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O dia da minha angústia (Salmo 102)

Todos nós experimentamos períodos de aflição em nossa vida. As origens podem ser diversas,
como bem aponta o salmista no nosso texto de hoje. O salmo é até um pouco desconexo
porque procura abarcar essas diversas realidades da dor, que é apresentada como transitória
face à eternidade e a permanência de Deus. Essa construção por oposição é uma característica
textual marcante e pode ser entendida do ponto de vista das emoções. Quando colocamos a
dor e a tristeza em perspectiva, é mais fácil para superarmos o momento difícil. Não deixa de
ser uma estratégia de fé.

O dia da angústia (v.2)

Neste salmo, a primeira impressão que temos é de que o orante está enfermo. Ele fala de seus
dias serem consumidos e seus ossos arderem como lenha (v.3). Será que está febril? Vivencia
uma enfermidade dolorosa? A consequência da enfermidade é a tristeza que faz o coração
ficar seco e também a ausência de fome, que é um dos sintomas da depressão e da angústia.
Em consequência, um emagrecimento visível (v.4).

Ele se sente sozinho em sua doença e quando isso acontece a gente sabe que ele tem alguma
ligação com o campo, porque cita muitos pássaros de hábitos solitários e noturnos para se
comparar: o pelicano, o mocho (uma espécie de coruja) e o pardal. Dá para ver que a insônia é
outro de seus sintomas (v.6-7). Não é difícil entender essa sensação, porque a doença no Israel
antigo é experimentada como uma situação perto da morte. E como os mortos são impuros e
não devem ser tocados, as pessoas doentes tendem a ser afastadas do convívio social e até
mesmo do acesso ao culto.

Como resultado deste afastamento e das consequências da enfermidade, o salmista também


vê seus inimigos se exaltarem, cantando vitória sobre ele (v.8). Na hora da doença, a gente
pode ser confrontado com a maldade das pessoas. No estado da fragilidade emocional, isso
pode ser mais um gatilho perigoso. Temos de nos cuidar para que as opiniões a nosso respeito,
principalmente em épocas difíceis, não nos façam tomar decisões perigosas e precipitadas!

Mas o salmista não desiste de sua fé. Ele utiliza-se dos recursos litúrgicos como maneira de se
aproximar de Deus. É assim que devemos ler a referência às cinzas e às lágrimas do v. 9. São
símbolos de humildade diante de Deus e aparecem no contexto do arrependimento. O
salmista procura entender a fonte de seu sofrimento. Ele busca dentro de si e na sua prática
alguma coisa que possa ter desagradado a Deus e causado sua situação atual.

Essa postura é muito comum na Bíblia e também em nós. Temos a tendência a pensar que se
encontrarmos uma justificativa para nossa dor, ela se tornará mais palatável. Nem sempre é
possível, às vezes podemos estar sofrendo sem ter feito nada por merecer aquilo, como nos
comprova o livro de Jó. A temática do sofrimento do inocente, aliás, é muito forte na Bíblia.
Eclesiastes abre a porta para a ideia do acaso, de que existem coisas ruins e que nem sempre
há uma explicação. Os Provérbios também indicam que além de nós mesmos, também as
relações sociais, econômicas e políticas podem proporcionar dor e injustiças. Devemos levar
essas coisas em conta para não conduzir nossas falas a quem sofre de modo a aumentar ainda
mais sua dor!

A eternidade divina (v.12)

Em oposição ao salmista, cuja vida definha como a sombra e a erva (v.11), Deus permanece e
sua memória persiste (v.12). O salmista usa de um artifício de oração interessante: confronta
seus limites com a grandeza de Deus, de modo a tentar comover o coração do Senhor para ele.
Esse recurso é muito usado nos salmos. Parece que o povo do antigo Israel tem uma
perspectiva de que é preciso orar assim, consternar Deus a mostrar seu amor. E eles fazem isso
com tanta reverência! Sem pretensões a não ser demonstrar que realmente não podem se
livrar do problema sozinhos, os orantes bíblicos (homens e mulheres) apresentam a Deus seus
argumentos: sua dor, sua carência e sua necessidade só podem ser supridos pela misericórdia
divina.

Além da enfermidade, o salmista aponta para Deus outro tipo de sofrimento: daqueles que
estão presos e sentenciados à morte. Deus escuta os gemidos deles e os livra. Observando
nosso judiciário hoje, sob suspeita como todas as instituições brasileiras (quiçá mundiais),
vemos que muitos presos estão em condições subumanas de vida. Muitos não passaram por
processos justos em seus julgamentos. Diversos em todo o mundo estão presos por
defenderem direitos básicos. Mulheres e homens caindo sob a égide de grandes poderes.
Gente que não fez nada de errado também se encontra atrás das grades em todo o mundo. E
ainda outros tipos de prisões, como os imigrantes ilegais, entre sua terra destruída e seus
sonhos de liberdade frustrados; os exilados políticos e religiosos; as explorações dos grandes
capitais; a falta de acesso à educação, à saúde e à liberdade de expressão. Todas essas coisas
fragilizam a vida e não raro a tornam impossível em muitos lugares do globo hoje mesmo.

Para muitos e muitas desses orantes de hoje, a esperança é a permanência de Deus, como foi
para o salmista. A esperança de quando sua glória se manifestar (v.16) e quando ele atender à
oração feita (v.17), que Ele olhe do seu santuário, observe a terra (v.19). Ao fim, quando todos
os inimigos forem destruídos, sejam eles de que origem forem, como roupas velhas (v.26),
haverá uma expectativa de sobrevivência nas gerações seguintes (v.28). A descendência é uma
afirmação da bênção divina, porque assim a memória dos pais é preservada.

Nossa fragilidade é a mesma, bem como a nossa força

Quando leio esses salmos, me sinto ao mesmo tempo triste e confortada. Triste por saber que
tantos anos se passaram e a gente continua tendo os mesmos motivos para chorar. As
injustiças parecem ter aumentado. As desigualdades parecem insuperáveis. As doenças novas
surgem a cada dia como resultado de nosso próprio “progresso”. A política dá asco. A justiça
não julga. A economia exclui. Pessoas morrem de doenças para as quais a cura existe, mas é
um negócio caro, que elas não conseguem pagar. A educação deseduca. A criança morre, o
idoso morre, o jovem se mata. Parece não haver solução.

Mas logo recupero o fôlego. Mesmo o pardal solitário no telhado, mesmo o pelicano no
deserto ou o mocho nas solidões encontram provisão para passar mais uma noite. Dos galhos
pequenos caídos, conseguem construir ninhos. Eles insistem em colocar seus ovos apesar dos
predadores. Eles os chocam, protegem os filhotes e garantem a próxima geração. Seus
sofrimentos não os detêm. E além de tudo, eles possuem asas e podem ver as coisas por
outras perspectivas.

Não deve ser por acaso que o salmista se compara a eles. Porque, como bom observador que
é, o salmista também enxerga os escapes que esses animais encontram todos os dias. Eles são
sobreviventes num ambiente muitas vezes hostil e inóspito. Exatamente como nós. Por isso,
neste salmo como em outros, a última palavra nunca é a do desespero, embora ele seja real. O
último grito não é o da morte, embora a dor seja simbilante nos ossos. A última palavra é a da
fé. A fé faz a gente levantar todos os dias de manhã. A fé nos faz enxergar os escapes. A fé nos
faz sorrir nos dias nebulosos. Ela não é uma falácia, nem um recurso da psique. A fé é um dom
de Deus. É a presença dele em nós, que nos dias conturbados nos faz clamar: “Deus meu, não
me leves no meio dos meus dias, tu, cujos anos alcançam todas as gerações” (v.24). Seja essa a
nossa oração hoje. Resistamos em viver e viver com graça e alegria, mesmo em meio tantas
ameaças de morte: “Tu te levantarás e terás piedade de Sião, porque o tempo de te
compadeceres dela, o tempo determinado, já chegou” (v.13).

Hideide Brito Torres

Oitava Região Eclesiástica (DF, GO, MT e TO)

hideide@gmail.com

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