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A poética de Assionara Souza

Nilcéia Valdati
DELET/PPGL UNICENTRO
Pós-doc. UFRGS
De Caicó a Curitiba

Assionara Medeiros de Souza (1969-2018) nasceu em Caicó/RN e


radicou-se em Curitiba/PR aos 11 anos. Formou-se em Letras pela UFPR,
em 2003, onde também realizou mestrado, 2006, e iniciou o doutorado,
interrompido em 2012, sobre Osman Lins. Publicou os livros de contos
Cecília não é um cachimbo (2005), Amanhã. Com sorvete! (2010), Os
hábitos e os monges (2011), Na rua: a caminho do circo (2014), a
peça Das mulheres de antes (2016) e os poemas de Alquimista na chuva
(2017). Postumamente, foi publicado Instruções para morder a palavra
pássaro (2022), reunindo poemas inéditos. Foi responsável pela
idealização e coordenação do projeto Translações: literatura em trânsito.
Publicou de forma assídua e volumosa em sua página pessoal no Facebook
e nos blogs: Cecília não é um cachimbo, Escritoras suicidas e Revista
Do manuscrito ao digital - uma constelação de mulheres e outros seres

Os caderninhos

1 A amizade com Silvana Guimarães – herdeira dos caderninhos e


parceira do Escritoras suicidas

A tradição dos caderninhos – ainda inéditos, anunciados nas


2
redes sociais.

3 Escritos e imagens - Quincas, o gato. assionarasouza A carteira vazia


. sobre os cadernos é pra lembrar
que não se pode viver de
#literatura no Brasel
Alguns manuscritos
Alguns manuscritos
Alguns manuscritos

1
Poema datado de 18 de
agosto de 2016, com
desenho aquarelado e letra
da música de The Smith,
“Please, please, please, let
me get what I want”.

.
Alguns manuscritos

Diferentes grafias para marcar diferentes escritores

Escreve com Gregório de Matos, 2 primeiras

2 estrofes de “Descreve com galharda propriedade o


labirinto confuso de suas desconfianças.”

.
Mais manuscritos, Quincas
O ciberespaço...

As redes
Escritoras suicidas http://www.escritorassuicidas.com.br/
1 Colaborou de 2005 a 2018, aproximadamente 36 escritos (poemas e contos). Inicia a amizade e a colaboração
com Silvana Guimarães (Adelaide de Julinho), mas nunca se conheceram pessoalmente.

Blog Cecília não é um cachimbo http://cecinest.blogspot.com/


2 As postagens iniciam em 28-03-2013 e encerram em 30-08-2016, a maioria poemas e contos, mas também
aparecem ensaios, vídeos de músicas, imagens.

Revista eletrônica Germina https://www.germinaliteratura.com.br/asouza.htm


3 https://www.germinaliteratura.com.br/2016/naberlinda_assionarasouza_jun16.htm
https://www.germinaliteratura.com.br/pcruzadas_assionarasouza_jun2007.htm
https://www.germinaliteratura.com.br/2018/som_imagenario_balada15_set18.htm

Em 2016, publica como convidada uma série de poemas na revista . O periódico é editado por Silvana Guimarães.
O ciberespaço

As redes
Facebook https://www.facebook.com/NNaraAA (mantida em memória)
4 Rede mais utilizada por Assionara. Espaço de experimento poético-político e posicionamentos. Entrou em
maio de 2010 e a última postagem é do dia 20-05-18, um dia antes da sua morte. Foto de perfil é de Hilda
Hilst.
Página oficial https://www.facebook.com/assionarasouza/?locale=pt_BR
Criada e mantida por Silvana Guimarães, após sua morte. Traz notícias, republicações, homenagens e
manuscritos inéditos.

5 Instagram @assionarasouza (mantida em memória)


Utilizou a rede de 2014 a 2018, entre fotos pessoais, fotos de artistas, imagens de posicionamentos políticos,
aparece o gato Quincas, que assina alguns escritos.
Por que o ciberespaço? Por que a poesia?

Algumas hipóteses:

1) Forma de divulgação e criação do trabalho;

2) Relação rápida e direta com o leitor;

3) Diálogo com o tempo presente dos acontecimentos.

4) A medida que a atuação nas redes aumenta, a produção se concentra mais na poesia.
Alguns escritos, algumas leituras
Sobre isso de ser poeta e escrever poesia. Talvez uma coisa não
tenha a ver com a outra. Meu avô paterno era um grande poeta e
não consta que tenha escrito uma única poesia. Conheço também
quem escreva poesia e que de poeta não tenha muito. Quando vi a
poeta XY falando numa feira literária fiquei tão impressionada, não
com o que ela dizia porque pareciam frases incompletas e reticentes,
como se a palavra se dissolvesse no meio da fala. Quando XY lia seus
poemas, também falava com pouco impulso na voz e parecendo se
preocupar apenas com sua relação com aquele texto e tentar
pronunciá-lo a ponto de ele poder comunicar a verdade do que ela
sentiu quando escreveu. Um poema simples, enxuto, excelente como
uma roupa feita por um bom costureiro para se usar na lida diária.
Mas com um truque, um detalhe no fecho, algo particularissimo. Eu
pensei: sim, usufruam, estamos diantes de uma poeta. Alguém que
está vivendo e pensando poesia. Alguém que compreende que o
nascimento do texto se dá num tempo longínquo, muito, muito
antes de sua escrita mas que quando os elementos perceptíveis se
conjugam, as palavras vem direto pousar naquela instalação
momentânea como mariposas na lâmpada. (SOUZA, 2017)
- 29 de abril de 2017, Facebook

O texto se monta como uma hipótese: o que é, o que não é, o que se torna.

- Há poetas que não fazem poesia (a imagem do avó poeta, o passado, o imaterial);

- Há quem faça poesia e não é poeta (escritora XY, um excesso de presentificação);

- O poema é uma instalação momentânea.


2019, Facebook (administrado por Silvana Guimarães)

- Diálogo com Bashô e a tradição da poesia japonesa na


forma de haicai

- Novamente o encontro entre um tempo longínquo e o


agora;

- Bashô, a voz do passado, o menino, o poeta da espera;


- Se coloca no joga entre tradição e traição.

Observações:
- Insere-se numa espécie de cartografia da poesia
“paranaense” que busca recriações para os haicais
japoneses, como Helena Kolody, ou Paulo Leminski que
foi um dos principais líderes dessa forma de escrita.
2016, Cecília não é um cachimbo
Sonha Hito Steyerl com ovelhas eletrônicas? ou Isto não é um poema
PLANO GERAL ABERTO: Sheila sai do bairro para a cidade com seu
carrinho
PLANO SEQUÊNCIA:
morros, céu azul
a catadora de lixo (plongée) plano se fecha à medida que a personagem se aproxima do centro
varre as ruas com o zoom dos olhos pernas transitam calçadas
o drama já se converte num clássico detritos se acumulam embaixo de mesas, rente às paredes
do gênero marginal cinema-sarjeta. junto ao meio fio: detritos
convocado espontaneamente
assim que soam os despertadores, (Som ambiente: grito, buzina, sirene
das bocas dos veículos
uns restos de conversa
se não é voz suave de criança
escoa o elenco de apoio
Sheila ignora e segue)
pronto a produzir e despejar lixo em grandes quantidades
câmera inquieta
lixolixolixolixolixolixolixolixolixo flagra, cata e arruma no carrinho
por onde o comboio passa toneladas a preço de nada
espalha-se o rastro de entulho depois de reciclado, lucro sem fim aos magnatas do monturo
lixolixolixolixolixolixolixolixolixo
CORTE: em salas aclimatadas, acadêmicos discutem
o roteiro original se confunde com documentário a importância da reciclagem como alternativa para evitar o colapso ambiental
Duas câmeras: olho esquerdo/olho direito de Sheila - mulher, negra,
periférica, mãe do estudante Umberto Esperança - garoto precoce,
engajado em lutas sociais na Escola Municipal Afogados
CORTE: os que enfeiam a cidade pipoco seco
trazem a roupa e os dentes limpos cadê a bala?
desviam seus corpos do corpo de Sheila mãos aos ouvidos
Sheila vasculha o chão
evitam o choque com o que consideram espécie de lixo que respira
cadê a bala?
Sheila para isso pouco se lixa plásticos, papeis, metais
divisa à frente um par de coturnos nada da bala
o tecido da farda provoca-lhe náuseas olho comovido viu
mudança de itinerário o tiro atingiu a frio
dois minutos pro suco que o seu garoto garante A cabeça do menino

lanchonete da esquina: corpo estendido, sangue escorrendo


que foi que houve?
Umberto no trampo onde bate o ponto
quem viu?
momento alto do dia
isso é filme?
Sheila ergue os olhos pegadinha do apresentador?
close no filho que o lixo manteve vivo levanta daí, menino!

agito do outro lado da rua olhos enquadram o monstro fardado


perseguição nenhuma resposta devolve a vida
corre doido de polícia ao corpo quente estirado no chão
o crack e o traque carne negra só se compra viva
coturno saca da arma
e em condições para o desempenho bruto da lida
coturno puxa o gatilho
CLOSE: as mãos se banham do sangue do seu sangue (perdida não, se estivesse perdida, a catadora achava e reciclava!
atônita, a mãe mascara de vermelho a cara (polícia fazendo o seu trabalho com afinco
o urro na rua no meio do redemoinho
(bandido tem que matar mesmo, antes de fazer uma vítima fatal
(esse país vai de mal a pior #maisamorporfavor
(se estivesse em casa, isso não teria acontecido
logo ali, o repórter, também armado, dispara o flash ... Hamlet e outras 792 pessoas curtiram
confere o furo e encaminha à redação a imagem digital
Sheila cinco mil vezes impressa nas Notícias Populares obra em pleno movimento de reprodutibilidade técnica
Sheila lançada no quintal do assinante música instrumental, sobem os letreiros
Sheila no balcão da padaria o filme entra em cartaz
Sheila nas banquinhas de revista o filme sai de cartaz
baixam a cópia, repassam o link
Sheila varre as ruas com o zoom dos olhos
um poema é escrito
sua imagem e semelhança amassada, largada a um canto da
o fato é esquecido
calçada Sheila na rua camuflada
Sheila flagra/cata/arrumanocarrinho Sheila imagem no cyberspaço viajando à deriva

FADE IN: homem gordo em sala de apartamento NINGUÉM: O que você está vendo aí, Hamlet?
revira os posts em sua rede social HAMLET: Imagens, imagens, imagens” (SOUZA, 2016)
entre fotos fofas de felinos
reproduções de Sheila
sua cara fotoshopada, lavada de sangue
legenda: "Filho de catadora é morto com bala perdida"
- A trajetória de um poema

- Assionara Souza publicou a primeira versão deste poema com o título “Como foi seu dia?” (2016) em sua página pessoal do
Facebook. Quatro dias depois, ela publica o poema em sua forma final no blog Cecília não é um cachimbo e no mesmo ano ele é
publicado, com algumas alterações, no ebook Contemporâneas: antologia poética (2016).
https://www.calameo.com/read/004977080d2d8241f2523

- O poema também torna-se parte de um projeto executado pelo escritor Vinicius F. Barth, o curta-metragem em forma de poesia
visual intitulado Darsana e foi produzido e publicado no ano de 2017, na revista R.Nott Magazine. <
http://rnottmagazine.com/blog/2017/12/18/darsana/.

- O poema é criado tomando como referência a reportagem que mostra a reação de Sheila, uma mãe negra, favelada diante do
assassinato de seu filho pela polícia.
https://extra.globo.com/casos-de-policia/destruiu-minha-vida-diz-mae-que-passou-sangue-do-filho-morto-no-rosto-19494521.html
Sheila passa o sangue do filho no rosto (Pablo Jacob, 2016)
- Poema em expansão, ou uma crítica à sociedade da imagem.
- “É muito importante no cinema, mas, mais uma vez, não
Evoca questões como racismo, violência, misogenia, apenas no cinema. É o que faz a diferença entre o cinema e a
preconceito, exploração do trabalho, questões ambientais. narração, a prosa narrativa, com a qual se tem tendência a
comparar o cinema. A paragem mostra-nos, pelo contrário, que
- Poema documentário o cinema está muito mais próximo da poesia que da prosa.”
(AGAMBEN, 2014, p. 07)
- Giorgio Agamben, em seu texto “O cinema de Guy Debord”
- Corte do cinema é enjambement da poesia
(2014), falará sobre técnica e montagem do cinema, o
- O “corte” nada mais é que o enjambement, “parar a palavra é
filósofo apontará a repetição e a paragem como elementos
subtraí-la do fluxo do sentido para a exibir enquanto tal [...] e
fundamentais da montagem. A repetição, segundo ele, refere- dizer do cinema, pelo menos de um certo cinema, que é uma
se à restituição da possibilidade daquilo que já foi tornando-o hesitação prolongada entre a imagem e o sentido”
(AGAMBEN, 2014, p. 07)
de novo possível. O segundo elemento, e que nos interessa é
a paragem, a interrupção.

-
- As vozes que atravessam o poema formam uma
constelação de referências para enfatizar os
problemas da sociedade do presente e sua relação
com a produção de imagens (cinema, literatura 2) Ainda no título temos mais um referência. Ao lermos a pergunta, de
distópica, artes visuais e o pensamento sobre o tema). imediato pensamos na obra de Philip K. Dick: Androides sonham com
ovelhas elétricas? (2014).
1) Hito Steyerl é uma cineasta alemã, além da
produção de documentários, escreve artigos, produz
Além de vídeos referentes ao filme Blade Runner, que foi inspirado no livro,
filmes e instalações, abordando questões sobre arte,
filosofia e política. Suas produções situam-se em uma Assionara Souza publicava comentários, fotos que remetiam ao enredo e trechos

fronteira entre a atividade teórica e a atividade do livro https://www.facebook.com/NNaraAA/posts/1252058184842388


.
artística. A artista questiona as práticas
contemporâneas, especialmente as que se referem à
esfera digital. Em 2017, foi a primeira mulher eleita a
3 Uma terceira referência no título, “ou Isto não é - “Ao pensar em Magritte, sabe-se que sua obra traz grandes
um poema”, aqui temos a presença de René reflexões sobre as representações, sobre a pretensão do
Magritte com A traição das imagens (1929), a realismo em mostrar algo que na verdade não é. Essa
famosa pintura de um cachimbo com a legenda afirmação se dá com o título e o termo adotado: a traição, pois
“Isto não é um cachimbo”. nos chama a atenção de que o que poderia ser óbvio nem
sempre é, já que a representação de um elemento nunca será
mais do que isso, uma representação. Refletindo sobre o
poema devemos observar que a poeta não afirma a definição
exata dele, já que utiliza a conjunção “ou”. Fica a
possibilidade da dúvida: é ou não é um poema? O poema entra
em crise consigo mesmo.” (PSZDZIMIRSKI, 2021, p. 56)
4)Nos versos finais do poema, encontramos “obra - Sobre o poema, na visão de Assionara
em pleno movimento de reprodutibilidade
técnica”, referência a Walter Benjamin e “A obra
Claro que um profissional deixaria a dicção mais precisa, mas
de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”
fiquei feliz de narrar a história de Sheila, pode-se dizer que se
(1987).
trata, sim, de um poema retirado de uma notícia de jornal e que
ficou dias e dias pendurado no sótão da minha cabeça pedindo
pra existir (SOUZA, 2017) .
Drummond em tempos sinistros (2015), Facebook

Drummond em tempos sinistros

Poema de sete faces

Quando eu nasci
Um anjo escroto desses que tocam punheta disse: Quem mandou nascer mulher! Vai acabar embuchando!

As casas espiam os homens


Que correm atrás de outros homens
À tarde, talvez vá à sauna gay
Matar urgentes desejos

O bonde passa cheio de pernas:


Pernas brancas pretas amarelas.
O tarado já fica ligado e se achega nas minas
pra dar umas encoxadas
Eu tudo vejo. Porém meus olhos não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
Com cara de sério, simples e forte
É um filho da puta de um pedófilo
Já fez o filho da minha vizinha
O homem atrás dos óculos e do bigode

Meu Deus, e os fundamentalistas políticos


Que querem se fazer de Deus
Com seus discursos facistas

Mundo mundo vasto mundo


Se eu fosse preto, me chamasse Raimundo
E não tivesse o ensino médio
Seria mais um nordestino fudido
solução para se ganhar eleição

Eu não devia te dizer


Mas essa rua
Esse revólver
Botam a gente comovido como o diabo. (SOUZA, 2015)
- Publicado no dia do aniversário de 113 anos de nascimento do poeta mineiro, 31 de outubro de 2015
- Atualiza Drummond, colocando em diálogo com o presente. Inicia e encerra o poema com Drummond, o
poeta envolve o poema. Assionara cita o título do poema (Poema de sete faces) e o primeiro verso
(Quando eu nasci), e para fechar repete o último de Drummond (Botam a gente comovido como o
diabo).
- Ao mesmo tempo que estabelece um vínculo com Drummond através de uma linguagem permeada de
ironia, pessimismo, reflexão existencial, a poeta apresenta de forma crua questões políticas do seu tempo,
como o abuso sexual, críticas ao machismo e as dificuldades que as mulheres em ser mulheres. O gauche
agora é gauche.
Águas de Ariel, blog Cecília não é um cachimbo
TERÇA-FEIRA, 8 DE MARÇO DE 2016

Águas de Ariel Ao longe, o azul das montanhas celebram


Para Ariel Nobre O encanto de tua ousadia
Nesses tempos intranquilos
Ariel, agora, daqui desta janela Em que corpos de mulheres
O céu é cinza e o vento forte anuncia chuvas São silenciados e assassinados
Não tenho mais medo de chuva, Ariel Teu corpo, maior que a tarde,
Bebo a água das tempestades Projeta-se além de estrelas e estradas
E danço no jardim entre relâmpagos e trovões O novo menino parido de si
Arco retesado a quem desejar te ferir Inteiro e estonteante
Ariel, Ariel
Somos a promessa de Athena Todas as águas murmuram teu nome
Nossos corpos, nossas regras: POSTADO POR NARA ÀS 16:44
Rachar a cabeça de Zeus
Extirpar costelas até abrandar
A pele dura do antigo homem
Declarar a existência híbrida e pura
Sonhar Ser; tornar-se Ser
- Postagem de Ariel Nobre, 8 de março de 2016
- Resposta de Assionara, o poema “Águas de Ariel”
- Poesia endereçada a Ariel Nobre.

- Ariel Nobre é um homem trans, artista, diretor e - Endereçada a Ariel, mas pode ser endereçada a um
outro coletivo, endereçada ao leitor.
cineasta, que passou por várias situações de preconceito
e violência, que o levaram a tentativa de suicídio. - Em “Poesia, crítica, endereçamento” (2014), a
Assionara publicava com frequência conteúdos que se
pesquisadora e professora Celia Pedrosa irá discutir a
questão de endereçamento a partir da análise de obras
relacionavam com Ariel. de Ana C. e advindo das reflexões do crítico Silviano
Santiago reafirma que todos os poemas são como um
- Ariel Nobre cita esses momentos de sua vida em um estado de travessia para com o outro, cabendo aos
leitores em um gesto simultâneo de ternura e desafio
relato publicado pelo site Uol. Em 2018, o cineasta desvendar quem é o outro.
produz o documentário Preciso Dizer Que Te Amo em
- O corpo e o sujeito trans são o centro do poema.
que aborda a violência, o preconceito e o suicídio entre
transsexuais. - Recorre à mitologia para pensar no corpo híbrido.

https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/
08/01/fui-ameacado-por-ser-trans-desisti-do-suicidio-e-
hoje-sou-cineasta.htm?cpVersion=instant-article
É tarde de segunda-feira, Escritoras suicidas (edição 53 | abril de 2018)
É tarde de segunda-feira
As palavras dançam em mil vozes — Sim! Já estamos indo! Fica calmo.
Não pode evitá-las Procura não se mexer...
Quer apenas dormir e deixar o corpo esquecer A cidade respira uma camada tímida de brisa
Ontem de madrugada Os homens mergulham
Chegando da festa Em alienações produtivas
(Sempre depois da festa os desastres Quem flagra sua maquiagem gasta
— Como se um deus não perdoasse E o cabelo desarrumado
O cansaço de nossa alegria) Não acerta uma pista do enredo dessa trama
A mão segura o calcanhar Então ela providencia tudo
Esquerdo e, antes que o sapato escape, Para que fiquem bem, para que estejam bem
Um telefone grita Nada mais do que a impossível obrigação
Ninguém será jamais uma ilha Agora, na tarde densa de insônia
Do outro lado da linha, Conduz seu fantasma ao espelho
O gemido ensaia a frase de socorro Mira-se longo e compreensivo
Recompor-se, esquecer a entrega Como se arrancasse o coração
Do corpo ao prazer vivido na festa Com o machado do "sim"
O amor nos impele a obrigações vastíssimas
- Endereçado a Silvana Guimarães

- Versos livres em métrica irregular e a adoção de A partir de 2010 nossa convivência ganhou intimidade. Foi
quando passamos a conversar todos os dias, por mensagens ou
enjambements que encaminham o poema para a
pelo telefone. Nosso assunto principal era a literatura. E sempre
prosa, para uma crônica da despedida.
acabava em poesia. Escrevíamos poemas sobre nossas conversas.
Por exemplo, eu contava um caso que aconteceu naquele dia. Daí
- Sem referências explicitas, no entanto nos versos
a pouco, Nara mandava um poema sobre o caso. Ou vice-versa
finais que nos levam a pensar na Madrasta da (vou deixar dois exemplos abaixo). Conversamos até dois dias
Branca de Neve que pede ao caçador o coração da antes de sua morte, quando ela não conseguia mais falar. E me
menina. respondia com uma letra apenas, no WhatsApp, pra me mostrar
que estava lendo. Foi uma relação de muito afeto e muita
- A brecha para o endereçamento surge quando o confiança: ela me deu todas as suas senhas (redes sociais, blogue,
iPhone). De muita dor, também. Nara não queria morrer. Ela
poema é publicado de forma póstuma na página
dizia que não podia morrer, porque precisava escrever muita
dedicada a autora no Facebook com uma coisa. Eu lia/ouvia aquilo sem ter o que dizer. Não havia consolo.
denominação marcando quem será seu receptor: Então, desviava o assunto pra algo que ela gostasse de conversar.
“Para Silvana Guimarães”. (GUIMARÃES, 2020)
Poema de Silvana Guimarães, Facebook

don't let me get what i want

para a.s.

em algum lugar da paixão O poema está publicado na página de Silvana no Facebook, assinado por
existe uma árvore branca Adelaide do Julinho. <
que surgiu em meu delírio https://www.facebook.com/adelaidedojulinho/posts/10213613656997755
no meio de uma tempestade
uma febre tropical na neve
uma árvore que se debate
na solidão do dia embaçado
como se fosse um pássaro
como se fosse um regaço
em dias de chuva ela volta
no calor trava-me os passos
please please please acredite
você é uma grande nadadora
mas o cansaço é inevitável:
a alma exige demais do corpo
so please please please não tente
atravessar o amor a braçadas (GUIMARÃES, 2020)
Referências

AGAMBEN, Giorgio. O cinema de Guy Debord. In: Territórios da Filosofia. 2014. Disponível em:
https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/05/26/o-cinema-de-guy-debord-giorgio-agamben/. Acesso em: 10 fev. 2023.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987c, p. 165-
196. [Obras escolhidas, vol. 1]

DARSANA. Produção: Vinicius F. Barth. 1 vídeo (12 min). Publicado pela revista R. Nott. Magazine. Disponível em:
http://rnottmagazine.com/blog/2017/12/18/darsana/. Acesso em: 06 ago. 2022

DICK, Philip K. Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? Tradução de Ronaldo Bressane. São Paulo: Aleph, 2014.

GARCIA, Adriane (org.). Contemporâneas: antologia poética. [s. l.]: Vida Secreta Publicações, 2016. E-book. Disponível em: https://pt.calameo.com/read
/004977080d2d8241f2523. Acesso em: 13 mar. 2023.

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos Estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014a.

GARRAMUÑO, Florencia. Formas de impertinência. In: KIFFER, Ana; GARRAMUÑO, Florencia. Expansões Contemporâneas: literatura e outras formas.
Belo Horizonte: UFMG, 2014b. p. 91-108.
GUIMARÃES, Silvana. don't let me get what i want. 24 out. 2017. Disponível em: https://www.facebook.com/adelaidedojulinho/posts/10213613656997755.
Acesso em: 01 mar. 2023.
GUIMARÃES, Silvana. Entrevista concedida à Brunna Pszdzimirski. Guarapuava: 2020.
JACOB, Pablo. Sheila, com o sangue do filho no rosto. 2016. 1 fotografia. Disponível em:
https://ogimg.infoglobo.com.br/rio/19482581-ad7-700/FT1086A/652/201606101720178422.jpg. Acesso: 14 mar. 2023.
JORNAL EXTRA ONLINE. Comentários de internautas na reportagem: ‘Destruiu minha vida’, diz mãe que passou sague do filho morto no rosto. Rio de
Janeiro, Extra Online, 13 jun. 2016. Disponível em:
https://extra.globo.com/casos-de-policia/destruiu-minha-vida-diz-mae-que-passou-sangue-do-filho-morto-no-rosto-19494521.html. Acesso: 15 mar. 2023
LEONE, Luciana di. Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
MAGRITTE, René. A traição das imagens. (1928-1929). Disponível em: https://www.embalagemmarca.com.br/wp-content
/uploads/2016/10/magritte-1024x640.jpg. Acesso em: 13 mar. 2023.
NOBRE. Ariel. Publicação em sua página pessoal no Facebook. 2016. Disponível em: https://www.facebook.com/arielnobret/posts/10208679011915393 .
Acesso em: 23 nov. 16 mar. 2023
NOBRE, Ariel. Fui ameaçado por ser trans, planejei suicídio e, hoje, sou cineasta. UOL. 2019. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/
redacao/2019/08/01/fui-ameacado-por-ser-trans-desisti-do-suicidio-e-hoje-sou-cineasta.htm?cpVersion=instant-article. Acesso em: .16 mar. 2023.
NUNES, Marcos. ‘Destruiu minha vida’, diz mãe que passou sague do filho morto no rosto. Rio de Janeiro, O Globo,13 jun. 2016. Disponível em:
https://extra.globo.com/casos-de-policia/destruiu-minha-vida-diz-mae-que-passou-sangue-do-filho-morto-no-rosto-19494521.html.
Acesso: 16 mar. 2023.
PEDROSA, Celia et al (org.). Endereçamento. In: PEDROSA, Celia et al (org.). Indicionário do Contemporâneo. Belo Horizonte: UFMG, 2018. p. 97-124.

STEYERL, Hito. O spam da terra: distanciamento da representação. Revista Zum, 2019. Disponível em: https://revistazum.com.br/revista-zum-16/o-spam-da-
terra/. Acesso em: 04 mar. 2023
SOUZA, Assionara. Cecília não é um cachimbo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.
SOUZA, Assionara. Drummond em tempos sinistros. 31 out. 2015b. In: Facebook “Assionara Souza”. Disponível em:
https://www.facebook.com/NNaraAA/posts/924703464244530. Acesso em: 17 mar. 2023
SOUZA, Assionara. Sonha Hito Steyerl com ovelhas eletrônicas? ou Isto não é um poema. 2016c. In: Cecília não é um cachimbo. Disponível em:
http://cecinest.blogspot.com/2016/06/sonha-hito-steyerl-com-ovelhas.html. Acesso em: 13 mar. 2023.
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