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SANTO AMBRÓSIO
(m. 397)

De nobre família romana, nasceu em Trévires. Aos 31 anos governava em Meio as províncias da Emília e
da Ligúria. Na vacância da sede episcopal da cidade, foi eleito bispo (pelo povo) embora ainda fosse
apenas catecúmeno. Recebeu então em breve prazo o batismo, a ordenação e a sagração episcopal. Sob a
direção do sacerdote Simpliciano, adquiriu boa cultura teológica e leu os principais autores gregos,
sobretudo Orígenes e são Basílio cujos escritos eram famosos. Conselheiro de várias imperadores, foi
também quem batizou santo Agostinho, para cuja conversão muito contribuíra.

Sua obra se destaca pela maneira, realmente admirável, como transmite a fé da Igreja. É autor de um
Comentário ao Gênesis 'de outro ao Ev. de são Lucas, de um trotado sobre os deveres dos ministros
eclesiásticos, de um sobre os sacramentos etc. Introduziu com êxito o canto na liturgia, sendo-lhe
atribuídos (mas nem sempre com certeza) vários hinos antigos, inclusive o Te Deum. Sua correspondência
é de importância para a história da época.

Ed. críticas em S.C. 25, 45, 52.

COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE SÃO LUCAS (1,28ss)


(P.L. 15, 1636-1643; S.C. 45)

A anunciação e a visitação

“E entrando onde ela estava, disse-lhe o anjo: Salve, cheia de graça! O, Senhor é
contigo! Bendita és tu entre as mulheres! Ela, porém, quando o viu, turbou-se com sua
presença”.

Reconhece a Virgem por seus costumes, reconhece a Virgem por seu pudor, reconhece
a Virgem no oráculo, reconhece no mistério. É próprio de uma virgem estremecer e
perturbar-se com a presença de um homem, temer falar com homem. Aprendam as
mulheres a imitar este pudor. Sozinha no interior da casa, apenas um anjo haveria de
encontrar aquela que homem algum veria; só, sem companhia; sã, sem testemunha, a
fim de não se macular no trato com as demais; é um anjo quem a saúda. Aprendei, o
virgens, a evitar a dissipação das palavras; Maria temia até mesmo a saudação de um
anjo.

“E ficou a cogitar que saudação seria aquela”. Perturbou-se, receou, acautelou-se, per
lhe causar admiração a estranha fórmula de uma bênção que antes ia mais ouvira, que
jamais lera. Era exclusivamente para Maria que se reservava esta saudação. Com razão
é dita, somente ela, “cheia de graça”, pois só ela obteve a graça que nenhuma outra
merecera, a de ficar repleta pelo Autor da graça.

Enrubesceu Maria como também Isabel, e vejamos que relação existe entre o pudor da
mulher casada e o pudor da Virgem: aquela enrubescia por ter motivo; esta, por seu
pudor. Em Isabel tem-se uma atitude de pudor, na Virgem a graça do pudor é
aumentada.

“Disse, porém, Maria ao anjo: - Como se fará isso, se não conheço varão?”

Pareceria aqui, se não se observasse atentamente, que Maria não acreditou. Seria lícito
julgar incrédula a eleita para gerar o Filho unigênito de Deus? Mas como Zacarías, não
crendo, seria condenado por seu silêncio, e Maria, igualmente não crendo, seria exaltada
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pela infusão do Espírito Santo? Já considerando a prerrogativa da maternidade, não se


iria pensar assim, pois à maior dignidade se devia reservar mais fé.

Todavia, nem convinha a Maria deixar de crer no anjo, nem usurpar temerariamente
mistérios divinos.

Não era fácil conhecer o mistério oculto há séculos em Deus, que nem as potências
angélicas podiam conhecer. Contudo, não negou sua fé, não recusou a missão, nas
acomodou o afeto e prometeu o assentimento. Pois quando disse: “Como se fará isso?”
não duvidava do que ia acontecer, indagava apenas o modo como aconteceria. E quanto
é mais prudente sua resposta do que a do sacerdote! Ela disse: “Como se fará isto?” Ele
respondera: “Como entenderei isto?” Ela já trata do assunto, ele ainda duvida da nova.
Nega-se ele a crer, pois diz não saber, e como que procura ainda outro testemunho para
o que é proposto à sua fé; ela promete cumprir o que lhe é anunciado, não duvida de que
se realizará, pergunta apenas de que modo possa realizar-se. Pois é assim que se lê:
“Como se fará isto, pois não conheço varão?” É que primeiro devia ser noticiada (a
geração admirável e inefável) para nela se poder crer. Uma virgem dando à luz é sinal
de mistério divina, não algo de humano. Enfim, “recebe para ti o sinal: eis que a Virgem
conceberá e dará à luz um filho” [Is 7,14]. Maria lera isso, crendo que aconteceria. Mas
de que modo? Não o lera, pois não tinha sido revelado ao profeta. O mistério de uma
missão tão grande haveria de ser proferido por boca angélica e não humana. Eis que
hoje pela primeira vez foi ouvido: “o Espírito Santo descerá sobre ti”. Alguém o ouviu e
creu.

Enfim, diz ela: “Eis a escrava do Senhor; faça-se em um, segundo a tua palavra”. Vede
que humildade, vede- que devoção! Diz-se escrava do Senhor a que é eleita para ser sua
Mãe. Não se exaltou com a inesperada promessa. Dizendo-se imediatamente escrava
não requeria para si nenhuma prerrogativa da grande graça: faria o que se lhe mandasse.
Vês a entrega. “Faça-se em mim segundo tua palavra”: é a expressão de uma entrega.
“Faça-se em mim segundo tua palavra”: é a expressão de um voto.

E com que presteza acreditou Maria ainda na estranheza da concepção! Pois que haveria
mais estranho do que referir o Espírito Santo ao corpo? Que mais inaudito do que uma
virgem gestante - até contra a lei, contra o costume, até contra o pudor, cujo cuidado é a
maior graça de uma virgem? Zacarias duvidou, não pela singularidade da condição, mas
por causa da idade senil. Com efeito, a condição era côngrua: de homem e mulher, o
parto provém como algo de normal, nada tendo de incrível: concorda com a natureza.
Pois sendo a idade condicionada pela natureza e não a natureza pela idade, acontece
geralmente que a idade estorva a natureza; não é, porém, irrazoável que uma causa
menor ceda à maior e uma prerrogativa da natureza, de dignidade maior, supere as leis
da idade. Eis por que Abraão e Sara receberam um filho na velhice e José foi também
filho da senilidade. Se Sara, por ter rido, foi repreendida, mais justamente se pune
aquele que, nem com o oráculo nem com o exemplo, acreditou. Maria porém quando
diz: “Como se fará isto, pois não conheço varão”, não manifesta ter duvidado do fato,
apenas interroga quanto ao redor do mesmo. Evidentemente cria que se realizaria, pois
indagava como se faria. Mereceu pois ouvir: “Bem-aventurada tu que creste!”
Verdadeiramente bem-aventurada e mais digna que o sacerdote: ele recusou-se a crer, a
Virgem. reparou a falta.
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Nem é de se admirar que o Senhor, havendo de remir o mundo, tenha começado sua
obra por Maria: para que primeiro haurisse da salvação aquela por meio de quem a
salvação se preparava para o mundo.

Foi com razão que indagou sobre o modo como se faria; pois lera que uma virgem ia
gerar, mas não como geraria. Lera, como acima: “Eis que uma virgem conceberá no
seio”. Mas, como isso se daria, foi o anjo no Evangelho que por primeiro o disse.

“Levantando-se Maria naqueles dias, foi para a montanha, pressurosa, para uma
cidade de Judá, e entrando em casa de Zacarias, saudou Isabel”.

Geralmente os que exigem fé em algo dão um sinal para o que propõem. E assim, o anjo
ao anunciar o mistério, querendo confirmar por um exemplo a veracidade do que dizia,
noticiou à Virgem a concepção de uma mulher anciã e estéril, mostrando ser possível a
Deus tudo o que lhe apraz.

Maria, ao ouvi-lo, não ficou a duvidar do oráculo, nem da certeza da nova ou da


possibilidade do exemplo aludido, iras como que alegre pelo desejo que manifestara,
religiosa no cumprir seu dever, pressurosa de júbilo, partiu para a montanha! Para onde,
aliás, iria, senão, pressurosa, para as alturas, aquela que já estava plena de Deus? A
graça do Espírito Santo não conhece empresas vagarosas. Aprendei também vós,
mulheres santas, o zelo que deveis ter para com vossas parentes gestantes!

O pudor de virgem não desviou do público a mesma Virgem Maria que antes morava
nos recessos da casa, a aspereza dos montes não a dissuadiu de sua resolução, a
dificuldade da viagem não a impediu de prestar com solicitude seu serviço. Deixando a
casa, partiu para a montanha, pressurosa, lembrando-se de seu serviço, não
considerando a injúria que sofria seu recato, premida por seu afeto! Aprendei, virgens, a
não vaguear por casas alheias, a não demorar rias praças, a não buscar conversas em
público!

Maria, que demorava quando em casa e se apressava quando em público, permaneceu


com a prima três nesses. Viera para prestar ser viço, aplicou-se a seu dever. Permaneceu
lá três meses, não que a casa alheia lhe agradasse, mas porque lhe desagradava
freqüentar o público.

Vistes o pudor de Maria, virgens; aprendei sua humildade! Vem visitar sua parenta, a
mais jovem procura a mais idosa; e não só vem, mas saúda-a por primeiro, pois quanto
mais casta a virgem tanto mais humilde deve ser. Aprendei a honrar as mais velhas!
Seja mestra de humildade quem faz profissão de castidade!

Nessa visita de Maria há uma razão de piedade e também uma instrução para nós.
Observe-se quem é maior vindo ao menor para auxiliá-lo: Maria vem a Isabel, Cristo a
João. E também por isto vem mais tarde o Senhor ao batismo, para santificar o batismo
de João.

Como que simultaneamente, no Evangelho, se exprimem a chegada de Maria e os


benefícios da presença do Senhor. “Ao ouvir Isabel a saudação de Maria, exultou o
menino em seu seio. E ficou cheia do Espírito Santo”. Observem-se a diferença e o
sentido próprio de cada palavra. Isabel ouviu primeiro a voz da saudação, mas João
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sentiu primeiro a graça. Ela ouviu na ordem natural, ele exultou ante o mistério; ela
sentiu a chegada de Maria, ele a do Senhor; o penhor sentiu o Penhor. As duas. falam da
graça; eles a operam interiormente e começam em proveito de suas mães um mistério de
piedade filial; por um duplo milagre profetizam as mães por inspiração dos filhos. O
menino exultou de alegria, a mãe ficou plena do Espírito Santo. Não o ficou antes do
filho, mas enchendo-se o filho com o Espírito Santo, mereceu-o também para sua mãe.
João exultou de alegria e também o espírito de Maria exultou. Ao exultar João, Isabel se
enche de Espírito Santo; a respeito de Maria, porém, não leir--os que tenha ficado cheia
do Espírito Santo, mas apenas que exultou seu espírito: o Incompreensível operava de
modo incomparável em sua Mãe.

Isabel se enche do Espírito Santo, após conceber, Maria antes.

“Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre. E donde me é dado


que a Mãe do meu Senhor venha a mim?”

O Espírito Santo conhece as palavras que usa, não as negligencia. E a profecia se


cumpre não só nos milagres concretos, mas igualmente na propriedade das palavras.

Quem é esse fruto do ventre, senão aquele de quem foi dito: “eis como herança do
Senhor os filhos, o fruto do ventre é uma recompensa” [Sl 126].

Quer dizer, os filhos são uma herança do Senhor, são uma recompensa daquele fruto
que saiu das entranhas de Maria. Foi sobre o fruto do ventre, sobre a flor da raiz, que
Isaías profetizou, dizendo: “sairá uma vara da raiz de Jessé e uma flor subirá de sua
raiz”.

A raiz é a família dos judeus, a vara é Maria; a flor de Maria, o Cristo, o qual, cone fruto
de uma árvore boa, floresce agora no crescimento de nossas virtudes, frutifica em nós
agora, é restaurado na ressurreição que vivifica o nosso corpo.

“E donde me vem que me visite a Mãe de meu Senhor?”

Isabel não o diz ignorando o motivo, pois sabe ser por graça e obra do Espírito Santo
que, come, mãe do profeta, é saudada em proveito dele, pela Mãe do Senhor. Mas para
significar que não é por seu mérito humano, e sim por dom da divina graça que isto
ocorre, diz: “Donde me vem?”, isto é: Donde me vem que receba o bem tão grande de
uma visita da Mãe de meu Senhor? não reconheço em mim mérito algum. Donde me
vem? Por que obras de justiça, por que feitos, por que méritos?

Não é usual entre mulheres um tratamento como este: “para que venha a mim a Mãe de
meu Senhor”.

Percebo o milagre, reconheço o mistério: a Mãe do Senhor, que traz o Verbo em seu
seio, está repleta de Deus!

“Pois ao se fazer ouvir a voz de tua saudação em meus ouvidos, exultou de alegria a
criança em meu ventre; e bem-aventurada tu que creste”.

Vê-se que Maria não duvidou, mas creu, e por isto obteve o fruto de sua fé.
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Bem-aventurada tu que creste, disse Isabel. Mas também vós seis bem-aventurados, vós
que ouvis e credes; pois todo o que crê concebe e gera o Verbo de Deus em sua alma e
conhece as suas obras.

Esteja em cada um de vós a alma de Maria, a engrandecer ao Senhor; esteja em todos


vós o espírito de Maria, a exultar em Deus. Se, pela carne, uma só é a Mãe de Cristo,
pela fé o Cristo é fruto de todos. Pois a alma, qualquer que seja, recebe o Verbo de
Deus, desde que seja imaculada e isenta de vícios, guardando com intangível pudor sua
castidade. Toda a alma assim, engrandece ao Senhor como a alma de Maria, que
enalteceu o Senhor, corno o espírito de Maria, que exultou em Deus seu Salvador. Com
efeito, o Senhor realmente é engrandecido, conforme se lê em outro lugar: “engrandecei
o Senhor comigo!” [Sl 33]. Não que lhe possa ser algo acrescentado, mas porque em
nós é engrandecido. Cristo é a imagem de Deus; e se a alma fizer algo de justo ou
religioso, engrandece a imagem de Deus à cuja semelhança foi criada. Enaltecendo-o,
torna-se mais sublime por participar da grandeza dele, e parece exprimir a sua imagem
com a cor esplendorosa dos bons atos e o zelo da virtude. A alma de Maria, porém,
engrandece ao Senhor e seu espírito exulta em Deus, porque Maria, devotada em alma e
espírito ao Pai e ao Filho, venera com piedoso afeto o Deus único de quem tudo
depende, o único Senhor, por quem tudo é.

Verifica-se em Maria que quanto mais excelente é a pessoa, tanto mais rica a sua
profecia.

Não por acaso Isabel profetiza antes do nascimento de João, e Maria antes da geração
do Senhor. já preludiam os esboços de salvação do gênero humano. Assim como o
pecado começou pelas mulheres, também os bens começaram pelas mulheres; para
também elas deporem suas obras femininas e renunciarem a toda fragilidade; e para que
a alma, que não tem sexo, como Maria que não tem pecado, imite zelosamente seu
exemplo de castidade.

“Maria permaneceu com ela três meses; e voltou para sua casa”.

Com razão se faz constar que santa Maria desempenhou o seu ofício de caridade durante
um místico número. Não ficara todo esse tempo só por causa do parentesco com Isabel,
mas para o aproveitamento do grande profeta. Porque, se à sua simples entrada na casa
de Zacarias se seguira um benefício tão grande que o menino exultou no seio materno e
a mãe se encheu do Espírito Santo, que bens não julgaremos advieram da presença tão
prolongada de santa Maria?

O profeta era santificado, e, como bom atleta, exercitava-se no seio materno. Preparava-
se, na verdade, para um renhido combate.

C. Folch Gomes. Antologia dos Santos Padres. 2 Edição. São Paulo, Edições Paulinas,
1979. pp. 307-312.

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