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ARARIPE COUTINHO: COMO ALGUÉM QUE NUNCA ESTEVE AQUI

NETO, Jaime Santana1

Resumo: Subestimado em Sergipe, Araripe Coutinho foi um poeta nordestino e


gay (queer), tornando-se um dissidente pelas suas escolhas de vida. Sua escrita
potencializou uma emersão em si mesmo e no cotidiano das frágeis relações
amorosas, que transgridem a normatividade do sistema logocêntrico. Este ensaio
vem apontar uma possível identidade do escritor, buscando entender como um
poeta que publicou 11 livros terminou seus dias como alguém que nunca existiu.
Palavras-Chave: Araripe Coutinho. Identidade. Pós-estruturalismo.

INTRODUÇÃO

Este ensaio surge da necessidade de entender a vida e a escrita poética do carioca,


radicado sergipano, Araripe Coutinho, dentro da dissonância entre o socialmente aceitável e o
excretado pelo olhar redutor de uma cruel sociedade, que por vezes avistava o escritor como
um caricato marginal. Burlando leis econômicas e de gênero, sua produção, ao longo dos seus
46 anos, misturou o sagrado e o profano de forma a justificar fazeres e castigos, transcorrendo
livremente pela sua homossexualidade e por uma, ainda não vislumbrada, bruma queer
(termo que na época da primeira obra araripiana ainda estava em construção nos Estados
Unidos), fatores estes que o deflagraram enquanto um artista subalternizado.

Possivelmente, por conta de sua produção libertária, o poeta passou a fazer parte de um
cenário literário não tão levado a sério, afirmação confirmada pelas baixas vendas de seus
livros, mesmo Araripe Coutinho sendo um operário da poesia. Foi através do escárnio popular,
resultado de quem não se encaixa nos paradigmas sociais nordestino/macho, que Araripe
construiu sua escrita, e, silenciosamente, montou sua teia de resistência ao ordinário.

Quebrando os paradigmas do convencional, Araripe Coutinho lutou, em seu curto


tempo de vida, para se fazer existir, principalmente, através de sua poesia. Lançou 11 livros,
incluindo a obra que faz parte do título deste ensaio. Seus poemas são sofisticados e ao
mesmo tempo populares, e de forma simples e delicada, ele mostrou que a sua obra deve ser
pensada, e consumida, enquanto retrato do mundo atualmente, onde as discussões de gênero
e liberdade estão cada dia mais em voga, por exemplo.

Para entender quem foi Araripe Coutinho é preciso mergulhar na história de vida deste
escritor, através de seus poemas iniciais. Sendo assim, este trabalho se aterá ao primeiro livro
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Departamento de Linguística, Literatura
e Arte da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: jaimenetoparticular@gmail.com.
publicado por Araripe Coutinho, intitulado “Amor Sem Rosto” (1989), onde já é possível
vislumbrar alguns dos temas que serão constantemente tratados em suas poesias. Sete anos
após a sua morte, praticamente não existe nenhum estudo, em Sergipe, abordando a obra ou
a pessoa de Araripe Coutinho, o que vem a ser uma falta amarga para a produção poética,
literária e artística tanto do menor estado na nação quanto do próprio Brasil. Este ensaio tem a
chave para começar a quebrar o esquecimento sobre a pessoal e poesia de Araripe Coutinho, e
neste contexto também de findar a desvalorização artística, que fez parte da vida do poeta.

Analisando partes da primeira produção araripiana, este trabalho vai se costurando em


consonância com questões ligadas à identidade do ser poeta/homem trabalhada em Stuart
Hall; a homossexualidade não escondida do poeta, através dos apontamentos de Félix
Guattari, e ao pós-estruturalismo, marcado pelas mãos de Michel Foucault.

Araripe Coutinho deve ser visto e estudado enquanto um escritor-comunicador


brasileiro, principalmente, por sua poética em amarras, que dialoga com as bases
epistemológicas modernas, com suas nuances decoloniais ética, política e também estética.

1 - COMO ALGUÉM QUE ESTEVE AQUI

Carioca radicado sergipano, Araripe Coutinho nasceu em 1968 e pouco tempo depois já
estava de mudança para o nordeste, juntamente com o pai. Abandonado pela mãe aos três
anos de idade, ele também foi deixado num orfanato pelo pai, ainda na infância. Foi adotado
por uma família postiça, retornando ao convívio do pai outra vez, ainda na mocidade. Estudou
no Colégio de Aplicação, entidade escolar ligada à Universidade Federal de Sergipe, e lançou
aos 21 anos seu primeiro romance “Amor sem rosto” em 1989, ganhando, na época, o Prêmio
Poeta Santo Souza, pela Secretaria Estadual de Cultura.

Construindo seus escritos, a partir de uma linguagem subversiva, mesclando


sexualidades dissidentes e ousando citar a religiosidade enquanto parâmetro para uma
hipotética segurança pessoal, o poeta acabou transcorrendo e construindo um caminho
literário focado em experiências pessoais e observações de vida, ainda que esta fosse um tanto
confusa e vil com ele próprio. Em sua carta ao leitor, que abre o livro Obra Poética Reunida
(2013), o poeta se apresenta se maldizendo ao mesmo tempo:

Eu não deveria ter nascido. Quando vi, estava eu aqui, meio lama no imenso
mundo retratado, cheio de quadrúpedes rondando a minha sala. Pedi para
voltar. Gritei muito, antes de ouvir uma voz dizendo: desça e arrase! Eu
pude fincar minha vida bem no meio da floresta escura de Dante. E aqui
estou até hoje, - desencantado. Mas o que fazer de mim mesmo, pela graça
ainda vivo? (COUTINHO, 2013, p. 7).
Escrevendo desde a adolescência, sendo formado e reformado por seu próprio destino,
Araripe Coutinho se entende enquanto poeta ao sair da casa do pai, local ao qual nunca se
achou pertencido, e foi buscar seu autoconhecimento enquanto artista pelas ruas de Aracaju,
capital sergipana. Munido por várias dores familiares e religiosas – uma vez que estudou para
se tornar padre, o que não aconteceu – o poeta trouxe consigo uma identidade permeada de
composições ambíguas, e imprimindo-as em seus primeiros poemas publicados, num mix de
conflitos e alívio.

Transitando entre o final da Ditadura e o início da abertura política brasileira, e suas


consequências para a arte brasileira (que buscava entender as próprias produções nacionais),
o jovem Araripe Coutinho da década de 80 começa a construir sua própria escrita permeando-
a com as desgraças de sua vida familiar, sua homossexualidade e a poesia como uma forma de
identificação fluída, um tipo de marca pessoal.

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e


estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. O
próprio processo de identificação, através do qual projetamos em nossas
identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não
tendo identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma
‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam (HALL, pág.12, 1992).

2 NENHUM CORAÇÃO

É justamente por se sentir tão à vontade escrevendo poesia que Araripe Coutinho
entrega em seu primeiro livro muito mais do que uma reunião de versos. Ele constrói seu
verdadeiro autorretrato; e a folha de papel que tanto o libertou também o aprisiona como
forma de castigo por ele ser quem foi, observação esta que pode ser percebida em “Caso”,
poema que mescla comparativos entre ele e outro homem, e onde a relação homoafetiva é
detalhada em forma de uma briga de egos.

Antigamente o macho era eu


(não sabia)
Matei todos os amores
Comprei todos os perfumes
Com a intenção de iludir
Não abria as cartas
Rasgava os bilhetes sem ler
Não chupava drops para beijar.
Hoje o macho é ele
(mais perverso ainda)
Não põe água nas plantas
Não tira o prato da mesa
Não dobra os lençóis
Não pergunta se quero sair.
Eu seguramente deixo tudo como está
Fecho a porta do quarto para dormir
Jogo o lençol dele no corredor
Apago o abajur
Somos duas feridas
Eu amo esta distância
Ele odeia este lirismo
Mas o mais destruidor de tudo isso
É tê-lo desmesuradamente em mim
Rir da metáfora de beber no meu copo
Ver sua sunga no banheiro
E pôr para lavar (COUTINHO, 2013, p. 29).
Pelas escolhas de temas, não tratados regularmente pela literatura poética brasileira,
quiçá sergipana, Araripe Coutinho instiga a curiosidade e ao mesmo tempo se coloca numa
redoba, justamente por se mostrar através de sua escrita crua, e sensível.

Livre e aprisionado ao mesmo tempo, “Amor Sem Rosto” é composto por 14 poemas,
sendo destes, sete com teor homoafetivo e outros setes sobre religiosidade, relações
familiares e dores amorosas. O escritor se descobre um jovem poeta brasileiro, mas também
um homem que acaba marginalizado em decorrência de sua homopoética2 manifestada.

A homossexualidade contesta o poder heterossexual em seu próprio


terreno. Agora quem vai ter que prestar contas é a heterossexualidade. O
problema está deslocado, o poder falocrático tende a ser questionado. Em
princípio, uma conexão torna-se então possível entre a ação das feministas
e dos homossexuais (GUATTARI, 1977, p. 34).
Então, indo além do que se espera de um autor/poeta nordestino, que traz em si um
espectro de masculinidade e árida sobrevivência por cruzar sertões, Araripe Coutinho ousou,
em sua primeira obra lançada, mostrar a relação afetiva com o mesmo sexo. Permeando sua

2
Homopoética – termo de minha autoria, que versa com a similaridade da palavra hematopoiético, que
vem a ser a renovação celular do sangue, através de processos mitóticos (é o início, meio e fim de um
célula). Na homopoética (homo=igual) + poética (poesia), o termo traz a mescla dessas duas palavras
para compor um processo de escrita onde a relação entre o mesmo sexo não é possível de se definir
quando começou, viveu ou morreu. Sendo orgânicas, as duas células de um mesmo sexo formam dois
corpos do mesmo sexo, dois amores do mesmo sexo e tornam-se apenas um verso.
escrita num campo minado das descobertas de gêneros, em pleno 1989 já se mostrava um
desviante também dentro do caminho dos desvia-dos. Nos versos de “Rastro”, ele se define
enquanto pessoa, e não apenas como um corpo, biologicamente, masculino ou femino.
Araripe Coutinho fez flutuar assim os sentimentos humanos, o que pode ser visto, inclusive,
como um forte indicativo do início da Teoria Queer 3 no Brasil, quando esta nem era ainda
propagada ao certo pelo o mundo.

Arrumo as malas
Parto
Estou farto de ser mulher
A porta fecha
A rosa de vidro desbotou
Carlitos me entende calado
Posso ser teus olhos
(incenso e mirra)
Miro meu gesto
Teu sexo
Minha mão profana
Rasgo com os dentes teus lados.
Pegue no meu ombro
Quebre o batom que não gostas.
Não me tocas
Se me tocas
Permaneço exausta
Homem-mulher
Entre a vidraça
O estilhaço
O rastro (COUTINHO, 2013, p. 32).
3 PASSAR A DOR

Logo, sem mais temer ser reconhecido, socialmente, em seu Estado como um escritor
“viado”, como ele próprio muitas vezes se autodenominava, trilhou o apontado caminho
pecaminoso de pertencer a uma espécie de marginalidade aceita socialmente, porém,
criticada.

“Os homossexuais funcionam, no campo social global, um pouco como


movimentos, capelas, com seu cerimonial particular, seus ritos de iniciação,
seus mitos amorosos, como diz René Nelli. A homossexualidade continua

3
Queer vem de estranho, que está fora das normas. A Teoria Queer questiona os parâmetros propostos
pelas epistemes, questionando o que é masculino e feminino.
ligada aos valores e aos sistemas de interação da sexualidade dominante.
Sua dependência da normalidade heterossexual se manifesta por uma
política do segredo, uma clandestinidade alimentada pela repressão e
também por um sentimento de vergonha ainda vivo nos meios
“respeitáveis” (particularmente entre os homens de negócios, de letras e de
espetáculos, etc) (GUATTARI, 1977, p. 34).
Ao longo de seus outros 10 livros4, todos de poemas, Araripe Coutinho fez questão de
permanecer fiel ao seu eu descoberto, se apropriando daquilo que a sociedade o
(des)classificava, tirando as poesias do seu âmago para continuar sobrevivendo da escrita, e se
descrevendo também. Se entendendo enquanto artista que não se definia apenas por seu sexo
biológico.

“O misto de dois sexos: quem é ao mesmo tempo homem e mulher é um


monstro. Transgressão, por conseguinte, dos limites naturais, transgressão
das classificações, transgressão do quadro, transgressão da lei como quadro:
é disso que se trata, na monstruosidade. Mas não acho que é só isso que
constitui o monstro. Para que haja monstruosidade, essa transgressão da lei-
quadro tem que ser tal que se refira a, ou em todo caso questione certa
suspensão da lei civil, religiosa ou divina. Só há monstruosidade onde a
desordem da lei natural vem tocar, abalar, inquietar o direito, seja o direito
civil, o direito canônico ou o direito religioso. (FOUCAULT, 2001, pág. 79).
Futuramente trabalhando enquanto jornalista, colunista social, redator de peças
publicitárias, mas sem deixar de lado, nem por um segundo, sua profissão – poeta, Araripe
Coutinho se mostrou vívido no processo de resistência literária produzindo e lançando obras,
de pouco consumo social, mas de grande prestígio nas rodas intelectuais. Ainda em sua
juventude recebeu os títulos de Cidadania Aracajuana e Sergipana e foi membro da Academia
Sergipana de Letras.

Eu queria mesmo ter ficado em mim este tempo todo. as minhas lindas
batatas da perna, minha vagina desejada, meu peito sem pelo e mesmo a
minha voz, feminina e lânguida pronta para a conquista – eu pude dizer a
mim mesmo, eis-me aqui! Réptil-jibóia, viva, com todos os dentes,
convocada que fui para a imensa selva, onde possuí mais monstros que
gente! Agora posso crer que não morri, está aqui os versos de toda a minha
vida – e mais alguns que estão guardados na arca. Mas posso assegurar:
caminho sobre um pátio de avencas, lírios e tenho presságios todos os dias
com minha mãe que me abandonou aos três anos. Agora que estou aqui,
deixo ao leitor estas páginas para além de mim: reflexão que somos de algo
que não encontraremos nunca (COUTINHO, 2013, p. 8).
CONCLUSÃO

Sendo um desviante, Araripe Coutinho sobrevive diante do estigma de ser nordestino e


gay. Em sua maneira de ser livre, ele depõe contra o convencional e o esperado por um poeta
nascido homem, percorrendo até aqui caminhos ainda não explorados por estudiosos e

4
Asas da Agonia (1991), Sede no Escuro (1994), Passarador (1997), Sal das Tempestades (1999), O
Demônio Que é o Amor, Como Alguém que Nunca Esteve Aqui (2005), Doabismodotempo (2006),
Nenhum Coração (2008), O Sofrimento da Luz (2009) e O Coração de Chopin (2013).
curiosos. Desta maneira, este ensaio ganha importância social e crítica, ao contribuir para uma
elasticidade do pensamento do poeta em consonância também com a atualidade.

Diante da grandiosidade de sua obra e de sua escrita pós-estruturalista, ele deve ser
analisado e enaltecido, passando de um homem subalternizado/marginalizado para o patamar
dos mais importantes poetas brasileiros modernos.

A poesia de Araripe Coutinho, como pode ser vislumbrada neste ensaio, precisa ser vista
como uma quebra dos paradigmas sociais, estreitando o diálogo com a Teoria Queer em sua
forma de não se classificar masculina ou feminina, sendo atemporal e jamais normativa.

Para entender um pouco mais a poesia de Araripe Coutinho se fez necessário mergulhar
em quem foi esse homem, que viveu apenas 46 anos, e escreveu diariamente tanto para
jornais, revistas e sites sergipanos quanto seus próprios livros de poesia; sendo um dos poucos
poetas com produção constante em Sergipe, mas que ainda assim morreu na pobreza,
enterrado num cemitério público, dentro de um caixão doado.

Sete anos após a sua morte, hoje, praticamente não se comenta nem se estuda Araripe
Coutinho. Desta forma, ao abordar o (não) poder desse homem, este ensaio, que deve ter
seguimento escrito, constrói um ponto de luz diante da grandiosidade de sua vida e de sua
obra.

REFERÊNCIAS

COUTINHO, Araripe. Obra Poética Reunida. Sergipe: Ed. J. Andrade, 2013.


FOUCAULT, Michel. Os Anormais: curso no Collège de France 1974-1975. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
GUATTARI, Felix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1977.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2015.

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