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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO


DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LITERATURA E ARTE – CAMPUS II
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL

ARARIPE COUTINHO: A POESIA TRANSGRESSORA (E QUEER) PARA


ALÉM DOS MUROS SERGIPANOS

Linha de Pesquisa 1: Literatura, Produção Cultural e Modos de Vida

Jaime Santana Neto

Alagoinhas-BA

2020
JUSTIFICATIVA

Esta proposta de investigação nasce da necessidade de entender a escrita


poética do jornalista carioca, radicado em Sergipe, Araripe Coutinho, dentro da
dissonância entre o socialmente aceitável e o excretado pelo olhar redutor de uma
sociedade por vezes vista pelo escritor como perversa e sem cultura. Burlando leis
econômicas e de gênero, Araripe Coutinho, que morreu aos 47 anos, produziu ao longo
de sua breve vida 11 livros, comercialmente de pouca vendagem. Tanto a obra quanto o
próprio Araripe Coutinho foram subestimados pela sociedade sergipana, o que o afastou
de ser reconhecido enquanto um escritor, tornando-o marginalizado. Do escárnio
popular foi que Araripe construiu sua teia homopoética, criando suas próprias formas de
(re) existir dentro de um pensamento moderno que opera como um dispositivo de poder,
já que suas escritas estão fora do cânone literário.
Na poesia de Araripe Coutinho é possível perceber o diálogo entre suas
escritas e a crítica decolonial, no que tange a desconfiança de certos saberes
implantados num determinado espaço de tempo histórico. De forma simples, Coutinho
mostrou que a poesia deve ser pensada, construída e consumida enquanto retrato do
momento atual, e não apenas como consequência das políticas macroestruturais do
discurso dominante. Para Stuart Hall, a questão da “identidade” está sendo
extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as
várias identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio,
fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto
como um sujeito unificado.1
Ao tentar projetar sua poesia, Coutinho acabou sufocando a si mesmo, e neste
ponto converge com a força do discurso de Walter Mignolo, no contexto da quebra do
socialmente preferível, que vem fundamentar a importância da resistência social a partir
do conteúdo produzido pelas ditas minorias sociais. Ao ir de encontro aos chamados
saberes dominantes, Mignolo reforça o combate ao discurso de superioridade, que
acabava por rebaixar quem não se encaixasse nas diretrizes sociais, econômicas e
culturais, apontado a necessidade urgente dos subalternos aprenderem a desaprender, o
que reforça assim o poder do discurso marginal, por ventura inferiorizado. Araripe

1
Segundo HALL, a identidade é composta por diversas outras identidades, sendo que em alguns casos
estas podem ser contraditórias. Essa fragmentação constrói o indivíduo pós-moderno, enquanto pessoa
sem identidade fixa.
Coutinho, apesar de sonhar com sua poesia sendo consumida pela massa sabia que seu
intelecto estava mais próximo da marginalidade.
De acordo com Miglievich Ribeiro, a colonialidade é a face da modernidade
que por muito tempo se manteve oculta 2, e nesse sentido Coutinho enfrentou e lutou
livro a livro no intuito de liberta-se das amarras da modernidade/colonialidade.
Em sua escrita fica inegável a dor de um devir 3 homem gay, nordestino, e sua
poesia transgressora, o que o fez carregar em si o estigma do ser não amado diante da
exposição vazia de se estar vivo em uma cultura sertaneja com todo o seu
conservadorismo. É dor diante da genialidade de se entender um escritor (quase
invisível).
Em “Pode um subalterno falar?” 4, Gayatri Chakravorty Spivak consegue
abraçar Araripe Coutinho em seu não lugar de fala, abrindo as janelas para o
entendimento de que mesmo o poeta tentando ser lido e reconhecido jamais será
escutado, uma vez que sua voz não será compreendida pelos detentores do poder (de
fala). Ao ser confinado à marginalidade, Araripe Coutinho estará pra sempre preso ao
que o pós-colonialismo dita.
Essa proposta de investigação dialogará com os escritos subalternos, como
forma de amparar a poesia de Araripe Coutinho e assim desvendar o quão libertador
para o escritor foi esse não pertencimento social, uma vez que a partir desta liberdade
poética, o escritor ousou tratar de temas ligados à cultura LGBTQIAP+ 5 sem demonstrar
tolhimento ou arrependimento, já que a relação homopoética foi algo constante.
Nesta performance em prol da liberdade sexual, a poesia araripiana encontrará
na Teoria Queer seu embasamento, ao misturar o masculino e o feminino, enveredando
pela desenvoltura sociocultural de não se classificar em nenhum gênero.
A Teoria Queer6 nasce do desconforto de não se entender pertencente a nada
estabelecido e assim, ao mesmo tempo, se liberta das amarras sociais da questão homem
e mulher. Butler, por exemplo, pontua que as sociedades regulam e constroem os papeis
sexuais das pessoas, na tentativa de colocar os sujeitos em caixinhas, para que se
encaixem e, consequentemente, encaixem sua sexualidade, porém, mesmo com tanto
2
MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. Por uma Razão Decolonial: desafios ético-político-epistemológicos à
cosmovisão moderna. Civitas. Porto Alegre. V. 14, n. 1, jan-abr de 2014, p. 68.
3
Devir quando usado por DELEUZE e GUATTARI refere-se a um ponto de partida do sujeito, de onde
não se sabe onde chegará.
4
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra Regina Goulart.
5
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Queer, Interssexual, Assexual, Pansexual.
6
A teoria Queer começou no final dos anos 80, nos E.U.A. O termo Queer pode ser traduzido por
estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Louro (2004, p. 38).
empenho em domesticar os corpos e seus sentimentos. “Os corpos não se conformam,
nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta” (BUTLER,
2000, p. 154).
Esta proposta de pesquisa será apresentada para o curso de mestrado do
Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural do Departamento de Linguística,
Literatura e Artes da – Campus II da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e precisa
existir para fazer justiça à poesia de Araripe Coutinho, e ao poeta em si, tendo assim
como base a Linha de Pesquisa 1 - Literatura, Produção Cultural e Modos de Vida.

Questão de Pesquisa e seus fundamentos


Este trabalho se ampara nas teorias da Crítica Pós-colonial, dos Estudos
Culturais e também com os Estudos Subalternos, sendo estas três linhas teóricas
costuradas pela Teoria Queer, enquanto base e foco da pesquisa da obra de Araripe
Coutinho. Ao transcorrer sobre estas quatro vertentes, buscando as semelhanças entre as
mesmas é que será possível clarear a produção de Coutinho, fazendo esta (produção)
pertencer ao mundo. De que forma a homopoética de Araripe Coutinho vem romper a
normatização dos corpos e o muro sergipano, derrubando as barreiras sexuais e se
tornando, a partir do queer, uma poesia livre de amarras e preconceitos? “A política
queer (...) adota a etiqueta da perversidade e faz uso da mesma para destacar a ‘norma’
daquilo que é ‘normal’, seja heterossexual ou homossexual. Queer não é tanto se rebelar
contra a condição marginal, mas desfrutá-la” (GAMSON, 2002, p. 151).
“Ninguém decifra o que está antes nem depois” (COUTINHO, 2013, p. 351).
Para entender o que foi a poesia de Araripe Coutinho se faz necessário mergulhar e em
quem foi esse homem, que escrevia diariamente tanto para jornais e sites sergipanos
quanto livros de poesia, sendo um poeta que produzia constantemente em Sergipe. A
“sociologia das ausências”7 de Boaventura de Souza Santos, embasa esse estudo
inicialmente categorizando-o enquanto linguagem de resistência social sobrepondo o
discurso dos que dominam os faróis sociais, ditos únicos e universal.
O discurso dominante não morreu quando a escravidão foi dada por encerrada,
apenas se tornou mais aceitável socialmente, se transformando em situações de ajuda e
apoio disfarçadas de pena. Neste tocante, Araripe Coutinho viveu entre a liberdade de
suas poesias e a “ajuda” de alguns amigos financiadores. Um exemplo real dessa relação

7
Termo usado por BOAVENTURA (2002) para explicar o conflito do presente pela sociologia das
ausências como se move no campo das experiências sociais.
entre Coutinho e a sociedade sergipana é possível assistir no Youtube, no filme “Doc.
Araripe Coutinho”, dirigido pelo jornalista, Pascoal Maynard, quando o ex-governador
de Sergipe, Albano Franco8 (que vem de família escravocrata), ao falar do poeta
declarou: “Todas as vezes que ele me procurava para algum problema, nós
solucionávamos porque eram problemas justos e sérios”. “Os grupos subalternos sofrem
sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e se insurgem: só
a vitória ‘permanente’ quebra, e não imediatamente, a subordinação” (GRAMSCI,
2007, p. 2283).
A poesia de Araripe Coutinho pode ser vista como uma quebra dos paradigmas
sociais, onde para existir dialogará com a Teoria Queer em sua liberdade de não se
classificar masculina nem feminina, sendo assim atemporal e não só sexual, e nunca,
jamais, normativa. Neste contexto, o poeta diversifica seus temas e performances
sociais, não se prendendo nem a sua sexualidade nem tampouco ao gênero, firmando
assim uma ponte com Teresa de Lauretis, que elaborou as “tecnologias de gênero” 9,
pontuando que o gênero não é uma propriedade natural dos corpos, sendo um conjunto
de efeitos decorrentes das política de Estado, do cinema, da literatura, das famílias e
instituições.
Ao transitar pelo não-binarismo, a poesia de Araripe Coutinho mostra que o
não normal pode e deve se projetar como literatura, anulando assim os “dispositivos" 10
de poder que constituem os sujeitos e as suas organizações.

Objetivos
Objetivo Geral:
Discutir a homopoética de Araripe Coutinho enquanto um escritor que resiste à
lógica moderna/colonial gerando escritas outras que dialogam com o pensamento
decolonial gerando outros processos de subjetivação nas práticas políticas/sexuais que
desobedecem aos ditames canonizados.
Objetivos Específicos:

8
ALBANO FRANCO tem 79 anos, sendo destes 36 anos de vida política (foi governador duas vezes,
senador, deputado federal e deputado estadual de Sergipe). Faz parte da elite política sergipana, foi dono
da TV Sergipe (filiada da TV Globo). A família Franco permanece sendo uma das mais influentes no
campo da política sergipana.
9
Termo usado por TERESA DE LAURETIS para indicar que o gênero é formado por várias instâncias tal
qual a sexualidade.
10
Para FOUCAULT, o dispositivo atua como um aparelho, uma ferramenta constituindo sujeitos e os
organizando.
• Articular a produção bibliográfica do autor com as teorias pós-colonialistas,
os Estudos Subalternos e os Estudos Culturais;
• Analisar a produção araripiana juntamente com a Teoria Queer para
desmonopolizar o pensamento fundante da epistemologia moderna.
• Facilitar o acesso à obra de Araripe Coutinho, enquanto poeta brasileiro
anulando assim as possíveis fronteiras epistemológicas que cercam o nordeste do
restante do Brasil.
• Identificar em sua obra a luta contra o estigma e a invisibilização existenciais
como parte de enfrentamento da racionalidade hegemônica.

Metodologia
Nessa proposta, trabalharemos com a pesquisa qualitativa que irá inicialmente
se debruçar na produção poética de Araripe Coutinho, buscando assim identificar a
diversidade de seu estilo de escrita e temas abordados. Se faz de fundamental
importância também pesquisar os parâmetros de sua vida enquanto personalidade
cultural sergipana para traçar paralelos com sua as obras.
A análise destes dados acontecerá a partir do aparato bibliográfico dos diversos
teóricos que embasam a Crítica Cultural. Desta forma, o conteúdo teórico deste trabalho
será baseado nas leituras, análises e fichamentos de autores como: Michel Foucault,
Antonio Gramsci, Homi Bhabha, Gayatri Spivak, Walter Mignolo, Stuart Hall,
Boaventura de Souza Santos, Félix Guattari, Jacques Derrida, Giogio Agamben, Judith
Butler, Donna Haraway, Gilles Deleuze, Guacira Lopes Louro, Teresa de Lauretis e
Monique Witting, Boaventura de Souza Santos, Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu, João
Silvério Trevisan, Adelia Maria Miglievich Ribeiro, Paul B. Preciado, entre outros
autores e autoras. Sendo assim confeccionada a dissertação a ser defendida.

Cronograma

Tarefa/Período 2021.1 2021.2 2022.1 2022.2


Cumprimento X X X
de crédito das
disciplinas
Leitura da X X X
bibliografia
Levantamento X X X
de dados
Análise das X X X
Fontes de
pesquisa
Escrita da X X
Dissertação

Resultados esperados
O decolonialismo busca no subalterno possibilidades de ampliação de vozes
silenciadas por muito tempo, encontrando na Teoria Queer um ponto fundamental para
a “liberdade” dos indivíduos. Ter base para fundamentar ideias e produções é de suma
importância para amplificar mudas vozes. Este trabalho é uma tentativa de se fazer
ouvir a voz do poeta Araripe Coutinho ultrapassando muros sociais, geográficos e de
ideias. Aqui busca-se um diálogo com a crítica cultural na intenção de mesclar mundos,
teorias e saberes como uma maneira de fazer um saber poético resistir ao tempo, sendo
ao mesmo tempo resistência social e valorização intelectual.
Esta pesquisa é necessária para servir de farol a quem passou a vida inteira nas
sombras, dando assim a Araripe Coutinho o seu reconhecimento enquanto escritor
brasileiro, poeta e jornalista. Ao amplificar seu discurso, sua poesia e seus aspectos
sociais será possível conversar com os milhares de autores brasileiros e suas escritas
desconhecidas.

Referências Bibliográficas
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo" In:
LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2.ed.
Tradução dos artigos: Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

COUTINHO, Araripe. Obra Poética Reunida. 3ª ed. Sergipe. J. Andrade, 2013.

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. “O que é uma literatura menor?”. In: Kafka: Por
uma literatura menor. Tradução Castanon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
DP&A, 2002.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto


Machado. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 8ª Edição, 2018.
GAMSON, Joshua. Deben autodestruirse los movimientos identitarios? Un extraño
dilema. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualidades transgresoras. Una antología de
estudios queer. Barcelona: Icária editorial, 2002.

GRAMSCI, Antonio. Cartas do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2007,


2v.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro:


Lamparina, 2015.

LAURETIS, Teresa De. A tecnologia do gênero. Tradução de Suzana Funck. In:


HOLLANDA, Heloisa (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da
cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.

LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria


queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MAYNARD, Pascoal - Doc. Araripe Coutinho. Youtube. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=0D0q2LNZg8w&feature=youtu.be>. Acesso em:
01 de nov. 2020. 23:54

MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. Por uma Razão Decolonial: desafios ético-político-


epistemológicos à cosmovisão moderna. Civitas. Porto Alegre. V. 14, n. 1, jan-abr de
2014.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia
das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 63, pp. 239-280, out. 2002.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra Regina
Goulart.

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