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Nilcéia Valdati
DELET/PPGL UNICENTRO
Pós-doc. UFRGS
De Caicó a Curitiba
Os caderninhos
1
Poema datado de 18 de
agosto de 2016, com
desenho aquarelado e letra
da música de The Smith,
“Please, please, please, let
me get what I want”.
.
Alguns manuscritos
.
Mais manuscritos, Quincas
O ciberespaço...
As redes
Escritoras suicidas http://www.escritorassuicidas.com.br/
1 Colaborou de 2005 a 2018, aproximadamente 36 escritos (poemas e contos). Inicia a amizade e a colaboração
com Silvana Guimarães (Adelaide de Julinho), mas nunca se conheceram pessoalmente.
Em 2016, publica como convidada uma série de poemas na revista . O periódico é editado por Silvana Guimarães.
O ciberespaço
As redes
Facebook https://www.facebook.com/NNaraAA (mantida em memória)
4 Rede mais utilizada por Assionara. Espaço de experimento poético-político e posicionamentos. Entrou em
maio de 2010 e a última postagem é do dia 20-05-18, um dia antes da sua morte. Foto de perfil é de Hilda
Hilst.
Página oficial https://www.facebook.com/assionarasouza/?locale=pt_BR
Criada e mantida por Silvana Guimarães, após sua morte. Traz notícias, republicações, homenagens e
manuscritos inéditos.
Algumas hipóteses:
4) A medida que a atuação nas redes aumenta, a produção se concentra mais na poesia.
Alguns escritos, algumas leituras
Sobre isso de ser poeta e escrever poesia. Talvez uma coisa não
tenha a ver com a outra. Meu avô paterno era um grande poeta e
não consta que tenha escrito uma única poesia. Conheço também
quem escreva poesia e que de poeta não tenha muito. Quando vi a
poeta XY falando numa feira literária fiquei tão impressionada, não
com o que ela dizia porque pareciam frases incompletas e reticentes,
como se a palavra se dissolvesse no meio da fala. Quando XY lia seus
poemas, também falava com pouco impulso na voz e parecendo se
preocupar apenas com sua relação com aquele texto e tentar
pronunciá-lo a ponto de ele poder comunicar a verdade do que ela
sentiu quando escreveu. Um poema simples, enxuto, excelente como
uma roupa feita por um bom costureiro para se usar na lida diária.
Mas com um truque, um detalhe no fecho, algo particularissimo. Eu
pensei: sim, usufruam, estamos diantes de uma poeta. Alguém que
está vivendo e pensando poesia. Alguém que compreende que o
nascimento do texto se dá num tempo longínquo, muito, muito
antes de sua escrita mas que quando os elementos perceptíveis se
conjugam, as palavras vem direto pousar naquela instalação
momentânea como mariposas na lâmpada. (SOUZA, 2017)
- 29 de abril de 2017, Facebook
O texto se monta como uma hipótese: o que é, o que não é, o que se torna.
- Há poetas que não fazem poesia (a imagem do avó poeta, o passado, o imaterial);
Observações:
- Insere-se numa espécie de cartografia da poesia
“paranaense” que busca recriações para os haicais
japoneses, como Helena Kolody, ou Paulo Leminski que
foi um dos principais líderes dessa forma de escrita.
2016, Cecília não é um cachimbo
Sonha Hito Steyerl com ovelhas eletrônicas? ou Isto não é um poema
PLANO GERAL ABERTO: Sheila sai do bairro para a cidade com seu
carrinho
PLANO SEQUÊNCIA:
morros, céu azul
a catadora de lixo (plongée) plano se fecha à medida que a personagem se aproxima do centro
varre as ruas com o zoom dos olhos pernas transitam calçadas
o drama já se converte num clássico detritos se acumulam embaixo de mesas, rente às paredes
do gênero marginal cinema-sarjeta. junto ao meio fio: detritos
convocado espontaneamente
assim que soam os despertadores, (Som ambiente: grito, buzina, sirene
das bocas dos veículos
uns restos de conversa
se não é voz suave de criança
escoa o elenco de apoio
Sheila ignora e segue)
pronto a produzir e despejar lixo em grandes quantidades
câmera inquieta
lixolixolixolixolixolixolixolixolixo flagra, cata e arruma no carrinho
por onde o comboio passa toneladas a preço de nada
espalha-se o rastro de entulho depois de reciclado, lucro sem fim aos magnatas do monturo
lixolixolixolixolixolixolixolixolixo
CORTE: em salas aclimatadas, acadêmicos discutem
o roteiro original se confunde com documentário a importância da reciclagem como alternativa para evitar o colapso ambiental
Duas câmeras: olho esquerdo/olho direito de Sheila - mulher, negra,
periférica, mãe do estudante Umberto Esperança - garoto precoce,
engajado em lutas sociais na Escola Municipal Afogados
CORTE: os que enfeiam a cidade pipoco seco
trazem a roupa e os dentes limpos cadê a bala?
desviam seus corpos do corpo de Sheila mãos aos ouvidos
Sheila vasculha o chão
evitam o choque com o que consideram espécie de lixo que respira
cadê a bala?
Sheila para isso pouco se lixa plásticos, papeis, metais
divisa à frente um par de coturnos nada da bala
o tecido da farda provoca-lhe náuseas olho comovido viu
mudança de itinerário o tiro atingiu a frio
dois minutos pro suco que o seu garoto garante A cabeça do menino
FADE IN: homem gordo em sala de apartamento NINGUÉM: O que você está vendo aí, Hamlet?
revira os posts em sua rede social HAMLET: Imagens, imagens, imagens” (SOUZA, 2016)
entre fotos fofas de felinos
reproduções de Sheila
sua cara fotoshopada, lavada de sangue
legenda: "Filho de catadora é morto com bala perdida"
- A trajetória de um poema
- Assionara Souza publicou a primeira versão deste poema com o título “Como foi seu dia?” (2016) em sua página pessoal do
Facebook. Quatro dias depois, ela publica o poema em sua forma final no blog Cecília não é um cachimbo e no mesmo ano ele é
publicado, com algumas alterações, no ebook Contemporâneas: antologia poética (2016).
https://www.calameo.com/read/004977080d2d8241f2523
- O poema também torna-se parte de um projeto executado pelo escritor Vinicius F. Barth, o curta-metragem em forma de poesia
visual intitulado Darsana e foi produzido e publicado no ano de 2017, na revista R.Nott Magazine. <
http://rnottmagazine.com/blog/2017/12/18/darsana/.
- O poema é criado tomando como referência a reportagem que mostra a reação de Sheila, uma mãe negra, favelada diante do
assassinato de seu filho pela polícia.
https://extra.globo.com/casos-de-policia/destruiu-minha-vida-diz-mae-que-passou-sangue-do-filho-morto-no-rosto-19494521.html
Sheila passa o sangue do filho no rosto (Pablo Jacob, 2016)
- Poema em expansão, ou uma crítica à sociedade da imagem.
- “É muito importante no cinema, mas, mais uma vez, não
Evoca questões como racismo, violência, misogenia, apenas no cinema. É o que faz a diferença entre o cinema e a
preconceito, exploração do trabalho, questões ambientais. narração, a prosa narrativa, com a qual se tem tendência a
comparar o cinema. A paragem mostra-nos, pelo contrário, que
- Poema documentário o cinema está muito mais próximo da poesia que da prosa.”
(AGAMBEN, 2014, p. 07)
- Giorgio Agamben, em seu texto “O cinema de Guy Debord”
- Corte do cinema é enjambement da poesia
(2014), falará sobre técnica e montagem do cinema, o
- O “corte” nada mais é que o enjambement, “parar a palavra é
filósofo apontará a repetição e a paragem como elementos
subtraí-la do fluxo do sentido para a exibir enquanto tal [...] e
fundamentais da montagem. A repetição, segundo ele, refere- dizer do cinema, pelo menos de um certo cinema, que é uma
se à restituição da possibilidade daquilo que já foi tornando-o hesitação prolongada entre a imagem e o sentido”
(AGAMBEN, 2014, p. 07)
de novo possível. O segundo elemento, e que nos interessa é
a paragem, a interrupção.
-
- As vozes que atravessam o poema formam uma
constelação de referências para enfatizar os
problemas da sociedade do presente e sua relação
com a produção de imagens (cinema, literatura 2) Ainda no título temos mais um referência. Ao lermos a pergunta, de
distópica, artes visuais e o pensamento sobre o tema). imediato pensamos na obra de Philip K. Dick: Androides sonham com
ovelhas elétricas? (2014).
1) Hito Steyerl é uma cineasta alemã, além da
produção de documentários, escreve artigos, produz
Além de vídeos referentes ao filme Blade Runner, que foi inspirado no livro,
filmes e instalações, abordando questões sobre arte,
filosofia e política. Suas produções situam-se em uma Assionara Souza publicava comentários, fotos que remetiam ao enredo e trechos
Quando eu nasci
Um anjo escroto desses que tocam punheta disse: Quem mandou nascer mulher! Vai acabar embuchando!
- Ariel Nobre é um homem trans, artista, diretor e - Endereçada a Ariel, mas pode ser endereçada a um
outro coletivo, endereçada ao leitor.
cineasta, que passou por várias situações de preconceito
e violência, que o levaram a tentativa de suicídio. - Em “Poesia, crítica, endereçamento” (2014), a
Assionara publicava com frequência conteúdos que se
pesquisadora e professora Celia Pedrosa irá discutir a
questão de endereçamento a partir da análise de obras
relacionavam com Ariel. de Ana C. e advindo das reflexões do crítico Silviano
Santiago reafirma que todos os poemas são como um
- Ariel Nobre cita esses momentos de sua vida em um estado de travessia para com o outro, cabendo aos
leitores em um gesto simultâneo de ternura e desafio
relato publicado pelo site Uol. Em 2018, o cineasta desvendar quem é o outro.
produz o documentário Preciso Dizer Que Te Amo em
- O corpo e o sujeito trans são o centro do poema.
que aborda a violência, o preconceito e o suicídio entre
transsexuais. - Recorre à mitologia para pensar no corpo híbrido.
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/
08/01/fui-ameacado-por-ser-trans-desisti-do-suicidio-e-
hoje-sou-cineasta.htm?cpVersion=instant-article
É tarde de segunda-feira, Escritoras suicidas (edição 53 | abril de 2018)
É tarde de segunda-feira
As palavras dançam em mil vozes — Sim! Já estamos indo! Fica calmo.
Não pode evitá-las Procura não se mexer...
Quer apenas dormir e deixar o corpo esquecer A cidade respira uma camada tímida de brisa
Ontem de madrugada Os homens mergulham
Chegando da festa Em alienações produtivas
(Sempre depois da festa os desastres Quem flagra sua maquiagem gasta
— Como se um deus não perdoasse E o cabelo desarrumado
O cansaço de nossa alegria) Não acerta uma pista do enredo dessa trama
A mão segura o calcanhar Então ela providencia tudo
Esquerdo e, antes que o sapato escape, Para que fiquem bem, para que estejam bem
Um telefone grita Nada mais do que a impossível obrigação
Ninguém será jamais uma ilha Agora, na tarde densa de insônia
Do outro lado da linha, Conduz seu fantasma ao espelho
O gemido ensaia a frase de socorro Mira-se longo e compreensivo
Recompor-se, esquecer a entrega Como se arrancasse o coração
Do corpo ao prazer vivido na festa Com o machado do "sim"
O amor nos impele a obrigações vastíssimas
- Endereçado a Silvana Guimarães
- Versos livres em métrica irregular e a adoção de A partir de 2010 nossa convivência ganhou intimidade. Foi
quando passamos a conversar todos os dias, por mensagens ou
enjambements que encaminham o poema para a
pelo telefone. Nosso assunto principal era a literatura. E sempre
prosa, para uma crônica da despedida.
acabava em poesia. Escrevíamos poemas sobre nossas conversas.
Por exemplo, eu contava um caso que aconteceu naquele dia. Daí
- Sem referências explicitas, no entanto nos versos
a pouco, Nara mandava um poema sobre o caso. Ou vice-versa
finais que nos levam a pensar na Madrasta da (vou deixar dois exemplos abaixo). Conversamos até dois dias
Branca de Neve que pede ao caçador o coração da antes de sua morte, quando ela não conseguia mais falar. E me
menina. respondia com uma letra apenas, no WhatsApp, pra me mostrar
que estava lendo. Foi uma relação de muito afeto e muita
- A brecha para o endereçamento surge quando o confiança: ela me deu todas as suas senhas (redes sociais, blogue,
iPhone). De muita dor, também. Nara não queria morrer. Ela
poema é publicado de forma póstuma na página
dizia que não podia morrer, porque precisava escrever muita
dedicada a autora no Facebook com uma coisa. Eu lia/ouvia aquilo sem ter o que dizer. Não havia consolo.
denominação marcando quem será seu receptor: Então, desviava o assunto pra algo que ela gostasse de conversar.
“Para Silvana Guimarães”. (GUIMARÃES, 2020)
Poema de Silvana Guimarães, Facebook
para a.s.
em algum lugar da paixão O poema está publicado na página de Silvana no Facebook, assinado por
existe uma árvore branca Adelaide do Julinho. <
que surgiu em meu delírio https://www.facebook.com/adelaidedojulinho/posts/10213613656997755
no meio de uma tempestade
uma febre tropical na neve
uma árvore que se debate
na solidão do dia embaçado
como se fosse um pássaro
como se fosse um regaço
em dias de chuva ela volta
no calor trava-me os passos
please please please acredite
você é uma grande nadadora
mas o cansaço é inevitável:
a alma exige demais do corpo
so please please please não tente
atravessar o amor a braçadas (GUIMARÃES, 2020)
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O cinema de Guy Debord. In: Territórios da Filosofia. 2014. Disponível em:
https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/05/26/o-cinema-de-guy-debord-giorgio-agamben/. Acesso em: 10 fev. 2023.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987c, p. 165-
196. [Obras escolhidas, vol. 1]
DARSANA. Produção: Vinicius F. Barth. 1 vídeo (12 min). Publicado pela revista R. Nott. Magazine. Disponível em:
http://rnottmagazine.com/blog/2017/12/18/darsana/. Acesso em: 06 ago. 2022
DICK, Philip K. Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? Tradução de Ronaldo Bressane. São Paulo: Aleph, 2014.
GARCIA, Adriane (org.). Contemporâneas: antologia poética. [s. l.]: Vida Secreta Publicações, 2016. E-book. Disponível em: https://pt.calameo.com/read
/004977080d2d8241f2523. Acesso em: 13 mar. 2023.
GARRAMUÑO, Florencia. Frutos Estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014a.
GARRAMUÑO, Florencia. Formas de impertinência. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia. Expansões Contemporâneas: literatura e outras formas.
Belo Horizonte: UFMG, 2014b. p. 91-108.
GUIMARÃES, Silvana. don't let me get what i want. 24 out. 2017. Disponível em: https://www.facebook.com/adelaidedojulinho/posts/10213613656997755.
Acesso em: 01 mar. 2023.
GUIMARÃES, Silvana. Entrevista concedida à Brunna Pszdzimirski. Guarapuava: 2020.
JACOB, Pablo. Sheila, com o sangue do filho no rosto. 2016. 1 fotografia. Disponível em:
https://ogimg.infoglobo.com.br/rio/19482581-ad7-700/FT1086A/652/201606101720178422.jpg. Acesso: 14 mar. 2023.
JORNAL EXTRA ONLINE. Comentários de internautas na reportagem: ‘Destruiu minha vida’, diz mãe que passou sague do filho morto no rosto. Rio de
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LEONE, Luciana di. Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
MAGRITTE, René. A traição das imagens. (1928-1929). Disponível em: https://www.embalagemmarca.com.br/wp-content
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NOBRE. Ariel. Publicação em sua página pessoal no Facebook. 2016. Disponível em: https://www.facebook.com/arielnobret/posts/10208679011915393 .
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NOBRE, Ariel. Fui ameaçado por ser trans, planejei suicídio e, hoje, sou cineasta. UOL. 2019. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/
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NUNES, Marcos. ‘Destruiu minha vida’, diz mãe que passou sague do filho morto no rosto. Rio de Janeiro, O Globo,13 jun. 2016. Disponível em:
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