-
mente quanto às vicissitudes do sujeito frente ao social, à civilização.
Já presente no Projeto Para uma Psicologia Científica (1950 [1895])1,
descoberto cinqüenta anos após a morte de Freud, a noção de desamparo
acompanha praticamente toda sua obra, tendo obtido grande destaque
sobretudo em Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926 [1925])2, sendo pilar
sustentador da metapsicologia da angústia.
Registra-se aqui a definição encontrada no Vocabulário da Psicanálise
de Jean Laplanche e J.B. Pontalis3 que nos diz ser o desamparo um termo
usado na linguagem corriqueira, porém que traz um significado particular
em Freud. Tais autores definem o estado de desamparo como:

1
FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. In: ESB. Vol. I. Rio de Janeiro:
Imago, 1977 (1950[1895]).
2
FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade. In: ESB. Vol. XX. Rio de Janeiro:
Imago, 1976 (1926[1925]).
3
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.

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“Termo da linguagem comum que assume um sentido específico na


teoria freudiana. Estado do lactente que dependendo inteiramente
de outrem para a satisfação de suas necessidades (sede, fome), é
impotente para realizar a ação específica adequada para por fim à
tensão interna. Para o adulto, o estado de desamparo é o protótipo
da situação geradora de angústia”. (LAPLANCHE e PONTALIS,
1994, p. 112)

No Projeto Para uma Psicologia Científica (1950 [1895], p. 422), ao


falar sobre como se dá a experiência da satisfação, em função da grande
tensão provocada por estímulos endógenos que exigem descarga, Freud
ressalta que esta somente poderá acontecer através de uma intervenção,
por uma “alteração do mundo externo”, através de uma “ação específica”.
Coloca que sendo o organismo humano impotente, em princípio, para por
si só resolver o problema, necessitará de “assistência alheia”. Assim sendo,
tal modo de descarga que se expressava sobretudo nesse momento por via
motora, constituir-se-á em “importantíssima função secundária da
comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte
primordial de todos os motivos morais”.
Já se evidencia aqui o quanto a constituição de nossas singularidade e
subjetividade residem também na dependência daqueles que nos cercam
e por extensão à sociedade e à cultura a qual se pertence. Buscar
comunicação, permitir e aceitar o intercâmbio interior e exterior, lidar
com nossa onipotência e nossa impotência impõe-se à humanização..
É realmente em Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926 [1925]) que
Freud ressalta a noção de desamparo, apontando-a insistentemente. Nesse
momento de sua obra, Freud já havia realizado a reformulação do aparelho
psíquico configurando-o em termos de ego, id e super-ego. Modificara
também sua teoria das pulsões, colocando como oponentes pulsão de vida
e pulsão de morte. Mas não parecia convencido sobre a origem da angústia,
da maneira como a compreendia até aquele momento.
Será então, investigando sobre a origem da angústia que Freud utiliza-
se com freqüência do termo desamparo. “A função da ansiedade é ser um
sinal para a evitação de uma situação de perigo”. (p. 162) Como a “ansiedade
primeva”, (p. 161) designa a angústia do nascimento: aquela que ocorre
segundo ele, “por ocasião de uma separação da mãe” (p. 161).
Ao tratar da angústia e sua ligação com as neuroses, Freud vai apontar
que, se algo de outra ordem acontece no percurso natural da excitação
sexual, então:

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“a ansiedade surge diretamente da libido em outras palavras, que


o ego fica reduzido a um estado de desamparo em face de uma tensão
excessiva devido à necessidade, como ocorreu na situação de
nascimento e que a ansiedade é então gerada” (FREUD, (1926
[1925], p. 165).

No mesmo artigo, quando fala sobre a importância do fator biológico


na etiologia das neuroses, coloca que as primeiras situações de perigo estão
relacionadas em muito ao biológico – grande período de tempo em que a
criança permanece em condições de desamparo e dependência – criam a
necessidade de ser amado que acompanhará a criança durante o resto de
sua vida. (p. 179)
Continuando a tecer considerações sobre a origem da angústia e, ao
distinguir angústia realística de angústia neurótica, Freud coloca que o
verdadeiro perigo é aquele que se conhece, e que a angústia realística é,
então, a angústia por um perigo de tal ordem.
Para Freud parece não fazer tanta diferença que o perigo seja físico ou
psíquico, pulsional e, portanto, interno. O que realmente importa é que
este perigo vai traduzir-se no sujeito como desamparo, constituindo-se
numa situação traumática.
Tal perigo, em Freud, será sempre derivado da angústia do nascimento,
dependendo esta da intensidade do evento e da suscetibilidade do sujeito.
Ainda na perspectiva freudiana, a criança de colo necessita da presença
da mãe ou sua substituta, pois já sabe, por experiência, que esta poderia
satisfazer suas necessidades sem demora.
O perigo contra o qual a criança deseja proteção é o perigo da não-
satisfação. Uma crescente tensão devido à necessidade, contra a qual a
criança é impotente pode vir a acontecer, caso esta necessidade não seja
atendida. Tal situação remete a criança a algo análogo à experiência do
nascimento. Tanto a vivência da não-satisfação, quanto o nascimento,
apresentam uma característica em comum: a perturbação econômica por
um acúmulo de quantidades de estímulo que necessitam ser eliminadas.
Freud ressalta que, no decorrer da vida do sujeito, as situações de perigo
originadas das várias etapas de seu desenvolvimento, a saber: o perigo de
vida, quando o ego da pessoa é ainda imaturo, o perigo de perder o objeto
na primeira infância; o perigo da castração na fase fálica e o medo de seu
próprio superego até o período de latência constituem-se em perigo de
desamparo psíquico. Todas estas situações de perigo que são, por si só
também determinantes de angústia, podem continuar em paralelo pela

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vida e fazer com que o ego a elas reaja em situações posteriores, ou ainda
que várias delas possam entrar em ação, em simultaneidade.
Freud, ao relacionar a origem da angústia a uma situação de perigo,
afirma que os sintomas estabelecem-se para tirar o ego de tal situação. Se
houver um impedimento da expressão da angústia através de sintomas, o
perigo de fato se concretiza, isto é: “uma situação análoga ao nascimento
se estabelece na qual o ego fica desamparado em face de uma exigência
instintual constantemente crescente – o determinante mais antigo e
original da ansiedade”. (p. 168)
Os pacientes com os quais tive contato, encontravam-se, na maioria
das vezes, extremamente desprotegidos e dependendo inteiramente dos
outros para satisfazerem suas necessidades mais básicas. Impedidos de
locomoverem-se e alimentarem-se sós, em alguns momentos ficavam
totalmente dependentes do cuidado de outros. O próprio processo de
hospitalização, remete o paciente à condição de dependência, de regressão.
Freud nos ensinou que uma situação de perigo é uma situação “reconhe-
cida, lembrada e esperada de desamparo”.
Paradoxalmente, ao encontrarem uma equipe disposta a auxiliá-los na
reconstrução de seus rostos, de responder aos seus “gritos de socorro”, os
pacientes apresentam tal determinação e força que impressionam a todos
os que se dedicam aos cuidados desses pacientes.
Nas situações limites, parecem freqüentes afirmações tais como: “Não
vou desanimar” – frase dita pelo piloto italiano de Fórmula I, Alessandro
Zanardi, que teve as duas pernas amputadas após sofrer um acidente
quando seu carro foi atingido por um outro a 320 km por hora. A desperso-
nalização, o perigo e a angústia de não mais se encontrar, não reconhecer-
se, são companheiros freqüentes desses pacientes. Portanto, desamparo e
vulnerabilidade fazem parte do seu dia a dia.
Parece desnecessário apontar a importância do rosto para a imagem
que cada um tem de si mesmo. Tornou-se então relevante para o trabalho
considerar a construção subjetiva do rosto.
Parti da idéia de que a imagem que cada um tem de seu próprio rosto é
uma ilusão. É possível a alguém acordar um dia e se achar lindo e no outro
dia achar-se horroroso. Assim é possível também pensar na possibilidade
de reconstrução para um rosto.
A identificação é, com certeza, o primeiro conceito a ser considerado
nesta construção subjetiva do rosto. De início, o bebê identifica tudo o que
se assemelha ao rosto humano, inclusive máscaras. Posteriormente é que
reconhecerá o rosto de sua mãe ou substituta, identificando-se, para em

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seguida reconhecer-se a si mesmo, identificando como seu, um deter-


minado rosto.
Será o rosto da mãe ou de alguém que a substitua que funcionará como
um primeiro espelho. Como nos disse Donald Winnicott: “Se olho, sou
visto, logo existo”.
A esses pacientes foi necessário oferecer um espelho, não tanto o espelho
físico, mas sim “rostos-espelhos”, nos quais pudessem se ver e serem vistos
e com os quais pudessem identificar-se, um espelho de dupla face:
formando superfície a partir de suas imagens corporais e ao mesmo tempo,
criando uma imagem a partir do olhar do outro.
A ilusão apontada por Winnicott, ou seja, sem a qual não existe
“significado na idéia de uma relação com um objeto que é por outros
percebido como externo a esse ser” (Winnicott, 1978, pág. 402), ou seja, a
ilusão formada a partir dos fenômenos transicionais e que constitui-se em
uma área intermediária entre o “de dentro para fora” e “de fora para
dentro”, e também a ilusão mencionada por Freud a qual deriva-se dos
desejos humanos de proteção através do amor de um pai “todo poderoso”,
que permita suportar seu desamparo foram consideradas.
O rosto existe enquanto parte de um corpo. Pensar então a construção
psíquica da imagem corporal tornou-se fundamental para o trabalho. A
autora privilegiada para tal foi Françoise Dolto que marca uma diferença
entre esquema corporal e imagem inconsciente do corpo. Dolto afirma
que o olhar de um rosto humano será o primeiro referencial “identidade
valor que a criança terá”.
Para Dolto, a imagem inconsciente do corpo começa realmente no útero
materno. Segundo ela, a mais arcaica imagem que possuímos de nosso
corpo é a imagem respiratória, que por sua vez é também uma das
expressões mais puras das pulsões de morte. Durante o sono, reinam as
pulsões de morte compreendidas como se colocássemos o desejo entre
parênteses e então é a imagem respiratória que passa a prevalecer.
Dolto (1992) faz uma diferença entre esquema corporal e imagem
corporal. Diz:

“esquema corporal é em princípio, o mesmo para todos os indivíduos


(da mesma faixa etária, sob o mesmo clima) da espécie humana. A
imagem do corpo, em contrapartida, é peculiar a cada um, está
ligada ao sujeito e à sua história. Ela é específica de uma libido em
situação de um tipo de relação libidinal”. (DOLTO, 1992, p. 106)

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Assim, seguindo seu pensamento, o esquema corporal, é em parte,


inconsciente, mas ao mesmo tempo, pré-consciente e consciente, enquanto
que a imagem do corpo é essencialmente inconsciente. Esta última vai se
constituir na integração das experiências emocionais do sujeito inter-
humanas, repetidamente vividas através das sensações erógenas de
eleições arcaicas ou atuais. Segundo a autora, é graças à imagem do corpo
sustentada e em ligação com o esquema corporal do indivíduo, que este
pode entrar em comunicação com um outro, seja para manter contato ou
para evitá-lo. Ainda com Dolto, será na imagem do corpo, suporte do
narcisismo, que o tempo se cruza com o espaço e que o passado inconsciente
ressoa na relação presente (id. ibid., p. 15).
A imagem do corpo está ligada ao desejo e não somente à satisfação de
necessidades. O esquema corporal tem como fonte as pulsões e o lugar de
sua representação, é a imagem do corpo. A imagem do corpo organizar-
se-á sempre no espaço inter-relacional. Não há solidão humana, para Dolto,
que não se acompanhe da memória de um contato com um outro antro-
pomórfico.
A partir então do reconhecimento do rosto que o espelho revela à criança,
não será mais possível dissociá-lo de sua identidade, integrada ao seu corpo,
tórax, tronco, e membros, tornando-a semelhante aos outros humanos.
Mas afinal de contas o que significa então perder um rosto? De imediato,
o que se pode afirmar é que o desfiguramento súbito do rosto é um evento
traumático, impactante e esfacelador da identidade, já que o fragmento
implica na totalidade.
O traumático é definido por excelência por sua intensidade, pelo
excesso. É comum os pacientes relatarem que não se lembram de nada da
hora do acidente, que não entendiam nada do que havia acontecido.
Trauma em grego é ferida, assim as feridas físicas e psíquicas que advêm
do desfiguramento do rosto são inúmeras e inimagináveis. O significado
atribuído ao evento traumático terá representações e significantes próprios
a cada sujeito. Nunca os encontros traumáticos produzem efeitos idênticos,
exatamente por serem encontros. O traumático exige o dizer e alguém que
escute e reconheça o outro enquanto sujeito. Falando é possível transpor
a dor do sofrimento.
Entretanto, todos os pacientes entrevistados desejavam e lutavam pela
reconstrução de seu rosto. Nas situações extremas, a dor não é só a dor de
perder, mas a autopercepção que o eu tem do transtorno interno desen-
cadeado pela perda. Diante de um “desequilíbrio” pulsional, todas as
energias pulsionais se reúnem. Nas situações extremas, as forças reunidas

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pelos pacientes impressionam. A gravidade da situação é tão grande que o


próprio acontecimento traumático já é o “fundo do poço”. Não há mais
nada a perder. Só resta salvarem o que permanece, sobretudo a vida.
Considerei que a enorme força que foi possível perceber nesses pa-
cientes, estava em concordância com o que Natalie Zaltzman denominou
pulsão anarquista (Zaltzman, 1994, p. 64). Ou nas palavras de Zaltzman:

“Numa relação de forças sem saída, só a resistência nascida das


próprias forças pulsionais de morte pode afrontar a ameaça de
perigo mortal. Chamo este fluxo da pulsão de morte mais
individualista, mas libertária, de pulsão anarquista”.

Ou ainda nas palavras do piloto de Fórmula I, Alessandro Zanardi:


“Estive muito perto de morrer. Quero agora viver com intensidade. Perdi
as pernas, mas não a vida”.
Assim, a reconstrução do rosto se impõe, a dialética da vida continua.
É impossível permanecer com um rosto “estranho”.
Um rosto “monstruoso”, que não mais se esconde, mas que ao contrário,
se evidencia. Tornam-se por suas deformidades, pela desfiguração que
apresentam, pelo “estranho” de seus rostos, fascinantes, e verdadeito ponto
de atração para outros. “Todos olham”, relatam os pacientes. O estranho
(unheimliche) como apontou Freud é aquilo que nos é muito conhecido e
familiar, além de ser tudo que deveria ter permanecido oculto mas veio à
luz, ou como diz Julia Kristeva, o estrangeiro nos habita, é a face escondida
de nossa identidade. Assim um rosto “estranho” que não mais se esconde,
mas que ao contrário se apresenta.
Assim, ao sentirem-se confusos com a imagem de seus próprios rostos e
portanto também com suas identidades, os pacientes falam o quanto se intimi-
dam e se envergonham ante os olhares dos outros. Muitas vezes, ao tenta-
rem ocultar suas deformidades com disfarces, as evidenciam ainda mais.
Por tudo isso, a esse rosto “estranho” impõe-se reconstruções tanto pelo
aspecto funcional quanto pelo social, o que não exclui, ao contrário, inclui
o reencontro consigo mesmo.
Acolher o paciente é o que se impõe. O acolhimento será o contraponto
ao desamparo e a afetividade ajudará a preencher o vazio das rejeições,
inclusive aquelas mais antigas. O espaço de escuta constitui-se por si só
num espaço terapêutico. O holding é o recurso que o terapeuta adota para
se contrapor ao desamparo, respondendo assim às necessidades primárias
do paciente. A reconstrução se dará pela via da transferência do sensível.

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A reconstrução, que possibilita também o reencontro consigo mesmo,


é possível sobretudo através da transferência.
Considerando-se que transferências encontram-se presentes nas
relações humanas tudo que possui um sentido humano, é possível utilizá-
la também no “setting hospitalar”, entenda-se por setting todo espaço que
inclua o terapeuta e o paciente capaz de fazer brotar estruturas profundas
geradoras de sentido humano. Ao terapeuta caberá, sobretudo, oferecer
um holding que possibilite ao paciente ser olhado pra se ver. Caberá
também como ensinou Fabio Hermann, ser therapon – o amigo que
acompanha o herói na sua aventura arriscada.
Ao definir desse modo a função do terapeuta, Herrmann refere-se aos
gregos, quando estes nomeavam de Therapon as figuras que acompanhavam
os heróis. O termo é um substantivo derivado do verbo Therapein que, por
sua vez é de onde se origina a palavra tão conhecida e utilizada-terapeuta.
Therapein remete a “cuidar de”, “servir a”, “tratar de”. (p. 142)
Compactua-se aqui com Herrmann ao se considerar tais expressões
abordadas por esse enfoque, na medida em que se tornam relevantes para
as especificidades da clínica proposta nas reconstruções “de dentro para
fora” – seja pelo processo transferencial, seja por uma via possível de
reconstruções à qual se articulará a transferência, considerando-se a
especificidade dos sujeitos da pesquisa.
Tal especificidade constitui-se, principalmente, pelo fato de ser o corpo
acometido em parte tão especial e essencial: o rosto. Como já mencionado,
o rosto humano é a imagem primeira à qual o sujeito se identifica e através
da qual irá constituir-se e posteriormente reconhecer-se. Assim entende-
se que as transferências que mais contribuirão para as reconstruções “de
dentro para fora” são as que remetem ao nível do sensível, às primeiras
etapas de constituição de um si mesmo nas quais o corpo sente, percebe,
identifica e por fim ajuda a simbolizar. São exatamente essas transferências
relativas ao sensível, as que mais se apresentam e devem ser utilizadas na
clínica com os pacientes destes quadros.
Em seguida, pequenas vinhetas, para ilustrar a clínica com estes
pacientes. Numa determinada ocasião, ao entrar no quarto de Maria, que
se encontrava no pós-operatório de uma de suas inúmeras etapas
cirúrgicas, por solicitação da própria paciente, puxei o cobertor de modo a
que cobrisse seus pés que se encontravam fora do cobertor e nos quais
Maria dizia sentir frio. Maria então disse: “Nossa, a senhora fez igualzinho
à minha mãe, só que as mãos dela eram geladas, e as da senhora são
quentinhas, esquentam antes mesmo do cobertor”.

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Apesar da informalidade aparente, imposta pelo próprio “setting”, algo


formal, no sentido de propiciar o surgimento de uma forma, ocorre num
momento como esse.
M., que sempre relatava com preocupação que sua mãe era muito
desligada, e que esse desligamento representava-se em Maria por uma
mãe “fria”, nesse momento e pelo próprio aconchego do cobertor, passa a
ter possibilidades, pela transferência, ao identificar-se com um objeto “que
esquenta mesmo antes do cobertor”, encontrar continente para seu “frio”,
seu desconforto.
Tendo passado por grave situação de desfiguramento traumático de
seu rosto, entende-se o que Maria necessita. Depreende-se, de seu pedido,
que se cuide de suas extremidades – e o rosto é uma extremidade –, que o
terapeuta se “ligue” nela, contribuindo para que, mesmo nas situações-
limite, sobretudo nas que vida e morte se tangenciam, encontre um outro
na “temperatura” solicitada com o qual sintonize, permitindo um
predomínio de experiências de vida. Para tal, é necessário que, através da
transferência, o paciente encontre um espelho humano integrador, de
modo que possa reconstruir uma representação somato-psíquica, a qual
se encontra no mínimo esfacelada. Em outras palavras, uma representação
de si mesmo, atualizada no agora.
Como aponta Ivanise Fontes (2001) estamos no terreno da “dimensão
corporal da transferência”, no qual determinadas experiências só poderão
ser rememoradas pela via do sensorial, visto terem sido impressas neste
registro, tornando-se portanto inacessíveis à representação.

“O processo transferencial favorece extraordinariamente a


instauração de movimentos regressivos, evidenciando uma via
sensorial inerente à comunicação analista-analisando. As noções
de regressão e repetição em psicanálise permitem a compreensão
de que certas manifestações corporais são a expressão de uma
memória corporal redespertada”. (FONTES, 2001, p. 18)

Continuando com Fontes, a autora aponta que determinadas experiên-


cias só poderão ser rememoradas pela via do sensorial, visto que justamente
por terem sido impressas em tal registro, tornam-se portanto inacessíveis
à representação. Acredita-se que permaneçam “silenciosas”, porém só com
o lado “incômodo” do silêncio.
As relações transferenciais que se estabelecem entre paciente e
terapeuta nas situações de uma internação hospitalar referente ao corpo

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organizam-se, na maioria das vezes, em níveis muito arcaicos. A própria


condição da internação hospitalar, favorece a regressão do paciente a tais
níveis transferenciais.
Maria remetia-se repetidamente a sua mãe como sendo muito
“desligada” para com ela, Maria. Em muitas ocasiões, durante seu
acompanhamento, dizia que em criança, ela é que tinha que cuidar da mãe,
e que isso ocorria também agora, já na vida adulta. Nestes “momentos
transferenciais” relatados, Maria deixou-se cuidar. Estabeleceu-se, entre
terapeuta e paciente, uma relação de confiança.
Com estes exemplos, pretende-se mostrar que, ao aventurar-se junto a
esses pacientes, determina-se também ao terapeuta pensar a transferência
no que esta relaciona-se à questão nomeada por Gilberto Safra (1999, p.
119) da “materialidade do self”. Refere-se o autor aos fenômenos transicio-
nais apontados por Winnicott que implicam ainda segundo Safra, no
encontro da vivência subjetiva com a materialidade do mundo percebido
objetivamente. Portanto, quando o “holding” é oferecido, torna-se possível
o encontro paciente-terapeuta através da identificação, da ilusão, da
transicionalidade, e então a criatividade humana advém e o paciente
remete-se à “sensação individual de realidade da experiência do objeto”
(Winnicott). O mundo é criado de novo e o rosto estranho pode ser
reconhecido, e percebido como integrado a si mesmo. Assim é possível
então a reconstrução de um rosto estético, de um rosto psíquico e das
relações destes com o mundo.

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ENSAIOS

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Velocidade e repressão
Marcelo Coelho*

Resumo
As relações entre infância e a experiência do tempo são analisadas
neste artigo a partir de alguns poemas de William Wordsworth e
do pensamento de Bergson. Procura-se definir de que modo, a partir
de um fluxo contínuo de impressões inconscientes, mecanismos como
ritmo, interrupção, narrativa e medo se tornam necessárias à
aquisição do comportamento adulto.
Palavras-chave: infância, temporalidade, medo, Wordsworth,
Bergson.

Summary
In this essay, the relationship between childhood and temporality
is analysed taking as a point of departure some poems by William
Wordsworth as well as Bergson’s philosophy. The author tries to
describe how the subject, from a continuous stream of unconscious
impressions, acquires the manners and discipline needed in adult
life through the devices of rythm, interruption, narrative and fear.
Keywords: childhood, temporality, fear, Wordsworth, Bergson.

Não há quem não reclame, hoje em dia, da falta de tempo —e todos os


ganhos de produtividade e eficiência que o progresso tecnológico é capaz
de nos assegurar parecem apenas contribuir para nossa maior exasperação,

*
Mestre em Sociologia pela FFLCH-USP e articulista da Folha de S. Paulo.

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para nossa incapacidade cada vez mais intensa de cumprir prazos ou de


esperar por eles.
Pretendo, neste artigo, relacionar o modo com que experimentamos
cotidianamente essa pressa, esse encurtamento e essa aceleração da
temporalidade, com outro tipo de queixa, igualmente generalizada no dia-
a-dia das classes médias e altas brasileiras: a saber, a dificuldade vivida
por pais e educadores quando se trata de impor regras e limites básicos de
comportamento às crianças pequenas.
Tenho tratado esparsamente desse tema, nos textos que escrevo
regularmente na Folha de S. Paulo e no meu blog da Folha Online,
intitulado Cultura e Crítica. Nessa condição de articulista, e também na
condição de pai de dois meninos pequenos (de cinco e três anos e meio),
fui convidado a fazer uma breve palestra no Instituto Sedes Sapientiae de
São Paulo, durante as comemorações dos dez anos da cadeira de Psicanálise
Infantil daquela instituição.
Retomo aqui algumas idéias e impressões expostas naquela palestra,
adotando contudo um outro caminho expositivo. Temporalidade e infância,
impulso e disciplina, duração e ritmo –conceitos cuja interrelação espero
esclarecer ao longo do texto—serão aqui analisados prioritariamente a
partir de alguns exemplos literários, cuja leitura demandará, reconheça-
se desde logo, vagar e paciência dos que se dispuserem ao percurso.

O Prelúdio [The Prelude], de William Wordsworth (1770-1850), é um


longo poema autobiográfico que o escritor romântico inglês começou a
escrever por volta dos trinta anos de idade, sem chegar a publicá-lo em
vida. Um de seus temas principais, presente aliás nas obras mais
significativas do poeta, é o do papel das primeiras impressões da infância
na constituição da personalidade adulta, e o do valor que adquirem, nas
primeiras fases da vida, determinadas experiências de comunhão e sintonia
com a natureza. Mesmo se aparentemente esquecidas ou obliteradas pelo
hábito e pela rotina, essas experiências constituem uma espécie de
repositório, de tesouro íntimo, que felizmente somos capazes, periodica-
mente, de reviver.1

1
Os pontos de contato entre o pensamento de Wordsworth e a obra de Proust, que saltam
à vista ao leitor contemporâneo, foram explorados por Georges Poulet, em seus Études
sur le Temps Humain.

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Nem tudo é idílico, entretanto, nas relações entre o menino e a natureza,


tais como lembradas pelo poeta adulto. A sensação do medo, da ameaça,
do perigo, parece ser tão importante quanto a do prazer para que a
experiência emocional do sujeito se fixe na memória. É esta, pelo menos,
a impressão suscitada pelos versos que passaremos a analisar.
No Livro 1 de O Prelúdio, Wordsworth considera que mesmo os terro-
res, os arrependimentos, as humilhações iniciais por que passamos
contribuem para elaborar aquela “tranqüila existência, que é minha quando
sou digno de mim” [the calm existence that is mine/when I am worthy of
myself]. E dá um exemplo disso.

Num poente de verão (...) encontrei


Um pequeno barco amarrado num chorão
Sob uma caverna rochosa, seu abrigo.
Logo soltei a amarra e, nele embarcando
Afastei-me da margem. Foi um ato furtivo
E de inquietante prazer; em meio à voz
Dos ecos das montanhas, meu barco deslizava,
Deixando para trás, a cada lado, pequenos
Círculos cintilantes pontilhados em meio à lua,
Que se mesclavam num só feixe de luz faiscante.
Mas como alguém que rema, orgulhoso
De sua perícia para atingir um ponto determinado,
Fixei diretamente a minha visão
No cimo do monte rochoso,
O confim absoluto do horizonte; pois acima,
Nada havia a não ser as estrelas e o céu cinzento.
O barco deslizava ágil; exultante,
Deitei os remos no lago silente;
Comecei a remar e o pequeno barco
Impelia-se lépido como um cisne;
Quando, por trás do penhasco rochoso, um pico
Negro e imenso, até então oculto pelo horizonte,
Como se tivesse o instinto de uma vontade poderosa,
Ergueu sua grande fronte. Remei e remei
E, crescendo em estatura, a forma soturna
Erguia-se entre mim e as estrelas;
E, como se tivesse vida própria,
Caminhando tal qual um ser vivo,

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Perseguia-me com seus gigantescos passos.


Virei o barco com os remos trêmulos
E, através das tranqüilas águas
Segui em frente no meu caminho
Rumo ao refúgio do salgueiro;
Ali mesmo deixei o barco, —
E pelos prados voltei para casa, circunspecto
E taciturno; mas após ter contemplado
Aquele espetáculo, por vários dias minha mente
Divagou, com um sentido difuso e vago com
Modos estranhos de ser; sobre meus pensamentos
Uma escuridão pendia, chamai-a solidão
Ou vazia desolação. Nenhuma forma familiar
Permanecia, nenhuma imagem das árvores,
Do mar ou do céu, nenhum matiz dos verdes prados;
Apenas formas imensas e poderosas que não vivem
Como homens vivos, assolavam minha alma
De dia, e transtornavam meus sonhos.2

2
One summer evening (...) I found/A little boat tied to a willow-tree/Within a rocky
cave, its usual home./Straight I unloosed her chain, and stepping in/Pushed form the
shore. It was aan act of stealth/ And troubled pleasure; nor without the voice/ Of
mountain-echoes did my boat move on;/Leaving behind her still, on either side,/ Small
circles glittering idly in the moon,/Until they melted all into one track/ Of sparkling
light. But now, like one who rows,/Proud of his skill, to reach a chosen point/ With an
unswerving line, I fixed my view/ Upon the summit of a craggy ridge,/The horizon’s
utmost boundary; far above/ Was nothing but the stars and the grey sky./She was an
elfin pinnace; lustily/ I dipped my oars into the silent lake,/ And, as I rose upon the
stroke, my boat/ Went heaving through the water like a swan;/When, from behind that
craggy steep till then/ The horizon’s bound, a huge peak, black and huge,/As if with
voluntary power instinct,/ Upreared its head. It struck and struck again,/ And growing
still in stature the grim shape/ Towered between me and the stars, and still,/ For so it
seemed, with purpose of its own/ And measured motion like a living thing,/ Strode after
me. With trembling oars I turned,/ And through the meadows homeward went, in grave/
And serious mood; but after I had seen/ That spectacle, for many days, my brain/ Worked
with a dim and undetermined sense/ Of unknown modes of being; o’er my thoughts/
There hung a darkness, call it solitude/ Or blank desertion. No familiar shapes/
Remained, no pleasant images of trees,/ Of sea or sky, no colours of green fields;/ But
huge and mighty forms, that do not live/ Like living men, moved slowly through the
mind/ By day, and were a trouble to my dreams. A tradução para o português é de
Alberto Marsicano e John Milton, em O Olho Imóvel pela Força da Harmonia, p. 30-41.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VIII – Número 1 – 2007

Advertências quanto ao risco de excessivo mecanicismo na leitura


psicanalítica de uma obra literária não precisam, naturalmente, ser reitera-
das aqui. À primeira vista, a descoberta pelo autor de um barco, ou de
uma gruta oculta por um salgueiro, sugeriria associações inconscientes
com o órgão sexual feminino; mas sem dúvida essa “tradução” simbólica
logo é desmentida pela seqüência do texto, o “ato furtivo e de inquietante
prazer” prescinde de qualquer referência, ainda que velada, à imagem da
mulher. Ao menino, basta seu pequeno barco, que vai sendo impelido pelos
remos, “lépido como um cisne” (heaving through the water like a swan).
É então que surge a visão de um grande pico rochoso, que também à
primeira vista poderíamos interpretar como encarnando a interdição do
pai primitivo, cujo poder fálico sobrepuja o do sujeito da narração. Mas
esse pico que cresce sempre mais, à medida que o menino rema, “como se
tivesse vontade própria”, também prescinde de qualquer referência externa
ao próprio eu. Gruta, barco, rochedo gigantesco não estariam substituindo,
assim, as figuras conhecidas do triângulo edípico; ou melhor, se esta
equivalência é a que primeiro vem à mente do leitor freudiano, interessa
notar que um nova camada de significado se sobrepõe a esta: os persona-
gens da mãe, do pai e do filho se fundem, por assim dizer, na mesma
experiência, em que a visão de um pai terrível, interdito assustador sobre
o prazer, surge como resultado do próprio prolongamento do ato masturba-
tório; o falo assustador que cresce, “como se tivesse o instinto de uma
vontade poderosa”, é o do próprio sujeito, que desconhece, desse ponto de
vista, a presença de um pai que lhe fosse externo. Desse ângulo, a conhecida
frase de Wordsworth, segundo a qual “o menino é pai do homem”3, ganha
inesperada concretude.
Seja como for, dessa experiência consigo mesmo resulta um saldo
desagradável para o poeta. Recordemos, entretanto, que a narrativa
procurava exemplificar de que modo a natureza, mesmo quando impõe
“arrependimentos” e “humilhações” [vexations] ao sujeito, termina por
integrá-las a uma personalidade harmoniosa. Assim, o trecho que estamos
analisando prossegue, e dá conta de como aquela sensação inicial de terror
foi superada pelo poeta, depois de ter vivido outros momentos, outras
ocasiões de contato com a natureza.

3
“The Child is father of the Man”, verso do poema “My heart leaps up when I behold”,
também incluído em O Olho Imóvel..., cit.

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... na geada, quando o sol


Se punha e, visíveis por várias milhas
As janelas das cabanas resplandeciam ao crepúsculo
(...) –para mim
Foi um tempo de euforia! Claro e alto
O relógio da aldeia badalava às seis – [eu] rodopiava
Orgulhoso e exultante, como um corcel
Que não quer ficar em casa. Com aço nos pés,
Silvávamos pelo gelo polido, em jogos
Cúmplices, imitando a caça.
Os prazeres do bosque, —A trompa ressonante,
A matilha latindo alto e a lebre perseguida.
E assim voávamos pela escuridão e o frio,
E nenhuma voz se calava; com o ruído
Entretanto, os precipícios soavam;
As árvores desnudas e cada gélido penhasco
Tilintavam como aço; enquanto os montes distantes,
No tumulto emitiam um som estranho
Não imperceptível de melancolia, enquanto as estrelas
Cintilavam ao leste e no poente
O céu alaranjado da tarde se esvanecia.
Muitas vezes, do alvoroço me afastava
Até um recanto silencioso, ou
Olhava ao redor, deixando o grupo,
Atravessar o reflexo de uma estrela
Que fugia, voando lépida à minha frente,
Brilhando sobre a planura gelada; muitas vezes,
Quando entregávamos nossos corpos ao vento,
E as margens sombrias a cada lado
Corriam na escuridão, girando ainda
A linha veloz do movimento, de repente,
Eu parava, detendo os patins com os calcanhares;
Mas os penhascos solitários não cessavam
De rodopiar –como se a terra tornasse
Visível seu diário girar!
Às minhas costas eles perfilavam-se esmaecidos
E solenes; contemplava-os até que tudo
Ficasse tranqüilo como um sono sem sonhos.4

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Finalmente, o poeta se dirige às “manifestações da Natureza” e às “visões


das montanhas”, que certamente lhe parecem sábias ao assombrar “por
vários anos meus folguedos de menino”,

Imprimindo em todas as formas os caracteres


Do perigo e do desejo; fazendo, dessa forma,
A superfície da terra universal
Com triunfo e alegria, esperança e temor,
Mover-se como o mar (...)5

Entre a descrição do passeio furtivo de barco, que se encerra com uma


apreensão do terror, e a dos jogos de patinação no gelo, que termina em
êxtase, não são poucas as simetrias. Na cena de inverno, o poeta vê “mar-
gens sombrias de cada lado” da planura gelada, como se ainda estivesse
remando um barco; vê também o brilho claro das estrelas, enquanto no
lago de verão surgem “pequenos/ círculos cintilantes pontilhados em meio
à lua”. Os ecos das montanhas distantes se repetem nas duas ocasiões. De
uma, entretanto, resultam angústias e “formas imensas” que transtornam
os sonhos do poeta, enquanto que da segunda vez tudo se resolve numa
tranqüilidade semelhante a um “sono sem sonhos”.

4
...in the frosty season, when the sun/ Was set, and visible for many a mile/ The cottage
windows blazed through twilight gloom,/ (...) for me/ It was a time of rapture! Clear
and loud/The village clock tolled six, —I wheeled about,/Proud and exulting like na
untired horse/ That cares not for his home. All shod with steel,/We hissed along the
polished ice in games/Confederate, imitative of the chase/And woodland pleasures, —
the resounding horn,/The pack loud chiming, and the hunted hare./So through the
darkness and the cold we flew,/And not a voice was idle; with the din/Smitten, the
precipices rang aloud;/The leafless trees and every icy crag/Tinkled like iron; while
far distant hills/Into the tumult sent na alien sound/ Of melancholy not unnoticed,
while the stars/ Eastward were sparkling clear, and in the west/ The orange sky of
evening died away./Not seldom from the uproar I retired/ Into a silent bay, or
sportively/ Glanced sideway, leaving the tumultuous throng,/To cut across the reflex
of a star/ That fled, and , flying still before me, gleamed/ Upon the grassy plain; and
oftentimes,/ When we had given our bodies to the wind,/ And all the shadowy banks on
either side/ Came sweeping through the darkness, spinning still/ The rapid line of
motion, then at once/ Have I, reclining back upon my heels,/ Stopped short; yet still
the solitary cliffs/ Wheeled by me –even as if the earth had rolled/ With visible motion
her diurnal round!/ Behind me did they stretch in solemn train,/Feebler and feebler,
and I stood and watched/ Till all was tranquil as a dreamless sleep.
5
Impressed, upon all forms, the characters/ Of danger and desire; and thus did make/
The surface of the universal earth,/ With triumph and delight, with hope and fear,/
Work like a sea (...)

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Que procedimento, podemos perguntar, possibilitou a substituição da


angústia pela euforia, do assombro pelo êxtase? Talvez não seja arriscado
demais dizer que o terror foi esconjurado pela experiência física da
velocidade, da aceleração do tempo: a rocha imensa e escarpada que surgia
aos poucos diante do menino remador é revista, na tontura de quem patina
no gelo, como algo rodopiante, não tão sólido, e sobretudo submetido aos
movimentos do próprio corpo do sujeito. Não se trata de um acontecimento
que adquire a aparência de uma força externa, dotada de vontade própria,
mas de algo que se submete ao ritmo imposto pelo narrador. Freando os patins
com os calcanhares, é certo que o menino vê ainda as montanhas se moverem
ao seu redor –mas sabe que esse movimento nasce de seu próprio corpo, não
do desvelamento gradual de uma paisagem, e de uma força, que desconhece.
Curioso que essa tomada de posse dos movimentos do corpo, por meio
dos quais todo o universo parece girar em volta do sujeito, seja descrita a
propósito de uma situação em que surgem para o autor objetos e metáforas
menos “naturais”, e mais “modernas”, do que as da cena angustiante que a
precedeu. O barco, os remos, o salgueiro, cedem lugar agora ao gelo e aos
patins: o grupo de jovens usava “aço nos pés”, e mesmo as “árvores desnudas”
e cada “gélido penhasco” parece emitir sons metálicos. Com efeito, uma tecno-
logia do entretenimento, capaz de produzir sensações vertiginosas, artificiais,
“modernas”, é o que assegura a vitória contra o assombro, produzido em
circunstâncias relativamente mais calmas, da experiência anterior.
Não seria este um fator a se levar em conta nos dias atuais, quando
justificadamente nos preocupa o exagero de crianças e adolescentes no
gosto dos videogames, dos esportes radicais, das experiências físicas apavo-
rantes em parques de diversão? Sem dúvida, um jogo de computador com
imagens de extrema violência não tem como não chocar quem o observa
de um ponto de vista exterior. É possível, entretanto, que diversos medos,
diversas experiências de terror real, estejam sendo exorcizadas pela criança
que manipula os bonecos assassinos na tela, precisamente... porque os
manipula, porque se apropria de seus movimentos; e também porque os
acelera, dissipando, na rapidez e na leveza, o que pudesse lhe marcar
dolorosamente a imaginação.

Escrevendo no final do século 20, o romancista Milan Kundera soube


relativizar com toques de humorismo esse poder, digamos, terapêutico
que a velocidade moderna parecia possuir aos olhos de um poeta como

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Wordsworth. Em La lenteur (A lentidão), o narrador e sua mulher, vivendo


na França, resolvem passar a noite num castelo adaptado como hotel
turístico. Na estrada, diz o narrador,

observo pelo espelhinho um carro atrás de mim. O pisca-pisca da


esquerda se ilumina e o carro inteiro emite ondas de impaciência.
O motorista está esperando a ocasião de ultrapassar; espera esse
momento como um gavião atrás de um pardal.
Vera, minha mulher, me diz: “Morre uma pessoa a cada cinqüenta
minutos nas estradas francesas. Olha só esses loucos que dirigem
por aí. São os mesmos que sabem ser extraordinariamente
prudentes quando alguém assalta uma velhinha na rua. Como é
que eles são tão corajosos quando estão dirigindo?”
O que responder? Talvez isto: o homem inclinado na sua motocicleta
só pode se concentrar no segundo presente de seu vôo; ele se agarra
a um fragmento de tempo cortado tanto do passado quanto do
futuro; foi arrancado da continuidade do tempo; em outras
palavras, ele está num estado de êxtase; nesse estado, ele nada sabe
sobre sua idade, sua mulher, seus filhos, suas preocupações, e, com
isso, não tem medo, pois a fonte do medo está no futuro, e quem se
libera do futuro nada tem a temer.
A velocidade é a forma de êxtase que a revolução tecnológica deu
de presente ao homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a
pé está sempre presente em seu corpo, está sempre obrigado a
pensar em suas bolhas, em sua falta de fôlego; quando corre sente
seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do
tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a faculdade
da velocidade a uma máquina a partir daí, seu próprio corpo fica
fora da situação e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea,
imaterial, velocidade pura, velocidade nela mesma, velocidade-
êxtase.6

Não por acaso, a arte moderna, e em especial a corrente estética do


futurismo, tinha no culto à velocidade uma de suas características mais
fundamentais. É a hélice de um avião quem toma a palavra no Manifesto
Futurista de Marinetti, exaltando a beleza da máquina, da vida esportiva

6
Milan Kundera, La Lenteur. Paris: Gallimard, 1995, p. 9-11. (trad. MC).

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e da guerra como superior à perfeição clássica da Vitória da Samotrácia.


O êxtase futurista, podemos pensar a partir de Kundera, é tanto sensorial
quanto intelectual: não se teme o futuro porque a velocidade o antecipa, já
traz para o presente; somos capazes de cultuá-lo porque, antecipando-o,
destruímos aquilo que ele tem de mais essencial, a sua “futuridade”, por
assim dizer; e destruímos com isso, igualmente, o presente –consumido
nessa “fuga para diante”—e o passado (em nome do futuro, Marinetti
clamava pela destruição dos museus e das bibliotecas). Só a guerra, com
efeito, seria então capaz de consumar o desejo estético dos futuristas.
Também na vida amorosa, observa Kundera, o culto à velocidade tem
efeitos paradoxais.

Lembro-me daquela americana que, há trinta anos, rosto entusiasta e


severo, espécie de apparatchik do erotismo, me deu uma lição
(glacialmente teórica) sobre a liberação sexual; a palavra que mais
retornava a seu discurso era “orgasmo”; eu contei: quarenta e três
vezes. O culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projetado na vida
sexual; a eficácia contra a ociosidade; a redução do coito a um obstá-
culo que é preciso ultrapassar o mais depressa possível para chegar
a uma explosão extática, único verdadeiro fim do amor e do universo.7

Novamente, a velocidade parece aqui ser resultado de uma conquista


técnica moderna, mais do que de alguma emancipação mais profunda no
plano do relacionamento interpessoal. Vence-se o medo, a inibição, por
meio de um processo em que se aceleram as ações do sujeito, a ponto de
sua própria experiência corporal concentrar-se num foco singular, e de a
experiência da passagem do tempo anular-se, consumir-se num instante
de ganho sem antes nem depois.

Passo agora ao tema central deste artigo, o das relações que, como pai
de dois meninos pequenos, tenho podido observar entre a experiência
moderna da passagem do tempo e o processo gradativo da imposição de
limites e de padrões de comportamento sobre as crianças da era do
videogame, do shopping center e da TV a cabo.

7
Ibidem, p.11.

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Ao saber de minhas aventuras recentes com a paternidade, muitas


pessoas que têm filhos mais velhos, adolescentes ou já adultos, costumam
me dizer: “aproveite, porque passa tão rápido...” Provavelmente também
eu venha sentir isso dentro de quinze ou vinte anos. Minha sensação no
momento, contudo, é nada passa tão rápido assim. Na cultura da
modernidade, a que fiz referência acima, nossa expectativa por resultados
imediatos também se nota no que diz respeito à educação infantil.
Queremos –e há técnicas para isso—que as crianças aprendam o mais cedo
possível a nadar, a ler, a usar computador, como se tudo fosse questão de
reduzir ao máximo o tempo de um processo, chegando em prazo recorde
ao desempenho, aos resultados; o próprio aprendizado sexual se acelera,
e quem sabe a própria epidemia contemporânea em torno da pedofilia (e
a epidemia das preocupações paranóicas com relação ao fenômeno) nada
mais seja, afinal, do que uma questão de pressa...
Em todo caso, no cotidiano familiar, tudo parece correr em câmera lenta
quando se tem filhos pequenos. Tenho a lembrança clara, por exemplo,
das dificuldades que há em fazer uma criança adormecer. Dos longos
passeios de carrinho, às vezes dentro do apartamento mesmo, na esperança
de que o bebê venha a dormir... das viagens intermináveis para o litoral,
com um ou dois meninos agitadíssimos, incapazes de se sentar na cadei-
rinha com o cinto de segurança, pedindo colo ou se jogando no assoalho
do carro.
Entretanto, nada mais natural do que considerar, uma vez passado esse
período, que transcorreu com grande rapidez. Há sem dúvida vários
motivos capazes de explicar tal sensação. O primeiro é que o desenvolvi-
mento da criança, ao contrário do nosso, é de fato muito intenso, e a criança
aprende muitas coisas em três ou quatro anos. Na nossa vida adulta, não
costumam ocorrer mudanças relevantes em tal intervalo de tempo; mas
os quatro primeiros anos de vida trazem, claro, um acúmulo de desen-
volvimento e de aprendizado gigantesco. Impressiona-nos, sem dúvida, a
quantidade de coisas concentradas no tempo, quando o vemos de fora;
mas não a velocidade do tempo, quando o vemos de dentro.
Uma segunda razão para acharmos que “tudo passa rápido” é que,
depois que tudo passou, o que temos em nossa mente não é mais a
experiência concreta, mas a memória isolada de alguns fatos, situações,
sensações. E a memória, na verdade, é uma operação mental que se dá no
plano do simultâneo, não do tempo vivido; sua linguagem é a de um quadro
mental, de uma imagem, mas não de um percurso lento, que transcorre
em meio a grandes períodos de “vazio”, de espera, de “não-acontecimento”.

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Este paradoxo, creio, é o que está por trás de um conto muito conhecido
de Jorge Luís Borges, Funes o Memorioso, cujo protagonista tem a
particularidade de ser incapaz de esquecer qualquer coisa; guardava a
memória de todos os mais insignificantes detalhes da própria vida. Podia
lembrar-se, por exemplo, de todas as minúsculas transformações das
nuvens que passam pelo céu numa tarde. A rememoração daquela tarde,
diz Borges, ocupou toda uma outra tarde da vida de Funes...
Certamente, estamos aqui diante de uma impossibilidade, ou de uma
armadilha ficcional. Pois uma mente que fosse capaz de reencenar todas
as variações das nuvens na memória teria de entregar-se, além disso, a
uma operação suplementar: teria, por exemplo, de saber que está se
lembrando daquelas nuvens; e também de prolongar voluntariamente a
sua experiência de rememoração. Haveria, portanto, um vaivém entre a
atenção dada a si mesmo (“estou me lembrando, foi exatamente assim”,
“vou continuar a me lembrar mais um pouco...”) e a atenção dada à “cena”
rememorada. Sem dúvida, a cada mudança de foco no seu pensamento,
Funes estaria interrompendo o processo contínuo de sua rememoração.
Estaria vendo uma seqüência —muito grande, é certo— de “fotos” daquelas
nuvens, mas não estaria vendo um “filme” com a duração exata, em “tempo
real”, do processo de sua transformação.
Se Funes estivesse vendo imaginariamente o filme daquela tarde, não
diríamos que ele estava lembrando-se daquela tarde, mas sim que estava
sonhando aquela tarde, sem consciência de cada um dos momentos de
sua rememoração. Para “ver” toda a tarde de novo, ele teria de se esquecer
de quem é, do ato voluntário de sua memória; e, depois de despertar desse
sonho, Funes não teria (justamente ele!) como se lembrar de que foi ele
quem sonhou. Uma memória consciente seria, então, necessariamente
fragmentada, e não contínua. Recupera o tempo, mas o vê parado, de fora,
não o vive de dentro...
É inevitável relacionar essa diferenciação entre a experiência de um
tempo “vivido de dentro” e a de uma memória fragmentada, descontínua,
com uma célebre passagem de Henri Bergson em Matière et Mémoire8
em que, muito a propósito, o filósofo francês utiliza como exemplo uma
situação de aprendizado.
Estou estudando uma lição, diz Bergson (e podemos imaginar que é
um texto que deve ser decorado, como os que havia nas escolas antigamen-
te). Leio a passagem uma vez, duas, três, e aos poucos algumas seqüências

8
In Oeuvres. Paris: PUF, 1959, p. 225 e ss.

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de palavras vão se cristalizando na memória, vão surgindo automatica-


mente; leio mais vezes, e depois de muitas repetições torno-me capaz de
reproduzir o texto inteiro mentalmente. No dia seguinte, na aula, posso
recitá-lo em voz alta: eu me lembro do texto, conheço-o de cor.
Suponha-se —e continuamos a parafrasear Bergson—, que eu trate agora
de rememorar como foi a tarde em que decorei a lição. Lembro-me, por
exemplo, que da terceira vez em que li o texto alguém tocou a campainha;
que determinado trecho me foi especialmente difícil de memorizar; que
depois de eu ter decorado o primeiro parágrafo começou a chover, e que
tomei um café em seguida... Lembro-me, portanto, do que se passou
naquelas horas; lembro, também, do texto decorado. Mas, pergunta
Bergson, alguém diria que essas duas memórias são a mesma coisa?
Num caso, houve o treino, o exercício, a repetição, e me dou por satisfeito
se chego a reproduzir o texto em minha mente tal e qual podia lê-lo no papel.
No outro caso, acontecimentos foram se sucedendo, e se fixaram, mais ou
menos, na minha memória; posso trazê-los de volta à minha consciência, e
tenho consciência de que aqueles fatos se deram num fluxo de tempo. Essa
seria a memória do vivido, enquanto o texto é, por assim dizer, a memória
do aprendido, do hábito mental que conseguimos adquirir para decorá-lo.
Pensando nesses dois conceitos de memória descritos por Bergson,
tento imaginar o que se passa na experiência de uma criança pequena.
Talvez as suas sensações se assemelhem, inicialmente, às de um estudante
que não pudesse distinguir com clareza entre a lição que tem a decorar, e
os eventos que se sucediam no decorrer de seu processo de estudo. Dito
de outra forma, é como se a criança fosse aquele estudante, que tem de
decorar a lição, mas tem diante de si uma “lição” enorme, de quinhentas
páginas, tendo de lê-la inteiramente antes de voltar para estudá-la uma
segunda vez, e em seguida ler as mesmas quinhentas páginas de novo, e
assim por diante. Esse livro de quinhentas páginas tem, na verdade, a
duração de um dia. Durante esse dia, várias “palavras” se repetem, vários
movimentos têm de ser refeitos, várias situações são parecidas, mas em
meio a tal quantidade de informações, diferenças, novidades, que a
aquisição de qualquer hábito –por exemplo, o da linguagem, ou o de andar,
se vestir, etc., se perde e se mistura com a qualidade extremamente intensa
de tudo o que está em curso.
É justamente em outros versos de Wordsworth que podemos encontrar
uma descrição desse processo; trata-se de uma versão inicial de um trecho
de The Prelude, só encontrada posteriormente entre os manuscritos do
poeta. Wordsworth começa fazendo referência aos fragmentários acidentes

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de visão e som” (scattered accidents of sight and sound) que intervêm na


consciência da criança, e que ela aceita sem refletir, “descuidada da
presença da Natureza, e sem medo dela” (careless of Nature’s presence,
and unaw’d). Mais tarde,

...as aparências cotidianas, que agora


O espírito de maravilha pensativa inicialmente invade,
Acumulam-se e dão à mente a necessária nutrição;
Os insondáveis trabalhos da Natureza, e os do Homem,
Misteriosos como os dela própria –um barco que navega
Os mares, o arco sem vida das pedras no ar
Suspensas, o firmamento cerúleo
E o que ele é; o Rio que flui e flui
Perpetuamente, de onde vem, para onde ruma,
Indo sem partir jamais; o peixe que se move
E vive num elemento mortal;
Ou algo de mais refinado espanto,
Como os rebentos da cotovia, cantando nas alturas
Como se os Pássaros fossem naturais dos céus,
Ali plantados qual estrelas: com isto se combinam
Objetos de medo, ainda que não isentos de seu próprio
Prazer –o relâmpago e o bramido do trovão,
Neve, chuva e granizo, e implacável tempestade.9

A criança, podemos dizer, está mergulhada inteiramente no fluxo do


“vivido”, e demora muito para sair desse fluxo: sair desse fluxo é aquilo a
que chamamos aprendizado, aquele treino, por tentativa e erro, de andar,
de falar, de dizer “obrigado”, de ir ao banheiro... Sem dúvida, há qualidades
muito diferentes nessas diferentes coisas que uma criança adquire. Mas
para cada uma delas não são pequenos os esforços exigidos dos pais, a

9
Then everyday appearances, which now/The spirit of thoughtful wonder first pervades,/
Crowd in and give the mind needful food;/Nature’s unfathomable works, or Man’s/
Mysterious as her own, —a ship that sails/The seas, the lifeless arch of stones in air/
Suspended, the cerulean firmament/ And what it is; the River that flows on/Perpetually,
whence comes it, whither tends,/ Going and never gone; the fish that moves/ And lives
as in an element of death;/ Or aught of more refin’d astonishment,/Such as the Skylark
breeds, singing aloft/ As if the Bird were native to the heavens,/There planted like a
star: with these combine/Objects of fear, yet not without their own/ Enjoyment –
lightning and the thunder’s roar,/Snow, rain and hail, and storm implacable. Apud
Herbert Read, Wordsworth. Londres: Faber and Faber, 1965 [1930], p.130. Trad. MC.

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quem cumpre impor uma série de repetições, para que a criança por fim
saiba “de cor” a sua lição. É como se tivéssemos um livro de ensinamentos,
de regras básicas, a ser inculcado num aluno que está completamente
entregue à experiência casual, aos “scattered accidents of sight and sound”
da campainha que toca, da chuva que começou a cair, e assim por diante.
Sou levado a imaginar que a criança pequena, entregue a esse fluxo de
acontecimentos e sensações que não reconhece inteiramente, vivendo essa
experiência em que tanto o que acontece com ela mesma quanto o que
acontece fora dela constituem, por assim dizer, um espetáculo ininterrupto,
experimenta a vida do mesmo modo que Funes “rememorava” aquela tarde
de nuvens: ou seja, a criança estaria sonhando a vida –sonhos bons ou
ruins, é claro— e é por isso, justamente, que não nos lembramos dos
primeiros anos da infância.
Nesse sentido, talvez a repetida presença da idéia de medo, nos dois excertos
que citamos de Wordsworth, revele alguma funcionalidade psicológica. Ao
sentir-se ameaçado, o “eu” pode por fim voltar-se sobre si mesmo, adquirindo
precisamente aquela consciência que faltava a Funes em seu fluxo de
contemplação ininterrupta do dia real ou do dia rememorado.
Com ameaças ou não, o fato é que os pais conseguem impor algumas
regras para as crianças pequenas, e talvez seja interessante contar certas
experiências que tive com meus filhos a esse respeito. Creio que os períodos
em que meus filhos estavam mais impacientes, birrentos, fazendo
escândalos por qualquer ninharia, foram os que antecederam alguma
grande conquista, seja na linguagem, seja no controle das necessidades
fisiológicas, seja na própria percepção do tempo.
É curioso como as crianças são relativamente rápidas em aprender
muitas coisas, não só de vocabulário mas de estrutura gramatical, e demore
tanto para elas perceberem a diferença entre “ontem”, “hoje”, “amanhã”,
semana próxima e semana passada. Meu filho maior já é capaz de ler e
escrever em letras de forma há algum tempo, mas só muito mais recente-
mente aprendeu a diferenciar entre o que aconteceu “ontem” e o que
aconteceu “anteontem”. Quanto ao menor, um dos sinais de que a fase das
birras está passando é que ele aprendeu o significado da palavra “depois”.
Sem essas conquistas, tudo o que lhes é negado ou proibido assume a
força de uma catástrofe absoluta, porque sua experiência não é pontuada
e dividida no tempo, sendo sempre imediata. Um dos sinais de que as
coisas começavam a melhorar, em termos de comportamento, foi o de que
ambos, numa certa idade, “aprenderam” o mecanismo dos faróis de
trânsito. Os próprios adultos obedecem à convenção segundo a qual com

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a luz vermelha se pára, e com a verde se segue em frente: a espera é curta


entre uma coisa e outra, ou, pelo menos, suficientemente curta para que
as crianças mantenham sua atenção no mesmo foco, relacionando causa e
conseqüência, espera e recompensa. Também teve bons efeitos o recurso
da “historinha”. Numa fase em que, como sinal de protesto, meu filho
menor começava a atirar coisas no chão, foi suficiente para dissuadi-lo
que se contasse uma história a respeito do “menino que atirava coisas no
chão”, cujo conteúdo moral não é difícil de apreender... Estamos às voltas
com uma representação do tempo certamente curta, mas que mostra com
nitidez o “antes” e o “depois”, como toda narrativa.
E que, sem dúvida, será repetida inúmeras vezes. Todos sabemos que a
criança precisa ouvir dezenas de vezes uma mesma história. Não é, sem
dúvida, porque cada vez a história lhe pareça diferente: se fosse assim,
não precisaríamos contar sempre a mesma... Mas sim porque ela está
descobrindo uma outra forma de experiência, que não é a do fluxo contínuo
dos fenômenos, e sim o do seu reconhecimento, da sua repetição; mais do
que isso, é a experiência de sua interrupção. É devido ao fato de que o
fluxo das percepções se interrompe, deixando espaço para a consciência,
que a vida deixa de ser sonhada, como na memória de Funes, para ser
vivida, tanto internamente quanto externamente; e é desse modo que se
separam, sem dúvida, os dois tipos de memória descritos por Bergson. A
repetição, o ritmo, o surgimento de uma memória “treinada” no hábito —no
ato de decorar, como se fossem um texto, as lições do dia-a-dia—, constituem
a porta de saída desse “sonho contínuo” da infância e, sem dúvida, a
passagem de uma existência ainda “animal” para uma existência humana.

Claro que muita coisa se perde e é dolorosa, talvez traumática, nesse


processo. Justamente nós podemos entender que a psicanálise procura
recuperar parte do que foi perdido, do que foi mutilado, nesse treinamento,
e vai procurar ouvir aquilo que, sem “antes” nem “depois”, sem “causa”
nem “conseqüência”, está perpetuamente no presente de cada um de nós.
Cito mais uma vez Wordsworth, agora alguns versos de sua Ode:
Vislumbres da Imortalidade Vindos da Primeira Infância.

Nosso nascimento não é senão sonho e esquecimento:


A alma que conosco se ergue, Estrela de nossa vida,
Teve poente noutro recanto

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E vem de longe imbuída:


Não de vez esquecida,
Nem totalmente despida,
Arrastando nuvens de glória, viemos a nos originar
De Deus, que é nosso lar:
O céu nos envolve na infância!
As trevas do cárcere começam a encerrar
O Menino que cresce;
Mas Ele contempla a luz de onde ela vem brilhar,
A vê em sua alegria que resplandece;
O Jovem, ao se afastar deste nascente com certeza,
Trafega, ainda sendo o Sacerdote da Natureza,
É acompanhado em sua jornada
Pela visão encantada;
Por fim, o Homem percebe que sua vida perece,
E na luz de um dia comum desvanece.10

Entretanto, o otimismo de Wordsworth o leva a concluir, mais adiante


no poema, que

Ainda assim, em tempo de bonança,


Mesmo que longe do litoral,
Nossas almas vislumbram o mar imortal
Que nos trouxe a este lugar (...)11

Com certeza, tanto Freud quanto Bergson, praticamente contempo-


râneos, procuraram chamar a atenção para esse “mar imortal”, sem antes
nem depois, que se perde com a rigidez de um treinamento, de uma
disciplina, de um ritmo, de todas as “lições decoradas” que nos impõe a
vida em civilização, e que predominava com especial intensidade na

10
Our birth is but a sleep and a forgetting:/The soul that rises with us, our life’s Star,/
Hath had elsewhere its setting,/And cometh from afar:/Not in entire forgetfulness,/
And not in utter nakedness,/But trailing clouds of glory do we come/ From God, who is
our home:/Heaven lies about us in our infancy!/Shades of the prison-house begin to
close/Upon the growing Boy,/But He beholds the light, and whence it flows,/He sees it
in his joy;/The Youth, who daily farther from the east/ Must travel, still is Nature’s
Priest,/And by the vision splendid/ Is on his way attended;/At length the man perceives
it die away,/And fade into the light of common day. In O Olho Imóvel..., cit., p.46-49.
11
Hence in a season of calm weather/Though inland far we be,/Our souls have the sight
of that immortal sea/ Which brought us hither (...) Ibid., p. 54-55.

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pedagogia tradicional, assim como no aprendizado básico, pré-escolar, do


cotidiano em família.
Minha impressão, contudo, é que essas idéias do tempo ritmado, do
antes e do depois, da causa e da conseqüência, da espera e da recompensa,
entraram em crise no mundo atual. Hoje a vida é, em mais de um sentido,
“contemporânea”. Dispomos de tudo ao mesmo tempo: o tempo de
cozinhar, por exemplo, se anula com o microondas –e cada membro da
família faz a refeição quando quer. O tempo, a estação de cada fruta é
desprezado na oferta permanente e abundante do supermercado. O
computador é sempre insuficiente porque nunca é veloz o bastante: estamos
sempre procurando a instantaneidade, e a espera, irritante e insuportável,
se mede em frações de segundo. O tempo de uma narrativa entra em colapso
na velocidade dos desenhos animados e dos videogames, que não estendem
uma trama ficcional ao longo de um arco narrativo razoavelmente longo,
mas vivem de explosões curtas de situações semelhantes. O cinema segue,
há décadas, o mesmo caminho, curtocircuitando os intervalos “vazios”, os
momentos de espera e acumulação dramática. A própria televisão já não
segue a cronologia rígida de antigamente: programas infantis passam a
qualquer hora do dia nas emissões a cabo; com a próxima integração entre
TV e computador, tudo se tornará disponível a qualquer hora, pondo em
colapso qualquer intervalo entre a expectativa e o fato, entre o estímulo e
a resposta. Orgasmos múltiplos, portanto, no plano das sensações mentais
e das emoções criadas artificialmente.
Simula-se assim aquele êxtase descrito por Wordsworth ao recordar sua
diversão de patinar no gelo. Esta possuía, entretanto, a função de afastar do
sujeito a ameaça de uma força aparentemente externa, mas situada dentro
dele mesmo, e que lhe parecia estar fora de seu controle. Agora rodopiamos
todos, pais e filhos, sobre uma camada de gelo cada vez mais fina, sem
provavelmente saber, diferentemente do poeta, de que ameaça estamos nos
libertando, e sem saber, ademais, como deter os próprios pés.
Referências bibliográficas
Bergson, Henri. Matière et Mémoire. In: Oeuvres. Paris: PUF, 1959.
Borges, Jorge Luís. “Funes el Memorioso”. In: Obras Completas. Buenos Aires:
Emecé, 1974.
Kundera, Milan. La Lenteur. Paris: Gallimard, 1995.
Poulet, Georges. Études sur le Temps Humain. Paris: Gallimard, 1981.
Read, Herbert. Wordsworth. Londres: Faber and Faber, 1965.
Wordsworth, William. O Olho Imóvel pela Força da Harmonia. Tradução de
Alberto Marsicano e John Milton. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.

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Sonhos e devaneios em
Dom Casmurro e Esaú e Jacó,
de Machado de Assis
Dayane Celestino de Almeida*

Os sonhos antigos foram aposentados, e os


modernos moram no cérebro da pessoa
Machado de Assis. In: Dom Casmurro.

Resumo
Este trabalho tem como objetivo explorar uma possibilidade de
conjunção entre Psicanálise e Literatura, analisando, para tal,
episódios de sonhos e devaneios nos romances Dom Casmurro e Esaú
e Jacó, de Machado de Assis, com base na teoria psicanalítica
freudiana.
Palavras-chave: Literatura; Psicanálise; Machado de Assis; sonhos;
devaneios

Summary
This paper intends to exploit a possibility of conjunction between
Psychoanalysis and literature, through the analysis of some episodes
of dreams and fantasies in the novels Dom Casmurro and Esaú e
Jacó, by Machado de Assis, based on Freud’s Psychoanalysis.
Key words: Literature; Psychoanalysis; Machado de Assis; dreams;
fantasies.

*
FFLCH, Universidade de São Paulo.

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I - Introdução

A análise literária nos leva, muitas vezes, a buscar, no aparato teórico


de outras áreas, instrumentos que nos auxiliem a melhor explicar
determinados fenômenos ou aspectos presentes nos textos. Segundo
Passos,

“todos sabemos o quanto a crítica literária tem se valido da história,


sociologia, filosofia, lingüística, psicanálise, etc. no anseio de
encontros profícuos que permitem abordagens mais abrangentes”
(1995, p.15).

É a partir deste pressuposto que justificamos o presente trabalho, cujo


objetivo é explorar uma possibilidade de conjunção entre psicanálise e
literatura, analisando, para tal, episódios de sonhos e devaneios nos livros
Dom Casmurro e Esaú e Jacó, de Machado de Assis, com base na teoria
psicanalítica freudiana. Vale ressaltar que não trataremos de todos os
episódios deste tipo que aparecem nos romances, mas apenas daqueles
que julgamos mais importantes. Procuramos, ainda, averiguar qual é a
função de tais episódios no contexto geral de cada livro. De acordo com
Passos (1996, p.169), Machado de Assis “cria uma obra favorável às ligações
com o saber psicanalítico”. Sobre isso, temos ainda o depoimento do crítico
Roberto Schwarz (apud Freitas, 2001, p.77), afirmando que Machado é
“um autor que em 1880 está dizendo coisas que o Freud diria 25 anos
depois”. No caso dos romances que estudamos, vemos que o ano de
publicação de Dom Casmurro é o mesmo da Interpretação dos Sonhos,
de Freud (1900). Já Esaú e Jacó foi publicado quatro anos depois. Assim,
há possibilidade de que Machado tenha lido Freud neste intervalo, embora
não o possamos afirmar com certeza. De qualquer forma, mesmo nos
romances anteriores (e durante a composição de Dom Casmurro), quer
tenha ou não lido Freud, Machado se mostra um escritor atento às
revoluções científicas que começam a ganhar forma no seu tempo, de modo
a “antecipar” em seus textos algumas questões envolvendo psicanálise.
Finda esta breve introdução, cabe destacar alguns apontamentos
teóricos fundamentais acerca do sonhos e devaneios, conforme Freud, o
que será matéria da próxima parte.

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II – Os sonhos e devaneios, segundo Freud

Segundo Freud, tanto o sonho quanto o devaneio (ou fantasia) são


manifestações de um desejo. Ambos têm como forças motivadoras os
desejos insatisfeitos. Os devaneios são tratados por Freud principalmente
no estudo chamado Escritores criativos e devaneios, de 1908. Mas, por
que fantasiamos? Freud explica que, quando criança, o homem brinca,
isto é, cria um mundo de fantasias. Ao crescer, porém, o homem não brinca
mais, mas não renuncia ao prazer que tinha ao brincar. Na verdade, o
homem, segundo Freud, nunca renuncia a nada, apenas troca uma coisa
por outra. O devaneio é, portanto, o substituto do adulto para o brincar
infantil. O adulto, que não brinca mais, continua tendo o seu mundo
fantasioso nos seus devaneios e estes não são inalteráveis, mas mudam
adaptando-se às impressões que o sujeito tem da vida. Desta forma,
verifica-se que há relação entre o devaneio e o tempo. Conforme Freud, “o
desejo utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do
passado, um quadro do futuro” (1969, p.153).
O “surgimento” do sonho obedece aos mesmos mecanismos do
devaneio. Ou seja, algo do presente nos remete a algo do passado e, a partir
daí, sonhamos. Neste momento, podemos indagar: quais são, portanto, as
diferenças entre os sonhos e os devaneios, uma vez que ambos são
manifestações de um desejo insatisfeito e “surgem”, basicamente, da
mesma forma? A diferença está, principalmente, no que Freud chamou
de distorção onírica. Tal distorção ocorre porque, os sonhos, ao contrário
das fantasias, geralmente têm como fonte um desejo recalcado. Quanto a
isto, Freud afirmou (1969, p.154):

“... à noite também surgem em nós desejos de que nos envergo-


nhamos; têm de ser ocultos de nós mesmos, e foram
conseqüentemente reprimidos, empurrados para o inconsciente.
Tais desejos reprimidos só podem ser expressos de forma muito
distorcida”.

Daí a explicação para os mecanismos do sonho, que Freud chamou


trabalhos do sonho e que foram descritos em 1900 na obra A interpretação
dos sonhos. Eles são o deslocamento e a condensação, e deles trataremos
melhor quando analisarmos os fragmentos dos romances em questão. A
seguir, passaremos à verificação dos sonhos e devaneios nas obras em
questão.

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III – Os sonhos e devaneios nos romances em questão

Iniciaremos nossa verificação com o romance Dom Casmurro1. Em tal


livro, o primeiro devaneio de Bentinho ocorre no capítulo XXIX, intitulado
“O Imperador”. Lembremo-nos de que, neste momento da narrativa,
Bentinho tem o desejo de não ir ao seminário, mas tal desejo não pode ser
realizado, visto que sua mãe se mantém firme à promessa feita anos antes.
Então, num passeio com o agregado José Dias, ele vê o Imperador e passa a
fantasiar como seria se o próprio fosse ter com a sua mãe, a fim de livrá-lo
da promessa. Vejamos a seguir a transcrição de alguns trechos deste capítulo:

“Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de


Medicina (...). Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia
fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-
lhe a intervenção (...). Vi então o Imperador escutando-me,
refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe
(...). Então, o Imperador todo risonho, (...), pedia a minha mãe que
me não fizesse padre, e ela, lisonjeada e obediente, prometia que
não.” (p. 76,77).

Vejamos, pois, como funciona este devaneio. Conforme dissemos,


Bentinho tinha um desejo não satisfeito e é este desejo que serve de
motivação para o devaneio. Quando Bentinho vê o Imperador, temos o
fato presente que desencadeia a fantasia. Não aparece aqui, explicitamente,
a lembrança do passado, mas podemos inferir que o passado (com um
desejo satisfeito) é Bentinho em casa, ao lado da mãe e perto de Capitu,
sem ir ao seminário. No trecho “Vi então o Imperador...” começa o devaneio
propriamente e toda a cena que se dá, na qual o Imperador fala com a sua
mãe e esta o libera do seminário funciona como “uma correção da realidade
insatisfatória” (Freud, 1969, p.152) e, só neste devaneio, o seu desejo pode
ser realizado. Note-se que a opção de não ir ao seminário parecia a Bentinho
tão impossível que apenas a intervenção de uma autoridade máxima como
o Imperador poderia fazê-la real. No contexto geral do romance, tal
episódio se faz importante, porque apenas a partir dele podemos entender
como Bentinho era um sujeito “sem competência” para realizar qualquer

1
Para este estudo, nos valemos da edição de 1995, publicada pela Ediouro e Publifolha
(Coleção Biblioteca Folha).

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ação contrária à promessa da sua mãe. Além disso, é apenas a partir do


entendimento da fuga do seminário como algo impossível ao sujeito que
entendemos a sua importância no romance e compreendemos o motivo
pelo qual uma grande parte da narrativa é destina a contar justamente
este dilema do “ir ou não ir” ao seminário.
Um outro devaneio de Bentinho ocorre no capítulo XXXIV, chamado
“Sou Homem!”. Este é o capítulo que segue o “Penteado”, no qual Bentinho
e Capitu trocam um beijo pela primeira vez. Ao voltar para casa logo após
o beijo, Bentinho passar a imaginar outro beijo entre dos dois e chega a
“sentir” Capitu. Vejamos a transcrição de alguns trechos (p.88,89):

“Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei à sala de
lição (...). E tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o
chão, ouvia algum som de fora, vago, próximo ou remoto, e logo
perdia tudo para sentir somente os beiços de Capitu... Sentia-os
estirados, embaixo dos meus, igualmente esticados para os dela, e
unindo-se uns aos outros (...).”

Seguindo o modelo canônico de devaneio descrito por Freud que, como


vimos, liga os tempos do passado, presente e futuro, vemos que o episódio
acima se enquadra perfeitamente. Quando volta a seu quarto, a visão da
cama, das paredes, etc. constituem o fato do presente que o faz lembrar de
algo do passado: o beijo, que ocorreu, na verdade, num passado recente.
Tal ocorrência passada deu um prazer a Bentinho (conforme “nada disso
valeu a sensação do beijo”) e é este prazer que ele quer reviver naquele
instante. Como não pode ter Capitu naquele momento e novamente beijá-
la para obter tal prazer (está aí o desejo insatisfeito), ele fantasia, devaneia.
Mais uma vez, o que vimos foi a maestria de Machado de Assis em trabalhar
com o lado psicológico da personagem, revelando seus desejos internos e
explorando o seu poder imaginativo.
O próximo episódio que verificaremos é um sonho de Bentinho. Ele se
dá no capítulo LVIII, de nome “O Tratado”. Neste capítulo, Bentinho vê
uma senhora cair na rua e vê também suas meias e ligas. O fato o perturba
um pouco a ponto de ir fantasiando até o seminário, “desejando” que
caíssem todas as mulheres que via. À noite, Bentinho sonha com essas
mulheres. Vejamos a descrição de tal sonho (p.127):

“De noite, sonhei com elas. Uma multidão de abomináveis criaturas


veio andar à roda de mim, tique-tique... Eram belas, umas finas,

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outras grossas, todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-


las com esconjures e outros métodos, mas tão depressa dormi como
tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto
círculo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a
minha cabeça.”

Esse sonho de Bentinho apresenta algumas características interes-


santes. Antes de estudá-lo, porém, abriremos um parêntese e voltaremos
à parte II deste estudo quando mencionamos os trabalhos de condensação
e de deslocamento, pois cabe agora expor o que seria cada um deles. O
primeiro corresponde ao fato de os sonhos serem “truncados”. Nas palavras
de Freud (s/d, p.297) “breves, insuficientes, lacônicos”. Os sonhos,
geralmente, não se apresentam como uma narrativa linear e, muitas vezes,
nos parecem “bagunçados” e com partes faltando ou que não se encaixam.
Quanto a serem breves, Freud comenta que quando escrevemos um sonho
a narrativa não chega a uma página. O outro trabalho – o de deslocamento
- é o que faz com que o desejo seja manifestado , não direta, mais
indiretamente no sonho, ocorrendo em um elemento secundário. De
acordo com Freud, o deslocamento funciona como uma espécie de censura.
Ele afirma que este mecanismo:

“não apresenta mais que uma deformação do desejo do sonho que


existe no inconsciente. Mas já estamos familiarizados com a
deformação do sonho. Remontamo-la à censura que é exercida na
mente (...). O deslocamento do sonho é um dos principais métodos
pelo qual essa deformação é alcançada. Podemos presumir, então,
que o deslocamento do sonho verifica-se através da influência na
mesma censura” (s/d, p.328).

Segundo Hisgail (2000, p.31), mais tarde, Lacan propôs que o


inconsciente está estruturado como uma linguagem e propôs as relações
deslocamento-metonímia e condensação-metáfora.
Voltemos, pois, ao sonho de Bentinho. Primeiro, vemos que ele está
relacionado a um desejo sexual da personagem. Tal desejo não pode ser
satisfeito, uma vez que ele é um seminarista. Assim, diferentemente dos
outros desejos que verificamos até o momento, este se realiza através de
um sonho e não de um devaneio, visto que, conforme mencionamos
anteriormente, os sonhos dão lugar aos nosso desejos reprimidos e dos
quais, muitas vezes, nos envergonhamos. Ora, é exatamente isso que ocorre

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com Bentinho a quem – sendo um seminarista e estando comprometido


com Capitu quando deixasse o seminário – parecia errado ter desejos
sexuais por outras mulheres. Tanto que, em alguns momentos, o sonho
configura-se como assustador, conforme podemos concluir a partir de
“uma multidão abominável de mulheres” ou “todas ágeis como o diabo”
(grifo nosso). A ação da personagem de tentar “afugentá-las com esconjures
e outros métodos” revela a tentativa consciente de tentar recalcar um desejo
que o inconsciente teima em revelar. O sonho acabou tornando-se quase
que um pesadelo que faz Bentinho acordar muitas vezes durante a noite,
angustiado, o que também vai ao encontro da teoria psicanalítica, que
revela que:

“quando algo escapa da censura, e tem o poder de interferir a ponto


do sonho ser transformado num pesadelo, pode nos acordar e ainda
provocar muita angústia” (Hisgail, 2000, p.33).

Ao final do relato, o narrador conta que “choviam” pés e pernas. Tal


imagem é prova do mecanismo de distorção onírica, segundo o qual os
sonhos são sempre distorcidos e “confusos”. Esta imagem revela, ainda, a
existência do trabalho de deslocamento, ou seja, o desejo sexual foi
deslocado para as figuras “pés” e “pernas”, que estão em uma relação da
parte pelo todo com “corpo”, constituindo, assim, uma metonímia.
Em Dom Casmurro, uma outra força motivadora dos sonhos e
devaneios é o ciúme de Bentinho, assunto muito tratado e que sempre
vem à tona, quando se fala deste romance. Na verdade, o texto é construído
com base em ambigüidades, de modo que não é possível sabermos se Capitu
traiu realmente seu marido ou não. Seria o ciúme dele baseado em fatos
verdadeiros ou apenas fruto da sua imaginação? Se considerarmos a
segunda opção, podemos considerar que o ciúme de Bento Santiago
constitui um grande devaneio, ou melhor, são vários devaneios e sonhos
ligados a um único motivo. Os “acessos” de ciúme de Bento sempre têm
início a partir de alguma ocasião no presente, que remete a fatos do
passado, e apenas a fatos que justificariam a traição de Capitu. Como
exemplo de ocasiões do presente, podemos citar os “olhos de ressaca” de
Capitu, o choro de Capitu durante o velório de Escobar, conversas entre
Capitu e Escobar e a visão do filho, que Bento passou a julgar muito
parecido com Escobar, a ponto de ter a certeza de que o menino era, na
verdade, filho do amigo. A linha do tempo proposta por Freud é, então,
seguida aqui também. Apesar de o devaneio “ciumento” não ser a correção

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de uma realidade satisfatória, ele é, certamente, ligado a um desejo, que


seria o desejo de posse, ou seja, o desejo de não perder algo ou alguém.
Nos capítulos LXII e LXIII há exemplos do que acabamos de mencionar.
José Dias comenta algo com Bentinho sobre Capitu e os “peraltas da
vizinhança”. Esta conversa dá início a um devaneio de Bentinho que começa
a imaginar que ela realmente já estava namorando outro. Em seguida, o
narrador confessa que durante toda a semana tivera sonhos relacionados
àquele assunto e nos conta um desses sonhos2. Na verdade ele diz que são
dois sonhos, pois “um nasceu do outro”. O primeiro começa com a figura
de um dos “peraltas” da rua perto de Capitu. Segundo Freud, é comum
que nossos sonhos estejam relacionados com coisas passadas e,
normalmente, que ocorreram em um passado próximo. Na segunda parte,
do sonho, Bentinho encontra-se sozinho com Capitu (realização de um
desejo) e acorda justamente na hora que vai beijá-la (censura).
Vejamos agora como se dão os sonhos e devaneios em Esaú e Jacó3.
Vamos nos deter nos episódios mais importante ocorridos com Flora.
Sabemos que a moça apaixonara-se pelos dois irmãos ao mesmo tempo.
Ela queria os dois, mas isto era impossível. Então, em seus sonhos e
devaneios, Flora passa a ver uma só figura que condensa os dois irmãos.
Uma das vezes em que isso ocorre é nos capítulo LXXIX, chamado “Fusão,
difusão, confusão” e no seguinte, de nome “Transfusão, enfim”. Vejamos
um trecho do primeiro:

“Afinal, a imaginação fez dos dois moços uma pessoa única (...).
Ora, é de saber que, durante a comissão do pai, Flora ouviu mais de
uma vez as duas vozes que se fundiam na mesma voz e na mesma
criatura (...)” (p.138)

Este trecho trata de um devaneio. Ora, o desejo impossível de Flora era


ter os dois irmãos, ao vê-los, ela passa a imaginar os dois como sendo uma
só pessoa. É essa a correção da sua “realidade insatisfatória”. Essa fusão dos
dois irmãos na imaginação de Flora passa a ser constante e dominar uma
boa parte de seus pensamentos e sonhos. Abaixo, transcrevemos um sonho
de Flora, presente no segundo capítulo mencionado acima (grifos nossos):

2
Devido ao grande número de linhas que ocuparia a transcrição de tal sonho, optamos
por não colocá-lo no corpo do trabalho.
3
Para este estudo, nos valemos da edição de 2005, publicada pela Editora Ática (Série
Bom Livro).

206

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“Mas o sono vinha, e o sonho completava a vigília. Flora passeava


então pelo braço do mesmo garção amado, Paulo se não Pedro, e
ambos iam admirar as estrelas e montanhas, ou então o mar (...).
Como era sonho, a imaginação trazia espetáculo desconhecidos, tais
e tantos que mal se podia crer bastasse o espaço da noite. E bastava.
E sobrava (...). Uma noite, a realidade, posto que ausente, clamou
pelos seus foros, e o único moço se desdobrou nas duas pessoas
semelhantes. A diferença deus às visões de acordada um tal cunho
de fantasmagoria que Flora teve medo e pensou no Diabo” (p.140).

Este sonho também trata da fusão dos dois irmãos em uma única pessoa,
configurando mais uma vez, o desejo impossível de Flora de ter os dois.
Esta impossibilidade amorosa só é possível no sonho ou no devaneio.
Podemos perceber o trabalho de deslocamento, uma vez que o desejo dos
dois se desloca para uma só figura. O trabalho de condensação também
está presente, conforme lemos em “mal se podia crer bastasse o espaço da
noite. E bastava. E sobrava”. Um outro ponto bastante interessante no
trecho transcrito é a parte em que a pessoa única imaginada volta a ser
duas e Flora sente medo. Este medo é causado pela estranheza provocada
pela duplicidade, sendo “duas pessoas semelhantes”. Tal estranheza foi
tratada por Freud no estudo intitulado Das unheimliche (1919), que alguns
traduzem por “A inquietante estranheza” ou “O estranho”. Freud explica
que Das unheimliche está relacionado a alguma categoria do assustador
que remete ao que é conhecido e, há muito, familiar. Ora, Pedro e Paulo
são, há muito familiares a Flora e, mesmo assim, causam este sentimento
de estranheza da moça. Segundo Freud, várias coisas podem causar essa
estranheza e dentre elas, está a noção do “duplo”. Pedimos licença para
citar algumas palavras do médico acerca do assunto:

“O tema do ‘estranho’ relaciona-se indubitavelmente com o que é


assustador – com o que provoca medo e horror” (p.85).

“Segundo Schelling, unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido


secreto e oculto mas veio à luz” (p.92)

“Devemo-nos contentar em escolher aqueles temas de estranheza


que se destacam mais, (...). Todos estes temas dizem respeito ao
fenômeno do ‘duplo’, que aparece em todas as formas e em todos os
graus de desenvolvimento. Assim, temos personagens que devem

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ser considerados idênticos porque parecem semelhantes, iguais.


Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um
para outros desses personagens (...)” (p.103).

A primeira citação nos remete diretamente à sensação de medo de Flora.


Já a segunda, nos ajuda a entender que o fato de Pedro e Paulo serem
duas pessoas diferentes é algo de que Flora não quer se lembrar, pois seu
desejo é uni-los em um só. Assim, quando ela se lembra de que eles na
verdade são dois, ela se angustia e se assusta, pois sabe que seu desejo não
será realizado.
Passamos agora ao capítulo LXXXIII, intitulado “A grande noite”. Este
é um capítulo notório no que tange à questão da qual tratamos. Mais uma
vez, Flora tem devaneios e sonhos nos quais deseja que os dois irmãos
sejam uma só pessoa4. O trecho seguinte nos mostra bem esse desejo da
moça (itálico nosso):

“Tudo se mistura, à meia claridade; tal seria a causa da fusão dos


vultos, que de dois que eram, ficaram sendo um só. Flora, não tendo
visto sair nenhum dos gêmeos, mal podia crer que formasses agora
uma só pessoa, mas acabou crendo, mormente depois que esta única
pessoa solitária parecia completá-la interiormente, melhor que
nenhum das outras em separado” (p.145).

Na mesma noite, Flora teve um outro sonho, a ver:

“Sonhou com o canto dos galos, uma carroça, um lago, uma cena
de viagem ao mar, um discurso e um artigo” (p.145).

Este sonho de Flora vai ao encontro do que disse Freud a respeito dos
sonhos serem compostos de fragmentos, sem uma narrativa linear. De
fato é o que vemos, pois neste sonho, uma imagem dá espaço a outra e
tudo parece lacunar. No início do sonho, Flora sonha com “o canto dos
galos”, isso denuncia uma influência do mundo exterior nos nossos sonhos,
visto que já deveria ser a hora em que os galos cantam quando Flora
começou a dormir de novo. Na Interpretação, Freud fala de estímulos

4
Devaneios e sonhos de Flora ocupam o capítulo todo. Devido ao grande espaço que
ocuparia, optamos por não fazer a sua transcrição completa no corpo do trabalho.

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sensoriais externos. Então Flora deve mesmo ter ouvido o canto do galo
(dado o horário) e sonhado com isto, em conseqüência.
A repetição do teor dos devaneios e sonhos de Flora reiteram e ajudam
a intensificar a idéia de que ela estava realmente apaixonada pelos dois
irmãos. Com eles, podemos entender melhor a grandeza do desejo da moça.
Esse desejo impossível, tão forte que chega a levá-la à morte.
Com as análises que fizemos neste trabalho, podemos concluir que o
sujeito que sonha ou fantasia é um sujeito em falta. Tal falta, porém, não
desencadeia um fazer, uma ação que poderá repará-la; ao contrário, este
fazer é deslocado para o inconsciente e é no sonho ou na imaginação que
ele se dá e não na “vida real”. A ação que poderia reparar a falta não é
desencadeada porque o sujeito não pode ou não deve fazê-la (devido a
coerções morais/sociais e/ou motivos individuais).

Referências bibliográficas
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1997. – (Biblioteca Folha; 20).
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PASSOS, Cleusa Rios. Confluências – Crítica Literária e Psicanálise. São Paulo:
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________. “Crítica literária e Psicanálise: contribuições e limites”. In: Literatura
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________. “Freud e Clarice Lispector: o sonho e sua representação literária (II)”.


In: HISGAIL, Fani (org.). A ciência dos sonhos: um século de interpretação
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WAJNBERG, Daisy. “Literatura de sonhos”. In: HISGAIL, Fani (org.). A ciência
dos sonhos: um século de interpretação freudiana. São Paulo: Unimarco,
2000.

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MONOGRAFIA

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A pele como forma de expressão


Ondina Lúcia Ceppas Resende*

“ O toque amoroso, como a música, profere em geral as


coisas que não podem ser ditas: nada é preciso que se
diga visto que está tudo entendido.”
“ As sensações geralmente têm qualidades táteis” ...
Ashley Montagu

Resumo
A pele possui muitas funções importantes em diversos níveis desde
o nascimento, tendo um papel primordial na constituição do
aparelho psíquico. É através dela que se dá o primeiro contato do
bebê com o mundo externo e com o outro (a mãe).
A existência de um problema de pele demonstra alguma falha na
relação inicial mãe-bebê, e pode representar tanto uma busca de
contato com o outro, como uma defesa para evitar um contato mais
íntimo. Dependendo do grau e da forma de manifestação, a doença
de pele modifica a vida de forma global.
Tenho observado na minha clínica particular e no trabalho junto
ao Serviço de Dermatologia do Hospital dos Servidores do Estado,
onde trabalho, a influência de fatores emocionais no desencadea-
mento e agravamento de diversas patologias de pele, especialmente

*
Candidata do Instituto de Ensino da SPRJ.

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nos casos de psoríase, surgindo daí o interesse no estudo e


compreensão da subjetividade dos problemas de pele. Noto que os
pacientes com patologias de pele apresentam uma tendência à
introspecção e uma dificuldade especial em externalizar seus
sentimentos, funcionando a pele como uma via de expressão do que
não é verbalizado, consciente e inconscientemente.
Apresentarei alguns casos e vinhetas mostrando a correlação entre
os aspectos físico, psíquico e emocional neste tipo de patologia. Grande
parte dos dados são colhidos a partir do grupo terapêutico já que
não é possível o atendimento individual devido à imensa demanda
do Serviço de Dermatologia na instituição em que trabalho.

Summary
The skin has many different important functions in different levels
since the beginning of life, and it has a primordial paper in the
formation of psychism. The first contact of the baby with the world
and with the other (the mother) is through the skin.
The existence of skin disorder demonstrates a fault in the first
relation baby-mother, and it represents a way to get contact with
other or, on the contrary, a defense to avoid closer contact.
Depending on the degree and the form, the skin disorder modifies
the whole life.
I have observed from my private clinic and from job in the
Dermathology Service of State’s Servidores Hospital, where I work,
the influence of emotional factors on the beginning and aggravation
of skin disorders, specially in cases of psoriasis disease, and it takes
me to have an interest to study about and to understand the
subjectivity of skin disorders. I note that these patients present a
tendency to introspection and a special difficult to express their
feelings, and the skin is a canal of expression the things that couldn’t
be said, conscious and inconsciously.
I will introduce some illustrative cases and vignette of patients
showing the correlation between physical, psychical and emotional
aspects in this pathology. Most of data are collected from therapeutic
group that it’s not possible an individual attendance because of the
big request from the Dermathology Service in the institution that I
work.

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Introdução

Ao escrever o presente trabalho encontrei dificuldades em reunir


material teórico pois apesar de algumas referências à respeito da
importância da pele na constituição do aparelho psíquico e nas primeiras
relações de objeto, poucos são os trabalhos que se aprofundam no estudo
deste tema.
A pele exerce muitas funções importantes em diversos níveis e aspectos
da vida. Uma das primeiras ligações do bebê com o mundo externo se dá a
partir do contato de pele com o corpo da mãe. Estes contatos deixarão um
registro impresso no ego corporal como diz Freud em O Ego e o Id (1923).
Freud dá destaque à pele em alguns de seus trabalhos: Tres Ensaios
Sobre Sexualidade (1905); O Ego e o Id (1923); Esboço de Psicanálise
(1940). Algumas citações de Freud mostram claramente a importância da
pele na constituição do aparelho psíquico, e, ao descrever a gênese a as
funções do ego em O Ego e o Id, Freud assenta as bases da noção de ego-
pele que mais tarde será definido por Didier Anzieu, como podemos
acompanhar nas citações abaixo:

“É fácil ver que o ego é aquela parte do id que foi modificada pela
influência direta do mundo externo, por intermédio do Pcpt-Cs
(Sistema Perceptivo-Consciente); em certo sentido, é uma extensão
da diferenciação de superfície .” (pág. 39).

“O próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície,


constitui um lugar de onde podem originar-se sensações tanto
externas quanto internas” (pág. 39).

“O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é


simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a
projeção de uma superfície” (pág. 40).

E continua em nota de rodapé: “Isto é, o ego, em última análise, deriva


das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície
do corpo. Ele pode ser assim encarado como uma projeção mental da
superfície do corpo, além de representar as superfícies do aparelho mental
“ (pág. 40).
Em Esboço de Psicanálise Freud novamente faz uma analogia entre o
ego e a pele ao descrever o ego e suas funções, e, nos Três Ensaios Sobre

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Sexualidade se refere à pele como zona erógena por excelência: “na


escopofilia e no exibicionismo, o olho corresponde a uma zona erógena;
ao passo que no caso daqueles componentes do instinto sexual que
envolvem dor e crueldade o mesmo papel é assumido pela pele - a pele,
que em determinadas partes do corpo se distinguiu como órgão sensorial
ou se modificou em membrana mucosa e é assim a zona erógena par
excellence” (pág. 172).
Winnicott (1972) também ressalta a importância da pele na formação
do aparelho psíquico e no processo de integração do eu do bebê,
considerando a pele como uma membrana limitante da posição entre eu e
não-eu. Para ele, a integração do eu no tempo e no espaço depende da
maneira da mãe segurar o recém-nascido (holding), a personalização do
eu depende da maneira da mãe o tratar (handling) e a instauração da
relação de objeto depende da apresentação dos objetos feita pela mãe (seio,
mamadeira, leite...) graças aos quais o recém-nascido vai poder encontrar
a satisfação de suas necessidades. Para que o bebê inicialmente em estado
de fusão com a mãe possa se separar, precisa de uma mãe suficientemente
boa com capacidade de handling e holding. A função psíquica se
desenvolve pela interiorização deste holding materno como um objeto
suporte. A mãe funciona como barreira de proteção e como filtro aos
estímulos para o bebê. A ausência ou o estabelecimento insuficiente da
função de continente deixará seqüelas.
Winnicott introduz o conceito de personalização em que “o bebê,
inicialmente em estado de não-integração entre as diferentes partes do
seu corpo e entre seu corpo e sua mente, adquire a capacidade de poder
habitar seu próprio corpo, o que implica na renúncia à ilusão de que seu
corpo está fundido com o da mãe” (David Zimerman, Vocabulário
Contemporâneo de Psicanálise, 2001, pág.322). Durante este processo
de personalização, a pele funciona como fronteira entre eu e não-eu, entre
mundo interno e mundo externo. Apenas quando tudo se passa bem, o
bebê começa a se ligar ao corpo e às funções corporais, sendo a pele a
membrana fronteiriça. A despersonalização ilustra a perda de uma união
sólida entre o eu e o corpo.
Em 1974, Didier Anzieu publica o artigo Le Moi-peau na Nouvelle Revue
de Psychanalyse em que introduz o conceito do Eu-Pele definindo-o da
seguinte forma: “uma representação de que se serve o Eu da criança
durante as fases precoces do seu desenvolvimento para se representar a si
mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a partir de sua
experiência da superfície do corpo” (O Eu-Pele, pág. 44). Segundo Anzieu,

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o bebê inicialmente indiferenciado da mãe vai aos poucos se dando conta


da existência de um outro a partir da experiência de contato com a mãe e
da vivência de ser acariciado e manipulado por ela. Quer dizer, o ego infantil
se estrutura a partir desta experiência de contato de pele do bebê com o
corpo da mãe que lhe vai dando a noção de dentro e fora, de eu e não-eu. O
autor assinala também a importância das palavras dirigidas pela mãe ao
bebê durantes os cuidados diários por ela dispensados, pois considera que
tanto o toque como o som da voz da mãe possuem uma função de
reasseguramento, auxiliando na percepção da pele como superfície e, aos
poucos, na aquisição da noção de limite entre exterior e interior.
As experiências em fisiologia e anatomia humana também consideram
que a pele tem um papel preponderante em nossa vida e correlacionam o
fator emocional com o surgimento de problemas cutâneos. Ashley
Montagu, especialista americano nessa área, define a pele como sendo o
órgão mais extenso do corpo, o mais antigo e o mais sensitivo de todos os
órgãos (1986), e, desta forma, a existência de um problema de pele afeta
toda a vida da pessoa. Ele observa que 40% das doenças de pele têm um
componente emocional que, se não tratado, agrava o problema cutâneo.
Tenho podido comprovar na minha experiência clínica uma íntima
correlação entre problemas de ordem emocional e o surgimento de algumas
doenças de pele, em especial no caso da psoríase1 . Citarei mais adiante
alguns casos atendidos no Serviço de Dermatologia do Hospital dos
Servidores do Estado onde há uma diversidade maior de demanda e,
posteriormente, relatarei um caso da clínica particular.

As Funções da Pele do Ponto de Vista Físico

Em seu livro Tocar, O Significado Humano da Pele, Ashley Montagu


escreve que “todo ser humano pode passar sua vida toda cego, surdo e
completamente desprovido dos sentidos de olfato e do paladar, mas não
poderá sobreviver de modo algum sem as funções desempenhadas pela
pele” (pág. 34). O autor descreve vinte funções da pele no plano físico que
são fundamentais para a nossa existência :

1
A psoríase é uma dermatose cutânea crônica, não contagiosa, com etiologia ainda
indefinida caracterizada por placas vermelhas com escamas prateadas principalmente
nas superfícies extensoras do corpo e no couro cabeludo.

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1– Base dos receptores sensoriais, localização do tato;


2– Fonte, organizadora e processadora de informações;
3– Mediadora de sensações;
4– Barreira entre organismo e ambiente externo;
5– Fonte imunológica de hormônios para a diferenciação de
células protetoras;
6– Camada protetora das partes situadas abaixo dela contra
efeitos da radiação e lesões mecânicas;
7– Barreira contra materiais tóxicos;
8– Responsável por um papel de destaque na regulação da pressão
e do fluxo de sangue;
9– Órgão reparador e regenerativo;
10 – Produtora de queratina;
11 – Órgão de absorção de substâncias nocivas e outras, que possam
ser excretadas junto com os resíduos corporais eliminados;
12 – Reguladora da temperatura;
13 – Órgão implicado no metabolismo e armazenamento de gordura;
14 – E no metabolismo da água e sal, através da transpiração;
15 – Reservatório de alimento e água;
16 – Órgão da respiração e facilitadora da entrada e saída de gases
através da mesma;
17 – Sintetizadora de vários compostos importantes, inclusive da
vitamina D, responsável pelo controle do raquitismo;
18 – Barreira ácida que protege contra muitas bactérias;
19 – A secreção produzida pelas glândulas sebáceas lubrifica a pele
e os pêlos, isolando o corpo contra chuva e frio, ajudando no
extermínio de bactérias;
20 – Autopurificadora.

As Funções da Pele do Ponto de Vista Psíquico

Segundo a classificação de S. Borelli e Musaph (1972), a pele apresenta


cinco funções importantes do ponto de vista psíquico:
1 – Órgão fronteiriço entre Eu e Não-Eu (função de limite);
2 – Órgão de contato com o meio (função de continente);
3 – Órgão de expressão interna com o meio (função de comunicação);
4 – Órgão gerador de impressões que dá as noções de beleza-
feiura, limpeza-sujeira, claridade-escuridão, etc.;

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5– Órgão sensitivo que auxilia a percepção de estímulos e


sensações como rubor, frio, calor, prurido, qualidades tácteis
e de excitação sexual.

Estas funções se desenvolvem ao longo da vida, desde o nascimento e


da relação inicial mãe-bebê, e posteriormente da relação com o mundo
circundante.

Diversas Abordagens Teóricas

Entre os autores que apresentam um interesse maior em relação à pele


e sua função na constituição do psiquismo se destacam Paul Lacombe
(1959), Esther Bick (1968), Didier Anzieu (1974), David Rosenfeld (1976)
e Roberto Fernandez (1978).
Paul Lacombe considera a pele como órgão fronteiriço entre mundo
interno e mundo externo, tendo uma função delimitadora e também
protetora e reguladora entre as trocas do organismo com o meio ambiente.
O autor chama a atenção para a profunda ligação cutânea do bebê com sua
mãe desde o início de sua existência.
René Spitz considera que o contato de pele da mãe com o bebê possui
um papel muito importante desde o início da vida e mostra em seu livro
“O Primeiro Ano de Vida do Bebê” que o bebê com eczema ou dermatite
atópica expressa na pele a toxicidade da relação materna. Relata que “o
peito da mãe, suas mãos e seus dedos oferecem ao bebê todos os estímulos
táteis de que o bebê necessita para a aprendizagem da orientação tátil;
como seu corpo e seus movimentos lhe dão as experiências necessárias de
equilíbrio; e a voz da mãe proporciona ao bebê os estímulos auditivos
necessários para a formação da linguagem” (pág. 24). No seu estudo com
crianças com dermatite atópica, observa que as mães tinham uma
personalidade infantil e apresentavam algumas características em comum
como “uma hostilidade para com o bebê disfarçada de angústia, não
gostavam de tocar e nem de cuidar do bebê evitando tal contato, ou seja,
eram bebês privados sistematicamente dessa experiência de toque da mãe”
(pág. 100). Spitz nota nas mães desses bebês uma hostilidade inconsciente
disfarçada numa ansiedade manifestada em uma preocupação extrema
com o filho. Eram mães que não gostavam de tocar seus filhos e isto
aparecia claramente na hora do banho, na troca de fraldas ou na
alimentação; assim como evitavam qualquer contato face a face com eles.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VIII – Número 1 – 2007

Ao mesmo tempo demonstravam uma preocupação extrema com a


fragilidade e a vulnerabilidade das crianças com a fantasia de que poderia
machucá-los ao menor movimento seu, talvez com medo da agressividade
sentida. Contudo, essa agressividade latente surgia na falta de atenção e
de cuidado com os bebês que eram expostos a situações de risco, não raro
eram vítimas de um acidente por descuido, com quedas sérias e graves.
No trabalho de Esther Bick sobre a pele (1968), ela traz a importância
da pele desde o início da vida com uma função integradora num momento
em que não há ainda uma unidade entre o eu e passa a haver mais coesão
do ego através da pele. Segundo ela, é necessário que a mãe exerça a função
de continente na relação com o bebê para que haja essa integração,
semelhante à consideração de Winnicott sobre a necessidade de uma mãe
suficientemente boa para um desenvolvimento saudável do bebê, conforme
já citado anteriormente (pág.10).
Willie Hoffer (1950) em seu trabalho Desenvolvimento do Ego Corporal
descreve um ego-bucal no qual a atividade do bebê de levar a mão à boca
tem uma função integradora. Esta atividade vai ampliando a percepção
do espaço, do mundo, do não-eu. Cada zona do corpo vai sendo gradual-
mente integrada ao ego do bebê pela ampliação deste espaço perceptivo.
Roberto Fernandez em seu trabalho La Piel como Organo de Expresión
(1978) descreve a função da mãe-pele protetora em que a mãe, além da
função de proteção, deve desempenhar a função de auto-representação. O
bebê ainda indefeso precisa de um objeto externo (mãe) para desempenhar
tais funções (de proteção e auto-representação) que se dá através do contato
de pele do bebê com a mãe. O autor considera que todo transtorno de pele
expressa a perda traumática desta função de proteção narcísica que é dada
pelo contato do bebê com a mãe.
Podemos pensar que a dermatite atópica seria, assim, uma das formas
do sujeito manifestar esta carência primária do objeto protetor e
reconhecedor de sua identidade. A partir do problema de pele, o sujeito
passa a ter alguém que olhe para ele e que cuide dele.
Observo que situações de separação e de perda, as quais trazem a
revivência de uma angústia primária de separação, contribuem para o
surgimento ou agravamento de algumas patologias cutâneas, especial-
mente nos portadores de psoríase, como relatarei mais adiante.

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A Importância do Toque

Desde quando nascemos as experiências táteis apresentam um papel


primordial na formação do aparelho psíquico, como relata Freud em O
Ego e o Id (1923) fazendo referência em nota de rodapé sobre as sensações
corporais e a formação do ego, já citado no trabalho (pág.9) : “o ego em
última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se
originam da superfície do corpo” (O Ego e o Id, pág. 40).
O bebê, inicialmente indiferenciado da mãe, vai adquirindo a noção
entre mundo interno e mundo externo a partir destas experiências de toque
da mãe, do contato de pele com a mãe. As sensações provindas deste
contato do bebê com a mãe deixam impressões no psiquismo que irão
influenciar a forma do indivíduo se relacionar com o mundo.
Harlow, a partir dos seus estudos com macacos (1958) observou que os
bebês-macacos criados em laboratório mostravam um forte vínculo com
pedaços de pano (fraldas de gaze dobradas) usados para forrar o tecido
áspero do chão e das gaiolas. Percebeu que os bebês criados em gaiolas de
arame sem nenhum revestimento de soalho sobreviviam com dificuldade,
se é que conseguiam, nos primeiros cinco dias de vida. Com base nestas
observações, Harlow decidiu construir uma mãe substituta coberta de pano
felpudo e dotada de uma lâmpada que irradiasse calor : uma mãe macia
terna e quente. E construiu uma segunda mãe substituta inteiramente de
arame sem a camada de pele de pano felpudo.
O resultado foi que os bebês-macacos valorizavam a estimulação tátil
mais do que a alimentação. Eles preferiam pendurar-se na mãe de pano,
que lhe fornecia contato físico sem dar leite, ao invés da mãe de arame que
os alimentava. Esse experimento nos mostra a importância do contato
corporal entre o bebê-macaco e sua mãe durante a amamentação, e como
esse contato é fundamental para o seu bom desenvolvimento.
Winnicott (1951) não compara os bebês humanos com os animais, mas
descreve os fenômenos transicionais e o espaço transicional que a mãe
estabelece para a criança entre ela e o mundo que poderiam ser entendidos
como efeitos do apego. Assinala que além das necessidades do corpo, há
as necessidades psíquicas que precisam ser satisfeitas por uma mãe
suficientemente boa (1962a). Como diz Winnicott, a insuficiência de
resposta à essas necessidades levam à perturbações da diferenciação entre
eu e o não-eu que podem ser irreversíveis.
Segundo Anna Freud (1965), as crianças que foram inadequadamente
levadas ao colo ou foram pouco acariciadas sofrerão de carência afetiva

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profunda desse tipo de atenção na adolescência e idade adulta. No início


da vida, a experiência do bebê de ser tocado de leve, aconchegado no colo
e tranquilizado pelo tato libidiniza várias partes do seu corpo, ajudando-o
a consolidar uma imagem corporal e um ego corporal saudáveis, aumenta
sua catexis com libido narcisista e promove o desenvolvimento do objeto
de amor ao cimentar o vínculo que existe entre criança e mãe. Não há
dúvidas de que nesse período a superfície de pele, em seu papel como zona
erotogênica, cumpre uma função múltipla em termos do crescimento da
criança. O simples ato da mãe segurar o bebê no colo e aconchegá-lo tem
um papel importante em vários níveis, inclusive para o subsequente
desenvolvimento sexual da criança.
A pele apresenta uma função especial também na velhice, quando a
capacidade sexual do homem está diminuída ou inteiramente reduzida, e
a necessidade de contato se torna maior. Com o envelhecimento, a pele
apresenta mudanças em seu aspecto físico – muda a textura, fica enrugada,
manchada, seca, perde a elasticidade - mas as necessidades táteis
permanecem ou até aumentam. O toque é importante visto que a pele é
uma área extremamente erogeinizada e portanto é uma fonte de prazer
sexual, como também no sentido de ter um holding num momento de
grande vulnerabilidade em que a necessidade de acolhimento aumenta. O
idoso se depara com muitas questões existenciais diante da proximidade
da morte, e, muitas vezes não recebe da família o suporte de que precisa,
ficando extremamente carente.

Relato de Casos

Relatarei inicialmente alguns casos do hospital e, posteriormente, trarei


um caso da clínica particular. Começarei pelo caso de P.R. que me chamou
atenção pelo fato do paciente ter comparecido integralmente às sessões
por um longo período sem faltar, e estes pacientes, por apresentarem
dificuldade em estabelecer vínculo, costumam faltar com freqüência ao
atendimento.

Caso A
P. R., de 62 anos, sexo masculino, casado, aposentado, chegou ao
hospital após ter passado por inúmeros outros hospitais sem um
diagnóstico definido e portanto sem resultado no tratamento. Tendo se
submetido a alguns exames foi confirmado o diagnóstico de psoríase,

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apresentando crises ocasionais as quais ele mesmo correlaciona o


surgimento de cada crise com fatores emocionais. Comenta que “toda vez
que sua cadela adoece, ele também adoece”. P.R. foi encaminhado para
tratamento na Psicologia paralelo ao tratamento clínico medicamentoso.
Ele comparece com assiduidade às sessões por um período de 10 meses
consecutivos, ficando completamente bom, sem qualquer manifestação
da doença, até que se ausenta por 2 meses sem dar nenhuma justificativa.
Ao retornar, relata a razão de sua ausência: sua cadela havia falecido. A
dor foi tão intensa que sequer conseguiu vir para falar do seu sofrimento.
É um paciente que se sente muito só, apesar de ter esposa e filhos morando
com ele. A cadela tinha uma representação especial para ele, e viveu o seu
falecimento como a perda de um objeto importante, já que transferiu para
este animal todo o seu afeto primário. Ele e sua cadela funcionavam em
sua mente como um único ser. Desta forma, o eu-pele de P.R. foi dilacerado
pela perda do objeto amoroso que funcionava para ele como um eu-pele
complementar. Ao perder a cadela sentiu que seu eu se dilacerou, como se
sua pele psíquica não mais pudesse envolvê-lo e conter os conteúdos
aflitivos, necessitando novamente de uma outra casca, de uma outra pele
que pudesse funcionar como continente de suas angústias primitivas e P.
R. volta a apresentar psoríase após longo período de completa remissão.
Como relatei anteriormente, esses pacientes com psoríase expressam na
pele a dor sentida, choram através da pele, abrindo feridas ao longo do
corpo muitas vezes feridas difíceis de cicatrizar.

Caso B
Este é um outro caso que mostra claramente o que relatei acima à respeito
da segunda pele como contenção da angústia após uma situação de perda
de um objeto amado. Só após 3 anos da perda da mãe e do pai ter sofrido
derrame D., 49 anos, sexo feminino iniciou um quadro de psoríase. Comenta:
“fui forte na hora que precisou mas parece que agora veio tudo para fora e
não está dando mais para segurar”. A segunda pele surge como continente
das angústias primitivas que a pele psíquica não consegue conter.
D. mostra toda a sua vulnerabilidade e fragilidade através da doença
de pele, como um apelo de também ter alguém que cuide dela.

Caso C
O., 51 anos, sexo masculino, traz o sentimento de rejeição por parte da
família, e principalmente pela sua mãe, relatando diversas situações em que

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isso aparece de forma bastante clara. O. percebe que as pessoas em casa


evitam sentar no mesmo sofá quando suas feridas estão secando e a pele
descamando, da mesma forma que não bebem água no mesmo copo que
ele, entre outras situações. Importante dizer que este paciente apresenta
psoríase em quase todo o corpo e que, apesar de estar se tratando há bastante
tempo, não responde satisfatoriamente à nenhum dos medicamentos. Penso
que a ausência do um holding da família, e principalmente da mãe, contribui
para o insucesso do tratamento na medida em que O. se sente só e desam-
parado como provavelmente um dia deve ter se sentido na sua relação inicial
com essa mãe e agora revive a angústia primária e o desamparo de uma fase
precoce de sua vida. Lembrando o que mencionai anteriormente (pág. 9)
sobre a necessidade de uma mãe suficientemente boa capaz de holding e
handling para que a criança possa, desta forma, se sentir acolhida e susten-
tada em sua angústia primitiva. A psoríase seria uma forma de O. receber os
estímulos táteis que lhe faltaram e de ter alguém que cuide e olhe para ele.

Caso D
Z., 54 anos, sexo feminino, casada, dona de casa, apresenta psoríase há
9 anos, alternando entre períodos de total reminiscência e períodos de
recidiva. Passado um longo período sem qualquer manifestação da doença,
surgem placas por todo o corpo imediatamente após o casamento de sua
única filha de uma prole de dois meninos e uma menina. Paciente relata
que se sente muito só sem a filha em casa apesar da presença constante do
marido, trazendo a vivência de perda de um objeto amado sobre o qual
tanto deve ter investido ao longo dos anos. Parece ter feito uma intensa
transferência na relação com essa filha sentindo-se esvaziada após sua
saída, lembrando o que Bion fala sobre a angústia de um escoamento da
substância vital através dos buracos psíquicos, não uma angústia de
fragmentação mas de esvaziamento.
Z. traz sua vulnerabilidade psíquica através da psoríase que surge como
uma defesa para evitar um contato mais próximo e assim se proteger da
angústia primária de separação. A saída da filha mobilizou aspectos
infantis, trazendo a revivência de uma perda primária do objeto amado.
Outro fator importante a ser assinalado é a não-aceitação de seu corpo
trazida por Z. que, desde que desenvolveu a psoríase, se distanciou
fisicamente do marido evitando expor seu corpo. Z. traz o medo de se ligar
e perder e então se protege a partir do problema de pele em que se afasta
do outro que ameaça ao mesmo tempo que precisa ter um outro que cuide
dela, assim trazendo toda a sua ambivalência.

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Caso E
Trarei agora um caso da minha clínica particular mostrando a falta de
contato de pele e o aspecto transgeracional no surgimento da doença. E.,
6 anos, sexo masculino, único filho do segundo casamento de ambos os
pais, chega ao meu consultório com queixa de dificuldades na escola e
muita agitação. Após passar por muitos médicos com dúvidas sobre seu
diagnóstico, finalmente o quadro foi definido como psoríase. E. começou
a apresentar a doença no ano anterior após sua meia-irmã ter se separado
e ter vindo morar na sua casa com a filha de 4 anos. Sua mãe passa a ter
que se dividir entre cuidar dele e da neta. É uma mãe muito sêca, pouco
afetiva, que também apresenta psoríase. Entendo que ela possivelmente
deve ter sofrido alguma falha inicial na sua relação com a própria mãe
(avó da criança) demonstrando dificuldades em externalizar seu amor pelo
filho, o qual por sua vez fica carente de afeto e de contato de pele, repetindo
o mesmo sintoma da mãe. A mãe provoca na criança o mesmo sintoma,
apontando para um aspecto transgeracional. A psoríase representa para
E. uma forma dele ter sua mãe mais próxima a partir dos cuidados diários
e procedimentos medicamentosos exigidos. Através da doença de pele a
criança traz a mãe distante mais para perto como também recebe o estímulo
que precisa num momento de carência afetiva.
Em relação ao eczema infantil, René Spitz questiona se essa reação
cutânea não representaria um esforço adaptativo ou, o contrário, uma
defesa. Uma forma da criança provocar uma reação na mãe que a levasse
a tocá-la mais freqüentemente; ou, uma forma de retraimento narcisista
no sentido de que, através do eczema, a criança estaria dando a si mesma
os estímulos da esfera somática que sua mãe lhe nega.
Concordo com ele se pensarmos que muitos problemas de pele surgem
após alguma situação de perda e carência afetiva. O bebê que sofre uma
falha de contato de pele na sua primeira relação de objeto (com a mãe) ficará
pré-disposto a desenvolver essa forma de expressão através da pele visto
que, através da patologia de pele, receberá os cuidados que lhe faltaram.

Conclusão

Quase todos os autores, desde S. Freud aos mais contemporânneos como


René Spitz., M. Mahler, E. Bick, Winnicott, W. Hoffer, Roberto Fernandez,
Didier Anzieu, falam da importância da pele como função integradora num
momento em que não há ainda unidade egóica. A pele e todas as suas
partes é o meio pelo qual o mundo externo é sentido, recebendo sinais que

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chegam do meio ambiente como também sinais provenientes do mundo


interno, como coloca Freud (ver pág.9).
Ashley Montagu (1986) se refere à pele como um espelho do
funcionamento do organismo. Empalidecemos de medo e enrubecemos
de vergonha; a pele formiga de excitação e adormece diante de um choque;
é um espelho de nossas paixões e emoções.
Concordo com o autor que a pele é um canal de expressão, e acrescento
que a doença de pele é uma forma de expressão de sentimentos que não
puderam ser verbalizados pois são pacientes que, por apresentarem uma
dissociação psíquica, não conseguem representar as emoções, e portanto
possuem dificuldade para falar dos seus sentimentos. Partindo da
compreensão dada por Didier Anzieu mostrando que as experiências de
contato do bebê com a mãe deixam um registro no psiquismo e no corpo
(pele), podemos dizer que uma mãe ausente ou pouco afetiva e, portanto,
a falta de contato entre mãe e bebê, trará conseqüências na integração da
personalidade do indivíduo, lembrando que a pele tem uma função de
contenção e de limite entre o eu e o não-eu.
O problema de pele não dá para esconder e dependendo do grau de
manifestação da doença surgem sentimentos de vergonha, humilhação,
constrangimento, vivências de rejeição e repulsa, interferindo nas relações
afetivas, no trabalho, na vida social, enfim, repercutindo na vida de forma
global. Observo que a maior repulsa e inaceitação vem por parte do próprio
sujeito que acaba por restringir a sua vida, evitando contatos mais íntimos
para não expor seu corpo. A pele não só tem um papel importante na
constituição do ser, mas na formação da sua auto-imagem. A tentativa de
negar a própria imagem no espelho acaba trazendo um agravamento do
problema cutâneo na medida em que o sentimento de inadequação
interfere na forma do sujeito se sentir e se relacionar com o outro e,
portanto, na forma do sujeito se colocar no mundo.
Tenho observado que estes pacientes trazem a revivência da angústia
primária de separação como um dos fatores desencadeantes da doença,
especialmente nos casos de psoríase , e em grande parte dos casos atendidos
a doença surge como expressão de uma hostilidade reprimida. Este fato é
confirmado por uma pesquisa realizada pelo psicanalista Alexandre
Kahtalian no Hospital Clementino Fraga Filho em que dezoito pacientes
com psoríase e história pregressa de espancamento tiveram as primeiras
lesões psoriásicas surgindo exatamente na área corporal em que houve
um trauma físico, marcando e desenhando a região espancada. Repetindo
o que já foi dito, as experiências corporais da infância deixam um registro

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impresso no corpo e no psiquismo e a doença de pele aparece como uma


forma de expressão dessas vivências. Um paciente refletiu em uma sessão:
“se eu não respondo, as feridas saem pelo corpo”.
Concluindo, em alguns casos a patologia de pele surge de um desejo
inconsciente de ser tocado, de receber o handling da mãe, como coloca
Winnicott ; em outros casos, onde houve história pregressa de agressão, as
patologias de pele estão sempre de alguma forma ligadas à impulsos agres-
sivos e hostis que não puderam ser externalizados e o fazem através da pele.
Vários estudos mostram, e tenho podido comprovar que para a melhora
do quadro clínico dos pacientes com patologias de pele é imprescindível
poder falar de seus sentimentos e vivências, e daí a necessidade do
tratamento psicanalítico paralelo ao tratamento medicamentoso quando
o paciente poderá, desta forma, repetir na relação transferencial com seu
analista situações primitivas vividas na relação primária. Além disso, o
analista exercerá duas funções importantes que faltaram na relação
primária: a função do holding e a função de nomear os afetos, pois observo
que muitas vezes o paciente está impedido de falar do que sente porque
não consegue dar nome aos seus sentimentos.
Se consideramos que toda doença de pele representa ter havido uma
falha na relação inicial com a mãe, no caso específico da psoríase penso
que ela surge como uma ferida aberta por todo o corpo expressando a
falta sofrida. Em outras palavras, a hostilidade reprimida em relação à
essa mãe faltosa é projetada no próprio corpo em que o sujeito expressa
na pele a dor sentida.
Pela própria complexidade que a pele envolve e por apresentar uma
multiplicidade de funções importantes em nossa vida, torna-se difícil uma
compreensão clara da subjetividade das diversas patologias de pele e suas
interligações entre o âmbito psíquico, físico e emocional. A ligação entre o
fator emocional e a doença de pele é bastante evidente, em especial na
psoríase, mas no entanto, permanece obscuro de que forma esses fatores
atuam e até onde eles são determinantes, e ainda, porque determinadas
pessoas desenvolvem este tipo de patologia e outras, que também sofreram
falha na relação com a mãe, não desenvolvem. Não há como estabelecer
uma causalidade única. Talvez possamos entender se lembrarmos da
famosa série complementar 2 de Freud em que ele considera que a doença

2
Expressão empregada por Freud para explicar a etiologia das neuroses e aparece pela
primeira vez em 1916 na “Conferência XXII: Algumas Idéias sobre Desenvolvimento e
Regressão - Etiologia” (Pág. 406).

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surge a partir da conjugação de três fatores : hereditariedade, experiências


traumáticas vividas e fator desencadeante. Temos que tratar cada doença
de pele individualmente. A doença se circunscreve de forma singular em
cada indivíduo e, portanto, a forma pela qual o mundo subjetivo se expressa
precisa ser investigado caso a caso através da história de vida do sujeito.

“The baby new to earth and sky,


What time his tender palm is prest
Against the circle of the breast,
Has never thought that ‘this is I’.

But as he grows he gathers much,


And learns the use of ‘I’ and ‘me’ ,
And finds ‘I am not what I see,
And other than the things I touch’,

So rounds he to a separate mind


Form hence clear memory may begin,
As thro’ the frame that binds him in
His isolation grow defined.

This use may lie in blood and breath,


Which else were fruitless of their due,
Had man to learn himself anew
Beyound the second birth of Death.”

“O bebê novo ao céu e à Terra,


Quando sua macia palma é apertada
No círculo do peito
Ainda não pensou nenhuma vez ‘Isto sou eu’.

Mas crescendo absorve muito


E aprende os usos do ‘eu’ e do ‘mim’.
E descobre ‘não sou o que vejo,
Sou outro que não as coisas que toco’.

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Vai assim delineando uma mente distinta


De onde pode originar-se a memória clara
Enquanto pela moldura que o cerca
Sua isolação cresce em definição.

Assim este uso pode repousar no sangue e na


respiração
Que de outra maneira seriam estéreis.
Tivesse o homem que redescobrir
Além do segundo nascimento da Morte.” *

(Poema In Memoriam de Tennyson, 1850)

Agradecimentos
À Anna Guelerman P. Ramos, minha analista, por todo o seu amor e
dedicação, sendo uma luz que clareou o meu caminho, levando-me à
realizações em diversos aspectos da minha vida.
À Eronides Borges da Fonseca, minha eterna supervisora, pela sua
dedicação e disponibilidade para ensinar e me ajudar a crescer.
À minha orientadora neste trabalho, Rosa Sender Lang, pelo seu carinho
e ajuda.
Ao meu pai, que sem o seu apoio e incentivo não teria sido possível
realizar a Formação.
Ao meu marido, companheiro em todas as horas e sempre contribuindo
para meu crescimento.
Ao meu filho, que me inspira e me incentiva a nunca desistir dos meus
sonhos.
E à minha mãezinha, minha maior amiga, que está comigo sempre.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VIII – Número 1 – 2007

HOMENAGEM:

Manhães da Psicanálise
Vera Márcia Ramos*

Se eu pudesse viver novamente a minha vida,


na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido,
na verdade bem poucas coisas levaria a sério. Não seria pouca coisa
Seria menos ingênuo, correria mais riscos, viajaria mais,
contemplaria mais entardeceres, subiria nas montanhas, nadaria
mais rios,
iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e comeria
menos lentilha.
Teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada
minuto de sua vida. Claro que tive momentos de alegria
mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.
Por que, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos, não os
perca agora.
Eu era um desses que não ia a parte alguma sem um termômetro,
uma bolsa de água quente, um guarda chuva e um pára-quedas.
Se voltasse a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera,
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres
e brincaria mais com crianças se tivesse outra mesma vida pela frente
Mas já viram tenho 85 anos e sei que estou morrendo.

Instantes – Jorge Luis Borges.

*
Psicanalista, Membro Efetivo da SPRJ.

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“- Estamos falando da liberdade e da forma simples com


que as pessoas devem ter para se comunicar. Uma coisa
que a gente sendo paulista aprende, porque dizem que
paulista é bem fechado, verdade que é, mas na intimidade
devemos ser simples, conversar com naturalidade,
discutir as coisas com as pessoas. Ainda mais sendo da
mesma especialidade o encontro deve ser amigável”
Diz Maria Manhães.

Resumo
Ao pensar em um artigo de divulgação da psicanálise, a autora
escreveu sobre Maria Manhães, enfocando sua biografia, uma
evolução de suas idéias psicanalíticas, desenvolvidas em livros e
trabalhos publicados, enaltecendo a importância da valorização dos
autores brasileiros.

Summary
On writing an article to broaden the knowledge about psychoanalysis,
the author wrote about Maria Manhães, focusing in her biography,
an evolution of her psychoanalytical ideas develop in books and works
published, emphasizing the value of brasilian authors.

Nasceu em 1o de outubro de 1917 em São Carlos, no interior de São


Paulo. Aprendeu a cumprimentar todo mundo. Conta com orgulho que
seu pai era médico do bispo, mas aprendeu com sua mãe a andar na rua e
cumprimentar as prostitutas. Sua mãe lhe dizia: “Cumprimenta, você nem
sabe, mas muitos podem ser clientes de seu pai. Não vai convidar para
lanchar na sua casa, mas é uma pessoa da cidade, e eu aprendi desde
pequenininha a cumprimentar as prostitutas”.
Foi desta forma amistosa e carinhosa que Maria Manhães me recebeu
em sua casa e sua intimidade, me introduzindo na sua história de vida,
bem como nas suas origens. Logo de início, conversamos sobre os
relacionamentos e a importância da não discriminação. Esse encontro me
possibilitou ter subsídios para escrever este trabalho. Inicialmente relato

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alguns aspectos do percurso de Maria Manhães na medicina, na psiquiatria


infantil, na psicanálise e, posteriormente, desenvolvo suas idéias
psicanalíticas a partir de alguns trabalhos.

Um Esboço de Biografia

Seu pai, Doutor Manhães, era negro, de estatura mediana nem gordo
nem magro. Falava muito bem francês e alemão, imprescindível para os
médicos da época. Escrevia e discursava com muita facilidade. A mãe, Dona
Caridade era mulata de pele clara, com os traços negros acentuados.
Recebiam em sua casa os visitantes importantes.
A primeira infância foi vivida em São Carlos do Pinhal, cidade onde
nasceu, que lembra Teresópolis, por ter a mesma altitude e clima agradável.
Esse clima ameno e o fato de haver calçamento e bonde, estimularam a
ida para lá de estrangeiros como alemães, franceses e italianos.
Com idade de 10 anos, a família muda para Catanduva, onde fez o
admissão e até que, em 1931, mudam para o Rio de Janeiro. A situação da
família começa a decair e frustraram-se uma série de expectativas
profissionais. O pai adoeceu e, posteriormente, se soube que era diabetes.
Ele reagiu e teve que retornar para o interior paulista. Partiram todos para
Marília, menos Maria que permaneceu no Rio, aluna interna no Instituto
LaFayette. Entrou para a Faculdade Nacional de Medicina na Praia
Vermelha em 1938.
Seu pai, era médico, formado no Rio de Janeiro, colega de turma dos
maiores professores de sua faculdade. Quando estava na faculdade não
podia matar aula “Não pode matar aula não, você é filha do Dr. Manhães.
Você está aqui sozinha; eu fico vigiando você”. Maria me contou com sorriso
e humor esses fatos, o que, a seu ver, era bom pois lhe dava segurança.
Sentia-se cuidada e querida pelos professores, pois morava sozinha no Rio
de Janeiro, afastada dos pais.
No seu livro Manhã de Manhães relata suas memórias, a vida de sua
família e a sua própria vida. Conta as mudanças de cidade do pai, a
diversidade de origem das pessoas de São Carlos e refere a sua vocação
para a medicina.

Da advocacia para a medicina não é só um passo. Mas, se algum


dia hesitei entre os dois caminhos dei decidida e rapidamente os
passos para a carreira médica. Teria marcado presença na opção

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o velho e bom Édipo? Por certo. Mas não apenas. Nem argüirei aqui
o ter brincado de doutor na infância; isso faz qualquer criança, e
sua lembrança o mais das vezes serve de lenitivo para as frustrações.
É forçoso lembrar, no entanto, que, em pequena, certa feita entrei
no consultório do papai e, dirigindo-me a uma cliente na sala de
espera, disparei-lhe de supetão uma série de perguntas: “- O que é
que você está sentindo? Está com dor de barriga? O Chico não desceu?
Faltava apenas o estetoscópio pendurado no meu pescoço” 1.

Sua turma da Faculdade Nacional de Medicina, turma de 1944 era


“pequena”, apenas 90 alunos, tinham muita ligação, gostavam de sair e
dançar. Recentemente foi colaboradora na publicação de um livro sobre
os componentes da turma, “Turma Sempre Unida.FNM UBr-1944” e
comenta como os tempos mudaram.
“Podia passar uma noite de Natal visitando a Inaura (Inaura Carneiro
Leão) visitando Maria Luisa (Maria Luisa Pinto, psicanalista, amiga de
infância) e andando pela rua distribuindo presentes sem ser perturbada,
não tinha o menor perigo. Hoje tenho medo de ir até à esquina. O mundo está
problemático e as relações mais complexas, as pessoas são mais superficiais,
não se sabe com quem se está lidando, as pessoas não têm interesse no que o
outro faz e precisa. È só eu e mais eu” - falou nostalgicamente.
Esses comentários mostram uma Maria “antenada” com o mundo e
suas dificuldades. Continua ativa e produzindo. Alguns dias após nossa
conversa, foi uma das homenageadas pelo Conselho Regional de Medicina,
(CRM), devido a mais de 50 anos destinados à medicina, evento para o
qual se preparava planejando sua ida ao cabeleireiro, demonstrando seus
cuidados com sua parte feminina.
No início de sua vida universitária foi a 1ª. Interna oficial, era a única
estudante lotada no Engenho de Dentro, no Hospital de Neuropsiquiatria
Infantil, no serviço de crianças doente mentais. Durante o curso foi
trabalhar na Clínica Médica com Pedro Nava e no Pronto Socorro Sousa
Aguiar. Essa primeira experiência com psiquiatria infantil, bem como as
que se seguiram fazem parte do que eu chamarei a pré-história da
Psicanálise de Crianças no Rio de Janeiro.
Após sua formatura foi trabalhar da Sociedade Pestalozzi dirigida por
Dona Helena Antipoff. Era uma instituição conhecida no Leme (Zona Sul

1
Maria MANHÃES, Manhãs de Manhães, p. 70-71

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do Rio de Janeiro) que atendia crianças e adolescentes com retardo mental.


Chegou a dirigir a instituição quando D. Helena ia a Belo Horizonte. Fez
concurso para o Departamento Nacional da Criança, aprovada como
médica puericultora, e foi aberto o Centro de Orientação Juvenil sob
direção de Dona Helena, aonde foi trabalhar, aí já com adolescentes. Lá
conheceu Regina Viana, primeira assistente social psiquiátrica e americana
Reba Campbell, psiquiatra e psicanalista que havia vindo dos Estados
Unidos. Diferente da experiência da neuropsiquiatria infantil, com crianças
psicóticas, uma experiência sofrida para quem estava no início do curso
médico e morando sozinha no Rio de Janeiro; da Pestalozzi, com crianças
retardadas; as crianças do Centro de Orientação Juvenil progrediam, pois
as crianças ou adolescentes que procuravam o Centro eram “normais”
porém com problemas.
A esposa do Ministro da Saúde da época, Clarita Mariani, pediu-lhe
para fazer uma clínica para crianças na Praia Vermelha baseada nas clínicas
de orientação infantil inglesas, as Child Guidance Clinics, e Maria Manhães
inaugurou a 1a Clínica de Orientação da Infância na Paria Vermelha, que,
posteriormente, acabou. Atendia crianças da Urca, Botafogo e outros
bairros vizinhos com a colaboração de psicólogos e assistentes sociais.
Segundo Maria esse trabalho não era bem visto pelos colegas psiquiatras,
pela maneira como o trabalho era realizado pois se usava a palavra e não
injeções. Conversar sem passar remédios, na freqüência de uma vez por
semana, com uma criança sozinha, ou seja, sem a presença dos pais, fazia
com que os pais se sentissem aborrecidos por não poderem opinar na
relação criança-terapeuta e os demais colegas pensassem que aquilo não
era trabalho. O tratamento era psicoterápico, feito de uma maneira simples,
aprendida pessoalmente em livros, tinha o apoio de Reba Campbell e Rose
Alvernaz, que era portuguesa e fazia parte do serviço social. Curioso que
desvalorizar a psicoterapia, ainda persiste até os dias de hoje.
Devido a seus contatos, e interesses nessa área de criança e adolescente,
conseguiu uma bolsa integral do Conselho Britânico para especialização
em psicoterapia infantil, indo para a Inglaterra. Inicialmente foi para Leeds,
uma cidade que não lhe interessou, e por querer algo melhor reviram seu
pedido, e foi então para Londres por mais de um ano na Tavistock Clinic,
dirigida por John Bowlby. Visitou os melhores analistas, Anna Freud, que
lhe enviou uma carta, e Winnicott. Este foi gentilíssimo, pois estava doente
e posteriormente telefonou e pediu que o desculpasse e que teria maior
prazer em lhe atender. Convidou-a para freqüentar a sua clínica, e foi lá
vê-lo trabalhar. Era muito bonito porque Winnicott, por ter sido pediatra,

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mesmo fazendo psicanálise, pesava as crianças e pedia a enfermeira para


preencher a ficha, que conteria dados da mãe e até da avó de cada criança.
Estabelecia um contato muito bom com o cliente e com quem ele ajudava.
Já Bowlby era um psicanalista intuitivo e muito simples, que era procurado
por pessoas das colônias inglesas.
Foi interessante o comentário de Manhães sobre se colocar como igual
no relacionamento com os ingleses intelectuais:

“É muito fácil conviver com os ingleses intelectuais, é não ser boba,


não ter medo e ficar arredia. Aí se aproximam. O inglês intelectual
é ferino, ele diz alguma coisa para você, às vezes vai lá no fundo e te
pega, se você sente que está sendo ferida você calmamente ri e
responde na mesma altura. Ele cai na gargalhada e fica seu amigo”
– falou lembrando-se de suas relações com os analistas da época.

Como uma coincidência da vida, na sua ida de navio, relacionou-se com


a cunhada de Adelheid Koch, psicanalista, fundadora da Sociedade
Psicanalítica de São Paulo, amiga de Beata Vitória, consulesa do Brasil em
Londres que vivia com Walter Schindler. Matilde recomendou-lhe
Schindler para análise. Este era um analista judeu alemão refugiado na
Inglaterra, com quem teve a primeira experiência de análise e lhe indicou
que procurasse Werner Kemper no seu retorno ao Brasil.

Maria Manhães e a Psicanálise

Membro efetivo, docente e didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de


Janeiro (SPRJ) e membro titular da IPA, Maria iniciou sua formação
psicanalítica em 1955 fazendo análise com Werner Kemper e, posterior-
mente, com Luiz Guimarães Dalheim. Pertenceu à 2ª Turma da Sociedade,
na época, Centro de Estudos Psicanalíticos que logo se transformou em
SPRJ. Recebeu uma bolsa para treinamento em psicanálise do Serviço
Nacional de Doenças Mentais. No ano de 1960 passou a membro associado
e foi a 1ª de sua turma a apresentar trabalho oral e escrito, para concluir a
formação analítica. Sua vinculação na Sociedade é longa e leal, tendo tido
alguns cargos administrativos. Na gestão de 1966 a 1968 foi secretária
quando o presidente era Dalheim. Em 1969 a 1971 foi presidente da
Sociedade Psicanalítica tendo como secretário Leão Cabernite. Contribuiu
para organizar os arquivos do DAP (Departamento de Assistência

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Psicológica). No 25º aniversário da SPRJ era diretora da Comissão


Científica, tendo organizado as festividades da época.
No intuito de desenvolver as idéias analíticas de Manhães, fui reler e
ler vários de seus trabalhos. Diria que me surpreendi, ao fazer uma leitura
mais profunda, com a sua tentativa de fazer avanços na teoria psicanalítica.
Vários de seus trabalhos têm essa proposta, e quando não os consegue,
procura sempre ter uma visão ampla do assunto que propõe. A curiosidade
e a pesquisa, bem como a criatividade são traços característicos de seu
pensamento, bem como de sua escrita. Devo lembrar que pela qualidade
de sua escrita, foi convidada a fazer parte da Sociedade Brasileira de
Escritores Médicos. Fui percebendo ao longo de sua obra um pensamento
moderno e atualizado, tendo sempre como base Freud, alguma influência
das idéias de Melanie Klein, mas observando o pensamento de outros
autores. Em seus textos, esse aspecto abrangente, se manifesta na utilização
de filósofos e sociólogos e outras áreas afins do conhecimento, para
fundamentar os seus textos. Como grande admiradora das artes e da
literatura, estas se mostram sempre presentes nos trabalhos que escreve.
Enquanto relia seus trabalhos, me dava conta mais uma vez da dificuldade
que nós psicanalistas brasileiros temos de valorizar nossos autores. Parece-
me que esse é um traço comum na cultura de nosso país e que tendemos a
reproduzir. O Instituto de Ensino da Sociedade Psicanalítica do Rio de
Janeiro, numa tentativa de sanar esse problema, decidiu que no 5o ano de
formação psicanalítica, cujo currículo é opcional privilegiará os autores
brasileiros. Vários deles poderão desta forma discutir suas idéias ao vivo
com os candidatos, enriquecendo o seu conhecimento.
Manhães escreveu vários trabalhos, alguns reunidos em livros que
foram publicados, contendo artigos apresentados em congressos. Dando
um exemplo de vitalidade, de vinculação com a vida e capacidade de estar
antenada com seu tempo em 2003 apresentou seu trabalho “Envelheci-
mento” no XIX Congresso Brasileiro de Psicanálise em Recife.
Um de seus trabalhos mais conhecidos e do qual se orgulha e será
publicado na íntegra, nessa edição é o chamado Peeping-Tom ou a
“Importância do Fator Visual na Neurose Obsessiva”. Maria Manhães foi
a primeira psicanalista brasileira, junto com Virginia Bicudo a apresentar
trabalho de psicanálise em Congresso Internacional de Psicanálise, em
Amsterdam, no ano de 1965. Foi ainda a primeira psicanalista a ilustrar o
trabalho com um filme cinematográfico. Peeping Tom (Mórbida
Curiosidade). Este fato enfatizado em nossa conversa, demonstra uma
autora ciosa dos valores que conquistou no decorrer de sua vida.

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Lançar mão da via cinematográfica foi um recurso muito utilizado em


seus trabalhos quando, por exemplo, se valeu, para falar em um trabalho
sobre a Identidade da Mulher, do filme italiano Appe Regina. Tal como na
psicanálise aplicada, para reformular o conceito da latência, usou como
exemplo a ópera de Ravel ilustrada com a história de Colette L’enfant et les
sortileges e, também, o livro Alice no País das Maravilhas de Lewis Caroll.
Falando sobre a adolescência, ilustrou com Anne Marie (A mulher dos
meus sonhos) filme francês cuja temática é a relação de um adolescente
do sexo masculino com sua mãe viúva. The Member of the Wedding (Cruel
Desengano) um clássico americano trabalhando sobre a identidade, e
desenvolvendo a história de uma adolescente órfã de mãe, e as vicissitudes
de seu complexo de Édipo vivendo com o pai, uma babá negra, recrudescido
pela chegada de um irmão mais velho. Harold and Maud com a mesma
temática. No seu livro O Prisma da Psicanálise na Cultura descreve suas
tentativas de utilização desta temática de Psicanálise Aplicada, na America
do Sul, o que sempre lhe deu muito trabalho pois sua luta foi conservá-los
dentro dos parâmetros da ciência que escolheu. Além de ter tido um bom
treinamento, procurou respeitar e diferenciar o artístico do popular.
Acredito como ela, que trabalhar com crianças e adolescentes ajudou-a a
encontrar meios para transmitir fatos importantes, para um meio não
científico.
No seu primeiro livro publicado Psicologia da Mulher apresenta um
grande número de trabalhos do seu período de Psiquiatria Infantil,
trabalhos sobre grupoterapia, originários de uma época em que trabalhou
com grupos no Hospital Pinel, e outros temas como Mania, Criatividade
e Critérios de Cura, apresentados em Congressos Nacionais e Latinos
Americanos. Contou com a colaboração de Adolpho Hoirisch, um amigo
e colaborador em vários outros trabalhos, Eustachio Portella Nunes,
Nylde Macedo Ribeiro e Dirceu Santa Rosa.
Manhães, em seu artigo “Psicologia da Mulher”, faz uma revisão das
teorias psicanalíticas da época utilizando conceitos atualizados e modi-
ficados por Melanie Klein, Ernest Jones e Karen Horney, que procura-
vam dar ao estudo da mulher uma concepção feminina, realizando uma
revisão dos conceitos freudianos que são compreendidos como falocên-
tricos (Karen Horney) ou estudados à luz das contribuições de Melanie
Klein, no qual Ernest Jones afirma que “a mulher não seria psicologica-
mente um homem castrado, mas ela já havia nascido como mulher”.
Compreende que o retrato que Melanie Klein faz de sua teoria sobre o
desenvolvimento da mulher, soa mais verdadeiro do que o de Freud. Para

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Manhães, a mulher necessitaria de mais objetos internos e dependeria


muito mais deles, gerando, assim, a inclinação para a intriga, a
sugestionabilidade, aliado a plasticidade. E tudo seria em prol da
maternidade, pois é a mãe que transmite aos filhos os padrões culturais
no início da vida, tanto à menina, quanto ao menino. Por isso considerou
que a mulher teria que conservar, sem prejuízo de si mesma, padrões
masculinos.
Sua abordagem considera a relação com o homem e tenta uma
compreensão despida de racionalizações, para entender a mulher. Haveria
um trauma, uma ferida narcísica no início das civilizações, experimentada
por ambos os sexos. O homem atingido por não poder procriar, a mulher
porque gerando também daria nascimento ao mal. Portanto percebe as
tentativas de ambos os sexos para negar e compensar o nascimento. O
homem gerando os mitos dos nascimentos por meio dos seres masculinos
(Prometeu, Pigmaleão, etc.) a mulher negando seus órgãos reprodutores.
Tentando sintetizar o retrato da mulher o denominaria “Sorriso de
Gioconda” em substituição ao chamado “enigma feminino” tentando
objetivá-lo. A razão principal residiria em ter Gioconda, passivamente
deixado retratar-se, e desde então muito se tem dito e escrito, o quadro
tem sido alvo das mais variadas interpretações. Como resposta, um
pequeno sorriso malicioso. O quadro de Gioconda ilustra de maneira cabal,
ser a mulher um ótimo receptáculo das identificações projetivas.
Para a autora a mulher é um ser humano diferenciado, possui
características próprias e só pode ser investigada considerando-a como
tal. Ela não é como o homem, mas nasceu para viver com o homem. São
seres que se completam.
Não poderia deixar de mencionar o quão atual percebi ser as idéias de
Manhães, visto ser este um assunto do meu interesse já tendo escrito
trabalhos sobre o tema.
Numa busca de novas abordagens em trabalhos posteriores podemos
citar Frustração “Oral e Falicidade”, “Feminilidade” e “Édipo Tardio na
Mulher”. No trabalho posterior de 1991, apresentado no 13o Congresso de
Psicanálise, sobre “A Identidade da Mulher”, citado anteriormente neste
artigo, Manhães reitera algumas de suas conclusões anteriores, porém
sempre com novos avanços.

A mulher é a senhora da vida e da reprodução humana. Esse talvez


seja um dos temores que faça com que ela, paradoxalmente se sinta
tão grande mas ao mesmo tempo tão pequena e delicada; ela intui

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ser essa também uma das razões pelas quais ela é alvo dos ataques
invejosos do homem. São momentos tão importantes nos quais ela
se dá conta que realmente não é só, ela não quer ficar só. Ela precisa
do homem. Ele é o seu companheiro.2

Enfocando nesse trabalho o aspecto castrador do homem, em relação


à mulher, representado por práticas médicas na sociedade contemporânea,
bem como o aspecto castrador da mulher, conclui “que a mulher se faz
mulher ao olhar da mulher, mas esse fator terá que estar em interação
com o conhecimento do parceiro masculino”.
O trabalho sobre Comunicação Extraverbal e Situação Psicanalítica,
Maria ainda era “jovem” na psicanálise, e um tema pouco difundido, onde
demonstrou sua aplicação ao estudo, pesquisa e escrita. Um tema para o
qual o apoio teórico era escasso, e com enorme variedade de aspectos.
Mesmo assim foi um trabalho fundamentado, mostrando a importância
da comunicação, na qual não se pode limitar apenas ao que é verbalizado.
Acredito que sua experiência com crianças e adolescentes onde a
comunicação se faz utilizando outras formas que não só a verbalização
contribuíram para realizar esse trabalho.
Esse tema lembrou-me uma experiência pessoal, quando atendi um
adolescente de onze anos com um quadro esquizóide, que não falava.
Estudei esse, e outros trabalhos sobre comunicação extra verbal, no intuito
de entender o que ocorria. A comunicação desse paciente era feita através
da sua postura, seus movimento, aos poucos evoluindo para camisas nas
quais havia algo escrito ou algum desenho significativo, e revistas em
quadrinhos, que iam revelando elementos que me permitiam compreender
e interpretar. A supervisão de muita sensibilidade de Nylde Macedo Ribeiro,
contemporânea de Manhães, me dizia: “Ele parece um passarinho, qualquer
coisa o assusta, precisa alimentá-lo aos poucos” me permitiu complementar
essa compreensão. E, após nove meses o paciente começou a falar. Esse
atendimento foi realizado no Cento de Orientação Juvenil, do Hospital
Fernandes Figueiras, da Fundação Oswaldo Cruz, serviço no qual trabalhei
por muitos anos, e, aonde Manhães havia iniciado sua carreira. Enquanto
realizava esse trabalho, percebi aspectos de identificação em nossas origens.
Um de seus trabalhos em que trata da latência, “Considerações sobre o
Conceito de Latência” é representativo da tentativa de avançar as teorias

2
Ibid, Identidade da Mulher, p. 6

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da época. Estávamos em 1970, a psicanálise de criança ainda caminhava


para construir um corpo teórico significativo tanto no Brasil, quanto no
mundo. Havia ainda o predomínio da idéia de que esse seria um período
de “adormecimento” como postulado por Freud, idéia com a qual não
concordava. Acreditava que o desenvolvimento por seu contínuo mantém
operativo os elementos instintivos, afetivos, fantasias e relações objetais.
Percebia alguma dificuldade dos analistas ao utilizarem os conhecimentos
advindos da psicanálise de crianças, e do rico acervo condensado nas
histórias infantis. Reconhecia e acreditava que o interesse dos estudos e
pesquisas estavam centrados nos primeiros anos de vida e na adolescência.
A percepção de Manhães de que o trabalho com crianças não era bem
visto pelos psiquiatras da época, porque era “conversa”, bem como essa
dificuldade que os analistas tinham de utilizar conhecimentos advindos
da psicanálise de criança, apontam para um problema que ocorreu durante
um período da psicanálise. No trabalho “Algumas Considerações sobre a
Análise de Crianças” mostro como análise de crianças tinha um lugar menor
dentro da psicanálise e as várias razões para isso. Desde essa época houve
um considerável avanço, inclusive no reconhecimento oficial da IPA
(International Psicoanalitical Association) da formação de analistas de
criança e adolescentes e a inclusão do tema em Congressos Nacionais e
Internacionais. É nesse trabalho sobre latência que utiliza Alice no País
das Maravilhas de Lewis Caroll e L’Enfant et les Sortileges, este último
baseado numa ópera de Ravel com o libreto de Collete, no qual relata um
episódio envolvendo um menino de seis anos. São suas conclusões:

O período de latência, visto na sua intimidade, delimita uma fase


intermediária do desenvolvimento psicológico da criança. Nesse
momento estão em jogo de maneira mais ativa e dramática as forças
regressivas e progressivas, operando quer em sentido contrário quer
de maneira sinérgica num ir e vir contínuo
(...) Havia, pois, durante o período de latência, a recapitulação das
fantasias prégenitais em um momento em que a atuação dos
elementos progressivos já podem agir como forças estabilizadoras.
Isso permite não só a expressão das fantasias inconscientes mas, o
que é muito importante a reformulação dos dados anteriores, às
expensas do intenso trabalho de regressão que, concomitantemente,
se desenvolve nessa fase do crescimento (...)
O período se caracteriza também por uma crise de identidade ao
“Quem sou eu?” soma-se o “Quem é você”. Inerente ao processo de

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individuação, estão atuantes também os elementos da bissexuali-


dade em busca de definição, e predomínio do masculino para o
menino e o feminino para a menina.
Além das pressões internas verificamos a existência das advindas
do exterior, através da cultura, objetivamente representadas pelas
instituições sobretudo a escolar. Elas podem tornar-se tão exigentes
e impeditivas ou tão liberais e permissivas que afetarão de maneira
não sadia o desenvolvimento do latente.3

Esses avanços obtidos por suas idéias, correspondem as descrições


próximas a puberdade. Num trabalho posterior, isso é reconhecido e citado
a contribuição de Eronides Borges da Fonseca, que havia sido sua analisanda
e conhecida analista de criança e adolescentes no Rio de Janeiro.
Com o desenvolvimento de sua clínica psicanalítica e vida institucional,
houve um afastamento do trabalho com crianças mas manteve seu interesse
pela Psicanálise da Criança e do Adolescente, tendo trabalhos apresentados
e publicados sobre o tema. Em um deles “Função da Adolescência”, de
1980, utiliza sua experiência além de integrar conhecimentos aparente-
mente simples, produtos de observação, com conhecimento psicanalítico.
A impressão que tenho ao ler mais profundamente seus trabalhos e que
em alguns trechos “Maria falando é Maria escrevendo”. Não há
especulações teóricas, que poderiam facilmente ser depositadas em um
canto qualquer, mas como ela diz:

versões de casos que se sucedem, dentro ou fora do consultório, fatos


que me tocam ou coisas que me afetam de uma maneira ou outra.
Eu brinco com esses materiais como um caleidoscópio, crio versões.
O que dá no mesmo. Em algum momento me detenho numa figura
e penso ter entendido o movimento das pedrinhas4.

No início e nas considerações finais desse artigo há um ponto que


gostaria de ressaltar que é a sua vinculação com a medicina. Eis um trecho
das considerações finais sobre a adolescência:

Se a vida do adolescente é uma aventura, o tratamento psicanalítico


tem para ele a mesma conotação. O jovem está confuso, chega

3
Ibid, Kaleidoscópio, p.26-27
4
Ibid, p.8

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mesmo, muitas vezes, a se dar conta, mas o que está se passando


não pode ter ainda e não há condições para ele de dar uma
apreciação teleológica. Admite por isso valores transitórios,
aceitando os como estáveis pois é necessário, nem que seja por um
dia, acreditar em si e Ter a idéia de estar fazendo algo por si e/ou
para outrem.
Pensam então que é preciso ser cruel, ser justo, mau, altruísta, cínico,
premeditado com o comportamento que julgam ser o mais
apropriado no momento. A escala de valores ainda está se formando
e o conhecimento de si próprio ainda é precário.
“Talvez seja porque sou velho, M.Poirot, mas acho que há qualquer
coisa na juventude indefesa embora tão arrogante, impiedosa que
me comove até as lágrimas’.
Essa turbulência toda, expressões desnecessárias, a sensibilidade à
flor da pele, o uso indevido ou exagerado de certos mecanismos de
defesa, tudo isso me faz trazer para aqui, agora, a imagem analógica
que sempre tive desse período. Quando um organismo sadio é
surpreendido por uma hemorragia grave ele lança mão de todos
os recursos: encontrar na corrente sangüínea células jovens,
libertadas pela medula óssea, dá um grande alívio e faz pensar haver
reação e que a tendência é ficar tudo bem5.

A vinculação com a medicina está presente em vários trabalhos. Na


conversa que tivemos refere-se explicitamente a importância da
semiologia, onde o destaque é dado aos sinais como postura do paciente,
vestimentos, maneira como se apresenta e cumprimento. Influência do
Pedro Nava sobre quem escreve no seu artigo “Homenagem ao Médico
Escritor do Ano Pedro Nava – 1981”.

Tínhamos que aprender, na prática, naquele estado de tensão


permanente que ele descreve em “Beira Mar”. Vivíamos solertes,
todos os sentidos aguçados, diagnóstico pelo olfato “odor de violeta
e vinagre dos diabéticos em coma, de coalhada fecalóide dos tifentos;
de alho do reumatismo poliarticular agudo”. Semiologia desarmada,
contato direto, raciocínio... .6

5
Ibid, p. 38-39
6
Ibid, p.136.

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Penso que em parte vem daí sua satisfação com a valorização que está
tendo a Neurociência, repetindo as investigações de Freud expostas no
“Projeto”. Acredita de maneira firme, que esta será uma forma de resgatar
a psicanálise para os médicos.
À medida que vou aproximando do final desse trabalho, me dou conta
de como a vida de Maria foi preenchida por seu trabalho clinico, pelas
análises que fez e pacientes que se trataram, pelos relacionamentos que
conquistou e manteve ao longo de sua vida. A lealdade aos amigos é uma
característica, bem como a vinculação com a SPRJ, os artigos e livros que
foi produzindo. Com esse caminhar, estabelece um percurso e uma história,
e surge o passar do tempo e a aproximação da morte. Para Heidegger, se
adquiro consciência de que sou um ser finito, sou um ser temporal, eu passo
a existir de acordo com essa consciência. Assim sendo, a qualquer momento
o existir se implanta no morrer, e no morrer o ser aí alcança ao mesmo
tempo sua singularidade e totalidade. “O final da morte não significa o ser
aí chegado a seu fim, mas significa o ser relativo ao fim. A morte é o modo
de ser que o ser aí assume desde o momento em que existe”7. É poder
viver morrendo, é a aceitação da dimensão temporal, é estar aberto para
possibilidades de ser. Para ele o homem é um ser que faz projetos.
E assim Manhães fazendo projetos se aproxima do tema da morte em
1990 com o livro “Enigma do Suicídio”. Trata-se de um assunto corajoso e
espinhoso, ao qual se dedica com o mesmo afinco, encontrado em todos
os seus trabalhos. Para ela vida e morte estão presentes a cada instante.
No entanto, o homem comum desenvolveu um aparente horror e medo da
morte, embora não perceba que esteja a maior parte do tempo, convivendo
e participando, ativa e passivamente, de pensamentos e atos destrutivos
para consigo mesmo e para com seus semelhantes. A psicanálise iniciou-
se aceitando os instintos de vida e, posteriormente, o instinto de morte,
que foi desenvolvido por Melanie Klein e seus seguidores. Conclui que
Freud, entre outras razões, devido ao seu próprio envelhecimento e doença,
não procurou investigar a fundo o instinto de morte e o fim da existência.
Fez uma abordagem dos diversos fatores, internos e externos que levam
as pessoas a abreviar o seu percurso natural de vida. Sua visão é abrangente
incluindo aspectos filosóficos, religiosos, sociológicos e jurídicos. Procurou
desta forma ampliar sua abordagem tentando não se restringir à visão
psicanalítica, à qual questiona o valor universal, ou seja, um homicídio

7
Heidegger, Ser e Tempo, p. 245

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contra um objeto interno ou internalizado, não havendo aí um desejo


primário de matar o próprio sujeito. Utilizou sua experiência clínica, e
demonstrou levar as ameaças de suicídio de seus clientes muito a sério.
Traz exemplos de casos atendidos, nos quais houve ameaças, tentativas e
a efetivação do suicídio. Introduz aspectos da técnica para lidar com esses
casos. Faz várias considerações sobre o tratamento das quais destaca a
necessidade do terapeuta ter empatia com o paciente, uma sólida formação
psiquiátrica, admitir aliança com colega psiquiatra, contar com o auxílio
de um representante da família, ter em mente uma boa anamnese, e tentar
cooperar com o cliente para que ele possa ter e reter o objeto internalizado.
O livro seguinte foi “Ódio Mortal” de 1991. Maria me conta que em
adolescente tentou ler o livro Moby Dick de Herman Melville e não
conseguiu. Só anos mais tarde ao reler, compreendeu que o conteúdo do
livro esbarrava com sentimentos seus, e metabolizando-os pode então
abordar a história mal digerida na pré adolescência. Trata-se de uma baleia
branca, que era caçada por um baleeiro que a via como assassina. Neste
trabalho aborda vários aspectos. O nome do baleeiro Acab e a origem bíblica
do nome trabalhando a sua importância.
Como acontece em vários outros trabalhos, procura entender os mitos
que originam o homem e seu destino visto através de seus componentes
que são a maldade a crueldade, o ódio. Considerando os vários compo-
nentes da história como Acab, baleias, baleeiros traça paralelo com outros
personagens da literatura como Macbeth e Hitler. Compreende como o uso
da palavra caçar ao invés de pescar teve uma intenção, que era expressão
do sacrifício impiedoso de Moby Dick, dilacerada pelo ódio de Acab.
Ao analisar a personalidade de Acab, utilizou o conceito de “ferida
narcisica” de Freud e refere ao trabalho de Kohut, Pensamento e Raiva
Narcisica, descrevendo o sentimento de ódio que pode desenvolver quando
determinadas criaturas são lesadas em suas expectativas ou prejudicadas
como no caso de Acab por Moby Dick. Aludiu a questão do “furor narcisico”
citado por esse autor, uma estratégia de vingança meticulosamente
planejada, impulsionada pelo ódio.
Percebemos paulatinamente construindo a sua trama utilizando sua
cultura, mas tentando ir além, abordando temas diversos, os sentimentos
densos e primitivos como Inveja, Agressividade, Ódio, Identidade , Totem
e Tabu. Vemos Manhães trabalhando um tema tão atual na Clínica e no
mundo que é o problema do ódio. A agressão vê como uma força positiva,
agregadora, nem sempre negativa, diferenciada do ódio que descreve como
sentimento hostil contra o outro, levando a uma conduta agressiva e

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violenta, planejada, que tende a destruir, a matar por cólera e, às vezes,


por fúria e por vingança. É um sentimento e uma conduta. Assim vemos
um tema tão atual com o qual nos deparamos em nosso dia a dia e na
leitura dos jornais em várias situações de crime e violência. Um de seus
últimos trabalhos é sobre o “Envelhecimento” de 2003. Neste apresenta
um pouco de história com Sófocles e Shakespeare, Filmes, Livros e Poemas,
sua prática analítica, e belas ilustrações e o trecho de Jorge Luis Borges,
Instantes, com o qual iniciei esse trabalho.

Finalizando

Considerei que a melhor maneira de finalizar o trabalho seria um


depoimento de Maria Luiza Pinto, que é psicanalista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise e amiga próxima de Maria Manhães. Amigas desde
a infância quando a família de Maria mudou para Catanduvas, interior de
São Paulo, com cerca de 10 anos. Por coincidência ambas são Maria. Maria
Luiza inicialmente me faz uma descrição de Dr. Manhães, o pai. Homem
de muita cultura e inteligência, bom orador e escritor, havia sido professor
de francês, médico, e por quem Maria tinha muita admiração. De sua mãe
D Caridade herdou a capacidade de relacionamento e comunicação. O pai
de Maria Luiza também era médico, e era o prefeito da cidade e isso
aproximou as famílias que se mantiveram sempre em contato. Com Maria
houve momentos em que estiveram mais próximas ou mais afastadas.
Um ponto comum entre as duas foi a admiração e a identificação com os
pais. Depois desse período inicial em Catanduvas, Maria e família veio
para o Rio de Janeiro fazer o ginásio no Instituto Lafayete. A família de
Manhães retorna para o Estado de São Paulo, cidade de Marilia e Maria
fica no Rio de Janeiro terminando seus cursos e ingressando na faculdade
de Medicina. Maria Luiza cujo pai estudara medicina no Rio, veio fazer o
curso de Medicina na Praia Vermelha, e por recomendação de seu pai
reencontra Maria Manhães. Foi morar em um pensionato, onde conheceu
Inaura Carneiro Leão, já falecida, psicanalista, uma das fundadoras da
Sociedade Psicanalítica do RJ e da Sociedade Brasileira de Psicanálise do
RJ. As três com o tempo tornaram-se grandes amigas.
Maria Luiza posteriormente foi trabalhar no Serviço Nacional de
Doenças Mentais (SNDM) no Hospital do Engenho de Dentro, substi-
tuindo Inaura, no mesmo internato no qual Manhães havia morado e
trabalhado com crianças. Posteriormente foi para o Pinel trabalhar em

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grupoterapia e colaborar com Alcyon Bahia. A vida e o caminho das duas


as aproximava e afastava. Maria Luiza foi fazer análise com Walderedo
Ismael da Silveira, e vinculou-se à Sociedade Brasileira de Psicanálise do
Rio de Janeiro. Ambas continuaram no SNDM, no Hospital Pinel mas em
serviços diferentes.
Porém a amizade sólida, que foi se constituindo ao longo do tempo,
permanece até hoje. Maria Luiza é testemunha da cultura, do interesse da
pesquisa, da capacidade de fala e escrita e da ligação com a psicanálise,
que Maria Manhães manteve.
Em conjunto com Inaura Carneiro Leão faziam um circulo de
psicanalistas amigas, que estavam em contato nos aniversários, festas e
Natal. A lealdade às amizades é um traço que encontrei como característico
de Manhães e percebo as vinculações afetivas com as amigas, comum em
mulheres mais velhas, cujo companheirismo as mantêm ligadas à vida.

Referências bibliográficas
HEIDDEGER, M. Ser e Tempo. RJ:Vozes,1990.
MANHÃES, M. Psicologia da Mulher e Outros Trabalhos. RJ:Atheneu, 1977.
____________. Kaleidoscópio. RJ: Gráfica MEC. 1987.
____________. Prisma da Psicanálise na Cultura. RJ: 1988.
____________. O Enigma do Suicido. RJ:Imago, 1990.
____________. O Ódio Mortal. RJ: Imago, 1991.
____________. Manhães de Manhães. RJ: Armazém das Letras, 1997.
____________. Identidade da Mulher – Muito Barulho Para Nada.. 13º Con-
gresso Brasileiro de Psicanálise – São Paulo, 1991.
RAMOS, V.M. Algumas Considerações sobre Análise de Criança. Boletim Científico
da SPRJ, 1991.

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RESENHAS

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O Poder das Organizações:


a dominação das multinacionais
sobre os indivíduos
Autores: Max Pages, Vincent de Gaulejac,
Michel Bonetti e Daniel Descendre
Editora: Atlas, São Paulo

Resenhado por:
Kátia Barbosa Macêdo*

As relações de poder nas organizações modernas é o tema do livro, que


partiu de uma pesquisa desenvolvida em uma multinacional, TLTX,
partindo da análise das categorias relacionadas à economia, política,
ideologia e psicologia.
Trata-se de um trabalho realizado em uma empresa multinacional ,
que contou com uma abordagem multidimensioal dos fenômenos de poder.
Trabalha com três teses. A primeira considera a existência de um conflito
entre duas lógicas de produção, a lógica unitária, concreta, territorializada
da produção artesanal e a lógica fragmentada e desterritorializada da
produção capitalista. A segunda tese considera a existência de um papel
mediador das organizações em resposta às contradições sociais e a terceira
considera que as estruturas sociais e organizacionais interferem na
interação social dos trabalhadores, e também em sua dinâmica psíquica
insconsciente. A equipe que desenvolveu a pesquisaé composta por um

*
Doutora em Psicologia pela PUSP, Analista em formação pela SBP/IPA, núcleo de Brasília,
professora Titular da Universidade Católica de Goiás.

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economista marxista; por um ideólogo do desejo e dois psicanalistas que


enfocam a psicologia social do inconsciente.
O livro está dividido em cinco partes. Após a introdução, a primeira
parte aborda a autonomia controlada ou as técnicas de administração à
distância. Nessa primeira parte são discutidas as estratégias e delineamento
da organização, visando desenvolver uma hierarquia que possibilite um
controle à distância por meio das políticas, regras , autonomia controlada
e da despersonalização das relações de poder.
A segunda parte aborda o domínio ideológico, e faz uma correlação
entre as práticas organizacionais e as estratégias utilizadas por instituições
religiosas, visando facilitar a compreensão das práticas ideológicas para
socialização organizacional. Assim, considera que a contribuição dos indiví-
duos para a produção depende em grande parte de sua integração ideológi-
ca. A função essencial da ideologia é também reforçar a dominação e aumen-
tar a exploração dos trabalhadores. Uma nova forma de religião é elaborada
dentro das empresas capitalistas modernas com o objetivo de assegurar a
continuidade das religiões tradicionais falidas. Estamos diante de um
sistema religioso onde encontramos os elementos: um conjunto de crenças,
escrituras sagradas e ritos, uma organização hierarquizada, uma massa
de fiéis compartilhando a mesma fé e um Deus que a organização encarna
A terceira parte da obra aborda as práticas de poder na gestão dos
recursos humanos, enfocando o processo de adaptação e dominação utiliza-
do pela área de RH, principalmente os processos de objetivação, desterrito-
rialização, a individuação e a repressão das reivindicações coletivas.
Não se possui o poder como um bem, mas ele se exerce através de regras,
de dispositivos, de técnica e processos de funcionamentos. As políticas de
RH são práticas de poder e têm três características: são práticas ideológicas;
são processos de mediação pluri-dimensionais e desenvolvem outros
processos. No nível econômico gerenciam vantagens, no nível político,
asseguram o controle da conformidade às regras , no nível ideológico encar-
nam os valores de consideração pela pessoa e ocultam objetivo de lucro e
dominação e no nível psicológico, praticam uma política de gestão dos
afetos que favorece o investimento inconsciente massivo da organização e
a dominação desta sobre o aparelho psíquico dos funcionários.
De todas as contribuições da obra, a que mais chama a atenção é a quarta
parte, que aborda a organização e o inconsciente. Nessa parte, os autores
utilizam uma abordagem psicodinâmica para explicar a interação entre o
trabalhador e a organização, partindo do pressuposto que as novas técnicas
de administração do sentido visam atuar em nível inconsciente do

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trabalhador para que sua identificação com a organização se fortaleça e


suas defesas e críticas se enfraqueçam, pois assim é mais fácil manipular
os trabalhadores com vistas a atingirem os objetivos da organização.
O indivíduo está ligado à organização hipermoderna não apenas por
laços materiais e morais, por vantagens econômicas e satisfações
ideológicas que ela lhe proporciona, mas também por laços psicológicos.
A estrutura inconsciente de seus impulsos e de seus sistemas de defesa é
ao mesmo tempo modelada pela organização e se enxerta nela, de tal forma
que o indivíduo reproduz a organização, não apenas por motivos racionais,
mas por razões mais profundas, que escapam à sua consciência. A
organização tende a se tornar fonte de sua angústia e de seu prazer. Este é
um dos aspectos mais importantes de seu poder. Seu domínio está na sua
capacidade de influenciar o inconsciente, de ligá-lo a ela de forma quase
indissolúvel, com mais força e de toda maneira de modo diferente que no
caso da empresa clássica.
A droga é um corpo estranho que se tornou parte integrante do seu
organizsmo e que o controla. Esta imagem sugere o que linguagem
psicanalítica se designaria pelos conceitos de identificação, de projeção e
de introjeção. A organização - droga é ao mesmo tempo amada e odiada.
O indivíduo é profundamente ambivalente em relação a ela. Essa
ambivalência relaciona prazer e angústia. A mola propulsora do amor é a
adoração de uma imagem de poder e de sua identificação com ela. É a
própria organização que se torna o objeto de investimento amoroso. A
perseguição do ideal para a obtenção do amor da mãe-organização e a
angústia da perda do seu amor. Em nível psicológico, vencer é o meio de
ser reconhecido, admitido, aceito na empresa, é em nível de fantasia o
meio de ser “amado”.
A partir das técnicas de administração simbólica, o Sistema Psicológico
Inconsciente dos trabalhadores passam por três momentos no processo
de socialização/adaptação nas organizações, e são descritos pelos autores
da seguinte forma:
Primeiro momento - fraqueza do indivíduo, angústia de destruição e
impulsos agressivos. A hipótese é que as relações inconscientes do
indivíduo com a organização hipermoderna ( as transferências) são do tipo
arcaico e de ordem maternal.
Segundo momento - projeção e identificação com o agressor. O
indivíduo defende-se contra sua angústia e sua agressividade, desenvol-
vendo um desejo agressivo de onipotência e, projetando esse seu desejo
na organização, com a qual se identifica. O indivíduo constrói uma imagem

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do Ego grandioso, seu ideal do Ego, que encobre a imagem do Ego pequeno
e fraco e que se identifica coma organização. No plano da transferência é
uma operação de fusão com a mãe agressiva , de identificação com o
agressor, que o defende contra a agressão da mãe e, ao mesmo tempo,
contra sua própria agressividade. Constrói-se assim, uma organização
imaginária que engloba as características da organização real com as quais
o indivíduo se identificou. A agressividade dirigida para a organização é
canalizada por um lado para o exterior, por outro lado, para o próprio
sujeito, ele deve eliminar a imagem do Ego fraco, deve merecer a imagem
que faz de si mesmo, é constantemente culpado. O individuo desenvolve
formas de prazer do tipo sadomasoquista.
Terceiro momento – Introjeção. A organização imaginária invade o
indivíduo e torna-se parte dele. Os limites com a vida pessoal e privada
são frágeis; Esta última torna-se o lugar privilegiado para viver a angústia
e a agressividade reprimidas. O sistema psicológico é conflitante. Está
baseado numa oposição permanente entre a procura de um prazer
agressivo e uma angústia de morte reprimida. É um sistema fechado onde
o prazer leva à angústia e vive-versa .
O ideal do Ego se constitui em um modelo ao qual o sujeito procura se
moldar. O ideal do Ego tem exigências ilimitadas de perfeição e de poder.
Existem dois tipos de identificações inconscientes. Uma paternal, cujo
agente é o Superego; outra maternal, que passa pelo ideal do Ego. Assim,
existem duas formas de ameaças inconscientes sobre a quais recaem as
identificações, no primeiro caso a ameaça da castração pela figura paternal,
no segundo a ameaça de retirada do amor da mãe.
A economia feudal pré-capitalista corresponde a um sistema psicológico
dominado pelo superego e à identificação ao pai, representado pelo chefe.
O capitalismo nascente é um sistema híbrido, essa organização funciona
como o ideal do Ego coletivo e favorece a aparição de um sistema
psicológico coletivo dominado pelo ideal do Ego e a identificação à mãe.
No capitalismo e na organização hipermoderna, os últimos vestígios do
poder dos chefes, da identificação ao pai, da estrutura mental dominada
pelo superego tendem a desaparecer, na mesma ocasião em que o último
contrapeso ao novo sistema sócio-mental passa a ser dominado no plano
sociológico, pelo poder da organização, e no plano psicológico, pelo ideal
do Ego e a identificação à mãe.
A substituição do ideal do Ego dos indivíduos pelo ideal coletivo
apresentado pela organização tem suas múltiplas consequências. A mais
direta é a introjeção pelos indivíduos das exigências fixadas pela

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organização. A dominação da organização sobre o inconsciente tem


diferentes aspectos, destacando-se a canalização da agressividade e das
angústias e a orquestração do prazer. Ama-se a organização pela perfeição
que se almeja para o próprio Ego. Outra consequência da captação pela
organização do ideal do Ego de seus membros é a tendência da perda por
parte destes de todo o espírito crítico: a organização é perfeita. Em caso de
conflito entre ele e a organização, é ele que tenderá a retornar a agressão
contra si próprio, a se deprimir, a se sentir culpado , ao invés de acusar e
atacar a organização.
Reativando um antigo desejo profundamente enraizado em cada
indivíduo, o da união entre o Ego e o ideal de onipotência e de perfeição, a
organização favorece uma regressão coletiva ao narcisismo primário e
provoca o desaparecimento do Superego. O Id toma posse do aparelho
psíquico, juntamente com o Ego ideal que procura realizar a fusão coma
mãe onipotente e a restauração introjetiva do primeiro objeto do amor
perdido. A organização constitui-se para os membros o substituto desse
objeto perdido, a partir daí sua lei não precisa mais ser imposta de fora,
pois está interiorizada. A figura paterna tende a ser excluída da organização
assim como o Superego. Tudo se passa como se a organização em si
constituísse a realização alucinatória de uma tomada de posse da mãe,
através da fraternidade, tal qual na fusão primária do bebê com sua mãe.
Na maioria das organizações as relações de poder eram vividas de modo
edipiano dentro de uma estrutura ternária, cujos pólos seriam a
organização-mãe, o chefe-pai e o funcionário-criança. Nesse contexto, o
superego desempenha seu papel de instância crítica, orientando seu papel
para ser, ao mesmo tempo, repressor e protetor, aquele que impedirá o
acesso da criança à mãe, isto é, permitindo a cada um de relativizar seus
desejos de onipotência no seu confronto com uma autoridade encarnada
e real que lhe impõe limites. O que se observa ‘uma ação direta da
organização sobre os impulsos e as angústias primárias do indivíduo,
tirando-lhe condições para uma elaboração no nível do Ego. Ela propõe ao
indivíduo um sistema de defesas inconsciente contra seus impulsos e suas
angústias e este o utiliza como tal.
Os processos de projeção e de identificação são provocados pela
organização que, por um lado, organiza a fraqueza e o isolamento do
indivíduo diante dela, mantendo e reforçando sua angústia e, por outro
lado, instaura um sistema de defesas contra a angústia que ela provoca.
Alguns pontos contribuem nesse processo: a imagem e o culto do poder
na organização; o isolamento do indivíduo; um modelo de personalidade

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baseado no sucesso e na conquista; a máquina da angústia e do prazer. A


influência social da organização provoca, no nível psicológico, a formação
de uma estrutura psicológica conflitante e fechada onde o prazer agressivo,
a perseguição de um ideal de perfeição e angústia de morte reforçam-se
reciprocamente. Ela desenvolve os processos massivos de projeção, identi-
ficação e introjeção da organização e do trabalho, pelo indivíduo. Como
consequências, temos: 1- o indivíduo persegue objetivos e regras da organi-
zação que se tornam vitais para eu próprio funcionamento psicológico,
assim como ele terá uma dedicação eterna ao seu trabalho ; e 2- uma extrema
tensão psicológica , o reforço da angústia e dos impulsos agressivos.
Ocorre o enfraquecimento do Ego. E através da manipulação do
inconsciente que a organização coloca sob seu jugo o indivíduo, reforçando
sua angústia paranóide inconsciente mais arcaica, assim como os sistemas
de defesa contra a angústia. Toda organização se apresenta como eterna,
por isso atrai tanto. Desse modo, a organização e o sistema social juntam
assim às defesas do indivíduo contra seus conflitos existenciais mais
profundos, contra sua recusa da confrontação com a morte.
A quinta e última parte descreve a metodologia utilizada, que foi uma
pesquisa qualitativa, que trabalhou com análise documental e entrevistas
não estruturadas, tendo a análise de conteúdo como técnica de análise,
partindo das categorias da economia, política, ciências sociais e psicologia.
O livro é leitura obrigatória para pessoas que atuam na área clínica e
nas organizações, pois auxilia na compreensão da dinâmica psíquica entre
os trabalhadores e as organizações/instituições em que estão vinculados.

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Psicanálise interminável
ou com fim possível?
Autor: Theodor Lowenkron
Editora: Imago, Rio de Janeiro, 2007

Resenhado por:
Moacyr Spitz*

Quando uma análise vale à pena? Se permanece como uma aquisição


para o analisando,é interminável.Mas quando se trata de focalizar o
processo de uma análise, os limites possíveis precisam se fazer presentes
Theodor Lowenkron apresenta neste livro o resultado de sua tese de
doutorado na UFRJ- seu interesse em pesquisar o final da análise e de
como deve um processo analítico ser acompanhado pelos instrumentos
de investigação essenciais ao manejo da psicanálise.
Mostra a evolução do tratamento de um paciente das primeiras sessões
até as finais, seis anos depois, quando se encaminha para o encerramento
deste tratamento.
Acompanhar o desenvolvimento de uma relação analítica, e do processo
de analise, através da reprodução de diálogos entre analista e analisando
é algo raro na psicanálise contemporânea.,muito embora -como assinala
Joel Birman na introdução do livro- tenha sido prática comum entre os
pioneiros da psicanálise, dentre os quais, o próprio Freud.
Passemos então ao tema central do livro: o final possível de uma análise.
Neste ponto, podemos acompanhar a evolução, e finalmente, a concretiza-

*
Psiquiatra e Psicanalista, Membro-Associado da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro
(SPRJ).

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ção do desejo do paciente em encerrar a análise, de comum acordo com


seu analista. Fica claro o crescimento emocional do paciente que se mostra
ao final capaz de experimentar, verdadeiramente, situações que anterior-
mente eram mediadas pelo sintoma.
No entanto, não se deve confundir “ um final possível, com um final
feliz”, escreve o autor. Mesmo estando capacitado para terminar o processo
analítico com aquele analista, pode ser necessário para o analisando uma
periódica reavaliação. O que deve sim ser evitado-ressalta - são tratamentos
intermináveis onde a técnica irredutível e sem criatividade determina
resultados iatrogenicos.
Theodor faz ao final uma interessante alusão ao diagnóstico, não só
apoiado na escuta psicanalítica, mas também na diferenciação conceitual
entre a neurose obsessiva e o caráter neurótico obsessivo, já que no quadro
do paciente não se observavam sintomas, mas um conflito secundário de
defesa que dificultava o seu relacionamento com o meio.
O autor utiliza na apreciação do tema de seu ensaio,referencial teórico
de diversos autores contemporâneos, chamando esta abordagem de “teoria
flutuante”, numa alusão ao conhecido termo criado por Freud de “atenção
flutuante”.
É fato conhecido que a literatura psicanalítica é mais vasta quando se
trata do inicio do processo analítico do que aquela voltada para a compre-
ensão teórica e técnica do final da análise.O ensaio de Theodor Lowenkron
certamente é contribuição relevante para os estudiosos deste tema.

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O Livro de Ouro da Psicanálise –


O pensamento de Freud, Jung, Melanie Klein,
Lacan, Winnicott e outros
Organização: Manuel da Costa Pinto
Editora: Ediouro, Rio de Janeiro, 2007.

Resenhado por:
Pedro Rosaes*

O Livro de Ouro da Psicanálise, organizado por Manuel da Costa Pinto,


oferece em suas seis partes uma visão panorâmica da psicanálise através
da obra de seus principais pensadores e seus respectivos conceitos. Os
trabalhos reunidos no livro foram publicados originalmente em edições
da revista Viver Mente & Cérebro.
Bernard This escreve o primeiro e mais extenso texto do livro. Ele fala
sobre Freud partindo das origens da “cura pela palavra”, anteriores à
Psicanálise, percorrendo a sua história até o fim da vida do mestre.
Este autor dedica um capítulo inteiro aos mistérios da história familiar
de Freud e de sua infância. Fala também do início de sua carreira, os anos
de dificuldades financeiras, o caso Anna O., a importante influência de
Breuer e o posterior distanciamento dos dois.
Tendo como pano de fundo as duas grandes guerras, a evolução da
psicanálise é descrita em seus sucessos e obstáculos. O câncer de Freud
foi um deles, acompanhando-o durante dezesseis anos e exigindo mais de
30 intervenções cirúrgicas.
O artigo oferece ainda facetas pouco exploradas de Freud, como por
exemplo, os dez anos (1886-1896) em que esteve à frente de uma unidade

*
Psicólogo – Especialista em Saúde Mental da Infância e Adolescência, IPUB/UFRJ.

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de neuropatologia infantil em Viena. Seu prazer em trabalhar com crianças


é revelado a sua esposa, Martha: “Parece-me que poderia muito rapida-
mente tornar-me um pediatra”. Ainda sobre Martha Freud, o autor destaca
a importância da correspondência entre o casal. A auto-análise de Freud
teria se iníciado com a futura esposa, antes da amizade com Fliess.
Após esta primeira parte, em que tantos temas diferentes dentro da
biografia de Freud são abordados, o livro se torna mais didático e
igualmente interessante. O leitor é conduzido a um passeio pelos principais
conceitos de cada autor e de suas vidas. Entre a apresentação clara das
idéias de cada mestre e alguns fatos de suas vidas surgem reflexões
profundas e curiosidades.
As expectativas sucessórias em relação a Jung, as controvérsias Melanie
Klein versus Anna Freud, as cisões da escola lacaniana, são todos fatos
marcantes da história da psicanálise citados e contextualizados.
Em artigo de Joel Birman, as relações entre Jung e Freud são analisadas.
O rompimento entre ambos é assinalado como a matriz de uma cena
repetitiva. Esta mostra a dificuldade da comunidade psicanalítica no
convívio com a diferença. Birman destaca a necessidade em se desconstruir
esta cena na atualidade. Reflexão importante nestes tempos de
intolerância.
Vera Fonseca, no artigo O autismo e a proposta psicanalítica, mostra
característica marcante de Melanie Klein. Treze anos antes de Kanner
descrever o autismo, Klein atendia Dick, uma criança com a descrição típica
da síndrome. Em 1930, iniciou esta análise e mostrou a sua capacidade de
“acreditar na existência do mundo mental ainda quando ele parecia
inexistente e de nele penetrar através de sua técnica”.
O leitor leigo, interessado em psicanálise, encontra neste livro um
começo interessante e consistente para seus estudos. Os textos são claros,
o que nos remete ao artigo Ética e técnica, de Maria Rita Kehl. Nele, a
autora lacaniana defende uma cruzada “antilacanês”, contra a obscuridade
de estilo: “A obscuridade protege quem fala ou escreve do risco de ser
contestado”. Uma postura coerente com a psicanálise, em qualquer linha
teórica.
E os já iniciados terão, neste livro, a oportunidade de contemplar uma
obra profunda e rica, como uma conversa leve e agradável. As muitas fotos
que ilustram o livro, confirmam o que os textos mostram e o que muitas
vezes parecemos esquecer: foram pensadores de carne e osso.

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Orientação aos Autores

A Revista psicanalítica é uma publicação anual com a finalidade de divulgar a


teoria e a clínica psicanalítica,assim como as interfaces da psicanálise com as
diversas áreas do conhecimento humano.
Além desta revista a SPRJ publica um boletim semestral onde é divulgada a
produção científica de nossa sociedade.

• Informações gerais sobre a revista


Conteúdo
A revista Psicanalítica publica artigos inéditos,, artigos de atualização, artigos de revisão,
comunicações breves, relatos de casos, resenhas de livros e cartas.
O artigo deve ser preferencialmente inédito. As exceções dependerão da
avaliação da comissão editorial.
O artigo deve respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor
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• Estrutura do artigo
Os artigos inéditos, comunicações breves, artigos de revisão e de atualização, devem
ter um súmario em português e em inglês na primeira página do artigo.
As referências bibliográficas devem se adequar as normas da ABNT para
publicação de artigos científicos.

• Seleção e avaliação de artigos


Na seleção de artigos serão avaliados:a originalidade, a relevância do tema e a
qualidade da metodologia científica utilizada, além da adequação às normas
editoriais adotadas pela revista.
A avaliação será feita por profissionais convidados,pelo sistema de revisão por
pares (peer review), para definir a aceitabilidade do manuscrito submetido para
publicação.
Os manuscritos avaliados podem ser enquadrados nos seguintes casos:
- publicação sem maiores revisões
- publicação após maiores revisões
- rejeitado para publicação
observação: caso seja solicitada uma revisão, isto não implica na obrigatoriedade
da publicação.

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P S I C A N A L Í T I C A – Volume VIII – Número 1 – 2007

• Encaminhamento dos artigos


Os trabalhos deverão ser entregues em disquetes de 3,5 ou enviados por
e-mail (confirmar o recebimento).
O processador de textos usado na sociedade é o Word, razão pela qual
solicitamos que os trabalhos sejam impressos preferencialmente nele.
Dados para a configuração do programa:
- Margem superior; 3 cm
- Margem inferior: 3 cm
- Margem direita: 3 cm
- Margem esquerda: 3 cm
- Papel: A4, retrato
- Fonte: Times N.Roman; corpo 11; não expandido(normal)
- Parágrafo: simples:justificado
- Cabeçalho: 1,5 cn
- Rodapé: 1,5 cm

Os disquetes devem ser entregues etiquetados com o nome do autor, o título


do trabalho e a data da entrega e dirigidos à comissão científica juntamente com
três cópias impressas do trabalho.
O trabalho impresso deverá ter todas as páginas numeradas.
Em cada trabalho enviado deve constar: o título do trabalho; o nome do autor;
a identificação do autor (que poderá ser usada para publicação); o endereço do
autor, com e-mail e telefone para contato.

• Como enviar o material para os editores


O material deve ser enviado para Editores da SPRJ, e enviados para a Secretaria
de SPRJ: Rua Fernandes Guimarães 92, Botafogo, Rio de Janeiro, CEP22290-000.
Tel/fax: (21)2295-3148; com uma carta aos editores solicitando publicação na
revista.

Uma vez entregues os trabalhos, a Comissão Científica comporá o sumário da


Revista, que poderá ter até um máximo de 500 páginas e o entregará a Comissão
de Comunicação pela Internet para publicação.
A Revista, em sua forma impressa, será entregue a todos os membros da SPRJ, salvo
aqueles que expressamente se manifestarem em contrário e sua cobrança será
acrescentada ao valor da mensalidade, no mês em que for editada.

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