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DE FREUD
O autor do texto que se segue, Felix Deutsch, foi um dos primeiros médicos
que examinou Freud e que descobriu nele o câncer de mandíbula do qual veio a falecer
em 1939. Freud ficou muito rancoroso com ele, pois havia dissimulado seu diagnóstico,
não tendo se reconciliado com ele antes de 1929. Em 1922, Félix Deutsch teve, em
circunstâncias que ele descreverá aqui, diversas consultas com uma paciente de 42 anos.
Desde sua primeira entrevista, a paciente lhe revelou soberbamente que ela era a “Dora”
das cinco lições de Psicanálise.
Nós iremos então descobrir, neste artigo datado de 1937 e intitulado
“Apostila do Fragmento da análise de um Caso de Histeria de Freud”, qual foi o triste
destino e o desgastante desenvolvimento dos múltiplos problemas daquela que
permanece um dos casos mais célebres de toda a história da Psicanálise.
Ernest Jones, na sua biografia de Freud, faz referência ao caso bastante
conhecido de Dora e dos seus vários sintomas histéricos, tanto mentais como somáticos;
após nos relembrar o fato de ela nunca haver terminado sua curta análise de onze
semanas, ele acrescenta que “ela morreu em Nova York, a questão de alguns anos”.
Foi por várias razões que este fato chamou-me a atenção. De que terá ela
morrido? Terá podido toda a intuição de Freud, através da única interpretação bastante
penetrante, ou seja, a dos dois sonhos, ter realmente trazido uma luz sobre a
personalidade desta jovem infeliz? E se Freud tivesse visto corretamente, será que a
própria vida de Dora não deveria confirmar as hipóteses formuladas quanto as razões
que ela poderia ter tido para seus sintomas de conversão? Enfim, a última questão, mas
não a menor: de que novas luzes nós dispomos hoje para tentar compreender este “salto
mental no fisiológico”?
Minha curiosidade toda particular concernente à vida posterior de Dora
encontrou, de toda maneira, durante a vida de Freud, o obstáculo insuperável de sua
absoluta discrição. Ele escreveu: “Esperei mais de quatro anos após o fim do tratamento
e retardei a publicação até ter sido informado de uma alteração tal na vida da paciente
que me permitiu supor que os acontecimentos e os fatores psicológicos que eu iria
relatar pouco poderia lhe interessar. Evidentemente, não deixei aparecer nenhum nome
que pudesse vir a alterar a atenção de um leitor não médico; além do mais, a publicação
de um caso em um periódico puramente científico e técnico oferece uma garantia contra
este gênero de leitores de alguma maneira não autorizados. Apesar disso, não posso
evitar que a própria paciente se ressinta de qualquer sofrimento se sua própria história
lhe cair acidentalmente nas mãos. De qualquer forma ela não viria aprender nada que já
não soubesse e poderia perguntar quem, além dela própria, seria capaz de identificá-la
nesta narrativa.”
Vinte e quatro anos após o tratamento de Dora por Freud se produziu um
incidente que levantou, por um outro analista, e sem que Freud tivesse podido saber, o
anonimato deste caso.
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Freud escreveu, numa nota do prefácio ao “Fragmento da Análise de um
Caso de Histeria (1923)”: “O problema da discrição médica que foi objeto deste
prefácio não abrange as outras história de casos contidos neste volume, uma vez que
três delas foram publicadas com a autorização expressa dos pacientes (ou antes, com
relação ao Pequeno Hans com a de seu pai), enquanto que no quarto caso (o de
Schreber) o sujeito da análise não foi propriamente sua pessoa, mas um livro escrito por
ele. No caso de Dora, o segredo foi guardado até este ano. Há bastante tempo eu estava
sem novidades a seu respeito, mas recentemente eu soube que ela tornou a adoecer, por
outras razões, e que confiou a seu médico que ela havia sido analisada por mim quando
adolescente. Esta revelação facilmente conduziu meu colega bem informado, a
identificá-la como a Dora de 1899. Um julgamento justo não poderia sustentar, contra a
terapêutica analítica, que o tratamento de três meses que ela recebeu naquela época
pudesse tê-la aliviado de seu conflito de então, e não teve êxito em resguardá-la contra
doenças posteriores”.
Freud, segundo o médico consultado, não revelou seu nome, uma vez que
isto poderia identificar a paciente. Agora que Dora não está mais viva, fica possível
revelar, sem faltar com a discrição que protegeu seu anonimato, porque a nota de Jones
sobre a morte de Dora me interessou tanto. A razão é que eu sou o médico que relatou a
Freud em 1922, seu encontro com Dora. Isto se deu logo após a apresentação do meu
trabalho intitulado “Algumas Reflexões sobre a Formação de Sintomas de conversão”,
por ocasião do VII Congresso Internacional de Psicanálise de Berlim, em setembro de
1922, o último que Freud deveria assistir. Fazendo referência às hipóteses que eu
formulei neste trabalho, bem como a este misterioso “salto da psique em direção ao
corpo”, contei a Freud como, volens nolens, eu havia penetrado o segredo.
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das dores do parto.
Foi com ressentimento que ela exprimiu sua convicção de que seu marido
lhe havia sido infiel; ela pensou no divórcio, mas não pode nunca se resolver. Em
seguida, com lágrimas nos olhos ela denunciou as exigências, a avareza e o egoísmo dos
homens. Estas considerações remetem-na a seu passado. Ela se recordou, com bastante
emoção como ela esteve sempre próxima do seu irmão, que se tornou líder de um
partido político, e quem a acode sempre que necessário, totalmente diferente de seu pai
que inclusive foi infiel à sua mãe. Ela inclusive censura seu pai por uma aventura com
uma jovem mulher casada, de quem foi amiga, e de cujas crianças tomou conta quando
jovem. Por outro lado, o marido desta mulher lhe fez certas propostas, as quais ela
recusou.
Esta história me parece familiar. Minhas suspeitas quanto à identidade da
paciente foram logo confirmadas. Em dado momento, o otorrino deixou o quarto; a
paciente passou então a falar faceiramente, querendo saber se eu era psicanalista, e se eu
conhecia o professor Freud. Eu lhe devolvi a pergunta: não o conheceria ela, e inclusive
não teria sido tratada por ele? Como se ela já tivesse esperado por este engodo,
apressou-se em me dizer que ela era a “Dora”, acrescentando que, após seu tratamento
com Freud, nunca viu nenhum outro psiquiatra. Nem é preciso dizer que a minha
familiaridade com as obras de Freud criou um clima transferencial eminentemente
favorável.
A partir daí ela esqueceu sua doença e manifestou uma imensa altivez por
ter sido objeto de um escritor tão célebre na literatura psiquiátrica. Em seguida falou da
saúde deficitária de seu pai, que parecia freqüentemente não dispor de todas as sua
faculdades mentais. Sua mãe, tuberculosa, teve de ser recentemente hospitalizada em
um sanatório; ela pensou que sua mãe pudesse ter contraído esta doença de seu pai, da
qual se recordava de que ele esteve acometido quando ela era pequena. Aparentemente
ela não guardava nenhuma lembrança com respeito à sífilis dele, que Freud, no entanto,
menciona e que ele, em geral, considerava como uma predisposição constitucional e
como um “fator pertinente na etiologia da constituição neuropática das crianças”. Ela
prosseguiu falando sobre a inquietação que lhe causavam catarros ocasionais,
dificuldades respiratórias, assim como acessos de tosse matinais, que ela então atribuía
ao excesso de fumo dos últimos anos; e como para minimizar a situação, ela
acrescentou que seu irmão tinha também o mesmo hábito.
Assim que eu lhe pedi que se levantasse e que andasse pelo quarto, constatei
uma ligeira claudicação da perna direita, ela não podia me dar nenhuma explicação a
respeito; tratava-se de qualquer coisa que remontava à sua infância, mas que não se
manifestava com freqüência. Em seguida ela se pôs a discutir a interpretação que Freud
fez de seus dois sonhos e quis saber a minha opinião.
Eu me aventurei a ligar sua síndrome de Meniére à sua relação com seu
filho que ela espreitava continuamente o retorno de suas excursões noturnas; ela pareceu
aceitar isso, e me solicitou uma outra consulta.
Assim que a revi, ela havia deixado o leito e declarou que seus “ataques”
haviam passado. Os sintomas de Méniére tinham desaparecido. Como novidade,
entretanto, ela deu livre curso a uma grande hostilidade com respeito a seu marido,
insistindo sobre o desgosto que lhe inspirava a vida conjugal. Ela me descreveu dores
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pré-menstruais assim como perdas vaginais que sucediam as regras. Em seguida ela me
entreteve principalmente com sua mãe e com sua infância triste em razão do excessivo
asseio desta, de suas insuportáveis compulsões de lavar e de sua falta de afeição por ela.
A única inquietação de sua mãe foi sua própria constipação, da qual sofria também a
paciente. Enfim, ela teve em conta a brilhante carreira de seu irmão, mas se mostrou
pessimista quanto a que seu próprio filho siga seus traços. Quando eu ia deixá-la, ela me
agradeceu com efusão e me prometeu chamar caso sentisse necessidade. Ela nunca mais
se manifestou. Seu irmão me telefonou várias vezes, pouco após meus encontros com
sua irmã e me exprimiu toda a satisfação que ele experimentou diante de seu pronto
restabelecimento. Ele se mostrava muito preocupado com seu longo sofrimento e com
seus desentendimentos não apenas com o marido, como com sua mãe. Ele admite que
ela era de um trato difícil devido à sua desconfiança com respeito às pessoas e à sua
forma de colocar uns contra os outros. Ele desejou vir me ver em meu consultório, mas
eu não concordei, pelo bem de Dora.
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Fungador.
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mulheres.
No que diga respeito ao sentido do tato, ela deu provas de seu recalcamento
com o Sr. K. Quando ele a tomou em seus braços, ela reagiu como se absolutamente não
tivesse notado o contato de seus órgãos genitais. Ela não pode negar o contato de seus
lábios logo que ele a abraçou, mas ela se defendeu contra o efeito deste beijo pela
negação de sua própria excitação sexual tão logo de sua percepção ao sexo do Sr. K.,
que ela abraçou com repugnância.
Nós não devemos esquecer que, em 1894, trata-se de um tipo de defesa que
Freud designa de “conversão”, quando ele elabora a idéia de que “na histeria o
pensamento insuportável é tornado inofensivo pela transferência da quantidade de
excitação que é então ligada a uma forma de expressão corporal”. Anteriormente, em
colaboração com Breuer, ele enunciou: “O aumento da soma da excitação é tomado de
empréstimo das vias sensoriais e sua diminuição, das vias motoras... Se, entretanto não
se produz nenhuma reação diante de trauma psíquico, a lembrança deste permanece
ligada ao afeto original”. Isto continua verdadeiro até hoje.
Os anos passam e Dora tem de se esforçar por proteger seu ego contra a
invasão de sentimentos de culpa. Nós a vemos tentar escapar deles, identificando-se à
sua mãe, a qual, acometida de uma “psicose doméstica”, entregou-se a todos os tipos de
rituais de limpeza. Dora se assemelha a ela, não apenas psiquicamente, mas também nos
seus pontos de vista. Ela e sua mãe vêem sujeira por todo o redor e também no interior
delas próprias. Ambas aflitas, já desde a época do tratamento por Freud, por perdas
vaginais, assim permaneceu até o momento em que eu veria Dora.
Esta tão notável forma de arrastar o pé observado por Freud na jovem,
persistiu durante vinte e cinco anos. “Um sintoma desta espécie, afirmou Freud, só
aparece quando reproduz um protótipo infantil”. Dora, certo dia, torceu esse pé ao
descer uma escada; o pé inchou, foi feita uma atadura e Dora precisou ficar de cama
várias semanas. Observa-se que um sintoma como esse, se ele responde à exigência de
uma expressão somática de desprazer, pode persistir durante toda uma vida. Freud
sempre manteve sua concepção de leis biológicas e considerou o desprazer “como
estando armazenado sob sua proteção. A submissão somática, organicamente pré-
determinada, pavimenta a via de descarga de uma excitação inconsciente.”
Nunca será demais ressaltar o quanto é bem fundamentada a proposição de
Freud segundo a qual “parece muito mais difícil criar uma nova conversão do que
formar caminhos associativos entre um pensamento novo, que busca a descarga, e um
pensamento antigo, que não se faz mais necessário”. Quer dizer que Dora, após vinte e
cinco anos, se revelou conforme Freud havia visto e previsto, não pode escapar de seu
destino? É a conclusão fatalista, à qual seremos conduzidos, mas ela precisa ser
encarada com reserva. Freud afirma que ele não publicou este caso “para estabelecer de
maneira clara e verdadeira o valor da terapêutica”, e ele acrescenta que a melhoria
efêmera de Dora não é apenas imputável à brevidade do tratamento (apenas 3 meses);
Dora não teria podido, para dizer a verdade, desfrutar de descobertas posteriores de
Freud sobre a neurose de transferência e a elaboração secundária, uma vez que sua
brusca ruptura foi um “ato de vingança incontestável, o qual além disso, quer alimentar
seu propósito auto-destrutivo”.
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DOENÇA E MORTE DE DORA
Mais de trinta anos se passaram após minha visita à Dora acamada. Sem a
nota do Dr. Jones sobre sua morte em Nova York não teria sido possível recolher outros
dados; mas graças a meu informante eu tomei conhecimento de alguns fatos novos e
significativos no destino de Dora, assim como de sua família, os quais eu relatarei aqui.
Seu filho a levou da França para os EUA, contrariamente ao que ela
receava, ele fez uma brilhante carreira de músico. Ela o bombardeou com as mesmas
reivindicações com as quais ela havia molestado seu marido, que morreu de um mal
coronariano – debilitado por sua conduta quase paranóica. Bem curiosamente, e estas
são as palavras do meu informante, ele preferiu morrer mais cedo a se divorciar. Eis o
único tipo de homem que Dora poderia ter escolhido como marido; pois ela não tinha
declarado, sem equívoco, durante sua análise: “Os homens são tão detestáveis, que eu
até preferiria não me casar. Eis minha vingança”? Assim, seu casamento não serviu
mais do que para camuflar seu desgosto pelos homens.
Seu marido e ela foram ambos obrigados a deixar Viena, onde ela foi
periodicamente tratada por seus acessos de enxaqueca, de tosse e rouquidão, que Freud
já havia interpretado quando ela tinha dezoito anos.
Após a morte de seu pai, nos anos 30, ela começou a sofrer de palpitações
cardíacas, que foram atribuídas ao fato de fumar demais, ela reagiu a isso com crises de
angústia ligadas ao medo de morrer. Seus conhecidos permaneceram então em estado de
alerta permanente, e ela se aproveitou para colocar amigos e parentes, uns contra os
outros. Seu irmão, igualmente um grande fumante, morreu de uma afecção coronariana,
bastante tempo depois, em Paris, onde ele se encontrava refugiado nas circunstâncias as
mais aventurosas. Foi lá que foi enterrado com as maiores honrarias.
A mãe de Dora morreu em um sanatório; meu informante me contou que já
havia sofrido de tuberculose durante sua juventude. Ela se matou com a tarefa
compulsiva e jamais terminada de limpeza doméstica cotidiana, que ninguém era capaz
de executar de acordo com seu gosto. Dora seguiu seus traços de caráter, mas dirigiu a
obsessão para seu próprio corpo, como suas perdas vaginais persistiam, ela se submeteu
a algumas pequenas intervenções ginecológicas. Sua constipação, esta impossibilidade
de “limpar seus intestinos”, lhe trouxe problemas até o fim de sua vida; habituada que
ela estava, entretanto, aos seus problemas intestinais, ela os tratava aparentemente como
um sintoma familiar, até quando eles se evidenciaram mais graves do que uma simples
conversão. Sua morte foi de um câncer de colo diagnosticado tarde demais para que
uma cirurgia pudesse ser efetiva, “veio como uma bênção para os que lhe eram
próximos. Ela foi, segundo informações do meu informante, “uma das histéricas mais
relutantes” que ele jamais havia encontrado.
Este complemento de informação sobre Dora não é nada mais do que uma
apostila de Freud. Eu espero que sua apresentação nos dias de hoje suscite a reavaliação
da teoria freudiana do processo de conversão: que grau de validade pode ela ainda ter
para nós, e em que ela divergiria de nossas concepções atuais?
Felix Deutsch