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felisberta

primavera
2023
Celebramos mais uma primavera com os poemas
de Heleine Fernandes, Regina Azevedo, Roberta
Iannamico trad. Isadora Barcelos, Beatriz Malcher,
Laurie Anderson trad. Luiza Leite, Matheus Hotz,
Dandara Ribeiro, Jomaka, Manuel Edmilson, Bianca
Monteiro Garcia, Wladimir Cazé, Alejandra Bosch
trad. Mabel, Michele Soares, Nathália Bezerra e Luís
Matheus Brito.

Aqui, as mães sabem: há que comer e dar de


comer. Lançar chamas com spray de cabelo no
coiffeur vermelho quente da esquina. Encontrar a
família em buracos fundos. Quem nunca precisou
de uma vidente? E de documentos falsos? Quem
nunca tomou doze garrafas de licor? As mães
sabem, as pombas giras e as ciganas também.
Mastroianni, Hanna Montana, Clark Kent e um
vampiro dão a letra: a poesia é algo muito frágil.

As artes dessa edição são da artista plástica


Marcela Novaes.

Boa leitura!!!
Jacarta, Indonésia (2021)
Têmpera guache profissional sobre papel
15x18cm
HELEINE FERNANDES

é poeta, ensaísta, performer e pesquisadora de Poesia


Contemporânea Negra-Brasileira. Finalista do prêmio Jabuti, é
autora do livro de poemas nascente (Garupa/Kza1, 2021) e do livro
de ensaio A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia
Natália e Tatiana Nascimento (editora Malê, 2020). Realizou
performances comissionadas pelo Museu Bispo do Rosário, pelo
Galpão Bela Maré e pelo MAM-RIO. É professora e doutora em Teoria
Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem poemas
publicados na Antologia Cult#1, na antologia Ato poético: poemas
para a democracia (Oficina Raquel), em Carolinas: a nova geração
de escritoras negras brasileiras (Bazar do Tempo e FLUP) e em
Versão Brasileira: a voz da mulher” (Teatro da Mente/Retomada
Cultural RJ, 2023).

felisberta
heleine fernandes

da lira

1.

porque ela tem


ela tem nervo de aço
ela tem nervo de aço
e o coração de um sabiá.
(ponto de Maria Padilha)

2.

quando eu buscava nas musas


a inspiração
meus versos não seduziam ninguém.
quando comecei a dar de comer
a Èsù
a poesia vingou!

3.

há semanas desiludida:
simone de beauvoir
não falava de nós.

as musas do olimpo

não nos dizem


não nos dizem
não nos dizem

respeito.

felisberta
heleine fernandes

socorro

aprendi a gargalhar com ela.


o som que faz as pessoas me reconhecerem
de longe
é uma assinatura vocal dela
de quem meus músculos recordam
e rendem homenagem.
ela sim
soltava boas gargalhadas insanas
onde quer que estivesse
e tirava à força
quem quer que fosse
da indiferença.
sua gargalhada era quente
minha avó borbulhava
e ficava com os seios nus
a boca vermelha aberta
toda entregue à vocalização
toda ela coberta
de vermelho e ouro
transfigurada.

felisberta
heleine fernandes

coiffeur

quando eu era criança


acompanhava minha mãe
em suas idas ao cabeleireiro.
eram os anos 80
e os salões pobres chamavam
coiffeur.
posso organizar minha infância
pelos diferentes coiffeurs de minha mãe.
para todos
as mesmas regras:
minha mãe só confiava em travestis
e sempre cortava o cabelo joãozinho.

felisberta
heleine fernandes

kalimba

nas dobras do ouvido


um segredo cantado
em sílabas d´água

felisberta
regina azevedo

nasceu em Natal (RN), em 2000, e é poeta. Publicou alguns livros de


poemas, entre eles Pirueta (2017, selo doburro), Vermelho fogo (2021,
independente) e Carcaça (2021, Munganga Edições). Integra a
antologia As 29 poetas hoje (2021, Companhia das Letras),
organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, e a Biblioteca
Madrinha Lua, da editora Peirópolis, com o título Lança chamas, que
reúne um apanhado de sua produção poética.

felisberta
regina azevedo

Escrevo poemas

"eu te mato com a língua"


yung buda

escrevo poemas
porque não posso
atirar facas
atirar copos
isso lhes pouparia
a necessidade
de passar pano
- e então de que se ocupariam os homens?

sem piedade ou perdão


escrever é sacudir a cidade
já tenho até me acostumado
a brincar com fogo

outro poema
porque não se responde
um revólver

escrevo como quem lança chamas

felisberta
regina azevedo

Pluma

deixar a blusa cair


como uma pluma que desliza na película
que é um hímen que é um mundo
e mostrar a todas as americanas
que no nordeste do brasil
se sangra todo dia
e deixar que saibam a sorte
que é morar aqui
e ter sempre
marquinha de biquíni
e esse sangue
de gente que nasce
no interior do interior
de tudo

felisberta
regina azevedo

Tomar catuaba com você

Tomar catuaba com você


é ainda mais tesudo
que ir a Hellcife, Natal, Fortaleza
ou ficar sequelado de 51 na Lapa

em parte por dançar forró com um mendigo suado


em parte por você ser o boy com o quadril mais eficiente do mundo
em parte por causa do meu amor por você
em parte por causa do seu amor por maconha
em parte por causa dos ipês albinos na estrada de Brasília

é difícil de acreditar quando estou com você


na existência de algo tão inerte
tão inodoro e ao mesmo tempo tão putrefato
quanto o atual Presidente da República

Nós andamos entre as fantasias da nossa canção


e de repente você se pergunta por que caralhos
alguém construiria um edifício atrapalhando o carnaval
Eu imagino o desmoronamento de um arranha-céu
e eu prefiro assistir ao acontecimento
de um desastre natural refletido nos seus olhos
Eu prefiro ver o seu sorriso diante de um maremoto
diante da falência da agroindústria ou das imobiliárias
a ver qualquer quadro pós-impressionista
exceto talvez Lautrec porque quando eu danço com você
eu não preciso fechar os olhos pra dançar com a melhor pessoa do mundo

felisberta
regina azevedo

Tomar catuaba com você


é ainda mais tesudo
que te assistir tragando um míssil
que ouvir você falando da potência das flores
que reposicionar a cama no lugar
que tropeçar e te encontrar
repetindo a palavra calma
enquanto o vento nos dá um sacode
e você diz que sente
a primavera fazendo cócegas
em nossas barrigas

felisberta
ROBERTA IANNAMICO

TRAD. ISADORA BARCELOS

Roberta Iannamico é poeta e compositora. Nasceu em Bahía Blanca


e há 20 anos mora em Villa Ventana (Argentina). Publicou vários
livros de poemas, adaptações de contos clássicos, relatos de povos
originários e textos de literatura infantil e juvenil. Há 30 anos ministra
oficinas de poesia para pessoas de todas as idades e oferece
capacitações para professores sobre escrita criativa. Escreve e
canta suas canções, atualmente no duo “Las Kostureras”. Co-dirige
a Editorial Maravilla e trabalha ativamente na extensão cultural da
Biblioteca Popular Macedonio Fernández de Villa Ventana.

Isadora Barcelos é poeta e tradutora. Nascida em BH, vive em


Buenos Aires. Co-edita a Felisberta. É autora de Diente de leche (cae
de maduro, 2022)

felisberta
ROBERTA IANNAMICO
TRAD. ISADORA BARCELOS

Rotina

O lar
cozinhar
a televisão ligada
o coração aceso
as horas passam
seres humanos vivendo.

felisberta
ROBERTA IANNAMICO
TRAD. ISADORA BARCELOS

Todas nós começamos a parecer com nossas mães


quando o tempo passa
ficamos grandalhonas
cadeirudas
o olhar
mais bonito
como o de alguém que pode
defender-se de tudo
como o de alguém que está
apaixonada por si mesma
nos momentos
de solidão.

felisberta
ROBERTA IANNAMICO
TRAD. ISADORA BARCELOS

Todas as mães
guardam a memória da primeira
Minha bisavó se suicidou
quando minha avó tinha
sete anos
– uma traição de amor –
tomou o veneno e espatifou
o frasco na parede
diante de sua filha
Dizem que primeiro
se preparou
se pintou
colocou as pulseiras
penteou os cabelos loiros
diante do espelho
sem deixar de se olhar
com esse gesto que minha mãe
repete todos os dias
e que eu
estou começando
a repetir.

felisberta
ROBERTA IANNAMICO
TRAD. ISADORA BARCELOS

A arte de escrever ao sol

a arte de escrever ao sol


se chama po
há milênios se pratica
encontrei uma caneta divina
mas falta a parte de dentro
uma pena
de ar serão meus poemas.

felisberta
Ilhas Faroé (2020)
Têmpera guache profissional sobre papel
15x21cm
BEATRIZ MALCHER

é uma niteroiense exilada no Rio de Janeiro, onde divide


apartamento com a cachorra Baleia. É professora, pesquisadora e
autora das dramaturgias Carro Alegórico (Hecatombe, 2021), Onde
está Liz dos Santos? (Autografia, no prelo) e das plaquetes de poesia
Lembranças dos acidentes que não sofri (publicação própria, 2022),
O Álbum dos carros (Ed. Primata, 2023) e Sophia Loren não liga pro
futuro (Fictícia, 2023).

felisberta
BEATRIZ MALCHER

ser um ganso um funil na boca

eu acho que vai ser assim mesmo, márcia


mas eu fico puto da vida
pensei que ia ser diferente que ia viver
pra sempre ser uma lenda daqui há vinte anos quatro
séculos um milênio ainda iam falar de mim
porra meu nome é marco aurélio eu deveria
ser mais

se meu nome fosse joão paulo andré josé tudo bem


mas é marco aurélio, márcia
marco aurélio era pra ser foda era pra ser
nome de rua monumento quadro de museu livro de história
marco aurélio é pra tá na boca do povo, márcia

mas eu acho que vai ser assim mesmo


essa mediocridade
por isso eu não sei se vou tentar muito mais
vou dar mais uns seis meses um ano uma década
no máximo quatro daí desisto
faço que nem o elvis
sempre quis ser que nem o elvis talvez assim
eu consiga

uma vez o elvis quase morreu depois de beber


doze garrafas de licor de frutas, márcia
vai ser igual comigo
me tranco nesse apartamento com
licor cocaína e ifood eu sei
que o elvis não tinha acesso a ifood, márcia

felisberta
BEATRIZ MALCHER

eu não sou idiota caralho mas eu tenho


eu atualizo a história e vai ser isso
licor cocaína três deliveries por dia de
sanduíche de banana com pasta de amendoim e bacon e ovos
mexidos e frango frito e hamburguer e purê
de batata e pernil e cachorro quente e você
parece que não me conhece, márcia
não importa se cocaína corta o apetite
eu consigo comer quem e o que for quando
eu bem entender eu sou igual ao elvis, márcia
e vai ser assim que vai
acabar

vai ser como colocar um funil na boca


do jeito que fazem foie gras
você já comeu foie gras, márcia?
colocam um funil na boca
do ganso ou do pato
e aí mais gordura mais gordura mais gordura

eu penso que morrer pode ser assim


ser um ganso um funil na boca
entupir de sanduíche de banana pasta de amendoim bacon ovos
mexidos frango frito hamburguer purê de batata
pernil cachorro quente licor de
frutas cocaína

até ter um infarto avc necrose hepática overdose pancreatite


é que nem naquele filme, márcia
o mastroianni e três amigos se isolam numa
mansão e comem até a morte

eu sempre me achei bonito assim


que nem o mastroianni
elegante sério meio triste também mas

felisberta
BEATRIZ MALCHER

quem não é meio triste,


eu te pergunto

eu sempre me achei parecido


com o mastroianni, márcia
só me faltam os três amigos

mas pelo menos eu tenho você


você faria isso por mim, não faria, márcia?
eu não vejo motivo pra você
não fazer isso por mim
de que te custa fazer isso por mim?
será que você não morreria por mim, márcia,
pelo menos uma vezinha só?

felisberta
BEATRIZ MALCHER

teu corpo como

um mapa de um metro e oitenta


e tanto
pintado com estradas azuis
verdes longas
que não levam a lugar
algum

teu corpo como


um papel desses que embrulham
bala chicletes desses
que grudam em balas chicletes
desses que estragam o que é
doce

teu corpo como


a água do rio
de janeiro impropria pra
consumo como
uma coisa que dá
nojo uma coisa que dá
febre uma coisa que dá
câncer uma coisa que dá
em nada

teu corpo como


um prédio abandonado
uma estrutura em risco
uma casa que deveria ser
interditada pela defesa civil

teu corpo como


um desabamento

felisberta
LAURIE ANDERSON

TRAD. LUIZA LEITE

Laurie Anderson nasceu em Chicago em 1947 numa família com


mais sete irmãos. Ainda criança contava histórias mirabolantes e
cheias de humor em torno da mesa de jantar. Formada em história
da arte, suas performances misturam música, imagens, poemas,
histórias e narrativas de sonhos.

Luiza Leite é escritora, pesquisadora e tradutora. Co-edita a Fada


inflada, editora independente. Publicou, entre outros, tudo que se
aproxima faz um som (Garupa/Kza1, 2021).

felisberta
laurie anderson
trad. luiza leite

Vermelho quente

Eu e minha irmã brincávamos de um jogo chamado Vermelho quente.


E no Vermelho Quente, o teto de repente chega a
mais ou menos mil graus.
E não há gravidade.
A gravidade não existe mais.
E você está tentando não flutuar até o teto
então você tem que se segurar nas coisas.
Você tem que se segurar nos lençóis, nos travesseiros, nas cadeiras,
em qualquer coisa para que você não saia flutuando até o teto.
Não é bem o que alguém chamaria de
jogo muito competitivo.
Entende o que estou dizendo?
Em geral, a gente apenas suava muito
e ficávamos aliviadas quando tudo acabava
e o teto voltava a ficar fresco novamente.

felisberta
laurie anderson
trad. luiza leite

Desfile de Cães

Sonhei que eu estava num desfile de cães.


E meu pai veio assistir ao desfile de cães.
E ele disse: aquele cão é muito bom.
Gosto daquele cão.
E então todos os meus amigos vieram assistir
e eu pensei:
Ninguém jamais olhou pra mim assim
por tanto tempo
Ninguém jamais me encarou assim
por tanto tempo
por um tempo tão longo
por tanto tempo.

felisberta
laurie anderson
trad. luiza leite

Andando e caindo

Eu queria você
E eu estava procurando você
Mas eu não conseguia achar você.
Eu queria você
E eu estive procurando você o dia todo

Mas eu não conseguia achar você.


Eu não conseguia achar você.
Você caminha e nem sempre se dá conta de que está sempre caindo
A cada passo você cai pra frente levemente e depois se segura para não cair
De novo e de novo você cai e se segura para não cair
E é assim que você pode caminhar e cair ao mesmo tempo.

felisberta
laurie anderson
trad. luiza leite

Documentos falsos

Fui a uma vidente e a coisa estranha sobre a leitura foi que tudo
que ela me disse estava completamente errado. Ela disse que eu
amava aviões, que eu nasci em Seattle, que o nome da minha mãe
era Hilary. Mas ela tinha tanta certeza quanto às informações que
comecei a sentir como se eu estivesse andando por aí o tempo
todo com documentos falsos tatuados nas minhas mãos.

felisberta
MATHEUS HOTZ

é poeta, professor e oraculista. Foi campeão da liga pokémon por


seis vezes consecutivas e gasta mais dinheiro em jogos do que
deveria. Seu primeiro livro "O Dia do Búfalo" foi publicado pelas
Edições Macondo, enquanto seu segundo, "Eva Vai ao Sexshop", foi
publicado em outubro deste ano pelas Capiranhas do Parahybuna.

felisberta
MATHEUS HOTZ

detergente

acabou, estou pegando o detergente


para limpar as manchas
de porra no colchão

amanhã,
não haverá guerras ou
discos voadores apenas
o calor insosso
dos dias

seguiremos em luta

você foi mais um homem


eu um outro
par de olhos bolas
murchas
suspenso desejo

sobre a cama o detergente não limpa


deixa uma mancha
ainda maior

felisberta
MATHEUS HOTZ

canção de amor para um vampiro

você até pode achar que me come


mas sou eu
quem carrega a fome

felisberta
MATHEUS HOTZ

beijar judas

para nós
meninas católicas
o desejo não está
no corpo do beijo
para nós
meninas católicas
o desejo está
no sabor
sabor de quem beija
com tesão
a boca
de um traidor

felisberta
Ilha West Falkland, Ilhas Falkland
Têmpera guache profissional sobre papel
15x21cm
dandara ribeiro

nasceu em angra e vive no rio há quase dez anos. é professora,


poeta e entusiasta da fotografia. foi uma das produtoras do gira -
circuito itinerante de performances (2018, edição são paulo),
escreveu e interpretou o monólogo ainda tô verde (2019, ocupação
ovárias) e integra o coletivo ocultas desde 2019, que propõe ações
envolvendo arte, magia, tecnologia e performance. atualmente, é
pesquisadora no programa de pós-graduação em artes da cena da
ufrj.

felisberta
dandara ribeiro

paralaxe

hoje mateus chorou porque é homem


sou homem, sou homem
ele repetia
a cara inchada, os olhos em preto e branco
vermelhos aos prantos os
braços sobre a mesa molhados o
rosto escondido agora o
desespero
dois mundos frente
a frente o corte
ensinar a mateus que as letras podem
ser minúsculas
puxar mateus para esse mundo
onde as letras são minúsculas
arrastá-lo
o banheiro tão distante alcançar
o esconderijo você ainda é uma criança você
vai precisar correr mateus não
corra

sou homem
sou homem
sou homem

felisberta
dandara ribeiro

viagem iniciática

tenho o costume de me debruçar para ver a casa de cabeça para baixo


só assim parece que a casa não está desabando

mateus está deitado no sofá


a cabeça para fora
caída
para baixo

– ontem pensei que alguém estava chorando no meu sonho. eu pensei


que era sonho. mas era você – ele diz quando chego mais perto

testemunho sua estreia


enquanto ele se levanta
e toda a casa
se levanta com ele.

felisberta
dandara ribeiro

cicatriz

mateus vai cair vai


abrir o berreiro mesmo atrasadas vamos
precisar parar segurar as mãozinhas de mateus e dizer
foi só um susto
com tapinhas sacudir a poeira – a única que sabe se acomodar ao chão

a falta do corpo de dentro do corpo

a queda

é movimento perpétuo
como quando caímos de bicicleta depois
de crescidas
em vez de chorar
sorrimos.

felisberta
dandara ribeiro

a teimosia das espécies

meu pai não acredita em deus


quando criança, ele me emprestou o livro
deus, um delírio, de richard dawkings
a capa tão azul – a cor que eu daria de presente para deus
nas minhas mãos curiosas querendo
teimar também

agora meu pai veste o capacete e protege os braços do sol


o corpo inteiro à mercê de um universo sem deus
no rosto o vento
e o risco

quando o prédio desaba, minha mãe é a única que não consegue sair
então, me jogo de joelhos ao chão
as mãos juntas rogando aos céus
por favor, eu acredito.
o livro intocado
o azul desbotado
da cor do meu deus ali
camuflado em lamento
no sonho

na segunda esquina depois da queda,


essa sorte
esperam
em círculos, fuzis carregados, olhos à procura
de alguém que tem a sua cor

se você nunca se sentisse seguro


precisaria acreditar em alguma coisa?

felisberta
JOMAKA

é brasileiro, nasceu em 1991, na cidade de Belo Horizonte/MG.


Escritor, artista antimanicomial, educador, performer, produtor
cultural e ativista intersexo transmasculine. Autor do livro
“Generalidades ou Passarinho Loque Esse”, editora Impressões de
Minas e organizador da “Coletânea Academia TransLiterária”,
editora Marginália.

felisberta
JOMAKA

INTERSEXO

algumas vezes eu disse do buraco


nenhum a mais ou a menos buracos no corpo
eu dizia dos buracos de dentro
sobre aqueles que eu fazia perguntas
sobre os buracos de respostas escondidas
algumas vezes eu disse do buraco
outras vezes eu caí
buraco fundo
buraco adentro
refém de um silêncio
ou de vários.

felisberta
JOMAKA

POEMA INTERTEXTUALIDADE

um fininho e um violão
um amor uma canção
até o apagar da minha vida
chama.

felisberta
JOMAKA

FITA, MOLDE, TRANSCRIÇÃO

Há alguns anos eu já
não sei sobre o meu pai
por onde anda
como é que vai

Nunca escutei aquele estranho


ainda pai no meu registro
chamar pelo meu nome João
ou dizer venha cá meu filho

Exclusão da família
realmente dolorosa e cruel
mais ainda quando sua verdade
é sobre inferno e céu

O amor de Cristo pregado


as pedras em cada face das diferenças
amor só se for no singular da norma
Normal

Família paterna
não pertenço nem convivo
sinto eterna saudade de uma criança
ela sorria quando me via
ah, minha irmã…
Quem sabe um dia

Sinto ainda alguma dor


mas não poderia deixar
a título de me encaixar nessa tradição
a liberdade
de ser quem sou

felisberta
JOMAKA

Eu sou
E olha só como as coisas são
por outro lado eu tenho duas mães
E contando com aquelas que conheci na resistência
sinto ter o afago de um milhão

mães de luta
mãe de sangue
mãe de santo

Santo de uma outra tradição


apedrejado pelo mesmo viés do reacionário Cristão
Matriz Africana: - Não! Prendam aqueles atabaques!

Eles dizem pelo amor de Deus


amém
colocando acento agudo no plural da terceira pessoa
presente do subjuntivo
Enquanto pro mandamento principal
Bastaria uma (re) flexão.

felisberta
MANUEL EDMILSON

atualmente reside em Luanda. Foi o segundo classificado no


concurso de dramaturgia Leituras Assistidas, com a obra Filhos da
Terra. Participa de oficinas de escrita criativa e participou nas duas
primeiras edições do Festival Riobaldo, um festival de Poesia e
performance para poetas gays. Tem poemas publicados na revista
Ruído Manifesto (Brasil).

felisberta
MANUEL EDMILSON

E então um sorriso de tecidos


e metais rasgam-se no escuro
entre barulhinhos
mostrando de dentro de sua boca
essa língua endurecida e latejante
acariciado pelas mangas suadas
trêmulas e ansiosas
do outro feito de lã
prevendo já o fim molhado e aliviado do sorriso

felisberta
MANUEL EDMILSON

Dear Poet

Querido poeta
achei estas palavras
acho que fazem parte
do teu vocabulário
"Genocídios
Promessas
Plenilunios"
Todas elas distantes
das palavras
que trago comigo
mas próximas
dos meus ouvidos
pele e estômago.

felisberta
MANUEL EDMILSON

2 mil likes.

“Me faça uma foto aqui!"


ela disse
"Ah, também quero. Faça uma comigo ali"
disse sua amiga
"Estou a ficar sem memória"
Ela disse então
"Estou a ficar sem memória"
Disse também a sua amiga

felisberta
MANUEL EDMILSON

Cadeira vazia

Há uma cadeira
entre quatro paredes
vazia
as paredes
devem permanecer mudas
e surdas e cegas
para impedir
o mundo
de se sentar nela
e quebrá-la
com seu peso
ensurdecedor

felisberta
O que o sol me faz (2023)
Guache acrílica profissional sobre papel
21x23cm
BIANCA MONTEIRO GARCIA

é editora da Macabéa Edições e da Taioba Publicações, formada


em Letras e especialista em Literatura Brasileira pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É também revisora e professora.
Tem poemas e entrevistas publicadas em revistas e podcasts de
literatura. breve ato de descascar laranjas é seu livro de estreia,
publicado pela Macabéa Edições em parceria de coedição com a
editora 7letras. Participa das antologias nós (selo off-flip) e philos
mulher (editora Philos), ambas no prelo, com os lançamentos
marcados para a Flip deste ano (2023).

felisberta
BIANCA MONTEIRO GARCIA

tarot

um cachorro preto é revelado


a cigana encara meus olhos
entendo o recado
não sentei mais para as cartas
mas sinto o faro fino do cachorro
um pouco antes de mais um buraco
três abismos depois
uma placa de mão dupla
resulta numa rua sem saída
manhãs breves e uma casa que
dobra dobra de tamanho a cada
sete palmos de novo abismo
jazigo perpétuo lotado de ossos:
um risco a lápis
no canto de uma folha
em branco

felisberta
BIANCA MONTEIRO GARCIA

teste de resistência

sentada na área comum


encarando a tv de braços cruzados
esperei por uma hora
a consulta do dia
segui todas as recomendações
das veteranas
e as regras
da casa
a médica apareceu
sentou ao meu lado
fez duas ou três perguntas
e encerrou a consulta
pergunto quando vou sair dali
a médica aponta:
quando desaparecer essa ruga da sua testa

felisberta
BIANCA MONTEIRO GARCIA

100% algodão-navalha

ignorava a fila do banho


e a lagoa podre que formava
quando as duchas se fundiam
pelo caimento malfeito do ralo
lavava minhas calcinhas na pia
e as pendurava
na manivela da minha cama
aquela obviamente exposta
a madre em vistoria marchava os leitos
repetia repetia seu velho pudor
quando não repreendia meus biscoitos guardados
empurrava minhas calcinhas para os fungos
dos ares rarefeitos nas manivelas escondidas
um pouco antes do horário
da travessia dos pacientes
da ala masculina para o pátio

felisberta
wladimir cazé

publicou Microafetos (2005), Macromundo (2010) e Minividas" (2018).


Seu primeiro livro foi lançado em tradução na Argentina como
Microafectos (2023). Traduziu O que fazer, de Pablo Katchadjian
(Relicário, 2021), e Sacrificiais, de Rómulo Bustos Aguirre (Portuário,
2020). Com Rafael dos Prazeres, traduziu O assassino de porcos, de
Luciano Lamberti (Cousa, 2017). Participou de eventos literários na
Argentina, na Colômbia e no Uruguai. É doutor em letras pela UFES e
mora em Salvador (BA).

felisberta
walidimir cazé

ÉCFRASE

elisa pegoretti ao desenhar animais


ouvia antes com atenção
o que cada interlocutor lhe dizia
para conhecer pela descrição
como o desenho deveria ser

era uma ética da escuta


conversa entre afetos, cores, carapaças
linhas, listras, esperanças
bicos, sonhos, proporções
pêlos ou penas, formas, desejos
caudas, fascínio, movimento
sombras, medos e garras

feita a primeira versão, a artista


a apresentava
ao respectivo propositor
e este podia sugerir ajustes
indicar
alter
ações
para guiar o trabalho dela
fazer mais próxima a visão da artista
da imagem que ele tinha em mente

em seguida ela produzia um novo desenho


o definitivo
então devolvido à origem

pessoa que virava animal


que revirava pessoa
revirava animal

felisberta
walidimir cazé

Lendo "El País" na hora do almoço

Enquanto assistimos
lava de vulcão
chegando no mar,
novas terras são
criadas na água;
se houver expansão
na área da ilha,
o espaço do estado
se ampliará lá;
o gigante glutão
lança a língua de magma
para lamber o chão,
mas o leviatã
não hesita em levar
a toda parte a lei;
está na carta magna -
se valores, da lava
já solidificada,
se forem revelar,
riquezas e recursos
serão apropriados;
à letra, o litoral
rápido anexará
o país, que maior
seria se pudesse
engolir o oceano.

felisberta
walidimir cazé

QUANDO USAR PARAQUEDAS

agora clichê
(como todos, na origem,
ideia fresca
que se gasta)
o poema instruir
a cair
já não impacta

o verso favorece
a queda
a queda faz comédia

no auditório dizendo poemas


levantei e fui
até a frente do palco
no microfone
quando acabei quis voltar
ao meu lugar
recuando de costas
sem conferir
caí
no vazio
a cadeira não estava lá
a plateia riu

depois alguém perguntou


se fazia parte do show
se tinha sido intencional
the pftjschute

felisberta
walidimir cazé

artistas circenses têm


la costumbre de caerse
por deformación profesional
deles pode o poeta aprender

quando usar paraquedas


coloridos ou não
convém ter certeza
se é possível abri-los

felisberta
ALEJANDRA BOSCH

TRAD. MABEL

Alejandra Bosch (Santa Fe, 1967) é escritora, artista visual, editora,


professora e artesã tecelã. É autora de sete livros de poesia: Niño Pez
(Del Aire, 2015), Malcriada de Acuario (Objeto Editorial, 2017), Un
avión, su piloto y un pájaro (Caleta Olivia, 2017), Dominios: gatos y
albañiles (Viajera editorial, 2020), Sabio el pájaro (Ediciones Deacá,
2020), El asesino es el hermano (Baltasara, 2022) e Escribirás sobre
nosotras (La mariposa y la iguana, 2023); e de um romance: Dos
cuentos maravillosos (Baldíos en la lengua, 2020). Dirige o editora
independente e artesanal Ediciones Arroyo, organiza o festival de
poesia semestral Arroyo Leyes e também coordena a Reserva
Poética homônima na comuna em que vive, que dá nome aos
demais projetos.

Mabel (Rio de Janeiro, 2000) é poeta e graduanda de Licenciatura


em Letras Português-Literatura na UFRJ. Pesquisa desde 2020 o
trabalho da argentina Alejandra Bosch.

felisberta
ALEJANDRA BOSCH
TRAD. MABEL

Sempre para ela

Para minha mãe

O olhar dela criou o menino


e seu olhar
também me criou
me fez mãe
sua palavra disse
— isto é certo —
disse — que bonito —
disse — que bom é.
Estamos juntos na cozinha
apoiados na mesa
de granito
já sós
já de luto
nos olhamos
nos descobrimos
pela primeira vez damos nomes
às coisas
também são boas
são as certas
são as bonitas.

felisberta
ALEJANDRA BOSCH
TRAD. MABEL

Onze

Todos precisam de mim


uns de palavras, outros
de certezas
e decisões justas
até o cachorro e as gatas
esperam que os alimente
pelas manhãs
e eu me levanto dolorida
são os anos que doem
nas articulações
e sem os óculos no rosto
busco água e a coloco em suas
tijelinhas
cada um beba, eu não sei o que mais
poderia fazer por todos eles.

felisberta
ALEJANDRA BOSCH
TRAD. MABEL

Sem título

Hoje não vou morrer


porque preciso secar os vidros
que molhados, pelo calor da casa
suam.
Vou terminar de tricotar o chapéu
que comecei ontem, enquanto
chorava.
Há um ninho vazio no telhado da casa
uns paus cravados na terra
que podem ser uma garagem
se cuidamos e cravamos
nessas tábuas, esquecidas
pra trás.
O ninho foi abandonado por um pássaro
depois de uma tempestade
quando a calma voltou
achei que o pássaro
voltaria a confiar em sua construção
não.
Hoje tentarei não morrer
isso prometi a um amigo, por whatsapp
vou buscar velhas leituras
e aproveitar sua conhecida beleza
e se me animar, escreverei um poema
um que continue com meu trabalho
vou varrer minha casa
talvez lave minha roupa
e sairei caminhando
para me cansar.

felisberta
Sem título (2021)
Têmpera guache profissional sobre papel
22x21cm
michele soares

é filha dos anos 2000 e mora em São Paulo. Graduada no curso de


Letras da USP, passa seus dias entre a leitura e a escrita de poemas,
ensaios e artigos científicos.

felisberta
michele soares

Só para confirmar

quantas garrafas de vinho temos


antes disso virar uma lembrança?

felisberta
michele soares

reflexão

pelo espelho do banheiro:

uma camisa hering verde musgo,


uma calça grafite de moletom.

num segundo, você está em casa;


no seguinte, é como eu me visto agora.

felisberta
michele soares

clark kent e super-homem


hanna montana e miley cyrus
você e as minhas roupas

nunca são vistas no mesmo lugar.

felisberta
nathália bezerra

é alagoana, nascida em maceió (1997). fotógrafa, mestranda em


estudos literários e gosta de bordar cartões postais. escreve na
revista mormaço e na revista alagoana. tem poemas na revista
aboio, ruído manifesto, revista grifo e na revista acidente. sua
primeira publicação de poemas é a plaquete mais gente que bicho
pela editora primata (2023).

felisberta
nathália bezerra

outra pele nossa

uma fragilidade acontece


toda vez que uma palavra nasce
antes de escrever, desista

no começo, um silêncio
uma sílaba miúda
carregar um alfabeto no teu dorso
deslizar o verbo pelas tuas costelas

há um pequeno abandono
os pássaros dessa cidade morrem
ainda sou a que corre com as mãos vazias

fazer da palavra-casa ainda que nossa língua


seja tão frágil quanto olhar o fundo de um olho

escolher o menor nome das coisas


inventaremos uma célula
sem tirar as mãos do fogo

você não mora mais aqui


diga, dessa vez meu
soluço é mais contido
te quero aqui feito um
plano de pouso

a poesia é algo muito frágil


como eu e você

felisberta
nathália bezerra

lento desejo

isso não sou eu


é um verbo

no vazio te invento
como se fosse outro

isso não sou eu


é uma paisagem

não escrevo a cidade nem


os rostos nem as árvores

isso não sou eu


é uma pista de dança

desajeitada, agarro teus


pés para que não me procure

isso não sou eu


é minha vertigem

tudo vivo e não-vivo


na memória, esse espasmo

isso não sou eu


é um fantasma

teu último som


é o do fôlego repetido

isso não sou eu


é você quem vê

felisberta
nathália bezerra

seu

há um mistério de três letras


toda tua, faltar
é verbo de quem suporta o frágil

um pequeno rasgo
como se fosse um brecha:
ali onde tudo começa
o amor repousa em água

uma festa inteira vermelha


pra te ver chegar
pedaços do teu corpo
de dentro da minha cabeça
você sabe de onde isso vem

não vá
neste fim de tarde as
folhas miúdas brindam teu rosto
feito eu, cada gesto é um
ensaio

há na boca
um céu da tua
meu amor, te digo sorrindo
estou à beira de um colapso

felisberta
LUís MATHEUS BRITO

nasceu em outubro de 1994, em Aracaju. É poeta e ensaísta. Publicou


"Guia de Queixumes" (edições blague, 2021).

felisberta
luís matheus brito

O.

A maneira pela qual inicio a marcha


ao seu lado, isso nunca soube fazer
com excelência, mas o faço,
apesar da postura irregular,
de um início aos solavancos,
dependente, inquieto;
pudesse refazê-los, porém,
continuaria com a impostura,
a qualidade à qual me alinhei,
ora consciente, ora inconsciente,
para não renunciar ao levantamento:
uma memória
que também oscila e, sozinha,
forja disfarces para si mesma; ela
nos atinge com intensidades distintas
e motivações idênticas, uma atadura
que, dependendo dos efeitos,
danifica-se, rompe-se, sem garantia
de reparos, a não ser
as gambiarras — o que é, enfim,
imperceptível a olho nu. Um evento
que, pela natureza, há de ser irrecuperável,
ao passo que o que dividimos é outro
gênero do desequilíbrio;
pois o que permanece
de fora, valendo mais
do que cada um pôde carregar,
empenha-se numa marcha própria, esta,
sim — homogênea e invariável —,
produz a passagem para a anomalia.

felisberta
luís matheus brito

Entre as invenções recentes,


a cidade tal qual a conhecemos,
uma superfície cinzenta,
sobretudo ao redor do vórtice,
dentro do qual o rio, sem reboliço,
vai ao encontro do oceano,
por mais que as águas não se combinem;
nele, no vórtice, elas se repelem continuamente.
Numa margem, vemo-nos, mais uma vez,
cumprindo o roteiro das díades —
eis Aracaju, o lado onde estamos,
e a outra face, Barra dos Coqueiros,
como o exemplo de par
ao qual nos somamos,
consolidando as diferenças.
Não sendo dois iguais, pois, levamos
mais tempo para deduzir o que se forma
na língua do outro; se, nessa atividade,
não nos esforçamos, nem sequer chegamos
a enfrentar o vácuo: então, nessa hora,
vejo a mim mesma refletida no lugar dele, e se ele me vê
ou, no meu lugar, vê a si mesmo,
há de se assumir a tarefa, até o momento,
sem solução.

felisberta
luís matheus brito

Das testemunhas, ouvimos


os ruídos convencionais de quem,
à tarde, atravessa a orla, seja a pé,
seja sobre um veículo, e mantém-se
alheio aos acontecimentos,
até que um par de amantes
demonstre o quão desconcertante
é se encontrar ao acaso
num lugar público,
aí o silêncio irrompe para todos os lados,
torna-se, de uma hora para outra,
a experiência universal. Mas, antes disso,
o que estava em meu campo de visão,
era a faixa de areia e, ao mesmo tempo,
as embarcações,
cujos locais de partida e de chegada
ninguém reconhece, deixando
aos transeuntes
mais uma porção de alheamento,
porção tão ampla quanto a faixa de areia
— de onde falo, um desafio simples.
No campo de visão dele, depois
de chegar à orla,
as minhas costas se fixaram
por tempo o bastante para que eu,
a observada, notasse
a composição da vigília,
que, interrompida por mim,
formou-se e findou-se emulando as ondas,
gesto que, à primeira vista, não se pode
nem confirmar nem negar com insistência
se o objetivo, no geral,
é exibir a realidade.

felisberta
luís matheus brito

Sozinha, fui à ponta do atracadouro.


Nele, não havia o que fazer, senão
se equilibrar sobre o assoalho de madeira
que, danificado em todos os lados,
impôs um regime de atenção absoluta
no momento de percorrê-lo,
sem atalhos, sem rodeios,
um desvio, pois, implicaria
ou um ferimento, ou uma queda,
ou, na pior das hipóteses,
um ferimento e uma queda
ao mesmo tempo, mas a mansidão
— em qualquer maré —
é a regra no Rio Sergipe.
Não há exceções — dia ou noite.
Nem sequer sob o lusco-fusco.
Retornando, reproduzi a rigidez e a sutileza
aplicadas não só nos pés,
mas também em todo o corpo,
até que pudesse, uma vez na calçada,
desfazer-me delas. Agora,
de uma vez por todas, meu corpo
tal qual o corpo do outro
prefere a indisciplina à norma,
do mesmo modo, o capricho à clareza,
pois se adaptou aos contrassensos,
aos disparates. Construo, assim,
uma história sobre o consolo.

felisberta
luís matheus brito

Fazendo um percurso oposto,


ele se tornou uma manifestação
de meu negativo — nestas condições:
eu a pé, e ele de bicicleta,
e eu, às vezes, desfazendo as oposições
sobre a garupa. De modo provisório,
digamos. Nessa posição,
posso observá-lo e inverter
a maneira pela qual iniciamos
o contato — tão fugidio
quanto intrincado. Em lugar aberto
e público, ele também pode me ver
ao avesso, aí sim enquanto observador
e observado. De uma só vez,
sujeito e objeto cujo desígnio é continuar
num terreno abaixo do nível do mar — ele
cada vez menos inseparável
da cidade e do cinza.
Outra peça do tabuleiro, para ser exata;
o tabuleiro do qual também faço parte
se ele se dedica a me dispor à
circunstância dupla: observadora
e observada, que, seguindo-o,
está a fim de corromper
a dependência: afinal,
nem um quer ver,
nem o outro quer ser visto.

felisberta
Primeiro avistamento (2023)
Guache acrílica profissional sobre papel
34x30cm
As artes dessa edição são de Marcela Novaes.

Marcela é artista plástica e arte educadora. Graduada em Artes


Visuais, especialista em Museologia, Colecionismo e Curadoria e
atualmente cursa a especialização em Artes na Pedagogia Waldorf.
Participa, desde 2012, de exposições individuais e coletivas pelo Brasil
e já teve obras expostas em Portugal, na França e no Reino Unido. Em
2021 recebeu a premiação bronze do 17º Salão Ubatuba de Artes
Visuais. Já participou de projetos e parcerias com editoras, marcas
de roupa e músicos, tendo trabalhos adotados como ilustrações de
artigos de revistas, estampas, capas de livros e álbuns musicais.

Felisberta, primavera 2023


Maceió / Buenos aires

Curadoria: Eduarda Rocha e Isadora


Barcelos

Edição: Eduarda Rocha

Capa: Marcela Novaes

Artes: Marcela Novaes

felisbertazine@hotmail.com

@felisbertazine

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