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Capítulo 5

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Relações étnico-
-raciais no Brasil

O capítulo busca compreender, no primeiro tópico, as diferentes in-


terpretações a respeito da formação étnica e social no Brasil, destacan-
do-se, na geração de 1930, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda,
por buscarem explicações que se distanciam dos estereótipos e visões
preconceituosas predominantes desde o final do século XIX. Veremos
que há contradições no pensamento de Gilberto Freyre, porque, apesar
de combater teorias alheias às explicações de cunho cultural da for-
mação da sociedade brasileira, acaba por criar o que se convencionou
chamar de democracia racial, como se no Brasil não houvesse racismo.
Sérgio Buarque irá se opor a Gilberto Freyre, cunhando o conceito de cor-
dialidade, espécie de hipocrisia repleta de afetuosidade que mascara as

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relações de conflito no Brasil, entre elas o racismo. Florestan Fernandes,

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Darcy Ribeiro, Oracy Nogueira, Abdias Nascimento e Clóvis Moura são
autores que contribuíram também, no século XX, para a compreensão
da formação da cultura brasileira e crítica ao mito da democracia racial
no Brasil.

Em seguida, estudaremos o processo de escravização de indígenas


e negros no Brasil, desde o período colonial, e qual foi o seu reflexo na
composição social contemporânea brasileira. Trata-se de um tema im-
portante para observarmos aspectos que nos permitirão estudar, no úl-
timo tópico, a presença do racismo estrutural, tema hoje presente nas
análises políticas e sociais do movimento negro ao avaliar de maneira
crítica o racismo à brasileira e reivindicar a aquisição de direitos e con-
quistas voltados à cidadania.

1 Formação da cultura brasileira: uma visão


histórico-crítica
Na segunda metade do século XIX, a literatura foi pioneira no Brasil
na tentativa de compreender a identidade, a constituição étnica e social
nacional. Repleto de distorções históricas, o romance indianista atribuía
aos indígenas a concepção do bom selvagem de Rousseau. José de
Alencar (1829-1877), maior expressão dessa fase da literatura românti-
ca no Brasil, na obra O guarani (1857), relaciona os indígenas ao estado
de natureza, vendo nos índios virtudes como bravura, coragem, pureza
e bondade naturais. O índio tornou-se o símbolo do homem brasileiro.
Tratava-se de uma visão idílica, advinda de interpretações que vinham
da Europa e apenas lá tinham significado, não correspondendo à reali-
dade dos indígenas.

Na passagem do século XIX para o XX e contra essas relações for-


çosas elaboradas pelo romance indianista, Silvio Romero (1851-1914)
escreveu, entre 1888 e 1902, a obra História da literatura brasileira (1901),

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primeiro compêndio reunindo análises e classificações da literatura des-
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de a colonização, passando pela crítica aos autores românticos, e tam-


bém primeira coleta de narrações, contos, folclore e histórias da cultura
popular, muitas delas de origem indígena e africana. No entanto, a obra de
Romero está repleta de análises evolucionistas e positivistas. Segundo
o autor, o Brasil é constituído por três raças: negros, europeus brancos
e indígenas, e observa-se entre negros e indígenas certa inferioridade,
devendo haver o predomínio branco no processo de miscigenação.

PARA SABER MAIS

Do século XIX até a primeira metade do século XX, predominavam vi-


sões etnocêntricas positivistas e evolucionistas. Comte (1798-1857),
autor da frase “ordem e progresso”, afirma a superioridade europeia de-
vido às revoluções industriais, científicas e políticas, de modo que os
demais povos seriam atrasados. O evolucionismo estava inspirado no
darwinismo social, concebia que os europeus e brancos eram biologica-
mente superiores, devido também às condições climáticas de seu con-
tinente, e os outros povos eram considerados primitivos, selvagens ou
bárbaros, todos intelectualmente inferiores.

Essas visões preconceituosas eram comuns no mundo e no Brasil


dos séculos XIX e XX. Estiveram também presentes, por exemplo, nas
interpretações da formação de nossa sociedade por Nina Rodrigues
(1862-1906) e Oliveira Viana (1883-1951). Rodrigues, médica e antro-
póloga, na obra As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil
(1894), apresenta uma visão racista e eugenista, considerando os seg-
mentos negros e indígenas da sociedade biologicamente inferiores e
propensos à criminalidade. Concebe a necessidade de dois sistemas
penais, um para brancos, outro para negros, em virtude da inferioridade
intelectual dos últimos. Além disso, tomava como principal motivo do
atraso social brasileiro o excessivo número de negros e indígenas, defen-
dendo que houvesse um processo ou uma política de branqueamento do

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povo, leitura compartilhada na obra Evolução do povo brasileiro (1923),

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de Oliveira Viana. É importante atentar para o fato de que, quando procu-
ramos classificar o comportamento humano, as hierarquias sociais e o
papel ou a ocupação de cada indivíduo na sociedade com justificativas
apenas biológicas, há o risco de incorrermos em visões preconceituo-
sas, racistas, reducionistas e tomadas hoje como anticientíficas.

A obra Os sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909), repre-


senta no Brasil a primeira oposição às visões positivistas e evolucionis-
tas. O livro está repleto de contradições, pois suas análises têm como
ponto de partida concepções que o autor depois irá criticar, sobretudo
no final do próprio livro. Euclides descreve primeiro como as condições
geográficas e climáticas determinam o grau de inferioridade do serta-
nejo, relegado à seca. No entanto, o autor presenciou, como jornalista, o
genocídio de sertanejos em Canudos cometido pelo Exército brasileiro.

A Guerra de Canudos ocorreu entre 1896 e 1897, quando os serta-


nejos seguiam o líder espiritual Antônio Conselheiro, favorável ao re-
torno da monarquia e contrário à República, defendida pelo Exército.
Conselheiro atraía seguidores que buscavam se afastar da miséria e
do desalento. Euclides descreve os sertanejos como resultado da mis-
cigenação entre indígenas e negros, estes últimos recém-libertos; todos
eles viviam à mercê do poder de coronéis e senhores de terra, que domi-
navam diferentes municípios nordestinos. Militares e a opinião pública
viam nos sertanejos o reflexo de segmentos sociais primitivos, atrasa-
dos e contra a República, o que servia de álibi para a intervenção militar.
Euclides, antes de presenciar o conflito e viajar para Canudos, concor-
dava com essas visões ditas “civilizadas”. Mas em Os sertões acaba por
reverter essas concepções racistas quando, diante do extermínio, se dá
conta de que na verdade quem se apresentava como a barbárie eram os
militares, passando a enxergar o sertanejo como “um forte”, resistente
às condições climáticas e capaz de organizar uma cultura própria e re-
pleta de significados apesar do meio em que vive.

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O movimento artístico modernista brasileiro ganhou maior destaque
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na Semana de 1922 e buscou a construção da identidade nacional. Na


pintura, destacam-se Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral
(1886-1973). Na literatura, Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de
Andrade (1890-1954). Macunaíma, de Mário, e o Manifesto antropófa-
go, de Oswald, ambos publicados em 1928, procuravam representar o
Brasil a partir da combinação entre o moderno e o rural, o branco, o índio
e o negro, valorizando o sincretismo que constitui a cultura nacional e
que lhe dá um caráter único. Por isso, Oswald (ANDRADE, 2017) anun-
cia uma antropofagia, que na sua obra significa incorporar ou devorar
elementos de outras culturas e gentes, principalmente a europeia, a in-
dígena e a africana, dando origem a uma cultura nova.

Atribui-se a Gilberto Freyre (1900-1987) a primeira tentativa genui-


namente sociológica de interpretação da formação social brasileira,
porque ele abandona definitivamente as visões evolucionistas e positi-
vistas, ou seja, não busca analisar a constituição da sociedade a partir
de critérios naturalistas. Casa-grande & senzala (1933) é uma obra que
trouxe uma série de inovações. Freyre é um dos pioneiros no mundo
na realização de estudos sobre a vida privada e empregou em sua obra
uma linguagem dotada de regionalismos do Nordeste, rompendo com o
linguajar mais científico e acadêmico de seus antecessores positivistas.

Freyre negava a noção de que um povo seria biologicamente supe-


rior ao outro, devendo cada sociedade ser estudada a partir de suas
especificidades culturais e da sua relação com o ambiente à sua volta.
O autor incorpora o relativismo cultural de Boas, traduzido não apenas
na suspensão dos juízos morais (não há sociedade superior ou inferior,
pois esses são valores etnocêntricos), mas também na sua atitude deli-
berada de não criticar a escravidão no Brasil. É nesse ponto que encon-
tramos a oposição que diferentes autores (Sérgio Buarque, Florestan
Fernandes, Abdias Nascimento e Clóvis Moura) farão ao pensamento
de Freyre, posto que ele apresenta uma explicação nostálgica do em-
preendimento colonial português desde a descoberta do Brasil. O autor

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procura demonstrar que a colonização acabaria por ser um sucesso,

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julgando que a escravidão no Brasil teria sido, nas suas palavras, “ado-
cicada”, capaz de “apaziguar conflitos”, de modo que consolidou a “de-
mocratização social” (FREYRE, 1998, p. 46) por meio das relações afe-
tuosas entre a casa-grande (habitação dos senhores) e a senzala (onde
viviam aprisionados e amontados seus escravos). É a partir da moral
das senzalas que se cunhou a noção de democracia racial, concepção
segundo a qual inexiste o racismo no Brasil.

Casa-grande & senzala inicia o seu percurso afirmando a existência


da plasticidade portuguesa ainda na Europa pré-colonial. Portugal era
visto como a porta de entrada da Europa, um país habituado ao contato
com diferentes culturas e civilizações. Quando os portugueses iniciam
as Grandes Navegações, principalmente por volta de 1400 d.C. e após
expulsar os mouros de parte da Península Ibérica, procuram explorar a
costa do continente africano. Acostumados com o contato cultural com
outros povos, facilmente habituam-se à cultura dos indígenas, havendo
casamentos, as primeiras miscigenações e o entrelaçamento de ele-
mentos culturais. Com a expansão da produção do açúcar no Nordeste
no final do século XVI, os engenhos passaram a empregar mão de obra
escrava negra sequestrada da África. A vida colonial fundamentava-se
no latifúndio, na escravidão e no patriarcado. Os senhores de terra ti-
nham poder absoluto em suas propriedades, podendo julgar, castigar
ou absolver todos os seus subordinados, conforme seus caprichos
pessoais. Paradoxalmente a tudo isso, Freyre apresenta argumentos
hoje considerados sádicos e racistas, considerando que a miscigena-
ção entre brancos e negros foi pacífica e harmoniosa. Promove, ain-
da, a sexualização e objetificação da mulher negra no imaginário social
elitista, relativizando inclusive, com um discurso afetuoso, a violência
contra os escravos, além de parecer lamentar o fim da vida colonial e
da escravidão.

[...] trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava


ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos

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deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida.
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Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de


mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-do-pé
de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos
transmitiu, ao ranger da cama do vento, a primeira completa sensa-
ção de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro
de brinquedo. (FREYRE, 1998, p. 343)

Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) publicou a obra


Raízes do Brasil, livro dedicado a analisar o processo de formação
da sociedade brasileira. De forma distinta de Gilberto Freyre, buscou
uma interpretação crítica do processo colonial e pós-proclamação da
República, renunciando à postura nostálgica ou otimista sobre as bases
coloniais e rompendo com as teorias positivistas e evolucionistas.

O autor procura demonstrar que, apesar da plasticidade portuguesa,


o processo de dominação de índios e depois de negros escravos foi
violento e marcado pelo personalismo, ou seja, pela supervalorização
de traços autoritários individuais e ao mesmo tempo afetuosos dos se-
nhores de terras. A vida no engenho garantia o total domínio do senhor
sobre suas terras e escravos.

Quando houve a independência (1822) e, depois, a proclamação da


República (1889), o Estado brasileiro mostrou-se uma mera extensão da
vida privada e dos interesses pessoais dos grandes proprietários rurais,
evidenciando uma diferença gritante em relação aos processos históri-
cos de outras nações, que procuraram separar os interesses públicos
dos privados, além de enaltecer leis que criassem igualdade jurídica ou
mesmo a sobreposição do meio urbano sobre o rural. No Brasil, ocorreu o
inverso; o Estado e as instituições públicas mantiveram os privilégios co-
loniais dos senhores, pouco atendendo aos interesses do povo. O Estado
mantém a tradição colonial na qual todas as ações giram em torno de
interesses e caprichos pessoais dos proprietários de terras. Quando o
Estado se organiza e opera sem distinguir a esfera privada (ou familiar)
dos interesses públicos, falamos em patrimonialismo. Sérgio Buarque

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percebe a manutenção de uma ordem social arcaica com familiares das

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elites rurais perpetuando-se no aparelho estatal e longe de produzir o
bem comum. Soma-se a esses aspectos o que o autor denomina ho-
mem cordial, ou cordialidade, fruto das relações afetuosas, personalis-
tas, mas ao mesmo tempo violentas, que têm origem no poder patriarcal
dos fazendeiros. Há um caráter de hipocrisia social na cordialidade.

O principal argumento de Sérgio Buarque é o de que o brasileiro se


diferencia de outros povos devido à sua cordialidade. Ser cordial não
significa ser bondoso, caridoso ou sempre amável. O termo “cordial”
vem do latim cordis e significa “aquilo que vem do coração” ou “agir com
o coração”, isto é, pertence à ordem dos afetos. Isso quer dizer que é
possível ser cordial com o inimigo, ou seja, agir de modo disfarçado ou
mascarado, camuflando relações de oposição social por meio de um
comportamento mais afetuoso ou simplesmente cordial.

O conceito de cordialidade implica na crítica à obra de Gilberto Freyre,


que observou a colonização brasileira como harmoniosa, democrati-
zante, a partir do personalismo do senhor de terras. Freyre apresenta
um documento da barbárie ao amenizar o escravagismo, mascara rela-
ções violentas inerentes à escravidão de negros no Brasil com discurso
afetuoso, cordial.

Para Sérgio Buarque, embora as relações mais afetuosas pareçam


ser mais dóceis e amigáveis, são elas também que permitem o masca-
ramento de relações sociais como o racismo, os preconceitos sociais e
até mesmo a aceitação passiva da corrupção, combinação de interesses
públicos e privados, ou de atos que restrinjam os direitos individuais dos
cidadãos. A cordialidade cria relações mais pessoais, torna o brasileiro
avesso ao excesso de formalidades e hierarquias sociais, mais adepto
às relações mais pessoais, familiares e íntimas, que acabam camuflan-
do violências ou atitudes que criam exceções para as regras coletivas.

Por isso, inspirado no conceito de cordialidade, Roberto da Matta


(1936-), em Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema

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brasileiro, obra publicada em 1979, reflete sobre o jeitinho brasileiro, a
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malandragem e mesmo as chamadas “carteiradas”. Da Matta compa-


ra, por exemplo, uma eventual desavença que aconteça entre indivídu-
os em nações como Inglaterra e Estados Unidos (onde há princípios e
construções históricas em torno da igualdade jurídica e maior tradição
do exercício da cidadania) e no Brasil (onde predomina o personalismo,
relações mais familiares e pouco formais).

No primeiro caso, nos Estados Unidos e na Inglaterra, Da Matta


(1997) afirma que um indivíduo provavelmente diria ao outro: “Quem é
você para falar assim comigo?”, ou seja, diante de leis que tornam todos
os indivíduos iguais, por qual motivo um deveria tirar vantagem sobre
o outro ou desrespeitar algum princípio coletivo? Esse espírito cívico,
descrito por Alexis de Tocqueville (1805-1859) na obra A democracia na
América (1835), revela o grau de organização política dos povos saxões
em torno de sua cidadania. No Brasil, ao contrário, no caso de alguma
discussão, um sujeito provavelmente diria ao outro: “Você sabe com
quem está falando?”. Perceba que nessa frase há a ideia de que o indi-
víduo é superior às leis ou instituições, dando a entender que, pelo fato
de ter relações próximas, familiares ou de amizade, com pessoas con-
sideradas importantes, como delegados, políticos, juízes, policiais, etc.,
seria possível transgredir a lei ou tirar vantagem de qualquer situação,
evidenciando-se assim o personalismo. Revela-se dessa forma como
muitos no Brasil buscam as exceções às regras, o que permite relacio-
nar a cordialidade com o jeitinho e a malandragem brasileiros.

PARA PENSAR

Procure em reportagens de revistas, jornais e sites situações na política


ou na vida social que permitam identificar o conceito de cordialidade
relacionado ao que se entende por jeitinho e malandragem.

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Críticas à obra de Gilberto Freyre foram também realizadas pelo soci-

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ólogo Florestan Fernandes (1920-1995). Florestan, na obra A integração
do negro na sociedade de classes (1965), afirma que Freyre elaborou o
mito da democracia racial brasileira. Trata-se de um mero discurso in-
compatível com a realidade vivida pela população negra (FERNANDES;
BASTIDES, 2008). Freyre é acusado de ter observado a senzala do con-
forto e do alto janela da casa-grande, desconsiderando, portanto, as
reais condições de exploração da população negra escravizada e a vio-
lência que lhe foi imposta. Ignora também os castigos, as condições de
humilhação e insalubridade da vida das senzalas.

Abdias Nascimento (1914-2011) publica, em 1978, a obra O genocídio


do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, na qual afirma
que a tese da democracia racial no Brasil expressa um racismo velado,
apresentando caráter genocida, cujo pano de fundo é o processo de bran-
queamento da população. Clóvis Moura (1925-2003), na obra O negro: de
bom escravo a mau cidadão? (1977), considera o mito da democracia ra-
cial um instrumento ideológico que procura apaziguar a população negra
para limitar sua ação política e luta por direitos e cidadania. Assim como
Abdias Nascimento, Clóvis Moura relaciona o mito criado por Freyre com
o discurso que procura estabelecer, no Brasil, o branqueamento progres-
sivo operado pela miscigenação da sociedade brasileira. Vê-se a existên-
cia, nesses autores, de uma oposição à crença de que a formação da
sociedade brasileira teria culminado numa espécie de paraíso racial.

Em 1942, Caio Prado Jr. (1907-1990) publica Formação do Brasil con-


temporâneo, obra com ênfase em aspectos econômicos. É considerada
a primeira interpretação marxista da formação do Brasil, procurando
compreender as suas especificidades em relação a outras sociedades.
Caio Prado destaca que, mesmo com a independência e após a procla-
mação da República, o Brasil manteve aspectos econômicos e sociais
arcaicos e coloniais, ou seja, estava atrelado ao fornecimento de produ-
tos agrícolas para o mercado estrangeiro, com uma produção baseada
no latifúndio, na monocultura e no emprego de mão de obra escrava e,

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depois, no início do século XX, de mão de obra livre, porém miserável
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(PRADO JR., 1973). O autor compreende que o fim da escravidão aca-


bou por produzir uma população não integrada à economia e aos direi-
tos, desarticulada, constituindo o que denomina como setor inorgânico.
Este vive à mercê dos senhores oligárquicos, clã patriarcal e patrimonia-
lista, que se consideram donos dos espaços públicos, correspondendo
ao chamado setor orgânico.

Raymundo Faoro (1925-2003) apresenta, no livro Os donos do poder:


formação do patronato político brasileiro (FAORO, 1975), as heranças do
Estado patrimonialista português colonial na formação de instituições
políticas no Brasil. Identifica a existência do estamento burocrático, eli-
tes políticas e econômicas que historicamente se perpetuam nas ins-
tituições públicas por meio de laços familiares, de amizade e troca de
favores, que levam essas instituições a manterem interesses privados.
Esse estamento burocrático, verdadeiro dono do poder, goza de privilé-
gios sociais e econômicos quase sempre hereditários, fornecidos pelo
próprio Estado, enquanto a maioria da população encontra-se margina-
lizada. Parentes das elites se perpetuam nos cargos públicos, geração
após geração, tornando o Estado brasileiro promotor de privilégios a um
pequeno grupo oligárquico.

A revolução burguesa no Brasil, texto publicado em 1975 por Florestan


Fernandes, apresenta as contradições da formação social brasileira.
Sobre a base da monocultura e do latifúndio voltado para exportação
e da mão de obra escrava no período colonial, Fernandes (1975) tam-
bém se depara com o patrimonialismo, percebendo que nossas elites
impulsionaram modificações políticas com a intenção de manter seus
privilégios, o que corresponde a um “progresso dentro da velha ordem”
(FERNANDES, 1975). As reformas políticas, como a independência, a
abolição da escravidão, a proclamação da República, a ditadura varguis-
ta ou mesmo o golpe de 1964, foram instituídas de cima para baixo
pelos segmentos privilegiados, que acabaram por fomentar uma mo-
dernização conservadora.

Relações étnico-raciais no Brasil 109


No século XX, a industrialização brasileira teve como base econômi-

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ca recursos oriundos da acumulação de riquezas da produção de café
no estado de São Paulo. A formação do nosso capitalismo seguiu uma
direção diferente do caminho traçado pelas burguesias europeias e nor-
te-americanas, pois estas procuraram o desenvolvimento econômico
ao valorizar a competitividade do setor privado e a negação da interven-
ção do Estado na economia. No Brasil, nossa burguesia foi dependente
do Estado, pouco afeita a promover de modo independente o processo
de industrialização ou o crescimento econômico, e Fernandes (1975)
indica a necessidade de mudança de mentalidade de nossa burguesia
para produzir desenvolvimento econômico e social. Essa mudança cor-
responderia não somente à criação de uma burguesia madura e autô-
noma, mas também ao abandono de traços conservadores e arcaicos
que acabam por atrelar aos trabalhadores assalariados no século XX
condições de subsistência próximas à da escravidão.

Darcy Ribeiro (1922-1997) escreveu a última das grandes interpre-


tações da formação social com o livro O povo brasileiro, publicado em
1995. Ribeiro (2013) enfatiza os intercâmbios culturais desde a coloni-
zação – primeiro entre indígenas e portugueses, depois entre negros
escravizados e portugueses, sem negligenciar que consistiram em um
processo marcado pela violência e pelo genocídio dos escravizados.
Procura analisar a contribuição das três culturas (indígena, negra e euro-
peia) em diversos âmbitos da vida social, como a alimentação, a lingua-
gem, as vestimentas e a organização política e social. Por se tratar de
uma obra escrita no final do século XX, apresenta um teor um tanto es-
perançoso ou otimista, mostrando que, apesar das contradições sociais
e do histórico de arbitrariedades contra escravos e demais trabalhado-
res, o Brasil, em termos de convívio entre as culturas, poderia servir de
exemplo ao mundo. Ribeiro considera a necessidade de superação do
racismo e a urgência de transformações sociais, julgando haver, por
meio do intercâmbio cultural entre diferentes povos no Brasil, uma nova
civilização em fase de germinação, que nomeia como Nova Roma – o

110 Ética, cidadania e sustentabilidade


império romano foi longevo justamente porque soube incorporar outros
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povos, produzindo sincretismos e servindo como base de formação cul-


tural para outras sociedades até hoje.

2 O processo de escravização de indígenas


e africanos e seus reflexos na formação da
cultura brasileira
A colonização portuguesa no Brasil efetivamente estabeleceu-se a
partir de 1534, quando colonos passaram a ocupar as capitanias here-
ditárias, com a exploração de açúcar e a retirada da árvore pau-brasil,
principalmente nas regiões litorâneas. Foi instituído o uso de mão de
obra escrava indígena, geralmente aprisionada por meio de alianças en-
tre os colonos e algumas sociedades indígenas que rivalizavam com
outras. No século seguinte, bandeirantes promoviam expedições autô-
nomas, isto é, sem apoio da Coroa portuguesa, em direção ao interior
do Brasil atrás de pedras preciosas e escravos índios. Os portugueses
expulsavam os nativos de suas terras e capturavam indígenas, vítimas
de violências e genocídio.

Os colonos portugueses contestavam a presença das missões jesu-


ítas, que tinham o objetivo de catequizar os indígenas. Os missionários,
presentes no Brasil a partir de 1549, embora fossem contra a escravi-
dão dos índios, promoviam a aculturação destes, ou seja, exigiam que
abandonassem suas crenças tradicionais e os levavam a se converter,
aprender o idioma do colonizador e aceitar a introjeção de valores cris-
tãos e europeus. Quando não escravizados pelos colonos ou catequiza-
dos pelos missionários, os povos indígenas eram dizimados com vírus e
doenças vindas da Europa, como o sarampo, a varíola e a gripe.

Na passagem do século XVII para o XVIII e pressionados pelos jesu-


ítas, que afirmavam a humanidade e a boa alma dos indígenas, a Coroa
e os colonos se submeteram às exigências da Igreja, de modo que a

Relações étnico-raciais no Brasil 111


escravidão e a morte de índios passaram a ser permitidas apenas em si-

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tuações que caracterizavam as chamadas guerras justas, ou seja, na hi-
pótese de ataques deliberados dos indígenas aos colonizadores. Muitos
desses conflitos eram forjados com o objetivo de aumentar o número
de escravos, que eram distribuídos nas lavouras de cana-de-açúcar no
litoral e na mineração no interior do território. Em 1755, foi proibida a
escravidão dos indígenas. Vencia o argumento dos missionários, expul-
sos do Brasil pouco tempo depois, em 1759, pelo Marquês de Pombal,
responsável por confiscar os bens das missões na América portuguesa.

Longe de representar caridade ou respeito aos povos indígenas, a


afirmação de sua boa alma e o fim de sua escravidão traziam consigo
um argumento econômico, que considerava mais vantajosa a compra
de escravos negros traficados do continente africano. Vistas pelos co-
lonizadores como hereges, sem alma e desumanizadas, as populações
negras foram sequestradas e trazidas ao Brasil para servirem à escra-
vidão, em substituição à mão de obra indígena. A captura, o trajeto da
África até o Brasil pelo Oceano Atlântico, a distribuição, a revenda, a vida
precária dentro das senzalas e o trabalho escravo, braçal e desgastan-
te (repleto de castigos e torturas aos que tentassem fugir ou demons-
trassem cansaço), eram etapas que constituíam de ponta a ponta um
sistema muito mais lucrativo do que a escravização indígena. A transi-
ção do uso dos trabalhos forçados dos indígenas para o emprego de
mão de obra escrava negra ocorreu entre os séculos XVII e XVIII. Na
mineração e nos engenhos de açúcar, a exploração da população negra
constituiu no Brasil a mais deplorável forma de escravidão, atrelada ao
mercantilismo.

A lucratividade do tráfico negreiro era imensa, assim como a desu-


manização dos escravos. Os navios negreiros eram insalubres, os es-
cravos eram acorrentados nos seus porões, muitos morriam de fome
ou por doenças. Populações e etnias africanas eram desmembradas,
misturadas a outras com tradições e idiomas diferentes, com o obje-
tivo de evitar a comunicação, afinidades culturais ou mesmo qualquer

112 Ética, cidadania e sustentabilidade


possibilidade de rebelião contra os colonos. Nas senzalas, centenas de
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escravos se amontoavam sem privacidade, eram tratados como ani-


mais. Os que tentavam fugir sem sucesso eram capturados, castigados
e mutilados sob os olhos dos demais para servirem de exemplo. Aqueles
que obtinham sucesso na fuga constituíam os quilombos, comunida-
des de negros fugidos dos engenhos e das regiões de mineração.

Os quilombos apresentavam elevado grau de organização política e


econômica, buscavam reproduzir o sistema comunitário no qual viviam
muitas etnias ainda no continente africano. Eram comunidades que se
estabeleciam em locais distantes dos colonizadores, com produção
agrícola e pecuária autossuficiente. Muitos quilombos praticavam mi-
neração e comércio com cidades coloniais. O dinheiro arrecadado era
utilizado para promover novas fugas ou comprar a alforria de outros
escravos. Os quilombos promoviam o resgate de tradições culturais e
políticas africanas. A maioria deles foi estabelecida onde hoje se situ-
am os estados da Bahia, de Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Minas
Gerais e Alagoas. O quilombo de Palmares, localizado no atual estado
de Alagoas, destacou-se. No ano de 1670, possuía cerca de 50 mil ex-
-escravos, liderados por Zumbi, que foram combatidos pelos coloniza-
dores europeus porque representavam a possibilidade de liberdade e
inspiravam a rebelião e a fuga de outros escravizados. Os quilombos fo-
ram importantes para consolidar a construção de uma cultura afro-bra-
sileira a partir de diferentes tradições incorporadas de diferentes etnias.

O processo de abolição da escravatura da população negra foi lento,


gradual e de cima para baixo, ou seja, organizado pelas elites latifundiá-
rias brasileiras. A ideia era evitar uma rebelião popular escrava, de forma
que a abolição foi operada segundo interesses dessas elites. No sécu-
lo XIX, ainda durante o Império, foi aprovada a Lei Eusébio de Queirós
(1850), que proibia o tráfico internacional negreiro. Na prática, foi resul-
tado de pressões políticas inglesas, pois a mão de obra assalariada tra-
ria mais vantagens ao desenvolvimento industrial europeu. Essa lei não
inibiu o tráfico interno, que, com a expansão cafeeira no Vale do Paraíba,

Relações étnico-raciais no Brasil 113


produziu compras de contingentes de escravos do Nordeste em direção

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ao Sudeste.

Em 1871, foi sancionada a Lei do Ventre Livre, estabelecendo a li-


berdade a todos os filhos de escravos nascidos a partir daquele ano.
No entanto, é difícil imaginar uma criança nascida livre permanecer in-
dependente da mãe escravizada, o que assegurava aos proprietários
de escravos alguns anos a mais com crianças semiescravizadas em
suas terras. Em 1855, promulgou-se a Lei dos Sexagenários, responsá-
vel por libertar todos os escravos que haviam alcançado os 60 anos. No
entanto, considerando o trabalho braçal, árduo e desgastante ao longo
dos anos, eram raros os escravos que chegavam a essa idade, e os
que chegavam já não estavam mais aptos ao trabalho após anos de
subjugação.

Em 13 de maio 1888, foi publicada a Lei Áurea, decretada pela regen-


te Princesa Isabel. A regente, antes da abolição, procurou estabelecer
uma espécie de reforma agrária para atender à população liberta, pro-
posta refutada pelas elites rurais. O resultado é que, após a abolição, os
ex-escravos não foram inseridos na sociedade ou contemplados pelos
direitos dos cidadãos. Impedida de votar devido ao analfabetismo, sem
propriedades, moradia, emprego ou acesso à educação, a população ne-
gra não foi incorporada às instituições sociais e políticas. Proprietários
de terras, antes mesmo da abolição, já operavam o processo de substi-
tuição dos escravos por trabalhadores europeus, principalmente italia-
nos. Com a abolição, os negros estavam na condição de marginalização
e pauperismo.

Em virtude dessa marginalização, perpetuada no século XX pela tra-


dição do Estado patrimonialista, a população negra do Brasil foi relega-
da às favelas e ao desemprego (quando muito, ao subemprego, com sa-
lários irrisórios), com baixos índices de instrução e expectativa de vida e
níveis elevados de mortalidade infantil. O preconceito racial é uma das
consequências do período escravocrata.

114 Ética, cidadania e sustentabilidade


Juliana Borges, no livro Encarceramento em massa (2019), destaca
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que a maioria da população presidiária no Brasil é constituída por ne-


gros. O preconceito policial e judiciário muitas vezes condiciona penas
mais pesadas a negros e mais brandas a brancos de segmentos abas-
tados. Em razão do preconceito e da exclusão social, muitos jovens
negros acabam procurando recursos com atividades consideradas ilí-
citas. São comuns prisões e mortes de negros cometidas por policiais
de forma arbitrária e sem provas, incluindo crianças. Além disso, vemos
poucos negros e negras nos mais elevados postos de trabalhos, raros
são os professores universitários negros, assim como os apresentado-
res de TV, juízes, protagonistas de filmes, novelas e séries. No Brasil,
há elevadores de serviço com o objetivo de distinguir patrões brancos
de empregados domésticos negros; babás, geralmente negras, estão
uniformizadas de branco e cuidando de crianças ricas, o que reproduz
a cor das vestimentas e as dinâmicas entre a casa-grande e a senzala
no período colonial.

3 Aspectos políticos e sociais da cultura


afro-brasileira
Diferentes pensadores se deram conta das especificidades do racis-
mo à brasileira. Guerreiro Ramos, por exemplo, na década de 1950, rela-
ciona o preconceito racial às classes sociais. Cria-se no senso comum
uma visão racista que se baseia nas condições econômicas, de modo
que a pobreza passa a estar relacionada aos negros. Ramos (1950) atri-
bui às desigualdades sociais o critério que estabelece o racismo. A aná-
lise de Ramos pode ser identificada, por exemplo, quando comparamos
os registros de nascimento e óbito de dois importantes literatos negros
brasileiros, Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922).
No registro de nascimento de Machado, de origem pobre, consta que
nasceu negro. Criador da Academia Brasileira de Letras em 1897 e
consagrado com seus textos em jornais e livros, seu registro de óbito

Relações étnico-raciais no Brasil 115


declara o autor como branco. Lima Barreto, por sua vez, filho de funcio-

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nário público no Rio de Janeiro, tem no seu registro de nascimento a cor
branca. Morreu no ostracismo e internado num manicômio, vítima do al-
coolismo. No seu registro de óbito, é declarado como um homem negro.

Como se vê, a reflexão de Ramos (1950) gira em torno do fato de


que a condição de classe ou o pertencimento a postos relevantes da
sociedade estabelecem padrões racistas na sociedade brasileira. Oracy
Nogueira, contemporâneo de Ramos, apresenta a comparação do racis-
mo no Brasil e nos Estados Unidos. No primeiro caso, há o predomínio
do que designa como preconceito racial de marca, o que significa dizer
que o negro está socialmente relacionado às ocupações que exerce na
sociedade. Quanto maior sua fama, grau de instrução, riqueza ou cargo,
mais ele será considerado branco, produzindo uma espécie de apaga-
mento da cor negra. Nos Estados Unidos, predomina o que Nogueira
define como preconceito racial de origem, ou seja, aquele relacionado à
ascendência, de modo que ser negro tem relação com a origem étnica.
Paradoxalmente, ainda que uma criança nasça branca, mas tenha um
avô negro, nos Estados Unidos ela é socialmente considerada negra de-
vido à origem (NOGUEIRA, 2006).

No século XXI, no Brasil, ganhou destaque também o debate em torno


do conceito de colorismo. Trata-se de uma ideologia de branqueamento
que, a partir da miscigenação e do fenótipo, categoriza e hierarquiza os
indivíduos de acordo com o tom de pele, tendendo à condição europei-
zante quanto mais clara for a cor ou à africanidade quanto mais distan-
te da construção social do que é ser branco. Nesse ponto, por exemplo,
podemos discutir a questão do cabelo, entre outras características físi-
cas que acabam por produzir estereótipos e construções sociais que
culminam na determinação da posição que um indivíduo deve ocupar
na sociedade e no mercado de trabalho. Silvio Almeida (1976-), na obra
O que é racismo estrutural? (2018), responde à questão percebendo que
o racismo no Brasil é uma forma de violência histórica e transversal, pre-
sente em diferentes instituições, reproduzido de diversas formas (nas

116 Ética, cidadania e sustentabilidade


empresas, na educação, nos esportes, etc.), portanto, está presente na
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cultura e no funcionamento das instituições.

Devemos destacar duas intelectuais contemporâneas, Djamila Ribeiro


(1980-) e Preta Rara (1985-), que tratam do tema do racismo brasileiro,
respectivamente em Pequeno manual antirracista (2019) e Eu, emprega-
da doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada (2019).
Essas obras revelam a maneira dissimulada como o racismo ocorre no
país em diferentes relações sociais; sobretudo refletem a respeito das
condições sociais da mulher negra e do lugar que ela ocupa na socieda-
de. Djamila e Preta Rara promovem, ao lado da crítica ao racismo, a críti-
ca ao machismo e ao patriarcado que se estabeleceram no Brasil desde
o período colonial e seguem persistentes, devendo ser combatidos.

Nascimento (2019) observa o racismo à brasileira como sútil, hipó-


crita e dissimulado. Enquanto o discurso predominante (poderíamos
dizer “cordial”) é o de que não há racismo no Brasil, as práticas sociais
acabam sendo outras, promovendo, na sua visão, o genocídio da popu-
lação e da cultura negra no Brasil, além de representar a ideologia do
branqueamento. Isso ocorre porque as formas tradicionais de convivên-
cia e religiosidade, a alimentação, as crenças, as manifestações artísti-
cas, os conhecimentos milenares e os padrões de beleza da população
negra foram historicamente foram reprimidos, eliminados e, mais re-
centemente, acabaram por ser desvalorizados pelos padrões estéticos
veiculados nos meios de comunicação. Quando muito, elementos cultu-
rais de origem africana foram diluídos sob uma sociedade e instituições
dominadas por brancos.

Nascimento (2019) anuncia o conceito de quilombismo como a luta


social dos negros no Brasil pela obtenção de direitos políticos, econômi-
cos e sociais e de reconhecimento da importância de sua cultura para a
construção do Brasil e da humanidade. Sua inspiração é o modo como
no período colonial os quilombos mantiveram tradições africanas e con-
solidaram formas de resistência e organização. A partir do exemplo dos

Relações étnico-raciais no Brasil 117


quilombos, Nascimento propõe o quilombismo como movimento político

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e social da população negra no Brasil em direção às conquistas de direi-
tos e à valorização do ser humano, devendo ser reconhecida com suas
tradições e a busca pelo equilíbrio com a natureza, fomentando a produ-
ção econômica sustentável. O quilombismo tem como objetivo principal
extinguir o racismo por meio de uma educação que consolide a cultura
afro-brasileira. Diz respeito a um anseio que permeia a necessidade de
refundação do Brasil, em que brancos e negros possam viver sob con-
dições de igualdade, liberdade, respeito, intercâmbio cultural e científico.

Moura (2014), na obra Dialética radical do Brasil negro (1994), empre-


ga o conceito de quilombagem, identificando nos próprios quilombos
do Brasil colonial a primeira e ampla resistência de explorados contra
dominadores e de luta pela liberdade e igualdade, antes mesmo que
a burguesia na Europa iniciasse suas revoluções em nome dos direi-
tos individuais, entre os séculos XVII e XVIII, e muito antes da classe
trabalhadora, no século XIX. Embora oprimida e marginalizada, a po-
pulação negra no Brasil soube sobreviver e resistir ao esquecimento e
à negligência da organização social dos brancos nos últimos séculos.
A quilombagem é expressa justamente nessa resistência e capacidade
de sobrevivência, presente em favelas e no espírito colaborativo nas co-
munidades. Ela se expressa também nas tradições religiosas, nas ma-
nifestações estéticas, na linguagem, entre outros hábitos e costumes
que foram preservados e devem ser, na visão do autor, os alicerces para
a organização política da população negra, a fim de que ela mesma se
torne protagonista na construção da história do Brasil.

Considerações finais
Este capítulo tratou das obras dos principais intérpretes da forma-
ção da cultura e da sociedade brasileiras. Vimos, no primeiro tópico, os
principais ensaios que procuraram compreender os processos históri-
cos que deram origem à cultura nacional, destacando-se as críticas às

118 Ética, cidadania e sustentabilidade


concepções de Gilberto Freyre, que deram margem ao que Florestan
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Fernandes definiu como mito da democracia racial e que Sérgio Buarque


de Holanda concebeu como uma das características da cordialidade.
No segundo tópico, estudamos as condições da escravatura de índios e
negros e observamos como resultaram nas desigualdades sociais pre-
sentes até hoje no país. Em seguida, finalizamos o capítulo com o estu-
do de interpretações acerca das lutas políticas e sociais do movimento
negro em direção à valorização de uma cultura afro-brasileira e suas
críticas ao racismo à brasileira.

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RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das


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120 Ética, cidadania e sustentabilidade

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