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MUDAR SISTEMAS A ECOSSISTEMAS LOCAIS PERSPECTIVAS PARA

PARTIR DAS RELAÇÕES DE INFORMAÇÃO A INOVAÇÃO SOCIAL


Por Juanita Zerda, Katherine Milligan e John Kania Por Izabela Moi e Nina Weingrill Artigos de celebração dos 20 anos da SSIR

VOLUME 1 l NÚMERO 4
EDIÇÃO TRIMESTRAL
JUNHO 2023

O F U T U R O D A
D E M O C RAC I A
O Campo Como Alcançar
Emergente da uma Democracia
Inovação Política Multirracial?
Nosso propósito é reduzir a violência, promover a Por Johanna Mair,
Josefa Kindt e Sébastien Mena
Por Angela Glover
Blackwell
cidadania ativa, justiça climática e transparência.

O Instituto Humanitas360 trabalha para construir sociedades mais justas e igualitárias


em diversos países da América Latina, graças às nossas equipes no Brasil, EUA e com
apoio de conselheiros e colaboradores na Colômbia, Chile, Uruguai, México, Argentina,
Bolívia e Guatemala.
Conheça alguns de nossos projetos:

Cooperativas Sociais - Capacitação profissional Índice de Engajamento Cidadão das


e geração de renda para pessoas privadas Américas - Comparativo do nível de engajamento
de liberdade, egressas do sistema prisional e participação cívico-social dos habitantes de
e vítimas de violência doméstica, através de países do continente em parceria com a The
cooperativas sociais formadas dentro e fora de Economist Intelligence Unit (EIU).
penitenciárias.
Tecendo a Liberdade - Documentário revelando
LAB360 - Cessão de computadores para uni- as contradições do sistema de Justiça Criminal
dades prisionais para que pessoas privadas de brasileiro sob a perspectiva das mulheres que
liberdade possam receber ensino a distância, trabalham nas cooperativas sociais apoiadas
fazer videoconferências com seus familiares. pelo H360.

Saiba mais sobre nosso trabalho em www.humanitas360.org @humanitas360

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 1

SUMÁRIO
Publicada pelo Stanford Center on
Philanthropy and Civil Society

JUNHO DE 2023 l VOLUME 1, NÚMERO 4

ARTIGOS Ilustração de David Plunkert


C A PA

14 Como Alcançar uma


Democracia Multirracial?
POR ANGELA GLOVER BLACKWELL

Os Estados Unidos precisam de uma história honesta e inspiradora –


e que não se intimide ante seu histórico racial – para levar à realização
de uma democracia multirracial vibrante.
Notas sobre uma Falsa Democracia Multirracial
POR DANIEL BENTO TEIXEIRA, DO CEERT

24 O Campo Emergente da
Inovação Política
POR JOHANNA MAIR, JOSEFA KINDT E SÉBASTIEN MENA

A sociedade civil tem se dedicado a solucionar problemas sociais há


décadas, enquanto deliberadamente se abstém de um engajamento
aberto com a política. Mas um novo campo de prática busca revigorar
a democracia emancipando a inovação social desse confinamento.

32 A Urgência de Investir nos


Ecossistemas Locais de Informação
POR IZABELA MOI E NINA WEINGRILL

Só podemos acabar com os impactos desastrosos das fake news ga-


rantindo a existência e apoiando o desenvolvimento de iniciativas locais
que contribuam para reduzir os desertos de notícia. Munir os cidadãos
de informação para que possam participar da vida pública a partir do
território onde residem é a única forma de proteger a democracia.

40 Aprofundar as Relações para Mudar


os Sistemas
POR JUANITA ZERDA, KATHERINE MILLIGAN E JOHN KANIA

As relações são fundamentais para a mudança coletiva e para


desenvolver laços profundos de empatia que ajudem a encontrar
soluções sistêmicas para os problemas sociais.
A Emergência de Relações que Possibilitam Mudanças Sistêmicas
POR CÁSSIO AOQUI, TIANA VILAR LINS E VANESSA PRATA, DO LABÔ

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2 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

SUMÁRIO , Para realizar a promessa democrática da organização comunitária, os doadores


precisam deixar de ver a prática meramente como um instrumento para
promover seus objetivos políticos e táticos.
— PARA SALVAR A DEMOCRACIA, ORGANIZE RECURSOS, PÁG 58

SEÇÕES

4 C A R TA AO L E I TO R 50 ESPECIAL SSIR 20 anos


20 Anos de SSIR O Futuro da Inovação Social
Ensaios de alguns dos mais renomados pesquisadores,
5 EDITORIAL BRASIL pensadores e profissionais no mundo.
SSIR ONLINE 51 A Celebração dos 20 Anos
A História é Viva PAUL BREST

52 Uma "Reimaginação" Radical para Criar uma


6 O QUE HÁ DE NOVO Perspectiva para nosso Futuro
ANA MARIE ARGILAGOS E HILDA VEGA
Livrarias como Centros Cívicos / Aumentando a
Força de Trabalho Verde / Uma Escola de 54 Em Defesa de Um Altruísmo Efusivo
Conhecimento Nativo / TV para os Surdos da África ASHA CURRAN

55 O Futuro do Ensino e do Aprendizado da Inovação Social


8 WARREN NILSSON

P O N TO D E V I S TA
58 Para Salvar a Democracia, Organize Recursos
As filantropias preocupadas com polarizações tóxicas e com
o crescente extremismo político deveriam investir na
organização comunitária.
POR LOREN MCARTHUR

HISTÓRIAS DO CAMPO
60 Empreendedoras Sociais Sauditas
10 Um Banco Próprio Mulheres do Oriente Médio que tentam lançar empresas
Ignoradas pelos sistemas financeiros tradicionais, sociais enfrentam barreiras significativas, mas podem superá-las
profissionais do sexo do maior distrito asiático de potencializando laços sociais.
prostituição criaram seu próprio banco. Agora, a POR GHADAH W. ALHARTHI E TUUKKA TOIVONEN
instituição está capacitando outros grupos marginalizados.
POR PUJA CHANGOIWALA
64 PESQUISA
64

12 Notícias nas quais Você Pode Confiar Conhecimento sobre Poluição do Ar É Poder /
O The Trust Project está estabelecendo padrões, Disciplinar, Punir e Mitigar / Para os Investidores,
no mundo todo, para o jornalismo de princípios o Protesto Supera o Desinvestimento /
combater a disseminação de desinformação e Os Valores da Mentoria
reconstruir a confiança pública.
POR NOOR NOMAN
LIVROS
68 Manifesto pela Clareza
10
Manifesto pela Educação Midiática, de David Buckingham.
POR ALEXANDRE LE VOCI SAYAD

70 Cultivar, Semear e Plantar um Mundo Melhor


Viral Justice: How We Grow the World We Want, de Ruha Benjamin.
POR MEHR TARAR

72 Ú LT I M O O L H A R
Janelas para a Vida

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4 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

C A R TA AO L E I TO R ssir.com.br Publicação trimestral


Volume 1 I número 4 I Junho 2023

Diretora-geral Carolina Martinez


carolina@ssir.com.br
Editora-chefe Ana Claudia Ferrari
ana.ferrari@ssir.com.br

20 Anos de SSIR
Editor-assistente Bruno Ascenso
Programador Web Daniel Miranda
Estagiária Bárbara Lopes da Silva
Agência de FYI Consultoria
Comunicação
Stanford Social Innovation Assim como a SSIR mudou, o mundo

A
Colaboraram nessa edição:
Arte Estúdio Monearte
Review está completando ao nosso redor também já não é mais
Tradução Alexandre Agabiti Fernandez,
duas décadas. Quando o mesmo. Hoje, existem muitas outras Camilo Adorno, Cláudia Izu,
Saulo Krieger
entrei na SSIR, em 2006, publicações que cobrem o campo da
Revisão Mauro de Barros, Paulo Felipe
tratava-se de uma iniciativa inovação social, como ImpactAlpha Mendrone
mais modesta: publicávamos uma e India Development Review, além de Conselho Editorial
revista trimestral e um site, para onde jornais e revistas populares. Você pode Daniela Pinheiro
Eliane Trindade
iam PDFs de nossos artigos da revista ler artigos sobre investimento ESG no
Graciela Selaimen
impressa. Hoje, a SSIR oferece muitas The Asahi Shimbun, sobre filantropia Guilherme Coelho
outras possibilidades de interação entre altruísta na The New Yorker ou sobre Letícia Vidica
Marcos Paulo Lucca Silveira
seu público e colaboradores: webinars, uma ONG de desenvolvimento global
conferências, podcasts, artigos online no The Guardian. Embora isso seja bom Mantenedores Institucionais
Fundação José Luiz Egydio Setúbal
originais, edições em idiomas locais, para o campo da inovação social e para Humanitas360
e-books e, em breve, livros impressos. a sociedade, para nós representa novos Movimento Bem Maior
Embora a gama de produtos oferecidos desafios e exige estar em constante Samambaia Filantropias

pela SSIR tenha mudado, nossa missão evolução e mudança. CIVI-CO | Negócios de Impacto Social
segue a mesma. Conforme resumido Esta edição não apenas marca nosso R. Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 – Pinheiros,
São Paulo – SP, 05415-030
na primeira edição, “a SSIR se dedica a 20o aniversário, mas também duas
Quer falar com a SSIR Brasil?
apresentar o conhecimento utilizável que transições importantes na equipe. Michael
Redação: contato@ssir.com.br
ajudará aqueles que fazem o importante Voss, desde 2017 foi o publisher da SSIR, Projetos especiais, publicidade, eventos:
trabalho de melhorar a sociedade a nos deixa para assumir a mesma posição marketing@ssir.com.br

fazê-lo ainda melhor”. Hoje, continuamos na Science News, uma publicação sem Stanford Social Innovation Review Brasil é uma
comprometidos em fornecer uma publicação da RFM Editores sob licença da
fins lucrativos que comemorou cem anos
Stanford Social Innovation Review.
plataforma onde pessoas de todos os no ano passado. As contribuições de
setores da sociedade – sem fins lucrativos, Michael para a SSIR são muitas, mas uma
governamentais e empresariais – possam área em que ele desempenhou um papel
se reunir para compartilhar novas ideias e importante foi em nos ajudar a expandir
Publisher Michael Voss
práticas, criticar as existentes e aprender nossa presença global. Editor-Chefe Eric Nee
umas com as outras. O diretor de arte, David Herbick, Editora acadêmica Johanna Mair
Quando a SSIR foi lançada, na na SSIR desde 2008, está saindo para Editores David V. Johnson, Bryan
Maygers, Marcie Bianco,
primavera de 2003, seu público eram desfrutar de uma merecida aposentadoria. Aaron Bady, Barbara
Wheeler-Bride
principalmente líderes de mudança social Quando David se juntou a nós, ele criou Editora edições Jenifer Morgan
de todos os lugares nos Estados Unidos. um novo visual, projeto gráfico e logotipo, globais

Com o tempo, crescemos e nos tornamos e embora a revista tenha passado por Conselho Consultivo Acadêmico
um espaço de reunião para pessoas de mudanças nos últimos 15 anos, ainda Paola Perez-Aleman, McGill University
todo o mundo. Quase metade das pessoas mantém muito da mesma identidade. Josh Cohen, Stanford University
Alnoor Ebrahim, Harvard University
que lêem a SSIR online em inglês estão Transições como essas são normais
Marshall Ganz, Harvard University
fora dos Estados Unidos. E agora temos em qualquer organização. O novo Chip Heath, Stanford University
parceiros em Pequim, Seul, Tóquio, São publisher e o diretor de arte trarão Andrew Hoffman, University of Michigan
Paulo, Abu Dhabi e Monterrey, México, novas ideias que mudarão a aparência e Dean Karlan, Yale University
Anita McGahan, University of Toronto
que publicam a SSIR em seu idioma local. a maneira como a SSIR opera, o que é
Lynn Meskell, Stanford University
As edições locais não apenas traduzem bom e chega em um ponto importante Len Ortolano, Stanford University
artigos da SSIR; elas também oferecem arti- de nossa história ao embarcarmos em Francie Ostrower, University of Texas
gos originais, livros e reuniões virtuais e pre- nossos próximos 20 anos. Anne Claire Pache, ESSEC Business School
Woody Powell, Stanford University
senciais para pessoas engajadas na mudança — Eric Nee, editor-chefe Rob Reich, Stanford University
social em seus próprios países e regiões. Stanford Social Innovation Review
A Stanford Social Innovation Review (SSIR) é publicada
pelo Stanford Center on Philanthropy and Civil Society
da Stanford University.
Todos os direitos reservados.

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 5

E D I TO R I A L B R A S I L
SELEÇÃO DE CONTEÚDOS DA SSIR.COM.BR

@stanford.ssir.br /ssirbrasil

A História é Viva ESPECIAL [IN]SEGURANÇA ALIMENTAR


Um dos maiores desafios para que o Brasil atinja os ideais de equi-
dade e desenvolvimento sustentável é voltar a sair do mapa da fome
queles que conhecem o ofício sabem o quão prazeroso (e

A
e encontrar respostas eficazes para a [in]segurança alimentar. Este
extenuante) é fechar uma revista. Da definição do conte- é o tema da primeira edição especial da Stanford Social Innovation
údo às trocas com autores, tradutores, revisores, ilustrado- Review Brasil.
res, editores, designers, o processo é rico, colaborativo e estimulante.
ESPECIAL C O M O F E R E C I M E N TO D A F U N D A Ç Ã O J O S É LU I Z E G Y D I O S E T Ú B A L

Patrocinado pela Fundação José


Nesta edição, os artigos são especialmente potentes: do foco em Luiz Egydio Setúbal, o especial [in]segurança alimentar
problemas já conhecidos (e não mais suportáveis como o racismo, por reúne sete artigos de autores brasi-
exemplo) a cenários que contemplam soluções, da política ao ambiente leiros sobre programas de inovação e
informacional, os textos levam a reflexões profundas e necessárias. impacto social voltados para a saúde
Pense nesta frase do escritor americano James Baldwin: “A histó- nutricional de crianças e adolescentes.
ria não se refere meramente, ou mesmo principalmente, ao passado. Com abordagens diversas que
Ao contrário, a grande força da história provém do fato de que a buscam combater não só a fome, mas
carregamos conosco, de que de muitas maneiras somos inconscien- também as suas causas, os projetos 7 programas inovadores para a saúde

temente controlados por ela e de que ela está literalmente presente


nutricional de crianças e adolescentes

estão em desenvolvimento em cinco Transferência de renda * Combate à má nutrição * Aposta nas merendeiras * Eficiência do Pnae

em tudo o que fazemos”.


Desperdício Zero * Acompanhamento familiar * Hortas comunitárias

estados brasileiros. De programas de


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Ao citá-la num dos artigos de capa da edição, Angela Glover Blackwell transferência de renda, combate à má nutrição, aposta nas merendeiras
reconta a trajetória de um país construído a partir de “estruturas eco- e hortas comunitárias, os casos foram apresentados no IV Fórum de
nômicas, jurídicas, institucionais, sociais e psicológicas forjadas desde Políticas Públicas em Saúde Infantil (FPPSI) da Fundação José Luiz
a escravidão que sistematizaram e codificaram a opressão”. E discute Egydio Setúbal (FJLES). Acesse ssir.com.br e baixe seu exemplar.
então os elementos para os Estados Unidos escreverem uma nova his-
tória e estabelecerem “o arcabouço em torno de raça e racismo, sem o
qual não se pode nem decifrar as causas profundas dos duradouros e Responsabilidade do Financiador
sistemáticos desafios, nem desenvolver soluções eficazes e equitativas”.
ARTIGO | Não Alimente os Zumbis
A perspectiva brasileira sobre algumas das questões levantadas
por Blackwell vem de Daniel Bento Teixeira, do Centro de Estudos Muitas organizações sem fins lucrativos não têm bom desempenho,
das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), que num breve de acordo com alguns especialistas. Mas isso não as impede de con-
texto fala sobre contextos tão tristemente familiares e aponta para tinuarem a arrecadar fundos e se manterem vivas. “Eu costumava
a educação antirracista como parte inexorável do processo de cons- culpar essas organizações, perguntando por que elas não trabalha-
trução de uma sociedade democrática. ram mais, de forma mais inteligente”, escreve o CEO da Fundação
O outro artigo de capa, coassinado pela editora acadêmica da SSIR, Mulago, Kevin Starr. “A ausência de responsabilidade pelo impacto é a
Johanna Mair, traz perspectivas para lá de estimulantes sobre o que os maldição do setor social, e parecia óbvio que as organizações eram os
autores chamam de inovação política: “A prática cidadã de diagnosticar principais infratores. Mas elas não são. Somos nós, os financiadores.”
problemas no sistema político e trabalhar coletivamente visando solu- Como quem financia pode trabalhar melhor? Starr sugere começar
ções que tenham o objetivo de fortalecer e revitalizar a democracia”. com cinco perguntas simples.
Também nesta edição, Juanita Zerda, Katherine Milligan e John
Kania discutem a mudança de sistemas a partir de relações, numa
abordagem extremamente sensível. “Se a maioria dos esforços de Lição da Ucrânia
mudança coletiva não leva as pessoas a mudar fundamentalmente
ARTIGO | A Tecnologia de Ponta nem Sempre É o Melhor
sua consciência e seus modelos mentais”, dizem, “então o sistema
do qual fazem parte também não mudará de maneira significativa.” A resposta de ajuda internacional à guerra na Ucrânia tem mostrado
Cássio Aoqui, Tiana Vilar Lins e Vanessa Prata mostram como o avanços notáveis na telemedicina e revelado que nem sempre as
trabalho relacional ecoa no ecossistema de impacto social brasileiro. soluções mais sofisticadas funcionam melhor. Ao permitirem que os
Dois destaques finais são o texto de Izabela Moi e Nina Weingrill médicos respondam de forma assíncrona, a telemedicina e as consul-
sobre acesso à informação e democracia e também o material sobre O tas por texto ou áudio podem ter resultados de alcance muito maior,
Futuro da Inovação Social. O conteúdo completo incluindo importantes com um número expressivo de pacientes atendidos. A estratégia pode
contribuições brasileiras estará disponível em breve no site. Boa leitura! desempenhar um papel importante diante da escassez iminente de
— Ana Claudia Ferrari, Editora-chefe médicos assistenciais não só nos Estados Unidos, mas também em
Stanford Social Innovation Review Brasil outras partes do mundo.

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6 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

O QUE HÁ DE NOVO
ABORDAGENS RECENTES PARA TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS
! Os irmãos e parceiros da IDEO
David e Tom Kelley (à esquerda)
conduzem um evento de livros na
Kepler’s Books.

ENGAJAMENTO CÍVICO Praveen Madan, coorganizador O financiamento para


da conferência e CEO da projetos provém de diversas

Livrarias como Centros Cívicos Kepler’s Books em Menlo Park,


na Califórnia.
fontes. O braço filantrópico do
Emerson Collective atualmente
POR KATHY O. BROZEK
A conferência ocorreu trabalha com um portfólio de
ara a indústria do esforços, disseminados como em formato digital aberto, 12 livrarias independentes – a
livro, as duas últimas estavam, mantiveram o setor no qual os participantes primeira das três fases de sua
décadas foram uma vivo. Na verdade, o número de sugeriram assuntos diversos agenda para livrarias –, que
montanha-russa. O surgimento lojas foi de 1.650 em 2009 para e se organizaram em grupos será expandido para 24 ainda
de superlojas como a Borders 2.500 em 2022, de acordo com de discussão. Alguns deles em 2023. As selecionadas
e Waldenbooks varreu o a Publishers Weekly. continuaram se reunindo com representam três tipos de
cenário do varejo no fim dos Livreiros, escritores e regularidade pelo Zoom. negócio: locais sem livrarias,
anos 1980 e início dos 1990 editores têm investido no “Encontrar-se mensalmente livreiros sub-representados
nos Estados Unidos. Símbolos crescimento contínuo das lojas com os donos de livrarias da e modelos inovadores. Essas
de resistência, as livrarias independentes como centros conferência para discutir as lojas vão receber um auxílio
plurianual e serviços de
capacitação, além de acesso a
sessões online para orientação
em grupo. E o defensor de
livrarias e investidor de
impacto John Valpey está
dando consultoria financeira
e operacional pro bono e
oferecendo empréstimos com
juros reduzidos – ou sem juros
– em termos flexíveis para
sete livrarias independentes
independentes garantiam comunitários culturais. Um melhores práticas de marketing localizadas na região da Nova
serviços personalizados e pequeno grupo de apoiadores foi um grande benefício”, diz Inglaterra.
eventos locais. Em meados da trabalhou em prol de seu Brad Jones, coproprietário Promotores de livrarias
década de 1990, porém, viram comprometimento com elas da BookSmart. “Obter como Valpey estão
seu espaço concorrer com as e organizou uma conferência conhecimento de proprietários disponibilizando tempo e
livrarias on-line. Atualmente digital de dois dias em outubro de cooperativas de livrarias, conhecimento para novas
a Amazon vende cerca de de 2021, chamada Reimagining uma estrutura que estamos iniciativas. Por exemplo,
50% de todos os livros Bookstores (Reimaginando considerando, ajudou-nos a o projeto Community
impressos no país e os e-books Livrarias, em tradução livre). refletir sobre nosso futuro.” Conversation (Conversa
compreendem 11% do total de Esse evento, que contou Como a maioria dos da Comunidade, em
livros vendidos. com a experiência de Sandra movimentos sociais, a tradução livre) promove o
Apesar desse tumulto, Janoff, cofundadora da Future estrutura organizacional discurso cívico e fortalece
as livrarias independentes Search Network, ajudou a é fluida. “Por enquanto, a comunidade por meio do
provaram ser resilientes, conectar a visão do movimento estamos mantendo o projeto diálogo entre os participantes.
ao passo que a maioria das com o público. Mais de 600 descentralizado, com núcleos A coorganizadora e autora
superlojas fechou desde então. participantes se inscreveram de atividades”, explica o Peggy Holman liderou um
FOTO: CORTESIA DE KEPLER’S BOOKS

De modo surpreendente, e 350 compareceram. Os coorganizador, escritor e editor evento com a jornalista
FOTO: CORTESIA DE OPENLANDS

uma massa crítica de donos organizadores esperavam 200. Paul Wright. “Ainda estamos Mónica Guzmán e 150 pessoas
de livrarias independentes “Reimagining Bookstores é entendendo o que significa ser sobre como superar a divisão
acreditou que os desafios um movimento para fortalecer um movimento, em termos partidária.
de diminuição de margens as comunidades, aprofundar de estrutura e como sistema Em 2023, avançam
e as compras online não o conhecimento e remunerar dinâmico com muitas partes inicitivas como a Beyond
eram intransponíveis, e seus salários dignos”, afirma móveis.” Books (Além dos Livros, em

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 7

KATHY O. BROZEK é consultora para MARIANNE DHENIN é jornalista e escreve ! Arborista aprendiz da Openlands,
setores de impacto social e serviços sobre justiça social e ambiental.
Grace Ehlinger prende sua corda de
financeiros e autora de The Transformation
escalada enquanto sobe em um carvalho
of American Agriculture. Seu trabalho foi
publicado no The Guardian e no jornal do
no Lincoln Park.
Federal Reserve, Community Development
Investment Review.

tradução livre), um projeto MEIO AMBIENTE Foundation e a Illinois Clean


comunitário que visa à Energy Community Foundation.
realização de mudanças sociais
positivas inspirado por três
Aumentando a Força de Eileen Vesey, diretora do
programa CFL Workforce and
indivíduos – um editor, um
autor/editor e o dono de uma
Trabalho Verde Community Initiative, observa
que o programa de aprendizado
POR MARIANNE DHENIN
livraria – que se conheceram aborda a força de trabalho, o
na conferência. E, ainda á mais de 3,5 milhões havia cinco anos indivíduos inte- desenvolvimento comunitário e
em fase de concepção, um de árvores na cidade ressados em carreiras ecológi- as necessidades relacionadas às
grupo de 10 a 15 livrarias de Chicago. Con- cas. Na busca por formalizar mudanças climáticas, ao mesmo
independentes organiza uma forme a mudança climática se um programa sob medida para tempo que coloca os aprendizes
série de eventos, mostras agrava, essa floresta urbana esse treinamento, a organização em carreiras promissoras. “Este
e outras experiências em ganha um papel crucial na recorreu à Federação do Traba- é apenas o ponto de partida”, diz
torno de temas socialmente mitigação de seus efeitos, ao lho de Chicago (CFL, na sigla Vesey. “Dependendo de quais
relevantes e adaptados a suas reduzir as temperaturas locais, em inglês) para obter assistência são seus objetivos e interesses,
respectivas comunidades. aliviar a poluição do ar e con- técnica e financiamento. Força você estará ingressando em uma
Além disso, dois workshops trolar as águas pluviais. de trabalho sem fins lucrati- ocupação na qual terá outras
estão previstos para este ano Com sede em Chicago, a vos, a CFL é uma organização oportunidades de crescimento.”
sobre como pagar salários organização sem fins lucrativos de desenvolvimento econômico O programa é dividido em
dignos a funcionários de Openlands cuida da floresta que apoia vários programas de dois segmentos: um ano de
livrarias independentes. urbana da cidade desde 1963. aprendizado em áreas tão diver- treinamento prático e em sala
“Estamos apoiando as Atenta à crise climática, essa sas quanto ciência culinária e de aula com a Openlands e
livrarias com novas formas organização tem como o manufatura avançada. dois anos com um empregador
de engajar suas comunidades, mais recente compromisso o A CFL auxiliou a Openlands secundário para treinamento
acessar financiamento e adotar programa Arborist Registered a se conectar e pedir adicional. Dugan relata que
novos modelos de negócios”, Apprenticeship (Aprendizado financiamento federal da lei durante o primeiro ano os
revela Madan. Ele enfatiza, do Arborista Registrado), Workforce Investment Act aprendizes “constroem uma
porém, que as livrarias lançado em 2021. Entrando em por meio da Chicago Cook base de conhecimento sobre
independentes “precisam [ter] seu terceiro ano, o programa é Workforce Partnership, que árvores” por meio de aulas que
uma visão mais ampla, e não focado na criação de uma força administra os fundos federais são “ministradas por parceiros da
apenas ser um canal para as de trabalho verde diversificada de emprego e treinamento da indústria e arboristas internos”.
editoras”. e sustentável. região. A Openlands também O programa também recebe
Novas iniciativas “Se desejamos que as pessoas recebe apoio corporativo, financiamento via Openlands e
vão continuar a surgir cuidem da floresta urbana e contribuições individuais e apoio de parceiros empregado-
organicamente, incluindo a administrem ativamente, financiamento de fundações, res secundários, como parques
um futuro hub centralizado uma forma de fazer isso é como a Hamill Family privados e empresas comerciais
por meio do qual as próprias introduzi-las em carreiras bem
livrarias vão gerenciar sua remuneradas”, diz Michael
participação. E, dado o sucesso Dugan, diretor florestal da
da conferência, uma segunda Openlands.
está planejada para 2023. O primeiro programa regis-
“Os movimentos começam trado em Illinois oferece três
quando uma crise é nomeada anos de treinamento remune-
FOTO: CORTESIA DE KEPLER’S BOOKS

de uma forma que toca um rado em arboricultura e silvi-


FOTO: CORTESIA DE OPENLANDS

acorde”, observa Holman, cultura urbana e suporte de


porque quando “as pessoas transição para que os participan-
são atraídas por significado, tes tenham empregos estáveis
intenção, propósito… ao longo após o treinamento.
do caminho, elas encontram Antes de iniciar o programa,
almas gêmeas”. n a Openlands vinha treinando

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8 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

O QUE HÁ DE NOVO KRISTI EATON é uma escritora que vive


em Oklahoma e se concentra em relatórios
orientados para soluções.

de manutenção de árvores, que vantagem às pessoas sub-repre- de 30 anos, esses dados alar- lucrativos, é cofundador da
empregam e treinam aprendi- sentadas e marginalizadas do mam funcionários do governo InteRoots Initiative, com sede
zes no segundo e terceiro anos setor”, acrescenta. e empresários pela necessidade em Denver. Autodenominada
do programa. Esses parceiros Para manter as barreiras à de uma população instruída organização filantrópica não
recebem benefícios, incluídos participação tão baixas quanto para impulsionar a economia. colonial, a InteRoots acredita
créditos fiscais, suporte finan- possível, a CFL paga pela assis- No enclave rural de Kasasa, que as comunidades locais são
ceiro para capacitação e uma tência de transporte de e para membros da comunidade estão as mais capazes para resolver
seleção de candidatos apren- as aulas e outros compromis- determinados a mudar os seus próprios desafios e deter-
dizes com um ano de treina- sos relacionados ao programa. resultados da educação para o minar seu futuro.
mento rigoroso em sala de aula Os aprendizes recebem paco- bem coletivo. Em janeiro, eles O ICPA vai dedicar parte
e credenciais específicas do tes competitivos de emprego, lançaram a Tat Sat Community significativa de sua programa-
setor para as vagas. incluído aumento salarial estru- Academy (TaSCA), uma escola ção à documentação e ao arqui-
A Openlands e os parceiros turado a cada seis meses. Além para jovens locais que oferece vamento do conhecimento
do projeto também investem no disso, têm acesso a feiras de educação acessível dedicada a cultural, em especial as formas
desenvolvimento de uma força carreira e oportunidades signi- enriquecer seus conhecimen- de música e dança. “Sabe-se
de trabalho mais diversificada ficativas de networking, como a tos culturais, para que preser- que as tradições de povos ori-
que reflita as comunidades da reunião anual da Illinois vem e se orgulhem da herança ginários em Uganda, como em
área de Chicago. De acordo Arborist Association. compartilhada. muitas outras comunidades
com dados da plataforma Essas oportunidades são A academia consiste em africanas, são conhecidas por
digital de empregos Zippia, vitais para aprendizes sem cone- uma escola e Instituto de Cul- terem sido transmitidas pelas
mais de 70% dos arboristas nos xões ou conhecimento das nor- turas Nativas e Artes Cênicas músicas e danças tradicio-
Estados Unidos são brancos e mas da atividade. “As pessoas (ICPA, na sigla em inglês), que nais nas comunidades locais”,
93% são homens. que estão fora desse espaço não serve como centro de apren- explica Kibirige, que tem expe-
Esse compromisso com a estão cientes das oportunidades dizado cultural para alunos e riência na prática e pesquisa de
diversidade atraiu Emmanuel ou de quais são as trilhas para a para a comunidade geral de música e dança africanas. “A
Gamez, um aprendiz de 32 anos carreira”, observa Vesey. Kasasa. Com capacidade para cultura tradicional tem sido a
da segunda turma, para o pro- Para garantir a longevidade 500 alunos entre 12 e 18 anos, âncora da maioria das ativida-
grama Openlands. “Não há do programa, a Openlands pla- que pagam apenas 50 centavos des comunitárias na África.”
muitas oportunidades de trei- neja incluir mais parceiros de por dia pela frequência, a aca- Os membros da comuni-
namento para grande parte da trabalho secundários. Vesey demia planeja contratar cerca dade envolveram-se em todos
comunidade latinx que traba- afirma estar confiante de que de 24 professores neste ano, os aspectos do projeto, incluída
lha no setor, então o progresso o programa tem potencial para dependendo da base o número a participação das reuniões da
na carreira não ocorre onde crescer porque é “uma vitó- de matrículas. A ideia é man- comunidade, com a criação da
deveria”, observa ele. O pro- ria para todos”, que beneficia o ter a relação professor-alu- visão do projeto e o estabeleci-
grama Openlands está “defi- clima, as comunidades, os apren- nos melhor do que os padrões mento do conselho comunitá-
nitivamente oferecendo uma dizes e os empregadores. n nacionais. Concebido de acordo rio de nove membros. O comitê
com os critérios nacionais de administra uma organização
EDUCAÇÃO educação, o currículo também cooperativa de poupança e
enfatiza habilidades práticas de crédito (SACCO), que fornece

Escola de Conhecimento Nativo trabalho, educação financeira e


conhecimento cultural.
ajuda financeira estudantil e
educação financeira.
POR KRISTI EATON
FOTO COR TESIA DE DRAMA DUNCAN INITIATIVE

Em 2019, os moradores de De acordo com o cofun-


sistema educacional conseguem pagar as mensali- Kasasa contataram Ronald dador e diretor executivo da
de Uganda está abar- dades escolares e o casamento Kibirige com a ideia de um InteRoots, M. Scott Frank, a
rotado de problemas. infantil, a gravidez na ado- projeto que promoveria edu- filantropia é o único financia-
A evasão escolar atinge 25% lescência e o abuso sexual na cação, finanças e cultura em dor da TaSCA, e doou mais
dos jovens de 13 a 18 anos, escola são as principais barrei- sua comunidade. Kibirige, de US$ 550 mil (aproximada-
motivada, em grande parte, pela ras à educação das meninas. um ugandense com conexões mente R$ 2,5 milhões) até o
pobreza e sexismo. As famílias Com mais de 75% dos 47 com a comunidade Kasasa por momento. O financiamento da
pobres e de baixa renda não milhões de ugandenses abaixo meio de um trabalho sem fins InteRoots ergueu os prédios da

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 9

VALENTINE BENJAMIN (@theValentine- ! A intérprete de linguagem de


Ben) é um jornalista e fotógrafo de viagens
sinais Susan Mujjawa é cofundadora
nigeriano que já fez reportagens sobre
da TV Signs de Uganda.
saúde global, justiça social, política e
desenvolvimento na Nigéria e na África
Subsaariana.

academia, financiou totalmente ARTE & CULTURA sábados. Mujjawa e Eroku então
a criação da SACCO e semeou adaptaram a programação.
seu portfólio de investimentos.
A InteRoots também custeou
TV para os Surdos da África Além dos cofundadores,
quatro âncoras de telejornais
POR VALENTINE BENJAMIN
a construção de um moinho voluntários, com deficiência
de milho local e a aquisição do m Uganda, mais de como intérprete de língua auditiva, e dois intérpretes
maquinário necessário para 1 milhão de indivíduos de sinais na emissora NTV de língua de sinais integram
sua operação. têm deficiência Uganda, na qual apenas uma a equipe. O objetivo deles é
Além de receber educação auditiva. Eles estão entre as hora da programação diária era levantar capital suficiente
subsidiada, os alunos têm a 136 milhões de pessoas na produzida para pessoas com em um futuro próximo para
oportunidade de se candidatar África que apresentam algum deficiência auditiva. contratar os voluntários como
a auxílio financeiro por meio grau de perda auditiva, Nem todas as pessoas surdas funcionários em tempo integral.
do Graduate Enterprise Fund. segundo relatório de 2021 da podem recorrer a fontes de Os cofundadores sabiam que
Os recursos desse fundo, pro- Organização Mundial da Saúde. mídia online, pois muitas não financiar um projeto que atende a
venientes das taxas escolares, A conscientização sobre a sabem ler. Somente quando a uma comunidade marginalizada
serão concedidos a estudantes perda auditiva no continente é informação é convertida em seria um desafio. Mas a doação
com um plano promissor para baixa. Muitas comunidades têm linguagem de sinais ela aparece, de US$ 20 mil (cerca de R$ 100
metas futuras – como seguir poucos ou nenhum intérprete de reforça Mujjawa, “no formato mil) em novembro de 2021,
em seus estudos ou iniciar um língua de sinais, o que impede o mais acessível”. do projeto de Futures Media
negócio – após a formatura. acesso de pessoas com deficiência Remera Nainerugaba, um da Escola de Pós-Graduação
“O mais empolgante sobre auditiva a recursos públicos e ugandense de 35 anos que em Mídia e Comunicação da
a TaSCA e a InteRoots é o fato médicos. Por isso, o Parlamento começou a assistir à TV Signs Universidade Aga Khan, custeou
de que a parceria está funcio- de Uganda aprovou uma lei em no mês de seu lançamento, a pesquisa de mercado, um
nando”, observa Frank, ressal- 2019 que determina que todos os diz que ficou especialmente pequeno estúdio e o lançamento
tando que o apoio das agências noticiários em emissoras de TV frustrado durante o lockdown do canal no YouTube.
locais e do governo, bem como públicas e privadas tenham um da Covid-19, porque “a Em 2023, a principal
a responsabilidade da comuni- intérprete de língua de sinais. comunidade surda foi excluída prioridade da TV Signs Uganda
dade, tem contribuído para sua Para contornar a inação da cadeia de comunicação”. Ele é o piloto do YouTube. Por
eficácia. do governo diante da lenta teve que esperar que os jornais meio dessa implementação em
O desafio, acrescenta Frank, implementação, Susan Mujjawa, publicassem as informações mais pequena escala, espera testar a
será garantir que os padrões uma intérprete de língua de recentes sobre a pandemia – algo expansão da programação para
estabelecidos pela comuni- sinais, e Simon Eroku, um que poderia ter se mostrado sete dias da semana, avaliar a
dade sejam mantidos em fases inovador que é surdo, lançaram mortal nos primeiros meses. viabilidade em termos de custo e
de rápido crescimento. Para a TV Signs Uganda em abril Nas pesquisas de mercado medir as preferências do público
isso, a InteRoots planeja apoiar de 2022. Com transmissão no os fundadores descobriram que em relação à duração e ao tipo de
o projeto nos primeiros dois YouTube, a TV Signs é o primeiro a comunidade surda prefere por programação. Um acordo com
anos de operação, o que exigirá canal do país dedicado a fornecer pessoas surdas transmitindo o a Comissão de Comunicações
que continuem captando fun- conteúdo de mídia em língua conteúdo e que essa comunidade de Uganda, garante a licença
dos em nome do projeto. de sinais de Uganda, projetado passa mais tempo online aos necessária para a TV Signs se
O sucesso da TaSCA será especificamente para pessoas lançar como uma estação de TV
o barômetro para dois outros com deficiência auditiva. O canal independente.
FOTO COR TESIA DE DRAMA DUNCAN INITIATIVE

projetos de educação com base se une às emissoras de língua de Parcerias com provedores
na comunidade que foram sinais TV Surdo em Moçambique regionais de TV a cabo para
imaginados pela InteRoots: e Canal Hipoacúsico Educativo transmitir para toda a região da
um em Atlanta, na Geórgia, e na Argentina ao usar âncoras África Oriental até 2025 estão
outro em terras tribais na área surdos para ler notícias que são em andamento. O objetivo final,
de Four Corners, no sudoeste simultaneamente traduzidas por diz Mujjawa, é que a TV Signs
dos EUA, para atender povos um intérprete. se estabeleça em toda a África e
originários de toda a América Quando teve a ideia do alcance um público mais amplo
do Norte. n canal, Mujjawa trabalhava fora do continente até 2027. n

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10 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

H I S TÓ R I A S D O C AM P O ! Funcionária da USHA auxilia


uma profissional do sexo (centro) a
PERFIS DE PROJE TOS INOVADORES
abrir uma conta bancária na
cooperativa.

os documentos necessários para abrir contas


bancárias. Como viviam em quartos aluga-
dos sem contratos ou recibos de aluguel,
elas não podiam fornecer comprovante de
endereço. Em grande parte sem educação for-
mal e com pouco conhecimento financeiro,
as mulheres poderiam perder seu dinheiro
para policiais extorsivos, amantes violentos
e donas de bordéis desonestas. Algumas
investiram em esquemas fraudulentos, que
prometiam retornos rápidos, e perderam as
economias de uma vida. Em emergências, a
maioria recorreu a agiotas, conhecidos como
kistiwalas, que cobravam juros mínimos de
300% e abusavam delas se deixassem de
pagar. “Muitas profissionais do sexo fugiram
de Sonagachi porque não podiam pagar de
volta os kistiwalas”, relata Loskar.

Um Banco Próprio A situação era especialmente severa para


as meninas das aldeias rurais que migraram
para o distrito de prostituição, diz Satabdi
Ignoradas pelos sistemas financeiros tradicionais, profissionais do sexo Saha, filha de uma profissional do sexo e
do maior distrito asiático de prostituição criaram seu próprio banco. vice-gerente da cooperativa. “Essas garotas
Agora, a instituição está capacitando outros grupos marginalizados. não sabiam contar, e as donas de bordéis e
os kistiwalas tiravam vantagem disso.”
POR PUJA CHANGOIWALA
A discriminação financeira contra as pro-
fissionais do sexo é um fenômeno global que
ishakha Loskar era adoles- profissionais do sexo na Índia normalmente aumenta exponencialmente sua vulnerabili-
cente quando deu à luz, no levam uma vida precária sem rede de segu- dade à exploração, pobreza e crime, segundo
início dos anos 1990. Profis- rança, de acordo com Meena Seshu, diretora a organização sem fins lucrativos Global
sional do sexo em Sonagachi, da Sangram, organização sem fins lucrativos Network of Sex Work Projects (NSWP), do
no leste da Índia, o maior distrito de pros- que trabalha com profissionais do sexo e ou- Reino Unido. Em um estudo de caso de 2020
tituição da Ásia, Loskar começou a mens- tras populações marginalizadas no estado de sobre a cooperativa, a NSWP observou que a
truar de forma anormal alguns meses após Maharashtra, no oeste do país. Presas em USHA “demonstrou como a inclusão finan-
o parto e não conseguia receber clientes. uma teia cruel de dívidas, exploração e cri- ceira e o reconhecimento da atividade sexual
Sua doença a impedia de ter dinheiro su- minalização – sobretudo devido ao estigma como trabalho empoderam as profissionais
ficiente para comprar leite para o bebê ou social e ao ostracismo –, as profissionais do do sexo e possibilitam que tenham acesso FOTO: COR TESIA DE USHA MULTIPURPOSE COOPERATIVE SOCIE T Y LIMITED

remédios para ela. Ela pegou emprestado sexo não têm economias, acesso a emprés- a melhores serviços de saúde e direitos de
5 mil rupias indianas (cerca de US$ 60 ou timos ou qualquer outro serviço financeiro. cidadania, bem como a condições mais se-
R$ 300) de um agiota, sem saber que teria Em 1995, Loskar e 12 outras profissionais guras de trabalho”.
de pagar cinco vezes o valor como juros so- do sexo fundaram a USHA Multipurpose
bre o empréstimo sem garantia. Cooperative Society Limited, a maior insti- A Economia do Sexo
O agiota era sua única opção, diz Loskar. tuição financeira liderada por profissionais Lançada com 30 mil rupias indianas (cerca
Alguns anos antes de o filho nascer, tentou do sexo no sul da Ásia. É, em essência, um de US$ 370 ou R$ 1855), doadas das econo-
abrir uma conta bancária, mas não conseguiu. banco administrado por profissionais do sexo mias pessoais das 13 fundadoras da USHA,
“Como não tinha comprovante de endereço, para profissionais do sexo. a cooperativa agora administra anualmente
disseram que não poderiam confiar em mim, Antes da USHA, a maioria dessas profis- transações no valor total de 16,75 milhões
que eu poderia ser uma ladra, uma bandida sionais em Sonagachi era humilhada e lhe de rupias (mais de US$ 2 milhões ou
ou uma mendiga”, explica. eram negados os serviços de instituições R$ 10 milhões). Sua clientela compreende
A experiência de Loskar não é única. As financeiras tradicionais. Elas não possuíam mais de 36 mil profissionais do sexo de todo

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 11

PUJA CHANGOIWALA é uma jornalista e autora premia-


da que mora em Mumbai. Ela escreve sobre as interseções
de gênero, crime, justiça social, direitos humanos e ciência
na Índia.

o estado de Bengala Ocidental, no leste da a nova cooperativa. Eles haviam convencido USHA são aceitos como prova de identidade
Índia, a quem capacita por meio de contas as mulheres de que o banco era somente mais em Bengala Ocidental. Isso possibilitou que
bancárias gratuitas, empréstimos a juros um esquema fraudulento que roubaria o di- as profissionais do sexo obtivessem docu-
baixos, planos de poupança e esquemas de nheiro delas. Em 1998, a USHA encontrou mentos que permitissem o cadastro para
trabalho autônomo que oferecem treinamento uma solução: contratar as filhas das profis- garantir acesso a outros programas e bene-
vocacional, bem como conecta profissionais sionais do sexo como agentes de cobrança, fícios administrados pelo governo.
do sexo com mercados relevantes para suas o que impulsionou um aumento substancial A USHA também organiza treinamento
novas habilidades. Em 2014, o governo de das cooperadas. vocacional para profissionais do sexo, que
Bengala Ocidental nomeou a USHA como a “As profissionais do sexo podiam confiar aprendem habilidades de plantio, carpinta-
melhor cooperativa do estado. nessas garotas, pois elas cresceram na mesma ria e fabricação de produtos sanitários. Em
A gênese da USHA foi um programa de área, diante de seus olhos”, diz Chatterjee. Sonagachi, elas também são empregadas no
prevenção contra o HIV implementado pelo Aos poucos, conforme testemunhavam suas programa de marketing social da USHA, onde
cientista de saúde pública Smarajit Jana em colegas se livrando de dívidas, mais profis- têm acesso a preservativos a preços subsi-
1992. Por meio dele, Jana conheceu várias sionais do sexo buscaram a segurança eco- diados para organizações que administram
profissionais do sexo como Loskar, cujos nômica oferecida pela USHA. Elas podiam iniciativas de intervenção contra o HIV e
relatos mostravam como a falta de estabi- depositar apenas 5 rupias por dia com agentes doenças sexualmente transmissíveis. Além
lidade econômica também comprometia a de cobrança que viajavam pelo distrito para disso, a USHA administra empreendimentos
capacidade delas de negociar sexo seguro. coletar dinheiro em suas portas. comerciais como de agricultura orgânica e
A diminuição do uso de preservativos sig- Algumas das agentes de cobrança também piscicultura – suas principais fontes de lucro,
nificava um risco aumentado de infecções enfrentaram assédio. Smita Saha, uma agente que também atuam como complementação
por HIV. Por sugestão de Jana, as mulheres de cobrança de 45 anos da USHA, diz que as de renda para profissionais do sexo empre-
decidiram abrir uma cooperativa em 1993, donas de bordéis a insultavam quando visi- gadas nesses programas.
depois de considerar opções como empresas tava esses locais para receber dinheiro das Chatterjee conta que a USHA estabeleceu
de seguro de vida e empreendimentos de mi- profissionais do sexo. Havia, ainda, os clientes um dormitório e um centro de treinamento
crocrédito em desenvolvimento. das profissionais do sexo – os homens que esportivo para os filhos das cooperadas. A
Registrar a cooperativa, no entanto, foi um as assediavam sexualmente. cooperativa oferece empréstimos para edu-
desafio, diz Bharati Dey, uma das fundadoras cação a uma taxa de juros reduzida de 10%
da USHA. “A lei que regia as sociedades co- Empoderamento Holístico ao ano – recalculada após cada pagamento
operativas continha uma cláusula que dizia Rita Ray é uma profissional do sexo em – para ajudar os filhos dessas mulheres a
que os membros de tais sociedades deveriam Sonagachi desde 2008. Ela logo abriu uma prosseguir para o ensino superior.
ter caráter moral”, explica. Como o trabalho conta na USHA, começou a fazer depósitos A USHA também questiona a extorsão e
sexual era considerado imoral, acrescenta Dey, diários e pediu dinheiro emprestado a juros as multas da polícia. Moradores do distrito
“os funcionários nos disseram que podería- de 11% para ajudar a família nas despesas. frequentemente testemunham policiais de-
mos registrar uma cooperativa se disséssemos “Construí uma boa casa para minha família e tendo profissionais do sexo, ameaçando-as de
que éramos donas de casa, mas não quería- também comprei terras agrícolas para eles”, prisão por acusações como serem menores
mos fazer isso”. Após dois anos mobilizando diz Ray. “Agora, tenho título de eleitor, apólice de idade, relata Dey. A intenção dos policiais,
FOTO: COR TESIA DE USHA MULTIPURPOSE COOPERATIVE SOCIE T Y LIMITED

profissionais do sexo e pressionando pela al- de seguro de vida e também seguro de saúde, explica, é extorquir dinheiro. “Como temos
teração da cláusula de moralidade, a USHA tudo por meio da USHA.” o registro de todas as mulheres, vamos à
obteve o status de cooperativa. Ray ilustra o impacto da USHA nos di- delegacia, mostramos os documentos e ga-
As pessoas demoraram a aderir, comenta reitos políticos das profissionais do sexo. rantimos que as soltem”, diz Dey.
Santanu Chatterjee, que trabalhou como ge- Em 2004, e com o trabalho cada vez mais O modelo da USHA contém várias lições
rente de banco da USHA por mais de duas notável da cooperativa de emancipação das para nações do mundo todo. Embora as as-
décadas. Ao final dos primeiros três anos, profissionais do sexo, o governo de Bengala sociadas da cooperativa totalizem impres-
eram apenas 214 cooperadas. As cofundado- Ocidental reconheceu legalmente a caderneta sionantes 36 mil integrantes, a Índia abriga
ras da USHA conduziram pesquisas de porta emitida pela USHA como documento de iden- mais de 800 mil profissionais do sexo, a
em porta em Sonagachi e descobriram que tidade válido. Posteriormente, essas mulheres maioria das quais ainda permanece excluída
as donas de bordéis e os kistiwalas haviam adquiriram título de eleitor por meio dessa dos serviços financeiros e sociais. Seshu de
ameaçado as profissionais do sexo a se po- caderneta e, em 2006, exerceram o direito Sangram, um mentor da National Network
sicionarem contra as operações bancárias da de voto pela primeira vez. Hoje, os documen- of Sex Workers (NNSW), na Índia, diz que,
USHA, porque temiam perder a clientela para tos bancários e de associadas emitidos pela de acordo com uma pesquisa da NNSW

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12 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

de 2020 com 21 mil profissionais do sexo Em 2016, a USHA editou seu estatuto publicados e sites somente se se comprome-
em seis estados indianos, quase 60% delas para estender a associação a outros grupos terem a aplicar os oito indicadores.
não tinham cadastros pelos quais pudessem marginalizados de mulheres, incluídas mu- Os Indicadores de Confiança podem ser
acessar alimentos em grãos subsidiados por lheres trans, pescadoras e empregadas do- acessados pelo site do The Trust Project, e
programas governamentais. mésticas. No entanto, embora esses grupos cada parceiro de notícias participante tem
Para mulheres como Ray, a USHA foi tenham aproveitado os serviços bancários e uma página própria para explicar como apli-
transformadora. Ela conta que as profissio- os benefícios financeiros da cooperativa, o cou os indicadores no trabalho. Os indica-
nais do sexo em Sonagachi sempre tiveram status social delas permaneceu inalterado. dores associados também possuem sinais
que trabalhar, até mesmo em seus ciclos Elas ainda não têm documentos básicos de legíveis por máquina – um vocabulário cor-
menstruais, mas agora, com dinheiro garan- identidade e podem votar. A USHA agora respondente ao schema.org com marcações
tido em contas bancárias, “podemos dizer está lutando, diz Chatterjee, “para garantir e tags digitais – incorporados no código da
‘não’ aos clientes que se comportam mal e que essas mulheres marginalizadas também página para que possam ser lidos por tercei-
podemos dizer ‘não’ às donas dos bordéis tenham todos os direitos que as profissionais ros. Os principais mecanismos de pesquisa da
que abusam de nós”. do sexo da USHA têm”. n internet e mídias sociais como Google, Bing e
Facebook podem processar os sinais legíveis

Notícias nas quais


por máquina nas páginas dos novos parceiros
participantes para avaliar se as notícias são
confiáveis e verdadeiras. Por sua vez, esses

Você Pode Confiar gigantes da internet se submetem ao The


Trust Project como “consultor especialista”
em suas próprias iniciativas para favorecer
O The Trust Project está estabelecendo padrões, no mundo todo, para notícias confiáveis e verdadeiras.
o jornalismo de princípios combater a disseminação de desinformação A pesquisa mostra que a presença dos
Indicadores de Confiança melhora a confia-
e reconstruir a confiança pública.
bilidade entre os leitores de uma publicação.
POR NOOR NOMAN Ao avaliar o impacto desses indicadores, o
Center for Media Engagement da University
declínio da confiança pública na identificar para o público as empresas con- of Texas, em Austin, concluiu que “as avalia-
sociedade civil tem alarmado fiáveis e trabalhar com veículos de notícias ções das empresas de notícias eram mais altas
os apoiadores de valores demo- para melhorar a qualidade das reportagens. quando os indicadores estavam presentes”. O
cráticos e de direitos humanos Fundada e dirigida pela premiada jornalista mesmo vale para as avaliações dos repórteres
nos últimos anos. Em um discurso em ju- Sally Lehrman, a organização sem fins lucra- que escreveram artigos empregando esses in-
nho de 2022 para a 50ª sessão do Conselho tivos é um consórcio internacional de mais dicadores. A Reach PLC, que publica o Mirror,
de Direitos Humanos, a Alta Comissária da de 100 veículos. concluiu a partir de suas próprias pesquisas
ONU para os Direitos Humanos, Michelle Após o lançamento, o The Trust Project que a confiança dos leitores aumentou 8% de-
Bachelet, disse que uma série de “doenças glo- viabilizou grupos de trabalho com os princi- pois que o Mirror incorporou os indicadores.
bais”, como o aumento da desigualdade, criou pais editores do mundo para criar um con-
um terreno fértil para a proliferação de men- junto de padrões de jornalismo rigoroso, ético Das Cinzas Digitais
tiras e de desinformação que contribuíram e transparente com o objetivo de indicar aos Em 2012, Lehrman levou os eventos New
para a erosão da confiança pública na mídia. leitores até que ponto uma história, meio de Media Executive Roundtable (Mesa-Redonda
Em uma pesquisa de 2021 nos Estados comunicação ou jornalista é confiável. Com Executiva de Novas Mídias) e Online Credibility
Unidos, o Pew Research Center e o Imagining base em uma combinação de ética jornalística Watch (Monitoramento de Credibilidade
the Internet Center perguntaram a especia- codificada e entrevistas aprofundadas realiza- Online) da Society of Professional Journalists
FOTO: COR TESIA DE THE TRUST PROJEC T

listas da indústria de tecnologia se os espaços das com o público, os editores criaram oito (Sociedade de Jornalistas Profissionais – SPJ)
digitais serviriam melhor ao público até 2035. Indicadores de Confiança: melhores práticas, para o Markkula Center for Applied Ethics
A resposta da maioria foi que esses espaços conhecimento jornalístico, tipo de trabalho, (Centro Markkula para Ética Aplicada) da
só melhorariam com intervenção deliberada citações e referências, métodos, fontes locais, Santa Clara University, onde atuou como
– justamente o objetivo do The Trust Project. vozes diversificadas e feedbacks contestáveis. diretora sênior do programa de jornalismo
Desde 2014, o The Trust Project tem Parceiros de notícias podem usar o logo- da universidade.
promovido a transparência no jornalismo, ao tipo do The Trust Project em seus trabalhos Posteriormente, criou a Roundtable on

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 13

NOOR NOMAN é colunista de opinião da MSNBC e


$ Fundadora do Trust Project,
jornalista freelancer em Nova York. Ele cobre questões
Sally Lehrman apresenta o projeto relacionadas ao sul da Ásia com foco na interseção entre
no ScoopCamp 2018. cultura e política, particularmente questões LGBTQ,
feminismo e raça.

Digital Journalism Ethics (Mesa-Redonda do consenso prevalecente entre jornalistas na forma como as histórias são contadas, o
sobre Ética do Jornalismo Digital), depois que comprometidos sobre o declínio da indústria. que deixa muitos americanos sentindo como
ela e os colegas manifestaram uma preocupa- É importante ressaltar que ela também se a mídia não os representasse ou compre-
ção crescente ao longo de vários anos com as foi bolsista do John S. Knight Journalism endesse sua experiência. “As plataformas não
mudanças que ocorriam no espaço digital. Fellow da Stanford University, o que lhe deu têm um forte histórico sobre como abordar
Lehrman observou que, nos anos seguintes, acesso à Knight Foundation e ao fundador do a desigualdade racial, então ver um projeto
a virada digital impulsionada pelo tráfego da Craigslist, Craig Newmark – ambos foram os saindo desse meio social é importante e ajuda
mídia resultou em práticas repulsivas e, às primeiros financiadores do The Trust Project. a impulsionar muitas outras conversas”, ob-
vezes, antiéticas. Lehrman sentiu que essas Seus investimentos ajudaram a legitimar serva Waters. Os valores presentes da DEI
mudanças estavam transmitindo a mensagem o projeto, bem como a criar impulso para geralmente são priorizados apenas quando
errada ao público “que isso é entretenimento, captação de recursos. as redações não são mais velhas e masculi-
não é notícia e nós [jornalistas] não nos im- O Democracy Fund também tem sido nas, descobriu o Pew Research Center, o que
portamos com o impacto ou conferimos nos- um importante financiador e apoiador. Paul significa que as redações que mais precisam
sos fatos fazendo reportagens que vão ajudar Waters, diretor do fundo Digital Democracy de reforma são as mais lentas para adotá-la.
o público a entender o que realmente está Initiative (Iniciativa de Democracia Digital), Como o The Trust Project considera ex-
acontecendo aqui”, ela diz. “E o que percebi ficou entusiasmado com o empreendimento de pandir seu trabalho e o consórcio, a natureza
foi que precisávamos fazer mais.” Lehrman assim que soube dele e acredita que é exaustiva da implementação pode ser uma
Ao contrário da era do jornalismo im- um instrumento para preservar o bem público. pressão adicional em redações sobrecarre-
presso – em que um leitor poderia facilmente gadas. “O desafio é, operacionalmente, ga-
diferenciar reportagens de artigos de opinião Gestão Global de Projetos nhar tempo. Os editores estão ocupados, os
e anúncios –, o espaço digital com sua unifor- O Trust Project teve que navegar em um redatores estão ocupados, a administração
midade pode tornar muito difícil distinguir cenário de mídia impulsionado pela maxi- está ocupada”, diz Petty. “Mas reservar um
entre histórias legítimas e histórias comple- mização dos lucros e repleto de polarização tempo para fazer isso direito é superimpor-
tamente relatadas e publicitárias. política. O diretor de estratégia de audiência tante. Você certamente quer fazer isso direito
A crescente preocupação com o com- da ProPublica, Dan Petty, que anteriormente se sabe que tem uma crise de confiança".
prometimento ético que os meios de comu- era um parceiro estratégico do projeto en- Lehrman diz que um dos grandes desafios
nicação estavam tendo para se ajustar ao novo quanto trabalhava no MediaNews Group, a escalonar é a batalha contínua e árdua com
cenário digital motivou Lehrman, em 2014, enfatiza o trabalho do projeto “tanto como um o financiamento e a construção de sistemas
a recorrer a especialistas em mídia tecnoló- imperativo moral quanto para a democracia”. que sejam robustos e abrangentes o suficiente
gica, como o vice-presidente do Google News, Mas para as empresas de mídia, acrescenta, para apoiar os parceiros de notícias que de-
Richard Gingras, para saber se algoritmos “também é um imperativo comercial”. sejam implementar os Indicadores de Con-
poderiam ser usados para resolver o problema. “Falando de uma perspectiva de negócios, fiança. A dimensão tecnológica disso pode
Quando lhe disseram que era possível, se as pessoas não confiam em seu produto, ser especialmente complicada e o projeto
Lehrman viu uma oportunidade. elas não vão se envolver com ele, não vão está descobrindo como facilitar a adoção e a
Ela conseguiu estimular editores e comprá-lo, não vão fazer uma assinatura, não implementação da tecnologia. Além disso, à
executivos da mídia precisamente por causa vão fazer doações”, explica Petty. medida que o projeto se expande globalmente,
O Trust Project também também aumenta a necessidade de traduzir
acredita que diversidade, seus indicadores para uma linguagem que
equidade e inclusão (DEI, funcione nesses contextos locais específicos.
na sigla em inglês; diversity, Ademais, os indicadores não são estrutu-
equity and inclusion) no jor- ras estáticas ou fixas. Em vez disso, exigem
nalismo são essenciais para reavaliação constante. Embora Lehrman des-
construir e manter a con- creva isso como a parte divertida do traba-
FOTO: COR TESIA DE THE TRUST PROJEC T

fiança pública. A pesquisa lho, também consome muito tempo e requer


da Knight Foundation revela interação contínua. “É importante continu-
que a falta de diversidade armos a pesquisar, a ter grupos de trabalho,
nas redações afeta, sem sur- para poder manter e desenvolver os Indica-
presa, a seleção de histórias dores de Confiança para que sejam sempre
dos veículos e muitas vezes representativos e no patamar certo para o
leva a um viés inconsciente momento”, afirma. n

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 15

O FUTURO DA DEMOCRACIA

Como Alcançar
uma Democracia
Multirracial?
Por Angela Glover Blackwell
Ilustração: David Plunkert

Os Estados Unidos precisam de uma nova história – uma história que seja honesta e inspiradora
e não se intimide por seu histórico racial – para levar à realização de uma democracia
multirracial vibrante.

N
a condição de garota negra crescendo numa St. Louis população branca. Muitas pessoas brancas, além disso, não acredi-
segregada, no estado do Missouri, nos anos 1950 e início tam que a nação possa proporcionar bons empregos, educação de
de 1960, absorvi a história corrente sobre os Estados Uni- alta qualidade e segurança econômica para todos sem subtrair as
dos. Ninguém jamais me disse “sente aqui que eu vou vantagens que veem como seu direito inato. E muitas pessoas não
lhe explicar”. Não, eu aprendi pela escola, pela televisão e por filmes. brancas questionam se os Estados Unidos alguma vez vão permitir
Estava no ar. Nem a minha família, nem meus professores ou amigos que todos participem da sociedade de maneira integral e próspera
a refutavam. Era o conto de uma nação talhada por resistência, explo- e nela alcancem seu pleno potencial.
ração e aspiração. Uma nação plena de um potencial que poderia ser É de certa forma animador que esse conto pintado de branco já
explorado por meio de determinação individual e esforços corajosos não seja mais aceito como verdade. Apesar da mudança radical, uma
impulsionando a sociedade rumo à igualdade e à justiça. considerável minoria de americanos tem defendido o mito, levando
Há séculos que essa narrativa alimenta aspirações a um futuro adiante uma história de mágoa e nostalgia branca numa tentativa
melhor, catalisando a imaginação de americanos que travaram bata- de recuperar o passado – para, como dizem alguns, “Fazer a Amé-
lhas políticas épicas, da abolição da escravatura ao sufrágio feminino, rica Grande Novamente”. Essas pessoas estão dispostas a sacrificar
aos direitos civis, direitos dos deficientes e direitos dos LGBTQ. Mas a democracia no altar da superioridade racial, como ficou dramati-
à época em que me formei na Howard University e me tornei ativa camente evidenciado pela violenta insurreição do Capitólio, com o
no movimento Black Power, no fim dos anos 1960, reconheci que intuito de revogar a eleição presidencial de 2020. Vemos esse esforço
a história dos Estados Unidos era em grande parte um mito – um também em leis e políticas que têm por objetivo evitar que pessoas
mito que dependia de enterrar o genocídio dos nativos americanos negras, indígenas e racialmente marginalizadas votem e que desafiam
e a terra roubada dos povos indígenas, a brutalidade da escravidão, a legitimidade de seus votos. E nós o vemos na bem orquestrada
a violência racial e a discriminação de pessoas de cor. campanha para proibir que se ensine a crianças qualquer coisa sobre
Nos últimos tempos, o mito se estilhaçou sob o peso da dispa- a história racial da nação – afinal, o que pode ser mais ameaçador
rada da desigualdade, da estagnação da mobilidade econômica, da para líderes autoritários do que um cidadão instruído e informado?
disfunção institucional e da maior conscientização pública da tensa São ataques não apenas à democracia americana, e sim mais dire-
história racial e do racismo sistemático do país. A promessa e pre- tamente ao movimento de construção de uma pujante democracia
missa central da narrativa – oportunidades para todos – não apenas multirracial. O timing dessa reação não é coincidência. Pessoas não
se mantém não cumprida para as pessoas não brancas, como tam- brancas serão a maior parte da nação em 2045, e, de acordo com
bém se torna amargamente inatingível para uma grande camada da um levantamento de 2019 do Pew Research Center, a maioria dos

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americanos negros, hispânicos e brancos concorda que a diversi- ANGELA GLOVER BLACKWELL é fundadora residente do instituto PolicyLink. É professora da Goldman School
of Public Policy da University of California, em Berkeley, e apresenta o podcast Radical Imagination. Antes disso, foi
dade racial e étnica é “muito boa” para os Estados Unidos. Pessoas vice-presidente sênior da Rockefeller Foundation e sócia do Public Advocates, escritório de advocacia de interesse público.
de todas as raças, idades e formações inundaram as ruas para pedir É também coautora de Uncommon Common Ground: Race and America’s Future.
justiça racial após o assassinato de George Floyd, em maio de 2020.
Isso ajudou a garantir compromissos pioneiros da Casa Branca e O paradigma branco-negro se baseia na compreensão de que a
de corporações no sentido de fazer avançar a igualdade racial. Em história é viva, funcional e está presente em cada aspecto de nossa
2020 e 2022, eleitores foram às urnas em números históricos para vida. A história “não se refere meramente, ou mesmo principalmente,
derrotar candidatos antidemocráticos. Incontáveis ativistas, líderes ao passado”, observou James Baldwin. “Ao contrário, a grande força
populares e funcionários públicos redobraram seus esforços para pro- da história provém do fato de que a carregamos conosco, de que de
teger direitos civis, fortalecer comunidades e revitalizar os sistemas muitas maneiras somos inconscientemente controlados por ela e de
e instituições que lesaram e deixaram de atender uma infinidade de que ela está literalmente presente em tudo o que fazemos.”
pessoas. Coletivamente, esses empenhos refletem um movimento Nos Estados Unidos, a história que carregamos se inicia com o
mais amplo, que está em luta contra a retórica racista e as políticas genocídio de povos indígenas – o roubo de terras, remoções forçadas
que atropelam direitos civis. e um contínuo apagamento cultural. Essas ações criaram os contor-
Para chegar a esse ponto de inflexão, os Estados Unidos precisam nos de violência racial e roubo – de terra, de trabalho, de vínculos
de uma nova história que energize o movimento, a fim de construir familiares, de tradições sagradas, de arbítrio, de autodeterminação e
uma democracia sustentável, vibrante e multirracial. A seguir, pas- de liberdade. O tratamento pernicioso de povos indígenas foi a pri-
sarei a descrever os elementos essenciais dessa história, e entre eles meira expressão da crença não escrita da nação – e essa crença, não
o mais crucial está em estabelecer o arcabouço em torno de raça e obstante, é predominantemente fundacional –, de que as pessoas não
racismo, sem o qual não podemos nem decifrar as causas profundas brancas têm menos valor e podem ser mortas, agrilhoadas, explora-
dos duradouros e sistemáticos desafios nem desenvolver soluções das e/ou descartadas para enriquecer aqueles tidos por mais impor-
eficazes e equitativas. Políticos e a mídia de direita têm exaustiva- tantes. A violência anti-indígena foi central à criação das estruturas
mente demonizado discussões sobre raça para evitar um trabalho de de supremacia branca e o racismo antinegro criou os protocolos de
reparação e mudanças sociais. E muitos “aliados” brancos se preocu- opressão hoje usados para explorar e desumanizar todas as pessoas.
pam com que o enfoque em questões étnico-raciais venha a ameaçar A crença numa hierarquia de valor humano que posicionou no
sua estratégia de conciliação. No entanto, essa tática silenciadora já topo as pessoas brancas – especificamente homens brancos e ricos
não pode ocultar o fato de que sistemas e instituições destinadas a – foi a justificativa para dois séculos e meio de escravidão. Por esse
oprimir pessoas negras – economia mal distribuída, grave desinvesti- motivo, uma história esmiuçada dos Estados Unidos tem de incluir a
mento em escolas públicas, serviços de saúde inadequados e serviços inimaginável brutalidade de tal sistema, as contribuições econômicas
de apoio esvaziados – estão lesando todos os americanos, à exceção dos cerca de dez milhões de africanos e afro-americanos mantidos
dos mais abastados. em servidão e as histórias de sua indomável resiliência e contundente
Essa nova história deve também dissipar a falácia de que a equi- inovação. Também tem de incluir a breve promessa de Reconstrução
dade é um jogo de soma zero e, acima de tudo, deve proporcionar dos Estados Unidos, período que se iniciou após o fim da Guerra
modelos de ação democrática multirracial. Ativistas, organizadores, de Secessão, em 1865, no qual, pela primeira vez, foram aprovadas
líderes e diversas coalizões e movimentos estão evidenciando o poder políticas com vistas a uma democracia multirracial. E ainda incluir
da solidariedade e expondo a mentira de que falar honestamente o Compromisso de 1877, acordo que resolveu uma disputada eleição
sobre raça seja algo que divida o país. Falar sobre raça é, na verdade, presidencial em parte por dar um fim à Reconstrução, o que abriu as
o único meio de a democracia ser bem-sucedida numa sociedade portas à segregação racial de Jim Crow, ao sistema de arrendamento
multirracial. E se ativistas e organizações tiverem sucesso, construir de terras, aos trabalhos forçados e ao terrorismo racial branco.
e sustentar uma vibrante democracia multirracial serão a próxima As consequências desse acordo empurraram as pessoas negras de
grande inovação dos Estados Unidos. volta para a servidão e conduziram o êxodo negro do sul rural para o
norte urbano. Valendo-se do paradigma branco-negro como forma de
abordagem, nossa nova história tem de levar em conta a negligência,
O Paradigma Branco-Negro o desinvestimento e a espoliação de riquezas de pessoas e comunida-
A abordagem para compreender a história racial dos Estados Uni- des negras por meio de políticas como o redlining – prática discrimi-
dos é o que eu chamo de paradigma branco-negro: o composto de natória que vetava empréstimos financiados pelo governo a pessoas
estruturas econômicas, jurídicas, institucionais, sociais e psicológi- negras, o que as impedia de adquirir casas próprias – e programas de
cas forjadas desde a escravidão que sistematizaram e codificaram a renovação urbana que destruíam bairros urbanos negros, deslocando
opressão nos Estados Unidos. Como uma lente pela qual se enxerga e empobrecendo residentes e estabelecimentos. Políticas como essas
a história do país, esse paradigma não ignora nem minimiza o sofri- consolidaram amplas disparidades raciais de receitas e riquezas. Políticas
mento e a exclusão das demais pessoas. Em vez disso, ilumina a de bem-estar, educação e saúde, incluídas a “guerra às drogas” do pre-
interdependência de todos os povos que vivenciaram violência racial, sidente Richard Nixon e a Lei Contra o Crime Violento do presidente
intolerância e oportunidades limitadas e expõe os vieses e crenças Bill Clinton em 1994, que intensificaram o corredor escola-prisão para
que estão na raiz da opressão. Nos Estados Unidos, os mecanismos a juventude negra e parda, levaram à destruição de famílias e comu-
que deram forma e perpetuaram o racismo antinegro permearam nidades não brancas. Todas essas políticas estiveram fundamentadas
as opressões de todos os grupos marginalizados. em falsas imagens e estereótipos e reforçaram a marginalização das

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comunidades negras. Com o passar do tempo, essas ações definiram Essa amnésia histórica serve aos interesses das pessoas mais
os termos do controle econômico, da exploração, da desigualdade de empenhadas em se agarrar ao poder e às estruturas construídas
base geográfica e de políticas sociais ineficazes que impuseram coleti- sobre a supremacia branca. Não surpreende que tenham preparado
vamente os protocolos de opressão. um ataque ao ensino de história às crianças. Suprimir a história racial
Esses protocolos reverberam para muito além da comunidade permite a políticos de direita e a seus simpatizantes insistir na tese
negra. Por exemplo, se os Estados Unidos tivessem enfrentado a de que as persistentes desigualdades são o resultado dos fracassos
devastação das comunidades negras por crack/cocaína nos anos 1990 de pessoas negras, indígenas e racialmente marginalizadas – e não a
como um problema de saúde coletiva e investido em apoio social – consequência de discriminação racial passada e presente e da seletiva
em detrimento da criminalização da adição, da construção de mais generosidade de investimentos do governo, que por gerações a fio
penitenciárias e do encarceramento em massa de pessoas negras –, serviram como alicerce às pessoas brancas. Essa amnésia ofusca o
o país teria se preparado melhor para responder à crise dos opioi- papel essencial de maciços investimentos do governo na criação de
des que assolou muitas comunidades de baixa renda, além de comu- oportunidades em larga escala, que hoje se fazem necessárias para
nidades brancas. Da mesma forma, se os amplos investimentos de a maioria emergente.
outrora em escolas públicas urbanas não tivessem evaporado em Ocultar a história racial também apaga a luta dos negros e o papel
meio ao aumento no número de matrículas de estudantes negros, que americanos negros desempenharam como defensores da democra-
os sistemas de educação pública não seriam tão ruins como são hoje. cia. Obscurece os meios pelos quais as pessoas se uniram em torno
Os protocolos de opressão aos negros produziram a racialização de raça, etnicidade, classe e ação coletiva e realizaram mudanças até
de imigrantes e estabeleceram os contornos de xenofobia que deram então impensáveis que tornaram o país mais justo e inclusivo – do
forma ao sistema de imigração nos Estados Unidos. Fizeram-se pre- sufrágio universal ao fim da segregação legal. O movimento rumo a
sentes na exclusão legalizada e na subordinação de trabalhadores a uma democracia multirracial sempre incluiu milhões de americanos
migrantes da Ásia e da América Latina, ocorridas nos séculos 19 brancos, que se aliavam a comunidades não brancas e pressionavam
e 20. Hoje eles se materializam nos atuais terrorismo, separação e por equidade e inclusão. De novo, não é de admirar que movimentos
expulsão de trabalhadores e famílias latinas, que, embora contribuam antidemocráticos queiram que os americanos esqueçam, ou que jamais
para a economia e paguem impostos, continuam sem documentos e aprendam, que a solidariedade inter-racial tem sido parte essencial
têm negado um caminho para a cidadania. Tais protocolos também do avanço democrático e fonte de poder para grupos marginalizados.
aparecem nas recentes violência e humilhação de famílias latino- As pessoas não brancas têm as mesmas demandas e desejos que
americanas que tentam entrar no país pela fronteira sul. as ondas de imigrantes da Europa ao longo dos séculos e que a classe
Além disso, os protocolos de opressão atuam na criminalização operária branca de hoje: bairros seguros, salários que sustentem uma
e no uso de pseudociência direcionada a pessoas transgênero, não família, educação de alta qualidade e moradia decente e acessível.
binárias e não conformes de gênero; no ódio e na discriminação diri- Somente mediante o aprendizado e a aceitação da complexidade da
gidos a muçulmanos; e na violência e culpabilização de americanos história racial dos Estados Unidos podemos criar uma sociedade que
asiáticos durante a pandemia de Covid-19. Na verdade, se os Estados sirva às necessidades de todos.
Unidos não tivessem sistematicamente ignorado a saúde de ameri-
canos negros durante séculos, a Covid-19 não teria sido tão devasta-
dora quanto foi. Essa negligência se traduziu na desarticulação dos Equidade para Todos
sistemas públicos de saúde, tornando-os incapazes de proporcionar Existe uma arraigada suspeita na sociedade de que apoiar um grupo
os serviços de que o público necessitava e deixando as comunidades prejudica outro. Enraizada em falsas ideias de escassez, essa lógica
negra, latina e nativa americanas mais vulneráveis a índices maiores de de soma zero está incorporada a nosso sistema econômico, mas,
adoecimento e morte. Por fim, os referidos protocolos são acionados além disso, tem sido socialmente condicionada dentro de nós. Na
também quando pessoas marginalizadas se alinham com estruturas verdade, quando a nação mira o apoio onde ele mais se faz necessá-
opressivas, e as endossam, para ter acesso a poder e a privilégios. rio – quando nossas políticas e investimentos criam as circunstân-
Esse impulso para se acomodar ao poder e se manter próximo a cias que possibilitam que as pessoas deixadas para trás participem
ele é hoje evidente – tome-se, por exemplo, o caso do policial negro e contribuam plenamente –, toda a sociedade se beneficia.
que imobilizou George Floyd e do policial asiático-americano que Escrevi a esse respeito pela primeira vez em “The Curb-Cut Effect”
impediu espectadores de intervir enquanto um policial branco man- (“O efeito guia rebaixada”, em tradução livre), que mostrou de que
tinha o joelho sobre o pescoço de Floyd por mais de nove minutos. modo leis e programas destinados a beneficiar grupos vulneráveis
O racismo sistêmico também se revelou nos extraordinários – como guias rebaixadas para ajudar cadeirantes – frequentemente
investimentos em comunidades brancas por políticas e programas de beneficiam a todos. O exemplo deixa claro os amplos benefícios sociais
governo de larga escala. Em 1956, um ato federal concedeu a subúrbios que afluem quando políticas e investimentos se expandem para além
emergentes, predominantemente brancos, acesso fácil a empregos e da lógica de soma zero e usam a equidade para direcionar esforços
comodidades nas grandes cidades, aumentando os atrativos e o valor de mudança social e política.
financeiro de casas e comunidades de subúrbios, enquanto desmon- A equidade tem sido adotada por instituições públicas, privadas,
tava e deslocava bairros não brancos pela construção de autoestradas. cívicas, sociais e empresariais. Ao reconhecer sua importância fun-
Muitas pessoas brancas se recordam da prosperidade e oportunidade damental para o futuro da nação, a primeira ordem executiva de Joe
de meados do século 20 sem reconhecer o papel enorme e discrimi- Biden como presidente fez da equidade racial uma responsabilidade
natório desempenhado pelo governo. do governo federal como um todo.

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O setor privado também tem mostrado um empenho redobrado 30% nos seis primeiros meses de sua implementação. Segundo pro-
visando à equidade. Embora as Empresas B continuem a ser uma jeção do Center on Poverty and Social Policy (Centro para Pobreza
parcela pequena desse setor, elas trazem novos modelos para estru- e Política Social) da Columbia University, se o pacote de expansões
turas econômicas empresariais que servem a interesses de acionistas tivesse sido mantido durante todo o ano de 2021, a pobreza infantil
para além dos estreitos fins lucrativos. Por exemplo, a fabricante de teria sido cortada mais da metade, reduzindo as taxas de pobreza em
comida congelada Rhino Foods desenvolveu um programa de renda 55% para as crianças negras e em 53% para as latinas.
antecipada com empréstimos de emergência para o mesmo dia que se Décadas de pesquisa demonstram que pessoas, famílias e comuni-
transformam em contas de poupança para funcionários. A fabricante dades se fortalecem quando dispõem de segurança econômica básica.
de telhas Fireclay Tile criou um modelo de participação dos traba- Estudos recentes revelaram que quando programas põem dinheiro
lhadores a fim de democratizar a propriedade e distribuir a riqueza diretamente nas mãos de pessoas que vivem na pobreza, elas o gastam
de forma mais equitativa dentro da empresa. de forma a estimular a economia. O estudo do Center for Guaranteed
Também empresas globais estão ficando em dia com a equidade Income Research (Centro de Pesquisa de Renda Garantida) sobre o
– não apenas com afirmações sociais performativas ou com esfor- programa de renda garantida do Stockton Economic Empowerment
ços filantrópicos, mas com investimentos necessários em seu futuro Demonstration (Demonstrativo de Capacitação Econômica Stockton
financeiro. Grandes bancos têm uma longa história de exclusão e – SEED, na sigla em inglês) verificou que a maior parte das compras
exploração racial, desde o uso de mapas que, exercendo o redlining, dos participantes se destinou a satisfazer necessidades básicas. As
eram elaborados pelo governo federal nos anos 1930, às recentes três principais categorias de gastos foram alimentação (37%), artigos
acusações de que a Wells Fargo usava algoritmos racistas oriundos para o lar (23%) e serviços (11%). Os pesquisadores constataram que
de práticas de empréstimo do passado, com isso rejeitando mais da o auxílio mensal ajudava a contribuir com o emprego em período
metade dos pedidos de refinanciamento de hipoteca submetidos por integral e que os beneficiários do SEED apresentaram melhoria em
mutuários negros em 2020. Contudo, alguns grandes bancos come- seu bem-estar, menores níveis de ansiedade e depressão.
çaram a compreender como deslocamentos demográficos poderão Em que pese a incorporação da equidade, estamos vivendo uma
impactar seu futuro econômico. Afinal de contas, são as pessoas das eras mais desiguais da economia americana. A desigualdade em
não brancas que vão fomentar o impulso para comprar casas, abrir nossas estruturas econômicas criou intensa concentração de riqueza
empresas e mandar os filhos para a universidade. Por exemplo, para privada, o que ameaça a segurança econômica de longo prazo da
ajudar a promover o crescimento econômico, o J.P. Morgan Chase nação. Uma história nova deve deixar claro que uma democracia
se comprometeu a investir US$ 30 bilhões em comunidades negras multirracial não pode florescer sem uma economia justa. À medida
e latinas até o fim de 2025, e o Bank of America, US$ 1,25 bilhão. que as pessoas não brancas conquistam mais influência política e
O Citibank não apenas se comprometeu com US$ 1 bilhão, como econômica, podemos esperar mais movimentos públicos e privados
também foi o primeiro banco de Wall Street a aceitar uma auditoria em direção à equidade econômica. Também isso se provará benéfico
racial de suas práticas de investimento. Gradativamente as grandes para a sociedade como um todo.
corporações estão percebendo que não terão futuro financeiro se
não começarem a proporcionar oportunidades financeiras equitativas
para aqueles que já foram por elas sistematicamente discriminados. Uma União Mais Perfeita
A equidade conduz políticas e intervenções de volta para o que Em última instância, a força galvanizadora de uma nova história
realmente importa – as pessoas. O refrão demasiado comum que nacional residirá em sua visão do futuro. É a parte mais fácil da
identifica os governos como sendo o problema ignora a frequência história a contar, já que basta uma passada de olhos pelos movi-
com que grandes ações governamentais são a solução para desafios mentos dinâmicos que conduzem à equidade e pelos seus líderes
sociais de grande porte. Quando a pandemia forçou milhões de ame- para vislumbrar uma verdadeira democracia racial. Eles reconhe-
ricanos a parar de trabalhar e ameaçou a economia, o governo fede- cem que nossas liberdades fundamentais se tornam mais fortes
ral acertou o passo e, pela primeira vez em gerações, fez elevados quando nossas instituições são responsáveis por todos – que quando
investimentos e agiu tendo como alvo as pessoas que mais estavam todas as pessoas são servidas por nossas instituições democráti-
sofrendo: os 140 milhões de americanos pobres ou de baixa renda, cas, todas participam do ato de protegê-las. Coletivamente, esses
que incluem mais da metade de todos os jovens com menos de 18 movimentos têm o potencial de mostrar que um governo do povo,
anos, 42% dos idosos, 59% de nativos, 60% de negros, 64% de latinos pelo povo e para o povo pode produzir resultados extraordinários,
e um terço de todas as pessoas brancas. equitativos, mas somente se todas as pessoas realmente tiverem
Os seis projetos de lei relacionados à Covid-19 aprovados em 2020 voz. Coalizões multirraciais estão trabalhando para remover bar-
e 2021 proporcionaram um valor estimado em US$ 5,1 trilhões em reiras que bloqueiam a oportunidade e a participação de milhões
financiamentos de assistência, que ajudaram a reforçar a demanda do de pessoas. Elas praticam a solidariedade transformadora – abra-
consumidor e reduziram a taxa de desemprego em quase 12 pontos çando problemas e campanhas umas das outras como algo essen-
percentuais a contar de seu pico de 14,8% em 2020, garantindo que cial para a realização de uma sociedade justa. Líderes que tenham
a recessão relacionada à pandemia fosse a mais breve já registrada. A foco na equidade são os herdeiros do que há de melhor nos ideais
expansão do crédito tributário para dependentes menores de idade, dos Estados Unidos. Eles têm a fantasia radical de conceber uma
que foi parte do Plano de Resgate Americano, de 2021, preencheu nação unida não por raça, religião, etnia ou pátria ancestral, mas
uma lacuna que impedia que uma maioria de crianças negras e lati- por ideais compartilhados de liberdade, igualdade e pela busca de
nas se beneficiasse do crédito fiscal e reduziu a pobreza infantil em felicidade para todos.

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Esses defensores de um futuro justo e equitativo estão tradu- mexicano Santiago Mayer, um imigrante mexicano, criou a organi-
zindo as possibilidades e os perigos monumentais deste momento zação pró-democracia Voters for Tomorrow (Eleitores do Amanhã),
em poder político, inovação política, transformação econômica e que auxilia jovens a se tornar civicamente engajados. Allie Young, da
mudança cultural. Eles sabem que os fundadores da democracia ame- geração Z e da nação Diné, fundou a Protect the Sacred (Proteja o
ricana jamais pretenderam incluir pessoas como eles na governança Sagrado), associação que reúne e organiza a próxima geração de líde-
representativa. Não obstante, tais fundadores articularam as grandes res indígenas e que ajudou o presidente Biden a garantir a vitória de
ideias de nossa democracia, que, se aplicadas de maneira fidedigna a 2020 no Arizona, onde o aumento na participação de nativos ameri-
todas as pessoas, criam a possibilidade de incríveis mudanças. Desse canos foi maior que a diferença de votos que Biden teve no estado.
modo, os fundadores foram além de suas próprias expectativas. Hoje, Outro exemplo vem do trabalho de movimentos que visam
líderes racialmente diversos trazem um alento de vida e justiça a aumentar o engajamento político e a participação de eleitores entre
princípios que até então eram palavras ocas. A generosidade de sua comunidades negras e outras comunidades historicamente margina-
visão está impelindo a nação a concretizar os ideais que, tendo sido lizadas do sul do país. Por exemplo, o New Georgia Project e sua
consagrados em seus documentos fundacionais básicos, ainda estão ex-diretora executiva, Nsé Ufot, sabem que nunca foi tão necessário
por ser realizados. engajar eleitores com uma visão positiva de um futuro multirracial
A liderança de hoje carrega consigo o legado de gerações ante- e convencer eleitores não brancos, em especial negros, de que seu
riores que lutaram para fazer o país chegar mais perto de realizar voto faz a diferença. Desse modo, o grupo está organizando as cres-
seus ideais. O movimento pelos direitos civis demonstrou o poder centes comunidades não brancas da Geórgia com a meta de cons-
catalisador e moral dos protestos de massa. Criou um modelo para truir uma nova maioria eleitoral no estado, que atenda a todos os
organizações e alianças multirraciais e multirreligiosas. Líderes de seus residentes. Numa região em que tem sido excepcionalmente
direitos civis como Fannie Lou Hamer e Bayard Rustin destacaram difícil votar, Ufot e seus colegas têm se utilizado de tecnologia para
a necessidade de fazer um uso pleno das forças de todos. Pessoas superar entraves ao sufrágio, têm treinado organizadores locais que
brancas comprometidas com justiça racial juntaram-se ao movimento, vêm registrando centenas de milhares de eleitores e construído uma
por vezes sacrificando a própria vida. Algo de importância crucial, coalização multirracial que obteve históricos e decisivos compareci-
o movimento pelos direitos civis ressaltou o papel central das lide- mentos às urnas em 2020, 2021 e 2022.
ranças negras numa luta, autêntica e de base ampla, por justiça, Uma democracia multirracial vibrante depende de uma economia
inclusão, liberdade e autodeterminação. Segundo observou Danielle equitativa. Grupos diversos estão organizando trabalhadores, mobi-
Allen, teórica política de Harvard, existe uma vertente profunda de lizando eleitores e demandando mudanças políticas para melhorar
pensamento na tradição afro-americana e na filosofia política sobre as condições de emprego e a segurança econômica de milhões de
o sentido e o valor da liberdade. Os que foram privados de liber- prestadores de serviço e profissionais da saúde que recebem baixos
dade compreendem sua essência e significado com clareza cristalina. salários. O grupo Fight for $15, por exemplo, deliberadamente montou
Embora as lideranças pelos direitos civis corajosamente tenham um movimento interracial e conquistou aumentos de salário mínimo
exigido que a nação de maioria branca deixasse os negros entrarem para mais de 26 milhões de pessoas, lutando para reverter a tendência
em seus sistemas e instituições, hoje em dia os líderes com foco na de quase cinco décadas de salários estagnados para os trabalhadores
equidade proclamam a nação e seu futuro como se fossem os seus menos bem pagos, independentemente de raça.
próprios. Em vez de se concentrar exclusivamente em mais direitos e O trabalho com vistas a uma economia equitativa por parte das
proteções legais – que muitas vezes não alteram de maneira substan- organizações de movimentos sociais é reforçado por intensa pesquisa
cial as estruturas de poder existentes – e em vez de buscar inclusão e apoio acadêmico. Felicia Wong, CEO do Roosevelt Institute, ana-
e um tratamento mais justo por instituições que foram construídas lisou os fracassos do neoliberalismo, desafiando os progressistas do
com base na opressão racial, os líderes atuais reivindicam a proprie- “livre mercado”. Ela apontou as contradições inerentes à ideologia
dade sobre a construção da próxima renovação da nação. Muitos que professa a valorização da justiça, da inclusão e do bem comum
deles têm feito mais do que apenas protestar – por mais importante e ao mesmo tempo santifica o capitalismo desenfreado, que afunilou
que seja –, a fim de conseguir poder e exercer a propriedade sobre enorme riqueza no topo, enquanto esvazia a classe média e destina
todos os domínios da vida pública. Estão traduzindo a energia dos um terço da população dos Estados Unidos a viver na pobreza. O
movimentos em organizações capazes de representar a longevidade trabalho de Wong faz uma importante crítica intelectual às políticas
e o poder do trabalho, bem como de sustentar ações de longo prazo neoliberais contemporâneas e lança ideias fundamentais para a cons-
com vistas a construir uma democracia multirracial robusta. trução de uma economia a serviço de todos.
Um exemplo claro está na extraordinária ação coletiva e enga- Darrick Hamilton, professor de economia e políticas urbanas e dire-
jamento político da geração Z. Após o massacre na Parkland High tor fundador do New School’s Institute on Race, Power and Political
School, jovens ativistas criaram a March for Our Lives (Marcha por Economy, realiza uma extraordinária pesquisa em apoio à implemen-
Nossas Vidas), que luta pela legislação de armas. Seu diretor organi- tação dos Baby Bonds (“títulos para bebês”), uma ferramenta política
zacional, Maxwell Frost, acaba de se tornar o primeiro membro dessa inovadora que cria contas de investimento de financiamento público
geração a ser eleito para o Congresso. Dela saiu também o Sunrise para crianças. Também está empenhado em reestruturar a política
Movement (Movimento Nascer do Sol), uma organização de ação industrial, geralmente voltada aos interesses das empresas, para que
política nacional diretamente engajada na defesa de políticas para volte o foco nos trabalhadores – reconhecendo que, quando todos
justiça climática. Ao reconhecer o grande número de organizações compartilham da prosperidade econômica, a economia como um todo
que disseminam desinformações perigosas aos jovens, o imigrante se torna mais forte e mais estável.

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Esses líderes, entre um sem-número de outros, estão criando mode- multirracial com o intuito de garantir que os ganhos obtidos
los de ação coletiva. Nick Tilsen, presidente da NDN Collective e CEO agora não tenham de ser conquistados novamente. Como afirmou
e cidadão da nação indígena Oglala Lakota, mostra como construir o presidente e CEO do PolicyLink, Michael McAfee, tornar o
poder coletivo e soluções locais de grande escala que promovam a governo receptivo e responsável por tudo, particularmente por
resiliência climática e a moradia sustentável – problemas que atormen- aqueles que têm sido oprimidos e marginalizados, exige mais
tam comunidades de baixa renda, indígenas e tribais – em todo o país. do que financiamentos e reuniões sobre diversidade. Exige uma
Monica Simpson e o SisterSong Women of Color Reproductive agenda de governo expressamente comprometida com a equidade
Justice Collective (Coletivo de Justiça Reprodutiva de Mulheres Não racial, com objetivos claros, parâmetros mensuráveis e resultados
Brancas SisterSong) foram pioneiros no movimento de justiça repro- transparentes. McAfee, em parceria com Glenn Harris, presidente da
dutiva, ao expandir os direitos de reprodução para além do aborto, Race Forward, participou da criação do primeiro plano de equidade
a fim de abarcar as condições sociais e econômicas que afetam o racial abrangente para órgãos federais do país, com recursos e
acesso aos serviços de saúde reprodutiva das pessoas e as opções de instrumental que estão ajudando líderes de agências a implementar
escolhas com relação a esses serviços, incluída a capacidade de edu- a ordem executiva do presidente Biden sobre equidade racial.
car os filhos em ambientes seguros e estáveis. McAfee tem atuado também com líderes empresariais no sentido
A diretora-executiva da For Freedoms, Claudia Peña, nos mostra de incorporar princípios de equidade em suas empresas, mediante
que os artistas desempenham papel crucial em garantir nosso futuro mecanismos de responsabilização.
democrático na condição dos que dizem a verdade, dos que curam Esses líderes, entre muitos outros, estão reescrevendo a história
e atuam como forças criativas a abrir corações e imaginários para o americana.
que é possível. Os Estados Unidos ainda haverão de testemunhar uma demo-
A reverenda doutora Liz Theoharis, que trabalha com o reverendo cracia robusta, justa, vibrante, que funcione de maneira equitativa
doutor William J. Barber II na condição de copresidente da Poor em meio a profundas diferenças. Essa ânsia não é nada nova. Em
People’s Campaign (Campanha das Pessoas Pobres), mostra como deve 1869, Frederick Douglass resumiu sua visão para a nova democra-
ser a cara da solidariedade e lembra à nação que a luta para se criar cia multirracial que parecia emergir após a Guerra Civil. “Nossa
uma democracia multirracial pujante não é a luta desse ou daquele população multifacetada conspira para um grande fim”, disse ele,
grupo ou de um partido político. É uma luta sobre o certo e o errado. “e este fim é o de fazer de nós [os Estados Unidos da América] a
Por fim, líderes com foco na equidade estão pressionando o mais perfeita ilustração nacional da dignidade da família humana
governo para que ele se valha dos ideais fundadores da nação, que o mundo já viu.”
alinhando a máquina do governo aos objetivos de uma democracia Mais uma vez, esta oportunidade está batendo à nossa porta. n

BRASIL
O FUTURO DA DEMOCRACIA

Notas sobre uma Falsa


Democracia Multirracial
Por Daniel Bento Teixeira

D
esde crianças somos levados a crer que o Brasil
Para ter uma sociedade mais igualitária,
seria uma democracia racial. Dessa forma o país com
na qual todas as pessoas possam se ver e a maior população negra fora do continente africano e
se sentir parte de um sistema de educação
IMAGEM JORM SANGSORN/SHUT TERSTOCK .COM

com uma das maiores populações de descendentes de


que considere as contribuições civilizatórias portugueses, italianos, espanhóis, japoneses, libaneses, entre outros,
de cada grupo que compõe a sua história, a teria algo de único e original a exportar para o mundo: uma socie-
dade sem racismo.
construção de uma educação antirracista é
Ainda que na década de 1950, intelectuais brasileiros tenham se
necessária, urgente e estratégica. juntado ao coro do movimento negro, denunciando a democracia
racial no Brasil como mito, esta ideia permaneceu viva por gera-
ções, buscando apagar a história de resistência negra ao escravismo
e contribuindo para o silenciamento sobre o racismo na sociedade.

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 21

Como filho de ativistas do movi-


mento negro, nascido nos anos 1980,
fiz parte da minoria das crianças
negras que conheceram a história de
seus antepassados e que conversaram
sobre racismo com familiares e ami-
gos cotidianamente, até mesmo como
forma de sobrevivência a seus efeitos.
Por isso, entendo bem a importância
de retirar esta temática do tabu, o
que vem ocorrendo com um debate
a cada dia mais franco e significativo,
sobretudo nas últimas duas décadas.
Além da minha formação política
no movimento negro, começando
pela minha própria família, tive con-
tato com movimentos de juventude
negra que pautavam essa temática
de forma ampla, enriquecendo meu
repertório para tentar compreender O racismo como lente que impossibilita que um ser
um país tão desigual e contraditório,
considerando a narrativa oficial de humano veja o outro como igual é o empecilho mais
democracia racial por diversas insti-
tuições públicas.
relevante para a construção de uma democracia a
Uma das minhas epifanias nesse partir do valor da equidade.
percurso para melhor compreender o
país é referente ao fato de que bra-
sileiro é nome de profissão. Afinal é
esse o papel, em geral, do sufixo “eiro” na língua portuguesa: car- Seu artigo 1º libertava os filhos das mulheres escravizadas, mas os
pinteiro, marceneiro, pedreiro. Em breve pesquisa, cheguei a uma colocava sob custódia do senhor de escravos, o qual deveria receber
explicação de que “brasileiro” foi termo pejorativo por muitos anos, uma indenização do Estado, quando a criança completasse 8 anos, ou
já que remete à ocupação de quem extraía a árvore do pau-brasil, poderia exigir compensação da própria criança, com seu trabalho for-
desempenhada por criminosos, mandados ao Brasil pela Coroa Por- çado até os 21 anos, em clara medida de institucionalização do trabalho
tuguesa, durante nosso período colonial. infantil, não por acaso ainda hoje muito maior entre crianças negras.
Nesse sentido, o vocábulo simboliza um projeto de exploração, e não Nesse mesmo período, intensificava-se no Brasil o imigrantismo
de construção de uma sociedade, um país, interagindo com quem já se europeu como alternativa para ocupação dos crescentes postos de
encontrava em solo sul-americano. Feita a digressão, não surpreende, trabalho assalariado. A população negra, cujo trabalho foi conside-
portanto, que as marcas deste modelo de desenvolvimento, alicerçado rado qualificado por séculos para atividades variadas e complexas
no colonialismo e no escravismo, ainda estejam tão presentes nas men- durante o escravismo, ironicamente passa a ser considerada mão
tes e corações de muitos, como os que se opõem a ações afirmativas de obra não qualificada para a nova era, a partir da abolição formal
visando à equidade racial, como programas de trainee de empresas da escravatura, o que a relegou ao desemprego em massa e, conse-
focados em jovens negros, a exemplo do que foi lançado pelo Maga- quentemente, ao trabalho informal de forma sistêmica no país, sem
zine Luiza, em 2020. Esta visão nos impede de construir um projeto qualquer proteção social.
de sociedade efetivamente coesa, fundamentada em sua diversidade No entanto, mesmo com a eloquência dos números de relatórios
humana, riqueza que deveria ser valorizada, já que é rara no mundo. atuais sobre desigualdades raciais no trabalho, há quem insista em
Em um país cuja matriz de desigualdades se inicia pelo racismo tentar contradizer os efeitos do racismo. Nada surpreendente em
que a um só tempo expropria o trabalho e causa genocídios de pes- um momento histórico em que narrativas podem valer mais do que
IMAGEM JORM SANGSORN/SHUT TERSTOCK .COM

soas negras e indígenas, naturaliza-se paisagem social em que estes fatos, cujo sintoma mais conhecido é a pandemia de fake news que
grupos sejam vistos como destinados à exclusão, o que impacta vivenciamos.
principalmente sua juventude que experimenta taxas extremamente Assim, infelizmente, é com estarrecedora normalidade (este é
altas de morte violenta. o velho normal no Brasil) que encaro os levantes reacionários da
A título de comparação, vale lembrar que enquanto os Estados Uni- branquitude contra políticas de equidade racial e programas de ações
dos promoviam, ainda que temporariamente, direitos civis para a popu- afirmativas em instituições, a exemplo de universidades e empresas,
lação negra, bem como medidas de indenização e integração, durante dando cumprimento a disposições do Estatuto da Igualdade Racial
o período conhecido como Reconstruction, após finalizada a Guerra e de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a
da Secessão (1865), no Brasil editava-se a Lei do Ventre Livre (1871). Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de

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Discriminação Racial, a Convenção Interamericana Contra o Racismo, DANIEL BENTO TEIXEIRA é diretor-executivo do CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades. Advogado especializado em direitos difusos e coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi
a Convenção 111 da OIT e, principalmente, nossa Constituição Fede- pesquisador-visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Columbia, em Nova York, e fellow do Public Interest Low
ral, cujo artigo 170, inciso VII, prevê, entre outros princípios que Institute, em Budapeste. É conferencista no Brasil e internacionalmente e coautor dos livros Ações Afirmativas: a questão das
cotas; Discriminação racial é sinônimo de maus tratos: a importância do ECA para a proteção de crianças negras e Diversidade nas
devem reger a ordem econômica, a redução das desigualdades sociais, empresas e a equidade racial.
que, no caso brasileiro, não pode ser concebida sem programas que
combatam o racismo, de forma sistêmica, e promovam a equidade.
Nos anos 2000, tive o privilégio de estabelecer trocas de sabe- O pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
res e perspectivas com ativistas e intelectuais dos Estados Unidos, da cidadania e sua qualificação para o trabalho foram estabelecidos
como a professora Kimberlé Crenshaw, que esteve no Brasil em 2007 pela Constituição Federal como finalidades da educação, reproduzidas
apontando para a existência de uma encruzilhada entre as histórias pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A sequência des-
de relações raciais dos dois países: os Estados Unidos dos anos 2000, tas finalidades revela primazia ao pleno desenvolvimento da pessoa
com a ascensão da noção de colorblindness e do mito de pós-raciali- porque, antes de exercitarmos os direitos à cidadania e ao trabalho,
dade, se pareciam muito com o Brasil da década de 1960, que tinha temos nosso pleno desenvolvimento assegurado pelo princípio da
no mito da democracia racial um forte obstáculo para o enfrenta- dignidade humana, fundamento de todo o ordenamento jurídico. O
mento do racismo. Já o Brasil dos anos 2000 se parecia muito com racismo está no lado oposto do que se considera “pessoa”, e digni-
os Estados Unidos dos anos 1960, com o crescente número de pro- dade humana remete à desumanização.
gramas de ações afirmativas nas universidades e em outras esferas. Dessa forma, a busca pela equidade racial pode começar na edu-
Dessa forma era necessário que os movimentos antirracistas de cação básica, traduzindo-se na concepção de que todas as pessoas são
cada país aprendessem uns com os outros. Até porque os movimentos iguais em dignidade, mas vai atravessar todas as formas de sociali-
racistas e supremacistas brancos de ambos os países sempre fizeram zação e relacionamento entre coletivos e instituições e tem valor
seu próprio intercâmbio de informações buscando o aperfeiçoamento estruturante para a sociedade.
de mecanismos de manutenção de privilégios. Há muito ouvimos de especialistas e pessoas à frente da gestão
É nesse mesmo período que o Centro de Estudos das Relações pública algo que de tão batido se tornou quase mantra: a saída é pela
de Trabalho e Desigualdades (CEERT), organização da qual sou hoje educação. Se pensarmos em educação de forma ampliada, em que a
um dos diretores, passou a realizar as primeiras experiências de sociedade tem que ser educada para funcionar para todos, sim o cami-
auditoria racial no Brasil (e provavelmente no mundo) em empre- nho é pela educação. E não podemos simplificar ou reduzir os desafios
sas privadas, a partir do aprimoramento de metodologia própria de de uma educação democrática à universalização da educação básica.
censo em instituições, com vistas à elaboração de diagnósticos para Embora as vivências na escola sejam fundamentais para o pleno
a promoção de equidade racial. A tecnologia social foi desenvolvida desenvolvimento da pessoa, é preciso nos perguntarmos em que socie-
ainda na segunda metade da década de 1990, com base nos estudos dade está inserida a escola de que estamos falando. Em outras palavras,
de Cida Bento sobre branquitude e racismo institucional. não é qualquer concepção de educação que pode contribuir para equa-
Atualmente, realizamos auditorias raciais e censos em diversas cionar os desafios sociais que enfrentamos. Uma educação que reproduz
empresas e outras instituições com o objetivo de produzir diagnós- o racismo não só deseduca, como também busca desumanizar mais da
ticos e engendrar políticas e práticas para torná-las mais equânimes, metade da população brasileira. Além disso, dá à outra parte da popu-
a partir da promoção do antirracismo na cultura organizacional, lação a falsa noção de que seria superior em função da branquitude.
considerando a dinâmica entre diferentes sistemas de opressão: o Portanto, a construção de uma educação antirracista é necessária,
racismo, sexismo, LGBTQIAP+fobia, capacitismo, etarismo, entre urgente e estratégica para uma sociedade mais igualitária, na qual
outros, como preconizam estudos de intelectuais negras e negros todas as pessoas possam se ver e se sentir parte de um sistema de
brasileiros e da Teoria Racial Crítica nos Estados Unidos, sobretudo educação que considere as contribuições civilizatórias de cada grupo
Kimberlé Crenshaw, com o conceito de interseccionalidade. que compõe a sua história.
Somente assim poderíamos dar passos mais concretos no sen-
tido da construção de uma democracia multirracial no Brasil, algo
A Construção de uma Sociedade para Todos ainda muito distante da realidade de um país marcado pelo escra-
A relevância do trabalho e da justiça econômica envolvendo insti- vismo, autoritarismo e pelo racismo como sistema de opressão que
tuições públicas e privadas para a construção de uma sociedade mais hierarquiza pessoas de acordo com seu pertencimento étnico-racial.
equânime remete à educação como caminho para o aprendizado das Nesse sentido, o racismo como lente que impossibilita que um
instituições sobre democracia, sobre equidade como pilar funda- ser humano veja o outro como igual é o empecilho mais relevante
mental para pensarmos bens materiais e imateriais de uma sociedade para a construção de uma democracia a partir do valor da equidade,
com bens públicos e comuns que não podem ser apropriados por luta esta que não deve ser só de pessoas negras, mas igualmente das
determinados grupos. Portanto, pensar uma educação antirracista é pessoas brancas antirracistas que pretendem nela viver.
parte inexorável do processo de construção de uma sociedade para É possível concluir que nossa chance de construção de uma verda-
todas as pessoas, verdadeiramente democrática. deira democracia com base na equidade é diretamente proporcional à
Mas o que seria educação antirracista? Quais seus fundamentos, nossa capacidade de eliminar o racismo sistêmico da sociedade brasi-
seus principais aspectos? As respostas a estas perguntas podem variar leira. Trata-se de objetivo com contornos utópicos e talvez aí resida
segundo diferentes perspectivas, dando mais ou menos peso a cada ele- sua importância: nos manter caminhando de forma consistente, pois
mento que constitui uma noção de educação centrada no antirracismo. se é imenso o desafio, ele não é maior que a recompensa à frente n

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O FUTURO DA DEMOCRACIA

O Campo Emergente
da Inovação Política
Por Johanna Mair, Josefa Kindt e Sébastien Mena
Ilustração: David Plunkert

A sociedade civil tem se dedicado a solucionar problemas sociais há décadas, enquanto


deliberadamente se abstém de um engajamento aberto com a política. Mas um novo campo
de prática busca revigorar a democracia emancipando a inovação social desse confinamento.

E
m 2020, em meio a uma pandemia global e a uma Caroline Weinmann fundou a JoinPolitics em 2019, após tra-
onda de protestos antirracistas inspirados pelo movi- balhar numa fundação alemã que trata de desafios sociais. Sua tran-
mento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), sição de financiadora a empreendedora social foi provocada pela
a jovem organização não lucrativa alemã JoinPolitics percepção de que “as grandes questões do nosso tempo, sejam elas
preparava o seu primeiro grupo de cidadãos motivados para entrar na desigualdades sociais ou mudanças climáticas”, afirma, “terão de ser
política. A organização segue um típico modelo de empreendimento resolvidas num nível político”.
social por meio do qual ela reconhece, seleciona e apoia talentos Para Weinmann, como para outros, a inovação social tem de entrar
políticos com ideias inovadoras para fortalecer a democracia em na política para destravar o seu pleno potencial. A JoinPolitics parte
diferentes regiões e níveis de governo. O grupo selecionado passa de uma prática convencional de inovação social, que reconhece o
por um programa de seis meses de tutoria que inclui financiamento papel da política na criação de um ambiente favorável para o setor,
e treinamento numa série de habilidades, como a de conduzir uma mas sem priorizar mudanças no sistema político. Tradicionalmente,
campanha, além do acesso a uma extensa rede de políticos, empre- a prática de inovação social tem estancado as portas dos sistemas
endedores, organizações e fundações da sociedade civil. políticos. A JoinPolitics, pelo contrário, promove inovação para cor-
Os participantes do programa podem explorar suas ideias, como, rigir ou reconfigurar elementos no sistema político, efetivamente
por exemplo, elaborar um projeto de lei para fortalecer pessoas libertando a inovação social da narrativa dominante que a divorciou
apátridas, estabelecer um grupo de pressão para representar os do reino político. O foco das organizações sem fins lucrativos e de
interesses de uma comunidade sub-representada ou recorrer a seus talentos políticos está em encontrar soluções para fazer frente
agências de governo para recrutar pessoal de grupos minoritários. a ameaças aos princípios democráticos de justiça, igualdade, repre-
As soluções por eles desenvolvidas atendem a uma gama de proble- sentação e participação cívica na Alemanha.
mas sociopolíticos que tem deixado a democracia alemã vulnerável Ao pesquisar esse engajamento político não convencional em seis
à deterioração, incluindo a crescente polarização política, o popu- continentes, descobrimos a onipresença das ameaças à democracia
lismo de extrema direita, a injustiça social e a desigualdade, para e das preocupações com a desestabilização que pautam empreen-
não falar dos processos e estruturas estagnados. A JoinPolitics é dimentos como a JoinPolitics. Como especialistas em organiza-
explicitamente pró-democrática, porém apartidária. Ela apoia talen- ções, analisamos relatos que documentam o estado da democracia
tos provenientes de um espectro de partidos políticos, bem como e conversamos com profissionais da administração pública, das
aqueles sem filiação partidária, mas não se envolve com partidos empresas, da academia, da sociedade civil organizada e da política.
não democráticos ou antidemocráticos. No ano passado, entrevistamos mais de 50 especialistas e agentes

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O FUTURO DA DEMOCRACIA

O Campo Emergente
da Inovação Política
Por Johanna Mair, Josefa Kindt e Sébastien Mena
Ilustração: David Plunkert

A sociedade civil tem se dedicado a solucionar problemas sociais há décadas, enquanto


deliberadamente se abstém de um engajamento aberto com a política. Mas um novo campo
de prática busca revigorar a democracia emancipando a inovação social desse confinamento.

E
m 2020, em meio a uma pandemia global e a uma Caroline Weinmann fundou a JoinPolitics em 2019, após tra-
onda de protestos antirracistas inspirados pelo movi- balhar numa fundação alemã que trata de desafios sociais. Sua tran-
mento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), sição de financiadora a empreendedora social foi provocada pela
a jovem organização não lucrativa alemã JoinPolitics percepção de que “as grandes questões do nosso tempo, sejam elas
preparava o seu primeiro grupo de cidadãos motivados para entrar na desigualdades sociais ou mudanças climáticas”, afirma, “terão de ser
política. A organização segue um típico modelo de empreendimento resolvidas num nível político”.
social por meio do qual ela reconhece, seleciona e apoia talentos Para Weinmann, como para outros, a inovação social tem de entrar
políticos com ideias inovadoras para fortalecer a democracia em na política para destravar o seu pleno potencial. A JoinPolitics parte
diferentes regiões e níveis de governo. O grupo selecionado passa de uma prática convencional de inovação social, que reconhece o
por um programa de seis meses de tutoria que inclui financiamento papel da política na criação de um ambiente favorável para o setor,
e treinamento numa série de habilidades, como a de conduzir uma mas sem priorizar mudanças no sistema político. Tradicionalmente,
campanha, além do acesso a uma extensa rede de políticos, empre- a prática de inovação social tem estancado as portas dos sistemas
endedores, organizações e fundações da sociedade civil. políticos. A JoinPolitics, pelo contrário, promove inovação para cor-
Os participantes do programa podem explorar suas ideias, como, rigir ou reconfigurar elementos no sistema político, efetivamente
por exemplo, elaborar um projeto de lei para fortalecer pessoas libertando a inovação social da narrativa dominante que a divorciou
apátridas, estabelecer um grupo de pressão para representar os do reino político. O foco das organizações sem fins lucrativos e de
interesses de uma comunidade sub-representada ou recorrer a seus talentos políticos está em encontrar soluções para fazer frente
agências de governo para recrutar pessoal de grupos minoritários. a ameaças aos princípios democráticos de justiça, igualdade, repre-
As soluções por eles desenvolvidas atendem a uma gama de proble- sentação e participação cívica na Alemanha.
mas sociopolíticos que tem deixado a democracia alemã vulnerável Ao pesquisar esse engajamento político não convencional em seis
à deterioração, incluindo a crescente polarização política, o popu- continentes, descobrimos a onipresença das ameaças à democracia
lismo de extrema direita, a injustiça social e a desigualdade, para e das preocupações com a desestabilização que pautam empreen-
não falar dos processos e estruturas estagnados. A JoinPolitics é dimentos como a JoinPolitics. Como especialistas em organiza-
explicitamente pró-democrática, porém apartidária. Ela apoia talen- ções, analisamos relatos que documentam o estado da democracia
tos provenientes de um espectro de partidos políticos, bem como e conversamos com profissionais da administração pública, das
aqueles sem filiação partidária, mas não se envolve com partidos empresas, da academia, da sociedade civil organizada e da política.
não democráticos ou antidemocráticos. No ano passado, entrevistamos mais de 50 especialistas e agentes

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envolvidos num amplo escopo de atividades como as das práticas JOHANNA MAIR é professora de organização, JOSEFA KINDT é pesquisadora associada na Hertie
estratégia e liderança na Hertie School, em Berlim, School.
da JoinPolitics. Alemanha, codiretora do Laboratório de Inovação Global
Um deles é a #FixPolitics, da Nigéria, fundada em 2020 por Oby para Impacto da Stanford PACS e editora acadêmica da SÉBASTIEN MENA é professor de organização e
Stanford Social Innovation Review. governança na Hertie School.
Ezekwesili, especialista em políticas públicas, humanitarista e cofun-
dadora da Transparência Internacional. A organização sem fins lucra-
tivos aspira a criar uma democracia que funcione para todos por meio 42% de cidadãos de todo o mundo desconfiam de líderes de governo
da educação e do encorajamento de cidadãos desfavorecidos para e 48% consideram o governo uma força desagregadora.
exercerem seus direitos cívicos, promovendo reformas eleitorais e Apesar dessas deficiências, inovadores políticos consideram a demo-
treinando políticos que favoreçam a democracia. Problemas restriti- cracia a forma mais adequada de governo para garantir ordem política,
vos da democracia – como a falta de inclusão política, a desigualdade desenvolvimento econômico e progresso social. A visão deles reflete as
na educação ou a injustiça social – são também fundamentais para preocupações e preferências da sociedade. Segundo um estudo de 2021
o trabalho da #FixPolitics. da More in Common e da Fundação Robert Bosch, 93% da população
Essas organizações são exemplos de uma tendência mundial alemã era em princípio favorável à democracia, muito embora uma em
de revitalização de princípios democráticos por meio de inovação cada duas pessoas não percebesse suas posições como representadas
cidadã. Iniciativas semelhantes surgiram na última década, incluindo no governo.3 Entretanto, as perspectivas sobre como exatamente se
o National Democratic Institute (Instituto Democrático Nacional), constitui uma democracia estável e funcional variam, e tal variação
que prepara líderes no serviço público dos Estados Unidos; o Inno- proporciona os fundamentos pelos quais a inovação política ganha
vation in Politics Institute (Instituto para Inovação em Política), corpo como reforma sistêmica ou como transformação.
que facilita intercâmbios de melhores práticas de inovação entre Por se tratar de um campo nascente, a inovação política corre
fronteiras e divisões partidárias na Europa; a organização sem fins o risco de se fragmentar em razão da falta de definição e termino-
lucrativos Keseb, que procura construir um ecossistema global de logia estabelecidas. Agora, à medida que os esforços globais para
empreendedores pró-democracia no Brasil, na Índia, na África do fortalecer a democracia aumentam em todo o mundo, chegamos a
Sul e nos Estados Unidos; o Netherlands Institute for Multiparty um momento crítico no qual o campo necessita de consolidação. O
Democracy (Instituto Holandês para Democracia Multipartidária), nosso papel como estudiosos das organizações é o de fornecer lin-
que criou uma rede de escolas de democracia em toda a Europa, guagem e estrutura acerca do que é e do que não é inovação polí-
Ásia, África e América Latina. tica. Por essa razão, neste artigo definimos os contornos do campo,
Todas elas compartilham um desejo de inovação social para “tomar proporcionamos clareza conceitual e mostramos suas articulações
parte na política”. O que fazem e como operam ilustram o que chama- com a inovação social.
mos de inovação política: a prática cidadã de diagnosticar problemas no
sistema político e trabalhar coletivamente visando soluções que tenham
o objetivo de fortalecer e revitalizar a democracia. Os esforços dessas Do Social ao Político
iniciativas respondem diretamente a ameaças cruciais à democracia, A inovação política nos incentiva a pensar em mudança social e
incluindo a ascensão do autoritarismo. Em 2022, o mundo viu mais mudança política como inter-relacionadas – não dissociadas. O polí-
Estados autocráticos do que democracias pela primeira vez em quase tico na inovação política estabelece o contexto do trabalho em polí-
duas décadas. O relatório de resultados globais da Bertelsmann Stif- tica e o sistema político; a política inclui o engajamento cívico (“p”
tung de 2022 categorizou 70 países como autocracias, de um total de minúsculo), bem como engajamento formal em instituições políticas
137, e declarou outros 11 como “democracias altamente imperfeitas”, (“P” maiúsculo). A inovação se refere ao processo de diagnosticar
vulneráveis a se tornar governos autocráticos. Em 2021, a Freedom problemas; desenvolver ideias e experimentar, implementar e adap-
House, organização americana sem fins lucrativos, relatou um novo tar soluções que podem se materializar sob a forma de produtos,
ponto alto nos 15 anos de “recessão democrática” global. Os países métodos ou tecnologias para resolver um problema ou para pôr em
em que a democracia se deteriorava superavam em número aqueles vigor novas práticas políticas.
“com melhorias [na democracia] pela mais ampla margem registrada A inovação política abrange mudanças no modo como pratica-
desde que a tendência negativa começou”. mos a democracia e na infraestrutura que a operacionaliza. Nós a
Além disso, a contínua crise global de saúde pública tem agravado vemos como um esforço contínuo e coletivo para garantir que a
muitas tendências antidemocráticas, como a normalização de poderes democracia continue a ser um sistema eficaz e de operacionalização
de emergência e a extensão do poder do Estado sobre a vida privada adequada para se alcançar ordem e progresso sociais.
dos cidadãos.1 Movimentos populistas continuam a dividir as socie- Nesse sentido, a inovação política não se distingue de um enten-
dades e, segundo o Índice de Democracia de 2021, até mesmo paí- dimento abrangente da inovação social, mas sim é compatível com
ses com democracias “estáveis” tiveram pontuação baixa no quesito ele, e esse entendimento vai além de reconhecer o seu potencial de
“participação do cidadão”.2 Ademais, ainda que os jovens estejam se impactar a vida econômica e política por meio de mudanças sociais.
tornando politicamente ativos, políticos em posições influentes con- Em vez disso, a inovação política opera a reforma ou transformação
tinuam a representar a faixa etária e os interesses das pessoas de 50 de ordens políticas que é central à inovação social.4 Assim, uma visão
anos ou mais. E a falta de representação política – percebida ou real ampla da inovação social incorpora a inovação política como uma
– também pode contribuir para um aumento da desconfiança pública prática adaptada à mudança política.
em relação a políticos e governos democráticos. De acordo com estudo Os desafios da democracia, bem como as soluções inovadoras a
realizado em 28 países pelo Barômetro de Confiança Edelman 2022, esses desafios, são tão antigos quanto o próprio regime. Ao reconhecer

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 27

essa história, a inovação política vem complementar e ampliar três do Brand New Bundestag, do empreendedor social Max Oehl, surgiu
abordagens de há muito estabelecidas para o trabalho pró-democrá- quase ao mesmo tempo que a JoinPolitics, em resposta aos mesmos
tico: inovação democrática, ativismo político e empreendedorismo político.5 problemas sociopolíticos da Alemanha, mas enfatizando dimensões
A inovação democrática diz respeito ao desenho das instituições políticas diferentes. Inspirada no Brand New Congress, movimento
democráticas.6 Ela envolve soluções elaboradas para problemas de norte-americano voltado à eleição de pessoas da classe trabalhadora,
participação igualitária em processos de tomada de decisão política. a organização faz uso de mobilização de base visando o apoio à ela-
Nos últimos 20 anos, por exemplo, as assembleias cidadãs surgiram boração de políticas sociais progressistas e às campanhas de can-
como proeminente inovação democrática na Europa Ocidental. Elas didatos que defendam interesses de comunidades marginalizadas.
reúnem cidadãos selecionados por sorteio que deliberam sobre um O Brand New Bundestag intencionalmente conceitualiza o “pro-
problema político a fim de buscar uma solução coletiva. De modo gressismo” como não partidário – como externo à filiação partidária
similar, a votação eletrônica ou o orçamento participativo (orçamento – em sua missão em favor de políticas “adaptadas para o futuro”
público decidido pelo cidadão) são exemplos importantes que pro- que facilitem a colaboração entre linhas partidárias e também a
movem elementos de democracia direta. Desse modo, a inovação colaboração que independa delas. Em 2022, Oehl foi selecionado
democrática fornece as ferramentas tecnológicas que auxiliam a como Ashoka Fellow em reconhecimento a sua abordagem inova-
democratizar processos deliberativos em corpos governamentais ou dora do trabalho pró-democracia que une as forças do ativismo
outras organizações – isto é, a democratizar o modo como as deci- de base e a política formal. Com esse mesmo espírito, Christiana
sões são tomadas. A inovação política, em contrapartida, mantém seu Bukalo, talento da JoinPolitics e fundadora da organização sem fins
foco mais em pessoas e agendas políticas – ou seja, em quem decide lucrativos Statefree, foi agraciada com uma bolsa Echoing Green,
quais esforços são realizados e por quê. por seus esforços em fortalecer pessoas apátridas por meio de
mudança legislativa primeiramente
na Alemanha e mais tarde no âmbito
da União Europeia.
[A inovação política é]] um esforço contínuo e coletivo As características definidoras do
campo são a determinação em refun-
para garantir que a democracia continue a ser um dar a política em princípios democrá-
sistema eficaz e de operacionalização adequada para ticos fundamentais e em converter
cidadãos em protagonistas da demo-
se alcançar ordem e progresso sociais. cracia. A primeira deixa a inovação
política longe dos esforços para
solapar a democracia, enquanto a
segunda procura reverter tendências
A segunda abordagem, o ativismo político, desafia a ordem política inerentes a formas de populismo, nestas em que líderes supostamente
existente e, quando bem-sucedida, subleva o sistema. Basta pensar representam os não representados, garantindo que se façam ativa-
nos protestos pró-democracia da Primavera Árabe, que intentaram mente envolvidos em processos democráticos de tomada de decisão.
derrubar regimes de opressão, a começar pela Tunísia e espalhan- Em posição central à inovação política como campo de prática
do-se rapidamente por todo o Oriente Médio e norte da África. O encontram-se os inovadores, orquestradores e facilitadores. Eles fazem
ativismo político usa métodos como mobilizações de base e virtuais, da inovação política um esforço coletivo com agenciamento distri-
protestos, petições e realização de campanhas para chegar a uma buído, baseado numa disposição compartilhada de buscar acesso no
transferência de poder do Estado para as pessoas que atuam como sistema político e nele intervir de maneira construtiva.
agitadores externos às estruturas políticas formais.7 A inovação polí- Inovadores. Esses agentes são cidadãos orientados para soluções
tica, por sua vez, busca manter e ainda melhorar o sistema por meio e iniciativas da sociedade civil. Eles partem de um desafio social
de soluções intrassistêmicas. urgente para realizar mudanças em sistemas políticos por meio da
Já o empreendedorismo político trata da criação de novos parti- ação. Ainda assim, em vez de atuar como agitadores externos, eles
dos ou coalizações políticas para preencher lacunas em espectros assumem responsabilidade por desenvolver e introduzir soluções que
políticos democráticos.8 Pode-se pensar em partidos novos, como o estejam de acordo com princípios democráticos. Suas soluções fazem
Pirate Party ou o Volt – ambos ativos sobretudo na Europa –, que frente a toda uma variedade de problemas da democracia e podem
desafiam os modos tradicionais de criação, organização e funcio- se materializar em inúmeras formas, como um programa que recruta
namento dos partidos políticos. Se a inovação política pode incluir mulheres para cargos políticos visando atingir a paridade em governos,
a formação de um novo partido, ela também inclui esforços para séries de oficinas de educação política para administrações públicas
melhorar e modificar os existentes. ou uma rede de lobbies políticos para artistas, com vistas a aumentar
o poder político desse grupo tradicionalmente desprovido de poder.
Os inovadores se engajam numa pluralidade de atividades para
A Prática e seus Agentes atacar problemas que são criados no âmbito político e devem, por
A prática da inovação política integra algumas das atividades asso- essa razão, ser resolvidos mediante ação política. Essas atividades
ciadas a abordagens estabelecidas do trabalho pró-democrático, ali- incluem advocacia, assessoria, networking, educação política, treina-
nhando-as, porém, à inovação social. A título de ilustração, a iniciativa mento e pesquisa.

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Contudo, os inovadores com frequência carecem de recursos e Contrariando a norma desse setor, filantropos e fundações ativas
de influência para estabelecer inovações em práticas políticas, uma em inovação política dão seu apoio a inovadores e orquestradores
vez que não se encontram estruturalmente integrados ao sistema porque buscam chegar a mudanças sociais por meio de mudanças
político. Por vezes fazem uso de parcerias – em particular, conexões políticas formais. Se muitas vezes favorecem modelos de organização
pessoais com representantes eleitos realizadas mediante adesão par- de empreendedorismo comuns à inovação social, esses facilitadores
tidária ativa. Acima de tudo, porém, dependem de outro tipo de ator se posicionam como explicitamente políticos e pró-democráticos.
no campo – os orquestradores – para fornecer a estrutura de apoio A abordagem dos facilitadores em relação à inovação política
necessária visando institucionalizar suas ideias. assenta-se em dois pilares: conferem apoio para períodos mais longos
Orquestradores. Esses agentes constroem e coordenam o campo que o comum em inovação social e usam métodos como o crowdsourcing
da inovação política. Dão forma à dinâmica entre os diferentes ato- para identificar iniciativas dignas de receber financiamento. Os
res e a esfera política, coordenando o fluxo de recursos, ideias e facilitadores que identificamos incluem financiadores que têm
pessoas no âmbito do campo. Sua função é profissionalizar o traba- demonstrado um interesse de longa data em democracia, incluindo
lho de inovação política. Algo importante é que os orquestradores a Open Society Foundation, a William and Flora Hewlett Foundation
inauguram a comunicação entre os inovadores da sociedade civil e e a Ford Foundation. Também identificamos fundações que se
a política e facilitam a institucionalização de inovações, tornando as tornaram ativas em inovação política nos últimos anos, como a
ideias adequadas para a política. Luminate (parte da Omidyar Network), a Schöpflin Foundation,
Orquestradores como a JoinPolitics, o Brand New Bundestag a Hertie Foundation, a Alfred Landecker Foundation, a Obama
e a #FixPolitics, bem como a Tous Elus e a Académie des Futurs Foundation, a Multitudes Foundation e a Daniel Sachs Foundation.
Leaders, da França, e a Keseb, dos Estados Unidos, compartilham As duas últimas representam esforços filantrópicos no sentido de
equacionar o hiato de recursos entre
as iniciativas da sociedade civil e o
poder político. A Obama Foundation,
Inovadores, orquestradores e facilitadores fazem da por exemplo, opera toda uma série de
programas de financiamento voltados
inovação política um esforço coletivo baseado numa ao desenvolvimento de lideranças
disposição compartilhada de buscar acesso no sistema capazes de fortalecer a democracia
em serviços e políticas públicas.
político e nele intervir de maneira construtiva. As atividades dos diferentes agen-
tes podem se sobrepor, mas satisfazer
propostas distintas. Para os inovado-
res, atividades como networking, edu-
um entendimento de que o sistema político necessita de melhorias. cação política e treinamento fazem parte do processo de geração de
Tal compreensão conduz a aspiração dessas organizações para a ideias e conhecimentos, enquanto os orquestradores as empregam
sistematização de esforços já existentes, mas talvez insuficientemente para construir o campo de inovação política. De modo semelhante,
elaborados. A diversidade de suas estratégias ilustra respostas os orquestradores adquirem e distribuem recursos com o objetivo
possíveis à representação desigual e à participação cívica insuficiente de auxiliar inovadores a organizar seus esforços para, ao final, tornar
em diferentes países. Esses orquestradores constroem pontes suas ideias adequadas à implementação, enquanto os facilitadores
entre políticas e cargos públicos para inovadores que fortalecem fornecem recursos para que o campo cresça e possa se sustentar
a democracia. Em muitos casos, seus nomes indicam o que cada a si mesmo.
qual acredita ser a melhoria necessária para a democracia em seus
respectivos países – pode ser o melhor acesso à política (JoinPolitics),
um parlamento representado de maneira equitativa (Brand New O Trabalho na Democracia em Ação
Bundestag), reformas estruturais (#FixPolitics), inclusão (Keseb, que O trabalho dos agentes assume diferentes formas, atividades e
significa “todas as pessoas” na antiga língua sul-semítica do ge’ez), práticas. Para compreender como a inovação política funciona
ou legitimidade (Tous Elus quer dizer “todos eleitos” em francês). e como cria impacto, julgamos útil fornecer um detalhamento
Facilitadores. Os financiadores desse campo são em grande parte sobre o trabalho na democracia e sobre as trajetórias de impacto
atores filantrópicos não convencionais na medida em que abraçam a características da inovação política. Nossa pesquisa identificou
instância política e pró-democrática, mas não necessariamente todas especificamente três focos desse esforço que juntos explicam de
as concepções políticas das iniciativas por eles apoiadas. Tradicional- que modo a inovação política fortalece a democracia. Inovadores e
mente, na Europa Ocidental, a filantropia tem investido em política orquestradores diferem quanto a adotar um foco ou diversos deles.
de maneira indireta – por exemplo, ao financiar organizações da Esses focos são úteis para mapear partes interessadas relevantes
sociedade civil em busca de mudanças políticas –, mas tem evitado e ajudar financiadores a investir em portfólios de financiamento
doações e financiamentos diretos a causas políticas. Na Alemanha e e desenvolvê-los.
no Reino Unido, as fundações têm sido até mesmo legalmente obri- O trabalho com foco no cidadão mobiliza cidadãos que são ou se
gadas a se abster de financiar iniciativas de pessoas e instituições sentem deixados de fora do sistema político. Esse trabalho é pri-
que sejam parte da estrutura política formal. mordialmente o de trazer cidadãos e a sociedade civil de volta para

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a política e não raro se baseia em campanhas voltadas a organizar Tiaji Sio, talento da JoinPolitics e cofundador da iniciativa
cidadãos para que façam valer seus direitos civis (votem) ou se enga- DIVERSITRY, busca a via da reforma enfrentando processos e
jem na política (disputem cargo eletivo). Exemplos incluem ideias representação não democrática em instituições públicas alemãs.
de crowdsourcing, visando mudanças políticas ou educação política Valendo-se da experiência de Sio como servidor público no Minis-
para o público por meio de campanhas de educação do eleitor, jogos tério das Relações Exteriores, a equipe do DIVERSITRY formou
de simulação ou oficinas. uma rede interdepartamental de pessoas não brancas que trabalham
O trabalho com foco no líder tem por objetivo identificar e ali- na administração pública. Elas assessoram ministérios sobre como
mentar o talento político. De um modo geral, busca diversificar a aprimorar a representação e a justiça nos atos de recrutamento e
reserva de talentos políticos, reconhecendo grupos sub-representa- de formulação de políticas. A Politics in Colour (Política em Cores)
dos e chegando a eles, combatendo a natureza hierárquica e inercial também faz frente a desigualdades raciais em instituições públicas.
de carreiras políticas mediante diversas atividades de treinamento e Essa iniciativa australiana treina e apoia mulheres não brancas,
apoio. Muitas vezes esse trabalho baseia-se no estabelecimento ou incluindo as altamente sub-representadas mulheres indígenas, para
uso de academias, incubadoras ou centros de treinamento existen- que se tornem funcionárias públicas ou políticas, o que permite
tes. Exemplos disso incluem a seleção e o treinamento de candida- que levem os interesses de suas comunidades para a esfera política.
tos a cargos entre grupos sub-representados, por vezes fornecendo Os esforços e iniciativas que buscam a via da transformação têm
financiamento a candidaturas. Uma agente estabelecida nessa linha o objetivo de reconfigurar o sistema operacional. Essas tentativas
de trabalho é a Apolitical, que coordena e licencia uma rede global partem do princípio de que as instituições de nossos dias não estão
de instituições de treinamento com vistas à liderança política. Por de todo adaptadas à finalidade e precisam de mais do que uma
meio de seu ramo de empreendimento social, a organização oferece simples atualização ou ajuste das atuais circunstâncias – deman-
cursos grátis de formulação de políticas, desenvolvidos em colabora- dam uma mudança estrutural. Ao longo dessa via, as instituições
ção com governos, e conecta líderes políticos e funcionários públicos existentes são, por essa razão, o objeto da mudança, mais do que
com vistas a promover o aprendizado entre pares. os meios para ela.
O trabalho com foco na estrutura procura dar forma à infraestru- O movimento Tous Elus segue essa via, personificada por seu
tura da democracia e às regras que a governam. Pode ter como alvo moto segundo o qual (re)inventar a democracia depende das pes-
políticas que não estejam dando boa resposta a problemas relacio- soas – seu slogan “la démocratie n´existe pas, à nous de l´inventer” se
nados à democracia, e isso em diferentes níveis. Pode também se traduz por “a democracia não existe, cabe a nós inventá-la”. O Tous
empenhar para mudar normas em administrações públicas (por Elus organiza suas atividades em torno do princípio de legitimidade
exemplo, a representação de minorias) ou leis no âmbito regional democrática e, assim como o #FixPolitics, forma o público e treina
ou nacional. O movimento #FixPolitics engaja-se num trabalho de jovens de comunidades politicamente marginalizadas para que se
democracia estrutural mediante a busca de amplas reformas cons- tornem politicamente instruídos, exerçam seus direitos democráti-
titucionais e eleitorais em suas instituições legislativa, executiva e cos e concorram a cargos eletivos.
judiciária. A organização demonstra de que modo os agentes de
inovação política podem atender a mais de uma categoria de tra-
balho na democracia: a estratégia triangular do #FixPolitics inclui O Futuro do Campo
também o gerenciamento de campanhas e programas públicos, Enquanto os focos do trabalho e de suas vias fornecem insights sobre
visando produzir um eleitorado nigeriano competente (trabalho o impacto potencial da inovação política, a avaliação da atividade
conduzido por cidadãos), e a operacionalização de uma escola de política é necessariamente – nas palavras de Steven Teles e Mark
treinamento político (com foco no líder). Schmitt – um “ofício ardiloso”.9 Ferramentas populares para ava-
Todos os três expedientes do trabalho em democracias promo- liar e comunicar impacto em inovação social não são aplicáveis à
vem mudanças no sistema político e criam impacto ao longo de inovação política, uma vez que o progresso e a mudança ocorrem
duas vias principais: a reforma e a transformação da democracia. em padrões não lineares e entrecortados.
Ambas as vias são consistentes com uma abordagem fragmentada Por mais que possa ser impossível desenvolver indicadores univer-
e gradual de mudanças voltadas mais ao rejuvenescimento do que salmente aplicáveis para captar e comparar impactos em diferentes
à substituição da democracia. tipos de trabalho e de vias, o monitoramento do progresso é impor-
Os esforços que buscam a via da reforma têm por objetivo atua- tante para as organizações individuais e para o campo da prática.
lizar o sistema operacional para fortalecer a democracia. Em outras As três categorias de trabalho por nós esboçadas ajudam a defi-
palavras, buscam expandir o sistema, tornando-o mais inclusivo, nir medidas significativas para monitorar atividades, tais como a
representativo, justo e equitativo, ao mesmo tempo que se man- quantidade de sessões de treinamento para talentos políticos que
tém intacta a sua arquitetura. Tais esforços poderiam versar sobre foram conduzidas; captar retornos, como o da quantidade de políti-
uma garantia de que as instituições políticas existentes representem cas que foram projetadas e o da quantidade de inovadores políticos
melhor a população e de que os serviços públicos reconheçam as que disputaram cargos políticos ou se formaram na universidade;
necessidades dos cidadãos e respondam adequadamente a elas. Por ou apresentar resultados, como os de inovadores em diferentes posi-
essa via de reforma, as instituições políticas existentes são ferramen- ções de poder formal, políticas implementadas ou leis aprovadas.
tas para a mudança. Considerem-se, por exemplo, representantes Contudo, em razão da natureza não linear das mudanças políticas,
de minorias sendo eleitos para cargos com o intuito de aumentar a temos de resistir à tentação de consagrar e otimizar metas facil-
representatividade dessas minorias num governo. mente mensuráveis.

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Independentemente da via escolhida, é bem provável que as mudan- de sangue sociais. É provável que o melhor meio de fazê-lo esteja
ças no sistema político serão muito lentas e tortuosas, com altos e baixos na promoção de intercâmbio e colaboração entre diversas pessoas
que não podem ser de todo antecipados.10 Pensemos nos candidatos que possam manter vivas ideias alternativas, em vez de registrar
que não concretizam todas as esperanças e promessas que fizeram em essas ideias numa estrutura específica – algo que a maior parte dos
seus discursos de campanha, já que estar em campanha para um cargo orquestradores já compreendeu ao enfatizar o treinamento e a cons-
e efetivamente ocupá-lo são tarefas distintas, que requerem habilida- trução da comunidade.
des diferentes. Ou nos numerosos reveses criados por movimentos e Também precisamos de mais experimentação sobre como amparar
campanhas antidemocráticas, como a campanha do Brexit, em 2016, do e financiar a inovação política. Os financiadores devem abrir mão
partido Reform UK, de Nigel Farage, denunciado por deliberadamente de práticas de investimento de impacto que antecipem um enga-
disseminar desinformação para conquistar eleitores. Portanto, a ino- jamento prático com a parte beneficiária ou investida. A inovação
vação política precisa ser um esforço contínuo e coletivo tendo como política como um campo só vai prosperar e ser capaz de fortalecer
base um compromisso compartilhado com princípios democráticos e e revitalizar a democracia quando os investidores humildemente
com a mobilização de uma massa crítica de pessoas e ideias para efe- se afastarem de um envolvimento direto em seus investimentos a
tuar mudanças políticas. Jamais pode ser responsabilidade ou função fim de garantir autonomia e independência. Os atuais entusiasmo e
apenas de inovadores ou orquestradores individuais. aprendizado em torno da filantropia baseada na confiança, na qual os
O marcador definitivo de impacto da inovação política é o quanto financiadores obtêm mais poder e controle sobre as comunidades por
ela contribui para uma democracia saudável. Algumas organizações, eles servidas, podem proporcionar insights importantes sobre como
como a Democracy Fitness, sediada na Dinamarca, consideram a administrar as relações não apenas entre financiadores e benefici-
democracia um músculo que demanda contínuo treinamento e forta- ários, mas também entre financiadores e orquestradores. Contudo,
lecimento. Uma aspiração a manter a democracia saudável por meio são necessários diálogos mais honestos para se compreender como
de rigoroso treino de fitness, em oposição à supressão de patologias traduzir o compromisso de salvaguardar princípios democráticos
e ao combate a sintomas, também ajudaria a evitar doenças e ame- em sociedade num código operacional para inovadores, orquestra-
aças democráticas futuras. Os sistemas e receitas de treinamento e dores e facilitadores.
curas deveriam ser destinados à sociedade, levar em conta diferen- A ascensão da inovação política atesta o medo das sociedades
tes realidades geográficas e temporais, além de ser direcionados ao de perder a democracia. Demonstra uma disposição em melhorar
progresso social. o sistema pelo uso de meios construtivos – em oposição a meios
Para que o campo se torne impactante e institucionalizado, preci- radicais e antissistêmicos. Busca redefinir a responsabilidade polí-
saremos pensar com mais cuidado em como nos relacionamos com tica, tornando “o social” político e “o político” social. Os agentes
e/ou potencialmente cooptamos as infraestruturas políticas existen- que dão forma a esse campo de prática estenderam a inovação
tes. Por exemplo, na maior parte dos países europeus, os partidos social à esfera política para preencher a lacuna entre sociedade civil
políticos recebem financiamento público como forma de amparo e política, que tornou tão vulnerável a democracia. Eles sabem que
a seu trabalho. Na Alemanha e na Áustria, os partidos costumam a mudança social requer mudança política. A urgência que atribuem
criar academias e desenvolver programas para identificar, alimentar ao resgate e ao rejuvenescimento da democracia manifesta-se em
e recrutar talentos políticos. De que modo podemos garantir que inovação política. Por esse motivo, o campo, seu crescimento e sua
essas instituições estejam satisfazendo os princípios democráticos de consolidação dizem respeito a todos nós. n
representação e participação igualitárias? Como podemos viabilizar
uma transferência das melhores práticas de trabalho democrático em Notas

diferentes países? E, finalmente, de que forma a inovação política se 1 Democracy Index 2021: The China Challenge. London, The Economist Intelligence
Unit Limited, 2022; Alizada et al., Autocratization Turns Viral: Democracy Report
torna uma referência democrática em democracias imperfeitas ou 2021. Gothenburg, Sweden, University of Gothenburg, 2021.
mesmo em autocracias? 2 Democracy Index 2021: The China Challenge.
À medida que o campo evolui, temos de desenvolver um método 3 Robert Bosch Stiftung e More in Common, org., It´s Complicated. People and Their
para apreender crescimento e dimensionar a inovação política. Tam- Democracy in Germany, France, Britain, Poland, and the United States, 2021.
bém precisamos compreender melhor os potenciais compromissos 4 Roberto Mangabeira Unger, “Conclusion: The Task of the Social Innovation
Movement”, in A. Nicholls, J. Simon e M. Gabriel, org., New Frontiers in Social
entre apoiar líderes e ideias para soluções. Pode o investimento na Innovation Research. London, Palgrave Macmillan UK, 2015.
carreira de um político estar alinhado ao investimento no tempo 5 Ver, por exemplo, Graham Smith, Democratic Innovations: Designing Institutions
demandado para se implementar uma solução? Na verdade, as for Citizen Participation. Cambridge, United Kingdom, Cambridge University
Press, 2009; Hahrie Han, Elizabeth McKenna e Michelle Oyakawa, Prisms of the
características pessoais importam não apenas para desafiar pode-
People Power & Organizing in Twenty-First-Century America. Chicago, University
res políticos, mas para obtê-los e atuar num cargo de acordo com of Chicago Press, 2021; e Joseph Lentsch, Political Entrepreneurship: How to Build
princípios democráticos. O #FixPolitics faz uso de cinco Cs (cará- Successful Centrist Political Start-ups. Cham, Switzerland, Springer, 2018.

ter, competência, capacidade, coragem e compaixão) e a JoinPolitics 6 Smith, Democratic Innovations.

descreve o talento político ideal listando cinco itens (“executor” 7 Charles Tilly, From Mobilization to Revolution. Reading, Massachusetts, Addison-
Wesley, 1978.
visionário, bom com pessoas, persuasivo, autorreflexivo e movido
8 Lentsch, Political Entrepreneurship.
por propósito). Precisamos também de boas ideias para soluções
9 Steven Teles e Mark Schmitt, “The Elusive Craft of Evaluating Advocacy”.
imediatas que coincidam com uma janela política de oportunidade. Stanford Social Innovation Review, verão de 2011.
Por essa razão, temos de começar a desenvolver repositórios de 10 Christian Seelos, “Mudando Sistemas? Então Desacelere”. Stanford Social
ideias democráticas inovadoras, que sejam comparáveis a bancos Innovation Review Brasil, terceira edição.

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A Urgência de Investir
nos Ecossistemas
Locais de Informação
Por Izabela Moi e Nina Weingrill
Fotomontagem: Mauricio Planel

Só podemos acabar com os impactos desastrosos das fake news: garantindo a existência e
apoiando o desenvolvimento de iniciativas locais que contribuam para reduzir os desertos de
notícia. Munir os cidadãos de informação para que possam participar da vida pública a partir
do território onde residem é a única forma de proteger a democracia.

N
Por que esta discussão importa? as últimas eleições municipais no Brasil, em 2020,
em meio à pandemia, duas organizações, Agência Mural1
Porque a desigualdade de informação tem criado e Énois,2 que defendem e praticam o jornalismo local,
mundos paralelos. E não basta fazer fact-checking, fizeram parceria para que os eleitores chegassem às
educação midiática ou pensar em produzir mais urnas mais bem informados. Sediadas em São Paulo, decidiram con-
notícias. Estamos esquecendo de olhar para a tratar, na última semana antes do primeiro turno, um carro de som3
audiência, para as pessoas, e de nos perguntar se para percorrer sete regiões da cidade para veicular – assim como os
todas elas têm acesso às informações que garantem já conhecidos “carros do ovo”, que anunciam por megafone o produto
sua participação nos locais em que vivem (como à venda – cinco episódios do podcast “Em Quarentena”. Produzidos
emergências e riscos imediatos e de longo prazo, pela Mural, os áudios eram dedicados a explicar o processo eleitoral
saúde e bem-estar, qualidade das escolas, etc.). Falar para seus ouvintes: moradores e moradoras das periferias.
sobre ecossistemas de informação significa não Foram 35 horas de programa abordando desde as diferenças entre
apenas pensar na indústria, mas também na outra vereadores/as e prefeitos/as até o conteúdo do plano de metas que
ponta, em quem precisa acessar a informação e dizia respeito às periferias – que a população tinha direito de reivin-
como essa informação torna o cidadão participante dicar e cobrar de seus representantes, uma vez eleitos. Era urgente
do processo democrático. É finalmente tratar esclarecer as confusões disseminadas em grande volume, sobretudo
pelo WhatsApp. Pensar em formas de fazer a mensagem chegar ao
informação como um bem público e, portanto, seus
público-alvo também, e exigia um outro jeito de produzir e distri-
problemas e soluções ligados a essa ética.
buir informação.

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Essa é apenas uma das experiências que trazem cada uma de nós IZABELA MOI é jornalista, cofundadora e diretora- do jornalismo local e suas interseções com políticas públicas.
executiva da Agência Mural de Jornalismo das Periferias e É membra fundadora da Associação de Jornalismo Digital
até aqui. Há mais de uma década à frente dessas duas organizações, professora visitante no Institute Français de Presse, em Paris. (Ajor) e participa da rede Future of Local News, com sede nos
conhecemos de perto o trabalho das iniciativas de jornalismo local Estados Unidos.
NINA WEINGRILL é jornalista, cofundadora da Énois
em São Paulo, a maior metrópole da América Latina, e dele fazemos (2009) e consultora para organizações de jornalismo. É Em parceria, ambas as autoras estão desenhando uma
parte. Sabemos do impacto positivo dessa atuação e temos acom- fellow do International Center for Journalists (EUA), no qual pesquisa para mapear, definir e categorizar como existem e se
pesquisa ferramentas e metodologias para o fortalecimento conectam esses ecossistemas de informação local no Brasil.
panhado – e participado – as discussões em torno de seus desafios
atuais: continuar em busca da sustentabilidade financeira, cuidar de
entender e alcançar a audiência, produzir informação relevante para Em casos de grandes desastres ou emergências, como foi a pan-
o cotidiano dessas populações. demia de Covid-19, é esse ecossistema local que mantém a popula-
No entanto, acreditamos que é preciso dar um passo à frente ção informada e menos exposta a riscos. No início da pandemia no
nessa conversa. E rápido. Brasil, por exemplo, ainda que orientações de cuidados com a saúde
fossem transmitidas diariamente pela TV aberta, havia necessidades
que o jornalismo nacional ou mesmo regional não davam conta de
O Potencial Explosivo da Desinformação cobrir. No Complexo do Alemão, bairro que abriga 13 favelas e mais
Em pouco mais de 12 meses, estaremos enfrentando o mesmo pro- de 55 mil pessoas, na zona norte do Rio de Janeiro, moradores e
blema que nos levou à nossa parceria e ao carro de som. Em outubro organizações9 do território se uniram para instalar faixas que orien-
de 2024, vamos eleger (ou reeleger) exatos 5.570 prefeitos e prefeitas tavam a população sobre como se prevenir no caso de não haver
e mais de 50 mil representantes nas câmaras municipais no país. água encanada em casa para lavar as mãos.
Quem observou as consequências das últimas avalanches de desin- Para o jornalista Jamelle Bouie,10 colunista político do New York
formação que circularam recentemente (no Brasil e no mundo) sabe Times, é aí que existe um ponto cego. Olhamos para o combate à
que campanhas eleitorais são, mas não deveriam ser, um viveiro delas. desinformação como principal solução para a construção da demo-
Um estudo recente4 publicado pelo Instituto Igarapé, que anali- cracia e deixamos de lado o debate mais importante. Em “Disinfor-
sou publicações nas principais redes sociais durante a última eleição mation is not the real problem of democracy”11 (“A desinformação
presidencial no país, em 2022, detectou quatro narrativas políticas não é o verdadeiro problema da democracia”), texto publicado em
abrangentes que incluíam esforços para: 1) reduzir a confiança no sua newsletter semanal, Bouie argumenta que precisamos criar um
sistema eleitoral; 2) atacar as instituições democráticas; 3) difamar “ambiente informacional” que dê regularidade para a produção e o
e diminuir a influência de adversários políticos; e 4) influenciar acesso à informação local de qualidade, pois é ela que nos ajuda a
os principais apoiadores a agir. Conteúdos que buscavam minar a construir um senso de comunidade. E é também nisso que acredi-
confiança no sistema eleitoral representaram mais de 32% dessas tamos. Mas como pagar as contas?
narrativas.
Soma-se a isso um cenário de desigualdade de informação. No
Brasil, segundo o mais recente Atlas da Notícia (2022), cerca de 50% Reduzir Danos e Garantir Acesso
dos municípios são considerados desertos de notícias – não têm ao O debate em torno da sobrevivência do jornalismo local, e também
menos uma organização jornalística local. “Nessa condição estão do jornalismo em geral, parece ter sido capturado pela ideia de que a
2.968 cidades e nelas vivem 29,3 milhões de pessoas”, diz o texto do regulação das plataformas é a bala de prata possível, além de neces-
lançamento da próxima edição,5 que está em fase de coleta de dados. sária, para conter a desinformação e seu impacto sobre as sociedades
Já os quase desertos, lugares que contam com apenas um ou dois democráticas e levantar fundos para a indústria que vive a crise final
veículos de comunicação, somam 1.460 municípios (25% do total), de seu modelo de negócios, decadente há mais de uma década. Será?
onde vivem mais 31,8 milhões de brasileiros. Se fizermos a conta, A Unesco, em uma conferência global organizada no final de
temos um potencial explosivo de desinformação em 4.428 cidades, fevereiro deste ano e que contou com a participação de vários
que corresponde a 79% das cidades do país. setores da sociedade, como imprensa, ONGs, governos, influencers
(anunciados ao microfone quase como um setor à parte) e setor

Informação e Democracia
Pesquisas comprovam7 que a ausência de um ecossistema de infor-
mação local contribui para a manutenção de currais eleitorais, para a
O Mapa da Informação no Brasil
falta de visibilidade e combate à corrupção do poder público e dimi-
nui o acesso a direitos básicos, além de desincentivar a participação
do cidadão nas instâncias da política próximas de seu cotidiano, em
50% dos municípios (2.968 cidades) não têm nenhuma
organização jornalística local: são os chamados desertos de
que realmente pode ter alguma influência. Um estudo recente do notícias, nos quais vivem quase 30 milhões de pessoas.
Reuters Institute8 confirmou que as audiências têm cada vez mais
mostrado uma falta de confiança em meios que não mantêm essa 25% dos municípios (1.460 cidades) têm um ou dois
conexão próxima e direta com elas. veículos de comunicação: são os quase desertos, lugares com
Enquanto isso, uma cobertura local de qualidade cria e sustenta cerca de 32 milhões de habitantes.
o sentimento de pertencimento a uma comunidade e abre espaços
para a ação e a participação cidadã. Fonte: Atlas da Notícia.

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 35

privado, chegou a uma proposta informação de qualidade, confiá-


de 28 páginas12 com orientações
para fomentar a discussão sobre
Ecossistemas de informação * vel e plural”.
A lei australiana tem sido
a regulação das plataformas e São a somatória de pessoas e organizações que pro- usada como base para pautar a
tentar, de um lado, reduzir os duzem, verificam e distribuem informação de interesse conversa por aqui. O país apro-
danos da produção e circulação público dentro de um espaço geográfico, ajudando a vou, em 2021, um código abran-
de desinformação e, de outro, manter uma infraestrutura cívica vital para o funcio- gente com o objetivo de transferir
garantir o acesso à informação namento de uma comunidade, como segurança, edu- recursos das empresas de tecno-
(e a sobrevivência do jornalismo). cação de qualidade e saúde pública. logia para financiar o trabalho de
Nessa conferência, a jornalista jornalistas. Segundo a Columbia
filipina Maria Ressa, Prêmio Nobel Como navegar nessa discussão? Dos principais problemas Journalism Review15 (leia em portu-
da Paz de 2021, que fez a fala de e riscos às soluções. guês aqui16), a legislação não deu
abertura, defendeu que a falta de conta de cuidar da falta de trans-
O contexto atual:
regulação não apenas fez sucum- parência dos acordos, protegidos
1. Epidemia de desinformação local: o acesso à internet sem
bir o modelo de negócios do jor- por cláusulas de confidencialidade,
educação para a mídia tem provocado crises sem prece-
nalismo, mas também contribuiu e deixou para as plataformas o
dentes nos processos eleitorais.
muito para a falta de confiança no direito de escolher os valores e
2. Desertos de notícia: metade dos municípios brasileiros não
trabalho da imprensa. com quem negociar.
possuem cobertura jornalística local.
No Brasil, nessa mesma esteira, Mas a drenagem de recursos do
3. Aprofundamento da crise do modelo de negócios do jor-
a discussão sobre um provável pri- jornalismo para a máquina gigante
nalismo: o que inclui uma concentração dos recursos vindos
meiro ensaio de política pública de publicidade que são as platafor-
da filantropia para intermediários do campo jornalístico.
de regulação das plataformas foi mas não é a única, apesar de talvez
impulsionada pelo debate em O que precisa ser feito: a maior, causa da instabilidade e
torno do chamado PL das Fake 1. Território: fomentar uma lógica autônoma de produção e do enfraquecimento financeiro do
News (2.630/2020, da Lei Brasi- consumo de informação, a partir do local, é um ciclo virtu- modelo de negócios desse ecossis-
leira de Liberdade, Responsabili- oso que contribui a curto prazo na construção democrática. tema, principalmente o local.
dade e Transparência na Internet). 2. Ações sistêmicas: atores interessados na construção demo-
A Ajor,13 associação de mais de cem crática a partir da produção jornalística devem ampliar e
organizações jornalísticas digitais, descentralizar seus investimentos de forma a promover um Concentração de Recursos
fundada em 2021, marcou posição, olhar mais complexo para o campo, incluindo iniciativas em Torno de Poucos
indicando alguns riscos, principal- que dão conta das necessidades básicas de informação do As novas fontes de recursos, vindas
mente os ligados ao artigo 38 – cidadão e que não fazem parte da indústria. da filantropia de fundos privados
de concentração dos recursos nas 3. Políticas públicas: não há solução possível para a construção e da doação das pessoas também
mãos das grandes organizações e da democracia se ela não parte do nível local de participação tendem a se concentrar – inclu-
falta de transparência nos proces- cidadã. Os governos precisam criar mecanismos de fomento sive regionalmente. Em 2022, por
sos de distribuição. direto a esse ecossistema, com autonomia para os municípios. exemplo, cerca de US$ 2 milhões
“Ao propor o referido artigo, o vindos da filantropia internacional
* Richard C. Harwood, Assessing Community Information Needs: A Practical
Legislativo brasileiro reconhece o Guide, Washington, D.C.: The Aspen Institute, October 2011.
para o jornalismo foram destina-
jornalismo como bem de interesse dos para oito iniciativas no Rio de
público e aponta um caminho para Janeiro e em São Paulo, de acordo
seu financiamento. Mas delegar ao Executivo, ‘na forma da regulamen- com o mapeamento do site Media Funders.17
tação’, o detalhamento de um mecanismo poderoso como esse, capaz Richard Tofel, cofundador da agência de notícias norte-americana
de alterar profundamente o ecossistema jornalístico nacional, beira a sem fins lucrativos ProPublica, escreve em uma de suas newsletters
irresponsabilidade. Se o jornalismo é bem público, seu financiamento semanais18 sobre um novo risco nesse modelo, o da criação e conse-
deve ser política de Estado, não canetada do governo de turno”, diz quente concentração de recursos em organizações intermediárias e
a Ajor em seu próprio site, em artigo publicado em março de 2022.14 associações da indústria. Mais eficiência no monitoramento e avalia-
Em meados de maio, o Comitê Gestor da Internet no Brasil, orga- ção, mas menos recursos e menos organizações contempladas dire-
nização da qual participam vários setores da sociedade, lançou um tamente para a produção de informação. Uma tendência mundial.
relatório que avalia o PL das Fake News a partir do ponto de vista da Estudo19 publicado no ISOJ confirma que “as ideologias daltônicas”
remuneração do jornalismo e conclui: “Essa desigualdade informacio- da filantropia e do jornalismo são uma barreira para que organiza-
nal sempre existiu, e, em países com níveis de desigualdade crônica, ções de jornalismo de comunidades estruturalmente marginalizadas
como o Brasil, sempre foi um desafio fundamental. No entanto, o recebam financiamento e recursos. “Em 2020, a Iniciativa Filantró-
aumento do poder das plataformas digitais e as mudanças no papel pica para a Equidade Racial descobriu que, dos US$ 11,9 bilhões para
que exercem de organização e distribuição de conteúdo, associados empresas e fundações comprometidas com o trabalho de justiça racial
ao aprofundamento da crise do jornalismo, podem levar a um abismo entre 2015 e 2020 (durante o auge do movimento Black Lives Matter),
cada vez mais profundo entre quem tem e quem não tem acesso à apenas US$ 3,4 bilhões foram concedidos a comunidades de cor e

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Quando a ficção se impõe aos fatos


A história do prefeito Michael Tubbs,6 nos Estados Unidos, exemplifica o risco da degradação do ecossistema de informação
local para a democracia e para o destino de uma cidade. O mais jovem – e o primeiro afro-americano – a liderar a cidade de
Stockton, localizada a cerca de 150 quilômetros do coração do Vale do Silício, na Califórnia, e com uma população de mais de
300 mil habitantes, viu sua trajetória e seu trabalho interrompidos pela desinformação.
Considerada um quase deserto de notícia, o único jornal local (impresso) da cidade, o Stockton Record, já definhava em 2016,
quando Tubbs foi eleito. A cobertura online e de TV do que se passava na cidade era feita por organizações regionais, portanto,
de forma mais distanciada. Mas em seu primeiro mês de mandato, em 2017, o jovem prefeito viu aparecer uma organização
digital que, segundo diziam, havia sido criada para fazer jornalismo local.
O 209 Times tornou-se um símbolo de como um município pode se tornar vítima da propaganda pura e simples ou, no mínimo,
da falta de diversidade de fontes de noticiário. Quem poderia dizer que um site com pessoas produzindo conteúdo de forma “pro-
fissional” (no caso, remunerada) poderia ser apenas uma máquina de campanha que distribuía informações falsas com uma agenda
política predeterminada: a de ser a oposição a um mandato?
É claro que Michael Tubbs não conseguiu se reeleger. Apesar de ter
deixado a prefeitura com um superávit de mais de US$ 10 milhões e
ter alçado Stockton, um município muito desigual, à quarta cidade
mais “fiscalmente responsável” do país, a opinião pública, guiada
pelas “notícias” publicadas pelo único site de cobertura local (o
jornal impresso não sobreviveu), não votou em sua reeleição por-
que “ele roubou a cidade, era corrupto”. Uma realidade ficcional
tinha se imposto aos fatos.

menos ainda – meros US$ 1,2 bilhão – foi especificamente destinado


a projetos de justiça racial”, escreveram os autores.
Numa campanha de muito sucesso recentemente concluída nos Nos Estados Unidos, um estudo da Nieman Foundation, da
EUA,20 onde a doação individual é dobrada pela de um fundo, o Harvard University,23 apresentou, em fevereiro, oito projetos de
NewsMatch,21 do total das 303 organizações que participaram, as investimento público para fomentar iniciativas locais de informação
50 maiores redações (16% do total) acumularam 63% dos recursos. nos municípios, distritos e estados nos Estados Unidos.
Ou seja, independentemente das soluções debatidas e vislumbradas É o caso da Lei de Informação Cívica de New Jersey.24 Aprovada
até agora, o que se observa ainda é uma concentração de recursos em 2018, foi a primeira lei estadual a criar uma política de fomento
em torno de poucos, e em sua maior parte com atuação e relevância à informação local. Foram quatro anos de debates com organizações
nacionais ou regionais, excluindo iniciativas locais, e portanto sua sociais do campo para criar um consórcio que hoje administra um
sobrevivência, da conversa. fundo de US$ 3 milhões para investir não só em jornalismo, mas
também em iniciativas que engajam o cidadão, por meio da informa-
ção compartilhada, a participar de decisões locais e a cobrar o poder
A Informação como Bem Público público. “O modelo de consórcio foi baseado em outras instituições
Em 2022, um trabalho produzido por diversos autores, entre os quais que gerenciam fundos, como é o caso das artes”, explica Mike Rispoli,
Julie Posetti, vice-presidente de pesquisa do ICFJ, e Anya Schiffrin, diretor do Free Press, instituto que lidera o grupo.
diretora de tecnologia, mídia e comunicações da Escola de Assuntos O processo para aprovação da legislação, no entanto, não foi sim-
Internacionais e Públicos da Universidade de Columbia, apresentou ples. O estado de New Jersey tinha um histórico de apoio à mídia
22 recomendações22 para que governos elaborem políticas públicas local, que recebia recursos de filantropia e também dinheiro público
que ajudem a estabelecer um ambiente favorável à sustentabilidade da para operar canais de transmissão de TV e rádio. Em 2011, o governo
mídia e o acesso à informação, que inclui não apenas o desenho de cortou o recurso e colocou as redes para leilão, autorizado em 2016,
políticas de financiamento, mas também regulações e outras estru- vendidas para o poder privado por US$ 332 milhões (apenas dois dos
turas que amplificam as possibilidades de se criarem outras fontes quatro canais à época25). A oportunidade política estava colocada à
de recursos, vindas do setor privado, da filantropia e dos cidadãos. mesa: uma boa quantidade de dinheiro inesperado e um estado que
Iniciativas de políticas públicas que têm em seu “espírito” o reco- se transformava em um deserto de notícias.
nhecimento de que estamos precisando cuidar não só do jornalismo, Rispoli, à frente do Free Press, e outras organizações da sociedade
mas também de um bem público – a informação –, não apareceram civil começaram a se mobilizar para brigar por uma fatia dos recur-
necessariamente como impacto do relatório acima, mas começam a sos que o estado iria receber pela venda das emissoras, no sentido
ser experimentadas. de investir na reconstrução de um ecossistema de informação local.

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O Consórcio de Informação Cívica, como o grupo foi depois Ele entrou em vigor para equilibrar um cenário desigual comum
nomeado, reivindicou, a princípio, US$ 100 milhões e recebeu uma a outros estados. Em 2013, o estado registrava, segundo dados da Lei
contraproposta de US$ 10 milhões. Depois de meses de lobby, peti- de Acesso à Informação publicados pelo site Sul21,30 um investimento
ções e audiências em comitês, foi entregue no escritório do distrito entre 5% e 10% em meios locais, regionais e comunitários e de 80% a
legislativo o primeiro rascunho do projeto de lei, finalmente apro- 95% nos quatro grandes grupos de comunicação do Rio Grande do Sul.
vado em julho de 2018. Mas que, por causa da Covid-19, viu o recurso A lei foi inspirada num programa de 2012, criado pela Secom esta-
ser congelado e depois diminuir para os atuais US$ 3 milhões, que dual, que havia cadastrado mais de 200 iniciativas de rádios comuni-
começaram a ser alocados em 2021. tárias para redistribuir a verba publicitária do governo – o valor, que
“As pessoas começaram a entender por que a informação é impor- era pequeno, pagava em geral contas fixas, como aluguel e internet.
tante, e o direcionamento da lei é claro: usar o dinheiro do governo Mais recentemente, outros grupos no Brasil estão se mobilizando
para dar a notícia que o cidadão precisa para participar da democra- para resgatar aprendizados da gestão pública da cultura e de outras
cia”, afirma Rispoli. áreas que foram efetivos na distribuição de recursos e na garantia da
Na Europa, um grande projeto, financiado pela Comissão Europeia autonomia dos territórios para executar políticas que asseguraram o
com 2 milhões de euros e liderado por quatro grandes organizações exercício da democracia localmente.
de jornalismo no continente (European Federation of Journalists, Uma dessas conversas está sendo liderada pela Artigo 19, orga-
Centre for Media Pluralism and Media Freedom, International Media nização, de sede internacional, de defesa do direito e liberdade de
Support e Journalismfund.eu), tem como objetivo principal justamente expressão, que agora, junto a uma comissão criada dentro do Minis-
gerar dados e análises que possam servir de base para o desenho de tério da Justiça, pretende discutir uma forma mais abrangente de
políticas públicas específicas para cada país ou região. Lançado em tornar o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Huma-
fevereiro último, um mapeamento de desertos de notícias e “áreas de nos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) um projeto de lei,
risco para a informação local” deve ser publicado até o fim deste ano. garantindo a criação de uma política pública com orçamento para
A iniciativa, chamada de “Local Media for Democracy”,26 reco- proteção “às vozes dissidentes”.
nhece, não apenas no título, a conexão estreita entre cidadão bem Raísa Cetra, coordenadora do Programa de Espaço Cívico da Artigo
informado e o futuro dos sistemas democráticos, e afirma a neces- 19, afirma que a “recente deterioração de políticas públicas gerou um
sidade de considerar o ecossistema. “A robustez desses ecossistemas déficit democrático de participação, não só nos conselhos municipais,
de mídia também serve como um indicador significativo da coopta- mas também em protestos, inflamando ainda mais fenômenos de
ção [partidária] de mídia, um fenômeno crescente e preocupante na desinformação”. A ONG entende que é preciso ter um olhar mais
Europa”, diz o texto de lançamento, que explicita a importância de sistêmico para esse cenário.
enfrentar a desinformação de uma outra forma. Todos esses esforços – de antigos a mais recentes – vêm no sen-
Em um editorial publicado em março,27 o jornal inglês The Guardian tido de contribuir e trazer soluções que nos ajudem a construir um
também defendeu o jornalismo local – do qual ele não é exatamente arcabouço democrático maior. No entanto, acreditamos que uma
um representante – como essencial para a sociedade, e por isso discussão anterior precisa entrar na pauta quando falamos sobre o
acrescentou, como também defendemos, que o “financiamento que devemos proteger e fomentar, em especial por políticas públicas:
público é parte crucial desse mix [de soluções]”. Um relatório sobre a indústria ou a informação?
o assunto28 publicado em janeiro pelo Parlamento inglês – agora fora
da Europa e expressamente mais liberal – inclui recomendações como
a de “explorar novos caminhos para que organizações de jornalismo Cidadãos no Centro do Ecossistema
local consigam registro de associação sem fins lucrativos e encorajar A democracia começa a ser construída a partir da proximidade do
mais financiamento vindo da filantropia para o setor”. cidadão e da cidadã com as instâncias de poder local. Pode ser num
conselho municipal, numa audiência pública ou durante uma campa-
nha de vacinação. Em uma comunidade ou em grandes aglomerados
O Papel das Políticas Públicas urbanos, se tanto os problemas quanto as soluções aparecem sob a
A crise do modelo de negócios do jornalismo não é só um risco para lente ampliada de desafios nacionais ou globais, nós nos sentimos
a indústria em si. E, por isso, soluções mais imediatistas que têm impotentes – e nos desconectamos.
como foco a sobrevida de um modelo que permanecerá em crise Isso, de maneira geral, é o que acontece. Por essa razão, o jorna-
não serão suficientes para a construção democrática. lismo local que atende aos critérios éticos da produção da notícia é tão
No Brasil, experiências nesse sentido também já foram tentadas importante. Mas, em tempos de sociedade do conhecimento, a defini-
ou estão em discussão. A Política Estadual de Incentivo às Mídias ção do que é esse jornalismo ou sobre qual é a necessidade básica de
Locais, Regionais e Comunitárias,29 por exemplo, foi um projeto de informação que a população precisa para agir em prol do bem comum
lei aprovado em 2014 pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do também merece reflexão – e, em nossa opinião, um alargamento. Para
Sul, mas que teve vida breve. Criado com o objetivo de fortalecer os nós, a diferença está no que decidimos privilegiar nessa discussão:
pequenos meios de comunicação, ampliar a transparência na adminis- salvar o negócio, isto é, a indústria jornalística, ou a população e o
tração pública e democratizar o fluxo das informações direcionadas acesso equitativo às informações (um bem público), a partir de um
à população, o projeto estabelecia o direcionamento mínimo de 20% ecossistema no qual a audiência (os cidadãos) deve estar no centro.
do orçamento de publicidade da Secretaria de Comunicação (Secom) Em O seu jornalismo é luxo ou necessidade,31 o jornalista Harry
para essas organizações. Backlund, cofundador do City Bureau, um laboratório de jornalismo

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local com base em Chicago, nos Estados Unidos, propõe olhar para Não faltam exemplos atuando a partir dessa lógica. O ex-corres-
a informação como olhamos para outros itens de necessidade vital e pondente da BBC Shubhranshu Choudharay33 lidera há mais de uma
dá novo uso à Pirâmide de Maslow para exemplificar a teoria explici- década uma organização, a CGNet Swara,34 que sustenta a produção
tada no artigo: “Na base, e em abundância, teríamos as informações e circulação de informação local na área rural do estado indiano de
essenciais, como acesso à moradia, alimentação, mobilidade e trabalho. Chhattisgarh, principalmente dedicada às populações nativas. As his-
No meio, as informações que ajudam as pessoas a se conectarem e tórias reportadas circulam por áudio, nos telefones celulares (via apli-
se comunicarem para viver em sociedade. E no topo as informações cativo) ou em postos telefônicos, para áreas mais remotas. A imprensa
aspiracionais, que nos engajam e nos instigam a saber mais sobre regional, que cobre em hindi as notícias, não alcançava a maioria da
como o mundo funciona e o que deve ser repensado”. população nativa ali, que fala outras línguas. A circulação das traduções
e de outras informações produzidas pelos habitantes,
em áudio, aumentou o nível de engajamento dessas
comunidades em objetivos coletivos, conta o jornalista.
Equipar as pessoas para lidar com um Em Moçambique, o FORCOM – Fórum Nacional

mundo em constante transformação de Rádios Comunitárias35 funciona desde 2004 para


reunir e apoiar sua rede. Segundo a diretora-executiva,,
tecnológica e informacional é um projeto a jovem jornalista Ferosa Chauque Zacarias, a quase
totalidade das 51 rádios comunitárias que fazem parte
de distribuição de poder. do grupo é liderada de forma voluntária por profissio-
nais não necessariamente treinados em jornalismo. De
novo, um dos objetivos das rádios é fazer com que as
informações importantes para o país sejam debatidas e
Nesse sentido, se formos tentar classificar o tipo de jornalismo pro- levadas a conhecimento de audiências apartadas dos grandes centros.
duzido em larga escala no Brasil, quase tudo parece estar no topo. O A organização Mutante,36 sediada na Colômbia, também promove um
que Backlund e seus colegas propõem aqui é que precisamos de uma outro tipo de jornalismo: eles produzem informação – nos mais diversos
nova reflexão sobre o que entendemos enquanto jornalismo se formos formatos, que vão de reportagens de grande envergadura e manuais a
levar a sério que ele deve cumprir sua função social e ser um pilar no posters para campanhas – para municiar sua audiência de conhecimento
acesso a direitos para todo cidadão e cidadã. Isso significa mudar a para que participe dos debates nacionais. Uma das mais recentes foi
lente, mas mudar também a quantidade e a forma de financiar inicia- sobre a discussão da mudança da legislação do aborto no país.
tivas que, sim, dão conta das necessidades básicas de informação da Ainda no Brasil, a Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas,37
população. E isso pode ter os mais diferentes formatos e linguagens. durante as eleições, lançou um projeto de combate a notícias falsas
para mais de 750 comunidades do Alto Rio Negro, via áudio por
WhatsApp e nas rádios-postes – em mais de oito línguas locais. O
Mídia Cívica: Produção de Informação e Pertencimento projeto ainda forma novos comunicadores em cada território para
Ao nos debruçarmos sobre esse campo, observamos que há uma que possam se tornar correspondentes.
diversidade imensa de soluções experimentadas. Muitas, inclusive, Esse coletivo de comunicadores indígenas é uma das iniciativas
não se consideram ou não são consideradas iniciativas de comunica- identificadas pela Rede Cidadã InfoAmazônia,38 que conecta comu-
ção ou jornalismo, apesar de trabalharem diretamente com produção nicadores locais e mídias regionais da Amazônia Legal para cocriar e
e disseminação de informação local. difundir conteúdos com temas socioambientais produzidos no terri-
A ideia não é necessariamente nova e existem muitas nomencla- tório amazônico. “A relação dessas organizações com seus territórios
turas que foram criadas e utilizadas ao longo dos anos para definir é superimportante para a informação circular. São eles que sabem os
esse tipo de proposta: jornalismo hiperlocal, jornalismo cidadão, melhores formatos de como organizar, produzir e distribuir os con-
comunicação comunitária, mídia cívica etc. teúdos”, explica Débora Menezes, coordenadora da rede.
E é exatamente por isso que trazemos a discussão de ecossistema, As iniciativas são muitas. Nos Estados Unidos, um grupo se uniu
já que nele podem caber desde organizações que praticam o jorna- para fazer um diagnóstico de características desse “novo” ecossistema
lismo local a canais regulares de WhatsApp, passando por grupos e lançou o Roadmap for Local News.39 O relatório busca incluir orga-
de Facebook e outras formas e linguagens, inclusive “offline”, que, nizações que ficavam de fora do que é considerado tradicionalmente
além de atenderem a critérios mínimos de produção da informação como “jornalismo local”, mas que ainda assim se dedicam a informar
(ou seja, não são canais de propaganda), também estabelecem um o público, com foco no engajamento comunitário e em ampliar seu
vínculo com suas comunidades. Eles reconhecem a necessidade de acesso (e direitos de participação) ao lugar onde moram. Segundo o
envolvimento das pessoas no processo de produção da informação, documento, essas organizações priorizam levar às pessoas, que nunca
seja a partir de suas necessidades ou de engajamento, ou diálogo com foram bons “mercados” para notícias comerciais, informações em um
ela, até a participação direta, e acabam impulsionando a participação meio com o qual elas se envolvem naturalmente (sejam aplicativos de
democrática dos cidadãos nos locais onde vivem pelo sentimento de texto/e-mail/vídeo etc.).
pertencimento e conhecimento. O escritor e líder indígena Ailton Em 2020, o relatório anual sobre o mundo digital de notícias, do
Krenak, em um artigo sobre ecologia política,32 define bem, para nós, Reuters Institute, publicou um capítulo dedicado ao jornalismo local40
essa visão: “Gente, lugar e jeito de estar no lugar compõem um todo”. que incluía o que eles chamaram, em inglês, de non-news media sources.

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Entre os países pesquisados – e o Brasil estava entre eles –, quase um Significa investir em atores e infraestruturas que garantam a pro-
terço (31%) da amostra de respondentes diz ter usado grupos ou páginas dução, a circulação e o acesso de informações necessárias à vida indi-
locais das redes sociais (por exemplo, Facebook ou WhatsApp) como vidual e coletiva nas comunidades e cidades. Significa pensar que a
fonte de notícias locais. As comunicações pessoais de outros residentes, desigualdade informacional, se não enfrentada de maneira sistêmica,
vizinhos, amigos e/ou familiares eram vistas como fontes importantes não desaparece e cria mais divisões – cujo impacto a médio prazo é
de informação para cerca de um quarto (28%), enquanto 13% diziam a corrosão das democracias.
que consomem informações vindas diretamente de instituições locais. Mas significa também, já que estamos falando de problemas e
No Brasil, o recém-lançado Mapa da Cajueira41 faz um levanta- soluções sistêmicas, que todos os stakeholders são chamados a agir. A
mento do jornalismo independente existente nos estados do Nordeste. filantropia, ampliando e descentralizando os investimentos de forma
“Defendo uma visão mais ampla do jornalismo local que contemple que promovam um olhar mais complexo para o campo; os governantes,
projetos com caráter informativo, que nem sempre são reconhecidos desenhando políticas públicas de fomento direto a esse ecossistema;
dentro dos modelos clássicos do jornalismo”, afirma Mariama Cor- e os cidadãos e as cidadãs, se engajando em iniciativas em seus terri-
reia, idealizadora do projeto. tórios. Esse muro – que parece invisível – entre quem tem acesso à
Segundo Mariama, que também atua como pesquisadora do Atlas informação e quem não tem cria mundos paralelos, incomunicáveis.
da Notícia no Nordeste, há uma invisibilização dessas iniciativas no Do ponto de vista do fortalecimento e da manutenção dos siste-
censo. “Atualmente, o Atlas não considera rádios comunitárias como mas democráticos, não há solução possível se ela não parte do nível
veículos jornalísticos, embora eles sejam tão importantes do ponto local de participação cidadã.
de vista informativo para seus territórios”, conta. Fomentar uma lógica autônoma de produção e consumo de infor-
A mesma lógica se aplica ao levantamento desenvolvido pela Énois, mação, a partir dos territórios, a partir do local, é um ciclo virtuoso
em 2022. O Mapa de Jornalismo Local42 contemplou veículos e canais que contribui a curto prazo para a construção democrática – que inclui
de difusão cultural nos bairros e periferias da capital paulista e dos processos eleitorais mais saudáveis – e a médio e longo prazos tam-
38 municípios que compõem a região metropolitana de São Paulo. bém para a sustentabilidade financeira dessas iniciativas, visto que elas
Do total de iniciativas mapeadas, mais de 75% utilizam plataformas estarão imbricadas na vida cotidiana da população (ou seja, sua audi-
digitais, como perfis em redes sociais, sites e blogs, como segmento ência). Uma vez que as pessoas entendem o valor da informação para
principal de atuação para distribuição de conteúdo. E grande parte seu dia a dia, têm acesso àquilo que estão buscando e são impactadas
delas atua a partir de pautas sugeridas pela própria comunidade. pelas transformações que ocorrem a partir da ação/participação local,
elas também estão mais propensas a contribuir e até apoiar financei-
ramente essas iniciativas.
Agora É a Hora E, como dissemos mais acima, nada disso é novo. No limite, equi-
É preciso voltar a olhar para a informação como um direito essencial par as pessoas para lidar com um mundo em constante transformação
a nossa sobrevivência como humanidade. Também é preciso, a partir tecnológica e informacional é um projeto de distribuição de poder. E
dessa lente, entender que a indústria do jornalismo não é capaz de tem a ver com enfrentar a desigualdade de produção e acesso a um
garantir o acesso à informação de forma equânime e que, portanto, bem público – a informação.
precisamos identificar quem mais faz parte desse ecossistema para, Temos eleições municipais ano que vem no Brasil, lembra? E tere-
então, pensar em formas de garantir a existência e apoiar o desen- mos quase 60 mil chances de fazer diferente. Mas é preciso começar
volvimento dessas iniciativas. a agir já. Amanhã será tarde demais. n

Notas
1 Agência Mural. Disponível em: <agenciamural.org.br>. Acesso em: 30 maio 2023. 10 Jamelle Bouie. Disponível em: <jamellebouie.net/>. Acesso em: 30 maio 2023.
2 Énois. Disponível em: <enoisconteudo.com.br>. Acesso em: 30 maio 2023. 11 Jamelle Bouie, “Disinformation not the real problem of democracy”. Disponível
3 O projeto com o carro de som pode ser conferido em: <instagram.com/p/CI5-jWPAiZk/>. em: <realclearpolitics.com/2023/03/12/disinformation_not_the_real_problem_with_
Acesso em: 30 maio 2023. democracy_593554.html>. Acesso em: 30 maio 2023.

4 Pulso da Desinformação. Disponível em: <igarape.org.br/pulso-da-desinformacao/>. Acesso 12 Unesco, “Safeguarding freedom of expression and access to information: guidelines for a
em: 30 maio 2023. multistakeholder approach in the context of regulating digital platforms”. Disponível em:
<unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000384031.locale=em>. Acesso em: 30 maio 2023.
5 Atlas da Notícia. Disponível em: <atlas.jor.br/noticias/projor-e-volt-data-lab-anunciam-sexta-
edicao-do-censo-atlas-da-noticia/>. Acesso em: 30 maio 2023. 13 Ajor – Associação de Jornalismo Digital. Disponível em: <ajor.org.br>. Acesso em: 30 maio
2023.
6 Columbia Journalism Review, “Michael Tubbs on disinformation, racism, and news deserts”.
Disponível em: <cjr.org/special_report/michael-tubbs-disinformation-racism-news-deserts- 14 Ajor, “PL das Fake News põe em risco pluralidade do jornalismo brasileiro”. Disponível
stockton-california-209-times.php>. Acesso em: 30 maio 2023. em: <ajor.org.br/pl-das-fake-news-poe-em-risco-pluralidade-do-jornalismo-brasileiro/>.
Acesso em: 30 maio 2023.
7 Democracy Fund, “How we know journalism is good for democracy”. Disponível em:
<democracyfund.org/idea/how-we-know-journalism-is-good-for-democracy/>. Acesso em: 15 Columbia Journalism Review. Disponível em: <cjr.org/business_of_news/australia-pressured-
30 maio 2023. google-and-facebook-to-pay-for-journalism-is-america-next.php/>. Acesso em: 30 maio 2023.

8 Reuters Institute, “Notícias para os poderosos e privilegiados: como representações deturpadas 16 Columbia Journalism Review, traduzido em Ajor. Disponível em: <ajor.org.br/australia-
ou insuficientes de comunidades desfavorecidas abalam a confiança delas nas notícias”. pressiona-google-e-facebook-a-pagarem-por-jornalismo-seriam-os-eua-os-proximos/>.
Disponível em: <reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/noticias-para-os-poderosos-e-privilegiados- Acesso em: 30 maio 2023.
como-representacoes-deturpadas-ou-insuficientes-de>. Acesso em: 30 maio 2023. 17 Media Funders. Disponível em: <maps.foundationcenter.org>
9 Nina Weingrill, “Por que é importante falar sobre Coronavírus – e outras coisas – 18 Richard Tofel, ProPublica. Disponível em: <niemanlab.org/2022/11/foundations-give-a-lot-of-
localmente”. Disponível em: <ninaweingrill.medium.com/porque-%C3%A9-importante- money-to-journalism-intermediaries-maybe-the-money-should-go-to-news-outlets-instead/>.
falar-sobrecoronav%C3%ADrus-e-outras-coisas-localmente-406251b9c47b>. Acesso em: 30 Acesso em: 30 maio 2023.
maio 2023. A lista completa com as referências citadas no artigo está disponível em ssir.com.br

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Aprofundar as
Relações para
Mudar os Sistemas
Por Juanita Zerda, Katherine Milligan e John Kania
Ilustrações: Samara Romão

As relações são fundamentais para a mudança coletiva e para desenvolver laços profundos de
empatia que ajudem a encontrar soluções sistêmicas para os problemas sociais.

À
s vezes perdemos de vista uma verdade simples sobre empatia e compaixão, de forma que possam produzir conexões
os sistemas: eles são formados por pessoas. Apesar de autênticas, em especial entre participantes de diversas origens.
todas as estruturas e ferramentas à nossa disposição Essas conexões mais profundas podem gerar novos caminhos de
e de todo o nosso aprendizado prático, as abordagens inovação para enfrentar nossos profundos problemas sociais.
puramente técnicas e racionais não conseguem incidir sobre as dinâ- Um exemplo é o trabalho da organização Dunna, na Colômbia, criada
micas de poder ou alterar crenças enraizadas em nossos sistemas. em 2010 para conceber, implementar e avaliar estratégias alternativas
Se a maioria dos esforços de mudança coletiva não leva as pessoas de construção da paz. Em seu primeiro projeto, a Dunna desenvolveu
a mudar fundamentalmente sua consciência e seus modelos men- um modelo para tratar o transtorno de estresse pós-traumático
tais, então o sistema do qual fazem parte também não mudará de (TEPT) de ex-combatentes de um grupo armado ilegal que lutou na
maneira significativa. guerrilha. A desmobilização do grupo teve início em 2006 e desde
No entanto, nas últimas duas décadas, a opinião predominante então havia uma alta prevalência de TEPT entre seus membros. A
entre muitos financiadores, diretores de conselho de administração Dunna começou a trabalhar com eles para responder aos enormes
e líderes institucionais tem sido a de que só se pode gerar impacto desafios de romper ciclos profundos de violência e alcançar uma paz
social por meio de resultados predeterminados e quantificáveis. real e sustentável.
Porém, se os últimos três anos e suas divisões e crises inter-relacio- Desde então, a organização aplica abordagens holísticas e emer-
nadas, devastadoras e cada vez mais profundas nos ensinaram alguma gentes com múltiplos atores do sistema, enfrentando e curando trau-
coisa, é que os problemas complexos e adaptativos desafiam modelos mas individuais e coletivos e gerando a empatia e a capacidade de
lógicos e soluções exclusivamente técnicas e redutoras. Para trans- agência necessárias para reconstruir e transformar o tecido social.
formar nossos sistemas, é hora de investir nossa energia coletiva em Tais abordagens – que foram avaliadas por entidades independentes
abordagens mais emergentes e relacionais. como a Universidad de los Andes, de Bogotá, na Colômbia – incluem
ferramentas como práticas restaurativas e técnicas psicofísicas. São
estratégias universais que em muitos casos foram esquecidas ou
Admitir o Desenvolvimento e Priorizar as Relações eram praticadas apenas por comunidades indígenas.
As relações são a essência e a trama da mudança coletiva. Como Os espaços seguros estabelecidos pela Dunna por meio de círculos
consequência, aqueles que facilitam esforços de mudança coletiva restaurativos que propiciam a construção de uma nova trama social
devem apoiar o desenvolvimento de relações que gerem verdadeira são um exemplo. Essa prática parte de uma configuração circular em

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que todos os participantes – incluídos os facilitadores – se comunicam JUANITA ZERDA, colombiana de nascimento, é JOHN KANIA é fundador e diretor-executivo do
diretora do Collective Change Lab. Trabalhou em várias Collective Change Lab. Foi diretor-geral global da FSG, onde
horizontalmente, o que possibilita a cada pessoa ser vista e ouvida organizações de justiça social. continua sendo membro do Conselho de Administração.
e que sua experiência de vida seja validada sem julgamento pelos
KATHERINE MILLIGAN é diretora do Collective
demais membros da comunidade. Nesses círculos restaurativos, o Change Lab. Foi diretora-executiva da Schwab Foundation
facilitador promove a escuta ativa e o compartilhamento a partir do for Social Entrepreneurship.

coração em um espaço confidencial, investido do ritual e da sacra-


lidade da cura coletiva. À medida que as experiências são comparti-
lhadas no círculo, os facilitadores acompanham os participantes no aqueles sem poder institucional, podem se expressar livremente e
trânsito das emoções que surgem no espaço com o uso de métodos ser vulneráveis, conectar-se uns com os outros e sentir sua huma-
para conectar mente e corpo. nidade comum.
Como demonstra o trabalho da Dunna, progredir de forma sig- Com atuação em territórios de violência complexa na Amé-
nificativa nos complexos desafios de nosso tempo requer formas rica Latina e em outras partes do mundo, a fundação colombiana
totalmente diferentes de trabalhar em conjunto e que priorizem TAAP, utiliza as artes e a comunicação para o desenvolvimento e
as práticas relacionais. De acordo com pesquisas e conversas com o aprendizado. Por meio delas, cria oportunidades de expressão
profissionais envolvidos nessas práticas de mudança transformadora, e desenvolve potencial criativo para que as comunidades possam
especialmente aquelas que provêm de culturas não dominantes, as viver em paz e alcançar o bem-estar. Um exemplo é o Pazificarte,
formas de trabalho mais radicais e relacionais em geral apresentam um programa que capacita jovens na remota região de Chocó para
cinco qualidades em comum: 1) engajam-se em um trabalho rela- que se tornem líderes de suas comunidades e resolvam conflitos
cional profundo; 2) cultivam um espaço para a cura; 3) convidam por meio de técnicas criativas de comunicação e mediação.
à serendipidade e ao sagrado; 4) atendem à mudança interna e Inicialmente, a fundação implementou programas destinados a
externa; e 5) transformam as dinâmicas de poder. Na prática, essas promover a educação e o desenvolvimento profissional de comu-
qualidades nunca estão sozinhas, mas funcionam de maneira íntima nidades vulneráveis da Colômbia. No entanto, com o passar do
e inter-relacionada e, assim, apoiam a transformação dos sistemas. tempo, começou a perceber que os avanços retrocediam quando
as pessoas voltavam para seu bairro, sua casa ou sua escola, onde
continuavam sofrendo alta discriminação e violência. “O progresso
não pode ser separado em caixinhas. Se não houver harmonia entre
as pessoas de uma comunidade, não pode haver progresso e paz.
Convidar à Tudo está interligado”, explica Gaby Arenas de Meneses, diretora
Serendipidade e fundadora da TAAP.
Transformar as e ao A organização decidiu então começar a oferecer métodos para
Dinâmicas de Poder Sagrado
mudar completamente as relações entre diversos atores ao apoiar
formas de expressão criativa e de desenvolvimento pessoal que
possibilitam pessoas de origens muito diferentes descobrirem sua
humanidade comum. A arte cria espaços para que as pessoas se
Engajar em relacionem de forma radicalmente diferente, tenham acesso a sen-
um Trabalho timentos reprimidos pelo medo e consigam criar um senso de his-
Cultivar um Relacional tória e de realidade do qual todos se sintam parte. Os programas da
Espaço para Profundo
TAAP promovem a tolerância e a empatia, capacitam as comunida-
Curar des a expressar conflitos de maneira saudável e mudam os padrões
de comunicação – antes baseados na ausência e na agressão. Esses
Atender à Mudança programas foram criados para que diferentes atores sociais possam
Interna e Externa abordar questões como respeito, diversidade e tolerância, para que
consigam expressar suas ideias sem constrangimentos e para que
sejam capazes de construir relações mais profundas ao destacar as
histórias que têm em comum.
1. Engajar em um Trabalho Relacional Profundo Para Gaby Arenas, “só pode haver mudança sistêmica quando
Tudo aquilo que sabemos sobre sistemas nos diz que as relações você muda as pessoas que fazem parte do sistema. Pode-se mudar
ocupam lugar central. A maioria dos líderes da mudança coletiva tudo o que for estrutural, mas se as pessoas continuarem a se com-
adere a este mantra: se você quer mudar o sistema, traga o sistema portar da mesma maneira, vão encontrar a forma de levar esses
para a sala. Como disse Brenda Zimmerman, a teórica de sistemas velhos padrões à nova estrutura”.
falecida em 2014: “A unidade de análise mais importante em um
sistema não é a parte (por exemplo, o indivíduo, a organização
ou a instituição), mas a relação entre as partes”. Quando falamos 2. Cultivar um Espaço para Curar
em trabalho relacional profundo, nos referimos a uma forma fun- O trauma resolvido é uma força que devemos levar em conta na
damentalmente diferente de estar em relação. Isso começa com a maioria dos problemas sistêmicos atuais – se não em todos. Além
criação de ambientes seguros em que os participantes, em especial disso, o trauma é muito mais comum do que nós que estamos

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Em Busca de Uma Definição:


Mudança de Sistemas
O foco deste artigo é o que chamamos
de trabalho relacional para a mudan-
ça de sistemas – um esforço que requer o
Seis Condições para a Mudança Sistêmica

envolvimento de muitas pessoas no sistema e Mudança


Políticas Práticas Recursos
que procura apoiar uma transformação coletiva Estrutural
na consciência.
(explícita)
Lidar com as causas profundas dos problemas so- Relacionamentos Dinâmicas de Mudança
ciais e ambientais em nível comunitário, regional ou na- e Conexões Poder
Relacional (semiexplícita)
cional exige mais que programas específicos. A empreitada
requer mudanças mais profundas nas estruturas sistêmicas, Mudança
Modelos
nas políticas e na cultura que produzem consistentemente – Mentais Transformadora
e muitas vezes foram concebidas para produzir – resultados (implícita)
desiguais. O trabalho para alterar as condições em níveis mais
profundos é frequentemente designado por mudança de
sistemas.
Embora o interesse pela mudança de sistemas esteja cres- tipicamente implícito, o que significa que acontece para além
cendo entre os agentes da transformação social, o conceito de nosso conhecimento consciente, e, ainda assim, tem o
continua sendo pouco compreendido. A estrutura de seis con- maior poder de transformar o comportamento individual e do
dições, também chamada de The Water of Systems Change (A sistema a longo prazo.
Água da Mudança de Sistemas), da qual um de nós é coautor Quando se envolvem no trabalho de mudança de siste-
[John Kania], parece ter ajudado muitos profissionais que tra- mas, muitas pessoas e organizações investem a maior parte de
balham com a mudança social e financiadores a entender me- seu tempo e recursos na tentativa de mudar as condições em
lhor a mudança de sistemas. nível estrutural. Embora as soluções estruturais sejam impor-
Parte do valor do esquema (veja ilustração acima) é que ele tantes, mudar a estrutura sem mudar as relações, a dinâmica
ilustra a mudança de sistemas em três níveis de explicitação. O de poder e os modelos mentais pode, na melhor das hipóte-
superior é a mudança estrutural: mudanças nas políticas, prá- ses, levar a soluções ineficazes ou temporárias e, na pior, dei-
ticas e fluxos de recursos. Esse nível é explícito, o que signifi- xar o sistema vulnerável à tendência de voltar a seu equilíbrio
ca que as pessoas envolvidas no sistema podem facilmente ver, inicial. Isso é particularmente verdade se as soluções estru-
identificar e, muitas vezes, até quantificar essas condições. turais foram desenvolvidas num contexto em que os grupos
O nível seguinte centra-se na mudança relacional – rela- tradicionalmente marginalizados não tinham voz. Os esforços
ções e conexões e dinâmicas de poder entre pessoas e organi- de mudança social devem, portanto, trabalhar concomitante-
zações. Tende a ser semiexplícito, na medida em que algumas mente nos três níveis de mudança de sistemas, a fim de produ-
vezes as pessoas conseguem ver essas dinâmicas e, em outras, zir uma mudança mais sustentável e transformadora.
elas ocorrem fora da visão de alguns atores do sistema. Esperamos que a proposta a partir de relações que traze-
O nível mais profundo é a mudança transformadora – os mos possa ajudar agentes de transformação social a catalisar
modelos mentais, as visões do mundo e as narrativas que mol- os esforços de mudança de sistemas do incremental para o
dam nossa compreensão dos problemas sociais. Esse nível é transformacional.

envolvidos no trabalho de mudança coletiva somos capazes de tivo e os sintomas da violência visando a cura, não haverá susten-
reconhecer, especialmente quando trabalhamos em comunidades tabilidade nem possibilidade de progresso econômico ou político”.
atormentadas por histórias de desigualdade e violência que pare- O trabalho da Dunna consiste justamente em trazer à tona esse
cem não ter fim. trauma de diversos atores envolvidos no conflito por meio de méto-
Em países como a Colômbia, inundados pelo conflito e pela dos profundos e muitas vezes pouco convencionais. Trata-se de aju-
guerra, foram criados padrões de relações baseados na hipervigilân- dar as pessoas a avançar, a realmente se engajar na reconciliação e a
cia e na hiperagressão, que permeiam o sentido de ser de todos os começar a curar dentro de sua comunidade. Por exemplo, no remoto
indivíduos. “Há uma impossibilidade de tornar visível o invisível. Não município de Viotá, localizado a três horas da capital Bogotá, a Dunna
há formas, não há canais para fazer essa transição. Há muito silêncio trabalha com um grupo que inclui comparecientes (pessoas acusadas
e estamos muito acostumados a reprimir”, explica María Adelaida de terem cometido um delito ou crime de guerra durante o conflito
López, cofundadora da Dunna. Ela acrescenta: “Se não tornarmos o armado coberto pela Jurisdição Especial para a Paz, órgão governa-
invisível visível, se não começarmos a tratar do nosso trauma cole- mental criado pelo Acordo de Paz para administrar a justiça transna-

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cional). O grupo também inclui combatentes desmobilizados, policiais conjunto, assim como a encontrar inspiração na arte, no silêncio
e militares, e implementa entre eles estratégias de comunicação, como ou em práticas contemplativas como a meditação. Embora os méto-
totens de palavras e habilidades de escuta ativa. Essa abordagem foi dos específicos possam variar em função do contexto local, o que
concebida para ajudar os participantes a administrar os efeitos somá- caracteriza essa qualidade entre múltiplas culturas é a intenção de
ticos do trauma que se manifestam pelos seus corpos, criando assim ajudar os participantes a estar totalmente presentes em seu traba-
as condições necessárias para estabelecer relações saudáveis com os lho e uns com os outros. Além disso, trata-se de fundamentar o
demais e poder reparar o tecido social. “Para criar uma verdadeira trabalho, individual e coletivo, no amor.
cura, você precisa encontrar algo em comum com identidades dife- Lauren Díaz é diretora-executiva da Fundación Nueva Oportunidad,
rentes da sua”, diz Natalia Quiñones, também cofundadora da Dunna. da Costa Rica, dedicada a processos de reinserção social de pessoas
“Você precisa fazer um trabalho minucioso, e durante muito tempo, privadas de liberdade por meio de capacitação profissional, apoio
para que todas essas pessoas que viveram tanta crueldade e medo à criação de microempresas e desenvolvimento pessoal ligado a
aceitem que podem existir novas maneiras de reconstruir sua comu- atividades artísticas e de saúde mental. Um exemplo desse trabalho
nidade.” Nesses espaços, é fundamental o uso de práticas destinadas a é o modelo de negócio desenvolvido com um grupo de detentos do
fazer com que todos os participantes se sintam seguros e protegidos. Centro Reynaldo Villalobos, que consiste na concepção, produção e
“Depois de chegar a uma sensação de segurança, as práticas descem comercialização de artigos confeccionados com materiais recicláveis
ao âmbito da mente, das emoções e do corpo para estabelecer uma doados por empresas privadas.
cura profunda, em que é possível começar a ouvir os outros e curar Lauren e sua equipe trabalham a maior parte do tempo dentro
os sintomas da violência em nossos sistemas, incluídos o silêncio e a de prisões e penitenciárias, lugares frequentemente desumaniza-
falta de reconhecimento”, aprofunda Natalia. dores e repletos de traumas. Ela acredita, porém, que é possível
O impacto desse trabalho foi tal que a Jurisdição Especial para a gerar espaços cheios de amor, segurança e humildade. Lauren diz
Paz recorreu à Dunna para desenvolver um modelo de ações restau- que, para criar tais espaços, “devemos deixar de lado nossos pre-
conceitos e nos sincronizar com a magia
do momento, tratando cada interação
como um momento sagrado, no qual, às
Os problemas complexos e adaptativos desafiam vezes, podemos testemunhar a essência
de cada ser”. Quando planeja uma visita
modelos lógicos e soluções exclusivamente a uma pessoa privada de liberdade, por

técnicas e redutoras. (...) É hora de investir exemplo, Lauren diz que procura des-
cansar bem e estabelecer a intenção de
nossa energia coletiva em abordagens mais abrir sua alma. Uma vez lá, participa de
rituais para agradecer o privilégio de
emergentes e relacionais. estar em comunidade.
A Nueva Oportunidad também tra-
balha para melhorar as relações e as
condições de vida nas prisões, criando
rativas com vários atores do conflito. Essa decisão é consequência espaços para o entendimento e a aproximação entre os vários ato-
do reconhecimento de que o êxito do Acordo de Paz não depende res do sistema penitenciário. Lauren pede às instituições e àqueles
apenas do estabelecimento de recursos e estruturas de reintegração e que exercem o poder que se afastem das soluções herdadas e pouco
convivência, mas que também é necessário estabelecer novos padrões questionadas e deem espaço a essa magia. Ela nos convida a “nos
nas relações que permitam curar coletivamente e que deem espaço desviar um pouco da norma para poder construir soluções com as
para transformar os modelos mentais enraizados depois de décadas pessoas tendo como base o amor: amor pelo que estamos fazendo
de violência e guerra. e pelo que devemos à vida, e dar espaço ao espírito e à magia do
que é possível”.

3. Convidar à Serendipidade e ao Sagrado


Das cinco qualidades, convidar ao sagrado e dar boas-vindas ao 4. Atender à Mudança Interna e Externa
acaso é talvez a mais difícil de explicar. Isso se deve, em grande As pessoas que trabalham com esforços de mudança coletiva são
parte, ao fato de que as pessoas muitas vezes equiparam a palavra atores que tentam mudar os sistemas, e essa mudança deve começar
“sagrado” à religião ou pensam que se refere a iniciativas baseadas de dentro de cada um. O processo parte do exame de visões parciais,
na fé. Ao contrário, trazer sacralidade aos processos não exige ou suposições e pontos cegos, acertando as contas com os privilégios
pressupõe que todos os envolvidos tenham uma orientação espiritual. e nosso papel na perpetuação das desigualdades e criando a capaci-
No contexto do impacto coletivo, essa qualidade significa esta- dade de deixar de lado a necessidade de controle. A mudança interna
belecer um sentido que incentive todos os envolvidos no trabalho também é um processo relacional e reiterativo: o indivíduo muda o
relacional a abrir seus corações a uma fonte universal ou à graça. coletivo, o coletivo muda o indivíduo e assim sucessivamente. Essa
O uso de rituais, histórias pessoais e narrativas comunitárias pode interação é o que nos permite gerar conhecimento, criar oportuni-
ajudar os grupos a estabelecer um tom sagrado para seu trabalho dades e enxergar o potencial de transformação.

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Praticando a Mudança de
Sistemas a partir das Relações
C omo essa mudança sistêmica se parece na prática?
Por onde começar?” Essas são perguntas que fre-
quentemente nos fazem sobre esse tema.
Algumas dessas práticas são:
• Honrar o fato de estar em comunidade recorrendo a rituais.
Criar rituais é uma forma de preparar o coração e expressar a in-
Um bom ponto de partida é explorar as nossas in- tenção de estar numa relação autêntica com os parceiros para ver
tenções. A razão pela qual nos empenhamos na mudan- e mudar o sistema. Marcar o início e o fim de seu tempo em comu-
ça dos sistemas a partir das relações é tão importante nidade com rituais infunde a colaboração com reverência e res-
como a forma como o fazemos. Desejamos nos envolver peito e apoia os participantes a estarem totalmente presentes no
com ela porque reconhecemos que nossas formas atu- trabalho e com os outros.
ais de trabalhar em conjunto não são suficientemente
• Liderar com a cabeça e o coração. Desaprender a dependência
equitativas ou libertadoras. A esperança e o amor de-
excessiva que a cultura dominante tem em relação às métricas e à
vem orientar o modo como nos ouvimos uns aos ou-
crença em resultados imediatos. Aprender a se sentir confortável
tros; devem alimentar nosso diálogo e orientar o modo
com a incerteza e a emergência. As abordagens racionais têm um
como usamos nosso poder pessoal e institucional. A
espaço e um objetivo no trabalho de mudança de sistemas, mas
nossa vontade de fazer um trabalho interior sobre nós
as abordagens racionais, por si só, não conduzem à transformação.
mesmos é o que nos permite abordar o trabalho rela-
cional com maior abertura, flexibilidade e humildade. • Explorar e aprender sobre o trauma coletivo e a cura. Quan-
Em seguida, temos de analisar a forma como nos do mudamos os sistemas abordando apenas suas condições, sem
apresentamos e nos relacionamos com colegas, parcei- olhar para a razão pela qual se comportam de forma tão injusta
ros e beneficiários. Como nos envolvemos no diálogo, e desigual, optamos por ignorar a dor que contêm e a mágoa de
exercemos nosso poder e cocriamos soluções? Quais são onde surgiram. Aprender sobre como o trauma se manifesta tanto
nossos valores mais profundos e até que ponto, e com nos indivíduos como nos coletivos talvez preencha o trabalho de
que frequência, incorporamos esses valores? As respos- mudança de sistemas com empatia e compaixão e abre a possibi-
tas a essas perguntas são radicalmente diferentes quan- lidade de cura.
do damos prioridade ao desenvolvimento de relações • Comprometer-se continuamente a lidar com as dinâmicas de po-
com outros atores do sistema e quando estamos em par- der, especialmente se tiver privilégios ou estiver num papel com
cerias transacionais. autoridade. O comprometimento com o equilíbrio das dinâmicas
Finalmente, como o nome indica, a mudança de sis- de poder significa que falamos abertamente sobre o poder, apren-
temas a partir das relações exige o reconhecimento da demos sobre as formas insidiosas em que muitas vezes funciona e
interdependência de nossa existência, não só entre nós, abraçamos as formas libertadoras em que pode ser aproveitado.
mas também com nossa história coletiva e a energia que • Utilizar o storytelling para criar significado em conjunto. A nar-
nos rodeia. Essa mudança demanda estarmos abertos à ração de histórias para a mudança de sistemas envolve diversos
emergência, ser responsáveis pela energia que traze- grupos, honrando sua tradição, criando um veículo para sonharem
mos para o sistema e ser humildes quanto a nosso lugar juntos e expressando seus valores para a mudança.
no mundo.
Nós nos envolvemos nessa mudança por meio de Embora essas práticas não sejam exaustivas, são passos ini-
uma série de práticas que sabemos não serem nunca ciais que as organizações e os esforços coletivos podem dar na
perfeitas e, no entanto, reconhecemos que sua busca é longa jornada de transformação dos nossos sistemas no sentido
suficientemente sagrada para valer a pena a viagem. da equidade e da justiça.

Nicola Gryczka Kirsch é cofundadora do Social Gastronomy enfrentar a desigualdade social e restaurar coletivamente o pla-
Movement (SGM), que tem filiais em mais de 60 países (muitas neta. Como explica Nicola, a comida é um conector, um veículo
delas na América Latina). O SGM se dedica a levantar as vozes que leva as pessoas a se relacionarem consigo mesmas e com as
de lideranças comunitárias e dar visibilidade global às iniciativas demais no espaço que compartilham. A comida não apenas nutre
locais, cocriando espaços de aprendizado e intercâmbio de melho- nosso corpo, mas também nossas lembranças mais profundas.
res práticas. Além disso, fornece suporte para esforços coletivos de Quando nos sentamos à mesa ou no chão para compartilhar uma
mudança. Um exemplo é o SGM Fund, um programa que apoia sua refeição em comunidade, nivelamos nossa consciência com aque-
rede de membros e financia organizações que se dedicam a garan- les que nos rodeiam, nos libertamos e nos regozijamos. Nesses
tir a segurança alimentar e a examinar as causas fundamentais da momentos emerge uma parte autêntica de nós mesmos.
fome em comunidades locais. O SGM guia os participantes em meditações que abordam o
O SGM se fundamenta no poder dos alimentos como fer- significado e os sentimentos associados à comida, levando-os a
ramenta para unir as pessoas e transformar realidades locais, recordar as primeiras vezes que colheram frutas ou jantaram com

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parentes, com destaque para memórias de sabores perdidos ou de nização se comprometem com a intenção de, em primeiro lugar,
momentos em que os alimentos não eram de fácil acesso. O SGM servir para a colaboração em vez de tentar extrair valor para sua
emprega essas práticas antes de iniciar reuniões colaborativas para própria organização. Gaby comenta: “Nós, que trabalhamos pela
ajudar as pessoas a se apresentarem de forma mais autêntica e a mudança social, levamos anos para deixar de dizer ‘minha organi-
se abrirem para conexões cheias de afeto e vulnerabilidade. Além zação e meu projeto’. E, em algumas ocasiões, tivemos de dizer não
disso, para ajudar os participantes a colaborar com todo o seu ser, a financiamentos que priorizam narrativas de heroísmo individual
em vez de se concentrarem nos títulos e na bagagem profissional e que estimulam a competição entre organizações do setor social”.
que costumam trazer consigo, o SGM utiliza técnicas simples, como Portanto, esses processos de weaving (tecido colaborativo),
pedir que as pessoas sejam chamadas apenas pelo primeiro nome, como Gaby os denomina, abriram espaços para que causas que
antes concorriam unissem forças e obti-
vessem financiamento conjunto não
com base na “melhor ideia”, mas no

As formas atuais de colaboração não estão à altura processo coletivo. Uma dessas colabo-
rações resultou na criação do Colom-
da tarefa [de transformar sistemas], dada a bia Cuida a Colombia, movimento do
qual a fundação é cofundadora. Trata-se
complexidade dos problemas sociais e ambientais. de uma iniciativa de mudança coletiva
(...) Precisamos de formas mais radicais de que tem mais de 400 parceiros dos
setores público e privado cujo objetivo
trabalhar juntos. primordial é mitigar os piores efeitos
da Covid-19 em mais de três milhões
de famílias vulneráveis. A TAAP tam-
bém participou da cocriação de outros
iniciar sessões preparando e apreciando um jantar juntos ou fazer exemplos de colaboração relacional: Juntos por Chocó, Juntos por
reuniões em e com comunidades tradicionalmente marginalizadas. Cúcuta e a Red de Educación Transformadora de América Latina.
Tais métodos levam os participantes dos encontros nacionais do
SGM a ver o lado humano de cada um, até mesmo entre pessoas
que trabalham para organizações tradicionalmente opostas, como Ter Acesso à Sabedoria Profunda
o slow food (comida lenta) e o fast food (comida rápida). Quando pedimos ao nosso setor que invista sua energia coletiva
Kirsch recorda momentos em que importantes chefs ou empre- em abordagens mais relacionais e emergentes para transformar
sários participaram de uma refeição comunitária com os moradores os sistemas, simplesmente mencionamos o que muitos de nós já
de locais que visitaram, compartilhando receitas e histórias sobre sabemos: as formas atuais de colaboração não estão à altura da
os alimentos e suas famílias. Depois dessas experiências, os chefs tarefa, dada a complexidade dos problemas sociais e ambientais que
muitas vezes modificam seus cardápios, comprometendo-se a bus- estamos tentando resolver. Para chegar a resultados mais radicais,
car maior sustentabilidade, os empresários aumentam seu apoio precisamos de formas mais radicais de trabalhar juntos, algo tão
ao desenvolvimento alimentar do ponto de vista da solidariedade, simples quanto difícil.
e não da caridade, e os membros da comunidade aumentam seu Essas formas exigem muito de nós como líderes e rapidamente
senso de dignidade e poder. “Experimentar a realidade de outra nos tiram de nossa zona de conforto. Devemos nos lembrar cons-
pessoa cria uma empatia que transforma”, afirma Nicola. “Há uma tantemente de que o processo é a solução e devemos permanecer
grande diferença entre analisar um problema no papel e ver como abertos para explorar perguntas novas e difíceis. O que cada um
a fome é sentida por quem passa por ela. Quando você entra nas de nós pode fazer para levar as pessoas a se relacionarem profunda
favelas do Brasil, ouve e vê a realidade e as circunstâncias das pes- e autenticamente e criar espaços seguros para a vulnerabilidade?
soas, isso toca seu coração. Se toca seu coração, você não pensa, Como concebemos experiências profundas para curar coletivamente
mas sente e, assim, você se transforma.” e nos conectarmos com nossa humanidade compartilhada? Como
podemos admitir o desenvolvimento e cultivar nossas capacidades
como líderes para seguir a nova energia, criatividade e inovações
5. Transformar as Dinâmicas de Poder que vemos surgir? Acreditamos que essa é a próxima fronteira da
Os esforços de mudança coletiva devem ser intencionais para não mudança de sistemas. Somente quando começarmos a explorar as
replicar os desequilíbrios de poder dos sistemas em que atuam. respostas a essas difíceis questões começaremos a promover mudan-
Para Gaby Arenas de Meneses, da TAAP, a chave da mudança sis- ças na consciência individual e coletiva poderosas o suficiente para
têmica é penetrar e transformar as dinâmicas de poder profunda- transformar os sistemas. n
mente enraizadas que privilegiam a individualidade e promovem a
concentração da tomada de decisões nas mãos de poucas pessoas. Algumas das principais ideias deste artigo aparecem em “The Relational Work of
System Change” (Trabalho Relacional Para Mudar os Sistemas), um dos mais lidos em
Para cumprir seu papel de ponte, a TAAP inicia cada colabo- ssir.org em 2022. Os autores reescreveram o texto para a Stanford Social Innovation
ração com a premissa de que nenhuma organização pode resolver Review en Español, incluindo exemplos detalhados de organizações da América
Latina que praticam o trabalho relacional.
um problema social por si só. A partir disso, os líderes de cada orga-

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A Emergência
de Relações que
Possibilitam
Mudanças
Sistêmicas
Por Cássio Aoqui, Tiana Vilar Lins e
Vanessa Prata, do Labô
Ilustração: Samara Romão

Como estamos dialogando com o trabalho relacional no


ecossistema de impacto brasileiro: desafios e perspectivas

N
as bordas a leste da maior cidade do hemisfério Pedra, no bairro carioca de Pedra de Guaratiba: as mulheres come-
Sul – São Paulo –, um coletivo de mulheres se reúne çam as oficinas em roda entoando um canto de jongo, dança de ori-
em torno de uma mesa para produzir cosméticos natu- gem africana, em que pedem “licença” aos antepassados para entrar
rais. Entre ervas que suas avós usavam como remédios na casa, independentemente da religião de cada uma. E, de retalho
e batuques animados, aos poucos, temas como racismo e abuso de em retalho, as colchas cosidas na casa centenária foram se tornando
crack vão se desvelando nas conversas conforme pomadas, sabões e artefato visível de um processo de trabalho coletivo, conexões autên-
escalda-pés ganham formas, cores e aromas. ticas, abertura para novos olhares e desenvolvimento do potencial de
A centenas de quilômetros dali, nas franjas a oeste da mais famosa cada pessoa, entremeados pelas relações artísticas.
cidade brasileira no mundo – o Rio de Janeiro –, são pedaços de “É sobre o individual valorizando o coletivo e o coletivo valori-
pano, das mais diversas cores e estampas, que ganham contorno zando o individual. É sobre ter resistência, potencialidade, é acreditar
em colchas cerzidas, enquanto assuntos como conflitos com filhos e num mundo melhor que depende de mim e do outro. É acreditar
violência doméstica vão se costurando em “círculos de cura” a par- muito no outro”, resume a pedagoga e também educadora popular
tir da escuta coletiva. Leila de Souza Netto, coordenadora do coletivo.
Em comum, ambas as organizações são coletivos não instituciona- Cada qual em seu território, as Leilas talvez representem duas
lizados (por escolha, mas que em breve terão CNPJ para “se adequar” entre milhares de vozes de um fenômeno emergente e cada vez
ao sistema), conduzidos por mulheres pretas e periféricas, cujos tra- mais potente no Brasil: o de coletivos e organizações legitimamente
balhos se dão com base em apoio mútuo no território, com olhares criados e conduzidos por representantes de grupos historicamente
e abordagens emergentes, integradas, profundamente relacionais. marginalizados. Não que o fenômeno da ação coletiva seja novo –
“Nosso método é o afeto, o olho no olho, a música. São os valo- basta lembrar os movimentos sociais por direitos e luta pela rede-
res afrocivilizatórios brasileiros, baseados na circularidade, no axé, na mocratização dos anos 1970 e 80, as iniciativas de economia solidária
musicalidade, na cooperação”, conta a educadora popular e enfermeira em todo o país, ou ainda os próprios quilombos.
baiana Leila Rocha, cofundadora da Ilera – Ancestralidade e Saúde, Porém, do lugar privilegiado de quem trabalha com fortalecimento
atualmente sediada no bairro paulistano de Guaianases. institucional e apoia a conexão entre quem detém recursos – sobre-
Não à toa, o termo ilera, de origem iorubá, está associado à saúde tudo financeiros – e quem encampa esforços de mudança social nos
e ao cuidado, ao compartilhamento e ao acolhimento. “A ideia é cuidar territórios, nas duas últimas décadas temos acompanhado uma série
da saúde como nossas mães e avós cuidavam, com base no conheci- de movimentos e tendências no campo. Talvez nenhum com tamanha
mento de matrizes negra e indígena, uma saúde integral a partir de capacidade de se efetivar e ressignificar as estruturas da sociedade
nossos ancestrais”, diz Leila. civil no tocante ao enfrentamento das desigualdades sociopolíticas,
Rituais também são parte importante do coletivo Mulheres de culturais e econômicas como a desses coletivos.

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Isso porque, a nosso ver, tais coletivos e organizações propõem CÁSSIO AOQUI, TIANA VILAR LINS E VANESSA PRATA são profissionais do campo social e
cofundadores do Labô – Laboratório Social, coletivo de experimentações e proposição de práticas emergentes no
uma mudança radical – na raiz – que contraria modelos mentais hege- campo da mudança social.
mônicos e o status quo do campo como um todo. A começar de quem
parte a ação, em geral pessoas colocadas no lugar de beneficiárias,
quando deveriam ser agentes centrais nas transformações socioam- para que a mudança seja considerada sistêmica. De nossa experiência,
bientais pelo amplo conhecimento das questões locais e contextuais contudo, tais coletivos e organizações operam sob lógicas diferentes.
e das possíveis melhores soluções para elas. Nem todos almejam gerar franquias sociais, influenciar políticas públi-
Na forma, partem também do trabalho relacional profundo, ao cas e alcançar milhões de atendimentos em seus relatórios anuais.
criar espaços de confiança e cura coletiva, para então tecer, de dentro Talvez por verem em sua atuação um sistema em si. Talvez por
para fora (e de fora para dentro), a transformação territorial com os conhecerem como ninguém as complexidades humanas e unicidades
mais diversos agentes envolvidos, geralmente em espaços marcados dos territórios. Talvez por saberem que há séculos no Brasil povos
tanto por exclusões, traumas e violações de direitos como por nar- originários e negros e contextualmente periféricos já trabalham com
rativas únicas e potencialidades múltiplas. outro tipo de escala, ainda que mais sutil, a partir da lógica das cone-
“Temos olhares singulares oriundos de experiências intersec- xões, das relações e das colaborações dentro e entre os territórios.
cionais que produzem saídas únicas para as adversidades cotidianas. Os Yawanawá, comunidades de povos originários no oeste da
Temos uma metodologia radical e inovadora de geração de impacto Amazônia brasileira, por exemplo, vêm sustentando uma mudança
que busca resgatar práticas ancestrais de valorização de nossas redes paradigmática na lógica de definição do valor monetário de uma maté-
e comunidades, de salvaguardar nossa memória com o resgate e a ria-prima mantida pela sabedoria ancestral: o urucum (semente que
construção do conhecimento”, atesta Aline Odara, cofundadora do produz um pigmento vermelho-alaranjado). Há mais de 30 anos, a
Fundo Agbara. Primeiro fundo de mulheres negras do Brasil, nascido empresa de cosméticos Aveda compra o urucum dos Yawanawá por
de práticas de filantropia negra e comunitária, o Agbara tem como um preço que considera o valor histórico, a manutenção do conheci-
missão a promoção do acesso a direitos econômicos a mulheres negras. mento tradicional e o modo de vida sustentável. A construção desse
Essas são hipóteses que trazemos de forma exploratória, a partir processo foi longa: a Aveda apoiou na parte tecnológica para benefi-
de nossas próprias vivências, reflexões e aprendizados. Sobretudo ciamento do urucum, ocorreram visitas mútuas e inúmeros momen-
ao longo dos últimos cinco anos em que vimos florescer e acompa- tos de interação que provocaram mudanças em todos os envolvidos.
nhamos de perto mais de uma centena de iniciativas dessa natureza. Não sabemos se essa experiência é considerada de escala na indústria
Esse modo de viver – e de produzir mudança social – sempre de cosméticos. O ponto-chave é que a lógica mudou de uma mera
existiu por aqui, desde antes do domínio colonizador. Em São Paulo, relação de compra e venda de um produto bruto para uma grande
há mais de 15 anos vemos os esforços hercúleos d’A Banca (ver “Em empresa reconhecendo (e pagando por) todo o conhecimento e his-
Busca do Empreendedorismo Social Inclusivo”, na edição 1 da SSIR tória desse povo, o que influencia muitas outras relações tanto dos
Brasil); as próprias Mulheres de Pedra têm quase um quarto de século. Yawanawá quanto da Aveda.
Entretanto, partimos do pressuposto de que o momento dá pulso O que nos traz a outras indagações, inspiradas por uma frase
ao movimento, com iniciativas emergentes germinando como nunca, da Rede Asta (“das nanoevoluções surgem as grandes revoluções”):
por razões tão variadas quanto complexas – de acessos a direitos será que, com o devido apoio reparativo, essa profusão de coletivos
básicos como renda, educação e tecnologia que se ampliaram nas e organizações emergindo por todos os cantos do país, operando em
últimas décadas ao, paradoxalmente, aumento das desigualdades e colaboração, não poderia oxigenar o que entendemos por mudança
precarização do trabalho, além de fatores que possivelmente passam, sistêmica? Será que há mesmo espaço para nos abrirmos para novos
no curto prazo, pela pandemia; por mudanças geracionais no médio modelos e formas de pensar e fazer? Será que disso não pode emer-
prazo e, no longo prazo, por uma transição maior no nível ontológico gir uma contribuição genuína brasileira sobre como transformar as
que acreditamos (ou esperamos) estar vivendo. dinâmicas de poder? Será que não podemos aprender com tais práti-
cas de modo que essa forma relacional de sentir, pensar e agir possa
inspirar qualquer ação social?
Desafios e Perspectivas Acreditamos profundamente que sim. E sabemos que a jornada
Desafios não faltam. Provavelmente o maior de todos é viabilizar será longa. O primeiro passo, a nosso ver, está relacionado com come-
abordagens relacionais com mudança sistêmica e que questionem çarmos (ou voltarmos) a falar no campo da filantropia sobre temas
o pensamento hegemônico e sua mecânica no sistema atual de que como trazem os autores do texto com o qual aqui “conversamos”.
fazemos parte. A começar pelos recursos financeiros, que raramente Sobre relações, sobre espaços de cura, sobre o sagrado, sobre mudan-
fluem na contracorrente. ças que partem “de dentro” em todos os sentidos, sobre transformar
Acompanhamos também de perto as dores desse processo emer- as dinâmicas de poder. Sobre aspectos mais profundos do que nos
gente e vemos como necessária toda a cautela possível para não criar torna humanas e humanos.
personagens heroicos, invulneráveis. É comum na lógica predominante O próximo é que espaços como este possam ser ocupados pelas
transformar pessoas em máquinas de trabalho e, por conseguinte, próprias pessoas aqui mencionadas, que elas não precisem de “inter-
exemplos de sucesso, em especial no contexto de grupos mais vul- mediários” para trazer suas histórias e perspectivas. Afinal, o exame
neráveis, em que uma voz que se destaca acaba tendo a responsabi- de vieses vale para todo mundo, incluídos estes autores. Essas refle-
lidade de representar todas aquelas não ouvidas. xões são apenas uma provocação inicial e um convite para que novos
Outro desafio está na lógica de crescimento e escala a todo custo estudos e artigos ocupem este ou outros espaços de debate. n

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Brazil Ad-2023-r3.pdf 1 6/1/23 4:58 PM

SSIR Celebrates
20 Years and Our
6 Global Partners
C
Stanford Social Innovation Review was founded in 2003 to activate
M

Y
a global social innovation community. We unite practitioners of
CM
social good, the philanthropists and organizations that fund them,
MY
the academics, researchers, and policy makers that help create
CY

CMY
impact, and the citizens that care about social change.
K

OUR GLOBAL PARTNERS help fulfill our mission of uniting the global social innovation
community. At 20 years, SSIR is available in the languages spoken by 80% of the globe.

2003 2006 2009 2016 2017


SSIR founded at SSIR.org launches + SSIR Live! launches 1st “Frontiers of Social Chinese edition
Stanford University 1st annual “Nonprofit regular live online Innovation” convenes with Leping Social
Management Institute” programming social impact leaders to Entrepreneur
explore emerging trends Foundation

2018 2020 2021 2021 2022


Korean edition Arabic edition with Majarra Portuguese “Data on Purpose,” SSIR’s annual 1st SSIR “Global
with Hanyang Japanese edition with Social edition with gathering on tech for social Partners Summit”
University investment Partners RFM Editores good, transitions to virtual
Spanish edition with Instituto
Tecnológico y de Estudios
Superiores de Monterrey

IN THE COMING YEARS, we’ll expand our global reach, and co-create
content to share solutions across borders and boundaries.

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50 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

ANOS

O FUTURO DA
INOVAÇÃO SOCIAL
a primavera de 2003, a Stanford Social Innovation Review
(SSIR) publicou sua edição inaugural. Agora, 20 anos depois,
convidamos alguns dos principais pesquisadores, pensadores
e profissionais do planeta – todos eles com artigos previamente publicados
na SSIR – para compartilhar suas ideias sobre os desafios que temos
pela frente e falar a respeito de como o campo da inovação social deve
evoluir para enfrentá-los. O resultado é uma coleção fascinante de artigos
diversos que certamente inspira e estimula reflexões. Nas próximas
páginas, conheça alguns deles. O conteúdo completo estará disponível
em breve em ssir.com.br. Siga nossas redes e cadastre-se no site para
receber o material.

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 51

A CELEBRAÇÃO DE 20 ANOS
POR PAUL BREST

É
comum, no aniversário importante de uma organização, de duração, abordou uma questão fundamental: “Como promover
relembrar seu nascimento – neste caso, o surgimento maior cooperação e colaboração em um mundo cada vez mais diver-
da Stanford Social Innovation Review como publicação gente?”, voltando-se em particular para o papel das instituições
do Center for Social Innovation da Graduate School of da sociedade civil na busca por interesses comuns; a conferência
Business, na Stanford University. Contudo, há outra data relevante Frontiers of Social Innovation, em março, tratou do papel da inova-
na juventude da SSIR: o ano de 2010. Foi quando a Business ção social na sustentação da democracia em um momento em que
School definiu que uma publicação voltada para a inovação as instituições políticas democráticas estão sob ameaça em muitas
social não se encaixava mais partes do mundo, incluindo os Estados Unidos; e Data on Purpose,
em seu plano estratégico e, na no ano passado, focou na tecnologia de interesse público, emergente
prática, a colocou para adoção A SSIR é uma das campo que defende a tecnologia como algo a ser projetado, empre-
“na porta da igreja” – no caso, poucas publicações gado e regulamentado de maneira responsável e justa.
na porta do escritório do reitor no campo da ino- Permitam-me passar para o conteúdo da publicação, que é, no
da universidade. fim, o mais importante. A SSIR procura ser um fórum global de
vação social verda-
A SSIR já havia se destacado ideias, práticas e soluções novas em inovação social em todos os
nacionalmente e a ideia de vê-la
deiramente global: setores, além de buscar unir teoria, pesquisa e prática. Um sinal do
se tornar, digamos, Harvard quase metade das sucesso nessa missão é o número de ideias e práticas importantes
Social Innovation Review ou pessoas que leem a e duradouras que a publicação gerou. Deixem-me mencionar três.
Yale Social Innovation Review SSIR online encon- O desafio de romper o círculo, de 2009, explica que a propensão
não empolgava nem um pouco de doadores filantropos a financiar projetos específicos levando em
tra-se fora dos
o reitor. Mas onde realocar a conta despesas gerais mínimas, em vez de oferecer apoio irrestrito,
publicação? O Stanford Center on
Estados Unidos – cria um círculo vicioso que priva organizações sem fins lucrativos
Philanthropy and Civil Society nos últimos anos, da infraestrutura necessária para sobreviver e servir a seus bene-
(PACS) havia sido fundado a publicação lan- ficiários. O artigo gerou uma análise mais profunda do problema e
alguns anos antes e mostrava-se çou seis edições em teve um efeito perceptível nas práticas filantrópicas.
promissor na divulgação de Impacto Coletivo, de 2011, aponta que a mudança social em larga
outros idiomas.
pesquisas e atividades docentes escala exige uma ampla coordenação intersetorial, em vez de uma
nessas áreas. Com o apoio da intervenção isolada de organizações individuais. O artigo destaca
William and Flora Hewlett Foundation, a SSIR foi adquirida pelo PACS, um esforço coordenado de fundações privadas e corporativas,
passando a ser parte integrante do centro e, desde então, motivo de funcionários de governos municipais, representantes escolares
orgulho para Stanford. distritais, universidades, além de grupos de defesa e membros de
Quem lê a SSIR? Funcionários e membros de conselhos de organi- organizações sem fins lucrativos ligados à educação que advogam
zações sem fins lucrativos representam cerca de metade dos leitores, pela melhoria do ensino em Cincinnati. Collective Impact, 10 Years
com o restante se dividindo entre entidades filantrópicas, empresas, Later (Impacto coletivo, 10 anos
firmas de consultoria, universidades e governos. A tiragem da SSIR é depois), uma série de artigos
de aproximadamente 11 mil exemplares; online, quase 250 mil pessoas publicados em 2021, descreve o
visitam seu site todos os meses, e suas newsletters semanais contam sucesso do movimento gerado
com mais de 90 mil inscritos. graças àquele texto.
Em seus primeiros anos, a grande maioria dos leitores era dos Listening to Those Who Matter
Estados Unidos. Atualmente, a publicação é uma das poucas no Most, the Beneficiaries (Ouvindo
campo da inovação social verdadeiramente global: quase metade das quem mais importa: os benefici-
PAUL BREST é professor emérito (em atividade)
pessoas que leem a SSIR online encontra-se fora dos Estados Uni- e ex-reitor da Stanford Law School e ex-presidente ários), de 2013, ressalta a impor-
dos. Além disso, hoje são seis edições em outros idiomas, produzidas da William and Flora Hewlett Foundation. É autor tância de escutar as experiências
e coautor de inúmeros artigos publicados na
por parceiros no Japão, na Coreia do Sul, na China, no México (para SSIR, incluindo A Decade of Outcome-Oriented das pessoas que se beneficiam
falantes de espanhol das Américas Central e Latina), no Brasil e nos Philanthropy, 2012 (Uma década de filantropia de programas sociais. Embora
voltada para resultados), When Can Impact
Emirados Árabes Unidos (para o mundo de língua árabe). Investing Create Real Impact, 2013 (Quando o
o valor das perspectivas desses
Além da revista impressa e dos conteúdos online, a SSIR promove investimento de impacto pode provocar um “especialistas práticos” possa
impacto verdadeiro) e Strategic Philanthropy and
três conferências anuais que recebem mais de três mil pessoas. No Its Discontents, 2015 (Filantropia estratégica e
parecer, em retrospectiva, óbvio,
último ano, seu Nonprofit Management Institute, evento de três dias seus dissabores). muitas organizações sem fins

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lucrativos e instituições filantrópicas dedicam-lhes pouca atenção. Convidamos você a fazer um esforço para superar as limitações
O artigo catalisou um movimento, dando sustentação para as atuais óbvias dessa visão. Na verdade, vamos dar um passo adiante e sonhar
práticas emergentes de filantropia participativa baseada na confiança. com um mundo incrível e multirracial, no qual as necessidades de
A SSIR não apenas apresenta ideias e práticas novas, mas também todas as pessoas são atendidas, olhando para isso não como algo utó-
lança um olhar crítico àquelas consolidadas. O artigo Microfinance pico, mas como uma possibilidade aceitável e bastante real.
Misses its Mark (O microcrédito fracassa), que examina os problemas Pense no mundo retratado em Pantera Negra: Wakanda para
que envolvem microcréditos, foi publicado em 2007, apenas um ano Sempre, no qual o diretor Ryan Coogler nos apresenta uma pers-
depois do Grameen Bank e de seu fundador, Muhammad Yunus, pectiva do que é possível quando deixamos de centralizar nossas
terem recebido o Prêmio Nobel da Paz por ajudar a popularizar o narrativas nos pontos de vista das pessoas brancas, masculinas e
microcrédito. Mais recentemente, a SSIR publicou artigos que lançam heterossexuais, e de vilões de nossas próprias histórias passamos
um olhar crítico às práticas socialmente responsáveis presentes no a nos ver como cúmplices comprometidos em preservar e proteger
mundo dos negócios, tais como “Do discurso sustentável à prática uns aos outros, conscientes do poder que temos como comunidades
de Greenwashing”, na edição 3 da SSIR Brasil. individuais e coletivas.
Eu poderia acrescentar muitos outros exemplos de artigos que Histórias como a do filme demonstram o nível de violência pro-
tiveram impacto no campo da inovação social, mas vou concluir com vocado, ao longo de gerações, por colonizações, conquistas e geno-
uma história pessoal. Como um acadêmico orgulhoso de sua escrita, cídios – e de que forma podemos superá-los. Isso nos desafia a ver
sempre que submeti artigos para a SSIR, o fiz ciente de que estavam Talokan, o reino subaquático enraizado nas culturas indígenas maias
o mais pronto possível; ainda assim, eles voltavam, inevitavelmente, e astecas, como uma possibilidade, apesar das dificuldades que a
com sugestões editoriais que os tornavam não só muito melhores, comunidade ficcional enfrenta para sobreviver.
mas, principalmente, mais acessíveis aos diversos leitores da revista. Quando pensamos no futuro da tecnologia e da inovação social,
O cuidado e a habilidade incomuns que os editores da SSIR dedi- precisamos nos valer de lentes alternativas, exatamente como no
cam a cada artigo são apenas uma das razões para a preeminência da filme, acreditando em um futuro em que cada um é dotado de talento,
revista. E, como leitor, aguardo com entusiasmo cada novo número, visão e condição para construir projetos sustentáveis e benéficos
sabendo que aprofundarei meu conhecimento em áreas que estudei e para todos; devemos visualizar um mundo enraizado na abundância
que descobrirei ideias e até campos que me eram totalmente desconhe- e que rejeita a ideia de que negritude e indigeneidade devem seguir
cidos. Ao longo dos próximos 20 anos, a SSIR vai continuar a crescer sendo consideradas inexistentes nas Américas.
e a expandir de maneira que não sou capaz de prever. Tenho certeza, A mudança de perspectiva tem tanto a ver com o entendimento do
porém, de que, à medida que isso acontecer, a publicação seguirá fiel papel desempenhado pelo poder e pela classe na formação da socie-
a sua missão de ser um lugar no qual pessoas engajadas na inovação dade quanto com a compreensão
social em todo o mundo e em todas as partes da sociedade podem da função que a discriminação
compartilhar as novas ideias, práticas e lições por elas aprendidas. ● estrutural exerce na criação de
nossas identidades racializadas
ou étnicas, uma vez que, no fim,
como mostram muitas narrati-
vas distópicas, nossos desafios

UMA “REIMAGINAÇÃO” estão ligados a quem controla


ANA MARIE ARGILAGOS é presidente e
CEO da Hispanics in Philanthropy. Antes de
fazer parte da HIP, foi conselheira-sênior da os recursos e a como esse poder

RADICAL PARA CRIAR é disputado por comunidades


Fundação Ford, onde trabalhou em estratégias
de desenvolvimento urbano com o intuito de
ampliar oportunidades econômicas e promover
organizadas.

UMA PERSPECTIVA PARA


sustentabilidade em todo o mundo. Argilagos Criar uma perspectiva nova
também atuou como diretora de programas
da Fundação Annie E. Casey. Atualmente, faz
é apenas o início. Também
devemos nos perguntar o que
NOSSO FUTURO
parte dos conselhos da Rockefeller Philanthropy
Advisors, CANDID, Chronicle of Philanthropy,
PoderLatinx e Santa Fe Community Foundation.
essa especulação ficcional sobre
nosso futuro significa para nós
nos dias de hoje, em especial
para aqueles de nós em posições
POR ANA MARIE ARGILAGOS E HILDA VEGA que podem influir nos recursos

F
filantrópicos para comunidades
eche seus olhos, respire e imagine o mundo daqui a 10, 20 negras. Para começar, significa
ou até 30 anos. O que você vê? Sem dúvida, é difícil não que devemos, de maneira inten-
imaginar um planeta distópico arruinado por nossa falta HILDA VEGA é vice-presidente de Philanthropic cional, aproveitar a oportuni-
de cuidado com nossos ecossistemas e com o próximo. Practice na Hispanics in Philanthropy. Antes de
dade para construir espaços
ingressar na HIP, foi diretora do CLIMA Fund, um
Depois de ler muitos romances ou assistir a vários filmes que fundo colaborativo internacional em prol da em nossas comunidades e nas
mostram comunidades multirraciais lutando para achar seu lugar justiça climática, além de ter ocupado cargos na organizações que atendemos
Social Impact Advisors, Libra Foundation, Avina
em um mundo tomado por escassez e competição, é fácil se ver Foundation e UnidosUS. É membro do conselho para definir um futuro feito
preso nessa visão de futuro. da Avina Americas. por todos nós, para todos nós

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 53

e sobre todos nós, um futuro no qual o progresso e a libertação de nenses participaram de um treinamento de operação de drone conce-
uma comunidade estejam inextricavelmente ligados aos direitos, à dido pela World Wildlife Fund e por uma ONG brasileira, a Associação
segurança e ao bem-estar dos demais – especialmente das pessoas de Defesa Etnoambiental Kanindé, realizado em suas línguas nativas.
de comunidades negras e indígenas.
É responsabilidade nossa sermos proativos na centralização des- AUMENTAR A RIQUEZA COLETIVA DAS NOSSAS COMUNIDADES
sas narrativas convergentes, desmascarando o mito de que inova- Diferentemente de Wakanda e Talokan, donas de recursos ilimitados,
ção e criatividade surgem apenas para aqueles que podem acessar muitas comunidades negras não têm condições de parar e sonhar – de
ou compreender as tecnologias mais recentes ou tirar proveito do reimaginar e redefinir o mundo para que seja um lugar que funcione
fato de estarem próximos aos centros de inovação e poder. Nosso para todos nós. Há cerca de 60 milhões de latinos nos Estados Uni-
vibranium, a energia comum que os wakandanos e os talokanils dos, quase 20% da população; porém, em média, vivemos em lares
detêm, está em como fazemos para criar o mundo interconectado com um patrimônio líquido de aproximadamente US$ 53 mil, quase
que estamos tentando garantir. Devemos fundamentar nossas um quarto do valor nos lares não latinos. 4
abordagens nas sábias palavras da escritora Octavia E. Butler: “Não À medida que nossa população continua a crescer, nossa riqueza
há uma única resposta que solucionará todos os nossos problemas coletiva também deveria aumentar. Isso começa com a criação de
futuros. Não há solução mágica. Na verdade, há milhares de res- mais oportunidades para que comunidades latinas participem da
postas – no mínimo. Você pode ser uma delas, caso opte por isso”.1 economia de startup e nela prosperem. Tendo isso em mente, a HIP
criou a Inicio Ventures, que tem como objetivo oferecer financia-
ADOTE UMA MENTALIDADE E UMA ABORDAGEM DECOLONIZADORA mento e apoio a empreendedores latinos, além de demonstrar que
Para começar, devemos aprofundar nosso entendimento acerca do a inovação ocorre mais depressa quando todos têm oportunidade
significado de decolonização – primeiro em nossas mentes; depois em de expressar sua genialidade.
nossos trabalhos. Como escreve a autora queniana-americana Mukoma Nós também acreditamos que há urgência em envolver mais
Wa Ngugi: “O trabalho de decolonização é tanto pessoal quanto polí- pessoas de comunidades latinas na filantropia para que ela deixe
tico”.2 No campo da literatura, Ngugi defende que devemos traduzir de ser vista como pertencente a alguns poucos ricos e se torne
a literatura africana para diversas línguas africanas, em vez de para uma atividade da qual todos podem participar. Comandada pela
idiomas coloniais como o inglês, fazendo disso uma ferramenta para equipe da HIPGive na Cidade do México, inteiramente composta
desafiar o status quo. por mulheres, nós criamos a plataforma Digital Giving Circles,
No campo da filantropia, que oferece análise de dados, atendimento ao cliente, oficinas de
há também formas de usar a capacitação, além de painéis, em inglês e espanhol, nos quais somos
linguagem para desafiar a men-
É importante que donos de nossos próprios dados.
talidade colonial e as estrutu- nós da comunidade
ras hierárquicas de poder, bem latina nos apoiemos ESTIMULAR A INOVAÇÃO EM NOSSAS PRÓPRIAS COMUNIDADES
como a mentalidade de escassez nos valores familia- É importante que nos apoiemos nos valores familiares que compar-
que nos afasta do bem coletivo. tilhamos, bem como no coletivismo e na história para unir nossas
res que comparti-
Por exemplo, depois do surto comunidades e nortear nossa doação. Fazer isso nos ajuda a entender
da Covid-19, nossa campanha
lhamos, bem como de que modo podemos criar soluções inovadoras para nossos desafios
Tierras Mayas, promovida pela no coletivismo e na mais prementes. Isso pode ser feito, por exemplo, na abordagem que
HIPGive, concentrou-se em história para unir adotamos para batalhar por justiça climática e ambiental.
criar resiliência e impulsionar nossas comunidades Pelas Américas, grupos têm defendido a “agricultura regenerativa”.
o desenvolvimento de comu- Porém essas práticas precedem esses movimentos, estando enraizadas
e nortear nossa doa-
nidades rurais na península de no conhecimento transmitido pelas pessoas que, ao longo de gerações,
Yucatan. Nossa equipe criou ção. Fazer isso nos cuidaram da terra, da flora e da fauna utilizando uma abordagem mais
materiais promocionais e de ajuda a entender holística, mais conectada e mais amorosa com o intuito de promover
divulgação em maia e em tsotsil, de que modo pode- o bem-estar da comunidade. Essas práticas agroecológicas abrangem
e não apenas em espanhol. Isso mos criar soluções dimensões culturais e sociais que envolvem ser responsáveis pela Terra
incluiu a tradução do site, bem e pelo próximo, além de refletirem melhor as ideias do bem viver que
inovadoras.
como de comerciais de rádios culturas nas Américas Central e do Sul respeitam há milênios.
em toda a península, promo- Para garantir essa perspectiva para nosso futuro – uma democracia
vendo a plataforma e dando oportunidade para a arrecadação de multirracial para as próximas gerações –, precisamos trabalhar cole-
fundos para programas locais através da HIPGive. Também pas- tivamente, em vez de uns contra os outros. O que estamos propondo
samos um tempo em Chiapas e em outras partes de Yucatan para como inovações nas comunidades latinas não está, necessariamente,
entender melhor as necessidades das comunidades indígenas. Neste enraizado em tecnologias ou ferramentas novas, mas na busca por
ano vamos incluir outros idiomas. soluções inspiradas em nossa sabedoria ancestral. Como nos alerta
Outro exemplo de como a filantropia pode ser mais inclusiva é um a escritora e ativista Adrienne Maree Brown: “É fundamental rege-
programa que ajuda comunidades indígenas da Amazônia a aprender nerar nossa curiosidade, nosso interesse genuíno por opiniões dife-
a codificar, desenvolver, consertar e voar seus próprios drones para rentes e por pessoas que ainda não conhecemos – podemos vê-las
combater o desmatamento e a violência na região.3 Seis tribos amazo- como parte de nós mesmos?”5.

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54 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

Pantera Negra: Wakanda para Sempre prioriza essa curiosidade de sos entes queridos, e que nossas atitudes cotidianas mais prosaicas
tal forma que as personagens conseguem compreender que a sobrevi- podem impactar de maneira positiva as vidas dos demais, criando
vência de sua cultura está enraizada no amor por seu povo. Devemos uma mudança de comportamento e até uma mudança sistêmica.1 É
focar nessa curiosidade, nesse amor e nessa sabedoria ancestral para um movimento de muitos, não de alguns, e seu poder advém de uma
alterar nossas perspectivas em relação a qual tipo de comunidade visão comum que busca melhorar a vida das pessoas agora e garantir
queremos ver daqui a 10, 20, 50 anos. Uma vez que tenhamos espaço um futuro melhor para todos; envolve o desenvolvimento de práticas
para reimaginar o que desejamos, podemos realmente conceber e e normas orientadas pela generosidade, bem como a celebração das
desmantelar estruturas, políticas e sistemas que representam obs- doações que ocorrem abundantemente ao redor do mundo – ainda
táculos para a conquista dessa realidade. que não da forma como estamos acostumados ou que usamos para
Então, agora, uma vez mais, feche seus olhos, respire e sonhe o criar narrativas no Terceiro Setor.
futuro conosco. Depois, abra os olhos e avalie qual papel você pode
desempenhar e de que modo é capaz de alinhar seus recursos para DOAR ENVOLVE MAIS DO QUE DINHEIRO
ajudar a tornar essa visão possível. ● As doações financeiras são importantes e, todos os anos, no Dia de Doar
Notas (Giving Tuesday), testemunhamos uma enxurrada de apoio essencial
1 Octavia E. Butler, A Few Rules for Predicting the Future, Essence, outubro de 2000. para o trabalho de organizações sem fins lucrativos. Isso é especial-
2 Mukoma Wa Ngugi, What Decolonizing the Mind Means Today, Literary Hub, 23 de mente relevante nos dias atuais, com as doações individuais entrando
março de 2018.
3 Hazel Pfeifer, “Amazon Tribes are Using Drones to Track Deforestation in the Bra-
em declínio nos Estados Unidos no momento em que a necessidade
zilian Rainforest”, CNN, 1º de setembro de 2020. do apoio financeiro é tão significativa. Contudo, a generosidade não
4 Zachary Sherer & Yeris Mayol-Garcia, “Half of People of Dominican and Salvado- é expressa somente pela doação de dinheiro para essas organizações,
rean Origin Experienced Material Hardship in 2020”, America Counts: Stories Behind
the Numbers, US Census Bureau, 28 de setembro de 2022. assim como a expressão do amor não é feita apenas de presentes mate-
5 Adrienne Maree Brown, “Let it Breathe”, Adrienne Maree Brown blog, 11 de outubro riais. A generosidade é um valor dotado de incontáveis manifestações:
de 2011.
oferecer apoio, tempo, defesa, orientação, atenção, presença e com-
petências – qualquer coisa que possa ser ofertada em prol de outrem.
Essas são as atitudes que as pessoas tomam diariamente e que
fazem a diferença na vida dos demais e no bem-estar das comuni-
EM DEFESA DE UM dades. Mesmo coisas pequenas que tomam pouco tempo – contar
para alguém que você está pensando nele, garantir que um amigo
ALTRUÍSMO EFUSIVO doente tenha o apoio do qual precisa, ou colocar um vaso de planta
na porta da casa de um novo vizinho – são parte importante da
generosidade. Esses gestos cheios de zelo não aparecem nos dados
oficiais, mas produzem um efeito tangível na vida das pessoas e da
POR ASHA CURRAN comunidade às quais pertencem.

D
Quando olhamos para doações considerando essa estrutura mais
evido à divisão, à polarização e a outros desafios sociais ampla, vemos que a generosidade está prosperando. O relatório de
e ambientais, é tentador, à medida que olhamos para o 2021 sobre doações globais GivingTuesday Data Commons Research
futuro, nos desesperarmos. Mas a esperança é uma força mostrou que as pessoas se encontram alta e consistentemente
poderosa, e não só no Terceiro Setor. Por que mantemos motivadas a doar, e que as doações acontecem de diversas maneiras,
a esperança e o otimismo apesar das dificuldades contínuas que indo muito além das doações monetárias. Na verdade, quase todo
enfrentamos hoje em dia e certamente enfrentaremos no futuro? mundo doa de alguma forma, e a grande maioria das pessoas o faz
Acredito que a resposta seja simples. As pessoas têm esperança repetidamente (85% dos entrevistados em todo o mundo fizeram
porque elas, fundamentalmente, acreditam – precisam acreditar – doações, mas apenas 5% das pessoas doaram somente dinheiro).2
que somos interligados e interdependentes, e que temos potencial Ver a generosidade no reduzido contexto das doações monetárias
para construir juntos um presente e um futuro mais promissores, para organizações sem fins lucrativos engana e limita nossa ima-
seguros e significativos. ginação, e é contraproducente
E de todos os valores que fomentam um sentido de interconecti- mesmo até para os interessados
vidade, nenhum é mais universal e poderoso do que a generosidade: apenas em subverter as tendên-
doar como expressão de inter-relação, solidariedade e reciprocidade cias das doações, uma vez que
– não como manifestação benevolente daqueles que têm diante dos faz da doação algo transacional,
despossuídos –, como algo que está no cerne das práticas, dos relacio- hierárquico, frio e entediante,
namentos e dos valores de alguém. Espero que como setor e comuni- transferindo poder e agência
dade global nós possamos adotar um altruísmo efusivo, fazendo disso ASHA CURRAN é CEO da GivingTuesday. Além para poucos – os “especialistas”
uma prática sincera, alegre, liderada por pessoas e focada na comuni- disso, é presidente do conselho do Guardian. que decidem qual doação é boa
org, membro do Center on Philanthropy and
dade e enraizada em nossa capacidade de cuidarmos uns dos outros. Civil Society da Stanford University e professora ou ruim, qual é eficaz ou não,
O altruísmo efusivo – ou o que nós na GivingTuesday chamamos da Social Innovation and Change Initiative da qual é baseada em dados e não
Harvard Kennedy School. De 2019 a 2022, foi
de generosidade radical – é a simples ideia de que o bem-estar de indicada para a The Nonprofit Times’ Top Fifty “emocional” –, e afastando-a da
um vizinho ou de um estranho é tão importante quanto o dos nos- Power and Influence list. grande maioria, daquelas pes-

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soas que têm raízes profundas com suas comunidades e que sabem maneira coletiva. Em seu livro Radical Imagination, Max Haiven e Alex
do que elas precisam. Ademais, prejudica a agência dessas comuni- Khasnabish escrevem que “a imaginação radical (…) tem a ver com
dades vibrantes, cada uma com seus próprios problemas e soluções, transformar nossa vida e nossos relacionamentos sociais, transformar
aptidões e tradições no que se refere à doação. aquilo e aqueles que julgamos valiosos, nos transformar. Fazemos isso
Assim, quando nos dizem que o número de lares que fazem doações construindo estruturas e instituições sociais alternativas em nossa pró-
nos Estados Unidos está diminuindo, é fácil, ainda que totalmente pria vida… A imaginação radical existe apenas em práticas coletivas”.
injusto, concluir que a generosidade das pessoas está diminuindo. A imaginação compartilhada e o altruísmo efusivo são inextricáveis.
No entanto, essa observação míope não poderia estar mais incorreta. Ambos dependem do coletivo, imaginam um mundo melhor graças
Aprendemos muitas lições sobre o que inspira comportamentos à humanidade, à responsabilidade e à agência comuns, e olham para
generosos e como eles são predominantes, e valendo-se disso iden- o passado, o presente e o futuro não como períodos desconexos no
tifiquei diversas ações primordiais capazes de promover o altruísmo tempo, mas como profundamente interligados.
efusivo, prática que vai nos ajudar a criar um futuro imbuído de A forma como cada um de nós expressa nossa generosidade não é
nossa humanidade compartilhada e da crença de que a generosidade algo para ser julgado ou comparado. Toda expressão de generosidade
é essencial para a condição humana. é uma manifestação do instinto humano que busca ser parte de algo
maior do que si mesmo, de contribuir para o bem. Todos nós, tanto
OS REQUISITOS DO ALTRUÍSMO EFUSIVO dentro quanto fora do Terceiro Setor, devemos começar a olhar para
Agência. A possibilidade de um futuro próspero e humano depende de a generosidade de uma maneira diferente e holística, algo sempre
as pessoas terem poder para promover mudanças em sua própria vida abundante que surge de muitas formas e é tão fundamental para a
e comunidades. Isso significa que não podemos deixar nas mãos de condição humana quanto o amor, a amizade ou qualquer um de nossos
alguns poucos decisões que envolvam as necessidades dos demais. bens mais preciosos. Temos a oportunidade de reescrever a história
Tampouco podemos olhar para a generosidade como uma interação da generosidade e de ajudar mais e mais pessoas a se verem desempe-
simplista e binária entre aqueles que têm e aqueles que necessitam, nhando um papel essencial no fortalecimento de suas comunidades
uma visão distorcida que priva milhões de pessoas da possibilidade e fazendo parte do bem social.
de serem doadoras, reduzindo-as a sujeitos anônimos nos projetos de O mundo que queremos ver amanhã, em dez e até em cem anos,
outrem. Somente quando as pessoas têm controle sobre como, quando está sendo construído agora por todos nós nos bilhões de pequenas
e onde empregam seus ativos – monetários ou não – elas podem usar atitudes que tomamos todos os dias. Vamos nos lembrar de que um
suas profundas raízes locais, seu conhecimento e sua aptidão para criar futuro melhor, mais seguro e mais justo depende não apenas de cada
soluções; podem passar a ter sua própria voz e perceber sua capaci- um de nós, mas de cada um de nós juntos. Que essa seja nossa princi-
dade de liderar e promover mudanças; e podem se orgulhar do poten- pal fonte de esperança e otimismo para o presente e para o futuro. ●
cial ilimitado de seu engajamento cívico. O altruísmo efusivo coloca Notas
o poder da filantropia na mão do maior número de pessoas possível. 1 Asha Curran, Why We Need a Radical Generosity Revolution, Medium, 14 de janeiro
de 2020.
Celebração. Embora a quantidade de sofrimento e demanda seja
2 From Scarcity to Abundance: Mapping the Giving Ecosystem, GivingTuesday Data
genuinamente avassaladora, uma doação não precisa ser solene. Commons, 2021.
Quanto mais alegre for, mais inspiradora, coletiva e envolvente
ela pode ser, e mais pessoas vão se sentir encorajadas a fazer parte
daquilo e a doar o que puderem. Diante do sofrimento e da neces-
sidade do mundo, o que há para ser celebrado? Nossa capacidade
de juntos fazermos a diferença. Um dos motivos para chamarmos
O FUTURO DO ENSINO E
esse tipo de doação de altruísmo efusivo é o fato de vermos a doação
como uma celebração – de cada um de nós, de resiliência e de pos-
DO APRENDIZADO DA
sibilidade – irrestrita.
Coletividade. Embora seja essencial que indivíduos tenham agência, o
INOVAÇÃO SOCIAL
que torna a generosidade algo poderoso e até mágico, em certo sentido,
é o fato de a fazermos em conjunto. Sistemas distribuídos e interliga-
dos de pessoas refletem alguns dos sistemas mais funcionais, belos e POR WARREN NILSSON

J
misteriosos da natureza – fungos, colônias de formigas, a tapeçaria
extraordinária das raízes das árvores e o murmúrio dos estorninhos. ames Taylor, facilitador de desenvolvimento organizacional
Em cada um desses sistemas, há algo a respeito do todo que é maior do sul-africano, tem, há muitos anos, um sonho singular: “Pre-
que a soma das partes. Os cientistas chamam isso de “emergência”: a cisamos criar um curso de mestrado para as organizações”.
ideia de que alguma coisa acontece entre as partes de um sistema que, É uma coisa estranha de se imaginar: organizações inteiras
por sua vez, é peça crucial daquilo que o todo realiza. Pessoas traba- correndo para faculdades para estudar juntas. Porém essa ideia,
lhando coletivamente em virtude de sua própria generosidade para ou algo similar, talvez seja a coisa mais importante que podemos
melhorar o presente e o futuro é parte essencial do altruísmo efusivo. fazer para acelerar a inovação social.
Imaginação compartilhada. Movimentos sociais baseiam-se em uma pai- A inovação social é uma sala de aula. Estamos aprendendo a lidar
sagem imaginativa na qual seus participantes vivem juntos, evocando com o futuro e como não há ninguém do futuro aqui para nos orientar,
um mundo que ainda não existe e trabalhando para construí-lo de o movimento da inovação social tem de aprender por conta própria

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à medida que progride, algo que tem sido feito com muito vigor – por diálogo; como engajamos nossa diversidade; como trabalhamos com
isso os milhares de laboratórios, oficinas, conferências, institutos, o poder de maneira saudável; e de que forma tomamos decisões con-
imersões, incubadoras e bolsas de estudo que continuam a moldá-lo. juntas e, ao mesmo tempo, levamos em conta a inspiração individual.
Apesar dessa variedade aparente, uma única abordagem para o A liderança compartilhada envolve microexperimentos no modo como
aprendizado tem sido dominante – vamos chamá-la de Leadership School nos reunimos e administramos e macroexperimentos nas estruturas
(Escola de Liderança) –, e ela tem se mostrado regenerativa, criando de gestão colaborativa.
perspectivas frequentes e diversas. No entanto, muitos de nós que tra- A Cocriação reconhece que a inovação social depende menos de pes-
balhamos neste ambiente temos uma incômoda sensação de que isso soas criativas do que de relacionamentos criativos. Sua principal prática
pode estar chegando a seu limite. Os antigos e destrutivos sistemas é a compreensão – o processo de revelar e promover os pontos fortes
mundiais seguem se reafirmando com uma facilidade preocupante, e já inerentes a pessoas, organizações e comunidades.
nós nos perguntamos se há alguma coisa inerente à Leadership School O trabalho da Ecologia aprofundada nos conecta novamente àquela
que a faz produtiva quando o assunto é uma perspectiva fugaz, mas realidade na qual os sistemas humanos não se encontram apartados de
menos adequada quando pensamos em uma transformação constante. nossos ecossistemas naturais mais amplos, o que fortalece não apenas
nossa capacidade de aprender com a natureza (biomimetismo), mas
LEADERSHIP SCHOOL também de amá-la e de se relacionar com ela (biofilia). Há, ainda, uma
A Leadership School deposita sua esperança em agentes de mudanças ênfase em tornar transparentes, para o bem ou para o mal, os impac-
individuais, reunindo-os para que aprendam novas maneiras de navegar tos coletivos que causamos nos sistemas vivos aos quais pertencemos.
por sistemas complexos. Eu ajudei a organizar vários desses programas, O Propósito generativo conduz as outras quatro habilidades rumo
que podem ser reveladores. Inscreva-se em um deles e você estará em à exploração de um significado comum. Ao estruturar o propósito
meio a grupos de ativistas apaixonados e talentosos, empreendedores como pergunta e não como resposta, nos permitimos enfrentar nos-
sociais, desenvolvedores de redes sociais e executivos. Seu senso de sas dúvidas mais profundas, o que nos ajuda a descobrir, juntos, para
possibilidade se expandirá, você verá seu trabalho com outros olhos onde queremos ir.
e retornará ao seu emprego revigorado e esperançoso. Essas cinco habilidades encontram-se, há tempos, no cerne do
Mas o caminho a longo prazo acaba sendo um pouco mais compli- aprendizado da inovação social, e a pesquisa acadêmica no campo do
cado. Uma vez de volta à rotina, os princípios e “ferramentas” apren- conhecimento organizacional positivo corrobora constantemente o
didos mostram-se, na vida real, escorregadios. Poucos de seus colegas papel fundamental que desempenham.
parecem conseguir se identificar com o que você aprendeu, e você Aqui está o problema. Nenhuma dessas coisas é uma competência
acredita ser muito difícil entender em que momento deve começar a individual. Por definição, e de acordo com a realidade, elas são com-
pressionar, estender ou influenciar o sistema com o intuito de trans- petências relacionais: não sou capaz de compartilhar poder sozinho;
formá-lo. Embora você possa, ocasionalmente, deixar uma marca não posso cocriar sozinho; não há ecologia do “eu”; e minha própria
inspiradora no mundo, sua experiência geral pode ser frustrante e, consciência do sistema é completamente diferente da consciência que
no fim das contas, cansativa. Pode ser que acabe se sentindo mais o sistema tem de si.
solitário do que nunca, obrigado a buscar o apoio de seus colegas ou As competências necessárias para fomentar sistemas resilientes
de outros viajantes perdidos, em vez de contar com as pessoas que simplesmente não vivem em cada um de nós de maneira separada.
trabalham ao seu lado diariamente. Elas vivem nos espaços entre nós, onde nos reunimos, realizamos e
Será que a Leadership School está ensinando coisas erradas? Acho tomamos decisões, nos locais em que nos desafiamos e cuidamos uns
que não. Acredito que ensina as coisas certas, mas para os alunos erra- dos outros, onde nos organizamos. Por que, então, seguimos tentando
dos. Para entender isso, pense primeiro na natureza do que está sendo ensinar habilidades coletivas para indivíduos em cargos de liderança
ensinado. O movimento de inovação social converge para um currículo em vez de ensiná-las diretamente aos próprios coletivos?
poderoso composto de cinco partes. Esse currículo pode ter diversos
nomes e formas, mas praticamente todo o aprendizado da inovação ORG SCHOOL
social visa ao desenvolvimento de uma ou mais das seguintes habilidades: Isso nos conduz novamente à curiosa ideia de James Taylor de real-
A Consciência sistêmica, arte e ciência de prestar atenção a totalidades mente ver o coletivo, ou a organização, como unidade de aprendizado.
complexas, é, em muitos aspec- Por “organização”, me refiro não apenas a organizações formais, mas
tos, a mãe da inovação social. também a redes sociais, associações, grupos de movimentos – qual-
Seu objetivo é ajudar grupos a quer lugar onde as pessoas se reúnem regularmente para trabalhar
não só enxergar relações ocultas em prol de um propósito comum. Nos próximos anos, o movimento
e feedback loops em seus siste- de inovação social precisará promover uma nova maneira de ensinar e
mas, mas também a desenvolver de aprender, uma forma na qual os alunos sejam as organizações e os
conexões e práticas novas para métodos envolvam um curso constante de estudo coletivo. Podemos
que o sistema todo comece a se chamá-la de Org School (Escola Organizacional).
WARREN NILSSON é professor de inovação
enxergar e a interagir consigo de O que podemos dizer a respeito dela neste momento? Para começar,
social na University of Cape Town e cofundador
maneira mais completa. da Organization Unbound. Atualmente, traba- podemos aprender com os espaços onde as pessoas, há décadas, traba-
Práticas de Liderança comparti- lha na elaboração do ensino organizacional
lham diretamente com o coletivo através de intervenções sistemáticas
junto com The Wellbeing Project, The Institute
lhada exploram questões como: for Collective Wellbeing e Global Round Table poderosas, como investigação apreciativa, Teoria U e espaço aberto,
de que maneira promovemos o Leadership. para citar algumas. Embora essas intervenções possam ser aplicadas

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tendo em mente qualquer objetivo de mudança, elas são, frequente- Em terceiro lugar, o aprendizado se daria em grupos. Imagine dez
mente, usadas para catalisar inovação social. E funcionam. Há provas organizações de inovação social matriculadas juntas em um curso de
substanciais de que essas formas de intervenção, quando plenamente um ano de duração, de uma maneira muito parecida como fazem líderes
adotadas, podem promover alterações positivas dramáticas no propó- individuais atualmente. Por meio de reflexão compartilhada e expe-
sito coletivo, na criatividade, na energia e nas relações. Nesse sentido, já rimentações em conjunto, as organizações conseguiriam questionar
sabemos como alterar os sistemas e há muita coisa da qual a Org School mais facilmente seus próprios hábitos e culturas, rompendo com eles.
pode tirar proveito no tocante ao envolvimento com energias coletivas. Em quarto lugar, os “professores” da Org School seriam, eles pró-
Contudo, o que vem a seguir é a parte difícil. Mudar é fácil, man- prios, as organizações. Se a sabedoria e a prática da inovação social
ter a mudança é difícil. E é aí que a inovação social tende a encalhar. não vivem em nós, mas em nossos relacionamentos, então são esses
Uma intervenção de mudança sistêmica vai, na melhor das hipóteses, relacionamentos que devem assumir a liderança.
indicar uma possibilidade, podendo nos dar um indício de uma outra Muitas pessoas e instituições estão, pouco a pouco, começando a
forma de agir, mas apenas brevemente, e somente no âmbito de uma realizar experimentos com abordagens de aprendizado de inovação
iniciativa específica. Esforços de mudança normalmente não têm social que apontam para a Org School. Elas podem convidar grupos
uma função memorial sólida. Assim sendo, catalisam o movimento, representativos de organizações para os programas existentes criados
mas sofrem para cultivar o aprendizado a longo prazo. À medida que para indivíduos e oferecer orientação e acompanhamento para orga-
uma empresa volta a se sentir confortável com sua rotina, ou líderes nizações que estão tentando estruturar uma jornada de aprendizado
que comandaram uma iniciativa de mudança partem para outra, vol- de longa duração. Esses experimentos podem mesclar os pontos for-
tam os velhos hábitos de uma organização, mesmo que disfarçados. tes da Leadership School e da Org School com a vitalidade de diferentes
Começamos a repetir todos os pontos cegos, medos e cansaços com processos de mudança. Mas há ainda um vasto escopo para experi-
os quais estávamos acostumados. E nos sentimos tentados, devido mentações mais ambiciosas e constantes.
a sua tranquilidade reconfortante, a voltar para aquilo que Roberto Os benefícios dessa experimentação podem ser extraordinários.
Unger chama de caminho da menor resistência. Em nossa pesquisa, eu e meus colegas passamos 20 anos buscando
Por algum motivo esperamos que um esforço de mudança seja uma casos atípicos positivos no campo da inovação social, organizações
forma de conversão, uma experiência singular que transforma radi- excepcionalmente talentosas em recriar os sistemas dos quais fazem
calmente tudo de uma vez por todas. Porém o aprendizado raramente parte e que foram capazes de manter esse talento por muitos anos. À
funciona desse modo. Ninguém que deseja aprender a tocar piano ou a primeira vista, as organizações que mais nos ensinaram não parecem
dançar, por exemplo, imagina que participar de uma imersão durante ter muita coisa em comum. Algumas são pequenas; outras, grandes.
um fim de semana ou se matricular em um curso de seis meses irá, de Umas são horizontais; outras, hierárquicas. Há aquelas que são moder-
alguma maneira, transformá-lo em músico ou dançarino. As pessoas nas e há outras que são tradicionais. No entanto, o que as conecta são
sabem que seu aprendizado não será uma intervenção, mas uma prá- o esforço que depositam no desenvolvimento das cinco habilidades
tica, algo que exige comprometimento constante e renovado para que de inovação social e a forma como todas se mostram reverentes ao
possa render frutos. Aprender inovação social é bastante parecido: não refletir sobre suas experiências.
é um momento de pico, mas um trabalho longo e paciente. Como nos As pessoas nos contaram repetidas vezes que nessas empresas elas se
recorda Bayo Akomolafe: “O momento é premente. Vamos desacelerar”. tornaram a melhor versão de si, passando a ser mais corajosas, compassi-
Para produzir uma mudança duradoura na capacidade da inovação vas, imaginativas e energizadas. Por meio de práticas diárias profundas,
social de uma organização, a Org School precisaria diferenciar-se pelo essas organizações parecem levar os objetivos da inovação social para
menos de quatro maneiras. Primeiro, suas atividades de aprendizado o cotidiano imediato e tangível dos corredores e das salas de reunião.
teriam de ser amplamente distribuídas entre o sistema em diferentes Um funcionário de longa data de uma organização de Montreal que pro-
momentos e de formas distintas, ao contrário da Leadership School. Seria move segurança alimentar nos disse: “Isso cria uma sensação de que é
raro ver todos os membros envolvidos em uma única atividade; desse possível estarmos juntos no mundo de uma outra maneira, e isso está
modo, para que a organização aprenda, diferentemente do que ocorre bem diante de nós. Não se pode duvidar de que é possível”. Um mem-
quando lidamos com determinados líderes ou equipes, o processo pre- bro de uma inovadora organização para o desenvolvimento de jovens na
cisaria de uma porção de pontos de contato. As pessoas teriam, então, Cidade do Cabo coloca as coisas de maneira ainda mais clara: “Eu acho
de tecer juntas o aprendizado, partilhando suas descobertas entre si. E que a magia do que estamos tentando fazer está acontecendo conosco”.
essa tecelagem precisaria superar barreiras ligadas a status e poder, com Nas organizações que estudamos, essa “mágica” foi, em grande
secretárias ensinando CEOs na mesma medida em que o inverso ocorre. medida, parte de um processo de aprendizado individual. Elas não se
Em segundo lugar, distante das intervenções de mudança conven- fiaram na Leadership School ou em frequentes intervenções de mudan-
cionais, a maior parte das Org Schools seria incorporada ao trabalho diá- ças, e não existe uma Org School para ajudá-las. Elas percorreram um
rio da organização, em vez de restrita a imersões especiais. Isso criaria caminho lento, cultivando suas habilidades coletivas por meio de
uma memória organizacional, fazendo com que o aprendizado durasse tentativa e erro e, em muitos casos, deram sorte. Alguns aspectos
para muito além do “curso”. Imagine um processo como o da investiga- da inovação social precisam ser, sempre, um processo de aprendi-
ção apreciativa, por exemplo, adotada não apenas como uma iniciativa zado individual, mas não há motivos para que Org Schools de todas as
única, mas como uma maneira de avaliar empregados ou gerir projetos. formas e tamanhos não possam acelerar o aprendizado e, em última
Ou imagine a escuta atenta associada à Teoria U não apenas como um análise, o impacto da inovação social de muitas outras organizações.
recurso de jornadas sensoriais especiais, mas também como uma dinâ- A jornada da Org School está apenas começando e o convite deve
mica regular em uma reunião de conselho ou no processo orçamentário. ser divulgado ampla e plenamente. ●

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P O N TO D E V I S TA
INSIGHTS DAS LINHAS DE FRENTE

Para Salvar a Democracia, e sobre o que é necessário para a sua criação


e manutenção: um compromisso radical com

Organize Recursos
a construção de relações alicerçadas em inte-
resses e valores compartilhados, apesar das
diferenças reais e importantes em identida-
Doadores preocupados com polarizações tóxicas e com o des, políticas e sistemas de crenças. O tipo
extremismo político deveriam investir na organização comunitária. de prática democrática de que necessitamos
numa sociedade heterogênea não evita as dife-
POR LOREN MCARTHUR
renças; em vez disso, busca discernir e ativar
os valores comuns em nossas diferentes tra-
democracia americana está Construção de Relações Presenciais dições e histórias.
em crise. A confiança no go- No início da década de 2000, passei oito Durante os últimos 20 anos, os organizado-
verno vem despencando há anos trabalhando como organizador comu- res comunitários têm modificado sua aborda-
décadas; um alarmante nú- nitário na região do Vale Merrimack, em gem para a construção do poder. Enquanto as
mero de americanos – em especial os jovens Massachusetts, polo importante da indústria organizações que os organizadores comunitários
– já não acredita que a democracia seja a têxtil nos Estados Unidos durante mais de instituíram no século 20 foram erguidas em
melhor forma de governo; e o extremismo um século. Foi em uma das principais cida- nível municipal, no final do século a maioria
e a violência política estão em ascensão. des da região, Lawrence, que aconteceu a das grandes cidades dos Estados Unidos estava
A crise pode parecer intratável, com suas famosa greve Pão e Rosas (Bread and Roses), desgastada e muitas delas haviam falido – o
raízes arraigadas em nossas instituições, sistema em 1912, durante a qual dezenas de milhares poder e os recursos já não estavam lá. Grupos
econômico e cultura política. Se não há solu- de trabalhadores imigrantes de mais de 50 organizadores começaram a focalizar modelos
ções fáceis para consertar a nossa democracia, países saíram às ruas para obter melhores para construir um poder governante em nível
um investimento filantrópico de grande porte salários e condições de trabalho. Atuando estadual. Redes de ação também começaram
na organização comunitária poderia combater com sindicatos e comunidades religiosas, a expandir sua presença dentro do governo
o perigoso tribalismo que contamina a vida tanto progressistas quanto conservadoras, federal e a participar de coalizões maiores a
pública, reduzir o isolamento social que está organizei campanhas para combater o fe- fim de influenciar a política nacional. Grupos
alimentando o extremismo político e revita- chamento de fábricas, melhorar as condições passaram a desenvolver programas de engaja-
lizar uma cultura de democracia de base nos de trabalho para trabalhadores imigrantes mento do eleitor e estabeleceram organizações
Estados Unidos. e criar moradias a preços acessíveis. de bem-estar social sem fins lucrativos e com
Contudo, para realizar a promessa democrá- Minha experiência como organizador ren- isenção de taxações pela lei americana) com o
tica da organização comunitária, os doadores deu-me insights sobre como deve parecer uma propósito de obter engajamento em atividades
precisam deixar de ver a prática meramente democracia realmente pluralista e multirracial e lobbies políticos.
como um instrumento para promover seus À medida que os organizadores foram
objetivos políticos e táticos e valorizar o se tornando mais sofisticados na constru-
papel fundamental que ela desempenha ção de poder nos níveis estadual e nacional,
no coração da organização política ame- o financiamento filantrópico para ações
ricana. A organização comunitária ensina organizativas também aumentou signifi-
às pessoas as competências da democracia: cativamente. Dados sobre fundações da
como construir e sustentar organizações Candid – embora incompletos – indicam
junto com outros indivíduos, ouvir pes- que elas investiram US$ 227 milhões em
soas com diferentes perspectivas, criar ações organizativas de comunidades em
consensos, compreender onde reside o 2008, ano em que deixei meu trabalho
poder em nossas instituições políticas e com organizações no Vale Merrimack. Em
econômicas e como negociar com ele. Em 2020, esse número explodiu, passando a
um momento no qual as pessoas perderam US$ 1,17 bilhão. Nesse mesmo período,
ILUSTRAÇÃO DE LAURA LIEDO

a confiança nas instituições democráticas, o financiamento visando à educação e


uma boa atividade organizativa confere a ao registro do eleitor disparou, passando
elas um sentido de agenciamento e uma de meros US$ 32 milhões em 2008 para
crença em sua capacidade de influenciar US$ 515 milhões em 2020. Esses dados nem
e reformar essas instituições. chegam a incluir todos os financiamentos

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LOREN MCARTHUR é diretor sênior na Arabella Advisors, na qual


assessora filantropos em políticas e estratégias para transformação de
sistemas. Antes disso, conduzia um departamento de engajamento cívico na
UnidoUS, a maior organização nacional de defesa da comunidade hispânica
dos Estados Unidos, e foi o principal organizador do Merrimack Valley Project,
em Massachusetts.

que os grupos organizadores recebem atra- suas comunidades. Os organizadores sen- investir em grupos que tenham priorizado a
vés de suas organizações, cujo número está tem-se pressionados a desenvolver campanhas construção de bases – isto é, o trabalho de
em expansão. de curto prazo que produzam os triunfos ou construir um eleitorado maciço de líderes e
O impulso em investimentos de doadores resultados eleitorais nas políticas concretas que membros ativos e engajados —, ainda que
tem ajudado grupos organizadores a expan- os doadores almejam, negligenciando esforços tais compromissos resultem em menos pro-
dir seu poder. Não obstante, em importantes de longo prazo para aprofundar suas bases de gresso imediato visando resultados políticos.
aspectos, o investimento em organização por adesão e desenvolver novas lideranças. Os doadores também têm de olhar para além
parte da filantropia também tem se mostrado das organizações estabelecidas a fim de apoiar
contraído e restritivo. A maior parte dos doa- Cinco Recomendações para Financiadores esforços nascentes em ações organizativas que
dores adota uma abordagem transacional para Como os doadores podem apoiar a ação ainda não contem com engajamento institu-
as ações organizativas na comunidade, tendo organizativa de um modo que os capacite cionalizado, mas estejam gerando engajamento
tal abordagem como tática para a promoção a realizar plenamente a sua promessa de- de base significativo.
de políticas ou de objetivos políticos. Eles mocrática? Tenho cinco recomendações. Alimentar a independência financeira de grupos
deixam de valorizar devidamente o papel da Financiar geografias transversalmente. | Os doa- organizadores. | Os líderes de organizações
organização no fomento de normas e práticas dores têm de reconhecer que as ações orga- sem fins lucrativos têm clamado para que
democráticas e no fortalecimento da confiança nizativas são um componente vital da cultura as fundações proporcionem um apoio mais
social – pré-condições importantes para uma democrática da nação e financiar liberalmente generalizado às ações organizativas – o que
democracia multirracial funcional e equitativa. todas as geografias, em vez de limitar seu se justifica, já que o financiamento sem res-
As ações organizativas em comunida- investimento a regiões que levam em conta trições possibilita maior flexibilidade nos pro-
des, ancoradas na construção de relações apenas estratégias políticas de curto prazo. gramas e estratégia desses grupos. Contudo,
presenciais, atuam em sentido contrário ao Temos que alimentar uma aceitação de nor- proporcionar apoio direcionado para que eles
da polarização tóxica que está solapando a mas e práticas democráticas por toda a parte, construam a sua independência financeira
nossa democracia. Um grande número de incluindo – o que talvez seja o mais importante é algo capaz de exercer um impacto ainda
pesquisas em ciências sociais mostra que – os lugares onde crenças antidemocráticas maior. Ao amparar grupos organizadores no
o contato intergrupal reduz o preconceito estejam criando raízes. desenvolvimento de programas de anuidades,
entre diferentes grupos. Essas ações também Ser agnóstico quanto a temas. | Os financiadores campanhas de captação de recursos de base e
criam a possibilidade de empatia e conexão a devem proporcionar apoio incondicional para estratégias de receitas obtidas, os financiado-
atravessar divisões e a oportunidade de criar que as comunidades se organizem em torno res podem ajudá-los a reduzir sua dependên-
narrativas novas e unificadoras, além de iden- de temas que elas definam como os mais cia da filantropia grande, a estabelecer uma
tidades coletivas mais expansivas. importantes, em vez de condicionar investi- responsabilidade comunitária mais autêntica
O papel das ações organizativas no fomento mentos ao engajamento do beneficiário em e a se tornarem instituições governadas de
a uma cultura de democracia de base propõe áreas de políticas específicas. Se a organização forma realmente democrática.
uma ampla perspectiva de financiamento que comunitária deve ser um lugar onde as pes- Os doadores comumente se mostram
dissemine recursos de forma liberal pelo país. soas engajam em ações democráticas, essas hesitantes em investir em ações organiza-
Ainda assim, a distribuição de recursos para mesmas pessoas devem ter a capacidade de tivas de base em razão do custo de fazer
ações organizativas tem sido geograficamente escolher sobre quais temas vão se debruçar. esse trabalho em larga escala. Porém, não
desigual. Grupos em estados e grandes cidades Apoiar ações organizativas que atravessem fronteiras deveríamos pautar o trabalho de revitalizar
que são campos de batalha podem desfrutar raciais e ideológicas. | Os financiadores deveriam a nossa democracia por uma mentalidade de
do acesso a importantes correntes de financia- investir em grupos que estejam criando pontos escassez. Existe uma enorme riqueza a ser
mento, enquanto enormes faixas do restante comuns entre bases eleitorais que a cultura mobilizada: considere que os doadores gas-
do país são deixadas com escassos recursos política dominante busca dividir: comunida- taram colossais US$ 14,4 bilhões apenas nas
para o tipo de engajamento democrático que des brancas trabalhadoras e de classe média e eleições de 2020. Um investimento gigante
a organização comunitária proporciona. comunidades não brancas; comunidades urbana em organização comunitária para revitalizar
O repentino aumento do volume em e rural; bases eleitorais ideologicamente pro- nosso compromisso com as normas e práticas
dinheiro vindo da filantropia institucional traz gressistas e conservadoras; e assim por diante. democráticas e fortalecer a solidariedade social
ILUSTRAÇÃO DE LAURA LIEDO

outras consequências inesperadas. Grupos vol- Investir em grupos que estejam construindo uma são um grande avanço rumo à construção da
tados às ações organizativas ficam tentados a base profunda de líderes e membros ativos e que sejam resiliência que precisamos para sobreviver às
buscar grandes investimentos de ricos doado- responsáveis por ela. | A fim de apoiar organizações ameaças que pairam diante de nós, bem como
res, em vez de se envolver no árduo trabalho comunitárias que promovam uma participa- das capacidades criativas de que necessitamos
preliminar de angariar fundos no âmbito de ção cívica significativa, os doadores deveriam para garantir um futuro justo e próspero. n

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P O N TO D E V I S TA

Empreendedoras Sociais
anos: o número de empresas sociais man-
teve-se estável em aproximadamente de
2.597 a 3.000. A Arábia Saudita hoje tem

Sauditas 1 organização sem fins lucrativos para cada


10 mil pessoas. A título de contraste, o
Mulheres do Oriente Médio que tentam lançar empresas sociais Canadá e os Estados Unidos têm 1 para
cada 50 pessoas, e a França tem 1 para
enfrentam barreiras significativas, mas podem superá-las cada 200 pessoas. Contudo, recentemente,
potencializando laços sociais. a Arábia Saudita sinalizou interesse em
POR GHADAH W. ALHARTHI E TUUKKA TOIVONEN fazer o setor crescer. Em junho de 2021,
o Conselho de Ministros do país aprovou
a fundação do Centro Nacional para o De-
mniah estava com seus quase vezes é comparado a favoritismo e nepotismo. senvolvimento do Setor sem Fins Lucra-
30 anos e tinha um emprego Durante o ano de 2021, acompanhamos os tivos (NCNP, de National Center for the
corporativo estável – traba- empreendedores sociais que havíamos estudado. Development of the Non-Profit Sector),
lhava para uma empresa inter- Descobrimos que as empreendedoras sociais que regulará o setor. Apesar desse amparo
nacional em Jeddah, Arábia Saudita –, quando sauditas enfrentam barreiras significativas para do governo, as empreendedoras sociais en-
pela primeira vez ouviu a expressão empre- fazer crescer suas empresas, mas podem explo- frentam barreiras significativas que são
endedorismo social, vinda de uma amiga que rar algumas vantagens em relação a seus pares compartilhadas com suas colegas
estudava para um mestrado sobre o tema no homens ao transitar por seus laços sociais pro- globalmente.
exterior. Após passar um bom tempo lendo e fundos com a família e amigas íntimas. Nossa Constatamos quatro tendências gerais,
assistindo a vídeos sobre o assunto, Omniah pesquisa pode ajudar a embasar esforços em especificamente. Primeiro, as empreendedo-
decidiu arriscar e iniciar uma empresa social. apoio a empreendedoras sociais no Oriente ras sociais têm menos recursos do que seus
A transição não foi fácil. Ela descobriu que Médio e Norte da África (MENA), bem como colegas homens em razão do acesso limitado,
suas amigas e a família não sabiam o que era em outros lugares do mundo onde as mulheres da parte delas, a círculos sociais externos à
empreendedorismo social. Volta e meia tinha enfrentem circunstâncias semelhantes. família. As mulheres são sistematicamente
de explicar-lhes do que se tratava o setor. Eles excluídas das redes de negócios tradicionais,
não conseguiam compreender por que ela estaria Wasta e Capital Social e, como resultado, carecem de informações
deixando um emprego estável para iniciar o que Na Arábia Saudita, a participação em em- que viriam de tais redes. As redes de mulheres
supunham ser uma obra de caridade. Também preendedorismo social não registrou au- normalmente parecem incluir menos empre-
teve de explicar empreendedorismo social para mentos significativos nos últimos cinco endedoras, além de serem mais homogêneas.
financiadores e investidores em potencial, e As mulheres também sentiam que tinham
precisou encontrar outros empreendedores de trabalhar mais para conquistar a con-
sociais a fim de identificar qual seria a rede fiança e o respeito de seus investidores e
de negócios correta para aderir. patrocinadores.
De que modo as empreendedoras sociais Como segunda tendência, vimos que
aprendem a sobreviver e a prosperar em o apoio vindo de laços fortes é vital para
contextos não ocidentais, nos quais o tema o sucesso das empreendedoras sociais. Ao
ainda está despontando? Nós nos dedica- dizer “laços fortes”, estamos nos refe-
mos a essas questões entre 2014 e 2019 rindo a relações com amigas próximas e
para escrever uma tese de doutorado no membros da família com quem a mulher
departamento de administração e finanças em questão tenha interações frequentes,
da School of Oriental and African Studies baseadas em confiança mútua e calcadas
(Escola de Estudos Orientais e Africanos) num vínculo emocional profundo. Os
da University of London. Investigamos laços fortes podem proporcionar mão
ILUSTRAÇÃO DE LAURA LIEDO

empreendedores tanto do sexo feminino de obra, acesso informal ao capital de


quanto do masculino na Arábia Saudita amigas e familiares, apoio social e infor-
e focalizamos o seu uso de capital social mações sigilosas que na maior parte das
e de wasta – o sistema de patrocínio no vezes estão disponíveis apenas mediante
Oriente Médio que no Ocidente muitas relações de alta confiança.

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GHADAH W. ALHARTHI é professora sênior no Central Saint Martins, TUKKA TOIVONEN é leitor em Criatividade Regenerativa no Central
da University of the Arts London. Sua pesquisa atual versa sobre cultura, redes Saint Martins, da University of the Arts London, na qual também dirige o
sociais e inovação social. Também atua como consultora cultural, trabalhando programa de mestrado em gestão de inovação. Sua pesquisa atual examina o
em megaprojetos no Oriente Médio e é conselheira jovem na Chatham House. modo como o mundo está aprendendo a criar com e para a natureza mediante
esforços de jovens empreendedores e designers que colaboram com organismos
vivos não humanos

Em particular, o apoio da família – sobre- como o colaborador mais importante para o mesmo que não fosse bem paga”, disse uma
tudo o apoio dos maridos – afeta incrivelmente seu crescimento. Os papéis de gênero entre empreendedora social.
o sucesso das empreendedoras sociais. Por famílias dependem de fatores como o grau O oposto foi verdadeiro para duas outras
exemplo, as fontes tradicionais de financia- de instrução, a classe socioeconômica e o empreendedoras sociais – uma com enfoque
mento para empreendedoras sauditas costu- contexto urbano-rural. Por exemplo, duas na juventude, a outra em desemprego feminino
mam ser os pais, maridos ou outros membros fundadoras de empresas sociais, a primeira –, que enfrentaram a oposição de seu núcleo
da família que normalmente disponibilizam voltada ao desemprego feminino e a segunda, familiar e dependeram de laços mais fracos
capital suficiente para pequenos negócios. ao desperdício de alimentos, explicaram que para obter financiamento e outras formas de
Por essa razão, o progresso das mulheres na suas famílias haviam apoiado seus estudos na apoio. Como resultado, tiveram de lutar mais
sociedade saudita está intimamente atrelado faculdade, que tinham em vista uma bolsa ou para crescer.
ao apoio do núcleo de sua família e da parte um mestrado em empreendedorismo social, Pela terceira tendência, as empreendedoras
estendida. assim como haviam demonstrado compre- sociais receberam menos apoio de seus laços
De modo paradoxal, algumas entrevistadas ensão e fé no trabalho da filha como empre- fracos em comparação com os empreendedores
citaram a família como principal obstáculo endedora social. “Minha família achava bom sociais homens. Por “laços fracos”, entendemos
ao crescimento, enquanto outras citaram-na ter uma filha e esposa ajudando a sociedade, os diversos grupos de pessoas que estão fora
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do círculo de laços fortes, mas ainda assim Em primeiro lugar, as aspirantes a empre- governamentais. Os empreendedores sociais
podem prover capital e apoio: clientes, for- endedoras sociais precisam urgentemente que examinamos mencionaram sobretudo o
necedores, instituições financeiras…todos os de redes de apoio para ser bem-sucedidas. modo como o seu gênero afetava a sua capa-
grupos com os quais um indivíduo interage de As estruturas sociais femininas, bem como cidade de construir relações com seus bancos,
maneira não frequente ou casual, numa base o modo como elas socializam, exercem clientes e fornecedores.
irregular. Em consonância com outras cons- uma influência importante nas dotações As mulheres acreditavam que sua jornada
tatações sobre empreendedoras mulheres, as de capital social de que se valem as mu- pelo setor teria sido mais fácil se houvesse
empreendedoras sociais sauditas encontram lheres para iniciar seus negócios. A falta menos barreiras culturais. Por exemplo, recla-
confiança e apoio em membros da família, ao de acesso a investidores, a organismos de maram de não conseguir ir a tantos eventos
mesmo tempo em que continuam a enfrentar financiamento, redes de negócios e even- de networking quanto os homens. Para as
uma série de desafios relacionados a acesso tos de networking social restringem suas mulheres, o networking revelou-se desafiador,
a financiamento. Os homens sauditas, por oportunidades de obter capital e outros uma vez que muitos dos cargos mais altos,
sua vez, sofrem pressões da família e com o recursos cruciais para o crescimento dos no governo e no setor privado, eram ocupa-
modo como a sociedade vê o empreendedo- negócios. Os construtores de ecossistemas dos por homens. Isso implicava que empre-
rismo social e sua conveniência como traba- podem e devem encorajar a formação de endedores sociais do sexo masculino tinham
lho rentável para o provedor da família. Isso redes femininas ligando-as a instituições mais chances de acessar redes maiores e de
construir seus laços fracos. Se mais mulheres
estivessem em cargos de liderança nas funda-
As empreendedoras sociais sauditas encontram ções e organizações sem fins lucrativos, bem
confiança e apoio em membros da família, ao mesmo como em repartições públicas relacionadas a
empresas sociais, as empreendedoras sociais
tempo em que continuam a enfrentar uma série de poderiam ter mais facilidade em explorá-las.
desafios relacionados a acesso a financiamento. Em quarto lugar, o wasta no empreendedo-
rismo social proporciona uma ferramenta para
a superação dos desafios encontrados. Uma
porque o empreendedorismo social é con- e fundações estabelecidas, em especial as vez que as mulheres consideraram mais fácil
siderado obra de caridade por algumas das que consagram o empoderamento feminino receber apoio da família para suas empreitadas,
famílias dos empreendedores sociais do sexo como um objetivo importante. elas tiveram acesso mais fácil a laços fortes e
masculino. Então, em vez de recorrer aos laços Em segundo lugar, as empreendedoras ao wasta de laços fortes. Os empreendedores
fortes, os homens acharam mais fácil fazer sociais e seus apoiadores deveriam abordar sociais homens, por sua vez, não receberam
seu networking com laços fracos, e estavam laços familiares de maneira estratégica. A muito apoio dos laços fortes, mas tiveram
tendo acesso mais fácil a eles. família constitui uma barreira quando as acesso mais fácil aos laços fracos e ao wasta
Como quarta tendência, o wasta provou mulheres não podem dedicar tempo e aten- de laços tanto fortes quanto fracos. Os empre-
ser uma modalidade importante de capital ção adequados aos negócios e/ou não podem endedores sociais homens sentiam-se confor-
social para empreendedoras sociais. Na região viajar em razão de compromissos familiares táveis em utilizar seu capital social, uma vez
do MENA, o wasta pode se sobrepor ao viés e responsabilidades com o cuidado dos filhos. que podiam entrar em edifícios governamentais
de gênero numa sociedade dominada pelos Uma atitude positiva da família e do marido, ocupados somente pelo sexo masculino e usar
homens, proporcionando às mulheres opor- contudo, bem como seu apoio emocional, o seu wasta para resolver as coisas de modo
tunidades de crescimento. Por outro lado, a parece auxiliar as mulheres a alcançar desem- mais rápido, enquanto as mulheres tinham de
falta de wasta no Oriente Médio pode impedir penho e resultados exitosos. usar o telefone ou e-mail para chegar a alguns
o sucesso de um indivíduo da mesma forma Em terceiro, contratar mulheres para posi- funcionários homens do governo.
como a ausência de networking e mentoria é ções de liderança relevantes pode ajudar as No mundo árabe, as afiliações tribais regio-
um obstáculo em países ocidentais. empreendedoras sociais a ter acesso e cone- nais e familiares são condutores importantes
xões que vão ampará-la ainda mais. Tanto os para o wasta. Embora os que estejam investindo
Reduzindo Barreiras empreendedores quanto as empreendedoras na construção de ecossistemas sociais possam
Com base em nossas constatações, apresen- sociais tiveram que enfrentar barreiras socio- não ser capazes de influenciar a relação entre as
tamos quatro recomendações para auxiliar culturais relacionadas a seu gênero, como a de empreendedoras sociais e seu wasta, aumentar a
as empreendedoras sociais na Arábia Sau- a sociedade considerar o setor apropriado ou percepção do empreendedorismo social na mídia
dita, na região do MENA e outros lugares não para eles, o seu acesso a financiamentos e pode encorajar o wasta dessas mulheres a lhes
onde elas enfrentam dinâmicas semelhantes. a sua capacidade de se comunicar com órgãos fornecer mentoria e outros tipos de apoio. n

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PESQUISA
CHANA R. SCHOENBERGER é jornalista, mora
na cidade de Nova York e escreve sobre
negócios, finanças e pesquisa acadêmica.
Você pode encontrá-la no Twitter:
DESTAQUES DE PUBLICAÇÕES ACADÊMICAS @cschoenberger.

MEIO AMBIENTE locais ou a mudança de com-


portamento dos indivíduos. Os
Conhecer sobre Poluição do Ar É Poder moradores podem ainda confiar
nesses novos dados porque sen-
POR CHANA R. SCHOENBERGER
tem que o governo dos EUA,
que ocorre quando cidade do valor de US$ 127 mi- como terceiro, não teria motivos
pessoas em países em lhões (cerca de R$ 641 milhões) para manipular as leituras.
que o governo pouco em 2019. “Nossas desco- O documento vai apresentar
monitora a poluição descobrem bertas apontam para os argumentos sobre como melho-
que a qualidade do ar é peri- substanciais benefícios de rar a poluição do ar, conta La
gosa? Um novo estudo detalha melhorar a disponibilidade Nauze. A Organização Mundial

O como a Embaixada dos EUA em


Pequim começou a acompanhar
os níveis de poluição do ar da
e a relevância de informa-
ções sobre a qualidade do
ar em países de baixa e
da Saúde solicitou mais moni-
toramento, mas sem evidenciar
que ele ajuda.
capital chinesa e a tuitar sobre média renda”, afirmam Jha Embora a maior parte da
eles em 2008. Posteriormente, o e La Nauze. literatura revele que a quali-
programa se estendeu a outras A cobertura da mídia do dade do ar é importante para a
embaixadas dos EUA em capi- monitoramento da poluição em que teria justificado esses adi- saúde humana, poucos estudos
tais ao redor do mundo. Tal prá- Pequim pelo governo dos EUA cionais de insalubridade para demonstram como resolver
tica levou a um declínio mensu- despertou o interesse dos pes- diplomatas de determinados problemas de poluição do ar
rável da poluição do ar nessas quisadores, revela La Nauze. Na níveis, estava caindo. Os resi- em locais específicos, analisa
cidades, poucas das quais reali- época, diplomatas americanos dentes locais também estavam Marshall Burke, professor asso-
zavam anteriormente um moni- foram citados dizendo que os dando mais atenção ao assunto, ciado do Departamento de
toramento de poluição local, tuítes da embaixada levaram com o aumento de pesquisas Ciência do Sistema Terres-
descobriram os pesquisadores. a mudanças significativas nos no Google de expressões como tre (Earth System Science)
Os autores do artigo – níveis de poluição da cidade. “qualidade do ar”, depois que da Stanford University. “Esse
Akshaya Jha, professor assistente Quando os pesquisadores sou- uma embaixada próxima come- artigo é um excelente exem-
de economia e políticas públicas beram que o Departamento de çou a tuitar, constataram os plo dessa última asserção, pois
da Carnegie Mellon University, Estado dos EUA havia esten- pesquisadores. mostra que o fornecimento
e Andrea La Nauze, professora dido o programa para embai- Por que os tuítes da embai- de informação sobre a quali-
da School of Economics da xadas em todo o mundo, pen- xada fizeram diferença? “O dade do ar em países de baixa
University of Queensland, usa- saram que poderia haver uma relatório diário das leituras de e média renda (nos quais tal
ram dados de satélite para maneira de avaliar empirica- PM2,5 (partículas de material informação é em geral muito
comparar os níveis de poluição mente as análises feitas pelos sólido ou líquido suspenso no difícil de obter) pode levar a
medidos anualmente. Os pes- diplomatas. ar, na forma de poeira, aeros- melhorias na qualidade do ar,
quisadores verificaram que o Um problema que os pes- sol, fumaça, entre outras) dos aparentemente porque a cons-
nível de poluição do ar dimi- quisadores enfrentaram foi monitores das embaixadas pode cientização sobre a má qua-
nuiu depois que a embaixada como quantificar o impacto de fornecer aos governos locais e lidade do ar induziu as auto-
local dos EUA começou a tuitar medir algo que nunca havia sido federais as evidências necessá- ridades locais a fazer algo a
os índices de poluição revelados medido antes. rias para implementar políticas respeito”, diz Burke.
pelo equipamento de monitora- Jha e La Nauze também de poluição nas cidades-sedes”, O programa da embaixada
mento que o pessoal diplomá- analisaram as mudanças nos escrevem os pesquisadores. Uma também ajudou o governo dos
tico havia instalado. funcionários do Departamento combinação de fatores também EUA, ele observou.
O programa da embaixada de Estado dos EUA de certa pode ter contribuído para a “Os autores vão ainda além
ILUSTRAÇÃO DE ADAM MCCAULEY

levou a uma queda nos níveis cidade que recebiam adicional redução dos níveis de poluição, e apontam que, até mesmo para
de concentração de partículas de insalubridade ao longo do avalia La Nauze, como a pressão o Departamento de Estado dos
finas de duas a quatro micro- tempo e descobriram que ele implícita do governo dos EUA, EUA, a instalação dos monitores
gramas por metro quadrado, era condizente com os dados de que estimulou as autoridades nas embaixadas se revelou um
obtendo um declínio da morta- poluição. Esse foi outro indica- locais a fazer mudanças nas polí- ótimo custo-benefício, pois, ao
lidade prematura média da dor de que o índice de poluição, ticas, o ativismo dos residentes promover a melhora da qualidade

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 65

do ar, reduziu os adicionais de em vez de resolver de fato os pobres, sem mudar a sorte como política social” estava se
insalubridade que eram pagos qualquer de seus problemas ou deles ou as deficiências estru- enraizando nas agências gover-
aos diplomatas – de modo que abordar questões estruturais turais que os mantêm pobres. namentais que supervisionavam
os monitores se pagaram facil- do sistema. “Esse artigo teoriza a os serviços sociais para popula-
mente”, conclui Burke. n O autor do artigo, Anthony governança paliativa para des- ções vulneráveis, como morado-
Akshaya Jha e Andrea La Nauze, “US Embassy DiMario, doutorando em socio- crever formas de regulação que res em situação de rua e vicia-
Air-Quality Tweets Led to Global Health logia na University of Southern não punem nem protegem, mas dos em drogas, bem como nas
Benefits”, Proceedings of the National Academy
California, passou mais de um apenas tentam manter vivos organizações sem fins lucrativos
of Sciences, vol. 119, n. 44, 2022.
ano como voluntário no Mobile indivíduos muito pobres por que promovem sua divulgação.
SERVIÇOS SOCIAIS Exchange de Los Angeles, obser- meio de uma série de medidas Analogicamente, diz ele, podem
vando como os funcionários paliativas”, escreve DiMario. ser vistos como as intervenções
Disciplinar, Punir interagiam com os usuários. O
que ele descobriu foi um pro-
“Uma análise da governança
paliativa amplia nossa compre-
humanitárias no Sul Global,
em que doadores estrangeiros
e Mitigar grama que operava dentro de ensão de como as instituições enviam remédios e fundos para
POR CHANA R. SCHOENBERGER um sistema de teias de empre- interagem com os sujeitos e manter as pessoas vivas. Rara-
sas sem fins lucrativos e inicia- entre si, ao mesmo tempo que mente, porém, essas interven-
s sociólogos têm teo- tivas governamentais projetadas revela maneiras paradoxais ções elevam o padrão de vida
rizado sobre dois para impedir que os frequenta- pelas quais os Estados expõem dos beneficiários de forma sig-
métodos pelos quais dores tivessem uma overdose e protegem a vida cruamente.” nificativa ou possibilitam que
a sociedade capitalista neolibe- ou contraíssem doenças trans- DiMario se interessou pela vivam com dignidade.
ral administra seus integran- mitidas por agulhas. O que o interação entre as forças do “DiMario identifica relações
tes mais pobres. O primeiro programa não fez, porque não governo e a vida das pessoas entre modos punitivos, pater-
é o modo punitivo, em que a tinha financiamento nem mis- em dificuldades conforme cres- nalistas e paliativos de gover-
polícia, os tribunais e outros são para tal, foi tentar resolver cia nos arredores de Boston, em nança da pobreza para compre-
órgãos do governo penalizam os outros problemas intratáveis meio a uma onda de dependên- ender a dinâmica em jogo e os
pobres para mantê-los na linha. que muitas vezes coexistem cia de heroína e opioides, lem- diferentes tipos de ações ins-
O segundo é o modo paterna- com a pobreza. Os usuários bra ele. Durante seus anos de titucionais que se enquadram
lista, em que a esfera pública e chegavam para trocar as agu- graduação na University of em cada categoria”, afirma
organizações sem fins lucrativos lhas, recebiam agulhas limpas e Vermont, vários garotos da Lindsey Richardson, professora
tratam os pobres como crianças medicamentos antioverdose, tal- cidade tiveram overdose e associada de sociologia na
rebeldes que precisam ser ensi- vez comessem uma rosquinha outros foram para a prisão por University of British Columbia.
nadas a se comportar. e voltavam, em muitos casos, vender drogas. A experiência O artigo descreve uma ter-
Em recente artigo, um para as ruas. deu a DiMario a oportunidade ceira categoria de governança
jovem sociólogo formulou uma Com base nessa pesquisa, de comparar “as representações da pobreza, as “intervenções
terceira via, compatível com DiMario descreve a governança da mídia sobre as crises das minimalistas” de agências
as duas primeiras, em que a paliativa como uma forma de drogas” com a forma como as oficiais e grupos sem fins
sociedade gerencia os pobres: a interagir com os pobres cujo coisas são vistas pelas pessoas lucrativos, que buscam manter
governança paliativa. Ao anali- objetivo é garantir que as pes- que vivem esses problemas. os pobres apenas sobrevivendo,
sar seus 15 meses de pesquisa soas não morram – o mínimo Na pós-graduação, na qual diz ela.
etnográfica em um programa que pode ser feito por “um estudou política de drogas, tra- “DiMario ampliou nossa
para troca de seringas, em Los Estado que não tem nem os balhou em programas locais compreensão sobre as aborda-
Angeles, que oferece suprimen- meios nem a vontade de cui- de redução de danos em Los gens institucionais para a ‘ges-
tos limpos para usuários de dar das pessoas”, afirma. No Angeles. “Eu estava interessado tão’ e ‘mitigação’ da pobreza
drogas – muitos dos quais são artigo, ele compara a gover- em redes civis de resposta a de uma forma que é empiri-
ILUSTRAÇÃO DE ADAM MCCAULEY

pessoas em situação de rua –, nança paliativa com outros emergências”, ele conta. Esse camente justificada, e teori-
ele teve uma visão de como o dois modelos de governança da artigo resultou em sua disser- camente bem fundamentada”,
governo e as organizações sem pobreza, a governança punitiva tação de mestrado. finaliza Richardson. n
fins lucrativos muitas vezes e a parental, e explica como O que DiMario identificou Anthony DiMario, “To Punish, Parent, or
Palliate: Governing Urban Poverty through
tentam simplesmente evitar os três trabalham em conjunto por meio de seu trabalho etno-
Institutional Failure”, American Sociological
que as pessoas pobres morram, para supervisionar e controlar gráfico foi que o “hospício Review, vol. 87, n. 5, 2022, p. 860-88.

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66 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

PESQUISA DANIELA BLEI é historiadora, escritora e


editora de livros acadêmicos. Seus artigos
podem ser lidos em daniela-blei.com/
writing. Ela tuíta esporadicamente:
@tothelastpage

AT I V I S M O e seus colegas estabeleceram esmagando assim os incentivos


que a estratégia de voz é muito para os executivos agirem.
Para os Investidores, o Protesto Supera mais provável do que a de saída
para alcançar resultados social-
Para os pesquisadores, o
resultado surpreendente foi
o Desinvestimento mente desejáveis. que a voz provou ser alta-
POR DANIELA BLEI Os pesquisadores citam mente vantajosa para promo-
como exemplo o dano ambien- ver mudanças corporativas. “O
uigi Zingales, pro- maior – ao mesmo tempo que tal causado pela poluição para mundo de Friedman é conve-
fessor de finanças contribuem para os resultados melhor detalhar os incentivos niente, no qual você não pre-
na Booth School da empresa. e os custos de campanhas de cisa saber muito. Só que mais
of Business da University of Com um modelo teórico desinvestimento e boicotes. Ao é melhor do que menos”, diz
Chicago, estuda governança para comparar duas estraté- investigar um caso conhecido Zingales. “Tentamos maximizar
corporativa. A pesquisa que gias, os pesquisadores testaram de 1984, quando a empresa os lucros e é isso. Mas e se os
desenvolve questiona como os a saída e a voz, termos criados química DuPont (atual Dow investidores não gostarem da
investidores e outros grupos, para os tipos de pressão que Chemical) confrontou uma maneira como a empresa está
como clientes e colaboradores, os stakeholders podem exercer decisão entre poluir o rio Ohio maximizando os lucros?”
transmitem seus valores e pre- em uma empresa. Enquanto a com uma substância tóxica e Ao demonstrar que a maioria
ferências aos executivos. saída significa “votar com os investir em incineração, os pes- dos investidores estava disposta
Para a maioria das empre- pés”, por meio de desinvesti- quisadores encontraram evi- a aceitar ações com um preço
sas, atender às diferentes prio- mentos ou boicotes a clientes e dências de que a estratégia de ligeiramente mais baixo, desde
ridades de muitos grupos pode colaboradores, a voz se refere saída não obteve bons resulta- que o impacto social de suas
parecer impossível. Milton ao engajamento com a admi- dos para o ambiente. A saída decisões superasse os custos,
Friedman, economista vence- nistração corporativa, em geral não apenas falhou em con- os pesquisadores derrubaram a
dor do Prêmio Nobel e defen- por meio do voto de acionistas, vencer a empresa a pagar pela visão convencional. “Este artigo
sor da teoria do livre mercado, para comunicar suas preferên- limpeza, mas também atores fornece uma estrutura única por
argumentou que as empresas cias. As crescentes preocupa- que não estavam interessados meio da qual o debate sobre a
deveriam simplesmente se con- ções sociais e ambientais no ati- no bem-estar social puderam maximização do acionista versus
centrar em seus resultados, vismo acionista intensificaram a minar a estratégia de saída. a maximização do stakeholder
maximizando os lucros a serem pressão para que os investidores Investidores com mentalidade pode ser resolvido”, diz Amit
distribuídos como dividendos e efetuem mudanças. Mas qual social que procuram punir uma Seru, professor de finanças da
usados da maneira que os acio- estratégia os investidores devem empresa podem vender ações, Stanford Graduate School of
nistas quisessem. Mas Zingales seguir para impactar os resul- baixar seus preços e atrair a Business. Os investidores alcan-
vê as coisas de forma diferente. tados corporativos só recente- atenção do público, mas uma çaram o resultado socialmente
Em um novo artigo com seu mente passou a ser considerada. consequência não intencional é ideal ao se comunicar e se
ex-assessor Oliver Hart, pro- Os pesquisadores construí- que esses atores egoístas terão envolver com os executivos.
fessor de economia da Harvard ram um modelo que assume novas oportunidades de “A melhor maneira de fazer
University e Prêmio Nobel, e que a maioria dos investi- investimento para a diferença é engajar, não
Eleonora Broccardo, professora dores é, ao menos, ligeira- comprar ações desinvestir”, afirma Zingales.
de economia da Università di mente “pró-social” ou social- e aumentar “O desafio é que hoje a maioria
Trento, na Itália, Zingales avalia mente responsável e mantém seus preços, das ações pertence a investido-
a eficácia de duas estratégias que carteiras “bem diversi- res institucionais, como a
os grupos costumam empregar ficadas” que incluem BlackRock, o que dificulta
para induzir executivos a fazer uma variedade de comunicar as preferências a uma
mais do que apenas maximi- investimentos, e que empresa. Precisamos implemen-
ILUSTRAÇÃO DE ADAM MCCAULEY

zar os lucros. Os pesquisadores os acionistas vota- tar mecanismos para transmitir


verificaram que os investidores rão de acordo com essas preferências dos investido-
social e ambientalmente res- suas preferências. res às empresas.” n
ponsáveis podem influenciar a Com base nessas e Eleonora Broccardo, Oliver Hart e Luigi
gestão e mudar a política cor- em outras suposi- Zingales, “Exit versus Voice”, Journal of Political
porativa para beneficiar o bem ções básicas, Zingales Economy, vol. 130, n. 12, 2022, p. 3101–45.

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 67

AT I V I S M O deles afeta o aprendizado mentorados. Suas descobertas aprendizagem descendente e


e repercute na carreira dos demonstram “como os men- um alto grau de engajamento
Os Valores da mentorados.
“Por que algumas pessoas
tores veem o direcionamento
de seu próprio aprendizado
como mentor. Quando os pro-
fissionais viram a mentoria
Mentoria vão para a mentoria vendo uma impactando como efetivamente não como uma obrigação, mas
POR DANIELA BLEI valiosa oportunidade de apren- podem expandir o aprendizado como uma oportunidade de
dizado que pode ter consequên- dos outros”. Para a maioria das obter conhecimentos e habilida-
omo muitos alunos cias em cascata sobre como os pessoas, olhar para baixo em des relevantes dos mentorados,
de doutorado, Ting mentorados vivenciam o rela- busca de aprendizado não é dedicaram mais tempo e ener-
Zhang teve uma cionamento, enquanto outras intuitivo ou reflexivo, mas os gia ao relacionamento.
experiência de pós-graduação reservam pouco tempo para o pesquisadores observaram que O terceiro estudo pesqui-
amplamente moldada pela men- relacionamento e não são tão aqueles que viam as interações sou mentores em um campo de
toria que recebeu. Zhang cre- engajadas?”, pergunta Zhang. de mentoria como oportunida- treinamento de programação
dita seus mentores por ajudá-la “O que percebemos é que as des, e não como um fardo, pro- da ciência da computação que
a se sentir como uma parceira pessoas têm direcionalida- duziam mentorados com melho- monitorava o desempenho do
igual – não apenas uma colega des (preferências e restrições) res resultados de aprendizagem. mentorado ao longo do tempo.
júnior em busca de orienta- quando se trata de com quem Um quarto e último experi- Em entrevistas simuladas, os
ção profissional, mas também podem aprender. As pessoas mento manipulou a direção de pesquisadores avaliaram os par-
alguém que poderia oferecer querem aprender, mas nem aprendizagem para confirmar ticipantes e usaram uma escala
oportunidades de aprendizado todas sentem que podem apren- a causalidade: uma orientação para perguntar: “Quanto você
até mesmo para acadêmicos der com seus mentorados.” de aprendizagem descendente acha que pode aprender com
seniores. À medida que Zhang Os pais de crianças pequenas aumentou o envolvimento do alguém acima de você, lateral a
conduzia pesquisas em indús- podem estar familiarizados mentor, o que melhorou os você e abaixo de você?”. Com
trias e carreiras, ela ainda refle- com a expressão mentalidade de resultados dos mentorados. as respostas inseridas em um
tia sobre a mentoria, impres- crescimento, cunhada por Carol “Esta pesquisa afirma modelo, os pesquisadores esta-
sionada com os significados Dweck, psicóloga da Stanford uma espécie de enigma para beleceram uma forte correlação
muito diferentes atribuídos a University, que descreve a as organizações: a hierarquia entre aprendizado descendente
ela. Conversando com gerentes, perspectiva dos alunos que reflete quem tem poder, mas e melhores resultados do men-
Zhang descobriu que alguns acreditam que podem mudar não necessariamente quem tem torado. Eles também descobri-
deles viam a mentoria como e crescer com o tempo. Com conhecimento e experiência”, ram que o sentido de aprendi-
uma obrigação demorada – uma foco na melhoria e não nos diz Joe Magee, professor de zagem era maleável. Incentivar
exigência imposta pelos depar- resultados, a mentalidade administração e organizações os participantes a reconhecer
tamentos de RH –, enquanto de crescimento inclui um na Stern School of Business exemplos de aprendizado “de
outros apreciavam a perspec- componente de direcionalidade. da NYU. O desenvolvimento baixo” os ajudou a ver a men-
tiva de aprender com aqueles Com base no trabalho de de habilidades em um toria como uma via de mão
que estavam abaixo deles em Dweck, os pesquisadores determinado domínio não se dupla, um relacionamento com
uma hierarquia social. projetaram experimentos para traduz necessariamente em o qual poderiam se beneficiar.
Zhang, agora professora de medir como a direcionalidade habilidades de mentoria, e os “Zhang e seus colegas nos
administração de empresas na de aprendizagem dos indivíduos melhores profissionais não são mostram que, quando os men-
Harvard Business School, publi- se relaciona com sua eficácia necessariamente os melhores tores abordam o relaciona-
cou um novo artigo com Dan como mentores. conselheiros. mento de mentoria com o obje-
J. Wang, professor de negócios Em três estudos correlacio- No primeiro estudo, os pes- tivo de aprender tanto quanto
na Columbia Business School, nados, os pesquisadores testa- quisadores entrevistaram cerca com o mentorado, ambas as
e Adam D. Galinsky, professor ram a ligação entre a direção de 500 profissionais para deter- partes se beneficiam e o rela-
ILUSTRAÇÃO DE ADAM MCCAULEY

de liderança e ética e vice-rei- descendente de aprendizagem minar se o sentido da apren- cionamento é duplamente grati-
tor de diversidade, equidade e dos mentores, ou a abertura dizagem indicava o grau de ficante”, reconhece Magee. n
inclusão na Columbia Business para aprender com aqueles envolvimento como mentor. Ting Zhang, Dan J. Wang e Adam D. Galinsky,
School, que investiga como os que se encontram abaixo deles O segundo estudo procurou o “Learning Down to Train Up: Mentors Are
More Effective When They Value Insights
mentores abordam a mentoria e na hierarquia organizacional, mecanismo subjacente corres- from Below”, Academy of Management Journal,
de que maneira o envolvimento e seu envolvimento com os pondente entre um sentido de em revisão.

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LIVROS
L ANÇAMENTOS NO BRASIL E NO MUNDO

Manifesto pela Clareza O que fazer com a onipresença da mídia?


Essa questão ulula na mente de educadores e
famílias desde a criação do primeiro veículo
Em Manifesto pela Educação Midiática, David Buckingham de comunicação em massa. Ignorá-la sempre
defende a busca por uma nova “alfabetização” de códigos e léxico foi o pior caminho – percebeu-se na prá-
para enxergar o mundo: a tecnologia como linguagem. tica. “Pensar criticamente”, como o próprio
Buckingham se debruça em um capítulo do
POR ALEXANDRE LE VOCI SAYAD livro, é um termo problemático e que caiu em
um “lugar-comum” entre educadores. Entre
arte define o espírito do tempo comprimidas em uma imagem mimética que analistas de discurso oriundos do pensamento
em que vivemos. O agente circulou o mundo, sem fronteiras. de Horkheimer, que viam como solução defe-
invisível e implacável do O meme-charada é uma metalinguagem nestrar o aparelho de TV, até otimistas como
zeitgeist (em alemão, “espírito do que vivemos desde o advento do rádio, os líderes da Mídia 2.0, que acreditam que a
do tempo”) foi âncora na filosofia ocidental período que o professor britânico David criatividade impera quando trabalhamos com
por dois séculos, sempre focado na discussão Buckingham (da Loughborough University) o tema, a escola foi tentando lidar com as
sobre a arte. Na tentativa de compreender o tem como alvo em seu livro Manifesto pela tentações da mediação – até os tempos algo-
que a mediação tecnológica significa em nossa Educação Midiática (Edições Sesc, São Paulo, rítmicos de desinformação e notícias falsas
vida hoje, esse olhar pode ser fundamental. 2022). Afinal, já nos anos de 1930, a educação transformarem quase tudo em terra arrasada.
Como exemplo, dois homens de nome Frank, formal começou a se chacoalhar quando as Entre idas e vindas de conceitos e prá-
um alemão e outro norte-americano, somados crianças levavam informações para a sala de ticas, a educação midiática tem sido uma
a um internauta desconhecido, poderiam aula não mais apenas dos livros ou dos papos episteme vencedora, entre as centenas que
resumir o mundo que nos cerca. com amigos, mas daquela caixa profana que surgiram em quase um século. Ela parte do
O fotógrafo alemão Frank Kunert (1963) começara a ocupar o centro das salas de estar princípio de que a leitura, análise crítica e
registra o mundo em miniatura, uma mis- no período entreguerras. O Telemedia Council produção de mídia são fundamentais para
tura de delicadeza e cinismo. Cria maquetes e o Center for Media Literacy logo se estabe- a cidadania contemporânea. O que não sig-
minúsculas que representam locais cotidia- leceram como as primeiras organizações não nifica redenção por parte das políticas edu-
nos (interiores de casas, indústrias) e amplia governamentais a tratar do tema da influên- cacionais, pois o ritmo de desenvolvimento
a escala por meio da fotografia. Já o músico cia das mídias na educação. A escola deixava da pedagogia não acompanha nem mesmo o
e compositor norte-americano Frank Zappa aos poucos de ser o único templo do saber. avançar curricular dos cursos acadêmicos de
(1940-1993), com muita ironia, tornou-se formação de professores, quiçá a fome voraz
ícone do rock experimental para poucos, dos empresários do Vale do Silício. O con-
ao trazer elementos da música erudita para ceito, portanto, não é nem unanimidade na
criticar a vida de consumo, sobretudo nos academia, tampouco se faz presente como
Estados Unidos – como um guerreiro da deveria em escolas do mundo todo.
Escola de Frankfurt, fazia da mídia de massa, A partir desse diapasão, a importância
especialmente a TV, seu alvo principal nas do livro já se justifica. Buckingham é um
letras e atitudes. britânico no sentido amplo do termo, da
Mas foi um ilustre desconhecido que primeira à última página. Lúcido e preciso,
deu sentido a esses dois mundos. Criou um escrutina como as tendências na análise e
meme, a peça da cultura digital de nosso produção de mídia por estudantes ganharam
tempo, que se tornou célebre: sobre uma e perderam importância nas políticas públi-
foto de miniatura de um chalé, criada por cas do Reino Unido, e em outros países da
Kunert, em que ele conecta a descarga de Europa, e como a educação midiática não é
um vaso sanitário a um aparelho de TV, o um elemento solto dentro da teia de con-
internauta implantou a imagem de um Zappa fusões que os currículos globais enfrentam
cínico, com meio sorriso no rosto a olhar para tentar corresponder aos desafios do
para a câmera. Como se dissesse: “Eu avisei tempo. Ao contrário, esses têm envelhecido
MANIFESTO PELA EDUCAÇÃO MIDIÁTICA
que seríamos inundados por essa porcaria”. Por David Buckingham sem dignidade, devido a batalhas políticas e
O mundo das mídias de massa, a criação Edições Sesc, São Paulo, 2022 sindicais, e se tornado símbolos da própria
digital, a cultura popular e a erudita foram crise educacional generalizada.

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ALEXANDRE LE VOCI SAYAD é educador, jornalista e escri-


tor. Autor de Inteligência Artificial e Pensamento Crítico, entre
outros. É mestre em Inteligência Artificial e Ética pela PUC-SP.
Apresenta o programa Idade Mídia, no Canal Futura.

Para Buckingham, é imperativo inves- Nessa tentativa de cercar de que maneira “neomaterialistas”, provê um olhar sobre
tir na educação midiática, mas também na a educação midiática se conecta com outras os elos e objetos da rede – Bruno Latour
regulação dos meios digitais. Nesse ponto, questões contemporâneas, há também um (1947-2022) ousou encarar esse desafio em
o livro se faz atualíssimo; o autor teme que recorte histórico e raro em publicações sobre uma profícua obra que, no Brasil, tem no
o conceito sirva de barganha para justificar o tema. Entretanto, ao citar a abordagem pesquisador André Lemos (1962) um expo-
uma internet e algoritmos livres de qual- “Frankfurtiana” que, para o autor, permanece ente. A tecnopolítica, os estados-plataforma,
quer regulação, como uma panaceia para o atual ao lidarmos com as mídias algorítmicas, a posse sobre os dados e os princípios de
bem-viver. Também receia, com razão, que há um excesso de ingenuidade. Numa lógica isonomia da rede são temas que tangem a
o termo, que não é acadêmico, mas forjado de rede em que reinam a agência não humana educação midiática e que não podem ficar
ante a uma ampla frente de especialistas e de algoritmos, a presença intensa da inteligên- de fora do debate atual.
ativistas, queira englobar todas as mazelas cia artificial e o uso massivo de dados, teorias Num desencadeamento não acadêmico,
ligadas ao universo digital: da cibersegurança pouco flexíveis e ligadas à mídia de massa com poucas citações, este Manifesto é de lei-
aos princípios éticos que regem os domínios podem ser pouco eficientes. Como dar conta tura simples e pode servir como um farol de
comerciais das big techs. Ele cita o esforço da historicidade de cada ponto que integra clareza para quem deseja se iniciar no tema
global da Unesco em abraçar o tema em um uma rede composta por humanos e objetos, – que agora conta até com um departamento
guarda-chuva mais amplo, Alfabetização Midi- da força ou fragilidade das conexões entre com esse nome na Secretaria de Comunica-
ática e Informacional (AMI), como uma ini- eles e dos milhares de contextos presentes? ção da Presidência da República, que pre-
ciativa louvável, mas incompleta. Em outras palavras: como analisar critica- tende desenvolver a educação midiática nos
O outro ponto de atenção, para o autor, mente a navegação de uma criança do Nepal, currículos locais do Brasil. Os méritos deste
livro são muitos, mas vale sublinhar, como
Buckingham deixa claro, que a educação
A educação midiática sozinha não é suficiente para midiática sozinha não é suficiente para ven-
vencer a desinformação. [É preciso]] ações que envolvem cer qualquer batalha contra a desinformação.
a regulação, programas de aprendizado ao longo da vida Trata-se de um ecossistema de ações que
envolvem a regulação, programas de apren-
e políticas públicas de proteção ao cidadão. dizado ao longo da vida (lifelong learning) e
políticas públicas de proteção ao cidadão.
O Manifesto pela Educação Midiática foi
é sobre qual modelo de educação midiática que acessou um site de compras norte-ame- publicado originalmente pela Polity Books
estamos criando e difundindo. Dentro da ricano, e cujos dados foram parar na base do dentro de uma série de outros manifestos
batalha conceitual, houve quem acreditasse, Partido Republicano daquele país, que, por sua que retratam aspectos importantes da cida-
e apostasse, que educar para as mídias signi- vez, inunda sua caixa postal com anúncios da dania em tempos digitais, como jornalismo
ficava desenvolver fluidez em professores e pré-candidatura de Donald Trump? Um olhar e mídia. Fazer parte de um quebra-cabeça
alunos para utilizar as mais novas tecnologias sobre a privacidade de dados é o somente mais amplo ajuda na compreensão da com-
educacionais. Algo que funcionasse como um mais evidente e simples aspecto dessa trama, plexidade do tema. A versão em português
manual de instruções para a indústria. Essa pontuado pelo autor. traz o prefácio da educomunicadora Januária
mistura de objetivos é presente até hoje e O último capítulo flerta com o tema, mas Cristina e o texto de orelha do jornalista e
causa ainda mais incerteza sobre os valores deixa um desejo de continuidade. Os próxi- professor da ECA-USP Eugênio Bucci, que
e características dessas práticas. Estaríamos mos estudos devem mergulhar justamente auxilia o leitor no entendimento do contexto.
sublinhando a importância do uso de tecno- no tema da inteligência artificial (IA), que Na abertura, permanece o principal desa-
logia educacional, que muitas vezes pouco rege boa parte da mediação do mundo hoje. fio para qualquer pesquisador estrangeiro
agrega aos métodos de aprendizagem, ou Torna-se impossível compreender um pro- no Brasil, que é compreender as nuances do
criando um arcabouço ético para enfrentar cesso comunicativo sem esmiuçar o funcio- ecossistema de mídias daqui: internet velo-
a voracidade do mercado? Buckingham vai namento, os vieses, os impactos éticos e as císsima inunda os celulares dos executivos da
além, ao buscar uma nova “alfabetização” de particularidades de um algoritmo de IA. Essa avenida Faria Lima, em São Paulo, enquanto
códigos e léxico para enxergar o mundo; a mudança de paradigma não exige somente as notícias correm o rio Tapajós, no Pará,
tecnologia como linguagem, tal qual o ilustre uma transformação de abordagem pedagó- por meio de um alto-falante acoplado a uma
internauta do início deste texto que “remi- gica, mas da lógica intrínseca ao processo. voadeira. Desenvolver educação midiática
xou” imagens para a criação de uma outra Nesse sentido, uma série ampla de estu- nesse contexto é mais desafiador que remi-
proposta de compreensão. dos e teorias, que têm sido chamados de xar Kunert e Zappa em um meme. n

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LIVROS

Cultivar, Semear e Plantar


Esses efeitos cumulativos são conhecidos
como “enfrentamento”, termo usado por

um Mundo Melhor
Benjamim para descrever “como incorpora-
mos estressores e opressores no ambiente
mais amplo e como esse processo provoca
Ruha Benjamin afirma que a transformação social que buscamos doenças evitáveis e morte prematura”. Eles
começa no indivíduo. produzem vários tipos de desigualdade e têm
sua origem em sistemas humanos. “Ambien-
POR MEHR TARAR tes hostis são feitos e refeitos diariamente
dos Unidos, a fim de mostrar de que modo por meio de automatismos tanto de institui-
uma certa ousadia usar a me- malefícios sistêmicos fazem uso de “múlti- ções quanto de indivíduos”, afirma.
táfora de um vírus para repre- plos caminhos para se entranhar em nós”. Assim como o próprio conceito de vírus,
sentar um novo marco para Para lançar luz ao constante medo de vio- “enfrentamento” tem valência positiva e
mudanças sociais. Mas é jus- lência que os americanos negros vivenciam, negativa: os enfrentamentos deterioram um
tamente isso que faz Ruha Benjamin em ela conta sua história pessoal. “Durante a corpo, mas o termo também é aplicado para
seu cativante novo livro, Viral Justice: How maior parte da minha infância, eu dormia na descrever persistência – como em “enfrentar
We Grow the World We Want (Justiça viral: defensiva”, observa. “Tiros imaginários inter- a tempestade”.
Como cultivar o mundo que desejamos, em rompiam meus sonhos noite após noite. Foi O racismo incrustado no sistema de
tradução livre). por isso que a morte de Breonna pela polícia saúde, por exemplo, é camuflado pelos pre-
“Vírus não são nosso maior inimigo”, sus- no meio da noite me afetou tão profunda- textos repetidos e imprecisos, que remetem
tenta Benjamin, que é professora de estudos mente.” Breonna Taylor estava dormindo, a doenças preexistentes atribuídas à gené-
afro-americanos na Princeton University e quando sua casa foi alvejada 20 vezes pela tica, a uma suposta hesitação ante vacinas e
diretora fundadora do Ida B. Wells Just Data polícia em Louisville, Kentucky, em março tratamentos médicos, e à “pele espessa” dos
Lab. Em Viral Justice, ela encara o conceito de 2020. O argumento e os exemplos que negros, que “não racha” – para sugerir que
de vírus não como causador de uma doença se seguem no livro são uma continuação do pessoas negras não sentem dor da mesma
mortal e transmissível, mas como modelo tema de ameaça, que inclui não apenas a rea- forma que as brancas. Essa culpabilização
para uma construção coletiva de mundo – o lidade da violência e de seus efeitos cumula- salienta a importância do modo pelo qual
que ela chama de reworlding (“remundar”), tivos intergeracionais, mas também o temor os enfrentamentos podem servir como “uma
ou reordenar nossos valores e prioridades. incessante que se impregna num nível celular. ideia de saúde pública e como um referencial
A viralidade é o princípio organizador para se compreender e desafiar a maneira
de sua teoria da transformação social – cuja com que as vidas e o futuro de todos são
disseminação viral começa no indivíduo e afetados pelo racismo contra o negro”, diz
se expande para além dele mediante enga- Benjamin.
jamentos com outras pessoas, influenciando O enfrentamento é também um produto
de forma positiva suas escolhas e ações. Em de séculos de escravidão, encarceramento e
última análise, essa visão “exige que cada de um permanente policiamento e vigilância.
um de nós confronte individualmente o Essa violência de Estado é uma brutalidade
modo como participa de sistemas injustos, institucionalizada que, observa Benjamin,
mesmo quando, em teoria, defende a justiça”. provoca elevação da pressão sanguínea, ace-
Ao fazê-lo, o vírus não é algo que acontece lera o envelhecimento e causa problemas de
conosco, mas algo sobre o qual temos algum saúde mental. Assim, ela reitera, as disparida-
poder. “Este é um chamado à ação, para des raciais de saúde não são biológicas, e sim
que indivíduos recuperem o poder sobre socialmente produzidas ao longo do tempo.
como intenções, hábitos e ações moldam Mas ainda que as mudanças estruturais,
o ambiente mais amplo – tanto quanto são imersas em burocracia e processos políticos,
moldados por ele”, ela observa. sejam intrinsicamente lentas, Viral Justice não
Combinando autobiografia e estudos sucumbe ao desespero. Em vez disso, defende
VIRAL JUSTICE: How We Grow the World We Want
sociológicos, Benjamin analisa as camadas de Por Ruha Benjamin, 392 páginas, que a autopercepção e a responsabilização
discriminação internas aos sistemas de saúde, Princeton University Press, 2022. sejam os pontos de partida para erradicar
de educação e de encarceramento dos Esta- esses malefícios sistêmicos.

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Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023 71

MEHR TARAR é autora de Do We Not Bleed? e de Leaves from


Lahore (Nós não sangramos? e Folhas de Lahore, em livre
tradução). É colunista, foi editora assistente do Daily Times,
Pakistan e anfitriã de um talk show.

A autora propõe uma espécie de “faça microempresa”, sugere a autora, “talvez possa nossas sociedades foram construídas”. Em
você mesmo”, prática que deve ser cultivada começar dispondo um neon em que se leia ‘A vez disso, precisamos de um ambiente de
com o intuito de compensar uma ineficácia supremacia branca só vai acabar quando os aprendizado transformativo que “disponha
institucional. Transformar o enfrentamento brancos a virem como um problema que eles uma fundação diferente, tijolo por tijolo, nos
não é algo que vá demandar poderes mágicos. precisam resolver, e não como um problema corações e mentes de jovens cuja confiança
“Demanda apenas que comecemos a plane- dos negros com que precisem empatizar’, só podemos conquistar dizendo a verdade”.
jar – encorajando-nos mutuamente, reinven- como fez a Glory Hole [loja de donuts] na Suas recomendações incluem reinven-
tando nossas relações”, diz ela. “Irrigando as Gerrard Street em Toronto”. tar escolas “como laboratórios para culti-
alternativas que desejamos cultivar e sempre As soluções propostas para injustiças e var empatia e solidariedade”; investir em
colocando amor em tudo o que fazemos.” enfrentamentos sistêmicos apontam para uma “mediação e processos de justiça restaura-
Benjamin observa que “a ameaça jamais abolição. Benjamin reitera a importância da tiva” em escolas; priorizar “o recrutamento
foi o indivíduo comum ou ‘o outro’. Foi retirada de financiamento e da abolição defi- e a retenção de professores não brancos”; e
sempre o indivíduo no espelho”. Por isso, nitiva do “sistema de policiamento, punição e integrar “ao currículo a história negra e os
o caminho a seguir “requer que se culti- encarceramento”, acrescentando que “um ele- estudos étnicos”. A última diretriz é hoje um
vem novos hábitos internamente, seme- mento-chave da empatia mediante justiça viral crucial ponto de discórdia em todos os Esta-
ando modos restaurativos de estar juntos encontra-se intimamente atrelado a experimen- dos Unidos, uma vez que pais e professores
interpessoalmente, desenraizando práticas de tos na criação de um mundo sem polícias”. – desconstruindo o ensino de história sob a
desigualdade institucionalmente e plantando Como escritora vivendo no Paquistão, ler bandeira da “teoria crítica da raça” – estão
possibilidades alternativas estruturalmente”. a crônica de Benjamin sobre a escravização a denunciar a educação infantil em função
das inúmeras histórias que têm sido supri-
midas no país.
As páginas finais do Viral Justice, de Ruha Benjamin, As páginas finais do livro são um tes-
são um testamento de resiliência humana, de sentido tamento de resiliência humana, de sentido
encontrado em pequenas ações, imbuindo
encontrado em pequenas ações e do cultivo de um jardim de beleza o trivial e cultivando um jardim
com uma semente. com uma semente. Quando um indivíduo se
importa com o outro, um bairro se torna uma
comunidade; uma comunidade, uma cidade;
Essa estratégia depende de uma disposi- dos negros nos Estados Unidos me fez lem- uma cidade, um país; um país, um continente;
ção pessoal para se modificar – para trabalhar brar do fantasma da colonização global do e um continente, o mundo inteiro.
em si mesmo –, a fim de melhorar a saúde Império Britânico e dos efeitos de enfrenta- Atos interpessoais de benevolência mul-
e o bem-estar da nação. À luz da crescente mento provocados pelas políticas opressivas tiplicam-se em empatia coletiva, pondo em
violência contra comunidades marginalizadas que ainda fervilham sob a superfície em mui- movimento o processo de reworlding, no qual
e da intensificação das divisões políticas, esse tos países, incluindo o subcontinente indiano nenhum ato de apoio e assistência é irrele-
otimismo pode, em alguns momentos, pare- – Índia, Paquistão e Bangladesh. A história bri- vante. “Justiça viral”, afirma Benjamin, “não
cer ambicioso demais ao leitor. tânica de excessos imperiais continua ampla- tem que ver com distopia, ou com utopia,
Mas a viralidade, enfatiza Benjamin, é mente excluída de seus livros escolares, o que mas com nóstopia.”
o caminho a ser seguido que nos ajuda a sugere ausência de remorso e de introspec- Num momento em que o coronavírus
vislumbrar de que modo nossa ação indi- ção nacional por parte da Grã-Bretanha. Por descortinou uma nova realidade e em que
vidual pode fazer da mudança sistêmica e isso, a ideia de reparações parece improvável nós como sociedade ainda não choramos por
social uma realidade. O conceito representa quando tantas pessoas estão dispostas a, no todos aqueles que perdemos – muitos sem
o poder dos relacionamentos e das conexões máximo, reconhecer erros de maneira cosmé- nem mesmo dizer adeus, sem um último
interpessoais. O trabalho interno começa tica, mas não a apoiar reparações. abraço e sem derradeiros ritos sociais ou
por fazermos perguntas a nós mesmos, pela Assim sendo, para concordar com Benja- religiosos –, precisamos lembrar do “nós” no
interrogação de nossas crenças e da lingua- min, um reworlding dos Estados Unidos ou que parece ser nossos mundos cada vez mais
gem que usamos. Micromudanças podem da Grã-Bretanha, ou de qualquer outro país compartimentados. O Viral Justice é aquela
acontecer mediante o uso intencional de imperialista, faz-se impossível enquanto suas “beleza teimosa, uma alegria que se recusa a
linguagem orientada pela justiça ou por for- instituições não enfrentarem e repararem o ajoelhar-se em derrota” num mundo afligido
mulações que explicitem a injustiça sistêmica que ela chama de “mentiras fundacionais – por uma pandemia e num país, os Estados
ao torná-la gritante. “Se você for dono de como o mito da meritocracia – sobre as quais Unidos, maculado por racismo e colorismo. n

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72 Stanford Social Innovation Review Brasil | Junho de 2023

Ú LT I M O O L H A R
IMAGENS QUE INSPIRAM

Janelas para a Vida


Foto de Daniel Machado

talaia do Norte ganhou o noticiário global meta. O que se traduz em crianças e adolescentes

A em 2022. Há um ano, na fronteira com


o Peru, a região próxima da cidadezinha
no interior do estado do Amazonas mais
de mil quilômetros distante de Manaus foi palco do
sem aprendizado adequado de matemática e de lín-
gua portuguesa.
É ali que a OMUNGA Grife Social e Instituto
tem contribuído para transformar a vida de estu-
trágico assassinato do indigenista brasileiro Bruno dantes e professores, com propostas de atividades
Pereira e do jornalista inglês Dom Philips. de promoção a leitura, escrita e democratização do
Esse município de menos de 20 mil habitantes acesso aos livros. A OMUNGA atua em regiões dis-
ameaçado pelo tráfico de drogas e pesca ilegal ocupa tantes ou isoladas sem ou com pouca presença de
uma das últimas posições no Índice de Desenvolvi- organizações sociais, como o sertão do Piauí, inte-
mento Humano Municipal (IDEM) entre os 5.570 rior de Roraima e Angola. No Vale do Javari, planeja
municípios brasileiros e, embora tenha aumentado construir a primeira biblioteca de Atalaia do Norte.
nos últimos anos, seu Índice de Desenvolvimento Conheça o projeto e veja como apoiar essa iniciativa
da Educação Básica (IDEB) se mantém abaixo da acessando omunga.com.br

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MUDAR SISTEMAS A ECOSSISTEMAS LOCAIS PERSPECTIVAS PARA
PARTIR DAS RELAÇÕES DE INFORMAÇÃO A INOVAÇÃO SOCIAL
Por Juanita Zerda, Katherine Milligan e John Kania Por Izabela Moi e Nina Weingrill Artigos de celebração dos 20 anos da SSIR

VOLUME 1 l NÚMERO 4
EDIÇÃO TRIMESTRAL
JUNHO 2023

O F U T U R O D A
D E M O C RAC I A
O Campo Como Alcançar
Emergente da uma Democracia
Inovação Política Multirracial?
Nosso propósito é reduzir a violência, promover a Por Johanna Mair,
Josefa Kindt e Sébastien Mena
Por Angela Glover
Blackwell
cidadania ativa, justiça climática e transparência.

O Instituto Humanitas360 trabalha para construir sociedades mais justas e igualitárias


em diversos países da América Latina, graças às nossas equipes no Brasil, EUA e com
apoio de conselheiros e colaboradores na Colômbia, Chile, Uruguai, México, Argentina,
Bolívia e Guatemala.
Conheça alguns de nossos projetos:

Cooperativas Sociais - Capacitação profissional Índice de Engajamento Cidadão das


e geração de renda para pessoas privadas Américas - Comparativo do nível de engajamento
de liberdade, egressas do sistema prisional e participação cívico-social dos habitantes de
e vítimas de violência doméstica, através de países do continente em parceria com a The
cooperativas sociais formadas dentro e fora de Economist Intelligence Unit (EIU).
penitenciárias.
Tecendo a Liberdade - Documentário revelando
LAB360 - Cessão de computadores para uni- as contradições do sistema de Justiça Criminal
dades prisionais para que pessoas privadas de brasileiro sob a perspectiva das mulheres que
liberdade possam receber ensino a distância, trabalham nas cooperativas sociais apoiadas
fazer videoconferências com seus familiares. pelo H360.

Saiba mais sobre nosso trabalho em www.humanitas360.org @humanitas360

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