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eurídice figueiredo

Há muitos anos as pesquisas de Eurídice


Figueiredo situam-se no âmbito das
relações literárias interamericanas.
Interessando-se desde logo pelos aspectos
Este livro reúne artigos que tratam de questões teóricas relativos à etnicidade, à mestiçagem
e aos processos de crioulização nas
sobre a literatura nos dias de hoje assim como sobre as
Américas, sua produção ensaística
representações da etnicidade como marca de diferença e
Representações de etnicidade: tornou-se referência incontornável
tanto na área das literaturas estrangeiras
alteridade. No caso das etnicidades negras, ele trata de as-
pectos das escritas da memória da escravidão, da estética
perspectivas interamericanas modernas quanto do comparatismo

perspectivas interamericanas de literatura e cultura


representações de etnicidade:
literário. Suas publicações são marcadas
da oralidade e do humor. Aborda também as desterrito- de literatura e cultura por enriquecedoras contribuições
teóricas, centralizadas em aspectos de
rializações em alguns autores da literatura brasileira con- heterogeneidade e hibridação, e críticas,
temporânea, considerando-as como parte das mudanças   com estudos sobre os autores mais
significativos das literaturas de língua
do estar no mundo do Brasil e dos brasileiros.
francesa das Américas (Quebec, Haiti e
departamentos de além-mar da França:
Martinica, Guadalupe e Guiana Francesa)
assim como da literatura brasileira.
E F fez Mestrado e
Doutorado na  e Pós-Doutorado Reunir neste volume sua extensa
Sênior na . É professora do Programa e aprofundada reflexão sobre as
de Pós-Graduação em Letras – Estudos “representações de etnicidade” em
de Literatura – da Universidade Federal “perspectivas interamericanas” vem
Fluminense desde 1989. Publicou certamente preencher uma lacuna no
Construção de identidades pós-coloniais campo dos estudos culturais e literários,
na literatura antilhana (1998) e inúmeros onde a questão constitui matéria de
artigos em obras coletivas e revistas importância maior. Iluminando caminhos
nacionais e internacionais. Editou números pouco frequentados em literatura como
os da alteridade de negros, indígenas e
das revistas Gragoatá e Cadernos de Letras
mestiços, com destaque para os resgates
() e Letras (). Organizou os
memoriais e para as estéticas da oralidade,
livros Figurações da alteridade (com
este livro torna-se leitura obrigatória para
M.B. Porto, 2007), Conceitos de literatura
estudantes e profissionais da área de Letras,
e cultura (2005), Recortes transculturais
mas também para todos aqueles que amam
(com E.P. dos Santos, 1997), A escrita
a leitura de autores da “nossa América”.
feminina e a tradição literária (1995).
É pesquisadora do q desde 1993. Zilá Bernd (/q)
Representações de etnicidade:
perspectivas interamericanas de literatura e cultura
eurídice figueiredo

Representações de etnicidade:
perspectivas interamericanas
de literatura e cultura
© 2010 Eurídice Figueiredo

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


adotado no Brasil em 2009.

Produção editorial
Isadora Travassos
Valeska de Aguirre

Diagramação
Tui Villaça

Revisão
Sandra Pássaro

Produção gráfica
Isabella Carvalho

cip-brasil. catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, rj
F488r
Figueiredo, Eurídice
Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura
e cultura / Eurídice Figueiredo. – Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. 296p.
Inclui bibliografia
isbn 978-85-7577-680-3
1. Literatura comparada. 2. Cultura. 3. Etnicismo. 4. América –
Literaturas – História e crítica. I. Título.
10-2464. cdd: 809.897 cdu: 82.091

2010
Viveiros de Castro Editora Ltda.
R. Goethe, 54 Botafogo
Rio de Janeiro RJ cep 22281-020
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
Sumário

9 Introdução

questões teóricas sobre a literatura


15 Literatura Comparada e Estudos Culturais:
por um comparativismo interamericano
26 Literatura mestiça, literatura transnacional, literatura da migrância

etnicidades em recortes geoculturais


43 O conceito de América Latina
52 O Haiti: história, literatura, cultura

etnicidades como alteridade


71 Mestiçagem, transculturação, crioulização, hibridismo
97 Representações do mestiço e do mulato na América Latina
105 Representações do indígena na literatura brasileira
134 A figura do mestiço na literatura do Canadá
151 Diferença e a alteridade

etnicidades negras: memórias, estética da oralidade, humor

161 As (re)escritas da memória da escravidão: questões teóricas


171 Resiliência, banzo e as artes de fazer em Ana Maria Gonçalves
182 A reescrita da escravidão como perlaboração em Patrick Chamoiseau
192 O humor rabelaisiano de Patrick Chamoiseau e Mário de Andrade
205 Patrick Chamoiseau e Jorge Amado: por uma estética popular
214 O humor na obra de Dany Laferrière
225 O racismo à brasileira: a escrita da memória em Leite derramado,
de Chico Buarque
235 Os “brasileiros” do Benin: a questão do retorno à África
o escritor brasileiro viaja para o exterior
251 Desterritorialização na narrativa brasileira do século xxi
263 Cosmopolitismo e reterritorialização nos trânsitos de Silviano Santiago
269 O cosmopolitismo no mundo do futebol em André Sant’anna

275 Referências bibliográficas


I, too, am America.
Langston Hughes

Vous venez des colonies?


chofer de táxi para E. F., estudante brasileira
recém-chegada à França, em 1970.
introdução

Este livro reúne artigos que se organizam em torno de questões teóricas


sobre a literatura hoje, a relação entre a literatura comparada e os estudos
culturais, as possibilidades de um comparativismo interamericano e as novas
formas de literatura transnacional. A seguir, dois blocos de artigos estão cen-
trados em torno de representações da etnicidade como marca de alteridade,
seja em termos mais geográficos (o conceito de América Latina, o Haiti), seja
em termos mais conceituais ou ainda sobre personagens literários. No tópico
mais específico sobre as etnicidades negras, os artigos abordam as escritas da
memória da escravidão, a estética da oralidade e o humor. Na última parte,
consagrada às desterritorializações existentes na literatura brasileira contem-
porânea, tenta-se captar como o fenômeno da globalização nos afeta.
Adotando uma perspectiva interamericana, o corpus aqui analisado per-
tence sobretudo às literaturas do Brasil e das Antilhas de língua francesa
(Haiti, Martinica e Guadalupe). A América hispânica está contemplada
sobretudo nos artigos “O conceito de América Latina”, “Mestiçagem, trans-
culturação, crioulização e hibridismo” e “Representações do mestiço e do
mulato na América Latina”. Os Estados Unidos aparecem principalmente no
artigo “Diferença e alteridade”, enquanto o Canadá está presente no artigo
“A figura do mestiço na literatura do Canadá” (de língua francesa e inglesa).
Utilizo o termo representação a partir de Edward Said, que busca depreen-
der não aquilo que está oculto nos textos ocidentais sobre o Oriente, mas reve-
lar, ao contrário, as estratégias que se evidenciam na própria superfície do
texto, ao mostrar o Outro como pura exterioridade. Segundo Said “o que se
deve procurar são os estilos, figuras de linguagem, os cenários, mecanismos
narrativos, as circunstâncias históricas e sociais, e não a correção da repre-
sentação, nem a sua fidelidade a algum original” (Said, 1990, p. 32). Said é
tributário do pensamento de Michel Foucault, que mostrava em L’ordre du
discours que “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, sele-
cionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos
que têm o papel de conjurar seus poderes e perigos, de controlar seu aconte-
cimento aleatório, de esquivar sua pesada e temível materialidade”1 (1971,
p. 10). Assim, percebe-se que não existe uma verdade a ser revelada, as repre-
1
Todas as citações de obras, cujas referências estejam em língua estrangeira, foram traduzidas
por mim.

9
sentações veiculadas pela literatura se inserem na ordem dos discursos oci-
dentais sobre o negro, o mestiço, o indígena, o latino-americano. Quando
estes, por sua vez, assumem a voz narrativa, sua palavra já está sobredetermi-
nada pelos discursos precedentes, que, naturalmente, precisam ser descons-
truídos de uma maneira ou de outra, seja pela paródia, pela carnavalização,
pela afirmação identitária.
A etnicidade – seja ela a raça, a cor, a religião, o gênero (gender) – se
define como uma categoria que situa o indivíduo ou o grupo social como
sendo Outro. Eric Landowski (2002) mostra que o grupo de referência,
associado à maioria, geralmente se vê como um grupo homogêneo; a alteri-
dade é, assim, percebida como diferença, que tende a ser considerada uma
ameaça ao bem-estar da comunidade. Esta ameaça (muito mais imaginá-
ria que real) leva à exclusão ou à assimilação do diferente: ambas as atitu-
des correspondem a uma não aceitação da diferença, pois a verdadeira acei-
tação deveria suscitar uma atitude de compartilhamento do espaço público,
de maneira negociada. Landowski aponta também para o fato de a identi-
dade adquirir forma muito mais por aquilo que o olhar dos outros envia ao
sujeito do que pelo que ele próprio se define (2002, p. 4).
O que separa o grupo de referência dos indivíduos ou grupos que ele
considera “outros” não é uma diferença substancial devido a alguma dis-
função social ou heterogeneidade de ordem natural; é antes uma diferença
posicional. No entanto, esta diferença pode-se tornar, no plano empírico,
oposição substancial, que vai-se exprimir no nível dos discursos e das repre-
sentações. São justamente estas figuras de Outro, marcadas por alguma
forma de etnicidade, que são estudadas aqui, notadamente as figuras do
negro, do mestiço e do indígena.
A série de artigos sobre as escritas da memória da escravidão apoia-se
sobretudo nas noções de arquivo, de Freud a Derrida, passando por Fou-
cault e Agamben, bem como nas reflexões de Walter Benjamin e Edouard
Glissant sobre as questões ligadas à história e à memória. Glissant fala da
transversalidade de nossa história em oposição à visão linear e hierarquizada
da história que o Ocidente impôs aos povos colonizados ao evocar a frase
The unity is submarine, do poeta e historiador Edward Kamau Brathwaite.
Apelando a esta imagem do passado escravista, na qual o fundo do oceano se
encontra recoberto de corpos de africanos jogados ao mar, o poeta imagina
a Relação a partir destas raízes submarinas. Se os comerciantes se desfaziam
de pessoas como se fossem mercadorias de um tráfico ilegal – como as drogas

10
nos dias de hoje –, as lembranças destes viventes ecoam na contemporanei-
dade, na forma de constelação, como postulava Walter Benjamin.
À diáspora africana em direção da América ocorrida no passado respon-
deram em contraponto novas diásporas no presente, em que massas de pes-
soas dos países periféricos e marcados pela colonização (da América Latina,
da África e da Ásia) tomam a direção inversa e rumam para as antigas metró-
poles ou os atuais centros hegemônicos: Estados Unidos, Canadá, Reino
Unido, França, e outros países da Europa Ocidental. Stuart Hall, que é
ele mesmo parte desta diáspora caribenha, tem uma contribuição relevante
para as reflexões sobre o assunto. Ele aponta para o paradoxo seguinte: se
a globalização tende a homogeneizar o mundo, a diáspora introduz o des-
centramento e “a proliferação subalterna da diferença” (Hall, 2003, p. 60).
Observa-se, com efeito, que as migrações levaram as margens para o cen-
tro, introduzindo a mestiçagem em países que eram tidos (ou que se viam
como) homogêneos. Apesar da política multiculturalista em vigor, a mes-
tiçagem se intromete, tal um Exu, que chega para um banquete sofisticado
ao qual não foi convidado. Interessa ver como a literatura contemporânea
está tematizando estas questões; interessa também tentar perceber como isto
afeta a literatura brasileira, apesar de ela estar um pouco distante da proble-
mática da migrância que aparece de forma tão candente nas literaturas de
língua francesa e inglesa.
Alguns artigos já haviam sido publicados em livros coletivos e/ou revistas,
mas todos sofreram modificações – acréscimos e/ou cortes – ao serem revistos
e reescritos para este livro; outros são totalmente inéditos como “O conceito
de América Latina”, “Cosmopolitismo e reterritorializações nos trânsitos de
Silviano Santiago”, “Representações do indígena na literatura brasileira”, “As
(re)escritas da memória da escravidão: questões teóricas” e “O racismo à bra-
sileira: a escrita da memória em Leite derramado, de Chico Buarque”.
Preferi traduzir todas as citações que estavam em francês ou inglês,
desde os textos teóricos até os excertos das obras literárias, a fim de facilitar
a fluidez da leitura. Deixei as epígrafes na língua original, porém.
Minha gratidão ao cnpq pela bolsa de produtividade em pesquisa que me
concede desde 1993: é um estímulo e um reconhecimento do meu trabalho.
Meu carinho aos colegas e alunos da Universidade Federal Fluminense
– em especial aos meus orientandos e ex-orientandos do Programa de Pós-
Graduação em Letras: Estudos de Literatura – pela amizade, convivência e
interlocução.

11
questões teóricas sobre a literatura
literatura comparada e estudos culturais:
por um comparativismo interamericano

Viajam as teorias: algumas sozinhas, outras acompanhadas. Quando


chegam aos lugares, sua adaptação ao novo ambiente será ou não
tão fácil como pode sugerir o entusiasmo do momento de chegada.
Outras teorias não viajam, ou viajam menos e com mais dificuldade.
Talvez precisemos refletir mais sobre quando e por que uma teoria
(...) transforma-se num projeto global, desejada e convidada a entrar
em uma nova localidade.
walter mignolo

Literatura Comparada e Estudos Culturais


Como aponta Walter Mignolo (2003), as teorias viajam e, ao chegarem
a lugares diferentes, são transformadas, sobretudo quando há a interferên-
cia do legado colonial, ainda na memória das elites. Os Estudos Culturais,
que se originaram na Grã-Bretanha e se disseminaram nos Estados Unidos,
provocaram grandes transformações na abordagem da Literatura Compa-
rada nos últimos anos no Brasil, tendo sido ora adotados (mas já transcultu-
rados) pelos estudiosos brasileiros, ora rechaçados por aqueles que preferem
uma perspectiva mais puramente literária. Em ambos os casos têm havido
excessos e desconhecimento recíproco: os “literários” acusam os “culturalis-
tas” de ignorar o texto literário e fazer antropologia e/ou sociologia de ter-
ceira categoria, o que não é de todo falso, pois realmente tem havido uma
produção que peca pela falta de aprofundamento do texto literário, abun-
dando em generalizações sobre questões político-identitárias.
Segundo Mattelart e Neveu, haveria atualmente nos Estudos Culturais
um indefinição epistemológica, visível na acumulação eclética de referên-
cias nas glosas sobre a identidade. Por outro lado, a noção de “mediação”
que, associada à noção de hegemonia, havia demonstrado sua fecundidade
heurística no momento da ruptura com um estruturalismo fascinado pelos
textos, virou um modismo (Mattelart, Neveu, 2003, p. 85). Os defensores
dos Estudos Culturais, considerando-se mais modernos e antenados com
o que há de mais novo na academia norte-americana – que é a que dita
a moda no Brasil, depois de passada a hegemonia da França – com o fim

15
do estruturalismo e a releitura dos chamados pós-estruturalistas (Foucault,
Derrida, Deleuze) feita nos Estados Unidos por estudiosos muitas vezes vin-
dos de fora, acusam os “literários” de ficarem circunscritos à hermenêutica
do texto, numa visão às vezes formalista, sem visão histórica, num quadro
exclusivamente nacional.
Assim, tem razão Mignolo ao dizer que algumas teorias viajam para
determinados lugares, outras não viajam tão facilmente e que a recepção
depende de uma série de injunções culturais e políticas (2003, p. 252). As
teorias viajam bem entre os grandes centros hegemônicos e destes para a
periferia, à qual é reservado o papel de repetidora. Mesmo quando alguns
conceitos surgem nas margens, eles não viajam, em grande parte devido ao
estatuto periférico ou subalterno da língua na qual eles são produzidos. Tra-
ta-se de avaliar a centralidade da língua, ou seja, o volume de capital lin-
guístico, na classificação feita por Abram de Swaan (apud Casanova, 1999,
p. 36), que distingue entre língua de grande circulação e língua de grande
cultura. A língua de grande cultura é aquela que é usada por pessoas cultas
e poliglotas, que consideram que vale a pena aprendê-la devido à sua forte
literariedade. Hoje em dia o inglês é a língua de grande cultura no mundo,
porque é nesta língua que circula a imensa maioria de filmes, livros, produ-
tos audio visuais, artes plásticas, quadrinhos, revistas científicas. Como os
falantes de língua inglesa só leem o que está escrito em inglês, aquele que
publica nesta língua tem um público potencial muito mais abrangente do
que aquele que publica em português. O espanhol disputa o segundo lugar
com o francês e o alemão na Europa, mas no continente americano ele já se
consolidou como a segunda língua de grande cultura, sobretudo por conta
dos mais de 40 milhões de latinos radicados nos Estados Unidos.
Se pensarmos na produção crítica na América Latina do século xix até
a primeira metade do século xx, podemos dizer que já se faziam Estudos
Culturais, embora com uma faceta um pouco diferente dos Cultural Stu-
dies que emergiram na Universidade de Birmingham (Inglaterra), nos anos
1970. Se a história do pensamento na América Latina tinha seus fundamen-
tos na luta contra a hegemonia de um Outro externo, na Inglaterra o movi-
mento, associado à New Left, representava uma ruptura contra o establish-
ment da academia, o que explica o fato de eles terem podido emergir em
universidades e centros de pesquisa periféricos e não nas grandes universida-
des como Cambridge e Oxford. Se na América Latina a crítica cultural estava
preocupada com o que hoje denominamos identidade nacional (ou continen-

16
tal), com as relações dicotômicas entre América x Europa, América Latina x
América Anglo-Saxônica, civilização x barbárie, literatura universal x lite-
ratura nacional/regional, Brancos x Negros e/ou Indígenas, ou seja, preo-
cupava-se em definir o estatuto de novas sociedades e das novas literaturas
em face das tradições europeias, os Cultural Studies surgiram a partir de uma
base marxista, tendo como objetivo explorar e revelar a cultura popular dos
jovens e dos operários para detectar a influência da mídia sobre a vida destes
grupos. Os Cultural Studies se disseminaram sobretudo no mundo anglo-sa-
xônico, muito menos na França, Alemanha e na Europa Central e Oriental.
Nos anos 80 os Cultural Studies se expandiram para outras questões, notada-
mente a questão do gênero (gender) e a da etnicidade, questões que interes-
savam diretamente algumas pesquisadoras feministas (Charlotte Brunsdon
e Dorothy Hobson) e pesquisadores imigrantes (Stuart Hall e Paul Gilroy),
que aprofundaram o viés étnico da diáspora. Hall e Gilroy mostram em seus
textos que a homogeneidade cultural, mito construído pela Europa, está cada
vez mais posta em xeque na contemporaneidade, com as diferentes migrações
que estão mudando a constituição étnica de muitos países. A diáspora que se
acentuou nos finais do século passado e que caracteriza desde já o século xxi,
a globalização e os diferentes fenômenos ligados sobretudo à comunicação
(internet, mídia) têm afetado demais os estudos culturais e literários.
Há um ponto de encontro tanto na abordagem britânica quanto na
latino-americana, pois ambas têm um viés político-ideológico de base mar-
xista, através da leitura de autores europeus (sobretudo franceses) em que se
pode vislumbrar a influência de Gramsci, Althusser, Fanon, Foucault. Terry
Eagleton (2005, p. 59) afirma que “o marxismo manteve sua centralidade”
nos Estudos Culturais. Os autores da diáspora caribenha como Gilroy e
Hall, ao introduzirem a questão da etnicidade no debate identitário, ajuda-
ram a relativizar as aporias das análises latino-americanas, que tentaram dar
conta do estatuto de um continente mestiço, ainda às voltas com problemas
de auto imagem.
Pode-se dizer que a partir dos anos 80 já não havia muita diferença
entre os autores latino-americanos como Garcia Canclini, Beatriz Sarlo, Sil-
viano Santiago, que começaram a estudar as culturas populares e massivas (a
telenovela, a música popular, a mídia), e os autores britânicos/norte-america-
nos dos Cultural Studies. As universidades dos Estados Unidos, ao contratar
professores de fora, se apropriaram tanto da tradição britânica quanto da tradi-
ção latino-americana, o que se consubstanciou na criação dos departamentos

17
de Latin American Cultural Studies. Alguns críticos assinalam que este rótulo
aponta para uma genealogia situada no tempo curto desta corrente, com o
apagamento de suas raízes e em detrimento de sua especificidade (Matte-
lart, Neveu, 2003, p. 80). No Brasil os Estudos Culturais avançam sobre-
tudo através da Literatura Comparada, pois ainda não há a institucionali-
zação dos Estudos Culturais através da criação de departamentos ou cursos
de pós-graduação.
Os Estudos Culturais no Brasil, como aliás no resto do mundo, produ-
ziram trabalhos inovadores e relevantes para o conhecimento da cultura. No
entanto, há também alguns problemas que oscilam de um empirismo sem
base teórica, que se limita a um descritivismo de eventos ou artefatos da vida
cotidiana, sem grande valor em si, a uma deriva exegética, que se limita a
um trabalho de glosa de determinados filósofos que estão na moda, desco-
nectado de qualquer terreno preciso (Mattelart, Neveu, 2003, p. 88). Aliás,
é significativo que dois livros, publicados quase ao mesmo tempo, apontam
para a crise da teoria. Refiro-me a O demônio da teoria, de Antoine Com-
pagnon (publicado em francês em1998) e Depois da teoria, de Terry Eagle-
ton (publicado em inglês em 2003), ambos já traduzidos no Brasil. Há nos
dois livros um olhar desencantado com o rumo dos estudos da literatura.
Eagleton começa seu livro com a seguinte frase: “A idade de ouro da teoria
cultural há muito já passou” (2005, p. 13). Entretanto, ao longo das argu-
mentações, eles tentam ultrapassar o olhar melancólico com uma dose de
esperança (ou seria de ironia?) que aparece na constatação de Compagnon
de que a teoria é feita para ser atravessada, porque a perplexidade é a única
moral literária (1998).
Eneida Maria de Souza (1998, p. 21), em artigo muito esclarecedor,
faz o inventário da reação aos Estudos Culturais no Brasil e no exterior;
aqui entre nós, destacam-se as reações de Luís Costa Lima e Leyla Perrone-
Moisés. Na trilha destes dois autores, embora enfocando menos os aspec-
tos teórico-metodológicos do que as questões políticas, Roberto Acízelo de
Souza (2005, p. 67) faz três restrições aos estudos culturais: 1. No plano
acadêmico, seus defensores estariam usufruindo das vantagens do poder,
incorrendo nos desvios que eles denunciavam; 2. No plano das relações
internacionais, o culturalismo anglo-americano, como parte do fenômeno
da globalização, participaria das relações assimétricas entre nações fracas e
nações fortes; 3. No aspecto chamado de “politicamente correto”, ele pra-

18
ticaria a fórmula de relativismo cultural com absolutismo ético, combinado
com maniqueísmo e gravidade puritana, o que resultaria, segundo o autor,
em “angelismo sem sal”.
Eneida aponta algumas das críticas que foram feitas tais como a dilui-
ção do objeto de análise e a ausência de rigor teórico e sistematização meto-
dológica, que teriam sido provocadas pelas várias teorias que embasaram os
Estudos Culturais, notadamente as dos chamados pós-estruturalistas. Mas a
principal vilã, para a maioria dos críticos, seria a interdisciplinaridade, prati-
cada sem a observância de leis ou de controle. Mas ela conclui que esta inde-
finição provocada pela interdisciplinaridade, em vez de significar a “circu-
lação caótica e irracional do conhecimento”, pode aproveitar da alternativa
proposta por Richard Rorty e Jonathan Culler, que postularam “a substitui-
ção da matriz disciplinar por um novo gênero e uma nova teoria”. Assim, a
interdisciplinaridade “poderia receber tratamento mais condizente com sua
força de aglutinação de diferenças e de pulverização dos limites fechados dos
campos teóricos” (Souza, 1998, p. 28).
Wander Melo Miranda, no mesmo número da revista da abralic (n. 4),
considera que, ao desligitimar a implantação dos Estudos Culturais no Bra-
sil, “investe-se na manutenção das literaturas nacionais canônicas, a par-
tir do endosso da idéia de nação como entidade una e autônoma” (1998,
p. 13). Endossando a posição do crítico mineiro, considero que, apesar do
impacto dos Estudos Culturais, a produção crítica sobre literatura no Bra-
sil ainda tem um recorte nacional muito forte, no qual se prioriza a litera-
tura brasileira, embora novos recortes já comecem a se fazer notar, o que me
parece bastante promissor, pois a clausura do/no nacional tem impedido
a compreensão de que movimentos e tendências surgidos em um país ou
área linguística têm correlação com outros muito mais amplos que atingem
outras regiões da América e mais particularmente da América Latina. Assim,
as inter-relações podem e devem suscitar outros desdobramentos a fim de se
detectarem as linhas de força das literaturas do continente, não na tentativa de
homogeneizar e buscar simetrias forçadas, mas antes, verificar os novos des-
centramentos que operam no século xxi, com a aparição de formas narra-
tivas e poéticas fragmentadas, com personagens fraturados e subjetividades
moventes, que dão conta das inúmeras diásporas do continente. Estes suje-
tos cindidos, com identidades plurais, que passam por processos de dester-
ritorialização de várias naturezas, põem em circulação novas problemáticas
que dão conta daquilo que tem sido chamado de modernidade tardia.

19
A Literatura Comparada no Brasil pode tirar partido das contribui-
ções que os Estudos Culturais e pós-coloniais proporcionaram, sobretudo
nas pesquisas sobre as questões identitárias, nacionais e transnacionais, pois,
como assinala Ana Pizarro, “os conceitos constituem construções surgidas
do movimento de um pensamento, que não existem sem ele, que fazem
parte de suas riquezas, às vezes, de suas fissuras, e incorporam seus mati-
zes” (Pizarro, 2006, p. 104). Como um pensamento se inscreve na história
de cada país, é preciso ter o cuidado especial de, ao usar um conceito sur-
gido em outro espaço de enunciação, refazer todo o seu percurso a fim de
não homogeneizá-lo, eliminando as nuanças que constituem a riqueza e a
produtividade que ele tinha em seu surgimento. As literaturas e as cultu-
ras dos diferentes países da América apresentam situações bastante distin-
tas, com alguns elementos de histórias comuns, constituindo um objeto de
reflexão que deve mobilizar os esforços dos grupos de pesquisa, na tenta-
tiva de se incrementar os estudos do comparativismo interamericano, dimi-
nuindo assim o desconhecimento recíproco existente entre nós.

Por um comparativismo interamericano


Apesar do aparente sucesso da Literatura Comparada, revelada na
expansão dos cursos de Pós-Graduação nesta área de concentração, e tam-
bém no fato de a mais importante associação nacional de estudos literários
ser a abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada), os estudos
literários no Brasil têm-se organizado em torno das línguas nacionais, com
pouca interlocução entre culturas e literaturas, o que impede uma compre-
ensão mais ampla de certos fenômenos que não se restringem a uma área
linguística ou a uma nação.
Em 2000, foi criado, no âmbito da anpoll (Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística), o gt “Relações literárias
interamericanas”, grupo que tem livre trânsito pelas várias áreas linguísticas
do continente americano.2 A primeira pesquisa do gt, consolidada no livro
Conceitos de literatura e cultura (Figueiredo, 2005), se organizou em torno de
20 conceitos fundamentais do comparativismo interamericano: americani-

2
Nos biênios 2000-2002 e 2002-2004, o gt “Relações literárias interamericanas” foi coordenado por
mim (vice: Zilá Bernd), e desde então foi coordenado por Jovita Maria Gerheim Noronha (2004-2006)
e Silvina Carrizo (2006-2008 e 2008-2010).

20
dade/americanização, antropofagia, barroco/neo barroco, boom/pós-boom,
crioulidade/crioulização, entre lugar, heterogeneidade, híbrido/hibridismo,
identidade cultural/identidade nacional, indigenismo, literatura migrante,
mestiçagem, negritude/negrismo/literaturas de afro descendentes, multicul-
turalismo/pluriculturalismo, pós-colonial, pós-moderno, realismo mágico/
realismo maravilhoso, regionalismo, textualidades indígenas, transcultura-
ção/transculturação narrativa.
O propósito do livro foi o de mapear os conceitos identitários e literá-
rios surgidos com as vanguardas que transitaram pelas Américas até o final
do século xx, a fim de rastrear-lhes o sentido, a origem e, sobretudo, o entre-
cruzamento e a superposição destes conceitos, os quais correspondem a rea-
lidades culturais ora semelhantes, ora díspares, e que foram cunhados e uti-
lizados por teóricos em várias partes do continente americano e no Caribe.
Embora os vinte termos não sejam todos conceitos da mesma categoria de
pensamento, o que se buscou foi detectar o que tem aparecido na prática dos
estudos literários e culturais como sendo expressões de marcas identitárias
que dão conta de uma especificidade das vozes subalternas, das minorias que
participam (ou estão excluídas) da fundação da nação e da cultura.
Nos anos 1920 e 1930 surgiram alguns conceitos-chave, que seriam reto-
mados, transformados e revivificados por uma crítica mais cultural a partir dos
anos 70. A antropofagia de Oswald de Andrade nutria-se da representação do
canibalismo, tanto nas crônicas e cartas como na iconografia do período colo-
nial, e opunha-se simetricamente ao indianismo alencariano. “Antropofagia.
Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem” (Andrade, 1978, p.
18). O intelectual faria o mesmo com as culturas do Outro, a fim de se nutrir
para se apropriar delas. Como diz Silviano Santiago a propósito das várias ten-
tativas das vanguardas (a antropofagia de Oswald, a “traição da memória” de
Mário de Andrade e o “corte radical” do grupo concreto):
Em todos os três casos não se faz de conta que a dependência não existe, pelo con-
trário frisa-se a sua inevitabilidade; não se escamoteia a dívida para com as culturas
dominantes, pelo contrário, enfatiza-se a sua força coerciva; não se contenta com a
visão gloriosa do autóctone e do negro, mas busca a inserção diferencial deles na tota-
lização universal. Ao mesmo tempo, não se deixa perder no limbo das elucubrações
etnocêntricas a possível originalidade do produto criado. A hierarquização pelos cri-
térios de ‘atraso’ e de ‘originalidade’ cai subitamente por terra, pois se subvertem esses
valores (Santiago, 1982, p. 22).

21
A antropofagia oswaldiana foi revisitada pela música, pelo cinema, pelas
artes plásticas e pelo teatro, tornando-se um elemento canônico da cultura
e da crítica brasileiras. Trata-se de um conceito bastante restrito ao Brasil,
e, apesar de estar circulando muito em outros países nos últimos anos, não
teve desdobramento e apropriação no exterior.
No artigo “O entre lugar do discurso latino-americano”, Silviano San-
tiago (1978) cunhava o conceito de entre lugar que, embora não tenha sido
exportado devido à situação periférica que ocupa a crítica brasileira, era tão
pertinente para designar a situação ambígua do escritor que se encontra fora
do grandes centros hegemônicos, que termos assemelhados foram utilizados,
nos últimos anos, em várias línguas, por teóricos de diferentes procedên-
cias, tais como Walter Mignolo, Homi Bhabha, Mary Louise Pratt, Daniel
Sibony: third space, in between, zonas de contato, entre-deux. Todos tentam dar
conta de culturas que se constroem do encontro e choque de duas ou mais
culturas, que se situam nas margens, que se distinguem das culturas euro-
peias por um traço particular, a impureza, destacada por Silviano Santiago:
A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destrui-
ção sistemática dos conceitos de unidade e de pureza (...). A América Latina institui
seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma,
ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus
exportavam para o Novo Mundo (1978, p. 18).

Multiculturalismo e pluriculturalismo são termos muito usados hoje


pela crítica cultural, sendo que os países que melhor os definem são o Canadá
e os Estados Unidos, que têm comunidades étnicas (ou minorias visíveis)
das mais variadas origens e são governados por uma política assumidamente
multicultural.
As comunidades asiáticas e afro-caribenhas são étnicas por natureza, isto é, são fisica-
mente diferenciáveis, ligadas por laços sociais derivados de costumes, línguas e práticas
intermatrimoniais compartilhadas; possuem história, memórias coletivas, origens geo-
gráficas, visões de mundo e modos de organização social próprios (Hall, 2003, p. 67).

Os imigrantes, assim como seus filhos já nascidos nos grandes centros,


enfrentam a situação de não poder definir, de maneira exclusiva, a qual cul-
tura pertencem, preferindo, na medida do possível, adotar as duas (ou três).
Existem efetivamente zonas de contato mas é preciso salientar que os pró-
prios imigrantes, em muitos países, vivem socialmente confinados em gue-
tos. Não há (ainda) verdadeira integração nem, muito menos, mestiçagem

22
como fenômeno coletivo. Um exemplo empírico bastante surpreendente, ao
menos de um ponto de vista brasileiro, encontra-se na publicidade “multi-
cultural”: os casais ou as famílias que aparecem nos anúncios publicitários
pertencem à mesma “etnia”: são asiáticos, negros ou latinos, mas não exis-
tem casais mistos (ou muito raramente).
O conceito de literatura ou escrita migrante surgiu no Canadá (Quebec)
no bojo desta concepção multicultural da sociedade, em que os povos fun-
dadores – franceses e ingleses – têm o apanágio de uma anterioridade, uma
marca genealógica designada em francês como pure laine, ou seja, os des-
cendentes dos primeiros colonizadores franceses. Assim, literatura migrante
seria a produção das chamadas comunidades étnicas, de imigrantes de pri-
meira ou segunda geração, cuja temática lida de perto com questões do exí-
lio, da memória, da desterritorialização, do nomadismo e da deriva iden-
titária. O escritor migrante encontra-se no entre lugar ou no entre dois, já
que sua pertença a dois universos identitários, a duas línguas, resulta numa
movência bem própria de nossa contemporaneidade. A literatura produzida
pelos hispânicos nos Estados Unidos – sobretudo originários do México,
de Porto Rico e de Cuba – é de grande relevância, tendo em vista que é
a expressão de uma comunidade cujo peso não para de crescer, já que sua
população oscila em torno de 40 milhões de pessoas.
Alguns conceitos, como identidade cultural e identidade nacional, são
mais gerais porque abarcam, de fato, a espinhosa problemática da nação
como parâmetro definidor de uma cultura. A constituição do estado-na-
ção moderno na Europa data do século xix. Segundo Hobsbawn, o reco-
nhecimento ao direito de se tornar uma nação se baseava em três critérios:
a sua associação a um estado instituído há algum tempo (duração); a exis-
tência de uma língua vernácula escrita e praticada por sua elite letrada; a sua
capacidade de conquista (1998, p. 49). Para Benedict Anderson, o nacio-
nalismo nasce antes na América, a partir da independência americana em
1776, devido à necessidade de as novas elites locais se descolarem do con-
trole das antigas metrópoles. Já a identidade cultural, desvinculada da exis-
tência do estado-nação, pode ser reivindicada por grupos minoritários ou
excluídos, que compartilhem algo em torno do qual cerrar fileiras: femi-
nismo, homoerotismo, sentimento de pertença a uma etnia de afro descen-
dentes ou de indígenas.
Nos anos 1930 no Peru, José Carlos Mariátegui retomou e reutilizou
o termo de indigenismo, numa visão marxista e na defesa dos indígenas e

23
de sua cultura, subalternos em seu próprio país, apesar de serem a maioria
da população. Consciente de que se tratava de um movimento de mestiços
letrados, ele tinha a visão utópica de que um dia os verdadeiros indígenas
teriam voz. “Uma literatura indígena, se deve vir, virá no momento exato”
(1975, p. 216). Após o florescimento de uma literatura indigenista de van-
guarda na região andina, que tem como expoentes César Vallejo na poesia e
José Maria Arguedas na narrativa, os povos indígenas das Américas, sobre-
tudo a partir da segunda metade do século xx, começaram a produzir dife-
rentes tipos de textos, escritos ou audio visuais, ou seja, novas textualidades
indígenas, seguindo uma tendência dos grupos tradicionalmente subalter-
nizados de assumir sua própria voz, seu próprio discurso, evitando assim
serem falados pelo outro.
O crítico peruano Antonio Cornejo Polar criou o conceito de hete-
rogeneidade para definir a disparidade da realidade da América Latina em
geral e mais particularmente do Peru, na qual coexistem grupos muito dife-
rentes, etnicamente, socialmente, economicamente. A heterogeneidade na
região andina é talvez mais radical do que em outras áreas, pois a popula-
ção de origem indígena não tem, proporcionalmente à sua força numérica,
representatividade na cena política e cultural. Nos últimos anos, neste início
do novo século, assiste-se a uma mobilização das camadas populares indíge-
nas na região andina, que tem provocado a queda de presidentes e algumas
mudanças, ainda insuficientes para transformar a situação de exclusão em
que se encontram.
A questão da contribuição do negro aparece no mapeamento dos vários
movimentos surgidos, tais como a Harlem Renaissance, seguido da negri-
tude na área do Caribe de língua francesa, pelo negrismo no Caribe de
língua espanhola, mas também pelo indigenismo e um certo negrismo no
Haiti, pela crioulização, bem como pelos movimentos afro-brasileiros. Mas
ela aparece também nas questões da mestiçagem, do realismo maravilhoso,
que surge no Caribe pelas mãos de Alejo Carpentier e de haitianos como J.
S. Alexis. O realismo maravilhoso, também conhecido por realismo mágico,
associado à utilização de um estilo barroco ou neo barroco, está na origem
do fenômeno do boom da literatura hispano-americana, marco divisor de
águas que enseja o nascimento do termo pós-boom.
Os conceitos de mestiçagem, transculturação, hibridismo e crioulização
têm sido usados nas diferentes regiões de maneira, senão idêntica, ao menos
semelhante, embora tenham origens e contextos de produção e recepção

24
específicos. Pode-se tentar esboçar algumas análises contrastivas do trânsito
destes quatro conceitos de maneira a demonstrar a importância de um com-
parativismo interamericano e a estimular o trabalho de pesquisa na área a fim
de se compreender os fenômenos culturais e literários da contemporaneidade.
Muitos destes conceitos tentam definir o estatuto da cultura americana
e, sobretudo, latino-americana, às vezes mais particularmente a literatura
destes países em oposição à literatura europeia, mãe com a qual todas as
literaturas da América mantêm um vínculo placentário, na observação de
Antonio Candido (1979, p. 353).

25
literatura mestiça, literatura transnacional,
literatura da migrância

[la notion de migrance est] un passage à l’autre, un mouvement trans-


gressif de l’Un vers l’Autre, qui enfreint les lois du propre, franchit les
frontières de la propriété ou de l’individualité, pour aller au-delà, tou-
jours, du lieu d’où l’on vient et d’où l’on tire son identité, pour mieux
défaire ce lien originaire et le renouer chaque fois en un nouveau des-
tin, un autre devenir qui est aussi un devenir autre.
pierre ouellet

Introdução
Emprega-se hoje, sobretudo nos meios francófonos, o sintagma “lite-
ratura mestiça” para designar a literatura que incorpora elementos da orali-
dade a fim de desterritorializar a língua e hibridizar os gêneros. Trata-se de
uma produção de escritores de países pós-coloniais que, tendo recebido uma
educação ocidental, falam mais de uma língua e têm uma cosmovisão mar-
cada pela mescla. Para tentar dar conta deste mundo “mestiço”, eles intro-
duzem palavras de línguas étnicas e/ou crioulas, mas sobretudo transgridem
a sintaxe da língua ocidental conferindo-lhe um ritmo e uma economia que
não lhe são próprios.
Observa-se, com efeito, que o conceito de mestiçagem, no duplo sen-
tido de miscigenação biológica e mestiçagem cultural, que era fortemente
associado à América Latina, se esvaziou de seu conteúdo racial e começou a
ser aplicado aos fenômenos ligados ao processo da globalização e da diáspora
nas últimas décadas do século xx. Nos países de língua inglesa, são antes as
noções de hibridação, de terceiro espaço (Bhabha) ou de diáspora (Hall)
que exprimem o equivalente da mestiçagem – termo que, como se sabe, não
existe em inglês (salvo miscigenation, no sentido racial).
François Laplantine considera que a mestiçagem constituiria “uma via
mediana entre a fusão totalizante do homogêneo e a fragmentação dife-
rencialista do heterogêneo” (Laplantine apud Lévy, 2002, p. 152), ou seja,
no multiculturalismo e no diferencialismo da América do Norte estamos
aquém da mestiçagem, enquanto na fusão totalizante da França, que aspira
ao homogêneo, estamos além da mestiçagem. Ele coloca a lógica da mesti-

26
çagem no que Deleuze chama de “conjunção disjuntiva”, o que quer dizer
que estamos no domínio do paradoxo.
A mestiçagem em Laplantine é um filosofema bastante fluido que se
opõe a todo pensamento categorial e classificatório e que tenta dar conta de
processos de contaminação e de mescla em vários momentos da humani-
dade e em vários domínios. Para ele o processo de mestiçagem não se cons-
titui de “empréstimos” mas de “transmutações” do que se recebe. Neste sen-
tido, ele é irredutível à soma dos “componentes” primeiros – considerados
primeiros seja em termos cronológicos seja em termos ontológicos. A lógica
mestiça seria a de uma “multiplicidade em devir” e, por conseguinte, não se
trata de uma “acumulação” que levaria à formação de uma “totalidade” mas
de uma “tensão” (Laplantine, 2005, p. 9).
Os sintagmas “língua mestiça” e “literatura mestiça” não são (ainda?)
utilizados no Brasil. Mas, meu argumento é que, se toda a cultura brasileira
é mestiça, seria uma tautologia começar hoje a falar de língua e literatura
mestiças. Senão teríamos de nos perguntar desde quando elas são mestiças.
E qual seria a rentabilidade da aplicação de tais conceitos? A canonização da
antropofagia de Oswald de Andrade, que representa uma metáfora provoca-
dora e transgressora do processo de deglutição e de metabolização dos ele-
mentos estrangeiros absorvidos pela cultura brasileira, demonstra que ela é
o emblema da visão que os brasileiros se fazem de si próprios.

Sujeito e território
Ao examinar como a literatura tematiza a questão das migrações no
mundo de hoje, verificam-se fenômenos ligados à eclosão de novos proces-
sos de identificação suscitados pelo trânsito de pessoas e ideias, com o sur-
gimento de identidades culturais hibridizadas e novas formas de mestiça-
gem. Para tanto, pode-se explorar a relação dos personagens com o espaço
em processos de desterritorialização e reterritorialização.
Os escritores provenientes da imigração nas literaturas de língua fran-
cesa e inglesa, sejam eles exilados ou expatriados, são “obcecados pelo sen-
timento de perda, pela necessidade de reconquistar o passado, de voltar a
ele, mesmo com o risco de se tornar estátua de sal”, afirma Salman Rushdie,
que reconhece, entretanto, que eles seriam incapazes de reconquistar o país
perdido. Só lhes resta, portanto, criar ficções, não cidades reais mas pátrias

27
imaginárias, invisíveis (1993, p. 20). É por isto que muitos destes escri-
tores fazem romances da memória e sobre a memória, a qual se apresenta
de forma fragmentária, não oferecendo senão cacos de memória, “espelhos
quebrados” (1993, p. 21), na expressão de Rushdie. Paradoxalmente, estes
pedaços esparsos de memória adquirem maior ressonância porque se trata
de vestígios, aparentemente insignificantes, mas que simbolizam um pas-
sado enterrado. Rushdie considera que o escritor, tal como o arqueólogo,
vai desenterrar os vestígios do passado para fazer seus romances, ideia já pre-
sente nas reflexões de Walter Benjamin, que afirma que “quem pretende se
aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que
escava” (Benjamin, 2000, p. 239). Rushdie destaca que a descontinuidade
física, o fato de que o presente se situa em um lugar diferente de seu passado,
torna a perda mais sensível (Rushdie, 1993, p. 22).
O narrador/protagonista de Sergio Kokis (autor do Quebec de origem
brasileira) também afirma, no romance Le pavillon des miroirs, que tem medo
de tornar-se uma “estátua de sal”, caso olhe para trás. Na última página do
livro, o narrador se interroga sobre a veracidade da história contada, pois tal-
vez se trate de “uma pura invenção de suas quimeras”: “E já não sei se essas
coisas existiram ou se são pura invenção de minhas quimeras. Que importa?
Como Narciso se olhando num pavilhão de espelhos de um parque de diver-
sões miserável, reconheço-me nas deformações. Cicatrizes da memória, que
não cantam nem as armas nem os homens” (Kokis, 2000, p. 302).
O exílio, forçado ou escolhido, é vivido em um duplo movimento: de
um lado, a relação com o território perdido, o país natal ou o país dos ances-
trais que ficou para trás; de outro lado, a relação com o país de adoção,
no qual o personagem/escritor não está totalmente adaptado, sentindo-se
excluído ou segregado, devido a sua etnicidade ou ainda por razões econô-
micas ou existenciais. No primeiro movimento, há uma busca genealógica
identitária, ligada à ancestralidade, ancorada numa temporalidade histórica
ou imaginária e, ao mesmo tempo, revela um espaço perdido, um território
que se abandonou. No segundo movimento, o migrante sente que o país de
adoção não lhe pertence de todo, ele não faz parte do grupo majoritário que
Landowski chama de “grupo de referência” (2002).
O trauma da imigração pode-se manifestar também por uma relação con-
flituosa com os pais e as imposições culturais da comunidade à qual pertence.
Como assinala Dominique Viart, em muitas narrativas de língua francesa desde

28
os anos 1980 percebe-se uma preocupação de reconstrução de uma genea-
logia, o que revela a fratura que significou a emigração – do próprio escri-
tor ou de seus pais – e o sentimento de deserdamento (déshérence). Tomber
en déshérence se diz de um bem que não tem herdeiro, o que coloca a ques-
tão da impossível transmissão por falta de continuidade. Por não conservar
sua pertinência histórica, um conjunto se desfaz. Assim, a noção de déshé-
rence dá conta da caducidade das práticas, saberes, modos de ser e de fazer
de que ninguém é ou quer ser o herdeiro, ou ainda cuja herança tornou-se
impossível de ser recebida por transmitir práticas e conhecimentos obsole-
tos (Viart, 2005, p. 213).
O imigrante também pode se sentir totalmente livre ao se ver privado de
pais, como lembra Julia Kristeva. “Quem não viveu a audácia quase alucina-
tória de se imaginar sem pais – livre de dívidas e deveres – não compreende
a loucura do estrangeiro, o que ela lhe proporciona como prazer (...), o
que ela contém de homicídio raivoso” (1988, p. 35). Entretanto, em algum
momento sobrevém o sentimento de orfandade, uma ternura pelos pais per-
didos no passado/no país natal, como contraponto à indiferença de todos
que não os conheceram.
A questão do sujeito é fulcral, pois é sua subjetividade que interage com
o fora, estabelecendo os vínculos com o espaço. É aí, na intercessão do eu
com o outro, do eu com o território, que se situam os conflitos do sujeito.
Jean-Luc Nancy concebe o mundo e a subjetividade como inseparáveis, pois
para compreender um mundo é preciso habitá-lo, ou seja, um mundo é um
espaço em que ressoa uma certa tonalidade. Mas esta não é outra coisa senão
o conjunto de ressonâncias que os lugares do mundo modulam e se reen-
viam, inclusive as ressonâncias artísticas e literárias. Assim, habitar o mundo
deve ser compreendido também em segundo grau, ou seja, pode-se entender
formas de arte de uma cultura que não é a sua.
Nancy distingue os termos de globalização (usado em inglês) e de mun-
dialização (usado em francês): a primeira designaria uma globalidade de
injustiça sobre um fundo de equivalência geral (Nancy, 2002, p. 63) que
conduz ao i-mundo (immonde), enquanto a segunda designaria a criação
do mundo, um mundo habitável. A mundialização, que parte da palavra
mundo – espaço ocupado pelos homens –, conserva a dimensão de relações
humanas, enquanto a globalização seria um conceito mais abstrato que con-
duziria à proliferação do i-mundo.

29
Manifeste pour une “Littérature-Monde” en français
No dia 16 de março de 2007 o jornal francês Le Monde publicou o
Manifeste pour une “littérature-monde” en français, assinado por 44 escritores,
dentre os quais Edouard Glissant, Tahar Ben Jelloun, Maryse Condé. Tra-
ta-se de um libelo que, defendendo “a emergência de uma literatura-mundo
em língua francesa conscientemente afirmada, aberta para o mundo, trans-
nacional, assina o atestado de óbito da francofonia”. Dentre os argumen-
tos utilizados podem-se vislumbrar aspectos linguísticos, literários, políti-
cos, econômicos e socioculturais. Alguns meses mais tarde foi publicado
um livro, Pour une littérature-monde, organizado por Michel Le Bris e Jean
Rouaud, do qual participaram alguns dos signatários do Manifeste e outros
escritores que não o haviam assinado. Curiosamente, o Manifeste não apa-
receu no livro. Talvez isto se explique pelo fato de o texto de Michel Le Bris
conter trechos inteiros do Manifeste, o que indica que ele é o inspirador
e autor, juntamente com Jean Rouaud. Ele faz também um histórico das
várias manifestações ocorridas nos meses que precederam o lançamento do
Manifeste e reconhece também que ele havia lançado o termo “littérature-
monde” em 1992.
Inicialmente é preciso observar que o ponto de comparação postulado
é a existência de uma literatura de língua inglesa que não teria um rótulo
análogo a “francófono” e cujos autores – como Kazuo Ishiguro, Ben Okri,
Hanif Kureishi, Michael Ondaatje e Salman Rushdie – produziram “roman-
ces ruidosos, coloridos, mestiços, que diziam, com uma força rara e palavras
novas, o rumor destas metrópoles exponenciais em que se chocavam, se mis-
turavam, se mesclavam as culturas de todos os continentes” (Manifeste).
Não há dúvida que estas mesmas palavras poderiam se aplicar aos
romances escritos pelos escritores de língua francesa – africanos, antilhanos
– que não tinham, segundo o Manifesto, nada a invejar a seus confrades de
língua inglesa justamente porque eles praticavam a crioulização: “O con-
ceito de ‘crioulização’ que então os reunia, através do qual afirmavam sua
singularidade, era preciso decididamente ser surdo e cego (...) para não com-
preender que já se tratava de uma autonomização da língua” (Manifeste). No
âmbito deste manifesto, literatura mestiça, crioulizada e transnacional são,
senão homólogas, ao menos situam-se no mesmo campo semântico e ser-
vem para designar a obra de escritores que, não sendo de origem francesa,
possuem várias línguas/culturas.

30
A causa da marginalição dos autores ditos “francófonos” foi atribuída ao
meio literário francês, excessivamente centralista e voltado para si mesmo. Há
uma contradição na argumentação do Manifesto, pois, se isto fosse verdadeiro,
como explicar que os principais prêmios literários franceses em 2006 – o
Goncourt, o Grand Prix du roman da Académie française, o Renaudot, o
Femina, o Goncourt des lycéens – tenham sido atribuídos a escritores vin-
dos de fora? Segundo o Manifesto, a premiação serviria para confirmar o
valor inconteste dos escritores vindos de fora e a anemia da produção local.
Entretanto, percebe-se na atribuição de prêmios o reconhecimento que o
meio oficial da França dá aos bons escritores, sejam eles franceses de dentro
ou de fora, sobretudo quando são publicados por editoras francesas.
O Manifesto alegava que a ideia de francofonia é “o último avatar do
colonialismo”. Tahar Ben Jelloun, em um artigo publicado em Le Monde
Diplomatique dois meses mais tarde, ironizou as reuniões de cúpula da
francofonia afirmando que a noção de francofonia é uma herança colonial
que serve para reunir os chefes de Estado e a dar à França a ilusão que ela
controla suas antigas colônias. “Ver estes chefes de Estado africanos se per-
filar gentilmente em torno do presidente francês para a ‘foto de família’ tem
algo de patético e anacrônico. E eles adoram isto!”
O Manifeste só veio a ser publicado em livro em Les littératures de langue
française à l’heure de la mondialisation (2010), organizado por Lise Gauvin,3
que contém uma série de textos apresentados em colóquio realizado em
Montreal em 2008. Este livro assinala muito bem a posição quebequense
a favor da francofonia literária. Lise Gauvin fala de “malentendido francó-
fono”, criticando sobretudo as instituições literárias francesas: o paradoxo
apontado por ela é que a França é o centro da francofonia sem querer fazer
parte dela (Gauvin, 2010, p. 18).

Literatura nacional, literatura transnacional


Na reivindicação dos signatários do Manifeste pour une “littérature-
monde” en français, percebe-se a superação do “nacional” em benefício de
uma visão “transnacional” da literatura, na medida em que a maioria deles
pertence ao mesmo tempo a várias “comunidades imaginadas”, ou seja, são
3
Além do texto da própria Gauvin, destaca-se o texto de J.M.G. Le Clézio, que tinha acabado de
ganhar o Nobel quando pronunciou sua conferência em Montreal.

31
escritores que vivem uma realidade de hibridismo e mestiçagem. Já Tahar
Ben Jelloun defende uma ideia um pouco diferente. Ele entende que todos
os que escrevem em francês devam pertencer à literatura francesa:
A literatura francesa é (...) construída por todos os autores que se exprimem em fran-
cês, onde quer que seja. Neste sentido, o qualificativo de “francófonos” (...) é, não só
absurdo, mas também ofensivo. Não lembra as tentativas de instaurar uma hierar-
quia entre os Franceses ditos “de raiz” e os outros, que são entretanto cidadãos iguais
en direitos?

Assim, enquanto a postulação do Manifesto é transnacional, a reivindi-


cação de Ben Jelloun remete à literatura nacional. Se traçarmos um paralelo
com a questão tal como foi colocada no Brasil (e na América em geral) no
século xix, verificamos que a literatura nacional era então uma necessidade
de legitimação para uma nação recém-independente, ao passo que no caso
da francofonia de hoje os aspectos que estão em jogo são diferentes e muito
mais embaralhados porquanto numerosos escritores vivem na França e têm
nacionalidade francesa. Aliás, o mesmo fenômeno atinge vários países em
que se fala de escrita migrante ou diaspórica, termos que dão conta da situa-
ção de movência daqueles que escrevem numa língua que não é a materna.
A França tem uma longa tradição assimilacionista que, historicamente,
transformou os escritores e artistas estrangeiros que lá viveram em “france-
ses”. Entretanto, pode-se constatar que há autores mais ou menos “assimi-
láveis”. Há aspectos que influenciam a percepção da estrangeiridade e cons-
tituem obstáculos para a assimilação: 1. a etnicidade, que se manifesta pela
raça, cor ou religião dos escritores; 2. o imaginário e a temática deslocados
ou “exóticos” em relação ao imaginário francês; 3. a língua e a linguagem
às vezes claramente “mestiças”. A confluência destes três elementos acarreta
uma distância, o que faz com que os escritores negros (caribenhos e africa-
nos) e árabe-muçulmanos conservem sua identidade “estrangeira” enquanto
os escritores de origem europeia sejam mais facilmente assimilados. A escri-
tora Anna Moï (nascida em Saigon em 1955), aliás, assinala que os bran-
cos tornam-se franceses mais facilmente do que os negros e asiáticos (apud
Le Bris, 2007, p. 24). Marie Ndiaye, que ganhou o Goncourt de 2009 com
o romance Trois femmes puissantes, declarou em várias entrevistas (inclusive
numa para o Prosa e verso, O Globo, de 5/4/2010), que é absurdo atribuir-
lhe a identidade franco-senegalesa, já que ela nasceu e cresceu na França; seu
pai senegalês abandonou sua mãe e voltou para o Senegal, o que fez com que

32
ela não tenha tido contato com ele nem com o Senegal. Segundo Ndiaye,
chamá-la de franco-senegalesa é o mesmo que rotular o presidente Sarkozy
de franco-húngaro (o que ninguém faz, aliás).

Littérature-monde, Weltliteratur, World Literature


A ideia de littérature-monde pode evocar a de Weltliteratur, criada por
Goethe em 1827. Se ele falava então de Weltliteratur por associação com
Weltmarkt, hoje o mercado mundial chega a seu paroxismo, nele incluin-
do-se a literatura. Segundo Antoine Berman (2002, p. 99-103), trata-se de
um conceito histórico que concerne ao estado moderno das relações entre
as diversas literaturas nacionais e regionais; neste sentido, seria melhor falar
de era da literatura mundial porque a interação – que sempre existiu no
mundo literário – encontra-se intensificada. A noção de Weltliteratur de
Goethe implicava também a mediação da tradução a fim de tornar possí-
vel a simultaneidade, a coexistência ativa e consciente de todos os escritores.
Berman afirma que a Weltliteratur significava para Goethe a era da inter tra-
dução generalizada: assim todas as línguas aprendem a ser línguas de tradu-
ção e a viver a experiência da tradução. Esta consciência de um mundo que
devia passar pela tradução a fim de permitir o acesso da maioria à literatura
mundial exprimia a situação de relativa fragilidade e de posição um pouco
periférica da literatura alemã, que dava então seus primeiros passos. Glissant
também é muito consciente da importância da tradução, considerando, na
trilha de filósofos como Walter Benjamin, que “traduzir não é reduzir a uma
transparência, e naturalmente nem conjugar dois sistemas de transparência”
(Glissant, 1997, p. 29).
Todavia a situação da littérature-monde em francês tem implicações pós-
coloniais que ultrapassam o âmbito europeu no qual se situava a questão no
tempo de Goethe. Quando Glissant afirma “Escrevo doravante na presença
de todas as línguas do mundo, na nostalgia lancinante de seu futuro amea-
çado” (Glissant, 1997, p. 26), ele se refere a uma real ameaça de desapareci-
mento de línguas e culturas orais. O francês – sobretudo para os escritores
oriundos da África – é a língua ocidental que lhes permite exprimir a riqueza
de um mundo desconhecido pela maioria da comunidade internacional.
A literatura universal, em inglês World Literature, teve o sentido de con-
junto de “obras-primas que formam o patrimônio da humanidade, os títulos

33
de glória do planeta, tudo o que, sem deixar de pertencer à nação, pertence ao
conjunto das nações e estabelece um equilíbrio mediador entre o nacional
e o supra nacional” (Brunel et alii, 1995, p. 62). Lise Gauvin diz temer que
a noção de littérature-monde seja um avatar disfarçado da ideia de univer-
sal imposto pelas culturas dominantes para garantir sua hegemonia (Gau-
vin, 2010, p. 29). Glissant critica a noção de World Literature afirmando que
sua pretensão à universalidade não levaria em conta o Diverso. No entanto,
nos últimos tempos, nos Estados Unidos, houve uma ressemantização da
expressão, que passou a designar a produção das margens em oposição à
ideia de cânone. A littérature-monde para Glissant deve estar enraizada nos
lugares particulares para poder atingir o universal.

Literatura do Commonwealth
O Manifesto afirma que em inglês não haveria rótulo análogo à fran-
cofonia, o que é verdade, já que não se fala de anglofonia. Há um aspecto,
porém, que aproxima as duas realidades pós-coloniais. Salman Rushdie, em
um artigo intitulado “A literatura do Commonwealth não existe”, escrito em
1983 (1993, p. 77), mostrava que a expressão “literatura do Commonwealth”
– utilizada então para agrupar os escritores oriundos dos países que outrora
fizeram parte do Império Britânico – era inapropriada porque incluía escri-
tores provenientes de países que não faziam parte do Commonwealth (como
a África do Sul e o Paquistão). Mas o argumento principal tinha a ver com as
mesmas questões colocadas pelos signatários do Manifeste pour une “littératu-
re-monde” quase 25 anos depois, ou seja, que o termo tinha uma ressonância
paternalista e colonialista. Haveria, de um lado, a literatura inglesa propria-
mente dita – a superior, a sagrada – e, de outro lado, a literatura da periferia
que regruparia um bando de rudes recém-chegados ao mundo das letras. Ele
considerava particularmente desagradável a expressão “literatura do Com-
monwealth” por ela se constituir em “gueto de exclusão”. É importante des-
tacar que ele concebe a literatura inglesa como toda a literatura escrita em
língua inglesa, como Ben Jelloun considera que todos os que escrevem em
francês fazem literatura francesa (e não francófona). Assim, separar a litera-
tura inglesa seria conferir-lhe um caráter “segregacionista nos planos topo-
gráfico, nacionalista e talvez até mesmo racista” (Rushdie,1993, p. 79).

34
A regra base que sustenta o edifício do gueto “literatura do Common-
wealth” seria que a literatura é expressão da nacionalidade, o que Rushdie
contesta. Assim, a recepção nos países centrais varia: se os livros recriam
tradições orais e populares, com elementos das culturas ancestrais, eles são
apreciados, mas aqueles que mesclam as tradições ou rompem com elas pare-
cem suspeitos. O escritor pós-colonial é então acusado de falta de autenti-
cidade. Ora, por que se exige autenticidade de um escritor africano, asiático
ou latino-americano, e não se exige autenticidade de um escritor francês ou
inglês? Porque, como afirma Rushdie, a autenticidade é a herdeira do velho
exotismo. “Ela exige que as fontes, as formas, o estilo, a língua e os símbo-
los derivem todos de uma tradição pretensamente homogênea e contínua”
(Rushdie,1993, p. 83). A busca de autenticidade é falaciosa porque as tradi-
ções são múltiplas e já misturadas, não existe nada puro e homogêneo, senão
de forma abstrata e imaginária. Nimrod, escritor nascido no Chade, afirma
que o que os racistas europeus recusam é a mestiçagem cultural:4
O que dizer do escritor africano? Tudo se passa como se ele tivesse de produzir uma
literatura exótica destinada aos europeus e a si próprio, o que leva a destinar à nostal-
gia uma África que desapareceu há muito tempo (...). A literatura atravessa sua exis-
tência e o leva a escrever não uma literatura de africanos autênticos mas a de africanos
urbanos – em todos os sentidos do termo – que é a prova inaudita do mestiço cultural
em que eles se transformaram (Nimrod, 2007, p. 223).

Língua e linguagem
Rushdie ressalta que a flexibilidade do inglês possibilita que pessoas de
várias partes do globo o reinventem para exprimir suas necessidades. A par-
tir da etimologia de traduzir – traducere, levar além – o autor afirma que
os escritores diaspóricos são homens “traduzidos”, pois foram levados para
longe de seus locais de nascimento. Apesar de normalmente se dizer que se
perde no processo de tradução, Rushdie aposta que se pode também ganhar
(1993, p. 28). O fato de eles terem uma dupla perspectiva, de dentro e de
fora, permite que sua visão estereoscópica (Rushdie,1993, p. 30) seja parti-
cularmente interessante.
4
O depoimento da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, intitulado “The danger of a single story”,
em que ela fala sobre a força dos estereótipos e a exigência que se faz para os escritores africanos de ser
“autênticos”, tornou-se sucesso na internet no site seguinte (com tradução): www.ted.com/talks/lang/
por_pt/chimamanda_adichie_the_damger_of_a_single_story.html

35
De maneira semelhante, escritores africanos como Nimrod afirmam
que eles inventaram uma nova maneira de escrever em francês porque expri-
mem realidades que são parcialmente distantes da cultura e da sensibilidade
francesas. “O francês consegue falar nossas línguas sem deixar de ser fran-
cês” (Nimrod, 2007, p. 230). Patrick Chamoiseau, Raphaël Confiant e Jean
Bernabé, no Eloge de la créolité, explicam como os antilhanos conquistaram
a língua francesa.
Nós estendemos o sentido de certas palavras. Nós desviamos outros. E metamorfo-
seamos muito. Nós a enriquecemos tanto no léxico quanto na sintaxe. Nós a preser-
vamos em muitos vocábulos cujo uso se perdera. Em suma, nós a habitamos. Em nós,
ela ficou viva. Nela, nós construímos nossa linguagem (Bernabé, Chamoiseau, Con-
fiant, 1989, p. 47. Grifos dos autores).

Lise Gauvin fala da situação particular do escritor francófono que vive


em situação de plurilinguismo e por esta razão está condenado a pensar a
língua. Dotado de uma superconsciência linguística (surconscience linguis-
tique), ele emprega estratégias para, “sem renunciar a certos patamares de
legibilidade, compor com a opacidade das culturas singulares no imaginário
da língua” (Gauvin, 2010, p. 28). As estratégias de “desvio”, na expressão
de Glissant, incluem processos que vão da simples tradução de palavras ou
expressões crioulas aos comentários, notas de pé de página ou notas/léxico
no fim do romance, explicações tradutórias dissimuladas.

Exílio e violência
Outro aspecto importante que a literatura põe em cena é a violência
decorrente das travessias de território, presente na acolhida ou na recusa
do migrante, muitas vezes mascaradas de auto proteção, de universalismo
e de republicanismo. O próprio ato de escrita pode ser encarado como um
campo de batalha, como no caso de Wajdi Mouawad, escritor de origem
libanesa que vive entre a França e o Quebec.
Deixar o silêncio da infância e tornar-me miliciano, arma na mão, e levar o massacre
com palavras. A escrita como campo de batalha. É preciso escavar trincheiras. Sitiar.
Fazer saídas. Atacar na chuva. Lutar no corpo a corpo. Encontrar a violência com esta
pergunta em forma de faca plantada na traqueia: no que eu teria me transformado
com uma arma na mão? (Mouawad, 2007, p.187)

36
Os imigrantes nas grandes cidades, privados de herança, que se encon-
tram em luta contra os métodos capitalistas que lhes impõem condições
injustas de trabalho, podem se ver diante de uma situação de ainda maior
perda identitária quando as fábricas fecham e se mudam (fenômeno chamado
de deslocalização). Os jovens e crianças, desadaptados, com problemas de
aprendizagem ou fuga da escola, caem facilmente na delinquência. O espaço
urbano que aparece descrito nas narrativas da imigração é o espaço da mar-
gem e da marginalidade, como se pode ver no romance Shérazade, 17 ans,
brune, frisée, les yeux verts (1982), de Leïla Sebbar. O título deste romance
evoca o de Moi, Christiane F., 13 ans, droguée, prostituée..., livro de dois jor-
nalistas alemães sobre uma adolescente que se prostituía para comprar dro-
gas (traduzido em francês em 1981, mesmo ano em que saiu o filme homó-
logo) e que se tornou muito famoso nos anos 80. Sebbar coloca num squatt
da banlieue parisiense diversos jovens, filhos de imigrantes provenientes do
Caribe, do Magreb e da África subsaariana que, tendo deixado suas famí-
lias em busca de maior liberdade, praticam pequenos delitos, fugindo ao
modelo burguês. De maneira profética, este romance termina com o sui-
cídio de Pierrot, que explode o carro em que viaja com Shérazade, cena
que evoca os incêndios de carros ocorridos em 2005 na França. Nicolas
Sarkozy, então Ministro do Interior, ao visitar a banlieue de Argentueil em
26 de outubro de 2005, disse que era preciso se livrar da bande de racaille
(bando da ralé). Sem analisar as intenções do ministro e o contexto em que
a proferiu, a expressão tornou-se o catalisador de uma insatisfação generali-
zada no que diz respeito à maneira como os filhos dos imigrantes são vistos
pelas autoridades francesas. A partir da concepção da biopolítica de Agam-
ben, pode-se fazer uma associação do morador da banlieue – espaço fora da
cidade reservado aos banidos – com o homo sacer, aquele cuja vida nua “é
matável e insacrificável” (2002, p. 91).

República mundial das letras


Como os escritores antilhanos e africanos de língua francesa, Rushdie
postula que a língua inglesa deixou de ser propriedade dos ingleses há muito
tempo e que, neste sentido, não há mais centro. Destruir o centro tem como
corolário destruir a noção de periferia, à qual são relegados os escritores pro-
venientes da imigração. Este ponto é importante como matéria de discussão.

37
No caso do inglês a colocação parece ser bastante apropriada porque o pode-
rio americano desestabilizou a posição da Inglaterra enquanto centro. Já os
escritores canadenses de língua inglesa, próximos demais dos Estados Unidos,
preferem reforçar o polo de Londres que lhes fornece um capital cultural em
contraposição à dominação do seu vizinho do sul (Casanova, 1999, p. 176).
Entretanto, no caso francês, Paris continua a exercer uma primazia tanto
política quanto cultural no espaço francófono e, como aponta Pascale Casa-
nova, se ela desempenhou o papel de centro de consagração para inúme-
ros escritores norte-americanos (Faulkner, os negros a partir do movimento
do Harlem Renaissance) e latino-americanos (sobretudo do chamado boom),
paradoxalmente, para os escritores de língua francesa, Paris não pode fun-
cionar como uma espécie de “terceiro lugar específico” (Casanova, 1999, p.
177). Como não há outro local que possa exercer a função de centro de con-
sagração, o mal-estar e a marginalização dos escritores francófonos redunda-
ram no Manifesto. Na área de língua francesa, Montreal é talvez a primeira
cidade a tornar-se instância de legitimação enquanto polo irradiador de cul-
tura francesa, com grande número de editoras, prêmios, salões do livro, jor-
nais. Mas tanto no caso francês quanto no inglês, é preciso reconhecer que as
capitais dos antigos e atuais impérios – Paris, Londres, Nova Iorque – ainda
são centrais no jogo do poder cultural e não é por acaso que é nestas grandes
cidades que os escritores do mundo inteiro se encontram e dialogam.
Pascale Casanova destaca a questão da disputa que existe no campo lite-
rário. Pode-se perceber este caráter competitivo no Manifeste, pois trata-se
tanto de uma disputa de mercado quanto de um combate político. Vendo-se
como periféricos no campo literário francês, estes escritores são muito lúcidos
quanto a sua potencialidade no jogo de forças do mercado internacional.
Assistiu-se nas últimas décadas, com efeito, à renovação do romance
pela intervenção de autores vindos do Sul, como observa Milan Kundera:
“uma nova grande cultura romanesca caracterizada por um extraordinário
sentido do real ligado a uma imaginação desenfreada que ultrapassa todas
as regras da verossimilhança” (Kundera, 1993, p. 43). Salman Rushdie tam-
bém aponta para o caráter inovador da produção dos países pobres e das
minorias deserdadas dos países ricos e para o intercâmbio e a intertextuali-
dade existentes entre diferentes regiões do planeta: por exemplo, o realismo
mágico latino-americano foi absorvido e reciclado por escritores da Índia,
como ele próprio (1993, p. 85). Haveria uma república mundial das letras
– para usar a expressão de Pascale Casanova – sem fronteiras políticas e lin-

38
guísticas. Mas, paradoxalmente, se os autores das periferias estão mais aptos
a renovar do que os escritores dos centros literários, é aí – nos grandes cen-
tros – que os escritores “do sul” devem ser consagrados para terem uma
oportunidade de sobreviver.
Não é por acaso que os escritores de língua francesa que reivindicam
a pertença a uma literatura-mundo se comparam aos escritores de língua
inglesa que são, hoje, os mais inovadores, os mais vendidos e os mais citados.
Abaixo deles viriam os latino-americanos, tanto os velhos romancistas do boom
que continuam produzindo (Vargas Llosa, Garcia Marquez) quanto alguns
novos escritores, como Roberto Bolaño, Rodrigo Fresán, Santiago Gamboa e
outros. Com algumas exceções, naturalmente, pode-se afirmar que os maiores
prosadores da contemporaneidade são pessoas com duplas ou múltiplas iden-
tidades, pessoas que não estão coladas a nenhuma nação de modo monolí-
tico, pessoas híbridas que se situam no entredois, no entrelugar. Imre Kertész,
escritor judeu húngaro (nascido em 1929, enviado aos campos de concentra-
ção de Auschwitz e Buchenwald em 1944, que vive atualmente a maior parte
do tempo na Alemanha), diz que ele se sente estrangeiro na Alemanha, na
Hungria e mesmo em Israel ele não teve a sensação de “volta ao lar”, o que
o leva a se indagar: “Eu sou um judeu diferente. Que tipo de judeu sou afi-
nal? Nenhum. Há muito tempo não estou mais à procura de minha pátria,
nem de minha identidade. Sou diferente deles, sou diferente dos outros, sou
diferente de mim” (Kertész, 2007, p. 155).
Um importante aspecto nesta república mundial das letras, com o
grande trânsito de pessoas e uma interlocução facilitada pela rapidez com que
são feitas traduções das obras literárias, é a “polinização cruzada” (Rushdie,
1993, p. 31), ou seja, cada escritor pode escolher seus predecessores, seus
pais. Rushdie, por exemplo, coloca-se como herdeiro de Gogol, Cervantes,
Kafka, Melville e Machado de Assis, uma árvore genealógica poliglota, dos
quatro cantos do mundo. Decididamente, os escritores que estão produ-
zindo uma literatura transnacional eliminaram todo tipo de gueto, seja ele
nacional, territorial ou linguístico.

39
etnicidades em recortes geoculturais
o conceito de américa latina

Soy loco por ti, América!


capinan, gilberto gil

História do conceito
O termo América Latina surgiu na França no bojo do movimento pan-
latinista, idealizado por Michel Chevalier, que concebia um papel proemi-
nente para a França no sentido de liderar as nações menos favorecidas que
pertencessem também à race latine. Esta latinidade se opunha, naturalmente,
à hegemonia da Inglaterra e à nascente dominação norte-americana em seu
próprio continente. Na agenda política do panlatinismo do imperador Napo-
leão III estaria um projeto de influência francesa na América (que ela havia
perdido nos séculos xviii e xix com a cessão do Canadá à Inglaterra e com a
independência do Haiti), evidenciada na invasão do México e na imposição
do imperador Maximiliano – da Casa dos Habsburgos da Áustria –, figura
um pouco patética que não obteve nenhum apoio popular e resistiu pouco
tempo (1864-1867). É importante lembrar que este movimento de latini-
dade servia de justificativa para os sonhos imperiais da França, que come-
çava então sua expansão colonial na África, em clara competição com a Grã-
Bretanha. A latinidade coincidia e dava fundamento à missão civilizadora da
França na África e na Ásia.
Segundo Rojas Mix, o primeiro a empregar o termo América Latina
foi o chileno Francisco Bilbao, numa conferência dada em Paris em 24 de
junho de 1856. Três meses depois, o colombiano José Maria Torres Caicedo
(1832-1867) escreveu o poema “Las dos Américas”.
La raza de la América latina,
Al frente tiene la sajona raza,
Enemiga mortal que ya amenaza
Su libertad destruir y su pendón (Caicedo apud Mignolo, 2007, p. 103).

Rojas Mix considera que Bilbao era um homem marginal da história,


subversivo, que não se encaixava bem em nenhum papel oficial; ele teria
abandonado o uso depois da invasão francesa do México. Os historiado-
res parecem tê-lo esquecido mas na época desempenhou grande influência,

43
tendo sido amigo de Lamennais, Michelet e Quinet. É dele a expressão “Esta-
dos Desunidos da América”, citado por Hostos: “Los Estados Desunidos de
América, como el buen Francisco Bilbao llamava a los de América latina”
(1991, p. 345). Já Torres Caicedo era um homem que se movia em círcu-
los diplomáticos e com contatos estreitos com a França. Fez muito esforço
para difundir o termo América Latina, da qual excluía o Brasil, pois ele só
incluía as repúblicas e o Brasil era então um império (1991, p. 347). Nas
obras do argentino Carlos Calvo publicadas nos anos 1860 o nome Amé-
rica Latina era corrente, contribuindo assim para sua divulgação. A França
ajudou a fixar o termo, que lhe servia então de anteparo para sua interven-
ção no México, mas outros europeus reagiram assim como os criollos. De
acordo com Rojas Mix, Bilbao havia dado ao termo o caráter anticolonia-
lista e anti-imperialista que ele viria a ter quando usado pelas esquerdas da
América Latina no século xx (1991, p. 349).
O panlatinismo foi uma ideologia expansionista da França, que justifi-
cava sua política colonial. Michel Chevalier, seu principal ideólogo, consi-
derava que a França era chamada a exercer um benévolo patronato sobre os
povos da América do Sul, que não estavam em condições de bastar-se a si
mesmos. A Revue des Races latines, publicada em Paris de 1857 a 1861, foi o
grande órgão de difusão do panlatinismo. Ela vulgarizou uma ideia que viria
a ter muitos desdobramentos: a de que a América anglo-saxônica era mate-
rialista e de que a América Latina era mais espiritual. Esta ideia foi desenvol-
vida na França por Ernest Renan, que inspirou Rodó, autor de Ariel. O arie-
lismo espiritualista em oposição ao calibanismo materialista teve um futuro
agitado na retórica ideológica que se seguiu.
O poema “Las dos Américas” expressava uma visada claramente de opo-
sição política ao expansionismo dos Estados Unidos, que em 1856 já tinha
anexado metade do território do México e que penetrava de modo imperia-
lista na região do Caribe e da América Central. Caicedo morreu em 1889,
mesmo ano em que foi realizada a Primeira Conferência dos Estados Ame-
ricanos em Washington D.C., que reuniu representantes de quase todos
os países do continente, em torno da ideologia do pan-americanismo. De
maneira significativa também, é o mesmo ano da cessão de Porto Rico pelo
Tratado de Paris e da “libertação” de Cuba pelos americanos. Há que se des-
tacar também o enfrentamento em torno da construção do canal do Panamá,
cedido aos franceses, cujo projeto (de Ferdinand de Lesseps, o construtor do
canal de Suez) não funcionou. No início do século xx os Estados Unidos

44
insuflaram a independência do Panamá (até então parte da Colômbia) para
poder construir e administrar o canal.
Segundo Feres Jr., o termo América Latina, usado pelos hispano-ameri-
canos, “serviu, pelo menos no plano discursivo, de bandeira contra a expan-
são imperialista americana”, enquanto na França ele representava suas pró-
prias pretensões imperialistas (Feres Jr., 2005, p. 55). Estes dois aspectos
podem ser verificados, de um lado pela influência intelectual da França nos
pensadores latino-americanos, de outro, pela ênfase que eles deram à opo-
sição entre a América Latina e os Estados Unidos (de José Martí a José Vas-
concelos, de Rodó a Gilberto Freyre). Segundo Walter Mignolo, a latini-
dade passou a designar um governo espanhol e português e uma sociedade
civil americana educada, que olhava para a França e dava as costas à Penín-
sula Ibérica (Mignolo, 2007, p. 83).
Se na primeira metade do século xix se usava o termo Hispano-América,
qual seria a explicação para o sucesso da ideia de América Latina? Segundo
o intelectual uruguaio Arturo Ardao, a ideia de América Latina se materia-
lizou devido à cumplicidade triangular da intelectualidade francesa, espa-
nhola e hispano-americana. Como a Espanha (poderíamos incluir Portugal
dentro do mesmo raciocínio) tinha perdido o trem da modernidade nos fins
do século xviii, a França passara a ser o modelo inclusive para os intelectuais
espanhóis (portugueses) (apud Mignolo, 2007, p. 84).
A primeira ocorrência em inglês do termo América Latina, segundo o
Oxford English Dictionary, data de 1890, e teria sido importado do espa-
nhol ou do francês em substituição à expressão América Hispânica (Feres
Jr., 2005, p. 51). A imagem negativa dos hispano-americanos nos Estados
Unidos foi construída, até meados do século xix, em torno dos termos cato-
licismo, indolência, ignorância e falta de iniciativa, que se oporiam à ima-
gem que os norte-americanos faziam de si próprios, protestantes, trabalha-
dores e empreendedores, ou seja, as oposições culturais eram fixas. Durante
a guerra do México a questão da raça foi introduzida como “principal ins-
trumento retórico para se afirmar a inferioridade dos mexicanos”, em parti-
cular, e dos hispano-americanos, em geral (Feres Jr., 2005). A incorporação
do território do México não constituía um problema para os líderes políti-
cos dos Estados Unidos, o problema era incorporar os índios e mestiços que
formavam, segundo eles, a população mexicana.
A doutrina do Destino Manifesto (Manifest Destiny), que foi usada na
imprensa em 1845 por John O’Sullivan para defender a anexação do Texas,

45
deu sustentação ao expansionismo americano: a raça britânica estaria ampa-
rada pela Providência Divina no sentido de empurrar as fronteiras e avançar
no domínio das terras. Este messianismo, baseado na certeza do direito de
expandir-se para realizar uma missão salvadora, aparece nos textos de filó-
sofos e poetas maiores como Ralph Wando Emerson e Walt Whitman, por-
que ele já estava inscrustado na formação do povo americano desde os pri-
mórdios, com os pais fundadores, pioneiros que avançavam na crença de
que criavam algo de novo, diferente do que tinham conhecido na Europa
de seus ancestrais. Este messianismo ressurgiu com toda força após o 11 de
setembro, durante o governo de George W. Bush. Os Estados Unidos se
apresentaram como ponta avançada da civilização, portanto superiores ao
resto do mundo numa perspectiva teleológica; o desprezo que demonstra-
ram ao Outro – os árabes muçulmanos – se sustentava na diferença racial,
cultural e religiosa.
Nos vários exemplos de discursos de políticos citados por Feres Jr.
depreende-se o desprezo dos chamados caucasianos americanos por todo
elemento de cor, o que o leva a concluir que “a inferiorização racial do outro
serve de base para dois tipos de expectativas: condenar a história da América
espanhola ao eterno fracasso e rechaçar qualquer projeto futuro de incor-
poração de povos marcados pela mistura racial à união americana” (Feres
Jr., 2005, p. 64). Estes dois aspectos deixaram marcas indeléveis nas men-
tes e extravasam nos discursos políticos latino-americanos; a falta de con-
fiança em nós mesmos subjaz nos discursos que os líderes da região fazem,
reafirmando que a América Latina é viável. Ou seja, a inferência imposta de
fora, de que a América Latina não tem condições de progredir, foi interio-
rizada; por outro lado, os chamados latinos, que vivem nos Estados Unidos,
são inferiorizados e condenados a desempenhar o papel de Outro das classes
dominantes, os wasps (brancos anglo-saxões protestantes).
Enrique Dussel prefere usar o termo hispano para designar qualquer
latino-americano que vive nos Estados Unidos: “O hispano pode ser um
indígena guatemalteco em Chicago, um mestiço mexicano em San Diego,
um branco criollo uruguaio em Washington, um afro-caribenho porto-ri-
quenho em Nova Iorque, para nomear alguns” (Dussell, 2009, p. 262). O
que conta para ele é que os hispanos constituem, na sociedade norte-ameri-
cana hegemônica, uma comunidade desprezada, dominada, empobrecida e
excluída, um espectro que vagava em pura ‘exterioridade’ mas que conseguiu

46
alguns direitos graças a sua luta por reconhecimento. Os hispanos são os
irmãos latino-americanos do norte, uma nação latino-americana a ser con-
siderada como tal (Dussell, 2009, p. 270).
As elites norte-americanas desde o século xix opuseram o governo de
raça branca de seu país aos governos da América Hispânica, cujas desgraças
decorrem do erro “de terem colocado essas raças escuras em pé de igualdade
com a raça branca” (apud Feres, 2005, p. 64). Após estudar o surgimento
dos estudos latino-americanos na década de 1960, sobretudo após a revolu-
ção cubana, Feres Jr. faz uma interessante análise do discurso de vários livros
de latino-americanistas publicados nos Estados Unidos nos últimos anos,
demonstrando que a representação produzida pela academia norte-ameri-
cana, em vez de formar os estudantes, deseduca-os, na medida em que reforça
os clichês e estereótipos em relação à cultura, ao grau de civilização, à violên-
cia e à mistura de raças dos latino-americanos, sempre tendo os Estados Uni-
dos como paradigma de pureza de raça, de avanço de civilização, de cultura
racional e aparentemente de ausência de violência, numa relação assimétrica.
Se na tradição do pensamento latino-americano existe uma clássica opo-
sição entre Nuestra América e os Estados Unidos, Walter Mignolo atualiza
este pensamento através do conceito de diferença colonial. Ele afirma que a
relação entre os países desenvolvidos imperiais e os países subdesenvolvidos
emergentes é marcada pela diferença colonial na esfera em que se estabele-
cem o conhecimento e a subjetividade, a sexualidade e o gênero, o trabalho,
a exploração dos recursos naturais, as finanças e a autoridade. Quando se
afirma que há diferenças culturais se subestima a relação de poder, enquanto
que com a noção de diferença colonial se expõe este aspecto diferencial do
imperial/colonial (Mignolo, 2007a, p. 61).

A invenção da América
O mexicano Edmundo O’Gorman, em seu livro A invenção da América,
afirma que a Europa fez tábula rasa das civilizações que existiam na América,
ignorando-as, rejeitando-as para o lado do avesso da “modernidade” que ela
encarnava. Ele contesta o uso do termo “descobrimento”, que denota uma
visão substancialista da América como uma coisa em si, definitivamente aca-
bada desde sempre, imutável, que milagrosamente foi revelada (O’Gorman,
1986, p. 53).

47
O termo “invenção”, ao contrário, pretende dar a ideia de que a América
está em constante devir, não é algo já pronto. O pretenso “descobrimento”
implicou a apropriação do continente e sua integração no imaginário euro-
peu. A hegemonia do Ocidente baseia-se na crença em sua superioridade
racial, filosófica, religiosa e científica. Deste modo, a descrição, a conceptua-
lização e a classificação do mundo feitas pela Europa definiram que ela ocu-
pava o centro e, ao mesmo tempo, jogava as outras partes do mundo para a
periferia. Como a civilização ocidental é o ponto de referência, ela se tornou
o objetivo a ser atingido pelo resto do mundo. Como os Estados Unidos tor-
naram-se a ponta avançada do ocidentalismo, acrescida do messianismo do
Destino Manifesto, eles acabaram adotando em relação à América Latina a
mesma atitude dos europeus. Apossando-se do termo América, os Estados
Unidos deslocaram a América Latina do Ocidente porque tinha incorpo-
rado os indígenas e negros.
Walter Mignolo vê em descoberta e invenção dois paradigmas distintos:
em descoberta estaríamos numa perspectiva imperialista da história mun-
dial adotada por uma Europa triunfante, portadora da modernidade; já em
invenção nos colocaríamos na perspectiva daqueles que foram excluídos do
projeto modernizador, ou seja, os indígenas e os afro descendentes (Mig-
nolo, 2007a, p. 29).
Apoiado no pensamento do sociólogo peruano Aníbal Quijano, Wal-
ter Mignolo retoma o conceito de colonialidade. Diferentemente de colo-
nialismo, que tem localizações geográficas e históricas, a colonialidade é a
matriz do poder colonial que subjaz desde a independência. A matriz colo-
nial muda de mãos mas continua de pé (Mignolo, 2007a, p. 92). As inde-
pendências dos países americanos foram políticas, econômicas mas não epis-
têmicas porque a lógica da colonialidade continuou sendo a mesma. Após
a independência, as elites rearticularam a diferença colonial, tornando-se
colonizadores internos dos indígenas e negros.
Ao longo da História, houve alguns movimentos que poderiam ter
resultado em mudanças fundamentais na configuração da América, como a
reação dos Incas no século xvi contra os espanhóis e que resultou na derrota
e morte de Tupac Amaru, tornando impossível a continuidade do poder
inca. Houve várias rebeliões durante o vice-reinado, mas a mais importante
foi a liderada pelo bisneto de Tupac Amaru no século xviii (1780-1783). A
revolução dos escravos no Haiti também foi contraditória porque os negros
haviam introjetado os valores franceses; além disto, a independência do Haiti

48
redundou em bloqueio e consequente isolamento em relação aos demais
países da América Latina.5
Segundo Mignolo, hoje assistimos a novos processos de descoloniza-
ção do saber e da subjetividade pela criação de alternativas ao capitalismo
e pelo aparecimento de novas ideologias (Mignolo, 2007a, p. 108). Movi-
mentos de indígenas e afro descendentes representariam uma revolução
epistêmica pela valorização de formas de pensamento não europeu, que se
fundam antes na forma de pensar dos africanos e dos indígenas. Segundo
ele, os indígenas reivindicam a apelação Abya-Yala para o continente ame-
ricano enquanto os afro-andinos do Equador e da Colômbia usam o termo
de Comarca, que denotaria a ideia de um grande território compartilhado
com uma raiz comum.
Criticando o uso do termo “América Latina”, Mignolo afirma que
ela só existe na consciência daqueles que se identificam com a história e a
ascendência europeia (Mignolo, 2007a, p. 47). Se indígenas e afro descen-
dentes vivem na “América Latina” – porque tal nome ainda não mudou
oficialmente – a consciência está se transformando. Ao afirmar que os latino-
americanos que vivem na América Latina se consideram descendentes dos
europeus enquanto os latinos que vivem nos Estados Unidos, classificados
como norte-americanos de segunda classe, sabem que formam um grupo
social inferior, Mignolo parece demonstrar uma visão dicotômica e quase
maniqueísta, considerando que os latino-americanos que vivem na América
Latina são alienados e assimilados, como os criollos de antigamente, ao passo
que os latinos, por sua posição subalternizada na sociedade anglo-hegemô-
nica, seriam mais radicalmente conscientes de sua verdadeira identidade. A
consciência adquirida estaria levando-os a criar um projeto de descoloni-
zação. Assim, para Mignolo, as elites latino-americanas, em sua pretensão,
não passam de europeus de segunda classe; os indígenas e os afro descenden-
tes, que nunca tiveram tal fantasia, teriam uma postura diferente (Mignolo,
2007a, p. 87). Contrariamente às elites dos Estados Unidos, que romperam
com a Europa, as elites latino-americanas teriam conservado sua relação de
dependência subjetiva com a Europa. Agora indígenas, negros e latinos esta-
riam fazendo o que as elites criollas deveriam ter feito há 200 anos (Mignolo,
2007a, p. 91). Esta visão essencialista de Mignolo fixa padrões ideológicos
e políticos de comportamento por grupos étnicos, como se ser latino nos

5
Ver capítulo sobre o Haiti.

49
Estados Unidos ou latino-americano na América Latina moldasse pessoas
substancialmente iguais, quando na verdade somos todos desiguais: há lati-
nos de todo tipo, assim como há latino-americanos de todas as ideologias.
Mignolo critica a ideia de América Latina porque a latinidade teria con-
tribuído para disfarçar a diferença colonial interna com uma identidade his-
tórica e cultural que parecia incluir mas que na realidade silenciava e excluía.
A latinidade teria criado um novo tipo de invisibilidade para os indígenas e
os afro descendentes, que foram silenciados e não estariam interessados em
pertencer ao ethos latino (Mignolo, 2007a, p. 116).
Apesar da argúcia das análises feitas por Mignolo, às vezes ele acaba
caindo em generalizações que amalgamam movimentos minoritários de
várias ordens, numa certa indistinção. Ao afirmar que haveria um “depois de
América Latina” como fruto da iniciativa de “índios, afro-latinos, mulheres
de cor, gays e lésbicas” (Mignolo, 2007a, p. 123), Mignolo mistura reivin-
dicações de grupos que nada têm em comum: há um abismo entre as lutas
do militante gay Harvey Milk,6 do militante negro Martin Luther King ou
do Comandante Marcos, de Chiapas. Por outro lado, ele se refere com fre-
quência aos movimentos dos povos afro-andinos e ignora o que acontece no
Brasil, país que tem a maior população negra fora da África. Ao afirmar que
o pensamento descolonial estaria na filosofia africana, indígena e afro-cari-
benha (Mignolo, 2007a, p. 210), Mignolo faz um bloco essencialista que
junta todos contra a filosofia europeia, como se no mundo do século xxi
ainda houvesse filosofias puras e isoladas, como se os ritmos africanos, as
religiões afro-brasileiras e afro-caribenhas não fossem desde o início mistu-
radas com elementos das tradições religiosas e musicais europeias.
Um outro aspecto problemático na análise desenvolvida por Mignolo
estaria no peso excessivo que ele atribui às políticas adotadas pelos governos
de Evo Morales, Rafael Correa, Hugo Chaves. Ao superestimar as conquis-
tas, ele postula, sem fornecer elementos palpáveis, que elas vão levar a uma
mudança epistêmica significativa no mapa cultural, ensejando um “depois
da América Latina”, portanto fundando uma nova América do Sul livre do
adjetivo latina. Para ele, a criação da União Sul-Americana (unasul) signi-
fica o fim do ciclo da América Latina, iniciado nos fins do século xix (Mig-
nolo, 2007, p. 206). Mas as últimas reuniões da unasul têm terminado em
declarações anódinas e nenhuma realização efetiva de transformação.

6
Retratado recentemente no filme Milk de Gus Van Sant, com Sean Penn no papel de Harvey Milk.

50
Por outro lado, o termo América Latina, apesar do pecado de origem
da expressão, tem uma longa história de luta. Segundo Miguel Rojas Mix,
Martí seria o fundador do moderno conceito de América Latina apesar de
quase não usar o termo; fala de Nuestra América, Hispanoamérica, América
mestiza (1991, p. 137). O hispano-americanismo se transmuta em latino-
americanismo com Martí. Se desde então o nome da América Latina e o
gentílico correspondente se transformaram em uma reivindicação de identi-
dade continental, é porque os termos sofreram uma flexão semântica. Nues-
tra América é ao mesmo tempo uma identidade e uma ideia de unidade
(1991, p. 138). A ideia de que a identidade é um fenômeno histórico e não
racial, nem uma essência metafísica, é capital em Martí e tem consequên-
cia importante. Só na ideia de uma identidade histórica se pode inscrever
a função de criação na formação da identidade, compreender que a iden-
tidade está também no futuro que vamos criar. Neste sentido, a América é
também um projeto de sociedade. Ele postula uma sociedade não elitista,
popular e democrática e, sobretudo, inclusiva, porque inclui negros, mula-
tos, índios. Ele concebe Nuestra América como a terra dos trabalhadores, das
camadas populares. Rojas Mix considera que Martí foi um dos fundadores
do moderno conceito de América Latina porque superou a visão de comu-
nidade linguística ou puramente cultural. Cada vez mais o latino-america-
nismo se assentou em uma reivindicação de independência frente aos Esta-
dos Unidos, já explícita em Nuestra América. A noção de Nuestra América
ressignificou e deu uma carga semântica à noção de América Latina, con-
cedendo-lhe uma dimensão independente da latinidade francesa, do pan-
americanismo e do hispano-americanismo das elites criollas (1991, p. 152).
Também vale lembrar que o termo América Latina, desde os anos 1960,
ficou muito associado com lutas contra as ditaduras, com posições anti-im-
perialistas e antiamericanas, o que faz com que muitos se identifiquem com
ela. A posição de Mignolo é tributária de uma experiência de latino que vive
nos Estados Unidos, que tem, portanto, uma percepção diferente do esta-
tuto do latino-americano, como, aliás, ele próprio explica.

51
o haiti: história, literatura, cultura

Haïti où la négritude se mit debout pour la première


fois et dit qu’elle croyait à son humanité.
aimé césaire

Introdução
Em 2004, ano em que o Haiti comemorava o bicentenário de sua glo-
riosa independência, na qual antigos escravos negros venceram as tropas de
Napoleão, fazendo ao mesmo tempo a abolição da escravidão e a proclama-
ção da independência, ele aparecia nas manchetes de jornais como o cenário
de um espetáculo deprimente, tendo de aceitar mais uma vez a intervenção
da França, antiga metrópole, e dos Estados Unidos, que já ocuparam o país
por quase 20 anos (1915-1934).
A entrada dos Estados Unidos em países estrangeiros é sempre polê-
mica: o ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, que já havia sido deposto uma
vez por um golpe militar (1991), tendo sido recolocado no poder pelos
americanos (1994), eleito em eleições fraudadas (segundo a oposição) em
2000, tão logo se encontrou a salvo dos rebeldes que ameaçavam tomar a
capital Port-au-Prince, passou a acusar os americanos de o terem seques-
trado, levando-o para a República Centro-Africana, num golpe de estado.
Se a situação já era ruim, o terremoto ocorrido em 12 de janeiro de
2010 só fez piorar a situação. E os analistas políticos são unânimes em afir-
mar que, sem uma ajuda maciça do exterior, o país – o mais pobre da Amé-
rica – não terá condições de se reerguer. Os principais problemas atuais
seriam, de acordo com Gérard Pierre-Charles (2003): 1. o desastre ecoló-
gico como consequência do caráter predador do regime (desmatamento,
erosão, seca, falta de água); 2. o problema demográfico de uma população
de 8 milhões de habitantes, em sua maioria jovens, urbanos e desemprega-
dos; 3. a destruição da agricultura; 4. o crescente desequilíbrio da balança
de pagamentos; 5. a ruína da indústria local; 6. a descapitalização do país;
7. a crise da moeda.
A reação dos brasileiros diante das cenas mostradas pela televisão é ambi-
valente já que elas suscitam em nós um inquietante sentimento de estra-
nheza (para retomar uma expressão de Freud), pois parecem ser ao mesmo

52
tempo muito próximas e muito distantes de nós: a violência de negros em
atos de vandalismo em favelas é um reflexo no espelho daquilo que temos
visto também nas cidades brasileiras. No entanto, ao mantermos uma dis-
tância crítica e até irônica em relação ao Haiti, reafirmamos que não que-
remos ser como o Haiti, mas este Haiti presente no Brasil teima em reapa-
recer. Esta heterogeneidade que caracteriza o país – e a América Latina em
geral, como mostrou Antonio Cornejo Polar – com disparidades enormes
entre os grupos sociais e étnicos, foi poeticamente expressa nos versos da
canção de Gilberto Gil e Caetano Veloso, que joga com o par dicotômico “o
Haiti é aqui”, “o Haiti não é aqui”. Esta expressão é usada com frequência
na mídia, que tem dado um certo destaque ao que acontece no país devido
ao fato de o Brasil comandar a minustah (Missão das Nações Unidas para
a Estabilização do Haiti) desde junho de 2004. Nestes últimos anos houve
muitas notícias, desde a eleição de 7 de fevereiro de 2006, na qual saiu ven-
cedor o ex-presidente (1995-2000) René Préval, até as mais recentes, as ima-
gens da devastação provocada pelo terremoto.

Percurso histórico
Para entender a penúria econômica e o estado caótico do regime polí-
tico haitiano, é preciso examinar estes dois séculos de independência a fim
de detectar em que aspectos as elites do país falharam na construção de uma
democracia moderna. O Haiti, que enquanto colônia francesa se chamava
Saint-Domingue, era a joia do Caribe. Durante as guerras de disputa das ter-
ras na América, a França preferiu ceder o Canadá à Inglaterra, a fim de con-
servar as ilhas do Caribe, então as maiores produtoras de açúcar do mundo.
O Haiti teve uma valorosa luta contra a metrópole francesa, iniciada em
1791 com a célebre cerimônia de Bois-Caïman7 conduzida por Boukman,
na qual vodu e revolta se uniram para combater os senhores brancos, sendo
em seguida liderada por Toussaint Louverture, Dessalines e Christophe, que
7
A cerimônia de Bois Caïman foi realizada em 14 de agosto de 1791 perto de Cap Français (atual Cap
Haïtien), em terras da propriedade de Lenormand de Mezy. Foi uma cerimônia vodu, em que Bouk-
man (nascido na Jamaica) oficiava como hougan ou papaloa (pai de santo). Um porco foi sacrificado e
todos beberam o sangue do animal sacrificado (pacto de sangue) e fizeram juramento de fidelidade à
luta. No dia seguinte, plantações e usinas foram incendiadas: ao todo 200 de açúcar e 600 de café. Os
brancos foram assassinados. Uma onda revolucionária percorreu o país. Boukman foi morto, o corpo
queimado, a cabeça dependurada num poste na Praça de Armas de Cap Français, com a inscrição:
“Tête de Boukman, chef des révoltés”.

53
venceram as tropas de Napoleão. O país independente, praticamente destruído,
não foi reconhecido nem pela antiga metrópole, nem pelos Estados Uni-
dos, potência em ascensão. Na América escravista, todos os brancos tinham
muito medo do exemplo haitiano. O pânico foi particularmente forte em
países com maioria negra como o Brasil. Sérgio Buarque de Holanda, em
seu livro História geral da civilização brasileira, lembra que a revolução hai-
tiana foi evocada pelos revolucionários de 1817, em Recife:
Marinheiros e caiados
Todos devem se acabar
Porque só pardos e pretos
O país hão de habitar
Qual eu imito Cristóvão
Esse imortal haitiano
Eia! Imitai o seu povo
Ó meu povo soberano” (apud Scheinowitz, Oliveira, Laroche, 2004, p. 8).

O Haiti foi a Cuba do século xix: sofreu um bloqueio econômico das


potências e não tinha nem dinheiro nem tecnologia para continuar produ-
zindo açúcar, café e outros produtos agrícolas que exportava até sua inde-
pendência. E coincidência destacada pelos cubanos em número especial da
revista Casa de las Américas (2003) dedicado ao Haiti: ambas as revoluções
têm como data festiva o primeiro de janeiro, com uma diferença de 155
anos, porquanto a independência haitiana foi proclamada em 1804 e o novo
governo cubano assumiu em 1959.
Entretanto, logo após a independência, com a proclamação da primeira
república negra, o país implantou o único modelo nacional que conhecia,
o modelo francês. Como o povo nunca pôde ser integrado à nação a fim
de construir uma verdadeira democracia ocidental, o antigo escravo, ao se
tornar chefe de estado, se viu confrontado com a tentação de se identificar
com o estado e com a nação, tornando-se assim um tirano, já que sua von-
tade tornava-se expressão da vontade da nação. “O chefe de Estado se toma
então por único lugar da lei, único lugar da verdade, único lugar de engen-
dramento de toda a sociedade” (Hurbon, 1988, p. 69).
Os mulatos, que tomaram o poder político depois da morte do rei
Christophe, com a ascensão de Boyer (1820), se orgulhavam de nunca ter
sido escravos e de ser descendentes dos brancos, sentindo-se assim mais aptos
para governar, já que antigos escravos não teriam legitimidade para ocupar os

54
cargos de direção de uma nação civilizada. Como se consideravam primos
dos franceses, os mulatos estavam também mais próximos do único ideal
de cultura e civilização que conheciam. Esta francofilia levava-os a se ver
como franceses, ou, para usar a expressão de Fanon, a usar máscaras bran-
cas sobre suas peles (quase) negras. Laënnec Hurbon destaca que a tragédia
da carência de legitimidade levou alguns presidentes a se declararem presi-
dentes vitalícios ou a se proclamarem imperadores (Dessalines, Christophe
e Soulouque), a fim de se tornarem “senhores absolutos”, ou seja, a fim de
“colocar a legitimidade do poder ao abrigo de toda contestação possível: ter
sido escravo tornaria tão pouco segura esta legitimidade que o excesso acaba
sendo uma necessidade” (Hurbon, 1988, p. 68).
A alienação dos mulatos, cujas bases se encontravam no processo colo-
nial, foi colocada em xeque, pelo menos parcialmente, durante a ocupação
americana (1915-1934), quando estas elites foram afastadas do poder pelos
ianques, para os quais negros e mulatos se igualavam. Muitas famílias mula-
tas, constituídas de grandes produtores rurais que exportavam seus produtos,
foram alijadas do negócio de importação-exportação, partindo para a Europa
e aproveitando para usufruir os enormes ganhos advindos do boom do café.
Os jovens que criariam a Revue Indigène em 1927 eram filhos destes grandes
negociantes. Educados nos melhores colégios europeus, estes mulatos des-
cobriram na Europa o valor e o encanto do primitivismo e da art nègre, tão
cultivados pelos artistas de vanguarda. De volta ao país natal com suas famí-
lias nos anos 20, devido à queda, tanto no volume de vendas quanto nos pre-
ços do café, eles começaram a perceber no Haiti tudo aquilo que lhes tinha
passado despercebido até então: como outros artistas latino-americanos, eles
descobriram o próprio país pela mediação do olhar europeu das vanguardas.
Aqueles cujo coração se abriu para frêmitos estéticos ainda desconhecidos levam para
sua ilha novas aspirações intelectuais e literárias. Levam sobretudo o entusiasmo com-
partilhado lá [em Paris] pela ‘art nègre’, pelo negrismo, cujo espetáculo, cotidiano em
toda parte em seu país, não os havia emocionado até então. A partir daí eles olhariam
o seu entorno com outros olhos (Gaillard, 1993, p. 13).

Havia uma real dificuldade de se criar um imaginário haitiano quando


tudo o que fazia parte de seu cotidiano, de suas expressões emocionais, de
suas experiências vividas, era recalcado. A literatura procurou então expri-
mir a alma nacional através dos discursos que se impunham, o discurso da
raça e a rememoração da revolução de 1804:

55
Esta impossibilidade de se exprimir remete à impossibilidade de se construir em
torno de uma ficção nacional. De se pensar concretamente a partir de seu imaginário
ou pelo menos de uma parte deste imaginário. Quando, notadamente no século xix,
a elite haitiana consegue proferir seu “eu” ferido pela agressividade do estrangeiro,
este “eu” só se exprime através de dois termos: um, de caráter histórico, o da epopeia
de 1804, e outro, o da raça (Buteau, 1993, p. 24).

Laënnec Hurbon assinala que continuava operante no Haiti, tanto em


sua produção intelectual quanto nas práticas sociais e políticas, um disposi-
tivo de pensamento organizado em torno do binômio bárbaro x civilizado e
que, depois da independência, as elites se empenharam em fornecer a prova
de não barbárie do povo haitiano, buscando a qualquer preço se curar da
barbárie que o colonizador imputara aos negros. “Esta armadilha da obses-
são da civilização na qual a elite se afundou não pôde ser contornada” (Hur-
bon, 1988, p. 15). Assim, ao longo do século xix – dominado pelo posi-
tivismo e pelo darwinismo – escritores e pesquisadores, convencidos da
barbárie africana, tentaram provar que houvera uma melhoria no tipo negro
do Haiti, devido aos efeitos positivos do cruzamento de raças, com o aporte
de sangue branco, com a progressiva seleção da espécie e devido ao clima
ameno do país. Assim, a defesa da raça negra consistia em mostrar que o hai-
tiano se distanciava dos significantes da barbárie (o vodu e o crioulo) herda-
dos da África, e se aproximava dos significantes da civilização herdados da
França: a língua francesa, os usos e costumes, as práticas políticas e jurídicas.
“A língua francesa é a mais corrente, a única em uso, e todos os camponeses
a compreendem... Os hábitos e costumes, as festas, o direito, as instituições,
a roupa, tudo é francês: toma-se como modelo em tudo a França (Janvier
apud Hurbon, 1988, p. 59).
Pierre Buteau afirma que o Haiti, um século depois de sua indepen-
dência, ainda não constituía uma nação devido ao hiato existente entre os
discursos políticos e jurídicos sobre o país e a cultura vivenciada pela maio-
ria da população. Considerando com Alain Touraine e Ernest Gellner que
a nação só se constrói através da dupla articulação do político e do cultu-
ral, ou seja, a nação como ficção se constrói a partir de uma forte projeção
do cultural no espaço político, Buteau diagnostica uma dicotomia decor-
rente da herança colonial. O Ocidente, ao impor uma visão negativizada da
África para justificar a escravidão, teria inculcado nos negros um imaginário
que não era condizente com suas práticas de vida. O indigenismo viria assim
preencher este fosso, corrigir esta alienação.

56
A revolta indigenista encontrou seu fundamento nesta forma de perversão:
a exclusão sistemática da cultura popular dos lugares formais do Estado e da
totalidade das instituições da sociedade civil, desde 1804 até a tragédia da Ocu-
pação americana. Esta exclusão foi sentida como uma ferida, tendo em vista
que esta cultura popular iluminara durante cerca de treze anos uma das mais
gigantescas lutas de liberação nacional da humanidade, ou seja, desde a célebre
cerimônia de Bois-Caïman de 14 agosto de 1791 (Buteau, 1993, p. 13).
Ao longo do século xix era muito difícil para os negros da diáspora pen-
sar em si mesmos e na África sem os preconceitos difundidos pelo positivismo
e confirmados pela prática escravista. Não se pode ser anacrônico e pensar o
século xix com as ideologias do século xxi, criticando aqueles que não sou-
beram (puderam) valorizar suas culturas e suas origens. Kwame Anthony
Appiah destaca que Alexander Crummell, considerado por muitos como um
dos pais do nacionalismo africano, não via virtudes na África e, ao discursar
em 1860 na Libéria, fez o elogio da língua inglesa, dom que os negros “exila-
dos” teriam recebido dos brancos. Os negros americanos, que “inventaram”
a África no século xix, se basearam no conceito de “raça negra”, conceito que
não existia para as diferentes etnias que viviam na África, deixando assim,
segundo Appiah, “um legado incômodo” para as gerações seguintes, já que
sua opinião negativa sobre a África se estendia aos negros.
Talvez esta mirada mais ampla possa nos esclarecer sobre a postura etno-
cêntrica das elites quase-brancas no Brasil, constituídas de mulatos que pre-
feriam atribuir sua cor trigueira a uma pretensa origem indígena e tentavam
amaciar seus cabelos com babosa, como mostrou João Ubaldo Ribeiro atra-
vés de seu personagem Amleto em Viva o povo brasileiro. Ao longo do século
xix, como era muito difícil dissociar o negro da barbárie, as elites brasilei-
ras (letradas, políticas, econômicas) se viam como brancas, ou seja, detento-
ras da civilização, muito embora alguns de nossos grandes homens tenham
sido mulatos.

Indigenismo, negrismo e negritude:


o papel das vanguardas nos anos 20 e 30
O indigenismo constituiu uma tomada de consciência por parte de
escritores e artistas no sentido de incorporar a cultura popular, até então
relegada à margem da sociedade. Existe uma homologia entre indigenismo,

57
nacionalismo e haitianidade, implícita na definição dada por Roger Gaillard:
“Chama-se no Haiti ‘indigenismo’ a vontade dos artistas de se inspirar
(quanto aos temas e à forma de suas produções) nos costumes, nos valo-
res (da música, religião e dança) que pertencem à vida, à cultura nacional
(Gaillard, 1993, p. 9).
Embora o indigenismo tenha existido, segundo Gaillard, ao longo
do século xix, desde a independência do país, ele eclodiu enquanto movi-
mento literário com um programa definido com o lançamento da Revue
Indigène (1927), que teve seis números. A palavra indigène designava o ele-
mento autóctone mas cabe ressaltar que, naquele momento, ela designava
os nativos dos países asiáticos e africanos, sendo comum o seu uso com valor
depreciativo na literatura colonial francesa. O termo não evocava, portanto,
o “indígena” ou o “índio” natural da América, sendo empregado nos tex-
tos haitianos da época como sinônimo de nacional, podendo ser associado a
nativismo, particularmente reativado por causa da ocupação americana, epi-
sódio traumático na história do país.
A Revue Indigène foi organizada por jovens mulatos, dentre os quais
se destacavam Jacques Roumain, Carl Brouard, Philippe Thoby-Marcelin,
Emile Roumer. Jacques Roumain, que deu o nome à revista, tornar-se-ia,
nos anos subsequentes, o escritor mais importante do grupo, com vasta pro-
dução, só interrompida por sua morte prematura, aos 38 anos de idade.
Entretanto, as balizas teóricas do movimento já estavam sendo propagadas
por Jean Price-Mars desde o início dos anos 20, através da publicação de
artigos e da apresentação de conferências.
Do ponto de vista artístico e literário, o indigenismo dos anos 20 é um
movimento que está em consonância com as vanguardas francesas, cujos ideais
estéticos corresponderam a um desejo de ruptura com as tradições artísticas,
sobretudo pela valorização do primitivismo, da chamada “art nègre”, des-
coberta na África e levada para a Europa pelos exércitos coloniais ingleses e
franceses no início do século xx. O enorme impacto das estátuas e másca-
ras africanas, que já transparecia na tela Les demoiselles d’Avignon (1906), de
Picasso, se fez sentir nas artes plásticas, confirmando a ruptura com os ideais
renascentistas de representação, movimento já esboçado pelos impressionis-
tas no fim do século xix. Segundo Bernard Mouralis (1975), foi a primeira
vez que a Europa considerou artefatos de outros continentes como sendo
“arte”, ou seja, a modalidade de recepção se transformou e os artistas euro-
peus sofreram o influxo de um outro tipo de concepção estética.

58
A herança africana rasurada, apagada, só vai poder emergir devido a
todo um ambiente propício que fez com que eclodissem diversos movi-
mentos concomitantemente. O primeiro deles foi o Harlem Renaissance,
que reuniu poetas, artistas e músicos nos anos 20 no Harlem, bairro negro
de Nova Iorque (Estados Unidos). Alguns deles, como Langston Hughes e
Claude McKay, passaram alguns anos na Europa e exerceram influência nos
jovens africanos e antilhanos que estavam estudando em Paris nos anos 20 e
30. Como resultado desta efervescência cultural, nota-se o florescimento de
várias revistas dedicadas à causa negra em Paris no período, dentre as quais
pode-se citar a mais importante delas, a revista bilíngue La Revue du Monde
Noir (The Review of the Black World).
Os estudantes Aimé Césaire (da Martinica), Léon Gontran Damas (da
Guiana Francesa) e Léopold Sédar Senghor (do Senegal), que fundaram a
pequena revista L’Etudiant Noir (1934) em Paris, seriam responsáveis pela
criação do movimento da negritude. Posteriormente eles publicariam obras
de grande envergadura, como Pigments (1937), de Damas, Cahier d’un
retour au pays natal (1939), de Césaire e a famosa Anthologie de la nouvelle
poésie nègre et malgache (1948), organizada por Senghor, que incluía o pre-
fácio de Jean-Paul Sartre, Orphée Noir, livro que deu grande visibilidade aos
poetas negros. É preciso lembrar também a influência marcante de Frantz
Fanon, cuja obra – que inclui Peau noire masques blancs e Les damnés de la
terre – tem sido revisitada nos últimos anos por autores como Edward Said
e Homi Bhabha.
Também é relevante destacar o papel de etnógrafos e antropólogos euro-
peus que escreveram sobre as culturas africanas, dentre os quais se pode citar
Maurice Delafosse, autor de Haut Sénégal – Niger (1912), Les civilisations
négro-africaines, Les noirs d’Afrique, L’âme nègre. A obra de Leo Frobenius,
História da civilização africana, que teria grande influência na percepção de
Aimé Césaire sobre a África, foi traduzida do alemão e publicada em fran-
cês em 1936.
Em 1938 surgiu no Haiti, na esteira do indigenismo, um outro movi-
mento, que seria conhecido como noirisme (negrismo), em torno da revista
Les griots, criada por três negros, dentre os quais se destaca o médico Fran-
çois Duvalier. O que começou como movimento de vanguarda, com a força
reivindicatória da herança africana, tão realçada pelo título da revista, em
que se colocava em destaque os griots (contadores de histórias na África),
acabaria desembocando, dezenove anos mais tarde, na ascensão de Duvalier,

59
o Papa Doc, ao poder (1957-1971), sucedido após a sua morte por seu filho
Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc (1971-1986).
Se foi feita menção à cor dos participantes destes dois movimentos, os
mulatos do indigenismo, criadores da Revue Indigène, e os negros do movi-
mento negrista, em torno da revista Les griots, é porque a diferença era per-
tinente, cada uma delas representando uma classe social, que detinha ou
reivindicava o poder político. O conflito remontava ao período pós-indepen-
dência, pois os mulatos tomaram o poder em 1820, após um curto período
de domínio negro, e a partir de então houve um enfrentamento feroz entre
uns e outros, racializando o antagonismo. François Duvalier marcou assim
a volta dos negros ao poder e a perseguição às elites mulatas.
O Caribe todo participou desta ebulição cultural em que proliferaram
movimentos negristas. Pode-se citar Nicolas Guillén, de Cuba, com Sóngoro
Cosongo (1931), Palés Matos, de Porto Rico, com Tuntún de pasa y grifería
(1937). A situação da República Dominicana é ambígua, já que historica-
mente ela sempre se opôs ao Haiti, país com o qual divide a mesma ilha.
Entretanto, mesmo ali surgiram nos anos 30 alguns poetas, como Manuel
del Cabral, que expressaram solidariedade aos negros, sobretudo haitianos.
Como nenhum outro país do Caribe tinha uma história tão espetacular
quanto o Haiti – sendo que alguns ainda eram colônias ou mantinham uma
relação de dependência com os Estados Unidos – o Haiti desempenhou um
papel de ícone da revolução. A epopeia da luta pela independência foi tema-
tizada por diversos escritores. C.L.R. James traçou a história da revolução
em Os jacobinos negros enquanto Aimé Césaire se referiu ao Haiti no Cahier
d’un retour au pays natal como o país “onde a negritude se pôs de pé pela pri-
meira vez” (où la negritude se mit debout pour la première fois). A viagem de
Césaire ao Haiti em 1944, que o marcou profundamente, transparece em
obras publicadas nos anos 60: a peça La tragédie du roi Christophe e o ensaio
histórico Toussaint Louverture. Edouard Glissant também retomou a histó-
ria do herói da independência na peça Monsieur Toussaint. O cubano Alejo
Carpentier recriou a grande epopeia negra no romance O reino deste mundo,
em cujo prefácio ele forjou o conceito de realismo maravilhoso, inspirado
justamente pelas forças mágicas do vodu, que ele conheceu em sua viagem
ao Haiti em 1943.
O balanço do indigenismo pelos críticos atuais é rigoroso. Segundo
alguns, não havia propriamente conteúdo político no movimento indige-
nista, pois não se encontra na revista nenhuma crítica à ocupação americana,

60
nenhuma denúncia contra a miséria e a exploração, nenhuma defesa dos
oprimidos, “sua única reivindicação é o direito de intervenção da perife-
ria na linguagem poética [já que ela] pretende ser, antes de tudo, uma van-
guarda literária” (Pierre et alii, 1993, p. 63). Assim, a crítica teria valorizado
demais a parte de consciência social e subestimado o seu trabalho formal.
Entretanto, para outros críticos, o negrismo de François Duvalier e seu
governo ditatorial seriam um prolongamento do indigenismo. Aliás, diante
da amplitude que o movimento da negritude tomou, o próprio termo indi-
genismo tendeu a desaparecer.
De fato, a questão política era bastante espinhosa neste caso, pois nin-
guém queria ter seu nome associado ao de Duvalier, que tentou se apropriar
do sucesso da negritude em causa própria. Aimé Césaire (1913-2008) reco-
nheceu Price-Mars e Jacques Roumain como seus predecessores, mas tentou
se dissociar do negrismo de François Duvalier ao longo de toda sua vida.

Jean Price-Mars
Voltando ao Haiti em 1916, depois de passar alguns anos na França,
Price-Mars (1876-1976) começou a desenvolver suas pesquisas etnográficas,
com objetivos pedagógicos. Publicou em 1928 (portanto, um ano depois da
Revue Indigène) o livro Ainsi parla l’Oncle, no qual ele pretendia estudar o
folclore a fim de promover uma reapropriação da cultura popular haitiana,
tão desprezada até então pelas elites. Inspirando-se no título de Nietzsche,
ele substituiu o super-homem Zaratustra por um personagem folclórico do
Haiti, o Oncle Bouqui, o preto velho contador de histórias, que passaria a ser
associado a ele mesmo, apelidado a partir de então de Oncle.
Ainsi parla l’Oncle tornou-se um clássico. Nele, o autor estuda o vodu,
os cantos e contos, as lendas e adivinhas bem como tenta traçar suas ori-
gens na África. Os dois elementos culturais mais fortemente rejeitados pelas
classes letradas eram o vodu, considerado uma superstição a ser eliminada,
e a língua crioula, considerada um patois, um dialeto que os falantes prati-
cam mas do qual se envergonham. O trabalho de Price-Mars e dos indige-
nistas foi, sobretudo, no sentido de conceder ao vodu o caráter de religião,
o que o tornaria digno de ser aceito como qualquer religião, e de reconhecer
o crioulo como língua nacional do Haiti. Esta missão, se não foi realizada
em sua plenitude, acabou por mudar, pelo menos parcialmente, o discurso
sobre estas duas criações sincréticas haitianas.

61
Em Ainsi parla l’Oncle, Price-Mars se detém mais na questão do vodu,
mostrando como ele era praticado na África, estudando o animismo, os can-
tos usados nas cerimônias, reproduzindo inclusive partituras. Como durante
a ocupação americana houve muitas campanhas contra a superstição, mais
propriamente, campanhas de perseguição ao vodu, considerado uma magia
negra que ameaçava levar o país à barbárie, Price-Mars se contrapôs a esta
visão, argumentando que o vodu é uma religião porque tem seus deuses,
uma teologia, ou seja, um sistema de representação para explicar o mundo,
possui culto, com cerimônias que são dirigidas por um corpo sacerdotal hie-
rarquizado e assistidas por uma sociedade de fiéis.
Em relação à educação, Price-Mars detectou problemas graves devido
ao fenômeno da diglossia, ou seja, o fato de coexistirem duas línguas no
país, com estatutos diferenciados: de um lado o francês, língua ocidental
prestigiosa, praticada pelas elites letradas, língua de uso escolar e social e,
de outro lado, o crioulo, língua ágrafa, oral, falada pela grande maioria da
população, língua praticada no seio da família, que exprime, portanto, os
sentimentos íntimos e as emoções. Price-Mars preconizava que o ensino pri-
mário fosse feito em crioulo a fim de evitar o fenômeno do psitacismo, por-
quanto as crianças haitianas eram obrigadas a decorar palavras cujo sentido
desconheciam, ao serem alfabetizadas em francês, uma língua verdadeira-
mente estrangeira para elas.
Ao mapear e revalorizar os elementos populares haitianos, relegados por
séculos de alienação sob o domínio/fascínio francês, seja durante o período
colonial, seja depois da independência do país, Price-Mars tentou romper
com o bovarysme das elites. O termo, usado pela crítica literária francesa
para exprimir a alienação romântica de Madame Bovary, personagem do
romance homônimo de Flaubert, que sonhava com idílios em paisagens
italianas, adquire aqui um sentido ideológico, dentro de uma perspectiva
antropológica, apontando para a demissão das elites, proveniente de sua
anomia sociocultural. Tomando o termo emprestado a M. de Gaultier, ele
definiu o bovarismo coletivo como “a faculdade que se atribui uma socie-
dade de se conceber diferente do que ela é” (Price-Mars, 1998, p. xxxvii).
Se esta sociedade usa esta representação como mola propulsora para fazê-la
avançar, esta atitude pode ser considerada fecunda, mas se, ao contrário, esta
representação a impede de crescer, provocando toda sorte de formas servis
de imitação, então, pode-se ter certeza de que esta atitude é estéril, levando
o país à ruína. Segundo ele, era isto que acontecia com os haitianos, que se

62
viam como franceses de cor e rejeitavam tudo o que era autenticamente hai-
tiano, considerado como inferior e suspeito. Assim, o pior insulto que se podia
fazer a um haitiano era o de atribuir-lhe a cor negra e a ascendência africana:
Com mais forte razão, a palavra negro, outrora termo genérico, adquire um sentido
pejorativo. Quanto a de “Africano”, ela sempre foi, ela é a apóstrofe mais humilhante
que possa ser dirigida a um haitiano. A rigor, o homem mais distinto deste país acei-
taria melhor que achassem alguma semelhança entre ele e um Esquimó, um Samoyède
ou um Toungouze desde que não o fizessem se lembrar de sua ascendência provinda
de Guiné ou do Sudão (Price-Mars, 1998, p. xxxviii).

É preciso situar o livro de Price-Mars no contexto da época em que


surgiram outros livros similares: em Cuba Fernando Ortiz também come-
çava a estudar as culturas negras em obras como Los negros esclavos (1916)
e Los cabildos afrocubanos (1921) e no Brasil Nina Rodrigues publicava Os
africanos no Brasil (1933) e Artur Ramos As culturas negras do Novo Mundo
(1937). Nas décadas de 20 e 30 surgiriam também as obras clássicas sobre
a formação do povo brasileiro: Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto
Freyre, Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, e Raízes do Brasil (1936),
de Sérgio Buarque de Holanda.
O poeta Léopold Sédar Senghor (1906-2001), que se tornaria presi-
dente do Senegal, rende um tributo a Price-Mars nos anos 1950.
E eu li Ainsi parla l’Oncle de uma só vez como [se bebe] a água de uma
cisterna, à noite, depois de uma longa etapa no deserto. Fiquei realizado.
L’Oncle legitimava as razões de minha busca, confirmava o que eu havia
pressentido. Pois, mostrando-me os tesouros da Negritude que ele havia
descoberto sobre e na terra haitiana, ele me ensinava a descobrir os mes-
mos valores, mais virgens e mais fortes, sobre e na terra da África (Senghor,
1993, p. 109).
Realmente Price-Mars gozava de muito prestígio nos anos 50: ele presi-
diu o Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado em Paris
em 1957, bem como o Segundo Congresso, realizado em Roma em 1959.
Entretanto, René Depestre, em Bonjour et adieu à la négritude (1980), ao
fazer um balanço dos vários movimentos negros latino-americanos e caribe-
nhos, critica a omissão de Price-Mars que, embora em seus livros tenha ado-
tado posições abertas e progressistas, sempre ocupou cargos oficiais durante
sua longa vida e “nunca protestou contra os terríveis escândalos da vida social
de seu país”. Critica sobretudo sua atitude ao permitir que os homens do
regime duvalierista fizessem um uso indevido de sua autoridade intelectual,

63
para defender ideias obscurantistas. Aos 91 anos de idade, alguns anos antes
de sua morte, ele deixaria um testamento intelectual, em um texto vigoroso
que faz um balanço crítico de sua vida e de suas ideias.
No capítulo dedicado à literatura em seu livro Ainsi parla l’Oncle, Price-
Mars coloca a questão sobre o caráter nacional da literatura, insistindo no
valor inesgotável do folclore para a fundação de uma literatura, embora ele
já intuísse, como Machado de Assis, em seu célebre texto “Instinto de nacio-
nalidade”, que não se faz literatura só com folclore.
Parece que uma certa sensibilidade comum à raça, até mesmo um certo
torneio da língua, uma certa concepção da vida muito própria de nosso país
com a qual um escritor de talento marcaria suas obras sem que seus persona-
gens sejam haitianos, não impediria de lhes dar o caráter nacional (indigène)
que nossa crítica reclama. Mas, ao lado disto, seria necessário algo além que
seja maior, mais verdadeiro de verdade humana e haitiana, seria necessário
que a matéria de nossas obras fosse tirada algumas vezes desta imensa reserva
que é o nosso folclore, no qual se condensam há séculos os motivos de nos-
sas volições, no qual se elaboram os elementos de nossa sensibilidade, no
qual se edifica a trama de nosso caráter de povo, nossa alma nacional (Price-
Mars, 1998, p. 176).

Jacques Roumain
Jacques Roumain (1907-1945), além de fundador da Revue Indigène, é
também o escritor mais representativo do indigenismo haitiano. Dedicou-se
aos estudos etnográficos, a fim de melhor conhecer seu país e os problemas
do homem negro, tendo fundado um Centro de Etnologia em 1941, que foi
dirigido por Price-Mars até 1944. Escreveu um ensaio importante, Les griefs
de l’homme noir (1939), além de poesia e narrativas, dentre as quais se des-
taca o romance Gouverneurs de la rosée (1944). Este romance, considerado o
romance de fundação da literatura haitiana, inaugura uma linhagem em que
dois elementos da cultura popular são incorporados: a tematização do vodu
e do crioulo. Trata-se de um romance rural, com forte apelo telúrico e con-
teúdo social e político, aspectos que estariam presentes na tradição que ele
inaugurou. O protagonista, Manuel, voltando ao país depois de ter passado
anos trabalhando nos canaviais de Cuba, onde adotara um pensamento sindi-
calista/socialista, tem um papel de conscientizador e organizador da comuni-
dade em que vive. Assolada pela seca, desunida por uma discórdia familiar e

64
pelo sangue derramado, a comunidade voltaria a trabalhar unida para trazer
água para a vila, depois da morte de Manuel. Messiânico, utópico, o livro
pode ser lido como a história de um sacrifício, tal como uma Paixão. Como
se pode depreender desta rápida análise, marxismo e religião estão de braços
dados, não há paradoxo, não há antagonismo. Manuel não crê nos deuses
do vodu mas, por respeito aos ancestrais, aceita participar de uma cerimô-
nia, na qual se profetiza o seu próprio sacrifício.
O outro aspecto importante no romance Gouverneurs de la rosée, que
teve desdobramentos profícuos, é a incorporação do crioulo a fim de desterri-
torializar o francês e imprimir uma marca nacional no francês. Roumain não
cai na armadilha, muito usada por escritores naturalistas do final do século
xix e mesmo por alguns modernos dos anos 20, de usar duas linguagens
diferentes, uma para a voz narrativa, outra para os personagens. Ele conse-
gue fazer uma leve crioulização do francês, tanto no nível fonético quanto no
semântico, elemento que também prosseguirá na literatura subsequente.
Marxista, como tantos de sua geração, Roumain fundou o partido comu-
nista em 1934. Ao fazer o requisitório contra o Ocidente, que escravizou o
homem negro, Roumain adotou uma posição de identificação com todos os
povos negros, similar, portanto, à negritude de Aimé Césaire. Entretanto,
tanto Roumain quanto Césaire e Frantz Fanon evitaram uma solidariedade
baseada na exclusão do outro; ao contrário, enquanto marxistas, a visão
deles era de um socialismo internacionalista que incluía todos os oprimidos.
Roumain percebeu que os antagonismos de raça (entre mulatos e negros)
constituíam a expressão ideológica de uma luta de classes que se procurava
escamotear. Assim, a oposição principal seria de classe e não de raça, quer no
Haiti, quer nos outros países.

O realismo maravilhoso
Alejo Carpentier, no prefácio ao romance O reino deste mundo, revela
que sua teoria do realismo maravilhoso nasceu de seu contato com o Haiti,
em cuja história se inspira o próprio romance. “Tudo isso ficou particular-
mente evidente durante minha permanência no Haiti, quando vivi em con-
tato diário com aquilo que poderíamos chamar de Realidade Maravilhosa”
(Carpentier, 1985). A partir desta descoberta no Haiti, ele estendeu a apli-
cação do conceito – de forma talvez um pouco abusiva – a toda a América.
A fonte inspiradora do realismo maravilhoso é o vodu, que engendra um

65
manancial de elementos mágicos que se integram ao cotidiano dos haitia-
nos. Mackandal, o legendário personagem da revolução haitiana (que apa-
rece no romance de Carpentier), morto na fogueira pelos franceses, renasce
das cinzas, qual uma Fênix negra, tornando-se uma das entidades do vodu,
invocadas nas cerimônias.
Inspirada no Haiti, a teoria do realismo maravilhoso de Carpentier
encontraria ecos entre os escritores haitianos daquela geração. Em 1956 Jac-
ques Stéphen Alexis apresenta o texto “Prolegômenos a um manifesto do
realismo maravilhoso dos haitianos” no Primeiro Congresso dos Escrito-
res Negros. Neste contexto de produção e apresentação, o realismo maravi-
lhoso haitiano de Alexis adquire um forte conteúdo “negro”, em oposição
ao racionalismo ocidental (branco).
Esta arte não recua diante do disforme, do chocante, do contraste violento, diante
da antítese enquanto meio de emoção e de investigação estética e, resultado admirá-
vel, ela chega a um novo equilíbrio, mais contrastante, a uma composição tão har-
moniosa em seu contraditório, a uma graça interior, nascida do singular e do antité-
tico (Alexis, 1956, p. 263).

A arte, profundamente realista, é também “ligada ao mito, ao símbolo, ao


estilizado, ao heráldico e até ao hierático”, ou seja, o autor tenta demonstrar
que não há exclusão entre elementos contraditórios. Como exemplos tirados
da vida real, o autor cita cenas do vodu: a pessoa em transe é capaz de pegar
em ferro quente, andar sobre brasas, comer vidro. Tais fatos seriam o legado
de tradições africanas ancestrais que o haitiano recebeu e que a ciência ainda
deverá esclarecer um dia. Assim, o realismo maravilhoso, intimamente ligado
ao mundo mágico do vodu e às suas práticas, aparece nas obras de Alexis: nos
romances Compère Général Soleil (1955), Les arbres musiciens (1957), L’espace
d’un cillement (1959) e no livro de contos Romancero aux étoiles (1960).
René Depestre, que revela ter assistido à conferência de Carpentier em
Port-au-Prince, na qual ele fez “um ardente devaneio sobre a magnificência
desolada” das ruínas do palácio Sans Souci e da cidadela La Ferrière, segue
a sua linha teórica de reflexão. O maravilhoso, entendido como tudo o que
se afasta da ordem natural das coisas, está impregnado na vida dos haitia-
nos. Haveria poucos povos que avançaram com tanta audácia nesta via, na
medida em que o sentido do maravilhoso seria uma das componentes his-
tóricas da consciência e da sensibilidade do povo haitiano. O autor assim
define o real maravilhoso:

66
Ele comporta correntes que se interpenetram e se recortam entre elas no natural e
no sobrenatural, no picaresco, no erótico, no inefável, no absurdo, no burlesco, no
mágico e no feérico. Sua impressão marcou organicamente a religião e os mistérios
políticos da sociedade, as aventuras orais do folclore e a literatura escrita em francês
ou em crioulo, os encantamentos do amor e da dança, a música e, com uma magni-
ficência estelar, as artes plásticas (Depestre, 1980, p. 237).

O oxímoro emblemático do realismo maravilhoso haitiano pode ser


representado pelo mito do zumbi, o morto-vivo, largamente tematizado pelos
escritores, inclusive da diáspora, que vivem atualmente na França, no Canadá
ou nos Estados Unidos. O aspecto mais descrito é o processo de zumbifica-
ção, no qual um pai de santo ministra uma espécie de veneno a sua vítima,
que fica aparentemente morta (catalepsia) e é enterrada. Durante a noite, o
pai de santo desenterra a pessoa e lhe dá um antídoto que a faz reviver. Daí
em diante a pessoa é condenada a ficar a serviço do pai de santo (ou de quem
encomendou o trabalho), alimentada sempre com comida sem sal, para con-
tinuar desprovida de vontade. A figura do zumbi tem um conteúdo político
muito forte, já que metaforiza a situação da população durante as ditaduras
de François Duvalier e de seu filho, Jean-Claude Duvalier, trinta anos de ter-
ror em que morreram 30.000 pessoas e um milhão de haitianos se exilaram.
Alguns autores, a começar de Jacques Roumain e Jacques Stéphen Ale-
xis, conciliaram marxismo com vodu, criando o que Régis Antoine chama
de “realismo ao mesmo tempo socialista e maravilhoso” (Antoine, 1992, p.
140). Depestre, que no romance Le mât de cocagne (1979) passa do burlesco
ao patético, sempre ancorando o realismo maravilhoso no vodu, afirma
numa entrevista que não via contradição entre marxismo e vodu, pois, ape-
sar de ser materialista, acredita que “toda a consciência do povo haitiano se
manifesta através de uma mediação religiosa”, assim sendo “não se pode se
contentar em dizer que não é científico” (Depestre, 1983, p. 121).
Outro mito muito presente na literatura é o da licantropia, assinalado
por Carpentier no caso de Mackandal. Feiticeiros que se despojam de sua
pele humana, transformando-se em animais, sobretudo em pássaros, à noite,
são recorrentes em autores como o próprio Alexis, ou em outros escritores
contemporâneos. Esta possibilidade, assim como outras, tais como conhe-
cer o mundo dos mortos, escapa à lógica ocidental, não está prevista nos
livros, como observa um personagem do romance Pays sans chapeau, de
Dany Laferrière, ao escarnecer da lógica ocidental, que não tomou conheci-
mento das histórias dos deuses do vodu.

67
Conclusão
O indigenismo literário pode ser compreendido dentro do clássico
par antinômico que domina toda a literatura da América Latina: nacio-
nal e particular x universal e cosmopolita. Ao privilegiar a cultura popu-
lar e, principalmente, o vodu e o crioulo, a literatura haitiana optou pelo
nacional em detrimento do cosmopolita. O vodu continuou sendo tema-
tizado no romance haitiano subsequente, sobretudo em René Depestre e
Jean Metellus. Na literatura contemporânea ele aparece de forma parcimo-
niosa. Quanto ao crioulo, dentre os poucos escritores que ousaram escrever
romances nesta língua, por viverem no Haiti, o mais conhecido é Franké-
tienne, que tem traduzido seus romances para o francês a fim de torná-los
acessíveis a um público maior. Apesar de ser uma reivindicação daqueles que
consideram o crioulo como língua nacional, sua literatura escrita tem pouca
possibilidade de prosperar, porquanto os falantes do crioulo são, em sua
grande maioria, analfabetos e não formam, assim, um público leitor.
Como, desde a ditadura duvalierista, a maioria dos escritores haitianos
se encontra no exterior, devido às condições sociais, econômicas e políticas
do país, a literatura haitiana é sobretudo a da diáspora. Pascale Blanchard-
Glass vive na França (como Depestre e Metellus); já Gérard Etienne, Emile
Ollivier, Stanley Péan e Dany Laferrière fizeram sua carreira no Quebec
enquanto Edwidge Danticat vive nos Estados Unidos e escreve em inglês.
De todos os escritores citados, há poucas traduções no Brasil. O
romance Gouverneurs de la rosée foi traduzido (Donos do orvalho) em 1954,
numa iniciativa de Jorge Amado. René Depestre teve três livros traduzidos:
Le mât de cocagne (O pau de sebo), Alléluia pour une femme jardin (Aleluia
por uma mulher jardim) e Hadriana dans tous mes rêves (Adriana em todos
meus sonhos). Gérard Etienne teve o romance La femme muette traduzido (A
mulher calada). O último lançamento (2010) de autor haitiano foi Adeus,
Haiti (Brother, I’m dying, no original), livro de memórias de Edwige Danti-
cat. Apesar de um recente e superficial interesse pelo Haiti, ainda resta um
grande trabalho de tradução de obras importantes de autores daquele país.

68
etnicidades como alteridade
mestiçagem, transculturação, crioulização, hibridismo

Ni Européens, ni Africains, ni Asiatiques,


nous nous proclamons Créoles.
j. bernabé, p. chamoiseau, r. confiant

Preâmbulo
Os discursos da mestiçagem se cruzam e às vezes se confundem com os
discursos da transculturação, do hibridismo e da crioulização em diferentes
regiões. Pode-se detectar um processo muito complexo, em que se desliza do
biológico para o cultural, e deste, para processos mais especificamente literá-
rios e linguísticos. Pode-se também perceber que as palavras não são inocen-
tes, que certos termos se constituíram ao longo da história, ora tornando-se
tabu, ora sendo incorporados ao discurso da nação, ora se banalizando por
um emprego indiscriminado. Trata-se de um tema complexo, cujas implica-
ções políticas e ideológicas, associadas também aos afetos que estão em jogo,
se interpenetram e intervêm na reflexão teórica. A mestiçagem e o hibri-
dismo sofreram enorme preconceito ao longo da história, tendo chegado ao
século xxi já ressemantizados de maneira muito mais positiva e mais gené-
rica. Já a transculturação e a crioulização, neologismos de uso mais recente,
foram criados e divulgados no século xx.
A rejeição à mestiçagem e, portanto, ao surgimento do híbrido, vinha
da interdição do intercurso sexual barrado entre o homem branco e a mulher
subalterna (indígena ou negra), com o nascimento do mestiço, fruto do
pecado, filho bastardo, ilegítimo, renegado por ambas as comunidades étni-
cas que o originaram. Sylviane Albertan-Coppola, ao estudar a evolução
do conceito de mestiçagem através da análise dos dicionários franceses do
século xviii, mostra que o dicionário funciona como uma corrente de trans-
missão entre os escritos especializados e o grande público ao veicular os pre-
conceitos existentes, aparecendo assim como um espelho ideológico de seu
tempo que reflete a representação da sociedade. Ela demonstra que os termos
mestiço e mulato, por conta de sua origem, foram empregados e dicionariza-
dos de modo a realçar sua anormalidade, ou até mesmo sua monstruosidade,
associando-os a animais, frutas e monstros, ou seja, considerando-os como

71
anomalias da natureza por serem a resultante de cruzamento de raças dife-
rentes (Albertan-Coppola, 1992, p. 42).
Peter Fry afirma que “raça” e “relações de raça” não têm nada de natu-
ral. Tanto a “democracia racial” brasileira, fruto da mestiçagem assimiladora,
quanto a one drop rule 8 norte-americana são conceitos surgidos no bojo de um
pensamento global que moldou as duas sociedades (Fry, 2005, p. 178) e criou
(ou não) um entrelugar para o mestiço: enquanto no Brasil um mestiço pode
tornar-se branco, dependendo de seu fenótipo,9 nos Estados Unidos prevalece
a regra da hipodescendência, ou seja, não se pressupõe a existência do mestiço
porque quem tem sangue negro ou indígena pertence às comunidades negras
ou indígenas, sendo recusada sua admissão no universo dos brancos.
Este texto propõe, inicialmente, uma leitura cruzada dos discursos da
mestiçagem em relação aos discursos da transculturação, do hibridismo e da
crioulização, mapeando como foram conceitualizados ao longo do século xx
por alguns pensadores significativos da América Latina – continente emble-
mático da mestiçagem. Demonstra, em seguida, como eles acabaram extra-
polando o âmbito deste continente para um uso mais generalizado tanto na
América do Norte quanto na Europa, tendo em vista o fluxo de imigran-
tes, que cresce de maneira exponencial, numa diáspora que muda a feição
de países até então considerados homogêneos, tanto étnica quanto cultural-
mente, como a Grã-Bretanha, a França, os Estados Unidos e o Canadá. A
intensificação do processo de globalização nos finais do século xx acarretou
o trânsito e a mobilidade de pessoas, intensificando o nível das comunica-
ções sobretudo através da internet, provocando novas mestiçagens, novos
hibridismos, novas transculturações, novas crioulizações. Estudiosos de
várias regiões passaram então a usar estes quatro termos, geralmente como
sinônimos. Interessa refletir sobre o caminho percorrido para restabelecer
uma certa historicidade e detectar como se deram estas ressignificações.

José Martí: a mestiçagem como ideologema


Como mostra Eve-Marie Fell (1994), ao longo do século xix a América
Latina foi vista por pensadores europeus, sobretudo franceses, como um con-

8
Expressão que significa que uma gota de sangue negro torna a pessoa um negro (ou afrodescendente).
9
Além do fenótipo, contam também para o branqueamento outros elementos tais como: classe social,
escolaridade.

72
tinente condenado à anarquia: Gobineau, Spencer, Le Bon, Darwin, todos
creditaram a situação de desestabilidade política e econômica da região à
mestiçagem. A influência desta concepção nas elites locais se fez sentir imedia-
tamente e vários escritores refletiram este desprezo pelo mestiço: Carlos Octa-
vio Bunge, Alcides Arguedas, Francisco García Calderón, Nina Rodrigues,
são alguns dos autores de livros que afirmaram a degeneração da pátria por
causa de patologias advindas dos problemas raciais das populações mestiças.
Assim, quando José Martí (1853-1895), no clássico texto “Nuestra
América”, uma conferência proferida em Nova York em 1891, definiu a
América Latina como sendo mestiça em oposição à América anglo-saxô-
nica, pode-se dizer que ele teve o projeto de transformar a mestiçagem em
um ideologema que buscasse dar valor positivo àquilo que parecia fonte
de conflito e de incômodo para suas elites letradas. Segundo Martí, a dife-
rença entre os Estados Unidos e a América Latina residiria na maneira como
cada subcontinente tratou o seu Outro: os norte-americanos praticaram o
genocídio contra os índios e isolaram seus negros em guetos, enquanto os
latino-americanos absorveram em seu sangue este Outro. Segundo Amaryll
Chanady, Martí via a América mestiça como um exemplo de heterogenei-
dade integrada e harmoniosa, enquanto ele considerava a América do Norte
como uma sociedade que se caracterizava pela marginalização e por estru-
turas de poder hierarquizadas (Chanady, 2000, p. 24). José Martí não enfo-
cava a mestiçagem por seu lado racial, opondo-se assim, implicitamente, às
correntes positivistas e darwinistas que afirmavam a inviabilidade de raças
mestiças que viviam em zona tropical. Ele negava a existência de raças e de
ódio racial; para ele, a América Latina se caracterizava antes pela defasagem
existente entre as elites letradas e o povo, entre o campo e a cidade, entre
pobres e ricos, entre os que andam “de perna nua” e os que vestem “casaca
de Paris” (Marti, 2005, p. 18): as elites estavam voltadas para a Europa,
enquanto o povo estava mais perto da natureza, com valores e concepções
próprias. Não há dúvida de que esta dicotomia passava também pelo recorte
étnico ou racial porque as elites crioulas eram constituídas de brancos,10
enquanto os marginalizados de pernas nuas seriam os índios, negros e mes-

10
As elites brancas na América Latina se definem como socialmente brancas e não necessariamente
brancas do ponto de vista étnico, na distinção de Costa Pinto (1998, p. 59). Assim, pode-se afirmar
que os brancos latino-americanos em sua maioria não seriam considerados brancos (caucasianos) nos
Estados Unidos; na vida prática, em termos classificatórios, basta ser latino-americano para não ser
caucasiano e sim hispânico.

73
tiços. Martí se referia ao hibridismo e à heterogeneidade que caracterizavam
(e continuam caracterizando) a América Latina, no sentido da coexistência
de grupos socialmente e racialmente diferentes. Sua visão utópica tendia
a ver a realização deste continente harmonioso em um devir, pois ele não
podia ignorar os problemas então existentes. Seu pensamento foi precursor
e profético, o que explica sua importância estratégica na forma de percep-
ção da mestiçagem na América Latina e o fato de Martí ser hoje uma una-
nimidade continental.
Eve-Marie Fell assinala que o legado positivista e darwinista começou
a perder sua força nos anos 20 e 30 do século xx, quando surgiu um novo
tipo de definição nacionalista na América Latina, baseado no aparecimento
de mudanças básicas: 1. uma perspectiva pragmática e empreendedora subs-
tituiu a visão pessimista, que se acompanhava de lamentações sobre a “dege-
neração” do continente; 2. um novo credo, em que a coesão nacional ema-
nava do povo, a despeito de sua origem étnica ou de seu preparo cultural;
esta visão popular substituiu a visão elitista, que identificava o poder com
a “aptidão” das elites para o poder; 3. uma valorização da região (corres-
pondente ao interior ou às montanhas), na qual vivia a massa da população
negra, indígena ou mestiça, no suposto arcaísmo de suas tradições; a região
suplanta a capital, até então hegemônica, com suas elites brancas e letradas.
Fell considera que se pode falar de um “nacional-regionalismo” novo, deci-
didamente antioligárquico (Fell, 1994, p. 589).
Os anos 20, 30 e 40 foram decisivos na formulação de análises científicas
ancoradas em perspectivas transformadoras, no campo da história, da antro-
pologia e da sociologia, em que se pode perceber uma preocupação em traçar
a “formação” histórica, econômica, cultural e literária dos diferentes países da
América Latina. Alguns deles são diretamente influenciados pelo marxismo,
enquanto outros, sem ser marxistas, admitem ter sofrido influência do mate-
rialismo histórico. Como traço comum na maioria dos intelectuais latino-
americanos da época, a estada na Europa ou nos Estados Unidos, a influên-
cia das vanguardas, que privilegiavam a arte primitiva, o elemento popular.
Uma transformação de mentalidade permitiu mudar a percepção da ques-
tão racial, que foi deixada de lado em favor de uma visada mais cultural da
contribuição dos povos até então considerados inferiores.
A partir dos anos 1950, na América Latina, segundo Irlemar Chiampi,
“dá-se o reconhecimento da mestiçagem como o nosso signo cultural”; com

74
este ideologema, o discurso americanista assumia a “heterogeneidade de sua
formação racial, sem renunciar ao ambicionado universalismo”. Ele supunha
também a existência de “uma diferença que permitia contrastar a complexi-
dade da nossa formação com a homogeneidade dos Estados Unidos e os par-
ticularismos etnocentristas dos europeus” (Chiampi, 1988, p. 18).

José Vasconcelos e a raça cósmica


A mestiçagem foi concebida de um ponto de vista racialista por José Vas-
concelos (1882-1959), autor de La raza cósmica [1925], livro construído em
torno do eixo que opõe a América Latina aos Estados Unidos, tentando
justificar uma superioridade da América Latina em termos espirituais ou
éticos para contrapor à evidente supremacia econômica do país do norte.
Como Martí, ele condena os norte-americanos que destruíram e/ou recusa-
ram a miscigenação com os indígenas e os negros: eles “cometeram o pecado
de destruir essas raças, enquanto nós as assimilamos, e isto nos dá direitos
novos e esperanças de uma missão sem precedentes na História” (Vasconce-
los, 1992, p. 96). “A colonização espanhola criou mestiçagem; isto assinala
seu caráter, fixa sua responsabilidade e define seu porvir” ao passo que a des-
truição dos indígenas, encetada pela colonização inglesa, é o “indício de sua
decadência” (Vasconcelos, 1992, p. 96). Assim, se definiram ao longo da
História os sistemas que colocam em campos sociológicos opostos as duas
civilizações: “a que quer o predomínio exclusivo do branco, e a que está for-
mando uma raça nova, raça de síntese, que aspira englobar e expressar todo
o humano em maneiras de constante superação” (Vasconcelos, 1992, p. 97).
Deste ponto de vista, ele se aproxima também do ensaísta uruguaio José
Enrique Rodó (1871-1917), autor de Ariel [1900], que vê nos latinos uma
superioridade espiritual; Rodó “dá a Vasconcelos a perspectiva racial e con-
tinental que acabaria por dar forma à mais ambiciosa de suas teorias: a raça
cósmica” (Dominguez Michael, 1992, p. xxi).
Numa visão messiânica e utópica, Vasconcelos acredita que a vocação
do continente americano é de renovar o mundo. Contrapondo-se à Amé-
rica do Norte, cuja missão foi realizada muito rápida e eficientemente por-
que sua obra constitui uma mera continuação da Europa, a América Latina
ainda busca sua realização por fazer uma obra muito mais ampla. Assim,
além das quatro raças existentes (branca, negra, vermelha e amarela), ele

75
profetiza o surgimento da “raça cósmica” como uma quinta raça, ecumênica
e superior às outras (Vasconcelos, 1992, p. 96).
Para Vasconcelos, esta seria “a raça definitiva, a raça síntese ou raça
integral, feita com o gênio e com o sangue de todos os povos e, por isto
mesmo, mais capaz de verdadeira fraternidade e de visão universal” (Vas-
concelos, 1992, p. 99). Combatendo o positivismo e o darwinismo, que
haviam imperado no pensamento europeu do século xix até o início do xx,
e que preconizavam um aperfeiçoamento das espécies pela luta do mais forte
para sobreviver, Vasconcelos imagina o aparecimento da raça cósmica como
consequência do amor e da confraternização universal. Em relação à teoria
dos climas, que considera os trópicos como inadequados para o desenvol-
vimento da civilização, ele afirma justamente o contrário, afirmando que
as grandes civilizações surgiram entre os trópicos e que, ademais, o desen-
volvimento tecnológico tratará de resolver os prejuízos causados pelo calor,
permitindo que os aspectos benéficos sejam reforçados. O local que ele vis-
lumbra como a terra de promissão compreenderia o Brasil, a Colômbia, a
Venezuela, o Equador, parte do Peru e parte da Bolívia e a região norte da
Argentina (Vasconcelos, 1992, p. 102).
No entanto, como ele não pode se desvencilhar da ideia de que a raça
branca é superior, ele supõe a predominância de suas características na raça
cósmica, que neste processo de síntese eliminaria tudo o que é feio, tanto
no sentido físico quanto no moral e espiritual. Ele afirma que na América
Latina há poucos negros, já que eles estão sendo embranquecidos pelo pro-
cesso de miscigenação; por outro lado, os indígenas são uma viga mestra
para a mestiçagem. Ao colocar ênfase neste processo de eugenia pela seleção
e pelo embelezamento (1992, p. 102), considero que Vasconcelos escorrega
por um perigoso terreno, ao conceber um processo de seleção de base darwi-
nista, embora sem violência e sem conflito, como se tudo pudesse se realizar
livre e espontaneamente.
Os tipos baixos da espécie serão absorvidos pelo tipo superior. Desta maneira pode-
ria se redimir, por exemplo, o negro, e pouco a pouco, por extinção voluntária, as
estirpes mais feias irão cedendo terreno para as mais belas. As raças inferiores, ao edu-
car-se, se tornariam menos prolíficas, e os melhores espécimes irão ascendendo em
uma escala de melhoramento étnico, cujo tipo máximo não é precisamente o branco,
mas esta nova raça, aquela à qual o próprio branco terá de aspirar com o objetivo de
conquistar a síntese. O índio, por meio do enxerto da raça afim, daria um salto de
milhares de anos que separam a Atlântida e nossa época, e em umas quantas décadas
de eugenia estética poderia desaparecer o negro junto com os tipos que o livre ins-

76
tinto de formosura vá assinalando como fundamentalmente recessivos e indignos,
por isto mesmo, de perpetuação (Vasconcelos, 1992, p. 102).

Pode-se depreender desta proposta um desejo de eliminação dos tipos


considerados inferiores por um lento e consentido processo de embranque-
cimento e depuração de traços belos. Ao enaltecer o mestiço, Vasconce-
los rechaça implicitamente o negro e o índio no estado atual em que se
encontram, embora reconheça neles qualidades tanto físicas quanto espiri-
tuais. Uma contradição aparece no pensamento de Vasconcelos: despreza o
indígena mas considera positiva a mestiçagem iniciada pelos espanhóis. Na
avaliação de Dominguez Michael (1992), sem entender as antigas culturas
mesoamericanas, afastando-se dos indígenas, que constituíam parte simbó-
lica fundamental da nação mexicana pós-revolução, sua concepção da raça
cósmica é inspirada muito mais no pensamento e na realidade da América
do Sul do que na história do México. Vasconcelos vislumbra no sonho de
Bolívar de unir os países sul-americanos um “desejo de fundir o humano em
um tipo universal e sintético” (Vasconcelos, 1992, p. 97).

José Carlos Mariátegui e o indigenismo


Para o marxista José Carlos Mariátegui (1895-1930), autor de Sete
ensaios de interpretação da realidade peruana [1928] e criador da revista
Amauta, a oposição entre América Latina e Estados Unidos, estabelecida
por seus contemporâneos Rodó e Vasconcelos, não serve para nada.
A oposição de idiomas, de raças, de espíritos, não tem nenhum sentido decisivo.
É ridículo falar ainda do contraste entre uma América saxônica materialista e uma
América Latina idealista (...).Todos esses são tópicos irremediavelmente desacredita-
dos. O mito de Rodó já não atua – não atuou nunca – útil e fecundamente sobre os
espíritos. Descartemos, inexoravelmente, todas estas caricaturas e simulacros de ideo-
logias e encaremos, séria e francamente, a realidade (Mariátegui, 1982, p. 93).

Segundo Rojas Mix, o indo-americanismo de Mariátegui foi uma afir-


mação de identidade continental que apareceu como a culminação de uma
história de reivindicações e como resposta ao problema indígena. A ques-
tão indígena começou no século xix com o indianismo e culminou com o
indigenismo nos anos 20 e 30. A última etapa é a indianidade, reivindica-
ção feita pelos próprios movimentos indígenas (1991, p. 253). Houve vários
tipos de indigenismo: o indigenismo de encomendero, chamado de lascasa-

77
siano por seus partidários, e o indigenismo radical, que teve três expressões
históricas: 1. A revolução mexicana; 2. O indigenismo pluralista ou de pacto
social de Haya de la Torre e apra; 3. O indigenismo marxista de Mariátegui.
Só se pode falar de Indo-américa nos dois últimos indigenismos, o de Haya
de la Torre e o de Mariátegui.
Consciente de que o problema principal do Peru era de classe e não de
raça, Mariátegui defendeu a participação das massas indígenas, até então ali-
jadas do projeto de nação, que fora criada por elites crioulas que defendiam
ideais hispanistas. A população indígena, oprimida e vivendo fundamen-
talmente na serra, ignorada pelo poder político, se levantou em revoltas, o
que criou um temor no seio destas mesmas elites (pode-se citar as de Tupac
Amaru e a do major do exército mestiço Teodomiro Gutiérrez, que adotou
o nome indígena de Rumimaqui). Já Gonçalves Prada salientava que a fragi-
lidade do Peru “residia exatamente na negativa da classe dirigente em admi-
tir como elemento decisivo à nacionalidade as massas indígenas” (Bellotto,
Corrêa, 1982, p. 29). Segundo Mariátegui, apesar de a maioria da popu-
lação da região andina (Peru e Bolívia) ser indígena, havia um grande des-
prezo da parte dos brancos, ao contrário de outros países, como o México e
países da América Central, em que não havia o problema indígena no sen-
tido “racial” (Mariátegui, 1982, p. 63). Afirmava ser necessário incorporar
o índio ao projeto de nação, pois a tradição só privilegiou a herança espa-
nhola. “O índio é o alicerce da nossa nacionalidade em formação (...). Sem
o índio, não há peruanidade possível” (Mariátegui, 2005, p. 87).
Angel Rama assinalou que a debilidade de uma camada intermediária
mestiça, incapaz de produzir uma cultura coerente e sistemática ao longo
da história, acentuou a dicotomia entre as elites brancas e os índios, rele-
gando os últimos a um conservadorismo tradicional e folclórico (Rama,
1987, p. 126). O mestiço não ocupou papel de destaque como mediador
entre os dois campos opostos. No entanto, nos anos 1920, houve um movi-
mento político associado a uma expressão de pensamento da parte de letra-
dos mestiços, encabeçada por Mariátegui, em defesa dos índios, que Rama
chamou de indigenismo do mesticismo (de mestiços), cuja principal contra-
dição reside justamente no fato de não poder se assumir enquanto tal. “Um
mesticismo que entretanto não se atreve a revelar seu nome verdadeiro, o
que destaca a ambiguidade com que atuava em sua conjuntura emergente e
os escassos recursos intelectuais que conformavam sua bagagem ao empreen-
der sua ascensão social” (Rama, 1987, p. 141).

78
Recusando o indigenismo baseado na apologia do passado incaico,
Mariátegui afirmava que o papel da vanguarda é o de manifestar “uma ativa
e concreta solidariedade com o índio de hoje”. Assim, para este indigenismo
o passado é uma “raiz” não um “programa”, pois sua concepção da história
é “realista e moderna” (Mariátegui, 1982, p. 106).
Mariátegui foi criticado em sua época pelos marxistas ortodoxos por
valorizar aspectos tradicionais da vida dos índios, como a defesa do ayllu,
forma de apropriação e exploração coletiva da terra, que corresponderia,
segundo ele, a uma forma de comunismo agrário. No entanto, na análise
de Löwy, “sua dialética revolucionária entre o presente, o passado e o futuro
permite-lhe escapar tanto dos dogmas evolucionistas do progresso quanto
das ilusões ingênuas e passadistas de um certo indigenismo” (Löwy, 2005,
p. 20). Walter Mignolo aponta o ayllu na região andina como exemplo de
maneira descolonizada de pensar a reinscrição do legado pré-colombiano.
Hoje, uma forma de pensamento descolonial (...) já é uma opção existente: reinscre-
ver os legados dos ayllu nos Andes e dos altepetl no México e na Guatemala. É possí-
vel que movimentos similares descoloniais estejam acontecendo no mundo islâmico,
na Índia, na África do Norte e na África subsariana. Línguas marginalizadas e dene-
gridas, religiões e formas de pensar estão sendo re-inscritas em confrontação com as
categorias de pensamento do ocidente. Pensamento de fonteira ou epistemologia de
fronteira é uma das conseqüências e a saída para evitar tanto o fundamentalismo oci-
dental quanto o não-ocidental (Mignolo, 2007b, p. 296).

Mariátegui antecipou o que Aníbal Quijano chamou de colonialidade


do poder e do pensamento, conceito largamente reutilizado por Mignolo.
Mariátegui era um marxista não ortodoxo: reivindicando o socialismo como
solução política para o Peru, ele se recusou a absorver ao mesmo tempo a
visão linear da história embutida no marxismo, tendo percebido também
que a ascensão das massas indígenas ao poder não levaria forçosamente à
ditadura do proletariado indígena nem muito menos a um Estado indígena
sem classes mas à constituição de um Estado indígena burguês (Mariátegui,
1982, p. 71). Vejamos o caso da Bolívia, primeiro país que teve um indígena
eleito presidente da república. Segundo Aníbal Quijano, o mas (Movimento
ao Socialismo), movimento que levou Evo Morales à presidência da Bolí-
via, não se apresentou como movimento indígena mas como movimento
sindical; no governo, a proposta de Morales é de um “Estado multicultural
e multinacional” (2006, p. 4), estratégia que não corresponde à do movi-
mento indígena aymará em prol do restabelecimento do Collasuyo.

79
Em relação ao mestiço, Mariátegui avaliava que, como ele se encon-
trava espalhado em todas as camadas sociais, ele não tinha reivindicações
próprias, “salvo o libertar-se do desprezo que o branco faz pesar sobre ele”
(Mariátegui, 1982, p. 66). Considerava que o que define o mestiço é muito
mais como e onde ele vive: o mestiço da costa (Lima), aculturado, vive de
acordo com os padrões dos brancos, enquanto o mestiço das montanhas
vive mais como os índios, estaria mais próximo deles. Seu indigenismo teve
grande importância tanto no seio das massas indígenas quanto para a trans-
formação de percepção do nacional por parte da elite peruana.
Segundo Rama, a década de 1950 marcou o triunfo do movimento
indigenista, o que quer dizer que ele conseguiu atingir seu objetivo primor-
dial: “corroer os valores da cultura dominante, precipitá-los em uma crise de
descrédito, obrigar a nacionalidade a aceitar novas propostas” (Rama, 1987,
p. 158). A nova geração, representada pelo romancista e etnólogo peruano
José Maria Arguedas (1935-1969), traria novas contribuições para resolver
os impasses de uma sociedade até então profundamente cindida.
Aí só vivem duas classes de gentes que representam dois mundos irredutíveis, implacá-
veis e essencialmente distintos: o proprietário de terras convencido até a medula, pela
ação dos séculos, de sua superioridade humana sobre os índios, e os índios, que con-
servaram com mais afinco a unidade de sua cultura pelo mesmo fato de estar submeti-
dos e confrontados a uma tão fanática e bárbara força (Arguedas, 1993, p. 211).

Arguedas dedicou-se ao estudo da cultura mestiça, concebendo-a como


uma classe intersticial, afirmando em texto de 1952 que o “mestiço repre-
senta uma classe social real, existente e numerosa, que já se pode caracteri-
zar com bastante precisão”; o mestiço, apesar de não ter o prestígio legendá-
rio do índio (sobretudo o do passado incaico), “tendo em vista sua destreza,
energia e capacidade de adaptação, se apresentou como o mais viável, o
único capaz de salvar algo da herança índia nos difíceis transes da acultura-
ção” (Rama apud Arguedas, 1998, p. xviii). Arguedas, em seu estudo sobre
a cultura mestiça de Huamanga, mostrou que esta cultura teve grande capa-
cidade de assimilar valores e conviver com grupos de cultura diferente, e
assim “permanecer entre duas correntes, tomar das duas tudo que podia
convir a sua natureza ambivalente e entretanto bem integrada” (Arguedas,
1998, p. 172). Neste sentido, a cultura mestiça está mais bem aparelhada
do que a dos índios e até mesmo das classes senhoriais para enfrentar a cul-
tura industrial moderna. Ao estudar sobretudo as igrejas de Huamanga, ele
destaca a obra de escultores, pintores e arquitetos mestiços, cujo trabalho

80
híbrido pode também evocar o barroco mineiro de mestre Athayde e de
Aleijadinho.
Conforme assinala Rama, Arguedas teria feito a crítica à visão dualista
que perdurara no indigenismo, em que a atenção exclusiva e excludente se
voltava sobre o par índio e branco, o qual se superpunha à dicotomia costa-
serra. Esta tese dualista não faz justiça à complexidade da estrutura social,
nem reconhece a importante contribuição dos novos setores mestiços ao
não distinguir matizes diferenciadores dentro das classes que se enfrentam,
tomando como blocos monolíticos grupos sociais que têm também suas
diferenças e seus conflitos, tanto nas comunidades indígenas como entre
os proprietários de terra. Além disto, os trabalhos etnográficos de Arguedas
demonstravam um melhor conhecimento das culturas indígenas, o que não
acontecia até então.
Pode-se perguntar até que ponto hoje o mestiço desempenha um papel
mediador entre os dois polos da sociedade peruana. A modernização do país
nos últimos 50 anos, que melhorou a comunicação, os meios de transporte, as
estradas, provocou como consequência uma migração maciça de populações
indígenas e mestiças das serras em direção à costa, o que, se de um lado acele-
rou a aculturação, de outro, serviu para aumentar a participação dos índios e
mestiços nos projetos nacionais. Houve, segundo Quijano (2006), uma cho-
lificación, corolário da desindianização. A eleição do cholo (mestiço) Alejan-
dro Toledo para a presidência da república (2000-2005) assinalou a mudança
nos paradigmas de participação política desta camada da população.

Gilberto Freyre e o elogio da mestiçagem


No Brasil a mestiçagem se construiu no século xix como um discurso
fundacional, através do mito das três raças, criado sobretudo por viajantes
estrangeiros como Von Martius, que em “Como se deve escrever a história
do Brasil” [1845] exaltou a tolerância da mestiçagem brasileira, caracterís-
tica sobretudo das classes baixas, que serviria para nutrir e fortalecer as clas-
ses superiores. Em sua ótica, o sangue português predominaria, “O sangue
português, em um poderoso rio, deverá absorver os pequenos confluentes
das raças índia e etiópica” (apud Carrizo, 2005, p. 265). Esta visão, compar-
tilhada por Sílvio Romero, que afirmava que o Brasil não se tornará “uma
nação de mulatos” pois “a forma branca vai prevalecendo e prevalecerá”
(apud Carrizo, 2005, p. 267), foi criticada por Nina Rodrigues, segundo o

81
qual é “pouco provável que a raça branca consiga predominar o seu tipo em
toda a população brasileira” (apud Carrizo, 2005, p. 271). A esperança de
embranquecer o sangue brasileiro nortearia a política de imigração instau-
rada no Brasil oitocentista, que pretendia absorver e assimilar os dois com-
ponentes étnicos desvalorizados, acarretando a arianização do país.
Quando Sílvio Romero e Euclides da Cunha ainda se guiavam por teorias
racistas importadas da Europa, Manoel Bomfim em A América Latina. Males
de origem, livro publicado em 1905, já defendia a ideia de que o principal mal
de origem do Brasil é o parasitismo de suas classes dominantes e que a mestiça-
gem não é sinônimo de degeneração nem tampouco de atraso, anunciando já
algumas das afirmações que Freyre faria alguns anos depois. Escreve Bomfim:
Não há na história da América Latina um só fato provando que os mestiços houves-
sem degenerado de caráter, relativamente às qualidades essenciais das raças progenito-
ras. Os defeitos e virtudes que possuem vêm da herança que sobre eles pesa, da edu-
cação recebida e da adaptação às condições de vida que lhes são oferecidas (Bomfim,
2005, p. 291).

No entanto sua obra teve pouco impacto e no século xx o conceito de


mestiçagem encontra-se indelevelmente ligado à obra de Gilberto Freyre,
sobretudo de Casa-grande & senzala [1933] e Sobrados e mucambos [1939,
1951], que não fogem ao esquema contrastivo entre os processos formado-
res da nação na América Latina e nos Estados Unidos. O autor partiu de
uma premissa fundamental: a distinção entre raça e cultura, aprendida com
seu professor Franz Boas, na Universidade de Columbia (Estados Unidos),
conforme ele afirma no prefácio à primeira edição.
Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar
entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança
cultural e de meio. Nesse critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura
assenta todo o plano deste ensaio. Também no da diferenciação entre hereditariedade
de raça e hereditariedade de família (Freyre, 1980, p. lviii).

Freyre, baseado em Spengler, destacou a influência do meio físico na trans-


formação dos imigrantes e afirmou que o português, ao se adaptar ao novo
meio, tornava-se quase uma nova raça: “Distanciado o brasileiro do reinol
por um século apenas de vida patriarcal e de atividade agrária nos trópicos
já é quase outra raça, exprimindo-se noutro tipo de casa” (Freyre, p. lxiii).
Assim, apesar da hegemonia do elemento europeu na formação do país,
Freyre demonstrou que todos os povos colocados em contato começaram a

82
se modificar. Ao analisar a contribuição das três “raças” (a portuguesa, a afri-
cana e a indígena) para a formação do povo brasileiro, evocou sobretudo os
elementos culturais de cada uma delas, apesar de uma certa imprecisão, por-
que os aspectos biológicos insistiam em aparecer.
Segundo Benzaquen Araújo, é preciso reconhecer que ele não sucum-
biu nem às teorias francesas da época (Gobineau) bem disseminadas no
Brasil, segundo as quais a miscigenação terminava na esterilidade (bioló-
gica e cultural), nem às teorias positivistas brasileiras que viam no embran-
quecimento progressivo da população a redenção de Cam (título de um
quadro de Modesto Brocos y Gomez de 1895). Todas as duas visões par-
tiam da assunção de que a herança negra era um fardo que o país carregava.
Portanto, em lugar de partir de uma ideia de carência, de inacabamento,
Freyre reconhecia o caráter híbrido da formação do povo brasileiro e conce-
dia tanta importância à contribuição negra (e em medida menor, indígena)
quanto à contribuição portuguesa para a constituição de uma identidade
nacional. A mestiçagem para Freyre não é nem uma unicidade nem uma
síntese; ao contrário, ele deixa aberto o processo de mutação tanto biológico
quanto cultural (Araújo, 1994).
Na obra de Gilberto Freyre, a imagem do mestiço evoluiu para um
abrandamento de seu estigma. Segundo Freyre, os filhos mulatos do senhor
eram alforriados pelo pai à beira da morte (Freyre, 1980, p. 436), eram
criados e educados na casa-grande com e como os filhos legítimos (Freyre,
1980, p. 443), e, apesar da bastardia, eles muitas vezes chegavam a ter uma
educação superior, o que não era o caso dos filhos legítimos (Freyre, 1980,
p. 448). Assim, quando a aristocracia rural começou a perder poder para as
novas forças das cidades, as posições de mando foram ocupadas por bacharéis
e militares, muitas vezes mulatos (Freyre, 2003, p. 725). Ele fala do prestígio
e da beleza do mulato, seu sucesso junto às mulheres brancas, a despeito de
preconceitos de branquidade nas famílias de elite (Freyre, 2003, p. 733). Os
séculos xviii, xix e xx tiveram mulatos ou mestiços em posição de destaque,
independentemente de sua cor ou origem. Citemos à guisa de exemplo alguns
nomes de artistas (Aleijadinho), homens de estado (Barão de Cotegipe, Nilo
Peçanha), escritores (Castro Alves, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Cruz
e Souza, Tobias Barreto, Lima Barreto, Mário de Andrade), engenheiros
(André Rebouças), jornalistas (José do Patrocínio, Luís Gama) que ajuda-
ram a escrever a história do Brasil. A elegância e a sofisticação, quiçá exces-
sivas, de mulatos em posição de poder, levaram o romancista português Eça

83
de Queiroz (inspirando-se no diplomata Domício da Gama) a chamar este
tipo de “mulato cor-de-rosa” (Freyre, 2003, p. 734).
Além dos mulatos bacharéis, há também os mulatos dos cortiços, que
exerciam profissões como alfaiate, soldado, pedreiro, mas também tocado-
res de violão, malandros de beira de cais, capangas de chefes políticos, assim
como as mulatas associadas à prostituição e ao concubinato.
Ao contrário da visão racialista de Vasconcelos, Freyre, consciente da
influência da economia na vida social, assinalava que não basta se pensar
em eugenia biológica pois as questões de saúde e de beleza corporal não são
fruto da hereditariedade só, elas estão também associadas à alimentação, às
condições de moradia, ou seja, às condições de vida.

A crítica da mestiçagem no Brasil


Desde os festejos do centenário da abolição da escravidão, percebe-se
uma crescente crítica ao discurso da mestiçagem e da democracia racial no
Brasil, feita por parte de acadêmicos e ativistas ligados a movimentos negros,
que substituíram o antirracismo “universalista” pelo antirracismo “diferen-
cialista”, por influência dos movimentos negros norte-americanos. Assim, o
discurso da mestiçagem passa por um movimento que vai de mito de funda-
ção nacional para ser encarado como um discurso ideológico que enaltece a
fusão, em benefício do embranquecimento e da homogeneização, e que tem
servido como política de exclusão social dos negros na sociedade brasileira.
Gislene Aparecida dos Santos considera que Gilberto Freyre “inventa
uma cultura da mestiçagem, uma apologia da mestiçagem, que pode ser valo-
rizada ao se opor àquilo que é legitimamente negro”, ou seja, o negro conti-
nuaria a desempenhar um papel subalterno. Já Kabengele Munanga, apesar
de reconhecer a importância de Freyre por “ter mostrado que negros, índios
e mestiços tiveram contribuições positivas na cultura brasileira”, conclui que
o mito da democracia racial “encobre os conflitos raciais”, impedindo que os
membros das comunidades não brancas tomem consciência dos “sutis meca-
nismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade”. Segundo ele, o dis-
curso da “mestiçagem como etapa transitória no processo de branqueamento
constitui peça central da ideologia racial brasileira” e acrescenta que a popu-
lação negra no Brasil representa, “do ponto de vista da elite ‘pensante’, uma
ameaça ao futuro da raça e da civilização brancas no país”. Para ele, o discurso da

84
mestiçagem contém um “ideal implícito de homogeneidade” que não contem-
pla a existência da população negra, o que o leva a falar de “etnocídio”.
Para alguns, a categoria do mulato atrapalha a luta política. Eduardo de
Oliveira e Oliveira tem um artigo com o sugestivo título de “O mulato, um
obstáculo epistemológico”. O norte-americano Michael Hanchard, em seu
livro Orpheus and power (edição em inglês 1994, tradução brasileira de 2001),
afirma que a existência do mulato poderia explicar parcialmente as dificulda-
des da mobilização política e social conjunta dos negros e pardos, ou seja, o
pardo não se junta à luta política dos negros porque se sente diferente.
Esta posição política racializada tem recebido muitas críticas. O cantor e
compositor Caetano Veloso, em artigo publicado no New York Times, afirma
que a visão de Hanchard é uma simplificação da realidade brasileira que pode
levar à “intolerância racial”. Os sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Loïc
Wacquant também atacaram o livro de Hanchard, criticando a influência
imperialista norte-americana tanto nos estudos sobre questões etnoraciais do
Brasil, levados a cabo por norte-americanos ou por intelectuais treinados nos
Estados Unidos, quanto nos movimentos negros, o que estaria afetando a
autoimagem do Brasil. Peter Fry considera que as próprias categorias de aná-
lise utilizadas por Hanchard impedem uma compreensão da realidade brasi-
leira já que elas são eivadas de valores explicativos que emanam da realidade
norte-americana. O emprego destas categorias não permitiria a formulação
de perguntas adequadas para se analisar a realidade brasileira. Para Fry há
tensão e coexistência – paradoxal talvez para a antropologia norte-americana
– de democracia racial e de racismo no Brasil (2005, p. 164).
Vários intelectuais têm se manifestado contra a adoção de políticas
públicas baseadas na raça. O escritor João Ubaldo Ribeiro reforça esta posi-
ção contrária à importação de concepções dos Estados Unidos que põem
em evidência o conflito e a separação entre raças, alertando para o fato de
que esta política pode modificar a maneira como os brasileiros imaginam o
país: de nação mestiça, que se orgulha disto, para nação de raças estanques,
compartimentadas, segregadas. Apesar de ninguém negar a existência do
racismo e a necessidade de combatê-lo, os opositores desta visão racializada
defendem o fato de que o Brasil constitui exemplo único no mundo de uma
mestiçagem plenamente realizada.
Há uma certa ironia na reivindicação racial da parte dos negros porque
a diferença humana baseada na “raça” foi inventada pelos europeus como forma

85
de dominação. Mas acompanho o raciocínio de Kwame A. Appiah, segundo o
qual as identidades, complexas e múltiplas, nascem de uma oposição a outras
identidades, baseando-se em formações discursivas imaginárias e não na
razão. No momento, parece oportuno para alguns adotar posições racializa-
das para lutar contra o racismo.
Sérgio Costa mostra as tensões existentes entre os discursos racializados
dos movimentos negros brasileiros e as críticas que lhes são feitas por antro-
pólogos como Peter Fry e Yvonne Maggie, que tendem a tratar o caráter
inclusivo da cultura brasileira como um “repertório fixo de representações”
(Costa, 2006, p. 212), quando, na verdade, a identidade nacional é algo
em constante devir. Assim, se as perspectivas racializadas de hoje contes-
tam a chamada “democracia racial” como uma ideologia que tentou camu-
flar a opressão dos negros, os críticos destes discursos parecem não levar em
conta o fato de que a ideologia da mestiçagem serviu também para legiti-
mar uma ordem que permitiu a sobrevivência do racismo na sociedade bra-
sileira. Costa aponta para a importância do surgimento de novas etnicida-
des negras no Brasil, em uma perspectiva nacional e transnacional, assim
como para o papel dos movimentos negros (notadamente do mnu) no com-
bate ao racismo, o que fez com que o assunto tenha-se tornado “tema per-
manente da pauta política brasileira” (Costa, 2006, p. 218). A afirmação de
uma identidade afrodescendente por parte de escritores se insere na proble-
mática destas novas etnicidades transnacionais, em diálogo notadamente
com a academia norte-americana.

Os discursos da transculturação
Enquanto Gilberto Freyre destacava a importância da mestiçagem na
formação do povo brasileiro, passando do biológico-racial para o cultural,
em outros países da América Latina outras construções identitárias se cons-
tituíam de modo a dar conta da heterogeneidade da região. O antropó-
logo cubano Fernando Ortiz (1881-1969) privilegiava o cultural no próprio
termo empregado ao cunhar um neologismo para criar um novo conceito
– o de transculturação – a fim de designar o processo de transformação por
que passaram as sociedades devido ao contato de povos diferentes. Em Con-
trapunteo cubano del tabaco y del azúcar [1940], ele explica que o neologismo
– transculturação – vinha substituir os conceitos que vigoravam até então

86
(desculturação e aculturação), rígidos e unívocos, inadequados para exprimir
a complexidade das transmutações ocorridas em todos os níveis: econômico,
institucional, jurídico, ético, religioso, artístico, psicológico, sexual e demais
aspectos da vida.
Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as diferentes fases do
processo de transição de uma cultura a outra, porque este não consiste só em adquirir
uma cultura diferente, que é o que a rigor indica a palavra anglo-americana acultura-
ção, mas que o processo implica também necessariamente perda ou desenraizamento
de uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de parcial desculturação e,
além disto, significa a criação subsequente de novos fenômenos culturais que pode-
riam ser denominados neoculturação. Ao fim, como sustenta a escola de Malinowski,
em todo contato de culturas sucede o mesmo que na cópula genética dos indivíduos:
a criatura sempre tem algo de ambos os progenitores, mas também é diferente de cada
um deles. No conjunto, o processo é uma transculturação, e este vocábulo compreende
todas as fases de sua trajetória (Ortiz, 1963, p. 99. Grifos do autor).

Ele destaca que os espanhóis, que provinham de diferentes regiões e


culturas, já desgarrados, entraram em contato com uma natureza diferente
e tiveram de se adaptar às novas realidades, o mesmo acontecendo com os
africanos, originários de várias áreas e etnias, que tiveram de aprender nova
língua e nova religião, numa situação de sincretismo. Além dos indígenas
que lá estavam, outros povos vieram para Cuba (pode-se ampliar para toda
a América), anglo-saxões, judeus, asiáticos, cada um deles aportando seus
hábitos culturais.
Através deste novo conceito de transculturação, Ortiz pretendia demons-
trar que todas as culturas assim colocadas em contato se transformaram, ou
seja, os europeus que vieram para a América mudaram tanto quanto os afri-
canos e os indígenas, gerando novas formas culturais, novos sujeitos. Ele
destaca que o que levou quatro milênios na Europa, em Cuba levou qua-
tro séculos, ou seja, foi uma transformação extremamente rápida e violenta.
Como se pode perceber, apesar de um eurocentrismo inevitável naquele
momento histórico, que privilegiava a hegemonia da cultura europeia
implantada nos novos territórios, tanto Ortiz quanto Freyre insistiram na
ideia de mistura e de hibridismo de todos os povos envolvidos no projeto de
criação das novas nações, sem desprezar nenhuma raça, sem deixar de levar
em conta nenhum aporte, por mais “primitivo” que ele fosse.
A transculturação evoluiu ao longo dos anos, dando origem a novas res-
semantizações, novas formulações e desdobramentos, dentre os quais se desta-

87
cam pelo menos dois: o de transculturação narrativa, criada pelo crítico uru-
guaio Ángel Rama (1926-1983) e, mais recentemente, aquele introduzido
no Quebec por escritores de origem italiana na revista Vice Versa, publicada
a partir de 1983. Para Fulvio Caccia, a transculturação ou transcultura seria
“como uma via de passagem que une os fenômenos de exílio e de imigra-
ção pela realização de um choque cultural” (apud Harel, 2005, p. 78), ou
seja, ela coloca em relação a condição do sujeito sedentário e a do migrante.
Segundo Simon Harel, os escritores ítalo-quebequenses foram os primeiros
a fazer o luto de sua etnicidade a fim de promover um novo modo de repre-
sentação do coletivo no Quebec. Para Harel, a transcultura não é sinônimo
de harmonia, de fusão, nem de reconciliação; ela vai de encontro ao dis-
curso apaziguador do multiculturalismo ao dar conta da relação assimétrica e
imperfeita que existe na sociedade (Harel, 2005, p. 75-76). O discurso trans-
cultural não é um pensamento de oposição e muito menos um discurso de
síntese dos contrários; ele escapa ao esquematismo das oposições, reivindi-
cando antes um discurso paradoxal construído de oxímoros a fim de melhor
modificar ou deformar as oposições binárias; ele tenta detectar as práticas
intersticiais que caracterizam os atos de discursos inéditos. O discurso da
transcultura no Quebec, por emanar das comunidades étnicas ou culturais,
subverte tanto o nacionalismo patrimonialista do Quebec quanto a ideolo-
gia multiculturalista do governo federal. A transcultura, através da introdu-
ção do pensamento da diferença e do impuro, questiona toda pretensão uni-
versalista e ao mesmo tempo introduz a categoria dos afetos e das emoções
no âmbito das questões políticas. Para Lamberto Tassinari, a transcultura é
consciência de si; sua capacidade de simbolizar sua própria ferida age como
força fundadora da identidade, equilibrando assim a tentação de escapar do
passado ou de se afundar nele (Tassinari apud Harel, 2005, p. 98).
Fulvio Caccia considera relevante a relação com a língua, mais do que
a relação com o território, pois a língua é “habitada” de maneira diferente
segundo se está em sua terra natal ou em outro espaço. Ele aborda a ques-
tão linguística ao tratar do imigrante que escreve em uma língua que não é
a sua; como Kafka, na análise de Deleuze e Guattari, ele faria um uso inten-
sivo da língua, porque o imigrante, ao aprender e escrever em francês (ou
inglês), sofre interferências tanto de sua língua de origem (italiano e seus
dialetos) quanto da outra língua falada no Quebec. Assim, o que caracteriza
seu texto é a impureza, a mescla.

88
A transculturação narrativa de Ángel Rama designa o processo de trans-
formação do romance na América Latina, no qual os escritores se apropriam
de uma linguagem popular, a fim de superar um certo regionalismo de corte
naturalista, desterritorializando a língua espanhola ou portuguesa, sem cair
na armadilha de usar duas linguagens diferentes, a do narrador e a dos per-
sonagens. Como os escritores migrantes do Quebec, que recriam uma certa
oralidade em que emerge uma mescla linguística, os romancistas da trans-
culturação latino-americana também usam uma estética da oralidade a fim
de dar conta da heterogeneidade da região. Os romancistas transculturado-
res registram a perda do uso das linguagens dialetais e “abandonam mui-
tos termos com os quais os ‘crioulistas’ salpicavam seus escritos, limitan-
do-se às palavras de uso corrente”. Por outro lado, “compensam isso com a
ampliação significativa do campo semântico regional e da ordem sintática”
(Rama, 2001, p. 219). Rama aplica seu conceito de transculturação narra-
tiva a escritores de diferentes países (Garcia Marquez, Juan Rulfo, Guima-
rães Rosa), contudo detém-se mais na análise da obra do peruano José Maria
Arguedas, que tem um trabalho estilístico ao transgredir a língua espanhola
a partir da interferência do quéchua: “Eu resolvi o problema criando uma
linguagem castelhana especial, que depois foi empregada com horrível exa-
gero em trabalhos alheios” (Arguedas, 1993, p. 215).
De modo homólogo à crítica da mestiçagem no Brasil como discurso
homogeneizador que apaga a diferença e mantém os privilégios das elites
“brancas”, alguns críticos nos Estados Unidos (Moreiras, 2001, Mignolo,
2007) consideram problemáticas tanto a transculturação quanto outras
noções homólogas, que revelariam uma visão reconciliadora e eurocêntrica,
que pretende integrar os povos subalternos à corrente modernizadora repre-
sentada pelo colonialismo europeu. Neste sentido, não existiria propria-
mente transculturação mas ainda e sempre aculturação o que, em termos
políticos, corresponde à dominação. Beverly (1998) considera que a trans-
culturação funciona, tanto em Ortiz quanto em Rama, como uma teleolo-
gia, já que sua visada é a da formação da cultura “nacional”. Assim, o dis-
curso da transculturação – como o discurso da mestiçagem – seria uma
ideologia cultural do devir da América nos diferentes projetos de nação,
seguindo a onda modernizadora ocidental. Este pensamento esbarra hoje na
emergência de contradiscursos dos movimentos negros e indígenas.

89
Novos discursos da mestiçagem
e do hibridismo no mundo globalizado
O discurso da mestiçagem no fim do século xx, por um deslizamento
semântico que o esvazia de seu sentido biológico original, entra na moda,
servindo para designar novos fenômenos provocados pela imigração nas
sociedades multiculturais da América do Norte e da Europa, que vão do ter-
reno da música até a cozinha, passando naturalmente pela questão literária.
Alexis Nouss destaca a apropriação deste conceito pela indústria do entre-
tenimento, da moda e da publicidade, designando superficialmente todo
efeito de mistura ou cruzamento de culturas. Isto é mais visível no terreno
da música, com todas as variações da denominada world music: mistura de
ritmos, instrumentos ou sonoridades de música ocidental com tudo o que
pode ser visto como “étnico”. Curiosamente, o termo “étnico” designa tudo
o que não é branco (europeu ou norte-americano), como se étnico se apli-
casse apenas ao Outro da Europa. Assim a música “mestiça” seria a mistura
na qual entraria um pouco de música africana, afro-brasileira, afro-jamai-
cana, afro-americana, indiana ou árabe.
François Laplantine e Alexis Nouss pretendem reinvestir positivamente
o conceito de mestiçagem a fim de tirar dele as ressonâncias éticas para o
mundo contemporâneo. Nouss (2005) considera a mestiçagem como um
fenômeno que caracteriza a diáspora na Europa e na América do Norte,
em que o sujeito pertence a duas (ou mais) culturas ao mesmo tempo, sem
querer abrir mão de nenhuma delas, porque não recusa nenhuma identi-
dade que possui, aceitando, ao contrário, identidades plurais. Neste sentido,
pode-se dizer que o conceito de mestiçagem tal como empregado por Nouss
aproxima-se da visão do escritor senegalês Léopold S. Senghor (1906-2001),
que se dizia um mestiço porque nele coexistiam a herança africana e a edu-
cação francesa. Para definir sua situação, Senghor (apud Lüsebrink, 1993, p.
96) usou uma expressão oriunda da área da botânica, enxerto cultural (greffe
culturelle). Recusando tanto a perspectiva estigmatizante da exclusão, que
vem do contexto colonial, quanto a recuperação comercial, no contexto da
globalização, Nouss aposta que a mestiçagem cria dispositivos de identifi-
cação e de reconhecimento socioculturais com tal flexibilidade que podem
funcionar como antídoto para as tentações de fechamento em guetos e de
essencialismos étnicos.

90
Este uso do conceito de mestiçagem me parece ser gerador de ambigui-
dades por provocar um deslizamento semântico que o esvazia de sentido,
pelo menos tal como o entendemos na América Latina. Compartilho da opi-
nião do historiador Serge Gruzinski (2001, p. 62), grande especialista da his-
tória do México, segundo o qual estes fenômenos da contemporaneidade,
que ocorrem como fruto da diáspora de migrantes em direção aos países
mais ricos, devem ser antes designados por conceitos como hibridismo ou
hibridação, deixando o conceito de mestiçagem para as sociedades latino-
americanas que foram constituídas como fruto da dupla mestiçagem bio-
lógica e cultural. Gruzinski afirma que este novo discurso da mestiçagem,
no âmbito da globalização, não é inocente; ele corresponde a uma carência
de novidade das elites que consumiam antigamente o exotismo e que hoje
querem estar “na moda” em tudo o que ainda pode surpreender (Gruzinski,
2001). O hibridismo ou a hibridação designaria mais adequadamente as
misturas que ocorrem nas sociedades multiculturais da Europa e da Amé-
rica do Norte, que preservam seus grupos “étnicos” em sociedades mosaicos,
ou seja, a sociedade majoritária (branca) e hegemônica, que detém os pode-
res políticos e econômicos, convive com as culturas dos imigrantes. Vários
aspectos da vida são atingidos pela entrada em circulação de novos sons,
odores, sabores, comidas, imagens, cores, memórias, vindas de fora.
No mundo latino-americano foi o antropólogo argentino radicado no
México, Néstor García Canclini, o autor que lançou esta noção, desde a
publicação de Las culturas híbridas, livro que foi amplamente traduzido e
comentado. O autor faz uma análise tanto sincrônica quanto diacrônica,
dando conta dos sincretismos, mestiçagens e hibridismos ao longo da histó-
ria latino-americana, e ao mesmo tempo fazendo estudos de campo sobre-
tudo nas zonas de contato entre hispânicos e anglos. Ele demonstra a exis-
tência de cruzamentos culturais operados pela diáspora e pelo exílio; explora
também as diferentes temporalidades em comunidades indígenas e mestiças
no México, com formas culturais pré-modernas, modernas e pós-modernas,
simultaneamente; explora também os enlaces, às vezes surpreendentes, de
elementos de cultura tradicional e de cultura de massa. Sua visada elimina
qualquer vislumbre de uma pretensa autenticidade ou originalidade; ele dá
conta, ao contrário, da impureza, da mescla – caráter desde sempre presente
na história latino-americana – e sobretudo da impossibilidade de se fun-
cionar de maneira pura e monolítica. No livro Diferentes, desiguais e desco-

91
nectados, García Canclini trata de escapar da “exaltação indiscriminada da
fragmentação e do nomadismo” (2005, p. 27), característica do pensamento
teórico pós-moderno, numa crítica direta a Michel Maffesoli, que uniformi-
zaria indiscriminadamente todos os viajantes, sejam eles membros de uma
elite cosmopolita, sejam eles pobres imigrantes.
O hibridismo de Homi Bhabha, principal responsável pela divulgação
e expansão do conceito no mundo de língua inglesa, teve uma inspiração
literária, pois ele o formulou a partir dos estudos de Mikaïl Bakhtin sobre
o romance. A construção híbrida é, para Bakhtin, “um enunciado que, de
acordo com seus índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence
a um só locutor, mas no qual se confundem, na realidade, dois enunciados,
duas maneiras de falar, dois estilos, duas ‘línguas’, duas perspectivas semân-
ticas e sociológicas” (Bakhtine, 1978, p. 125). Com o apoio do pensamento
de Derrida, Bhabha ampliou a noção do híbrido para o terreno da histó-
ria da colonização, recusando dicotomias e raciocínios binários, refutando,
portanto, o cenário de antagonismos férreos entre colonizador e colonizado,
opressor e oprimido, já que ele concebe um entrelugar, um third space, espaço
intervalar que permite a negociação de valores e de reconhecimentos.

Os discursos da crioulidade e da crioulização


Edouard Glissant afirmava em L’intention poétique (1969) que a mesti-
çagem é uma condenação e que o mestiço se considera um fracassado por-
que ele é objeto de escândalo, já que existe vergonha de alguma coisa em
sua origem, sua bastardia, ou abandono do pai ou alguma impossibilidade
de realização. Para ultrapassar a vergonha, Glissant concebe a possibilidade
de resgatar o valor do compósito dentro da perspectiva da Relação a fim de
poder se chegar à mestiçagem. “A Relação carrega o universo à fecunda mes-
tiçagem” (Glissant, 1969, p. 219). Em texto mais recente (1999), escrito 30
anos depois, Glissant salienta que a nova concepção da mestiçagem – mais
metafórica e mais próxima do hibridismo – aboliu o mestiço (o bastardo).
Como sua rejeição à mestiçagem residia no mal-estar provocado pelo histó-
rico estatuto dúbio do mestiço, atualmente a mestiçagem lhe parece menos
indigesta. “Neste contexto, a mestiçagem não aparece mais como atribuição
maldita do ser, mas cada vez mais como uma fonte possível de riquezas e de
disponibilidades. Mas creio que, à medida que a mestiçagem se generaliza,

92
é a categoria do mestiço que cai” (Glissant, 1999, p. 49). A mestiçagem está
presente no pensamento de Glissant como algo incontornável no Caribe
mesmo quando a palavra não é nomeada. Assim, ele retoma a ideia de sim-
biose de cultura com a junção das grandes raças do mundo, diferentemente
da Europa, que conheceu uma mestiçagem de povos igualmente brancos.
A mestiçagem também está embutida no conceito de crioulidade, intro-
duzido por Jean Bernabé, Raphaël Confiant e Patrick Chamoiseau no livro
Eloge de la créolité, cujo primeiro parágrafo – “Nem europeus, nem africa-
nos, nem asiáticos, nós nos proclamamos crioulos” (1989, p. 13) – remete
à frase de Glissant de que os antilhanos deveriam reivindicar “as virtudes e
as tradições tanto negras quanto indígenas e europeias” (Glissant, 1969, p.
142) e evoca também uma frase de Simon Bolívar, cuja construção sintá-
tica é bem semelhante: “Não somos europeus, não somos índios... somos
um pequeno gênero humano, possuímos um mundo à parte” (apud Uslar
Pietri, 1992, p. 82). Ao afirmar pela negativa, tanto Bolívar quanto os sig-
natários do Eloge parecem querer afastar a possibilidade de existirem seres
puros, europeus ou índios. Bernabé, Confiant e Chamoiseau parecem anun-
ciar que a crioulidade é homóloga da mestiçagem (ao mesmo tempo bioló-
gica e cultural), ideologema que foi reivindicado pela América Latina como
marca de sua identidade. Entretanto, não aceitam esta associação porque
compreendem a mestiçagem como uma síntese, uma unicidade, o que recu-
sam para a crioulidade que seria “uma especificidade aberta” (Bernabé, Cha-
moiseau, Confiant, 1989, p. 27). É preciso observar que, quando os signa-
tários do Eloge se referem à zona das plantações, afirmam a mistura com o
surgimento de uma “humanidade nova”, fruto, portanto, da mestiçagem
(que eles denegam):
Durante três séculos, as ilhas e as partes de continente que este fenômeno afetou
foram verdadeiras usinas de uma humanidade nova, aquelas em que línguas, raças,
religiões, costumes, maneiras de ser de todas as faces do mundo, se encontraram bru-
talmente desterritorializadas, transplantadas para uma região onde elas tiveram que
reinventar a vida (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1989, p. 26. Grifo meu).

Glissant retoma o conceito de crioulidade, afirmando, entretanto, prefe-


rir usar o termo de crioulização, mais apto a conferir um sentido de processo,
já que a crioulidade exprimiria uma essência, como a latinidade, a franci-
dade. Glissant opõe a mestiçagem, concebida como uma síntese, à criouliza-
ção, que seria “a mestiçagem sem limites, cujos elementos são multiplicados

93
[e] os resultados imprevisíveis” (Glissant, 1990, p. 46). No entanto, con-
sidero esta crítica improcedente, pois a mestiçagem, em seu duplo sentido
biológico e cultural, é um processo muito mais amplo e muito mais univer-
sal, que afeta toda a vida das comunidades. Ao contrário do que afirma Glis-
sant, o conceito da mestiçagem pode ser encarado como um longo processo
que, não só não termina em uma síntese, como está em constante devir, com
resultados imprevisíveis.11
Se, por um lado, a crioulização busca dar conta da transformação da
sociedade, por outro, ela designa um fenômeno linguístico-literário. Apesar
de algumas denegações, os termos crioulidade e crioulização se baseiam na
existência da língua crioula e da utilização estilística que é feita pelos escrito-
res: “Eu chamei este fenômeno de crioulização, naturalmente por causa das
línguas crioulas” (Glissant, 1999, p. 50). Assim, a crioulização seria o pro-
cesso de transformação da linguagem na narrativa antilhana, que se nutre
dos contos crioulos e adota a economia da língua crioula no interior da
língua francesa. A crioulização, que se distingue do crioulismo, pretende
engendrar uma linguagem capaz de tecer as poéticas crioulas, barrocas, pre-
sentes na oralidade tradicional, em contraste com a economia da língua
francesa, muito mais concisa, clara e clássica.

Entrecruzamento dos discursos


A crioulização, nesta acepção literária aplicada ao romance antilhano,
remete à transculturação narrativa (Ángel Rama), à transcultura (Fulvio Cac-
cia) e à construção híbrida de Bakhtin que inspirou o hibridismo de Bha-
bha. Todas estas noções lidam com a concepção bakhtiniana da coexistên-
cia de duas (ou mais) linguagens no romance. Constata-se uma flutuação e
um deslizamento de um termo para outro nos textos de diferentes escritores.
Até mesmo o conceito de mestiçagem – até recentemente tão vilipendiado
– já deslizou para o terreno da literatura e da língua, em um claro processo
de eufemização. Assim, por exemplo, Fulvio Caccia fala de “mestiçagem do
francês” (apud Harel, 2005, p. 101) para se referir a Patrick Chamoiseau, que
usa uma linguagem particular ao empregar um francês contaminado pelo
11
Mesmo do ponto de vista estritamente genético os resultados da miscigenação são imprevisíveis,
conforme se pode ver nas pesquisas empreendidas pelo geneticista Sérgio Pena, da UFMG. Causou
uma certa sensação o resultado do exame de DNA de algumas celebridades brasileiras. Neguinho da
Beija-Flor, por exemplo, que é negro, tem 67% de ancestralidade europeia.

94
crioulo (que corresponderia, segundo o próprio Chamoiseau, à crioulidade).
A romancista antilhana Maryse Condé fala de literatura mestiça, conside-
rando que “a mestiçagem do texto se apoia no esforço do escritor de ser
apreendido em sua dupla dimensão cultural” (Condé, 1999, p. 211). Ela dá
exemplos de escritores africanos e antilhanos (Amadou Kourouma, Chinua
Achebe, Wilson Harris) que contaminam o francês ou o inglês com línguas
nativas, ou seja, a mestiçagem do texto de Condé neste caso revela-se homó-
loga dos conceitos de crioulização e de transculturação narrativa. Nos três
casos é a própria forma do romance europeu que se transforma em países
pós-coloniais pela incorporação de elementos que pertencem a outras tra-
dições, fundamentalmente orais. Ao se referir a Proust, segundo o qual “os
belos textos são sempre escritos em uma espécie de língua estrangeira” (apud
Condé, 1999, p. 214), Condé assinala que o enfrentamento da língua não
é prerrogativa de escritores pós-coloniais, pois o autor está sempre diante
de uma língua que ele deve transgredir, penetrar, violar, para criar nela um
texto literário. Ela evoca também Bakhtin, para quem o artista deve utilizar
palavras habitadas pelas vozes dos outros. A mestiçagem do texto não é uma
questão de etnicidade até porque todos se tornam mestiços no mundo con-
temporâneo. “O desafio, segundo ela, consiste em aceitar este fato e integrar
este pluriculturalismo em nossas existências, o que certos escritores já acei-
taram e integraram em seu texto” (Condé, 1999, p. 217).
Assim, sem querer apagar as diferenças e sem cair em amálgama sim-
plificador, pode-se perceber que a transculturação narrativa latino-ameri-
cana, concebida e analisada por Rama (notadamente na obra de José Maria
Arguedas), a transcultura na escrita migrante dos escritores de ascendência
italiana no Quebec (em que se destaca a obra de Fulvio Caccia), a criouli-
zação (Edouard Glissant e Patrick Chamoiseau) ou a mestiçagem do texto
(Maryse Condé) na literatura do Caribe francófono, o hibridismo de Bha-
bha inspirado no de Bakhtin, têm alguns pontos em comum: 1. do ponto
de vista linguístico, a contaminação e a impureza da língua empregada; 2.
do ponto de vista literário, o projeto de abalar os fundamentos de uma tra-
dição literária (ainda que recente), pela transformação da forma do romance
através da incorporação de narrativas de extração oral; 3. do ponto de vista
político, a valorização do elemento popular e da oralidade, o que permite
que se dê conta do caráter heterogêneo da população e, por conseguinte, das
relações assimétricas que existem em questões relacionadas com as noções de
cidadania, de nação, de tradição.

95
O que interessa pontuar em termos sociais é o fato de os discursos nacio-
nais de países como o Canadá, a França, os Estados Unidos, o Reino Unido,
fundados até os anos 70 em uma ideia de homogeneidade étnico-cultural
(embora esta homogeneidade fosse muito mais construída do que real), pas-
sam por um processo de transformação ao incorporar o “heterogêneo”, com a
chegada de múltiplas correntes migratórias de “comunidades visíveis” (leia-se,
de pessoas não brancas). Também deve-se ressaltar a maneira pela qual os
novos discursos críticos, no âmbito do cultural e do político, começam a se
aproximar de teorizações latino-americanas e caribenhas mais antigas (de
Frantz Fanon, de Fernando Ortiz).12 Assim, conceitos como mestiçagem,
hibridismo ou hibridação, transculturação ou ainda relações transculturais/
interculturais entram em circulação para dar conta de mudanças profundas
no centro dos grandes impérios ocidentais, que pareciam até então imunes
a um processo tão característico da América Latina e do Caribe. É por isto
que certos autores como Ulrich Beck (2007) falam de Brazilianization of the
world: do lado positivo, mestiçagem, multiplicidade étnica e cultural, sincre-
tismo religioso; do lado negativo, heterogeneidade, desemprego, desigualda-
des sociais, violência. Beck usa o Brasil como símbolo da mestiçagem que
caracteriza as transformações globais, indo assim ao encontro da afirmação
de Glissant de que o mundo se criouliza. De maneira mais poética, Gloria
Anzaldúa diz o mesmo ao se referir à figura da mestiça, numa visão profé-
tica: “En unas pocas centurias, o futuro pertencerá à mestiza. Como o futuro
depende do esgotamento de paradigmas, ele depende da pertença a duas ou
mais culturas. Pela criação de um novo mythos – isto é, uma mudança na
maneira de percebermos a realidade, de nos vermos, e de nos comportarmos
– la mestiza cria uma nova consciência” (Anzaldúa, 1999, p. 102).

12
Estes dois autores são citados com frequência (às vezes de segunda mão); já Gilberto Freyre, embora
seu Casa-grande & senzala tenha sido traduzido em francês e inglês, é totalmente ignorado.

96
representações do mestiço
e do mulato na américa latina

Sombras que sólo yo veo,


Me escoltan mis dos avuelos.
nicolás guillén

O termo mestiço, derivado do latim mixtus, através do latim vulgar


mixticius, remonta ao século xii e é usado em português a partir do século
xvi para designar os filhos de pais de raças diferentes. No mesmo século ele
é empregado em espanhol mestizo mas só no século seguinte o termo métis
surge em francês, o que se explica pelo fato de os franceses terem-se lançado
à conquista colonial no século xvii. Este termo de origem latina não tem
correspondente de mesma etimologia em inglês, que criou a palavra half-
breed (em francês há o termo similar sang-mêlé) para designar o fruto da
união de brancos e indígenas ao longo da história da América do Norte. No
contexto colonial latino-americano o termo mestiço era usado para desig-
nar os filhos do homem branco e da mulher indígena, reservando o termo
mulato (derivado de mulo) para designar o fruto do intercurso sexual de
homens brancos com as negras.13 E é preciso atentar para o fato de que raça
no século xviii ainda era concebida no mesmo sentido de espécie diferente,
como no caso da associação do mulato com mulo/mula. Acreditava-se que
os mestiços seriam estéreis como o mulo, resultado híbrido do cruzamento
de jumento com égua ou de cavalo com jumenta.
Na época colonial alguns termos serviam para designar as combinações
possíveis, como quadrarão, em francês quarteron, em espanhol cuarterón, ou
oitavão, numa quase infinidade de divisões e variações de termos. Na França
o Abbé Prévost cita um repertório de combinações possíveis14 assim como

13
Sempre se afirma que o inverso é também possível embora não muito comum, ou seja, o intercurso
entre a mulher branca e o índio e/ou o negro, produzindo o mestiço ou o mulato.
14
Le Métif vient d’un Espagnol & d’une Indienne; le Castis, ou le Terceron, d’un Métif & d’une
Métive ; le Quarteron, d’un Noir & d’une Espagnole ; le Mulâtre, d’une femme noire & d’un blanc ;
le Grifo, d’une Noire & d’un Mulâtre ; le Sambo, d’un Mulâtre & et d’un Indien ; & le Cabro, d’une
Indienne et d’un Sambo (apud Albertan-Coppola, 1992, p. 40). A autora remete também ao livro de
Manuel Alvar, Léxico del mestizaje en Hispano América, Madrid, Instituto de Cooperación iberoame-
ricana, 1987 para o repertório de termos na Hispano América.

97
Gilberto Freyre evoca uma tabuada das misturas para ficar branco, retirado
do livro de Raymundo José de Souza Gayoso [1818]:
Tabuada das misturas para ficar branco
1 branco com uma negra produz mulato
Metade branco, metade preto.
1 branco com uma mulata produz quartão
Trez quartos branco, e um quarto negro.
1 branco com um quartão produz outão
7/8 branco e 1/8 negro.
1 branco com uma outona produz branco
Inteiramente branco (apud Freyre, 2003, p. 778).

Na tabuada das misturas para ficar negro, basta inverter os termos


branco e preto e no final tem-se alguém inteiramente negro. No Brasil
surgiram alguns termos mais específicos: o mameluco (do árabe mamluk,
escravo, pajem, criado) designa o mestiço de índio com branco; o caboclo
ou cariboca ou curiboca (do tupi kari’boka, procedente do branco) tam-
bém designa o mestiço de índio com branco; o cafuzo (forma sincopada de
carafuzo) designa o mestiço de negro com índio. Nas Antilhas Francesas há
desde termos genéricos como sang-mêlé até bem específicos como chabin
(corresponde ao sarará do Brasil). Em português, o pardo designa qualquer
miscigenação e é usado atualmente como termo neutro e científico nos cen-
sos realizados pelo ibge.
Alejo Carpentier cita uma passagem de Simón Rodriguez que evoca a
variedade de termos que corresponde à diversidade de combinações de mis-
cigenação ocorridas na América Hispânica: “Huasos, chinos e bárbaros, gaú-
chos, cholos e guachinangos, negros, retintos e suavizados, serranos, calenta-
nos, indígenas, pessoas de cor e pardos, morenos, mulatos e zambos, brancos
pertinazes e patas-amarillas e um mundo de mestiços: tercerones, cuarterones,
quinterones, e por aí afora” (Carpentier, 1987, p. 121). Os tradutores, Rubia
Prates Goldoni e Sérgio Molina, explicam o sentido dos termos não tradu-
zidos e deixados em itálico:
Huasos: no Chile, diz-se de forma generalizada das pessoas rudes; chinos: em Cuba,
diz-se do descendente de negro e mulata, ou vice-versa; gaúcho: diz-se do habitante do
‘pampa’; cholo: diz-se do mestiço de europeu e índia, índio ‘civilizado’; quachinango:
nome dado pelos cubanos aos mexicanos; patas-amarillas: branco com alguma ascen-
dência indígena, de pele levemente amarelada; tercerón: filho de branco e mulata;
cuarteron: filho de espanhol e de mestiça, chamado assim por possuir um quarto de

98
sangue índio; quinterón: por extensão, mestiço que possui uma quinta parte de san-
gue índio” (apud Carpentier, 1987, p. 173).

Desta pequena lista, podem-se estabelecer algumas comparações que


apontam para significados diferentes do mesmo termo conforme a região
em que ele é empregado. Se chino em Cuba é um mulato escuro, no Peru é
o chinês ou seus descendentes. Já no Brasil, para a forma feminina, china,
o dicionário Aurélio registra a etimologia do quíchua tchina, “fêmea de ani-
mal”, através do espanhol rioplatense china, designando a mulher indígena.
No Rio Grande do Sul e no Amazonas, o termo também designa a mere-
triz. Em O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, as chinas ou chinocas são
as empregadas domésticas e as amantes. O mulato no Brasil é um termo de
amplo espectro, já que ele se aplica tanto ao quase branco quanto ao quase
preto, mas nas Antilhas Francesas o mulâtre (um moreno de cabelos ondu-
lados) designa uma classe social com forte demarcação em relação tanto aos
negros quanto aos brancos.
Pode-se dizer que a figura do mestiço, através de quaisquer apelações,
sempre foi depreciativa porque ele frequentemente esteve associado à bas-
tardia, a fruto de relação ilícita ou ilegítima. Mesmo quando filho legítimo
e passando por branco, quando desvelada sua origem, o mestiço se via des-
mascarado, expondo a público um segredo que era a razão de sua ignomínia
porque, dentro do padrão positivista que dominou a América pelo menos
até o início do século xx, ele carregava o estigma da raça inferior, selvagem
ou bárbara.
Em países com forte contingente indígena, como o Peru, predomi-
nou a tese dualista no seu pensamento crítico: as duas culturas, hispânica
e indígena, se desenvolveram de modo separado, como se fossem mundos
incompatíveis, numa relação dicotômica. Segundo Ángel Rama, mesmo no
indigenismo de José Carlos Mariátegui o mestiço não ocupava papel de des-
taque como mediador entre os dois campos opostos: de um lado, índios e
cholos, geralmente associados à serra, e de outro lado, os brancos da costa. O
romancista e etnólogo peruano José Maria Arguedas dedicou-se ao estudo
da cultura mestiça, concebendo-a como uma classe intersticial, afirmando
em texto de 1952 que o “mestiço representa uma classe social real, existente
e numerosa, que já se pode caracterizar com bastante precisão”; o mestiço,
apesar de não ter o prestígio legendário do índio (sobretudo o do passado
incaico), “tendo em vista sua destreza, energia e capacidade de adaptação, se

99
apresentou como o mais viável, o único capaz de salvar algo da herança índia
nos difíceis transes da aculturação” (Rama apud Arguedas, 1998, p. xviii).
Aníbal Quijano explica que desde 1945 ocorreu uma ‘desindianização’
no processo de urbanização da sociedade peruana, no contexto da migra-
ção do campo para a cidade, da crise do estado oligárquico e da bancar-
rota de suas duas expressões de dominação cultural mais arraigadas: a cul-
tura gamonal-andina (na serra) e a cultura senhorial-crioula (na costa). Este
processo de desindianização foi abrupto e muito generalizado, provocando
um processo correlato que foi a cholificação. “Essa população identificada
pelos outros como ‘chola’ foi, sem dúvida, o agente principal de mudança
da sociedade e do poder no Peru, embora primeiro tenha sido contida e der-
rotada politicamente” (Quijano, 2006, p. 5).
No Brasil, a partir dos anos 30 do século xx, sobretudo na obra de Gil-
berto Freyre, a imagem do mestiço começou a evoluir para um abranda-
mento de seu estigma.15 O mulato pôde ser estudado a partir de um clássico
do século xix, O Mulato [1881], de Aluísio de Azevedo. O Dr. Raimundo,
filho do português José Pedro da Silva com a negra Domingas, é o típico
mulato bacharel analisado por Freyre: alforriado, junto com a mãe, no ato
do batismo, foi criado com conforto e, enviado para a Europa, formou-se
em Direito e fez “boa figura, tanto em Portugal, como depois na Alema-
nha e na Suíça, e como ultimamente nesta Corte” (Azevedo, 1973, p. 48).
Desconhece sua origem e chega ao Maranhão para vender alguns bens que
herdara de seu pai, morto quando ele tinha 5 anos. “Raimundo tinha vinte
e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não foram os grandes
olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez
morena e amulatada, mas fina” (Azevedo, 1973, p. 60). O que seria um “tipo
acabado de brasileiro” senão o fato de ter a pele bem morena e os cabelos pre-
tos e crespos, ou seja, de ser um mestiço? Os olhos azuis são a característica
diferente, o gene recessivo que aparece no mestiço e cria a beleza mais rara.
Raimundo pede a mão de sua prima Ana Rosa, mas seu tio recusa em razão
de sua origem, o que serve para desvendar-lhe a genealogia e acirrar o amor.
Como outros mestiços retratados pela literatura, enquanto sua origem
não é revelada, ele é bem tratado e bem aceito pela sociedade branca, mas
basta que o segredo que marca seu nascimento seja desvelado para que ele
seja rejeitado e marginalizado. Geralmente a revelação da “tara” do mestiço se

15
Ver no capítulo precedente a parte dedicada a Gilberto Freyre.

100
dá no momento em que ele deve fazer o pedido de casamento, que simboli-
camente o faria unir-se a uma família branca. O risco colocado nos discursos
racializados é o de engendrar filhos mestiços. Este topos está presente na lite-
ratura de todas as Américas. Nos Estados Unidos, um dime novel de 1860,
Malaeska: The Indian Wife of the White Hunter, de Ann Stephens, coloca
em cena um personagem mestiço, filho de uma índia e um branco, ambos
já mortos. Ele foi criado e educado pelos avós paternos em Manhattan,
na mais completa ignorância de sua origem e com o maior desprezo pelos
índios. No momento em que ele decidiu se casar com uma jovem branca
sua origem foi revelada, impossibilitando um final feliz. Desesperado, o per-
sonagem se suicida. Os dime novels, de cunho bem popular, inspiraram os
filmes do gênero western; ambos “servem como um canal para reforçar os
estereótipos em relação ao Outro (os índios)” (Brodbeck, 2003, p. 82). Em
ambos os casos, o mestiço quase-branco é eliminado do contato da socie-
dade como uma espécie de bode expiatório.
Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro têm muitos personagens negros,
índios, mulatos ou mestiços. Um exemplo do mulato de sucesso, que con-
segue embranquecer a si e a sua família é o personagem Amleto, de Viva
o povo brasileiro [1984], de João Ubaldo Ribeiro. Filho de uma negra e
um inglês, Amleto se enriquece de forma inescrupulosa e passa a escon-
der a mãe a fim de se tornar um branco. Atribui a cor trigueira de um de
seus filhos à ascendência indígena de sua mulher, uma dupla mentira pois
ela era legítima portuguesa e a cor escura se deve à avó paterna. Os outros
filhos “saíram com aparência de gente fina e de bem, só ele nascera com
aquela naringanga escarrapachada e aqueles beiços que mais pareciam dois
salsichões de tão carnudos – um negróide, inegavelmente, um negróide!”
(Ribeiro, 1984, p. 322). Seus descendentes encomendam a árvore genea-
lógica da família, cuja reconstituição é completamente fantasiosa. A análise
que fazem de seu retrato – física e moral – revela-se o contrário da história
que o leitor conhece.
Olhou para o retrato do trisavô, sisudo, colarinho alto, pescoço empertigado, sobran-
celhas cerradas. Branco que parecia leitoso, o cabelo ralo e muito liso escorrendo
pelos lados da cabeça, podia perfeitamente ser um inglês, como aliás, quase o era, só
faltou nascer na Inglaterra. Traços nórdicos visíveis. Como seria ele no trato, que voz
teria? Evidente que era desses velhos caturras, poços de honestidade e austeridade, o
que, se tinha aspectos positivos, certamente o atrapalhou muitas vezes nos negócios
(Ribeiro, 1984, p. 643).

101
Nelson Rodrigues escreveu a peça O anjo negro (1948), inspirada por
Abdias do Nascimento, visando mostrar no teatro um negro não folclórico.
Ao criar um personagem negro que se casa com uma mulher branca, muito
alva, ele encena o maior tabu das relações inter-raciais. O personagem negro,
Ismael, é médico e bem-sucedido mas tem ódio de sua cor, sendo, portanto,
completamente inseguro. Virgínia casa-se com ele para não ficar solteirona,
mas ela não só não o ama, como mata sucessivamente todos os filhos nas-
cidos do pai preto, ou seja, ela se recusa a dar à luz um filho mulato. Esta
peça interdita a mestiçagem como possibilidade de embranquecimento da
descendência do homem de cor e como abertura para a conciliação do par
negro-branca. Como se pode depreender destes exemplos, a literatura bra-
sileira põe em circulação diferentes versões para a mestiçagem, problemati-
zando-a e recriando as facetas que ela tem na sociedade.
Na literatura peruana, José Maria Arguedas criou alguns personagens
mestiços. Segundo Ángel Rama, os mestiços “aparecem em seus contos sem-
pre a serviço dos senhores e são figuras esquemáticas, meramente ancilares do
poder” (Rama apud Arguedas, 1998, p. xvii). No entanto, cabe a ele descobrir
a positividade do estrato social do mestiço, sobretudo em seus ensaios, ao mos-
trar como eles reelaboram as tradições artísticas. Seus romances são povoados
de índios e mestiços (ou cholos), quase sempre desprezados e humilhados pelos
brancos, mas que conservam seu orgulho e suas convicções. Em Todas las san-
gres [1982] o personagem índio Demetrio Rendón Wilka é um dos protago-
nistas: já moço, é enviado à escola para aprender a ler com as crianças brancas,
que, de concerto com seus pais, o açoitam. Passa oito anos em Lima, de onde
volta transformado em mestiço (cultural). Trabalhando como capataz, é assim
descrito por seu patrão, don Fermín Aragon de Peralta, no início do romance:
É um cholo vivo. Acenderemos nele um pouco mais a mecha da ambição e será o
melhor instrumento em minhas mãos. A alta finança está tão longe dele quanto a
lua, ou mais. Os ex-índios são vendidos ao diabo. Só querem triunfar; ter mando,
especialmente sobre os antigos membros de sua manada. Ter mando e vingar-se; são
furiosos e trabalham contra índios e cavaleiros com a mesma sanha, se podem. Eu
farei com que possa e o aniquilarei quando for oportuno (Arguedas, 1988, p. 82).

Entretanto tal profecia não se realiza e Rendón é o único personagem real-


mente positivo em todo o livro, o qual consegue não trair nem seus patrões
brancos nem os mestiços nem os seus irmãos índios. Os brancos poderosos
em guerra querem usar seus empregados mestiços uns contra outros; assim
o engenheiro Cabrejos, a serviço de uma multinacional que quer comprar a

102
mina, coloca o mestiço Gregório como capataz a fim de espionar Rendon e
ser seu contraponto.
Na literatura antilhana, Maryse Condé tematiza a questão da mestiça-
gem e da bastardia em seu primeiro romance, Hérémakhonon [1976]. A pro-
tagonista, Véronica, que pertence à burguesia de cor da Guadalupe, evoca o
discurso glorificador da Raça feito por sua família, que escondia um senti-
mento de inferioridade. Ela constata isto ainda criança ao perceber a admi-
ração que todos os negros sentiam pelos mulatos. As moças mulatas lhe
pareciam mais belas, com sua pele acobreada, seus cabelos macios e ondu-
lados que não precisavam ser alisados, elas lhe pareciam belas porque eram
claras, mais belas do que sua mãe e suas irmãs. No entanto, ela sente vergo-
nha porque tinha sido educada para sentir orgulho da raça (Condé, 1976,
p. 231). Ela evoca também uma ancestral bastarda, filha de um branco;
segundo ela, “esta gota tenaz e benfazeja nos impedia de ser negras retintas
como carvão” (1976, p. 30). Renegando seu passado de escravidão e bastar-
dia, ela busca na África uma identidade não contaminada, pura, através da
realização amorosa com Ibrahima Sory, um homem com ancestrais (nègre
avec aïeux), que vai-se revelar um tirano sanguinário. Esta busca de um pas-
sado glorioso resulta em fracasso e Verônica no fim do romance deve vol-
tar para Paris.
Em Traversée de la mangrove [1989], romance polifônico construído de
relatos de 19 personagens-narradores durante o velório de Francis Sancher,
Maryse Condé monta um puzzle em que cada um dos personagens narra
suas relações com o morto, ou seja, cada um tem uma versão, portanto, uma
visão parcelar, pois ninguém possui toda a história, muito menos toda a ver-
dade. Nessa pequena comunidade não há brancos: no alto da hierarquia há
os Lameaulnes, arrogantes e ricos mulatos (quase-brancos), em seguida os
Ramsaran, ricos indianos (quase-brancos), mais abaixo vêm os outros, os
negros, os estrangeiros, os mestiços. Há um consenso de rejeição aos estran-
geiros, inclusive e sobretudo a Francis. No entanto, o ódio pode ser diri-
gido aos indianos, por serem ricos e enviarem o filho para estudar medicina
na França; ele pode ser simplesmente de um negro por um outro negro,
pode ser misturado à inveja de uma mulher bela e quase branca (Mira). No
fundo, numa sociedade pequena e na clausura de preconceitos remanes-
centes da herança colonial, cada um é estrangeiro para o outro: cada classe,
cada cor ou matiz, cada família ou clã, parece estar em disputa com o outro,
parece temer o desconhecido que o outro representa. Francis funciona como

103
um revelador dos conflitos dessa sociedade: em seu velório todos os persona-
gens repassam sua vida a partir do encontro com ele.
A representação do mestiço em geral, e do mulato em particular, varia
muito de região para região, como pudemos verificar e não se pode estabe-
lecer uma regra aplicável a todos os casos. Em alguns locais, como nas Anti-
lhas Francesas e no Canadá, a mestiço tem uma carga emocional muito for-
temente associada ao pecado e à bastardia porque é o fruto de uma união
ilegítima, fora do casamento cristão. Em outros locais, como o Peru, o mes-
tiço está ligado à aculturação, à perda de valores autênticos, à falta de cará-
ter, embora às vezes ele possa aparecer como elemento mediador entre duas
culturas antagônicas, a espanhola e a indígena. No Brasil a mestiçagem é
acusada de homogeneizadora, que tende a incluir o Outro (o negro e o
índio) a fim de fazê-lo desaparecer no processo de embranquecimento pro-
gressivo da sociedade. Em todos os casos, porém, estão claras tanto a relação
assimétrica entre o branco colonizador e os povos dominados como a força
coercitiva de todo o processo de mestiçagem, de aculturação e de assimila-
ção nas Américas.
A literatura tem realizações imaginárias que dão conta dos discursos
sociais colocados em circulação dentro de cada local de produção. A litera-
tura, segundo Wlad Godzich, seria “o cadinho do discurso social da nação:
ela faz o inventário dos discursos existentes, escolhe-os, classifica-os, explora
os arranjos possíveis para consagrar alguns e banir outros” (Godzich, 1992,
p. 50). Assim, o escritor, repositório do imaginário coletivo, inspira-se neste
fundo comum de construções discursivas que formam a tradição cultural
de uma nação, o que faz com que as representações do mestiço na literatura
sejam variáveis, embora se possam perceber alguns traços comuns que per-
passam todos os textos devido à carga histórica que a mestiçagem possui em
toda a herança colonial.

104
representações do indígena na literatura brasileira

(...) só duas coisas a gente precisa entender para ser feliz:


a gente nunca tem que se preocupar com coisas pequenas;
e não esquecer que todas as coisas são pequenas.
daniel munduruku

O canibal e o bom selvagem através do pensamento francês


Antonio Candido lembra, no prólogo do livro Diálogos entre o Bra-
sil e a França (2005), a importância da cultura francesa para sua geração,
observando que os jovens de hoje, penetrados pela influência norte-ameri-
cana, não conseguem talvez avaliar o que isto significou. Segundo ele, desde
o início do século xix a França exerceu no Brasil o papel formador que
as culturas clássicas da Grécia e de Roma exerceram na Europa. Na ver-
dade, a imbricação da formação do Brasil com a constituição do pensa-
mento francês remonta muito mais longe já que, no século xvi, a vinda de
Nicolas de Villegaignon para o Rio de Janeiro, a fim de realizar o projeto da
França Antártica, ocasionou o primeiro contato íntimo entre os franceses e
os índios Tupinambá.
Afonso Arinos de Melo Franco [1937] demonstra que o índio brasi-
leiro teve uma grande importância para a criação do mito do bom selvagem
no imaginário francês, desde a carta de Américo Vespucci, Mundus Novus,
que teve um grande público leitor na Europa, passando pela presença física
de índios,16 daqui levados por franceses e portugueses, e por uma série de
livros, dentre os quais podem-se destacar Les singularités de la France Antarc-
tique (1558), de André Thevet, e Histoire d’un voyage fait en la terre du Bré-
sil (1578), de Jean de Léry.17 Como mostra Frank Lestringant, as primeiras
representações dos indígenas na Europa foram as dos Tupinambá, criadas a
partir dos relatos dos viajantes que fizeram crônicas. Além de André Thevet e

16
Há pelo menos um grande evento na França com a participação de índios brasileiros: a Fête brésilienne,
realizada em Rouen, em 1550, diante do rei Henri II e da rainha Catherine de Médicis (Belluzzo, 1999).
17
Ambos estiveram no Rio de Janeiro no empreendimento da França Antártica (1555). Villegaignon
instalou-se numa ilha da baía da Guanabara (que leva seu nome e hoje já está ligada ao continente).
Em 1565, anos após a destruição da vila fortificada dos franceses, os portugueses fundaram a cidade
no continente.

105
Jean de Léry, ele destaca Américo Vespucci18 e Hans Staden. Foi Vespucci
quem apresentou os indígenas, na continuidade da idade de ouro, como
povos que “não têm nem lei, nem fé, e vivem segundo a natureza” (apud
Lestringant, 1994, p. 65). Hans Staden, capturado pelos Tupinambá, conse-
guiu ser libertado, retornando para a Europa e publicando seu livro [1557].
Do ponto de vista iconográfico, o principal fornecedor de imagens dos cani-
bais foi Théodore de Bry, numa coleção de 14 volumes publicados de 1590
a 1634. Segundo William Sturtevant, ao longo do tempo os traços étnicos
e culturais dos Tupinambá se estenderam aos outros aborígenes da Amé-
rica, processo que ele chama de “tupinambização” (citado por Lestringant,
2005, p. 42).
Foi sobretudo o livro de Jean de Léry que teria inspirado Montaigne
quando escreveu o célebre capítulo sobre os canibais nos Ensaios (1580). Na
perspectiva relativista de Montaigne, os canibais não eram mais bárbaros do
que os europeus, que matavam e torturavam por causa das guerras de reli-
gião. Além do conhecimento livresco, o filósofo tinha, em seu castelo, um
empregado doméstico que vivera dez ou doze anos entre os Tupinambá e
que lhe falara das novas terras e seus habitantes (Lestringant, 2006, p. 12).
Ora, foi Montaigne quem moldou o pensamento francês com sua reflexão
sobre o relativismo das culturas. O descobrimento da América constituiu
um desafio para seu pensamento, revelando-lhe uma outra humanidade dia-
metralmente diferente:
Ela vive nua, sem manifestar um sentido de pudor que nos parece tão natural. Ela
ignora até os fundamentos de nossa sociedade civil e não é mais infeliz por causa
disto. A propriedade privada, o princípio de hierarquia, a divisão do trabalho, a rivali-
dade pela posse das mulheres lhe são desconhecidos. A coragem, a nobreza e o desin-
teresse que manifestam com tanta evidência estes homens surgidos no horizonte dos
mares não os impedem de comer uns aos outros. Há que convir que este quadro
choca nossos hábitos de pensamento (Lestringant, 2005, p. 19).

Nos Ensaios, Montaigne descreve uma cena que se passa em Rouen em


1562, por ocasião da sagração do rei Charles ix, então com 12 anos de idade.
É sem dúvida relevante lembrar que a cidade havia sido destruída durante
as guerras de religião, o coroamento só se tinha tornado possível porque as
forças fiéis ao rei haviam retomado a cidade de Rouen. É no âmbito desta
carnificina das guerras de religião que Montaigne situa a cena. Um índio,
18
Entre 1503 e 1529 o livro teve 60 edições em seis línguas. Deve-se acrescentar ainda que houve
textos apócrifos atribuídos a Vespucci na época (Lestringant, 1994, p. 64).

106
interrogado para que desse as impressões sobre a civilização, revela as contra-
dições da sociedade francesa: de um lado, ele acusa a pobreza da metade da
população, de outro, ele se mostra surpreso diante do fato de o rei ser uma
criança, que não estaria à altura para desempenhar o papel de chefe. Mon-
taigne simula um lapso, dizendo ter-se esquecido da terceira resposta. O
índio, como o louco da Idade Média, ousava dizer a verdade diante da corte.
“A palavra canibal desestabiliza o quadro etnográfico transmitido pelos rela-
tos dos viajantes. Ela revela no coração da sociedade civilizada uma violên-
cia insuspeitada” (Lestringant, 2005, p. 32).
O canibalismo foi o aspecto da vida indígena que mais chocou a Europa
não só pelo seu aspecto agressivo mas devido à transgressão do tabu de não
comer carne humana. É uma imagem perturbadora (Belluzo, 1999, p. 58).
Uma maneira de romper as hierarquizações das relações civilização x barbá-
rie seria de ver como o ato antropofágico, longe de ser uma anomalia, pode
ser associado a um ritual cristão, a comunhão católica. Lestringant considera
que o ato antropofágico é compreensível “devido à homologia surpreeen-
dente entre o símbolo eucarístico e a realidade dos diversos rituais antropo-
fágicos observáveis no Novo Mundo” (Lestringant, 1994, p. 35).
Foi provavelmente a leitura do capítulo dos Ensaios de Montaigne sobre
os canibais que inspirou A tempestade (1611) de Shakespeare, com o trio de
personagens Próspero, Ariel e Caliban (anagrama de canibal), obra essen-
cial que suscitou muitos debates na América Latina e no Caribe ao longo
do século xx.19
A visão do bom selvagem, que vive em uma terra paradisíaca, com suas
próprias regras morais, sem se interessar por riquezas ou poder, teria sido a
fonte de Erasmo no Elogio da loucura (1509), de Thomas Morus em Uto-
pia (1516), de Voltaire ao descrever o Eldorado de Cândido (1759), de Jean-
Jacques Rousseau no Discurso sobre as ciências e as artes (1749), do Discurso
sobre a origem da desigualdade (1755), de Diderot no Suplemento à Viagem
de Bougainville (1796). Embora o mito do bom selvagem já existisse desde a
Idade Média, a partir do descobrimento da América ele foi projetado sobre
os indígenas. Como afirma Sérgio Paulo Rouanet: “Os índios brasileiros
estiveram várias vezes na França, desde o início do século 16. Mas sua pre-
sença fantasmática foi mais forte que sua presença real. Em 1789, eles saíram
19
Basta pensar nas obras inspiradas em A tempestade de Shakespeare: Caliban [1878] do francês Ernest
Renan, Ariel [1900] do uruguaio José Enrique Rodó, Une tempête [1968] do martinicano Aimé Césaire,
Caliban [1971] do cubano Roberto Fernandez Retamar.

107
das tapeçarias que adornavam Versalhes e ajudaram a derrubar a Bastilha”
(Rouanet, 1976, p. 16).
Nos documentos produzidos durante o período compreendido entre o
século xvi e o xix, há imagens ambíguas do Brasil e dos indígenas: de um
lado, a terra paradisíaca, de outro, os habitantes, selvagens, nus, sem lei,
nem rei, nem fé, mas belos, gozando boa saúde, e parecendo felizes. Esta
visão paradoxal e aporética vai-se resolver no Brasil pela construção de dois
tipos de índios: o tupi seria considerado o bom selvagem, e o tapuia20 seria
o canibal, como se pode ver nos quadros de Eckhout (1610-1666), em que
o casal tupi é retratado como aculturado enquanto o casal tapuia é repre-
sentado como selvagem e canibal. Ronald Raminelli (1996) aponta para as
diferenças existentes entre o exocanibalismo praticado pelos Tupis (devorar
o inimigo como vingança) e o endocanibalismo dos Tapuia, que comiam os
seus parentes mortos como forma de reabsorvê-los, enquanto os pranteava.
Um aspecto perturbador na construção iconográfica dos indígenas na
obra de Theodor de Bry é a presença reiterada da mulher canibal, emblema
de uma alteridade radical, que se opõe à humanidade europeia. Segundo
Raminelli, as gravuras de Th. de Bry hiperdimensionam a participação femi-
nina nos festins canibais quando se sabe que eram sobretudo os guerreiros
que tinham direito às melhores partes do corpo e que mulheres e crianças
tinham um papel secundário. Ele atribui este excesso da presença da mulher
canibal à misoginia do mundo luterano (1996, p. 101).

Basílio da Gama, Santa Rita Durão e José de Alencar:


uma visão mítica
De acordo com Octavio Paz “nossa literatura é a resposta da realidade
real dos americanos à realidade utópica da América. Antes de ter existên-
cia histórica própria, começamos por ser uma idéia européia” (Paz, 1972,
p. 127). Assim, os textos brasileiros que descrevem o indígena seriam, por-
tanto, respostas a uma certa imagem associada primeiramente aos indígenas
do Brasil e em seguida aos brasileiros em geral.
Nos finais do século xviii dois longos poemas épicos encenaram os indí-
genas às voltas com as forças da colonização: Uraguay [1769] de Basílio da
Gama (1740-1795) e Caramuru [1781] de Santa Rita Durão (1722-1784).
20
Sobre o tapuia, ver a parte dedicada à análise do livro O rastro do Jaguar, de Murilo de Carvalho.

108
Nos dois textos o herói é um branco, Gomes Freire no primeiro, Diogo
Álvares Correia, o Caramuru, no segundo. O poema Uraguay conta o fim
trágico das missões jesuíticas em consequência do Tratado de Madri, assi-
nado pelos reis de Portugal e da Espanha em 1750, que previa a cessão de
Colônia do Sacramento, até então portuguesa, para os espanhóis; em troca,
os portugueses recebiam os Sete Povos das Missões, que estavam nas mãos
dos jesuítas espanhóis. Como os índios não quiseram abandonar as missões
nas quais viviam, os portugueses (comandados por Gomes Freire) fizeram
guerra contra eles. Foi um enorme genocídio. Assim os verdadeiros heróis
trágicos do poema são Cepé e Cacambo, que compreendem que sua cul-
tura vai desaparecer. Já Caramuru é a história da aventura do Português que,
tendo naufragado na Bahia, e temendo ser comido pelos Tupinambá, utiliza
um subterfúgio para dominá-los: ele explode um pouco de dinamite a fim
de mostrar que mantinha uma forte ligação com os deuses. Impressionado,
o chefe dos índios se submete a ele. Caramuru casa-se com Paraguaçu, volta
para a Europa com ela. Recebidos na França por Catherine de Médicis, ela
é batizada e recebe o nome de Catarina.21 Retornam para o Brasil e fundam
uma numerosa descendência na Bahia.
Estas duas epopeias, inspiradas em fatos históricos, pintam os índios
ao mesmo tempo como selvagens, como guerreiros corajosos e intrépi-
dos e como vítimas de uma civilização que avança, tomando-lhes as terras.
Em Caramuru o aspecto canibal é explícito enquanto que em Uraguay os
índios já haviam sido cristianizados pelos jesuítas. O batismo como porta
de entrada para a civilização é um topos que aparece em toda a literatura
indianista da América. Estes dois poemas vão exercer uma grande influência
sobre a geração romântica do século xix.
O índio concebido por Basílio da Gama e Santa Rita Durão e em
seguida por José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864)
vem em linha direta de Chateaubriand, Rousseau e Montaigne, que, por
sua vez, tinha-se inspirado nos índios do Brasil. Fecha-se, assim, o círculo.
Para reforçar o olhar francês sobre nossos índios, vale lembrar que foi um
francês, Ferdinand Denis (1798-1890), em Scènes de la nature sous les tro-
piques et de leur influence sur la poésie [1824], que evocou a natureza tropi-
cal como tema de poesia. Maria Helena Rouanet lembra que em Résumé de
l’histoire littéraire du Portugal suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil
21
Segundo Afonso Arinos de Melo Franco, ela recebeu o nome de Luísa e não de Catarina (Franco,
1976, p. 85).

109
[1826] ele confirma a ideia já veiculada no livro anterior de que a literatura
brasileira deveria ter sua originalidade em relação à portuguesa e esta ori-
ginalidade estaria na natureza tropical (Rouanet, 2003, p. 106). Basílio da
Gama e Santa Rita Durão ocupam lugar de destaque em seu livro, o que
aponta para os caminhos do indianismo do período romântico. Denis tor-
nou-se assim um mediador entre a nascente literatura brasileira e a cultura
francesa: ele traduziu e publicou na França a carta de Pero Vaz de Caminha,
descobriu e republicou um texto relativo à Fête Brésilienne, festa realizada
em Rouen em 1550, quando 50 índios Tupinambá participaram de uma
dança na presença do rei da França.
Alencar tem três romances indianistas: Iracema [1865], história do casal
fundador do país, pai português e mãe indígena que engendram o mes-
tiço, o brasileiro. Duas observações a respeito deste romance de fundação:
a mulher está associada à terra, o que dá direitos de autoctonia aos novos
habitantes, mas sua cultura se perde, pois ela abandona os seus e se converte
ao cristianismo. Um esquema narrativo diferente aparece em O guarani
[1857], no qual o casal invertido, homem indígena e mulher branca, não
engendra nenhum filho; na verdade o contato carnal não se dá. O romance
termina com um dilúvio, o casal em cima de uma árvore. Finalmente, em
Ubirajara [1874], Alencar retorna no tempo e conta a vida de uma tribo de
antes da conquista, uma vida mítica, que o autor nunca conheceu mas que
ele tentou imaginar. A união sexual se realiza em Iracema, mas é bom frisar
que não há casamento.
Comparando com a literatura da América do Norte, pode-se perceber
muitas semelhanças: a impossiblidade de relação da mulher branca com o
índio, a vida livre dos brancos, que engravidavam as índias, sem no entanto
desposá-las. O principal topos de toda esta literatura romântica indianista
consiste na morte dos índios. Aliás, os discursos dos personagens indígenas
assinalam o temor ou a quase certeza que eles pertencem a um povo fadado
ao desaparecimento. É o caso do romance norte-americano O último dos
moicanos (1826), de James Fenimore Cooper (1789-1851).
A representação do indígena nesta literatura não difere fundamental-
mente da que aparece na literatura do Canadá ou dos Estados Unidos até o
início do século xix. Há bons e maus índios, conforme eles são aliados dos
franceses, ingleses, ou portugueses. Normalmente o narrador adota o ponto
de vista de seus heróis de maneira que os índios funcionam como aliados
ou como inimigos. No Canadá, os índios foram aliados (ou adversários) nas

110
guerras entre ingleses, franceses e americanos e neste sentido eles foram bem
tratados por seus aliados. Depois da guerra de 1812, quando os conflitos com
os Estados Unidos terminaram, a política em relação aos índios começou a
mudar porque eles perderam importância (Francis, 2000, p. 200). A litera-
tura e os livros de história refletem aos poucos esta transformação e pelos
fins do século xix a demonização dos índios é preponderante. Um exemplo
poderia ser o romance Wacousta or the Profecy [1867], de John Richardson.
Quanto ao Quebec, uma mudança se opera depois da Conquista Britânica
em 1760: 22 se até então os franceses eram bastante próximos dos indígenas,
após 1760 eles procuraram se diferenciar dos índios para preservar o estatuto
de branco na nova sociedade que se formava, na qual eles se tornaram mino-
ritários. É preciso dizer que o termo Canadien designava então os franceses
do Canadá tanto quanto os Métis assimilados, “raça” que era o fruto das rela-
ções mais ou menos duráveis que eles entretiveram durante suas incursões
nas terras dos índios para o comércio de peles e de madeira.
As diferenças que se podem perceber no século xix entre o Brasil e o
Canadá se situam tanto no nível dos textos literários quanto nos discursos
identitários articulados a eles. No caso brasileiro, foi a intercessão dos dis-
cursos científicos da época – sobretudo de Spix e de Von Martius – que pro-
curaram explicar a mestiçagem visível que existia no país e o paratexto de
José de Alencar que guiou a leitura de sua obra, que seria interpretada como
romance da formação étnica da nação. Numa sociedade escravista, em que a
maioria da população era negra ou mulata, os românticos afrancesados ele-
geram o índio como ancestral nobre como os cavaleiros da Idade Média,
como observa Sérgio Buarque de Holanda:
É curioso notar como algumas características ordinariamente atribuídas aos nossos
indígenas e que os fazem menos compatíveis com a condição servil – sua “ociosi-
dade”, sua aversão a todo esforço disciplinado, sua “imprevidência”, sua “intempe-
rança”, seu gosto acentuado por atividades antes predatórias do que produtivas –
ajustam-se de forma bem precisa aos tradicionais padrões de vida das classes nobres.
E deve ser por isso que, ao procurarem traduzir para termos nacionais a temática da
Idade Média, própria do romantismo europeu, escritores como Gonçalves Dias e
Alencar, iriam reservar ao índio virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavalei-
ros, ao passo que o negro devia contentar-se, no melhor dos casos, com a posição de
vítima submissa ou rebelde (Holanda, 1973, p. 25-26).

Três anos após a derrota dos franceses, a França, a Grã-Bretanha e a Espanha assinaram o Tratado de
22

Paris (1763), que ratificava a cessão do Canadá à Grã-Bretanha.

111
O romance Iracema não oferece uma visão idílica da união inter-ra-
cial: na verdade Iracema salva o homem branco (Martim) para em seguida
sucumbir, vítima de seu amor; exilada na tribo rival de seu povo, ela assiste
ao massacre dos seus; grávida, abandonada por seu amante, ela dá à luz,
entrega o filho Moacir ao pai e morre. A representação dos índios é ambí-
gua, ou seja, os aliados de Martim (Pitiguaras) são bons, mas seus inimigos
(Tabajaras) são selvagens. Irapuã, o chefe tabajara que quer defender as ter-
ras de seu povo contra a invasão dos Portugueses e de seus aliados Pitiguaras,
é descrito como “irado”, ele tem “o rúbido olhar” (Alencar, 1979, p. 17).
O guerreiro Irapuã, apaixonado por Iracema e enciumado do branco,
quer beber-lhe o sangue a fim de operar uma espécie de conversão: trans-
formar-se pela aquisição das qualidades de sedução de Martim. Trata-se de
uma forma de antropofagia amorosa. “O coração aqui no peito de Irapuã,
ficou tigre. Pulou de raiva. Veio farejando a presa. O estrangeiro está no bos-
que, e Iracema o acompanhava. Quero beber-lhe o sangue todo: quando o
sangue do guerreiro branco correr nas veias do chefe tabajara, talvez o ame
a filha de Araquém” (Alencar, 1979, p. 21).
Pocahontas (em torno de 1595-1617), na verdadeira história ameri-
cana, foi mais feliz que Iracema, personagem ficcional da história brasileira:
ela casou-se com John Rolfe, visitou a Inglaterra, onde foi recebida pelo
rei, teve um filho (Thomas Rolfe) e morreu chegando nos Estados Unidos.
Apesar do sucesso legendário de Pocahontas, seu casamento e o nascimento
de seu filho mestiço são rasurados nos séculos seguintes, inclusive na ver-
são cinematográfica de Walt Disney de 1995 porque a mestiçagem é algo
que não faz parte do discurso da nação. Na história brasileira há casos feli-
zes, como o de Paraguaçu, que se casou com Caramuru, e o de Bartira, que
se casou com João Ramalho.

Oswald de Andrade e Mário de Andrade: uma visão paródica


Os modernistas dos anos 1920, principalmente Mário de Andrade e
Oswald de Andrade, continuaram a encenar os índios mas já num contra-
discurso que ia de encontro à visão lírica de José de Alencar. A antropofagia
do Manifesto constitui a contestação do status quo, do conservadorismo da
sociedade brasileira, que não era moderna e estava, consequentemente, defa-
sada em relação ao espírito dos modernistas. Oswald critica a apropriação e a

112
transformação que foram feitas da figura do índio pelos românticos, sobre-
tudo por Alencar. Ele demonstra ao mesmo tempo um espírito antipor-
tuguês, antiparnasiano, pois os brasileiros, dominados pelos dogmas lin-
guísticos portugueses, praticavam uma língua que não correspondia mais à
realidade. Trata-se de um aspecto que aparece fortemente tanto na obra de
Oswald quanto na de Mário. Em Macunaíma, a paródia da língua erudita
dos parnasianos é especialmente saborosa no capítulo ix, “Carta pras Ica-
miabas”, na qual ele parodia escritores como Coelho Neto.
Como a crítica já salientou, Macunaíma seria o anti-Peri e o “Mani-
festo antropófago” seria a afirmação do mau selvagem, do canibal. Aliás, no
fim do texto, de maneira provocadora, Andrade coloca como data do Mani-
festo: ano 374 da deglutição do bispo Sardinha. Assim, os dois autores ten-
taram desconstruir a imagem mítica cheia de bons sentimentos a fim de dar
uma imagem invertida: Macunaíma é preguiçoso, libidinoso, aproveitador,
vingativo. Ao fazer isto, os modernistas assumem aquele lado negativo que
os europeus haviam dado de nós. Inspirados no primitivismo das vanguardas
francesas, nossos modernistas vão buscar na história aquilo que havia sido
denegado pela tradição bem pensante. Assim como Aimé Césaire reivindicou
o termo nègre, de conotação negativa, para criar a negritude, assim como se
recuperou o gaucho da tradição argentina, assim também os modernistas afir-
maram aquilo que tinha sido desvalorizado, que causava constrangimento.
Em poucas linhas Oswald de Andrade estabelece uma linha histórica
que vai do projeto da França Antártica até o bárbaro tecnizado de Keyser-
ling, passando pela Revolução Francesa, pelo romantismo, pelo marxismo
que desembocou na Revolução Bolchevista, pelo surrealismo. Assim, ao
afirmar que “Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos
direitos do homem”, Oswald inverte as velhas hierarquias de colonizador-
colonizado e, com um piparote, muda a ordem de valores.
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de
todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a
sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori [sic] Villegaignon print terre. Mon-
taigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à
Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling.
Caminhamos (Andrade, 1978, p. 14. Grifos do autor).

113
Estes dois textos de 1928 tiveram uma recepção fraca durante várias
décadas; foi só nos anos 1960 que começaram a se tornar canônicos. A
partir de então a crítica concedeu à antropofagia oswaldiana um sentido
mais largo e metafórico no âmbito da interpretação do Brasil. Seguindo esta
lógica, o Brasil seria um país que come e absorve o que lhe é estrangeiro e
transforma-o a fim de construir sua própria cultura. De acordo com Silviano
Santiago (2009), encontra-se no Manifesto uma visão não-hierárquica do
saber universal, que está clara no aforismo de Oswald: “Contra as histórias
do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não
rubricado. Sem Napoleão. Sem César” (Andrade, 1978, p. 16).

Antonio Callado e Darcy Ribeiro: uma visão antropológica


Se, ao longo do século xix, a postulação era a de civilizar os índios,
de incluí-los na máquina e na marcha modernizadora, os discursos a par-
tir dos anos 1930/40 mudaram, na medida em que se dava conta que não
só os indígenas não haviam desaparecido, como também não haviam ado-
tado o modo de vida ocidental, mas que eles resistiam e buscavam cada vez
mais preservar seus costumes. Nos países com forte densidade de população
indígena (México, Guatemala, Peru, Bolívia), houve um movimento indi-
genista que se propunha a tratar dos índios vivos, do presente, denunciando
as injustiças sociais, o racismo, mas ao mesmo tempo descrevendo suas cul-
turas reais, não mais aquelas do passado. Para dar alguns exemplos do Peru,
podem-se citar Los rios profundos [1956], Todas las sangres [1964], de José
Maria Arguedas (1911-1969) e El mundo es ancho e ajeno [1941], de Ciro
Alegria (1909-1967).
No Brasil, não houve na mesma época um movimento indigenista,
o que vem a ocorrer um pouco mais tarde, sobretudo através do projeto
de Darcy Ribeiro (1922-1997), autor de Maíra (1976). Nove anos antes,
Antonio Callado (1917-1997) havia publicado Quarup (1967), que inau-
gurou esta visão antropológica dos índios de hoje, índios que tentam sobre-
viver num país que lhes transmite doenças, que os despreza e os afasta para
os confins das terras.
No início de Quarup, o protagonista, o padre Nando, tinha o sonho de
criar uma nova missão na região central, à maneira das antigas missões jesuí-
ticas que existiram no sul do Brasil, Argentina e Paraguai na época colonial,

114
cuja destruição foi tematizada por Basílio da Gama no Uraguay. Mas ao che-
gar ao Parque Indígena do Xingu,23 ele já tinha abandonado o sacerdócio.
Quarup se passa no período que vai do governo de Getúlio Vargas, pas-
sando pelo seu suicídio em 1954, pela eleição de Jânio Quadros à presidên-
cia da república e sua renúncia em 1961, pelo golpe dos militares e a ins-
tauração da ditadura em 1964, ou seja, vai de uma ditadura a outra. Várias
intrigas se imbricam: a resistência política e a repressão, a festa Quarup, a
vida dos índios, a expedição que busca o centro geográfico do país, os amo-
res e a vida sexual de Nando e outros personagens. O romance constrói uma
alegoria sobre o país que termina em derrisão: o centro do Brasil – que deve-
ria ter um valor simbólico de coração – é um imenso formigueiro. As saúvas
que devastam as plantações já haviam sido tematizadas em Triste fim de Poli-
carpo Quaresma [1915], de Lima Barreto (1881-1922) e em Macunaíma,
cujo refrão é: “Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são.”
O aspecto que predomina na representação do índio neste romance é o
da vitimização: ele é vítima de doenças, de agressões de grileiros, da má polí-
tica federal, de incompreensão. Fontoura, personagem provavelmente inspi-
rado nos irmãos Villas Boas, é o único homem branco24 que entende a cultura
dos índios que estão na área que viria a se tornar oficialmente o Parque Nacio-
nal do Xingu. Ele não aceita nem missões religiosas nem outro tipo de traba-
lho que os aculturasse, como transformá-los em pescadores ou lavradores.
Situando-se na tradição literária brasileira para desestabilizá-la, Callado
cria um casal misto derrisório: Sonia Dimitrovna, a branca descendente de
imigrantes russos, a mulher mais desejada pelos homens – inclusive por um
ministro – decide fugir com o índio Anta. O casal nunca é reencontrado,
mas há notícias disparatadas sobre a mulher branca que teria passado por
várias tribos.
Antonio Callado teve contato com os índios mas não com a mesma
intensidade que Darcy Ribeiro. Enquanto antropólogo que viveu entre os
índios e que estudou seus mitos, Darcy Ribeiro explora de maneira poética
os mitos cosmogônicos e os códigos sociais e religiosos do povo Mairum.
Em muitas passagens de Maíra pode-se ler um contradiscurso à imagem tra-
ditional de que os índios vivem nus, que são selvagens, sem nenhuma lei.
23
O Parque Indígena do Xingu, de 27.000 km2, encontra-se no norte do Mato Grosso; tem 5.500
indígenas de 14 etnias. Fundado em 1961 pelo presidente Jânio Quadros, é o resultado do trabalho
dos irmãos Villas Boas.
24
Uso o termo branco para designar o brasileiro em geral, mesmo se ele não é branco.

115
Apesar de sua aparente nudez, constata-se que homens e mulheres usam
“roupas” simbólicas: os homens devem amarrar o membro com o Ba e as
mulheres usam o Uluri. Ninguém tira estes acessórios em público; o homem
não tem o direito de tirar o Uluri para fazer amor com a mulher, cabe a
ela retirá-lo, dando assim seu consentimento. Os códigos sociais são muito
estritos, os clãs são organizados de maneira a proibir o incesto. Apesar da
simplicidade e da naturalidade da vida dos Mairuns, tudo é hierarquizado e
de acordo com os mitos cosmogônicos.
Como observa Antonio Candido, a intriga se tece pela contraposição
dos destinos cruzados de dois personagens, Ava/Isaías, indígena que rece-
beu uma educação no mundo dos Brancos, e de Alma, uma jovem branca
em conflito, que decide ir viver entre os índios. Ao cabo de dois anos, Alma
fica grávida de gêmeos e morre de parto, o que esvazia o projeto de união
entre a mulher branca e o índio que pudesse levar à mestiçagem. Se no
romance de Callado a branca Sonia desaparece – como se fosse impossí-
vel imaginar a vida comum de Sonia e de Anta –, em Maíra a jovem Alma
morre. Enquanto vive com os índios ela reflete sobre vários aspectos da cul-
tura indígena: em relação à nudez, ela se dá conta que não pode usar o Uluri
porque é peluda demais, seria indecente. Vestida entre os índios, é ela que
se sente nua sob suas roupas justamente porque não usa o Uluri simbólico.
Neste sentido, é interessante como Darcy Ribeiro recoloca a questão em um
contradiscurso que faz frente aos discursos construídos desde o descobri-
mento da América há 500 anos.
Alma não pertence naturalmente a nenhum clã, mas como ela vai viver
junto da família de Ava/Isaías, ela se liga simbolicamente ao clã do Jaguar,
o que a impediria de fazer amor com os homens deste clã, interdição que
ela não respeita. Isto não lhe é criticado pelos índios porque compreendem
que não há realmente incesto já que ela é uma estrangeira, uma branca, uma
figura do Outro, distinta da comunidade. Embora deslocada, fora de lugar,
ela é acolhida pelos índios. Como na utopia rousseauista, ela se sente feliz
levando esta vida primitiva. Ela cuida dos índios doentes, participa na vida
comum. Sua sexualidade é muito livre, uma inversão das imagens tradicio-
nais da mulher branca casta em oposição à mulher indígena com sexuali-
dade excessiva: ela tem relações com todos os homens que a desejam e que
ela deseja, tornando-se uma mirixorã, categoria de mulher que alegra a vida
dos homens e que não provoca o ciúme das esposas devido a este estatuto
particular.

116
Pela primeira vez na literatura brasileira um autor de romance tenta
explorar a alma indígena, sondar os conflitos existenciais que nascem do
encontro de culturas. Avá/Isaías, tendo deixado sua tribo criança, volta para
ela adulto, depois de ter tido uma formação religiosa católica. O momento
de seu retorno coincide com a morte do chefe (tuxaua), o que significa que
cabe-lhe agora assumir a direção de sua tribo. Entretanto, ele se sente inca-
paz de tornar-se chefe, do mesmo modo que se sentiu incapaz de fazer os
votos do sacerdócio. Neste romance de Darcy Ribeiro assiste-se ao con-
flito de um homem dilacerado entre duas culturas, um homem esquizoide
que está bloqueado, que não consegue agir. Provido de uma “ambiguidade
essencial” (Ribeiro, 2003, p. 341), o texto remete ao drama de Hamlet,
“ser ou não ser”, que foi parodiado por Oswald de Andrade no “Manifesto
Antropófago”: “Tupi or not Tupi”.
Não sou o soldado que regressa vitorioso ou derrotado. Não sou o exilado que retorna
com saudades da raiz. Sou o outro em busca de um. Sou o que resulto ser, ainda,
nesta luta por refazer os caminhos que me desfizeram (Ribeiro, 2003, p. 107).
Eu sou dois. Dois estão em mim. Eu não sou eu, dentro de mim está ele. Ele sou eu.
Eu sou ele, sou nós, e assim havemos de viver (Ribeiro, 2003, p. 109).

De certa maneira ele se parece com os personagens canadenses e/ou


quebequenses que, tendo recebido uma educação ocidental, são levados a
voltar para seu povo.25 Em todos estes romances o personagem mestiço,
educado entre os brancos, é rejeitado e decide voltar para os seus. Há, no
entanto, diferenças significativas. Avá/Isaías só é mestiço do ponto de vista
cultural. Em seguida, ele não é rejeitado pela sociedade branca, é ele quem
decide ir viver junto ao seu povo, como se suas origens o chamassem a reto-
mar seu papel inicial. Finalmente, se os personagens dos romances canaden-
ses são muito positivos, ativos, Ava/Isaías é decepcionante, parece doentia-
mente bloqueado apesar de sua inteligência.
Além disto, pode-se observar que a percepção social do personagem
mestiço do romance é diametralmente distinta da dos romances canadenses.
O mestiço (Métis) no Canadá é considerado um índio, o que explica o fato
de ele ter de deixar o mundo branco para reunir-se aos seus. Juca, o mame-
luco de Maíra, filho de uma índia e um branco que participou na aproxima-
ção dos Mairuns com a sociedade brasileira, sente-se branco e é visto como
um branco, ou seja, sua autorrepresentação corresponde à representação que
25
Ver capítulo “A figura do mestiço na literatura do Canadá”.

117
o grupo social faz dele. Ele desempenha um papel ambíguo no romance.
Os índios o detestam porque ele não participa de seu mundo, apesar de
ser um deles, procurando ao contrário utilizar os índios como força de tra-
balho para seu próprio benefício. Os brancos tendem a considerá-lo como
um homem interessante. Apesar de sua falta de escrúpulos, há pior que ele
(o senador, por exemplo). Na sua rudeza, Juca não se envergonha de suas
origens, não rejeita a mãe indígena mas se considera branco, sem conflitos
identitários. “Depois, não sou bugre, meu pai era branco e a mãe é apenas o
saco onde cresce a semente do homem” (Ribeiro, 2003, p. 143).
Pode-se ler, por trás da aparente inépcia do personagem Ava/Isaías (mes-
tiço cultural) e da força destruidora do personagem mestiço Juca (mestiço
biológico mas mentalmente branco), a visão pessimista de Darcy Ribeiro
em relação ao trabalho missionário e ao encontro dos dois mundos.
(...) é o mameluco cumprindo sua sina de castigador do gentio materno (...). Há tan-
tos séculos tem sido assim. Primeiro, foi na linha do mar, depois mais e mais para
dentro. Agora é aqui no Iparanã. Avançará amanhã por onde houver mata virgem e
nela índios e brancos que se guerreiam e se misturam. As poucas crias que vingam são
celerados matadores como esse Juca (Ribeiro, 2003, p. 157).

O romance também encena os chichês que remontam à época colonial,


com tons burlescos, como a referência paródica ao canibalismo. Numa con-
versa por rádio, alguém se refere ao caso de uma jovem indígena, levada a
Brasília para trabalhar como empregada doméstica, que é devolvida à tribo
com o pretexto de que ela era canibal quando na verdade ela foi surpreendida
beijando os pés do bebê de quem cuidava. “Aqui Faria Micê, explico: nada
houve canibalismo. Só que esposa deputado vendo índia beijando pezinho
do neném dela teve medo reversão antigos costumes gentios falada antropo-
fagia. Caiu em Teresa, bateu muito. Câmbio” (Ribeiro, 2003, p. 373).
Este romance de Darcy Ribeiro é o que mais se aproxima da obra indi-
genista de José Maria Arguedas, que era também antropólogo e romancista.
Antonio Candido se refere à originalidade de Maíra situando-o na tradição
literária indianista brasileira, em contraposição à visão lírica e glamurizada
de José de Alencar e à visão satírica e sarcástica de Mário de Andrade.
Não há mais nele a redução lírica ou heróica de José de Alencar, que fala dos índios, e
por eles, com a sua plena voz de civilizado que os quer embelezar. Não há tampouco
a voz cheia de sarcasmo e humor com que Mário de Andrade desenrola a sátira de
Macunaíma. Há diversas vozes que instituem a narrativa, cada uma conforme o seu
ângulo (Candido in Ribeiro, 2003, p. 383).

118
Em comum com Macunaíma, pode-se verificar o tratamento muito
livre da questão da sexualidade. Porém, ao contrário de Mário de Andrade,
que teve de eliminar o capítulo sobre as normalistas, considerado “libertino”
demais por seus amigos na época, Darcy Ribeiro escreveu em um momento
em que a sociedade aceitava mais facilmente o tom um pouco apologético
de uma sexualidade transbordante, assim como seu registro de linguagem
vulgar, com a utilização de palavras consideradas obscenas.

Antônio Torres e Murilo Carvalho:


neoindianismo e revisionismo histórico
Já nos anos 2000 pôde-se perceber, em romances que demandaram pes-
quisa histórica, um movimento de revisionismo. Sem a idealização lírica dos
românticos, estes autores tentam refletir sobre o significado do embate ocor-
rido no passado e sobre o desaparecimento de numerosos povos indígenas.
Isto se dá tanto em Meu querido canibal, de Antônio Torres, quanto em O
rastro do Jaguar, de Murilo Carvalho.
Em 2000, quando o Brasil festejava os 500 anos da descoberta, Antonio
Torres retornava ao século xvi em Meu querido canibal para contar a histó-
ria do ponto de vista de Cunhambebe, o chefe tupinambá que, aliado dos
franceses, revoltou-se contre os portugueses, organizando a chamada Confe-
deração dos Tamoios, “a maior organização de resistência aos colonizadores
que o país teve” (Torres, 2000, p. 50). Mistura de romance, reportagem jor-
nalística e crônica histórica, mais uma vez a literatura brasileira faz a apolo-
gia e a defesa do canibal, como o título indica. Já na primeira página o nar-
rador se refere à terra, o Rio de Janeiro, como o paraíso, o que aponta para
um neoindianismo que ele é o primeiro a apontar e reconhecer. O narra-
dor, que se confunde um pouco com o autor, declara-se um “extemporâneo
neorromântico exposto às flechadas da história oficial” (Torres, 2000, p. 9).
Ele evoca o festim canibal, o encontro de Cunhambebe com Hans Staden,
conforme é narrado pelo alemão que ficou prisioneiro dos Tupinambá. Ape-
sar da pesquisa histórica, o narrador é bastante livre para dar suas interpre-
tações, às vezes de maneira bastante galhofeira.
Cunhambebe aliou-se a vários chefes indígenas para levar a cabo a Con-
federação dos Tamoios, que durou 12 anos. Arariboia é o chefe que ajudou
os portugueses, tornando-se um herói da história oficial, com destaque para

119
sua estátua em Niterói, local onde ele recebeu terras em pagamento a seu
trabalho fiel aos colonizadores. Adotando-se a ótica dos rebeldes, como faz o
narrador de Torres, Arariboia é um traidor. João Ramalho, o português que
se casou com Bartira, filha do cacique Tibiriçá, é também inimigo da Confe-
deração dos Tamoios. João Ramalho teve numerosa descendência com Bar-
tira – que depois de batizada recebeu o nome de Izabel – e com outras
índias. Os jesuítas portugueses José de Anchieta e Manuel da Nóbrega par-
ticipam dos acontecimentos históricos, com lábia e habilidade diplomática
para enganar e protelar batalhas, enquanto os portugueses se organizavam.
“Envolvidos pela retórica do jesuíta, os índios arriaram as armas. Conven-
ceram-se da necessidade da paz” (Torres, 2000, p. 75). O romance mostra
também que os índios cumpriam as promessas, ao contrário dos brancos
que eram mentirosos, não respeitavam a paz que haviam proposto.
A segunda parte do romance, “No princípio Deus se chamava Monan”,
começa com um mito cosmogônico dos Tupinambá, que aparece no livro
de André Thevet. A partir daí, o narrador explora, além do imaginário reli-
gioso dos índios, os livros de André Thevet e Jean de Léry, apontando os
principais elementos que chocaram os colonizadores europeus: o caniba-
lismo, a nudez, a falta de religião, a falta de rei. Na terceira parte, no pre-
sente da enunciação, o escritor, às voltas com seu cotidiano na cidade do Rio
de Janeiro, no limiar do século xxi, decide refazer as trilhas de Cunhambebe
em Angra dos Reis, em busca de vestígios eventualmente deixados por ele.
Percorrendo a história do Brasil, que está entranhada na geografia da cidade
do Rio de Janeiro, o narrador evoca muitos outros personagens históricos,
inclusive alguns franceses que aqui vieram no século xviii, com destaque
para Duguay-Trouin, que seria o protagonista do livro seguinte do autor, O
nobre sequestrador (2003).
O narrador de Torres lembra que os europeus levaram indiozinhos para
a Europa, como “souvenirs da terra exótica” (Torres, 2000, p. 14). Este é
o tema de O rastro do Jaguar (2008), de Murilo Carvalho.26 Embora não
conste na folha de rosto nem na capa a palavra “romance”, o livro é, como
Meu querido canibal, ao mesmo tempo uma pesquisa histórica, uma repor-
tagem jornalística e um romance, pois, como Antônio Torres, ele trata o

26
É também o tema do ensaio “Vinte luas. Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil: 1503-1505”.
(1996), de Leyla Perrone-Moisés, que relê a história do indiozinho levado pelo francês Paulmier de
Gonneville. O índio, já adulto, casa-se com sua filha e torna-se seu herdeiro, de quem usa o nome.

120
material histórico recolhido com muita liberdade. Além disto, ele cria uma
história de amor para Pereira, seu narrador-personagem, que é também seu
alter ego, já que a história é contada hoje e não no fim do século xix, como
finge o narrador. Ele entrelaça a história de Pierre, um índio guarani, que
foi levado para a França por Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), e que
se tornou um francês em corpo de índio (como tantos outros), com a his-
tória de Firmiano, índio botocudo levado pelo mesmo Saint-Hilaire, a do
narrador Pereira e outros personagens de menor importância. O viajante e
naturalista francês, que esteve no Brasil de 1816 a 1822, escreveu inúmeros
livros sobre o país, inclusive sobre os índios com os quais teve contato.
O narrador e Pierre têm dois contatos decisivos em Paris: com alguns
índios que são enviados à prisão e acabam executados, o que muito os revolta,
e com Gonçalves Dias, o poeta mestiço (sua mãe tinha sangue índio) que
tanto cantou a nobreza dos índios. Uma pequena biografia do autor de Juca
Pirama é apresentada, terminando com sua volta ao Brasil, quando mor-
reu (1864) no naufrágio do navio em que viajava, o Ville Boulogne. O espe-
lho que revela a Pierre sua identidade são os índios que viu em Paris, pois
até então ele não sabia sua origem. Esta descoberta o leva a vir para o Bra-
sil. Aqui ele luta ao lado dos Aimoré em Minas Gerais e dos Guaranis no
Rio Grande do Sul, durante a Guerra do Paraguai. Para escrever a história
de Pierre e preencher as lacunas de acontecimentos que ele não viveu junto
do amigo, a estratégia narrativa do narrador é a de usar as cartas escritas
por ele.27 Numa dessas cartas, ele descreve o primeiro encontro com índios,
momento em que o sonho vira pesadelo, porque ele se vê diante de índios
humilhados por séculos de opressão, índios que não correspondem à ima-
gem que ele tinha tido a partir da leitura de Gonçalves Dias: “Eram homens
pequenos e frágeis, a contraimagem dos guerreiros altivos descritos nos poe-
mas que havíamos lido e em que, eu principalmente, de certa forma, acre-
ditara” (Carvalho, 2008, p. 111). Ao constatar que os índios são espectros
que vagam pelos sertões de Minas Gerais, ao perceber que a sua raça está
desaparecendo “consumida por uma civilização incapaz de conviver com
qualquer diferença” (Carvalho, 2008, p. 113), a reação de Pierre é de ver-
gonha, decepção. Contrapondo-se à ideia, arraigada na sociedade brasileira
da época, de que os índios só sobreviveriam se aculturados, trabalhando nas

O leitor tem a informação de que o livro é inspirado em história verídica mas não tem muitos ele-
27

mentos para julgar se as cartas são verdadeiras ou falsas.

121
lavouras como empregados, Pierre começa a elaborar um projeto utópico –
que ele não conseguirá realizar – de criar um estado índio. Ao se engajar na
guerra dos Aimoré, ele entra também no processo de busca de uma iden-
tidade pessoal indígena, já que ele era culturalmente francês. O momento
que emblematiza sua metamorfose é quando pinta o corpo de jenipapo,
tomando a aparência de um guerreiro botocudo.
Os Aimoré eram um povo Jê, com língua diferente da dos Tupis, por
isto eram chamados de Tapuia. Eram guerreiros e usavam um batoque de
madeira nas orelhas furadas e no lábio inferior, donde a denominação de
Botocudo. Foram combatidos pelos portugueses e pelos Tupis, o que os levou
para o interior do país. Como vimos, os Tapuia foram considerados os índios
maus, canibais, selvagens. No século xix, no momento em que travaram suas
últimas batalhas, eles viviam na região dos rios Doce e Jequitinhonha. Com
o esgotamento do ouro e dos diamantes, houve uma expansão de campone-
ses para a região onde eles viviam, o que provocou embates entre a polícia e
os índios. Quando Pierre se engajou na luta dos Aimoré, eles já estavam pró-
ximos da extinção, vítimas que foram de um longo e lento extermínio.
O último chefe Aimoré foi, segundo o livro, Manhá-Oé. Estudara com
os capuchinos e servira como soldado, o que faz dele não um “primitivo”
mas alguém que entrou na civilização ocidental e optou por sair dela e lutar
contra ela. É um herói trágico, sua luta não era mais de sobrevivência, “era
uma guerra suicida e cruel, terra e homens arrasados” (Carvalho, 2008, p.
209) porque a opção que era oferecida aos índios era a de aldeamento, o que
significava o fim de seu modo de viver nômade. Entre a adaptação aos pre-
ceitos ocidentais e a morte, eles escolheram a morte.
Depois das aventuras em Minas Gerais, Pierre e Pereira vão para o sul:
este, como correspondente do jornal Le Figaro, faz reportagens sobre a Guerra
do Paraguai, enquanto Pierre vai ao encontro dos Guarani. “A destruição dos
guaranis, que começava a presenciar no vale do arroio Guaiaco, no interior
da serra do Iguariaçá, não era estruturalmente diferente do extermínio do
povo botocudo nas florestas do Jequitinhonha” (Carvalho, 2008, p. 305).
Recebido pelo velho Ñezu como um karaí, ou seja, um guerreiro retor-
nado, ou ainda, um Adornado, que tem o poder da palavra, ele se transforma
no Jaguar ou Jaguaretê, figura mítica que libertaria os Guaranis. “O Jaguar
azul beberia as águas prateadas pela lua e seu urro seria a coragem das crian-
ças que fariam a nação renascer” (Carvalho, 2008, p. 308). Ñezu lhe oferece
uma pedra verde, muiraquitã – a mesma que move as aventuras carnavalizadas

122
de Macunaíma – que aqui aparece no registro sério. A busca dos Guaranis
é pela Terra Sem Males que “está, fundamentalmente, dentro de nós” (Car-
valho, 2008, p. 339).
Como Walter Benjamin, o narrador manifesta sua visão da História
como um longo processo de destruição de povos:
Assim se constroem as nações: sobre os escombros de outras nações derridas; assim,
nesta América, os impérios e repúblicas se multiplicaram sobre os restos destruídos
de tantos índios. Os botocudos foram apenas mais um povo esmagado para que a
nação brasileira surgisse, e sua destruição pequeno incidente na engrenagem da his-
tória (Carvalho, 2008, p. 157).

Do mesmo modo que no livro de Antônio Torres, o narrador de O ras-


tro do Jaguar faz uma defesa da humanidade dos índios, opondo-se à visão
estereotipada dos europeus de que eles eram primitivos e selvagens, sem lei,
sem rei e sem fé. Tinham uma cosmogonia própria, mitos, contos e len-
das, divindades. Os Guaranis, por exemplo, eram muito religiosos, sua cul-
tura era intimamente ligada às suas crenças. Perder isto significava para eles
perder sua identidade de povo. Os índios não tinham escrita, como tan-
tos outros povos da América, da África e da Oceania, mas sua linguagem
era suficientemente sofisticada para exprimir todas suas necessidades, como
mostrou Lévi-Strauss em O pensamento selvagem e outros textos.
Além dos índios que ainda buscavam viver nômades, preservando seu
modo de vida tradicional, havia os índios aculturados e os mamelucos ou
mestiços. Estes, como salientou Darcy Ribeiro, não se consideravam índios,
tinham até certa vergonha em admitir ser de ascendência indígena. Murilo
Carvalho contrapõe a visão realista do povo à visão romântica que os perso-
nagens tinham descoberto em Paris com Gonçalves Dias:
Para o povo, ser índio ainda significava a brutalidade, a humilhação, a permanente
fuga do extermínio ; ser livre sem ter direitos, escravidão não declarada. Por isso, tanta
repulsa às suas próprias origens, desejo branqueador que a realidade não disfarçava na
pele morena, nos cabelos escuros e lisos, nos olhos oblíquos. Os poemas românticos,
como os de Gonçalves Dias, retratavam uma situação idealizada, do tempo em que
as nações índias eram soberanas em seus territórios e as lutas e guerras muito mais
rituais do que necessidade de sobrevivência ; a gente do povo não compactuava com
esse romantismo (Carvalho, 2008, p. 126).

Os dois autores revelam uma versão revisionista da História: o herói


de Torres é Cunhambebe quando na história oficial Arariboia é quem sem-
pre ocupou este lugar. Já Carvalho mostra uma outra versão da Guerra do

123
Paraguai, desvelando a posição ocupada pela mitologia guarani na constru-
ção da ideologia nacionalista de Solano Lopes; ele mostra também a tragici-
dade dos Aimoré, em suas últimas batalhas antes de seu extermínio. A falta
de perspectiva leva estes Tapuia a cometer atrocidades, mas o narrador tenta
entender suas razões, em vez de condená-los como maus, como selvagens.

Bernardo Carvalho e Milton Hatoum: uma visão realista?


Diferentemente do revisionismo até certo ponto idealista dos índios
do passado (Antônio Torres e Murilo Carvalho) e diferentemente tam-
bém daquilo que chamei de visão antropológica (Antonio Callado e Darcy
Ribeiro) em que o narrador se coloca na pele de um etnógrafo, que estuda e
tenta entender os índios, na literatura contemporânea há também os autores
que falam do índio no presente numa visada realista, sem lirismo, sem uto-
pia, sem identificação. Bernardo Carvalho, em Nove noites (2002), e Milton
Hatoum, em Dois irmãos (2006 a), Cinzas do Norte (2006b) e, sobretudo,
Órfãos do Eldorado (2008), tematizam o índio do seculo xx, tentando mos-
trar a realidade tal como eles a veem, encenando a marginalização dos índios
na sociedade brasileira, com um olhar até certo ponto de fora. No caso de
Bernardo Carvalho, verifica-se um estranhamento máximo de um jovem
paulistano de classe alta em contato forçado com índios em sua aldeia: na
infância, levado pelo pai; adulto, movido pelo desejo de entender o contexto
da experiência do antropólogo americano Buell Quain, personagem de seu
livro. Quanto a Milton Hatoum, sua percepção é mais próxima, demons-
trando compaixão e uma certa generosidade na maneira de tratar ficcio-
nalmente a questão. Deve-se observar que Hatoum coloca em cena não os
índios em suas aldeias mas aqueles que deixaram suas tribos para ir viver na
cidade de Manaus e sobretudo as meninas e moças que passam pelo orfa-
nato e vão acabar trabalhando como domésticas ou como prostitutas.
Em Nove noites o narrador empreende uma pesquisa sobre as razões que
teriam levado o antropólogo norte-americano Buell Quain ao suicídio, aos 27
anos de idade, no dia 2 de agosto de 1939, após ter passado cinco meses entre
os Krahô,28 na divisa do Maranhão com Tocantins. Há um paralelismo entre
o percurso do antropólogo e o do narrador (e autor), que frequentou a região
do Xingu, levado pelo pai, a partir de 1967, quando tinha seis anos de idade.
28
Os Krahô, como os Gavião e os Canela, pertencem ao grupo dos Timbira.

124
Mas se para Quain, que saía do Meio-Oeste para a civilização, o exótico foi logo asso-
ciado a uma espécie de paraíso, à diferença e à possibilidade de escapar ao seu próprio
meio e aos limites que lhe haviam sido impostos por nascimento, para mim as via-
gens com o meu pai proporcionaram antes de mais nada uma visão e uma consciên-
cia do exótico como parte do inferno (Carvalho, 2002, p. 64).

O narrador consegue muitas informações sobre Buell Quain, o que lhe


permite construir um universo ficcional bastante palpável. Não vou entrar
na análise dos meandros psicanalíticos da construção do personagem, nem
na estrutura narrativa do romance, nem no emaranhado do suspense em que
o narrador funciona como um detetive de romance policial a fim de desven-
dar um mistério. Deixando de lado, portanto, todos estes aspectos, vou-me
concentrar nos contatos – sempre difíceis – do narrador com os índios.
Na orelha do livro aparece uma foto do autor muito pequeno (aos 6
anos) ao lado de um índio imenso, tirada provavelmente em 1967 na sua
primeira viagem com o pai pela região do Brasil Central. A primeira impres-
são, quando desce do avião no Parque do Xingu e começa a ser tocado pelos
curumins, que querem tirar-lhe a roupa, é de pavor. “Os indiozinhos me
carregaram. Era como se estivesse no meio de uma correnteza. Não adian-
tava resistir. Pelo que pude entender, queriam me ver nu, me deixar igual a
eles” (Carvalho, 2002, p. 68). Ele assiste a um encontro de tribos inimigas,
promovida pelos irmãos Villas-Boas, e acha a cena grotesca porque os índios
selvagens – que metiam medo – eram muito menores do que os moradores
do Parque. “Os raquíticos vinham armados pela floresta, saíam do mato, e
os grandalhões fugiam ou se agarravam uns aos outros e se escondiam atrás
dos brancos” (Carvalho, 2002, p. 69). Para evitar problemas, o menino e o
pai dormem no avião; de noite, ele faz xixi nas calças, apavorado de medo
dos índios traiçoeiros e de uma onça que estaria rondando. O pai dá tudo o
que tem, saindo de cuecas e relógio enquanto o narrador-menino não quer
dar nada apesar de ter recebido de presente “os indefectíveis tacapes, arcos,
flechas e cocares em homenagem ao meu bisavô” (2002, p. 69). Em 1973,
às vésperas do desastre do avião da Varig perto de Orly (França), o avião do
pai do autor teve uma pane, um evento bastante traumático para o garoto
então com 11 anos. De todas as desventuras vividas na região com seu pai
ficou-lhe a imagem de que o Xingu era o inferno. Isto seria confirmado em
2001 pelo antropólogo que vai acompanhá-lo na visita aos Krahô, quando
o autor adulto fazia sua pesquisa sobre Buell Quain.

125
Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque foram sendo empurrados, encurra-
lados, foram fugindo até se estabelecerem no lugar mais inóspito e inacessível, o mais
terrível para a sua sobrevivência, e ao mesmo tempo a sua única e última condição. O
Xingu foi o que lhes restou (2002, p. 73).

Como o narrador não havia conseguido quase nenhuma informação


sobre a estada de cinco meses do antropólogo norte-americano entre os
Krahô, ele vai visitá-los, passando três dias horríveis entre eles. Tudo o des-
gosta: “o cheiro pestilencial do peixe seco pendurado num barbante no meio
da sala” (2002, p. 90), a comida, o calor, o hábito dos índios de impor seus
desejos, como o de pintar o corpo dos visitantes, de cortar-lhes o cabelo, de
pedir tudo o que veem (dinheiro, alimento e objetos). O narrador conta que
mesmo depois de voltar para S. Paulo, ele continuou recebendo telefonemas
a cobrar pedindo-lhe coisas. Ao contrário da visão ecológica dos índios e sua
integração com a natureza, ele conta que “chutar cachorros é um dos cos-
tumes mais notáveis da vida cotidiana na aldeia” (Carvalho, 2002, p. 91).
E talvez o que mais o angustia é a impossibilidade de compreender o que
os índios queriam ou tinham intenção de fazer com ele. Sentia-se intimi-
dado, irritado, amedrontado (2002, p. 95). Ele era o branco, o estrangeiro,
o Outro para aquelas pessoas que não o entendiam.
A maioria dos índios não falava comigo. Ou me ignoravam ou me observavam à
distância. Podiam estar desconfiados ou simplesmente não ter nenhum interesse na
minha presença. Quando se aproximavam, era ou para pedir alguma coisa ou porque
estavam bêbados. Só as crianças riam de mim, e as mulheres (Carvalho, 2002, p. 97).

Afirma que não tinha objetivos antropológicos, que não conseguia enten-
der os laços de parentesco dos índios e que, aliás, nem Buell Quain conseguiu
entendê-los (Carvalho, 2002, p. 98). O que predomina durante toda sua estada
é o desconforto, a inadaptação do jovem urbano a uma vida tão radicalmente
diferente; se até mesmo o antropólogo americano não estava preparado, o escri-
tor de S. Paulo está ainda menos, sobretudo devido ao medo do que os índios
pudessem estar planejando fazer com ele e à impossibilidade de comer qual-
quer coisa. Apesar de todos os aspectos negativos de sua estada, há alguns pou-
cos momentos de deslumbramento. O principal deles é o ritual do velho Krahô
que canta a noite toda no pátio da aldeia acompanhado pelas mulheres.
O velho cantava sozinho no centro da aldeia imóvel e adormecida (...). Uma mulher
depois da outra, de todas as casas, com intervalos de minutos, vinham em direção ao
velho cantor e se punham enfileiradas diante dele, para acompanhá-lo, atraídas pelas

126
canções. Ele as chamava, uma a uma, até que no centro da aldeia um coral de mulhe-
res estava formado sob a sua liderança e a lua cheia (2002, p. 100).

Após a sua visita aos Krahô, na tentativa de entender a situação dos


índios na sociedade brasileira, o narrador considera que eles “são os órfãos
da civilização” (2002, p. 108), que estão numa situação desigual, desequili-
brada, porque eles necessitam da ajuda dos brancos, “há neles uma carência
irreparável”, eles “não querem ser esquecidos” (2002, p. 109). No entanto,
a relação paternalista que se estabelece é irritante, incômoda e o persona-
gem-narrador-autor não lida bem com ela. “Não sou antropólogo e não
tenho uma boa alma. Fiquei cheio” (2002, p. 109). Bernardo Carvalho, que
é bisneto do marechal Rondon por parte de mãe, cita uma carta de Quain
a Margaret Mead na qual o antropólogo norte-americano critica o traba-
lho de Rondon, fundador e primeiro diretor do SPI (Serviço de Proteção ao
Índio),29 acusando o SPI de ser paternalista. Bernardo Carvalho não tem a
alma de Rondon. O balanço de seu contato com os Krahô é negativo por-
que, apesar de ter prometido que não os abandonaria, não sente o menor
desejo de manter o vínculo com eles: “Fiz um papel pífio. E eles riram da
minha covardia. Jurei que não me esqueceria deles. E os abandonei, como
todos os brancos” (2002, p. 109).
Milton Hatoum arma o emaranhado de suas narrativas com muito
rigor e a origem indígena de seus personagens é um elemento-surpresa, que
estava lá, escondido, camuflado, e que só aparece depois de a narrativa já ter
avançado bastante. Trata-se, em toda sua obra, de mulheres indígenas, que
são levadas para Manaus, e que já estão em processo de aculturação ou já
foram totalmente integradas na sociedade. Em Dois irmãos e em Órfãos do
Eldorado é o caso de mulheres indígenas que passaram pelo orfanato, uma
maneira de protegê-las da prostituição: Domingas, no primeiro e Florita e
Dinaura, no segundo. Em Cinzas do Norte também há uma mulher indí-
gena, Ozélia, que tem duas filhas, provavelmente do homem branco que as
trouxe para a cidade. Embora se tornem também órfãs, elas não são levadas
para o orfanato e conseguem se virar sozinhas. O que é uma dominante é
que estas mulheres têm – livremente ou de maneira forçada – amantes bran-
cos, em relações familiares confusas e, muitas vezes, incestuosas.

29
O spi foi criado em 1910 no governo de Nilo Peçanha; em 1967 foi extinto e em seu lugar foi criada
a Funai (Fundação Nacional do Índio).

127
A avó do protagonista Mundo, de Cinzas do Norte, era uma índia, fato
revelado no meio do livro (p. 154 de um livro de 311 p.); a mãe, Alícia,
casou-se com Jano, um homem rico da cidade, e sua origem foi “esquecida”.
O autor usa as cartas de Ran – tio de Lavo, o narrador, e um dos aman-
tes de Alícia – como estratégia narrativa para contar a história passada em
flashback. Ozélia, mãe de Alícia e Algisa, viera talvez do Alto Solimões, não
falava português e se comportava como uma índia: andava só de saia, de pei-
tos nus, fazia farinha de mandioca como os índios. O provável pai das duas
meninas, um branco de origem estrangeira, Dalemer, visitava-as durante
uns tempos mas depois sumiu. Ele não chegou a reconhecer e dar o nome às
crianças. Como outras mulheres indígenas da obra de Hatoum, Ozélia era
uma inadaptada na cidade e, por isto, profundamente infeliz.
Sentada na rua, ela tomava caiçuma, calada, contemplando o horizonte com uma
nostalgia de morte. Às vezes, sob a quentura do começo da tarde, víamos o rosto aco-
breado mirar o mormaço, o corpo encostado ao tronco do jambeiro florido, as mãos
caídas sobre a terra. Só de vê-la assim me dava uma tristeza medonha (Hatoum,
2006b, p. 158).

Em Dois irmãos, Domingas é a mãe de Nael, o narrador. Empregada


doméstica na casa da família libanesa, ela tinha um relacionamento amo-
roso com um dos gêmeos, Yaqub, mas foi estuprada pelo outro, Omar, o
que deixa na indecisão quem é o pai de Nael. A origem de Domingas só é
mencionada no final do romance.
Só uma vez, ao anoitecer, começou a cantarolar uma das canções que escutara na
infância, lá no rio Jurubaxi, antes de morar no orfanato de Manaus. Eu pensava que
ela havia travado a boca, mas não: soltou a língua e cantou, em nheengatu, os breves
refrões de uma melodia monótona. Quando criança, eu adormecia ao som dessa voz,
um acalanto que ondulava nas minhas noites (Hatoum, 2006a, p. 179).

As duas mulheres na vida do protagonista Arminto, em Órfãos do Eldorado,


são de origem indígena e viveram no orfanato das carmelitas: Florita, amante
do pai, que cuidou dele e eventualmente tornou-se também sua amante e
Dinaura, que o enfeitiça. As relações são incestuosas já que Florita é mãe
putativa e amante de Arminto e Dinaura – é o mistério esclarecido no fim
do livro – podia ser sua meio-irmã ou madrasta, ou seja, ela era filha ou
amante do pai de Arminto, ou ambas as coisas.
Esta novela começa com uma cena em que uma índia tapuia falava e
apontava o rio Amazonas até que entrou dentro da água e desapareceu. Florita

128
traduziu para Arminto, ainda criança, que a índia teria sido atraída por um
ser encantado lá no fundo das águas. Ela sempre traduzia as histórias que
eles ouviam na Aldeia, “lá no fim da cidade” (Hatoum, 2008, p. 12). No
entanto, muitas páginas depois, Florita revela ao rapaz já crescido que a tra-
dução dela era fantasiosa, ela mentira para não impressioná-lo. “Eu ia con-
tar para uma criança que a mulher queria morrer? Dizia que o marido e os
filhos tinham morrido de febres, e que ela ia morrer no fundo do rio por-
que não queria mais sofrer na cidade. As meninas do Carmo, as indiazinhas,
entenderam e saíram correndo” (2008, p. 90).
Órfãos do Eldorado é uma novela fortemente inspirada em mitos ama-
zônicos, como o da Cidade Encantada, que existiria no fundo dos rios e
lagos, e que se aproxima do mito europeu do Eldorado. É neste livro que a
presença indígena é mais explicitada, embora o conflito principal gire em
torno de um homem branco, oriundo de família rica, mas que acaba per-
dendo toda a fortuna. Em Dois irmãos e em Cinzas do Norte há também
algumas referências às lendas, aos cantos ou aos artefatos feitos pelos índios.
Por exemplo, Domingas faz miniaturas de animais, canta os cantos de sua
infância, na Vila Amazônia o personagem Mundo descobre um índio velho
que pinta a casca fina da madeira. Além destes elementos darem conta da
existência de um trabalho mais artístico dos índios, Hatoum suscita tam-
bém uma discussão ética sobre o uso que artistas brancos fazem de artefatos
indígenas a fim de criar obra de arte. Arana, um artista inescrupuloso, reco-
lhe ossadas em um cemitério dos índios e prepara uma exposição intitulada
“A dor de todas as tribos”, para ser mostrada na Bienal de Artes e em galerias
do Rio e de São Paulo. O narrador comenta: “Pensei nas ossadas, no saque
dos restos mortais daqueles seres anônimos” (2006b, p. 109).
Pode-se concluir que na obra de Milton Hatoum o indígena não é o pro-
tagonista mas que ele está ali, faz parte da sociedade amazônica, ainda que
marginalizado, pobre, explorado e desprezado pelos maiorais da região. Está
ainda mais presente a mulher indígena, a maior vítima dos predadores mas-
culinos que se aventuram pelas matas em busca de riquezas e de mulheres.

Textualidades indígenas
O ensaísta peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), o teórico
do indigenismo, escreveu que a literatura indigenista falava em nome dos

129
índios, mas que, um dia, eles mesmos escreveriam sua própria “literatura”,
entre aspas para significar que ela era assim concebida em termos de lite-
ratura escrita segundo os modelos ocidentais. Com efeito, as sociedades
indígenas sempre tiveram uma literatura oral que inclui os mitos, contos e
lendas. Desde a conquista, uma parte de suas tradições foi reunida por mis-
sionários, etnólogos ou outro tipos de mediadores. Um país como o Peru
teve desde o século xvi autores mestiços que deixaram uma obra fundamen-
tal de explicação das concepções indígenas, como Inca Garcilaso de la Vega
e Guaman Poma de Ayala. No Brasil, entretanto, não só não houve a mesma
produção como só se começou a estudar o mundo indígena no século xix.
A partir dos anos 1970/80, como parte integrante dos movimentos em
defesa das minorias (negros, índios, mulheres, homossexuais), começam a
aparecer produções escritas assim como filmes, documentários, gravações,
feitas pelos índios tanto na América do Norte quanto na América do Sul.
Estas novas textualidades – que vão da simples transcrição de tradições orais
até livros “ literários” no sentido ocidental – se situam numa política de afir-
mação das culturas indígenas. Na América do Norte coloca-se a questão da
autoridade das vozes, ou seja, os indígenas devem falar em seu nome (e nin-
guém mais). Com efeito, a polêmica suscitada pela questão “Can the subal-
tern speak?”, título de um artigo de Gayatri Spivak publicado em 1985, nas-
ceu de um mal-entendido, pois alguns interpretaram sua provocação como
se os subalternos não tivessem o direito de falar. De fato, ela queria dizer que
quando os subalternos falam, eles não são ouvidos porque são marginaliza-
dos, os discursos hegemônicos sempre são preponderantes.
Em todas as partes da América gravações de cantos e filmes documen-
tários têm crescido de forma significativa; as publicações de livros também
aumentaram apesar de a visibilidade e a repercussão desta produção ainda
serem muito limitadas. Além das antologias de textos orais, em geral orga-
nizadas por mediadores, surgem autores indígenas que, tendo feito estudos
formais, publicam livros que se encontram ao mesmo tempo dentro da tra-
dição ocidental e indígena.
Fausto Reinaga é considerado por muitos como o fundador da indiani-
dade. Escreveu La revolución india (1970) e Manifiesto del partido indio boli-
viano (1970). Segundo Rojas Mix, um de seus imperativos é a defesa dos rios,
dos mares e dos bosques, dos poderes telúricos, afirmando que a ecologia é
uma religião. A base de seu discurso é o pensamento amáutico. Os amautas

130
eram os depositários do saber na sociedade inca e deviam transmiti-lo de gera-
ção em geração. O pensamento amáutico é a pedra angular do Ser índio. É
a concepção cósmica do homem e do universo. Mas para mudar o mundo,
o pensamento amáutico deve destruir o pensamento socrático. Para Sócra-
tes, o homem é um animal racional, enquanto o pensamento amáutico é um
pensamento cósmico (1991, p. 314). Assim, o homem é parte da natureza.
O índio não é individualista nem defende a propriedade privada, sua concep-
ção é comunitária. Sua identidade está na unidade com a terra e com o sol. O
Tawantisuyo é todo o continente. Ele ataca violentamente o mestiço, o mar-
xismo e o cristianismo, prefere usar a palavra índio e recusa o termo indígena
(1991, p. 315- 316).
No Canadá autores como Thomas King30 e Tomson Highway se servem
da tradição indígena, mas a ultrapassam para criar uma literatura que atinge
um público mais largo.
No Brasil alguns escritores indígenas, cujos livros se dirigem sobretudo
a crianças e adolescentes, já têm um certo reconhecimento. O escritor com
obra mais extensa e reconhecida é, talvez, Daniel Munduruku, cujo pri-
meiro livro, Histórias de índios, de 1996, vendeu mais de 60.000 exemplares
e está na 16ª edição. Presidente do nearin (Núcleo de Escritores e Artistas
Indígenas), publicou mais de 30 livros. Em Meu avô Apolinário, que rece-
beu um prêmio da Unesco, ele conta como os ensinamentos de seu avô aju-
daram-no a valorizar sua identidade. Kaká Werá Jecupé escreveu Todas as
vezes que dissemos adeus, 1994, A terra dos mil povos: história indígena do Bra-
sil contada por um índio, 1998, As fabulosas fábulas de Iauaretê, 2007. Eliana
Potiguara escreveu Metade cara, metade máscara (2005), Akajutibiró, terra
do índio Potiguara (1994) e A terra é a mãe do índio (1989). Ailton Krenak
escreveu um livro O baú do russo, sobre sua busca por documentos sobre seu
povo nos arquivos russos. Todos estes escritores desempenham um papel
importante como educadores, militantes e ecologistas, o que corresponde
muito bem à filosofia indígena, que procura ter uma relação harmoniosa
com a natureza. Em todos os discursos dos índios, do Norte ao Sul do con-
tinente, há a referência à Mãe-Terra e a crítica às práticas predatórias da civi-
lização ocidental.
30
Thomas King nasceu na Califórnia mas vive no Canadá; dois de seus livros foram indicados para
o Prêmio General Governor: A Coyote Columbus Story (1992) e Green Grass, Running Water (1993).
Tomson Highway teve formação musical, escreve e dirige peças de teatro, como The Rez Sisters (1986).
Publicou o romance Kiss of the Fur Queen (1998).

131
Embora o autor não seja indígena (mas, como ele diz, citando o antro-
pólogo Eduardo Viveiros de Castro, “no Brasil, todo mundo é índio, exceto
quem não é”), considero como textualidade indígena Meu destino é ser onça
(2009), de Alberto Mussa, que reescreve/restaura um mito tupinambá a par-
tir do livro de André Thevet e de outros textos dos séculos xvi e xvii (Piga-
fetta, Nóbrega, Staden, Léry, Anchieta e outros). Além do mito propria-
mente dito, o autor faz uma introdução e um estudo das fontes estudadas.
Todas as coisas são pequenas (2008), de Daniel Munduruku, é um
romance em que o personagem Carlos, um bem-sucedido empresário que
sofre um acidente de avião na floresta amazônica, é socorrido por um índio.
Ele descobre uma outra cultura e, no final, volta ao mundo dos brancos
transformado pelo saber ancestral dos índios. O livro transmite uma visão
polarizada, em que as pessoas do mundo civilizado têm objetivos excessiva-
mente materialistas enquanto o mundo indígena está integrado com as for-
ças da natureza.
O romance se filia à longa tradição do romance de provação, pois o perso-
nagem deve passar por uma série de provas; só depois de cumprir as tarefas que
lhe são propostas é que ele sai vencedor. Como mostra Bakhtin, o romance de
provação mais antigo tinha um herói “acabado e inalterável” (Bakhtin, 2003,
p. 207), mas em seu processo de transformação ele chega ao romance barroco,
em que se associa uma ideia de formação. O romance barroco tem algumas
características, segundo Bakhtin: 1. O enredo se constitui de “desvios em face
do fluxo normal da vida das personagens, em acontecimentos excepcionais e
situações que não existem na biografia típica, normal, comum do homem”
(Bakhtin, 2003, p. 210). 2. O tempo da aventura não corresponde ao tempo
cronológico, pois o que parece durar dias ou meses pode corresponder a horas
no tempo real; 3. A representação do mundo se concentra no personagem
central; haveria um certo exotismo geográfico e ao fim do romance o persona-
gem pode mudar mas o mundo em que atuou não se modifica.
O personagem Carlos no início é egoísta e ganancioso; sua conversão
aos valores mais puros torna-se possível graças aos artifícios narrativos do
gênero, pois tudo se passa como se fosse um sonho; ao acordar e ser socor-
rido “realmente” pelos brancos, ele se lembra de uma experiência vivida
entre os índios que o leva a mudar sua vida.
A parte que descreve o mundo indígena – sua filosofia de vida, perfei-
tamente imbricada com seus mitos cosmogônicos e sua medicina – é muito
convincente e poética. O título do romance encontra seu significado na

132
explicação dada pelo pajé que “só duas coisas a gente precisa entender para
ser feliz: a gente nunca tem que se preocupar com coisas pequenas; e não
esquecer que todas as coisas são pequenas” (Munduruku, 2008, p. 129). Se
todas as coisas são pequenas, a vida adquire uma outra dimensão, eis a des-
coberta que o leitor faz junto com o personagem Carlos.
Ao conhecer de perto os costumes dos índios, o personagem se per-
gunta se seu pai não tinha ascendência indígena, pois as “coisas que ele sabia
eram muito parecidas com essas que eu estava aprendendo agora (Mundu-
ruku, 2008, p. 107). Assim, percebe-se o desconhecimento ou quiçá um
“esquecimento” da ascendência indígena na genealogia das famílias brasilei-
ras e, ao mesmo tempo, como elementos – vestígios – das culturas indíge-
nas estão arraigados no modo de vida das populações bastante miscigenadas
do interior do país.
Daniel Munduruku faz uma revisão da História e da filosofia ocidental,
para apontar que os índios não são nem selvagens nem primitivos, que as ver-
dades são muitas. Ao relativizar a cultura, criticando o universalismo da cha-
mada “civilização” ocidental, o autor aproxima-se de Montaigne que dizia que
“cada um chama barbárie o que não é de seu uso” (Montaigne, 2000, p. 20).

Conclusão
Embora sem ter feito um inventário exaustivo do assunto, pode-se per-
ceber que as imagens e representações dos indígenas na literatura brasileira
mudaram consideravelmente desde o século xvi, quando os primeiros textos
veiculados na Europa faziam referência e tentavam descrever o mundo dos
“selvagens canibais” até chegar no momento presente, em que os próprios
indígenas estão produzindo os textos em que procuram mostrar o mundo
que conheceram em contato com seus ancestrais. Mas como assinala Mussa,
apesar de muitas etnias terem sido extintas, elas sobrevivem em nós bra-
sileiros, seus descendentes imediatos. Através de seu personagem Carlos,
Munduruku também nos lembra que muitas vezes esquecemos esta nossa
ancestralidade, esquecemos alguns ensinamentos de nossos pais e avós que
estavam mais próximos do mundo rural, no interior do país, e que viviam
mais de acordo com a natureza. Com todos os problemas climáticos denun-
ciados nos últimos anos, percebemos, ironicamente, que o que os indígenas
do mundo todo dizem e praticam há séculos entrou na agenda política de
nosso mundo globalizado.

133
a figura do mestiço na literatura do canadá

(...) la société québécoise, elle, ne digère pas l’Indien.


simon harel

No âmbito deste capítulo tratarei da figura do mestiço em alguns roman-


ces da literatura canadense (de língua francesa e inglesa) e mais especial-
mente nos romances The Diviners, de Margaret Laurence (primeira publi-
cação de 1974) e In Search of April Raintree, de Beatrice Culleton Mosionier
(lançado em 1983). Pretendo mostrar como a sociedade canadense branca,
que defino aqui como “grupo de referência”, a partir de Landowski (2002,
p. 5), trata o mestiço como um Outro difícil de ser incluído na comuni-
dade, recusando-o em nome de uma necessidade ontológica de que ele faça
a opção por seu “verdadeiro” povo. Trata-se de uma forma de segregação que
não ousa dizer seu nome e que, curiosamente, se repete em praticamente
todos os romances pesquisados, inclusive no de Culleton Mosionier, que é
uma escritora de origem mestiça (Métis), criada e educada (como sua prota-
gonista) em lares adotivos brancos e escolas públicas frequentadas por bran-
cos. Não chega a surpreender o fato de seu imaginário não se distinguir do de
outros escritores “brancos”, pois o imaginário não tem “raça”. Frantz Fanon
considerava que os jovens antilhanos possuíam o mesmo inconsciente cole-
tivo que os franceses justamente por terem a mesma educação e a mesma
formação que eles, expostos que eram aos mesmos filmes, aos mesmos gibis,
aos mesmos clichês sobre os negros. Ele define o inconsciente coletivo como
“o conjunto de preconceitos, mitos, atitudes coletivas de um grupo deter-
minado” (Fanon, 1952, p. 152). Este esquema narrativo, em que o mestiço
volta para “seu lugar”, funciona tanto em romances em francês, do Quebec
e outras províncias, quanto em inglês, no corpus trabalhado.

Percurso histórico
O termo métis (e as variantes mestis, mestif) aparece nos dicionários
franceses até o fim do século xvii aplicado somente aos cachorros; o primeiro
a registrar o uso do termo aplicado aos seres humanos é o Furetière de 1690,
e se aplica aos filhos de um europeu e uma indígena ou vice-versa; o Trévoux
de 1704 retoma o mesmo sentido e em seguida o Richelet de 1709 (Albertan-

134
Coppola, 1992, p. 36). Ele deriva do português “mestiço”, que por sua vez
vem do latim mixtus, através do latim vulgar mixticius e serve para designar
a pessoa que tem sangue misturado. Em francês também se diz sang-mêlé e
em inglês Half-breed, termos que têm sentido pejorativo no contexto de uma
América britânica avessa à mestiçagem e imbuída de pureza do sangue. Mas,
diferentemente dos mestiços dos demais países da América, os Métis formam
um grupo étnico, reconhecido pela Constituição do Canadá de 1982 (seção
35) como um povo autóctone, juntamente com os Indígenas e os Inuit. De
acordo com o censo de 2001, os Métis constituem 30% da população autóc-
tone, ou seja, 292.310 Métis num universo de 976.305 aborígenes.31
A origem da miscigenação no Canadá remonta ao século xvii, quando
dos primeiros contatos dos franceses com os ameríndios a fim de comerciali-
zar as peles. Ao viajar dos entrepostos de Montreal e Quebec para as aldeias,
estes franceses se relacionavam com as mulheres indígenas. “Os filhos destas
uniões, criados nas aldeias Huron, cresciam como indígenas. Aqueles poucos
que foram criados na colônia da Nova França (Nouvelle France) cresceriam
como canadenses (Canadiens). Havia pouco ou nenhum espaço para o sur-
gimento de uma comunidade mestiça naquele sistema de comércio” (Foster,
2004, p. 299). Porém, depois da destruição da Hurônia (Huronie) pelos Iro-
quois, no meio do século xvii, os Canadiens, como eram então chamados os
canadenses de origem francesa, mudaram as estratégias de comércio, assu-
mindo eles mesmos o papel de mediadores entre os caçadores indígenas e os
comerciantes de Montreal, papel até então desempenhado pelos indígenas.
Morando entre eles, casando-se com suas mulheres, eles foram alargando
seus territórios em direção ao noroeste: partindo dos entrepostos do Rio São
Lourenço (Saint Laurent) e dos Grandes Lagos, eles chegaram no início do
século xviii à região em que há a confluência de três rios: Red/Rouge, Assi-
niboine e Saskatchewan. Estes homens livres (gens libres) fornecem peles e
provisões aos fortes das duas Companhias que faziam o comércio de peles: a
da Baía de Hudson e a do Noroeste.
No local onde hoje se encontra a cidade de Winnipeg havia, no momento
da criação do Domínio do Canadá e da Confederação (1867), uma grande
comunidade de Métis, de origem francesa e indígena, e de half-breeds, que
descendiam de pais de língua inglesa e de mãe indígena. Aí nasceu o seu

31
Só será usado o termo Métis (com maiúscula) para designar a nação ou os membros da nação; nos
demais casos, será usado o termo português mestiço.

135
líder, Louis Riel (1844-1885), que afirma que “os Métis têm por ancestrais
paternos os antigos empregados das Companhias da Baía de Hudson e do
Noroeste e por ancestrais maternos as mulheres indígenas pertencentes às
várias tribos” (Riel apud Carvalho, 1997, p. 115). Louis Riel, que só tinha
um oitavo de sangue indígena (do lado paterno), foi educado em um semi-
nário de Montreal e poderia passar por um Canadien. Entretanto, ao voltar
para Winnipeg e assumir a causa de seu povo, ele travou um combate identi-
tário que levou à constituição de uma verdadeira nação, pois Riel considerava
que o termo Métis era “um nome conveniente de raça” (Riel, 1997, p. 115).
Entre 1869-1970 as terras que haviam sido cedidas pela coroa britânica
à companhia da Baía de Hudson (Rupert Land) no século xvii, e que cor-
respondem parcialmente às atuais províncias de Manitoba, Saskatchewan
e Alberta, estavam sendo recompradas a fim de serem anexadas ao Domí-
nio do Canadá (que tinha então as províncias de Quebec, Ontário, Nova
Brunswick e Nova Scotia). Os Métis da região de Winnipeg formavam a
maioria da população de 12.000 habitantes: 6000 Métis, 4000 Half-Breeds,
1500 brancos e 600 indígenas (Howard, 1989). Eles se agruparam em torno
da figura de Louis Riel a fim de reivindicar um território para sua nação, ele-
gendo-o chefe do governo provisório que devia negociar a criação da pro-
víncia de Manitoba e sua adesão ao Domínio do Canadá. Eles sugeriram
o nome, Manitoba (que significa “deus fala”), e prepararam uma carta que
previa garantias para a comunidade dos Métis no que concerne à posse da
terra e à preservação de sua religião (católica) e sua língua (francesa) mas,
segundo Riel, nenhuma cláusula foi respeitada.
Apesar de seus esforços políticos, Riel, durante toda sua vida, teve
imensos problemas para ser aceito pelas elites inglesas/canadenses de lín-
gua inglesa devido ao fato de ser mestiço, de falar francês, de ser católico,
de liderar um grupo que elas buscavam antes esmagar do que reconhe-
cer. O fato, que será sempre evocado como causa de sua expulsão do país
e que subjaz entre os motivos de sua execução, é a morte de um anglo-on-
tariano, Thomas Scott, que esteve preso nas mãos dos Métis durante seu
movimento. Assim, foi forçado a se exilar nos Estados Unidos (Estado de
Montana) e, embora eleito deputado, não pôde assumir o cargo porque
perdeu os direitos políticos por cinco anos. Sua vida de exílio, caracterizada
pela incerteza quanto ao futuro, pela desilusão e pelo sentimento de ser per-
seguido, desencadeou, talvez, as obsessões e as alucinações que começaram
a habitar sua mente.

136
Os direitos dos Métis em Manitoba não foram respeitados e aos poucos
alguns deles se fixaram mais ao oeste, na região de Batoche (Saskatchewan).
Em 1884 uma delegação de quatro Métis, entre os quais se encontrava
Gabriel Dumont, decidiu ir aos Estados Unidos chamar de volta Louis Riel
a fim de ajudá-los a se organizar e exigir o cumprimento de seus direitos,
colaborando no envio de petições ao governo. No entanto, como suas peti-
ções não encontraram eco, eles declararam a criação de um governo provi-
sório em 1885. Ele foi o líder espiritual e político da revolta, mas o chefe
militar foi Gabriel Dumont (1837-1906). Ao contrário do movimento de
Winnipeg (Manitoba) de 1870, quando praticamente não houve combate,
na revolta de 1885 houve algumas batalhas, com baixas de ambos os lados.
Houve também alguns ataques aos fortes da Companhia da Baía de Hud-
son, da parte dos indígenas Cri de Big Bear e Poundmaker, que acompanha-
vam o movimento dos Métis. A estratégia de guerrilha de Gabriel Dumont
poderia ter sido muito eficiente, mas a visão de Riel, o chamado “profeta do
Novo Mundo”, impediu que a guerra se estendesse, e acabou na humilha-
ção da derrota de Batoche. O que se seguiu foi a derrocada dos seus sonhos:
o enforcamento de Riel e oito índios, a prisão de Big Bear, Poundmaker, a
fuga para os Estados Unidos de Gabriel Dumont, a pilhagem de suas casas e
propriedades. Os Métis se dispersaram, mudaram os nomes, se esconderam.
Com esta dispersão, desapareceu sua cultura, que só seria retomada e reivin-
dicada mais de um século mais tarde.
O próprio Louis Riel escreveu poemas, além de muitos outros tex-
tos. Sua família publicou em 1886, poucos meses após sua execução, um
livro intitulado Poésies religieuses et politiques. Muitos outros títulos foram
publicados desde então. Jean Morrissett destaca o fato de o Canadá fran-
cês/Quebec ter ignorado Riel como intelectual e escritor na medida em que
ele encarnava de maneira visceral e muito evidente a identidade mestiça
que suas elites recusaram para o país. Para ele, a intelligentsia do Quebec
foi “unânime na rejeição de Louis Riel como pensador e revelador de sua
própria trajetória, tanto identitária quanto geográfica” (Morrissett, 1981,
p. 80). Ele destaca o aspecto contraditório no fato de ele ter-se tornado
“o personagem mítico de que se apropriaram, por uma espécie de transfe-
rência antropológica sui generis, os escritores de língua inglesa em crise de
identidade” (Morrissett, 1981, p. 81).
Segundo Leslie Monkman, a revisão sobre Louis Riel começou na lite-
ratura canadense de língua inglesa com uma trilogia teatral de John Coulter,

137
iniciada em 1950, que foi apresentada também no rádio e na televisão. A tri-
logia foi em seguida publicada: Riel (1962), The Trial of Louis Riel (1968),
The Crime of Louis Riel (1976). Ainda segundo Monkman, Riel “é reitera-
damente visto como um potencial mediador entre a cultura branca e a ver-
melha, que foi tragicamente destruído na colisão destas culturas” (Monk-
man, 1981, p. 102). Se Margaret Atwood (1987, p. 178) o vê como uma
vítima, cujo sacrifício é inútil, Northrop Frye o encara como um guia em
busca de um reino pacífico (apud Monkman, 1981, p. 119).
Joseph Kinsey Howard, um historiador e jornalista americano que
viveu parte de sua vida no Canadá, escreveu em 1951 o livro Strange Empire:
Louis Riel and The Métis People, no qual narra os acontecimentos do período
1870-1885. Thomas Flanagan, em Louis ‘David’ Riel: Prophet of the New
World (1979), fez a primeira biografia que considera em profundidade as
crenças religiosas de Riel e a convicção de seu papel de profeta.
No poema Riel (1972), Don Gutteridge trata a vida e a morte de Riel
como um trágico encontro de povos fundamentalmente diferentes (apud
Monkman, 1981, p. 121). Para contrastar as diferentes vozes, ele usa mate-
rial retirado de cartas, jornais, folclore. Ele considera que a história de Riel
pode iluminar os dilemas de nossa época, nos confrontos de povos de cul-
turas diferentes. Outros poetas também tematizaram a vida de Riel: Roy
Daniells, Dorothy Livesay e John Newlove.
Rudy Wiebe escreveu muitas obras sobre as rebeliões no noroeste e
sobre a questão indígena em geral. Em The Scorched-Wood people (1977) ele
trata mais especificamente dos Métis, mostrando como Dumont e Riel são
os heróis do povo explorado, em contraste com os chamados grandes heróis
nacionais oficiais. Em The Temptations of Big Bear (1973) ele se refere tam-
bém aos Métis mas coloca a ênfase em Big Bear, o chefe Cri, cuja rebelião de
1885 é concomitante à revolta dos Métis.

Representações na literatura de língua francesa


Alguns romances tratam do personagem do mestiço no passado, dentro
de uma perspectiva histórica. Este é o caso de Tchipayuk ou le Chemin du loup
(1987), de Roland Lavallée (escritor francófono de Manitoba), cuja intriga
se passa entre 1870 e 1885, ou seja entre a primeira e a última revolta dos
Métis. O protagonista é o mestiço Askik Mercredi (Mercredi é a deformação

138
do nome escocês McCready). Ele passa a infância entre os índios mas é
levado para Montreal para prosseguir seus estudos, sendo recebido por uma
família rica. Formado em Direito, ele quer se casar com a filha de seus pro-
tetores, que o rejeitam como genro. Volta ao seu país de origem, casan-
do-se com uma amiga de infância. Lícia Soares de Souza mostra que o mes-
tiço deve voltar para sua região e para seu povo, por mais distante que este
mundo possa lhe parecer. “Na convicção de que cada raça deseja se isolar
em seu território e constituir sua própria nação, Askik busca encontrar os
seus e se surpreende em não reconhecer a sua terra na Manitoba urbanizada
e povoada por colonos imigrantes brancos, onde se fala mais de 50 línguas”
(Souza, 2007, p. 217). O que conhecera na infância não existe mais: nem a
caça aos bisões, nem as grandes festas, nem as corridas ao ar livre, nada mais
resta. Ele mesmo já não é mais um Métis, já havia se transformado em outro
– um aculturado no mundo dos brancos – e sua volta parece constituir uma
decepção, um fracasso.
Francine Ouellette e Gérard Bouchard escreveram sagas em dois volu-
mes abordando a colonização do Quebec. A de Ouellette, que tem por título
Au nom du père et du fils (o segundo, com o subtítulo de Le sorcier), (1984 e
1992), trata da história da colonização das Hautes Laurentides no Quebec
no período que vai de 1884 a 1934. O protagonista é Clovis, filho do amor
adulterino entre a índia Biche Pensive e o médico Philippe Lafresnière, que
o reconhece quando ele já é um jovem. Clovis é talvez o personagem mes-
tiço que mais sofre na literatura do Quebec. Já a saga de Gérard Bouchard
– Mistouk (2002) e Pikauba (2005) – enfoca a colonização do Saguenay,
entre 1884 a 1960. O segundo romance tem por protagonista um mestiço,
Léo, filho da índia Senelle e de Méo, um Canadien aventureiro que fez mui-
tas viagens no país em companhia dos indígenas. Há muitos paralelos que
podem ser estabelecidos entre os romances de Ouellette e Bouchard: apesar
de sofrerem a rejeição da sociedade branca, o personagem mestiço (Clovis
e Léo) é um ganhador, pois o primeiro forma-se médico com destaque e o
segundo se enriquece. O conflito, porém, subsiste já que, enquanto o prota-
gonista mestiço camufla sua origem, ele tem sucesso. No final de ambos os
romances, como no de Lavallée, o mestiço é instado pela sociedade a optar
por uma identidade aborígine, a se casar com uma mulher indígena e ir
viver/trabalhar nos territórios para ajudar seus irmãos de “raça”. De modo
metafórico e metonímico, o mestiço é colocado no espaço e na identidade
dos autóctones, o que confirma, no modo ficcional, aquilo que a sociedade

139
canadense tem demonstrado claramente em relação aos Métis: eles são abo-
rígines, o sangue branco que corre em suas veias não lhes dá nenhum acesso
ou direito a pertencer ao mundo dos brancos.
A interdição principal, que leva ao afastamento do homem mestiço
para fora do território ocupado pela sociedade branca, é o casamento com
a mulher branca, que ensejaria a miscigenação, a mistura, a mescla. Outros
romances encenam o amor inter-racial clandestino, adúltero, pecaminoso,
ilegal, entre a mulher branca e o mestiço, punindo com a morte aquelas que
ousaram infringir o tabu. Em Louise Genest (1950), de Bertrand Vac, a pro-
tagonista, que dá nome ao romance, abandona o marido e o filho para ir
viver na floresta com um mestiço, Thomas Clarey, um sauvage como tan-
tos outros da literatura do Quebec. Jean-Yves Soucy, em Un dieu chasseur
(1976), repete o mesmo esquema narrativo de Bertrand Vac: Marguerite
Robitaille, a professora da vila, tenta viver na floresta com Mathieu Bou-
chard, um caçador, mas, como Louise Genest, morre. Mathieu não é pro-
priamente um Métis embora haja uma certa ambiguidade: numa cena em
que lhe oferecem Suzanne, uma índia de 15 anos, como prostituta, a “dona”
lhe diz que a menina tem quase tanto sangue indígena quanto ele (Soucy,
1997, p. 58), o que sugere que o Canadien pode ter tanto sangue índio
quanto uma Indienne, embora tenham estatutos sociais diferentes. Margue-
rite foi ousada ao ir para a floresta com o caçador; mas, depois de desistir
de seu projeto de vida com ele, ela se oferece ao Indien, personagem amigo
de Mathieu, e aí sim, ela rompe o tabu, o interdito. Ele fica atônito, mal
consegue acreditar ao ver a mulher nua diante dele, já que nem as prostitu-
tas brancas aceitavam os índios. “Mas é como violar um tabu, transgredir um
interdito” (Soucy, 1997, p. 220). Ela insiste: “Eu preciso, Índio, eu preciso.
Você tem que me ajudar. Me toma, me penetra, me amassa” (Soucy, 1997,
p. 221). Depois deste ato de ruptura total das convenções sociais, ela se sui-
cida. Alguns dias depois da morte de Marguerite, Mathieu e Indien partem
juntos para novo lugar de caça. Há uma verdadeira incompatibilidade entre o
mundo selvagem, habitado pelos autóctones e frequentado por alguns bran-
cos (trappeurs, coureurs de bois),32 e o mundo das mulheres brancas, como
assinalou Jean Morency, em seu livro Le mythe américain dans les fictions
d’Amérique, ao mostrar que há uma relação antitética entre, “de um lado, a
32
Os trappeurs eram os caçadores de animais que fornecem peles; os coureurs de bois eram os que
buscavam madeira; ambos os tipos entravam em contato direto com os índios. Trata-se de figuras que
participam dos mitos fundadores do Canadá francês.

140
mulher, a cultura, o espírito europeu, o cadastro das terras e, de outro lado, o
índio, a natureza, o espírito americano, o mundo selvagem” (1994, p. 17).
Há uma relação assimétrica no entrecruzamento das categorias de gênero
(gender) e raça na maioria dos romances. Em Un dieu chasseur a assimetria
aparece no paralelismo que se pode estabelecer entre a cena de sexo de Mar-
guerite com Indien (transgressão de tabu) e de Mathieu com Suzanne, a
índia de 15 anos (normalidade). Os mestiços são em sua esmagadora maio-
ria filhos de pai branco com mulher indígena, frutos do amor, do sexo pago
ou do estupro. Mesmo nas relações de amor, o mestiço, raramente reconhe-
cido pelo pai, é marcado com o estigma da bastardia, o que contribui para
fazer dele um desclassificado, um marginal, um deslocado. Noémi, persona-
gem do conto “Ce Nègre n’est qu’un Blanc déguisé en Indien”, de Stanley
Péan, declara: “Minha mãe era índia. Ao colocar no mundo a bastarda que
eu sou, ela foi automaticamente expulsa de sua reserva... Estou acostumada
a ser vista como desclassificada (hors caste) (Péan, 1998, p. 44).
Há alguns romances que colocam em ação mulheres mestiças, todas elas
associadas à marginalidade, à loucura ou à prostituição. Janet Paterson (2004,
p. 93) mostra que a empregada doméstica mestiça Aurélie Caron, do romance
Kamouraska, de Anne Hébert, torna-se bode expiatório e vítima, pois ela
paga pelo crime de sua patroa, passando dois anos em prisão, enquanto Eli-
sabeth fica livre. Mostra também que Aurélie funciona como “o Outro pul-
sional e selvagem que a protagonista carrega em si” (2004, p. 103); ou seja, a
sexualidade, a selvageria, a liberdade de Aurélie projetam os desejos recalca-
dos de Elisabeth, suas pulsões secretas.
Em Ma vie, ma folie (1983), Julien Bigras, escritor e psicanalista, narra
a história de um longo processo terapêutico de uma jovem mestiça, Marie,
cuja mãe teve ataques de loucura e aparentemente a gerou com um Iroquois.
Ser mestiça é causa de conflito interno, desequilíbrio emocional. “Índia, sel-
vagem, bugre, estrangeira, estranha, outra, eis o que eu era a seus olhos. Ser
squaw era minha vergonha. Entretanto este ‘sang-mêlé’ que choca tanto as
pessoas quando me olham é só um pálido reflexo do que eu sou interior-
mente” (Bigras, 1983, p. 17-18). Ao longo do tratamento é o psicanalista
que fará uma anamnese pessoal, familiar e, ao mesmo tempo, histórica do
Canadá francês, mostrando os contatos e as semelhanças entre os coureurs
de bois e os indígenas.
Jacques Poulin, em Volkswagen Blues (1984), cria a mestiça Pitsémine,
ou la Grande Sauterelle, personagem forte, com rico desenvolvimento na

141
intriga do romance e que funciona como guia do protagonista, Jack Water-
man, escritor que percorre o Canadá e os Estados Unidos em busca de seu
irmão ou, quem sabe, em busca de si mesmo. Ela conta que nasceu numa
roulotte – espécie de caminhão de cigano –, nunca teve casa, pois sua mãe,
ao se casar com um branco, foi expulsa da reserva33 (como Noemi) e o casal
nunca conseguiu alugar uma casa no espaço dos brancos. Este aspecto mar-
ginal está presente desde o momento em que Jack a encontra caminhando
à beira da estrada, descalça. Segundo Paterson, sua “mestiçagem é frequen-
temente associada à melancolia, à perda, ao desenraizamento e à errância”
(2004, p. 114). Sua tristeza está ligada à sua indefinição identitária quando
ela confessa a Jack “que ela não era nem índia nem branca, que era algo entre
os dois e que, finalmente, ela não era nada” (Poulin, 1998, p. 246). Jack
tenta consolá-la dizendo que ela era alguma coisa nova, alguma coisa que
começava, mas estas palavras não são suficientes para aumentar-lhe a con-
fiança. À noite ele sonha que Pitsémine era uma extraterrestre, revelando
que em seu inconsciente não há lugar para ela neste mundo, sua monstruo-
sidade a associa a uma alienígena.34 No final do romance, Jack lhe dá a velha
Kombi – símbolo de seu nomadismo e da impossibilidade de se fixar, pois
desde o nascimento ela deambula. Afinal, ela prefere ficar em São Francisco
(Califórnia) e não voltar para o Quebec, o que confirma minha hipótese de
que não há espaço no território canadense para Índios e Mestiços, a não ser
nas margens, nas reservas ou outros territórios periféricos.35

The Diviners, de Margaret Laurence


Margaret Laurence (1926-1987) tem uma extensa obra literária na qual
se destaca a série de Manawaka, composta de cinco romances, que vai de Stone
Angel (1964) a The Diviners (1974); eles se passam na cidadezinha fictícia de
33
O Indian Act (1951) estabeleceu uma discriminação de gênero ao definir que mulheres indígenas
que tivessem filhos com brancos perderiam o estatuto de indígenas (assim como seus filhos), enquanto
mulheres brancas que tivessem filhos com homens indígenas eram aceitas nas reservas e passavam a ter
o estatuto de indígenas (assim como seus filhos). Esta lei, que só mudou em 1985, causou uma grande
confusão, criando uma massa de pessoas sem estatuto definido, já que estas mulheres indígenas e seus
filhos mestiços não eram aceitos nem pelos índios nem pelos brancos.
34
O artista plástico nigeriano-britânico Yinka Shonibare tem uma série de bonecos de E.T. figurando
justamente a Alteridade radical.
35
Outros personagens mestiços marginais aparecem em obras de Robert Lalonde, de Gabrielle Roy,
de Stanley Péan, de Nancy Huston.

142
Manawaka, criada à imagem e semelhança de Neepawa, sua cidade natal na
província de Manitoba. Nesta série de romances existe uma família de Métis, os
Tonnerre, que são marginalizados na sociedade canadense, em sentido literal,
porque vivem na periferia da cidade, e em sentido metafórico, pois não partici-
pam plenamente da cidadania. Estes romances de Laurence, de grande sucesso
e repercussão no Canadá, têm sido reeditados desde sua primeira publicação.
O romance The Diviners se constrói pela alternância do presente, nar-
rado em terceira pessoa, e o passado da protagonista, Morag Gunn, reme-
morado parte em terceira pessoa e parte em primeira pessoa (esta aparece em
itálicos), como se a narradora olhasse um álbum de fotografias, constituindo
assim as suas “memórias inventadas” (Laurence, 1974, p. 10). Através dos
flashbacks, a narradora monta, numa espécie de quebra-cabeças, a história de
sua vida, desde os 5 anos, quando morrem os pais, até o presente. Ao escre-
ver, ela se dá conta que embeleza as coisas, aliás, ela afirma que não se pode
confiar na memória de uma criança.
As memórias são parcialmente autobiográficas, já que a vida de Marga-
ret Laurence tem pontos em comum com a de sua protagonista, inclusive
o fato de ambas serem escritoras. A autora nasceu no Manitoba de família
pobre, perdeu os pais na infância, tendo sido criada por uma tia materna
(que havia desposado seu pai após a morte da mãe), casou-se, teve dois
filhos, morou sete anos na África com o marido e depois do divórcio pas-
sou dez anos na Inglaterra só com os filhos. Mesmo ao usar elementos de
sua autobiografia, Laurence os transforma, modulando-os às necessidades
de expressão literária pois, como afirma Régine Robin, o escritor, ao tentar
contar sua vida, cria ficção, porquanto o sujeito narrado é um sujeito fic-
tício justamente porque é narrado, ou seja, é um ser de linguagem; assim,
não pode haver adequação entre o autor, o narrador e o personagem, entre
o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação, entre o sujeito em princí-
pio pleno (o escritor) e o sujeito dividido, disperso, disseminado, da escrita
(Robin, 1997, p. 17). O romancista Dany Laferrière, no livro de entrevistas
J´écris comme je vis, diz que em literatura não pode haver confissão, pois a
sinceridade é o primeiro artifício, e que “para colocar em cena sessenta por
cento de sinceridade, é preciso quarenta por cento de artifícios. A verdade
tem necessidade de ser verossímil (Laferrière, 2000, p. 119), no que ele con-
corda com Paul Valéry, que já afirmava que “em literatura o verdadeiro não
é concebível” e que qualquer tipo de “confidência visa à glória, ao escândalo,
à desculpa, à propaganda” (Valéry, 1957, p. 570-571).

143
Na primeira cena do livro, a protagonista Morag – escritora que mora
numa casa afastada de tudo – está às voltas com um problema: sua filha
Pique, de 18 anos, acaba de fugir de casa, deixando-lhe um bilhete. Ao
rememorar seu passado em Manawaka, ela evoca os Tonnerre, que mora-
vam em barracos à beira do rio Wachakwa, na periferia da cidade. Morag era
então colega de escola de Jules (Skinner) Tonnerre, que lhe explicara que seu
apelido Skinner se devia ao fato de ele ser muito magro (skinny) ou talvez ser
muito bom ao retirar as peles (skinning) dos animais que caçava (Laurence,
1974, p. 73). Ambos eram pobres e marginais na sociedade, sendo que
Morag, descendente de escoceses, órfã, era desprezada porque seus pais ado-
tivos ocupavam o último degrau na sociedade local: o pai, Christie Logan, o
Scavenger (lixeiro), trabalhava nos Nuisance Grounds.
Nas conversas das duas crianças, Jules contou-lhe a história do avô (de
quem herdara o nome), que lutara na revolta dos Métis ao lado de Louis Riel
em 1885, em Saskatchewan, ao passo que ela não lhe revelou que seu avô,
Piper Gunn, teria lutado contra os Métis, de acordo com as histórias narra-
das por Christie. Apesar de os livros escolares descreverem Louis Riel como
um louco, ela considerava que ele tinha razão ao lutar para defender os direi-
tos dos Métis nas questões territoriais (Laurence, 1974, p. 132). A história
de Louis Riel aparece contada de dois pontos de vista, o de Christie, que fala
do papel dos escoceses no combate ao levante dos Métis, e o de Jules, que
teria ouvido as histórias de seu pai.
Morag prossegue os estudos, casa-se, começa a escrever e a publicar, tor-
nando-se uma escritora de certo sucesso. Jules luta durante a segunda guerra
na Europa, volta, continua marginal, compondo e cantando música country,
apresentando-se sem sucesso e vagando pelo país. Um dia eles se reencontram
por acaso, ela o convida a sua casa, mas o marido, Brooke Skelton, um profes-
sor universitário, não aceita a presença de Jules e acusa Morag de ter-lhe dado
seu uísque, provocando uma cena de racismo explícito, com a clássica ques-
tão referente ao alcoolismo dos índios e mestiços (Laurence, 1974, p. 269).
Esta foi a gota d’água para a separação do casal. Ela sai junto com Jules e vai
dormir em sua casa, reatando assim momentaneamente um relacionamento
da adolescência, o que redunda no seu divórcio e no nascimento de uma
filha, que recebe o nome de Piquette, em homenagem à irmã de Jules, morta
com seus dois filhos no incêndio de seu barraco, em suicídio presumido. O
desajuste psíquico e social, o alcoolismo, a falta de esperança, vários são os
motivos do desapego de Piquette à vida (Laurence, 1974, p. 428).

144
A morte e o ritual do enterro dos mortos sinalizam a questão do lugar
ocupado pelos Métis na sociedade canadense. Quando Piquette e seus filhos
morrem, seus corpos são enterrados no cemitério dos Métis, na Galloping
Mountain, e quando o pai de Jules, o velho Lazarus, morre, a cena se repete: o
cemitério protestante não o aceita porque ele é católico e o cemitério católico
também não o aceita porque ele não frequentava a igreja há anos e não havia
recebido a extrema-unção. No entanto, Jules diz que a verdade é que eles não
o queriam lá porque seus ossos mestiços poderiam poluir o cemitério dos
brancos (Laurence, 1974, p. 268). Assim, ele é enterrado junto aos seus em
Galloping Mountain, o que parece, afinal, o melhor aos olhos de Jules. Sim-
bolicamente a cidade expulsa para sua periferia os Métis, tanto vivos quanto
mortos, já que ela não os reconhece como sendo parte de sua sociedade.
A filha, que só é chamada de Pique por Morag (que não suporta reme-
morar a cena da morte de Piquette), criada pela mãe em ambiente exclusi-
vamente branco, tendo passado muitos anos na Inglaterra, talvez só se dê
conta de ser Métis ao frequentar a escola no Canadá e ser agredida por seus
colegas de escola, que a tratam como se ela fosse uma prostituta (Laurence,
1974, p. 422). Aos 18 anos, após sua fuga, conta à mãe uma cena particu-
larmente agressiva: Pique está a pé numa estrada com seu violão e é agredida
por homens bêbedos, que passam em um carro e jogam uma garrafa nela,
ferindo-a. Ela pede refúgio numa casa para lavar o sangue e, em vez de poder
denunciar os homens à polícia, é ela quem é denunciada pelos donos da casa
e a polícia exige que ela deixe a cidade (Laurence, 1974, p. 106-107).
Pique, apesar de mal conhecer o pai, apesar de não ter nenhum refe-
rencial cultural Métis, aos 18 anos vai à sua procura, já que a sociedade a
empurra para este lugar de exclusão; ela começa assim um processo identifi-
catório com ele, toca violão e canta as canções que ele canta. A comunicação
entre pai e filha se dá através das canções compostas por Jules em homena-
gem aos seus familiares, inclusive uma composta por Louis Riel, na prisão,
uma estrofe reproduzida no romance em francês e em inglês.
Mourir, s’il faut mourir,
Chacun meurt à son tour;
J’aim’ mieux mourir en brave,
Faut tous mourir un jour (Laurence, 1974, p. 243).

No final do romance, após a morte de seu pai, Pique vai passar um tempo
com o único tio vivo, Jacques, que vive na região de Galloping Mountain,
já que os outros três irmãos de Jules haviam morrido, todos com menos de

145
40 anos. Pique não chegou a conhecer nenhum deles: além de Piquette, de
quem ela herdou o nome, morta num incêndio antes de seu nascimento,
havia Paul, guia no norte, dado como afogado aos 27 anos e Val, prostituta
e alcoólatra, morta aos 37 anos (Laurence, 1974, p. 430).
Morag, ao fazer uma reflexão sobre línguas perdidas porque ela conserva
a nostalgia do gaélico, língua dos seus ancestrais escoceses que ela nunca
aprendera, pensa na situação de Jules, que fala inglês como se fosse uma lín-
gua estrangeira, tendo perdido o francês e o Cri (Laurence, 1974, p. 244).
Esta é, aliás, a situação dos Métis desde a derrota de Batoche e a dispersão
do grupo em 1885, como assinala Jean Morrissett. Ao exterminar os Métis
enquanto grupo unido e organizado, os anglo-canadenses eliminaram de
um só golpe o francês da região das Prairies (Manitoba e Saskatchewan).

In Search of April Raintree, de Beatrice Culleton Mosionier


Este é um romance de base autobiográfica, embora o itinerário de April
Raintree não reproduza exatamente a biografia da autora, como ela frisou.
Alguns elementos importantes existem em comum: de família Métis, Bea-
trice Culleton e suas duas irmãs foram retiradas dos pais e colocadas em lares
adotivos de famílias brancas; as irmãs se suicidaram, a primeira (Vivian) em
1964 e a segunda (Kathy) em 1980. Assim, escrever para ela exerceu uma
função terapêutica (Culleton Mosionier, 1999 b, p. 248). Ela também teve a
experiência do estupro, cuja descrição no romance, extremamente detalhada
e realista, é considerada por Agnes Grant uma das cenas de estupro mais grá-
ficas na literatura de língua inglesa, não deixando nada para a imaginação
dos leitores (Grant, 1999, p. 244). Diferentemente da ficção, a autora afirma
ter sido bem tratada por seus pais adotivos; o que a teria levado a deixar a
casa dos Roy e ir para um internato aos 15 anos foi uma certa revolta por-
que o desejo dela e da irmã mais velha, após o suicídio da irmã mais nova,
era que as duas morassem juntas, o que não foi autorizado pelo Children’s
Aid. Como sua personagem, a autora passou três anos interna.
No romance a ênfase é colocada nas duas irmãs, April e Cheryl, a ter-
ceira sendo mencionada muito rapidamente. Ambas são bonitas, espertas e
estudiosas, a diferença principal que as separa é a cor da pele: se April é bem
clara, mal podendo ser identificada como uma mestiça, a irmã é morena,
representando bem o tipo indígena. A aparência vai corresponder também
às posições ideológicas em relação à ancestralidade: Cheryl, desde pequena,

146
se identifica com o povo Métis, com a história da luta de Louis Riel, que ela
estuda com afinco contra a posição da escola e dos professores, enquanto
April prefere se distanciar ou mesmo renegar esta identidade. April se refere
aos seus pais não como Métis – ou seja, descendentes da comunidade ori-
ginária de Red River (Winnipeg), onde se iniciou a luta de Riel –, mas
como mestiços: o pai tinha sangue misturado com um pouco de cada coisa
e muito de sangue indígena, enquanto a mãe é definida como parte irlan-
desa e parte indígena (Culleton Mosionier, 1999, p. 11).36
Na verdade as duas meninas não tiveram quase nenhum acesso à cul-
tura da nação Métis, pois os pais deixaram a comunidade de Norway House,
em que viviam, quando eram pequenas. Eles foram se estabelecer na cidade
de Winnipeg para se tratar de tuberculose. A vida na cidade muda radical-
mente os hábitos dos pais: perdendo sua capacidade de se sustentar, depen-
dendo da assistência social, estando expostos ao alcoolismo e às dificulda-
des de inserção social numa sociedade que os recusa, a degradação se dá de
forma muito rápida e eles perdem a guarda das filhas.
Crescendo num mundo que denigre os índios e mestiços, April quer se
distanciar de sua identidade de Métis para se tornar uma pessoa comum, anô-
nima, tão branca quanto a maioria, a fim de não sofrer nem as consequências
do racismo nem as possíveis taras impingidas aos autóctones como a “sín-
drome da mulher indígena”, que começa com atitudes de contestação e aca-
bam desembocando em gravidez precoce, alcoolismo, uso de drogas, prosti-
tuição e prisão (Culleton Mosionier, 1999, p. 62). A assistente social que lhe
fala de “síndrome da mulher indígena” só esqueceu de dizer que o desenlace
deste itinerário era o suicídio, justamente o caminho trilhado por Cheryl e
que evoca também o percurso das irmãs Tonnerre.
O racismo da sociedade canadense está presente em todas as etapas da
vida das protagonistas: desde o serviço de proteção às crianças, cujos profis-
sionais são surdos, às reclamações e aos apelos das meninas, passando pela
segunda família adotiva de April, pela estrutura escolar em todos os seus
níveis, pela sogra (branca) de April que afirma não querer ter netos mesti-
ços. Um raro momento de humor no romance se dá quando as duas irmãs
são provocadas por uma pessoa numa festa em Toronto, no período em que
April estava casada com o marido branco e rico.

36
Além dos Métis históricos, outros mestiços surgiram desde então, sem que tivessem neces-
sariamente o estatuto de aborígines, em decorrência do Indian Act (1951).

147
“Oh, eu li sobre os índios. Belo povo. Mas vocês não são realmente índias, são? Qual
é a palavra correta para gente como vocês?” alguém perguntou.
“Mulheres,” Cheryl respondeu imediatamente.
“Não, não, quero dizer nacionalidade?”
“Oh, sinto muito. Somos canadenses,” Cheryl sorriu suavemente (Culleton Mosio-
nier, 1999, p. 107).

Diante da impertinência das perguntas sobre a identidade das duas, as


respostas de Cheryl contornam a questão da “raça”, mas as humilhações con-
tinuam: uma mulher diz que teve uma empregada doméstica indígena, um
homem pergunta “como é ser índia”, que poderia ser associada à pergunta
que os parisienses faziam aos persas37 que visitavam o país, nas Lettres persanes
[1721], de Montesquieu: Comment peut-on être Persan? (Montesquieu, 1973,
p. 105). Parece que o etnocentrismo, quase três séculos depois, não mudou!
As irmãs usam estratégias de sobrevivência diferentes: Cheryl reivin-
dica a identidade mestiça, milita pela causa, parece estar bem adaptada neste
papel ativo e combativo. No entanto, depois de um período em que April
não mantém contato com ela por estar morando em Toronto, e durante o
qual o leitor também desconhece o que acontece, Cheryl sai dos trilhos,
desmorona. Ela, que parecia uma fortaleza, mostra-se frágil e autodestru-
tiva. Isto se explica parcialmente pela descoberta que faz de que sua mãe se
suicidou e seu pai é alcoólatra. Embora admitindo que a desmitificação do
orgulho de seus ancestrais possa ter sido desestruturador da personalidade
de Cheryl, há alguns elementos pouco elucidados referentes ao alcoolismo,
à prostituição e ao nascimento de seu filho. O suicídio é uma solução final,
já que sua vida estava destroçada e que ela era incapaz de cuidar de seu pró-
prio bebê, Henry Lee.
No final do romance, April reivindica sua pertença ao povo Métis.
“Quando olhei para Henry Lee, lembrei-me que durante a noite eu havia
usado as palavras “meu povo, nosso povo” e quis realmente dizer isto. A
denegação tinha sido varrida de meu espírito. Era trágico que tenha sido
necessário que Cheryl morra para que eu aceitasse minha identidade” (Cul-
leton Mosionier, 1999, p. 207. Caixa alta no original). No entanto, esta
cena, tão elogiada pela crítica canadense, me parece paradoxal: com qual
povo, com qual cultura, ela vai se identificar se não conhece nada sobre os
Métis senão o desprezo e o ódio da maioria branca com a qual ela sempre

37
Os persas, os iranianos de hoje, continuam a ser quase incompreensíveis para os ocidentais.

148
conviveu? Esta conversão final, em que ela cumpre sua obrigação de “voltar”
para os seus, me parece problemática. Margery Fee afirma não estar muito
convencida da capacidade de April de educar o menino como um Métis
comprometido com a causa, um ativista (Fee, 1999, p. 224). Minha ques-
tão seria diferente da que coloca Fee: por que o garoto deve ser um mili-
tante da causa Métis? Por que as minorias étnicas têm de ser defensoras da
raça e a maioria branca pode realizar projetos meramente individuais e indi-
vidualistas? Por que April não tinha o direito de viver seu projeto individual
enquanto “branca” (na aparência)? Margery Fee explica que só a maioria
pode exercer a liberdade de fazer escolhas e trilhar os caminhos que quiser
ao observar: “A liberdade de escolher a identidade ou mover-se numa série
de identificações é normalmente reservada à maioria, ao passo que membros
das minorias têm identidades – negativas – impostas a eles em graus variados
de brutalidade” (Fee, 1999, p. 212). Sendo politicamente correta, Fee con-
sidera que cada membro de uma minoria que abandona o grupo contribui
para o desaparecimento das tradições. Assim, “a identidade para os povos
indígenas não é uma decisão pessoal e a comunidade deixa claro que os indi-
víduos são responsáveis pela sobrevivência do grupo” (Fee, 1999, p. 216).
No entanto, acredito que o binarismo que opõe, de um lado o índio alcoóla-
tra, de outro o índio ativista, é inaceitável para April, que não quer sofrer da
“síndrome da mulher indígena” nem tornar-se militante de nenhuma causa.
Assim, a exigência de assumir a sua “raça”, que a sociedade lhe impõe, apa-
rece no final do romance de um modo fortuito e forçado.
Margery Fee (1999) atribui o suicídio de Cheryl a uma “reação lógica
à traição de April” (p. 222) ou ainda porque April “a abandona emocional-
mente” (p. 223). Parece-me excessivamente dicotômica esta oposição entre
as duas irmãs, que faz recair toda a culpa sobre April, a traidora da raça, que
tinha a obrigação ontológica de ser Métis e que, ao final, recebe o sobrinho
como uma espécie de prêmio. Fee considera injusto que ela receba a criança,
considera injusto que autóctones nasçam com pele clara e possam usufruir
de privilégios que não lhes pertencem (p. 224). A posição de Fee é clara-
mente em defesa dos aborígines e sua intenção é a melhor possível, dentro
da lógica identitária canadense, em que cada grupo étnico deve se “assumir”.
Entretanto, dentro da lógica brasileira da mestiçagem, não há nenhuma
razão de culpar um personagem pelas tramas aleatórias da genética nem se
exigir dele que se fixe em identidades imutáveis.

149
Conclusão
Considerando o mosaico multicultural da sociedade canadense como
um espaço democrático de convivência de comunidades oriundas de partes
diversas do globo, percebe-se a preservação do valor da etnicidade, com a
criação de identidades hifenizadas. A maioria branca, que funciona como o
“grupo de referência” (Landowski, 2002), parece querer preservar sua inte-
gridade. As disfunções sociais de índios e mestiços (alcoolismo, prostituição,
criminalidade), que lhes são atribuídas como marca da diferença, são uma
decorrência da posição de baixa autoestima provocada pela pobreza e pela
marginalização, sem esquecer que o alcoolismo é herança da dominação
colonial, quando os brancos começaram a vender uísque aos índios a fim de
melhor dominá-los. Para Bhabha, “o objetivo do discurso colonial é apre-
sentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base
na origem racial” (Bhabha, 1998, p. 111). Assim, estes elementos, reitera-
damente invocados, são a marca social para uma diferença étnica que subjaz
num racismo que, às vezes, não ousa dizer seu nome.
O meu argumento neste texto é que a produção da diferença em rela-
ção ao autóctone no Canadá foi construída ao longo da História nos dois
planos, o referencial e o semiótico. Apesar de mudanças significativas ocor-
ridas nos últimos anos, em termos políticos e culturais, com assinatura de
tratados com algumas nações, criação de museus, bibliotecas, com o apare-
cimento de obras escritas por escritores autóctones, sua presença no espaço
público ainda é rarefeita. Em termos imaginários – que é o mundo da ficção
– as estratégias narrativas usadas para tecer as tramas induzem a sua exclusão
da sociedade. Os recursos literários usados para que o personagem “assuma”
sua identidade autóctone podem ser de ordem mítica, ritual, identitária, mas
resulta sempre que, ao fim da narrativa, o personagem do índio ou do Métis
é levado a ir morar junto a seu “povo”, em seus territórios, não permane-
cendo nem se misturando com o grupo majoritário branco. Assim, apesar de
personagens mestiços terem cada vez mais voz nos romances, eles ainda não
parecem “normais” na pólis, sua alteridade ainda parece radical demais.

150
diferença e a alteridade

Não, jamais a tirania do nós, sempre louco para tragá-lo, aquele nós
moral coercitivo, abrangente, histórico, inevitável (...). Em vez disso,
o eu nu e cru, com toda a sua agilidade.
philip roth

A diferença como elemento desencadeador no estabelecimento da alte-


ridade de uma pessoa ou de um grupo social banaliza-se de tal modo, na
mídia e na indústria do entretenimento, que pensar seriamente sobre a ques-
tão torna-se uma tarefa bastante espinhosa por envolver os afetos, assunto
cada vez mais estudado na América do Norte, onde, aliás, os debates sobre
diferença e alteridade surgiram e se desenvolveram nas últimas décadas. Um
exemplo desta vulgarização está no filme Hairspray (2007),38 comédia musi-
cal estrelada por John Travolta no papel de Edna Turnblad, a mãe gorda
de Tracy Turnblad, a rechonchuda adolescente que quer ser dançarina do
Corny Collins Show, um programa de um canal de televisão local. O con-
flito colocado – de uma pessoa que quer dançar mas não tem o physique du
rôle – não se sustentaria por mais de meia hora. Então, como o filme se passa
em Baltimore, 1962, o roteiro lança mão da luta dos negros para desenrolar
a trama: a adolescente gorda vai-se juntar aos dançarinos negros, alijados da
televisão pela gerente má, linda e loura, interpretada por Michelle Pfeiffer.
Deste modo, o filme mistura um conflito de ordem pessoal, que eu diria
insolúvel – uma gorda pode até dançar bem mas não consegue se tornar bai-
larina/dançarina – com a segregação racial nos Estados Unidos, este sim, um
problema de ordem política, social, cultural e existencial para milhões de
pesssoas. Apesar da tendência atual que exige de nós cuidados especiais de
linguagem e comportamento em relação a todo tipo de diferença, creio que
as questões de alteridade realmente pertinentes para os estudos da literatura
e da cultura são as que se referem às categorias de etnicidade (que engloba
cor, raça e religião) e de gênero (gender).
Segundo Eric Landowski (2002), a sociedade majoritária, chamada de
“grupo de referência”, parece querer preservar sua integridade, imagem de
um nós hipostasiado, criando diversas estratégias para se distinguir dos “dife-
rentes”, dos “Outros”, sob uma aparência de não discriminação. Segundo
38
Direção de Adam Shankman, com roteiro de Leslie Dixon e John Waters (1988).

151
Landowski, a sociedade majoritária pode exercer com seus Outros a exclu-
são ou a assimilação, mas em ambos os movimentos percebe-se o não reco-
nhecimento da Alteridade, pois ou se exclui (exclusão) ou transforma-se
o Outro no Mesmo (assimilação). O reconhecimento só se daria na acei-
tação, pura e simples. A diferença que existe entre o grupo de referência e
os outros não é de ordem ontológica porque, afinal, todos são homens; há,
antes, diferenças posicionais, relacionais, em que se pode valorizar a gené-
tica, a cultura, a religião. Mas ela tende a converter-se, no plano empírico,
numa série de oposições substanciais porque algumas características são valo-
rizadas, acentuadas. O grupo de referência fixa o inventário de traços diferen-
ciais que servem para construir, diversificar e estabilizar o sistema das figuras
do Outro (Landowski, 2002, p. 13). Para Landowski, a produção da dife-
rença mobiliza dois planos, o referencial, em que a diferença se baseia em ter-
mos biológicos ou sociológicos e o semiótico, em que a diferença passa a ser
significante, ensejando a construção de um universo de sentido e de valores.
Os traços diferenciais servem para significar figurativamente a diferença posi-
cional que separa logicamente o Um de seu Outro, daí surgindo os estereóti-
pos. Homi Bhabha explica o mecanismo da formação do estereótipo:
O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada
realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que,
ao negar o jogo da diferença (que a negação através do Outro permite), constitui
um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e
sociais (Bhabha, p. 117).

A construção da diferença e dos discursos sobre a diferença e a alteri-


dade varia segundo a história cultural de cada país. Assim, nos Estados Uni-
dos e no Canadá existe uma percepção diferencialista – a valorização da dife-
rença – que leva a considerar que uma gota de sangue negro ou indígena
condena a pessoa ao nível racial considerado inferior. Esta visão inviabiliza a
existência do mestiço ou mulato, todos são negros ou indígenas. Nos movi-
mentos que surgiram ao longo do século xx como contestação ao racismo,
que havia levado à segregação dos negros e ao quase extermínio dos índios,
a mesma visão diferencialista vai prevalecer, pois os negros e indígenas na
América do Norte foram formados neste contexto cultural.
Já no Brasil o caldo cultural que engendrou o processo de mestiçagem e
seus discursos na construção da nação se filia a uma percepção universalista.
Em princípio, todos têm a oportunidade de se embranquecer e ascender ao

152
padrão considerado superior ou ainda de se ver e se enquadrar na categoria
que mais lhes agrada. Ora, desde os festejos do centenário da abolição da
escravidão (1988), percebe-se uma crescente crítica ao discurso da mestiça-
gem e da democracia racial no Brasil, feita por parte de acadêmicos e ativis-
tas ligados a movimentos negros, que substituíram o antirracismo “univer-
salista” pelo antirracismo “diferencialista”, por influência dos movimentos
negros norte-americanos.
O mais irônico é que nos Estados Unidos a noção de mestiçagem começa
a se infiltrar por influência da presença de vários tipos de imigrantes, inclu-
sive dos hispânicos ou latinos que são, em sua maioria, mestiços e egressos
de países cuja história cultural sempre incluiu a possibilidade de mestiça-
gem. Mesmo na comunidade afrodescendente algumas rupturas começaram
a acontecer. O campeão de golfe Tiger Woods (nascido em 1975 na Cali-
fórnia), aparentemente negro – que deveria, portanto, se autodeclarar Afri-
can American –, desencadeou uma tendência ao se reivindicar como mul-
tirracial, já que a palavra “mestiço” não existe em inglês. Na Wikipedia em
inglês, lê-se que Tiger Woods forjou uma palavra para se identificar racial-
mente: Cablinasian, a partir das iniciais das seguintes origens: Caucasian,
Black, Indian, Asian.
Durante as eleições presidenciais de 2008 houve uma intensa discus-
são sobre a questão racial por conta da candidatura de Barack Obama, que
se declarou birracial, já que a família da mãe, com a qual sempre viveu, é
branca, enquanto seu pai, um queniano com o qual, aliás, ele teve muito
pouco contato, era negro. Com a eleição de Obama a presidente dos Esta-
dos Unidos falou-se até mesmo em uma era pós-racial, o que, naturalmente,
está longe de acontecer. De qualquer modo, é indiscutível que a eleição de
Obama mudou sensivelmente a representação simbólica do negro na socie-
dade americana: agora crianças e jovens negros têm a família do presidente
como modelo de sucesso exposto na mídia todos os dias.
Se os brancos no passado proibiram o casamento inter-racial, hoje é a
comunidade negra que se opõe veementemente ao casamento misto. Harold
Ford Jr., ex-deputado pelo Estado de Tennessee, negro casado com uma
branca, tem dificuldades em angariar os votos da comunidade negra por
causa de sua escolha. Obama, ao contrário, teve o apoio maciço da comuni-
dade negra graças, em grande parte, à presença de sua esposa, Michelle, des-
cendente “autêntica” de uma família afro-americana.

153
Ao estudar as representações dos mestiços na literatura, percebi como
minha percepção da etnicidade se distinguia da dos textos críticos canôni-
cos produzidos na América do Norte. Como ousar discordar de atitudes
tão politicamente corretas e tão estabelecidas quando eu estava escrevendo
a partir de fora? Ao atravessar fronteiras por um olhar excêntrico e descen-
trado, ao negociar esta defasagem, creio ter-me aproximado daquilo que
Reed Way Dasenbrock chamou de “hermenêutica da diferença”, “que per-
mite entender textos diferentes de nós e entendê-los por serem diferentes
de nós” (Dasenbrock apud Eigenbrod, p. xiii). Como cada um fala a par-
tir de seu lugar de enunciação, seu olhar crítico é determinado pela visão de
mundo de sua cultura.
Muito se falou da ideologia do branqueamento no Brasil, que possibi-
lita a passagem de uma cor/raça a outra, considerada superior. Este fenô-
meno, chamado de passing em inglês, em que os mulatos/mestiços claros
podem ocultar sua origem, mudar de região e se fazer passar por branco,
também existe na América do Norte. Este topos está presente na literatura
dos Estados Unidos, desde as dime novels, textos de cunho popular que ins-
piraram os filmes do gênero western, até a alta literatura, como em William
Faulkner (1897-1962).
No universo criado por Faulkner pode-se depreender uma verdadeira
maldição trágica que pesa sobre as pessoas, enredando-as de tal modo que
elas não vislumbram nenhuma salvação possível. Em Absalão, Absalão! Tho-
mas Sutpen se divorcia de Eulalia Bon, com quem se casara no Haiti, por-
que descobre ou desconfia que ela tem sangue negro. Ele se recusa a ter
contato com o filho deles, Charles Bon que, na universidade, acaba se tor-
nando amigo de seu filho Henry, e noivo/amante de sua filha Judith. Tho-
mas Sutpen diz ao seu filho: “Ele não deve se casar com ela, Henry. O pai
da mãe dele me disse que a mulher era uma espanhola. Eu acreditei nele;
mas só depois que ele nasceu eu descobri que a mãe dele tinha uma parte
de sangue negro” (Faulkner, 1981, p. 320). Deste raciocínio se conclui que
o horror do incesto é menor do que o horror ao casamento com um negro,
como percebe Charles: “Então é a miscigenação, e não o incesto, que você
não pode suportar” (Faulkner, 1981, p. 321).
Em outro romance de Faulkner, Luz em Agosto, Eupheus [Doc] Hines,
um louco fanático, racista e moralista, que usa uma linguagem religiosa beli-
cosa e maniqueísta, atribui sangue negro ao amante da filha, que ele não
conhece. Apesar de todos dizerem que ele é mexicano, o personagem mata

154
o amante, deixa a filha morrer durante o parto, entrega a criança a um orfa-
nato, lá permanecendo como porteiro durante cinco anos, tempo suficiente
para dizer a todos que a criança é negra. Assim, Joe Christmas, o neto do
velho Doc Hines, vai viver e morrer como negro, embora tivesse a aparência
de um branco. Ele poderia ter feito o passing, mas a maldição era mais forte,
ele crescera na convicção de que era negro e é isto que vai dizer para as pes-
soas. Com efeito, a questão da cor nos Estados Unidos se define mais pela
palavra proferida do que pela aparência: se um indivíduo parece branco mas
alguém o acusa de ser negro ele será avaliado enquanto tal.
Talvez seja significativo assinalar que a atribuição de sangue negro seja
feita a um mexicano em Luz em Agosto [Light in August] (2007) e a uma pes-
soa que se autodeclarara como sendo de origem espanhola em Absalão, Absa-
lão! [Absalom! Absalom!]. Em nenhum dos dois romances se tem certeza da
presença de sangue negro; a dúvida já basta. Na mentalidade dos wasps, os
espanhóis e os latinos – católicos, morenos, quiçá meio mestiços – são per-
cebidos como Outros e, neste sentido, se aproximam do negro.
Em A marca humana (2002) [no original, de 2000, The Human Stain],
Philip Roth retrata com muita ironia o percurso do professor Coleman Silk
que, originário de uma família negra de Nova Jersey, decide, aos 20 anos, se
fazer passar por branco e adotar a identidade de judeu. Aos 70 anos, depois
de uma carreira brilhante, é levado a demitir-se, humilhado, devido às acu-
sações de racismo feitas por dois alunos negros, sempre ausentes às suas aulas,
que ele chama de spooks (o sentido principal é de fantasmas, mas a palavra
foi usada no passado como termo pejorativo para designar os negros). De
maneira não linear é montado o quebra-cabeças que foi a vida do personagem
que, aos 17 anos, para satisfazer o sonho de seu pai, vai estudar na Howard
University, uma tradicional universidade para negros, em Washington D.C.,
onde descobre uma face mais violenta do racismo. “Recusaram-se a lhe servir
um cachorro-quente na Woolsworth’s no centro de Washington, e ainda por
cima o chamaram de crioulo” (Roth, 2002, p. 135). Tendo odiado tanto a
cidade quanto a universidade, Coleman abandona a Howard University por-
que ele se recusa a adotar qualquer tipo de identidade coletiva, nem em forma
de autodefesa nem de ataque, ele reivindica, ao contrário, sua singularidade,
seu direito de viver o seu mundo interior secreto, oculto, privado.
Na Howard, Coleman não descobriu apenas que era um crioulo em Washington,
D.C. – como se esse choque não bastasse, descobriu também que era negro. Não
só isso, mas também que era um negro da Howard. Da noite para o dia, o eu nu e

155
cru fazia parte de um nós com toda a solidez arrogante do nós, e Coleman não que-
ria nenhuma relação com aquele nós, nem com nenhum outro nós opressor que viesse
a aparecer. (...). Não, jamais a tirania do nós, sempre louco para tragá-lo, aquele
nós moral coercitivo, abrangente, histórico, inevitável, com seu insidioso E pluribus
unum. Nem o eles da Woolsworth’s nem o nós da Howard. Em vez disso, o eu nu e
cru, com toda a sua agilidade (Roth, 2002, p. 142. Grifos do autor).

Nesta passagem pode-se perceber que Coleman Silk quer preservar sua
individualidade, recusando-se a fazer parte de qualquer coletividade. Um
branco pode ter sua vida individual, mas se espera de um negro que ele faça
parte do coletivo. Assim, ao se alistar na Marinha, ele decide que será, a partir
daí, um branco, o que significa que ele terá de eliminar a família de seu con-
vívio. Em compensação, ele será livre e não terá de suportar as humilhações,
os obstáculos e as imposições que sua família sempre teve de suportar. Ao
mudar de cor, ele elimina os sentimentos que provocavam seu sofrimento:
“A mágoa, a dor, o fingimento, a vergonha – todas as agonias interiores do
fracasso e da derrota. Em vez disso, livre no palco maior. Livre para seguir
adiante e ser magnífico. Livre para representar o drama ilimitado e autodefi-
nidor dos pronomes nós, eles e eu” (Roth, 2002, p. 143. Grifos do autor).
Ele paga caro por esta liberdade. Ao se casar, ele teve de dizer à esposa
que seus pais haviam morrido e que não tinha irmãos. Então, antes mesmo
de se casar ele tem de explicar isto a sua mãe e seus irmãos, numa cena sur-
damente violenta, brutal. Simbolicamente ele assassina a mãe e os irmãos.
Ao longo de sua vida, a única pessoa com quem ele mantém contato é sua
irmã Ernestine, que compreende sua decisão e lhe dá notícias da mãe e da
família. O texto sugere o peso que representou para ele este segredo, no
plano dos afetos, inclusive com o medo de ter filhos negros. A cada gravidez
– e foram três, sendo que, da última, sua esposa teve gêmeos – o pânico.
O trágico do personagem reside no fato, apontado por Ernestine no
final do romance, de que ele nasceu cedo demais; se tivesse nascido alguns
anos mais tarde, ser negro não constituiria uma desvantagem tão traumá-
tica. Como acontece com frequência com os personagens trágicos, o tempo
não lhe é favorável. Quando os negros começaram a ocupar um lugar na
sociedade, agindo agressivamente como resistentes, Coleman – já transfor-
mado em professor branco e judeu – se tornou vítima da atitude de intole-
rância dos alunos negros.
Como em A marca humana, o romance In search of April Raintree, de
Beatrice Culleton Mosionier, também cria um personagem mestiço-quase-

156
branco que quer viver sua singularidade sem ter de se assumir como ser cole-
tivo, os Métis do Canadá. Os autóctones constituem um fantasma no imagi-
nário dos canadenses na medida em que sua presença na formação da nação
foi recalcada. Nas últimas décadas há uma proliferação de romances que
tratam do assunto: assiste-se, assim, à volta do recalcado, que parece estar
sendo trabalhado no inconsciente coletivo e que se manifesta de maneira
muito sugestiva na produção literária do país. Nestes romances percebem-se
a marginalidade de Índios39 e Métis,40 o racismo, a violência da sociedade
que os envia de volta ao mundo dos “selvagens” e a não aceitação da mes-
tiçagem, concebida como uma “ambivalência identitária insolúvel” (Thé-
rien, p. 130), que parece constituir uma espécie de ameaça ao bom funcio-
namento da ordem pública.
A ideia da mestiçagem e do branqueamento, presente no passing, é muito
incômoda na sociedade norte-americana, o que é perceptível no cinema de
massa, que raramente mostra cenas amorosas de casais mistos e o nasci-
mento de mestiços. Na adaptação cinematográfica de A marca humana,41 a
questão da mudança de cor de Coleman Silk foi amenizada. De modo seme-
lhante, o filme de animação Pocahontas,42 destinado ao público infantil, ape-
sar de ser baseado em fatos verdadeiros, termina com a separação do casal
misto, quando a verdade histórica é que a índia Pocahontas se casou com o
capitão inglês John Rolfe e o casal teve um filho. A rasura é um claro sinal de
que se trata de algo que se denega e se busca obliterar. Assim, o cinema e a
indústria do entretenimento mostram formas de alteridade inócuas – como
a da gordinha em Hairspray – e rasuram aquelas que põem em xeque valores
fortemente enraizados na sociedade norte-americana.

39
Apesar de no Canadá e nos Estados Unidos se preferir usar os termos Ameríndios e Primeiras Nações
para designar os povos autóctones, optei por empregar os termos mais comuns no Brasil.
40
Ver mais informações no capítulo “A figura do mestiço na literatura do Canadá”.
41
Filme de 2003, dirigido por Robert Benton, com roteiro de Nicholas Meyer, a partir do romance
de Philip Roth. Anthony Hopkins interpreta Coleman Silk.
42
Filme de 1995, dirigido por Mike Gabriel e Eric Goldberg, a partir do roteiro de Carl Binder e
Chris Buck.

157
etnicidades negras:
memórias, estética da oralidade, humor
as (re)escritas da memória da escravidão:
questões teóricas

Ce qui rend la mémoire de l’esclavage si pleine et obsédante (...) c’est


qu’elle n’existe pas. Comme on n’en sait rien, on en sait tout. Et tout
semble avoir été dit car rien n’a été dit. Aller avec l’écriture dans cette
mort de l’esclavage c’est y aller avec la vie, car toute écriture est d’abord
vie. Mais il apparaît difficile au regard de la vie d’explorer de manière
juste et exacte (...) le secret absolu de cette mort.
patrick chamoiseau

Memória e arquivo
Em grego há dois tipos de memória: a mneme é a lembrança que surge
passivamente, espontaneamente, enquanto a anamnesis é a busca consciente,
portanto, um esforço, uma atividade do espírito. O esquecimento é neces-
sário para que haja memória; um homem que não se esquecesse de nada,
como no conto “Funes, el memorioso”, de J. L. Borges, não seria capaz de
realizar nenhuma atividade, viveria em estado de contemplação.
Para Bergson, as lembranças passadas ficam numa zona obscura. Mas
acontece um acidente e “logo as imagens obscurecidas reaparecerão em plena
luz: é esta última condição que se realiza certamente no sono quando sonha-
mos” (Bergson, 2006, p. 92); a lembrança “é capaz de revelar-se por clarões
repentinos: mas ela se esconde, ao menor movimento da memória volun-
tária” (Bergson, 2006, p. 96). Esta memória involuntária – a mneme – é a
que Proust tematiza na Recherche: ele desenterra sua vida passada do esque-
cimento a partir de algumas sensações, a primeira delas – a mais conhecida
e a mais citada – é a da madeleine, que ele come molhando-a no chá de tília.
Neste caso estamos falando de uma experiência individual: a experiência
proustiana se realiza como um projeto pessoal a fim de escrever sua obra.
Na teoria da anamnese, Platão reconhece o estatuto da escrita como ins-
trumento da memória artificial. Ele desenvolveu os princípios hipomnésicos
para seus estudantes como instrumento facilitador no desenvolvimento das
ideias. Os hipomnemata são uma modalidade de anotação que fixa elemen-
tos adquiridos, constituindo assim uma memória passada à qual se pode

161
voltar. O arquivo é da ordem do hipomnésico, ele é escrito ou estocado em
algum local.
A memória coletiva designa a relação que uma determinada comunidade
tem com os acontecimentos que a atingiram. Segundo Maurice Halbwachs,
a memória coletiva se distingue da memória histórica porque ela é uma
corrente de pensamento contínuo e corresponde àquilo que o grupo social
mantém vivo; ela tem como suporte um grupo limitado no tempo e no
espaço (Halbwachs, 2006, p. 106) e, ao contrário da história, seus limites
são irregulares e incertos. Halbwachs concebe a memória coletiva como algo
que dura uma geração. Entretanto, ao ser transmitida oralmente de uma
geração a outra, ela pode conservar-se através de uma série de costumes e
elementos culturais da comunidade, sobretudo na religião.
Freud, em Moisés e o monoteísmo, tentou imaginar, numa espécie de
“romance histórico”, a memória coletiva dos judeus em relação à saída do
Egito, ao monoteísmo, ao assassinato de Moisés. Ele diz que as massas,
como o indivíduo, conservam em forma de traços mnésicos inconscientes
as impressões do passado (Freud, 1948, p. 127). Admitindo que os traços
mnésicos subsistem na hereditariedade arcaica, Freud concebe a possibili-
dade de tratar os povos da mesma maneira que o indivíduo neurótico. Ape-
sar de não ter chegado a elaborar propriamente um conceito de arquivo, ele
usou várias metáforas do funcionamento da mente que remetem à ideia de
arquivo, como o bloco mágico, que deixa vestígios, como num palimpsesto.
Nos textos sobre a Gradiva de Jensen e no Mal-estar da civilização, Freud
comparou a memória às camadas que correspondem aos diferentes perío-
dos do passado nas escavações que foram feitas em Pompeia e em Roma. Os
acontecimentos recalcados ao longo da vida ficam armazenados na mente e
podem emergir, seja em processo analítico, seja espontaneamente, suscitado
por novos eventos (traumáticos ou não).
Jacques Derrida, em diálogo com Freud, discute a importância de reela-
borar hoje o conceito de arquivo, assinalando que os “desastres que marcam
o fim do milênio são também arquivos do mal: dissimulados ou destruídos,
interditados, desviados, ‘recalcados’” (2001, p. 7. Grifos do autor). Derrida
se refere aos desastres do século xx (sobretudo a Shoá), mas aqui me interes-
sam particularmente os dois grandes desastres que a América conheceu ao
longo de sua história: o genocídio dos autóctones e o transplante de milhões
de africanos para trabalhar como escravos.

162
Derrida vê na noção de arquivo tanto a experiência da memória e o retorno
à origem quanto o arcaico e o arqueológico, a lembrança ou a escavação. A
constituição de um lugar de autoridade seria a condição do arquivo. “Isto
não se efetua nunca através de um ato de anamnese intuitiva que ressuscita-
ria, viva, inocente ou neutra, a originalidade de um acontecimento” (2001,
p. 8). Não é por acaso que o arquivo instala-se frequentemente na cena da
escavação arqueológica, seu discurso aborda tanto a estocagem de impres-
sões quanto a censura e o recalque.
Freud em O mal-estar da civilização trata da pulsão da morte, pulsão
que suscita a destruição e a agressão. Esta pulsão leva à amnésia, ou seja, à
aniquilação da memória. Assim, o arquivo não se confunde com a memória,
pelo contrário, ele existe no lugar da memória. Como o arquivo é hipomné-
sico, ou seja, ele é documento ou monumento, as ruínas, os artefatos desco-
bertos nas escavações arqueológicas, os documentos escritos de toda ordem,
funcionariam como elementos de arquivo. “Não há arquivo sem um lugar
de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exteriori-
dade. Não há arquivo sem exterior” (Derrida, 2001, p. 22). O arquivo “tem
lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória” (Der-
rida, 2001, p. 22), pois há, de um lado, o esquecimento – a memória não
pode guardar tudo – e, de outro lado, há uma pulsão arquiviolítica (pulsão
destruidora dos arquivos).
O mal de arquivo, para Derrida, viria da contradição entre duas pul-
sões: a pulsão de conservação e a pulsão de destruição: “Não haveria certa-
mente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um
esquecimento que não se limita ao recalcamento” (Derrida, 2001, p. 32),
ou seja, não haveria mal de arquivo sem a ameaça da pulsão de destruição
que ameaça o arquivo.
Derrida aponta para “a lógica e a semântica do arquivo, da memória e do
memorial, da conservação e da inscrição que põem em reserva (...), estocam
uma quase infinidade de camadas, de estratos arquivais por sua vez superpos-
tos, superimpressos e envelopados uns nos outros” (Derrida, 2001, p. 35).
Diante disto, o arqueólogo (o escritor) deve escavar em busca de restos ou ras-
tros do passado. Como se trata de uma história rasurada, a recuperação do
passado pela escrita (literária ou mesmo historiográfica) vai juntar e rearru-
mar os dados do passado. Pode-se conceber esta sobreimpressão de elementos
como um palimpsesto a ser decifrado, a ser recomposto, ressignificado.

163
A metáfora do arqueólogo, que desenterra os elementos do passado para
fazer seus romances, situa-se no mesmo campo semântico das ideias desen-
volvidas por Walter Benjamin: “quem pretende se aproximar do próprio pas-
sado soterrado deve agir como um homem que escava” (Benjamin, 2000, p.
239). Assim, “uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo tempo,
fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim como um bom relató-
rio arqueológico deve (...) indicar (...) [as camadas] que foram atravessadas
anteriormente” (Benjamin, 2000, p. 240). Neste sentido os escritores que
desenterram a memória do passado seriam como o cronista de Benjamin.
“O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e
os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu
pode ser considerado perdido para a história” (Benjamin, p. 223). Ou pode-
riam ser também como o Angelus Novus, pintura de Klee que se torna ale-
goria nas mãos de Benjamin: este anjo tem o rosto voltado para o passado,
onde vê “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre
ruína e as dispersa a seus pés” (Benjamin, p. 226).
A literatura reaproveita elementos minúsculos do passado para fazer,
como pensava Walter Benjamin, uma montagem da história, rompendo
com o naturalismo histórico vulgar. O escritor deve incorporar uma expe-
riência coletiva (Erfahrung) do passado, reescrevendo uma história que se
situa dentro de uma concepção do tempo que não é “homogêneo e vazio,
mas um tempo saturado de ‘agoras’” (Benjamin, 1993, p. 229). Para Ben-
jamin, articular historicamente o passado não é escrever a história como ela
de fato foi, é estabelecer um vínculo entre passado e presente, em forma
de constelação. Sua filosofia da história, segundo Jeanne-Marie Gagnebin,
apontaria para o fato de que “a exigência de rememoração do passado não
implica simplesmente a restauração do passado, mas também uma transfor-
mação do presente tal que, se o passado perdido aí for reencontrado, ele não
fique o mesmo, mas seja, ele também, retomado e transformado” (Gagne-
bin, 2009, p. 16). Mas além da rememoração, é preciso que haja também
reparação do sofrimento das gerações passadas (Löwy, 2005, p. 51).
A concepção da história de Michel Foucault tem elementos comuns
com a de Benjamin porque os dois autores refutam a posição historicista,
positivista e acumulativa da história. Ambos concebem o tempo como uma
sucessão de descontinuidades, ou seja, eles recusam a visão da história como
uma linha ascendente em direção ao progresso e estão atentos aos fenômenos

164
de ruptura, às interrupções, às transformações. A diferença fundamental esta-
ria na metodologia de trabalho de Foucault, já que toda a base do trabalho na
Arqueologia do saber repousa sobre os seus conceitos de enunciado, de for-
mação discursiva e de discurso.
Para Foucault, o arquivo não é nem a soma de textos e documentos que
testemunham a identidade de um povo nem as instituições que conservam
tais documentos; por arquivo ele entende que os textos surgem através de
jogos de relações que caracterizam o nível discursivo; que eles surgem não
por acaso mas segundo regularidades específicas. Portanto, quando se pes-
quisa o sistema da discursividade, a pergunta que se deve fazer é: por que se
pode dizer ou não se pode dizer determinadas coisas nos diferentes momen-
tos da história. Para Foucault, há, na densidade das práticas discursivas, sis-
temas que instauram os enunciados como acontecimentos e como coisas.
São esses sistemas de enunciados que ele chama de arquivo.
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que
faz com que todas as coisas ditas (...) se agrupem em figuras distintas, se compo-
nham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem
segundo regularidades específicas (Foucault, 2009, p. 147).

O arquivo não tem o peso da tradição nem é a biblioteca, ele corres-


ponde antes às possibilidades de surgimento das regras que permitem que
enunciados subsistam ou se transformem (Foucault, 2009, p. 148). Para
Foucault, a arqueologia remete para o arquivo enquanto conjunto de enun-
ciados produzidos. Assim, deve-se olhar para o arquivo como camadas de
discursos (ou formações discursivas) superpostos, tal como Freud descreveu
as camadas de cidade nas escavações de Pompeia e nas ruínas de Roma. O
arquivo não pode ser visto como algo simples e unívoco, pois ele pode ser
usado de maneiras diferentes, dependendo da situação, já que a enunciação
sempre deixa vestígios em livros, documentos de toda ordem como cartas,
inscrições, anotações, material de arquivo a ser explorado pelo historiador.
Assim, o arquivo é uma estrutura aberta onde se acumulam práticas descriti-
vas; cada nova inscrição ou descrição é um novo traço do arquivo. O próprio
homem que trabalha os arquivos é, ele mesmo, um arquivo, pois o sujeito é
um efeito discursivo.
Giorgio Agamben, no livro O que resta de Auschwitz, retoma o con-
ceito de arquivo de Foucault mas afirma que, quando se trata de literatu-

165
ra-testemunho, a questão do sujeito que fala/escreve é fundamental. Se em
Foucault o autor se torna uma simples função, nos escritos sobre a Shoá,
a questão ética do sujeito que escreve é fundamental. Agamben distingue
etimologias diferentes para sentidos diferentes da palavra testemunha: testis
indica a testemunha que intervém como terceiro na disputa entre dois sujei-
tos; superstes é aquele que viveu uma experiência sobre a qual pode testemu-
nhar e auctor indica a pessoa cujo testemunho pressupõe um fato ou pala-
vra preexistente e cuja realidade deve ser certificada por ela. Primo Levi, por
exemplo, é um superstes, alguém cujos escritos testemunham sua própria
experiência do horror nos campos de concentração. Já na escrita contempo-
rânea sobre a escravidão, trata-se de testemunho de um auctor (Agamben,
2008, p. 150), alguém que transmite a memória coletiva ao mesmo tempo
que trabalha nos arquivos da escravidão para dar testemunho do que exis-
tiu no passado.
Benjamin dizia que cada época deve arrancar a transmissão da tradição
ao conformismo porque a tendência do historicismo é privilegiar a história
dos vencedores. “Ora, os que num momento dado dominam são os herdei-
ros de todos os que venceram antes” (Benjamin, 1993, p. 225). Não se pode
esquecer o monte de ruínas do passado, a história dos vencidos, das vítimas
porque, como ressalta Benjamin: “Nunca houve um monumento da cultura
que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cul-
tura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão
da cultura.” É por isto que se torna necessário “escovar a história a contra-
pelo” (Benjamin, 1993, p. 225), remar contra a corrente, a fim de ressaltar
todas as asperezas da história.
Os escritores que hoje se debruçam sobre a memória da escravidão pre-
tendem justamente escrever a história a contrapelo e revelar a barbárie que
estava incrustada no projeto colonial europeu, cujo discurso civilizatório
encobria a exploração dos africanos aqui trazidos para trabalharem como
escravos e a eliminação dos indígenas, considerados inaptos para o traba-
lho nos campos.

História e memória da Afro-América


Darcy Ribeiro chamou de “povos novos” aqueles que emergiram da
região das plantations escravistas, caracterizados pela “amalgamação bioló-

166
gica e pela aculturação de etnias díspares dentro desse enquadramento escra-
vocrata e fazendeiro”. São povos novos “os brasileiros, os venezuelanos, os
colombianos, os antilhanos, uma parte da população da América Central e
do Sul dos Estados Unidos” (Ribeiro, 2007, p. 185). Edouard Glissant (1996)
designou esta macrorregião de “Neo-América” ou “América da crioulização”,
usando o conceito de crioulização em vez de mestiçagem para se referir ao
processo de transformação que sofreram aqueles que estiveram envolvidos
na sociedade escravista.
Segundo Glissant, a história desta região da América, diferentemente
da história da Europa, é marcada pelo choque, pela contração, pela nega-
ção dolorosa e pela explosão. O descontínuo na continuidade assim como a
impossibilidade para a consciência coletiva de contornar a questão caracteri-
zariam o que Glissant prefere chamar de não-história (1981, p. 131). Ele vê
uma transversalidade em nossa história em oposição à visão linear e hierar-
quizada da história que o Ocidente impôs aos povos colonizados ao evocar
a frase The unity is submarine, do poeta e historiador Edward Kamau Brath-
waite (nascido em 1930 na ilha de Barbados). Apelando a esta imagem do
passado escravista, na qual o fundo do oceano se encontra coberto de cor-
pos de africanos jogados ao mar, o poeta imagina a Relação a partir destas
raízes submarinas. Se os comerciantes se desfaziam de pessoas como se fos-
sem mercadorias de um tráfico ilegal – como as drogas nos dias de hoje –, as
lembranças destes viventes ecoam na contemporaneidade na forma de cons-
telação, como queria Walter Benjamin.
Para o crítico cubano Antonio Benitez Rojo, o universo da plantação de
cana-de-açúcar constitui o imenso arquivo do Caribe,43 e é este macrossis-
tema que explica a cultura e o modo de vida dos Caribenhos até os nossos
dias, em uma repetição em diferença. Inspirando-se na teoria do Caos como
Glissant, Benitez Rojo considera o Caribe um “meta-arquipélago cultural
sem centro e sem limites, um caos no qual há uma ilha que se repete sem
cessar – cada cópia diferente –, fundando e refundando os materiais etnoló-
gicos” (Benitez Rojo, 1998, p. 26).
Desde os anos 1960 tem havido uma produção bibliográfica crescente
sobre a escravidão, tanto da parte de historiadores quanto de antropólogos.

43
É preciso esclarecer que tanto Benitez Rojo quanto Edouard Glissant, Darcy Ribeiro (e outros)
consideram o Brasil como parte do Grande Caribe, região onde houve escravidão dentro do sistema
de plantations.

167
Como mostraram os antropólogos americanos Sidney Mintz e Richard Price
(2003), no livro O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica, “o passado deve ser visto como a circunstância condicionadora
do presente”, ou seja, o presente não pode ser compreendido sem referência
ao passado. Eles ressaltam a urgência de se estudar o escravismo sob a dupla
perspectiva da história e da antropologia para se chegar a uma compreensão
das culturas afro-americanas de hoje. Para isto, é preciso se entender o papel
desempenhado pelos escravos na criação de novos valores, instituições e for-
mas culturais (apud Marquese, 2004).
Além das obras publicadas na área de ciências humanas, a literatura
contemporânea tem também produzido textos que exploram a memória
da escravidão, trazendo à tona questões traumáticas que ainda hoje reper-
cutem no imaginário ou insconsciente coletivo. A literatura usa os elemen-
tos da história, mas os reelabora de forma imaginária a fim de tentar recriar
um espaço-tempo habitado por personagens que viveram e sofreram no pas-
sado. Como a memória histórica foi frequentemente rasurada, cabe ao escri-
tor escavar a memória a partir dos vestígios às vezes latentes que ele encon-
tra no real. Assim, para Glissant, a história enquanto consciência atuante e
enquanto vivido não é trabalho só para os historiadores (1981, p. 133). Para
ele, a tarefa do escritor consistiria em explorar o tormento do passado, reve-
lá-lo de maneira contínua no momento atual a fim de desentranhar um sen-
tido doloroso do tempo e projetá-lo no futuro. É o que ele chama de “visão
profética do passado” (1981, p. 132).
Na literatura brasileira não há uma produção muito vasta que tematize
a escravidão e os elementos culturais negros. No século xx autores como
Jorge Amado e Josué Montello, João Ubaldo Ribeiro e Ana Maria Gonçal-
ves exploraram a memória do período escravista e a herança do candomblé.
Esta lacuna deve-se talvez ao fato de as elites letradas do Brasil terem agido
no sentido de apagar a história da escravidão, num gesto respaldado pelo ato
de Rui Barbosa, que em 1890 assinou o decreto com a ordem de queimar
os documentos fiscais relativos à compra e venda de escravos a fim de evitar
o pedido de indenização dos antigos senhores de escravos. Apesar das boas
razões alegadas para tal decisão, simbolicamente tal ato ficou registrado na
memória nacional como uma tentativa de eliminar os arquivos para apagar
um passado de vergonha. A lembrança da escravidão como trauma da nação
ficou recalcada. Além disto, como as elites letradas brasileiras são brancas

168
(ou quase brancas), compartilhando uma ideologia embranquecedora e
homogeneizadora do país, a escravidão não constituiu um tema maior.
Desde os anos 80, porém, escritores que se declaram afro-brasileiros
têm visitado esta temática com mais frequência, embora seus livros ainda
estejam longe da consagração nacional. A destacar, como importante espaço
de divulgação destes autores, os Cadernos Negros, publicação encabeçada
pelo poeta Cuti (Luiz Silva), que sai sob a égide do Quilombhoje.
Nas Antilhas, as novas elites que emergiram a partir dos movimentos
da negritude dos anos 1930 se veem como descendentes dos escravos, o que
explica, talvez, o fato de haver mais romances sobre a escravidão no Caribe
de língua francesa do que no Brasil. Assim, a perspectiva comparatista Bra-
sil-Caribe poderia propiciar uma reflexão acurada sobre esta problemática
da reescrita da memória da escravidão.
O uso que faço da palavra “reescrita” pretende ter o mesmo sentido
atribuído por Jean-François Lyotard no seu artigo “Réécrire la modernité”,
no qual ele afirma que o prefixo “re”, associado à escrita, evoca aquilo que
Freud chamou de Durcharbeitung e que é traduzido por perlaboração. A
Durcharbeitung é “o trabalho destinado a pensar o que, do acontecimento
e do sentido do acontecimento, nos é escondido constitutivamente, não só
pelo preconceito passado, mas também pelas dimensões do futuro que são
o projeto, o programa, a prospectiva e mesmo a proposição e o propósito da
psicanálise” (Lyotard, 1988, p. 35).
Esta questão histórica da escravidão é crucial. Recontar literariamente
nossa história sobredeterminada pela escravidão é criar ficções que deem
conta de um certo ambiente, forçosamente imaginário, através da utilização
de diferentes formas de arquivos a fim de figurar nossa memória cultural.
O escritor usa os arquivos não para reconstituir a história como ela de fato
foi; através dos vestígios deixados, através das expressões culturais lacunares
que resistiram, através dos traumas que persistem, o escritor conta histórias
para testemunhar.
Glissant indaga se a história da escravidão não pode ser encarada como a
história de uma neurose. O tráfico sendo o trauma, o recalque seria a tentativa
de esquecimento, os delírios costumeiros seriam os sintomas e a recusa de vol-
tar a “estas coisas do passado” seria uma manifestação do retorno do recalcado
(1981, p. 133). A terapia para tal neurose coletiva passa pelo testemunho do
autor, aquele que pode dar voz àquilo que foi recalcado mas que insiste em

169
aflorar em forma de sintoma e de sofrimento, como bem expressa o poema
de Conceição Evaristo (nascida em 1946), que pode emblematicamente
representar esta geração que se inscreve na literatura brasileira de maneira
hifenizada, ou seja, como escritora afrodescendente que pretende resgatar a
memória do passado, desde o tráfico negreiro (evocado neste poema) até a
exclusão pela pobreza e pela invisibilidade social:
O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso
O movimento vaivém nas águas-lembranças
Dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
Salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
Mas os fundos oceanos não me amedrontam
E nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.
(Conceição Evaristo, 2008, p. 9)

170
resiliência, banzo e as artes de fazer
em ana maria gonçalves

Maria Maria
É um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta
(.................................................)
Quem traz na pele esta marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida.
milton nascimento/fernando brant

Os arquivos da escravidão
Ana Maria Gonçalves (nascida em 1970), no romance Um defeito de
cor (2007), desenterra a memória do período escravista a partir da história
de uma personagem que, apesar de todas as tribulações de sua vida, não se
coloca como vítima mas como uma batalhadora, uma mulher que persegue
o sucesso e “possui a estranha mania de ter fé na vida”, como a Maria da can-
ção de Milton Nascimento e Fernando Brant.
Ela se inspira nas lacunas da biografia do advogado, jornalista e escritor
Luiz Gama (1830-1882), para reconstituir ficcionalmente a história de vida
de sua mãe Kehinde/ Luisa Mahin e, através dela, das condições de vida dos
escravos na Bahia do século xix. O livro é escrito, a partir da página 404,
para um destinatário, o filho desaparecido, cujo nome não é jamais mencio-
nado, nem mesmo no prólogo, quando a autora se refere àquele “que nas-
ceu livre, foi vendido ilegalmente como escravo, e mais tarde se tornou um
dos principais poetas românticos brasileiros, um dos primeiros maçons e
um dos mais notáveis defensores dos escravos e da abolição da escravatura”
(Gonçalves, 2007, p. 16). Desta maneira, a autora evita a grande persona-
gem histórica para se concentrar na figura da mãe – um verdadeiro fantasma
na vida de Luiz Gama – que é a protagonista do seu romance.
O título do romance, Um defeito de cor, foi retirado de uma frase de Gama:
Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um
crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares

171
de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, tão semelhante
à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões onde arde o fogo sagrado da liber-
dade (Gama, 2008).

Filho de um fidalgo português rico e de uma africana liberta, Luisa


Mahin, que participou da revolta dos Malês (1835) e da Sabinada (1837), o
menino Luiz Gama foi ilegalmente vendido como escravo (em 1840) pelo
pai que, tendo esbanjado sua fortuna, teria usado o dinheiro da venda do
filho para pagar dívidas de jogo. Levado para o Rio de Janeiro e depois
para São Paulo, trabalhou nos afazeres domésticos na casa da fazenda de seu
senhor, o alferes Antônio Pereira Cardoso, em Lorena (SP). Em 1847, Gama
aprendeu a ler e a escrever com um hóspede da fazenda, Antonio Rodrigues
do Prado Júnior e, no ano seguinte, consciente da ilegalidade de sua situa-
ção, fugiu para S. Paulo, inscrevendo-se nas milícias, onde permaneceu até
1854. Na década de 1850 assistiu às aulas do curso de Direito na Faculdade
do Largo S. Francisco, que não chegou a concluir. Publicou Primeiras tro-
vas burlescas do Getulino, sua primeira obra poética, em 1859. Na década
seguinte tornou-se jornalista, tendo-se destacado, tanto na poesia quanto
na prosa jornalística, no gênero satírico. Foi um dos fundadores do Partido
Republicano Paulista (1873) e líder da Mocidade Abolicionista e Republi-
cana. Também atuou como advogado (rábula), tendo defendido a causa de
inúmeros escravos. Seu féretro (1882) foi muito concorrido, com discursos
em defesa da abolição e em homenagem à sua luta, conforme depoimentos
de Raul Pompeia e Antonio Bento. Ao se analisar a atitude de Luiz Gama
através destes elementos biográficos, percebe-se a sua resistência ao superar
todas as dificuldades, tornando-se a figura que foi.
Para desencavar esta história, a narradora simula, no prólogo do romance,
ter encontrado, em Itaparica, umas folhas soltas, que teriam ficado guarda-
das na Igreja do Sacramento e que seriam o relato que ela própria vai fazer.
Estas folhas funcionariam como uma espécie de arquivo que traz as lembran-
ças, os vestígios, as histórias dos escravos. Gonçalves reconstitui as lacunas
(folhas perdidas, textos ininteligíveis) e narra a história que se deu no pas-
sado; assim, seu romance atualiza a narrativa, colocada agora em circulação.
Para isto, ela usa um procedimento narrativo muito comum no século xviii,
em que o autor do livro se fingia de editor, amigo de alguém que teria dei-
xado algum manuscrito. De certa forma esta encenação já estava presente no
Quixote, de Cervantes, que afirma que o autor de seu texto é Cide Hamete

172
Benengeli, historiador arábico. Na literatura brasileira recente, Silviano San-
tiago também usou esta técnica no romance Em liberdade, ao simular que o
livro teria sido escrito por Graciliano Ramos e que seria uma continuação
de Memórias do cárcere.
A narradora afirma no prólogo que se instalou em Itaparica e em Sal-
vador a fim de pesquisar os locais em que se deram os acontecimentos.
Como o arquivo é hipomnésico, ou seja, ele é documento ou monumento,
tanto a cidade em seus monumentos quanto as folhas esparsas seriam arqui-
vos. Para Derrida não existe meta-arquivo, cada elemento que se acrescenta
ao arquivo torna-se parte do arquivo; assim, o próprio romance integra o
grande arquivo da escravidão no Brasil. Diante das histórias já contadas por
escritores precedentes e que são retomadas numa trama intertextual, a nar-
radora trabalha sobre um palimpsesto cujas diferentes camadas se entrete-
cem. O palimpsesto conserva os vestígios de escritas do passado, enunciados
que têm de ser lidos e articulados de modo a fazer sentido.
Ana Maria Gonçalves fez uma longa pesquisa a fim de poder reconsti-
tuir esta história, revelada na bibliografia de mais de 50 títulos citados ao
fim do romance. Além das obras de história e antropologia, verifica-se a pre-
sença de outras obras literárias que a inspiraram na construção dos ambien-
tes e personagens. De Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, volta
à ficção o personagem Amleto, protótipo do mulato-quase-branco dissimu-
lado, que tem uma ascensão social meteórica, após roubar seu patrão, o
barão de Pirapuama, e levá-lo à bancarrota. A autora rende homenagem a
Ubaldo Ribeiro, colocando Amleto em seu romance como um dos clientes
de Kehinde quando ela se torna vendedora de cookies. Ela evoca o fato de
este mulato, que queria embranquecer a toda prova, não permitir que a mãe
negra visitasse sua casa, impedindo assim seus filhos de conhecerem a avó.
Outro romance que serviu de inspiração a Ana Maria Gonçalves é A casa
da água, de Antonio Olinto, quando ela trata da volta à África de sua perso-
nagem, suas dificuldades de readaptação, mas sobretudo o seu sucesso eco-
nômico, o nascimento de outros filhos e netos. Kehinde, como a Mariana
de A casa da água, é uma mulher que faz o retorno à África, indo se juntar
aos Agudás – os brasileiros da região do Benin –, comunidade que tem uma
história muito rica e curiosa e junto à qual tem uma carreira de sucesso. Uma
diferença relevante é que, enquanto Mariana, nascida no Brasil, é levada
criança à África pela mãe e sobretudo pela avó, africana que desejava imen-

173
samente retornar ao país natal, Kehinde é trazida criança para o Brasil e volta
à África por seu próprio desejo em idade adulta. Também é de se destacar o
fato que as duas mulheres nunca deixam de cumprir as obrigações aos orixás,
preservando a religião dos Ioruba. No final de A casa da água, Mariana sente
um vago desejo de voltar para o Brasil, mas acaba por não fazê-lo, enquanto
Kehinde retorna, movida pelo desejo de reencontrar o filho Luiz Gama, de
quem conseguira ter notícias. Isto aparece na penúltima página do romance:
Na segunda carta, ele dava muitos detalhes sobre você, contando tudo sobre a sua
vida, que você era amanuense e que também advogava em favor dos escravos, conse-
guindo libertar muitos deles. Que você estava casado, tinha filhos e era maçom, que
escrevia poesias e era muito respeitado por publicar artigos belíssimos e cheios de
inteligência nos jornais mais importantes da cidade (Gonçalves, 2007, p. 946).

Várias mulheres do candomblé exercem função importante no processo


de iniciação de Kehinde. Dentre elas, destaca-se a figura histórica de Agon-
timé, descoberta por Pierre Verger quando estudava os vodus do Maranhão,
onde ela fundou a Casa das Minas, um candomblé que tinha vodus próprios
da casa dos reis do Daomé (Verger, 1992). Ao pesquisar a razão disto, ele che-
gou à conclusão que a primeira mãe de santo pertencera à família real e elabo-
rou a hipótese que se tratava da esposa do rei Agonglo, que, após a morte de
marido, foi enviada como escrava para o Brasil pelo novo rei, Adandozan.
A autora se inspira ainda nas descrições feitas por Gilberto Freyre
em Casa-grande & senzala para narrar algumas violências praticadas pelos
senhores. A primeira a aparecer é fruto ao mesmo tempo da impunidade
e do ciúme doentio da Sinhá Ana Felipa: ela arranca literalmente os dois
olhos de Verenciana, grávida do Sinhô, e os serve misturados com geleia
para o marido, que não reage diante da mulher, mas protege Verenciana e
a criança, longe da casa-grande. Há também as punições aos negros fujões,
ferrados com a letra F no rosto ao serem recapturados, de maneira a serem
facilmente identificados como escravos turbulentos.

Resiliência e banzo
Desde os anos 1970 os psicólogos começaram a usar o conceito de resiliên-
cia para designar o processo pelo qual certas pessoas exibem uma grande
44

44
O sentido da palavra, segundo o dicionário Aurélio, é: “Resiliência (Física) – propriedade pela qual a
energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma defor-

174
adaptabilidade mesmo nas condições mais adversas ou após sofrer um
trauma. “Resiliência significa prosperar em condições adversas – em outras
palavras, manter a saúde física e emocional e o espírito que permita viver
uma vida com alegria” (Boss, 2006, p. 51). Alguns fatores podem influir
no processo de preservação do eu e possibilitar maior resiliência, dentre os
quais se destacam, de um lado, a capacidade individual – como inteligên-
cia e autoimagem positiva – e, de outro lado, a rede de proteção formada
pela família e pela comunidade. O conceito de resiliência pode ser articu-
lado com o conceito deleuziano de agenciamento, que pressupõe o desejo
que move as pessoas a entrar no jogo do poder.
A protagonista de Um defeito de cor resiste a todos os obstáculos e a
todo o sofrimento, sempre com uma posição de combate e desejo de supe-
ração. O romance é narrado em primeira pessoa por Kehinde/Luísa, de sua
infância em Savalu, reino do Daomé, passando por sua vinda para o Brasil
como escrava no início do século xix, os anos passados na Bahia e no Rio
de Janeiro, o retorno à Africa, até sua derradeira volta ao Brasil no fim da
vida. Aos 7 anos ela e sua irmã gêmea viram a mãe ser estuprada e morta.
Em seguida a avó levou as duas meninas para Uidá, onde elas foram captu-
radas e embarcadas em um navio negreiro. No entanto, tanto a avó quanto a
irmã morreram durante a viagem e Kehinde desembarcou sozinha na Bahia.
Comprada pelo senhor José Carlos Gama, ela foi levada para a ilha de Ita-
parica para ser escrava de companhia da Sinhazinha Maria Clara, ou seja,
brincar e, ao mesmo tempo, servir de brinquedo para a menina. Designada
para trabalhar na casa-grande, Kehinde foi estuprada pelo Sinhô aos 12 anos
e ficou grávida. Depois de muitos anos de trabalho como escrava de ganho
em Salvador, Kehinde conseguiu comprar a alforria para ela e seu filho. Já
livre, encontrou um português rico com quem teve um outro filho, que seria
Luiz Gama, nascido livre mas vendido como escravo pelo próprio pai a fim
de pagar dívidas de jogo.
A autora molda a sua personagem ficcional a partir do filho famoso, ou
seja, faz dela também uma grande batalhadora. A resiliência de Kehinde é
possível graças a alguns fatores. Em primeiro lugar, é bom lembrar que ela
é mostrada como uma criança muito feliz e muito orgulhosa da beleza de
sua mãe, ou seja, durante seus primeiros anos de vida – que, segundo Freud,
mação elástica. Em sentido figurado significa resistência ao choque”. A adaptação e o emprego do termo
na área da Psicologia se deram quando psicólogos se deram conta de que crianças que sofriam o mesmo
trauma (em guerras na África, maus-tratos de mães toxicômanas) reagiam de modo diferente.

175
têm uma influência decisiva em nossa vida (Freud, 1948, p. 168-169) –
ela foi muito amada pela mãe e desenvolveu uma autoimagem positiva.
Em segundo lugar, outras mulheres a amaram muito, colocando-se como
mães substitutas para ela: sua avó e, após sua chegada a Itaparica, Esméria,
a cozinheira da casa-grande que a acompanha até o fim da vida (de Esmé-
ria). Além disto, ela conta com a rede de apoio do candomblé, que lhe dá
o conforto de poder continuar a praticar a religião de seus ancestrais, trans-
mitida pela avó. Ao longo de sua vida os agenciamentos se manifestam em
forma de territorializações e desterritorializações, fluxos, movimentos de vai
e vem, que, se não impedem o sofrimento, a impulsionam sempre a buscar
soluções para seus dramas. Seu dinamismo e sua força vital são proporcio-
nais aos percalços que a sociedade escravista lhe impõe.
Em se tratando da escravidão no Brasil, pode-se considerar que a resi-
liência se oporia ao banzo, doença mental que acometia os africanos aqui
chegados e que os levava muitas vezes ao suicídio. No romance há o caso
do pescador Afrânio, comprado junto com Kehinde, que se suicidou pouco
tempo depois de sua chegada ao Brasil, o que se explica pelo banzo, pela des-
truição de suas referências subjetivas e culturais. O suicídio era uma forma
extremada de retorno, já que os africanos consideravam, de acordo com sua
religião, que após a morte eles voltariam à sua terra natal.
Pode-se articular o banzo ao desejo de retorno, tal como postulado por
Edouard Glissant. Segundo ele, a “primeira pulsão de uma população trans-
plantada (...) é o Retorno. O Retorno é a obsessão do Um: não se deve
mudar o ser. Voltar é consagrar a permanência, a não-relação” (Glissant,
1981, p. 30). Neste sentido, pode-se argumentar que a resiliência seria a
capacidade de estabelecer relação: relação com outra cultura, com outro
espaço, com outros valores, sem se fixar na obsessão da unidade perdida.
O banzo foi bastante estudado no século xix no Brasil devido ao impacto
das variadas formas de violência auto infligida: aborto, assassinato do bebê
logo após o parto, suicídio. O médico francês, que se radicou no Brasil,
Joseph Sigaud (1796-1856), em seu livro Du climat et des maladies du Bré-
sil, publicado em Paris em 1844, discordava de um princípio adotado por
muitos de seus confrades europeus, o de que os negros seriam pouco sensí-
veis às doenças mentais com exceção da idiotia. Ao tratar do banzo, Sigaud
baseou-se no estudo de Luis Antonio de Oliveira Mendes (de 1793), que fez
uma descrição daquelas “mortes lentas, espécies de consumpções produzidas

176
pela inanição, e devidas a uma causa moral”, tais como a nostalgia da terra
natal ou o ressentimento causado por castigos injustos. Sigaud considerava
que não havia diferenças entre raças no que concerne às enfermidades ner-
vosas e que “os que pretendem que índios e negros não eram suscetíveis à
loucura, na verdade queriam separar estas duas raças das inevitáveis condi-
ções de humanidade” (citado por Oda, 2008). A despeito de negar diferen-
ças, Sigaud afirmou que existia uma evolução mais marcada das doenças psí-
quicas entre os negros, com manifestações mais intensas.
Segundo o naturalista alemão Carl von Martius (1794-1868), que pas-
sou muitos anos no Brasil, o banzo – mortal nostalgia provocada pela falta
de liberdade – atingia tanto africanos quanto indígenas, sendo que estes, por
sua natureza mais fria, tornavam-se verdadeiros autômatos, definhando em
silêncio, enquanto que os negros, caracterizados pelo intenso calor físico e
moral, tendiam a exprimir seus sentimentos de forma mais dramática, acen-
tuando-os ao máximo (apud Oda, 2008).
O banzo, sofrido por negros e indígenas em posição de dominação
infligida pelos colonizadores portugueses, pode, paradoxalmente, e em esca-
las diferentes, ser associado à saudade, termo usado para definir o espírito
melancólico dos portugueses, estes grandes viajantes que iniciaram o pro-
cesso das grandes navegações no século xv. Assim, a combinação destas três
raças que, por um processo de violência colonial, forjou o brasileiro, teria
resultado em um povo triste, segundo Paulo Prado, em O retrato do Bra-
sil (publicado em 1928). “Numa terra radiosa vive um povo triste” (Prado,
1997, p. 53). A epígrafe do livro de Prado, uma frase de Capistrano de
Abreu, já anuncia esta ideia de tristeza: “[O jaburu...] a ave que para mim
simboliza nossa terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas,
e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, daquela aus-
tera, apagada e vil tristeza” (apud Prado, 1997, p. 51).
Numa visão utópica e contra-hegemônica, Oswald de Andrade escrevia
no “Manifesto antropófago” (também publicado em 1928): “Antes dos portu-
gueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade” (Andrade,
p. 18), ou seja, os índios, no matriarcado de Pindorama, eram felizes. E ainda:
“A alegria é a prova dos nove”. Portanto, a tristeza advém do encontro/con-
fronto com o europeu. Já Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala (publicado
em 1933), considera que, apesar do banzo que acometia alguns escravos, foi o
negro que injetou alegria na vida brasileira, nas festas e sobretudo nos cantos.

177
O português, já de si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do
caboclo nem se fala: calado, desconfiado, quase um doente na sua tristeza. Seu con-
tato só fez acentuar a melancolia portuguesa. A risada do negro é que quebrou toda
essa ‘apagada e vil tristeza’ em que se foi abafando a vida nas casas-grandes. Ele que
deu alegria aos são-joões de engenho; que animou os bumbas-meu-boi, os cavalos-
marinhos, os carnavais, as festas dos Reis” (Freyre, 1980, p. 462).

Esta representação de povo triste de Paulo Prado surpreende hoje, já


que tanto os estrangeiros quanto os brasileiros tendem a ver o povo brasi-
leiro como sendo alegre e caloroso. A se crer na leitura de Freyre, levanto a
hipótese que neste último século a mestiçagem infundiu alegria negra nas
veias dos brasileiros, expandindo-se para toda a população. E seguindo as
pegadas de Oswald, a felicidade caraíba teria sido resgatada pela deglutição
da contribuição europeia e sua lenta digestão? Teria o Brasil expulsado “o
espírito bragantino” pela resiliência da grande maioria dos oprimidos?
No momento presente, quando milhões de pessoas emigram, movi-
das por necessidades econômicas, perseguições políticas ou outras razões,
fala-se de “síndrome de Ulisses”,45 uma espécie de melancolia ou nostalgia
que pode levar ao suicídio. No mundo globalizado, a situação dos migran-
tes é, muitas vezes, extremamente penosa: sem família, vivendo em países
de cultura diferente, em condições econômicas difíceis e, sobretudo, isola-
dos por não falar a língua local, solitários, privados de afeto, não resistem
muito tempo a esta vida de autômato e acabam tendo uma depressão e/ou
se suicidando, como se explica no romance A síndrome de Ulisses, do escritor
colombiano Santiago Gamboa.

As artes de fazer
Michel de Certeau mostra em seu livro L’invention du quotidien; 1. Arts
de faire (1990) que as pessoas dominadas usam de pequenos artifícios, “as
artes de fazer”, para sair de uma situação de opressão e de silenciamento.
Certeau argumenta que, para se opor ao poder constituído, o dominado usa
a criatividade e a astúcia em formas sub-reptícias que poderiam ser conside-
radas como uma rede de antidisciplina (Certeau, 1990, p. xl). Se aqueles que
detêm o poder usam estratégias, os subalternos só podem utilizar táticas, usar
45
O psiquiatra Joseba Achotegui, da Universidade de Barcelona, em artigo encontrado na internet,
descreve as dificuldades encontradas por imigrantes ilegais, que vivem num nível de estresse que excede
a capacidade de adaptação.

178
o tempo em seu favor já que não possuem o domínio de um espaço próprio.
A tática não pode ter um projeto global nem pode totalizar o adversário em
um espaço distinto, visível e objetivável; assim ela precisa aproveitar as opor-
tunidades que aparecem, ser rápida, desviar a força do outro em seu favor.
O que ela ganha não pode ser guardado. Este não lugar lhe dá mobilidade
mas nenhuma segurança, ela precisa aproveitar as brechas que as conjun-
turas particulares abrem em sua vigilância (Certeau, 1990, p. 61). A tática
se manifesta em muitas formas de estratagemas a fim de desfazer o jogo do
poder e neste jogo há uma “arte nos golpes, um prazer em virar as regras de
um espaço que pressiona” (Certeau, 1990, p. 35).
Michel de Certeau explora o conceito inscrito na expressão “travail en
perruque”, que data do século xix, dentro da tradição da linguagem dos ofí-
cios e que designa um trabalho ou bricolage pessoal feito na oficina, geral-
mente com material e máquinas da empresa, ou seja, uma utilização indé-
bita de tempo (que deveria ser de serviço) e matéria-prima. Trata-se de um
ato de resistência a um trabalho alienado, pela reapropriação de um savoir
faire profissional resgatado das mãos do patrão.
Outra expressão usada por Certeau é braconner; a palavra designa o
ato de caçar ou pescar em locais ou por meios ilícitos. Sua acepção posi-
tiva como sinônimo de resistência tem a ver com a história da palavra, pois
a braconnage era praticada pelos camponeses pobres como meio de sobrevi-
vência nos tempos em que a caça era privilégio da nobreza em países como
a França e a Grã-Bretanha.
O tipo de sociedade na Bahia do século xix, em que as raças e as clas-
ses sociais eram muito misturadas, apesar da hierarquia inerente ao escra-
vismo, permitia estes espaços de negociação e de astúcias, em que os escra-
vos podiam usar de artimanhas para ganhar dinheiro e comprar a liberdade.
No romance, Kehinde domina as artes de dissimulação e inventividade para
tirar o melhor de cada situação, o que demonstra sua capacidade de resiliên-
cia. Ela aprende a ler e escrever na infância numa atitude típica da perruque:
um escravo dá aulas para a Sinhazinha e Kehinde, que a acompanha, apro-
veita ao máximo as lições, incentivada por ele, e aprende muito mais que a
filha do senhor. Ela não pode demonstrar nenhum interesse explicitamente,
tudo é clandestino, dissimulado. O mesmo acontece ao longo de sua vida:
ela sempre se esforça em aprender novas coisas – falar inglês, quando traba-
lha numa casa de ingleses, cozinhar, negociar – a fim de conseguir melho-
rar sua situação social e econômica. Não aceita receber o batismo, mas finge

179
ter sido batizada quando é necessário ter um nome cristão e mantém-se fiel
aos princípios religiosos dos deuses iorubas. A atitude de Kehinde é típica
do espaço brasileiro da mobilidade, em que não há oposições dicotômicas
entre brancos e negros, em que negros e mulatos podiam ter escravos, e até
mesmo traficar escravos, em que mulatos espertos podiam ascender social-
mente e passar por brancos. O próprio candomblé é a arte da dissimulação:
por trás dos santos católicos se escondiam os orixás do panteão ioruba. O
sincretismo permitiu a sobrevivência das religiões afro-brasileiras, como o
candomblé e a umbanda.
Dentre as astúcias praticadas pelos escravos, destaca-se o envenena-
mento dos senhores através de um saber tradicional no uso de plantas, com
a participação efetiva das escravas domésticas que trabalhavam na cozinha e
que ministravam os venenos. A dissimulação é fundamental já que as cozi-
nheiras gozavam da confiança dos senhores; eram em geral nascidas e cria-
das na casa-grande. O assassinato do senhor era sempre fruto de vingança
por algum crime cometido por ele e que causava um impacto excessivo, des-
medido. Em Um defeito de cor o ato desencadeador da vingança dos escravos
foi a castração de Leonardo, o namorado de Kehinde, que tentara impedir
o estupro. O estupro da menina não teria, sem dúvida, provocado reação,
pois tratava-se de uma prática muito comum; no entanto, a castração de
um homem jovem por um motivo fútil pareceu inaceitável, monstruoso.
Como a hybris grega, o ato de castração envergonha e humilha a vítima para
sempre, a arrogância do senhor desafia as leis humanas e sociais, devendo
ser punida. O rapaz seria, com efeito, destroçado para sempre, enquanto
Kehinde, com sua resiliência, conseguiria superar o trauma do estupro.
O envenenamento em Um defeito de cor não é por um veneno extraído
de planta, como costumava acontecer, mas pela picada de uma cobra. As
razões que o motivaram não são explicitadas, nada é dito, tudo é feito de
modo sub-reptício, à maneira dos fracos e oprimidos. Percebe-se o prazer
de Esméria ao assistir ao sofrimento do sinhô, como na passagem: “Durante
os dias que se seguiram, a Esméria me levava notícias dele, e acho que ela
estava sempre sorrindo, que lhe dava certo prazer o rumo que as coisas
foram tomando. Eu me lembro de ouvi-la dizendo que o sinhô José Carlos
gritava de dor dia e noite” (Gonçalves, 2007, p. 172).
Há outras vinganças promovidas pelos escravos. O capataz Eufrásio,
depois de dar muitas chibatadas no mestre Anselmo, morre engasgado, o
que pode sugerir que houve alguma ação de retaliação. Assim, se do ponto de

180
vista histórico as vinganças não foram suficientes para equilibrar a balança,
pelo menos do ponto de vista narrativo pode-se depreender uma compensa-
ção: há uma violência infligida ao algoz, que o leva à morte, e isto permite
uma purgação dos crimes.
As reações das pessoas diante do sofrimento diferem. A resiliência de
Kehinde leva-a a lutar para fazer parte da sociedade que a tratara como escrava,
como inumana. A rebeldia de Maria da Fé, de Viva o povo brasileiro, de João
Ubaldo, leva-a a tornar-se uma guerreira, sempre rejeitando a sociedade que
permitia que tais coisas acontecessem. De um lado, a adaptabilidade indivi-
dualista da mulher que quer se levantar e ascender socialmente e, de outro, a
revolucionária, que quer mudar o mundo para que todos possam ser tratados
com justiça e humanidade. As duas personagens tiveram a mesma experiên-
cia de assistir ao estupro e à morte da mãe. Kehinde foi capturada na África,
escravizada, estuprada, mas suas mágoas levam-na à busca do sucesso pes-
soal. Apesar de ter tido uma participação na revolta dos Malês e de ter sido
presa duas vezes, Kehinde é mais individualista e sua resistência leva-a a que-
rer superar a situação de humilhação, de inferioridade, ganhando dinheiro,
tendo sucesso e sendo reconhecida. A cena inicial, que indicia a postura que
viria a ter na idade adulta, se passa diante do espelho quando, trajada com
um vestido da Sinhazinha, promete a si mesma que um dia seria livre e teria
os mais belos vestidos. Maria da Fé, ao contrário, desde pequena recusa-se
a integrar-se na sociedade, apesar de ter nascido livre, ter recebido uma boa
educação, ser bela e quase branca. Ambas são resilientes, porém escolhem
caminhos diferentes.

181
a reescrita da escravidão como
perlaboração em patrick chamoiseau

O banzo renasce em mim.


Do negror de meus oceanos
a dor submerge revisitada
esfolando-me a pele
que se alevanta em sóis
e luas marcantes de um tempo
que está aqui.
conceição evaristo

A escrita alegórica
No Caribe, antes de Patrick Chamoiseau, escritores como Aimé Césaire
e Edouard Glissant também prospectaram o terreno da escravidão. Patrick
Chamoiseau (nascido na Martinica em 1953) empreende um trabalho de
reescrita da memória da escravidão no romance Un dimanche au cachot [Um
domingo no calabouço] (2007), dando continuidade a uma temática que
já aparecia em obras precedentes como L’esclave vieil homme et le molosse
(1997) e, de maneira mais parcial, em Texaco (1992) e Biblique des derniers
gestes (2002). Assim, a reescrita da escravidão de Un dimanche au cachot efe-
tua um trabalho de perlaboração como meio de curar, numa espécie de dra-
materapia, em que o autor rememora uma história de mulheres que não
cessa de se repetir numa “repetição fixa de uma fixidez trágica” (Chamoi-
seau, 2007, p. 242). Chamoiseau mistura história e ficção ao tentar recriar
de modo não realista um certo ambiente durante o período escravista, incor-
porando um personagem histórico – Victor Schoelcher –, mas mostrando-o
antes dos grandes eventos que protagonizou. Ele tematiza tanto a violência
– sobretudo o desejo de dominação, o estupro e a tortura, que desencadeiam
doenças físicas e mentais nas vítimas – quanto relações de amor e amizade
entre brancos e negros, senhores e escravos.
Chamoiseau coloca-se no texto não só como narrador, com seu nome
próprio, mas também como personagem, neste como em romances anterio-
res, desdobrando-se em várias personae: no papel de escritor, ele usa as más-
caras do Marqueur de Paroles e do Guerrier de l’Imaginaire e, neste livro, ele

182
representa o papel de um educador (que ele realmente é), chamado num
domingo por seu amigo Sylvain para socorrer uma menina – Caroline – que
se escondera dentro de uma ruína. Sylvain é responsável por uma associação
– La Sainte famille – que cuida de crianças órfãs ou com problemas fami-
liares. O presente hipermoderno está representado pelo telefone celular de
Chamoiseau que não para de tocar, além de iluminar aquela ruína escura,
onde ele é obrigado a entrar para resgatar Caroline e que lhe mete medo.
Ele usa o celular também para fazer algumas anotações. Para tentar persua-
dir Caroline a sair dali, ele lhe conta a história de três gerações de escravas,
a avó La Belle, a mãe e L’Oubliée. Assim, em Un dimanche au cachot a nar-
rativa é contada para Caroline, a menina que no presente da enunciação se
esconde numa espécie de cachot (calabouço) numa tarde de domingo.
A menina, filha de pais toxicômanos, não se comunica com as pessoas
e foge para dentro de um buraco, único lugar em que ela parece se sen-
tir bem (Chamoiseau, 2007, p. 33). Ela encontra-se desestabilizada emo-
cionalmente devido a traumatismos vários, porque sofreu abuso sexual, por-
que é provavelmente usuária de droga como seus pais, porque se sentiu traída
pelos adultos que deveriam tê-la protegido. Neste fechamento narcísico, ela
vive num devaneio que a protege da lembrança do sofrimento. O devaneio
é um bálsamo, mas pode-se transformar no diabo porque leva a criança a
uma “ausência definitiva”. O casulo em que ela se fecha torna-a inacessível
ao narrador apesar de os dois estarem unidos no mesmo local, a ruína, que
o autor associa a um “útero fétido” (Chamoiseau, 2007, p. 40).
Para furar o bloqueio e conseguir se comunicar com ela, o narrador cria
uma história que reflete a sua situação, só que no passado. Existe, assim, um
paralelismo entre a opressão sofrida por meninas e mulheres hoje e aquela
do passado escravista da Martinica. Como Caroline, as escravas também
usavam algum tipo de droga a partir de uma planta (datou, datura), que
as ajudava a suportar e/ou esquecer os abusos sexuais, o desenraizamento,
a perda de identidade, o sentimento de abandono. A homologia máxima
ocorre quando se revela que o nome de L’Oubliée é Caroline/Carole (Cha-
moiseau, 2007, p. 244).
O escritor usa duas metáforas para designar a situação da menina: a de
estar diante de um buraco e a de estar enredada numa teia de aranha. No
primeiro caso, o educador tem de lançar alguma ponte que a faça sair e, no
segundo caso, ele tem de sacudir a teia (Chamoiseau, 2007, p. 244). No
final do romance a menina consegue sair de dentro da ruína junto com ele,

183
segurar o seu braço e em seguida olhá-lo, o que significa que ela venceu sua
clausura. Depois de uma verbalização sobre os acontecimentos traumáticos
de sua vida, ainda que feita pelo educador através do desvio de uma histó-
ria de outras personagens, a menina reage. Segundo Freud, é na medida em
que o acontecimento foi esquecido (recalcado) que ele apresenta um valor
patogênico. A redescoberta da lembrança e sua expressão produzem uma
descarga emocional que Freud chamou de abreação e que tem um efeito
catártico. A anamnese feita pelo narrador salvou a menina. Ao contar uma
história para Caroline, Chamoiseau rompeu a redoma que a enclausurava
porque contar uma história é um ato de amor que liberta, contar é amar, é
esclarecer (Chamoiseau, 2007, p. 303). A saída do “útero fétido” simboliza
um re-nascimento para a Caroline.
O autor conta a história de mulheres anônimas, designadas por apeli-
dos alegóricos, como La Belle, L’Oubliée e la manman bizarre, todas as três
insubordinadas, rebeldes. Em Biblique des derniers gestes já aparecia a figura
de L’Oubliée, ainda que de maneira um pouco diferente. Trata-se aí de uma
Mentor, ou seja, uma curandeira com poderes sobrenaturais que pega sob sua
proteção – como mãe substituta – o protagonista, Balthazar Bodule-Jules.
Todas estas narrativas de Chamoiseau, que se emaranham e se entre-
tecem, podem ser lidas à luz do pensamento de Walter Benjamin, para o
qual as histórias populares e orais tinham uma abertura que o romance bur-
guês perdeu. Segundo Jeanne-Marie Gagnebin, na doutrina benjaminiana
da alegoria, a profusão dos sentidos vem de seu inacabamento essencial,
pois a narrativa tradicional se estrutura de modo a permitir um movimento
interno em torno do narrador, que por sua vez suscita um movimento infi-
nito da memória. A escrita alegórica tem “figuras congeladas e fragmentá-
rias”, enquanto “os inúmeros sentidos que poderíamos aí decifrar” são arbi-
trários pois, caso “encontrássemos o ‘verdadeiro’ sentido, não conseguiríamos
reconhecê-lo” (Gagnebin, 2009, p. 41). Para ela, “a interpretação alegórica
não é mera fruição melancólica que só produz sofrimento e vaidade; ela tam-
bém é desestruturação crítica e redentora” (Gagnebin, 2009, p. 42).
A verdade da interpretação alegórica consiste neste movimento de fragmentação e
de desestruturação da enganosa totalidade histórica; (...). Se a interpretação alegó-
rica é uma forma privilegiada de saber humano, é porque ela expõe à luz do dia esta
ligação entre significação e historicidade, temporalidade e morte, uma ligação que,
somente ela, fundamenta o único saber verdadeiramente positivo do homem (Gag-
nebin, 2009, p. 43).

184
Victor Schoelcher
Além das protagonistas ficcionais, Chamoiseau coloca um personagem
histórico ligado à abolição da escravidão, o francês Victor Schoelcher (1804-
1893), o qual também recebe designações alegóricas – visitante, vendedor
de porcelana – durante toda a narrativa; seu nome próprio só aparece no fim
do romance. O visitante, que faz anotações sobre as condições de vida dos
escravos, demonstra interesse pelas vicissitudes por que passa L’Oubliée. Ao
se ler a biografia de Schoelcher, vê-se que seu pai, um importante fabricante
de porcelana da Alsácia, enviou o filho em viagem à América em 1830 para
prospectar o mercado americano e, sobretudo, para afastá-lo dos meios repu-
blicanos que frequentava. Schoelcher, ao visitar os Estados Unidos e as Anti-
lhas, descobriu a violência exercida pelos brancos contra os negros. Na sua
volta, publicou seu primeiro texto contra a escravidão em La Revue de Paris.
Sua luta abolicionista e republicana continuou até 1848, quando preparou
o decreto que aboliu a escravidão nas colônias francesas (Martinica, Guada-
lupe, Guiana e Reunião). Republicano e maçom, além de ter exercido o jor-
nalismo para divulgar suas ideias, teve uma vida política intensa. As anota-
ções feitas por Schoelcher, que são encenadas no livro, podem ser associadas
às hipomnemata (cadernos de notas) que Foucault analisou como formas de
escrita de si. Tanto elas quanto outros escritos publicados na França funcio-
nam como registros arquivísticos da época, consultados e reelaborados por
Chamoiseau na escrita de seu romance.

Arquivo e perlaboração
Ao narrar a história, o autor condensa o tempo numa profusão de acon-
tecimentos bem própria do barroco. Tanto o velho senhor quanto seu filho
esperam poder humilhar, vencer o orgulho e a altivez destas três mulheres –
mãe, filha, neta – o que eles não conseguem em nenhum momento. O vieux
blanc parece completamente apaixonado pela manman bizarre, mas ela em
nenhum momento retribui esta paixão. Depois de anos, durante a doença
de seu senhor, ela foge mas é recapturada, sofre suplícios horríveis e morre.
Desta relação nascera L’Oubliée, criança muito clara de pele, abandonada,
esquecida pela mãe (donde seu apelido), mas amada e bem tratada pelo pai
branco. Por outro lado, apesar do amor do pai pela filha bastarda e mestiça,

185
ele a inicia no consumo de datura, um entorpecente, e a estupra sistemati-
camente. Assim, L’Oubliée conservava as imagens do branco que se deitava
com ela e da indiferença da mãe que parecia divagar (Chamoiseau, 2007,
p. 55). A prática do incesto bloqueia sua sexualidade pelo resto da vida. A
figura do pai é totalmente ambígua, ele representa todo o bem e todo o mal
que ela recebeu ao longo de sua vida (Chamoiseau, 2007, p. 252).
O atual senhor, meio-irmão de L’Oubliée, brincou e conversou com
ela, no passado, quando eram crianças e jovens, o que não o impede de
enviá-la ao calabouço quando adultos. Para deixá-la sair, ele quer que ela
lhe agradeça, o que não vai ocorrer. O torturador, aqui encarnado na figura
do senhor, quer dominar, impor a lei do medo, do terror, reduzir a mulher
a objeto/abjeto. O romance aponta para uma inversão entre humanidade
e bestialidade: o molosse (cachorro) e a bête-longue (cobra), trazidos pelos
brancos para caçar e matar os negros fujões, em vez de atacá-los – talvez
por força de alguma magia – tornam-se amigos deles, e acabam atacando o
senhor (Chamoiseau, 2007, p. 261). Ultrapassando as fronteiras do verossí-
mil e do imaginável, o monstro torna-se mais humano que o homem, fun-
de-se com L’Oubliée de tal maneira que o senhor – o verdadeiro monstro
– fica em estado de choque. Ele jamais poderá esquecer esta cena (Chamoi-
seau, 2007, p. 265). Como observam Mintz e Price, “a verdade inescapável
no estudo da Afro-América é a humanidade dos oprimidos e a desumani-
dade dos sistemas que os oprimiram” (apud Marquese, 2004).
Já em L’esclave vieil homme et le molosse, que descreve a fuga de um
velho escravo, perseguido por um cão (le molosse), o monstro não trucida o
escravo ao encontrá-lo, ao contrário, ele o lambe e, ao voltar, o senhor fica
surpreso com a transformação de seu cão, um enorme animal treinado para
matar que se tornara sereno e calmo (Chamoiseau, 1997, p. 125). A histó-
ria deste livro reaparece de forma resumida em Un dimanche au cachot e o
cão é o mesmo, ou seja, ele já fora dominado pelo velho escravo que havia
fugido para os morros.
O cão, como se sabe, foi usado pelos europeus na América para caçar indí-
genas e escravos. Nos livros de Bartolomé de las Casas,46 há muitas sequências
de cenas de crueldade em que os cães estraçalham e comem os índios. Entre-
tanto, há uma cena na Historia de las Indias em que o cão feroz se submete a
uma mulher velha, que começa a lhe falar em sua língua, dizendo:

46
Agradeço a Adrián Perez-Melgosa (SUNY) as referências à obra de Las Casas e de Lévinas.

186
Señor perro, yo voy a llevar esta carta a los cristianos; no me hagas mal, señor perro,
y extendíale la mano mostrándole la carta o papel. Paróse el perro muy manso e
comenzóla de oler y alza la pierna y orinóla, como lo suelen hacer los perros a la
pared, y así no la hizo mal ninguno; los españoles, admirados dello, llaman al perro y
átanlo, y a la triste vieja libertáronla, por no ser más crueles que el perro (de las Casas,
1995, cap. lv, p. 389)

Há uma discussão sobre as categorias de humano, inumano e desumano.


O senhor é anormal, monstruoso? Não, observa o visitante, ele é humano
com seus pares, trata bem as pessoas, ama a música, as artes. Por outro lado,
suportar o que L’Oubliée suportou é ainda humano? O romance suscita a
questão da inexistência do escravo porque lhe é negada sua humanidade. La
Belle reage a este tratamento distribuindo a morte enquanto L’Oubliée con-
sidera que só resta suportar e continuar vivendo porque a morte que lhes é
oferecida é uma morte sem transcendência. Ela faz uma distinção entre dois
verbos que significam morrer: crever, aplicado aos animais, e mourir, apli-
cado aos humanos. Em mourir haveria uma vida que se realiza; já em crever
só haveria a terra e o esquecimento, sem memória do antes nem do depois
(Chamoiseau, 2007, p. 176). Esta distinção corresponde àquela que Gior-
gio Agamben (2004, 2008) faz entre zoè e bios: o primeiro (zoè) designa a
vida nua, sem nenhum valor, que aproxima o homem oprimido e/ou mar-
ginalizado dos bichos; o segundo (bios) designa a vida humana.
Como pensar o impensável, nomear o inominável? O narrador evoca
grandes desastres da história recente – a Shoá e o Gulag – através dos nomes
de Primo Levi e Soljenitsyne ao perguntar: Qui pourrait croire cela? (Cha-
moiseau, 2007, p. 110. Grifos do autor). Lisa Guenther lembra que Emma-
nuel Lévinas, em seu livro Difficile liberté. Essai sur le judaisme, evoca o cão
que o olhava no campo de concentração, dando testemunho de sua huma-
nidade num momento em que os seres humanos falhavam nisto (Guen-
ther, 2007, p. 217). Só a escrita pode dar testemunho destes acontecimen-
tos traumáticos. O narrador de Chamoiseau em L’esclave vieil homme et le
molosse afirma que ele era vítima de uma obsessão e sua única saída seria
escrever. Ele sabe que um dia escreveria esta história constituída de memó-
rias emaranhadas (Chamoiseau, 1997, p. 132).
O romance Un dimanche au cachot encena a história da escravidão como
uma neurose que afeta as pessoas até hoje, deixando-as doentes. Assim, ele
desenterra a memória das vítimas das torturas durante o período escravista
a partir de uma imagem do cachot, onipresente no romance, desde o título,

187
uma ruína que teria servido de calabouço e na qual ele se encontra enquanto
conta a história a Caroline. Esta ruína – “uma escara mnésica” (Chamoi-
seau, 2007, p. 269) – fica na antiga Habitation Gaschette, outrora uma
próspera plantação de cana-de-açúcar, situada na comuna de Robert, no
norte da Martinica. Assim, considerando que as ruínas desta Habitation
seriam uma espécie de arquivo que traz as marcas, os vestígios, do trata-
mento dado aos escravos, Chamoiseau faz uma anamnese como forma de
terapia para a menina Caroline, através da narração de uma história que se
deu no passado. Diante das ruínas da antiga Habitation e das histórias que
correm sobre o local, inclusive a lenda de um tesouro enterrado, o narrador
percebe que ele se encontra diante de um palimpsesto (Chamoiseau, 2007,
p. 30) cujas diferentes camadas ele vai tentar decifrar. Ao penetrar no cala-
bouço, ele encontra um antigo cadeado, o que confirma sua ideia de que se
trataria de uma prisão. Segundo ele, os terríveis calabouços resistem mais fir-
memente do que as casas porque eles concentram o que há de mais virulento
no princípio escravista (Chamoiseau, 2007, p. 39).
Ao tratar do estupro e das torturas que as mulheres sofrem, Chamoiseau
lida com processos psicológicos analisados por Freud e Lacan, como o recal-
que e a forclusão. Os afetos têm a ver com a paralisia que acomete a menina
Caroline, que se encontra em estado de clausura dentro do calabouço. Para
curá-la, fazê-la sair da ruína, o narrador vai desvendar o segredo guardado
no arquivo (a dor, o estupro, a carência), evocando os fantasmas do pas-
sado. Como observa Derrida, “a verdade é espectral, fantasmática, eis aí sua
parte de verdade irredutível à explicação” (Derrida, 2001, p. 114). A menina
Caroline só é tirada de sua “claustração íntima” (Chamoiseau, 2007, p. 34)
por referências ao passado como se ali residisse a sua possibilidade de cura,
por uma anamnese que remete a um traumatismo histórico e coletivo. Falar
da escravidão neste caso é exorcizá-la, avaliar o que ela tem de desconhecido,
não buscar uma verdade sobre ela (Chamoiseau, 2007, p. 269).

Opacidade e indecidibilidade
Chamoiseau não faz uma narrativa linear nem muito menos mimética.
Assim, as intrigas e as relações entre os personagens não são muito claras e
lógicas. O leitor encontra-se no terreno do indecidível, há uma hesitação jus-
tamente porque o romance não se constrói de forma dicotômica. Não há uma

188
verdade sobre a qual se apoiar. Os quatro autores ícones que Chamoiseau
invoca – o poeta francês nascido na Guadalupe Saint-John Perse (1887-
1975), o escritor americano William Faulkner (1897-1962) e seus predeces-
sores da Martinica, Aimé Césaire (1913-2008) e Edouard Glissant (nascido
em 1928) – são todos herméticos porque não buscam uma representação
realista, considerando sem dúvida que a literatura (sobretudo a poesia) vai
muito além do pensamento lógico. Segundo Chamoiseau – que não cessa de
render tributo a eles, demonstrando que segue suas trilhas – a liberdade des-
tes escritores estaria em não desvelar (tirar o véu) fingindo que o faziam, pois
esta é a maneira que eles têm de conservar uma liberdade que se abre para
todas as liberdades. Através da opacidade – a recusa da transparência – e da
indecidibilidade, Faulkner, por exemplo, se furta à interpretação da maldição
que pesa sobre seus personagens. “É ficando no indecidível que uma liber-
dade pode se abrir a todas as liberdades” (Chamoiseau, 2007, p. 317).
Assim, se o romance se constrói sobre a imagem de uma ruína, que teria
sido no passado um calabouço para os escravos rebeldes, e que no presente
da enunciação funciona de refúgio-prisão para a menina Caroline, na última
página do romance o narrador desconstrói esta ideia: o amigo Sylvain lhe
anuncia que, segundo os arqueólogos que escavam o local, a ruína não era
um calabouço. Isto não o abala, pois a ficção não precisa desta comprova-
ção da verdade, a ficção está além da verdade factual porque o que importa
na escrita é a busca, o caminho percorrido. Chegar, alcançar, é renunciar à
beleza (Chamoiseau, 2007, p. 318).

Moreau de Saint-Méry e a mestiçagem


O cachot (calabouço) do título do romance é também interpretado pelo
autor em sentido ideológico de prisão mental, quando ele se refere ao cro-
nista Moreau de Saint-Méry (1750-1803), francês nascido na Martinica,
que descreveu e analisou a sociedade da época (Chamoiseau, 2007, p. 26).
Ao revisitar este arquivo da época, Chamoiseau lembra que o cronista, ao
tentar classificar a mestiçagem que se produzia, usou termos específicos a
fim de designar os níveis de mistura de sangue: mulâtre, quarteron, mame-
louque, sacatra, marabou, griffonne, griffe e assim por diante, como se fez
também na América do Sul. Sua tentativa taxonômica é limitada, ela não dá
conta da mestiçagem, ou seja, da infinita imprevisibilidade que as misturas
de povos provocaram nas Antilhas (Chamoiseau, 2007, p. 25).

189
Chamoiseau evoca a recusa da mestiçagem dos Estados Unidos, onde
uma linha separa dois absolutos imaginários – White man Black man –,
onde uma pessoa com uma gota de sangue negro é negra e destinada à inu-
manidade (Chamoiseau, 2007, p. 26). A separação de raças também ocor-
reu na África do Sul, onde Nelson Mandela venceu o apartheid após anos de
luta e de prisão. Para se referir a este fato da história recente, Chamoiseau
usa a mesma metáfora, dizendo que Mandela passou um longo domingo
de 28 anos fechado no cachot. A mestiçagem aconteceu (e continua acon-
tecendo) nas Antilhas; se durante a escravidão houve estupros, como os
que são tematizados neste romance, nos tempos subsequentes a mestiçagem
continuou existindo de forma livre. “Nas Antilhas, não houve linha. Só uma
crispação racista dos brancos créoles numa maré de mestiçagens imprevisí-
veis” (Chamoiseau, 2007, p. 27). Entre os escritores, muitos deles reconsti-
tuem suas genealogias mestiças. Basta citar o próprio Chamoiseau que, em
suas memórias de infância, conta que seu avô paterno era branco e que sua
avó paterna era mulata (2005, p. 64). Seu amigo Raphaël Confiant se coloca
em seus romances como chabin (sarará) e Maryse Condé (2006), na biogra-
fia ficcional de sua avó materna, afirma que a avó – de tez muito clara – era
filha de um homem branco.

Conclusão
Ao escrever em seus últimos romances sobre a memória da escravi-
dão, Patrick Chamoiseau trata da história de maneira não naturalista, como
queria Walter Benjamin. Não existe datação precisa, não se relata nenhum
acontecimento histórico preciso, não há, senão de forma alegórica, perso-
nagens. Os personagens existentes não têm dimensão psicológica ou socio-
lógica, não participam de intrigas realistas, nem são muito plausíveis; são
mais como fantasmas, espectros, personagens míticos como L’Oubliée (Un
dimanche au cachot) e Man L’Oubliée (Biblique des derniers gestes), ou ainda
o velho escravo que decide fugir depois de anos de trabalho dedicado. Mães
que matam os filhos para não fornecer mão de obra para o senhor de escravo,
eis uma das imagens recorrentes desta memória coletiva que perpassa a obra
dos escritores da Martinica.
Em Biblique des derniers gestes Chamoiseau evoca o tráfico de escravos como
o crime fundador dos povos da América (Chamoiseau, 2002, p. 59). Aliás, o

190
velho Balthazar, em seu leito de morte, diz ter nascido há quinze milhões de
anos, sendo, portanto, mais velho que a terra. Ele participou de todas as revo-
luções do século xx, tendo viajado por Ásia, África e América Latina.
Frequentar estes personagens é desenterrar uma memória recalcada, é
escrever para relembrar mas também para curar deste trauma que ainda
afeta as pessoas nos dias de hoje. Estes espectros dos tempos de antanho que
povoam seus livros fazem parte de um “real esquecido”, de um “país enter-
rado” (Chamoiseau, 2002, p. 51).
Neste modo de construção do romance, Chamoiseau não teme os parado-
xos, ao contrário, ele os explicita, em oxímoros como: “história irreal e sincera”,
“uma quimera obsessiva”, “um sonho verdadeiro”, “uma verdade imaginária”
(Chamoiseau, 2002, p. 68). Situando-se dentro de uma estética da oralidade
e da tradição ancestral, sua obra pretende ficar mais próxima do Mahabharata
do que do romance realista francês. É preciso inventar uma memória funda-
dora, como no caso de Man L’Oubliée, cuja história não remontava a uma
memória pessoal mas a um passado coletivo, acessível a todos. “Esta memó-
ria provinha da escravidão e da travessia dos navios negreiros:... nós a recal-
camos, e procuramos apagá-la” (Chamoiseau, 2002, p. 275).
Personagens alegóricos que renascem das cinzas, tanto L’Oubliée quanto
Man L’Oubliée parecem se regenerar, numa infinidade de desdobramentos
a fim de testemunhar que os pequenos acontecimentos do passado, o sofri-
mento vivenciado por personagens anônimos como elas, têm tanta impor-
tância quanto os chamados grandes acontecimentos.

191
o humor rabelaisiano de patrick chamoiseau
e mário de andrade

Depois de brincarem Macunaíma quis fazer uma festa em


Sofará. Dobrou o corpo todo na violência dum puxão mas
não pôde continuar, galho quebrou e ambos despencaram
aos emboléus até se esborracharem no chão.
mário de andrade

Segundo Otávio Paz, a Antiguidade conhecia a comédia e a sátira, mas


“a ironia e o humor são a grande invenção do espírito moderno” (Paz, 1972,
p. 71). O fundamento do romance moderno, que nasce com Rabelais e Cer-
vantes, é justamente o humor gerador de toda a sua ambiguidade. Assim
Quixote e Sancho, Pantagruel e Panurge, combinam o sério e o cômico, o
real e o fantástico, a razão e a loucura, o sublime e o grotesco. Entretanto,
Bakhtin fala da “solidão particular de Rabelais” na tradição literária que se
seguiu: “impossível chegar a ele seguindo os caminhos que a criação artística
e o pensamento ideológico da Europa burguesa adotaram nos quatro sécu-
los que o separam de nós” (Bakhtine, 1970, p. 10).
É somente no século xx e fora da Europa, especialmente nos países da
América Latina e do Caribe, em regiões onde as tradições orais e folclóricas
estavam ainda vivas, que alguns romancistas reataram com o realismo gro-
tesco de Rabelais, dando um salto de séculos. Realmente, a herança cômica
de Rabelais é muito evidente na obra do brasileiro Mário de Andrade, autor
de Macunaíma [1928], e na do martiniquense Patrick Chamoiseau, cujo
primeiro romance é Chroniques des sept misères (1986). Nos romances des-
ses autores, podem-se observar determinados procedimentos inventariados
e analisados por Mikhaïl Bakhtin a propósito da obra de Rabelais: realismo
grotesco que privilegia as ações ligadas ao baixo ventre (digestivo e sexual),
uso de hipérbole e de enumerações, contato direto com o leitor, utilização
de contos populares, recursos à oralidade, jogos de linguagem, emprego de
apelidos para designar os personagens.
Para destacar esta nova floração do romance fora da Europa, Milan Kun-
dera prefere falar de um modo geral do “romance que está abaixo do trigé-
simo quinto paralelo, ou do romance do Sul: uma nova e importante cultura
romanesca caracterizada por um extraordinário senso do real ligado a uma

192
imaginação desmedida que ultrapassa todas as regras da verossimilhança”47
(Kundera, 1993, p. 43). Segundo Kundera, “embora um pouco estranha
para o gosto europeu (...) em nenhuma outra parte a velha seiva rabelaisiana
flui, nos dias de hoje, tão alegremente quanto nas obras de romancistas não
europeus” (Kundera, 1993, p. 45).
Os escritores da América Latina e do Caribe, sobretudo a partir dos
anos 1920, romperam com as estéticas retardatárias do naturalismo, do sim-
bolismo e do Parnaso ainda em vigor e aderiram às diferentes vanguardas:
futurismo, dada, esprit nouveau, surrealismo. Esta revolução artística produ-
ziu a negritude cesairiana, os diferentes indigenismos, o modernismo brasi-
leiro, e terminou nos anos 60 com o boom do romance hispano-americano.
O Caribe francófono não difere do Caribe de língua castelhana ou inglesa
neste campo já que todos se inserem no mesmo contexto de produção. Os
escritores sofrem as mesmas influências da realidade social, política e cultu-
ral, sem falar dos contatos e da interlocução com seus pares, independen-
temente da língua na qual escrevem. O humor que surgiu com as vanguar-
das – humor negro, paródia, carnavalização – seria compartilhado por um
grande número de escritores deste lado do Atlântico.
Assim, os autores que se inspiram neste riso popular, nos mitos, lendas e
contos, estão mais aptos a incorporar o humor rabelaisiano. Ao gozo da carne
podem se suceder momentos negativos porque, como diz Bakhtin, a estética
do realismo grotesco incorpora o ritmo cíclico da vida, que implica todas as
etapas das ações corporais, como a digestão, o ato sexual, o nascimento e a
morte. Basta lembrar o nascimento de Gargantua, saído pela orelha de sua
mãe, num capítulo onde todas as funções do ventre entram em ação.
Mário de Andrade encontra o núcleo de sua história, inclusive o nome
do herói Macunaíma, em uma coleção de mitos indígenas publicados pelo
etnógrafo alemão Koch-Grünberg. O autor paulista, que empreendeu simul-
taneamente um trabalho de etnografia, de musicologia e de criação literá-
ria, usou material recolhido em suas pesquisas de campo assim como em livros
sobre a Amazônia. Patrick Chamoiseau utilizou as tradições populares, contos

47
Sem querer questionar a pertinência e a acuidade de Kundera, que fala de romance do sul, eu diria
que a categoria não deveria talvez se definir em termos geograficamente determinados Norte-Sul, pois
o Sul compreende um mundo enorme e disparatado que não produz forçosamente este mesmo tipo
de literatura. Por outro lado, Antonine Maillet, que recebeu o Prix Goncourt com Pélagie-la-Charrette
em 1979 (Montréal: Bibliothèque Québécoise, 1990), embora venha do norte (Canadá), se insere
numa estética rabelaisiana.

193
e lendas sobre o dorlis, sobre Man Zabyme, sobre a jarra de ouro e sobre o
zumbi Afoukal, guardião da jarra de ouro, para criar seu livro Chroniques
des sept misères.
Os dois livros são construídos como um mosaico, uma colagem de con-
tos um pouco heteróclitos que adquirem um sentido no conjunto da obra.
Apesar de serem chamados, de forma genérica, de “romances”, ambos se
distinguem da forma canônica do romance devido a este aspecto de amál-
gama de contos populares. Em razão de seu caráter oral e cômico, inspi-
rado em cantadores do Nordeste, que improvisam seus cantos em forma
de duelos verbais, Mário de Andrade considera Macunaíma uma rapsódia.
Segundo Gérard Genette, a rapsódia é filha da paródia e vice-versa, por-
que no momento em que os rapsodos gregos cantavam os versos épicos, eles
introduziam, para entreter a audiência, pequenos poemas compostos com
os mesmos versos, mas cujo sentido era alterado a fim de divertir o público
(Genette, 1982, p. 23-27). O caráter épico e nacional – ainda que de maneira
paródica – está presente no projeto literário dos dois autores. Este aspecto
histórico-nacional está subjacente no título do livro de Chamoiseau, pois se
trata de uma crônica, termo que remete aos cronistas que produziam rela-
tos históricos. A rapsódia designa também “uma peça de composição muito
livre e de inspiração nacional e popular” (Le Petit Robert). O caráter musi-
cal é explicitado no fim de Macunaíma quando o narrador pronuncia suas
últimas palavras:
Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em
toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de
Macunaíma, herói de nossa gente (Andrade, 1978, p. 148)

Chamoiseau, por seu lado, com diferentes alter ego (Oiseau de Cham,
Chamzibié), apresenta-se em seus primeiros romances como etnógrafo. Em
Solibo Magnifique ele é o continuador da tradição oral.
Não, escritor não: escrevinhador, isto muda tudo, inspetor, o escritor é de um outro
mundo, ele rumina, elabora ou prospecta, o escrevinhador recusa uma agonia, a da
oralitura, ele recolhe e transmite (Chamoiseau, 1988, p. 159).

Esta oralitura, ou escritura da oralidade, dos dois escritores, deve trans-


mitir um ritmo que não é o da escrita, como observa Edouard Glissant: “na
elocução do falar crioulo encontramos a mesma marcação do ritmo do tambor.
Não é a estrutura semântica da frase que ajuda a escandir a palavra, é a respi-
ração do locutor que comanda a escanção: atitude de metrificação poética por

194
excelência” (Glissant, 1981, p. 239). Ora, considerando que “em crioulo,
marquer significa escrever mas corresponde também a marcar o ritmo no
batuque de atabaques (tambours-ka)” (Chamoiseau, Confiant, 1991, p.
190), que acompanham o contador de histórias, depreende-se a impor-
tância do ritmo musical nesta oralidade, apropriada por Chamoiseau.
Esta musicalidade manifesta-se também no nível da linguagem em
Macunaíma com muitas expressões rimadas, onomatopeias, aliterações,
canções, adivinhações: “Maanape atirava a sarabatana e Macunaíma aparava
os macucos macacos micos mutuns jacus jaós tucanos, todas essas caças”
(Andrade, 1978, p. 39). Em Chroniques há também algumas canções, mas a
maior parte – os gritos do djob, as palavras dos djobeurs,48 assim como a can-
ção de Kouli – foi eliminada do texto, figurando somente no fim do livro a
partir da segunda edição.
A musicalidade se encontra também nas enumerações, procedimento
tipicamente rabelaisiano, que tem um caráter cômico popular. Ancona
Lopez sublinha que Mário de Andrade tomou emprestado das narrativas
de Koch-Grünberg duas soluções estilísticas fundamentais: 1. a intensidade
verbal pela repetição (ex. Ele se põe a crescer crescer); 2. a mistura de ele-
mentos disparatados nas enumerações sem pausa, quer dizer, sem vírgula.
O primeiro procedimento é próprio do conto popular e, segundo Câmara
Cascudo, encontra-se em todo tipo de conto popular (Cascudo, [sd], p.
250), como nesta passagem de Chroniques: “O tempo passava, passava, pas-
sava, ele passava tanto que muitas vezes ele repassava” (Chamoiseau, 1986,
p. 193). Quanto à enumeração, ela também é utilizada por Chamoiseau,
com a diferença que ele coloca vírgulas entre os termos, como Rabelais,
aliás. Estas enumerações hiperbólicas tornam-se cômicas graças ao caráter
heteróclito, quiçá fantasioso, dos materiais listados, muito frequentemente
desconhecidos dos leitores.
Para expulsar o filho indesejável, Joubaré esgotou as reservas de óleo de rosa, de óleo
dos sete dons, de óleo de Jerusalém e de óleo do Espírito Santo. Ele desperdiçou um
pé de galinha preta que matou numa sexta-feira, uma pétala de flor de bambu, três
folhas de raiz forte, três flores de mamão macho, um maço de raiz de capim chei-
roso bento, dois copos de leite, quatro cabeças de cobra, e um baita molho de plan-
tas abortivas das mais secretas. Mas o embrião grudou feito o diabo nas entranhas de
Clarine (Chamoiseau, 1986, p. 60).

Djobeurs é uma palavra crioula que designa os biscateiros em geral e, neste romance, mais especifica-
48

mente, os que carregavam os produtos do mercado em seus carrinhos de mão; djob seria o trabalho.

195
Os dois autores se inscrevem em uma lógica do realismo mágico, incor-
porando os contos fantásticos e maravilhosos e transgredindo as regras do
realismo tradicional. O protagonista de Chamoiseau tem uma história bem
fantástica: Pipi, filho de dorlis,49 consegue falar com o zumbi que guarda o
jarro de ouro, mas é morto por Man Zabyme. De maneira análoga, Macu-
naíma vive num mundo mágico, porque ele se metamorfoseia e tem o poder
de transformar os objetos e as pessoas: criança travessa torna-se príncipe
sedutor para fazer amor com suas cunhadas; índio negro torna-se branco;
deixando sua Amazônia natal e chegando a São Paulo, deve lutar contra Ven-
ceslau Pietro Pietra, aliás, o gigante Piaimã; transforma o irmão em máqui-
na-telefone para encomendar mulheres e comidas; no fim do romance, ele
decide ir para o céu e virar constelação.
Ambos os romancistas praticam o realismo grotesco, cujos sinais carac-
terísticos mais marcantes são, segundo Bakhtin, “o exagero, o hiberbolismo,
a profusão, o excesso” (Bakhtine, 1970, p. 302). A gula e a escatologia, prin-
cipais marcas de Rabelais, são também exploradas. Macunaíma, como Pan-
tagruel, “fez coisas de sarapantar”:
Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de
mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na
velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imo-
ralidades estrambólicas e dava patadas no ar (Andrade, 1978, p. 7).

Chamoiseau utiliza a escatologia de maneira parcimoniosa, enquanto


em Mário de Andrade há inúmeros episódios, dos quais se pode citar o
do urubu, que faz suas necessidades sobre Macunaíma: “Macunaíma tre-
mia que mais tremia e o urubu sempre fazendo necessidade em riba dele”
(Andrade, 1978, p. 66). Por outro lado, é preciso admitir que ninguém
ultrapassa Rabelais em linguagem escatológica e licenciosidade.
O grotesco é criado pelo excesso, presente no episódio do inhame
gigante que Pipi consegue transportar: pesando 127 quilos e meio, o inhame,
objeto de olhares de admiração, fica exposto ao público e não será, portanto,
comido por ninguém. Podre, tornou-se uma massa cremosa cheia de vermes,
que exalava um odor fétido e teve de ser destruído pelo serviço municipal de

49
O dorlis designa uma espécie de feiticeiro que consegue penetrar nas casas das moças a fim de fazer
amor enquanto elas dormem. O zumbi, no imaginário antilhano, designa um morto-vivo, que não tem
vontade própria e está a serviço daquele que o subjugou, geralmente um pai de santo do vodu. A Man
Zabyme é uma espécie de sereia, que seduz os homens, levando-os para dentro d´água, onde os mata.

196
higiene com lança-chamas. O exagero aparece também no uso de números
hiperbólicos, o que é um procedimento bem rabelaisiano. O mulato Zozor
Alcide-Victor levava uma vida licenciosa, “fonte da infelicidade sentimental
de mil oitocentas e sete negras, quatrocentas sararás, seiscentas e cinquenta
mulatas, duas chinesas e uma cambada de morenas, pardas, branquelas e
mamelucas” (Chamoiseau, 1986, p. 122). Da mesma forma, este gênero
de enumeração encontra-se de forma reiterada em Macunaíma. Na cena da
macumba, o exagero dos suplícios infligidos, com a ajuda de Exu, ao ini-
migo do herói, o gigante Piaimã, chegaria ao sadismo não fosse o tom paró-
dico, que lhe confere comicidade.
Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse tomar banho salgado e fervendo e
o corpo de Exu fumegou molhando o terreno. E Macunaíma ordenou que o eu do
gigante fosse pisando vidro através dum mato de urtiga e agarra-compadre até as gru-
nhas da serra dos Andes pleno inverno e o corpo de Exu sangrou com lapos de vidro,
unhadas de espinhos e queimaduras de urtiga, ofegando de fadiga e tremendo de frio.
Era horroroso (Andrade, 1978, p. 62).

Bakhtin destaca a importância do riso como força regeneradora assim


como as grosserias, as imprecações e as blasfêmias. O riso “liberta não
somente da censura exterior, mas antes de tudo do grande censor interior,
o medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado, do poder, medo
enraizado no espírito do homem há milhares de anos” (Bakhtine, 1970, p.
101). Essa dessacralização tanto do poder religioso quanto do poder polí-
tico aparece em Chamoiseau e Andrade, quando colocam em ridículo o sta-
tus quo, através da inversão de valores. Basta mostrar o exemplo do bar Chez
Chinotte “o santuário de uma missa do rum” onde “nós comungamos com
o primeiro punch” (Chamoiseau, 1986, p. 82). Ou ainda o contra veneno
dos antigos amantes de Marguerite Júpiter, amedrontados com uma maldi-
ção que teria sido lançada por Pipi. “Eles usavam cuecas molhadas de água
benta e, sacrilégio Jesus-Maria-José, um terço amarrado no membro visado”
(Chamoiseau, 1986, p. 192). Na cena da macumba em Macunaíma tam-
bém existe sacrilégio quando o personagem de Tia Ciata recita “a reza maior
do diabo”.
Padre Exu achado nosso que vós estais no trezeno inferno da esquerda de baixo, nóis
te quereremo muito, nóis tudo! [...] O pai nosso Exu de cada dia nos dai hoje, seja
feita vossa vontade assim também no terreiro da sanzala que pertence pro nosso padre
Exu, por todo o sempre que assim seja, amén!... (Andrade, 1978, p. 62).

197
No mundo do realismo grotesco e da carnavalização, Macunaíma é o
Imperador da Floresta, Pipi é o Rei dos Djobeurs, assim como Pantagruel é
o Rei dos Dipsodos. Estes títulos de realeza funcionam como alcunhas em
combinação com outras: Macunaíma é também o herói sem nenhum cará-
ter, enquanto Pipi é um apelido formado a partir das primeiras sílabas de
seu nome: Pierre Philomène (Piphi que evolui para Pipi). Segundo Bakhtin,
“este nome-alcunha não é jamais neutro, porque seu sentido inclui sempre
uma ideia de apreciação (positiva ou negativa), é em realidade um brasão”
(Bakhtine, 1970, p. 455). Os nomes dos outros djobeurs são bastante revela-
dores: Didon, Sifilon, Pin-Pon, Lapochodé, Sirop, Bidjoule.
Quanto à sexualidade, o narrador de Solibo Magnifique diz, de maneira
satírica, que nem a negritude nem a antilhanidade – a saber, nem Aimé
Césaire nem Édouard Glissant – souberam explorar o amor e a sexualidade.
“Nossa pré-literatura foi de gritos, ódios, reivindicações, profecias para as
Auroras inevitáveis [...]. No final, nada de canto ao Amor. Nenhum canto
da trepada. A negritude foi castrada. E a antilhanidade não tem libido”
(Chamoiseau, 1988, p. 62).
Assim em Chroniques des sept misères, Chamoiseau introduz a sexualidade
de várias maneiras, que vão do realismo mágico ao realismo grotesco. A pri-
meira vez que o ato sexual é descrito, trata-se de um dorlis, personagem lúgu-
bre que consegue penetrar em casas e em mulheres por meios sobrenaturais,
quando as casas estão fechadas e as mulheres dormem. “Aplicando sua nova
ciência de dorlis, ele a penetrou no seu interior sem acordá-la, e passou sobre
o corpo adormecido oito horas deliciosas” (Chamoiseau, 1986, p. 34).
O mais engraçado, contudo, encontra-se nas explicações sobre métodos
de (re)agir e impedir os ataques do dorlis, como usar “uma calcinha preta
no avesso” (ou duas, e além disso, tesoura aberta debaixo do travesseiro, de
acordo com o poder do dorlis). Os métodos de agir do dorlis variam: “Per-
de-se em conjecturas para saber se ele praticava o do sapo escondido debaixo
da cama, o da formiga que passa pela fechadura, ou o do três passos pra
frente-três passos pra trás que permite atravessar as paredes” (Chamoiseau,
1986, p. 34).
O herói do livro, Pipi, é fruto de uma noite de amor entre um dorlis e
a pobre Heloísa, vítima passiva do ato sexual. Por ser filho de dorlis, é um
rapaz soturno, destinado à morte, como profetiza seu pai: ele saberia falar
com a jarra (que continha riquezas enterradas, conforme a lenda), mas seria
engolido pela Bela. Seu amor por Anastase não se realiza; ele apenas consegue

198
gaguejar frases incongruentes diante dela. O único período feliz de sua vida
é aquele em que vive junto com Marguerite Jupiter, dividindo com ela um
amor plenamente satisfeito. A descrição das acrobacias sexuais do casal, com
uma lógica do excesso e do transbordamento, é simetricamente oposta à do
ato sexual do dorlis, que se passa no silêncio e na passividade da mulher. A
passagem, digna da melhor tradição rabelaisiana, é longa mas necessária para
se perceber os diferentes aspectos deste erotismo desenfreado, desmedido: a
gordura de Marguerita, a variação de posições, a repetição do ato, o excesso
de prazer expresso pelos gritos da mulher, assim como o aspecto mágico do
efeito do chá que Pipi toma para ficar em forma a fim de transar e também
o efeito cinematográfico da cena, assistida por cinco voyeurs – os ex-amantes,
enciumados, mas admirados deste novo amante tão viril e performático.
Sem imaginar que eles estavam sendo espionados, Pipi e Marguerite passavam noites
esportivas num amor sem freios. Depois de beber o chá de bois-bandé, Pipi labutava
com afinco, quase enterrado nas dobras generosas de sua amante. Quando a velha
cama crioula, fraquejando debaixo desta terna capoeira, rangeu a ponto de acordar
as crianças, o casal deixou a casa para experimentar sob o céu estrelado, apoiado nas
fachadas, nas estacas do galinheiro ou nas tábuas do chiqueiro, as ginásticas do amor
vertical.(...) Ao relento Marguerite dava gritos histéricos, agonizava e morria cada
noite de prazer (Chamoiseau, 1986, p. 189).

Esta cena tem analogias com uma outra de Macunaíma, na qual o


herói-criança se transforma em adulto para fazer amor com sua cunhada.
O marido traído, duvidando dos artifícios, assiste às acrobacias sexuais dos
amantes. A violência sexual, de fundo mítico, exacerba por sua vez o desejo
e o prazer. O caráter lúdico está presente nesta ginástica desregrada, assim
como no uso do verbo “brincar” para designar o ato sexual. Além disso,
“brincar” e “eu estou com preguiça!”, são as duas expressões emblemáti-
cas do herói, confirmando a associação feita por Georges Bataille entre ero-
tismo e ócio.
Depois de brincarem três feitas, correram mato fora fazendo festinhas um pro outro.
Depois das festinhas de cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia,
depois se queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas. (...) Quando
a moça chegou também no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu
(Andrade, 1978, p. 11).

Os dois personagens, Pipi e Macunaíma, terminam no fim do romance


com uma morte parecida: atraídos por uma mulher aquática, de grande
beleza (Man Zabyme e Uiara, respectivamente versão crioula-antilhana e

199
indígena-brasileira da sereia), que querem “comer” no sentido figurado de
fazer amor, eles são literalmente comidos. O caçador viril torna-se a caça (o
caçador caçado). A fabulação nos dois casos é de ordem mítica, porque as
entidades sobrenaturais se vingam dos dois homens que ousaram enfren-
tá-las. “[Pipi] entendeu que Man Zabyme, nossa mais terrível diaba, a que
te queima o coração com o encanto do amor antes de te comer realmente,
uivando de prazer sobre teu peito aberto, acabava de carregá-lo” (Chamoi-
seau, 1986, p. 239). Se Man Zabyme se vinga de Pipi, porque ele soube falar
com a jarra, Vei, a Mãe-Sol, se vinga de Macunaíma que não quis se casar
com uma de suas filhas. Macunaíma tenta resistir à sedução de Uiara, mas a
carne é muito fraca e ele sucumbe aos seus atrativos:
Que boniteza que ela era!. . . Morena e coradinha que nem a cara do dia e feito o dia
que vive cercado de noite, ela enrolava a cara nos cabelos curtos negros como as asas
da graúna [...] Macunaíma sentiu fogo no espinhaço, estremeceu, fez pontaria, se
jogou feito em cima dela, juque! (Andrade, 1978, p. 62).

Quando ele tenta sair da água “estava sangrando com as mordidas pelo
corpo todo, sem perna direita, sem os dedões sem os cocos-da-Bahia sem ore-
lhas sem nariz sem nenhum dos seus tesouros” (Andrade, 1978, p. 143). Exces-
sivamente desgostoso para continuar a viver, decide partir para o céu. O fim dos
dois heróis é melancólico: Macunaíma se transforma na constelação da Ursa
Maior, cujo brilho é inútil e Pipi desaparece – e com ele, todo o seu mundo de
djobeurs. Nos dois livros fica apenas o narrador para contar a história.
O narrador, alter ego do próprio escritor, remete ao contador popular.
Walter Benjamin distingue os dois tipos de narrador: o romancista, escre-
vendo na solidão do seu escritório não tem contato com o leitor, enquanto
que o contador se dirige às pessoas para trocar sua experiência, lhes dar
conselhos e lhes transmitir um conhecimento. Chamoiseau e Andrade evo-
cam nos seus livros o contador popular, que fala a interlocutores imaginá-
rios – como se estivesse presente diante deles –, por isso o emprego do voca-
tivo “Messieurs et dames de la compagnie” que prolifera em Chroniques des
sept misères, e “minha gente”, de Macunaíma, assim como os dêiticos: “E o
homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso
que vim aqui” (Andrade, 1978, p. 148). Este narrador irreverente procede
como o narrador da gesta rabelaisiana, que interpela o leitor diversas vezes
com vocativos do tipo: “Bonnes gens, Beuveurs tresillustres, et vous Gout-
teuz tresprecieux...” (Rabelais, 1993, p. 37).

200
No que se refere à língua, há uma certa semelhança entre a situação de
diglossia nas Antilhas e a da França no século xvi, com a coexistência de
duas línguas: o latim, língua escrita por excelência, e o francês, língua ver-
nácula falada, língua “da vida, língua dos gêneros inferiores (fábulas, farsas,
cris de Paris, etc. na sua maioria cômicos); ela era, enfim, a língua do livre
falar da praça pública” (Bakhtine, 1970, p. 462). Subalterna como o crioulo,
para tornar-se língua literária, o francês teve que passar por um processo de
defesa representado pela política linguística da Pléiade, cujo livro emblemá-
tico é La défense et l’illustration de la langue française de Du Bellay. O Renas-
cimento, segundo Bakhtin, “marca o fim da dualidade das línguas e a substi-
tuição linguística. Muito do que foi possível nesta única e excepcional época
da vida da literatura francesa e da língua tornou-se impossível em todas as
épocas posteriores” (Bakhtine, 1970, p. 461). Há, pois, uma analogia com
a situação das Antilhas: o crioulo continua como língua da família, do tra-
balho no campo, da intimidade e dos “gêneros inferiores”, como os contos,
as adivinhas e as canções. Entretanto, é preciso destacar uma diferença fun-
damental: a literatura antilhana, que se consagra nos centros de legitimação
como Paris, está sendo escrita em francês. Assim, a oralidade crioula que ali-
menta os romances de Patrick Chamoiseau tende a desaparecer – como ele
mostra, aliás, com uma certa nostalgia em Solibo Magnifique – e não se dará
a substituição, criando uma literatura em língua crioula, como as línguas
vernáculas europeias fizeram a partir do século xvi.
O conflito linguístico é representado de maneira paródica e também satí-
rica por dois interlocutores antagônicos, que não conseguem se compreender:
de um lado, Aimé Césaire, poeta da negritude e prefeito de Fort-de-France,
transformado em personagem, do outro lado, Pipi, djobeur inculto, que res-
munga, balbucia, porque só fala o crioulo. Pipi, o milagroso jardineiro, que
tinha tido um formidável sucesso com sua horta, não compreende as pergun-
tas do prefeito, que quer conhecer a motivação de seu trabalho.
Algo semelhante acontece no Brasil, como mostrou Roger Bastide num
artigo publicado em 1946, no qual ele estabelece um paralelismo entre o
trabalho de Mário de Andrade, o de Rabelais e o de Du Bellay. O projeto
dos modernistas era de tornar literária a língua de todos os dias, a língua que
era falada pelos brasileiros, sem se submeter ao modelo português. No capí-
tulo intitulado “Carta às Icamiabas”, paródia da língua pedante e retórica,
que ainda era utilizada por certos escritores no início do século, Macunaíma

201
faz um verdadeiro inventário etnográfico de todos os usos bizarros da civili-
zação às suas amigas Amazonas. A originalidade linguística do país é assim
explicada por Macunaíma/Mário de Andrade:
Nas conversas, utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário (...).
Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra,
logo que tomam a pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino,
de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer
de um panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de
Camões! (Andrade, 1978, p. 78).

Essa língua impura falada pelos paulistanos remete àquela que o narrador
diz ter utilizado para escrever seu livro “cantando na fala impura as frases e os
casos de Macunaíma” (Andrade, 1978, p. 148). A voz de Macunaíma na carta
às Icamiabas se identifica com a voz do autor, que, aliás, confessa alegremente
ter praticado o plágio mais desavergonhado, uma vez que copiou passagens
inteiras de determinados escritores (Rui Barbosa, Coelho Neto). Assim, pas-
tiche, paródia, sátira se juntam para subverter a situação linguística.
Entretanto, não se deve cair na armadilha de pensar que Mário de
Andrade e Patrick Chamoiseau escrevem na língua falada, o que certamente
é irrealizável, tendo cada uma – língua escrita e língua oral – sua própria gra-
mática. Não se trata de uma língua real, efetivamente falada, mas de uma
estilística da oralidade ou, como escreveu Mário de Andrade em uma carta a
Rosário Fusco em 1928, Macunaíma é escrito “em língua artificial, como é
de fato toda língua escrita”, acrescentando que ele fez “uma estilização lírica
puramente individualista da fala brasileira” (Andrade, 1978, p. 266). Isso
corresponde ao “français chamoisisé”, expressão criada por Milan Kundera
para designar a língua utilizada por Chamoiseau, o qual se apropria de uma
certa poética do crioulo sem, no entanto, escrever em francês crioulizado ou
crioulo afrancesado, ou coisa que o valha.
Esta língua livre pode recorrer a expressões sem significação clara,
somente pelo prazer de uma sonoridade, de um gracejo, de um jogo de pala-
vras, de um coq-à-l´âne, que é, segundo Bakhtin, “uma espécie de recriação
de palavras e de coisas deixadas em liberdade, livres da opressão do sentido,
da lógica, da hierarquia verbal” (Bakhtine, 1970, p. 420). Rabelais brinca
com a linguagem com uma verve, uma irreverência, uma satisfação lúdica
levada ao exagero. Em Pantagruel, há algumas cenas antológicas: a do éco-
lier limousin confuso entre duas línguas (seu patuá natal e o latim que ele
não domina), a do encontro de Panurge, que fala a Pantagruel em 14 línguas

202
diferentes (das quais o leitor somente compreende duas ou três), a das listas
de livros, a das cartas de Grandgousier e tantas outras.
Em Macunaíma e Chroniques... as frases sem significação remetem em
geral ao mundo indígena, à fauna e à flora locais, ao quimbois50 e às recei-
tas mágicas. Exemplo de frase sem significação repetida por Macunaíma:
“Tetápe, dzónanei pemonéite hêhê zeténe netaíte” (Andrade, 1978, p. 91).
Desde a experiência revolucionária dos modernistas em geral, e em parti-
cular de Mário de Andrade, o português do Brasil tornou-se mais flexível,
permitindo a eclosão de escritores como Guimarães Rosa. Entretanto, este
livro permanece único: Mário de Andrade temia que as gerações posterio-
res tomassem Macunaíma como modelo a ser imitado, mas tal não aconte-
ceu. Já em Chroniques... passagens em crioulo, sem tradução, são acrescenta-
das no fim do romance em forma de paratexto: os gritos do djob e a canção
de Kouli. O leitor francês fica um pouco confuso sobretudo diante da con-
taminação do francês pelo crioulo, da liberdade no uso da língua oral, prá-
tica que não se inscreve na tradição literária francesa, com algumas exceções
como Louis-Ferdinand Céline e Raymond Queneau.
A tradução deste gênero de romance implica muitos problemas. Jacques
Thiériot enfrentou o desafio de traduzir Macunaíma, o que é um verdadeiro
esforço, exigindo uma transcriação. Publicou a primeira tradução em 1979
e fez uma revisão para a edição crítica de 1996, edição que recebeu vários
artigos que ajudam a elucidar o romance para os leitores franceses. O caráter
rabelaisiano do livro foi colocado em evidência pelo trabalho da tradução,
cujos principais procedimentos consistem no uso de termos arcaicos: aigue
no lugar de eau, bren no lugar de excréments, papegai no lugar de perroquet,
foultitude de/moult em vez de beaucoup; no estilo das frases: “Dès la prime
enfance, il fit des choses bien épouvantables” (Andrade, 1996). Por outro
lado, o uso de certas palavras caribenhas aproxima Mário de Andrade de
Patrick Chamoiseau e de outros escritores antilhanos: ajoupa, carbet, tafia,
et cric! Outras expressões, se bem que existentes em francês, foram coloca-
das em circulação particularmente por romancistas antilhanos: dame-jeanne,
cochoncetés, mauvaisetés. A ortografia fonética introduzida por Queneau, uti-
lizada por Chamoiseau, é empregada pelo tradutor de Macunaíma: ouisqui
no lugar de whisky, bisenesse no lugar de business.

50
Quimbois designa, nas Pequenas Antilhas de língua francesa, as práticas de medicina tradicional
africana, associadas também à feitiçaria; quimboiseur é a pessoa que o pratica.

203
A obra literária de Mário de Andrade e de Patrick Chamoiseau, apesar de
separada por mais de meio século de distância, tem semelhanças devido a seu
caráter ao mesmo tempo sacralizante e dessacralizante. Segundo Édouard Glis-
sant, a função de dessacralização é uma “função de heresia, de análise inte-
lectual, que é de desmontar as engrenagens de um sistema dado, de colocar
a nu os mecanismos fechados, de desmistificar” (Glissant, 1981, p. 192).
Este lado dessacralizador passa sobretudo pelo riso, que se opõe à cultura
oficial, ao tom sério do poder político e religioso. Os políticos, a televisão,
a imprensa, a polícia, enfim, todo o mundo da ordem torna-se objeto da
sátira e é ridicularizado. A façanha agrícola de Pipi, o jardineiro-milagroso,
é disputada por uns e por outros.
Os partidos políticos independentistas e outros bandos de negros revoltados concede-
ram-lhe medalhas, convidaram-no para encontros em que, da tribuna de honra, ele
escutava pacientemente discursos incompreensíveis (Chamoiseau, 1986, p. 199).

Ambos os autores se nutrem da cultura cômica popular, constituída de


“festejos públicos do carnaval, ritos e cultos cômicos especiais, bufões e sots,
gigantes, anões e monstros, palhaços de natureza e condições diversas, lite-
ratura paródica vasta e variada” (Bakhtine, 1970, p. 12). Entretanto, a obra
desses dois autores tem também um caráter sacralizante, concebido por Glis-
sant como uma “função de reunião da comunidade em torno de seus mitos,
de suas crenças, de seu imaginário ou de sua ideologia” (Glissant, 1981, p.
192), na medida em que, apropriando-se da cultura popular, normalmente
abandonada como objeto folclórico, e incorporando-a à literatura nacional,
o escritor legitima as tradições. O papel do escritor destas novas literaturas
nacionais é assim duplo, porque ele deve “aliar o mito à desmistificação, a
inocência à malícia adquirida” (Glissant, 1981, p. 192).

204
patrick chamoiseau e jorge amado:
por uma estética popular

Comment écrire la parole de Solibo? (...) écrire l’oral n’était


qu’une trahison, on y perdait les intonations, les mimiques, la
gestuelle du conteur.
patrick chamoiseau

Patrick Chamoiseau, em seu romance Texaco, que recebeu o prêmio


Goncourt em 1992, se refere a esses “obscuros brasileiros [que] renegam
Jorge Amado” (Chamoiseau, 1992, p. 313). Esta referência/reverência do
autor antilhano a Amado nos remete ao romance Tenda dos milagres, no qual
é preciso que venha um professor dos Estados Unidos para que os brasilei-
ros descubram a obra de Pedro Archanjo, estudioso do folclore e dos costu-
mes populares da Bahia. Jorge Amado, o escritor brasileiro mais lido e tra-
duzido, é menosprezado pela academia, o que o leva, talvez, a parodiar este
desprezo através de seu personagem Pedro Archanjo. Como ele, Amado se
devota ao conhecimento e à divulgação das práticas políticas e culturais
das classes populares, seja em sua fase “comunista”, seja posteriormente em
sua fase mais “culturalista”. Chamoiseau, admirador de Rabelais e provavel-
mente de Amado, também se torna o etnógrafo das classes populares cari-
benhas em seus três primeiros romances: Chronique des sept misères (1986),
Solibo Magnifique (1988) e Texaco (1992).
Se compararmos Jubiabá [1935] a Chronique des sept misères, produ-
zido cinquenta anos depois na Martinica, podemos constatar que há mui-
tos pontos comuns: em ambos os romances o autor descreve personagens
pobres, possuidores de uma cultura popular, que vivem de pequenos bis-
cates, um pouco à margem da sociedade capitalista. Os personagens são
conhecidos por apelidos, o que é bem típico da estética popular.
Antônio Balduíno, vulgo Baldo, criado no Morro do Capa-Negro por
sua tia Luísa, admira Zé Camarão, malandro que tinha para o menino duas
virtudes: “era valente e cantava ao violão histórias de cangaceiros célebres”
(Amado, 1984, p. 26). É com ele que Baldo aprende a jogar capoeira, a
tocar violão e a compor. Zé Camarão pode ser comparado aos contadores de
histórias (conteurs) tão presentes na obra de Chamoiseau, dentre eles Solibo
Magnifique, que dá nome a um de seus romances. Zé Camarão “cantava

205
tiranas, cocos, sambas, cantigas saudosas, canções tristes que enchiam os
olhos d’água, e abc aventurosos que deliciavam Antônio Balduíno” (Amado,
1984, p. 30). Em tom mais nostálgico, Solibo Magnifique morre no início
do romance e, a partir daí, ele “só existe (...) em um mosaico de lembranças,
e seus contos, suas adivinhas, suas piadas de vida e de morte, tinham-se dis-
solvido em consciências frequentemente embriagadas” (Chamoiseau, 1986,
p. 26), ou seja, suas performances serão rememoradas pelos que o conhece-
ram. A permanência se fará pelo trabalho da escrita do narrador, mas esta já
terá um outro caráter.
O contador de histórias nas Antilhas é acompanhado pelo ritmo dos
tambores, numa interação com o público que participa, respondendo com as
formas de cric crac, misticric, misticrac. Nos dois primeiros romances de Cha-
moiseau, como em Jubiabá, de Amado, alguns textos poéticos populares são
incorporados à narrativa e outros são anexados no final, em forma de para-
texto ou epílogo. A capoeira, forma de luta de origem africana, combatida
tanto no Brasil quanto nas Antilhas, que se transforma em luta-dança, tem
também sua versão antilhana na laghia, que aparece na obra de Chamoiseau.
Antônio Balduíno criança tinha medo do feiticeiro Jubiabá que, segundo
a crença popular, virava lobisomem. No entanto, após a internação em asilo
de loucos e posterior morte de tia Luísa, Jubiabá torna-se o pai simbólico
de Balduíno. É sempre com o velho que Baldo vai-se consolar, pedir conse-
lhos e ajuda. No capítulo intitulado “Macumba”, Amado descreve uma ceri-
mônia, assim como o faz em outros romances como Mar morto e Tenda dos
milagres, algo bastante raro na literatura brasileira.51 O sincretismo do culto
afro-brasileiro é assinalado:
No altar católico, que estava num canto da sala, Oxóssi era São Jorge; Xangô, São
Jerônimo; Omolu, São Roque e Oxalá, o Senhor do Bonfim, que é o mais milagroso
dos santos da cidade negra da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiabá.
É o que tem a festa mais bonita, pois a sua festa é toda como se fosse candomblé ou
macumba (Amado, 1984, p. 107).

A esta cerimônia assistia um homem branco, um estrangeiro, que “vivia


correndo o mundo” e que “se despediu depois de dizer a Jubiabá que aquilo
fora a coisa mais bonita que ele já vira” (Amado, 1984, p. 108). Muitos
estrangeiros assistem às cerimônias de candomblé na Bahia; no entanto, não

51
João Ubaldo também descreve cenas de macumba/candomblé em Viva o povo brasileiro, assim como
o fizera Mário de Andrade em Macunaíma, este em registro paródico.

206
se pode deixar de lembrar a figura iluminada de Pierre Verger, antropólogo
e fotógrafo francês, que se iniciou no candomblé, onde recebeu o nome de
Fatumbi, tornando-se o maior estudioso das religiões afro-brasileiras e das
relações Brasil-África. Verger, assim como Jorge Amado, cantores, composi-
tores e outros membros das elites baianas, muito contribuíram para o desa-
parecimento dos preconceitos racistas contra esta religião. O candomblé é
visto de maneira positiva nos textos de Amado, que era iniciado no candom-
blé: Jubiabá ajuda a ricos e pobres, brancos e negros; pessoas de todos os
cantos de Salvador vêm pedir-lhe trabalhos, despachos, para todos os tipos
de males. Não havendo vodu na Martinica, o que resta dos cultos afro-ame-
ricanos são vestígios, na forma do quimbois. Glissant afirma que o quimboi-
seur (feiticeiro) e o marron (negro fugido) deveriam ter sido os heróis natu-
rais da Martinica, o que acabou não acontecendo pois eles se transformaram
naquilo que os colonizadores brancos afirmaram que eles eram: o feiticeiro
tornou-se um charlatão e o negro fujão se tornou um bandido. Entretanto,
o quimboiseur é “o sacerdote, o ideólogo, o inspirado”, ele é “o depositário
de uma grande ideia, a da manutenção da África, e por conseguinte, de uma
grande esperança, a do retorno à África” e, neste sentido, “sua medicina é
cultural” (Glissant, 1981, p. 105). Não por acaso, é Jubiabá quem fala às
pessoas sobre os horrores da escravidão e a rebelião de Zumbi dos Palmares;
ele é a memória da comunidade, o sacerdote e o mestre.
Antônio Balduíno pode ser comparado a Pipi, de Chroniques des sept
misères: ambos os personagens, apesar de serem biscateiros pobres, tor-
nam-se por força de sua malandragem, esperteza, inteligência, os reis do
pedaço. Balduíno aos 15 anos é o “imperador da cidade”, seguido de “sua
guarda de honra”, ou, para os que passavam indiferentes, eles eram apenas
“um grupo de meninos negros, mulatos e brancos, que mendigam” (Amado,
1984, p. 66). Pouco depois, tem um meteórico sucesso como lutador de
boxe, mas “sua carreira de boxeur terminou no dia que Lindinalva ficou
noiva” (Amado, 1984, p. 127). Faz uma rápida incursão pelo mundo do tra-
balho nas plantações de tabaco em Cachoeira. Após esfaquear um homem
por ciúme, foge pelo mato e consegue, gloriosamente, escapar de um bando
que o perseguia. Passa por um circo, no qual tenta retomar sua carreira de
boxeador. Desfeito o circo, volta para a malandragem de Salvador, onde
vende seus sambas a compositores de sucesso, inclusive um abc de Zumbi
dos Palmares. Ele é o centro de atenções no criouléu “O Liberdade”, o rei
das mulatas, que ele ama no cais.

207
Pipi também torna-se o “rei dos biscateiros (djobeurs)” a partir do
momento em que houve uma competição para escolher quem iria car-
regar em seu carrinho de mão o inhame-gigante de 127 quilos. Ele foi o
mais rápido e chegou primeiro, ganhando assim o direito de levar o tal
inhame monstro. Sua foto aparece no jornal, o que lhe angariou o maior
sucesso. Mais tarde tornou-se o “jardineiro-milagre” ao fazer a melhor horta
da cidade, onde cresciam com exuberância todos os legumes e verduras.
Devido à sua fama, foi exibido em todos os comícios das “organizações
anticolonialistas do país” (Chamoiseau, 1986, p. 200). Glória suprema, foi
apresentado ao prefeito da cidade, o poeta Aimé Césaire, aparecendo inclu-
sive na televisão. Após este encontro, do qual Pipi saiu traumatizado, já que
ele não conseguiu se comunicar com o prefeito (Césaire falava francês, Pipi
falava crioulo), o romance narra a derrocada de Pipi.
O centro de gravitação de Chronique des sept misères é o bar “Chez Chi-
notte”, da mesma forma que em Jubiabá o ponto de encontro é a “Lanterna
dos Afogados”, onde o álcool corre solto. É no bar que os homens se reúnem
para beber, conversar, contar histórias; é na noite que eles buscam mulheres
para se divertirem. Balduíno, homem de muitas mulheres, nunca se esquece
de Lindinalva, a menina branca que conhecera em sua infância; foi para
sustentar o filho dela que ele se tornou operário, vindo inclusive a partici-
par de uma greve geral. Pipi é homem de amores fortes, paixões avassalado-
ras. É nos braços de uma espécie de sereia do Caribe, a diaba Man Zabyme,
que Pipi desaparece. O rum e a pinga, os cantos e contos, o prazer e a dor, o
riso e o choro, a vida e a morte: estes os elementos vitais da obra desses dois
escritores que não têm medo de falar do corpo.
Bakhtin, ao estudar a obra de Rabelais, demonstra a importância da car-
navalização, que implica a inversão de valores, a dessacralização do sagrado e
a entronização do profano. Exemplo desta dessacralização estaria, por exem-
plo, na linguagem empregada por Chamoiseau em Chroniques des sept misè-
res, em cujo bar “Chez Chinotte” se reza a “missa do rum” (Chamoiseau,
1986, p. 92), em que todos comungam. Bakhtin observa que o “rebaixa-
mento é o princípio artístico essencial do realismo grotesco: todas as coisas
sagradas e elevadas são assim reinterpretadas no plano material e corporal”
(Bakhtine, 1970, p. 368). Os pobres, biscateiros ou operários, malandros ou
trabalhadores, ou seja, aqueles que ocupam posições subalternas, tornam-se
na obra de Amado e Chamoiseau, na esteira da tradição rabelaisiana, em reis
e rainhas, mesmo que num mundo à margem do poder econômico e social.

208
Neste mundo popular, as atividades ligadas ao baixo ventre – a sexual e a
digestiva – estão explicitadas sem o falso pudor burguês. O rum e a pinga
servem para soltar a língua, liberar as paixões, fazer esquecer as dificulda-
des de um cotidiano sofrido. É portanto no bar, no mercado, no cais, nas
ruas, enfim, na praça pública, que tudo se desenvolve. Não é no recôndito
do lar, como no romance clássico balzaquiano, em que se exploram as ambi-
ções dos arrivistas, as paixões adúlteras, os conflitos de classes, a psicologia
dos personagens. Aqui é a vida popular, com sua riqueza de formas cultu-
rais, pouco valorizadas pela sociedade, que pulsa.
O riso é a força regeneradora que restaura as energias populares, elimina
o medo e afasta o sofrimento. Bakhtin afirma que o riso “liberta não só da
censura exterior mas antes de mais nada do grande censor interno, do medo
do sagrado, da proibição autoritária, do passado, do poder, medo enraizado
no espírito do homem há milhares de anos” (Bakhtine, 1970, p. 101). Tanto
Amado quanto Chamoiseau usam a paródia como recurso para provocar o
riso e inverter as situações dadas como imutáveis. Se Amado não usa a paró-
dia em sua primeira fase, em sua fase mais tardia poder-se-ia dizer que ele até
abusa: em Jubiabá predomina um tom levemente épico, com pinceladas de
lirismo, enquanto em Tenda dos milagres a paródia é o traço marcante. Cite-
mos a apresentação de Levenson, o professor americano que vem à Bahia e
faz com que os brasileiros descubram a obra de Pedro Archanjo:
Tudo começou com a chegada ao Brasil do famoso James D. Levenson, um dos cinco
gênios do nosso século, segundo a Enciclopédia Britânica: filósofo, matemático, soció-
logo, antropólogo, etnólogo, muita coisa mais, professor da Columbia University, Prê-
mio Nobel de Ciência, tudo isso e, como se não bastasse, norte-americano (Amado,
1998, p. 16. Grifos do autor).

Chamoiseau usa a paródia para criticar vários traços da sociedade anti-


lhana, assim como Amado o faz em Tenda dos milagres; ambos misturam per-
sonagens fictícios a personagens reais para reforçar o aspecto satírico. Cha-
moiseau, ao colocar lado a lado Pipi e Aimé Césaire, destrona o grande poeta
e prefeito da cidade de Fort-de-France, inserindo-o num diálogo irrisório,
cômico, ao mesmo tempo que satiriza a televisão francesa que noticia o encon-
tro, traduzindo para o francês a frase dita em crioulo por Pipi. Instado pelo pre-
feito a explicar as razões que o motivaram a plantar a horta, Pipi responde:
Ebyen misié limè, séti manmay la té fin, danne!...
Frase que no primeiro jornal televisivo da noite, depois das notícias sobre a região
[francesa] Loir-et-Cher, o apresentador de plantão traduziu por: Monsieur le Maire,

209
les enfants avaient tellement faim!... Foi por isto que na feira, durante um punhado de
tempo, todo mundo pensou que Pipi era doutor na língua da França (Chamoiseau,
1986, p. 201).

A questão linguística ocupa um lugar de destaque na obra de Chamoi-


seau, já que a Martinica vive uma realidade de diglossia – coexistência de
duas línguas, o francês, língua de prestígio, escrita, e o crioulo, língua da
intimidade do lar, dos contos crioulos, da tradição oral, considerada língua
subalterna. Usando uma estilística baseada na oralidade, Chamoiseau criou-
liza o francês, ou emprega frases diretamente nesta língua, como na citação
a que fiz referência. Jorge Amado não teve que se defrontar com tal pro-
blema mas, herdeiro da tradição modernista, ele prefere usar a linguagem
coloquial, fazendo apelo a diálogos em língua popular, que contêm “erros”
de português:
Vosmecês sabem o que ele fez com o velho Zequiel? Pois foi coisa de arrepiar o
cabelo... Vosmecês sabem que o velho era homem direito... Homem sério até ali. Eu
conheci ele muito, trabalhamo junto de pedreiro (Amado, 1984, p. 33).

Amado também incorpora frases em nagô quando mostra cenas de can-


domblé, já que se trata de uma língua religiosa na Bahia, conservada atra-
vés das práticas culturais. Como diz Edouard Glissant, o negro escravo é o
“migrante nu” porque ao aqui chegar ele não traz nada de material, nenhum
instrumento de trabalho, de religião ou de cura medicinal. Para restabele-
cer sua cultura, ele só teve a memória; ele trabalhou com pedaços de memó-
ria, portanto, com vestígios, a sua integridade foi abalada pelo transplante e
pelo corte com os elementos de seu passado. Glissant explica que o migrante
“recompõe por vestígios uma língua e artes que se poderia dizer válidas para
todos” (Glissant, 1996, p. 16), citando como exemplos o jazz, o crioulo anti-
lhano, bem como uma generalizada crioulização das culturas e das línguas
naquelas regiões em que se deu o contato entre negros e brancos (zona das
plantations). O nagô, que irrompe no texto do autor, é um vestígio conser-
vado que permite ao oficiante Jubiabá realizar o seu culto afro-brasileiro.
O candomblé na literatura brasileira aparece como cerimônia, como
cura para males do coração ou do corpo, mas curiosamente, embora se trate
também de magia, não enseja o aparecimento de tantos traços de realismo
mágico como na literatura antilhana. Em Jubiabá um lobisomem é visto no
morro por alguns, desaparecendo após um despacho do velho pai de santo;
curas milagrosas são realizadas e paixões avassaladoras são também atadas no

210
terreiro do candomblé. Tudo isso é, porém, tratado rapidamente, sem o der-
ramamento barroco do Caribe. A concepção mágica de Pipi é descrita em
várias páginas, com a história do avô coveiro (Phosphore) e do pai (Anato-
le-Anatole), criado no cemitério, e de como o coveiro transformou o filho
num dorlis.
Chamoiseau pratica o realismo maravilhoso como outros escritores do
Caribe, tal como fora formulado pelo cubano Alejo Carpentier em 1948
no prefácio ao romance O reino deste mundo. Seguindo esta estética mági-
co-popular, Chamoiseau dá receitas de medicina popular, de produtos afro-
disíacos, de magias, como por exemplo, receitas para evitar a ação erótica
noturna dos dorlis.
Jorge Amado vem de uma outra escola: pertencente à geração moder-
nista do Nordeste, que teve como lume Gilberto Freyre, ele pratica o rea-
lismo do romance social de 1930. Além desta tendência mais abrangente
da literatura brasileira, Amado, por suas posições ideológicas e suas liga-
ções com o Partido Comunista Brasileiro, tinha fortes razões para praticar
o realismo socialista (o que ele fez mais raramente). Assim, apesar de for-
temente enraizado na cultura popular, Amado conserva nos romances dos
anos 1930/1940, um certo engajamento que às vezes atrapalha um pouco a
construção romanesca. Em Jubiabá, no final do romance, há uma guinada
na narrativa com a transformação do malandro Antônio Balduíno em ope-
rário, no momento em que fazem uma greve geral de trabalhadores em Sal-
vador. No entanto, é preciso ressaltar que, independentemente de posições
ideológicas, o realismo maravilhoso, que tanto sucesso fez entre os roman-
cistas hispano-americanos do chamado boom, não contagiou a literatura
brasileira, com algumas exceções, dentre as quais se pode citar a obra de
J. J. Veiga. Por outro lado, apesar de ter começado a escrever nos anos 80,
portanto bem distante da arte engajada dos anos 30, é clara a preocupação
social de Chamoiseau, o que faz um certo contraste com o tom mágico de
seus romances. Ele se refere à educação das crianças, feita em francês e extre-
mamente voltada à cultura da França; à crise da produção agrícola local
(cana, banana, abacaxi); à emigração dos antilhanos em direção à metró-
pole; à miséria (Chamoiseau, 1986, p. 140).
Apesar desta diferença de realismos, define-se na obra de ambos os
escritores uma estética claramente popular, com uma opção bem clara pela
descrição de cunho etnográfico. Chamoiseau se refere aos pratos antilha-
nos, seus diferentes legumes e maneiras de preparar e servir. Marie-Sophie

211
de Texaco faz uma comida especial pensando receber De Gaulle em sua
barraca na favela, enquanto Héloïse, de Chroniques des sept misères, sobre-
vive vendendo comida no mercado. Muitas das personagens femininas de
Jorge Amado também são exímias cozinheiras: Gabriela e Flor são inesque-
cíveis, sendo que em Dona Flor e seus dois maridos há as receitas da “Escola
de culinária Sabor e Arte”, entre elas a célebre moqueca de siri mole. Além
da cozinha, pode-se destacar o carnaval, festa popular tão importante na
Bahia quanto na Martinica, em que se destacam canções, ritmos, danças,
erotismo. Dona Flor e seus dois maridos, por exemplo, se abre com uma
longa cena de carnaval, na qual morre Vadinho, o primeiro marido (e eterno
amante) de Flor.
Esta estética popular dos dois escritores, se lhes rende um sucesso de
público garantido, envolve um problema de exotismo na representação
do baiano e do antilhano, que é perceptível na recepção destes autores na
Europa em geral, e mais particularmente na França. Jorge Amado con-
tribuiu malgré lui para reforçar os estereótipos sobre o brasileiro, que já
vinham, na verdade, desde os inícios da colonização, frutos do etnocen-
trismo do europeu que visitava os trópicos: locus amenus ou inferno, mas
sempre lugar de perdição por ser promíscuo. Como afirma Sérgio Buarque
de Holanda em Raízes do Brasil, “corria na Europa, durante o século xvii,
a crença de que aquém da linha do Equador não existe nenhum pecado:
Ultra aequinoxialem non peccari” (Holanda, 1973, p. 33), ou seja, a linha
do Equador dividiria o mundo em duas metades: ao norte a virtude, ao sul
o vício, segundo o comentário feito por Barlaeus, e citado por Buarque de
Holanda. De maneira galhofeira, aliás, o compositor Chico Buarque, filho
de Sérgio, retoma a frase na célebre canção “Não existe pecado ao sul do
Equador” (em parceria com Ruy Guerra). A recepção da literatura brasileira
na França é marcada pela forte presença de Jorge Amado; livros de autores
menos “exóticos”, como Lygia Fagundes Telles, por exemplo, são resenha-
dos como o reverso da medalha de Jorge Amado, pelas negativas: eles não
têm mulatas, erotismo e candomblé. Patrick Chamoiseau também corre este
risco, assinalado, aliás, por Josyane Savigneau, em crítica publicada no jor-
nal Le Monde:
Chamoiseau corre o risco, e provavelmente ele tem consciência disto, de ver sua litera-
tura valorizada pelas más razões: em primeiro lugar pelo conhecido gosto pelo exotismo,
o gosto suspeito por combates de nèg ou milâtes com os céhêresses (Savigneau, 1992).

212
René Ménil já apontara o que chama de “erro estético” de Chamoiseau,
que, em vez de fazer literatura, “conta o folclore de modo folclórico” (Ménil,
1991, p.10). Este é sem dúvida um dos problemas literários que se colocam
para todos os que fazem literatura nos trópicos e tentam representar esta rea-
lidade em sua diversidade natural e cultural. Como nossos românticos, com
seus índios e tucanos, como os próprios modernistas, em sua busca de uma
identidade nacional, Amado e Chamoiseau enfrentam este desafio com des-
temor, embora não esteja descartado o perigo de folclorização da realidade
tropical. Brasil e Antilhas são, talvez, exóticos até para seus próprios habi-
tantes, que introjetaram, em séculos de colonização, uma visão exótica de
si mesmos.

213
o humor na obra de dany laferrière

Il n’y a que l’humour qui soit vraiment important.


dany laferrière

O humor e os afetos
Há uma relação dos afetos com o humor, o qual serve de anteparo para
o sofrimento, funcionando como um mecanismo de autodefesa. “Não há
dúvida de que a essência do humor é poupar os afetos a que a situação natural-
mente daria origem e afastar com uma pilhéria a possibilidade de tais expres-
sões de emoção” (Freud, 2006, p. 166), ou seja, o humor tem algo de liberta-
dor, ele possui grandeza e elevação, diferentemente do chiste e do cômico. Ao
indagar como o indivíduo usa o humor para não sofrer, dando ênfase à inven-
cibilidade do ego e sustentando o princípio do prazer, Freud responde:
É que o indivíduo se comporta para com eles [os outros] como um adulto o faz com
uma criança, quando identifica e sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que
parecem tão grandes a esta última. Assim, o humorista adquiriria sua superioridade
por assumir o papel de adulto (Freud, 2006, p. 169).

Assim, segundo Freud, o superego tenta, através do humor, consolar o


ego e protegê-lo do sofrimento. Nesta mesma linha de raciocínio, o escri-
tor martinicano René Ménil considera que “o humor é um protesto contra
nossa falta de autoridade e uma defesa contra as sensações dolorosas e desa-
gradáveis que resultam das limitações que os homens, as coisas ou o acaso
impõem à nossa dignidade nativa” (Ménil, 1981, p. 134). De fato, o humor
funciona como um sistema de preservação do ego, é uma arma que o ego
usa a seu favor, na preservação de seu narcisismo:
Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da
invunerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade,
a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos trau-
mas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não pas-
sam de ocasiões para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento intei-
ramente essencial do humor (Freud, 2006, p. 166).

Se Freud estava falando sobretudo do sujeito enquanto indivíduo, a afir-


mação de Ménil deve ser entendida em um quadro claramente marxista e
anticolonial, pois sua leitura se situa dentro da perspectiva da América, como
214
um continente que resultou de um processo histórico violento. O humor de
que fala Ménil seria a resposta do colonizado humilhado a uma situação de
opressão. Assim, destaca ele o humor dos poetas da negritude, que usam o
humor como um meio de recuperar, de forma imaginária, a dignidade ultra-
jada. À guisa de exemplo, cita alguns versos de Aimé Césaire no Cahier d’un
retour au pays natal:
E já que jurei nada esconder de nossa história, (...) devo confessar que fomos desde
sempre pífios lavadores de pratos, engraxates sem envergadura, fomos, no máximo,
feiticeiros bastante conscienciosos e o único recorde que batemos foi o de resistência
ao chicote... (Césaire, 1971, p. 97).

A análise de Ménil, segundo a qual “o humorista zomba e não ri” (Ménil,


1981, p. 134), aplica-se com perfeição ao humor cáustico de Césaire, que o
utiliza para atacar o colonialismo e a escravidão. A pergunta de Ménil a res-
peito desse tipo de humor é provocadora: “Vemos muitas vezes que o humor
é uma arma que dispara. Mas contra quem é preciso apontá-la? Esse último
gesto seria contra si mesmo?” (Ménil, 1981, p. 139). Sem chegar a afirmar
que este humor é suicida, é forçoso constatar que, para transgredir a ordem
estabelecida, o humor cesairiano reafirma todos os clichês sobre os negros
criados pelos brancos, de maneira que a representação estereotipada repe-
tida por um poeta negro funciona como um bumerangue que se volta con-
tra o opressor:
eu declaro meus crimes e não há nada a dizer em minha defesa.
Danças. Ídolos. Relapso. Eu também
Assassinei Deus com minha preguiça com minhas palavras com meus gestos com
minhas canções obscenas [...]
A extensão de minha perversidade me confunde (Césaire, 1971, p. 77).

O poeta, numa inversão bem ao gosto surrealista, reafirma tudo aquilo


que os antigos senhores diziam sobre os negros, e recria a situação ao modo
do psicodrama, forçando o reconhecimento dos antigos crimes praticados
durante a escravidão para, assim, apagar da história a abjeção a que os negros
tinham sido relegados.
De modo similar, mas em um registro mais paródico e carnavalizado,
pode-se mencionar o Manifesto Antropófago, texto de 1928, de Oswald de
Andrade, quando cita Shakespeare de forma transgressiva, Tupi or not Tupi,
that is the question, o que se traduziria por: se os brasileiros são descendentes
dos Tupis, que eram canibais segundo a crônica e a iconografia existentes, é

215
preciso reforçar parodicamente o clichê, reivindicando a antropofagia como
marca nacional. Em termos mais alegóricos, a explicação se refere ao modo
brasileiro de consumir os bens culturais da Europa, digerindo-os, metaboli-
zando-os, transformando-os em algo novo.
Ao contrário do “riso amargo”, do humor cortante e intelectual de
Césaire, Edouard Glissant introduz na literatura da Martinica o riso sim-
ples dos camponeses, como na cena bufa de Malemort, romance de Glissant,
em que um porco sai desembestado e ninguém consegue agarrá-lo. Aliás,
René Ménil, neste artigo sobre humor, escrito originalmente em 1945 para
a revista Tropiques, já afirmava que o camponês antilhano tem humor, o que
não era o caso da burguesia negra letrada.
René Ménil ressalta que o humor na literatura é uma revanche con-
tra a insultante autoridade de tiranias absurdas; é através de uma brusca
retração de sentimento que se tornam possíveis a irreverência e a ironia do
humor, que vão poder operar a mágica transmutação de valores, tornando
desimportante aquilo que era crucial. Entretanto, como isto só se dá de
forma imaginária, através da mediação da arte, e como o sujeito que exerce o
humor tem consciência de que a realidade continua igual, seu riso é amargo.
Sendo um protesto, o humor é, ao mesmo tempo, uma autodefesa contra as
sensações dolorosas e desagradáveis que resultam das limitações que a socie-
dade impõe à grandeza dos homens (Ménil, 1981, p. 133-134). O humor,
segundo Ménil, é uma atitude poética. Ele opera como o sonho, por con-
densação, transferência, alucinação, identificação, e, ao tornar o poeta insen-
sível às contingências do universo, permite-lhe a leveza de espírito necessária
para a eclosão da expressão poética (Ménil, 1981, p. 140).

Como fazer amor com um negro sem se cansar


O romance Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer,52 do escri-
tor canadense de origem haitiana Dany Laferrière, primeiro de um conjunto
de 10 romances que ele intitulou Une autobiographie américaine, se carac-
teriza pelo humor, pela transgressão e pela paródia de valores e estereótipos
52
A ordem de publicação dos livros, que se segue, não corresponde à ordem cronológica dos acon-
tecimentos relatados: Comment faire l´amour avec un nègre sans se fatiguer (1985), Eroshima (1987),
L´odeur du café (1991), Le goût des jeunes filles (1992), Cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle
une arme ou un fruit ? (1993), Chronique de la dérive douce (1994), Pays sans chapeau (1996), La chair
du Maître (1997), Le charme des après-midi sans fin (1997), Le cri des oiseaux fous (2000).

216
sobre o negro. É importante detectar como este artista diaspórico, nascido
na segunda metade do século xx, que vive no entrelugar entre seu país de
origem e os grandes centros, usa o humor como arma estética e identitá-
ria. O humor corrosivo tem sido uma arma das literaturas pós-coloniais
para marcar a consciência aguda de indivíduos subalternizados por injun-
ções históricas, ao se depararem com a defasagem existente entre o que seu
espírito livre deseja e uma autoimagem deformada e caricatural que o espe-
lho da sociedade lhes mostra. Como lidar com os estereótipos tão entranha-
dos na malha social e psíquica? O estereótipo, segundo Homi Bhabha, não
é uma simplificação só por ser uma falsa representação de uma dada reali-
dade; ele é um forma fixa que nega o jogo da diferença, constituindo assim
um problema para a representação do sujeito em suas relações psicossociais
(Bhabha,1998, p. 117).
Dany Laferrière nasceu no Haiti em 1953 e se exilou no Canadá em
1976, devido à ditadura de Jean-Claude Duvalier, como seu pai havia se
exilado 20 anos antes, durante o governo de François Duvalier: tal pai, tal
filho, dois ditadores, dois exilados. Como ele tinha recebido o mesmo nome
do pai, Windsor Klebert Laferrière, e como o nome tornara-se perigoso, por
designar um homem banido, ele nunca foi usado. A família passou a cha-
má-lo de Dany, que se tornaria também seu nom de plume. Em sua autobio-
grafia, o personagem-narrador é designado como Vieux Os – apelido dado
por sua avó – nos livros que se passam no Haiti, enquanto nos livros que se
passam na América do Norte (Estados Unidos e Canadá) ele é simplesmente
Vieux. O verdadeiro sobrenome Laferrière aparece duas vezes ao longo da
autobiografia: no Le cri des oiseaux fous, que conta a última noite do jovem
de 23 anos que deve deixar o país na manhã seguinte e em Pays sans chapeau,
que relata sua volta ao Haiti 20 anos depois (Mathis-Moser, 2003).
Seu primeiro romance, Comment faire l’amour avec un nègre sans se fati-
guer (1985), transforma-o em celebridade da noite para o dia, pois é uma
verdadeira bomba que explode na sociedade do Quebec. Baseado em alguns
dados reais, ele retrata a vida de dois imigrantes negros e desempregados
(ele e seu amigo Roland Désir, designados respectivamente como Vieux e
Bouba), que dividem um apartamento miserável no número 3.760 da Rua
Saint Denis, em Montreal. A partir desta base autobiográfica, em que seu
alter ego tem o projeto de escrever um romance (intitulado Le paradis du
drageur nègre), enquanto seu amigo permanece deitado em seu divã, surgem

217
os encontros sexuais que ambos têm com estudantes wasp53 da prestigiosa
Universidade McGill. Esta parte, imaginária, segundo o autor, reflete seu
projeto de desmontar todos os clichês produzidos pelo racismo, tais como o
mito do homem negro hipersexualizado.
Laferrière cria dois personagens negros, mas sem definir uma identi-
dade de origem: nem haitianos nem africanos, seu alter ego Vieux e seu
complemento, Bouba, recitam o Corão e ouvem jazz, leem Freud e muita
literatura, refletem sobre Buda e o budismo, inscrevendo-se assim tanto na
tradição ocidental quanto na oriental. Ao fazer isto, o autor recusa o lugar
que lhe era reservado enquanto escritor haitiano, o de evocar seu país de
origem, sua memória de imigrante ou exilado, e por acréscimo, com uma
pitada de folclore e exotismo. Como observa Jean Fisher, o multicultura-
lismo parece ter sido criado para isolar os diferentes grupos étnicos a fim de
que seus artistas não entrem no chamado mainstream. Eles são incorporados
pelo sistema com a condição de desempenharem sempre o papel de “exóti-
cos”, conservando-se a uma distância “segura” (Fisher, 2002).
Para definir uma identidade mais ampla, mais adequada e abran-
gente, que corresponda melhor à sua vida em trânsito, que vai de Port-au-
Prince (Haiti) a Montreal, onde se tornou escritor, passando em seguida
por Miami, onde durante anos morou com sua família e voltando a Mon-
treal, onde publica e dá entrevistas, e daí para o resto do mundo, Laferrière
recusa todas etiquetas. Alternando romances passados no Haiti e na Amé-
rica do Norte, Laferrière se propõe a ser um escritor americano, buscando
assim fugir de qualquer classificação que o enclausure em um gueto. Sua
liberdade em relação a outros negros da diáspora viria do orgulho dos hai-
tianos de terem conquistado a liberdade e a independência em uma guerra
(Laferrière, 2000b, p. 31).
Em Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer, seu alter ego
define uma filiação em relação à tradição literária ao enumerar 40 autores
presentes em sua “biblioteca” (uma caixa), dentre os quais mais da metade
é constituída de escritores das Américas,54 alguns bem pouco conhecidos,

53
wasp (White, Anglo-Saxon, Protestant).
54
Esmiuçando a lista destacam-se: três escritores americanos negros (Chester Himes, Richard Wright e
James Baldwin), sete escritores americanos brancos (Ernest Hemingway, Henry Miller, Charles Bukowsky,
John Dos Passos, Jack Kerouac, Gregory Corso, Erica Jong), sete escritores latino-americanos (Jorge
Luis Borges, Alejo Carpentier, Miguel Ángel Asturias, Julio Cortázar, Gabriel Garcia Marquez, Carlos
Fuentes, Jorge Amado), dois escritores haitianos (Jacques-Stephen Alexis, Jacques Roumain), sete

218
o que demonstra, senão uma recusa do cânone europeu, ao menos clara
preferência pelos escritores americanos (os mais citados ao longo do livro
são Hemingway, Miller, Bukowsky, Wright, Himes e Baldwin). Usando o
estilo de Hemingway de alternar murros com carinhos, Laferrière busca ter
a mesma “capacidade de exprimir claramente seus sentimentos sem ten-
tar explicá-los, analisá-los” (Laferrière, 2000b, p. 181). Escrever assim, sem
atenuar ou explicar sentimentos inconfessáveis, como “Quero ser famoso”,
representa para o jovem imigrante uma maneira de romper o círculo vicioso
em que se encontra e adotar uma atitude que era antes reservada “aos jovens
príncipes da Europa” (Laferrière, 2000b, p. 181). “Para mim, é um exercí-
cio de liberdade absoluta com pressões terrivelmente dolorosas” (Laferrière,
2000b, p. 55). Escrever para ter sucesso, para cortar as amarras, esta é sua
única oportunidade. Assim, as últimas palavras do romance, dirigidas ao
próprio livro, são: “Minha única chance. vai”55 (Laferrière, 1985, p. 153).
O livro, com seu nome e sua foto na capa, partirá em todas as direções do
mundo para conquistá-lo.
Ao se inserir na tradição ocidental de maneira transgressora, ele rompe
a interdição da mulher loira, consumindo-a de maneira “canibal”, ao menos
no nível do discurso. Sem compreender por que Miz Littérature vem pra-
ticar sexo com ele em seu apartamento miserável, admira sua vida dupla:
de um lado, princesa wasp, de outro, escrava de um negro. “É talvez apai-
xonante. Com suspense garantido porque com os negros nunca se sabe. Se
ela fosse comida, aí, de repente. Miam miam, com sal e pimenta do reino”
(Laferrière, 1985, p. 39). O primitivismo grosseiro, que vem da herança
colonial, é levado ao paroxismo por Laferrière que imagina, com muito
humor, cenas em que a branca dorme com o negro e acorda debaixo de um
baobá, ou perseguindo uma antílope, ou amanhece em país dogon. “trepar
com um negro para acordar no país dogon” (Laferrière, 1985, p. 77).
Em Cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une arme ou un
fruit?, livro-reportagem em que ele põe em cena a recepção de seu primeiro
romance, o seu novo status de escritor famoso, a sua volta às origens e o seu

escritores canadenses (Gabrielle Roy, Hubert Aquin, Victor-Lévy Beaulieu, Réjean Ducharme, Margaret
Atwood, Leonard Cohen, David Fennario), cinco escritores “franceses” (François Villon, o suíço Blaise
Cendrars, Marcel Proust, Guillaume Apollinaire, a belga Marguerite Yourcenar), dois escritores espanhóis
(Cervantes, Quevedo), um italiano (Cesare Pavese), dois alemães (Freud, Handke), um russo (Limonov),
um japonês (Mishima), um inglês (Thomas De Quincey) e um senegalês (Sembé Ousmane).
55
As palavras, expressões ou frases citadas em caixa alta estão assim grafadas no livro.

219
reencontro com o velho amigo Bouba, há a expressão de seu ressentimento
em relação ao porteiro grego do edifício em que ele morava na rua Saint
Denis, chamado ironicamente de Monsieur Zorba, que o desprezava sim-
plesmente por ele ser negro, ou seja, um não ser – abjeto relegado ao espaço
do nada, da ausência. “Eu sou um ser humano ou não? (...) Ele duvidava de
minha humanidade. Para ele, eu era um cão sarnento” (Laferrière, 2000a,
p. 122). O porteiro reclamava do barulho quando ele batia à máquina o
romance que lhe daria sucesso. “No fundo, foi a estupidez, a ignorância
crassa e sobretudo o fato que esse homem limitado, feio e besta pudesse se
sentir no direito de me desprezar, sim, foi isso que me permitiu continuar
meu caminho nas trevas” (Laferrière, 2000a, p. 122). Seu olhar era uma crí-
tica constante, uma negação de seu valor e do sentido de sua vida. O escri-
tor famoso sente o desejo de humilhá-lo nesta viagem de volta mas, para sua
decepção, Monsieur Zorba não trabalhava mais lá. “Eu escrevi para provar
que não era um cachorro” (Laferrière, 2000a, p. 122). A reação de rebeldia
que aparece em seus livros confirma que o “humor não é resignado, mas
rebelde. Significa não apenas o triunfo do ego, mas também o do princípio
do prazer, que pode aqui afirmar-se contra a crueldade das circunstâncias
reais” (Freud, 2006, p. 166).
O sentimento de humilhação também era forte ao se perceber invisível,
transparente, diante do olhar da mulher branca, que simplesmente não o via.
“Essa maneira de olhar em minha direção sem jamais me ver. A impressão de
ser um puro muro liso e branco. Sem nenhuma aspereza. O olho não pode se
fixar em lugar nenhum. Numa palavra, você não existe” (Laferrière, 2000a,
p. 94). O texto de Laferrière, trabalhando o discurso sobre o corpo, descons-
trói os clichês através de um humor corrosivo. Miz Littérature, Miz Sundae,
Miz Suicide, Miz Sophisticated Lady, todas estas loiras – designadas pelas
expressões Miz [Miss] e algum nome comum – que passam por seu aparta-
mento (por sua cama) são meros espectros, fantasmas, produzidos pela mente
de um negro que vive numa sociedade de brancos. não há mulheres aqui,
há brancas e negros, só isso” (Laferrière, 1985, p. 122). O corpo, segundo
Homi Bhabha, “está sempre simultaneamente (mesmo que de modo confli-
tuoso) inscrito tanto na economia do prazer e do desejo como na economia
do discurso, da dominação e do poder” (Bhabha, 1998, p. 107).
No livro Cette grenade dans la main... há uma cena muito instigante:
ele, o autor de Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer, já céle-
bre, que havia aparecido na capa de uma revista, conversa com uma loira

220
deslumbrante em um bar. O encontro explosivo se desarma quando a loira
adota um tom confessional: à medida que ela, reconhecendo nele (escritor)
uma pessoa espiritualmente aberta ao diálogo, fala de suas dificuldades, de
suas frustrações, por se ver como mero objeto sexual dos homens, ele vai
perdendo a atração sexual de base fetichista, pois passa a considerá-la uma
pessoa. “Mas sua franqueza, sua súbita ingenuidade, um certo frescor me
tocaram. Não tenho mais um fantasma diante de mim, mas uma moça infe-
liz que é, por acaso, bela” (Laferrière, 2000a, p. 94). Vencida a ansiedade do
fetichismo, acaba também o desejo de dominação, o que acarreta o duplo
reconhecimento interpessoal. Pode-se evocar o que diz Bhabha a propósito
do fetiche. “O fetiche ou estereótipo dá acesso a uma “identidade” baseada
tanto na dominação e no prazer quanto na ansiedade e na defesa, pois é uma
forma de crença múltipla e contraditória em seu reconhecimento da dife-
rença e recusa da mesma” (Bhabha, 1998, p. 116).
O sadismo é uma resposta ao ressentimento do sujeito dominado; assim,
o exercício da crueldade lhe é necessário para reverter sua posição hierár-
quica, já que, na escala judaico-cristã, o homem branco ocupa o topo, a
mulher branca vem logo abaixo, em seguida viria o homem negro e abaixo
dele, a mulher negra. Para transgredir o jogo de poder e reduzir a branca ao
abjeto, ele narra formas menos convencionais de sexo: Miz Littérature, por
exemplo, lhe fará sexo oral. “Um ato tão... Eu sabia que enquanto ela não
tivesse feito, ela não seria totalmente minha. Este é o drama nas relações
sexuais do negro e da branca: enquanto a branca não fizer um ato qualquer
considerado degradante, não se pode confiar” (Laferrière, 1985, p. 43).
O alter ego de Laferrière, apesar de pobre, demonstra ser um dândi, por
seu estilo e sedução, ao atrair para sua toca todas as belas Miz que querem
fazer sexo com ele. Ele discute assim a relação entre a construção da subje-
tividade e as estruturas de poder e consegue fazer ouvir sua voz ao abalar as
estruturas de poder dos grupos hegemônicos. Laferrière lembra que, após o
primeiro livro, não queria publicar Eroshima56 porque um dândi considera
de mau gosto repetir algo que já fez. O dândi, segundo Baudelaire, não tem
um culto exagerado da elegância per se, a elegância representa para ele tão só
um símbolo da superioridade aristocrática de seu espírito. Esta casta de pessoas

56
Trata-se do romance que o personagem-narrador de Comment faire l’amour avec un nègre sans se
fatiguer escreve, e que foi retirado por sugestão do editor, que considerava que os textos quebravam
o ritmo do livro.

221
busca, antes de tudo, a distinção e a originalidade, o culto de si, o prazer de
chocar e a satisfação de nunca ficar chocado (Baudelaire, 1932, p. 351).
Laferrière, ao se firmar na posição de dândi, não teme expor seu corpo,
e mesmo, eventualmente, adotar posturas politicamente incorretas; ao con-
trário, ele se compraz em chocar um público bem comportado, habituado
à repetição dos clichês. O fetiche do discurso racista, ao qual Frantz Fanon
se refere com a expressão de “esquema epidérmico racial” (Fanon, 1952, p.
90), ao contrário do fetiche sexual analisado por Freud, não é um segredo,
já que a cor da pele é uma parte do corpo muito visível. Por conseguinte, o
desvendamento do discurso racista através do humor, levado ao paroxismo
quando se descreve como canibal em Comment faire l’amour avec un nègre
sans se fatiguer, assim como o exibicionismo do dândi negro, são formas de
respostas provocadoras à fetichização. Laferrière retoma, embora em chave
diferente, os clichês do negro hipersexualizado, do homem primitivo e cani-
bal, já descritos por Fanon em Peau noire masques blancs. Ele evoca a ques-
tão do linchamento e da castração de negros enquanto Miz Littérature lhe
faz uma felação e que um casal, no apartamento de cima, pratica sexo de
modo espalhafatoso; evoca, também, um quadro de Matisse, para falar do
papel das cores na sexualidade. Esta simultaneidade de cenas em mosaico
forma um quadro eminentemente paródico e o deboche permite-lhe assim
desmontar os estereótipos. Sua agressividade é, sem dúvida, uma resposta
deslocada ao tabu que interdita ao negro o sexo com a branca, sob o risco de
ser castrado, pois sentimentos contraditórios se interligam no ato de estere-
otipar/ser estereotipado, como diz Bhabha:
O ato de estereotipar não é o estabelecimento de uma falsa imagem que se torna o
bode expiatório de práticas discriminatórias. É um texto muito mais ambivalente de
projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas, deslocamento, sobrede-
terminação, culpa, agressividade, o mascaramento e cisão de saberes “oficiais” e fan-
tasmáticos para construir as posicionalidades e oposicionalidades do discurso racista
(Bhabha, 1998, p. 125).

O texto de Laferrière, não por acaso, está permeado do termo “fantas-


mas”, pois não se trata nem de mulheres brancas nem de homens negros
reais; são fantasmas à procura de outros fantasmas, que, de alguma maneira,
vão atiçar um desejo sexual desprovido de sentimento, pois “a sexualidade é
antes de mais nada uma questão de fantasmas e o fantasma que reúne o negro
com a branca é um dos mais explosivos que existem” (Laferrière, 1985, p.
124). Quando a loira lhe diz que quer ficar com ele, Vieux fica chocado pois

222
se vê como o fantasma primitivo e bestializado de Miz Littérature, donde ele
conclui que se trata de “uma trepada carnívora” (Laferrière, 1985, p. 45).
Aliás, negros e brancas não existem, são mitos criados na América, como o
hambúrger e a mostarda seca (Laferrière, 1985, p. 145).
Este humor transgressivo de Laferrière não agradou aos negros em geral,
e em especial à comunidade haitiana, segundo declarações do autor. Em
Cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une arme ou un fruit ? o nar-
rador encena a recepção de seu livro: um motorista de táxi africano, que vive
nos Estados Unidos, acusa-o de ter traído a raça, ao explorar os clichês sobre
os negros, perguntando-lhe por que não escreve para defender o povo negro,
humilhado durante tanto tempo. Ele responde que ninguém escreve por
encomenda, recusando assim o discurso engajado, a literatura como expres-
são de uma causa coletiva, o tom panfletário. Sua obra seria a expressão de
um indivíduo particular que aborda a questão racial, porém se esquivando
da propaganda (Laferrière, 2000a, p. 213). Como vive numa sociedade que
reconhece o branco como o único ser, o negro procura identificar-se com
este Outro ideal, o que lhe é barrado através da afirmação de sua inferio-
ridade, de sua incapacidade para obras elevadas, em suma, pelos clichês e
estereótipos. Assim, Laferrière é provocador por exprimir um segredo, um
desejo inconfessável, politicamente incorreto, que é o de ter sucesso como o
branco: “escrevo para ser conhecido e para poder me beneficiar dos privilé-
gios unicamente reservados às pessoas célebres” (Laferrière, 2000a, p. 70).
Nesta tematização da recepção do livro, as mulheres em geral gostaram
do livro, apesar da reação contrária de algumas feministas, mas as mulheres
brancas casadas com negros reagiram muito mal, pois se sentiram insulta-
das. Se o sexo é explosivo entre desiguais, o amor só se realiza entre iguais,
de mesma raça, mesma classe, mesma religião (Laferriere, 2000a, p. 81). A
mulher negra, representada por Erzulie (entidade do vodu), questiona sua
preferência pelas loiras, dizendo querer também entrar em seu livro e ter
sucesso, mas sua voz questionadora, cuja função é de contraponto, também
remete a um fantasma, não a uma mulher real. O amor da mulher negra só
é abordado nos livros que se passam no Haiti, nos quais está ausente o con-
flito branco x negro. No entanto, seu projeto literário de discutir como a
libido é fruto de fantasmas, como o desejo está intimamente ligado aos feti-
ches e a própria realização sexual se dá em um emaranhado de tensões e vio-
lência, leva-o a afirmar que a branca tem prazer com o negro, que lhe é infe-
rior, pois ele lhe deve o gozo (Laferrière, 1985, p. 44).

223
O humor é o triunfo do espírito sobre a alienação e a subalterniza-
ção apesar de, sendo só discurso, poder provocar o riso mas não conseguir
mudar a realidade. Suas flechas, como diz Ménil, são as palavras, ou ainda, o
humor é um fuzil, que se volta, às vezes, contra o próprio humorista. Lafer-
rière afirma que, ao querer destruir os clichês, se deu conta de que eles eram
verdadeiros (Laferrière, 2000a, p. 80). O humor desconstrói certas formas
de representação – clichês, estereótipos, preconceitos – que estão infiltrados
e espalhados na sociedade e instaura novos mecanismos de pensamento. No
entanto, o riso amargo, o ranger de dentes, a própria agressividade implícita
no humor, apontam para a distância existente entre a dura realidade e a aspi-
ração poética de um mundo sem preconceitos. Do início do século xx até
os dias de hoje, os escritores negros têm usado o humor como arma estética
e identitária para sabotar o racismo e o etnocentrismo, pois segundo Ménil,
“trata-se de desmoralizar esta sociedade, desacreditá-la, ridicularizá-la, dar-
lhe vergonha dela mesma” (Ménil, 1981, p. 146).
Laferrière tem um aspecto exibicionista, performático e midiático, na
medida em que encena ludicamente os conflitos, expondo seu corpo numa
espécie de enfrentamento em que, para atingir o Ser que lhe é negado, é pre-
ciso exibir o Parecer. Em um mundo de imagens, o corpo faz parte do jogo
de poder, podendo desvelar e subverter os mecanismos embutidos no imagi-
nário do racismo. Laferrière, para obter o efeito desejado com seu primeiro
livro, colocou sua foto na capa, de modo a assinar duplamente a autoria,
com seu nome e com seu corpo. Numa postura provocadora e inovadora, ele
recusa ao mesmo tempo o papel de vítima e o de salvador da raça, rejeitando
qualquer visão épica e coletiva, própria de gerações anteriores de artistas
negros. É através do humor que ele ataca os valores estabelecidos, atingindo
os pontos vulneráveis – as aporias das repressões culturais. O artista revela
assim uma nova semiótica dos afetos, dos quais a própria sociedade talvez
não tenha consciência. Ao assumir a voz do discurso, ao se colocar como
sujeito que exprime seu desejo, coloca em xeque o discurso hegemônico
que fala dele como objeto e problematiza o próprio significado das palavras:
ao repetir à exaustão a palavra “negro”, Laferrière acredita poder esvaziá-la,
reduzindo a carga semântica acumulada em séculos de racismo.

224
o racismo à brasileira: a escrita da memória
em leite derramado, de chico buarque

Teria quando muito uma ascendência mourisca, por via de seus


ancestrais ibéricos, talvez algum longínquo sangue indígena.
chico buarque

Eulálio Montenegro d’Assumpção, um velho já centenário (nascido em


1907), deitado numa cama de hospital, é o personagem-narrador de Leite
derramado. O nome Eulálio se compõe de eu + lalio (do grego lalein), que
quer dizer falar, e pode ser interpretado por “eu falo”, pois é tudo o que faz
no romance. Ele fala sem parar e se dirige a um você/vocês imaginário/s, que
parece ser ora uma enfermeira de serviço, ora sua filha e, em última instân-
cia, é mesmo o leitor. A dor que sente está sendo amenizada com morfina,
referência que aparece já na primeira página. Sua memória não é confiável,
não só por sua idade, quiçá pela senilidade, mas também pelo uso da droga,
que acentua sua tendência a devaneios. Neste sentido, pode-se dizer que o
autor desconstrói o romance memorialista.
De família rica, ele perdeu todas suas posses ao longo da vida; a conta
do hospital particular é paga pelo tataraneto, um traficante de drogas, mas
paira a ameaça de que ele seja transferido para um hospital público. Na
infância e juventude viveu no casarão de Botafogo, depois do casamento
mudou-se para o chalé de Copacabana, mas acabou numa casinha miserável
no subúrbio, perto do local onde outrora era a fazenda da família, na raiz da
serra, fazenda que foi desapropriada em 1947. “Hoje sou da escória igual a
vocês, e antes que me internassem, morava com minha filha de favor numa
casa de um só cômodo nos cafundós” (Buarque, 2009, p. 50).
Através de uma voz senhorial, ele evoca os ancestrais, todos chamados
de Eulálio d’Assumpção, desde o primeiro que veio para o Brasil, com D.
João vi, e que teria sido confidente de D. Maria, a Louca, até seu pai, sena-
dor da República. Ele foi o único a ter tido uma filha, também chamada
Maria Eulália; neto, bisneto e tataraneto também são Eulálio, o que forma
um eco de nomes iguais pelos séculos e séculos. “O Eulálio do meu tetravô
português, passando por trisavô, bisavô, avô e pai, para mim era menos
um nome do que um eco” (Buarque, 2009, p. 31). Em Portugal, a família
remontaria à época de D. Manuel i, no século xv. Ao contrário da saga –

225
que narra histórias emaranhadas e complexas de várias gerações da mesma
família – aqui todos são meras silhuetas, nomes iguais que parecem evocar
fantasmas descarnados.
A partir destes elementos da fabulação, já se pode perceber o tom paró-
dico deste romance memorialista, cujo narrador tem um discurso incon-
sistente. Ao dizer que o ancestral era confidente de uma louca, ao se refe-
rir a fotos do pai ou do avô com a rainha Elizabeth, do Reino Unido, ou
com o rei da Bélgica, ou com outros reis, o autor usa da derrisão. As elites
gostam de evocar o passado glorioso ou contatos com as elites europeias,
como é o caso de Joaquim Nabuco, em Minha formação (2004). Ele cita
visitas ou encontros (realizados ou previstos) com intelectuais e políticos
importantes como Renan, Taine, Saint-Hilaire, Charles Edmond, Thiers,
Georges Sand. Comparando com Nabuco, os membros da família Eulá-
lio d’Assumpção, apesar da pretensão, não passam de rastaqueras,57 o que se
comprova ao longo do romance com as revelações de operações ilegais e trá-
fico de influência dos ancestrais, chegando ao paroxismo no último descen-
dente, o tataraneto traficante de drogas. Este aspecto caricatural sugere que
nada do que o personagem-narrador conta é verdade, é tudo invencionice
de uma cabeça “embolada”, de uma memória que é uma “barafunda” (Buar-
que, 2009, p. 39), um “pandemônio” (Buarque, 2009, p. 41). Os dispara-
tes de Eulálio, combinados com o deslumbramento de Kim (caraca!), pro-
vocam um efeito de humor:
Então lhe expliquei que papai foi o político mais influente da Primeira República,
contei que o rei Alberto costumava vir da Bélgica se aconselhar com ele, até apontei
numa foto a rainha Elizabeth como sendo minha mãe. E quando num arroubo eu
lhe disse que o palácio Imperial era a casa de veraneio da minha família, ela deu um
assobio e falou, caraca! (Buarque, 2009, p. 171-172).

Na literatura, como na psicanálise, não se pode pensar o passado como


algo acabado; as diferentes camadas do passado convivem com o presente
e se misturam, o que leva o personagem-narrador a contar acontecimentos
que não se passaram exatamente da maneira como são contados. À seme-
lhança das “lembranças encobridoras” de Freud, o escritor simula as permu-
tações, fusões, condensações, feitas pela mente do personagem. Isto se dá
em dois níveis: na construção consciente que o autor faz e naquilo que lhe

57
Segundo Nabuco, os parisienses chamavam os sul-americanos milionários e sem sofisticação de
rastaqueras (2004, p. 49).

226
foge ao controle, já que a escrita desencadeia tantos afetos que o personagem
pode tomar rumos que não estavam totalmente previstos pelo escritor. Os
interditos acabam emergindo no texto em formas lacunares, em vestígios,
em contradições, quiçá em paradoxos.
A construção de Matilde, a esposa perdida do protagonista, se faz com ele-
mentos díspares e contraditórios, sua imagem é fugidia, não se pode apreen-
dê-la em sua totalidade. No início, quando ele conta o primeiro encontro
na missa do pai que morrera, ela é descrita como uma moreninha, filha de
deputado, que estudava no Sacré-Coeur, portanto, alguém que pertencia à
sua classe social. No entanto, logo começam a pipocar insinuações de que as
coisas não eram bem assim: a mãe perguntou-lhe se Matilde tinha cheiro de
corpo, eufemismo para insinuar que ela era mulata e que os negros têm um
cheiro forte. Ao casamento, ninguém compareceu, só as quatro testemu-
nhas: as duas mães, o tio Badeco, que estava no Rio por acaso e Auguste, o
motorista francês que o pai importara junto com seu primeiro carro. O pai
a teria deserdado. O casamento era visivelmente um mau passo, um erro,
do ponto de vista social, que se procurou esconder “Como aliás ninguém
soube do casamento, a cerimônia no casarão foi discreta, não imprimimos
convites, os proclamas foram lavrados num desses jornais que gente de res-
peito não lê” (Buarque, 2009, p. 72). Até o padre “tinha um ar mais lasti-
moso que nas exéquias do meu pai, talvez acabrunhado pelo vestido infor-
mal de Matilde, estampado com flores vermelhas” (Buarque, 2009, p. 72).
O vestido com flores vermelhas aponta para a impureza da noiva, ela não
usava branco, como era praxe.
No curto espaço de tempo em que permaneceram juntos, ele a consi-
derava sempre inadequada, sendo que todos os indícios apontam para sua
origem negra: seu francês era sofrível, vestia-se de maneira vulgar, quando
se sentou ao piano Pleyel na casa de sua mãe, em vez de tocar Mozart, ela
tocou “Macumba Gegê”, um samba de Sinhô, de 1923. Ele tinha vergonha de
levá-la às recepções na Embaixada da França e aos encontros com gente fina.
As lembranças de velhos são, em geral, confusas, mas as do personagem-
narrador de Leite derramado não só são confusas como se misturam com
devaneios, delírios, misturas de tempos, provavelmente com muitas cenas
censuradas. Nesta passagem, em que ele fala à filha, pode-se ver ao mesmo
tempo a censura e a racionalização da censura. “Então não o leve em conta,
nem tudo o que digo se escreve, você sabe que sou dado a devaneios (...).

227
Na velhice a gente dá para repetir casos antigos, porém jamais com a mesma
precisão, porque cada lembrança já é um arremedo de lembrança anterior
(Buarque, 2009, p. 136).
Se a cena do momento em que conheceu Matilde se repete de maneira
quase igual, com pequenas variações, as versões acerca de seu desapareci-
mento ou de sua morte são incongruentes. Ele conta à filha que a mãe dela
morreu de parto, mas mais tarde há menções ao fato de ela ter ficado louca,
tuberculosa, leprosa, pegado uma “doença de pobre” ou uma “doença da
luxúria” (sífilis?). Nos últimos dias que teria passado no chalé de Copa-
cabana ela vivia reclusa, catatônica, no quarto de despejo. Há referências
à possibilidade de ela ter-se afogado em Copacabana ou tido um desas-
tre na antiga estrada Rio-Petrópolis. O narrador fala de cartas recebidas do
médico francês, que viaja para países os mais longínquos (Indochina, Tur-
quia, Senegal, Argélia), e conta versões desencontradas: ele a teria internado
num sanatório da serra antes de deixar o Rio, mas em outro momento tra-
ta-se de sua desaparição. O leitor pode suspeitar também que ela teria par-
tido com o médico francês para o exterior. No fim do romance o narrador
afirma que não abriu todas as cartas, o que denota desinteresse ou desejo
de manter o suspense. Ele diz que conserva “reminiscências inéditas” sobre
Matilde (Buarque, 2009, p. 185), o que pode ser lido também como um
desejo de continuar contando para continuar vivendo, já que – como She-
razade – contar para ele é sinônimo de viver.
O ciúme demonstrado pelo protagonista – que dialoga com o ciúme
de Bentinho em Dom Casmurro – prepara um desenlace trágico. Em várias
cenas há um paralelismo entre ele e o pai, que teria sido assassinado por
um marido ciumento em frente à sua garçonnière. Numa passagem em que
o protagonista tenta imaginar Matilde nua, ele vê em vez disto um vestido
sem corpo e alisa o vestido, cena que remete àquela que se passa na casa da
modista quando ele acompanhara o pai, que fora buscar o vestido azul-ce-
leste que daria à amante. Ele também alisa o vestido. Numa cena de ciúme,
o narrador assimila a barraca azul da praia, usada por Matilde, ao vestido
rodado da amante do pai. “Era um círculo azul-celeste, à distância pare-
cia o vestido rodado da mulher casada com quem meu pai teve seu último
romance” (Buarque, 2009, p. 115).
No emaranhado de versões sobre o desaparecimento de Matilde, a única
não mencionada é a de que ele a matou por ciúme, provocado por um adul-
tério real ou fantasmático. Numa inversão simétrica com o desenlace do pai,

228
pode-se imaginar o ponto cego: o assassínio de Matilde, o não dito, o inter-
dito, o impronunciável. As cenas de erotismo e violência escondem prova-
velmente aquilo que foi censurado, o assassinato da mulher amada, mulher
adúltera talvez, mulher inferior e mulata da qual ele se envergonha. A ambi-
guidade da passagem abaixo pode apontar tanto para o ato sexual como para
o assassinato de Matilde:
Eu seguia Matilde (...), e de repente não sei o que me deu, agarrei-a com violência
pelas costas. Joguei-a contra a parece e ela não entendeu, começou a emitir gemidos
nasais, o rosto achatado nos ladrilhos. Prendi seus punhos na parede, ela se debatia,
mas eu a controlava com meus joelhos atrás dos seus. E com meu tronco eu a aper-
tava, eu a espremia a valer, eu quase a esmagava na parede, até que Matilde disse, eu
vou, Eulálio, e seu corpo tremeu inteiro, levando o meu a tremer junto (Buarque,
2009, p. 67).

Se lermos a frase “eu vou” como o momento da morte, tudo faz sentido,
inclusive a referência ao que se dizia “de um jeito grosseiro na boca do povo,
Assunção, o assassino? Assunção, o corno?” (Buarque, 2009, p. 57). Esta
frase, aplicada ao pai no momento em que é proferida, é incoerente já que
ele teria sido assassinado por um marido corno, não era ele o corno, não era
ele o assassino. Podemos entender esta transferência como uma permutação.
Isto explicaria também a reação das amigas de Matilde que falam dele como
“marido enganado” mas também “temível”, o que as leva a tomar o “bonde
em movimento”, apavoradas (Buarque, 2009, p. 187). A cena de violência,
em que ele teria matado a mulher, se passa, talvez, no banheiro, pois ela fica
com o “rosto achatado nos ladrilhos” (seriam os obsedantes azulejos de cava-
lo-marinho?). É também possível pensar que a cena do crime tenha sido a
cozinha, que é o outro cômodo da casa que tem ladrilhos, local de predile-
ção de Matilde, lugar que emblematiza a vergonha que Eulálio sente dela.
Há várias cenas que se passam no banheiro. Duas delas são lembranças
de Matilde no banho, todas duas fortemente associadas ao desejo, e todas
duas tendo como cenário o banheiro de Copacabana, com os azulejos de
cavalos-marinhos. Na primeira, ele está tomando banho em sua casinha no
subúrbio, e a água sobre seu corpo transporta-o para o banheiro do passado.
Apesar de já não conseguir mais imaginar o rosto de Matilde, ela lhe apa-
rece de corpo inteiro no banho, o que provoca a ressurgência do desejo nele.
Mas no fim do capítulo, ele reconhece a sua confusão mental e não sabe a que
banho está se referindo. Note-se que no momento do que seria o assassínio, os
dois corpos tremem e aqui o corpo do protagonista está fremente e Matilde

229
o olhava “quase com medo” (Buarque, 2009, p. 138-139). A outra cena de
banho representa o último estertor do desejo, quando ele vê a namorada
do tataraneto, a menina Kim; ao imaginá-la no banho, o cenário da visão
é o banheiro de sua casa em Copacabana. É a imagem de um corpo jovem
e bonito no banheiro, associado ao desejo, que desencadeia a lembrança de
Matilde (Buarque, 2009, p. 180).
Na continuidade das duas cenas, o pai está sempre presente: na pri-
meira, o protagonista segura “o pau duro do [seu] pai” e, nesta, sente-se “de
novo o rei do mundo”, quase o seu pai, ou seja, quase tão poderoso/potente
quanto o pai. Seria o falo do pai uma metáfora da faca com a qual ele matou
Matilde? O paralelismo do protagonista com o pai em todas estas cenas
reforça a leitura do crime, seguido da infelicidade pelo sentimento de perda
e quiçá de culpa. O trauma do assassínio de Matilde poderia ser confir-
mado pela ideia de memória como “ferida”, de lembranças que doem (Buar-
que, 2009, p. 10), do fato que “as lembranças ruins são as que mais voltam”
(Buarque, 2009, p. 163). Após o episódio do banheiro, fremente de desejo,
ele se agarra à parede, o que provoca sua queda e a fratura do fêmur, ou seja,
a lembrança (de Matilde) misturada à imaginação do presente (Kim) desen-
cadeia o desejo, que se realiza na perda e na dor, provavelmente emblema
de toda sua vida.
Numa outra cena de banheiro, Matilde parece vomitar, o narrador se
indaga se ela está grávida. “E vi respingos de leite nas bordas da pia, o ar
cheirava a leite, vazava leite no vestido da sua mãe, nunca lhe contei este
episódio?” (Buarque, 2009, p. 136). O leite derramado – que remete ao
título do romance – aparece aqui de maneira ambígua. Em outras passa-
gens, ora é o narrador que chupa o seio de Matilde depois da criança, ora
é um amante. A frase final de Budapeste, que é também repetida no fim da
primeira metade do livro (Buarque, 2003, p. 87) e quase no fim do primeiro
quarto do romance (Buarque, 2003, p. 40), também está associada ao leite
da mulher amada: “E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu
de beber a água com que havia lavado sua blusa” (Buarque, 2003, p. 174).
Percebe-se assim a recorrência da imagem do leite na obra do autor, e uma
certa indecidibilidade quanto ao seu caráter negativo ou positivo.
A memória do personagem confunde os tempos, colocando ações de um
momento em cenas que se passaram em períodos diferentes. Ao se lembrar
dos dias de espera depois que Matilde o teria abandonado, ele evoca os ins-
tantes de ansiedade e espera, antes do casamento, quando ela chegava pisando

230
a relva do jardim na ponta dos pés. O narrador se corrige: “Mas se calhar essa
cena se passava quando ainda nem éramos casados, e não no tempo das coi-
sas que eu vinha narrando. Não é culpa minha se os acontecimentos às vezes
me vêm à memória fora da ordem em que se produziram” (Buarque, 2009,
p. 188). As duas cenas se superpõem porque estão ligadas pelo mesmo sen-
timento de ansiedade e desejo, uma ocupa o lugar da outra, uma funciona
como a metáfora da outra, da mesma maneira que Kim é a metáfora de
Matilde, há uma analogia entre elas. Além desta relação metafórica, existe
na cena do banheiro a presença determinante do espaço do banheiro, com a
imagem recorrente dos azulejos de cavalos-marinhos. Neste caso há também
metonímia, pois existe uma contiguidade na superposição de cenas.
Em outro momento (capítulo 16) é a sensação de fome que desenca-
deia as lembranças do passado, processo que pode ser assimilado à memó-
ria involuntária de Marcel Proust. Como se sabe, todas as cenas de memória
involuntária em Proust são ligadas a experiências sensoriais: visuais, gustati-
vas, sonoras, olfativas e táteis. Mas, contrariamente à cena emblemática de
Proust, a da madeleine, em que ele come o bolinho e bebe o chá de tília, aqui
em Leite derramado é a sensação de fome e o desejo de comer, de preferência
a sobremesa de goiabada, que vai provocar a associação de ideias.
Na cena de Proust, em No caminho de Swann, primeiro volume de Em
busca do tempo perdido, ele mergulha a madeleine (bolinho) no chá de tília.
O gosto que lhe vem à boca provoca nele “um prazer delicioso, isolado, sem
noção de sua causa” (Proust, 1983, p. 45). A exultação que ele sente é uma
pequena epifania mas não desencadeia a lembrança imediatamente. Ele con-
tinua procurando, tomando mais chá e comendo a madeleine e, de súbito, a
lembrança volta. E o narrador de Proust afirma que “quando mais nada sub-
sistisse de um passado remoto (...) o odor e o sabor permanecem ainda por
muito tempo, como almas, (...) esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e
suportando sem ceder, (...) o edifício imenso da recordação” (Proust, 1983,
p. 47). Assim, ao comer a madeleine molhada no chá de tília, Proust desen-
terra toda sua infância, passada em Combray:
(...) assim agora todas as flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim
agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninféias do
Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda Combray
e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha
taça de chá” (Proust, 1983, p. 47).

231
Os capítulos começam, muitas vezes, de forma aparentemente coerente,
mas, em seguida, os tempos e as lembranças se misturam. O uso reiterado de
dêiticos como “aqui”, “nesta cama”, acompanhados de advérbios marcando
o tempo presente, não representam, de modo realista, um presente em que
se possa acreditar, eles podem se referir a encenações do passado. O narrador
não tem senso de realidade, está enclausurado a um passado que o habita, um
eterno hoje, dia da morte ou do desaparecimento de Matilde. “E hoje saiu
sem avisar aonde ia, Matilde nunca foi de sair à noite. Por isso é natural que
eu parta feito um louco atrás dela, mas isso só vai acontecer daqui a pouco. É
esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lem-
brar que Matilde vai sumir para sempre” (Buarque, 2009, p. 116-117).
Um traço predominante de Matilde: ela gostava de ficar na cozinha,
o que emblematicamente a singulariza como mulher negra, pois, segundo
o ditado popular a cozinha é o lugar da mulher negra, a cama o lugar da
mulata e a sala é o lugar da mulher branca. Depois de um jantar na casa
da mãe, ele a encontra na cozinha “sentada no chão com o velho Auguste”
(Buarque, 2009, p. 90) e, uma vez, ele a surpreendeu dançando o samba
“Jura” (de Noel Rosa), de maiô, com Balbino, o negro descendente dos
escravos da família, os Balbino Assunção. Ele considera que ver a mulher
nos braços “daquele crioulo” foi, para ele, “a pior infâmia” (Buarque, 2009,
p. 115-116). Ironicamente, é bom lembrar que, antes de conhecer Matilde,
ele tinha desejos homossexuais por este mesmo Balbino...
Quando sai com ela à noite para encontrar o engenheiro francês, ela
dança maxixe com o francês, o que é motivo de surpresa e escárnio para ele.
“Le maxixe!, exclamou o francês, é magnífico o ritmo dos negros!” (Buar-
que, 2009, p. 65). Ao imaginar que ela fugiria com o engenheiro francês,
ele considera que faria sucesso com sua “beleza mestiça” (Buarque, 2009,
p. 156). O racismo de Eulálio é correlato de sua subserviência colonial em
relação ao francês, emblematizada pela foto tirada no porto no dia de sua
chegada, na qual se vê como um lacaio, segurando o sobretudo e a pasta de
couro do engenheiro francês. Nota-se também um jogo cromático nas rou-
pas usadas: Eulálio veste terno preto e chapéu de coco, enquanto o francês,
mais alto que ele, traja um terno claro (bege ou cinza) com uma palheta
meio torta na cabeça (Buarque, 2009, p. 25).58

58
No romance O vermelho e o negro, de Stendhal, a roupa preta do personagem Julien Sorel é assimilada
ao cargo de secretário, enquanto a roupa azul é associada à posição da nobreza, à qual ele aspira.

232
À medida que vai-se desvendando a trama oculta que diz respeito à cor
de Matilde, a sua classe social e a seu fim presumível (ter sido assassinada), o
racismo à brasileira vai-se impondo. Ao levar Maria Eulália, a filha pequena,
para conhecer o avô, o deputado ignora a criança e se refere a Matilde como
“uma escurinha que criamos como se fosse da família” (Buarque, 2009, p.
192); já a mulher do deputado diz que Matilde era filha do deputado com
uma mulher da Bahia, ou seja, ela era uma bastarda. No final do romance,
na única vez em que aparece a voz da filha, Maria Eulália revela o censu-
rado, que a mãe era mulata, o que explicaria o fato de o bisneto ser “negão”,
como é chamado pela namorada. O bisneto nasceu aparentemente branco,
mas depois “começou a pretejar”. E o texto continua: “Da noite para o dia
os cabelos dele se encresparam, o nariz de batata engrossou mais ainda, e
quanto mais o menino escurecia, mais me perturbava a sensação de conhecer
sua cara de algum lugar” (Buarque, 2009, p. 148-149). Ele conhecia aquela
cara de algum lugar mas não era capaz de dizer de quem podia ser, ele não
podia reconhecer que o garoto se parecesse com Matilde (como lhe revela
sua filha), ou quem sabe com ele mesmo. O racismo à brasileira denega a
origem negra através de subterfúgios como a existência de uma ascendên-
cia indígena ou mourisca. “Não sei quem abastecia minha filha com tantas
maledicências, Matilde tinha a pele castanha, mas nunca foi mulata. Teria
quando muito uma ascendência mourisca, por via de seus ancestrais ibéri-
cos, talvez algum longínquo sangue indígena” (Buarque, 2009, p. 149).
A camuflagem do sangue negro também aparece do lado de Eulá-
lio, cuja mãe, que tem pretensões de superioridade e branquidade, diz
não entender como o filho tem “beiços grossos” (Buarque, 2009, p. 74).
Entretanto, ele se dá conta de que o irmão dela, o “tio Badeco Montene-
gro, tinha cabelo pixaim” (Buarque, 2009, p. 75). O racismo da linha-
gem do personagem manifesta-se em todas as gerações, em vários níveis.
O bisavô, barão do Império, “pagava altos tributos à Coroa pelo comércio
de mão de obra de Moçambique” (Buarque, 2009, p. 78), ou seja, trafi-
cava escravos. O avô – que teria sido abolicionista – lançou uma campa-
nha para a fundação de um país na África, a Nova Libéria,59 para que “os
filhos de África pudessem retornar às origens, em vez de perambularem
Brasil afora na miséria e na ignorância” (Buarque, 2009, p. 51).
59
O avô aqui imita os norte-americanos que criaram a Libéria a fim de que os negros libertos pudessem retor-
nar à África, empreendimento que tinha cunho humanista mas que não escondia o desejo de que os negros
voltassem para a África após a abolição, já que não tinham lugar nos Estados Unidos, país de brancos.

233
Eulálio tem aquela superioridade de sua classe de origem, que trata a
todos com condescendência. Aos policiais que encontra na rua pergunta “se
estavam felizes aqui ou pretendiam voltar para a África” e acrescenta: “Opi-
nei que servir na polícia era um grande progresso para os negros, que ainda
ontem o governo só empregava na limpeza pública” (Buarque, 2009, p.
175). Em outra passagem, ele demonstra seu racismo mesclado de etnocen-
trismo em relação a tudo o que é negro, inclusive o candomblé:
Não vai aí a intenção de ofender os mais humildes, e nada tenho contra sua religião.
Talvez até seja um avanço para os negros, que ainda ontem sacrificavam animais no
candomblé, andarem agora arrumadinhos com a Bíblia debaixo do braço. Tampouco
contra a raça negra nada tenho, saibam vocês que meu avô era um prócer abolicio-
nista, não fosse ele e talvez todos aí estivessem até hoje tomando bordoada no quengo
(Buarque, 2009, p. 193).

É comum no Brasil esta atitude racista que teima em afirmar que não
é racista, seja denegando sua origem por uma ideologia de branqueamento,
seja atribuindo a cor trigueira, como faz Amleto em Viva o povo brasileiro
de João Ubaldo, a origens consideradas mais nobres (indígena ou mourisca,
como aqui no Leite derramado), seja achando que lugar de negro é na África
(por isto, postulando o retorno), seja ainda repetindo os clichês e provérbios
racistas. Chico Buarque, ao desvelar estes procedimentos e estratégias, des-
mascara o racismo através do humor e da paródia.

234
os “brasileiros” do benin: a questão do retorno à áfrica

Le Retour est l’obsession de l’Un: il ne faut pas changer l’être.


Edouard Glissant

Introdução
Durante o século xix muitos afro-brasileiros retornaram à África, sobre-
tudo para a região do Golfo do Benin (Benin, Nigéria, Togo, Gana). Alguns
haviam sido deportados depois da Revolta dos Malês (Bahia, 1835), mas a
maioria retornou por vontade própria. Eram pessoas livres, dinâmicas, que
se instalaram na África e aí criaram uma comunidade de “Brasileiros”, cha-
mados também de “Agudás” ou “Amarôs” na Nigéria, no Benin, no Togo e
de “Tabom” em Gana.
Esta história é tematizada por alguns romances brasileiros e antilha-
nos centrados numa figura de mulher brasileira que retorna: Mariana,
Kehinde/Luísa e Ayodélé/Romana.60 Mariana é a protagonista de A casa da
água (publicado em 1969), primeiro volume da trilogia de Antonio Olinto
(1919-2009) A alma da África, que inclui ainda O rei de Keto (de 1980) e
O trono de vidro (de 1987). O assunto foi retomado recentemente por Ana
Maria Gonçalves (nascida em 1970 em Ibiá, Minas Gerais) em Um defeito
de cor (2007), no qual a autora inspira-se nas lacunas da biografia do advo-
gado, jornalista e escritor Luiz Gama (1830-1882), para reconstituir fic-
cionalmente a história de sua mãe Kehinde e, através dela, das condições
de vida dos escravos na Bahia do século xix. A escritora antilhana Maryse
Condé (nascida em 1937 em Pointe-à-Pitre, Guadalupe) também recria a
vida dos Agudás no seu romance em dois volumes: Ségou, Les murailles de
terre (publicado em 1984) e Ségou, La terre en miettes (em 1985). Nesta saga
sobre a família Traoré, da etnia Bambará, no reino de Ségou (atual Mali),
um dos quatro filhos do patriarca é capturado e enviado como escravo ao
Brasil, onde é injustamente condenado à morte. Ele morre mas sua esposa
Romana da Cunha e seus três filhos são deportados para a África.

60
Mariana, nascida no Brasil, só tem nome brasileiro; Kehinde, apesar de receber o nome de Luísa,
só decide usá-lo quando vai viver na África; Ayodélé, depois da morte de seu marido, converte-se ao
catolicismo e passa a usar só seu nome cristão, Romana. Para evitar confusão, no meu texto só usarei
Kehinde e Romana, os nomes que prevalecem nos romances.

235
Não se pretende fazer uma análise exaustiva dos romances; busca-se,
antes, apreender como os afetos atingem os personagens quando eles se des-
locam de um país para outro, de uma cultura para outra, moldando novas
identidades, frutos do trânsito e das travessias de territórios. Percebe-se que
a procura de uma origem, de uma raiz, através de variados “retornos”, não
resulta necessariamente em felicidade, já que a nostalgia de um lar que se
teve no passado não pode ser resolvida por um retorno simples.

Os Agudás
Os retornados do Brasil (às vezes até os de Cuba) eram denominados
Brasileiros ou Agudás, termo derivado do nome do forte português São
João d’Ajuda (ou Ajudá ou Agudá), em Uidá (antigo Daomé, atual Benin).
Como Agudá significava ao mesmo tempo católico e como a religião cató-
lica era identificada com os brancos, os Brasileiros eram “brancos” de uma
nova espécie, em que a cor da pele não interferia na classificação (Verger,
2002, p. 633). Aos olhos dos africanos que lá permaneceram e desprezavam
os antigos escravos, o orgulho dos brasileiros parecia incompatível com o
estatuto de escravos que eles tinham tido no Brasil.
Se era para perpetuar assim a lembrança do Brasil por que os Agudás não ficaram por
lá? Eles clamavam que haviam passado os melhores anos de suas vidas lá. Será que se
esqueciam que foram escravos? E que haviam escolhido voltar para a terra de África?
Será que se esqueciam que muitas vezes fomentaram revoltas? Estranha reviravolta!
(Condé, 1984, t.2, p. 48)

Segundo Pierre Verger (2002), os Brasileiros que voltavam à região da


África Ocidental provocavam sentimentos hostis da população local, como
se pode verificar nos romances, porque se consideravam diferentes e supe-
riores aos que lá ficaram. Por outro lado, como os Sarôs61 eram ainda mais
orgulhosos, a reação de acrimônia contra eles era mais forte. Um persona-
gem de Ségou diz:
Os mestiços eram mais arrogantes que os brancos pois queriam fazer esquecer sua
metade de sangue negro. Quanto aos “Sarôs” e aos “Brasileiros”, os primeiros calcavam

61
Sarôs (ou Salôs), segundo Gonçalves (2007, p. 776), é uma corruptela de Serra Leoa. O termo desig-
nava os africanos que seriam levados como escravos para o Brasil ou Cuba; libertados pelos ingleses em
pleno mar, foram instalados em Serra Leoa. Muitos deles acabaram indo depois para Lagos (Nigéria).
O marido de Kehinde na África é um Sarô.

236
seu comportamento no dos ingleses e desprezavam os últimos por causa de seu antigo
estado servil. Mas os dois grupos abominavam os autóctones da mesma maneira e se
associavam aos mestiços e aos brancos (Condé, 1984, t.2, p. 198).

Há uma inadaptação, pois “se eles cultivavam o seu particularismo afri-


cano no Brasil, por outro lado foi um apego aos costumes e hábitos adqui-
ridos neste país que eles fizeram questão de manter quando de volta à costa
africana” (Verger, 2002, p. 632). Este é o caso de Kehinde que, apesar de ter
fugido do batismo, acaba recebendo o nome cristão de Luísa, usado quando
lhe é conveniente. Ela, que sempre fez questão de preservar seus deuses e seu
nome africano, na África assume o nome cristão e ao ter filhos prefere dar-
lhes nomes portugueses. Segundo Gilberto Freyre, estes retornados já esta-
vam bastante mestiçados.
Esses africanos e descendentes de africanos, tendo vivido no Brasil, principalmente
na Bahia, voltaram para a África com costumes, hábitos, modos de vida que tinham
adquirido em terra estrangeira aos quais se tinham ligado para sempre (...). Eles leva-
ram para a África o gosto pela farinha de mandioca, pela goiabada, pelas comidas bra-
sileiras, pelos hábitos brasileiros. Perpetuaram na África devoções como a do Senhor
do Bonfim e festas, com danças e cantos, muito brasileiras, já mestiçadas (Freyre apud
Verger, 2002, p. 632).

Por mais paradoxal que possa parecer esta situação, o desejo de retorno,
ao ser satisfeito, não desencadeia necessariamente nem readaptação nem
felicidade. Segundo Edouard Glissant, a “primeira pulsão de uma popula-
ção transplantada (...) é o Retorno. O Retorno é a obsessão do Um: não se
deve mudar o ser. Voltar é consagrar a permanência, a não-relação” (Glis-
sant, 1981, p. 30). Ora, a volta ao Um original é imaginária e, na realidade,
pode-se transformar em frustração e revolta porque o transplantado, como
bem percebeu Freyre, já estava hibridizado, mestiçado. Ou, nos termos glis-
santianos, ele já entrara em Relação com o Outro, crioulizando-se.
Os autores destes romances retratam esta comunidade mostrando a
transformação que ela opera na região e, mais particularmente, na cidade
de Lagos, com a construção de sobrados e igrejas, com suas escolas cató-
licas, suas festas e seus costumes. As protagonistas são o motor da histó-
ria: elas conseguem contratar marcineiros e pedreiros brasileiros para cons-
truir sobrados como os da Bahia, começam a fazer comércio com o Brasil,
exportando dendê e importando açúcar, carne-seca e fumo. Elas circulam
bastante pela região, indo da Nigéria ao Benin e ao Togo. Elas aprendem
várias línguas a fim de poder se comunicar com os diferentes colonizadores

237
implantados na região e com as várias etnias africanas. Enviam os filhos para
continuar os estudos na Europa.
Se Ana Maria Gonçalves descreve a África a partir de pesquisa livresca,
Maryse Condé, que se casou com o ator Mamadou Condé (da Guiné), viveu
grande parte das décadas de 1960/1970 na Guiné, em Gana e no Senegal, e
Antonio Olinto, que trabalhou como diplomata na Nigéria nos anos 1960,
conheceram, na costa ocidental africana, a comunidade dos Brasileiros, que
conserva até hoje a memória de seus ancestrais retornados, comemorando
festas brasileiras como o bumba-meu-boi (ou burrinha), a festa do senhor
do Bonfim e outras.
Para criar a Mariana, Olinto inspirou-se em uma mulher idosa que lá
encontrou, Romana da Conceição, que realizou o sonho de vir passear no
Brasil em 1963 (Olinto, 1980). O fato de Maryse Condé ter usado o nome
de Romana talvez não seja uma coincidência. O poço da casa de Mariana
foi calcado no fato de o primeiro poço de água em Lagos ter sido perfurado
por um retornado brasileiro, João Esan da Rocha. A chegada de Mariana,
em que todos desembarcam nus, foi inspirada no caso acontecido em 1899
com Romana da Conceição, que viajou com a família no patacho Aliança,
no qual haviam morrido pessoas com febre amarela durante a travessia. As
autoridades britânicas forçaram o navio a ficar em quarentena. Romana
contou isto a Antonio Olinto: “Com receio da doença, os ingleses tomaram
tudo o que a gente possuía. Descemos em Lagos enrolados nuns panos que
não eram nossos” (Olinto, 1980, p. 262).
Nos três romances se faz referência ao brasileiro Francisco Félix de
Souza (1754?-1849), o Xaxá (ou Chachá), a figura mais importante do
Daomé depois do rei Guezo. Filho de um português traficante de escravos,
nasceu em Salvador de uma mãe negra ou indígena. Começou a negociar e
acabou fixando residência em Uidá no final do século xviii. Trabalhou no
Forte São João d’Ajuda; com a saída dos portugueses, passou a comandar
o forte e, por extensão, a cidade de Uidá, que se tornou o mais ativo entre-
posto de embarque de escravos para Brasil e Cuba. Era o mais rico comer-
ciante e traficante de escravos do Daomé. Fez pacto de sangue com o rei
Guezo, a quem ajudou a derrubar seu predecessor, o rei Adandozan. Ele
era um ponto de referência para os Agudás. Inspirou obras literárias como
O vice-rei de Uidá, de Bruce Chatwin (1940-1989), O último negreiro, de
Miguel Real (1953-). O primogênito de seus descendentes conserva até hoje
o título de Xaxá.

238
O sincretismo religioso aparece tanto na Bahia quanto na África.62
Católicas e praticantes do candomblé, Mariana e Kehinde não deixam de
fazer suas devoções aos orixás. Às vésperas da eleição de seu filho, Mariana
lhe diz: “Pedi a Xangô que tudo saísse bem. A Xangô e ao Divino Espírito
Santo” (Olinto, 1978, p. 342). Já Romana é mais profundamente católica
e intransigente, o que não a impede de ir procurar um pai de santo quando
está muito necessitada; por sua austeridade, ela tem mais conflitos religio-
sos que as protagonistas dos romances brasileiros. Diante de suas desventu-
ras, ela se indaga se os orixás a estariam punindo por ela ter abandonado seu
nome Ayodélé pelo nome cristão de Romana.

A casa da água
A história do romance A casa da água se inicia em 1898, 10 anos após
a abolição da escravidão, quando Catarina resolveu deixar a cidade de Piau
(mg) com sua filha Epifânia e seus três netos (Mariana, Antônio e Emí-
lia) a fim de voltar à África. Depois de passar mais de um ano na Bahia, a
família conseguiu tomar o patacho Esperança em direção a Lagos (Nigéria),
onde chegou em 1900. Mariana tinha 13 anos e sua primeira menstruação
ao desembarcar em Lagos, nua, coberta com um lençol. Segundo o autor, a
história de Mariana foi inspirada nos eventos protagonizados por Romana
da Conceição:
Muita gente me pergunta se Romana é a Mariana de meu romance A casa da água.
Até certo ponto, sim. Explico-me: foi Romana quem me contou a viagem do pata-
cho “Aliança” – que no romance chamei de “Esperança” – e entrou em detalhes sobre
os primeiros anos de sua vida em Lagos, no começo do século. Ela não é a Mariana,
mas foi sua inspiração (Olinto, 1980, p. 230).

A avó Catarina, nascida na África, vendida por um tio aos 18 anos,


nunca perdeu o desejo de voltar durante os 50 anos que passara no Bra-
sil, mas Epifânia seguiu a mãe contrariada, pois nunca havia saído de Piau.
Se Catarina considerava o regresso necessário, Epifânia achava que era uma
iniciativa condenada ao fracasso. Frustrada, pelo menos no início, ela acabou

62
Ao usar o termo África neste texto estou-me referindo sempre a esta região do golfo do Benin,
sobretudo aos atuais países Nigéria e Benin. A etnia que prevalece nestas histórias é a dos Iorubá, e a
religião é a do culto dos orixás, que recebeu no Brasil o nome de candomblé (no Haiti, de vodu, em
Cuba, de santeria).

239
adaptando-se à vida africana e morreu aos 79 anos. Já Catarina viveu a
dura experiência do retorno, já que o país real não correspondia mais ao país
sonhado, imaginado. Ao afirmar que a África era sua terra, alguém lhe respon-
deu: “É e não é, iaiá. Para a maioria, os avós saíram daqui e foram escravos no
Brasil, se acostumaram lá, mas sempre pensando que aqui era o paraíso. Pois
isto aqui é o paraíso e também não é o paraíso, iaiá” (Olinto, 1978, p. 75).
Catarina levou a família para visitar sua cidade natal, Abeokutá, fez o reco-
nhecimento do país, o palácio do Alakê, o local onde morava, mas não reen-
controu nenhum amigo, nenhum parente. Epifânia percebeu que a decepção
da mãe manifestava-se em forma de tristeza, de melancolia, pois a volta não
realizou nenhuma transformação real em sua vida, o regresso não lhe devol-
veu aquilo que ela havia perdido aos 18 anos, uma infância feliz numa cidade
bonita, ou seja, o Um fixo no espaço e no tempo ao qual queria voltar já não
existia. “Agora ela está percebendo que não mudou nada, não há diferença
muito grande entre isto aqui e a Bahia, a diferença que há é para pior, lá a
gente era da terra, aqui somos estrangeiros” (Olinto, 1978, p. 87).
Das três gerações, a única a se adaptar totalmente na África é a das
crianças. Catarina, que recuperou seu nome africano Ainá, morreu pouco
depois de sua volta, sem ter obtido aquilo que a moveu a empreender a
viagem de retorno. Enquanto Epifânia só pensava no Brasil, Mariana ten-
tou entender os inúmeros conflitos locais, rivalidades entre grupos étnicos,
enfim, tentou apropriar-se da realidade local a fim de fincar raízes. Aos 16
anos casou-se com Sebastian Silva, um brasileiro que trabalhava com os
ingleses. Tiveram três filhos: Joseph, Ainá e Sebastian. O primeiro empreen-
dimento de Mariana foi abrir um poço em seu quintal a fim de vender água,
produto escasso e caro; aos poucos diversificou seus negócios, tornando-se
uma mulher rica.
O filho que mais se destaca no romance é Sebastian, inspirado na figura
histórica de Sylvanus Olympio, primeiro presidente do Togo, que era des-
cendente de brasileiros e que foi assassinado. Sebastian, casado com Segui,
dedica-se à vida política, tornando-se representante do Zorei (país fictício)
na Assembleia Nacional da França e participa do processo de descoloniza-
ção africana.
Somos um grupo grande, de homens de toda a África que, falando francês como
nós, estão em Paris preparando a autonomia. (...) Temos em Paris um movimento,
chamado Présence Africaine, que luta em favor da consciência da gente negra, e nele
estão africanos como Senghor e D’Arboussier, e não-africanos como Césaire, que é

240
das Antilhas, e Damas, que é da Guiana, numa permanente campanha em prol dos
povos colonizados (Olinto, 1978, p. 325).

Além de Sebastian, também seu cunhado Fagum tem participação polí-


tica na descolonização. Ambos têm consciência de que se trata de um pro-
cesso longo, com várias etapas: independência política, econômica e tecno-
lógica. Fagum aponta para o neocolonialismo que apareceria logo após as
independências, pois os europeus continuariam a “mandar no continente
através de uma rede de bancos, de investimentos, de companhias, de vários
tipos de negócios que permaneceriam lá” (Olinto, 1978, p. 339). Antonio
Olinto mistura personagens ficcionais com personagens históricos na festa
da independência de Zorei: lá estão Fagum (personagem ficcional), genro
de Mariana, enviado oficial da Nigéria, e o presidente do Togo, Sylvanus
Olympio (personagem histórico).
A família de Sebastian tem um fim trágico: ele torna-se o primeiro pre-
sidente de Zorei após a independência mas é assassinado, oito anos depois
de a mulher ter morrido ao dar à luz Mariana, que será a protagonista do
terceiro volume da trilogia. Apesar de ter mantido intenso contato com as
pessoas no Brasil em seus muitos empreendimentos, Mariana nunca deixou
a África; quem vai realizar a volta é sua neta Mariana. Em O trono de vidro, a
jovem Mariana é chamada a assumir um papel político, seguindo as pegadas
do pai, Sebastian Silva. Ela lidera uma campanha pela redemocratização do
país e é eleita presidente. Inspirado parcialmente na visita que Romana da
Conceição fez ao Brasil em 1963, Olinto descreve a visita da neta Mariana,
que refaz o trajeto de seus ancestrais: as cidades de Piau e Juiz de Fora, em
seguida Rio de Janeiro e Salvador. É uma viagem sentimental, em que ela vê
aqueles lugares que conhecia de tanto ouvir as histórias contadas pela avó.
Fotografa e filma tudo a fim de levar um vídeo para a avó, já quase centená-
ria, que se sente feliz ao reconhecer o cenário de sua infância: “Não mudou
muito. A casa, a igreja, tudo é como era” (Olinto, 2007, p. 391).

Um defeito de cor
O romance A casa da água, por sua vez, serviu de inspiração para a
escritora Ana Maria Gonçalves criar a parte da volta de Kehinde à África no
romance Um defeito de cor. Tanto Mariana quanto Kehinde se enriquecem,
se casam e se integram na sociedade local; seus filhos africanos vão prosseguir

241
os estudos superiores na Europa, voltam, se casam, têm filhos, integrando
uma nova elite. No final de A casa da água, Mariana sente um vago desejo de
voltar para o Brasil, mas acaba por não fazê-lo, enquanto Kehinde retorna,
movida pelo desejo de reencontrar o filho Luiz Gama, de quem conseguira
finalmente ter notícias.
Pode-se sugerir que a criação de um personagem chamado Fatumbi tanto
em A casa da água quanto em Um defeito de cor pode ser interpretada como
uma homenagem a Pierre Verger (1902-1996), fotógrafo e pesquisador fran-
cês que chegou a Salvador em 1946, onde passou a maior parte de sua vida.
Ele se iniciou no candomblé na Bahia mas foi na África que recebeu o nome
de Fatumbi, “nascido de novo graças ao Ifá”, em 1953. Fatumbi é, em A casa
da água, um pai de santo africano que acompanha os passos de Mariana ao
longo de sua vida e, em Um defeito de cor, Fatumbi é um escravo muçul-
mano, com quem Kehinde aprende a ler na infância (em Itaparica) e que
exerce um papel fundamental em sua vida no período em que vive em Sal-
vador, seja na função de contador, ajudando-a na administração da padaria,
seja ao fazê-la compreender melhor questões mais políticas ligadas à comuni-
dade. Fatumbi é, em ambos os romances, um homem íntegro que desempe-
nha o papel de mentor espiritual e/ou cultural de Kehinde e de Mariana.
A volta à África se dá depois de Kehinde perder a esperança de reencon-
trar seu filho, Luiz Gama. Isto se dá em 1847, 30 anos depois de ela ter che-
gado no Brasil. Ela vai-se estabelecer em Uidá, que é o porto do qual partira,
e onde conhecia algumas pessoas. Durante a viagem, ela tem um relaciona-
mento amoroso com um Sarô, John, um mulato escuro nascido e criado em
Freetown, Serra Leoa, de quem engravida. Ele se propõe a ajudá-la a ven-
der a carga que levava (cachaça, tabaco) e a partir daí se unem, negociando
armas, pólvora, óleo de dendê, tanto com os ingleses quanto com os reis
africanos e os brasileiros de Salvador. Não demonstra escrúpulos ao vender
armas, que seriam usadas no comércio de escravos.
Às vezes eu ficava um pouco constrangida por me relacionar com mercadores de
escravos, mas logo esquecia, já que aquele não era problema meu. Eu não consegui-
ria resolvê-lo mesmo se quisesse, e também não poderia ficar com muitos escrúpulos
depois de fornecer armas para o rei Guezo, sabendo que seriam usadas em guerras que
fariam escravos, quase todos mandados para o Brasil (Gonçalves, 2007, p. 771).

Ela e John formam uma família, consolidada com o nascimento dos


gêmeos, que recebem nomes brasileiros, Maria Clara (homenagem à Sinha-

242
zinha brasileira) e João. Ela decide usar seu nome brasileiro, Luísa, e escolhe
dois sobrenomes brasileiros, Andrade Silva, porque era mais conveniente ter
nomes brasileiros. Eles se enriquecem, enviando os filhos para prosseguir
os estudos na França. Após a morte de John, ela opta por permanecer em
Lagos. Os filhos se casam e dão-lhe 11 netos. Sua atitude positiva diante da
vida e das pessoas suscita ao mesmo tempo o respeito e o ciúme de John. “O
John se dizia admirado com a minha sorte e com a maneira como eu logo
me tornava amiga das pessoas” (Gonçalves, 2007, p. 780).

Ségou
Trata-se de uma saga que se inicia no fim do século xviii no reino de
Ségou63 em torno da família de Dousika Traoré, notável e conselheiro do
rei. O próspero reino dos Bambará, de tradição animista, começa a sofrer
o impacto da islamização desta parte da África. Há uma espécie de maldi-
ção que paira sobre a família Traoré. Os quatro filhos de Dousika se desgar-
ram das origens ancestrais, se dispersam e têm destinos trágicos. Tiékoro,
o primogênito, é atraído pelo Islã, vivendo uma vida de conflito, que será
também o destino de seu filho Mohammed. O segundo, Naba, capturado e
vendido como escravo, morre no Brasil. Siga, o terceiro filho, o mal-amado
(porque era filho de uma escrava, que fugiu), atravessa o deserto, seguindo
os passos do irmão mais velho, o preferido do pai, e chega até Fez (Marro-
cos). O filho mais novo, Malobali, sempre rebelde, vai para Lagos, onde
encontrará a viúva do irmão, com quem vai-se casar. Seu filho Olubunmi se
torna soldado do exército colonial francês.
Através deste resumo pode-se perceber que o romance faz uma imensa
reconstituição histórica de cerca de um século, de um lado mostrando o
processo de islamização da África (do século xviii ao xix), de outro lado
encenando os conflitos ligados à chegada dos colonizadores europeus e sua
associação com a cristianização das populações locais. Uma primeira cena
anuncia a catástrofe que estaria por vir: a chegada às portas de Ségou de um
explorador escocês, Mungo Park (1771-1806), que atinge as margens do rio
Níger. Trata-se do primeiro homem branco que aquelas pessoas veem; assus-
tadas, elas correm para contar aos outros habitantes, uma novidade, aliás,
quase inacreditável. Uma das cenas finais é o ataque do exército francês a
63
Conservarei a ortografia francesa; em português a cidade é chamada de Segu.

243
Ségou, a destruição dos muros da cidade e a entrada triunfante da coloniza-
ção europeia em 1890.
A linha da intriga que diz respeito aos Brasileiros começa com a captura
de Naba e Ayodélé: Naba encontra Ayodélé ainda antes do embarque para
o Brasil. Ele a protege durante a viagem mas são separados no ato da com-
pra deles em Recife. Ela é levada para uma fazenda em Pernambuco, onde,
aos 13 anos, é estuprada por seu senhor. Algum tempo depois, Naba aparece
por lá, com jeito meio estranho, fingindo-se de louco, sem falar, e se instala
com Ayodélé, já grávida. Ele aceita o filho dela sem mágoa. Juntos, têm três
filhos, encontrando uma certa felicidade, que dura pouco, porém, já que
ele é condenado à morte em consequência da delação do filho mais velho,
Abiola/Jorge, que sabia ser filho do senhor. Ao ouvir as conversas dos pais,
ele descobriu que faziam planos de comprar a alforria e retornar à África.
Como ele desprezava a África e preferia ficar no Brasil, ele acusou Naba de
ser conspirador por causa de um panfleto escrito em árabe que Naba rece-
bera nas ruas de Recife.64 Após a morte do marido, antes de ser deportada
com os três filhos de Naba, ela se converteu ao catolicismo e passou a adotar
o nome de Romana da Cunha.
Em Lagos, Romana da Cunha encontrou por acaso Malobali, irmão de
seu finado marido, com quem se casou, conforme a tradição Bambará. Ape-
sar de apaixonada e fortemente atraída por ele, Romana considerava o casa-
mento uma forma de incesto; a incompatibilidade do casal viria justamente
das diferenças culturais.
Quando começou o desentendimento do casal? Na verdade, desde a noite de núp-
cias. (...) Logo tudo se tornou razão para brigas. Para Malobali as diversões dos Agu-
dás pareciam pueris e pretensiosas, e achava a arrogância em relação aos autóctones
insuportável; já Romana considerava os Bambarás grosseiros, depravados, inimigos
do verdadeiro Deus (Condé, 1984, t.2, p. 51).

Como Mariana, que descobriu que estava grávida depois da morte do


marido, Romana também só percebeu que esperava o filho de Malobali que
ela tanto desejara após a sua morte. Infeliz demais para poder continuar
vivendo, ela definha e morre após o parto; seu quinto filho, Olubunmi, é
entregue à família Traoré, em Ségou. Os três filhos de Naba vão viver com o
tio paterno de Romana, um antigo escravo na Jamaica, que se instalara em

64
Referência à revolta dos Malês.

244
Freetown. O dois filhos que se tornam personagens do romance são Eucaris-
tus e Olubunmi, sendo que este último vai se inserir na linhagem dos Bam-
bará. Quanto a Eucaristus, depois de um certo conflito por não saber o que
ele é, Agudá, Bambará ou Ioruba, vai-se encaminhar para o sacerdócio pelas
mãos dos ingleses, já que estava instalado em Serra Leoa (colônia britânica),
onde viviam os retornados da Jamaica e os Sarôs. Como sua mãe, Eucaristus
é um personagem em conflito com suas várias heranças culturais.
Eucaristus falava português e ioruba, línguas de sua mãe, inglês, língua do ensino em
Fourah Bay College, um pouco de francês e tudo isto misturado para formar o pidgin
que era a lingua franca da costa. Esta confusão de línguas, que fazia pensar na torre
de Babel, parecia-lhe a imagem de sua própria identidade. O que era ele? Um animal
compósito, incapaz de se definir (Condé, 1984, t.2, p. 189).

O romance de Maryse Condé tematiza um outro retorno, desta vez em


sentido inverso, da África para a Jamaica, e os conflitos que este desloca-
mento vai acarretar. Samuel, filho de Eucaristus, influenciado pelas histó-
rias contadas por sua mãe, uma descendente dos Maroons65 da Jamaica, que
tinha uma visão idealizada deles, decide viajar para a Jamaica, em busca dos
ancestrais de sua família materna. Ele e a esposa sofrem um tremendo cho-
que cultural porque são muito mal recebidos, sobretudo pelos Maroons, que
se haviam transformado em verdadeiros criminosos. A decepção no contato
com os Maroons faz desmoronar os mitos que pareciam alicerçar a vida de
Samuel, o que o leva a se identificar como o homem sem nome: “Meu nome
é Sem-Nome, sim!” (Condé, 1985, p. 383).
Como se percebe, se a partida é (geralmente) traumática, o retorno não
é menos doloroso, ou seja, o sentimento de pertença a um território é um
agenciamento (Deleuze, Guattari, 1980), um emaranhado de fios de natu-
reza diferente, que formam processos de desterritorializações e reterritoriali-
zações sempre em desequilíbrio.

65
No Caribe a palavra Marron (em francês), Cimarrón (em espanhol) e Maroon (em inglês) designa o
escravo que foge das plantações para a liberdade nas colinas. O termo seria mais ou menos equivalente
de quilombola. Os Maroons da Jamaica, que conseguiram vencer os ingleses, assinaram um pacto de não
agressão com eles, tornando-se em seguida verdadeiros traidores porque delatavam revoltas que outros
negros tentavam organizar. Eles aparecem sob esta faceta negativa em Ségou e em outro romance de
Maryse Condé, Moi, Tituba, sorcière........noire de Salém (1986) (traduzido em português: Eu, Tituba,
feiticeira .......negra de Salem).

245
Dificuldades do retorno
O que se percebe na leitura destes três romances é que os persona-
gens têm reação diferente a sofrimentos equivalentes. Romana e Kehinde
foram ambas enviadas à escravidão na adolescência, sendo estupradas pelo
senhor, pai de seu primeiro filho. Ambas voltam para a África, Romana com
seus três filhos, Kehinde sem os dois filhos que tivera, um morto e o outro
desaparecido. Romana converte-se ao catolicismo enquanto Kehinde man-
tém-se fiel aos seus orixás. A Romana que Condé cria é uma mulher dilace-
rada em sua vida emocional, apesar de se manter sempre diligentemente em
luta para ganhar dinheiro e melhorar sua situação econômica. Tanto as duas
quanto Mariana demonstram um alto grau de resiliência66 e capacidade de
negociação a fim de ascender socialmente.
A inadaptação inicial dos afro-brasileiros que voltaram à África no
século xix, deportados ou retornados por vontade própria, comprova que a
travessia de territórios sempre cobra pedágio no que concerne aos afetos. Ao
sentir saudade do Brasil e tentar recriar seus usos e costumes e, sobretudo,
ao considerar que os anos passados no Brasil tinham sido os mais felizes de
suas vidas, apesar do cativeiro, eles atestam que toda mudança de país desen-
cadeia uma crise, porque as pessoas se transformam e se adaptam. Quando
se dá uma nova mudança, alguns têm maior facilidade do que outros para se
readaptar, estabelecer relação, se enraizar.
No momento presente, fala-se de “síndrome de Ulisses”, uma espécie de
banzo que afeta migrantes, levando-os ao suicídio. Estas pessoas, que migra-
ram muitas vezes sem família, tendo de viver em países de cultura diferente,
em condições econômicas adversas e, sobretudo, extremamente isoladas por
dificuldades de comunicação por não falar a língua local, solitárias, privadas
de afeto, não resistem muito tempo a esta vida de autômato e acabam tendo
uma depressão e/ou se suicidando, como se explica no romance A síndrome
de Ulisses (2006), do escritor colombiano Santiago Gamboa. Síndrome de
Ulisses, saudade, banzo, estas e tantas outras formas servem para exprimir o
mal-estar que caracteriza o ser humano sempre que ele se desloca e tem de
abandonar laços tecidos com o espaço-tempo de suas relações, de suas emo-
ções. Fala-se de espaço – utopia ou distopia –, mas o espaço está intima-
mente ligado ao tempo: a saudade do Brasil do retornado é antes de tudo
66
Ver origem da palavra e sua utilização na clínica psicológica no artigo sobre Ana Maria Gonçalves.

246
saudade de uma infância e/ou juventude que parecem ter sido bem melhores
do que a maturidade ou a velhice na terra de África, onde se escolheu viver.
O mal-estar pode-se acirrar, levando a pessoa ao suicídio, quando a própria
humanidade da pessoa é ameaçada pelas difíceis ou insuportáveis condições
de existência. No entanto, a história tem mostrado que o ser humano luta
para sobreviver mesmo em situações de estresse, o que comprova que a resi-
liência é um fator importante ao se estudar o comportamento emocional
das pessoas (e dos personagens de romances) frente ao trauma.

247
o escritor brasileiro viaja para o exterior
desterritorialização na narrativa
brasileira do século xxi

Faut-il partir? Rester? Si tu peux rester, reste;


Pars, s’il le faut.
charles baudelaire

Flora Süssekind evoca a canção alemã que começava com o verso “O


Brasil não é longe daqui”, usada na propaganda imigratória que tentava
atrair alemães para virem para a “Terra de Promissão, onde haveria ouro
como areia, as batatas seriam do tamanho de uma cabeça, o café cresceria
em todas as árvores e o verde seria eterno” (Süssekind, 1990, p. 22), como
mote para analisar a narrativa do início do século xix, cuja característica
seria a de um paisagismo em que o narrador descreve a paisagem a partir do
olhar estrangeiro, presente nos inúmeros relatos de viagem. Assim, o escri-
tor brasileiro vê seu país desde os primórdios fundacionais em um jogo de
espelhos no qual, ao introjetar o olhar de fora para dentro, tem “a sensa-
ção de não estar de todo” (Süssekind, 1990, p. 21). A imaginação geográ-
fica perpassa a produção literária brasileira do período romântico e chega,
de maneira já transformada, até o século xx. O princípio cartográfico, que
levava o escritor a percorrer e a descrever o território, parecia estar na base
de um desejo de fundar a brasilidade.
A necessidade de afirmação do nacionalismo/regionalismo em oposi-
ção ao cosmopolitismo/universalismo parece ser uma constante no Brasil ao
longo do século xix na medida, justamente, em que se buscava uma auten-
ticidade, uma originalidade brasileira que viesse preencher o vazio desta situa-
ção deslocada, de um mal-estar do desterrado de que fala Sérgio Buarque
de Holanda. Machado de Assis, ao criticar o viés excessivamente naciona-
lista de seus contemporâneos, no célebre artigo “Instinto de nacionalidade”
(1873), cita, em sua argumentação, o exemplo de Shakespeare, que insere as
intrigas de suas peças em outros países (Otelo, Hamlet, Romeu e Julieta) e nem
por isso deixa de ser inglês. Este conflito era próprio de uma literatura perifé-
rica, pois os escritores europeus, notadamente da Inglaterra, não se colocavam
tais dramas, já que, vivendo em potências coloniais, o mundo todo lhes perten-
cia. Aliás, Shakespeare inaugura a encenação da relação entre o colonizador e o
colonizado em sua última peça, A Tempestade (1611), em que cria a figura de

251
Caliban (primitivo, bárbaro, bestial), anagrama de canibal, que, por sua vez,
era a corruptela de caribe.67 O primeiro romance inglês, Robinson Crusoe
(1719), de Daniel Defoe, retoma a relação entre o conquistador branco, o
náufrago Robinson, e o colonizado nativo, Friday, que, como Caliban, tem
nome postiço e aprende a língua inglesa com o colonizador. Assim, autores
britânicos como Rudyard Kipling, Joseph Conrad, Graham Greene, retra-
taram as colônias ou outros países exóticos em seus livros. O mesmo ocorre
na França desde o século xviii, pois os escritores, tendo viajado ou não,
escreveram sobre estas outras paisagens que atraíam a curiosidade dos leito-
res da época. Chateuabriand, no início do século xix, publicou Atala (1801),
depois de uma viagem aos Estados Unidos, romance que está no bojo do sur-
gimento do indianismo brasileiro de José de Alencar. Muitos escritores france-
ses e ingleses (e depois americanos) foram para o Oriente, criando aquilo que
Edward Said chamou de “orientalismo”, ou seja, um conjunto de textos que
buscava representar o Oriente como o lugar do exótico, da luxúria, da desor-
dem, da irracionalidade. Ele concebe tais textos como representações, bus-
cando apreender neles “seus estilos, figuras de linguagem, os cenários, meca-
nismos narrativos, as circunstâncias históricas e sociais” (Said, 1990, p. 32)
e não a correção e a exatidão da descrição. Assim, tanto o Oriente quanto a
América Latina têm um olhar sobredeterminado pela Europa que já tinha
“inventado” estes territórios como locais do Outro.
Ao longo do século xx a dicotomia nacionalismo/regionalismo versus
cosmopolitismo/universalismo continuou, apesar da herança de Machado
de Assis, cujos romances e contos são claramente urbanos e de problemá-
tica universal, mas nem por isto menos inseridos dentro de uma realidade
socialmente definida. No entanto, não se trata de mero provincianismo já
que, pelo menos desde o modernismo, o Brasil se colocou no mesmo com-
passo das vanguardas europeias e hispano-americanas. Deve-se também des-
tacar que vários escritores brasileiros passaram parte de sua vida no exterior,
sendo que alguns chegaram a firmar grandes ligações de amizade com artis-
tas europeus, como foi o caso de Tarsila e Oswald com o poeta Blaise Cen-
drars e João Cabral com o pintor Joan Miró, para só citar os dois exemplos
mais conhecidos.

67
Não por acaso, estes textos foram retomados por escritores pós-coloniais como Aimé Césaire (da
Martinica), que escreve Une tempête, em que Caliban é negro e Ariel é mulato, além de outras versões,
dentre elas o Ariel, de Rodó. J. M. Coetzee (da África do Sul) reescreveu Robinson Crusoe em Foe.

252
Seria ingênuo afirmar, entretanto, que viver no exterior determine o
estilo do autor e que ser cosmopolita seja um valor per se. Guimarães Rosa,
diplomata e cosmopolita, era ao mesmo tempo um homem profundamente
arraigado no interior e criou uma obra que se inspirava na vida dos sertões
das Gerais. Murilo Mendes, por exemplo, ao completar 70 anos, disse: “Sin-
to-me cada vez mais universal e mineiro” (apud Coutinho, Sousa, 2001, p.
1055), o que comprova que o regional coexiste com o universal, dispen-
sando (ou questionando) o nacional.
Neste início do século xxi, porém, os conflitos entre o universalismo e o
regionalismo parecem estar chegando, senão ao fim, pelo menos a uma nova
equação, já que os livros mais ancorados no local parecem tão modernos
quanto aqueles que se desterritorializam, voltando-se para o mundo. Como
o mundo está cada vez mais interligado por meios de comunicação virtual,
o que faz com que as notícias/imagens circulem em tempo real, e como, por
outro lado, a academia também está conectada em rede com instituições dos
outros países, as possibilidades de interação crescem em escala geométrica.
O novo milênio assiste assim a uma floração de romances e contos brasilei-
ros que tematizam a viagem para o exterior. João Gilberto Noll (Berkeley em
Bellagio, Lorde), Bernardo Carvalho (Mongólia, O sol se põe em São Paulo, O
filho da mãe), Chico Buarque (Budapeste), Silviano Santiago (Histórias mal
contadas), André Sant’Anna (O paraíso é bem bacana), Fernando Bonassi
(Passaporte), Daniel Galera (Cordilheira), Paloma Vidal (Mais ao sul), Carola
Saavedra (Toda terça), João Paulo Cuenca (O dia Mastroianni), Dau Bas-
tos (Clandestinos na América), são alguns dos escritores que percorrem ter-
ritórios estrangeiros e os inscrevem no corpo do espaço textual, provocando
uma inovação ao mesmo tempo formal e temática, tendo em vista a força
do apelo nacional(ista) na literatura brasileira. Muitos destes escritores usu-
fruíram de alguma bolsa de estudo, contrato com universidade estrangeira
ou editora nacional para financiar tais viagens. Curiosamente, Chico Buar-
que declarou não ter estado em Budapeste para escrever o livro, mas natu-
ralmente esteve lá durante a realização do filme, no qual faz uma pequena
ponta, à maneira de Hitchcock.68
68
Bernardo Carvalho viajou à Mongólia em 2002 com uma bolsa criada em parceria pela editora por-
tuguesa Livros Cotovia e pela Fundação Oriente, de Lisboa; João Gilberto Noll foi escritor-residente
na Universidade de Berkeley, na Fundação Rockfeller em Bellagio (Itália) e no King´s College de
Londres; Fernando Bonassi beneficiou de uma bolsa do agência alemã daad; Silviano Santiago fez o
doutorado na França com bolsa do governo francês (final dos anos 1960) e depois tornou-se professor
de Literatura Brasileira no Canadá e nos Estados Unidos (início dos anos 1970).

253
Esta desterritorialização é talvez sintoma de uma mudança de para-
digma tanto da literatura brasileira quanto da posição ocupada pelo Brasil
e pelos brasileiros no seu estar no mundo. Embora em menor escala que
outros países da América Latina, o Brasil, de país de imigrantes, começou a
produzir emigrantes, que deixaram o país em consequência das várias crises
econômicas sobretudo a partir dos anos 1980. Estima-se que haja 2 milhões
de brasileiros vivendo no exterior, 800.000 só nos Estados Unidos.69 O
romance Clandestinos na América é um thriller que tematiza a migração de
ilegais para os Estados Unidos: começa como romance sentimental, em que
o personagem-narrador é um professor de inglês no Rio de Janeiro, que
decide tornar-se atravessador de pollos na fronteira México-Estados Unidos.
A vida desses imigrantes na Europa, no que Stuart Hall chama de “comu-
nidades cosmopolitas” (Hall, 2003, p. 67) e que se configura como uma
forma de “cosmopolitismo dos pobres”, na expressão de Silviano Santiago
(Santiago, 2005, p. 45), aparece em filme recente, Jean Charles, sobre o
jovem brasileiro morto pela polícia britânica por ter sido confundido com
um terrorista. Chico Buarque compôs uma canção, Iracema, para falar da
mulher migrante no exterior, tendo usado o nome da grande mãe brasileira
do romance homônimo de José de Alencar.70
Por outro lado, situar romances em outros países constitui atualmente
um fenômeno bastante comum na literatura mundial. No entanto, pode-se
verificar que, apesar de tudo isso, continua a ser difícil representar a alteridade,
respeitar a opacidade do Outro sem cair nas armadilhas da clicherização das
diferenças culturais. Há vários romances em língua francesa (da França, do
Canadá e da Guiné) que se passam no Brasil, sem o viés do romance colo-
nial, embora os clichês teimem em subsistir.71
69
Assistir à tv Globo na Argentina dá uma estranha sensação de deslocamento, pois toda a publicidade
veiculada destina-se ao público brasileiro que vive nos Estados Unidos.
70
No Quebec há um romancista brasileiro, Sergio Kokis, que emigrou no período da ditadura militar,
e que tem feito bastante sucesso. Em seu primeiro romance, Le pavillon des miroirs (1995), ele alterna
capítulos que se passam no Rio de Janeiro de sua infância (memória do passado) e em Montreal (pre-
sente do pintor e psicólogo). Na tradução brasileira, recebeu o título de A casa dos espelhos (Record)
e teve recepção pífia. Em alguns dos romances subsequentes o autor tematiza o Brasil, mas nenhum
outro romance foi traduzido até agora.
71
Da França pode-se citar Jean-Christophe Ruffin, que ganhou o prêmio Goncourt de 2001 com Rouge
Brésil e em seguida publicou La Salamandre; Jean-Paul Delfino escreveu uma tetralogia: Corcovado,
Dans l’ombre du condor, Samba triste, Zumbi ; Daniel Pennac escreveu Le dictateur et le hamac ; Gilles
Lapouge La mission des frontières ; Serge Elmalan Nicolas de Villegagnon ; Jean-Marie Blas de Robles
publicou Là où les tigres sont chez eux. Do Quebec há Pierre Samson, que publicou uma trilogia passada

254
Considero que Silviano Santiago,72 que viveu na França, nos Estados
Unidos e no Canadá, como estudante de doutorado e professor de lite-
ratura, antecipou o movimento para fora do Brasil em Stella Manhattan
(1985), no qual usou procedimentos comuns nos escritores das várias diás-
poras na Europa e na América do Norte tais como o exílio, a desterritoria-
lização da língua, os conflitos identitários. Em Keith Jarrett no Blue Note
(1996) e Histórias mal contadas (2005), Silviano Santiago também situa a
ação da maioria dos contos nos Estados Unidos. Enquanto os textos de Sil-
viano Santiago se passam no passado (décadas de 1960 e 70), período da
emigração forçada de exilados políticos, os novos romances da safra dos
anos 2000 se situam no presente. Todos eles têm em comum a autorreflexi-
vidade e sobretudo o caráter transgressivo no tratamento de categorias canô-
nicas como a autoria, o gênero autobiográfico, com desdobramentos sobre
as questões de falso e verdadeiro, ficção e realidade.
João Gilberto Noll, como Santiago, opera no campo da autobiogra-
fia fictícia, da desterritorialização linguística e no tratamento do homoero-
tismo. O protagonista de Noll de Berkeley em Bellagio, convidado à Univer-
sidade de Berkeley na Califórnia e em seguida à Fundação Rockfeller em
Bellagio (Itália), como indica o título (de maneira ambígua, ele remete tam-
bém ao filósofo Berkeley), passa por dificuldades em função da língua ao
chegar em país estrangeiro: “Ele não falava inglês” (Noll, 2003, p. 9). Entre-
tanto, aos poucos ele vai-se acostumando e ao voltar ao Brasil passa a ter
problemas com o português.
Eu era um brasileiro a pensar em inglês o tempo todo, eu era outro em mim, não
tinha importância – quando chegasse a Porto Alegre iria para um curso de português
para estrangeiros no meu próprio torrão natal, isso acontece nesses dias, um cidadão
qualquer se impregna de uma forma tão fulminante da língua de outro povo, que tal
marco traumático faz com que esqueça a sua língua de nascença (Noll, 2003, p. 84).

A língua é o tema de suas principais ocupações mentais ao longo do


livro: ele demora a dominar o inglês e passa por um estranhamento ao se
readaptar ao português, considerando-a mais do que simples veículo de
comunicação; a língua seria um aspecto estruturador de sua identidade. Ao
no Brasil: Le Messie de Belém, Un garçon de compagnie, Il était une fois une ville ; Daniel Pigeon com
La proie des autres, Claire Varin com Clair-obscur à Rio e Profession Indien ; Noël Audet que tem um
capítulo que se passa no Rio no romance Frontières ou Tableaux d´Amérique. Da Guiné existe o romance
Pelourinho de Tierno Monénembo.
72
Ver artigo específico sobre Silviano Santiago.

255
se reapropriar de sua língua, ele sente um certo alívio: “Não esqueci de fato
o português, tudo me volta nessa escuridão aqui do meu quarto de Porto
Alegre” (Noll, 2003, p. 89).
Oscilando entre ficção e realidade, com uma voz narrativa que fala ora
em terceira pessoa (ele), ora em primeira (eu), Noll escreve numa prosa com
dicção poética para exprimir a crise do sujeito, que se esvai ao longo da
narrativa. A identidade do personagem de Noll vai-se esfacelando, o corpo
vai-se degradando, a morte o espreita, o eu se desintegra. Esta desintegra-
ção, porém, não é característica somente dos personagens recentes, que se
dissolvem em território estrangeiro, já que tal crise se dá desde seus primei-
ros livros, que se passam em geral entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre.
Como diz o escritor Ronaldo Correia de Brito, o personagem pós-moderno
de Noll é um “surtado”, uma evolução do personagem psicótico de Kafka
(Brito, 2005, p. D2).
O romance Lorde começa como uma autobiografia: narrada em pri-
meira pessoa, ele conta sua chegada a Londres, os primeiros contatos com o
professor inglês que o convidara para ser writer in residence no King´s Col-
lege, enfim, dados que podem (e devem) ter acontecido. No entanto, muito
rapidamente a narrativa torna-se delirante, ele se coloca em situações cada
vez mais bizarras, o corpo vai-se impondo em sua materialidade, os encon-
tros fortuitos vão-se tornando casos de polícia ou delírios paranoicos. Tor-
na-se um sujeito fraturado na alusão a alguém que fica no hospital em seu
lugar: “Eu estava na iminência de pensar que o cara que ficara lá no leito
do hospital de Bloomsbury no meu lugar tinha vindo e se encarnado enfim
em mim” (Noll, 2005, p. 88). Numa fuga para Liverpool, hospeda-se num
hotel onde, de modo significativo, ele teme olhar-se no espelho. Por fim, sua
identidade se dissolve, numa fusão com George, um estivador que conhe-
cera na véspera. No surto esquizoide diante do espelho, ele vê o corpo de
George, mas a consciência pensante continua a ser a dele. A última frase do
livro aponta para uma morte hipostasiada, pois ele adormece na relva de um
cemitério desativado desde o século xix.
Os romances Budapeste, de Chico Buarque, e Mongólia, de Bernardo
Carvalho, se situam em países praticamente desconhecidos do público leitor
brasileiro. Chico Buarque afirmou nunca ter estado em Budapeste, cidade que
não chega a ser descrita senão de maneira casual, com informações que podem
ter sido retiradas de qualquer livro de viagem. O eixo do romance se cons-
trói em torno da questão autoral, do falso e do verdadeiro. O protagonista,

256
José Costa, é um ghost-writer que se orgulha dos seus textos, publicados
com outros nomes de autor. “Naquelas horas, ver minhas obras assinadas
por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário”
(Buarque, 2003, p. 17). Pode parecer paradoxal, mas vaidade e exibicio-
nismo são os sentimentos que o personagem, que vive à sombra, diz experi-
mentar. Frequentador de congressos internacionais de escritores anônimos,
José Costa um dia acaba indo para Budapeste, onde aprende húngaro, tor-
na-se Zsoze Kósta, casa-se com uma mulher chamada Kriska, tornando-se
funcionário do Clube das Belas-Letras, onde faz as atas das reuniões e cor-
rige as baboseiras ditas pelos eminentes escritores, acrescentando ideias bri-
lhantes de sua lavra. “Era um jogo arriscado, porque se minha intervenção
não fosse do agrado do sujeito, a culpa recairia sobre o escrivão. E o velho
Puskás, mesmo passando por relapso para salvar seu emprego seria capaz
de me sacrificar” (Buarque, 2003, p. 129). Se no início Costa se refere às
suas dificuldades em aprender o húngaro, citando vários exemplos de pala-
vras nesta língua, aos poucos vai-se tornando fluente, até conseguir escrever
tão bem que pode até criar poemas nesta língua (Tercetos secretos, para o
grande poeta nacional, Kocsis Ferenc). No penúltimo capítulo, entretanto,
ao voltar ao Brasil, o personagem, habituado a falar húngaro, parece ter
desaprendido sua língua materna, tal como o personagem de Noll.
Ali, por uns segundos tive a sensação de haver desembarcado em país de língua desco-
nhecida, o que para mim era sempre uma sensação boa, era como se a vida fosse partir
do zero. Logo reconheci as palavras brasileiras, mas ainda assim era quase um idioma
novo que eu ouvia, não por uma ou outra gíria mais recente, corruptelas, confusões
gramaticais (Buarque, 2003, p. 155).

Há no romance várias simetrias metaficcionais que articulam as facetas


do mesmo protagonista, em sua versão brasileira e húngara. Ele é o autor apó-
crifo de duas autobiografias de grande sucesso: no Brasil, José Costa escreve
O Ginógrafo, para o alemão Kaspar Krabber, com quem sua mulher no Bra-
sil, Vanda, acaba tendo um caso (ao menos na sua alucinação), enquanto
na Hungria, seu duplo, Zsoze Kósta, é o pretenso autor do livro Budapest,
escrito pelo ex-marido de sua mulher Kriska. E, de modo também simé-
trico, sua mulher na Hungria, Kriska, se apaixona pelo eu que ela descobre
no livro. Mas num outro desdobramento, a autobiografia de Kósta na Hun-
gria tem o título do romance de Chico Buarque (com um “e” a menos), que
o leitor está lendo. Todos estes espelhamentos refletem o questionamento

257
do gênero da autobiografia, quebrando a aura do artista, embaralhando as
categorias de autêntico e inautêntico. Enquanto isso o canalha escrevia o
livro. Falsificava meu vocabulário, meus pensamentos e devaneios, o cana-
lha inventava meu romance autobiográfico. E a exemplo de minha caligrafia
forjada em seu manuscrito, a história por ele imaginada, de tão semelhante
à minha, às vezes me parecia mais autêntica do que se eu próprio a tivesse
escrito (Buarque, 2003, p. 169).
Neste jogo especular em que não há original nem cópia, em que a cate-
goria de autoria é desconstruída, o personagem Kósta se identifica com o
autor, acabando por se convencer que é o verdadeiro autor do livro, o mesmo
que ocorrera com Kaspar Krabber.
Eu me atrapalhava com a pontuação, perdia o fôlego no meio das frases, era como
ler um texto que eu tivesse mesmo escrito, porém com as palavras deslocadas. Era
como ler uma vida paralela à minha, e ao falar na primeira pessoa, por um persona-
gem paralelo a mim, eu gaguejava. Mas depois que aprendi a tomar distância do eu
do livro, minha leitura fluiu. Por ser preciso o relato e límpido o estilo, eu já não hesi-
tava em narrar passo a passo a existência tortuosa daquele eu. (...) E a sós com ela, na
meia-luz do quarto esfumaçado, cheguei mesmo a me convencer de ser o verdadeiro
autor do livro (Buarque, 2003, p. 173).

Neste encaixe em série há três livros: o de José Costa/Kaspar Krabber


(O Ginógrafo), o do ex-marido de Kriska/ Zsoze Kósta na Hungria (Buda-
pest) e o de Chico Buarque (Budapeste), que o leitor está lendo. Os três livros
acabam com a mesma frase, que aparece exatamente no meio do livro e na
última página: “E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu
de beber a água com que havia lavado sua blusa” (Buarque, 2003, p. 87 e
174). Esta construção em abismo se completa na construção da capa, ama-
rela, cor que corresponde à da cidade de Budapeste, que é descrita como
amarela, além dos outros livros que são mostarda e furta-cor. Já na quarta
capa, escrita às avessas, como num espelho, consta Zsoze Kósta como autor
e o título Budapest (sem “e”).
Bernardo Carvalho é o autor brasileiro contemporâneo que dialoga
mais de perto com a obra de Joseph Conrad, citada no próprio texto ou
na orelha do livro. Tanto em Nove noites (2002) quanto em Mongólia existe
uma grande simetria na construção da trama. A voz narrativa é compartilhada
com os diários/cartas de personagens desaparecidos, enquanto o narrador prin-
cipal monta um verdadeiro quebra-cabeças, em busca da compreensão sobre
algo que aconteceu no coração das trevas, seja no Xingu, interior do Brasil

258
(Nove noites), em que o antropólogo americano Buell Quain se suicidou em
1939, seja na Mongólia, no romance homônimo, em que o Desaparecido
(fotógrafo que se perdera na Mongólia) e o Ocidental (diplomata encarre-
gado pelo Itamaraty de procurá-lo) se reencontraram. Cada um desses tex-
tos aparece com um tipo de impressão (fonte) diferente. Em Nove noites o
autor trabalha a partir de personagens e fatos reais, estabelecendo paralelis-
mos entre Buell Quain e outros antropólogos que viviam aqui na mesma
época (dentre eles Lévi-Strauss e Alfred Métraux); há também paralelismo
entre a vida rocambolesca do antropólogo morto e sua autobiografia, com
suas idas traumáticas ao Xingu e sua relação conflituosa com o pai. Neste
romance, em que o narrador é assumidamente um alter ego do autor, há
um movimento de fora (Estados Unidos) para dentro do Brasil, em que o
Xingu representa o coração das trevas, enquanto em Mongólia o movimento
é inverso, o Desaparecido Brasileiro parte em busca da aventura a fim de
fotografar o exotismo do Outro (a Mongólia).
O narrador principal de Mongólia, um diplomata aposentado (de 69
anos), que sonha em se tornar escritor, decide relatar os fatos acontecidos
seis anos antes, quando ele estava servindo na China. Esta decisão é desen-
cadeada pela morte daquele que é chamado ao longo da narrativa de “o Oci-
dental”, diplomata de 42 anos, que foi assassinado por sequestradores de
seu filho caçula no Rio de Janeiro. O Ocidental teve de refazer parte do per-
curso do personagem designado como “o Desaparecido”, usando os mesmos
guias, conhecendo as mesmas pessoas. O romance começa numa proximi-
dade máxima, o presente do quotidiano de violência do Rio de Janeiro, para
em seguida saltar para o passado nos confins da Mongólia, espaço inexplo-
rado por autores brasileiros até agora. Como no romance de Joseph Con-
rad, Coração das trevas, em que o personagem-narrador Marlow parte em
busca de Kurtz, que vive no Congo, o Ocidental é obrigado a refazer a rota
do outro, seguindo suas pegadas. No entanto, aqui há mais uma reduplica-
ção, pois o narrador principal é aquele que envia o Ocidental (por ordens
superiores, é verdade); como Marlow, que no final do livro vai entregar os
diários e demais pertences de Kurtz à sua amada, o narrador vai entregar os
diários do Desaparecido e do Ocidental à viúva e ao meio-irmão do morto
(que é, de fato, o próprio Desaparecido).
O livro se constrói quase como um policial, pois o leitor, desconhe-
cendo o que está por trás de tal desaparecimento, é levado a imaginar que há
alguma coisa suspeita. No entanto não há a descoberta do autor do crime,

259
já que não existe crime mas antes um segredo, só desvendado no fim do
livro, que explica muito do comportamento do personagem: o Ocidental,
que era filho bastardo, havia procurado seu pai uma única vez, após a morte
de sua mãe, quando ele tinha 16 anos. Ele fora escorraçado do escritório do
pai e, ao sair, vira uma criança de cinco anos, seu meio-irmão, que lhe sor-
rira. Encarregado de ir à procura do jovem fotógrafo, de início ele se recusa
a fazer, pois sabe que aquele que deve buscar é seu meio-irmão, filho legí-
timo e mimado de seu pai. Entretanto, é forçado por seu chefe imediato a
partir. O diplomata-narrador, que o enviara em busca do fotógrafo desapa-
recido, só descobre a verdade momentos antes de entregar os diários à viúva.
Ao revelar isto no final do livro o diplomata-narrador fica chocado por ter
imposto uma missão absurda ao Ocidental, tarefa que o leitor poderá iden-
tificar com a frase de Kurtz, “horror, horror”.
O Desaparecido é encontrado em circunstâncias curiosas e inesperadas.
A revelação de sua identidade, construída de forma elíptica, se faz por um
jogo de espelhos em que o irmão mais velho se vê no outro, “como se fosse
o meu segundo eu”,73 seu duplo parado na porta, sujo e barbado. Pode-se
pensar em desdobramento esquizoide quando na verdade se trata simples-
mente de semelhança física entre irmãos.
Estou há dias sem me ver, há dias sem me olhar no espelho, e, de repente, é como se me
visse sujo, magro, barbado, com o cabelo comprido, esfarrapado. Sou eu na porta, fora
de mim. É o meu rosto em outro corpo, que se assusta ao nos ver. (...) Temos algo em
comum além da aparência, porque, como ele, também demoro a entender o que estou
vendo. Mas, ao contrário de mim, ele não me reconhece (Carvalho, 2003, p. 176).

Em vez de promover a mentira caridosa de Marlow que, no fim do


livro, diz à amada que as últimas palavras de Kurtz lhe haviam sido endere-
çadas, quando na verdade elas tinham sido “o horror, o horror”, o narrador
de Bernardo Carvalho desnuda a mentira de anos, força o desvendamento
do segredo do pai e promove o encontro dos dois irmãos. As últimas pala-
vras do romance são, pois, uma conclusão positiva diante de uma ação que
parecera horrorosa.
A atribuição da apelação de “Ocidental” para designar o personagem e a
acusação de etnocentrismo que lhe é feita, em claro paralelismo com o livro
de Conrad, não causa estranhamento no leitor brasileiro – que se toma por

73
Extraído de uma passagem do conto “O companheiro secreto”, de Conrad, que Bernardo de Carvalho
cita em Nove noites (p. 143).

260
ocidental – mas certamente pode parecer bizarro aos olhos de europeus e
norte-americanos, que não nos consideram ocidentais como eles.
Não existe no romance de Bernardo Carvalho referência à desterrito-
rialização da língua, pois não há a menor possibilidade de os personagens
conhecerem qualquer uma das línguas faladas na região. A língua franca é
o inglês, usado bem ou mal por todos os personagens, mas que não aparece
no texto. Algumas palavras estrangeiras entram no romance para designar
fatos, personagens, festas, lutas, roupas, enfim, são de uso etnográfico. A
comunicação entre os personagens (Ocidental, Desaparecido) e os nativos
que encontram na Mongólia, assim como a comunicação dos antropólogos
americanos (e o próprio narrador, alter ago do autor) com os índios em Nove
noites, é extremamente precária. É preciso dizer que, como nos romances
coloniais que ele até certo modo pasticha, um aspecto etnográfico está pre-
sente nas muitas descrições dos costumes locais, da geografia e da história.
Bernardo Carvalho publicou mais dois romances que articulam per-
sonagens estrangeiros com alguma ligação com o Brasil: em O sol se põe
em São Paulo, ele faz uma ponte com o Japão e em O filho da mãe, com a
Rússia. Este último faz parte do projeto da Companhia das Letras Amo-
res expressos, no qual foi selecionado um grupo de escritores que, após viver
um mês numa cidade estrangeira, deverão escrever uma história de amor
naquela cidade. Carvalho passou um mês em São Petersburgo e articula a
intriga de seu romance com a guerra da Tchechênia. Outro livro já publi-
cado deste projeto é Cordilheira, de Daniel Galera, que cria uma história
de amor com cenário em Buenos Aires. O livro de contos de Paloma Vidal
Mais ao sul também evoca em suas páginas a Argentina, onde a autora nas-
ceu. Os romances Toda terça, de Carola Saavedra e O paraíso é bem bacana,
de André Sant’Anna,74 transportam o leitor, pelo menos parcialmente, para
a Alemanha. Já O dia Mastroianni, de João Paulo Cuenca, explora antes os
clichês sobre lugares conhecidos da Europa, sobretudo da França e da Itália,
numa deambulação alucinatória dos personagens.
Quer se trate de cidades já fartamente textualizadas, como Londres,
Paris, Roma, quer se trate de locais mais distantes do público, como Buda-
peste e sobretudo a Mongólia, a desterritorialização do escritor viajante pro-
voca um estranhamento, que se manifesta seja no uso de uma linguagem
contaminada por outras línguas, seja nas explicações quase etnográficas que o

74
Sobre O paraíso é bem bacana, de André Sant’Anna, ver capítulo específico sobre ele.

261
narrador é obrigado a fazer para preencher os vazios representados pela total
falta de informação concernente ao país em questão (é o caso de Mongólia).
O livrinho de fragmentos Passaporte, de Fernando Bonassi, que tem o for-
mato do passaporte brasileiro, é emblemático desta narrativa pós-moderna,
pois em poucas palavras resume algumas questões vivenciadas por estes per-
sonagens desterritorializados, que transitam por locais variados e têm prá-
ticas culturais às vezes bastante particulares. A experiência diaspórica sig-
nifica viver em língua estrangeira, ou ainda, falar várias línguas ao mesmo
tempo, em processos variados de hibridização, o que implica a coexistência
de traumas, de choques culturais e confusão mental. Em “Línguas secretas”,
o brasileiro Paulo tinha um código secreto, falando português com Mariela,
a filha que teve na Alemanha, sem que ninguém entendesse, até a che-
gada do personagem-narrador, que vem invadir a sua privacidade. Em “Pri-
meira geração”, Milton, nascido em Londres, assiste ao Discovery Channel
e passa a imitar os bichos. “Vinte e quatro horas de uivos, grasnados, latidos
e pios estão além do que mesmo a barra-pesada de Brixton pode suportar”
(Bonassi, 2001, p. 24).
A Babel da contemporaneidade desestabiliza os antigos valores nacio-
nais, permitindo negociações identitárias plurais e em constante mutação.
Mas este multiculturalismo pós-moderno também é o espaço do sujeito
cindido, no ritual agônico de conflitos psíquicos engendrados pelas sucessi-
vas perdas. O sujeito encontra-se atormentado pelas aporias do mundo em
convulsão, pelo descentramento advindo dos deslocamentos e dos confron-
tos entre sonhos e aspirações e as duras imposições da realidade. O escritor
brasileiro já não tem a pretensão de representar o nacional, pode-se perder
nos territórios estrangeiros para dar conta de um novo mundo que se afi-
gura a todos os que estão inseridos nesta globalização sem limites. O nar-
rador pós-moderno autorreflexivo dá conta desta crise do sujeito, no jogo
entre falso e verdadeiro, entre os diferentes níveis da metaficção, colocando
em xeque categorias que pareciam estáveis, em novos paradoxos que expri-
mem um estar no mundo desestabilizado. Autobiografia e/ou autoficção,
ficção e/ou metaficção, autor apócrifo e/ou pretenso autor, narrativas que se
constroem de maneira fragmentária, com estilhaços de sentidos, que o lei-
tor deve pacientemente montar.

262
cosmopolitismo e reterritorialização
nos trânsitos de silviano santiago

– La jouissance ajoute au désir de la force.


charles baudelaire

Silviano Santiago, que viveu na França, nos Estados Unidos e no Ca-


nadá, como estudante de doutorado e professor de literatura, antecipou o
movimento para fora do Brasil em Stella Manhattan (1985), no qual usa
procedimentos comuns nos escritores das várias diásporas na Europa e na
América do Norte tais como o exílio, a desterritorialização da língua, os
conflitos identitários. O romance se passa na Nova Iorque de 1969, portan-
to em plena ditadura militar pós ai-5, e retrata a vida de brasileiros e hispa-
no-americanos.
A desterritorialização, entendida no sentido antropológico de desvincu-
lação de local e cultura, corresponde à movência de pessoas e coisas de um
local para outro, o que implica que certos aspectos culturais tendem a trans-
cender fronteiras especificamente territoriais pela reinserção de traços cultu-
rais em outros locais, no duplo movimento de desterritorialização e reterri-
torialização. A desterritorialização, que caracteriza as narrativas passadas no
exterior, é talvez sintoma de uma mudança de paradigma na literatura bra-
sileira. Assim, o escritor brasileiro tematiza cada vez mais frequentemente a
viagem ao exterior até porque ele perdeu a certeza (ou quem sabe a ilusão?)
de “representar o nacional como identidade” (Santiago, 2004, p. 174. Gri-
fos do autor). Aliás, os próprios conceitos de nacional e universal são hoje,
segundo Silviano, colocados “entre aspas para significar que ambos estão
sendo hoje desconstruídos, para empregar o conceito de Jacques Derrida, ou
seja, estão sendo abalados e questionados nos seus respectivos alicerces epis-
temológicos” (Santiago, 2004, p. 170). O escritor brasileiro abre-se à “atra-
ção do mundo” não mais como Joaquim Nabuco, em busca do “espírito
humano, que é um só e terrivelmente centralista” (Nabuco, 1999, p. 50),
mas porque o nacional perde a relevância num mundo cada vez mais mul-
ticultural, transnacional e interligado. Haveria, segundo Stuart Hall (2003,
p. 45), uma contradição na contemporaneidade: de um lado, uma homo-
geneização cultural em que a cultura americana ameaça subjugar todas as

263
outras, de outro lado, a disseminação da diferença como fruto das diáspo-
ras que levam para o centro dos impérios os imigrantes das antigas colô-
nias, num tremendo efeito bumerangue que provoca o descentramento dos
modelos ocidentais.
O cosmopolitismo, que costumava ser uma característica dos donos do
dinheiro e das elites letradas que, desde os tempos coloniais, viajavam para
o exterior e ficavam a par das novas tendências, conhece na contemporanei-
dade novas formas de expressão. Joaquim Nabuco, o cosmopolita par excel-
lence, evocava em seu livro Minha formação [1900] a influência aristocrática
estrangeira em sua vida: banquete real nos Grosvenor Gardens, baile dos
Astors em New York, tarde de corso na Villa Borghese, dia de corridas em
Ascott, jubileu da rainha em Westminster e do Papa no Vaticano (Nabuco,
2004, p. 97).
No artigo “O cosmopolitismo do pobre”, Silviano explica que o mul-
ticulturalismo de hoje dá conta do influxo de migrantes pobres nas mega-
lópoles pós-modernas e ao mesmo tempo resgata grupos étnicos e mino-
ritários que se associam cada vez mais em redes transnacionais. Metecos
e rastaqueras não temem o opróbrio das elites e transpõem fronteiras, às
vezes à custa de suas próprias vidas, criando novas formas de cosmopoli-
tismo. Assiste-se assim a um fenômeno que atinge pessoas de todas as classes
sociais, em comunicação física ou virtual, em novas modalidades de expres-
são, auxiliadas por tecnologias cada vez mais acessíveis. Com efeito, o cos-
mopolitismo das elites de outrora parece estar bem superado, como observa
Alexis Nouss:
Não mais o [cosmopolitismo] dos abastados e ociosos, viajantes que retornam ao fim
do périplo para seu conforto opulento, mas um cosmopolitismo nascido do comér-
cio internacional, do desenvolvimento comunicacional e das migrações das popula-
ções. A partir daí ele perde seu valor universalizante abstrato para se expor à diversi-
dade identitária e cultural concreta (Nouss, 2005, p. 77).

O romance Stella Manhattan inovava no panorama do romance bra-


sileiro ao ser publicado em 1985 por várias razões. Ao situar a intriga nos
Estados Unidos, o narrador também se libertava das amarras da tradição
literária para dar voz a personagens homossexuais, que viviam recalcados
numa sociedade homofóbica. Ao se desterritorializar, numa espécie de exílio,
não político mas existencial, o personagem Eduardo descobre e põe para fora
Stella Manhattan, a estrela de Nova Iorque, cidade que constitui o espaço de
libertação, que lhe permite se reterritorializar (em sua homossexualidade).

264
Santiago só encontra paralelo na literatura brasileira no que diz respeito
ao tratamento do homoerotismo na obra de Caio Fernando Abreu (1949-
1996), que publica Morangos mofados (contos) em 1982 e João Gilberto
Noll (1946-), em cuja obra o homoerotismo esteve presente desde seus pri-
meiros romances, como em A fúria do corpo (1981).
Em Stella vários aspectos assinalam a sintonia do autor com as novas
tendências literárias. O romance continua revolucionário do ponto de vista
formal vinte e cinco anos após sua publicação, sobretudo por sua lingua-
gem. Recorrendo ao pastiche, à paródia, à caricatura, à colagem de citações,
à intensificação pela repetição de palavras, à mistura de línguas (português,
inglês e espanhol), o autor subverte e transgride a norma(lidade) da lingua-
gem, de uma forma sem paralelo nem mesmo na última safra de romances
desterritorializados.
Em Histórias mal contadas (2005), a voz narrativa se dá na primeira
pessoa e tem-se a impressão de que o autor quer falar de si mesmo, numa
aparente autobiografia, o que ele já fizera em O falso mentiroso: memórias
(2004). Em ambos os títulos pode-se perceber o jogo entre ficção e reali-
dade, pois a partir de um arcabouço verdadeiro, em que figuram dados bio-
gráficos conhecidos, o narrador desconstrói a pretensão de verdade, emba-
ralhando as categorias de falso e verdadeiro, em oxímoros constantes. “Qual
é o íntimo que é autorretratado numa carta? A escrita não se confunde com
o pensamento. O pensamento não se confunde com a experiência factual.
Tudo é disfarce, mentira e falsificação na escrituração do íntimo? Tudo é ver-
dade” (Santiago, 2005, p. 88).
Em alguns contos, o personagem-narrador tem uma história de vida
próxima à de Silviano: é o caso de “Bom dia, simpatia”, que tematiza a vida
do estudante de doutorado em Paris, em seguida sua partida para os Estados
Unidos, contratado pela universidade de Novo México. Em outros casos, o
personagem-narrador tem profissão diferente da dele, como no conto “Enve-
lope azul”, cujo protagonista é colunista social do Jornal do Brasil (seria uma
referência irônica a Zózimo Barroso do Amaral?). Para ter o refinamento
necessário, ele parte para Paris.
Precisava de uma temporada parisiense para conhecer de perto as manhas e mumu-
nhas do grand monde europeu. A culinária, os grandes vinhos e as aguardentes famo-
sas. De sobra, quando tivesse minha coluna social em jornal carioca, poderia divulgar
para as socialites e o zé povinho expressões francesas inéditas. Com conhecimento de
causa (Santiago, 2005, p. 27).

265
Assim, haveria nestes dois contos dois tipos de formação, a cultural e a
sexual: de um lado, o pobre estudante e futuro professor/escritor, que come
no restaurante universitário, de outro, o futuro colunista social que parti-
cipa de orgias sexuais para o gozo voyeurístico de Mrs. Wesson (ou Madame
Wesson, como diziam os franceses). O estudante não provou a suculência
dos bifes de charolais. “Na minha temporada parisiense sobrevivi como lúm-
pen do paladar e do olfato. (...) Engoli sapo, arrotei caviar” (Santiago, 2005,
p. 82). O estudante tem acesso à cultura, mas não aos prazeres da carne (em
ambos os sentidos) ou à vida mundana. Apesar de ter visto alguns atores nas
salas de teatro, apesar de suas idas aos museus, sua vida é ascética, com seu
único terno “de gângster hoje, de playboy naquela época” com óculos meio
escuros na Paris “la grise”. Olhando as fotos hoje, ele tem de reconhecer
que encarna “o gigolô sul-americano” (Santiago, 2005, p. 83). Já o futuro
colunista social tem uma vida muito mais rica e movimentada. Protégé de
Madame Wesson, curinga nos jogos sexuais de seu teatro, leva a boa vida:
como recompensa, além de ter tudo pago, “comida, bebida, cabeleireiro,
roupa, sapatos e condução (...) havia um cachê em nada simbólico como
pagamento da performance. Era semanal e vinha fechado em envelope azul
ou cor-de-rosa” (Santiago, 2005, p. 27).
Edmundo Paz Soldán e Alberto Fuguet afirmam, no prólogo da cole-
tânea de contos Se habla español. Voces latinas en usa, que “de Sarmiento
aos modernistas, Paris serviu como modelo para o desenvolvimento cultu-
ral latino-americano”, enquanto que o imaginário acerca dos Estados Uni-
dos oscilou entre a admiração e a condenação. Houve muitos ensaios sobre
o grande país da América do Norte desde o século xix mas haveria, segundo
eles, poucas obras literárias ambientadas nos Estados Unidos. No caso de
Silviano, observa-se que grande parte de seus textos se passa nos Estados
Unidos, conquanto o prestígio de Paris continue central em sua obra. Na
verdade, o valor emblemático de Paris como capital cultural e espaço de
liberdade não se restringe ao imaginário dos latino-americanos, pois ela tem
atraído pessoas de várias nacionalidades e de várias gerações, com destaque
para artistas e intelectuais.
Ítalo Calvino, que viveu boa parte de sua vida na capital francesa, fala
da “espessura” de Paris e afirma que a cidade “é uma gigantesca obra de con-
sulta, uma cidade que se consulta como uma enciclopédia” (Calvino, 2006,
p. 187). É em Paris que o alter ego de Silviano descobre o museu. “Diante

266
duma tela de Van Gogh, pela primeira vez entrei definitivamente no museu.
Adentrei-me pela porta dum pequeno detalhe numa tela. Nunca o teria
surpreendido ao examinar a reprodução do quadro. Uma parte ínfima da
tela de Van Gogh não estava recoberta de tinta a óleo” (Santiago, 2005, p.
90). A descoberta de um pequeno espaço branco, não pintado, lhe revela a
falta, a lacuna, desencadeando uma reflexão sobre a obra de arte. O jovem
estudante de letras, para quem Paris era, sem dúvida, “uma cidade imagi-
nada através dos livros” (Calvino, 2006, p. 182), ao fazer a sua aprendiza-
gem, evoca Balzac: “Pobre de mim que não vivia Paris como personagem de
romance.” Ele sonha em viver como Rastignac, que no fim do romance Le
père Goriot, após ter enterrado junto com o pai Goriot seus escrúpulos de
provinciano, diz a Paris: A nous deux, maintenant.
Mas Paris para Calvino não é só “discurso enciclopédico”, ele propõe
a possibilidade de “ler a cidade como inconsciente coletivo: o inconsciente
coletivo é um grande catálogo, um grande bestiário; podemos interpretar
Paris como um livro dos sonhos, como um álbum de nosso inconsciente,
como um catálogo de monstros” (Calvino, 2006, p. 188). Por sua tradição,
Paris encarna também o sexo livre, a libertinagem, as dançarinas e prostitu-
tas dos cabarés, expressões orgiásticas que penetram os sonhos de todos os
jovens que desembarcam em Paris. No conto “O envelope azul” o protago-
nista é duplamente gratificado: participa de jogos sexuais e, ainda por cima,
ganha dinheiro com isto.
Esteban, o protagonista do escritor colombiano Santiago Gamboa
(1965-), no romance Síndrome de Ulisses (2006), tem alguma semelhança
com a fusão dos dois personagens de Silviano Santiago (do contos “Bom
dia, simpatia” e “O envelope azul”): estudante sul-americano, que faz dou-
torado em Letras na Sorbonne, tem uma vida sexual extremamente intensa
e variada graças sobretudo à jovem rica Paula, que também o ajuda do ponto
de vista econômico. Tanto o estudante colombiano em sua chambrita quanto
o jovem brasileiro em sua chambre de bonne relatam as agruras de se viver
num quarto sem banheiro.
A vida dos pobres imigrantes em Paris, sejam eles estudantes, exila-
dos políticos ou econômicos, está muito longe do sonho imaginado. Todos
reclamam, xingam, mas poucos querem (ou podem) voltar para seu país natal.
Alguns, desesperados, acabam morrendo, como relata o narrador do conto “O
envelope azul”, referindo-se aos vietnamitas. “Na madrugada parisiense, uma

267
história mal contada, cujo cenário era o da guerra da independência na Indo-
china, batia à porta do sono, se fazia imagem e virava pesadelo intransponí-
vel pela vontade de viver. Fulminava o coração dolorido do vietnamita expa-
triado” (Santiago, 2005, p. 12).
No romance de Santiago Gamboa o desespero que acomete o imigrante
e o leva ao suicídio é chamado de “síndrome de Ulisses”, a qual atinge os
imigrantes mais deserdados; o estudante sul-americano tanto do romance
de Gamboa quanto dos contos de Santiago, apesar de cosmopolita pobre,
não é um imigrante: ele usa sua estada em Paris para acumular saber, expe-
riência de vida e cabedal cultural. O espaço de liberdade que a desterritoria-
lização lhe proporciona, abrindo o terreno para os jogos sexuais, contribui
para sua formação (para a sua Bildung). A estada em Paris é um rito de pas-
sagem que o prepara para o futuro.
Ao elaborar autobiografias ficcionais em várias camadas superpostas,
o narrador (finge que) pretende (re)contar, agora, de maneira fidedigna, as
histórias que haviam sido mal contadas no passado. Este narrador autorre-
flexivo suscita o caráter transgressivo no tratamento de categorias canôni-
cas como a autoria, o gênero autobiográfico, com desdobramentos sobre as
questões de falso e verdadeiro, ficção e realidade. Silviano afirma que partiu
da distinção entre discurso autobiográfico e discurso confessional, usando
com frequência elementos autobiográficos, mas descartando o confessional.
“Do ponto de vista da forma e do conteúdo, o discurso autobiográfico per
se – na sua pureza – é tão proteiforme quanto camaleão e tão escorregadio
quanto mercúrio, embora carregue um tremendo legado na literatura brasi-
leira e na ocidental” (2008, p. 174). Contaminando os elementos autobio-
gráficos com a ficção, fazendo um texto híbrido, Silviano fez autoficção antes
de descobrir a existência de tal conceito, cunhado por Serge Doubrovsky em
1977 no seu romance Fils. Neste jogo, Santiago transita pela questão pós-
moderna, ao mesmo tempo em que encena o próprio fazer literário, como
observa Wander Miranda (2005, p. 8).

268
o cosmopolitismo no mundo
do futebol em andré sant’anna

Amer savoir, celui qu’on tire du voyage!


charles baudelaire

Muitos autores têm tratado de novas formas de cosmopolitismo. Nouss,


que prefere ver nele um “cosmopolitismo ético” (como o sociólogo ameri-
cano John Tomlienson), lembra que Walter Mignolo fala de “cosmopolitismo
crítico”, Homi Bhabha de “cosmopolitismo vernáculo”, Anthony Appiah de
“cosmopolitismo enraizado” e A. Appadurai de “cosmopolitismo alterna-
tivo” (Nouss, 2005, p. 78). Pode-se evocar também Mary Louise Pratt, que
se refere às “comunidades cosmopolitas” enquanto Silviano Santiago distin-
gue um “cosmopolitismo do pobre”. García Canclini (2004) traça também
um contraste entre a leveza do cosmopolitismo dos intelectuais e poliglotas
ao falar de nomadismo e pluralidade de pertenças e os migrantes que têm de
enfrentar a violência e procurar seus direitos, criando novas formas de per-
tença. Na medida em que este novo cosmopolitismo encontra-se imbricado
com aspectos éticos e políticos, fala-se também de “cosmopolítica” e de “cos-
mopolidez” e até mesmo de “cosmopolético”. “Prefere-se invocar um ethos
cosmopolítico: ethos, para insistir na responsabilidade do sujeito, e cosmo-
político, para dissipar as imagens elitistas do ‘cosmopolita’ e colocar ênfase
nas exigências da convivência”(Nouss, 2005, p. 78). Em todas estas expres-
sões, que tentam dar conta da situação dos migrantes na sociedade globali-
zada, pode-se depreender uma preocupação de se estabelecer um princípio
ético no que concerne ao respeito da diferença assim como ao estatuto de
cidadania e de inclusão social do migrante (o Outro) e de suas famílias.
Outros conceitos, que designam esta nova mobilidade, como o de diás-
pora, estão sendo ressignificados na contemporaneidade, pois, segundo Stuart
Hall, diáspora era um conceito fechado, baseado numa concepção binária
da diferença e fundado na construção de uma fronteira de exclusão, que
dependia da construção de um Outro e de uma oposição rígida entre o den-
tro e o fora. Assim, para designar esta mobilidade de migrantes, oriundos dos
países colonizados (notadamente das Antilhas), frequentemente vistos como
migrantes étnicos, Hall incorpora ao conceito de diáspora o de différance (de

269
Derrida), a fim de evitar toda ideia de binarismo dicotômico e para exprimir
os deslizamentos de sentidos em um largo espectro (Hall, 2003, p. 33).
Nos anos 2000 vários escritores escreveram romances e contos que se
passam no exterior, mas o que distingue O paraíso é bem bacana, de André
Sant’Anna, dos demais é que este é o único cujos personagens não perten-
cem às elites letradas, e neste sentido sua mobilidade aproxima-se mais des-
tas novas formas de cosmopolitismo. O protagonista do romance é Mané,
um jogador de futebol de 17 anos que, considerado o novo Pelé, é com-
prado pelo time Hertha Berlim. Assim, o romance se constrói em torno do
eixo do futebol globalizado, em que os grandes clubes europeus compram
jogadores promissores por todos os cantos do planeta.
Neste mercado que envolve milhões de dólares (ou euros), os jogado-
res brasileiros têm uma alta cotação, como se pode depreender do fato de
a quase totalidade da seleção brasileira da Copa do Mundo de 2006 ter-se
constituído de atletas que viviam na Europa e de ter havido cinco jogado-
res – Zinha (México), Marcos Senna (Espanha), Deco (Portugal), Alex dos
Santos (Japão) e Francileudo (Tunísia) – e quatro técnicos – Zico (Japão),
Luis Felipe Scolari (Portugal), Marcos Paquetá (Arábia Saudita) e Alexandre
Guimarães (Costa Rica) – defendendo seleções de outros países. Na Copa
de 2006 houve 64 jogadores que não nasceram nos países que defenderam,
ou seja, um total de 8,69% dos atletas convocados. Apenas nove das 32 sele-
ções não contrataram atletas de outros países (Franco, 2006). Quanto aos
jogadores brasileiros da seleção, três atuavam em times do país, enquanto os
demais viviam em países europeus (Itália, Espanha, Alemanha, Inglaterra,
França e Portugal). O caso da França é bem revelador da atual situação das
diásporas, pois já se evocou sua seleção como sendo constituída de “Black,
Blanc, Beur”, paródia das cores da bandeira francesa, em que o azul é subs-
tituído pelo negro de seus jogadores e o vermelho é substituído pela pala-
vra “Beur”, que designa os filhos dos magrebinos nascidos na França (caso
da estrela da seleção de 2002, Zinédine Zidane, de origem argelina). Assim,
além dos naturalizados, há os filhos dos imigrantes já nascidos na Europa ou
ainda os oriundos de seus Departamentos de Ultra Mar.
O romance de Sant’Anna descreve este mundo multicultural do futebol
alemão em que há brasileiros, africanos, filhos de imigrantes turcos, além de
europeus de países menos ricos. Ao contrário dos outros jogadores, que ten-
tam se adaptar ao novo país e aprender a sua língua, o protagonista, Mané,
sem capacidade de se comunicar porque não consegue aprender o alemão,

270
fica isolado, o que vai exacerbar os seus problemas emocionais. Obcecado
sexual completamente bloqueado diante das mulheres, ele se converte ao
islamismo e comete um atentado suicida, no qual ele é a única vítima, a
fim de poder possuir as 72 virgens prometidas aos mártires de Alá. Apesar
de a comunidade muçulmana ser descrita de maneira respeitosa, o romance
apresenta uma paródia dos atentados suicidas cometidos pelos fundamenta-
listas islâmicos através do gesto incompreensível e inexplicável deste brasi-
leiro “convertido”, que nada entende do Corão, e que seria incapaz de pro-
videnciar os elementos necessários para cometer o “atentado”, não fosse um
outro terrorista, Mubarak, lhe ter fornecido um cinturão com as bombas
antes de cometer o seu próprio atentado em outro local . Ambos estão jun-
tos no mesmo quarto do hospital ao longo de todo o romance.
Gravemente ferido, com parte do corpo despedaçado, Mané recebe
remédios/drogas no hospital, que o mantêm inconsciente mas mentalmente
ativo, o que lhe permite realizar todos os sonhos eróticos com suas esposas,
todas loiras, rosas, dedicadas a lhe proporcionar prazer sem fim. Esta nar-
rativa é a realização, em forma de simulacro, de todos os sonhos eróticos
do personagem, que se formaram durante sua curta vida mas já mediados
por outros simulacros, as revistas e os filmes pornôs. As mulheres reais, que
ele tinha visto mas jamais possuído, e as que ele havia admirado e desejado
em revistas, têm a mesma função em seus sonhos de mártir de Alá. Como
observa Ângela Dias a propósito do romance anterior do autor, Sexo, o traço
preponderante da “pornografia terrorista” do autor talvez seja “a encena-
ção formal da imanência do desejo literalmente mediada pelos fantasmas
do mercado virtual das imagens” (Dias, 2001, p. 3). No mundo contempo-
râneo, segundo Ricardo Piglia, com a prevalência da cultura de massa, ver-
dadeira “máquina de produzir lembranças falsas e experiências impessoais,
todos sentem a mesma coisa e recordam a mesma coisa, e o que sentem e
recordam não é o que viveram” (Piglia, 2004, p. 45). Cito o início da pri-
meira vez que o relato aparece no romance:
É setenta e duas. E elas vêm vindo, tudo limpinhas, muito bonitas, e elas têm tanto
amor ni mim (...), tudo tão cheirosas, e ela vai ficando tudo pelada, bem devagarinho.
Bem assim que nem filme que passa na televisão sábado de noite (...) e tem aque-
les véu que nem naquela novela que tinha os Marrocos que é de onde vem o Abud
(Sant’Anna, 2006, p. 9).

O autor aceita o desafio de aborrecer ou chocar o leitor pela repetição


exaustiva da mesma descrição, uma espécie de transcrição da oralidade de

271
uma pessoa desprovida de meios de expressão, que fala muito mal sua própria
língua materna. A narrativa do protagonista, em que descreve os prazeres sem
fim com suas 72 esposas, em forma de leitmotif, repetida sem parar, aponta
para a “saciedade intransitiva” que revela também a frustração de algo que é
ao mesmo tempo “idealizado e deceptivo” (Dias, 2001, p. 4). O relato tem
variações, mas a mais significativa, a última, que fecha o romance, mostra o
personagem desiludido ao compreender finalmente que tudo não passou de
uma ilusão, já que as mulheres loiras e lindas tornam-se negras e grotescas,
que ele não possui nada e que todos continuam rindo dele, riso expresso pela
repetição de “ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra ra”
em muitas linhas, algumas vezes escritos em formato maior, para significar
as gargalhadas das pessoas que zombam dele. Enquanto vítima destinada ao
consumo violento, o personagem torna-se a parte maldita. “Contudo, a mal-
dição arranca-a à ordem das coisas; torna reconhecível seu rosto, que irradia,
a partir de então, a intimidade, a angústia, a profundidade dos seres vivos”
(Bataille, 1975, p. 98). Assim, apesar da inutilidade de seu sacrifício, reve-
la-se alguma consciência de sua humanidade no momento em que já não é
mais humano, em que seu corpo se decompõe na antecâmara da morte.
Pode-se ver no romance de Sant’Anna uma estética maneirista, com a
espetacularização do sórdido e do pornográfico, em que a pobreza de lin-
guagem é elevada a elemento poético. Segundo Lorenzo Mammì vivemos
num período maneirista em arte, literatura, música e até mesmo o futebol
se ressente deste gosto maneirista (2006). Sant’Anna cria um ritmo de frase
poética pela repetição de palavras ou expressões de uma linguagem banal,
totalmente corroída pelo uso cotidiano e destituída de valor, ou seja, pela
estetização do lixo do mundo contemporâneo. Alguns relatos monocórdios
dão musicalidade à sua prosa, pontuando o romance com expressões em
forma de refrão. O romance abre com estas frases:
O Mané podia ter dado uma porrada bem no meio da cara daquele gordinho.
Mas não.
(..............................)
Aqueles filhos-da-puta sempre batiam no gordinho filho-da-puta e o gordinho filho-
da-puta precisava dar umas porradas num filho-da-puta qualquer.
O Mané ainda não sabia que o filho-da-puta era ele, o Mané (Sant’Anna, 2006, p. 7).

Este romance polifônico se constrói na forma de montagem de várias nar-


rativas de outros personagens que contam a história do protagonista Mané,

272
desde sua infância em Ubatuba, passando pelos tempos em que jogou no
Santos, e finalmente sua ida para a Alemanha, onde vai-se tornar Muhammad
Mané. Em todo este percurso revela-se o perfil de uma criança reduzida ao
silêncio, oprimida pela crueldade de outras crianças, massacrada pela vio-
lência de adultos, enfim, por uma sociedade desigual, que o exclui porque
é pobre e negro e que tentará incluí-lo enquanto ator do mundo do espetá-
culo. Apesar de seu talento como jogador de futebol, Mané transforma-se
em um mané, um bobo, um retardado mental ou um autista, já que ele é
incapaz de toda e qualquer expressão de sua vontade e, por conseguinte, de
toda comunicação com os outros. No nome do personagem há sem dúvida
uma evocação de Mané Garrincha, gênio do futebol, que foi muitas vezes
ridicularizado por sua falta de cultura. Na construção do romance, porém,
deve-se observar o paroxismo tanto da incapacidade de comunicação quanto
da obsessão sexual do personagem, além da dificuldade que pode represen-
tar a vida em um mundo globalizado e cosmopolita para alguém tão despro-
vido de meios de compreendê-lo.
Na Alemanha, Mané só entende uma pessoa, Uéverson, um outro joga-
dor de futebol que tenta empurrá-lo entre as pernas de qualquer loira,
numa atitude compulsiva, característica dos jovens que praticam sexo de
maneira incontrolável, e que seria, segundo o autor, a marca de nossa socie-
dade (apud Conde, 2006). O romance, ao retratar situações paradoxais do
mundo globalizado do futebol, aponta para a “fragilização das personalida-
des”, na expressão do filósofo francês Gilles Lipovetsky, segundo o qual esta-
ríamos vivendo na hipermodernidade, uma sociedade que se constrói sob o
signo do excesso, pela cultura da urgência e da hiperfuncionalidade e que se
caracteriza pelo hiperconsumo. O sexo assim consumido, seja na vida real
ou no espaço virtual, se caracteriza pelo prazer consumista, no qual estão
ausentes a emoção e o afeto.
Uéverson, negro como Mané, mais velho do que ele, corresponde ao
modelo de jogador que ganha dinheiro e quer aproveitar, divertindo-se
muito, fazendo piadas o tempo todo, se virando em várias línguas. Uéver-
son e seu amigo africano Mnango podem possuir todas as loiras, repetindo
assim os clichês sobre a relação explosiva do negro com a loira, e que evoca
o fetichismo do consumo sexual do escritor quebequense de origem haitiana
Dany Laferrière em Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer. Tomé,
um músico brasileiro, branco, mais culto, drogado, que está no hospital para

273
se desintoxicar, para ser em seguida deportado, aceita a proposta da polícia
para ser o intérprete dos delírios verbais de Muhammad Mané em troca de
um visto de permanência na Alemanha.
Futebol e música, eis as profissões em alta para os jovens brasileiros no
mercado europeu do trabalho e do sexo. Os personagens europeus que par-
ticipam da intriga reafirmam os clichês sobre os negros e sobre os brasilei-
ros: a alegria, a mistura de raças, a música, o futebol, o erotismo. “Há este
mito sobre a alegria dos brasileiros, a música, a mistura de raças. E Muham-
mad Mané, para nós, representava isso. Queríamos ser amigos dele de qual-
quer maneira. Queríamos que ele nos falasse sobre o Brasil” (Sant’Anna,
2006, p. 283).
Em entrevista publicada na Folha de S. Paulo, Lipovetsky (2004) afirma
que a sociedade hipermoderna é uma “sociedade esquizofrênica”, de um
lado a hiperfuncionalidade, de outro a ascensão de comportamentos dis-
funcionais. O paradoxo da sociedade hipermoderna, dividida entre a apolo-
gia do excesso e o elogio da moderação, provoca a desestabilização emocio-
nal do indivíduo. Diante da desestruturação das formas de controle social, o
sujeito encontra-se totalmente livre para decidir e fazer escolhas num leque
de opções plural. “Deixado a si mesmo, desinserido, o indivíduo se vê pri-
vado dos esquemas sociais estruturantes que o dotavam de forças interiores
que lhe possibilitavam fazer frente às desventuras da existência” (Lipovetsky,
2004, p. 84). O sujeito, excessivamente livre e sem regras, encontra-se ator-
mentado pelas aporias do mundo em convulsão, pelo descentramento
advindo dos deslocamentos e dos confrontos entre sonhos e aspirações e as
duras imposições da realidade.

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papel pólen soft 80 g/m2 (miolo)
e cartão supremo 250 g/m2 (capa)
pela gráfica stamppa para viveiros
de castro editora em junho de 2010.

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