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INTRODUÇÃO
Possivelmente, por conta de sua produção libertária, o poeta passou a fazer parte de um
cenário literário não tão levado a sério, afirmação confirmada pelas baixas vendas de seus
livros, mesmo Araripe Coutinho sendo um operário da poesia. Foi através do escárnio popular,
resultado de quem não se encaixa nos paradigmas sociais nordestino/macho, que Araripe
construiu sua escrita, e, silenciosamente, montou sua teia de resistência ao ordinário.
Para entender quem foi Araripe Coutinho é preciso mergulhar na história de vida deste
escritor, através de seus poemas iniciais. Sendo assim, este trabalho se aterá ao primeiro livro
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Departamento de Linguística, Literatura
e Arte da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: jaimenetoparticular@gmail.com.
publicado por Araripe Coutinho, intitulado “Amor Sem Rosto” (1989), onde já é possível
vislumbrar alguns dos temas que serão constantemente tratados em suas poesias. Sete anos
após a sua morte, praticamente não existe nenhum estudo, em Sergipe, abordando a obra ou
a pessoa de Araripe Coutinho, o que vem a ser uma falta amarga para a produção poética,
literária e artística tanto do menor estado na nação quanto do próprio Brasil. Este ensaio tem a
chave para começar a quebrar o esquecimento sobre a pessoal e poesia de Araripe Coutinho, e
neste contexto também de findar a desvalorização artística, que fez parte da vida do poeta.
Carioca radicado sergipano, Araripe Coutinho nasceu em 1968 e pouco tempo depois já
estava de mudança para o nordeste, juntamente com o pai. Abandonado pela mãe aos três
anos de idade, ele também foi deixado num orfanato pelo pai, ainda na infância. Foi adotado
por uma família postiça, retornando ao convívio do pai outra vez, ainda na mocidade. Estudou
no Colégio de Aplicação, entidade escolar ligada à Universidade Federal de Sergipe, e lançou
aos 21 anos seu primeiro romance “Amor sem rosto” em 1989, ganhando, na época, o Prêmio
Poeta Santo Souza, pela Secretaria Estadual de Cultura.
Eu não deveria ter nascido. Quando vi, estava eu aqui, meio lama no imenso
mundo retratado, cheio de quadrúpedes rondando a minha sala. Pedi para
voltar. Gritei muito, antes de ouvir uma voz dizendo: desça e arrase! Eu
pude fincar minha vida bem no meio da floresta escura de Dante. E aqui
estou até hoje, - desencantado. Mas o que fazer de mim mesmo, pela graça
ainda vivo? (COUTINHO, 2013, p. 7).
Escrevendo desde a adolescência, sendo formado e reformado por seu próprio destino,
Araripe Coutinho se entende enquanto poeta ao sair da casa do pai, local ao qual nunca se
achou pertencido, e foi buscar seu autoconhecimento enquanto artista pelas ruas de Aracaju,
capital sergipana. Munido por várias dores familiares e religiosas – uma vez que estudou para
se tornar padre, o que não aconteceu – o poeta trouxe consigo uma identidade permeada de
composições ambíguas, e imprimindo-as em seus primeiros poemas publicados, num mix de
conflitos e alívio.
2 NENHUM CORAÇÃO
É justamente por se sentir tão à vontade escrevendo poesia que Araripe Coutinho
entrega em seu primeiro livro muito mais do que uma reunião de versos. Ele constrói seu
verdadeiro autorretrato; e a folha de papel que tanto o libertou também o aprisiona como
forma de castigo por ele ser quem foi, observação esta que pode ser percebida em “Caso”,
poema que mescla comparativos entre ele e outro homem, e onde a relação homoafetiva é
detalhada em forma de uma briga de egos.
Livre e aprisionado ao mesmo tempo, “Amor Sem Rosto” é composto por 14 poemas,
sendo destes, sete com teor homoafetivo e outros setes sobre religiosidade, relações
familiares e dores amorosas. O escritor se descobre um jovem poeta brasileiro, mas também
um homem que acaba marginalizado em decorrência de sua homopoética2 manifestada.
2
Homopoética – termo de minha autoria, que versa com a similaridade da palavra hematopoiético, que
vem a ser a renovação celular do sangue, através de processos mitóticos (é o início, meio e fim de um
célula). Na homopoética (homo=igual) + poética (poesia), o termo traz a mescla dessas duas palavras
para compor um processo de escrita onde a relação entre o mesmo sexo não é possível de se definir
quando começou, viveu ou morreu. Sendo orgânicas, as duas células de um mesmo sexo formam dois
corpos do mesmo sexo, dois amores do mesmo sexo e tornam-se apenas um verso.
escrita num campo minado das descobertas de gêneros, em pleno 1989 já se mostrava um
desviante também dentro do caminho dos desvia-dos. Nos versos de “Rastro”, ele se define
enquanto pessoa, e não apenas como um corpo, biologicamente, masculino ou femino.
Araripe Coutinho fez flutuar assim os sentimentos humanos, o que pode ser visto, inclusive,
como um forte indicativo do início da Teoria Queer 3 no Brasil, quando esta nem era ainda
propagada ao certo pelo o mundo.
Arrumo as malas
Parto
Estou farto de ser mulher
A porta fecha
A rosa de vidro desbotou
Carlitos me entende calado
Posso ser teus olhos
(incenso e mirra)
Miro meu gesto
Teu sexo
Minha mão profana
Rasgo com os dentes teus lados.
Pegue no meu ombro
Quebre o batom que não gostas.
Não me tocas
Se me tocas
Permaneço exausta
Homem-mulher
Entre a vidraça
O estilhaço
O rastro (COUTINHO, 2013, p. 32).
3 PASSAR A DOR
Logo, sem mais temer ser reconhecido, socialmente, em seu Estado como um escritor
“viado”, como ele próprio muitas vezes se autodenominava, trilhou o apontado caminho
pecaminoso de pertencer a uma espécie de marginalidade aceita socialmente, porém,
criticada.
3
Queer vem de estranho, que está fora das normas. A Teoria Queer questiona os parâmetros propostos
pelas epistemes, questionando o que é masculino e feminino.
ligada aos valores e aos sistemas de interação da sexualidade dominante.
Sua dependência da normalidade heterossexual se manifesta por uma
política do segredo, uma clandestinidade alimentada pela repressão e
também por um sentimento de vergonha ainda vivo nos meios
“respeitáveis” (particularmente entre os homens de negócios, de letras e de
espetáculos, etc) (GUATTARI, 1977, p. 34).
Ao longo de seus outros 10 livros4, todos de poemas, Araripe Coutinho fez questão de
permanecer fiel ao seu eu descoberto, se apropriando daquilo que a sociedade o
(des)classificava, tirando as poesias do seu âmago para continuar sobrevivendo da escrita, e se
descrevendo também. Se entendendo enquanto artista que não se definia apenas por seu sexo
biológico.
Eu queria mesmo ter ficado em mim este tempo todo. as minhas lindas
batatas da perna, minha vagina desejada, meu peito sem pelo e mesmo a
minha voz, feminina e lânguida pronta para a conquista – eu pude dizer a
mim mesmo, eis-me aqui! Réptil-jibóia, viva, com todos os dentes,
convocada que fui para a imensa selva, onde possuí mais monstros que
gente! Agora posso crer que não morri, está aqui os versos de toda a minha
vida – e mais alguns que estão guardados na arca. Mas posso assegurar:
caminho sobre um pátio de avencas, lírios e tenho presságios todos os dias
com minha mãe que me abandonou aos três anos. Agora que estou aqui,
deixo ao leitor estas páginas para além de mim: reflexão que somos de algo
que não encontraremos nunca (COUTINHO, 2013, p. 8).
CONCLUSÃO
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Asas da Agonia (1991), Sede no Escuro (1994), Passarador (1997), Sal das Tempestades (1999), O
Demônio Que é o Amor, Como Alguém que Nunca Esteve Aqui (2005), Doabismodotempo (2006),
Nenhum Coração (2008), O Sofrimento da Luz (2009) e O Coração de Chopin (2013).
curiosos. Desta maneira, este ensaio ganha importância social e crítica, ao contribuir para uma
elasticidade do pensamento do poeta em consonância também com a atualidade.
Diante da grandiosidade de sua obra e de sua escrita pós-estruturalista, ele deve ser
analisado e enaltecido, passando de um homem subalternizado/marginalizado para o patamar
dos mais importantes poetas brasileiros modernos.
A poesia de Araripe Coutinho, como pode ser vislumbrada neste ensaio, precisa ser vista
como uma quebra dos paradigmas sociais, estreitando o diálogo com a Teoria Queer em sua
forma de não se classificar masculina ou feminina, sendo atemporal e jamais normativa.
Para entender um pouco mais a poesia de Araripe Coutinho se fez necessário mergulhar
em quem foi esse homem, que viveu apenas 46 anos, e escreveu diariamente tanto para
jornais, revistas e sites sergipanos quanto seus próprios livros de poesia; sendo um dos poucos
poetas com produção constante em Sergipe, mas que ainda assim morreu na pobreza,
enterrado num cemitério público, dentro de um caixão doado.
Sete anos após a sua morte, hoje, praticamente não se comenta nem se estuda Araripe
Coutinho. Desta forma, ao abordar o (não) poder desse homem, este ensaio, que deve ter
seguimento escrito, constrói um ponto de luz diante da grandiosidade de sua vida e de sua
obra.
REFERÊNCIAS