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BLUMENAU
2022
ADRIANA DIAS PASCO
BLUMENAU
2022
AGRADECIMENTOS
A tese foi realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de
Santa Catarina (FAPESC) em conjunto com a Universidade Regional de Blumenau (FURB),
por meio do Programa FAPESC de Recursos Humanos em CTI – Bolsas de Mestrado e
Doutorado.
RESUMO
Este trabalho foi realizado no âmbito do Núcleo de Políticas Públicas (NPP), na linha de
pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento no Território, do Programa de Pós-Graduação
em Desenvolvimento Regional (PPGDR) da Universidade Regional de Blumenau (FURB),
tendo sido também vinculado ao programa de extensão denominado Observatório do
Desenvolvimento Regional da mesma instituição. O campo de estudo do desenvolvimento
regional se origina em fins do século XIX, com a preocupação fundamental de compreender as
razões pelas quais algumas regiões se desenvolviam e outras não, em um contexto que associava
de forma restrita a compreensão do desenvolvimento ao crescimento econômico e ao progresso.
Somente mais adiante problemáticas como as questões sociais e ambientais passariam a ser
levadas em consideração, fazendo despontar uma série de qualificações para o termo, a exemplo
do desenvolvimento sustentável. Partindo desta constatação e da execução da política pública
estadual denominada Programa de Educação Superior para o Desenvolvimento Regional
(PROESDE) na FURB, a presente pesquisa objetivou avaliar a convergência entre o processo
de educação tutorial do PROESDE na FURB - no período de 2009 a 2019, e a estratégia de
desenvolvimento sustentável expressada pela Agenda Global de Desenvolvimento
(ODM/ODS), a partir do enfoque multidimensional possibilista nas Teorias do
Desenvolvimento Regional (TDRs). A orientação metodológica geral da pesquisa foi
predominantemente qualitativa, delineada com a técnica de pesquisa-ação. Para alcançar o
objetivo geral, foram determinados três objetivos específicos, cada qual constituindo um
capítulo da tese. O primeiro objetivo específico foi o de realizar a interrelação entre
desenvolvimento regional, abordagem multidimensional possibilista e o desenvolvimento
sustentável. O percurso metodológico do capítulo correspondente envolveu um estudo
exploratório sobre a abordagem multidimensional e a Teoria da Delimitação dos Sistemas
Sociais (TDSS) nas teorias de Alberto Guerreiro Ramos, notadamente em algumas das obras
de maior repercussão, a saber: A redução sociológica, Homem organização e homem
parentético, Modernização em nova perspectiva e, A nova ciência das organizações; e a revisão
sistemática de literatura sobre as TDRs com análise de conteúdo. O segundo objetivo específico
serviu à tarefa de contextualizar a experiência do PROESDE na FURB enquanto política
pública de abordagem multidimensional possibilista de formação para o desenvolvimento
regional. Do ponto de vista metodológico tratou-se de um capítulo descritivo-analítico para
compreensão da implementação do programa em sua trajetória processual, no qual a pesquisa-
ação foi a operação principal registrada em diários de campo. Adicionalmente foram coletados
dados por meio de entrevistas com atores sociais envolvidos no programa, e em fontes
documentais. Assim, a organização da análise do programa foi baseada em três eixos, a saber:
eixo político-administrativo, eixo cognitivo e eixo comunicacional e de práticas; além de um
subtópico que tratou da avaliação por parte dos discentes. O terceiro objetivo específico teve a
função de propor pressupostos para programas de educação para o desenvolvimento sustentável
no contexto do desenvolvimento regional, com foco na dimensão ético-política. O percurso
metodológico do capítulo envolveu levantamentos bibliográficos que identificaram os avanços
de aplicação da TDSS e discutiram o papel da universidade frente aos desafios do
desenvolvimento. Além destes levantamentos, foram documentadas sugestões para o melhor
enquadramento do programa na estratégia de desenvolvimento sustentável com abordagem
multidimensional possibilista. Foi possível concluir que há convergência entre a abordagem
multidimensional possibilista, as TDRs e o desenvolvimento sustentável. Embora tal
abordagem não seja encontrada de forma declarada no processo de educação tutorial do
PROESDE na FURB, a implementação da política pública realiza esforços no sentido de se
posicionar como um sistema cognitivo tanto de suporte como de exercício da abordagem
substantiva das organizações da sociedade. Finalmente, um conjunto de recomendações de
aprofundamento desta abordagem é sugerido para que o programa avance no planejamento da
estratégia para a composição de territórios formativos, dentre elas: declaração de incorporação
da dimensão ético-valorativa como orientadora do programa, aprofundamento da autonomia
universitária para a governança nas regiões, aumento da duração do programa, criação de
estratégias de captação de recursos e realização de planejamento de ações em horizonte
temporal de médio e longo prazos.
Este trabajo fue realizado en el Núcleo de Políticas Públicas (NPP), en la línea de investigación
sobre el Estado, Sociedad y Desarrollo del territorio, en el Programa de Post-Graduación en
Desarrollo Regional (PPGDR) de la Universidad Regional de Blumenau (FURB), habiendo
sido también vinculado al programa de extensión denominado Observatorio de Desarrollo
Regional de la misma institución. El campo de estudio del desarrollo regional tuvo sus orígenes
a finales del siglo XIX, con la preocupación fundamental de comprender las razones por las
cuales algunas regiones se desarrollaban y otras no, en un contexto que asociaba literalmente el
término desarrollo a los términos crecimiento económico y progreso. Sólo tiempo después, las
problemáticas sociales y ambientales serian llevadas en consideración, apareciendo una serie
de nuevos significados para el término, como por ejemplo el desarrollo sostenible. Partiendo de
esta constatación y de la ejecución de la política pública estatal “Programa de Educación
Superior para el Desarrollo Regional” (PROESDE), la presente investigación tuvo como
objetivo evaluar la convergencia entre el proceso de educación tutorial del PROESDE en la
FURB (período 2009 a 2019) y la estrategia de desarrollo sostenible expresada por la Agenda
Global de Desarrollo (ODM/ODS), a partir del enfoque multidimensional posibilista que se
encuentra en las Teorías del Desarrollo Regional (TDRs). La orientación metodológica general
de la investigación fue predominantemente cualitativa, delineada con la técnica de
investigación-acción. Para alcanzar el objetivo general fueron realizados tres objetivos
específicos, cada uno constituyendo un capitulo de esta tesis. El primero fue el de
interrelacionar el desarrollo regional, el abordaje multidimensional posibilista y el desarrollo
sostenible. El recorrido metodológico de este capítulo envolvió un estudio exploratorio sobre
el abordaje multidimensional y la Teoría de la Delimitación de los Sistemas Sociales (TDSS)
encontrados en las teorías de Alberto Guerreiro Ramos, principalmente en sus obras de mayor
repercusión: “La reducción sociológica”, “Hombre organización y hombre parentético”,
“Modernización en nueva perspectiva” y “La nueva ciencia de las organizaciones”. También
fue realizado una revisión sistemática y el análisis de contenido de la literatura existente sobre
las TDRs. El segundo objetivo específico permitió contextualizar la experiencia del PROESDE
en la FURB como una política pública de abordaje multidimensional posibilista de formación
para el desarrollo regional. Desde el punto de vista metodológico se trató de un capítulo
descriptivo/analítico necesario para conocer la trayectoria del proceso de la implementación del
programa. En este capítulo el método de investigación-acción fue la operación principal, siendo
registrada en diarios de campo. Adicionalmente fueron colectados datos a partir de fuentes
documentales y por medio de entrevistas a actores sociales relacionados con el programa. Así,
la organización del análisis del programa fue basado en tres ejes: eje político-administrativo,
eje cognitivo y eje comunicacional y de prácticas. También el análisis incluyó un sub-tópico
con la evaluación de los discentes. El tercer objetivo específico tuvo como función proponer
directrices para programa de educación para el desarrollo sostenible en el contexto del
desarrollo regional, y esto desde un punto de vista ético-político. En esta parte, el recorrido
metodológico incluyó revisiones bibliográficas sobre los avances de la aplicación de la TDSS
y sobre el papel de la universidad frente a los desafíos del desarrollo. Aparte de estas revisiones
fueron documentados sugerencias para el mejor encuadramiento del programa en la estrategia
del desarrollo sostenible con el abordaje multidimensional posibilista. Como conclusión fue
posible identificar que existe una convergencia entre el abordaje multidimensional posibilista,
las TDRs y el desarrollo sostenible. A pesar de tal abordaje no ser declarado en el proceso de
educación tutorial del PROESDE en la FURB, la implementación de la política pública realiza
esfuerzos en el sentido de posicionarse como un sistema de aprendizaje tanto como soporte
como de ejercicio del abordaje substantivo de las organizaciones de la sociedad. Finalmente,
son sugeridos un conjunto de recomendaciones para profundizar este abordaje, con la finalidad
de que el programa avance en la planificación de la estrategia de composición de territorios
formativos. Entre estas tenemos: generar la declaración de incorporación de la dimensión ético-
valorativa como guía del programa; robustecer la autonomía universitaria para gobernanza de
las regiones, aumento de la duración del programa; generación de estrategias de captación de
recursos y planificación de acciones en un horizonte temporal a medio y largo plazo.
Tabela 1 - Quantidade de documentos encontrados nas bases de dados por termo de busca .. 31
Tabela 2 - Quantidade de documentos publicados sobre PROESDE nas bases de dados ....... 37
Tabela 3 - % de alunos por Grande Área da CAPES ............................................................. 172
LISTA DE QUADROS
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 17
1.1 CRÍTICA AO ATUAL MODELO DE DESENVOLVIMENTO E
EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA .................................................. 17
1.1.1 Agenda Global de Desenvolvimento ................................................................... 22
1.1.2 Educação e desenvolvimento sustentável ........................................................... 25
1.2 PROGRAMA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA O DESENVOLVIMENTO
REGIONAL – PROESDE / DESENVOLVIMENTO FURB ............................... 27
1.3 OBJETIVOS........................................................................................................... 29
1.4 JUSTIFICATIVA ................................................................................................... 30
1.5 PERCURSO METODOLÓGICO GERAL ............................................................ 38
2 O ENFOQUE MULTIDIMENSIONAL NA TEORIA DO
DESENVOLVIMENTO REGIONAL................................................................ 45
2.1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 45
2.1.1 Percurso Metodológico ........................................................................................ 46
2.2 A CONSTRUÇÃO DA TEORIA DA DELIMITAÇÃO DOS SISTEMAS
SOCIAIS (TDSS): PRENÚNCIO DE UMA ABORDAGEM
MULTIDIMENSIONAL DO DESENVOLVIMENTO A CAMINHO DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL? ......................................................... 47
2.2.1 Antecedentes da Redução Sociológica ................................................................ 48
2.2.2 Sobre A Redução Sociológica .............................................................................. 51
2.2.3 Sobre a Atitude Parentética ................................................................................ 58
2.2.4 Sobre a Sociedade Multicêntrica e o Paradigma Paraeconômico.................... 64
2.2.5 O modelo de Possibilidades ................................................................................. 77
2.2.6 Desenvolvimento em Guerreiro Ramos – prenúncios da estratégia de
desenvolvimento sustentável?.............................................................................. 82
2.2.7 Desenvolvimento Sustentável como estratégia: ODM e ODS .......................... 85
2.3 A TEORIA DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL (TDR) – VISÃO
EXPLORATÓRIA ................................................................................................. 88
2.4 HÁ ENFOQUE MULTIDIMENSIONAL NA TDR? ........................................... 96
2.4.1 A abordagem multidimensional e categorias de análise complementares ...... 99
2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 112
3 PROESDE / DESENVOLVIMENTO FURB E ODM/ODS:
POSSIBILIDADES ENTRE A POLICY E A POLITICS. ............................ 124
3.1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 124
3.1.1 Percurso Metodológico ...................................................................................... 124
3.2 POLÍTICAS PÚBLICAS ..................................................................................... 126
3.3 ANTECEDENTES DO PROESDE ..................................................................... 130
3.4 CARACTERIZAÇÃO DO PROESDE COMO POLÍTICA PÚBLICA
ESTADUAL ......................................................................................................... 132
3.5 PROESDE / DESENVOLVIMENTO FURB ...................................................... 141
3.5.1 Eixo político-administrativo .............................................................................. 141
3.5.2 Eixo cognitivo...................................................................................................... 153
3.5.3 Eixo comunicacional e de práticas .................................................................... 177
3.5.4 A Avaliação do PROESDE / Desenvolvimento FURB por parte dos
estudantes de graduação .................................................................................... 186
3.6 RESULTADOS POR CATEGORIAS DE ANÁLISE ........................................ 187
3.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 190
4 PROPOSTA DE EDUCAÇÃO IMBRICADA NA ABORDAGEM
MULTIDIMENSIONAL POSSIBILISTA DO DESENVOLVIMENTO ..... 198
4.1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 198
4.1.1 Percurso metodológico ....................................................................................... 199
4.2 BASES DA CIÊNCIA DAS ORGANIZAÇÕES TRADICIONAL E
HEGEMÔNICA – OU AO QUE A ABORDAGEM MULTIDIMENSIONAL
POSSIBILISTA SE CONTRAPÕE ..................................................................... 199
4.3 BASES E ESTRATÉGIAS DA TDSS – UM COMPILADO SINTÉTICO ........ 202
4.4 AVANÇOS E ATUALIZAÇÕES DA TDSS ...................................................... 205
4.5 PAPEL DA UNIVERSIDADE NA TEORIA DA DELIMITAÇÃO DOS
SISTEMAS SOCIAIS .......................................................................................... 214
4.5.1 Autonomia e funções da universidade .............................................................. 214
4.5.2 Universidade como espaço de construção de possibilidades objetivas .......... 221
4.6 O PAPEL DO PROESDE / FURB NA CONSTRUÇÃO DE POSSIBILIDADES
OBJETIVAS......................................................................................................... 223
4.6.1 A autonomia do PROESDE / Desenvolvimento FURB................................... 224
4.6.2 O ambiente pedagógico do PROESDE / Desenvolvimento FURB................. 227
4.6.3 Governança para a construção de possibilidades objetivas ........................... 230
4.6.4 Captação e alocação de recursos ....................................................................... 236
4.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 237
REFERÊNCIAS................................................................................................. 240
5 CONCLUSÃO .................................................................................................... 243
17
1 INTRODUÇÃO
Mas foi a partir do Relatório de Brundtland (CDMA, 1987), na década de 1980, que o
termo desenvolvimento passou a ser difundido de modo adjetivado, denominado
“desenvolvimento sustentável” ou em alguns círculos acadêmicos “ecodesenvolvimento”.
Agregou-se, então, novas premissas e elementos de análise para expressar um estilo de
desenvolvimento mais justo e ecologicamente prudente.
Ao se adjetivar o desenvolvimento, percebe-se, por um lado, que a questão ambiental
ganhou fôlego e rendeu discussões ao longo dos últimos 40 anos. Contudo, por outro lado, há
que se aprofundar neste contexto o entendimento de que os próprios danos ambientais
intrínsecos ao modelo de desenvolvimento hegemônico são consequência de um modo de vida
18
Escrito a partir de uma comissão instituída no seio da ONU para tratar questões de meio
ambiente e desenvolvimento, o relatório teve grande impacto mundial e sua proposta de solução
passaria a contabilizar os recursos naturais como custos dos processos de crescimento, já que,
em nível mundial, a ideia de adotar o crescimento zero era algo inconcebível, dada a
compreensão de que o desenvolvimento não poderia estar desatrelado do crescimento
econômico.
Os anos seguintes foram de forte produção acadêmico-científica sobre a relação entre
economia e ecologia. A discussão permeava também outros ambientes institucionais e a esfera
empresarial mundial, e desembocou na Eco Rio 92. A Eco Rio 92 foi um encontro
governamental sobre desenvolvimento sustentável, realizado na cidade do Rio de Janeiro, que
reuniu o maior número de representantes governamentais de nações vinculadas à ONU, no ano
de 1992. Foi, ainda, o espaço em que organizações e instituições apresentaram seus pontos de
vista sobre a relação entre meio ambiente e desenvolvimento ao passo que uma série de
documentos, tais como a Agenda 21, resultaram deste processo, no sentido de unir crescimento
econômico com conservação ambiental. O encontro não resultou em receitas, contudo a
sinalização era de que a eficiência tecnológica, a precificação de recursos naturais e a livre
concorrência de mercados poderia assegurar o desenvolvimento sustentável.
Com o passar dos anos seguintes e unindo a questão das mudanças climáticas à
discussão do meio ambiente e desenvolvimento, a posição conservadora de alguns países,
sobretudo os Estados Unidos, começou a ficar mais evidente quando chamados à prática, ao
que se pode exemplificar com a ausência do país no rol de signatários do Protocolo de Kyoto.
Para Gudynas (2004), o modismo relacionado ao termo desenvolvimento sustentável o
faz quase onipresente nos discursos. Além disso, há inúmeras iniciativas de desenvolvimento
sustentável que englobam as mais variadas ações pelo mundo todo, o que faz com que o autor
conclua que se trata de um conceito plural que, ainda assim, teve poucos alcances em termos
de melhora de indicadores ambientais. Desta forma, para o autor as pautas podem ser resumidas
em três níveis, da seguinte forma - a sustentabilidade débil, forte e super forte:
A chamada sustentabilidade débil prioriza a dimensão econômica do
desenvolvimento e não confronta a ideologia de progresso. Porém, aceita a
dimensão ambiental, capitaliza a natureza e enxerga uma possível articulação
entre progresso e gestão ambiental. As decisões são, em geral, tomadas em nível
técnico (enfoque técnico).
A sustentabilidade forte, de nível intermediário, avança na crítica da ideologia
progressista e permanece com a capitalização da natureza, mas insere na questão
20
Neste sentido, as análises de Costa (2004) são pertinentes para corroborar a evidência
do papel do território e das regiões na elaboração de possibilidades para o desenvolvimento
sustentável. Para o autor, há necessidade de uma perspectiva integradora do território, que não
isole as dimensões econômica, política, cultural e natural umas das outras. Isto porque o
território é o espaço efetivamente partilhado pelas vidas individuais e coletivas, envolvendo
todas as dimensões humanas e naturais em uma dinâmica temporal que resulta em diferentes
elementos chave para a compreensão das relações ao longo do tempo.
Os princípios do ecodesenvolvimento antes elencados guardam significativa
proximidade com a concepção de “possibilidades objetivas” de Guerreiro Ramos (2009), termo
entendido no sentido da elaboração de conjecturas a partir de um conhecimento concreto da
realidade social. Está-se abordando no conceito as possibilidades reais passíveis de serem
demonstradas de forma empírica e onde a importância (positiva ou negativa) das variáveis a
serem consideradas para o desenvolvimento muda conforme o contexto do sistema social onde
se pretende elaborar tais conjecturas. Em outras palavras, o autor propõe que cada sistema social
local é capaz de criar soluções próprias e adequadas ao seu próprio processo de
desenvolvimento, não sendo plausível incorporar modelos de contextos históricos
diferenciados. Vale lembrar que as contribuições de Guerreiro Ramos não foram tratadas à
época, sob a denominação de ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável.
Aqui também é válido lembrar que o ecodesenvolvimento vem oferecendo alternativas
de enfrentamento à problemática socioambiental, assentadas em uma abordagem complexo-
sistêmica (VIEIRA, 2003). Neste sentido, o entendimento é que “[...] toda alteração em um
setor se propaga de diversas maneiras através do conjunto de relações que definem a estrutura
do sistema.” (GARCÍA, 1994, p. 86). Logo, considerando a complexidade dos elementos
envolvidos na problemática socioambiental, Leff (1994) e García (1994) sugerem a
interdisciplinaridade como método de estudo e prática para o ecodesenvolvimento. Tal método
consiste na busca por pontos de conexão entre áreas do saber e da prática, evocando uma
caminhada rumo à transdisciplinaridade.
cada comunidade. Assim corroboram Mantovaneli e Sampaio (2007, p. 17) quando fazem a
defesa da implementação da participação democrática por meio do planejamento nos processos
decisórios voltados para o ecodesenvolvimento. Para os últimos autores, os processos de
planejamento que visam a sustentabilidade devem “privilegiar não apenas as demandas dos
membros participantes (intra-organizacional) do processo de planejamento ou de gestão, mas,
também, as pessoas que serão afetadas por tais ações e que nem sempre estão participando das
tomadas de decisão (extra-organizacional)”.
A ecopedagogia é outro termo coerente com a educação para o ecodesenvolvimento.
Gutierrez e Prado (2002) afirmam que a ecopedagogia se dá no espaço da vida cotidiana do
cidadão planetário, voltado ao coletivo, num processo em que o educador mediaria a abertura
de caminhos a serem traçados pelo próprio “educando”, por meio da elaboração própria de
sentidos durante o trajeto a ser percorrido, ao mesmo tempo em que ele dialoga e compartilha
com o seu entorno. Neste contexto, a caminhada que o “educando” traça seria o próprio
processo produtivo, em que ele seria capaz de construir o seu próprio caderno de aprendizagem,
expressando-se criativamente com conteúdos que sejam aplicáveis ao seu cotidiano, e trazendo
resultados tangíveis ao seu entorno. Os autores elaboram alguns indicadores de avaliação do
processo ecopedagógico, que valem a pena ser ressaltados: a promoção de microorganizações
produtivas e autônomas, não necessariamente formais, para promover o equilíbrio no sistema
de propriedades; menor importância do poder institucional, que em geral é centralizador de
poder e maior foco no poder sapiencial – o conhecimento que circula de forma democrática nos
grupos; a emergência da lógica do sentir em lugar de uma racionalidade puramente
instrumental; a contraposição da democracia representativa dos poderes centrais (governo, etc),
contendo formas de colaboração, cooperação e auto-organização social; as relações de gênero
mais equilibradas; a tendência a formação de grupos sinérgicos ao invés de contratos e
legislações de cunho puramente econômicos.
As Zonas de Educação para o Ecodesenvolvimento (ZEEs) são exemplos de
experiências que já geraram produção científica, tendo sido analisadas por exemplo em
dissertações e teses do PPGDR e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da
UFSC. De acordo com Sampaio et al. (2010) as ZEEs privilegiam ações de caráter
interdisciplinar, em esforços práticos que percorrem desde o diálogo entre diversas disciplinas
pertinentes às demandas levantadas pelos territórios em questão, até a hibridização da sabedoria
popular com conhecimentos científicos, para que o resultado seja a geração de conhecimentos
úteis e pactuados no território onde a ZEE se instala e, na mesma medida, para que se possibilite
27
a criação de uma nova ciência repleta de sentido ético, nos termos do que propõe Raynaut
(2011).
Neste sentido, atribui-se a primeira pergunta de pesquisa do presente estudo, qual seja:
qual contribuição é oferecida pelo enfoque multidimensional possibilista da estratégia de
desenvolvimento sustentável para as Teorias do Desenvolvimento Regional (TDRs)? A
hipótese é que o enfoque multidimensional possibilista integra a TDRs pois relaciona
desenvolvimento e território para além da dimensão econômica e se relaciona diretamente com
os pressupostos do desenvolvimento sustentável.
O PROESDE é uma política pública estadual de Santa Catarina, cujas origens devem
ser observadas a partir de demandas apontadas pela população e classe política do oeste do
estado. A primeira edição do programa ocorreu em 2004, no contexto político em que se
iniciava o processo de descentralização proposto pelo então governador Luiz Henrique da
Silveira, onde as Secretarias de Desenvolvimento Regional (SDRs) foram criadas. O programa
visava complementar a ação administrativa de descentralização, promovendo a formação de
mão de obra – agentes de desenvolvimento regional - para os escritórios regionais, em parceria
com a Associação Catarinense de Fundações Educacionais – ACAFE1. Ao período inaugural
seguiu-se duas outras fases de expansão, sendo que a Universidade Regional de Blumenau –
FURB, que também integra a ACAFE, passou a ser incluída no programa a partir da 3ª fase, ou
seja, a partir de 2009. Até 2015, o volume de recursos empregados no programa foi de R$
51.055.626,50 (FRANÇA, 2018).
Aqui, deve-se realizar uma breve contextualização da FURB. A história da FURB nasce
em 1953, quando da mobilização da opinião pública em função da interiorização do ensino
superior no estado de Santa Catarina. Assim a Faculdade de Ciências Econômicas é criada no
ano de 1964 em Blumenau, sendo a primeira iniciativa de ensino superior do interior do Estado.
Novos cursos vão sendo criados no decorrer dos anos seguintes, bem como investimentos em
prédios de sede própria vão sendo conduzidos. Em 1986 a Instituição é reconhecida pelo
1
A ACAFE é uma entidade criada em 1974, que tem por objetivo desenvolver o ensino superior em Santa
Catarina, congregando as Fundações Educacionais de Ensino Superior criadas pelos município do estado, que
atualmente totalizam 15 fundações, dentre elas a FURB. A entidade atua com o objetivo de” promover o
intercâmbio administrativo, técnico e científico entre as Instituições de Educação Superior, na busca de soluções
para problemas comuns nas áreas de ensino, pesquisa, extensão e administração” (ACAFE, 2022).
28
1.3 OBJETIVOS
1.4 JUSTIFICATIVA
acesso se deu por meio do Portal de Periódicos CAPES, logado via Comunidade Acadêmica
Federada – CAFE, o que permite o acesso remoto a todo o conteúdo assinado pelo Portal e não
apenas documentos de acesso aberto. Os campos onde a busca foi realizada foram título e
resumo, e o período temporal selecionado foram os últimos dez anos (2008 – 2018). Os
resultados obtidos podem ser observados na Tabela 1, salientando que não foram excluídas as
repetições que certamente ocorreram nas diferentes bases de dados ou mesmo dentro das
próprias bases.
Tabela 1 - Quantidade de documentos encontrados nas bases de dados por termo de busca
Termos/Bases EBSCO SCIELO SCOPUS
"Desenvolvimento sustentável" + "educação" 1591 134 4064
"Objetivos do desenvolvimento sustentável" + "educação" 174 7 407
"Objetivos de desenvolvimento do milênio" + "educação" 10 7 15
"Educação para o desenvolvimento sustentável" 514 27 1053
Fonte: A autora (2022)
84
39 36
30 27 27 20 19 16
3
2 2 2 2 2
1 1 1 1
Figura 5 - Ranking de publicações por países (dez principais) em “Educação para o desenvolvimento
sustentável”
153
102
84 82
59 50 48 42 41 35
110
84
39 36 30 27 27 20 19 16
2 2 2 2 2
1 1 1 1
Figura 9 - Ranking dos cinco principais financiadores das publicações em “Educação para o
desenvolvimento sustentável”
153
102
84 82
59 50 48 42 41 35
ter admitido formato de livro ou artigo avaliado por pares. Em função das restrições impostas
pelos motores de busca, a procura no Google Acadêmico foi realizada em qualquer parte do
documento (exceto citações) e no caso da BDTD, a procura foi realizada no título e assunto.
Em todos os casos não houve restrição de período temporal, já que o PROESDE é relativamente
novo.
Passados quase dez anos de experiência em nível estadual, a Tabela 2 registra pouca
produção acadêmico-científica encontrada, o que pode ser comprovado no resumo de buscas
realizadas nas bases de dados indicadas na tabela a seguir. Para a constituição tabela, foram
realizadas buscas nas bases de dados EBSCO, Scielo, Scopus, com acesso via Portal de
Periódicos da CAPES, além do uso de plataformas abertas como Google Acadêmico e
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – BDTD. Os termos de busca inseridos
foram PROESDE e “Programa de Educação Superior para o Desenvolvimento Regional” a
serem procurados em títulos, resumos e palavras-chave no caso das bases de dados vinculadas
ao Portal de Periódicos CAPES. Em função das restrições impostas pelos motores de busca, a
procura no Google Acadêmico foi realizada em qualquer parte do documento e no caso da
BDTD, a procura foi realizada no título e assunto. Em todos os casos não houve restrição de
período temporal, já que o PROESDE é relativamente novo.
Desta forma, a bibliometria permitiu visualizar que a temática proposta pelo projeto ora
apresentado está em crescimento de publicações, constituindo contudo, uma lacuna a ser
preenchida pela análise de experiências relacionadas à agenda global de desenvolvimento
sustentável, especificamente nos estudos direcionados aos ODM e ODS em relação aos
processos de educação, sobretudo no contexto sócio-histórico da América Latina.
Foi ainda possível observar por meio da bibliometria que o PROESDE, embora seja
uma política pública de significativos investimentos por parte do Governo do Estado de Santa
Catarina ao longo dos últimos nove anos, carece de estudos que evidenciem sua efetividade no
que tange ao desenvolvimento regional. Restou um espaço de análise aprofundada dos alcances
38
do PROESDE e das técnicas pedagógicas e de intervenção social realizadas que possam gerar
a divulgação científica dos alcances e limitações da experiência.
Outra relevância deste estudo proposto reside nas condições institucionais e
interinstitucionais em que ele foi realizado. Como já exposto, trata-se de um programa
vinculado ao PPGDR desde 2009 e com significativa aderência dos grupos de pesquisa, com
destaque para a coordenação do programa por parte do Núcleo de Políticas Públicas (NPP) e
do Núcleo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional (NPDR). Tal aderência dos grupos de
pesquisa pode ser traduzida em um espaço fértil de discussão e acesso as diversas informações
necessárias e ao próprio cotidiano do programa, ao mesmo tempo em que analisar a
contribuição do PROESDE para o desenvolvimento regional foi, também, analisar parcialmente
a inserção do PPGDR em seu lócus de atuação. Além disso, o estudo ora apresentado está
vinculado ao projeto de produtividade em pesquisa do CNPQ, do orientador Prof. Oklinger
Mantovaneli Junior (nível PQ-02), que congrega bolsistas de iniciação científica, mestrandos e
a doutoranda autora do projeto de tese.
Destaca-se, finalmente, a contribuição do projeto com a vinculação da FURB à Rede
ODS Universidade Brasil em convênio assinado no mês de outubro de 2018 e ao Movimento
Nós Podemos Blumenau, cujo convênio encontra-se em análise na procuradoria jurídica da
universidade.
uma lacuna entre teoria e prática no âmbito científico. Portanto, trata-se de um método engajado
de pesquisa.
Thiollent (1986, p. 14) define a pesquisa-ação como sendo “[…] de base empírica que
é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um
problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou
do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo”. A aplicação, segundo o
autor se dá
[...]em um contexto favorável quando os pesquisadores não querem
limitar suas investigações aos aspectos acadêmicos e burocráticos da
maioria das pesquisas convencionais. Querem pesquisas nas quais as
pessoas implicadas tenham algo a “dizer” e a “fazer”. Não se trata de
simples levantamento de dados ou de relatórios a serem arquivados.
Com a pesquisa-ação os pesquisadores pretendem desempenhar um
papel ativo na própria realidade dos fatos observados (p. 16).
Ao longo dos anos ela foi sendo disseminada e aplicada a uma variedade de
intencionalidades, mas Franco (2005) observa que ela está intrinsecamente referida à uma
racionalidade menos instrumental e a um tipo específico de epistemologia distanciado do
positivismo. Para a autora estes seriam os princípios que fundamentam a epistemologia da
pesquisa-ação como método:
deve-se, na escolha metodológica, rejeitar noções positivistas de
racionalidade, de objetividade e de verdade;
a práxis social é ponto de partida e de chegada na
construção/ressignificação do conhecimento;
o processo de conhecimento se constrói nas múltiplas articulações com a
intersubjetividade em dinâmica construção;
a pesquisa-ação deve ser realizada no ambiente natural da realidade a ser
pesquisada;
a flexibilidade de procedimentos é fundamental e a metodologia deve
permitir ajustes e caminhar de acordo com as sínteses provisórias que vão
se estabelecendo no grupo;
o método deve contemplar o exercício contínuo de espirais cíclicas:
planejamento; ação; reflexão; pesquisa; ressignificação; replanejamento,
ações cada vez mais ajustadas às necessidades coletivas, reflexões, e assim
por diante... (FRANCO, 2005, p. 491).
Tal opção de pesquisa acarreta que as categorias de análise não são definidas a priori,
como nas pesquisas tradicionalmente positivistas. Diferentemente, como se trata de um
processo reflexivo e dialético entre prática e teoria, o ajustamento da segunda (teoria) é co-
dependente da evolução da primeira (prática) – o que repercutiu também em um processo menos
linear de escrita da tese.
40
Quanto à finalidade, será uma pesquisa exploratória, por tratar de aprofundar uma
temática pré-existente, qual seja a relação entre políticas públicas de educação e o
desenvolvimento sustentável, buscando realizar uma análise precisa sobre este fenômeno e as
relações entre os elementos que o compõem. Para Raupp e Beuren (2003, p. 81) “explorar um
assunto significa reunir mais conhecimento e incorporar características inéditas, bem como
buscar novas dimensões até então não conhecidas.”
Quanto aos procedimentos, a pesquisa é um estudo de caso aprofundado e orientado
pela prática da pesquisa-ação, visto que o PROESDE reúne especificidades suficientes que
justificam o procedimento. Segundo Raupp e Beuren (2003) o estudo de caso é preferido por
pesquisadores que desejam focar de maneira intensiva em um objeto de estudo, porém guarda
em si a limitação da impossibilidade de generalizar os resultados.
A tese é apresentada em formato de compêndio, com estrutura de introdução e conclusão
e mais três capítulos autônomos, mas conectados, que subsidiarão as conclusões. O objetivo de
assumir tal formato é de facilitar o processo de publicação dos resultados e evolução da
pesquisa. Cada capítulo, por sua vez, detalha os próprios procedimentos metodológicos de
coleta e análise de dados, mas é possível visualizar um resumo da abordagem de cada capítulo
no Quadro 1, em função de cada um dos objetivos específicos.
41
REFERÊNCIAS
BRASIL. ODM Brasil. Guia de apoio para o alcance das metas – Agenda de
compromissos dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio. Disponível em
http://www.odmbrasil.gov.br/. Acesso em: 15 nov. 2018.
CDMA. Brundtland, G.H. et al. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio
Vargas. Relatório 1987 da Comissão Mundial Meio Ambiente e Desenvolvimento da
ONU, 1987.
FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa 3ª ed, São Paulo: Artmed, 2009.
GUDYNAS, Eduardo. Uma mirada histórica al desarollo sostenible. In: GUDYNAS, Eduardo
Ecologia, economia y ética del desarollo sostenible. 5ª edición revisada. Coscoroba
ediciones: 2004.
43
SAMPAIO, Carlos Alberto Cioce; ARAUJO, Jurema R.; DIAS, Adriana; ZUNIGA, Christian
Eduardo Henriquez; SOUZA; Cristiane Mansur de Moraes. Educación para el ecodesarrollo:
micro-cuenca del Río Sagrado. In: Anais Congresso Chileno de Antropologia, 2010.
SORRENTINO, Marcos. De Tbilisi a Thessaloniki, a educação ambiental no Brasil. In:
CASCINO, Fábio et al. (org.). Educação Ambiental, meio ambiente e cidadania. Reflexões
e experiências. São Paulo: SMA/CEAM, 1998, p. 27-34.
2.1 INTRODUÇÃO
Trata-se de um capítulo de cunho teórico e exploratório, que serve de apoio aos demais
capítulos da tese. Desta forma, inicialmente foi realizado um estudo exploratório sobre a
abordagem multidimensional nas teorias do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, notadamente
em algumas das obras de maior repercussão no Brasil, a saber: A Redução Sociológica
(RAMOS, 1996), Homem Organização e Homem Parentético (RAMOS, 1963), A Nova
Ciência das Organizações (RAMOS, 1989) e Modernização em Nova Perspectiva: em busca
do modelo de possibilidades (RAMOS, 2009), de onde foi possível a extração de algumas das
categorias de análise utilizadas posteriormente.
O caminho que aqui se traçou foi o de compreender, de maneira não dissociada, a vida
e a obra de Alberto Guerreiro Ramos, bem como e ainda que de forma incipiente, o contexto
histórico-social dos espaços que influenciaram sua trajetória. Essa escolha relaciona-se a uma
abordagem em torno da práxis como conceito que perpassa a obra do autor, entendida como “a
estreita relação que se estabelece entre um modo de interpretar a realidade e a vida e a
consequente prática que decorre desta compreensão levando a uma ação transformadora”
(ROSSATO, 2008, p. 325). Ou, em outras palavras, a práxis seria o uso da teoria para
transformar o mundo e não apenas explicá-lo.
Em seguida, realizou-se outro esforço exploratório sobre as teorias do desenvolvimento
regional (TDRs), com base em obras que compuseram as disciplinas de doutoramento no
PPGDR. A última etapa deste capítulo teve o formato de Revisão Sistemática de Literatura.
Nesse momento, após algumas tentativas exploratórias, definiu-se a busca por artigos revisados
por pares nas bases de dados Web of Science, Scopus e Academic Search Premier - ASP
47
(EBSCO). Todas as pesquisas ocorreram a partir do Portal CAPES, com a ferramenta de busca
conectada à Comunidade Acadêmica Federada (CAFE), que assegura o acesso a documentos
científicos mundiais, tanto de acesso aberto como restrito. A expressão de busca foi “teoria do
desenvolvimento regional”, considerada também no plural e nas versões dos idiomas inglês e
espanhol. O período de publicação dos documentos foi estipulado entre 2009 e 2019. Os campos
de busca foram: título, resumo e palavras-chave. A pesquisa retornou 26 documentos após a
eliminação de repetições, sendo que um destes não foi possível acessar.
Com base nas categorias dispostas em função da abordagem multidimensional, fez-se
uso da metodologia de análise de conteúdo de Franco (2008) que, por sua vez, é adaptada de
Bardin (2010), quando foram selecionados dois distintos modos de análise, a saber: 1) a unidade
de registro do tipo tema, onde procurou-se os registros de cada uma das categorias de análise,
e 2) a unidade de contexto, onde significado e sentido são considerados para a extração dos
dados.
A compreensão integral da TDSS não pode ocorrer, senão, pela consideração de alguns
dos trabalhos anteriores de Guerreiro Ramos. Isso porque a TDSS foi a sua última grande obra
que amalgamou contribuições anteriores, gerando um modelo não perfeito de sociedade e de
desenvolvimento, denominado paradigma paraeconômico, baseado em um modelo de
sociedade multicêntrica. Tal modelo limitou-se a um esboço metodológico em fase inicial
(RAMOS, 1989), uma vez que sua continuidade foi impossibilitada por conta de falecimento
precoce de Guerreiro Ramos, em 1983. Contudo, pode-se observar nos últimos anos um esforço
para validar o paradigma paraeconômico no campo empírico, e com isso avançar o esboço
inicial.
Desta feita, propõe-se aqui a abordagem do que se considera os conceitos fundamentais
de embasamento do presente trabalho seguindo alguma cronologia, que cruza temporal e
espacialmente vertentes indissociáveis do que se pretende explicitar. Os conceitos-chave que
originam a apresentação da teoria de Guerreiro Ramos, por sua vez, podem ser assim elencados:
1) a Redução Sociológica como um método, uma atitude e uma nova ciência; 2) o modelo de
Homem Parentético; 3) as Possibilidades Objetivas e; 4) a Teoria da Delimitação dos Sistemas
Sociais, em conjunto com o paradigma paraeconômico. Tais conceitos também expressam
48
similarmente títulos de trabalhos publicados pelo sociólogo. Ainda, ao longo de toda a sua obra,
é exposta uma preocupação com as origens da racionalidade instrumental e as consequências
da hegemonia desta racionalidade em detrimento daquela que ele viria a denominar de
racionalidade substantiva, que será abordada mais adiante.
2
O Departamento Administrativo do Setor Público (DASP) foi criado em 30 de julho de 1938, por meio do
Decreto-Lei n. 579, como esforço de modernização da burocracia pública brasileira, empenhado no governo de
Getúlio Vargas (Tenório, 2012).
49
3
A Fundação Getúlio Vargas (FGV) foi criada pelo presidente Getúlio Vargas, em 1944, para promover estudos
de interesse da administração pública, sendo que seu caráter de direito privado teria sido escolhido para que a
instituição não sofresse interferências políticas mas que ao mesmo tempo, não estivesse subordinada À procura
de lucro. Suas origens estão no esforço de modernização da burocracia pública levado à cabo pelo Departamento
de Administração do Serviço Público (DASP), também criado no âmbito do governo do presidente Getúlio
Vargas, em 1938 (Abreu, 2019a).
4
O Grupo de Itatiaia surgiu, em 1952, do debate polarizado sobre os rumos da industrialização brasileira em
rápida ascensão desde o final da 2ª Guerra Mundial. De um lado, os defensores da participação de capitais e de
tecnologia estrangeiros no desenvolvimento nacional. E, de outro lado, os nacionalistas, defensores de uma
planificação econômica que colocava uma forte participação do Estado na economia, tanto nos setores de
infraestrutura como nos setores em que o capital privado não tinha possibilidades de se lançar por falta de
recursos ou de tecnologia. Guerreiro Ramos, juntamente com outros intelectuais como Hélio Jaguaribe, Roland
Corbisier, Rômulo de Almeida, Cândido Mendes de Almeida, Inácio Rangel e Evaldo Correia Lima faziam parte
deste último grupo, e passaram a se reunir no último fim de semana de cada mês no Parque Nacional de Itatiaia
(Abreu, 2019b).
5 O IBESP - Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política foi a formalização, em 1953, do Grupo de
Itatiaia, onde o grupo passou editar a revista Cadernos do Nosso Tempo e organizou cursos e conferências em
nível de extensão universitária (Abreu, 2019b).
6 O ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros foi criado em 1955 como forma de tornar mais densa a
participação do grupo do IBESP na esfera pública federal. Foi um dos órgãos mais importantes de elaboração da
ideologia nacional-desenvolvimentista, de base capitalista, para o Brasil. Dentre os intelectuais do grupo havia
divergências, porém o entendimento comum era de que “o desenvolvimento era entendido como a condição de
superação da estrutura colonial ou subdesenvolvida, alcançável somente através da industrialização crescente do
país. A política de desenvolvimento só comportaria uma opção, a nacionalista, única capaz de conduzir à
emancipação e à plena soberania. A política de desenvolvimento nacionalista introduziria mudanças no sistema
político, determinando a substituição das antigas elites dirigentes do país. A estrutura econômica desenvolvida
teria que se apoiar numa nova liderança política, representada pela burguesia industrial nacional. A superação do
subdesenvolvimento através da industrialização seria uma aspiração não só da burguesia industrial nacional,
como também do proletariado, dos grupos técnicos e administrativos e da intelligentsia. Os interesses desses
grupos estariam em oposição aos interesses dos grupos ligados à economia de exportação de bens primários
(economia agrária), cuja aspiração seria manter o status quo e reviver a importância política que haviam detido
até a Revolução de 1930. Os desenvolvimentistas seriam favoráveis a uma política econômica liberal, destinada
a reforçar o setor primário da economia. (…) A luta seria travada, finalmente, entre nacionalistas e “entreguistas”
— aqueles que tendiam a vincular o desenvolvimento do Brasil à potência hegemônica do capitalismo.”
Contudo, em 1958, com a publicação do livro O nacionalismo na atualidade brasileira, Guerreiro Ramos se opõe
francamente ao seu autor, Hélio Jaguaribe, o que resulta em uma grave crise interna até que Guerreiro Ramos se
demite do instituto. O ISEB é extinto em 13/04/1964 por força do Golpe Militar empenhado neste mesmo ano
(ABREU, 2019b).
50
intelectuais, escreve artigos para a Revista de Saúde Pública (RSP) destinada à funcionários
públicos, participa das publicações dos Cadernos do Nosso Tempo (que chegava até as regiões
mais remotas do Brasil) e publica duas de suas obras mais importantes: Introdução crítica à
sociologia brasileira, em 1957, e A redução sociológica, em 1958 (MARTINS, 2012 e
TENÓRIO, 2012).
No que tange à inspiração declarada para o método da redução sociológica, esta teria
surgido anos antes da publicação da obra homônima, a partir da coordenação de um estudo
sobre padrões de alimentação no Brasil, coordenado por Guerreiro Ramos, no ano de 1952, no
âmbito da Pesquisa Nacional de Padrão de Vida. Neste trabalho, o intelectual observou que
havia um método padronizado pela antiga Sociedade das Nações (originária da ONU) e que
comumente era aplicado em uma variada gama de países com condições socioeconômicas e
culturais muito distintas. Ao realizar a análise dos dados coletados, verificou que a metodologia
indicada não era aplicável à realidade brasileira e precisaria de uma considerável adaptação
para que, tanto os resultados da pesquisa estivessem de acordo com a realidade, como as
proposições de políticas públicas decorrentes, de fato, pudessem solucionar os problemas
encontrados (RAMOS, 1996).
Desta forma, o estudo sobre o padrão de alimentação brasileiro, apresentado no livro
como inspiração e ilustração da Redução Sociológica como método, é o ponto onde inicia um
esforço ainda mais sistemático em defesa de uma ciência social comprometida com as
realidades nacionais e que não teria um valor universal único, justamente no sentido de que
seria sempre necessário uma depuração dos trabalhos internacionais para verificar a adequação
de suas teorias e metodologias às realidades locais - o que não significaria invalidar a
universalidade da ciência, mas compreender que a lógica que opera as ciências naturais não
pode ser pura e simplesmente transposta para as ciências sociais.
Azevêdo Mendes (2006b) identifica traços da Redução Sociológica desde os primeiros
escritos de Guerreiro Ramos, principalmente aqueles traços vinculados à práxis ou, em outras
palavras, ao necessário acordo entre pensamento e ação. Ou ainda, como elemento de qualquer
elaboração teórica, tal qual a recuperação dos trabalhos de filósofos de séculos antigos sugerem
e que no contexto da modernidade foi recuperado com vigor nos trabalhos de Karl Marx
(RAMOS, 1996, p. 169). Assim é desde os poemas escritos no início de sua biografia e sua
preocupação com uma arte engajada; passando, nas obras seguintes, pelas distinções ao que
chamava de intelectual livresco versus intelectual verdadeiro e; culminando na sociologia em
ato versus sociologia em hábito – esta última que deveria primar pelo conceito de hábito
51
Guerreiro Ramos (1996) dedica dois capítulos iniciais da obra A Redução Sociológica
ao contexto socioeconômico mundial e brasileiro que lhe gerava esperança nas possibilidades
de desenvolvimento do país. À época, o processo de industrialização capitalista avançava no
Brasil concomitante às transformações de infraestrutura urbana e do consumo popular. Para o
autor, tais condições históricas possibilitavam à população a esperança na superação
progressiva da sobrevivência puramente biológica e vegetativa, de uma vida ordinária. Por
conseguinte, tais condições impulsionariam a criação de uma “consciência coletiva de caráter
53
crítico” (RAMOS, 1996, p. 41), ao passo que tal consciência seria o motor de ainda mais
transformações sociais rumo ao desenvolvimento. Isto é, a sociedade brasileira seria capaz de
avaliar suas condições objetivas de desenvolvimento - pela análise de fatores internos e
externos, presentes e passados - de modo que apropriar-se-ia do curso do desenvolvimento no
país, pela via política de planejamento e da ação.
Aqui a defesa é de que o acesso ao consumo mercantil é um dos fatores que operam em
favor da politização das sociedades, uma vez que
é necessário realçar a diferença de psicologia coletiva entre um contingente de
pessoas que praticam largamente o autoconsumo da produção e o de pessoas
que vivem de salários e que assim têm de comprar tudo, ou quase tudo, de que
necessitam. A sociedade de que estas últimas formam tem maior conteúdo
político que a de rurícolas. (RAMOS, 1996, p. 59).
7
Mais tarde, na obra A Nova Ciência das Organizações, o autor vai sugerir que a excessiva comercialização de
bens no espectro da vida humana associada, bem como a racionalidade implícita nos processos de
desenvolvimento em curso corroem as sociedades, o que desde já se pode avaliar como um clamor pela
calibragem ideal entre racionalidades, que seria melhor exposta em sua última obra.
54
baixa interpretação e repetição acrítica de teorias “alienígenas”, coerentes à realidade dos países
de origem e ao sistema de manutenção das condições contraditórias entre desenvolvimento e
subdesenvolvimento. E isso precisa ser repensado sob a ótica da redução. Afinal, “é a prática
da redução que converte o sociólogo de consumidor (colecionador) de ideias em produtor de
ideias.” (RAMOS, 1996, p. 115). Não submeter a produção científica internacional ao crivo
crítico da produção do conhecimento nacional é replicar uma lógica de dominação que só é
favorável aos países de onde tais teorias se originam.
Uma categoria chave para a explicação fenomenológica desta lei é a intencionalidade.
Guerreiro Ramos recorre a Husserl e sua afirmativa de que cada pessoa está relacionada aos
objetos e a determinadas circunstâncias. Mas no caso da produção intelectual, essa relação não
está assentada em bases transcendentais, mais sim, concretas. A noção de noema de Husserl
permite a assertiva de que a tarefa científica é a de descobrir o sentido e o contexto das teorias
científicas em relação ao espaço onde foram criadas. Tal exercício é o que permite desnudar o
esquema de intencionalidades que fizeram surgir as teorias. Por conseguinte, o uso destas
teorias para cada realidade nacional e regional estará condicionado à uma depuração das
intencionalidades e verificação da aplicabilidade a contextos que possuem outras intenções que
não aquelas onde as teorias foram criadas. Assim, ao utilizar “um objeto ou produto, sem reduzi-
lo, somos envolvidos pela intencionalidade de que é portador. A observância desta lei levará o
sociólogo a utilizar a produção estrangeira como matéria-prima de elaboração teórica,
condicionada por fatores particulares da sociedade em que vive.” (RAMOS, 1996, p. 115).
A implicação disto no campo da atuação acadêmica e intelectual é que qualquer
produção científica tem razão de ser quando se identifica na própria sociedade aquilo que deve
ser estudado, para a oferta de soluções a problemas próprios e específicos desta sociedade. Ou
seja, é a justa contraposição de uma ciência restrita aos muros acadêmicos, arbitrariamente
decididas pelo gosto de seus pesquisadores. Se a origem, o teor e o significado dos problemas
enfrentados são únicos em cada sociedade e em cada época, é razoável que nenhuma solução
eficaz possa ser facilmente transposta de um espaço geográfico para outro ao prescindir de um
diagnóstico localizado.
A terceira lei diz respeito a universalidade dos enunciados gerais da ciência, a qual
Ramos (1996, p. 123) é categórico e objetivo, a despeito de entendimentos equivocados: “a
redução sociológica não implica, de modo algum, negar a universalidade da ciência. Seu
propósito é, apenas, levar o cientista a submeter-se à exigência de referir o trabalho científico à
comunidade em que vive.” Desta forma, a ciência é vista pelo autor como universal em duas
frentes complementares.
57
portanto, uma categoria lógica, formulada a priori. É caracterizada a posteriori, pela observação
empírica de fatos selecionados em diferentes sociedades, e tomando-se uma ou um conjunto
delas como termo de comparação.” (RAMOS, 1996, p. 135).
Uma das principais definições concretas da lei de fases que Guerreiro Ramos apresenta
como ilustrativa está situada no processo histórico-social de Hegel e Marx, no qual um conjunto
de fatores que constituem uma totalidade determina uma época histórica que atribui sentido ao
que ocorre dentro dela. Assim,
Marx encaminhou-se para uma caracterização das grandes seções do
processo histórico-social em termos mais concretos. Era preciso
encontrar a explicação dos períodos da história não mais nas ideias ou
numa espécie de espírito antropoformizado, mas nas condições da vida
material. Assim passou a descrever as etapas do comunismo primitivo,
da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, reduzindo-as ao que
considera como o seu respectivo substrato básico, a sua infraestrutura
econômica. Cada uma dessas etapas, caracterizada por um meio de
produção fundamental e por determinada modalidade de apropriação
econômica, é uma totalidade aberta para o futuro, na qual se
influenciam reciprocamente as condições não materiais e as materiais,
embora estas constituam a anatomia de cada formação histórico-social
e, assim, em última análise, exerçam papel dominante na causalidade.
(RAMOS, 1996, p. 131).
Disso decorre a constatação de que os acontecimentos sociais não são obras do acaso ou
mero destino sobre-humano. Tampouco estão alheios a um fluxo histórico-social. São, em
realidade, um conjunto de decisões humanas relacionadas a leis estruturais que conduzem a
determinados resultados. É por isso que todo processo decisório no campo social depende de
conhecimento sistemático, “porque os fatos tendem a compor relações de sistema ou de
coerência uns com os outros, [e assim] só é viável operar em determinada situação as
transformações possibilitadas pelo seu âmbito de virtualidades.” (RAMOS, 1996, p. 135). Ou,
ainda, somente é possível transformar a realidade social pela via da consciência crítica.
da revolução brasileira, é o que explora este segundo sentido daquela obra cuja proposição
inicial era a de um método, qual seja, a atitude parentética.
Neste sentido, para chegar à definição de atitude parentética, Ramos (1963) por um lado,
tece uma contundente crítica aos modelos de organizações que, no Brasil, seriam importados
ora dos Estados Unidos, ora da União Soviética. Por outro lado, propõe um exercício da
sociologia em hábito (habitus), cujo conceito é proveniente de Aristóteles e não da conceituação
de hábito no senso comum, caracterizado pela repetição mecânica de certos comportamentos.
Trata-se de um momento em que as atenções do autor começavam a se voltar para a
dimensão administrativa das ciências sociais, ou seja, para o estudo das organizações e seu
papel na socialização das pessoas. Azevêdo Mendes (2006a) acrescenta ainda que a obra Mito
e verdade da revolução brasileira é permeada pela vivência parlamentar de Guerreiro Ramos
e os embates que travou com diversos partidos políticos à esquerda e à direita. Mas pode-se
encontrar indícios no próprio texto de Ramos (1963) de que é também o justo momento em que
identifica, nas organizações da época, a racionalidade que tem valorizado a mentalidade
colonialista e servil dos cientistas sociais.
Aqui é importante uma pequena digressão a fim de contextualizar os antecedentes
factuais que culminam na publicação de Mito e verdade da revolução brasileira. Assim,
fazendo jus à alcunha de um sociólogo “em mangas de camisa”, vale lembrar que a trajetória
de Guerreiro Ramos e sua construção intelectual tiveram relativamente pouca filiação
institucional à academia formal. Muito de suas elaborações teóricas estão em consonância com
suas observações empíricas dentro de espaços de burocracia pública e de círculos de discussão
com outros intelectuais. Sua preocupação fundamental desde os anos 1940 até meados de 1960,
era a de compreender a realidade brasileira e propor um projeto de desenvolvimento nacional
comprometido com as soluções de problemas que assolavam o país.
Neste contexto, na década de 1950, Guerreiro Ramos se junta a outros intelectuais de
peso no pensamento social brasileiro, tais como Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes de Almeida,
Álvaro Vieira Pinto e Nelson Werneck Sodré, que defendiam a industrialização como modo de
superação do subdesenvolvimento, eram inicialmente contrários ao capital estrangeiro e
subdividiam os grupos de poder entre nacionalistas e “entreguistas”. (FGV/CPDOC, 2020).
Como já mencionado, o que era inicialmente um grupo informal de intelectuais
pensando questões sociais brasileiras fora da academia tradicional, tornou-se o IBESP. Neste
contexto, os “Cadernos do Nosso Tempo”, disseminavam as discussões promovidas pelo grupo
e objetivavam “esclarecer o estado da arte da política no país, cogitavam sobre modos de agir
dos diferentes segmentos da sociedade e tinham a intenção de induzir e ajustar seu movimento.”
60
(HOLLANDA, 2012, p. 609). Logo surgiu a oportunidade de uma maior inserção do grupo na
realidade política nacional e, assim, após articulações dos integrantes do IBESP, o presidente
João Fernandes Campos Café Filho cria o ISEB, vinculado ao Ministério da Educação e
Cultura, por meio do Decreto nº 37.608, de 14 de julho de 1955.
O ISEB teria um papel importante nos anos seguintes, influenciando as políticas
desenvolvimentistas do governo de Juscelino Kubitschek. Contudo, três grandes entraves se
colocariam no caminho do Instituto, a saber: 1) as proposições nacionalistas do Instituto não
seriam integralmente absorvidas pelo presidente à época, visto ser ele favorável ao uso do
capital estrangeiro para a industrialização do país. Tal situação condicionaria uma participação
menor do que aquela almejada pelo grupo, no planejamento do desenvolvimento do país; 2)
havia um estranhamento e uma ausência de reconhecimento da legitimidade do Instituto por
parte dos cientistas sociais da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Brasil
(atual Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). Tal movimento pode ser compreendido
na esteira dos embates travados entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes, que se sucediam
a outros departamentos das ciências sociais da academia formal; 3) as ideias isebianas não
constituíam um todo homogêneo, visto que havia sérias divergências de orientação política e
ideológica entre os intelectuais que integravam o Instituto. Sequer a questão nacional era
consenso e, além disso, conforme cada integrante avançava seus estudos, as divergências se
tornavam menos transponíveis na convivência institucional. (FGV/CPDOC, 2020).
O resultado da confluência dos fatores expostos foi a cisão interna do ISEB, que
acarretaria o desligamento voluntário de Guerreiro Ramos do grupo e seu posterior ingresso na
vida político-partidária. Assim, Ramos se filiou ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e
tornou-se Deputado Federal pela Guanabara, no período de agosto de 1963 a abril de 1964,
tendo seu mandato cassado pelo Ato Institucional no. 1 do Governo Militar. A guinada que
Guerreiro Ramos orquestra, a partir de sua saída do ISEB, é justamente a inserção na vida
política partidária e ativista. A atuação posterior resulta em três obras de relevo: O problema
nacional do Brasil (1960), A crise do poder no Brasil (1961) e Mito e Verdade da Revolução
Brasileira (1963), conforme argumenta Azevêdo Mendes (2006a).
Em outras palavras, Mito e verdade da revolução brasileira e, consequentemente, a
definição de atitude parentética, foram elaborados paralelamente à sua atuação político-
partidária, logo após o rompimento com o ISEB. A condição de práxis de Guerreiro Ramos
reverbera, neste sentido, em um significativo avanço para a Redução Sociológica apresentada
inicialmente como método.
61
Encerrada a digressão do contexto factual da época, observa-se que é por meio das obras
dos sociólogos americanos Wright Mills e William H. Whyte, que Guerreiro Ramos vai se
inspirar e assumir desde já a crítica ao padrão de desenvolvimento da sociedade americana.
Padrão este baseado em organizações que extrapolavam os limites da dimensão econômica do
desenvolvimento para todas as demais esferas da vida humana individual ou associada, fazendo
com que não restasse mais do que homens mecanomórficos, desprovidos de liberdade criativa
e criadores de uma “coletividade desumanizada”. Por outro lado, Ramos (1963) adverte que a
organização é necessária à vida. De modo que
A organização tem inevitavelmente duas faces. Uma boa, outra má. Sem ela,
a vida é impossível; com ela a vida se desnatura. […] Se um ideal de justiça
só consegue encarnar-se historicamente mediante correspondente organização
institucional, uma vez implantada, toda organização institucional tende a ser
conduzida de modo privilegiado, em benefício dos que a empolgam. […] Só
a organização corrige os malefícios de uma organização ilegítima ou caduca.
O homem está condenado à organização. (RAMOS, 1963, p. 157).
8
A obra em questão foi formulada na França à mesma época em que Jean Paul Sartre disseminava o
existencialismo, e inserida na corrente que se convencionou chamar de “Teatro do Absurdo”, mas que tanto
Sartre quanto Ionesco preferiam se referir como “Teatro da Derrisão”. O Teatro da Derrisão indicava a recusa
simultânea de três elementos constitutivos do teatro convencional e da sociedade à época: a psicologia, a intriga
e o realismo (PEREIRA, 2014), o que guarda significativa relação com as críticas que Guerreiro Ramos tece em
suas obras. É, pelo menos em parte, o espírito de um tempo traduzido na observação da autora de que O
Rinoceronte aborda o engajamento contra a ideologia totalitária pós-guerra, assim como a valorização do livre-
arbítrio. De modo que a “rinocerite”, assim como outros personagens de Ionesco, “servem como ocasiões de
colocar em cena essa transformação do indivíduo em massa: desvinculado do que o liga ao universal, ao que é
próprio do humano, sua tendência a se juntar em pequenos grupos o leva a uma amálgama que o
desindividualiza.” (PEREIRA, 2014, p. 165).
63
Nesse sentido, a crítica à organização tem mais ares de descoberta de padrões implícitos
no funcionamento organizacional episódico do que uma crítica à existência das organizações,
consideradas necessárias como forma de potencializar as ações humanas. Contudo, como
necessárias e determinantes da ampliação do poder de ação dos sujeitos, falta às organizações
o desejo real de emancipação subjetiva desses sujeitos que as compõem e integram, para que se
promovam possibilidades de existência da vida humana mais superiores e livres. Isto porque o
que fundamenta a crítica das organizações só tem validade e capacidade de transformação
quando sua inspiração reside na dialética, podendo concluir que “os malefícios de determinada
forma episódica de organização só podem ser erradicados por outra organização de tipo
superior, cuja qualidade será tanto mais elevada quanto mais a consciência parentética participe
de sua estrutura” (RAMOS, 1963, p. 169).
Não há receitas para a constituição da atitude parentética. Se houvesse, seria a justa
contradição de sua teoria a ponto de invalidá-la. É, como se verifica, mais coerente explicar e
compreender o que o Homem Parentético não é. Como pistas, Ramos (1963) indica que o
Homem Parentético é um ser de imaginação sociológica que, por sua vez, é capaz de favorecer
a compreensão das realidades mais íntimas de si próprio em justa relação com realidades sociais
mais amplas. Ele não é, necessariamente um especialista, mas é também um cidadão comum
que tem, entre outras premissas valorativas, a capacidade de transitar de forma interdisciplinar
entre as várias perspectivas, mas compreendendo que integra um sistema social maior do que
as partes que percebe. É portanto, um ser de consciência crítica que, ao mesmo tempo que
embasa a Redução Sociológica como método, constitui a própria possibilidade da Redução
Sociológica. Freire (1967, p. 41-42) usa outra semântica, mas sinaliza para a necessidade
histórica e possibilidade real de que a atitude parentética seja inerente ao ser humano no
contexto moderno, e explica isso a partir da distinção entre integração e acomodação:
Insistimos, em todo o corpo de nosso estudo, na integração e não na
acomodação, como atividade da órbita puramente humana. A integração
resulta da capacidade de ajustar-se à realidade acrescida da de transformá-la a
que se junta a de optar, cuja nota fundamental é a criticidade. Na medida em
que o homem perde a capacidade de optar e vai sendo submetido a prescrições
alheias que o minimizam e as suas decisões já não são suas, porque resultadas
de comandos estranhos, já não se integra. Acomoda-se. Ajusta-se. O homem
integrado é o homem Sujeito. A adaptação é assim um conceito passivo — a
integração ou comunhão, ativo. Este aspecto passivo se revela no fato de que
não seria o homem capaz de alterar a realidade, pelo contrário, altera-se a si
para adaptar-se. A adaptação daria margem apenas a uma débil ação
defensiva. Para defender-se, o máximo que faz é adaptar-se. Daí que a homens
indóceis, com ânimo revolucionário, se chame de subversivos. De
inadaptados.
64
No início da década de 1960, Cuba havia recém promovido uma revolução onde chegara
ao poder um governo que logo se tornaria comunista. Os ânimos políticos se acirrariam em toda
a América Latina, no contexto da Guerra Fria e com influências estrangeiras. No Brasil, os
militares assumem o poder de forma autoritária em abril de 1964. Na esteira e como já
mencionado, logo após ter assumido a cadeira de deputado federal pela Guanabara após a
renúncia de Leonel Brizolla, Guerreiro Ramos teve seus direitos cassados. A partir de então
passou a viver recluso, com a proteção de amigos e “trancafiado em uma pequena sala na
Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, onde lecionaria a jovens estudantes, muitos dos
quais vieram a se tornar discípulos seus, e se dedicaria à escrita de um dos mais vastos
compêndios sobre administração pública” (AZEVÊDO MENDES, 2006a) – trata-se do livro
intitulado Administração e Contexto Brasileiro, de 1966.
Já vivenciando a realidade acadêmica e científica dos Estados Unidos desde seu exílio,
em 1966, mas sem abandonar a coerência que lhe acompanharia nos enfoques dados aos seus
estudos, Guerreiro Ramos lançou o terceiro sentido atribuído à Redução Sociológica em
formato de livro, denominado A Nova Ciência das Organizações – uma reconceituação da
riqueza das nações, publicado em 1983.
A obra em questão teve uma longa trajetória até a sua publicação. Um dos primeiros
esboços de A nova ciência das organizações foi elaborado com foco na ação humana - com
base em possíveis padrões de escolhas pessoais em relação ao comprometimento
organizacional. Já a primeira versão mais elaborada da obra, com a crítica fundamentada à
sociedade centrada no mercado, viria a ser publicada em 1976, em artigo denominado Theory
of social delimitation, a preliminary statatement.
Com seu formato próximo do que viria a ser a versão final, a partir de 1977 Guerreiro
Ramos começa uma peregrinação em busca de aprovação do manuscrito do livro em diversas
editoras. Foram, ao todo, catorze negativas por parte de editoras norte-americanas, justificadas
com base na percepção dos editores de que o conteúdo do livro seria demasiadamente europeu
65
E nestes termos a teoria clássica das organizações seria ingênua, porque considera a
racionalidade instrumental a base epistemológica das ciências sociais, creditando o sucesso
tecnológico e econômico das sociedades industriais desenvolvidas à aplicação irrestrita das
ciências naturais, como se estas últimas, não pudessem ser manipuladas. Contudo, trata-se de
um engodo. Na verdade, “[…] um alto grau de desenvolvimento técnico e econômico pode
corresponder a um baixo desenvolvimento ético.” (RAMOS, 1989, p. 7). Para o autor, é precário
conceber que o ser humano não é mais do que sua capacidade de cálculo utilitário de
consequências vinculadas ao mercado, ainda que nos últimos dois séculos as ciências sociais
têm tido sucesso operacional e prático em função deste pressuposto. Mas isso as qualificaria
mais como um credo do que uma ciência, porque
os resultados atuais da modernização, tais como a insegurança psicológica, a
degradação da qualidade de vida, a poluição, o desperdício à exaustão dos
limitados recursos do planeta, e assim por diante, mal disfarçam o caráter
enganador das sociedades contemporâneas. A autodefinição das sociedades
industriais avançadas do Ocidente como portadoras da razão está sendo
diariamente solapada e é, na realidade, tão largamente desacreditada que se
fica a imaginar se a legitimação de tais sociedades, exclusivamente à base da
racionalidade funcional, continuará, dentro em pouco, encontrando neste
mundo quem acredite nela. (RAMOS, 1989, p. 22-23)
9
Não confundir com Política Cognitiva de Dagnino (2018), que expressa o conjunto de Políticas de Educação e
Ciência, Tecnologia e Inovação.
10
Uma atualização possível das análises de Guerreiro Ramos sobre os “alegres detentores de empregos”
(RAMOS, 1989, p. 112) são os atuais “alegres empreendedores” no contexto da chamada uberização do trabalho.
A ideia inicial de economia compartilhada, compactuada pela estratégia de desenvolvimento sustentável, cedeu
lugar para um processo de perda de direitos sociais e fragmentação da classe trabalhadora, que está em curso
graças, entre outras causas, à atuação da Política Cognitiva.
68
um lado fatos e realidades objetivas e, de outro lado, os aspectos valorativos das sociedades,
tem papel de fundamental importância.
E é precisamente este o equilíbrio que Guerreiro Ramos está reivindicando quando, em
A Nova Ciência das Organizações ou em outros trabalhos, o autor faz a crítica aos sistemas
educativos imbricados no que denomina sociedade de mercado. Ora, uma educação que se
constitui em modelagem da mente no escopo de um sistema mecanomórfico, não é mais que
socialização convertida em alienação. É, portanto, mera acomodação do já abordado conceito
de Homem Organização (RAMOS, 1989).
No entanto, é importante esclarecer que o que Guerreiro Ramos faz não é uma crítica
pura à racionalidade instrumental, tampouco a defesa de sua aniquilação – ele reconhece sua
importância. A racionalidade instrumental tem seu lugar tanto no mercado como nas ciências
naturais, e pode ser útil à emancipação humana porquanto tanto o mercado como as ciências
naturais são elementos constitutivos da sociedade. O que o sociólogo não admite é: 1) que se
considere a racionalidade instrumental como se fosse a única racionalidade possível em todo o
espectro das ciências e da vida humana associada, o que caracterizaria uma transavaliação da
razão, em termo cunhado pelo próprio autoe e; 2) que, com isso, se normalize a desconsideração
de aspectos valorativos e éticos que permitam a avaliação de intencionalidades das ações
humanas nos diversos contextos sociais.
É possível que, na ânsia pela denúncia do enraizamento cada vez maior da lógica de
mercado em todas as esferas da vida humana associada, Guerreiro Ramos tenha desconsiderado
que a racionalidade instrumental não está exclusivamente a serviço do Mercado ou do Estado.
Sampaio, Mantovaneli e Fernandes (2011) reivindicam atenção para o fato de que o modelo de
tomada de decisão nas organizações modernas está pautado na racionalidade instrumental de
cunho individual e em escala temporal de curto prazo, baseada em cálculo lógico-dedutivo
induzido por Descartes para análises analítico-reducionistas. Os autores informam, por outro
lado, que há propostas de transição já assentadas na literatura, que consideram: 1) uma
racionalidade instrumental coletiva que insere objetivos altruístas nas estratégias decisionais;
2) a circunscrição da racionalidade instrumental individual à limites onde ela é indispensável –
com especial atenção para a economia e; 3) uma racionalidade comunicativa, baseada em
Habbermas que avança do nível do sistema (Estado e Mercado) para o nível da complexidade
do mundo da vida (Sociedade Civil) – o que levaria à expansão do espaço societário.
69
Para Guerreiro Ramos há um ponto cego nas ciências sociais, e mais especificamente
nos estudos das organizações, a saber, as interações simbólicas da humanidade. Aqui, há uma
contradição latente que precisa ser observada para a abordagem substantiva das organizações.
O homem simultaneamente se depara com dois problemas: o do significado de sua existência e
a sua sobrevivência biológica.
Em outras palavras, em toda sociedade existe, de um lado, uma série de ações
simbólicas em sua natureza, ações condicionadas, sobretudo, pela experiência
do significado e, de outro lado, atividades de natureza econômica, que são
acima de tudo condicionadas pelo imperativo da sobrevivência, da calculada
maximização dos recursos. Os critérios de cada tipo de conduta são distintos
e não devem ser confundidos. […] As atividades de natureza econômica são
compensadoras em razão de seus resultados extrínsecos, enquanto a interação
simbólica é intrinsecamente compensadora. O primeiro tipo de atividade é um
meio para conseguir um fim; o segundo constitui um fim em si mesmo
(RAMOS, 1989, p. 126).
11
Os tipos ideais weberianos são uma metodologia proposta por Max Weber que nasce de algumas críticas ao
padrão de estudo das ciências políticas, dentre as quais se pode destacar a constatação de que as ciências sociais
estavam demasiadamente preocupadas em compreender os fenômenos sociais como se deram (ou são) e não
72
espera de nenhuma situação existente na vida social que coincida com esses tipos ideais. No
mundo concreto, só existem sistemas sociais mistos.” (RAMOS, 1989, p. 140).
Por sua vez, as categorias delimitadoras são: anomia, motim, economia, isonomia,
fenonomia e isolado. Começando pela anomia e o motim, integram a delimitação
organizacional na medida em que, de fato, existem e precisam ser encaradas sob uma estrutura
de um enclave específico e distinto do funcionamento de mercado.
A anomia é uma categoria retirada dos escritos de Durkheim, condição pela qual “os
indivíduos subsistem na orla do sistema social. Eles são desprovidos de normas e de raízes, sem
compromisso com prescrições operacionais, mas são incapazes de modelar suas vidas de acordo
com um projeto pessoal.” (RAMOS, 1989, p. 146). A anomia, aliás, é uma consequência natural
da industrialização, visto que comportamentos anômicos integram necessariamente a divisão
do trabalho. Tais pessoas, na concepção de Guerreiro Ramos, precisam ser assistidas, protegidas
ou controladas por instituições que entendam sua atuação dentro de um enclave social
específico, sob pena de que, do contrário, aprofundem a condição anômica de seus clientes. O
motim, por sua vez e como outra categoria da sociedade multicêntrica, é a versão de dimensão
coletiva da anomia: “é a referência de coletividades desprovidas de normas, a cujos membros
falta o senso de ordem social. Pode acontecer que uma sociedade se torne passível de
perturbação pelos motins, quando perder, para seus membros, a representatividade e o
significado.” (RAMOS, 1989, p. 147).
A economia é uma categoria de fundamental importância na delimitação dos sistemas
sociais. Trata-se de “um contexto organizacional altamente ordenado, estabelecido para a
produção de bens e/ou para a prestação de serviços” (RAMOS, 1989, p. 147-148), cujas
características, comuns a todos os tipos de economias (monopólios, firmas competidoras,
organizações de fins não lucrativos e agências), são: 1) tem clientes aos quais presta serviço e
influenciam em suas atividades; 2) sua avaliação é objetiva e em termos de eficiência, seja de
lucros ou de relação custo/benefício; 3) assume, geralmente, grandes dimensões de tamanho e
complexidade – tanto quanto for útil para sua avaliação objetiva; 4) os membros da economia
como deveriam (ou poderiam) ser. Na concepção dos tipos ideais, o passado é visto a partir de determinados
pressupostos capazes de determinar relações causais que resultaram nos fenômenos ocorridos, e não como uma
mera reprodução do passado. É fácil imaginar que uma simplificada linha do tempo que nomeia fatos
sequenciais pouco informa das condições e decisões que foram tomadas para que a história seguisse o curso que
a trouxe aos dias atuais. Mas aqui há uma armadilha, conquanto se deva considerar, na mesma medida do
alargamento das possibilidades de análise dos fatos sociais contextualizados, que o observador carrega um
arcabouço cultural e de racionalidade do próprio tempo que habita. Tal arcabouço implica nas análises e
conjecturas que o observador é capaz de fazer. Finalmente, o tipo ideal weberiano possibilita elucidar esse
componente de “racionalidade correta” do intérprete do fenômeno ou da ação, diferenciá-lo dos fatos reais
ocorridos ou em curso e, com isso sugerir novas possiblidades de ação (RINGER, 2004).
73
de alocação predominantes não dão conta do paradigma paraeconômico, pois “[…] é o mercado
que, em última análise, determina o que deve ser considerado como recursos e como produção”
(RAMOS, 1989, p. 180). E é desta forma que o paradigma vigente despreza em suas análises
da riqueza nacional as contribuições, por exemplo, da economia doméstica e do cuidado, ou as
atividades de associação de moradores e similares. E ao não computar essas atividades
essenciais para a vida humana, reconhecem como riquezas da nação somente aquilo que é
vendido ou comprado e que, portanto, é passível de contabilidade.
Em contraposição, a sociedade multicêntrica do paradigma paraeconômico reconhece
como riqueza tanto aquilo que os indivíduos vendem/compram como aquilo que produzem,
mas que não dispõem de dinheiro. Até porque o mercado não é capaz de identificar as reais
necessidades dos indivíduos, de modo que a solução implicada tem sido a de aprender o que
leva os indivíduos a comprar, independente de reais necessidades.
Daí deriva também o mal-estar com o conceito convencional de desenvolvimento que
vem ficando cada vez mais patente, sobretudo na academia. As abordagens tradicionais de
desenvolvimento
pressupõem que um aumento no volume das atividades de troca e a expansão
especial do mercado se equiparam ao desenvolvimento. Esse ponto de vista
preconcebido fica particularmente claro na forma padronizada de avaliação do
fenômeno da economia dual, nos países periféricos. É assim que se diz que
um país onde existe uma economia dual, ou populações vivendo em áreas não
incluídas no mercado, é, por definição, subdesenvolvido, ou mesmo atrasado.
O conselho que os formuladores de política desses países recebem,
geralmente, dos especialistas ocidentais, é o de que, uma vez que a economia
dual constitui um obstáculo ao desenvolvimento, deveriam empreender
esforços no sentido de incorporar a população inteira do país ao sistema de
mercado. O resultado geral dessa orientação política, não apenas nos países
periféricos, mas também nas nações cêntricas, é bastante conhecido. Algumas
dessas consequências são a má formação urbana ou a exagerada concentração
de população em grandes cidades, o aumento da taxa de anomia, o
agravamento da síndrome behavorista, com todas as suas deformadoras
conotações psicológicas, a diluição da identidade cultural dos cidadãos e a
destruição da competência artesanal que os capacitava a garantir,
autonomamente, a própria e significativa sobrevivência. Mais ainda, o sentido
econômico e quantitativo de semelhante orientação política leva os que a
subscrevem a legitimar a primazia do aumento do PNB sobre a justiça social
e distribuição de renda. (RAMOS, 1989, p. 185-186).
Mesmo países considerados desenvolvidos tem usado remédios que agravam o mal
constatado em função do desemprego e da degradação dos sistemas ecológicos. Isso ocorre
porque não compreendem que os sistemas de produção podem existir em duas vias não
antagônicas, quais sejam, de natureza orientada para o lucro e de natureza mutuária. As
“energias autocurativas da sociedade” (RAMOS, 1989, p. 186) estão presentes nos sistemas de
76
desta forma que Guerreiro Ramos entende ser factível que se abra um campo de possibilidades
de ação pactuado socialmente, que se poderia denominar planejamento.
Como forma de tornar didático o ensaio, Guerreiro Ramos cria as categorias de “Teoria
N”, composta pela concepção de modernização como o atendimento de necessidades e pré-
requisitos e “Teoria P”, composta pela concepção de modernização como construção de
possibilidades objetivas. Tais categorias são apresentadas em contraposição, embora o intuito
não seja o de substituir a primeira pela segunda, mas apenas explicitar duas concepções de
racionalidades distintas que precisam ser equilibradas nas tomadas de decisão. O Quadro 3 traz
um comparativo didático entre a Teoria P e a Teoria N.
participação repousa sobre o fato de que a compreensão da realidade implica em, pelo menos a
vivência mínima dos problemas aos quais se busca solucionar. A participação denota a
abordagem do problema a partir de diferentes interlocutores, onde, há que se ressalvar, a prática
científica reserva uma atenção especial às teorias, cuja escolha e/ou construção não pode se
descuidar da prática que a faz emanar.
A teoria metodológica oriunda da Teoria N é antiarticipativa. Como tal, pressupõe que
a compreensão da realidade e o traçado de estratégias de desenvolvimento devam se dar
partindo de uma análise objetiva de experiências consideradas bem-sucedidas - ou
“paradigmáticas” – num contexto de observação que se supõe isenta e objetiva. Essa atitude
reserva três armadilhas intransponíveis. A primeira delas diz respeito à impossibilidade de
compreensão integral de todos os fatores de desenvolvimento a priori, visto que tais fatores
somente podem ser compreendidos a luz de tentativas e erros, como prescreve o
incrementalismo. A segunda armadilha é que a seleção de fatores de desenvolvimento somente
é eficaz e faz sentido no contexto de um pacto social amplo que implica a própria sociedade
como indutora dos processos de desenvolvimento e não como mera coadjuvante. A terceira
armadilha é a desconsideração do sistema mundo que está cada vez mais evidente.
O sistema mundo evidencia a total dependência entre as diversas sociedades. Foi-se o
tempo em que cada nação podia pensar seus processos sociais isoladamente ou por um processo
de convergência casual. A amplificação do sistema financeiro mundial que gradativamente
rompeu barreiras fronteiriças, aliado aos avanços nas teorias de sistemas que encontram
relações multidimensionais entre espaços geográficos distintos e até mesmo longínquos exigem
especial atenção para a constituição de uma institucionalidade mundial que reconheça que os
problemas e sucessos não resultam de ações isoladas, mas sim de uma teia de dependências.
Tal teia de dependências, se não reconhecida e admitida nos processos de desenvolvimento,
pode colocar em xeque até mesmo o êxito de qualquer sociedade, mesmo das consideradas bem
sucedidas sob a ótica da Teoria N.
Uma nova perspectiva de modernização ou, como se possa desejar, de desenvolvimento,
leva em conta um enfoque maior em conceitos operacionais não tecnicistas, do que em
prescrições, já que não há fatores de desenvolvimento que possam ser determinados a priori.
Leva em conta também o “problema de distribuição racional e funcional de fatores e recursos
no mundo.” (RAMOS, 2009, p. 29). Já o papel da comunidade científica, nesta seara, é um
papel político de esclarecimento dos fenômenos que se processam local e globalmente, de modo
a impulsionar a criação de possibilidades objetivas conforme termo explicado anteriormente.
82
O foco de Guerreiro Ramos sempre foi o esforço pela emancipação humana, pela
liberdade humana individual e coletiva, em seu sentido mais amplo, onde assim como Sen
(2000) preconiza, a expansão da liberdade seria ao mesmo tempo um fim e um meio do
desenvolvimento. Por isso, a construção de uma sociedade livre não poderia assumir outro
conceito para o desenvolvimento, que não aquele da construção de desenhos institucionais que
permitissem uma autêntica expressão da cultura e dos potenciais humanos de criação de
soluções para os problemas sociais.
Por isso a crítica desbravadora ao pensamento colonial e o estímulo à consciência crítica.
Por isso, a criação de categorias analíticas e de ação como o Homem Parentético e o Paradigma
Paraeconômico. Por isso também a defesa de que tais elementos podem operar transformações
sociais, uma vez que considerados em conjunto com a adoção de estratégias de ação baseadas
em no modelo de possibilidades. Conforme Rezende (2009, p. 94)
para Guerreiro Ramos, as forças vivas duma comunidade nacional, uma vez
libertas dum sistema cognitivo e dum discurso interpretativo superimpostos e
redutivos, acabariam por chegar a um desenho político-econômico-social
83
Neste sentido, uma crítica ainda mais contundente aos termos utilizados frequentemente
em contraposição - desenvolvimento e subdesenvolvimento - é levada a cabo no ensaio
Modernização em nova perspectiva: em busca do modelo de possibilidades. Para Guerreiro
Ramos, considerando a própria lei das fases que defende na redução sociológica como um
método, todos os países estão permanentemente em desenvolvimento, não importando o estágio
de qualidade de vida em que se encontrem. De modo que na prática, assim como não há a
contraposição entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, não há arquétipo ideal de
desenvolvimento que se deva perseguir. Por conseguinte, também não há fórmulas de
desenvolvimento.
A TDSS traz uma visão mais aprofundada de desenvolvimento na admissão de sua
multidimensionalidade em contraposição ao conceito tradicionalmente considerado de
modernização. Mais do que isso, no paradigma paraeconômico (ou multicêntrico), Guerreiro
Ramos aborda uma proposta de desenho institucional para um modelo multidimensional de
desenvolvimento.
Em primeiro lugar, Ramos (1989) observa algo que nos últimos anos se tornou ainda
mais explícito: não há forma de promover a redução do número de desempregados pela própria
lógica de mercado que a cria e agrava a cada passagem de ano. Como paliativo e como se
fossem crises passageiras que o mercado será capaz de resolver, os países propõem
compensações de previdência e assistência social. Ocorre que, como a psicologia da sociedade
centrada no mercado prega e dissemina, a condição de desempregado é considerada uma
degradante incapacidade individual. Ora, se o homem desta sociedade não é muito mais do que
um detentor de emprego, como terá dignidade se não puder exercer essa função? Uma possível
solução imbricada na paraeconomia, seria a destinação destes recursos assistencialistas para
sistemas reconhecidos de orientação mutuária e comunitária. Nas palavras de Ramos (1989, p.
188)
um ato de imaginação poderia permitir que a reserva de capacidade
ociosa, representada pelas pessoas sem empregos formais, fosse
84
Para tanto, a paraeconomia prescreve que é necessário que haja um justo equilíbrio na
alocação de recursos entre sistemas de orientação para o lucro e sistemas de orientação mutuária
e comunitária (economia dual). E neste sentido, o desenvolvimento do mercado é desejável,
desde que politicamente regulado para que não arruíne as bases das fenonomias e isonomias.
Assim,
os sistemas de orientação mutuária e o setor de troca não são, por conseguinte,
reciprocamente excludentes. Devem ambos ser sistematicamente e
simultaneamente estimulados, através de uma eficiente utilização de
transferências num só sentido ou em duplo sentido, para benefício da
sociedade em geral. Uma das implicações desta observação é a de que, nos
países periféricos, a condições da vida rural deve ser consideradas em seus
próprios termos e protegidas contra a indiscriminada e destrutiva penetração
do mercado, se se tem em vista o aumento de suas potencialidades de
autoconfiança. Em suma, o bem-estar geral dos indivíduos que vivem num
sistema dual só pode ser melhorado mediante uma equilibrada alocação de
recursos, tanto como transferências num só sentido, quanto através de
transferências em sentido duplo.” (RAMOS, 1989, p. 188).
Em segundo lugar, embora a TDSS tenha sido concebida em paralelo com as discussões
do ecodesenvolvimento e do desenvolvimento sustentável, Guerreiro Ramos não cita
diretamente os debates que originaram a estratégia, cujo documento principal, o Relatório de
Brundtland, seria lançado alguns anos após a publicação da obra (CDMA, 1987). Contudo,
absorve a inquietação dos setores acadêmicos no mundo, com relação aos rumos da economia
clássica e seu caráter unidimensional e “enganador” (RAMOS, 1989, p. 189), que desconsidera
85
Não obstante, Ramos (1989) lembra que esse próprio empreendimento – o do “mundo
industrial” nasceu como uma possibilidade objetiva. Uma nova possibilidade objetiva pode
estar agora em curso, ainda que de forma dispersa e incompleta, em direção à sociedade
multicêntrica, onde a influência das organizações econômicas sobre a existência humana terá
sido devidamente delimitada. Ou não. “Em qualquer caso, o futuro será moldado ou através da
mera aceitação passiva das circunstâncias pelos agentes históricos, ou através de uma criativa
exploração, por esses agentes, das inigualáveis oportunidades contemporâneas” (RAMOS,
1989, p. 191).
Redclift (2002) encaminha suas críticas dentro de parâmetros similares, mas cabe
acrescentar que, para o autor, a comoção maior em torno da sustentabilidade se deu no bojo da
economia neoclássica que abriga a corrente do neoliberalismo, de forma que se inseriu a questão
ambiental na economia de mercado em uma manobra que solapou as preocupações com as
necessidades humanas. No mesmo sentido, Esteva (2000, p. 72) argumenta que a questão da
sustentabilidade estaria mais orientada para dar suporte à manutenção do modelo de
desenvolvimento vigente, do que “para dar apoio ao florescimento ou a manutenção de uma
vida natural e social infinitamente variada”.
Ocorre que o próprio Ignacy Sachs, apesar de continuar os esforços no adensamento e
na disseminação das premissas do ecodesenvolvimento, mantendo as diferenças de postura,
percebe a importância da criação de um consenso mundial em torno de eficiência econômica,
eficácia social e efetividade ambiental (SACHS, 2003). Não se trata de uma concessão menor.
A perspectiva que Sachs assume tem caráter de entendimento quanto à necessidade de se
caminhar para uma transição entre paradigmas que precisa de suporte institucional. Há,
portanto, um nível de propósito comungado entre a ideia de desenvolvimento sustentável e
ecodesenvolvimento. Como estratégia, o desenvolvimento sustentável teve maior aderência em
nível mundial, e este é o ponto considerado para efetivar a transição de paradigmas almejada.
Neste momento cumpre resgatar que Guerreiro Ramos vinha reivindicando um
desenvolvimento endógeno pós-colonialista desde a década de 1950, quando publicou sua obra
A Redução Sociológica. No Brasil, ele estaria solitário nos ambientes em que circulava.
Contudo, as ciências sociais de outros países de vanguarda já começavam a tecer as críticas
similares e a elaborar proposições de alternativas de desenvolvimento multidimensionais
(FILGUEIRAS, 2012; MAIA, 2012). Boeira (2002) também identifica um embasamento
possível do desenvolvimento sustentável na concepção de sociedade multicêntrica de Guerreiro
Ramos. Afirma o autor que “a emergência de uma percepção sistêmica e de uma razão
substantiva no processo de implementação do desenvolvimento sustentável poderia conduzir a
um renascimento do ambientalismo, sob a forma transetorial” (BOEIRA, 2002, p. 18).
88
devem se empenhar em atingir, não constitui o real sentido que deve ser dado ao
desenvolvimento.
Assim, tem-se que a década de 1950 foi destinada ao surgimento da ciência regional,
embasada na descrição, especialmente de aspectos econômicos, da atividade regional e a
construção de modelos de equilíbrio geral sem que se propusesse o enfrentamento real de
problemas, visto seria necessária a participação de outras disciplinas nesta empreitada, o que
justificou abordagens simplificadoras da questão. Na década de 1960 até meados de 1970, a
Ciência Regional valorizou a criação de modelos de decisão em nível micro e macroeconômico,
mas a partir de informações de escala nacional e pouca interdisciplinaridade. Neste período, a
Ciência Regional se tornou um campo meramente técnico pela excessiva instrumentalização, e
nada substantivo. Já a década de 1970 é fértil para a efetividade da Ciência Regional. Ainda
que tardiamente a interdisciplinaridade entra no debate e mais do que isso, o campo político
passa a ser considerado. O horizonte futuro da solução de problemas reais do mundo passa a
ser encarado por propostas de intervenção com ênfase no planejamento, na participação e na
integração das escalas nacional, regional e local. O componente valorativo é expressado por
meio da escolha dos objetivos de desenvolvimento e dos modelos selecionados para aplicação
na sociedade. Os países chamados subdesenvolvidos são estimulados a definirem seus próprios
objetivos de desenvolvimento e criar políticas e planos próprios para implementação, visto que
a perspectiva política se torna muito mais importante do que o tecnicismo. Mas muitos dos
problemas aos quais a Ciência Regional objetiva sanar persistem até os dias atuais, segundo o
autor. No campo acadêmico-científico, falta integração de disciplinas e a elaboração de um
corpo teórico menos generalista. No campo prático, há uma lacuna entre a política e o
planejamento regional, que geralmente se mantém tecnicista e setorializado. A esse despeito, a
abordagem regulacionista aponta que é importante compreender as institucionalidades que
permitem a manutenção das estruturas. Mas a comunicação é falha entre os vários setores, mas
também entre academia e o planejamento, cada um em seus diferentes horizontes temporais.
Além disso, há demasiada preocupação com os sintomas dos problemas e não com as causas
em si.
Já Dawkins (2003) faz um exaustivo levantamento do que denomina teorias de
desenvolvimento regional. Contudo, logo no início esclarece que o que se refere à
desenvolvimento regional é, na verdade, o crescimento econômico regional. A preocupação
com a questão é justificada pela autora pela constatação de que os processos de inovação e de
crescimento econômico são fundamentalmente espaciais em essência – “space matters”, em
91
suas palavras - o que leva a uma crescente e ampliada preocupação de outras disciplinas das
ciências sociais sobre a questão do desenvolvimento regional.
O aporte de outras disciplinas para a TDR seria, desta forma, justificável por meio de
contribuições com a finalidade de potencializar o crescimento econômico, que é regional
porque assim interessa à economia. Destarte, após a exposição exaustiva de teorias relacionadas
à Economia Regional, o autor observa que há sobreposições nas correntes apresentadas e que
importa o avanço do debate em termos de planejamento e intervenção estatal para o
desenvolvimento regional. Para tanto, sinaliza que as políticas de desenvolvimento regional
devem assegurar eficiência (maximização do crescimento na economia nacional) e equidade
(redução das disparidades de renda, riqueza ou outros indicadores de crescimento no nível inter-
regional) como resultados que podem ser compatíveis. Para o autor, pode ser, inclusive que um
leve a outro.
Fernandez, Amin e Vigil (2008) observam que o estudo da TDR remonta muitas
décadas. Contudo, sua disseminação e o salto para o campo prático, no formato de receitas de
sucesso, é recente e parte de três experiências consideradas, no campo político, bem-sucedidas.
As referidas experiências são os Distritos Industriais da Terceira Itália, Baden-Wurtemberg na
Alemanha e Silicon Valley nos Estados Unidos, todas com fortes vínculos neoliberais e que
pretendiam responder aos desafios pós-fordistas e à globalização. É assim que na década de
1980 se disseminam duas principais correntes sob a alcunha de Nova Ortodoxia Regionalista.
A primeira corrente é a dos Distritos Industriais (DI) de tipo marshalliano, que concebe o
desenvolvimento como um todo econômico social onde operam a esfera econômica, social e
institucional para a configuração de sistemas produtivos, cujo espaço de análise é a região. As
principais contribuições desta corrente provinham da Economia e da Sociologia e o foco esteve
na rede de micro, pequenas e médias empresas. Já em meados da década de 1990, após muitos
estudos empíricos, observou-se que a organização regional neste formato não era eficaz do
ponto de vista econômico. Assim, novas configurações foram sendo inseridas, sobretudo
relacionadas à consideração do contexto histórico onde as atividades socioeconômicas se
desenvolvem, às ações coletivas de âmbito institucional e à importância da capacidade de
aprendizagem geradora de inovação. É quando os Sistemas Regionais de Inovação são inseridos
no rol de ferramentas de análise e prática do desenvolvimento regional.
A segunda corrente da Nova Ortodoxia Regionalista é a vertente dos Clusters,
encabeçada por Michael Porter e seu grupo de pesquisas de Harvard, também na década de
1990. Os estudos que desembocam em uma organização regional das empresas no formato de
Clusters partiram dos Distritos Industriais e dos Sistemas Regionais de Inovação, mas seriam
92
Ocorre que ao passo que a Nova Ortodoxia Regional avançou impulsionando reformas
estruturais de cunho neoliberal, as assimetrias regionais aumentaram e a América Latina se
consolida como a região mais desigual do mundo. Não que se deseje estabelecer uma relação
causal estrita entre os fenômenos. Senão, que a constatação é a de que a TDR, sob o enfoque
da Nova Ortodoxia Regional, não está dando conta dos processos de qualificação da qualidade
de vida no nível territorial - questão central a que se propõe declaradamente solucionar.
Mattedi (2015), em seu esforço na proposição do que chama de um programa forte de
pesquisa em desenvolvimento regional, expõe uma interessante classificação das TDRs em
função da causação contextual do conhecimento com o desenvolvimento regional. Avalia que
a evolução das teorias se deu em dois distintos conjuntos, que expressam diferentes formas de
causação contextual entre o desenvolvimento e a região, e que denomina de “teorias de
contêiner” e “teorias de envelope”. As teorias de contêiner concebem a região em sua dimensão
física, como uma espécie de recipiente onde ocorrem uma série de fenômenos naturais,
econômicos, sociais, culturais entre outros. Trata-se, segundo o autor (p. 82), do “resultado
inevitável do progressivo encontro – e até mesmo convergência – entre a abordagem geográfica
da economia e a abordagem econômica do espaço”. Aqui, abre-se ainda, duas variantes: as
teorias que pretendem dar conta das características do recipiente (região), e aquelas que
abordam as diferenças entre as funções do recipiente. Na primeira variante estão as vertentes
da Geografia Tradicional e da Nova Geografia, que procuram respostas para a interação entre
populações humanas e o espaço físico que ocupam. A segunda variante é justamente quando
começa com mais fôlego as preocupações propriamente ditas com o desenvolvimento regional
– trata-se da vertente funcional. Aqui estão assentadas as teorias tradicionais da localização e
os avanços promovidos por Walter Isard, todas no sentido de compreender como se davam os
processos de tomada de decisão empresarial relacionados às localizações. Pode-se também
assentar aqui as teorias provenientes da economia urbana e da economia regional, com
componentes como o Coeficiente de Localização de Homer Hoyt, as contribuições de Alfred
Marshall relacionadas a fatores econômicos externos, os Polos de Crescimento de Perroux, a
Causação Circular Cumulativa de Myrdal, os Efeitos de Encadeamento de Hirschmann e
posteriormente as abordagens institucionalistas relacionados aos atores locais desta vertente. O
argumento prévio da vertente funcional da TDR é simplista: acredita-se que o crescimento das
atividades econômicas dentro de um dado recipiente (região), faz com que o recipiente também
cresça.
Por outro lado, a vertente envelope vem à tona quando quem pesquisa o
desenvolvimento regional extrapola os limites das disciplinas de Economia e Geografia,
94
sobretudo a partir da década de 1980. É quando outras disciplinas das Ciências Sociais, tais
como Sociologia, Ciência Política, Antropologia, etc. entram em cena, e a dimensão cultural da
relação entre desenvolvimento e espaço é desnudada. As teorias de envelope também se abrem
em duas vertentes: uma ampla e outra restrita. A versão ampla é expressada pelas contribuições
em escala macro e viés fenomenológico da chamada Escola de Berkeley, traduzidas pela
“geografia da percepção” na qual o espaço poderia ser explicado pela história. Aqui, sobre a
região já não importam apenas os fatores físicos, mas língua, religião, etnias, culinária e outras
formas de expressão cultural começam a ser observadas. De modo que o desenvolvimento
regional passava a ser visto como uma construção social e, simultaneamente, um meio e um
produto. A versão restrita é representada pelas observações de viés marxista, ou, em outras
palavras, a abordagem crítica. Nela o desenvolvimento regional emerge como um processo de
conflitos e disputa. O que é colocado em questão aqui são as relações que se estabelecem a
partir do capital, da força de trabalho e dos processos ideológicos que resultam na configuração
espacial do desenvolvimento que, geralmente, produz riqueza em uma região e
simultaneamente pobreza em outra.
O que se observa em um comparativo com outras classificações antes apresentadas é
que Mattedi (2015) participa de um esforço acadêmico que se fundamenta na ampliação do
escopo tradicional da TDR. Ao apresentar a vertente denominada envelope, desenreda as
pesquisas em desenvolvimento regional de uma comum causação entre desenvolvimento e
região que é observada quase que exclusivamente a partir da Economia e da Geografia, cuja
preocupação primordial é compreender o custo-benefício que motiva as escolhas pessoais e as
atividades econômicas a resultarem em uma determinada conformação espacial de cunho
concentrado ou disperso. Contudo, o material não traz evidências empíricas de que a vertente
envelope tenha conseguido se estabelecer em mesmo grau de relevância que a vertente
contêiner.
Neste sentido, importantes considerações na tentativa de uma compreensão
contextualizada da realidade sociocultural e acadêmica brasileira de construção da TDR são
aportadas por Theis (2019). O panorama internacional de onde o autor desgarra a argumentação
sinaliza que o desenvolvimento regional é tratado quase como sinônimo de um processo
econômico, ao qual denomina mainstream, ainda que questões de desigualdades socioespaciais,
aspectos éticos, relações de poder, entre outras, apareçam aqui e ali. De forma diferente, a
realidade brasileira tem uma produção intelectual crítica oriunda dos programas de pós-
graduação criados a partir da década de 1970 e expandidos com vigor nas décadas 1990 e 2000,
como resposta aos efeitos da globalização neoliberal que começavam a assolar o país. O
95
contexto brasileiro da produção sobre desenvolvimento regional tem perfil crítico e conta com
vasta contribuição das ideias de Celso Furtado, que foi quem pensou o desenvolvimento a partir
da noção socioespacial delimitada pela categoria regional, quando ainda pouco se falava no
termo desenvolvimento regional no Brasil. Cultura e história foram pilares deste pensamento
acerca do desenvolvimento, assim como o destaque dos processos políticos como mecanismos
de reversão dos processos de desenvolvimento desigual, tão presentes na dinâmica brasileira e
de outros países periféricos. Ainda assim, o autor considera que não devem ser subestimadas as
contribuições teóricas internacionais de Gunnar Myrdal, François Perroux e Albert O.
Hirschmann.
Assim, Theis (2019) defende que a diferenciação positivista entre desenvolvimento
regional como fato objetivo/concreto e a manifestação idealizada/subjetiva é inócua, uma vez
que o desenvolvimento regional é dado empírico, simultaneamente em que é o desejo de um
bom desenvolvimento ou, em outras palavras, de um desenvolvimento que deve enfrentar a
problemática das disparidades regionais. Ainda, para o autor, o desenvolvimento regional
cumpre os requisitos de uma teoria de médio alcance, cujo caráter interdisciplinar vai além das
contribuições da Economia e da Geografia. Tais constatações permitem que sejam avaliados
três caminhos do desenvolvimento regional brasileiro, a partir das contribuições da Geografia
Econômica. O primeiro enfoque é o do livre mercado cujos defensores argumentam que a
intervenção estatal agrava problemas de desigualdades socioeconômicas. O segundo enfoque
defende a presença do Estado como regulador do mercado. Este agiria para atenuar as
desigualdades socioeconômicas espaciais. Nos dois casos propõe-se combater a o mal, em certo
sentido, com os mesmos meios que o produz (crescimento econômico às custas de uma
sociedade produtora de mercadorias). O terceiro enfoque e que é defendido pelo autor senão
como o mais viável, pelo menos o mais coerente ao contexto brasileiro, é aquele que propõe
restabelecer a autonomia das comunidades regionais, onde a utopia concreta de Ernest Bloch12
pode se configurar como um norte para a noção de desenvolvimento regional.
Em trabalho mais recente, Theis (2022) salienta que a discussão sobre abordagens de
desenvolvimento regional não pode se dar sem o entendimento da concepção de
desenvolvimento que está por trás do debate. E neste sentido, avança com um panorama
12 A visão de utopia de Ernest Bloch já foi usada em outros trabalhos do NPP. Matos (2018) observa que a
concepção de utopia é a da capacidade humana de esperançar um porvir que pode ultrapassar o que é tido como
curso natural das coisas. E que, conforme as pessoas avançam o tempo da vida, modelam-se e se remodelam
pelos acontecimentos que operam (inclusive pelo trabalho), tomam consciência dos limites presentes e podem se
dispor a superá-los. A utopia concreta de Bloch seria, então, a capacidade de sonhar acordado a partir de uma
acurada percepção do presente e das possibilidades de mudar o que não está a contento - ao contrário do tom
depreciativo ou da conotação de algo impossível geralmente, atribuída ao termo.
96
sintético de, pelo menos, quatro visões de desenvolvimento que vem sendo teorizadas ao longo
do último século, sendo três delas com significativo aporte da economia de mercado pela via
da compreensão de desenvolvimento associado ao crescimento econômico. Propõe, destarte,
que uma abordagem de desenvolvimento que englobe uma noção mais abrangente do que esta
vinculada ao crescimento econômico, passa necessariamente por uma transformação das
institucionalidades do mundo atual. De modo que
Não se trata de fechar os olhos para o real existente, mas de ousar olhar para
além dele. Não se trata de desprezar a presença do capital e do Estado e de
todas as escalas nas quais os seus poderes têm operado, mas de atrever-se a
negar essas institucionalidades – que têm negado a emancipação social e a
autonomia individual e coletiva. Em síntese: que uma nova agenda de estudos
no campo de desenvolvimento regional não deixe de continuar reconhecendo
desenvolvimento como um processo positivado na história e empiricamente
verificável. Mas, que, em termos normativos, atreva-se a contemplar um
horizonte utópico informado pelo impulso para a autodeterminação social
(THEIS, 2022, p. 35, no prelo).
Para avaliar o enfoque multidimensional nas TDRs, foi realizada uma revisão
sistemática, conforme informado no tópico Percurso Metodológico, que permitiu, inicialmente,
extrair um resumo e o argumento central em relação à TDR expressados pelos documentos,
conforme se apresenta no Quadro 4.
97
economia do APL do gás natural e óleo de Macaé/BR, onde constata duas escalas
de operação das instituições: a externa e a local.
15 Jardón, 2011 A inovação é um fator chave para companhias e o desenvolvimento sustentável nos
territórios. O artigo discute os efeitos da gestão da terra na habilidade de inovação
nas companhias de Vigo/Espanha, e observa que externalidades do território tem
maior impacto nos fatores internos das companhias, relacionados à inovação.
16 Hadjimichalis, 2011 O artigo retoma o que os autores consideram esquecido na TDR: o
desenvolvimento geográfico desigual, para explicar a crise financeira da Eurozona.
A crise é de origem neoliberal e se agrava principalmente a partir da introdução do
Euro. O discurso neoliberal é responsável pela despolitização da teoria regional e
consequente desqualificação da justiça socioespacial. O plano de resgate proposto
por alguns países europeus para essa crise segue um caminho tipicamente colonial.
17 Renski, 2018 O artigo analisa a iniciativa do governo dos EUA do WIRED - plano de força de
trabalho inovativa para o desenvolvimento econômico regional, em 2005, que
objetivou integrar mão de obra e os sistemas de desenvolvimento econômico para
tecnologias emergentes, e o setor de altos empregos. A despeito de uma sólida base
na TDR, o plano atingiu pouco dos seus objetivos. Novas iniciativas federais no
desenvolvimento econômico regional deverão superar questões que operam contra
a estratégia de desenvolvimento regional flexível e competitivo.
18 Schmidt, 2018 A clássica TDR trata regiões montanhosas como áreas que dificultam o
desenvolvimento. Contudo, o estudo de Karakoram mostra, que com processos e
ações criativas, tanto por parte dos residentes como de ações externas, as barreiras
naturais perdem importância e podem até ser convertidas em vantagens. Redes
multilocais, capital social e educação formal são estratégias importantes para tanto.
19 Castro; Cruz Neto, 2016 O artigo é voltado para uma revisão de literatura da TDR aplicada ao caso do
Distrito Agroindustrial de Anápolis (DAIA), com o objetivo de classificar seus
fatores de produção. O resultado foi que DAIA é um polo de crescimento regional
com alta especialização na indústria farmacêutica.
20 Hudečková; Husák, 2015 O artigo se baseia no conceito geral de sociedade do conhecimento para analisar
experiências de educação rural em Pilsen. Os resultados mostram que o setor
educacional não está ajudando na modernização das escolas rurais como
comunidades educativas.
21 Kozak, 2011 O artigo apresenta uma estrutura de desenvolvimento de capital intelectual nas
regiões. A investigação parte de estratégias regionais testadas em uma das regiões
da Polônia (Silesia). Conclui que as estratégias regionais desempenham um
importante papel no gerenciamento de recursos intangíveis nas regiões.
22 Dhimitri; Gabeta; Bello, O artigo qualifica o DR como "um novo conceito que objetiva estimular e
2015 diversificar a atividade econômica de um país (região) pra encorajar investimento
no setor privado, criar vagas de emprego e melhorar as condições de vida do país".
E que "o objetivo tradicional das políticas de desenvolvimento regional é a redução
das disparidades para atingir um equilíbrio relativo entre os níveis econômico e
social nas diferentes áreas do território nacional". O caminho para o
desenvolvimento regional proposto no artigo passa pela governança local para o
"uso eficiente do potencial de cada região, sendo particularmente focado em
negócios, ou seja, promovendo o desenvolvimento de novas empresas, o mercado
de trabalho e investimentos, aprimorando a qualidade do meio ambiente, saúde,
educação e cultura". O desenvolvimento regional é a tarefa atual da Albânia desde
1990, e se inequidades persistem em regiões do país é porque o potencial
econômico não está sendo totalmente utilizado.
23 Alexandri; Chatzi, 2014 É um documento em formato de ata/relato em que teóricos da geografia radical
discutem seus trabalhos científicos frente aos desafios atuais - 10o Seminário Egeu.
24 Mandysova, 2011 O artigo analisa a TDR em relação à teoria das organizações. Observa que, em
nome de maior liberdade de gerenciamento e escolha das organizações, pode-se
conceber o ambiente em que as organizações operam como consequência do
comportamento corporativo e suas atividades.
25 Mezeniece; Rivza; 2010 O artigo equaliza a chamada moderna TDR às teorias neoschumpeterianas, sendo
as atividades de empreendedorismo inovador a força motora do desenvolvimento
regional., para o que se deve criar mecanismos de financiamento.
Fonte: A autora (2022)
99
Foi possível perceber uma variedade de métodos aplicados nos estudos apresentados
nos documentos, destacando-se 19 documentos que incluem estudos de caso. Os demais
possuem a perspectiva de estudos teórico-conceituais. Há, ainda, em 20 destes documentos, a
referência a alguma unidade espacial: Austrália (3), Brasil (2), EUA (2), Albânia (1), Colômbia
(1), Espanha (1), Filipinas (1), Finlândia (1), Inglaterra (1), Polônia (1), República Checa (1),
Suíça (1), Turquia (1). Como referências a mais países em conjunto, tem-se a União Europeia
(3) e a região de fronteira dos países Paquistão, China e Índia (1).
Estes dados revelam duas orientações da TDR em nível mundial: não há unidade
metodológica no campo de conhecimento do desenvolvimento regional, sendo que
frequentemente se utilizam metodologias de outras áreas do saber. Os estudos de caso tem
destaque neste quesito. Destarte, também se pode depreender que os estudos em
desenvolvimento regional são, na maioria das vezes, referidos a alguma unidade espacial, que
nem sempre é a região.
sustentável. Há duas categorizações que são úteis para elucidar tal questão. Frey (2007)
esclarece que
[…] é possível distinguir entre versões de governança que enfatizam como
objetivo principal o aumento da eficiência e efetividade governamental, e
outros que focalizam primordialmente o potencial democrático e
emancipatório de novas abordagens de governança. Apesar da existência de
uma diferença inegável no tocante ao fundo ideológico que norteia ambas as
vertentes teóricas (Kickert et al., 1999b, p. 3), percebe-se uma confluência de
ambas as abordagens para as concepções e práticas de governança e de gestão
em rede, evidenciando a tendência a uma aproximação entre os modelos
gerencial e democrático-participativo, sem porém chegar a uma dissolução
dos antagonismos ideológicos que estão nas origens das duas propostas.
Ramos (1983) e Freire (1967). É também fator de qualificação do debate político que enseja o
conhecimento da realidade pari passu intervenções se realizam. Contudo, novamente, nem toda
participação pode ser inserida no contexto da estratégia do desenvolvimento sustentável. Tem-
se, desta forma, a participação em conjunto com a governança figura como outra categoria de
análise.
Conforme Rahnema (2000), as razões pelas quais a participação emergiu no campo do
desenvolvimento, quase como panaceia, são 1) o conceito deixou de ser uma ameaça
“subversiva” porque, em muitos casos, já se aprendeu a controlar os riscos de ameaça à
manutenção dos poderes; 2) a participação é uma palavra comovente e de apelo atraente. Com
o discurso da participação, governantes podem passar a impressão de que realmente se
importam com a população; 3) o discurso em favor da economia como a esfera mais importante
da vida humana já foi enraizado de tal maneira inclusive no senso comum, que quase qualquer
coisa se justifica em função do desenvolvimento econômico, de modo que não é necessário
muito esforço para que se obtenha uma participação da população que valorize projetos tidos
como de modernização. É assim que os objetivos econômicos passam a ser os principais
acordos sociais.
Com essas considerações, é útil a proposição de Arnstein (2002), para a qual a
participação varia em uma escalada onde o ponto mais alto é a participação cidadã. Para ilustrar
essa escalada a autora usa a analogia de uma escada de oito degraus divididos em três grandes
níveis. O primeiro nível costuma ser chamado de participação mas não há nele elementos de
participação. Por isso a autora denomina de “não participação”. Neste nível estão os degraus de
(1) manipulação, quando pessoas são convidadas a participar de reuniões ou comitês cujo
objetivo é educa-las ou conquistar apoiadores. Uma ata desse tipo de reunião ou uma lista de
presença costuma justificar que o processo foi participativo. No entanto, nada além de um
esforço de persuasão ou, no máximo, uma coleta padronizada de informações é realizada. Não
há nenhum envolvimento das pessoas com os processos de decisão que estão em jogo. Portanto,
não se pode considerar participação; (2) terapia, quando administradores e detentores do poder
partem do pressuposto de que a falta de poder do outro não pode ser outra coisa que um distúrbio
mental ou intelectual, que precisa ser ajustado. Parte-se então para uma terapia grupal ou uma
intervenção individualizada para conter os riscos de quem está reclamando o poder. O segundo
nível é de “pouca concessão de poder”. Nele, estão os degraus de (3) informação, quando
começa a participação com um nível de concessão mínima de poder. Os cidadãos são
legitimamente informados de seus direitos e deveres. Mas a comunicação ocorre em via de mão
única, não há consulta à população e frequentemente questionamentos e reivindicações são
103
desencorajados; (4) Consulta, onde se solicita a opinião dos cidadãos antes das decisões serem
tomadas, em pesquisas de opinião, audiências públicas e assembleias. Ocorre que não há
nenhuma garantia de que as perguntas foram feitas corretamente e tampouco se serão levadas
em consideração no processo decisório. Isso gera uma descrença na participação porque as
pessoas que serão afetadas pelas ações públicas estão cansadas de responder questionários.
Acontece um pouco com o que fazemos aqui na universidade também. Muitas vezes
perguntamos apenas o que nos interessa e damos pouco retorno. Frequentemente as perguntas
são do tipo: temos recursos para construção de um posto de saúde, vocês são a favor ou contra?
A localização não é discutida, as necessidades que poderiam ser atendidas com esse recurso
não são discutidas. Não há escolhas reais. Por isso este degrau configura ainda uma baixa
concessão de poder; (5) Pacificação, onde começa a possibilidade de certa influência por parte
dos cidadãos. Consiste em colocar cidadãos em cadeiras permanentes de conselhos e comitês
deliberativos. Ainda aqui a participação não é uma garantia de distribuição de poder porque tais
pessoas podem ser escolhidas a dedo, de modo que tenham afinidades com as propostas dos
tomadores de decisão e sejam usados como uma estratégia de pacificação com as comunidades
que poderiam ter reivindicações que não se enquadram nos objetivos dos detentores do poder.
Ainda assim, se as pessoas escolhidas tiverem legitimidade junto à comunidade que
representam, é possível que consigam efetivamente participar dos processos. O terceiro nível é
denominado de Poder Cidadão. Nele estão os degraus (6) Parceria ou sociedade, que é o é o
início do efetivo poder cidadão, em que cidadãos e tomadores de decisões concordam em dividir
o planejamento de ações de programa e projetos públicos e uma negociação permanente,
durante todo o processo, é levada a cabo. Funciona ainda melhor se a participação se der por
uma organização comunitária com recursos para contratar técnicos de confiança que as ajudem
a pensar as questões. Em muitos casos esse processo é desencadeado não de forma pacífica,
mas pela irritação de cidadãos que já se sentiram irritados com outras formas de participação
de fachada. Aqui não há uma concessão de poder, mas uma conquista batalhada; (7) Delegação
de Poder - enquanto na Parceria a participação em conselhos deliberativos costuma se dar de
modo que os cidadãos tenham menos peso de voto do que os tomadores de decisão, na
Delegação de Poder o cálculo se inverte: cidadãos detém maior número de votos do que os
tomadores de decisão. Aqui os cidadãos têm uma possibilidade maior de garantir que as ações
em discussão naquela instância atenda os interesses das comunidades que representam e; (8)
Autogestão ou Controle Cidadão. É quando os cidadãos possam gerir integralmente
determinados programas ou projetos públicos, como escolas por exemplo. Cooperativas seriam
um outro modelo de autogestão. Não é tarefa fácil e nem experiências de longo percurso
104
facilmente encontradas. O turismo comunitário, entre tantas outras experiências, poderia ser
aqui colocado como um exemplo de autogestão do território. O desenvolvimento sustentável
almeja, pelo menos, os degraus do terceiro nível da denominada escada da participação.
Interdisciplinaridade Colaboração entre disciplinas ou setores diversos, no campo teórico ou empírico em torno Transdisciplinaridade
de um ou mais objetivos ou problemas comuns, com interações de reciprocidade para
enriquecimentos mútuos. (ALVARENGA et al, 2011).
Governança Coordenação de ações, setores e disciplinas em torno da concepção e implementação de Participação, democracia, cidadania
estratégias de solução de problemas compartilhados, inseridos na esfera democrática e,
simultaneamente promovendo a democracia a partir de processos de participação cidadã.
Desenvolvimento Estratégia macrossocial e multiescalar, fruto de consensos mundiais em torno da percepção Objetivos de Desenvolvimento do
sustentável solidária de que novos modos de agir devem ser colocados em prática de modo a viabilizar Milênio (ODM), Objetivos do
a manutenção de condições de vida digna no planeta. O conceito reúne aspectos Desenvolvimento Sustentável
declaratórios, formais (normativos) e vivenciais, nos quais se reconhece ao menos quatro (ODS), Agenda 2030 para o
dimensões: econômica, social, ambiental e institucional (PNUD, 2018). desenvolvimento
Fonte: A autora (2022)
107
Aqui cabe uma observação. Optou-se por incluir o desenvolvimento sustentável como
categoria de análise. No entanto, entende-se que o desenvolvimento sustentável (9) é uma
estratégia que pode estar apoiada nas demais categorias apresentadas (1-8), pela forma de
abordagem multidimensional do desenvolvimento.
Resultados
5 Cruz Diaz; Blandón 1) A categoria de governança e sua complementar "participação" são citadas, inclusive na defesa do planejamento
Lopez; Cruz Rincón, 2018 estratégico, mas na acepção de articulações para políticas públicas orientadas para a produtividade de mercado.
6 Spicer, 2018 1) A categoria democracia aparece no questionamento de uma inversão quando anteriormente o social influenciava o
mercado e agora o mercado incorporou as relações sociais. Tal constatação é feita na fase crítica para a qual a TDSS
procura encontrar um caminho de resposta.
7 Andriesse; Kang, 2017 Nenhuma categoria de análise foi encontrada.
8 Eversole, 2017 1) A categoria de interdisciplinaridade aparece uma única vez relacionada à sua incorporação no desenvolvimento regional.
2) A categoria desenvolvimento sustentável aparece no sentido da incorporação de diferentes dimensões em escalas locais
na avaliação de oportunidades de desenvolvimento, que não apenas aquelas que a TDR vai buscar nas experiências
consideradas bem-sucedidas. Desta forma, há convergência implícita com as categorias de possibilidade objetiva e de
redução sociológica. 3) A categoria de governança é avaliada pela ótica do que o autor considera fraca participação de
organizações de escala regional nas ações de governança na Austrália.
9 Martin; Sunley; Leite de 1) Embora a categoria sociedade multicêntrica não apareça explicitamente, os autores tomam como entrave de
Barros, et al., 2017 desenvolvimento a consideração limitada do espaço geográfico e, mais especificamente, da região.
10 Segessemann; Crevoisier, A categoria governança foi citada uma única vez no resumo, sem explicação de sentido. Contudo, o artigo sinaliza que a
2016 preocupação seja com questões de ordem exclusivamente econômica e de produção de riquezas.
11 Akpinar; Tasci; Ozsan, Nenhuma categoria de análise foi encontrada.
2015
12 Soja, 2015 1) As categorias de redução sociológica e razão substantiva não aparecem explicitamente, mas podem ser inseridas na
preocupação do autor em compreender a região como espaço de produção do conhecimento de distintas áreas e não
somente para a produção de conhecimento econômico; 2) A categoria governança aparece como desafio no estudo
comparativo de regiões, e o sentido atribuído é de "An open theoretical frontier growing out of the debates on regional
governance and planning involves the application of critical regional and spatial approaches to the study of citizenship,
democracy, justice, human rights and social movements." (p. 379).
13 Hadjimichalis; 1) Não há menção à razão substantiva, contudo os autores fazem menção ao que denominam de "racionalidade do capital"
Hudson, 2014 para explicar que as crises do capitalismo são oportunidades para empresas, mas de alto custo humano e socioespacial, 2)
a sociedade multicêntrica e o desenvolvimento sustentável tampouco são referidas, mas os autores propõem que
restabelecer valores e prioridades sociais e de justiça espacial em contraposição ao neoliberalismo é tarefa das teorias de
desenvolvimento regional; 3) a governança é referida como crítica a sua redução à parcerias público-privadas para o
desenvolvimento econômico.
110
14 Dias, 2013 1) A categoria governança é mensurada no sentido de parcerias público-privadas e a participação como forma de
possibilitar "construir uma territorialidade caracterizada pela alta capacitação empresarial e tecnológica, que inclui um
ambiente relacional e de negócios densificado, uma mentalidade empreendedora, socialmente responsável e
ambientalmente sustentável - portanto de aspecto multidimensional - e respeitando as dimensões básicas do
desenvolvimento sustentável.
15 Jardón, 2011 A categoria desenvolvimento sustentável aparece no texto como um acordo tácito de objetivo com os leitores, sem
especificação sobre o seu significado além da necessidade de consideração de mais dimensões do desenvolvimento além
da econômica. Na concepção do artigo a inovação em empresas, que também leva em consideração uma variedade de
aspectos como o cultural (cultura da inovação) é um facilitador do desenvolvimento sustentável.
16 Hadjimichalis, 2011 1) a categoria redução sociológica não é citada, contudo o autor afirma que o neoliberalismo é uma forma de colonização
moderna e que a TDR deve inserir pressupostos políticos para combater esse novo colonialismo; 2) a razão substantiva
tampouco é citada, porém o autor defende a ideia de inserção de aspectos valorativos nos processos decisórios relacionados
à TDR: "The social and spatial distribution of who, what and where benefits
and loses from the crisis is an important issue that poses fundamental questions of justice, principles
and values." (p. 270); 3) a categoria da sociedade multicêntrica também não é mencionada explicitamente, contudo o autor
advoga para a consideração urgente de dimensões sociais e espaciais na TDR; 4) a governança aparece explicitamente,
porém sem definição clara. Contudo, a sugestão de maior valor à política na TDR sinaliza pela governança no sentido de
construção da democracia. Assim, Democracia e cidadania aparecem como estando sob risco no neoliberalismo,
considerado pelo autor uma ideologia, sugerindo que a teoria do desenvolvimento desigual combinado oferece alternativas
para tanto.
17 Renski, 2018 1) a categoria governança e participação aparece no sentido de formação de parcerias público-privadas para a gestão
econômica das regiões.
18 Schmidt, 2018 1) a categoria governança aparece como participação no sentido de que a organização da comunidade em questão
possibilitou a participação dos atores sociais em cenários de escalas maiores do que a região estudada; 2) a categoria de
possibilidades objetivas não está explícita no texto, mas pode ser visualizada no movimento de criação de oportunidades
onde os padrões teóricos de TDR indicavam condição de atraso;
19 Castro; Cruz Neto, 2016 Não há menção temática a nenhuma das categorias.
20 Hudečková; Husák, 2015 1) a categoria de consciência crítica e Homem Parentético não aparecem explicitamente, contudo se verifica um esforço
para possibilitar uma educação para a autonomia, baseada em fatores, características e necessidades locais; 2) a categoria
de governança aparece na forma de menção do papel da educação na constituição da cidadania e da democracia e na defesa
da participação cidadã.
111
21 Kozak, 2011 1) a categoria de desenvolvimento sustentável é mencionada, contudo não discutida. 2) a expressão multidimensões aparece
no texto se referindo a capitais, tal como o intelectual com potencial de ser revertido em ativo. Portanto distante da
perspectiva da multidimensionalidade do desenvolvimento aqui proposta.
22 Dhimitri, Gabeta, Bello, 1) a categoria da sociedade multicêntrica não aparece explícita e tampouco é contemplada no sentido dado pela TDSS. No
2015 artigo, entende-se que a economia seja capaz de impulsionar a qualidade do meio ambiente, saúde, educação e cultura; 2)
A categoria governança aparece com o qualificador "local", e a definição que o autor dá é ampla e poderia englobar a
perspectiva da multidimensionalidade do desenvolvimento: "formulation and execution of collective action at the local
level" (p. 50). 3) a categoria desenvolvimento sustentável aparece mencionada na nova teoria que os autores propõem,
contudo carece de explicação; 3) a categoria do desenvolvimento sustentável aparece também como integrando a nova
teoria de desenvolvimento regional proposta pelos autores.
23 Alexandri; Chatzi, 2014 1) a categoria de Homem Parentético não é mencionada, mas pode ser encontrada no perfil dos debates que demonstram
um desejo dos pesquisadores reunidos de ter no evento um espaço de discussão diferente das correntes convencionais que
estão pensando o desenvolvimento sob a ótica da geografia; 2) A categoria governança aparece por meio da democracia,
exemplificada pela Primavera Árabe como forma de construção social do espaço.
24 Mandysova, 2011 1) a categoria de desenvolvimento sustentável é mencionada na afirmação de que a responsabilidade social empresarial é
a contribuição das empresas para o desenvolvimento sustentável.
25 Mezeniece; Rivza; 2010 Não há menção temática a nenhuma das categorias.
Fonte: A autora (2022)
112
Embora exista um único objetivo específico que conduza este capítulo, é importante
resgatar que ele serviu a duas funções. A primeira destas funções foi a de a de levantar e
organizar as bases teóricas que culminaram em categorias de análise que, por sua vez, deverão
nortear as análises empíricas do PROESDE / Desenvolvimento FURB nos capítulos seguintes.
A segunda função a que serve este capítulo é a que consta declarada no objetivo específico,
qual seja a de avaliar se existe enfoque multidimensional possibilista (no sentido atribuído pelo
sociólogo Alberto Guerreiro Ramos) nas TDRs, considerando ser tal enfoque uma possibilidade
de assentamento teórico da estratégia de desenvolvimento sustentável. Portanto,
simultaneamente este capítulo orienta as análises posteriores, mas também procura oferecer
uma contribuição para o avanço das TDRs.
A opção metodológica foi, de um lado, encarar a produção intelectual de Guerreiro
Ramos sob um constructo que aqui designamos como abordagem multidimensional possibilista
e que, na forma de apresentação do capítulo, perpassa em conjunto a trajetória intelectual,
técnica, política e pessoal do autor, que é de mais de quarenta anos, e que culmina da proposição
da TDSS. De modo que se tratou de apresentar uma das expressões do pensamento social
brasileiro que aborda com profundidade - as vezes direta e outras vezes indiretamente - a
questão do desenvolvimento sob a ótica de possibilidades a serem construídas em relação direta
com diferentes sociedades e espaços geográficos. E de outro lado, buscar o alcance da
abordagem multidimensional possibilista de Guerreiro Ramos na literatura mundial das TDRs.
A trajetória de Guerreiro Ramos indica um aprofundamento do conceito de
desenvolvimento sob a vertente filosófica humanista. Observa-se que na obra A Redução
Sociológica o desenvolvimento ainda aparece em um esquema comparativo de critérios entre
nações ou regiões, mas já tendo a criação de critérios próprios para cada nação ou região como
indicativo de uma conceituação de desenvolvimento desprovida de arquétipos ideais. Uma
proposta, portanto, de uma concepção de desenvolvimento que inicia seu caminho para o
rompimento com a mentalidade colonial, em um esforço que o próprio livro sugere, qual seja,
de redução sociológica.
No ensaio A modernização em nova perspectiva, Guerreiro Ramos rompe de forma
ainda mais clara com conceitos pré-concebidos de desenvolvimento, inserindo com mais
profundidade a noção de sistema-mundo. Isso significa que o desenvolvimento deva ser
pensado a partir de um pacto social que esteja de acordo com as capacidades e perspectivas da
própria região, em um esforço de imaginação sociológica criadora de possibilidades objetivas
113
- que o próprio autor equipara novamente, em alguma medida, com o exercício metódico da
redução sociológica. A dimensão coletiva do desenvolvimento, por outro lado, é dada pelo
conceito de ação administrativa proveniente de Weber, que é também um esforço de ação
individual no sentido parentético.
A TDSS, por sua vez, indica que o desenvolvimento deve ser pensado incrustrado no
paradigma paraeconômico, que delimita a racionalidade instrumental e a economia em um
enclave específico, não mais coordenando todas as áreas da vida humana individual e associada.
Tal enquadramento faria aflorar um desenvolvimento pautado no equilíbrio entre as
racionalidades instrumental e substantiva. E, novamente, não há receitas para tal equilíbrio. A
oferta da TDSS é, na verdade, uma proposta heurística. As oportunidades - aqui denominadas
possibilidades objetivas, por sua vez, são construídas no campo da intervenção prática
permeada por perspectivas valorativas e em um movimento pendular dialético e dinâmico.
Já a origem do campo desenvolvimento regional está nas disciplinas de Geografia e
Economia. Não obstante, os estudos iniciais estavam voltados para a compreensão do
funcionamento das economias em relação a fatores específicos de unidades espaciais. Mattedi
(2015) identifica a abertura de novos horizontes no tratamento da questão regional a partir de
meados da década de 1980, quando outras disciplinas foram chamadas a contribuir. Por sua
vez, o movimento que se sucedeu no mundo, concomitantemente à disseminação de outros
qualificadores de desenvolvimento como, por exemplo, o desenvolvimento sustentável, tem
contribuído para a percepção do desenvolvimento como algo necessariamente vinculado à
esfera espacial e multidimensional.
Pode-se depreender da análise dos documentos da revisão exploratória e da revisão
sistemática de literatura, que há uma variedade de interpretações para o desenvolvimento
regional. Ou seja, trata-se de um fenômeno que pode ser identificado como uma polissemia, o
que denota que o campo é lócus de muita disputa e pouco consenso. Assim, “ao mesmo tempo
que o conceito é algo aberto, repleto de significados e experiências históricas, ele também está
imerso em relações de poder” (BUTZKE; THEIS; MANTOVANELI JUNIOR, 2018, p. 93).
Ainda assim, o que se observou foi que as teorias mais disseminadas envolvem prioritariamente
a economia no seu sentido mais clássico, ou seja, aquele relacionado à sociedade de Mercado.
Em muitos documentos analisados, mesmo quando se consideram outras dimensões do
desenvolvimento, elas são chamadas a contribuir com a economia da região sem que se tornem
o alvo principal do desenvolvimento.
Em relação às abordagens metodológicas dos documentos analisados, observou-se não
existir um escopo uniforme, o que também sinaliza para o fenômeno polissêmico e de disputa.
114
Os estudos utilizam uma variedade de metodologias, com destaque para o método de estudos
de casos ex-post-facto, com poucos artigos em que haja participação dos pesquisadores, ainda
que fosse no formato de observação participante.
Theis (2019) sinaliza que existem duas formas de se perceber o desenvolvimento
regional: como fato e como perspectiva. Como fato, o que se depreende da análise presente é
que o desenvolvimento regional é uma amálgama de teorias e práticas acerca de dinâmicas
econômicas, sociais, culturais, políticas e ambientais, que se expressam e configuram a
realidade de unidades espaciais. Tais unidades espaciais são delimitadas a partir do
compartilhamento de elementos de identificação comum. E essa amálgama é operada por
distintos agentes humanos, instituições e organizações, com diferentes intencionalidades em
disputa.
Como perspectiva, o desenvolvimento regional é o desejo do “bom” desenvolvimento.
Pode-se afirmar que o “bom” desenvolvimento aparece em muitos documentos analisados
como uma lista de pré-requisitos padronizados para a modernização (RAMOS, 2009). Nesta
esteira, a racionalidade instrumental, ou seja a racionalidade que desconsidera o debate sobre
projeções futuras como se tais fins já fossem algo dado ex ante, contaminou quase todos os
espaços da vida humana associada. Nesta seara, não há pacto possível pelo desenvolvimento.
Daí a necessidade de que algum conjunto de racionalidades que suportem a totalidade do
fenômeno seja adotado nos espaços de planejamento para o desenvolvimento. Aqui, defende-
se que a racionalidade substantiva possa ser esse antídoto.
É neste sentido que Ramos (2009) advoga, com fundamentos, que não há pré-requisitos
para o “bom” desenvolvimento. Portanto, trata-se de um fenômeno definido pela participação
de agentes humanos críticos na construção de possibilidades objetivas. É exercício de tentativa
e erro indissociável do fazer científico. É também a pactuação de um futuro almejado, cuja
construção se configura em pacto social que somente é possível pela participação, e os
primeiros passos envolvem a superação de sintomas como a Política Cognitiva e a Síndrome
Comportamentalista.
Assim, a TDSS pode ser absorvida como abordagem teórico-metodológica do
desenvolvimento regional que permite o enfoque multidimensional e substantivo da questão e
que está referida à multidimensionalidade do desenvolvimento, tal qual o desenvolvimento
sustentável. A paraeconomia, por sua vez, seria uma ferramenta de alocação de recursos para o
fomento de espaços isonômicos e fenonômicos, de modo a permitir a contaminação das
organizações pela racionalidade substantiva. Tanto TDSS como a Paraeconômia e o próprio
115
Os ODM e, mais atualmente, os ODS, configuram-se como uma estratégia que permite
aos pesquisadores, planejadores e executores do desenvolvimento regional, conhecer a
realidade social das regiões e simultaneamente intervir nessa realidade, por meio da criação de
possibilidades objetivas. É ferramenta de pactuação social pela via da governança multinível.
E embora tal ferramenta, circunscrita no arcabouço do desenvolvimento sustentável, não seja
isenta de críticas, há que se considerar o processo de cinquenta anos de discussões e elaborações
em esforços coordenados pela ONU e com participação também de países periféricos, com
destaque para as conferências organizadas no Brasil, além de elementos de vertentes como a do
ecodesenvolvimento e do desenvolvimento territorial sustentável, que tiveram importante papel
na construção das estratégias.
Ainda, considerar a assertiva de que desenvolvimento regional é um termo cujos
conceitos estão permanentemente em disputa evoca uma limitação de pesquisa sob a ótica da
ciência tradicional positivista e, ao mesmo passo, elucida o caráter inexoravelmente político
das ciências sociais. De fato, a construção de análises científicas sob a ótica da literatura
generalista internacional da TDR, pode desconsiderar elementos de cunho regional, fato que
faz clamar pela consideração de autores incrustrados na realidade regional analisada. Por outro
lado, tais elementos não sinalizam a necessidade de exclusão da consideração de teorizações
internacionais, seja de países centrais ou periféricos.
Finalmente, é importante observar que a TDSS foi aprimorada por Guerreiro Ramos até
o início da década de 1980. Considerando as alterações da sociedade nessa trajetória e, mais
especificamente a preocupação com a questão das escalas nacionais e subnacionais nas TDRs,
seria válido propor como possibilidade de aprofundamento futuro, a tentativa de compreensão
de limitações e novas possibilidades diante de uma interrelação e interdependência cada vez
maior ocasionada pela pressão do capital diante da quase eliminação de fronteiras da
comunicação, no formato de globalização.
117
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3.1 INTRODUÇÃO
13
A opção pelo trabalho de análise de dados coletados em entrevistas, em específico, deu-se pelo potencial de
revelação dos encadeamentos políticos de difícil mensuração quando do uso exclusivo de outras fontes de dados
como as documentais e os questionários, utilizados em outros momentos do capítulo.
126
tendo obtido 126 retornos. As questões visavam avaliar as percepções dos estudantes acerca de
cinco principais eixos relacionados ao PROESDE /Desenvolvimento FURB: qualificação
crítica; interesse pela investigação científica e tripé ensino, pesquisa, extensão; interação com
o território local; desenvolvimento sustentável e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM) e Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e; satisfação com o curso
e autoavaliação. (SILVA e MANTOVANELI JÚNIOR, 2018).
A compreensão das políticas públicas deve iniciar pela consideração de que o termo
“política”, por definição, engloba pelo menos três sentidos, que podem ser compreendidos por
uma diferenciação semântica advinda do idioma inglês, a saber: Polity, Politics e Policy.
Segundo Frey (2000), a Polity está no campo da dimensão institucional, no que se refere à
ordem do sistema político em relação ao seu sistema jurídico. A Politics, por sua vez, está no
campo da dimensão processual e está na arena dos conflitos, da construção dos consensos e das
tomadas de decisão. A dimensão material da política é dada pela Policy, referida aos conteúdos
concretos e declaratórios das decisões políticas. Neste sentido, Silva Filho et al (2009) propõe
uma adaptação da explicação dos três sentidos de política do estudioso alemão Böhret et al para
as três dimensões, apresentando as questões básicas de cada uma delas. Tem-se, então, que a
Polity corresponde à dimensão “forma”, e seria manifestada pela Constituição, normas
adjacentes e instituições formais, sendo que sua função é de organização dos procedimentos
políticos. As pesquisas desta dimensão visam a responder questionamentos acerca de que forma
ou maneira a política é feita. Já a expressão Politics corresponde à dimensão processual,
manifesta-se na disputa e no conflito de interesses e sua função é de criação de consensos ou
imposição de poder, a depender do estilo político. Esta dimensão proporciona estudos que
visam a compreensão do processo por onde a política ocorre ou ocorreu. A última dimensão é
a de conteúdo, expressada pelo termo Policy. A função desta dimensão é a orientação e
realização de atividades para a solução de problemas. Trata-se dos programas e planos políticos
que se conhece por políticas públicas propriamente ditas, e que fazem a esfera política dar conta
dos interesses da sociedade. Tal dimensão se concentra em compreender o conteúdo da política.
Importa, ainda, salientar que todas as dimensões se interrelacionam de forma dinâmica,
não existindo uma sequência lógica entre elas, embora alguns autores norte americanos e
europeus desenvolvam suas análises políticas considerando uma maior solidez institucional
127
vinculada à dimensão Polity, de onde decorrem as demais dimensões – fato que não ocorre em
países periféricos cujas institucionalidades nem sempre se encontram tão maduras.
Superada a distinção e considerada a correlação íntima das dimensões, vale ressaltar que
as políticas públicas se ocupam da solução de problemas públicos, definidos por Secchi (2010,
p. 125), em um esforço de objetivação, como “a diferença entre o que é e aquilo que se gostaria
que fosse a realidade pública”. A própria leitura do que vem a ser um problema público é,
portanto, um processo político. Isto porque o requisito fundamental da ideia de “público” é que
se refira à uma coletividade. Contudo nem tudo o que é coletivo tem chances reais de ser
promovido a um problema cujas políticas públicas se empenhem em solucionar.
O campo de estudo das políticas públicas é de origem norte americana, com contribuições
europeias, e elabora uma série de abordagens tanto para a análise quanto para a prática das
políticas públicas. Neste sentido, Dye (2009) apresenta uma variedade de modelos de análise
de políticas públicas, mas salienta que nenhum modelo é capaz de dar conta da totalidade de
informações que poderiam ser analisadas em uma política pública, ou seja, trata-se apenas de
recortes para sistematização da realidade. Ainda, dois ou mais modelos podem ser utilizados
em conjunto, reunindo elementos parciais ou completos de um e de outros.
Assim, Secchi (2010) apresenta o policy cycle, ou ciclo de política pública como a
abordagem que baliza o maior número de análises de políticas públicas da literatura
internacional e que, por muitas vezes, é replicado no contexto brasileiro. Não há problemas no
uso dessa abordagem, desde que consideradas as suas limitações e realizado o devido esforço
de adaptação ao contexto estudado. Desta forma, o modelo de Ciclo de Política Pública é
apresentado por Dye (2009) como modelo de processo, onde as políticas públicas são
entendidas sob a ótica de processos político-administrativos sequenciais: 1) identificar
problemas; 2) montar agenda para deliberação (selecionar os problemas a ser foco de políticas);
3) formular propostas de políticas; 4) legitimar políticas (selecionar a proposta, conquistar apoio
político, transformar em lei); 5) implementar políticas (organizar burocracias); 6) avaliar as
políticas e propor ajustes. Para o autor, o modelo permite estudar como as decisões são tomadas,
mas não quem se beneficia ou não delas, tampouco pode ser avaliado seu conteúdo – embora o
modelo possa trazer dar pistas. Na literatura encontram-se variações dos termos de cada fase,
mas em geral a lógica sequencial permanece a mesma. Para Secchi (2010), na mesma linha,
apesar do modelo encontrar limitações de análise e adaptações de conteúdo, ele é válido na
medida em que permite alguma sistematização de fases interdependentes da política pública em
questão, englobando a totalidade temporal desde seu nascimento até a extinção, caso ocorra.
128
Mas como há dimensões das quais o modelo não dá conta, o autor sugere sua utilização em
conjunto com outras análises.
Frey (2000) observa que o modelo de Ciclo de Políticas Públicas comumente é
acompanhado da abordagem institucionalista e que isso faz algum sentido em sociedades cuja
democracia tem seu processo mais consolidado pela força das instituições formais, ainda que a
democracia permaneça em constante construção e aperfeiçoamento. Contudo, para o autor, o
institucionalismo é pouco aplicável para realidades onde a democracia ainda está em processo
de consolidação, algo que é frequente em países considerados periféricos. Em outras palavras,
o institucionalismo é um modelo estrangeiro que não dá conta da realidade de países periféricos,
para os quais há necessidade de uma depuração e adaptação. E neste sentido, o autor
compreende que o neoinstitucionalismo pode contribuir para análises mais coerentes de
políticas públicas nesses espaços. Aqui, cabe observar que tais proposições vão na mesma linha
do método de redução sociológica de Guerreiro Ramos (RAMOS, 1996), que defende a
necessidade de superar a transposição automática da literatura estrangeira, como se pudesse ser
validada para qualquer contexto simplesmente por conta de seu reconhecimento como oriunda
de países cujos arquétipos são considerados desenvolvidos.
O neoinstitucionalismo surge na década de 1980, pretendendo contrapor-se a outros
modelos existentes pautados no comportamentalismo e no pluralismo, cujas funções seriam a
de equalizar interesses segundo a lógica de mercado. Neste sentido, as contribuições deste
modelo de análise podem ser compreendidas em duas fases: 1) inicialmente com uma vasta
contribuição da teoria marxista, defende o Estado como indutor das políticas públicas (State-
centered) desconsiderando que é a ação do Estado que muitas vezes conforma as classes e suas
lutas, possuindo acesso privilegiado a informações e o monopólio da força física; 2) com
avanços na defesa da polity-centered analysis, reposicionando o papel do Estado como parte da
sociedade que influencia ela ao passo que também pode ser influenciado por ela. Assim,
Quatro princípios podem ser destacados nessa revisão: a efetividade do Estado
não depende apenas de seu ‘insulamento’, mas de como se dá sua inserção na
sociedade; a necessidade de enfocar não apenas governos centrais, mas
também os níveis de governo periféricos; a força do Estado e dos agentes
sociais são contingentes a situações históricas concretas; e, finalmente, a
relação Estado/sociedade não compõe um jogo de soma zero, implicando a
possibilidade de que compartilhem os mesmos objetivos.” (ROCHA, 2005, p.
16).
sobre as interpretações e o próprio agir das pessoas” (FREY, 2000, p. 232). Ou seja, identifica,
de certo modo, qual a racionalidade por trás dos atos político-administrativos. Isso acarreta uma
conceituação alargada das instituições, considerando inclusive aquelas não reconhecidas, tais
como um conjunto de significados e práticas compartilhados - as identidades, em que os atores
políticos e sociais agem no campo político também de acordo com suas identidades pessoais,
enquanto cidadãos, políticos, servidores etc. na busca por estratégias que lhes parecem
apropriadas. Tal constatação conecta a abordagem neoinstitucional ao pluralismo, porquanto
interessada em explicar casos concretos (empíricos) e presentes. Ao acrescentar o papel das
instituições e das ideias nos processos políticos para análise de um ciclo amplo das políticas
públicas, traduz-se em um modelo de base empírica que não tem condições de generalização,
ou seja, seus resultados traduzem uma visão fragmentada da realidade (ROCHA, 2005).
As nuances comportamentais indicadas no modelo de análise do neoinstitucionalismo no
bojo de uma reconceituação das instituições desembocam na constatação de que a Politics opera
até mesmo no processo de implementação. Isto porque 1) ainda que haja um esforço de
regulamentação das atividades por parte dos tomadores de decisão na fase da formulação de
políticas públicas, estes não dominam a totalidade de informações e de alternativas possíveis, e
que somente serão descobertas durante a fase de implementação; 2) os implementadores são
também agentes tomadores de decisão, na medida em que há um espaço de autonomia durante
o processo de implementação da política pública que lhes permite pautar suas ações em
referenciais próprios. No limite, a implementação modifica o conteúdo original das políticas
públicas. (ARRETCHE, 2001).
Portanto, o entendimento das políticas públicas passa pela compreensão de que elas
emergem de contextos sociais e não é possível compreendê-las em sua complexidade a partir
do chamado positivismo lógico. É assim que Ball (2004) observa que o ressurgimento da teoria
política ocorre com maior força a partir de meados de 1970, quando o comportamentalismo -
também denunciado por Ramos (1989) – entra em declínio e há espaço para a teorização política
a partir do “mundo real” e não como resultado de algum nível restrito de abstração teórica. O
que o autor argumenta é que há espaço e se deve teorizar a prática e, assim advoga em favor da
compreensão da política em conjunto reflexivo entre o arcabouço teórico pré-existente e um
esforço crítico que se dá à luz da prática.
É desta forma que este capítulo se traduz em um esforço de compreensão do que foi
realizado dentro do espaço de autonomia entre os objetivos e métodos idealizados pela
Secretaria de Estado da Educação (SED) de Santa Catarina para a política pública denominada
130
O PROESDE é uma política pública estadual de Santa Catarina. Foi criada durante o
processo de descentralização administrativa promovido no primeiro governo de Luiz Henrique
da Silveira, ocorrido a partir de 1º de janeiro de 2003, no compasso de disseminação de duas
correntes de desenvolvimento que, em certa medida podem ser consideradas complementares,
a saber: o desenvolvimento local e o desenvolvimento sustentável.
Como abordado nos capítulos anteriores, tais correntes de desenvolvimento emergiram no
mundo a partir das décadas 1970 e 1980 como alternativa a um modelo de desenvolvimento
excessivamente pautado na lógica econômica. A tônica foi de inserção de outras dimensões na
condução e avaliação dos processos de desenvolvimento. Contudo, a intencionalidade dessas
novas dimensões variou e ainda varia: ora o sentido atribuído ao desenvolvimento local e ao
desenvolvimento sustentável os traduz como mecanismos para obtenção de melhores
indicadores econômicos; ora a preocupação reside em, através desses modelos, obter melhores
condições de vida humana no mundo globalizado, considerando a economia uma ferramenta
para alcance de objetivos sociais e ambientais. Ainda, tais modelos de desenvolvimento foram
criados no contexto de aprofundamento das políticas neoliberais no Brasil, onde funções de
planejamento tradicionalmente atribuídas às instituições públicas foram sendo gradativamente
deslocadas para a Sociedade Civil14, de modo que processos de reorganização territorial
ganhavam corpo no formato de governança.
Neste contexto mundial e tomando por base experiências internacionais, notadamente
europeias, o governo de Luiz Henrique da Silveira colocou em curso a política de
descentralização administrativa do estado de Santa Catarina, com a criação de Secretarias de
Desenvolvimento Regional (SDRs). Mas o contexto mundial não é o único disparador do
processo. Silva (2017) observa que as SDRs foram criadas respeitando parcialmente a
configuração de associações de municípios do estado, que são entidades cujo surgimento
remonta a década de 1960, com o intuito de reunir governos e Sociedade Civil no debate e
planejamento de ações de desenvolvimento. Assim, com um rearranjo da configuração
14
Segundo Souto-Maior (2012), a esfera do Mercado também está alocada na Sociedade Civil.
131
15
O movimento separatista que defendia a emancipação política das regiões oeste de Santa Catarina e sudoeste
do Paraná do estado do Iguacú tem seus antecedentes no Decreto-Lei nº 5.812, de 13 de setembro de 1943 que
criou o “Território do Iguaçú, no âmbito do Governo de Getúlio Vargas e sob a justificativa de ampliar a defesa
de fronteiras do país. Após extinto o referido decreto, uma parte da população se organizou, principalmente a
partir da década de 1960, para reivindicar tanto uma maior atenção na distribuição de recursos (sobretudo de
infraestrutura) para a região, como a criação do estado novo em uma reorganização político administrativa –
neste quesito as alusões eram feitas ao sentimento de liberdade desejado pela população e às possibilidades de
progresso decorrentes da autonomia da região planejar e implementar seu próprio desenvolvimento. (LOPES,
2004). As reivindicações criaram um certo sistema de calibragem de pressões políticas, dos quais uma das
consequências práticas foi a influência na implementação da primeira experiência do PROESDE. O movimento
continua atuante, ora com maior, ora com menor intensidade. Vide https://www.estadodoiguacu.com.br/.
133
Portaria similar à anterior (47/2013), com exceção que insere mais um critério
PORTARIA de seleção de estudantes: "estudantes que ainda não tenham participado do João Raimundo João Natel Pollonio
29-04-15 N/11/SED/2015 curso de extensão PROESDE". Colombo Machado
Cria, no âmbito do Decreto 3334/2015, o Programa de Educação Superior
para o
Desenvolvimento Regional/Licenciatura (insere, portanto, a Licenciatura no
Programa), definindo-o como "conjunto de atividades de ensino, pesquisa e
extensão voltados à formação de profissionais da educação, capazes de
intervir e contribuir na melhoria da qualidade da educação básica, por meio da
organização curricular, mediante a articulação entre sua formação acadêmica,
nos cursos de licenciatura, e atividades desenvolvidas nas unidades escolares
(UEs) públicas de educação básica no âmbito da Proposta Curricular da
PORTARIA Educação Básica do Estado de Santa Catarina", com regulamento próprio e João Raimundo João Natel Pollonio
17-06-15 N/19/SED/2015 Comitê Gestor. Colombo Machado
Revoga a Portaria 11/2015,; define as condições de operacionalização do
PROESDE / Desenvolvimento; substitui a nomenclatura de SDR para ADR -
Agências de Desenvolvimento Regional, na tônica da reforma administrativa
do novo governo; altera um dos critérios de seleção de estudantes para ter
concluído pelo menos um semestre do curso de graduação e não ser concluinte
no ano em que estiver matriculado no PROESDE, mantendo os demais
requisitos da Portaria 11/2015, inclusive o de não ter participado
Portaria anteriormente do Programa. Além disso, condiciona os valores destinados ao João Raimundo João Natel Pollonio
s/data 269/2017 benefício do PROESDE ao critério de IDH. Colombo Machado
Portaria João Raimundo João Natel Pollonio
15-03-17 448/2017 Revoga novamente a Portaria 11/2015; mas o texto é idêntico à 269/2017. Colombo Machado
16
Os cursos sequenciais são programas de estudos concebidos por Instituições de Educação Superior
devidamente credenciadas pelo MEC para atender a objetivos formativos definidos, individuais ou coletivos,
oferecidos a estudantes regularmente matriculados em curso de graduação, a graduados ou àqueles que já
iniciaram curso de graduação, mesmo não tendo chegado a concluí-lo”. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO,
2017). O curso não possui característica de graduação, tampouco de extensão.
138
no número de disciplinas ofertadas e nas respectivas cargas horárias, considerando que o tempo
de cada edição do programa havia sido suprimido para um pouco menos de 1/3 do formato
anterior. Contudo, não foi possível acessar indicativo de ementário e referências bibliográficas
para a edição. É possível que isso ocorra porque as IES passaram a ter maior autonomia na
abordagem dos conteúdos.
Concomitantemente à estabilidade do governo de João Raimundo Colombo, as portarias
posteriores vão incrementando regramentos sem grandes alterações no processo de
implementação da política, a exceção de que inserem critérios de seleção de estudantes para o
programa e outros detalhes de financiamento. A organização curricular até 2019 também se
mantém muito similar à edição de 2013, acrescentando e ajustando pequenos pontos como a
possibilidade de oferta parcial de disciplinas à distância, mas sem reconsiderar um ementário
padronizado para todas as IES que participavam do programa.
Em 2015 João Raimundo Colombo é reeleito para um novo mandato e reassume o
governo com pouca transição de equipes. Mas aqui há um marco significativo para o programa,
no contexto de resposta a uma campanha do governador eleito, marcadamente propositiva para
a área da educação básica. Com uma manobra confusa a Portaria 019/2015 cria o PROESDE /
Licenciatura no âmbito do mesmo decreto de criação do PROESDE (Decreto 3334/2005).
Segundo a referida portaria, o PROESDE / Licenciatura consistiria em um "conjunto de
atividades de ensino, pesquisa e extensão voltados à formação de profissionais da educação,
capazes de intervir e contribuir na melhoria da qualidade da educação básica, por meio da
organização curricular, mediante a articulação entre sua formação acadêmica, nos cursos de
licenciatura, e atividades desenvolvidas nas unidades escolares (UEs) públicas de educação
básica no âmbito da Proposta Curricular da Educação Básica do Estado de Santa Catarina", com
regulamento próprio e Comitê Gestor. A criação do PROESDE / Licenciatura, contudo, não
extingue formalmente o modelo anterior voltado para o desenvolvimento regional.
As Portarias seguintes, 269/2015 e 446/2015 são documentos idênticos e asseguram a
permanência do programa que possuía objetivos relacionados diretamente ao desenvolvimento
regional, e que viria a ser denominado PROESDE / Desenvolvimento. Logo, a partir de então,
o mesmo PROESDE criado pelo Decreto 3334/2005 é subdividido em dois grupos: o
PROESDE / Licenciatura e o PROESDE / Desenvolvimento, com diferentes objetivos,
inclusive. Além disso, as Portarias 269/2015 e 446/2015 alteram a nomenclatura de SDRs para
140
17
O Decreto nº 3/2019, após a ascensão de novo governo estadual, também extinguiria em definitivo as ADRs.
18
Um Comitê já havia sido instituído anteriormente para o PROESDE / Licenciatura, no momento da criação do
subprograma.
141
Como apresentado, a FURB recebe o PROESDE em sua terceira fase de expansão estadual,
em 2009, com as pré-determinações do Decreto 3334/2005 e outros orientativos relacionados à
organização curricular e ementário, provenientes da SED, construídos a partir das experiências
anteriores com outras IES do estado de Santa Catarina. Neste sentido, a partir deste momento,
apresentam-se resultados de pesquisa em formato descritivo-analítico, assumindo quatro eixos
de análise, a saber: 1) eixo político-administrativo; 2) eixo cognitivo e; 3) eixo comunicacional
e de práticas; 4) avaliação por parte dos estudantes do programa - especificamente
relacionando-os aos movimentos internos da FURB em relação ao PROESDE.
internos da FURB, bem como aqueles agentes relacionados às tomadas de decisões para
construção de estratégias de gestão e implementação do programa.
Tem uma primeira etapa, que acho que foi essa de sensibilização mesmo, de
busca de convencimento de que a gente merece, digamos, essa atenção do
governo do estado, enfim… Então essa primeira etapa acho que é decisiva
para a gente chegar no recurso. E o que marca essa etapa é o fato de que a
gente se dá as mãos com outras IES do estado de Santa Catarina. (Entrevistado
1).
[…] a gente tinha, no início, uma situação de que o PROESDE tava solto pela
Universidade, ele estava na EDECON, e lá eles até consultavam o pessoal do
PPGDR porque era quem de fato e de direito para fornecer professores. Mas
daí […] o Proesde caia num fluxo, não de um ciclo virtuoso, porque era só
cumprir tabela, era mais uma coisa dentro da FURB. Era assim que eles
tratavam. (Entrevistado 4).
Havia latente também uma forte disputa interna, na FURB, pela gestão dos recursos que
entrariam pelo financiamento do governo do estado ao programa. Essa disputa não deve ficar
em segundo plano na análise política pois ela é relevante para compreender os desdobramentos
posteriores. Neste sentido, o Entrevistado 1 observa que
Quando entra na FURB, aí nós temos uma outra etapa que acho que é uma
etapa muito importante, de, bom, o que fazer com essa grana, pra onde
orientar, quem que vai gerir esse troço, quem sabe o que fazer com isso. E,
evidentemente, apesar do programa ter um certo design, um certo desenho
143
Do lado do PPGDR, além de sua equipe ter tido um papel fundamental na viabilização
do PROESDE na FURB pelas articulações na fase de sensibilização, pesavam credenciais
técnicas e de outras articulações políticas no âmbito das SDRs, para que assumisse a gestão do
programa. Foram diversas justificativas: 1) o PPGDR era um programa, à época, com quase
uma década de história trabalhando no stricto sensu da universidade com o campo do
desenvolvimento regional e produzindo conhecimento; 2) possuía grupos de pesquisa
consolidados; 3) possuía boa avaliação na CAPES (Conceito 5) e já visualizava a autorização
para a oferta do curso de doutorado que viria a ser aprovado em 2011; 4) tinha um histórico de
atuação em pesquisa e extensão em relação às SDRs e com a comunidade regional,
principalmente no âmbito do programa de extensão denominado Observatório do
Desenvolvimento Regional19. Portanto, o PPGDR figurava como o principal lócus de
conhecimento e práticas em desenvolvimento regional dentro da FURB. E é neste sentido que
logo o PPGDR logra a autonomia de coordenação do curso, que possibilitaria as delimitações
pedagógicas do programa, bem como o relacionamento direto com as SDRs e comunidade,
além da gestão dos recursos que chegariam à universidade. Um dos entrevistados observa que
E aí eu acho que a gente entra legal, porque tem as autoridades internas que
vão, digamos, ter ideias sobre isso, mas quem acaba lidando com o assunto
éramos nós, então… Eu digo nós o PPGDR, nós que temos inclusive pesquisa
empírica sobre a questão regional no Vale do Itajaí. Então a gente se habilitou
a, por assim dizer, contribuir na gestão desses recursos, e dar uma destinação
mais nobre […], de dar uma direção para os recursos e de como implementar
também. (ENTREVISTADO 1).
19
Conforme o projeto 722/2010 do sistema de extensão da FURB, o Observatório do Desenvolvimento Regional
é um programa de extensão iniciado em 2006, que objetiva “contribuir para o desenvolvimento sustentável de
Blumenau e de sua região” e consistia em um conjunto de atividades de sistematização de dados relacionados
regionais de desenvolvimento. O programa havia sido criado em continuidade ao Projeto Meu Lugar, encerrado
em 2005, que se tratava de uma parceria entre a FURB, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), e o governo estadual.
144
Por outro lado, há atores inseridos nessa burocracia que entendem que deveriam ter espaço
de participação mais ativa em função de suas condições mesmas de contribuição para a
formatação do PROESDE, mas que entretanto, não se sentiram incluídos no processo para além
das tarefas instrumentais. Conforme observa o Entrevistado 6
145
Logo que saiu nós tínhamos toda uma parte de articulação, isso se dava mais
com os dois colegas que trabalhavam lá no desenvolvimento regional, que
trabalhavam mais articulados ao PROESDE. E algumas questões de trabalho
burocrático ficavam na DAEX. Por exemplo, o edital era construído pelo
Apoio a Extensão mas sempre coletivamente. O sorteio também foi feito
coletivamente. Depois, diante disso, o programa fez propriamente. Mas toda
a lógica do dia-a-dia mesmo de programa, de gerar lista de presença, de
professores, de colocar tudo no sistema da SED que é um trabalho muito chato
de fazer, tudo isso ficou na DAEX. Então digamos assim os outros ficavam
para lá, se é que me entende. (ENTREVISTADO 6).
[…] ele [o PROESDE] não pode ser uma condição só de bolsa, o aluno precisa
visualizar a importância dele como uma forma de ação paralela. Eu acho que
no começo tinha isso, mas eu penso que se perdeu um pouco, mas a
universidade tem a sua responsabilidade de como ela trabalhou isso dentro da
política de extensão de uma forma geral. Eu penso que não foi trabalhado da
maneira como deveria, principalmente nas áreas para além das ciências
humanas. (ENTREVISTADO 5).
Uma vez recepcionado pelo NPP e NPDR, e já no decorrer da primeira edição, seria natural
situar o programa na área de concentração do próprio PPGDR, qual seja “Desenvolvimento
Regional Sustentável”.
A trajetória de admissão do desenvolvimento sustentável como estratégia mundial é longa
e remonta à criação de organismos internacionais nos períodos pós-guerras da primeira metade
do século XX. Em um contexto de globalização emergente e de idealização da paz mundial,
nasce a Organização das Nações Unidas (ONU) como instituição interestatal, em 1945, tendo
como instrumento a Carta das Nações, assinada por 51 países representantes, dentre os quais o
146
Brasil figurava (FAUSTINO, 2018). O Brasil, aliás, teve papel preponderante nas discussões
que desembocam no Relatório de Brundtland (CMMAD, 1987). A importância do país no
cenário mundial das discussões relativas aos chamados limites do desenvolvimento vai
aumentando ao longo dos anos, principalmente após a Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente Desenvolvimento, chamada de Rio-92, Eco-92 ou Cúpula da Terra, realizada
no Brasil no ano de 1992.
Assim, a primeira grande agenda de desenvolvimento sustentável foi lançada justamente
na Rio-92. Foi denominada Agenda 21, com 40 capítulos que visavam sintetizar as demandas
prementes do momento histórico que se vivia globalmente, principalmente no que tangia à
inserção de demandas das dimensões ambiental e social nos debates sobre os rumos do
desenvolvimento em nível mundial. A referida agenda continha, ainda, objetivos e orientações
para o alcance do desenvolvimento sustentável.
É paradoxal que a agenda tenha sido construída e conquistado a simpatia dos países
membros da ONU em pleno contexto de avanço neoliberal dos anos da década de 1990. Mas o
fato é que a agenda demonstrava a preocupação com o financiamento do desenvolvimento
sustentável em países considerados menos desenvolvidos e com a instituição de processos
participativos para a construção de soluções com amplo ancoramento nas realidades locais e
regionais, em conexão com a realidade global (MANTOVANELI JÚNIOR e HASKEL, 2007).
Com os aprendizados desta agenda e incluindo novas demandas da Sociedade Civil, como
as questões de gênero, por exemplo, é criada no de 2000 e no âmbito da Declaração do Milênio,
um conjunto com oito objetivos que deveriam ser atingidos até 2015, com foco em acabar com
a pobreza no mundo. Trata-se dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM),
acompanhados de um conjunto de 21 metas, sendo que a criação de indicadores é dependente
de um processo de enraizamento de tais metas, alavancado pelos poderes públicos nacionais e
municipais. Os ODM acabaram por representar um avanço no sentido de contribuir para ações
práticas e mensuráveis, diferentemente das trajetórias mais declaratórias e comuns das esferas
diplomáticas (COIMBRA NETO; MANTOVANELI JÚNIOR; SILVA, 2015).
Os ODM ingressaram com força política no Brasil, no contexto de um período de expansão
de investimentos em políticas sociais, de modo que algumas das metas acabaram sendo mais
ousadas dos que as originais propostas pela ONU. Com um conjunto de fatores favoráveis como
a ampla mobilização de estados e municípios, e a liderança da esfera pública federal com
incentivos de controle de indicadores para o alcance das metas e, ainda, com significativa
147
Já a transição dos ODM para os ODS ocorreram de forma um pouco diferente da construção
da Declaração do Milênio. Em âmbito mundial, os ODS já tiveram um espaço maior de
discussões que foram travadas em conferências realizadas desde 2012, na Rio+20, até 2015,
ocasião em que a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável foi aprovada e instituiu os
ODS. O Brasil, pelos resultados alcançados anteriormente nos ODM, teve novamente certo
protagonismo. Desta vez, estabeleceu-se dezessete objetivos e 169 metas. O foco se ampliou,
sobretudo com a cobrança maior da participação de países desenvolvidos no financiamento de
20
Ver SOUTO-MAIOR, 2012.
148
ao longo do período de 2009 a 2019, contudo, uma avaliação geral detecta que ele é decrescente,
o que foge das expectativas iniciais acerca do programa, conforme apresentado no Gráfico 10.
Este declínio pode estar relacionado à importância que o governo do estado e a própria
SED atribuíram ao programa ao longo do período que aqui se denomina declínio, em função da
redução de vagas, e consequentemente, da redução de recursos disponibilizados pela SED ao
PROESDE / Desenvolvimento FURB, mas isto é algo que configura uma hipótese que não pode
ser comprovada na presente pesquisa.
Por outro lado, é possível identificar dois momentos, ou mais especificamente, dois
regramentos lançados pela SED que acarretaram a distribuição de menores números de vagas e
recursos para o PROESDE / Desenvolvimento FURB, em relação à primeira edição. Em
primeiro lugar e como já mencionado, em 2015 a SED cria o PROESDE / Licenciatura, por
meio da Portaria 19/2015, que não traz nenhuma resolução sobre a continuidade ou
descontinuidade do PROESDE com seus objetivos originais. Para a FURB, trata-se de um
espaço de incertezas quanto às perspectivas do PROESDE em sua relação com o PPGDR. E de
fato, o PROESDE / Licenciatura é logo abrigado na Pró-Reitoria de Ensino da FURB e no
Centro de Ciências da Educação (CCE), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE), praticamente anulando o espectro de ação do PPGDR naquele momento. O
Entrevistado 4 faz a retrospectiva deste momento:
150
E vai além, pois analisa que tecnicamente vincular o desenvolvimento regional a uma área
específica solapa o próprio desenvolvimento regional enquanto modelo multidimensional.
o desenvolvimento regional, ele é o articulador de vários saberes, porque na
medida em que a gente começa a fragmentar e mudar para áreas diferentes da
Universidade, a gente continua fazendo mais do mesmo. Ora, se eu estou
falando que eu quero envolvimento diferente, que eu espero um
desenvolvimento diferente eu não estou dizendo que eu vou basear o
desenvolvimento na sociologia ou em outras atividades. O que eu estou
dizendo é que eu tenho desenvolvimento regional, que ele tem que gerar
recurso, que ele tem que gerar formação, que ele tem que gerar atividade
econômica, mas ele tem que gerar a inclusão, ele tem que gerar a diminuição
da desigualdade social e tem que gerar sustentabilidade ambiental.
(ENTREVISTADO 4)
O Entrevistado 3 também dá a tônica desse período que denomina de “vácuo”, por não
conseguir identificar as perspectivas futuras do programa diretamente relacionado à temática
do desenvolvimento regional:
[…] a gente foi inúmeras vezes a Florianópolis, na secretaria de educação. Até
no momento em que estava cortado o próprio PROESDE, a gente foi pra lá,
pra tentar manter o programa num futuro próximo. E isso o próprio […] diretor
de educação superior na secretaria de educação reconheceu a presença da
FURB, naquele momento em que tava um vácuo no PROESDE, na fala dele
em alguns eventos. (ENTREVISTADO 3).
151
Ao longo do tempo nós fomos perdendo fôlego. Fôlego não, nós nunca
perdemos fôlego, nós fomos perdendo, digamos […] a capacidade de
demonstrar que nós damos conta de outras coisas. Mas isso não dependia só
de nós… Os fatores internos e externos levaram a que, por exemplo, a gente
tivesse uma alternativa no uso desses recursos, que levou a outra dimensão
que é da licenciatura. […] Isso aí, evidentemente, levou a que
progressivamente a gente fosse perdendo recursos. Quero dizer quem já tinha
é… centenas de alunos por ano e de repente tem que lutar para poder viabilizar
algo como duas dezenas de… e ainda assim com muita dificuldade, tendo que
negociar o tempo todo. (ENTREVISTADO 1).
152
Ainda, dados extraídos por observação participante e que se referem ao período de 2017 e
2019, dão conta da existência de um esforço de criação de estratégias de interlocução entre a
equipe de coordenação do PROESDE / Desenvolvimento FURB e o corpo administrativo da
SED para assegurar a existência do programa e uma adequada alocação de recursos. Esse
esforço envolvia ao mesmo tempo a tentativa de valorização e explicitação da contribuição do
programa para o desenvolvimento regional, para o estudo do desenvolvimento regional e para
a formação dos estudantes de graduação.
No período especificado houve, pelo menos, oito idas da equipe de coordenação até a SED,
duas delas para participar das reuniões do Comitê Gestor, e as demais para participar das
reuniões de coordenação que a SED realizava para informar os encaminhamentos definidos
153
inclusão da Extensão dentre suas funções. Ainda além, em muitos casos a extensão tem
característica de aplicação de conhecimento gerado dentro da universidade na sociedade,
considerando a instituição como se estivesse situada à parte dessa sociedade a qual ela deposita
o conhecimento, quando a extensão poderia ser ela mesma instrumento da construção do
conhecimento junto com os demais setores da sociedade.
Desta forma, quando o PROESDE / Desenvolvimento FURB é acomodado no PPGDR,
sua coordenação passa a integrar os grupos de pesquisa denominados Núcleo de Políticas
Públicas (NPP) e Núcleo de Pesquisas em Desenvolvimento Regional (NPDR). Tais grupos
possuem, em seu rol histórico de atividades, estudos com consistentes problematizações acerca
do papel da universidade na sociedade e uma defesa pelo rompimento da “Torre de Marfim”,
ambos argumentos que resultaram em uma série de trabalhos de articulação e intervenção
social, além da publicação de artigos com esta defesa ao longo dos últimos anos. Neste
contexto, o próprio PROESDE / Desenvolvimento FURB se tornaria um laboratório avançado
de uma metodologia inovadora21, denominada educação tutorial. Conforme afirma o
Entrevistado 1, quando estimulado a falar sobre a educação tutorial do programa,
aí tem uma grande inovação, porque talvez ninguém na FURB, eu acho que
em nível de Santa Catarina, tinha uma ou outra iniciativa, mas acho que na
FURB ninguém teria condições de fazer o que nós fizemos. Em outras
palavras, nós tínhamos por trás de toda a iniciativa do PROESDE doutores de
um Programa de Pós-Graduação muito bem avaliado pela CAPES. E nós
vamos mobilizar os nossos orientandos, inicialmente de mestrado, lá nos
primórdios, e depois de doutorado também, [...] e nós vamos mobilizar esses
alunos de mestrado e doutorado para fazer com que aconteça esse programa
na realidade. Quer dizer, eles vão lecionar com a nossa supervisão, a nossa
tutoria, então a gente vai estar acompanhando tudo o que se passa. E,
evidentemente, esses alunos tão bem preparados porque eles tiveram aulas em
nível de pós-graduação. Então isso, eu entendo que é uma das grandes
inovações. Ninguém na FURB teria condições de fazer o que nós fizemos.
21
Embora a concepção de educação tutorial não seja nova, sua aplicação ainda está limitada a contextos
específicos e não como metodologia norteadora dos processos pedagógicas nas universidades brasileiras. As
experiência mais conhecidas são realizadas no contexto do Programa de Educação Tutorial (PET), instituído pela
Lei nº 11.180, de 23 de setembro de 2005 (BRASIL, 2005). A FURB possui um programa dentro dessa política
pública federal, denominado PET Biologia.
156
Embora não apareça uma definição clara nos documentos internos do programa, é possível
extrair uma série de elementos que balizam a noção de educação tutorial com base nas duas
experiências relatadas acima. De modo que os projetos inseridos no Sistema Integrado de
Pesquisa e Extensão (SIPEX) da universidade informam com uma passagem simples, entre
parênteses e após o termo, que a educação tutorial está referida ao tripé universitário do ensino,
pesquisa e extensão. O último projeto inserido, no período de análise proposto pelo estudo, faz
uma pequena menção ao PET federal, e dá conta de que o processo de educação tutorial do
PROESDE / Desenvolvimento FURB congrega
[…] um curso para graduandos, espaços de curricularização da graduação na
extensão, espaços de formação docente tutorial para mestrandos e
doutorandos do PPGDR e seus respectivos grupos de pesquisa oportunizando
a construção de propostas de investigação e/ou mudança social junto a
estruturas da sociedade que serão estudadas, visitadas e conhecidas pelos
participantes.
A educação tutorial começou a ser pensada como metodologia para o programa desde a
primeira edição. No entanto, o primeiro esforço de implementação da metodologia foi na
segunda edição, em 2013. Em 2014 o termo já aparecia nos projetos inseridos no SIPEX. No
caminho para chegar até esses registros, que foram impulsionados pelo setor de Extensão da
universidade, existiu um processo dialógico, como é característica do programa em todas as
esferas de atuação.
O Entrevistado 10 relata que durante o percurso da primeira turma, e ainda esperançosos
sobre a manutenção de recursos em níveis altos nas próximas edições, houve avaliações do
processo pedagógico que havia sido levado a cabo. Algumas conclusões foram no sentido de
que os TCCs deveriam ter alguma entrega para a sociedade que, no caso, foram instituídos
como projetos de intervenção. Já o Entrevistado 7 relata que a experiência na disciplina de
Indicadores de Desenvolvimento, onde se inseriu os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM), que logo viria a se configurar como eixo transversal do programa, foi fundamental para
pensar uma metodologia que valorizasse as práticas. Ainda, o Entrevistado 4 observa que havia
o desejo de integrar doutorado, mestrado e futuramente uma graduação em desenvolvimento
regional em um só campo de formação. E que neste sentido, a educação tutorial como projeto
futuro, poderia integrar toda a formação em desenvolvimento regional na FURB.
Na apresentação do Regulamento a política pública PROESDE / Desenvolvimento na
FURB assume o formato de projeto de extensão, que
Para além do campo intencional, o regulamento traz um roteiro processual, não linear e não
padronizado, para a atuação de toda a equipe envolvida com o programa, que é provavelmente
um dos pontos altos de toda a construção em torno da política pública PROESDE.
Deus nos acuda!”, segundo uma de suas entrevistadas. Desta forma, o tema era frequentemente
desencorajado com a justificativa de manter o Movimento Nós Podemos! apartidário.
Os elementos históricos que dão forma às atividades propriamente ditas são de suma
importância para a compreensão das intencionalidades e daquilo que se idealiza como resultado
dessas atividades. E Ramos (1996), como justificativa para sua propositura da Redução
Sociológica como método22, adverte que o transplante acrítico de teorias e modelos estrangeiros
comumente transplanta, na mesma medida, racionalidades descontextualizadas das realidades
onde se tenta aplicá-las. Nesse sentido, é questionável também as estratégias administrativas de
cunho instrumental, quando utilizadas de forma apartada de análises e ações de cunho
substantivos (atitude parentética), portanto políticos. Já no que tange à produção do
conhecimento, atividade típica das IES que, por sua vez, são o lócus de implementação do
PROESDE, o autor clama pela construção de uma nova ciência social, pautada em uma forma
comprometida de análise da realidade.
Como já mencionado, a IA foi desenvolvida em uma universidade dos Estados Unidos da
América, na década de 1980, no bojo das descobertas relacionadas à psicologia positiva e dos
estudos organizacionais no mesmo país. Na obra “A Nova Ciência das Organizações”, Ramos
(1989) explicita como essa nova psicologia, por ele denominada de Síndrome
Comportamentalista, além de outros elementos, opera no cerne da sociedade e solapa as
capacidades de atitude parentética e da atividade política. Para sistematizar a afirmação, o autor
propõe dois distintos conceitos, a saber: 1) o comportamento e 2) a ação. O comportamento está
imbrincado na nova psicologia, e é a
uma forma de conduta que se baseia na racionalidade funcional, ou na
estimativa utilitária das consequências, uma capacidade - como assinalou
corretamente Hobbes – que o ser humano tem em comum com os outros
animais. Sua categoria mais importante é a conveniência. Em consequência, o
comportamento é desprovido de conteúdo ético de validade geral. É um tipo
de conduta mecanomórfica, ditada por imperativos exteriores. Pode ser
avaliado como funcional ou efetivo e inclui-se, completamente, num mundo
determinado apenas por causas eficientes. (RAMOS, 1989).
22
Cabe relembrar que a Redução Sociológica proposta por Alberto Guerreiro Ramos é composta de três
sentidos: 1) como um método de depuração de teorias e modelos estrangeiros; 2) como uma atitude parentética,
capaz de realizar análises substantivas nos processos de tomada de decisão e; 3) como uma nova ciência social,
incrustrada nas diferentes realidades sociais onde opera (RAMOS, 1996).
161
A ação valoriza o próprio processo dialógico e não apenas o resultado. Ou seja, não reduz
a trajetória de construção das estratégias e planos de ação de desenvolvimento a um esforço
instrumental de produção de resultados, embora a instrumentalidade seja também necessária ao
processo. E é no esforço dialógico que se problematizam os resultados que se almejam ou que
estão sendo alcançados, em um percurso cujo valor está mais assentado na própria construção
da consciência crítica que balizará a atitude individual futura em torno de problemas coletivos.
O autor ainda adverte que a Síndrome Comportamentalista está associada à um esforço para
modelar a sociedade aos critérios de economicidade, o que suplanta a noção de
multidimensionalidade do desenvolvimento, tão cara ao conceito de desenvolvimento
sustentável.
Na esteira da distinção entre comportamento e ação, é válido retomar o conceito de atitude
parentética em contraposição ao do comportamento organizacional, proposto sob as
nomenclaturas Homem Parentético e Homem Organização (RAMOS, 1963). O Quadro 8
elabora um comparativo entre as duas formas de conduta, sendo a atitude parentética a almejada
para a proposição da abordagem multidimensional do desenvolvimento e, portanto,
componente também desejável sob o ponto de vista do sistema educacional para a formação da
consciência crítica. Aqui vale uma observação: os modelos de conduta propostos pelo autor tem
cunho individual, visto que a aquisição da consciência crítica é também um processo individual,
contudo, circunscrito na realidade que cerca tais indivíduos, sendo que os sistemas educacionais
podem facilitar processos cognitivos para um ou para outro espectro.
162
A conscientização, por sua vez e há que se fazer essa ressalva, não é qualidade que possa
ou deva ser ensinada ou passada de um indivíduo ao outro. O que Freire (1967) pretendia com
os Círculos de Cultura era um lugar que desse as condições de liberdade de expressão linguística
e cultural em ambiente colaborativo. Não mais do que isso, pois que, uma vez meramente
suprindo os educandos de informações educativas, o que se coloca em curso é um processo
dogmático que é a justa contraposição da conscientização – “em lugar de escola, que nos parece
um conceito, entre nós, demasiado carregado de passividade, em face de nossa própria formação
(mesmo quando se lhe dá o atributo de ativa), contradizendo a dinâmica fase de transição,
lançamos o Círculo de Cultura. Em lugar de professor, com tradições fortemente “doadoras”, o
Coordenador de Debates. Em lugar de aula discursiva, o diálogo. Em lugar de aluno, com
tradições passivas, o participante de grupo. Em lugar dos “pontos” e de programas alienados,
programação compacta, “reduzida” e “codificada” em unidades de aprendizado.” (FREIRE,
1967, p. 102-103).
O método proposto por Paulo Freire pressupõe uma relação única que cada indivíduo
constrói com o mundo que o cerca: “existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no
mundo. É estar nele e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa
167
do existente com o mundo objetivo, contida na própria etimologia da palavra, que incorpora ao
existir o sentido de criticidade que não há no simples viver. Transcender, discernir, dialogar
(comunicar e participar) são exclusividades do existir. O existir é individual, contudo só se
realiza em relação com outros existires (FREIRE, 1967, p. 40).”
Como se pode perceber, o método proposto por Paulo Freire é fruto de uma reflexão que
valoriza os espaços e processos educativos como fomentadores da formação da consciência
crítica. Há menor preocupação, em relação à metodologia IA, com os fatores instrumentais
como modelos rígidos, pois o que está em questão é a própria condição da ação política,
motivação pela qual somente há sentido em uma educação problematizadora e crítica.
A própria UNESCO, em seu documento orientador de Educação para o Desenvolvimento
Sustentável propõe uma educação que potencialize as competências de pensamento crítico,
caracterizada pela aquisição de “habilidades para refletir e questionar normas, práticas, opiniões
e valores, tomando posição frente às premissas do desenvolvimento sustentável.” (UNESCO,
2017, p. 14).
Neste sentido, o Entrevistado 1 observa que
Ele [o estudante] tem uma pequena formação crítica. A formação crítica
significa questionar também o que está sendo feito. Não significa que o
funcionário público municipal e o cara da SDR de repente vá contra as
decisões que foram tomadas, mas que ele tenha capacidade de fazer um
questionamento do que está sendo feito e avaliar se o que vai ser
implementado realmente beneficia uma comunidade, se a comunidade visada
tá sendo efetivamente beneficiada. Então acho que aí tem um detalhe a mais,
quer dizer, essa percepção crítica da realidade que eu acho que o PROESDE
oferece ao estudante que frequenta o seu curso. (ENTREVISTADO 1)
Assim, as duas inspirações para os Círculos Tutoriais, quais sejam, os Círculos de Diálogo
do Movimento Nós Podemos! Paraná e a pedagogia freireana podem parecer paradoxos.
Contudo, uma sociedade que está em trânsito entre diferentes paradigmas pode não conseguir
romper com a lógica instrumental na velocidade desejada de implementação de um novo
paradigma. Destarte, nunca é demais rememorar que não há intenção de aniquilar a
racionalidade instrumental na execução de estratégias de desenvolvimento. Antes, a intenção é
de um equilíbrio entre o uso das racionalidades instrumental e substantiva, cada qual com sua
importância e espaço de utilização.
A opção pelo não transplante acrítico da metodologia de Círculos de Diálogo para o
PROESDE / Desenvolvimento FURB, mas pela sua contribuição em conjunto com as propostas
de Paulo Freire, sugere um exercício intencional de redução sociológica. Por um lado, os ODM
passam a ser inseridos no PROESDE / Desenvolvimento FURB já na segunda edição, em 2013,
168
e seria fácil depreender que a metodologia utilizada no Movimento Nós Podemos! fosse
também, pelo menos, a principal inspiração para os Círculos Tutoriais do programa na FURB.
Além do que, nas reuniões dos Círculos Tutoriais de Planejamento e Avaliação, a temática é
recorrente como exemplificação. Contudo, principalmente o NPP, tem um histórico de estudos
e práticas que é balizado pela complementaridade de premissas entre as teorias de Guerreiro
Ramos e Freire, sobretudo no que tange à redução sociológica e a formação da consciência
crítica.
No Proesde o maior desafio inicial talvez seja entender essa lógica, você entra
no Proesde e não é nada como na graduação, o professor sai da frente do
quadro e participa de todos os grupos, tem uma proximidade maior, o
relacionamento é mais estreito. Então você tem uma série de coisas que
favorecem essa educação tutorial, que para mim o mais positivo de tudo isso
é essa aproximação. Você deixa horizontal a sala de aula, independente de que
curso você é, se você é estudante ou tutor, eu vejo o Proesde como um exemplo
de educação horizontal. É claro que isso esbarra também na formação de
muitos professores, eles também tem que passar por uma catarse, que é difícil.
169
Mas como no Proesde são mais estudantes é mais fácil, mesmo que você tenha
uma formação mais tradicional, no começo você já consegue tirar.
(ENTREVISTADO 7).
23
Houve apenas a exceção da edição de 2016, quando foram selecionados estudantes de graduação de apenas
dois cursos de áreas correlatas, a saber: Ciências Sociais e do Serviço Social.
171
Quadro 9 – Distribuição dos cursos de graduação de origem dos estudantes do PROESDE / Desenvolvimento FURB, no período de 2014 a 2019
Edição 2014 Edição 2015 Edição 2016 Edição 2017 Edição 2018 Edição 2019 - T. Re g. Edição 2019 - T. Esp.
Serviço Social Administração Ciências Sociais Administração Arquitetura e Urbanismo Artes Visuais Arquitetura e Urbanismo
Comunicação Social Arquitetura e Urbanismo Serviço Social Arquitetura e Urbanismo Artes Visuais Ciências Biológicas Ciências Biológicas
Educação Física Ciências Contábeis Ciências da Computação Ciências Contábeis Ciências Contábeis Ciências da Computação
Engenharia de Produção Ciências Econômicas Ciências Contábeis Design Direito Ciências Econômicas
Psicologia Comunicação Social Ciências Econômicas Enfermagem Educação Física Direito
T ecnologia em Marketing Direito Comunicação Social Engenharia de Produção Engenharia Elétrica Educação Física
Ciências Contábeis Educação Física Educação Física Fisioterapia Engenharia Química Engenharia Civil
Ciências Econômicas Engenharia Civil Fisioterapia Jornalismo Jornalismo Engenharia Florestal
Engenharia de T elecom. Engenharia da Produção Jornalismo Psicologia Psicologia Nutrição
Engenharia Florestal Engenharia Elétrica Música Publicidade e Propaganda Publicidade e Propaganda Psicologia
Moda Engenharia Florestal Psicologia Serviço social Serviço Social Publicidade e Propaganda
Nutrição Engenharia Química Publicidade e Propaganda T ec. Comércio Exterior Serviço Social
Jornalismo Serviço Social
Marketing T eatro
Moda T urismo
Nutrição
Psicologia
Serviço Social
Sistemas da Informação
Fonte: De 2014 a 2017 - Sistema de Informações da FURB; de 2018 a 2019 – Documentos internos do PROESDE / Desenvolvimento FURB
172
Não se pode estabelecer uma causalidade irrefutável da maior aderência das Ciências
Sociais Aplicadas ao programa. Pode-se, contudo, observar que: 1) a política pública
PROESDE não é percebida como política de função distributiva. Apesar disso, os relatos
ouvidos durante as edições de 2017 a 2019, dão conta de que a bolsa de estudos é o principal
fator de atração para que os estudantes se inscrevam no PROESDE; 2) o próprio campo do
173
desenvolvimento regional está incluído nas Ciências Sociais Aplicadas, o que pode ter feito
com que estudantes postulantes enxergassem melhor a contribuição do PROESDE para as suas
formações. Fato é que, na prática, as IES em conjunto com as SDRs e ADRs determinavam os
cursos que fariam parte das edições do PROESDE com base em um conjunto de critérios
externos (condicionantes 1 e 2), mas no caso da FURB, também com base impulsionamento da
interdisciplinaridade para a educação tutorial.
Neste sentido, houve uma experiência de edição que integrou somente dois cursos de
graduação, em 2016, e que acabou servindo de parâmetro negativo para o funcionamento do
curso, justamente pela perda do que seria considerado um dos principais fatores, a
interdisciplinaridade. Segundo o entrevistado 3
Você já sente, […quando] tínhamos dois cursos envolvidos, que era a ciências
sociais e serviço social, praticamente todos de serviço social e dois alunos de
ciências sociais. O que aconteceu, é que você ficava preso a um tipo de visão
somente, claro que contribuiu bastante, as ciências sociais, por exemplo, tem
um leque muito aberto, mas o interessante é você ter opinião contrária, e não
um coro pra dizer sim e bater palma.
7 “Eu aprendi bastante justamente por causa disso, entender a interdisciplinaridade, tentar bolar uma aula onde você consiga envolver todo mundo.
Pois tinha engenharia, administração, direito, fisioterapia, arquitetura... Então você criar um tema onde você consegue costurar tudo isso foi um
grande desafio, que contribuiu para esse desenvolvimento como profissional. […] Quando eu iniciei o maior desafio era você tentar costurar uma
fala, fazer uma fala que atinge a todos os cursos. Porque eu, né, como formado em Ciências Sociais, falar para os estudantes de ciências sociais,
não que seja fácil mas é menos complexo, porque temos o mesmo linguajar, as mesmas reflexões, não as mesmas opiniões mas as mesmas
reflexões. […] Questões teóricas tu tem uma certa vivência. […] Agora quando você chega lá, e transformar isso numa informação que eles
consigam perceber que é importante e tal aí então a questão. Porque imagina você vai falar com uma pessoa de arquitetura ou engenharia, de
vários sei lá chegava até 10,12 cursos diferentes. Então como é que tu cria uma coisa assim? [...] O maior desafio foi tornar isso para eles palpável
e tátil, pra não ficar uma coisa muito fora, e a gente teve participação extremamente importantes. [...] Porque infelizmente tem aquele rótulo né
de todos serem marxistas, e entendendo o marxismo como uma coisa só. Até porque na mídia se pinta tudo isso também, é bem complicado. Aí
quando você chega com indicadores do desenvolvimento, quer falar sobre avaliação de políticas públicas, então o nome política é bem
complicado. […] No PROESDE a gente tenta misturar todas as áreas, sempre buscando a realidade de Blumenau, para eles entenderem um pouco
isso., entenderem a teoria do desenvolvimento regional. Nós temos disciplinas que falam sobre emprego e geração de renda, que falam sobre
trabalho em rede, cooperativismo, temos trabalho com indicadores, com história e geografia, planejamento estratégico, diversas áreas. Os alunos
não tem trabalho individual, uma coisa que a gente trabalha efetivamente é uma diretriz que é o trabalho em grupo.”
8 “As temáticas trazidas pelos estudantes, que na sua maioria, são de áreas distintas, porém, com olhar pela matriz do Desenvolvimento Regional,
é elemento chave para contribuir com a formação. […] Vale destacar a preocupação dos estudantes e professores com problemas que de fato
podem ser resolvidos, ou pelo menos problematizados, com conhecimento multidisciplinar e que impactam a/as comunidade/es envolvidas.”
9 “A principal contribuição foi ao agregar conhecimentos mais profundos devido à multidisciplinaridade. Na época havia alunos de diferentes
cursos, com diferentes visões, trabalhando juntos em projetos. As discussões faziam-se muito ricas e as ideias nas elaborações dos projetos
complementavam-se por diferentes perspectivas.”
10 ‘Eu acho que um dos principais pontos positivos do Proesde é ele ter essa riqueza de você ter alunos de vários cursos da graduação. E o mestrado
e o doutorado em desenvolvimento regional também tinham um pouco dessa característica meio que multidisciplinar. Foi muito interessante eu
ter tido essa oportunidade de externalizar o que eu já vinha tendo no mestrado e doutorado. [...] Era muito interessante você conversar sobre
desenvolvimento regional com uma aluna da moda, que no primeiro momento a gente passa despercebido, o que será que ela pensa em relação à
economia, ou o pessoal da farmácia, que ideia será que eles tem em relação a economia regional, ou ao desenvolvimento regional. […] Esse
contato que eu tive, eu lembro que as primeiras aulas foram impactantes, por outro lado tinha também o desafio de você não aprofundar muito a
discussão, porque como eu vou aprofundar muito uma discussão de economia para uma aluna de moda? A gente tinha que tomar esse cuidado,
ter muito jogo de cintura, porque não podíamos discutir os temas de forma muito superficial e irresponsável, mas também não dava para
aprofundar muito a discussão se não eles ficavam completamente perdidos […] imagina a riqueza de você pegar uma aluna de moda, por exemplo,
ou um aluno de farmácia, e fazer com que eles entendam a importância do desenvolvimento sustentável, ou de um consumo responsável. Puxa,
faz toda a diferença! Para muitos desses alunos eles provavelmente nunca tiveram contato com isso e nunca vão ter na graduação, com essas
discussões. Então a riqueza do programa está aí, em você dar oportunidade a esses caras de eles discutirem temas relacionados ao meio ambiente
e a sustentabilidade que eles não discutiriam no cursos deles.
Fonte: Entrevistas realizadas em 2017, no contexto de iniciação científica (DE PAULA; MANTOVANELI JÚNIOR, PASCO, 2018)
177
RAMOS (1983) advoga em favor da criação de uma nova ciência social, imbrincada e
comprometida com as distintas realidades socioespaciais de análise, com profunda ancoragem
histórica e em consonância com a promoção de um desenvolvimento baseado na liberdade do
ser humano. Para tanto, sugere a criação de uma nova delimitação dos sistemas sociais, onde
os recursos seriam tratados sob uma ótica integradora, e o potencial humano expandido em
direção à vida humana associada. Do conjunto de sua obra se pode depreender uma
aproximação do que mais tarde viriam a ser as estratégias do ecodesenvolvimento (SACHS,
1992), ou do desenvolvimento a escala humana (MAX-NEEF, 2005), ou ainda do
178
Quadro 11 - Interações com comunidade e especialistas no âmbito do PROESDE / Desenvolvimento FURB – 2017 a 2009
Ano Interações
2017 Foram realizados 2 seminários regionais com as palestras de especialistas: “Indicação Geográfica e o Desenvolvimento Regional”; “Cultura
Coletiva e o Case Greenplace”; “A Territorialização do Envelhecimento Sustentável: da política do envelhecimento ao envelhecimento bem-
sucedido”; “Subida do nível do Mar e os Impactos no Desenvolvimento do Setor Litoral Centro Norte de Santa Catarina”;
Participação do Seminário Estadual do PROESDE (UNOESC Joaçaba).
Apresentação dos TCCs para a comunidade - Seminário Regional final (Blumenau) com presença de Diretor do CCHC, Gerente Regional de
Educação (SED/SDR), Coordenadora do Movimento Nós Podemos! Blumenau, coordenadores, tutores, monitores-tutores e ex-aluno do
PROESDE.
Não houve saída a campo em função de restrições orçamentárias;
2018 Foram realizados 2 seminários regionais, ambos envolvendo saídas a campo: 1) saída a campo para a Fundação Cultural de Blumenau (FCB),
Museu de Hábitos e Costumes, Museu Colonial de Blumenau, com as seguintes atividades adicionais: “Fundação Cultural de Blumenau e seus
espaços de memória” e Roda de Conversa sobre “Histórico, Trajetória, Apresentação de Dança e Integração”, Roda de Conversa sobre o
Movimento Nós Podemos! em Blumenau; 2) saída a campo para a Greenplace Park, com as palestras “Desenvolvimento Regional: suas
profissões e a mudança de paradigma social”, “Governança e Territorialidade no ecodesenvolvimento turístico regional: o caso da Oktoberfest
Blumenau/SC”, “Ecocidadania: a Greenplace e seu trabalho em rede”.
Participação do Seminário Estadual do PROESDE (UNISUL Tubarão).
Apresentação dos TCCs para a comunidade - Seminário Regional final (Blumenau) com presença do Coordenador do PPGDR, coordenadores,
tutores, monitores-tutores e ex-aluno do PROESDE.
2019 Saída a campo Joinville: “Caminhão ODS”;
Saída a campo IPEVI - Instituto de Permacultura do Vale do Itajaí;
Foram realizados 2 seminários regionais: 1) nas dependências da FURB com Roda de Conversa com a Coordenadora Regional de Educação e
Diretor da EEB Max Tavares do Amaral, sobre a implementação da BNCC no estado de Santa Catarina; saída a campo à Fundação Cultural de
Blumenau (FCB) e visita guiada aos museus, com palestra sobre “Fundação Cultural e seus espaços de memória”; 2) nas dependências da
FURB em evento conjunto com a AMMVI e EPAGRI – Seminário de Apicultura e Meliponicultura, com a presença de diversas lideranças
regionais inclusive Prefeito de Blumenau;
Palestras e rodas de conversa diversas: “Inovação e Tecnologias Sociais” com membro do Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) da FURB,
“Ecossocioeconomia e tecnologias sociais” com especialista, “Leitura Imanente” com Prof. da UFAL;
Oficina de Leitura Imanente com professor da UFAL;
Interação com alunos de graduação da disciplina de graduação de Desafios Sociais Contemporâneos; “ferramentas tecnológicas e o LIFE -
Laboratório Interdisciplinar de Formação de Educadores”, Implementação dos ODS em Blumenau com Secretaria de Gestão Governamental de
Blumenau (PMB)
Participação no “Interação FURB” - Oficina “Guia do preguiçoso para salvar o mundo #eufacoparte” - atividade de participação voluntária;
Saída a campo à Aldeia Tekoa Vy'a, em Major Gercino/SC;
180
Para o período anterior (2009 a 2016) não foi possível acessar os relatórios finais do
programa, visto que não houve inserção no SIPEX e tampouco acompanhamento da
pesquisadora. Contudo, as entrevistas dão conta de que eram bastante valorizadas as interações
com especialistas e saídas a campo (Tutorias Vivenciais), com destaque para as visitas ao Morro
da Garuva e às propriedades que integravam o Projeto Kochkaese.
Além destas práticas, desde a terceira edição, os TCCs (que são o principal produto do
programa) tiveram o formato de projetos de intervenção, orientados a movimentar
positivamente os indicadores ODM e, posteriormente, ODS. Tais projetos de intervenção, por
regulamento e orientação geral de boas práticas de participação, precisavam ser calcados em
diagnósticos realizados inicialmente em função dos indicadores de desenvolvimento e
posteriormente em tomada de informações e articulação com segmentos da sociedade. Nesse
contexto, foram levantados 55 TCCs, realizados em grupos, desde 2014, com foco nos
ODM/ODS. Foi ainda identificada a implementação de três desses projetos, por meio de relatos
em entrevistas.
As práticas foram citadas como atividades de destaque no PROESDE / Desenvolvimento
FURB. Dos dez entrevistados, sete fizeram menções positivas com relação às consequências
pedagógicas das atividades práticas. Os demais, envolveram as atividades práticas no contexto
da educação tutorial. O Quadro 12 traz um resumo de trechos de entrevistas que abordaram o
assunto.
182
Quadro 12- Resumo de trechos das entrevistas que abordaram as atividades práticas no PROESDE / Desenvolvimento FURB
Entrevistado 2 “Então pensando dentro na Furb, na medida em que vai vindo as edições vai tendo essa ampliação do entendimento da importância de
algumas características que o Proesde tem como, por exemplo, a interdisciplinaridade e a relação com a comunidade, isso começa a trazer
pro ambiente educacional da Furb a necessidade de vincular os seus cursos com essa realidade pautado no desenvolvimento regional.
[…]Era essa a importância, de que eles nunca tinham pensado no ambiente onde eles vivem, na região dessa forma, nunca tinham pensado
na potencialidade que seus cursos tinham de agir, e o quanto que a universidade ainda tem desafio de trabalhar numa relação mais prática
e mais eficaz com relação com a comunidade. Então uma coisa é nós aprendermos teoricamente aqui e discutirmos aqui ou até fazerem,
práticas mas dentro do ambiente universitário, outra coisa é quando isso sai da universidade e vai para a realidade prática aí com a
comunidade. Os desafios são muito grandes. E eles disseram, pautaram muito isso, o quanto que eles nunca tinham passado. Nós fizemos
uma saída de campo para o Morro da Garuva, aonde as discussões de políticas públicas que eles tinha dentro do campo da experiência
pessoal de vida que eles tiveram olhando para o mundo e a partir da sua construção do que seria uma política pública, e quais eram os
desafios de implementação. Nós fizemos primeiro um debate sobre isso, mais solto, podendo falar, e quando eles foram para a realidade
de uma comunidade, que passa dificuldades, eles viram que discutir acessibilidade não era simplesmente, por exemplo, colocar um ônibus
na frente de uma comunidade pra levar pra uma biblioteca. [...] A gente não tem noção de como é a realidade. E aí as saídas de campo e
essa aproximação que o PROESDE possibilita faz com que tu consiga enxergar coisas que não via. Aí o que você discute teoricamente e
dentro da academia, dentro dos diferentes cursos passa a ter mais eficiência na realidade porque tu estás mais próximo, tu visualizas ela.
Antes tu não vias. E tu escutas [...] Então lá eles tiveram a oportunidade de sentar com as pessoas, tomarem café, conversar e entender que
eles tem que descer 150 escadas sendo uma pessoa de 65 anos para colocar o lixo embaixo [...]. Você tem uma noção multidimensional,
você não vai olhar só o ambiente econômico por exemplo, ou pensar em uma gestão pública de que tinha que ter tal coisa lá dentro. Mas
tu passas a olhar o que é para o ser humano a sua multidimensionalidade, o que é a relação comunitária, o que é importante. E aí você passa
a questionar o que é ser cidadão, o teu olhar fica mais crítico [...].
Entrevistado 3 “Você ouvir e deixar que o aluno fale, você proporcionar, por exemplo, na primeira parte da aula o professor leva o conteúdo, mas depois
o aluno participa como ator. A saída da sala de aula também, uma visitação técnica, a gente fez muitas vezes lá no morro da Garuva, que a
gente vivenciou um dos principais problemas sociais que a cidade, a região talvez, in loco. Não é só um professor que vivenciou e vai lá e
conta como foi, e depois a gente discute pegando um texto que pode ser muito bom, mas não entende o contexto, não é só a fala de alguém,
então esse é o grande diferencial. Essas atividades fora, a gente acha que o aluno não quer participar mas ele quer sim.”
Entrevistado 4 “[O PROESDE] acaba apresentando uma dimensão um pouco diferente do que na época um curso de mestrado e depois do doutorado,
porque o mestrado e doutorado eles trabalham basicamente no entendimento ou objeto de epistemologia, e quando a gente vai ter o contato
com a graduação, no caso com pessoal do Proesde né aí a gente começa a criar uma conexão mais com a prática. Então como aquela teoria
que se estuda em nível de mestrado e doutorado ela cria uma conexão com a realidade, nas saídas a campo com as atividades de seminário,
como com as intervenções, os projetos são desenvolvidos ali. […] como a gente tinha uma zona laboratório no Ribeirão Fresco, que a gente
visitava então vi os problemas daquela comunidade, via como eles se organizavam, aí via tudo que se falava na teoria em termos de
desenvolvimento acontecendo na prática.
183
Entrevistado 5 “Então a gente vinculou muito as ações às questões práticas e também a visualização de projetos viáveis. Todas as disciplinas tinham esse
objetivo e depois os trabalhos finais nesta organização de tutoria foi muito interessante, eu acho que deu essa possibilidade do estudante
pensar inclusive em projetos viáveis. Muitos estudantes construíram projetos que seriam realmente viáveis aos municípios e que eu não sei
até que ponto isso foi aproveitado.”
Entrevistado 6 “Uma questão que eu fico um pouco aquem é a forma de socialização do trabalho. A gente tem sabido a cada evento propriamente, a cada
um dos cursos ele tem que fechar com um trabalho para o desenvolvimento regional. A gente tem pouco retorno disso, a própria
universidade tem pouco retorno. A gente sabe que cada uma dessas agendas elas são divulgadas dentro da própria universidade, mas no
sábado de manhã, as vezes é um seminário só para a aula, para a nota. Certamente tem muita coisa bacana que fica meio esquecida, então
nesse sentido acho que poderia se mostrar um pouco mais pra universidade. Porque, por exemplo, uma bolsa de estudo para o estudante é
exclusivamente bom, mas essa lógica espera uma expectativa pro próprio curso que ela tenha um produto que reverta para o
desenvolvimento da região, acho que isso tem que aparecer mais. […] do que eu me recordo teve talvez um ano que tenha tido um pouco
mais de articulações externas. No sentido de ter articulado algum projeto que foi apresentado para alguma questão que seja importante para
a comunidade. E me recordo também em relação a esse período que eu acompanhei mais de perto, um compromisso que era exigido por
contrato com a SED de promover um seminário sobre o tema, sobre os resultados. E esse seminário circulava, ora era em Blumenau, ora
em outra região e também se é em outra região tu não fica sabendo. As vezes também o porte do evento pode não comportar muitas pessoas,
acho que por isso a gente fica meio a margem para saber desses seminários. Então talvez uma forma de apresentar resultados seja na Mipe,
talvez numa outra roda de apresentações, num momento que não tenha outra questão concorrendo, apresentar o trabalho na universidade
eu acho que é importante.” Quando perguntado sobre “como você enxerga o PROESDE?”: “Eu não enxergo, eu vejo só no site que
aconteceu.”
Entrevistado 7 “E o Proesde traz essa questão pedagógica mais prática, claro que tem um aporte teórico para não ser uma coisa de senso comum. Mas essa
teoria a todo momento é testada na prática, com saída de campo, formação de projeto que é o objetivo maior do Proesde que é a entrega de
um projeto de intervenção para alterar uma determinada realidade. Então eles percebem essa realidade, eles vão lá muitas das vezes, eles
são participantes do processo literalmente. Eles entendem cada parte, é perguntado para eles em todo final de disciplina o que eles acharam,
como eles vira. […] ”
Entrevistado 8 “vale destacar a preocupação dos estudantes e professores com problemas que de fato podem ser resolvidos, ou pelo menos
problematizados, com conhecimento multidisciplinar e que impactam a/as comunidade/es envolvidas.”
Entrevista 10 “A gente procurava desenvolver artigos científicos como trabalhos finais de TCC, e neles a gente tenta instigar os alunos a escolherem
temas que estivessem próximos da realidade local deles, de seus bairros, da cidade que eles moravam, porque nas primeiras turmas tinham
também alunos de várias cidades. Eu sempre falava que eles estavam ganhando muito por ter essa oportunidade, então o que vocês vão dar
para a comunidade? As turmas mais recentes que tinham essa carga horária mais reduzida a gente começou a substituir os artigos científicos
por propostas de intervenção que são trabalhadas até hoje, porque a gente não tinha como orientar artigo científico naquele tempo. [...] Sob
o ponto de vista da inserção do aluno da comunidade, e da inserção da Furb através dos alunos e do curso, foi melhor ainda. Porque qual
era a ideia da proposta de intervenção? Era eles problematizarem alguma coisa próxima à eles... A gente sempre falava, a gente não quer
ninguém aqui discutindo proposta de intervenção para fazer o PIB do Brasil crescer ou pra fazer o dólar ser mais valorizado ou
desvalorizado, ou pra melhorar as exportações... A gente não quer isso, a gente quer discutir problemas da rua de vocês, do bairro de vocês,
184
da cidade de vocês... Era isso que a gente queria, era essa a riqueza. [...]Nós tivemos muitas saídas de campo, mais quando a carga horária
era maior, então eu acho que nisso a Furb está fazendo o papel dela que se relacionar com a comunidade através dos alunos. […] Olhando
para trás com um pouco de saudosismo quando a gente imagina como era o início nossa, mesmo que a gente substituísse os artigos
científicos que a gente cobrava naquela época pelas propostas de intervenção um pouco mais simples, eu fico imaginando o que a gente
poderia ter feito de coisas boas se a gente tivesse aquela carga horária que tínhamos no início. Um dos grandes desafios nossos era como a
gente daria o próximo passo, tínhamos excelentes propostas de intervenção, em toda turma tinha 60% das propostas de intervenção que
saíram de lá, eram propostas que poderiam muito bem serem aplicadas. Mas aí tinha um outro desafio, como a gente viabilizava isso
financeiramente, não tinha dinheiro para isso infelizmente. Até antes de ter… Acho que foi na primeira vez que nós implantamos as
propostas de intervenção como um trabalho final, a gente fez uma reunião de avaliação no final do ano e disse, no ano que vem a gente
precisa dar um passo a frente, vamos continuar com as propostas de intervenção que deram certo. A gente percebeu inclusive que os alunos
se interessaram mais, se envolveram mais, mas a gente tem que aplicar essas propostas. Alguma coisa a gente tem que aplicar. Mas para
isso precisa de recursos, de parceria, precisa de professores a disposição para orientar, precisa de toda uma estrutura. Algumas propostas
de intervenção a gente conseguiu aplicar. Teve pelo menos 2 propostas, uma foi numa escola e agora não sei quais foram os resultados,
mas eu sei que ela foi, ela foi implementada. E uma ficou no âmbito do próprio PPGDR, que foi a construção de um site pro observatório
em desenvolvimento regional que tá em funcionamento até hoje. Então, isso foi uma proposta de intervenção de alunos, que se eu não me
engano eram alunos mais da Comunicação.. enfim, de áreas afins, que pegaram pra eles esse desafio. A gente precisava naquela época
construir um site atraente ou coisa assim para dar visibilidade. Então a gente conseguiu incubar essa discussão dentro do âmbito do PPGDR.
Então nós tivemos pelo menos dias sem absolutamente nenhum tipo de recurso, porque não tínhamos recurso. Mas a gente teve pelo menos
duas propostas de intervenção que a gente pode dizer hoje, não, implementou, deu tudo certo. Mas se não tivéssemos essa restrição de
orçamento que é de ano a ano, que primeiro foi a diminuição da carga horária, depois a diminuição de bolsas, porque as primeiras turmas
com a carga horária menor ainda eram grandes. Eu acho que houve um “retrocesso”, é inevitável que tenha uma perda de gás com a falta
de recursos e com o enxugamento do curso. Se nós tivéssemos aquelas condições das primeiras turmas, certamente a gente faria bem mais.”
Fonte: Entrevistas realizadas em 2017, no contexto de iniciação científica (DE PAULA; MANTOVANELI JÚNIOR, PASCO, 2018)
185
24
Experiências sociais aqui se referem às iniciativas que objetivam a transformação da realidade local ou
regional, preferencialmente visando a solução de problemas públicos, seja no formato de políticas públicas,
associações ou demais organizações da Sociedade Civil, cooperativas, etc.
186
Outra questão a ser considerada aqui é que o aumento dos níveis das práticas, por si só, não
asseguram uma contribuição virtuosa para a transformação socioambiental em favor do
desenvolvimento sustentável. Há um campo anterior que precisa ser alcançado e que deve
balizar todo o processo, o da intencionalidade. A intencionalidade, para Mantovaneli Jr e Frey
(2019), é revertida em processos de transformação social virtuosos. O qualificador no caso do
PROESDE na FURB foi o de considerar o desenvolvimento regional sustentável e instituir os
ODM/ODS como eixos transversais. Ou seja, nesta seara, os ODM/ODS funcionariam no
programa em dois vetores: 1) pelo estudo dos indicadores de desenvolvimento sustentável, que
possibilitariam a formação da consciência crítica pelo conhecimento e mensuração da realidade
local e global, junto a outras estratégias pedagógicas e; 2) qualificariam as atividades práticas.
Observa-se também, nas entrevistas, a manifestação negativa com relação à forma que a
interação comunicacional era realizada pelo programa com outros setores da FURB e
externamente, ao ponto de um dos entrevistados, como já mencionado, explicitar que “não
enxerga o PROESDE”. Neste sentido, Serva (2012) observa que a busca de legitimidade é uma
meta das organizações, e que uma comunicação externa mais efetiva, na conformação de uma
governança participativa, poderia assegurar maiores níveis de contribuição social, inclusive na
forma da implementação dos projetos de intervenção.
Categorias Evidências
Redução sociológica O programa trabalha com a mesma variedade de autores e experiências dos grupos de pesquisa envolvidos no seu cotidiano por
meio de tutores e monitores-tutores. A base epistemológica é variada e, até mesmo em muitos casos, alternativa em relação ao
mainstream das TDRs, valorizando tanto autores nacionais como autores estrangeiros, cuja abordagem valoriza experiências
empíricas culminando até mesmo em projetos de intervenção conectados com a realidade local e regional. Embora nesse contexto
a utilização da estratégia ODM/ODS possa parecer um paradoxo, os indicadores são utilizados como balizadores de análise da
realidade regional, sem esgotar outras fontes de dados. Além disso, os ODM/ODS tem uma metodologia que permite a discussão
local da validade dos indicadores onde também podem ocorrer modificações. Não é, portanto, uma metodologia rígida.
Racionalidade Aqui vale rememorar que a proposta da abordagem multidimensional possibilista não é a de aniquilar a racionalidade instrumental
substantiva em favor da hegemonia da racionalidade substantiva. Mas sim, estabelecer uma relação dinâmica entre as duas racionalidades,
sempre considerando suas utilidades coletivas. Neste sentido, o processo formativo dialógico que é aberto internamente com os
participantes diretos do programa de extensão, bem como orientação para atuação junto a movimentos da sociedade civil como o
Movimento Nós Podemos!, por exemplo, incita ao exercício de uma ciência comprometida com o entorno em que se desenvolve,
valorizando o papel transformador da universidade e o permanente questionamento de estruturas dadas com vistas a avaliar sua
efetividade no entorno regional.
Consciência crítica A formação da consciência crítica integra como objetivo alguns dos documentos internos analisados do programa. Esta categoria
de análise considera uma série de saberes além da práxis, além de um esforço individual que, contudo, são difíceis de mensurar
como resultado alcançado para além do objetivo declarado.
Sociedade A sociedade multicêntrica pode ser diretamente referida à interdisciplinaridade, desde que consideradas as diversas dimensões em
multicêntrtica uma priorização a priori. O programa prezou pela diversidade de abordagens apoiado na estrutura de indicadores da estratégia
ODM/ODS, que pode ser potencializada a partir da diversidade de áreas do conhecimento envolvida na seleção dos estudantes
participantes.
Homem Parentético O Homem Parentético pode ser considerado também uma derivação da aquisição individual de consciência crítica. Da mesma
forma que esta categoria anterior é difícil de ser mensurada, o programa adota uma postura dialógica interna e externamente, que
procura valorizar a formação do Homem Parentético, no sentido atribuído por Guerreiro Ramos.
Possibilidades O exercício de construção de conjecturas apoiadas na realidade controlável de acontecimentos é realizado, novamente, com o
objetivas aporte na estratégia ODS/ODM. O cotidiano do programa é balizado, de um lado pela análise da realidade por meio dos indicadores
do desenvolvimento sustentável. E, por outro lado, na intenção de proposição de soluções para problemas locais e regionais por
meio dos projetos de intervenção.
189
metas estabelecidas. Contudo, a agenda não apresenta receitas de sucesso para o alcance,
cabendo aos espaços nacionais e locais construí-las.
É válido, finalmente, rememorar que o PROESDE em nível estadual foi criado no contexto
da política de descentralização administrativa do governo de Luiz Henrique da Silveira, que
fortaleceu o poder político-partidário que já era dominante, incorporando ou sufocando, em
certa medida, iniciativas que poderiam se dar também no espaço de outras instituições regionais
compostas pela Sociedade Civil (THEIS e MANTOVANELI JUNIOR, 2019). De modo que é
de se esperar que a regulamentação proveniente da SED para o PROESDE tenha tido função
similar. Nesse sentido, o PROESDE / Desenvolvimento FURB, por meio do PPGDR,
reivindicou a possibilidade implementação de um modelo formativo dialógico que visasse
contribuir com a territorialidade regional e o desenvolvimento sustentável. Isto, em certa
medida, extrapolou a motivação e o próprio conteúdo de criação do programa em âmbito
estadual.
193
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ingênuas. In: BARREIRA, Maria Cecília Roxo Nobre; CARVALHO, Maria do Carmo Brant
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Orientador: Carlos Alberto Cioce Sampaio. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento
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4.1 INTRODUÇÃO
Ainda mais, para o autor, a atualização humana é um direito, e este elemento justifica a
existência de um sistema social multidimensional, onde o sistema de mercado seja uma
ferramenta que possibilite a existência de outras formas de organização, baseadas em outras
racionalidades. É nesta seara que se abre o questionamento de onde a educação - e aqui, mais
especificamente, a universidade - se enquadraria na configuração do sistema social
multicêntrico ou paradigma paraeconômico. Se a universidade almeja exclusivamente
possibilitar a autoatualização de quem a acessa, seria essa a condição que a faz ser percebida
199
pela sociedade como uma “Torre de Marfim”? Quais os caminhos possíveis para uma
universidade que promova a ciência cidadã?
Esta discussão desemboca no tópico sobre o papel do PROESDE / Desenvolvimento
FURB neste contexto e na proposição de pressupostos que devem ser mantidos no programa,
bem como aqueles que seriam alvos do que se considera melhorias no caminho de transição
entre os paradigmas de desenvolvimento.
A propositura de uma nova ciência das organizações de Ramos (1989) é elaborada com
base em uma série de críticas elencadas pelo autor ao longo de mais de trinta anos de atuação
200
25
É importante, contudo, mencionar que tal crítica não invalida a universalidade de enunciados gerais da ciência
em duas frentes complementares: 1) não é possível negar o domínio da ciência no sistema mundo; 2) a ciência é
um conjunto semântico e de habitus que adquire e compartilha formando um mesmo repertório de enunciados,
que podem ser qualificados como a epistemologia de cada área ou campo científico (RAMOS, 1996).
201
A quarta crítica seria, então, o que o autor denomina de transavaliação da razão, ou seja,
um processo de unidimensionalização da razão, como se somente pudesse ser racional a ação
vinculada a um tipo de cálculo utilitário de ganhos. No espectro da transavaliação da razão, é
possível identificar três elementos de expressão com o auxílio da psicologia social, a saber: a
Síndrome Comportamentalista e a Política Cognitiva, que pode estar vinculadas à uma
colocação desapropriada de conceitos.
A Síndrome Comportamentalista é uma espécie de conduta mecanomórfica orientada
por balizadores externos ao indivíduo, com o intuito de geração de uma ordem social pautada
em critérios economicistas, ao qual Ramos (1989) denomina comportamento. Nela, há a fluidez
da individualidade; o perspectivismo que condiciona o ser humano a se comportar de forma
diferente em cada ambiente que frequenta, e sempre baseado em um cálculo utilitário de ganhos
individuais; o formalismo como uma característica de hiper-correção, onde o indivíduo toma
as regras como imutáveis e destitui-se de padrões éticos substantivos de avaliação26 e; o
operacionalismo positivista, em que somente é dado relevância, principalmente na ciência,
àquilo que se pode reduzir a números.
Já a Política Cognitiva opera no uso de uma linguagem que distorce os sentidos do que
comunica, como forma de cooptar indivíduos para os interesses de quem realiza tal distorção.
Neste sentido, o que se observa também é a ação transplantar termos de uma para outra área do
conhecimento, como por exemplo o uso do termo “sanidade organizacional”. Isto porque, para
Ramos (1989), não é possível falar de sanidade senão se referindo a pessoas.
Uma última crítica deu conta dos limites ecológicos do modelo de desenvolvimento
economicista e baseado no consumo desenfreado que a sociedade, principalmente americana,
vivenciava nos idos das décadas de 1960/1970. As discussões que desencadearam a estratégia
mundial posterior do desenvolvimento sustentável já estavam em curso e Guerreiro Ramos fez
poucas referências a autores que estavam abordando a questão na academia. Mas desde logo
observou que suas proposições teriam a preocupação com os desafios ecológicos que se
agravariam ao longo dos próximos anos, caso o modelo de desenvolvimento permanecesse
inalterado.
26
Um detalhe importante para os fins do presente trabalho é a denúncia que Guerreiro Ramos faz com relação à
educação e ao formalismo. Observa ele que a educação, a depender de como é conduzida, é formalista, visto que
mais se preocupa com forma (adequação e correção de condutas) do que com seu conteúdo intrínseco.
202
27
Aqui cabe relembra a distinção que Ramos (1963) e Ramos (1989) esboça entre comportamento e ação. O
comportamento é atitude, geralmente hiper-correta, amalgamada com uma ordem social pautada puramente em
critérios de mercado, portanto, instrumentais. Já a ação é o agir próprio de quem delibera valorativamente sobre
a finalidade e as consequências de suas ações.
204
Mas Ramos (2009) argumenta que para tanto, haverá de existir um exercício de
construção de possibilidades objetivas. O termo não é uma invenção do autor, mas de origem
weberiana e guarda significativa relação com os ideais de inédito viável (FREIRE, 2014) e
utopia concreta (BLOCH apud MATOS, 2018). A ideia central das possibilidades objetivas é
a de que é possível compreender o desenvolvimento de forma imbrincada na realidade social
dos diferentes países, e com isso construir caminhos alternativos de mudanças, que podem, e
provavelmente irão, diferir de modelos aceitos como tradicionais de desenvolvimento ou de
experiências estrangeiras. É um caminho onde concomitantemente a uma compreensão
profunda das realidades sociais onde os pesquisadores estão inseridos e/ou analisam, processos
de transformação possam ser encarados e experimentados.
A TDSS foi apresentada em 1983, e o próprio autor da proposta reconhece que é uma
proposição incipiente e que novas experimentações precisarão ser testadas para o seu
aprimoramento. Neste sentido, optou-se por realizar uma pesquisa que pudesse compreender
se, e quais, foram as aplicações da teoria e os avanços alcançados. É assim que se apresenta o
resultado da consulta à publicações que abordassem a TDSS e a paraeconomia, conforme
Quadro 14.
206
organização social para a geração de desenvolvimento. Neste sentido, observa que a economia é, na verdade, plural. Assim, o autor
faz uso dos estudos de Polanyi e Laville para apresentar a pluralidade da economia, onde existe pelo menos três formas
complementares de economia: a mercantil, com comportamento individual; a não-mercantil, que é de cunho estatal, redistributiva, e
de comportamento obrigatório; e a não-monetária, de comportamento de dádiva (Mauss) e onde se assentam diversas atividades
como o voluntariado, o trabalho doméstico, etc. Como proposta dentro do paradigma paraeconômico, o autor sugere a aposta em um
novo arranjo institucional de modelo econômico, qual seja, o de economia solidária, o que acarretaria as seguintes consequências:
1) um marco legal que reconheça as isonomias e fenonomias e seus respectivos estatutos; 2) estabelecimento de relações de trabalho
com direitos públicos, uma vez que o trabalho assalariado impede a autogestão e o trabalho cooperado possui legislação ultrapassada;
3) atribuir um valor socialmente reconhecido à atividades do atual tempo social que hoje não são monetizadas, sendo monetizando-
as ou estabelecendo um novo sistema de avaliação do conceito de riqueza para mudança da mentalidade das pessoas. Políticas
públicas de distribuição de riqueza poderiam ser um meio de alcançar essa ressignificação; 4) oferecer legitimidade às diferentes
formas de economia (suprimir a ideia de parasitismo).
4 Salgado, 2010 O artigo faz uma análise da noção de bem viver (Sumaq Kawsay) incluída nas constituições da Bolívia e Equador como discurso
político de valor simbólico (leitmotiv) orientador dos processos internos de desenvolvimento, traçando um paralelo das experiências
com a estrutura do paradigma paraeconômico de Guerreiro Ramos. Para tanto, o autor explica que o povo Quechuá sobrevive nos
dias atuais a despeito de condições de vida precárias. Sua resistência é baseada em uma prática de heranças culturais baseadas na
cooperação e solidariedade, conhecidas como “reciprocidade andina”. Formas institucionais de trocas são estabelecidas,
considerando em conjunto a ideia da natureza como sujeito de direitos tal qual os seres humanos. O autor entende que a noção
original de Sumaq Kawsay integra a práxis de redução sociológica, de uma novo modelo de ser humano, e de uma nova delimitação
dos sistemas sociais e de uma nova teoria organizacional – ideias fundantes do paradigma paraeconômico. Adicionalmente o
significado da expressão quíchua evoca a noção de ecologia global e de ação comunicativa, conforme proposta por Habermas. Como
conclusão, o autor argumenta que a noção original de Sumaq Kawsay está essencialmente conectada com o paradigma paraeconômico
e com a cidadania deliberativa. Contudo, os processos que estão em curso na Bolívia e no Equador tem ignorado a sociedade civil,
sendo que o Estado tem suprimido a participação cidadã ao mesmo passo em que tem restringido a liberdade de mercado. Desta
forma, a experiência de Sumaq Kawsay conduzida nestes países está mais para uma mera noção de transformação paradigmática em
direção ao paradigma paraeconômico, do que uma real transformação.
5 Ventriss; Candler; Os autores defendem a atualidade do pensamento de Guerreiro Ramos e descrevem que o motivo pelo qual seus trabalhos são, ainda,
Salm, 2010 pouco reconhecidos na esfera acadêmica internacional é o paroquialismo epistêmico global. Ainda, os autores dão relevância de
atualidade às noções de política cognitiva, síndrome comportamental e paraeconomia (dependente da atitude parentética), em que
pese que tais ideias são únicas no campo da Administração e nas políticas públicas, visto que as organizações são sistemas cognitivos
nas quais seus membros internalizam as racionalidades hegemônicas. Os autores salientam que o trabalho de Ramos lidou
precocemente com questões globais de desenvolvimento. Esclarecem os autores que a época dos estudos de desenvolvimento de
Guerreiro Ramos, pós-Segunda Guerra Mundial, mais de 100 colônias ao redor do mundo se emanciparam, mas possuíam níveis de
desenvolvimento muito inferiores aos de seus colonizadores. A tônica era a de escolha entre a mão invisível do mercado de Adam
Smith e a mão excessivamente visível do Estado de Lênin. E os países incrustrados no colonialismo tendo que escolher entre uma e
208
outra receitas. E tal escolha não é factível, uma vez que há possibilidades de construção que levem em consideração um e outro
modelo, mas visando a construção de modelos próprios de desenvolvimento.
6 Moretto Neto; O artigo aborda o processo de aprendizagem em Gestão Social no âmbito do fomento das universidades às incubadoras sociais. Inicia
Garrido; Justen, justificando a importância do trabalho em torno de uma deformação das funções do tripé universitário (ensino, pesquisa e extensão),
2011 em função da assimilação das universidades ao processo de unidimensionalização da sociedade, marcadamente orientado pela
dimensão econômico-financeira, ou seja, de Mercado. Paulo Freire e Pedro Demo são notadamente os autores utilizados para tal
crítica. No campo propositivo, os autores propõem a substituição do termo extensão universitária por comunicação universitária,
visto que conforme Freire (1983), a comunicação universitária afastaria um padrão instrumental, impositivo, aculturador e
dependente da relação entre universidade e comunidade, permitindo o envolvimento da comunidade na construção e troca de saberes
de forma dialógica e não autoritária. Consequentemente e no uso de um modelo diferenciado de relação entre universidade e
comunidade que privilegia a capacidade coletiva de organização autônoma, os benefícios de construção social de espaços mais justos
e humanizados podem ser alcançados. Os autores também defendem que as tecnologias educacionais de ensino à distância, quando
integradas ao desenvolvimento local e à economia solidária, são importantes ferramentas para o enfrentamento de desafios sociais,
com a possibilidade de integração das dimensões espaço e tempo e de melhor aproveitamento de recursos escassos, como é o caso
que ocorre em comunidades periféricas. As análises empíricas são descritas pela experiência da UFSC na Universidade Aberta –
programa de educação à distância e seu envolvimento com o Programa Territórios de Cidadania – programa para impulsionar o
desenvolvimento econômico e de cidadania na perspectiva da inclusão social. Tal envolvimento possibilitou o avanço no tripé
universitário que muitas vezes é desconsiderado na educação à distância.
Há, ainda, uma definição interessante: no lugar de aluno ou estudante, os autores usam a expressão aprendiz, justificada porque “a
autoformação do aprendiz envolve o exercício de uma aprendizagem caracterizada pela consciência, intencionalidade e potencial
transformador, visando alcançar, sobretudo, além de exigências profissionais, sentido e realização, afastando-se da ignorância e do
sofrimento. Desta forma, o aprendiz, por meio de sua autoformação, é capaz de aprender com liberdade e responsabilidade,
transformando-se a si próprio e aprendendo a ser, a viver, a conhecer e a fazer.” (p. 835).
Neste sentido, a proposta apresentada é de um ambiente pedagógico “paravirtual” com as estratégias de 1) autopoiese (auto-
aprendizagem a partir do meio natural e social, envolvendo as estruturas biológicas do ser humano, bem como a sua consideração
como ator político e social), da pedagogia da alternância (múltiplas oportunidades de aprendizagem dentro e for a do sistema
educacional formal), da pedagogia do encontro, da cultura do serviço (aprendizagem pelo relacionamento) e gestão social.
7 Souza; Carrieri, O artigo propõe utilizar a identidade para a análise das organizações. Para tanto inicia o percurso argumentativo conceituando
2012 identidade pessoal e coletiva, em um esforço comparativo entre a subjetividade e as determinações externas, respectivamente.
Avançam discorrendo longamente sobre prática e racionalidades. Os constructos teóricos abarcados são as bases da proposta teórico-
metodológica de análise das identidades nas organizações. Propõe-se, então, a utilização da delimitação dos sistemas sociais para
situar os diferentes tipos de identidades coletivas, cuja auferição seria decorrente da análise do discurso onde se podem interpretar
as racionalidades subjacentes - a semiótica individual em um primeiro nível e coletiva em um segundo nível. Contudo, os autores
observam que sempre haverá uma limitação intransponível que reside no fato de que na interpretação dos dados coletados, sempre
será dependente do arcabouço proveniente do pesquisador que interpreta a realidade estudada.
209
8 Salgado; Abad, O artigo faz uma análise da produção bibliográfica de Guerreiro Ramos sob a ótica da utopia, que encerra uma metodologia própria
2015 de análise inserida na teoria crítica e com uma investigação sistemática de princípios alternativos da organização, distanciada da
perspectiva funcionalista. Uma matriz é apresentada contendo vertentes teóricas da Administração. Na interpretação de tal matriz, o
eixo vertical transita entre o consenso e o dissenso. O consenso integra os quadrantes inferiores, onde se assetam as teorias
hegemônicas. Significa, ainda, confiança, integração e harmonia, de metáfora epistemológica dominante de “espelho que reflete”, a
ciência é considerada neutra e há distanciamento espaço-temporal do pesquisador acerca do que ele descobre. Já no dissenso impera
a suspeição, dominação e conflito, a metáfora epistemológica dominante é a “lente que olha e vê”, compreendendo a perspectiva
política da ciência e abrigando um pesquisador historicamente situado e que se posiciona. O eixo horizontal, por sua vez, transita
entre o local/emergente e o elite/a priori. No eixo local/emergente as pesquisas envolvem comparações entre comunidades, fazendo
estudos particulares a partir de narrativas locais, o olhar é para aquilo que é raro e a preocupação é com a construção de sensos e
sentidos. No eixo elite/a priori a pesquisa é de uma comunidade privilegiada, de caráter universal, baseado em grandes narrativas e
de emancipação. O olhar é para aquilo que é familiar e a preocupação é com a racionalidade e a verdade.
Os autores afirmam que a administração nasceu no final do século XIX voltada especificamente com vistas a melhoria da
produtividade e eficiência desprovida de uma reflexão filosófica que se preocupasse com o desenvolvimento e a emancipação
humana. Isto acarreta que estudos similares à perspectiva humanista adotada por Guerreiro Ramos estão presentes na vertente de
dissenso da matriz apresentada. Dentro do método da utopia, os autores propõem fazer estudos sobre diferentes tipos de organização
e de forma interdisciplinar, para que se possa comparar e encontrar classificações coerentes com a multidimensionalidade. Tal
conduta pressupõe que capital e mercado teriam uma importância subsidiária, no sentido de auxiliar seres humanos e a república em
seu curso de existência. As categorias de análise deste método, por sua vez, seriam a emancipação do ser humano, espaço social
deliberativo e um sistema social orientado pela racionalidade substantiva.
A utopia seria representada na obra de Guerreiro Ramos pela ideia de imaginação sociológica e por conseguinte no conceito de
redução sociológica, que permitiria o conhecimento do processo histórico das organizações e suas relações com o contexto mais
amplo da sociedade, ao passo que explora a possibilidade de uma organização alternativa.
9 Parada; O artigo traz a relação entre as propostas de TDSS de Guerreiro Ramos, em particular dos requisitos adequados, com novos estudos.
Dellagnelo, 2016 Propõe um quadro de abordagem social com propostas que focam nas economias, fenonomias e isonomias em relação aos requisitos
de tecnologia, tamanho, espaço e tempo. O requisito de cognição é desconsiderado uma vez que os autores compreendem que exigiria
esforços de estudos específicos, dada a sua complexidade. Assim, nas economias, o requisito de tecnologia é flexível em função do
mercado, o arranjo de profissionais é submetido a regras rígidas (heteronomous), busca-se eficiência e dominação. O requisito de
tamanho é o maior possível, onde há despersonalização. O requisito de espaço é sócio-afastador, abstrato e de conteúdo “racional”.
Finalmente, o requisito de tempo é linear de acordo com Guerreiro Ramos, monocrômico de acordo com Hall e relógio de acordo
com Butler. As isonomias e fenonomias tem características muito parecidas nos requisitos, com exceção de pequenas características
de tamanho e tempo. No requisito tecnologia, são organizações com flexibilidade espontânea, o arranjo de profissionais é auto
organizativo em conjunto com as metas organizacionais (autonomous), busca-se a realização humana e decisões deliberadas. No
requisito tamanho, nas isonomias o tamanho é moderado e sua determinação é sensível podendo facilmente descaracterizar os
elementos isonômicos conforme a inadequação do tamanho; já as fenonomias tem o menor tamanho possível, podendo variar
210
preferencialmente entre uma e cinco pessoas. Em ambas, porém, as pessoas são consideradas como indivíduos. O requisito espaço é
socio-aproximador, diferencial e o conteúdo é livre. No requisito tempo, as isonomias relacionam-se ao tempo convivial e as
fenonomias ao tempo de salto. E ambas policrônicas (Hall) e orgânicas (Buttler).
Fonte: A autora (2022)
211
pedagogia da alternância, em que a aprendizagem ocorre pelo envolvimento com outros espaços
além da educação formal; 3) pedagogia do encontro, ou seja, aprendizagem pelo
relacionamento. É significativo que se encontrem possibilidades educativas no bojo da
paraeconomia em ambientes virtuais, algo não previsto pelo propositor do paradigma, mas que
acabou se configurando na melhor das possibilidades de educação, encontro e articulação
durante o período ainda vigente da pandemia da COVID-19.
É interessante observar que todas as quatro experiências relatadas foram analisadas sob
a ótica do paradigma paraeconômico, ou mais amplamente, pela TDSS, sendo que nenhum dos
artigos apresenta experiências que tenham sido orientadas ex ante por tal teoria. Ou seja, o
padrão de utilização das proposições de Guerreiro Ramos na academia tem sido, se se tomar
por base os artigos analisados, o de uma teoria que lança luz metodológica de análise de
experiências, e não como fio condutor das experiências que analisa.
orientada pelo Estado em conformidade com o partido comunista, além de organizar suas
atividades em função de necessidades da economia nacional.
Por um lado o modelo de universidade funcional, de acordo com a sua acepção de
origem, era um empecilho ao avanço da ciência pautada em alguma busca pela verdade objetiva.
De outro lado o modelo de universidade liberal não se sustentava na prática. Meneghel (2001)
aponta os relatos de Max Weber sobre a universidade alemã, que dão conta da influência
política, ideológica e religiosa na instituição, do predomínio da burocracia em relação ao
conhecimento acadêmico e, de uma sobrevalorização do diploma como status social em
prejuízo da formação intelectual. Somados a esses relatos tinha-se um problema que se arrasta
até os dias atuais: o problema do financiamento das atividades universitárias, que
necessariamente subordinam a existência da instituição à legitimidade social de que necessita.
O passar dos anos e as transformações sociais as quais a universidade precisou se adaptar
deram origem a modelos fluidos onde, contudo, a perspectiva funcional passou a se destacar
em relação às demais em função da busca de legitimidade em relação ao seu próprio
financiamento. Ainda assim, a perspectiva liberal não sucumbiu e resiste até os dias atuais tanto
como disputa interna dentro das instituições como enquanto modelo que orienta
prioritariamente algumas poucas dessas instituições. A síntese entre esses modelos acabou
dando à universidade funções aparentemente contraditórias, quais sejam: 1) a de abordar
conhecimentos úteis para prover profissionais para as economias e burocracias estatais e; 2) a
de assegurar a formação intelectual por meio da pesquisa livre (MENEGHEL, 2001).
A extensão se insere nesta fusão entre a perspectiva funcionalista e idealista de
universidade, e viria a se unir ao ensino e à pesquisa alguns anos mais tarde. Há iniciativas
pontuais datadas de meados do século XIX em várias partes do mundo, no contexto da primeira
Revolução Industrial. Já na América Latina ela seria adotada com maior expressividade
somente quando movimentos estudantis, inicialmente vinculados à Revolução Mexicana,
inaugurados no início do século XX, passaram a reivindicar independência das universidades
principalmente em relação às instituições religiosas, assim como a afirmar a necessidade de um
posicionamento em prol da construção de modelos nacionais de desenvolvimento. No Brasil,
este movimento veio na esteira da atuação de instituições como a Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe – CEPAL e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, mas
teve grande êxito de aproximação com camadas populares da sociedade por meio do Serviço
de Extensão Universitária da Universidade de Recife, pelas mãos do educador Paulo Freire,
defendendo um estilo de extensão dialógica e não invasiva no início da década de 1960. Como
217
se sabe, tais esforços foram frustrados a partir do governo instituído em 1964, quando a
universidade passaria a tomar outros rumos (PAULA, 2013).
Paralelamente, desde o pós Segunda Guerra Mundial, ciência e tecnologia
estabeleceram-se em uma fusão cada vez maior, cujas consequências foram 1) o
aprofundamento da união da técnica com o lucro, em um ciclo vicioso entre tecnologia que
viabiliza lucros e lucros que viabilizam novas tecnologias; 2) avanços nos direitos sociais frutos
de reivindicações históricas, nos quais figurava o acesso à educação como forma de ascensão e
democratização sociais, além de outras importantes questões. Desta forma, a chegada da
extensão aprofundaria a adoção do modelo funcional de universidade em contexto mundial
(MENEGHEL, 2001).
No que tange à pesquisa, novos rumos seriam também traçados a partir da instituição da
Pós-Graduação no Brasil em 1965, ocorrida em moldes norte-americanos. Consideradas como
o grande trunfo de desenvolvimento, a ciência e a tecnologia foram largamente impulsionadas
durante todo o período de governo autoritário que duraria até meados da década de 1980. As
políticas de pós-graduação do período primavam pela qualidade, o que acabaria por formar uma
intelectualidade crítica e atuante no país a despeito de um paradoxo que possa ser imputado a
este fato. Contudo, o processo de informatização do sistema de pós-graduação do país a partir
de 1981, que estabeleceu a avaliação quantitativa, embasada no número de publicações e na
inserção internacional dos programas pós-graduação, junto ao avanço da ideologia neoliberal
nas duas décadas seguintes, em que o Estado cedeu espaço público para grandes empresas
nacionais e internacionais, aprofundou o estímulo ao entrelaçamento entre a pesquisa
universitária e o setor produtivo sob o pretexto de aperfeiçoamento do processo democrático e
da aquisição de vantagens econômicas para o desenvolvimento. O resultado foi que a avaliação
da pós-graduação brasileira passou a ser embasada por critérios de eficiência, eficácia e
produtividade, tal qual o setor privado, derivando disso a maior valorização dos produtos em
detrimento dos processos e a subordinação da universidade a interesses econômicos e
mercadológicos. Tal não tem resultado em bem-estar social, uma vez que os conhecimentos
produzidos em função de interesses econômicos se justificam somente como um fim em si
mesmo. (GOERGEN, 2015).
Um apanhado histórico das transformações recentes ocorridas no Brasil,
significativamente a partir de meados da década de 1960 dá a tônica relativa à educação
superior. Neste momento, as universidades passaram a ter como função formar recursos
humanos para o desenvolvimento do país e para o aprofundamento de questões relacionadas
com a segurança nacional. Posteriormente, sob a ideia central de eficiência da empresa privada
218
Ocorre que a universidade em sua estrutura atual não consegue agradar as perspectivas
funcionalistas e tampouco as perspectivas liberais. Os liberais andam incomodados com a
massificação do acesso à educação superior que ocasionou turbulência no caráter de reduto
elitista. Já os funcionalistas, por outro lado, não percebem uma real democratização pela via da
massificação – “dispendiosa para o Estado, sem condições de garantir emprego aos diplomados
e lenta/desatualizada em qualificar para o mercado, a Universidade mostra-se, hoje, em crise:
disfuncional aos que demandam seus serviços e alvo de novas reformas” (MENEGHEL, 2001,
p. 44).
Uma outra reflexão possível para avaliar a insatisfação social com a universidade é a
partir de esferas ideológicas. De um lado, a direita brasileira avalia que a universidade é
disfuncional para o seu projeto neoliberal, de desindustrialização e de financeirização – “[…]
as elites universitárias já não conseguem convencer as elites do poder econômico e político que
o conhecimento, o saber e, portanto, a pesquisa, universitários, podem ser importantes para o
futuro” (DAGNINO, 2015, p. 301). De outro lado, a esquerda também percebe a universidade
disfuncional, uma vez que “a universidade pública não representa, como chegou a ser no
passado, uma alternativa ou possibilidade de ascensão social para as classes de baixa renda. A
ascensão social não ocorre mais pela via da universidade” (DAGNINO, 2015, p. 302).
Tal diagnóstico reverbera em dois elementos assertivos. Primeiro, o corpo docente e
técnico das universidades, assim como a sociedade, continua acreditando na possibilidade de
uma ciência (ou tecnociência) neutra e no dogma determinista em que o único caminho para o
desenvolvimento seria o avanço da ciência e tecnologia. Isso sem contar uma crença de que tais
avanços libertariam e emancipariam sociedades. Segundo, se a relevância da universidade está
em xeque, é porque ela não está conseguindo captar o funcionamento do mundo e apresentar
respostas adequadas. Muito do que se produz nas universidades brasileiras é fruto de um
mimetismo de demandas e respostas, de aspirações estrangeiras (DAGNINO, 2016).
Neste sentido, considerar a universidade como uma instituição social investida de
autonomia, tal qual sua fundamentação original, assim como respeitar a função auto-atribuída
de atuação em prol da democracia como forma de corresponder às transformações sociais mais
recentes (CHAUÍ, 2003), implica considerar outros elementos não necessariamente novos.
Anísio Teixeira (1964), embora tivesse uma visão relativamente elitista da universidade
compreendia a instituição tanto como espaço de compreensão histórico-cultural da civilização,
quanto como lócus de crítica e reformulação sociais. Neste sentido, asseverou que são, pelo
menos, quatro as funções da universidade: 1) formação profissional de base intelectual,
científica e técnica; 2) alargamento da mente humana, indo além de uma mera assimilação
220
cultural, ou seja, promovendo a imaginação para o inédito; 3) produção de saberes por uma
busca, por vezes, desinteressada do conhecimento e; 4) transmissão de uma cultura comum, o
que implica a consideração da cultura brasileira.
Já Buarque (1994) argumenta que a função social da universidade nos tempos atuais é
de resistência e criação de novas soluções sem se despir de suas funções sociais essenciais. De
modo que deve produzir conhecimentos e saberes que deem suporte à viabilidade de uma
sociedade, e neste sentido, diferentes sociedades gestaram e gestam diferentes universidades.
Para o autor, o caso da universidade brasileira exige o rompimento de um padrão de atuação
vinculado à construção de certezas para um padrão de atuação embasada nas dúvidas sobre a
efetividade do seu próprio papel enquanto alicerce de valores consagrados nos últimos duzentos
anos do processo civilizatório, como o de liberdade e igualdade. Argumenta o autor que o
caminho passa pela construção de um exercício de utopia de reinvenção imaginativa que
permita a construção de caminhos de ruptura com as certezas. A indissociabilidade da
universidade estaria, assim, ancorada na própria possibilidade da incerteza, o que acarreta um
novo padrão de ação balizado mais pela prática instigante da propagação da dúvida do que da
costumeira transmissão de certezas, no formato de teorias. Há, assim, um grande exercício de
ruptura e criatividade a ser percorrido neste caminho.
Em sentido similar, Goergen (2015) aponta que existem visões polarizadas de
universidade derivadas de visões opostas de educação em voga atualmente, e que a percepção
inicial é a de que elas sejam inconciliáveis. Se por um lado se valorizam procedimentos
reflexivos e críticos em uma lógica formativa dialógica e cultural; de outro lado se reivindica a
valorização de processos instrumentais. Por sua vez, os interesses de cada um dos lados no que
tange à objetivos, ritmo, celeridade e estruturas são bastante distintos. Contudo, ambos os lados
são essenciais para o mundo atual e terão que encontrar espaços de conciliação para a produção
do bem-estar social. O fio condutor aqui seria o resgate da dimensão ética dos processos
educativos. De modo que é necessário, portanto, o resgate do compromisso social da
universidade, qual seja, a formação humana integral e orientada à transformação da sociedade,
pautada nas dimensões intelectual, moral, profissional e política. Assim, “não cabe à
universidade tão somente mimetizar o mundo, imitar as patologias sociais e transformá-las em
princípios do seu próprio agir; não é a lógica do real que deve orientar a produção e a divulgação
dos conhecimentos, mas a lógica da reflexão e do pensamento.” (GOERGEN, 2015, p. 309).
O compromisso da universidade é, portanto, o do exercício da autonomia fundado em
um distanciamento crítico suficiente que lhe permita atuar em prol do desenvolvimento e o
fortalecimento da democracia, da justiça social e da cidadania, mesmo quando desenvolve
221
tecnologias. Nesse contexto, o campo de conflitos ideológicos não deve jamais ser absorvido
por uma visão tecnicista das demandas sociais sob uma distorção denominada neutralidade
científica, como se não fosse essa tarefa de um pesquisador. Antes, o conflito deve ser
explicitado para que não se corra o risco de serem ignorados os usos das pesquisas
(MENEGHEL, 2001).
Dagnino (2016) orienta a solução da crise da universidade por uma via similar: com a
preservação da autonomia e da pesquisa, há que se fazer dialogar acadêmicos de diversas áreas
do conhecimento, em integração com a comunidade onde se inserem. O exercício de extensão
seria marcado pela proposição de ações voltadas para a solidariedade, para a democracia e a
justiça social, mas sempre considerando o diálogo e as demandas dos diversos setores da
sociedade, inclusive e sobretudo os movimentos sociais, explicitando as divergentes
intencionalidades no processo.
A incorporação da dimensão ética no fazer universitário implica, portanto, compreender
que ciência e tecnologia não são neutras como se pressupunha nos primórdios da universidade.
Implica também não resistir aos conflitos que são inerentes ao processo de construção e
aplicação de conhecimento. Implica, ainda, a adoção da racionalidade substantiva´, que é
valorativa, nos debates e decisões que as instituições tomam em conjunto com o contexto
espacial que as cerca e com o todo global.
escopo é essencial à temática do desenvolvimento regional, porém que não abrange a sua
totalidade.
Neste sentido, propõe-se que a SED reconsidere a autonomia universitária no sentido de
relegar às instituições a decisão sobre qual ou quais setores do desenvolvimento regional elas
tem capacidade técnica e política de desenvolver propostas de intervenção, delimitando
contudo, que o processo decisório seja realizado baseado em demandas regionais.
empíricos de uma população menos escolarizada – camponeses, por exemplo. Uma vez que é,
de fato, necessário aumentar a produção desses camponeses, os técnicos julgam que podem
verticalmente ensinar um novo modo de produção.
No entanto, ao desconhecer que tanto sua técnica como os procedimentos
empíricos dos camponeses são manifestações culturais e, deste ponto de vista,
ambas válidas, cada qual em sua medida, e que, por isso, não podem ser
mecanicamente substituídos, enganam-se e já não podem comprometer-se.
[…] Deformados pela acriticidade, não são capazes de ver o homem em sua
totalidade. […] Pelo contrário, será mais fácil, para conseguir seus objetivos,
ver o homem como uma ‘lata’ vazia que vão enchendo com seus ‘depósitos’
técnicos. Mas ao desenvolver desta forma sua ação, que tem sua incidência
neste ‘homem lata’, podemos melancolicamente perguntar: ‘onde está seu
compromisso verdadeiro com o homem, com sua humanização?’ (FREIRE,
1994, p. 11)
28
A FURB se aproximou destes dois movimentos, com destaque para o primeiro, sem que, contudo,
tivesse firmado convênio formal até o período final da presente pesquisa (20190, em função de entraves
no processo burocrático, apontados nos documentos de encaminhamento para análise jurídica junto à
Procuradoria da FURB.
233
até a execução de eventos. O PROESDE / Licen é um braço do programa que, em 2015, foi
separado entre licenciaturas e desenvolvimento regional, que exerce suas atividades e
orçamento com autonomia em relação ao PROESDE / Desenvolvimento FURB, mas que opera
em algum nível de parceria por demanda interna e por demanda da SED.
As ligações expressadas pela Figura 1 desconsideram os níveis de poder, embora eles
também existam e sejam expressados, para além de normas e legislações de base; 1) por quem
coordena as decisões de repasse de recursos para o programa – neste caso a SED; 2) por quem
determina as normas de gestão destes recursos – neste caso a SED, e a PROAD; 3) por quem
realiza a gestão e alocação destes recursos – neste caso a coordenação do PROESDE; 4) por
quem detém a expertise temática do desenvolvimento regional, neste caso a equipe do
PROESDE E; 5) por quem opera as instâncias burocráticas – neste caso a SED, a CAE, a
PROPEX, a PROAD.
O fluxo do processo institucional do PROESDE / Desenvolvimento FURB era pouco
formalizado e contou com sistemas de informação também pouco integrados, a despeito de
controles oriundos da DAEX e da posterior criação de um Escritório de Projetos (EGP) em
meados de 2013. As informações relativas ao PROESDE eram inseridas em sistemas de
informação distintos, conforme a função cada órgão ou departamento administrativo. Portanto,
a integração das atividades foi mais dependente da manutenção e juntada de arquivos
documentais isolados. A comunicação interna do PROESDE com os departamentos foi alvo de
críticas em duas das sete entrevistas analisadas.
O relacionamento do PROESDE / Desenvolvimento com o PROESDE / Licenciatura,
na FURB, é também permeado por certa reserva derivada de flancos abertos no momento da
divisão do programa em nível estadual, que acarretou a divisão de coordenação também na
FURB, a partir de 2015. Não foi realizado um levantamento estatístico, contudo o que se
observa das reuniões junto à SED e de contatos com as coordenações do programa em outras
IES é que esta é uma questão específica da FURB, uma vez que a manifestação da maioria das
outras IES é no sentido de que, apesar da divisão do programa em nível estadual, internamente
as IES mantiveram uma única coordenação que dá conta dos dois “subprogramas”.
De fato, na FURB, o PROESDE / Desenvolvimento perdeu um volume de recursos
significativos para o PROESDE / Licenciatura. Os entrevistados, no mesmo sentido,
apresentam dificuldade de compreensão da divisão do programa na instituição, argumentando
que o processo histórico de captação e construção do programa junto ao governo do Estado,
exercido fundamentalmente por membros do PPGDR, foram desconsiderados na ruptura.
Questionam também, e com efeito, o fato de a FURB possuir um programa de pós-graduação
234
REFERÊNCIAS
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Janeiro: Paz e Terra, 2000.
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Educação, nº 24. Dez. 2003. Disponível em
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/n5nc4mHY9N9vQpn4tM5hXzj/?format=pdf&lang=pt. Aceso
em 01 out. 2021.
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243
5 CONCLUSÃO
O presente trabalho teve como objetivo geral avaliar a convergência entre o processo de
educação tutorial do PROESDE / FURB - no período de 2009 a 2019, e a estratégia de
desenvolvimento sustentável expressada pela Agenda Global de Desenvolvimento
(ODM/ODS), a partir do enfoque multidimensional possibilista na Teoria do Desenvolvimento
Regional. A organização foi realizada em três principais capítulos, em um esforço de
apresentação em formato de compêndio, mais os elementos introdutórios e esta conclusão.
Pode-se concluir que, embora não haja aderência declaratória das teorias de abordagem
multidimensional possibilista na vertente semântica apresentada por Guerreiro Ramos, nas
TDRs, há pesquisas que corroboram com a necessidade da inserção de questões ético-
valorativas, representadas pela racionalidade substantiva. A ideia de racionalidade substantiva
foi expressiva em estudos que questionam a intencionalidade do desenvolvimento e que
percebem o desenvolvimento regional em duas vertentes: como fato de análise e como
perspectiva de um “bom” desenvolvimento.
Dentro desta perspectiva do “bom” desenvolvimento, circunscrevem-se variadas
qualificações para o termo, dentre as quais o desenvolvimento sustentável se destaca como uma
estratégia pactuada em nível mundial e que assume diferentes dimensões além da econômica,
quais sejam, fundamentalmente as dimensões social, ambiental e institucional. Nesse escopo se
destaca a abordagem dos ODM e ODM como balizadores mensuráveis das múltiplas dimensões
do desenvolvimento.
O PROESDE / Desenvolvimento FURB, por sua vez, tem uma longa trajetória de
práticas político-administrativas e pedagógicas declaradamente orientadas para o
desenvolvimento sustentável e especificamente com o intuito de contribuir para a governança
multinível necessária para a melhoria dos indicadores e alcance das metas atualmente
compiladas nos ODS. Em termos de resultados de tais indicadores que poderiam ser diretamente
computados como resultados do programa, houve apenas três projetos de intervenção que
chegaram a ser implementados.
Contudo, a metodologia formativa da educação tutorial que é colocada em prática no
programa, tendo os ODM/ODS como eixos transversais é um diferencial que não se limita ao
alcance imediato das metas e indicadores. Mas promove a formação da consciência crítica por
meio da inserção dos estudantes em suas realidades regionais. Neste sentido, houve um
significativo aporte aos participantes do programa no sentido de inserção da dimensão ético-
valorativa em exercício de uma ciência engajada, comprometida e cidadã.
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