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Recebido: 29/05/2022 ■ Aprovado: 04/09/2022 ■ Publicado: 04/12/2022 eISSN 2179-426X

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A Educação Comparada no Ensino de Zoologia: uma análise


Histórico-Curricular
Hugo José Coelho Corrêa de Azevedo1
Rosane Moreira Silva de Meirelles 2

Resumo: Neste artigo, é apresentada uma análise histórica dos currículos de


Zoologia no Brasil, a partir da educação comparada. Foram coletados dados em seis
documentos, que retratam o contexto histórico desde a estrutura curricular do Colégio
Imperial de Pedro II até a Base Nacional Comum Curricular. Foram usados os
seguintes critérios de comparação e análise: discurso curricular zoológico, conteúdo
científico, método empregado e contexto histórico. Os resultados mostraram que o
ensino de Zoologia passou, historicamente, por quatro fases curriculares, sendo elas:
Oitocentista, provinda do século XIX e do Brasil Império; Positivista de redescoberta,
provinda da Guerra fria e disputa tecnológica; Tecnocrática, provinda da ditadura
militar e do discurso progressista e Habilidades e Competências, que surgem no
momento de discussão das teorias pós críticas de currículo no Brasil. Conclui-se que
o Ensino de Zoologia sofreu determinantes políticos e sociais que influenciaram suas
perspectivas conceituais e de discurso curricular zoológico no decorrer do recorte
utilizado.
Palavras-chave: Zoologia. Ensino de Zoologia. História do Currículo. Educação
Comparada.

Comparative Education in Zoology Teaching: a historical-curricular


analysis
Abstract: This paper presents a historical analysis of Zoology curricula in Brazil, based
on comparative education. Data were collected in six documents that portray the
historical context from the curricular structure of Colégio Imperial de Pedro II to the
National Common Curricular Base. The following criteria for comparison and analysis
were used: zoological curriculum discourse, scientific content, method used and
historical context. The results showed that the teaching of Zoology has historically
passed through 4 curricular phases, namely: 19th century from the 19th century and
the Brazilian Empire, Positivist from the Cold War and technological dispute,
Technicists from the military dictatorship and the progressive discourse and Skills and
Competencies that arise at the time of discussion of post-critical theories of curriculum
in Brazil. It is concluded that the Teaching of Zoology suffered political and social
determinants that influenced its conceptual perspectives and zoological curricular
discourse during the period used.
Keywords: Zoology. Teaching Zoology. History Curriculum. Comparative Education.

Educación Comparada en la Enseñanza de Zoología: un análisis


histórico-curricular
Resumen: Esté artículo presenta un análisis histórico de los currículos de Zoología
en Brasil, a partir de la educación comparada. Los datos fueron recogidos en seis

1 Doutorando em Ensino em Biociências e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, Brasil. 
hugo.azevedo92@hotmail.com https://orcid.org/0000-0003-1744-4831.
2 Doutora em Ciências. Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, Brasil.

 rosanemeirelles@gmail.com http://orcid.org/0000-0002-9560-2578.
2 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

documentos que retratan el contexto histórico desde la estructura curricular del


Colégio Imperial de Pedro II hasta la Base Curricular Común Nacional. Se utilizaron
los siguientes criterios de comparación y análisis: discurso curricular zoológico,
contenido científico, método utilizado y contexto histórico. Los resultados mostraron
que la enseñanza de la Zoología pasó históricamente por 4 fases curriculares, a saber:
Siglo XIX del siglo XIX e Imperio Brasileño, Positivista de la Guerra Fría y disputa
tecnológica, Técnicos de la dictadura militar y el discurso progresista y Habilidades y
Competencias que surgen en el momento de la discusión de las teorías poscríticas
del currículo en Brasil. Se concluye que la Enseñanza de la Zoología sufrió
determinantes políticos y sociales que influyeron en sus perspectivas conceptuales y
discurso curricular zoológico durante el período utilizado.
Palabras clave: Zoología. Enseñanza de Zoología. Historia del Currículo. Educación
Comparada.

1 O currículo e suas relações

Os currículos são fortemente marcados por imposições sociais, históricas,


colonialistas, econômicas e estruturais (APPLE, 2006; CONCEIÇÃO, 2017; MULLER
e YOUNG, 2019). O próprio currículo é demarcado como um espaço de lutas e
conquistas ideológicas e de manutenção hierárquica sobre a seleção e execução dos
conhecimentos socialmente válidos. O acesso a estes é um canal pelo qual a
macroestrutura social se instala na microestrutura escolar (LOPES, 2004). Para Apple
(2006), a estruturação do conhecimento curricular e dos símbolos institucionais está
interligada à dominação social e cultural da sociedade, e a sua manipulação
consciente ocorre pela classe dominante.

O vocábulo Currículo, seguindo a relação etimológica da palavra, advinda do


latim curriculum, significa caminho a ser percorrido e, dada a apropriação pedagógica
do vocabulário, pode ser caracterizado como planos e programas educacionais
interligados ao conhecimento escolar e à experiência da aprendizagem (APPLE, 2006;
LOPES e BORGES, 2017; SCHMIDT, 2003; YOUNG, 2014). Sendo assim, o currículo
é muito mais do que um conjunto de disciplinas e conceitos estruturados em outros
termos, caracterizando-se como uma previsão do processo formativo de toda uma
sociedade que fará uso deste.

A relação histórica dos currículos formais, ou seja, aqueles planejados e


executados por políticas públicas, é um remonte histórico social sobre os conceitos e
suas relações de poder (SCHMIDT, 2003). Pesquisas acerca do tema ganharam força
no pós-modernismo, período em que estudos sobre seu referencial pedagógico,
estritamente ligado à formação cidadã, dialogavam sem metanarrativas, havendo,
contudo, uma polissemia de visões. O pós-estruturalismo nos currículos também é um
3 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

vetor que auxiliou na mudança documental e seu percurso formativo. É definido como
pós-estruturalismo correntes anti-positivistas, as quais delegam ao currículo uma
instrução, além do conceito linguístico para sua compreensão e ação (COSTA e
LOPES, 2022; LOPES, 2013;). Deste modo, pode-se compreender que o currículo
formal não é um artefato único e imutável (APPLE, 2006).

O Ensino de Zoologia, enquanto área do conhecimento, é trazido por Lorenz


(2010) como uma Biociência que estuda os animais e suas relações com o ambiente.
Trazida da França, esteve presente no decorrer da história brasileira, sendo lecionada
primariamente no ensino formal que conhecemos no Colégio Imperial de Pedro II,
situado no Rio de Janeiro.

2 A comparação curricular nos estudos de história da educação e ensino

Os estudos que compõem a comparação curricular possuem o objetivo de


promover o remonte não apenas histórico dos documentos, mas também de
desenvolver dentro de uma perspectiva sociológica o estudo dos sucessivos discursos
da sociedade, que influenciam as políticas curriculares (SILVA, 2016). Correa (2011)
exemplifica tal finalidade da educação comparada ao analisar as diversas finalidades
políticas, históricas, sociais, culturais, dentre outras, dos documentos educacionais, o
currículo, por exemplo.

Deste modo, a perspectiva crítica dos currículos é importante neste momento,


pois a orientação comparativa se fundamenta e se orienta nos procedimentos
investigativos, entre as diferenças e semelhanças, para o remonte completo de uma
história curricular (MORGADO, 2019; SILVA, 2016).

Mallet (2004) aponta o século XX como importante para os estudos


comparados e descreve que este tipo de pesquisa surgiu em detrimento a alguns
processos que estavam em alta, sendo eles:

As condições objetivas e fechadas dos fenômenos educativos e culturais que


o funcionalismo tende a promover;
As perspectivas de evolucionismo social que, cegadas por uma
concepçãocontinuísta da história e uma abordagem pragmática dos fatos
educativos, tende a descuidar dos processos de mudanças sociais;
O consensualismo, que impede a empreitada científica de questionar seus
fins, o que constitui o melhor meio de eludi-los, sobretudo quando os espaços
de intervenção ultrapassam as fronteiras nacionais. (MALLET, 2004 p. 1311).

A necessidade de estudos comparados vem da premissa de poder reconhecer


4 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

o campo de singularidades e pluralidades de diferentes perspectivas e abordagens


presentes no decorrer dos currículos estudados. Popkewitz (1998) já compreendia
que estaríamos partindo de uma premissa epistemológica material, para
desenvolvimento de estudos de materiais simbólicos, principalmente no que tange aos
currículos, que são reconhecidos como objetos fonte e legitimam o conhecimento
socialmente válido (APPLE, 2006; SILVA, 2016).

A educação comparada se apoia, ainda, na globalização, que influencia o


processo educacional e as políticas curriculares. Marcondes (2005) defende que há
uma unificação dos sistemas de ensino ao redor do mundo, consubstanciando as
mesmas propostas em diferentes países.

3 Metodologia sobre a comparação curricular

Para comparar qualitativamente os currículos históricos e o atual sobre o


Ensino de Zoologia, estipulou-se uma pesquisa teórica de cunho exploratório. Ribeiro
(2016) define esta como uma perquirição de primeiras investigações, cuja finalidade
é explorar os documentos em busca de dados que se complementam para futuras
interpretações.

Neste artigo, elencamos os seguintes currículos de Ensino de Zoologia: Colégio


Imperial de Pedro II (CDP), Biological Science Curriculum Study (BSCS), Subsídios
para a Implementação da Proposta Curricular de Biologia (SPIC-BIO), Currículos de
Estudos de Biologia (CEB), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC). A seleção dos determinados currículos está
ligada ao fato de serem os documentos mais completos e documentados dos períodos
históricos que expressam o Ensino de Zoologia.

A fim de nortear o processo investigativo, partiu-se de categorias para serem


investigadas e comparadas, sendo elas: Discurso curricular Zoológico, conteúdo
científico, método empregado e contexto histórico (Quadro 1).

Quadro 1: Processo metodológico para análise comparativa

Discurso Curricular Zoológico

Guia do processo Conteúdo Científico


investigativo metodológico Modelo Empregado
Contexto Histórico
Fonte: Os autores
5 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

O discurso curricular se baseia na finalidade defendida pelo documento


curricular da Zoologia para o Ensino básico, tais como objetivos, metas e possíveis
explicativas de necessidade sobre o tema ser ensinado. O Conteúdo científico é o
material abarcado, promovendo-se a descrição disciplinar dos tópicos expostos no
currículo, como linhagens de estudos e teorias. O método empregado assenta-se na
proposta de execução e desenvolvimento do conteúdo para a finalidade pedagógica,
como abordagens e práticas. Por fim, o contexto histórico se apropria do momento da
história social para compreender melhor os aspectos curriculares analisados.

4 Resultados e discussão

De acordo com a metodologia aplicada, foram levantadas quatro categorias


sobre os currículos para o Ensino de Zoologia no Brasil, sendo elas: Oitocentista,
Positivista, Tecnocrática e Habilidades e Competências, as quais serão apresentadas
a seguir.

4.1 Categoria Tradicional Oitocentista

A primeira categoria fundamenta-se nos currículos do Colégio Imperial de


Pedro II, não havendo, documentalmente, qualquer discurso curricular para a
Zoologia. Todavia, o teor científico era bastante vasto e específico do conteúdo
zoológico estrito. O método empregado era o da repetição, que pode ser analisado
pelo trecho documental de 1857:

5º ano Latim: versão de autores mais difficeis, themas; inglez: composição,


conversa, aperfeiçoamento do estudo da lingoa; trigonometria rectilinea;
continuação, e repetição da chorographia e historia do Brasil; physica, e
repetição da botanica, e zoologia; grego; allemão, comprehendendo
apenas grammatica, versão facil. (Reforma nº 2006, 1857, p.1 grifo nosso)

O método de repetição era bastante comum no século XIX, pois se acreditava


que o aprendizado ocorreria pela simples reiteração exaustiva de um conteúdo
científico, isto é, repetir seria o meio para depreensão do material estudado e,
consequentemente, para a formação do conhecimento (ALMEIDA, 2018).

O contexto histórico embasa-se no Brasil Império, período no qual a educação


estaria sob a responsabilidade da coroa imperial. Vale lembrar que o processo
educativo não era público, sendo tão somente para classes superiores do Rio de
Janeiro (VECHIA, 2005). Desta forma, observa-se uma amplitude do conteúdo
6 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

científico, embora totalmente restrito socialmente.

Destarte, utilizou-se o termo Oitocentista como título categórico dado ao século


XIX. Este termo tradicional objetivou, até meados do século XX, instruir e atualizar a
elite sobre conceitos científicos debatidos nas esferas sociais acadêmicas, por meio
de acumulação de informações. Azevedo e Meirelles (2022) atribuem o currículo
oitocentista de Zoologia às pesquisas acadêmicas dos séculos anteriores, junto às
influências Portuguesa, Holandesa e Austríaca.

4.2 Categoria Positivista de Redescoberta

A Segunda categoria se baseia no Biological Science Curriculum Study


(BSCS), cujo discurso curricular era: Boa visão operacional do processo científico. A
narrativa centrada no cientista nos permite observar que o processo do ensino de
Zoologia e demais Ciências estaria ligado aos processos laboratoriais e de
redescoberta (AZEVEDO, SELLES e LIMA-TAVARES, 2016). Por sua vez, o conteúdo
científico se apresentou em três módulos, sendo um destes de aulas práticas,
chamadas de Investigação de estudos comparados, cujo escopo curricular consiste
em propostas de uso de animais para a experimentação (sapos, camarões, planárias,
hidras dentre outros).

O contexto histórico, presente nos BSCS, remonta à Guerra Fria, disputa não
armamentista que promoveu a corrida tecnológica em meados dos séculos XX entre
os Estados Unidos da América e a União Socialista Soviética (AZEVEDO, SELLES e
LIMA-TAVARES, 2016). São observados os contextos tecnológicos e a base científica
positivista, neste período. Compreende-se o positivismo como uma corrente filosófica
que promovia o conhecimento científico como única forma do conhecimento
verdadeiro, e que a veracidade só poderia ser comprovada perante a execução de um
método válido, de preferência quantitativo (TRINDADE, 2007). Por esse motivo,
utilizou-se a categoria Positivista de Redescoberta dada à escola filosófica, como
citado por Azevedo, Selles e Lima-Tavares (2016).

Vale lembrar que os BSCS são currículos importados dos Estados Unidos da
América (KRASILCHIK, 2019) e, deste modo, o roteiro experimental se torna a chave
para este modelo descrito, uma vez que a experimentação pelo método da
redescoberta é clássico dos currículos positivistas (FERNANDES e NETO, 2016).
7 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

4.3 Categoria Tecnocrática

A próxima categoria estabelecida está presente nos currículos SPIC-BIO e nos


CEB, denominada Tecnocrática. O discurso curricular apresentado no seu escopo se
baseia em: Condições para a aquisição de noções básicas (...) Auxílio na
profissionalização (...) vida universitária, para o SIPIC-BIO, enquanto para o CEB se
norteava em: fornecer ao estudante um texto que abrangesse, de maneira ampla, os
grandes ramos da biologia, com um destaque maior para os aspectos conceituais.
Tais narrativas, de acordo com Ferreira e Bittar (2008), se baseiam na formação de
um capital humano, o qual se propaga na formação direcionada para a mão de obra
de baixo custo, utilizando-se do termo tecnocrático.

O conteúdo científico foi apresentado de forma reduzida, o que é clássico nas


políticas tecnocráticas, as quais visam ao aprimoramento técnico em detrimento ao
acadêmico e social (FERNANDES e NETO, 2016; KRASILCHIK, 2019). São
observadas questões de completar e de memorização nos currículos de Zoologia do
SIPIC-BIO, enquanto, no CEB, encontram-se também características tecnocráticas,
contudo, com maior abrangência do conteúdo zoológico, como estudos de fauna,
zoologia cultural e conhecimento prévio do aluno. Porém, ainda há a superestimação
dos conceitos técnicos. Deste modo, estipula-se o modelo tecnocrático para ambos
os currículos de Zoologia, mas com uma decadência deste modelo para o CEB.

O contexto histórico apresentado para esta categoria é a ditadura militar. O


modelo tecnocrático ditatorial estimulava o conhecimento técnico da escola básica,
pois esta formaria a nova classe trabalhadora do país. Para Ferreira e Bittar (2008), o
ensino tecnocrático estimulou as propostas de aumento do PIB brasileiro, visto que a
oportunidade empregatícia da formação técnica seria estipulada para o crescimento
econômico da nação, utilizando-se do discurso progressista subordinando a educação
à lógica econômica.

4.4 Categoria Habilidades e Competências

Nesta categoria estão os currículos PCN’s e a BNCC (atual currículo brasileiro),


os quais articulam todo o documento curricular nos termos Habilidades e
Competências. Neste modelo de currículo, há temas base, a partir dos quais se
articulam discussões para, em seguida, se desenvolver um conteúdo específico
(GARCIA, 2005; KRASILCHIK, 2019).
8 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

O discurso curricular se fundamenta no desenvolvimento de competências,


compreensão do mundo e formação cidadã. No que se refere ao conteúdo científico,
este não se apresenta detalhado e instrutivo tal como os currículos antigos analisados,
e sim, se apresenta em eixos temáticos, sendo a Zoologia inserida no eixo Vida e
Evolução. Os PCN’s são os primeiros currículos desta análise a questionar a Zoologia
Classificatória e Morfofisiológica no Ensino de Zoologia ao citar na página 35: os
estudos zoológicos (ou botânicos), para citar outro exemplo, privilegiam a
classificação, a anatomia e a fisiologia comparadas.

No entanto, observa-se uma diferença no enfoque entre os PCN’s e a BNCC.


No conteúdo do PCN, a Zoologia encontra-se ligada a finalidades evolutivas e
ecológicas, enquanto, na BNCC há a prevalência da classificação e comparação
morfofisiológica dos seres vivos, ditando um contexto zoológico lineliano
(Classificação animal) e cuveriano (Morfofisiológico) respectivamente.

O momento, de acordo com a literatura, seria de movimentos pós críticos do


currículo. A teoria pós-crítica curricular apresenta a desconstrução do saber unilateral
e das metanarrativas, atribuindo valores multiculturais ao saber escolar (LOPES,
2013). Contudo, para o contexto histórico, precisamos diferenciar os PCN’s da BNCC,
pois, possuindo o mesmo modelo e estando na mesma categoria, o contexto histórico
contribuiu para a diferenciação curricular entre os dois documentos. Os PCN’s surgem
no auge das teorias pós-críticas de currículo, que defendiam a multiculturalidade e os
campos de debates curriculares (MACEDO, 2013). Já a BNCC, que é mais recente,
apresenta o contexto histórico da ascensão das políticas neoliberais, que estão
ligadas à mão de obra barata e ao trabalho técnico (BRANCO et al, 2018; BRANCO e
ZANATTA, 2021; COSTA e LOPES, 2018; GONÇALVES, MACHADO e CORREIA,
2020). Abaixo se encontra a sistematização das categorias encontradas (Quadro 2).

Quadro 2: Sistematização das categorias encontradas sobre o Ensino de Zoologia nos


currículos selecionados

Discurso Curricular Conteúdo Modelo Contexto


Currículos
para Ciências/Zoologia Científico Empregado Histórico
Zoologia Descritiva
Paleontologia
Zoológica
Método de Brasil
CDP (1837-1888) Não Apresenta Zoologia Geral
Repetição Império
Teratologia
Zoologia Filosófica*
(cortada em 1854) *
9 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

Classificação
animal e grupos
Modelo
Características dos
Boa Visão Operacional Científico de Guerra
BSCS (1962) animais
do processo científico p.5 redescoberta Fria
Investigação de
(Positivismo)
estudo comparado
(prática)
Condições para a
aquisição de noções Características dos
Modelo Ditadura
SPIC-BIO (1971) básicas (...) Auxílio na animais e grupos
Tecnocrático Militar
profissionalização (...) Classificação
vida universitária p1
fornecer ao estudante um
texto que abrangesse de Filogenia e Modelo
Final da
maneira ampla os taxonomia animal Tecnocrático
ditadura
CEB (1982) grandes ramos da Fisiologia animal com início
militar
biologia, com um comparada de
(1985)
destaque maior para os Estudo dos filos mudanças
aspectos conceituais p1
Ensino Fundamental I e
II- (...) para que o aluno
desenvolva competências
que lhe permitam
compreender o mundo e
atuar como indivíduo e
como cidadão, utilizando
conhecimentos de
natureza científica e
tecnológica. p.32
Ensino Médio- Eixo-Vida e Habilidades Teorias
PCN (1997-2002)
desenvolvimento de Evolução com e Pós
(Ciências
competências que enfoque evolutivo- Competênci Críticas de
Naturais/Biologia)
permitam ao aluno lidar ecológico as currículo
com as informações,
compreendê-las, elaborá-
las, refutá-las, quando for
o caso, enfim
compreender o mundo e
nele agir com autonomia,
fazendo uso dos
conhecimentos
adquiridos da Biologia e
da tecnologia. p.20
Eixo-Vida e
Habilidades
Evolução com Ascensão
BNCC (2017- e
Formação Cidadã crítica. enfoque de políticas
2018) Competênci
morfofisiológico e neoliberais
as
classificatório
Fonte: Os Autores
É necessário esclarecer que existem currículos formais os quais,
categoricamente, são complexos de elencar. No caso do CEB, categorizado como
tecnocrático, ele apresenta conteúdos que não são de cunho tecnicista, como a citada
Zoologia cultural. Porém, o currículo apresenta fortes ligações com a memorização,
logo, poderia figurar como uma transição entre o modelo tecnicista de seu antecessor
(SPIC-BIO) com seu sucessor (PCN). Ele se torna válido para a BNCC, que apresenta
10 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

o conteúdo de Zoologia direcionado unicamente para a classificação e morfofisiologia,


diferentemente do seu antecessor PCN que utilizava de mais propostas para
abordagem do conteúdo. Entretanto, ambos se apresentam na mesma categoria do
uso de Habilidades e Competências. Assim, a BNCC pode estar sendo um currículo
de transição do modelo atual (Habilidades e Competências) para um novo modelo
tecnicista (BOTH e BRITES, 2019; BORGES, 2020; DE OLIVEIRA e SANTI, 2021;
ESQUINSANI e SOBRINHO, 2020).

O fato de a BNCC estar ligada ao conteúdo tecnicista no modelo de Habilidades


e Competências não é novidade. Niz, Tezani e Persicheto (2020) desenvolveram
pesquisas acerca da alfabetização e do letramento científico, e concluem que mesmo
utilizando Habilidades e Competências, surge a emergência de uma proposta
tecnicista. Biondo et al. (2019) apontam relevâncias históricas, contextualização social
e o enfoque Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA), as quais foram
excluídas do escopo curricular para a área das Ciências da Natureza. Assim sendo,
para o Ensino Curricular de Zoologia, em um país com altos índices de diversidade
faunística, o conhecimento zoológico se tornaria puramente técnico e acrítico. Sendo
assim, um ciclo curricular para o Ensino de Zoologia estaria voltando a se tornar
tecnicista.

O discurso tecnicista da BNCC é uma característica neoliberal, posto que, neste


modelo, o sujeito é responsável pelo seu sucesso ou fracasso escolar por meio do
modelo meritocrático, no qual os melhores recebem mais verbas públicas e prêmios
(LAVAL, 2019; RORIZ, 2022).

5 Considerações finais

Comparando o processo da construção curricular e seus percursos, observou-


se que houve mutabilidades no decorrer dos séculos, e que as mudanças dos modelos
empregados podem estar diretamente ligadas ao período histórico remetente.

É possível compreender que o conhecimento zoológico partiu do século XIX


muito rico e complexo, e que foi sendo ressignificado durante a maior parte do século
XX. Entretanto, não podemos esquecer que a alta deposição conceitual do conteúdo
técnico-científico de Zoologia não era qualitativo. Todavia, há um cerne ligando o
conhecimento zoológico a um conhecimento muito técnico ou positivista como
demonstrado pelos BSCS, SIPIC-BIO e com início de prerrogativa no CEB.
11 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

Os PCN’s possuíram um auge paradigmático ao dissolverem o conteúdo


zoológico com as demais frentes disciplinares, tendo em vista que, até então, havia a
separação da Zoologia, Botânica, Genética e as demais em capítulos nos currículos.
Nos PCN’s a setorização dos conteúdos biológicos é quebrada e no lugar se propõem
eixos temáticos. Vale ressaltar que, também nos PCN’s, a problematização da
Zoologia lineliana e cuveriana são expostas.

Por sua vez, a BNCC, apresenta um escopo parecido com seu antecessor
PCN. Contudo, há uma limitação do discurso curricular e das propostas, retomando
um enfoque estritamente fisiológico, morfológico e classificatório. Deste modo, ao
compreender que as políticas neoliberais influenciaram as propostas curriculares
inseridas na BNCC, espera-se que o modelo tecnicista volte.

Isto posto, pode-se inferir que o Ensino de Zoologia curricular passou por quatro
fases. A fase oitocentista se caracterizou pela alta deposição de conteúdo zoológico
na história natural, enquanto a positivista possui como determinante o foco no
conteúdo técnico científico e nas experimentações laboratoriais presentes no escopo
curricular. Por sua vez, a tecnicista se fundamentou no momento de redução do
conteúdo zoológico, servindo como pilar de cursos técnicos, como, por exemplo,
agronomia, zootecnia etc. Na fase das Habilidades e Competências, o conteúdo da
zoologia se apresenta como sugestões, em contextos e temas de abordagem, e não
apenas um conteúdo zoológico em si, como ocorria em todas as demais fases
curriculares.

Todavia, se faz ressaltar que os PCN’s e a BNCC (Fase das Habilidades e


Competências) são propostas curriculares que embasam a construção dos currículos
nas escolas, diferente dos demais que já possuíam, em seu escopo, o conteúdo a ser
ministrado com textos, exercícios e aulas práticas. Assim, a BNCC, a qual é o
documento curricular vigente, sugere que a interpretação e inserção escolar
dependerá das instituições escolares brasileiras, além de suas imposições políticas
de implementação.

Finalizando, devemos, ainda, considerar que o currículo formal é apenas o


documento regimental em si. No ambiente escolar, existem outros determinantes que
influenciam a execução curricular, como os exames de avaliação nacionais, escolhas
governamentais, o currículo oculto, no qual estão alicerçadas as ideologias e a
construção da cultura escolar e até mesmo a concepção que o professor carrega
12 REnCiMa, São Paulo, v. 13, n. 6, p. 1-14, dez. 2022

consigo sobre a organização e validação dos saberes.

Referências
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