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PUC-SP
SÃO PAULO
2022
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2022
Doutorado Banca Examinadora
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Agradecimentos
Agradeço a minha prima-irmã, Grazielle Mármore, por ser sempre uma parceira de vida
e caminhar lado a lado comigo, me apoiando e me auxiliando nos momentos mais
difíceis da minha vida.
Agradeço a minha avó materna, Yolanda Cusatis (in memoriam), por nunca ter faltado
amor e por ter sido sempre a minha segunda mãe!
Agradeço ao Remom Bortolozzi, por desde o início ter sido um mentor incrível, você
me inspira como pessoa, como profissional e como pesquisador. Obrigado por tornar tão
nítido, o que às vezes parecia tão difuso.
Agradeço a Rita Colaço por sugerir tantas reflexões importantes que estão expressas
neste trabalho. Agradeço ao Renan Quinalha, por ser tão gentil e ter proporcionado
parcerias que foram fundamentais para a minha jornada acadêmica e profissional.
Agradeço às pessoas que deram entrevistas para essa pesquisa, Lili Vargas, Jacqueline
Channel, Laura Bacellar, Fátima Tassinari, Ubirajara Caputo e Franco Reinaudo.
Abstract
INTRODUÇÃO 11
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 85
ANEXOS 99
INTRODUÇÃO
Este trabalho refere-se a um inventário participativo dos Lugares de Memória
LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais)1 da cidade de São Paulo. O
mesmo foi construído a partir de diversas inquietações e necessidades de ter
acesso a um instrumento que sistematizasse esses referenciais, possibilitando
a reconstrução de história(s) dessa população.
Esta pesquisa possui um viés teórico, prático e experimental, visto que buscou-
se referenciais teóricos e metodológicos de áreas como a museologia,
patrimônio e história para fundamentar esse instrumento. E que, embora
fundamentado teoricamente, precisou ser composto à luz da prática e da
experiência, testando possibilidades e sendo necessário tomar decisões para
que o trabalho fosse realizado.
Cabe ressaltar que uma parte do fundamento teórico não advém
necessariamente de fontes bibliográficas e sim de conversas como
pesquisadores e militantes LGBT, que dedicaram a sua carreira a pensar e
pesquisar essa população.
Como aponta Boaventura (2019), muitas reflexões ainda não foram escritas e
estão no domínio da oralidade, que dentro de uma lógica de construção colonial
da cientificidade nega tal oralidade. Assim como todo arquivo é permeado de
silenciamentos e do que não é selecionado. Este trabalho busca dar vazão a
essa esfera - dos excluídos dos arquivos e dos que constroem seu conhecimento
a partir da oralidade à luz de sua realidade concreta2.
Assim, boa parte deste trabalho se baseia em fontes orais, em conversas formais
e informais com ativistas do movimento LGBT que constroem seu pensamento
a partir de sua experiência e de seu ativismo e os ressoando através de sua voz.
E não é porque não passaram pelo domínio da escrita e dos códigos
acadêmicos, que esses conhecimentos não serão reconhecidos neste trabalho.
1
Escolheu-se a sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) como representativa do
espectro das identidades sexuais dissidentes, por ser a mais consolidada dentro das políticas
públicas. Ainda assim, ao utilizarmos essa sigla não se pretende suprimir as demais identidades
sexuais que buscam ser representadas, como Intersexos (I), Agêneros (A), Pansexuais (P), entre
outras.
2
Essas conclusões foram possíveis de serem feitas através do trabalho de Boaventura de Sousa
Santos - SANTOS, Boaventura de Sousa, A desmonumentalização do conhecimento escrito e
arquivístico in: O Fim do Império Cognitivo, Belo Horizonte: Autêntica, 2019, pp. 263 - 291
12
Assim, o (a) leitor (a), poderá conferir cinco capítulos que refletem os percursos
e resultados dessa pesquisa. Os dois primeiros capítulos têm uma natureza
teórica, enquanto o terceiro tem uma natureza prática e experimental e por fim,
o quarto capítulo refere-se às considerações finais do processo.
Assim, no primeiro capítulo o (a) leitor (a) poderá conferir algumas definições
teóricas em relação aos principais conceitos mobilizados, como memória,
museologia, museologia social, patrimônio e herança cultural. Assim, como
poderá verificar uma distinção entre os modelos de inventário - tecnocráticos,
científicos, compartilhados e participativos.
O segundo capítulo busca apresentar uma breve história da população LGBT no
Brasil, a partir de perspectivas estruturais e conjunturais. O capítulo em questão
discute quando a memória e a história se tornaram questões pujantes na
militância e como essa militância respondeu a essas questões por meio de
criações de centros de memória e referência, museus, documentários e outros
meios.
O terceiro capítulo foi arranjado como uma espécie de manual de preenchimento
do inventário e também um diário de campo, apontando as decisões tomadas no
inventário e referenciando o inventário em anexo, com todos os dados
sistematizados. O mesmo é, sobretudo, destinado às pessoas que buscam esse
trabalho pensando em constituir um inventário como este. Ou que querem
acessar apenas os dados sistematizados, caso seja essa vontade recomenda-
se, acessar diretamente o anexo I deste trabalho.
O quarto capítulo refere-se às considerações finais do inventário e de todo o
trabalho. Apresentando gráficos e hipóteses de pesquisas que podem utilizar
esse instrumento para serem realizadas. Da mesma forma que realiza um
balanço final de todo processo realizado de forma sucinta.
Cabe ressaltar que todo esse trabalho foi realizado em um período atípico da
nossa história, em meio a epidemia do COVID-19, impactando diretamente nos
resultados, sobretudo ao que tange a parte prática deste trabalho e o
envolvimento com essa população, limitando os seus resultados. Ainda assim,
buscou-se construir um trabalho bem subsidiado do ponto de vista teórico e
13
metodológico e se buscou uma adaptação às metodologias a partir do contexto
em que a pesquisa foi desenvolvida.
Por isso, deseja-se ao leitor (a) uma boa leitura, almejando que este trabalho
possa suscitar boas reflexões e implique sobretudo, em projetos futuros, que irão
compartilhar a mesma natureza - participativa, a qual este trabalhou buscou
promover.
14
1. QUESTÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS PARA INVENTÁRIOS
PARTICIPATIVOS
3
GUARNIERI, Waldisa Rússio. A interdisciplinaridade em Museologia (1981). In: BRUNO, Maria
Cristina Oliveira (org.). Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma
trajetória profissional. v.1. São Paulo: Pinacoteca do Estado; Secretaria de Estado de Cultura;
Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2010a. p.123.
4
ibidem p. 123
5
Entende-se por Processos Museais, como processos que são operados dentro da instituição
museal - Museu e por Processos Museológicos, processos não necessariamente realizados
dentro das instituições, mas que envolvem pesquisa, valorização e comunicação de referências
materiais e imateriais
15
É a partir da conjugação desses conceitos que se operam alguns procedimentos
técnicos em toda cadeia operatória museológica6, visando a salvaguarda,
pesquisa, valorização e comunicação do patrimônio material e imaterial 7.
O capítulo em questão busca demonstrar as especificidades de cada um desses
conceitos, suas tecnologias e operacionalizações, no tratamento das referências
patrimoniais, sobretudo do patrimônio imaterial. E discutir principalmente, a
centralidade e a relação desses conceitos para a construção de um Inventário
Participativo.
Assim, se propõe uma breve revisão bibliográfica sobre o assunto, para elucidar
como a Museologia e áreas paralelas, como a História, constituem processos
ancorados nessas conceituações.
Neste sentido, cabe apontar que determinados autores foram fundamentais para
se chegar a algumas conclusões, proposições teóricas e práticas. No campo da
museologia, Hugues de Varine Bohan, Waldisa Rússio Guarnieri, Cristina Bruno,
Mário Chagas e Bruno Brulon trazem importantes contribuições. E nos ajudam a
pensar articulações entre Museologia e Sociedade; Museologia e População
LGBT; Comunidades e Processos Museológicos e Patrimônio e Comunidades
Locais.
Ao passo que teóricos que se dedicam ao campo da Memória e História, como
Pierre Nora, Aleida Aissman e José Sebe Bom Meihy, trazem contribuições
imprescindíveis para a mobilização de conceitos-chave como História, Memória
e Lugares de Memória, que são fundamentais para a construção desse
instrumento.
Para melhor elucidar esses conceitos, dispositivos teóricos e ferramentas
metodológicas, os subcapítulos abaixo perpassam por explicações e implicações
dessas articulações. Pensando como essas teorias, metodologias e experiências
6
Cadeia operatória museológica é um conceito construído pela museóloga Cristina Bruno, para
explicar a engrenagem e encadeamento de ações em instituições museológicas, que se referem
à salvaguarda (conservação e documentação) e comunicação (exposição e ação educativo-
cultural) de acervos musealizados. (Bruno, 2018, p. 23)
7
A etimologia da palavra Patrimônio provém do latim (Patrimonium) e representa a junção de
duas palavras: Pater (Pai) e Monium (Recebido), representando a herança que é legada de
geração em geração. Entende-se como Patrimônio Material o conjunto de bens tangíveis e
Patrimônio Imaterial o conjunto de bens intangíveis, como práticas, fazeres, cânticos, rituais e
etc.
16
se relacionam diretamente com a ferramenta do Inventário Participativo e como
a população LGBT pode ser resultante desse estudo interdisciplinar e dessas
práticas.
8
No fundo arquivístico da museóloga Waldisa Rússio, salvaguardado no Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB-USP), existem diversos documentos que abordam a iniciativa do Museu da
Indústria, como um Museu que contasse a história dos trabalhadores nas indústrias de São
Paulo.
9
GIORDANI, Gianna. 26 Museus de Favela e Projetos de Memória São Destacados em Novo
Guia, Portal RioOnWatch: Rio de Janeiro, 12 de dez. de 200, Acessado no dia 15 de maio de
2022, disponível em <https://rioonwatch.org.br/?p=52171>
10
Dados retirados do artigo de Bruno Brulon: BRULON, B. A invenção do ecomuseu: O caso
do écomusée du creusot montceau-les-mines e a prática da museologia experimental.
Mana: Estudos de Antropologia Social, v. 21, n. 2, p. 267–295, 2015.
11
Referências retiradas do artigo de MATTOS, Yara. Ecomuseu, Desenvolvimento Social e
Turismo, Ouro Preto, 2006.
18
deles, que foram criados como instrumentos de reparação das Ditaduras
Militares do Cone-Sul.
São exemplos deste cenário o Memorial da Resistência de São Paulo,
constituído no ano 2009, como uma das formas de reparação aos ex-presos
políticos da Ditadura Militar. O Museu dos Direitos Humanos no Chile, constituído
para abordar as violações da Ditadura de Pinochet, o Museu de la Memoria no
Uruguai, dedicado à memória das pessoas que morreram ou foram perseguidas
pela Ditadura Uruguaia12.
A Alemanha é também um país que se dedicou à construção de Museus e
Memoriais voltados à reparação de segmentos da população perseguidos
durante o Nazismo. Como a Topografia do Terror, em Berlim, na Alemanha, que
retrata os momentos de violação aos direitos humanos desde a República
Weimar até a construção do Muro de Berlim13 e diversas outras instituições no
país.
Todas estas instituições são exemplos de como os paradigmas da museologia
social se relacionam com processos de retratação a grupos que passaram por
violações de direitos humanos.
Como mencionado anteriormente, os Museus LGBT, ou Museus da Diversidade
Sexual, também são instituições criadas ao redor do globo e ancoradas nos
paradigmas da nova museologia. O segundo capítulo deste trabalho se dedicará
a abordar a construção desses museus.
Cabe ressaltar, que essas são apenas algumas amostras de ecomuseus,
museus comunitários, museus de território e museus de direitos humanos que
foram constituídos sob influência dessa nova museologia. Essa sistematização
está muito aquém de ser completa.
Para uma pesquisa sistemática de todos os ecomuseus e museus comunitários
criados no Brasil, indica-se consultar a dissertação: Ecomuseus e Museus
12
Dados retirados do artigo de TEIXEIRA, GISELE. Espaços de memória em São Paulo,
Buenos Aires, Lima, Santiago e Montevidéu ajudam a iluminar a história recente da
América Latina, Revista Trip: São Paulo, 20 de jun. de 2016. Acessado em 16 de maio de 2022,
disponível em: <https://revistatrip.uol.com.br/trip/turismo-de-memoria-museus-e-espacos-para-
relembrar-a-historia-na-america-latina>
13
Essa referência se baseia em uma visita que fiz ao Museu em 2019.
19
Comunitários no Brasil: Estudo Exploratório de Possibilidades Museológicas de
Suzy Santos, defendida no Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Museologia da Universidade de São Paulo no ano 2017, onde a autora mapeia
196 iniciativas do gênero no território brasileiro.
Em paralelo à constituição desses museus, os Processos Museológicos também
foram requalificados, buscando engajar grupos locais e torná-los atuantes no dia
a dia dessas instituições. Processos que eram vistos antes como estritamente
técnicos, como o caso dos inventários, tornaram-se processos passíveis de
requalificação e inserção das comunidades no seu fazer.
Nesse contexto, modelos de inventários como o compartilhado e o participativo
ganham lastro nas instituições museais, inserindo as populações locais, na
construção, identificação e gestão das coleções.
14
VARINE, Hugues de. As Raízes do Futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento
local. Porto Alegre: Medianiz, 2013, pp. 47
21
que é bem cultural e sobre o que inventariar dos agentes técnicos e/ou científicos
para as comunidades.
Enquanto no inventário compartilhado a comunidade é convocada a anexar
informações após a definição do que é patrimônio. No inventário participativo é
a comunidade que define o que é bem cultural, o que será patrimonializado e o
que servirá como herança cultural para as futuras gerações.
O Inventário Participativo é um processo museológico de extrema importância,
no sentido de dar autonomia para que as comunidades possam definir o que
querem que seja preservado, pesquisado e comunicado, envolvendo-as
diretamente nas tomadas de decisão.
Escolheu-se esse modelo de inventário, pelo entendimento de que essa escolha
pertence à comunidade e não ao poder público, a um agente técnico ou
especializado. Entende-se que a comunidade LGBT deve decidir o que
preservar, o que faz sentido para a manutenção de sua cultura e o que ela quer
transmitir para essas e futuras gerações.
Esse processo gera uma aproximação entre as comunidades e o seu patrimônio
e, sobretudo, enriquece as instituições e/ou agentes culturais que fazem a
mediação, entre os bens culturais e as populações. Não se desclassifica o
trabalho e aprendizado técnico de museólogos, conservadores e
documentalistas, mas entende-se que eles são mediadores no processo de
definição.
O Inventário Participativo é também um processo que rompe com uma certa
tutela ou paternalismo das instituições culturais com essas comunidades. E
experimenta uma construção conjunta entre os agentes técnicos e as
populações a qual esse patrimônio diz respeito.
Na construção de um Inventário Participativo, a memória dessas populações é o
âmago dessa metodologia. E são fundamentais para trazer à tona a função dos
objetos e/ou lugares em seu contexto de produção e para a indexação de
informações a esses bens. Sem essas memórias, modelos de inventário como
esse seriam impossíveis de serem constituídos.
1.4. Memória
22
Memória é um termo polissêmico, que expressa múltiplos significados e está
presente em grandes áreas do conhecimento, como nas ciências humanas,
biológicas e exatas. Para cada uma dessas áreas o estudo da memória possui
sua importância e significação.
Nas ciências humanas, onde este trabalho se assenta, o estudo da memória
denomina os profissionais de Memorialistas. E se faz presente em campos como
o jornalismo, antropologia, sociologia, museologia, psicologia social, história,
entre outras.
Para este projeto é importante entender o que é a memória enquanto fenômeno
social e individual e no que a mesma consiste. Quais são as suas implicações,
contradições, possibilidades e limites. Pensando que a mesma é substrato
imprescindível para a construção desse modelo de inventário.
A memória é um produto essencialmente narrativo, sendo o tempo a composição
imprescindível dessa narrativa15. Assim como a história, a memória olha para o
passado, a partir dos valores e paradigmas do presente. Contudo, diferente da
história, a memória é um processo de adjetivação e valorização desse passado,
enquanto a história busca, por meio de paradigmas científicos, despir-se das
adjetivações, interpretar e questionar os fatos16.
Esse processo de adjetivação, que parte de valores do presente, implica que a
memória diz sempre mais do presente do que do passado. A seleção intencional
ou não do que lembrar, a atribuição de valor ao passado, são processos
subjetivos e individuais (MEIHY, 1996, pp. 65). A isso se soma o distanciamento
temporal, possibilitando novas interpretações sobre os fatos e processos do
passado a partir do olhar do presente.
Segundo Meihy, a memória nunca é completa, pelo contrário, ela é sempre
fragmentada, como uma colcha de retalhos, constituída por meio de uma
narrativa que tem sentido ao narrador.
15
RICOEUR, Paul, Tempo e Narrativa - Tomo I, trad. Constança Marcondes Cesar,
Campinas: Papirus, 1994
16
O trabalho de Pierre Nora, Entre Memória e História foi um subsídio imprescindível para a
compreensão da separação entre história e memória. - NORA, Pierre. Entre Memória e
História: a problemática dos lugares de memória. Projeto História. PUC SP, v. 10, 1993.
23
A memória é evocada por um sujeito em um contexto social, que possui valores
morais, geracionais, dores e emoções. Esse conjunto de questões implica
diretamente na narrativa em que essas lembranças serão apresentadas.
Cabe apontar, que aqui estamos nos debruçando sobre a memória oral, que
possui diferença em relação à memória escrita. Segundo Meihy, “a memória
escrita é uma expressão sempre individual, mesmo quando somada a outras,
enquanto a memória de expressão oral parte do indivíduo para os cruzamentos
com o coletivo”17.
Nesse campo há algumas definições de memórias, como memórias românticas
e memórias traumáticas. Alguns museus, por exemplo, trabalham com memórias
traumáticas. São instituições que lidam com reparações aos sujeitos lesados por
violações de Direitos Humanos, e que as memórias evocadas são permeadas
por dor.
Na cidade de São Paulo, um dos exemplos no tratamento desses fenômenos é
a constituição do Núcleo Memória, do já citado Memorial da Resistência de São
Paulo, responsável por um programa de entrevistas. Essas memórias
traumáticas, estão ligadas particularmente aos processos de tortura, exílio e
cárcere de ex-presos políticos da Ditadura Militar Brasileira.
No caso da população LGBT não é diferente. Na história, diversos processos de
perseguição geraram memórias traumáticas, ao ponto dos sobreviventes terem
diversas reticências ou se recusarem a falar sobre. Como o caso da perseguição
nazista aos homossexuais18, ou o cárcere de sujeitos LGBT, sobretudo de
pessoas transexuais em períodos recentes do Brasil.
17
José Carlos Sebe Bom Meihy, “A memória é a matéria essencial das entrevistas”:
Entrevista com José Carlos Sebe Bom Meihy, Entrevistadora: Agnes Francine de Carvalho
Mariano, Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação Universidade Federal de
Juiz de Fora, Juiz de Fora, v. 14, n. 3, p. 213-226, set/dez. 2020
18
No caso da Alemanha, há um documentário intitulado Parágrafo 175 que captou narrativas
dos sobreviventes da perseguição, parte dos sobreviventes se recusou a falar para não trazer à
tona o trauma causado pelo processo.
24
A memória é um fenômeno que vem sendo estudado e discutido por diversos
teóricos no campo das ciências humanas. Uma dessas teóricas, Aleida Aissman,
produziu importantes trabalhos no campo da classificação da memória.
Um dos textos de Aleida Assman, Formas e transformações da memória cultural
(2011), se debruça na classificação desse fenômeno. De acordo com a autora,
essas classificações são fundamentais para a elucidar e representar o universo
amplo em que a memória se assenta19.
Entre as classificações apresentadas se encontram a memória formativa
(tradição cultural), memória de aprendizagem, memória cultural e memória
comunicativa, que serão melhor elucidadas neste subcapítulo.
A memória formativa, está ligada à tradição cultural (ASSMAN, 2011, p.17, grifo
nosso), esse tipo específico de memória dialoga diretamente com o termo de
memória-nação, apresentado por Pierre Nora, no texto Entre Memória e História:
a problemática dos lugares de memória (1993). No caso da tradição cultural, a
autora aponta que é uma memória ecoada e que serve a formação cidadã, está
atrelada a constituição de valores, que na maior parte das situações é
repercutido por meio da agência do estado.
A memória de aprendizagem está ligada a observação e reprodução de
determinadas técnicas20. Aqui podemos entendê-la como uma memória do
Saber Fazer 21, como aponta o pedagogo José Mário Pires Azanha (1985)
quando disserta sobre os tipos de aprendizagem que podem ser realizados no
contexto escolar e fora dele. Ou seja, é o tipo de memória que se apoia no
conjunto de técnicas relativas ao aprendizado de uma função.
A memória cultural, se refere a memória selecionada e guardada ou mesmo
grafada em determinados objetos e documentos e que também serve a uma
instrução de valores. (ASSMAN, 2011, 17 - grifo nosso)
19
ASSMANN, Aleida. Introdução. In Espaços de recordação. Formas e transformações da
memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. p. 15
20
Ibidem, 17-18
21
AZANHA, José Mário Pires. Uma Reflexão Sobre a Didática. In A Didática em Questão –
3º Seminário. Atas de Volume I. São Paulo, 1985. P. 24-32.
25
Por fim, a memória comunicativa, que liga três gerações consecutivas e se
baseia nas lembranças legadas oralmente.22 Neste trabalho, lidamos
diretamente com a memória comunicativa, buscando a partir da construção de
um inventário participativo representar elementos que ligam três ou mais
gerações de pessoas LGBT. Desta forma, a pesquisa foca em entrevistas com
esse segmento e utiliza recursos da História Oral para o registro desses
fenômenos.
22
Ibidem, 17-18
Todas essas classificações foram retiradas da introdução do texto Espaços de recordação, de
Aleida Assman - ASSMANN, Aleida. Introdução. In Espaços de recordação. Formas e
transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. p. 15-27.
23
MATOS, J. S. e SENNA, A. K. de. História oral como fonte: problemas e métodos. Historiæ,
[S. l.], v. 2, n. 1, p. 95 – 108, 2011. Disponível em: https://periodicos.furg.br/hist/article/view/2395.
Acesso em: 26 mar. 2022.
24
O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC)
é um centro ligado à Faculdade Getúlio Vargas e tem sede na cidade do Rio de Janeiro.
26
criado também o Núcleo Estudos em História Oral - NEHO, na Universidade de
São Paulo, fruto da atuação de um dos principais difusores e pesquisadores do
método no Brasil, José Sebe Bom Meihy25.
O trabalho de Meihy é fundamental para a composição de metodologias de
tratamento na memória. segundo o professor:
Memórias são lembranças e, como tais, dependem das condições
físicas e clínicas dos depoentes, bem como das circunstâncias em que
são dadas. Sendo que a memória é sempre dinâmica, muda e evolui
de época para época, é prudente que seu uso seja relativizado, posto
que o objetivo de análise, no caso, não é a narrativa objetivamente
falando nem sua relação contextual, mas a interpretação do que ficou
(ou não) registrado na cabeça das pessoas. (MEIHY, 1996, p. 65)26
25
José Carlos Sebe B. Meihy é professor titular aposentado do Departamento de História da
Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-
USP). É um dos introdutores da moderna História Oral no Brasil. Criador de uma metodologia
própria de condução de História Oral, seus trabalhos são considerados fundamentais por
estabelecer elos entre a narrativa acadêmica e o público em geral. (Informações retiradas de sua
biografia pela editora Contexto)
26
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Edições Loyola, 1996,
p. 65
27
Devido aos paradigmas marxistas, do método materialista histórico-dialético que busca
compreender as raízes materiais que estruturam determinada sociedade e o seu reflexo na
superestrutura, que se tornaram quase que uma norma a ser seguida nas pesquisas em história.
Alguns grupos que não são refletidos na estrutura e na superestrutura, acabaram por ser
invisibilizados nessa disciplina.
28
Losandro Antonio Tedeschi em seu artigo, Os lugares da História Oral e da Memória nos
Estudos de Gênero, aborda como o método trouxe luz para que os estudos de gênero se
desenvolvessem na disciplina. TEDESCHI, Losandro Antonio, Os lugares da História Oral e da
Memória nos Estudos de Gênero, OPSIS, Catalão, v. 15, n. 2, 2015, pp. 338
27
de história, mas também se alastraram em outras áreas, como a antropologia,
sociologia, jornalismo e na própria museologia.
Neste aspecto algumas formas de composição de Inventários Participativos,
utilizam métodos da História Oral como subsídio em sua constituição. Assim,
cabe ressaltar que este trabalho também utiliza esses métodos para dar vazão
às memórias coletadas. Esse procedimento será melhor detalhado no terceiro
capítulo da monografia.
29
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares de memória.
Projeto História. PUC SP, v. 10, 1993. p. 12
30
Embora nos subcapítulos anteriores tenhamos nos dedicado a mostrar as ações de museus
ancorados na Museologia Social, ainda hoje existem museus que não se sensibilizam tanto com
as questões, buscando por meio de suas coleções apresentar o poderio do Estado.
31
Embora a memória-sociedade seja transmitida por essas vias e esteja cada vez mais
presentes nas instituições e processos museológicos. Ainda hoje existem museus que
direcionam sua narrativa para um aprendizado moral e cívico tomando como base um discurso
oficial do Estado, sem necessariamente problematizá-lo.
29
Neste sentido, o inventário participativo é além de um processo, uma estratégia
de sistematização e transmissão de uma herança cultural de determinado grupo.
Esse processo corrobora, não só para a repercussão de memórias de grupos
subalternizados, mas também a construção de novas referências desses grupos
pela sociedade.
Entende-se que esse processo de inclusão pode auxiliar em re-apropriações e
difusão de elementos culturais próprios da população LGBT. Como, por
exemplo, a maior repercussão do dialeto Bajubá 32, para que esses bens, valores
e heranças não sejam perdidos ao longo do tempo e que não se tornem apenas
histórias, mas sim, memórias vivas e presentes no dia-a-dia da sociedade.
No capítulo seguinte nos dedicaremos a demonstrar como esses processos de
apropriação e aproximação das instituições museais, processos museológicos e
estratégias de propagação de memórias LGBT se deram em um contexto
recente do Brasil.
Referências Bibliográficas
ASSMANN, Aleida. Introdução. In Espaços de recordação. Formas e
transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. p.
15-27.
BRULON, B. A invenção do ecomuseu: O caso do écomusée du creusot
montceau-les-mines e a prática da museologia experimental. Mana: Estudos
de Antropologia Social, v. 21, n. 2, p. 267–295, 2015.
BRUNO, Maria Cristina Oliveira e ARAÚJO, Marcelo Mattos e COUTINHO, Maria
Inês Lopes. Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma
trajetória profissional. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo. 2010
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Definição de Cultura – os caminhos do
enquadramento, tratamento e extroversão da herança patrimonial. In:
32
O Bajubá é um dialeto que mistura elementos do português e da língua africana Iorubá, foi
constituído e utilizado no Brasil, principalmente pela população transexual e travesti, que por
meio do dialeto, se comunicava com a sua comunidade e se protegia de ações policiais. Com o
tempo, esse dialeto se popularizou em outros segmentos da população LGBT. Em 2016 os
autores Fred Libi e Angelo Scippe publicaram o livro: Aurélia A: dicionária da língua afiada que
sistematiza o vocabulário Bajubá e suas significações.
30
BITTENCOURT, José Neves (org.) JULIÃO, Letícia (coord.). Cadernos de
Diretrizes Museológicas 2: mediação em museus: curadorias, exposições, ação
educativa. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais,
Superintendência de Museus, p.14 - 23, 2008.
CAMARGO, Aspásia, Como a História Oral chegou ao Brasil, Entrevistada
por: D'ARAUJO, Maria Celina. HISTÓRIA ORAL, 2, Rio de Janeiro, 1999, p. 167-
79
CHAGAS, Mário, Memória Social em Fragmentos: o Poder das
Encruzilhadas e a Museologia em Ação in: Cadernos do SESC Cidadania, Ano
10, N 15, São Paulo: SESC, 2019, pp. 36 - 40
_________________, A Escola de Samba como Lição de Processo Museal,
Caderno Virtual de Turismo, Vol. 2, N 2 (2002), Rio de Janeiro: Instituto Virtual
de Turismo, 2002, pp. 15 - 18
GIORDANI, Gianna. 26 Museus de Favela e Projetos de Memória São
Destacados em Novo Guia, Portal RioOnWatch: Rio de Janeiro, 12 de dez. de
200, Acessado no dia 15 de maio de 2022, disponível em
<https://rioonwatch.org.br/?p=52171>
José Carlos Sebe Bom Meihy, “A memória é a matéria essencial das
entrevistas”: Entrevista com José Carlos Sebe Bom Meihy, Entrevistadora:
Agnes Francine de Carvalho Mariano, Revista do Programa de Pós-graduaç ão
em Comunicação Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, v. 14, n.
3, p. 213-226, set/dez. 2020
MATOS, J. S. e SENNA, A. K. de. História oral como fonte: problemas e
métodos. Historiæ, [S. l.], v. 2, n. 1, p. 95 – 108, 2011. Disponível em:
https://periodicos.furg.br/hist/article/view/2395. Acesso em: 26 mar. 2022.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Edições
Loyola, 1996
31
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares de
memória. Projeto História. PUC SP, v. 10, 1993.
2.1.Questões Iniciais
O presente capítulo trará um breve panorama histórico, social e político da
população e do movimento LGBT no Brasil e no mundo. Como uma forma de
introduzir esse segmento ao (a) leitor (a), para que compreenda adiante a
necessidade de um trabalho como esse.
O capítulo também abordará como essa população e essa pauta vem sendo
inserida nas instituições memorialísticas, como os Museus, Centros de Memória,
Referência e afins. E como as iniciativas museológicas e pró-memórias LGBT
contribuíram, para que as instituições museológicas que não tinham um recorte
patrimonial, que englobava essas identidades, tivessem mais aderência a essa
questão.
A construção feita neste capítulo é pontual, considerando que o objeto desta
pesquisa não trata de uma sistematização completa de ações de
institucionalização da memória LGBT e sim de um breve mapeamento, a partir
de informações que se tem no presente33. Tal mapeamento oferece insumos
33
Caso (a) o leitora (o), se interesse pelo tema e queira localizar uma sistematização mais
completa, recomenda-se a leitura da dissertação de mestrado do antropólogo Tony Boita,
33
para o entendimento do cenário em que essa população está assentada no
contexto atual.
38
Luiz Mott é antropólogo e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
além de uma extensa produção bibliográfica sobre a questão, foi protagonista em diversas lutas
políticas pela garantia de direitos de homossexuais, bissexuais e transexuais no Brasil. Para este
o trabalho, o seu livro Inquisição e Sociedade foi fundamental para desprender sobre o contexto
de proibição de atos sexuais entre parceiros do mesmo gênero no período colonial.
39
Sodomia é uma terminologia que foi utilizada no Brasil Colonial para designar o ato de
penetração anal. O termo advém dos escritos bíblicos, com inspiração nos versículos que
abordam a cidade de Sodoma e Gomorra. No entendimento do Tribunal do Santo Ofício, aqueles
que praticavam esse ato, eram vistos como sodomitas e estavam sujeitos a punições, como a
pena de morte, degredo, açoite, entre outras, a depender do seu estrato social. Mott, Luiz,
Dicionário Biográfico dos Homossexuais da Bahia (Séculos XVI-XIX). Salvador, Editora
Grupo Gay da Bahia, 1999. pp. 08-09
40
O Tribunal do Santo Ofício - foi uma instituição portuguesa que atuou em todo reino Português
(Portugal, Brasil, colônias africanas) e tinha caráter "judicial" ao processar e "inquirir" os
pecadores, por meio da figura máxima do órgão - o Inquisidor. A instituição foi bem atuante no
Brasil, sobretudo no século XVI - XVIII, com visitas dos Inquisidores Gerais à colônia. O Tribunal
do Santo Ofício, pode ser lido também como uma das primeiras instituições responsáveis por
gerir a burocracia de todo o reino português. Porto Editora, Tribunal do Santo Ofício na
Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, Disponível em <https://www.infopedia.pt/$tribunal-
do-santo-oficio> Acesso em 07 de Jul. de 2022
41
Neste contexto o Brasil é colônia de Portugal, sendo reconhecido como parte do reino
português.
42
As palavras "homossexual" e "heterossexual" estão escritas entre aspas, pois essas
denominações surgiram após esse período.
43
Como Foucault, sintetiza: O Sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma
espécie. (FOUCAULT, 2017, pp, 48)
35
Esse contexto é marcado pela ausência de um Estado centralizado e
centralizador e por uma relação direta entre monarquia e igreja nos processos
de dominação dos povos sul-americanos.
Como aponta Foucault, as identidades sexuais como são vistas hoje, constituem
em um fenômeno moderno. De acordo com o autor, essas denominações foram
constituídas em um primeiro momento pela medicina, sobretudo pela Medicina-
Legal, em um contexto de uma centralização do poder pelo Estado e por uma
substituição do poder da igreja pela ciência.
O estabelecimento dessas identidades, sobretudo a de homossexuais e
transexuais, ocorre em um contexto em que a eugenia44 era a base da ciência
ocidental. E buscava catalogar corpos e criar padrões de normalidade e
anormalidade. Neste contexto, os homossexuais, transexuais e futuramente
bissexuais se tornaram parte desse grupo entendidos como "dissidentes
sexuais" ou "anormais".
Esse processo, que segundo Foucault, jaz na modernidade, cria mecanismos de
controle dos corpos, a qual o autor conceitua como biopolítica. A biopolítica
representa o controle e a gestão do corpo que é substituído pelo direito de matar,
que cabia ao rei no mundo colonial 45 (FOUCAULT, 2017, pp. 150). Esse
processo busca problematizar não só os corpos de homossexuais, mas também
de mulheres e negros e negras.
É com esse processo que o sexo (genitália), se torna um fator importante de
estudo e de problematização do indivíduo. E através de sistemas de controle
como o estado, a ciência e a polícia eles começam a ser aceitos ou cerceados,
44
Eugenia é um termo cunhado por Francis Galton (1822-1911), um antropólogo,
meteorologista, matemático e estatístico inglês. O termo tinha como pressuposto que os seres
humanos estavam em uma escala de evolução, assim, o homem branco e europeu, representava
a maior escala de civilização e evolução humana, enquanto homens e mulheres negros,
indígenas e homossexuais representariam o atraso da civilização ou a degeneração social. Esse
termo era entendido como espécie de Darwinismo social e Galton e Darwin eram descendentes
da mesma família. GOLDIM, José Robert. Eugenia, Porto Alegre: UFGRS, 1998. Disponível em:
<https://www.ufrgs.br/bioetica/eugenia.htm> Acesso em 06 de Jul. de 2022
45
De acordo com Foucault: A velha potência de morte em que se simbolizava o poder soberano
é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da
vida. (...) Abre-se assim, a era de um biopoder. (FOUCAULT, 2017, pp. 150-151)
36
a depender da situação. Este processo é listado de forma etapista e
sistematizada por Michel Foucault, assim como esquematizado abaixo:
1) Cerceamento das crianças para não descobrirem suas
sexualidades, através do poder exercido pelas famílias, igrejas,
hospitais e etc – tutela do sexo; 2) Caça as sexualidades periféricas; 3)
O controle vigilante do poder, que excita as pessoas a falarem sobre
sexo, ao mesmo tempo que utiliza-se disso para vigilar a sexualidade
periférica das pessoas próximas; 4) Saturação de poder em alguns
núcleos como a família, escola, a igreja e etc.
● A implantação das perversões sexuais é um instrumento que
auxilia a moldar o corpo e a sexualidade dócil.
● O sexo é constituído como objeto de verdade, sendo a
sexualidade periférica, a exemplo uma inverdade, ou uma negação da
verdade sobre o sexo. Essa verdade é parte da regulação. Isso dá o
poder a quem ouve, punir a perversão sexual. - Grifos meus
(FOUCAULT, 2017)
46
Terminologia utilizada no livro. (ALMEIDA, 1906, pp. 236 - 237)
47
Denominação feita em uma reportagem sobre o seu falecimento no jornal Folha de S. Paulo
de 29 de Ago. de 1984.
38
utilizado como exemplo para marchinhas de carnaval e amplamente comentada
em sua época.
A segunda imagem, aborda a figura de uma pessoa Intersexo no livro de Pires
de Almeida, essa figura denominada como - Androgyno, e entendida como um
estudo de caso no campo do Hermafroditismo48. Esse personagem teve suas
partes íntimas fotografadas, a fim de justificar a tese sobre a má formação das
genitálias como causa da sua personalidade afeminada.
48
Terminologia utilizada no livro (Ibidem. 236 - 237)
39
mas como uma forma de existir que não corresponde a uma estrutura patriarcal 49
e aos padrões da heteronormatividade.
Essa organização, a nível de movimento social, tem temporalidades distintas ao
redor do mundo e irá dar respostas a essas prerrogativas que marginalizam os
homossexuais em diversos processos. Ao que se tem registros, a Alemanha é
um o berço do movimento homossexual moderno. É nesse país, ainda no século
XIX, que é criado o Comitê Humanitário Científico, protagonizado pelo médico
Magnus Hirschfeld50, com proposta de abolição do Parágrafo 17551 da República
de Weimar, que criminaliza os homossexuais.
Já no século XX, nos Estados Unidos, eclode a Rebelião de Stonewall 52,
conhecida como uma das primeiras revoltas homossexuais do mundo. Essa
rebelião também origina a primeira marcha do orgulho gay, que vai se tornar a
primeira parada do orgulho. Stonewall postula a identidade Gay como uma das
primeiras identidades políticas do movimento e que rompe qualquer tipo de
hierarquia dentro do movimento 53 e que tem repercussões a nível nacional e
internacional para a construção de novos movimentos homossexuais.
Cabe mencionar que embora Stonewall se constitua em um marco de
radicalidade da comunidade Gay local, a rebelião não é a primeira iniciativa do
movimento. Houve iniciativas como a criação da Mattachine Society, idealizada
em 1950 em Los Angeles, Califórnia. Assim, houveram rebeliões anteriores,
49
Patriarcado é uma palavra que tem origem no latim: pater (pai) e arcke (comando), ou seja
remete ao comando (estrutura) regida pelos homens.
Para o movimento feminista a ideia de patriarcado, representa a dominação das mulheres pelos
homens. NADER, Maria Beatriz e MORGANTE, Mirela Marin. O patriarcado nos estudos
feministas: um debate teórico, Rio de Janeiro: Anais do XVI Encontro Regional de História da
Anpuh-Rio: Saberes e práticas científicas ISBN 978-85-65957-03-8, 2014
50
Magnus Hirschfeld foi um médico Alemão, que apoiado pelo Partido Social Democrata Alemão
(SPD), levou ao Congresso uma proposta de abolição do Parágrafo 175, dispositivo legal que
criminalizava a homossexualidade na Alemanha. Em 1919, Magnus Hirschfeld abre o primeiro
Instituto de Sexualidade em Berlim, instituição queimada com o advento do Nazismo em 1933.
51
O Parágrafo 175 era o código penal Alemão que criminalizava a homossexualidade, foi criado
na República de Waimer e reincorporado com a instauração do nazismo na Alemanha.
52
A Rebelião de Stonewall ocorreu em 28 de junho de 1968, em Nova Iorque - Estados Unidos,
em um bar homônimo. Essa rebelião é o início de um longo processo, que vai gerar as primeiras
Paradas do Orgulho nos Estados Unidos e que se alastraram pelo mundo.
53
Antes de Stonewall e da postulação da identidade Gay, essa subcultura tinha suas próprias
distinções internas, que inferiorizava por exemplo as travestis, ou os homossexuais afeminados
em detrimento dos masculinizados.
40
como a revolta da Cafeteria Comptons, em 1966 na Califórnia, protagonizada
por travestis da região.
Na América Latina, devido ao que podemos compreender como um “atraso” aos
movimentos sociais, gerados pela instauração de Ditaduras Militares, as
respostas a nível de movimento são posteriores e com muitas organizações
ativistas descentralizadas.
As Ditaduras Militares do Cone-Sul, ocorreram em anos próximos em quase toda
a América Latina, no Brasil (1964 - 1984), na Bolívia (1964 - 1982), no Peru (1968
- 1975), no Chile (1973 - 1990), na Argentina (1976 - 1983), no Uruguai (1973 -
1985). Alguns estudos fazem inferências de como essas Ditaduras retardaram
o início do movimento homossexual no Brasil (QUINALHA E GREEN, 2014),
(GREEN, 1999). Essa aferição é muito contundente, ao pensarmos como a
Argentina, que teve uma instauração da Ditadura mais tardia, pode também ser
a pioneira na constituição do movimento homossexual latino-americano.
Ao que se tem registro uma das primeiras organizações pró-homossexuais na
Argentina, teve início em 1967 - a “Nuestro Mondo”54, que no futuro, se
transformaria na Frente de Libertação Homossexual Argentina (FLH). É nessa
frente que será lançado o boletim SOMOS, que irá inspirar a criação do primeiro
grupo de ativistas homossexuais no Brasil, de nome homônimo - SOMOS: Grupo
de Afirmação Homossexual, que surgiu na Universidade de São Paulo em
19785556.
54
INSAUSTI, Santiago Joaquin. “Una historia del Frente de Liberación Homosexual y la
izquierda en Argentina”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 2, e554280, 2019
55
Memórias da Diversidade Sexual - Glauco Mattoso Part. 4/5 (Memórias da Diversidade
Sexual). Direção: Lufe Steffen. Produção: Museu da Diversidade Sexual. Youtube. 14 de mar.
de 2019. Duração 9:59 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uo28ZqjfUxQ>.
Acesso em: 02 de jul. de 2022 data.
56
Cabe ressaltar que um dos membros da FLH na Argentina, Néstor Perlongher, se exilou no
Brasil durante e também foi membro do grupo SOMOS, na USP. ARTEAR, Soy Lo Que Soy -
Néstor Perlongher, Buenos Aires, 2016. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=_pEl6NGgiv8&ab_channel=sandramihanovich> Acesso em
07 de Jul. de 2022
41
57
Congresso Nacional do Terceiro Sexo, Pernambuco: Diário de Pernambuco, 1968
58
A utilização de agências de notícias era algo habitual no jornal Última Hora, visto que nem
sempre havia recursos para enviar jornalistas aos locais onde os fatos estavam ocorrendo. Essa
questão é mencionada no livro de memórias de Samuel Wainer (WAINER, 1987)
42
59
A formação inicial do SOMOS: Grupo de Ação Homossexual se fragmentou durante o ato do
1º de Maio de 1980, a qual parte do grupo optou por se somar a manifestação e outra parte não.
Neste processo são gerados dois novos grupos o GALF - Grupo de Ação Lésbico-Feminista e o
Outra Coisa. O Grupo SOMOS continuou a atuar, mas com um quadro e expressão reduzida.
FÍGARI, Carlos Eduardo. Somos, Grupo - Primeiro Grupo Homossexual do Brasil, São Paulo:
Enciclopédia Latino Americana. Disponível <http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/s/somos-
grupo> Acesso em 05 de Jul. de 2022
43
Essa articulação perdura até meados da década de 1980 e com uma profusão
de diversos grupos de homossexuais ao redor do Brasil. A maior parte deles
estava concentrada nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Alguns desses
grupos, como o Triângulo Rosa (RJ) terão uma participação fundamental na
Constituinte (1985 - 1987)60, por meio de sua liderança - João Antônio
Mascarenhas, sendo a primeira vez que um homossexual faz uma fala no
Congresso pública em defesa dos homossexuais61.
Concomitante a esse processo de redemocratização, ocorre a eclosão da
epidemia do HIV-AIDS no Brasil e no mundo. No Brasil, uma das primeiras
vítimas públicas foi o estilista Markito (Marcus Vinícius Resende Gonçalves)62,
60
A participação de lideranças homossexuais durante o processo da Constituinte (1985), na
redemocratização brasileira, consiste na primeira vez em que um homossexual assumido se
pronuncia na Assembléia Geral. Nessa ocasião, João Antônio Mascarenhas, líder do grupo
Triângulo Rosa no Rio de Janeiro e conselheiro do jornal Lampião da Esquina, defende que a
criminalização da homofobia seja incluída na constituição brasileira. A reivindicação, embora
tenha simbolizado um importante passo para o movimento homossexual na época, não foi aceita.
Essa equiparação aconteceu apenas em 2019 por decisão do Supremo Tribunal Federal.
61
Silvia Rosana Modena Martini et al. JOÃO ANTÔNIO MASCARENHAS (1927-1998):
PIONEIRO NO ATIVISMO DE DIREITOS HUMANOS LGBT NO BRASIL. In: ANAIS DO II
CONGRESSO DE PROJETOS DE APOIO à PERMANêNCIA DE ESTUDANTES DE
GRADUAçãO DA UNICAMP, 2019, Campinas. Anais eletrônicos... Campinas, Galoá, 2019.
Disponível em: <https://proceedings.science/permanencia-2019/papers/joao-antonio-
mascarenhas--1927-1998---pioneiro-no-ativismo-de-direitos-humanos-lgbt-no-brasil> Acesso
em: 06 jul. 2022.
62
Markito foi um estilista de grande influência da década de 1970-1980, vestindo celebridades
nacionais e internacionais. Seu estilo tinha influências no Glam Rock e seus figurinos eram
44
falecido em 1983, a qual mídia utilizou da sua imagem no processo de figuração
do estigma da AIDS a homossexualidade, como aponta (BORTOLOZZI, 2021
pp. 177).
Com a eclosão da epidemia, o movimento homossexual brasileiro, que antes era
pautado por um certo autonomismo em relação ao Estado e a política partidária,
com um enorme medo de coptação por ambos é obrigado a se requalificar. Essa
requalificação é pautada por um diálogo direto com o Estado, a fim de exigir
políticas públicas na área da saúde como respostas à epidemia do HIV/Aids e
por uma certa profissionalização da militância (BORTOLOZZI, 2021, 225).
Esse diálogo era necessário no momento, visto que a epidemia se alastrava,
gerando mortes e casos clínicos de extrema gravidade para essa população. O
cenário era também produto de uma desinformação por parte do estado e
setores privados da saúde, em relação aos métodos contraceptivos que
poderiam retardar ou impedir o alastramento da epidemia. Esse diálogo é
pautado não só no cuidado das pessoas soropositivas, mas também na
prevenção do vírus.
É marco desse processo uma profusão de ONGs voltadas ao tema. Em São
Paulo, ONGs como o GAPA (Grupo de Apoio à Prevenção a AIDS), Pela Vidda
- SP, Grupo de Incentivo à Vida - GIV e a Casa de Apoio Brenda Lee, se tornaram
referências de atuação nesse momento. E, em conjunto com outros movimentos
e ONGS, conseguem as primeiras respostas para a epidemia do HIV-AIDS.
A epidemia se alastra até os anos 1990, quando em 1996 entra em cena a terapia
anti-retroviral, que impedia que o vírus HIV se desenvolvesse na AIDS e tornava
esta uma doença controlável63.
É em 1995, ainda com o estigma da Aids em voga para a comunidade LGBT,
sobretudo para homossexuais e transexuais, que se iniciam as Paradas do
caracterizados através do glitter e paetês. Vestiu grandes nomes como Sonia Braga, Xuxa
Meneghel, Liza Minnelli, Diana Ross e Olivia Newton-John. (BORTOLOZZI, 2021, pp. 177-178)
63
NUNES JÚNIOR, Sebastião Silveira e CIOSAK, Suely Itsuko. Terapia antirretroviral para
HIV/AIDS: o estado da arte. Journal of Nursing UFPE On Line, v. 12, n. 4, p. 1103-1111, 2018.
Tradução Disponível em:
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/231267/28689. Acesso em: 07
jul. 2022.
45
Orgulho Gay no Brasil. As primeiras são realizadas no Rio de Janeiro e em
Curitiba64, e, em 1997, se dá início a primeira Parada GLT de São Paulo, que em
2006 vai se tornar a maior Parada do Orgulho do mundo65.
Como aponta Reinaudo e Bacellar:
Na primeira década do século XXI, as paradas do orgulho glbt no Brasil
se transformaram num fenômeno inédito. A de São Paulo entrou no
livro Guiness dos recordes como a maior parada do mundo depois de
apenas dez anos de existência, suplantando as muito mais tradicionais
paradas de Nova York, São Francisco e Paris em quantidade de
participantes. Foi também a primeira manifestacão pública em favor da
comunidade homossexual que ultrapassou dois milhões de pessoas.
(REINAUDO E BACELLAR, 2008, pp. 66)
Os anos 2000 são marcados por uma eclosão de políticas públicas, sobretudo
nas capitais Rio de Janeiro e São Paulo. Pode-se dizer, que boa parte dessas
políticas são fruto da dimensão que as Paradas do Orgulho tomam, não à toa a
cidade que concentra a maior Parada do mundo é uma das precursoras e que
em números possui a maior quantidade de políticas públicas LGBT do país 66. Há
aí uma atenção maior do poder público com esse segmento e com várias
aparições públicas de prefeitos e governadores neste evento.
Nesse contexto, políticas voltadas à saúde, assistência social e cultura são
criadas para essa população. No âmbito municipal é criado a Coordenação de
Políticas Públicas para LGBTI (2005), Centro de Referência da Diversidade
64
Redação Lado A, Há 20 anos, Curitiba sediou a primeira parada gay do Brasil, Curitiba: Lado
A, 2015. <https://revistaladoa.com.br/2015/06/curitiba/ha-20-anos-curitiba-sediou-primeira-
parada-gay-brasil/> Acesso em 07 de Jul. de 2022
65
Em 2006, em sua 10º edição, a Parada do Orgulho LGBT adentra ao livro dos recordes
(Guinness Book) como a maior Parada do Orgulho LGBT do mundo, contudo esse marco é
retirado do livro após divergências de contagens feitas pela imprensa, polícia militar e
organização do evento. Embora não esteja mais no livro dos recordes, a Parada de São Paulo
continua sendo a maior Parada do mundo. sem autor: PARADA LGBT DE SP VAI PARA O
'GUINNESS'. Memorial da Democracia, São Paulo, 26 de out. 2006. Disponível em:
<http://memorialdademocracia.com.br/card/parada-lgbt-de-sp-no-guiness-book>. Acesso em: 04
de jul. de 2022.
66
Em diversas discussões com o ativista Franco Reinaudo, o mesmo utilizava uma abordagem
para apresentar a Parada do Orgulho como Big-Bang LGBT, sugerindo que foi a partir de sua
explosão com milhões de pessoas nas ruas que as políticas públicas voltadas a essa população
começaram a ser instauradas. Essa é uma das perspectivas, mas acredito que seja importante
também considerar o papel da luta contra o HIV/Aids na cidade e que promoveu um diálogo e
parceria extensa entre movimento homossexual e estado.
46
(2008), o Transcidadania - iniciado como POT – Programa Operação Trabalho
LGBT em 200867 e etc. No âmbito estadual, são promulgadas leis como a Lei
10.94868, que dispõe sobre penalidades a serem aplicadas em manifestações
LGBTfóbicas, promulgada em 2001, e criados programas e equipamentos como
o Selo Paulista da Diversidade (2007), o Museu da Diversidade Sexual (2012),
entre outros.
67
O Transcidadania é uma política pública da prefeitura de São Paulo que promove a
reintegração de homens e mulheres transexuais, por meio de bolsa, para que possam garantir
condições básicas como moradia, alimentação, higiene e educação.
68
A Lei 10.948 é promulgada em 2001, pouco tempo após o assassinato do adestrador de cães
Edson Néris. O seu assassinato é marcado também como a primeira vez que um crime no Brasil
é tipificado como crime de ódio. A Lei dispõe sobre penalidades que podem ser a pessoas e
estabelecimentos que praticarem qualquer discriminação motivada por LGBTfobia.
69
Os conceitos de controle e vigilância são muito bem elucidados na obra de Michel Foucault,
Vigiar e Punir e que aqui são emprestados para elucidar como a estrutura de vigilância e controle
dos corpos de pessoas LGBTI+ culminam em sua exclusão sistemática.
47
No campo educacional, a marginalização acontece por diversas vias. Na
educação básica, por exemplo, a ausência de políticas públicas e orientações
pedagógicas para lidar com questões relativas à identidade de gênero e
orientação sexual são uma realidade. A exemplo disso, há a questão do kit anti-
homofobia, desenvolvido pelo Ministério da Educação, que reunia uma série de
materiais para lidar com a questão nas escolas, e que foi vetado pela então
presidenta Dilma Rousseff70.
Tais entraves implicam em altos índices de evasão escolar e impossibilitam que
parte dessa população consiga chegar à educação superior, o que se agrava de
forma mais violenta com a população transexual e travesti. Segundo uma
pesquisa realizada em 2016, pela Comissão de Diversidade Sexual da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), estima-se que cerca de 84% de pessoas
transexuais e travestis tenham evadido a escola, ainda na Educação Básica 71.
Embora, algumas universidades tenham adotado políticas afirmativas para a
inclusão dessas pessoas, elas ainda não são o bastante para sanar a questão
estrutural da educação para a sexualidade. Segundo uma pesquisa realizada
pelo ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino
Superior) e pela FONAPRACE (Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos
Comunitários e Estudantes) é apontado que apenas 0,2% do total de alunos dos
Institutos Federais se autodeclaram como pessoas transgêneras72.
70
Após protestos das bancadas religiosas no Congresso, a presidente Dilma Rousseff
determinou nesta quarta-feira (25) a suspensão do "kit anti-homofobia", que estava sendo
elaborado pelo Ministério da Educação para distribuição nas escolas, informou o ministro da
Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho. - PASSARINHO, Nathalia. Dilma Rousseff
manda suspender kit anti-homofobia, diz ministro. G1, Brasília, 25 de maio de 2011.
Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/dilma-rousseff-manda-
suspender-kit-anti-homofobia-diz-ministro.html>. Acesso em: 04 de jul. de 2022.
71
Dados retirados do artigo da Futura - LOBO, Emy. No dia Internacional do Orgulho
LGBTQIA+, veja a importância da diversidade na educação. [s.l]: Futura, 2021 Disponível em
<https://www.futura.org.br/no-dia-internacional-do-orgulho-lgbtqia-veja-a-importancia-da-
diversidade-na-
educacao/#:~:text=Uma%20pesquisa%20realizada%20em%202016,estudos%20ainda%20na
%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20B%C3%A1sica.> Acesso em 04 de Jul. de 2022
72
FONAPRACE. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as)
Graduandos (as) da IFES - 2018, Brasília, 2019, pp. 46
48
A ausência de educação para muitos sujeitos desse segmento implica
diretamente em um afastamento das instituições de educação e cultura, como
os Museus.
A carência de capital cultural73 por parte dessa população, que é produto de uma
condição sistêmica da evasão escolar, possui implicações diretas no acesso às
instituições museológicas. Essa exclusão não é só presente no campo físico,
mas também no simbólico, por conta da falta de acesso aos códigos culturais
exigidos, mesmo que indiretamente, por essas instituições.
Além disso, embora ações pontuais tenham sido executadas e algumas delas
estão esboçadas neste capítulo. Essa população na maior parte das vezes não
se vê representada no que é exposto nos Museus. Essa falta de
representatividade, que é tão vital para essa população (que já não é
representada nas demais instituições brasileiras) se torna mais uma questão que
gera esse afastamento74.
Além disso, poucos museus enxergam a população LGBT como um público em
potencial. O reflexo disso é a ausência de marcadores de orientações sexuais e
identidades de gênero em suas pesquisas de público, ações culturais,
educativas e exposições voltadas à fidelização desse segmento aos Museus.
73
O conceito de capital cultural foi desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu, para representar
a bagagem que determinado indivíduo traz e como isso reflete na sua circulação na sociedade e
como o desprovimento deste capital implica em uma exclusão sistemática de parte da população.
Este termo foi conceituado no livro de Bourdieu - Reprodução Cultural e Reprodução Social, em
1973. BOURDIEU, Pierre, “Reprodução Cultural e Reprodução Social”, in GRÁCIO, S.,
MIRANDA, S., STOER, S., Sociologia da Educação I – Funções da Escola e Reprodução Social,
1982, Lisboa, Livros do Horizonte;
74
Em junho de 2018 o Museu da Diversidade Sexual realizou um evento intitulado - Museu
Queer: a presença LGBT nos Museus, com o objetivo de discutir onde se encontram os
marcadores de gênero e sexualidade nos acervos dos Museus. Embora alguns eventos tenham
sido construídos nesse sentido, ainda não há nenhuma pesquisa sistemática, que aborde essas
presenças nas coleções dos Museus brasileiros. Todavia, há esforços teóricos e metodológicos
para abordar essa questão com mais profundidade, um dos exemplos é a publicação do livro -
Queer Objects, editado por Chris Brickell e Judith Collard e o livro - Queering the Museum de
autoria de Nikki Sullivan and Craig Middleton.
49
Embora o cenário acima seja triste e ainda longe de ser superado pelos museus,
há diversas iniciativas que pressionam tais instituições a realizarem mudanças e
acolherem a população LGBT. Espera-se que no futuro essas iniciativas deixem
de ser pontuais para se tornarem uma realidade em todos os Museus.
Pode-se dizer que uma das primeiras iniciativas museológicas para a
salvaguarda e comunicação de bens culturais sobre a sexualidade humana,
ocorre na Alemanha, a partir da criação Instituto de Sexualidade 75 do médico
Magnus Hirschfeld, o mesmo articulador do Comitê Humanitário Científico,
citado anteriormente.
O instituto servia como um centro médico, atendendo e informando a sociedade
alemã sobre a sexualidade e realizando cirurgias de redesignação social 76.
Também expunha e pesquisava a coleção privada do médico, em partes do
instituto. Essa coleção é retratada no filme O Einstein do Sexo (1999) de Rosa
von Prauhein expressava diversas questões da anatomia humana ligada ao
sexo, influenciando o debate sobre ele.
Durante o apogeu do Nazismo (1933 – 1945), a Alemanha sofreu um
recrudescimento grande em relação à liberação sexual. Assim, o Instituto se
torna alvo da perseguição nazista e é queimado, restando hoje apenas ruínas do
que fora o Instituto de Sexualidade77.
Ainda na Alemanha, após essa catástrofe, em 1984 é criado o Schwules
Museum (Museu Gay) em Berlim78 - o primeiro Museu do gênero, que passou a
ser apoiado pelo poder público na década de 2000. Este Museu conta com um
número estimado de acervo em seu subsolo de aproximadamente 1,5 milhão de
75
O Instituto de Sexualidade de Magnus Hirschfeld é retratado nas obras audiovisuais, O Einstein
do Sexo de Rosa von Prauhein (1999) e no documentário Parágrafo 175 de Rob Epstein e Jeffrey
Friedman (2000).
76
Magnus Hirschfeld também contribuiu com seus estudos para a cirurgia de redesignação
sexual de Lili Elbe, personagem que inspirou o filme: Garota Dinamarquesa de Tom Hooper.
77
Hoje o Instituto de Sexualidade fica localizado na Haus der Kulturen der Welt, em Berlim, onde
foi instalada uma placa em homenagem ao instituto e ao trabalho de Magnus Hirschfeld. A
instituição também abriga uma sala e uma exposição de longa duração em homenagem ao
médico e ao instituto.
78
O Museu fica localizado no bairro de Lützowstrasse, N 73, uma antiga fábrica de impressão,
fica aberto todos os dias da semana, com exceção de terça-feira, o Museu é gratuito e sua
reserva técnica e biblioteca podem ser consultadas mediante agendamento. Todas as
informações estão dispostas no site do Museu: https://www.schwulesmuseum.de
50
itens, representando uma grande coleção sobre o tema. Esse acervo é composto
por quase 200 coleções de fotografias, filmes, áudios, obras de arte e etc e o
Museu também tem uma biblioteca com mais 20.000 livros sobre
homossexualidade79.
Nos Estados Unidos, em 1969, foi realizada uma exposição com referências
sobre a homossexualidade, se tornando as raízes do Leslie-Lohman Art Gallery.
Recentemente, em 2016, a galeria se tornou um Museu de Arte. A Leslie-
Lohman funciona como instituição privada, mas recebe incentivo de órgãos
públicos de Nova Iorque80.
Ainda nos Estados Unidos, com a repercussão das Paradas do Orgulho, outras
iniciativas museológicas são iniciadas a partir da década de 2000, tendo a
cooperação do poder público, como o GLBT Historical Society em São Francisco.
O Museu abre as portas em 2010 no lendário distrito de Castro, onde foi eleito o
primeiro representante assumidamente gay dos Estados Unidos, o ativista
Harvey Milk81. De acordo com o seu site oficial, o GLBT Historical Society teve
início em 1985, todavia a sua cooperação com o poder público acontece apenas
nos anos 2000.
Processos semelhantes podem ser vistos na América Latina, onde o desejo pela
criação de um Museu dedicado ao tema já estava expresso em artigos do artista
Darcy Penteado no jornal Lampião da Esquina82, que clamava pela criação de
79
O dado de cerca de 1 milhão de itens na reserva técnica foi me informado em uma visita que
fiz ao Museu no ano de 2019 para a conferência - Queering Memory: ALMS Conference, a qual
realizamos uma visita guiada à reserva técnica, contudo no site do Museu é informado que seu
Acervo contém cerca de 1,5 milhões de documentos - https://www.schwulesmuseum.de/archiv/.
Os dados relativos ao número de coleções e livros foram retirados de: Museu Gay (Museu
Schwules), [s.l], 2022. Disponível em: <https://artigos.wiki/blog/en/Schwules_Museum> Acesso
em 04 de jul. de 2022
80
Informações retiradas do site do Museu - Leslie Lohman, Sobre Nós, Nova Iorque. Disponível
em: <https://www.leslielohman.org/about-us>, Acesso em 05 de jul. de 2022.
81
Harvey Milk foi eleito em 1977 para a Câmara de Supervisores de São Francisco,
representando os homossexuais. Pouco tempo depois Harvey Milk foi assassinado, junto com o
prefeito em seu gabinete pelo representante Dan White, que sequer cumpriu a totalidade de sua
pena. Sua história é homenageada em filmes e documentários e o GLBT Historical Society está
constituído no bairro de Castro, que deu forças para que Harvey fosse eleito na época.
82
Em um dos primeiros artigos do jornal, Darcy Penteado escreve o seguinte trecho:
"Finalizando: conservo com avareza boa parte do acervo erótico-homossexual de minha autoria.
As telas dos "sentimentos essenciais" ou o "Adão" em plástico, só sairão das minhas mãos para
algum museu ou colecionador especializados (existirão, algum dia?)", PENTEADO, Darcy.
51
um Museu da Arte Homoerótica. Posteriormente, no ano de 1998, acontece a
primeira iniciativa de constituição de um Museu que aborda o tema, o Museu da
Sexualidade, criado em Salvador, Bahia, é constituído pelo acervo de pesquisas
do antropólogo e ativista Luiz Mott, com uma vasta coleção de referenciais da
sexualidade de povos indígenas da América Pré-Colombiana83.
Em 2012, ocorreu a criação do Museu da Diversidade Sexual84 em São Paulo,
como primeira iniciativa do poder público na América Latina para criação de um
equipamento do gênero.
Contemporâneas à fundação do Museu da Diversidade Sexual, algumas
iniciativas na América Latina são executadas, como a criação do Museu Q
(2016)85 na Colômbia, formado por uma associação de pesquisadores e artistas,
e o Museu da Travesti (2009-2013), no Peru,86 que era materializado a partir da
indumentária de seu proponente Giuseppe Campuzano.
Ensaio, in: Lampião da Esquina, Edição Experimental - no 0, Rio de Janeiro: Lampião, Editora
de Livros, Revistas e Jornais, fevereiro de 1978, p. 03
83
Algumas informações sobre o Museu foram retiradas e podem ser consultadas no portal - Sou
Salvador. Museu da Sexualidade, Salvador: Portal Salvador.com, 2017. Disponível em
<sousalvador.com/local/297/261/museu-da-sexualidade>, Acesso em 05 de jul. de 2022
84
Embora o Museu date de 2012, o desejo para criação de um equipamento o gênero era uma
demanda de alguns ativistas paulistas desde a década de 1990, após a realização das primeiras
Paradas do Orgulho LGBT
85
Informações retiradas do site oficial do Museu - Museu Q, Quién Somos, Colômbia. Disponível
em <https://museoq.org/quienes-somos/> Acesso em 05 de jul. de 2022
86
Informações retiradas da página web do Museu CAMPUZANO, Giuseppe, Prólogo, Peru: El
Museo Travesti, 2009 - 2013. Disponível em <https://hemi.nyu.edu/hemi/pt/campuzano-
presentation> Acesso em 05 de jul. de 2022
52
memória. Seja pelo fato da questão LGBT ter se tornado uma preocupação
recente para as instituições memorialísticas do país e do mundo, seja pelo fato
de parte dessa população estar em situação de extrema vulnerabilidade, ao
ponto de não acessarem as instituições de educação e cultura para dar vazão
às suas memórias.
Outro fator de extrema importância é a forma como esses sujeitos têm sua
sexualidade e identidade de gênero cerceados durante toda a sua vida,
podando-as, para que os discursos sobre elas se mantenham sempre em
silêncio. Tal contexto impossibilita ainda mais o acesso, captação e difusão das
suas memórias.
Todavia, essas memórias são fundamentais para revelar os sujeitos LGBT na
história recente do Brasil e inscrevê-los em novas narrativas sobre a sociedade
brasileira. E para possibilitar encontros e reencontros entre gerações,
possibilitando que as novas gerações conheçam as histórias de sua população
e se empoderem a partir delas.
87
São exemplos desses deslocamentos, a atuação do Grupo Dignidade (Curitiba) e Arco-Íris
(Rio de Janeiro), que cumprem um papel importante de capilarização das lutas pró-LGBT em
suas cidades e estados e hoje se dedicam a essa pauta por meio dos seus Centros de Memória
e Referência.
53
É importante analisar que muitas das pautas históricas do movimento
homossexual e LGBT foram conquistadas nas últimas décadas, como: a luta por
uma resposta à epidemia HIV-AIDS e por um tratamento público e gratuito no
Sistema Único de Saúde (SUS), conquistada entre as décadas de 1980 e 1990;
a despatologização de homossexuais, conquistada no Brasil em 1985 88 e a nível
global, por decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1991, e mais
recentemente a despatologização de transexuais, conquistada em 2018; o
reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo gênero, conquistado
em 2011 e por fim, a criminalização da homofobia, conquistada em 2019.
A título de hipótese, entende-se que com todas essas pautas conquistadas o
direito à memória se tornou uma bandeira para que os ativistas continuassem a
se movimentar89. É plenamente compreensível que em cenários anteriores, a
luta pela vida, pela diminuição de homicídios e fim da perseguição a esses
sujeitos era mais central para os e as ativistas no momento, do que a luta pelo
direito à memória.
Embora a questão da memória não tivesse lastro no movimento, nas décadas
anteriores (1970 - 1990), alguns ativistas já reivindicavam essas questões. Aqui
cabe ressaltar os trabalhos da ativista Rita Colaço, que escreveu o livro Uma
Conversa Informal sobre Homossexualismo, em 1984, e da jornalista Míriam
Martinho, que em seus artigos no periódico Chanacomchana, levantava a
questão de memórias e histórias da lesbiandade no Brasil 90. Além desses, há
também João Silvério Trevisan com a publicação da primeira edição do livro
Devassos no Paraíso, em 198691, e as ações de Luiz Mott, com a construção do
Museu da Sexualidade, como citado anteriormente.
88
A campanha pela abolição do CID 302.0, que inclui o “homossexualismo” na seara de
transtornos mentais, foi protagonizada pelo Grupo Gay da Bahia, que conquistou a
despatologização anos antes da determinação da OMS em 1991.
89
Essa hipótese parte de conversas informais que tive com a ativista Rita Colaço.
90
Entre os artigos que tentam reconstituir a história da lesbiandade no Brasil foi publicado na 3
ed. do jornal Chanacomchana em 1983, intitulado: GALF uma história de um grupo de mulheres
lésbicas. O Chanacomchana foi um jornal artesanal, produzido na década de 1980 e 1990 pelo
Grupo de Ação Lésbico Feminista (GALF), tendo como suas principais protagonistas as ativistas
Rosely Roth e Miriam Martinho.
91
A primeira edição do livro Devassos no Paraíso, foi feita por meio de uma encomenda de uma
editora Inglesa, chamada - Gay Men’s Press, o livro intitulado - Perverts in Paradise, foi uma
primeira versão do que se tornaria a edição brasileira, publicada no mesmo ano. DAMASCENO,
54
Cabe mencionar que a propagação de ações pró-memória e sua reivindicação
por meio de movimentos ganharam provavelmente maior profusão do início da
década passada (2010) em diante92. Nesse aspecto, ações como o Relatório
“Ditadura e Homossexualidades”, da Comissão Nacional da Verdade, que
contou com a participação da presidenta da União, Dilma Rousseff, em 2013, foi
um importante marco pró-memória. Articulado pelos ativistas Renan Quinalha e
James Green, o relatório possibilitou o reconhecimento das memórias e histórias
LGBT nas narrativas sobre a Ditadura Militar e implicou na publicação do livro de
autoria de ambos, intitulado Ditadura e Homossexualidades, lançado no ano
2014 pela editora Edufscar.
Ítalo, Devassos no Paraíso, livro sobre LGBTs no Brasil, ganha reedição, São Paulo: Metrópoles,
2018. Disponível em: <https://www.metropoles.com/vozes-lgbt/devassos-no-paraiso-livro-sobre-
lgbts-no-brasil-ganha-reedicao> Acesso em 06 de Jul. de 2022
92
Essa foi uma especulação feita em uma conversa com a historiadora e ativista Rita Colaço.
Como apontado no capítulo de introdução, ainda há muito a ser escrito e nem todas as fontes
desse trabalho estão baseadas em uma bibliografia, mas também nas trocas orais realizadas
entre pesquisadores LGBT.
93
A Casa 1 é uma casa de acolhida em um Centro Cultural da cidade de São Paulo, que foi
criado com o objetivo inicial de acolher jovens LGBT expulsos de casa, com o passar do tempo
os voluntários da casa decidiram por também criar um centro cultural para a formação da
população LGBT. Informações retiradas do site oficial da casa - Institucional, Casa 1, São Paulo.
Disponível em <https://www.casaum.org/institucional/> Acesso em 05 de jul. de 2022
Em meados de 2018 - 2019, uma das salas da casa abrigou o Acervo Bajubá. O Acervo Bajubá
é um acervo comunitário de pesquisadores LGBT que a partir de suas fontes de pesquisa
constroem esse corpus documental.
55
Lésbico Brasileiro (2020), são algumas das instituições de custódias criadas a
partir da década de 2010, com exceção do CEDOC de Curitiba, que foi criado
em 2017.
Em paralelo a esse processo, no ano de 2012, também foram criadas a Rede
LGBT de Memória e Museologia Social e a Revista Memórias LGBT 94, ambas
angariadas pelos museólogos Tony Boita e Jean Baptiste. Em 2019, foram
criadas a Rede de Arquivos, Memórias, Acervos e Investigadores LGBTQIA+ da
América Latina e a Rede de Historiadores Rede Historiadorxs LGBTQI+, por
iniciativa do pesquisador Benito Schmidt 95.
Essa amostra, nos permite entender que existe um rol de iniciativas realizadas a
partir da década de 2010, muitas delas protagonizadas por ativistas LGBT, que
cumpriram um papel histórico em outros momentos. Assim, é possível apreender
que a memória se tornou uma bandeira para o movimento LGBT na atualidade
e a profusão dessas ações refletem essa questão.
Cabe, assim, apontar que a existência e atuação de ativistas e suas
organizações contribuíram fortemente para que a pauta LGBT começasse a
promover a criação de instituições de memória dedicadas integralmente ao tema.
E cabe reforçar que a existência do movimento organizado LGBT também foi
preponderante para que o assunto passasse a ser discutido em Museus que não
tem essa população como o seu objeto – o que será discutido no tópico a seguir.
94
Tanto a rede de Memória e Museologia LGBT como a Revista Memórias LGBT+ fazem parte
do mesmo grupo e estão diretamente conectadas. As iniciativas podem ser conferidas em seu
site oficial - https://memoriaslgbt.com/
95
A Rede AMAI-LGBTQIA+ ainda não possui um site, o seu contato é travado a partir de um
grupo de facebook e Whats App, assim como as demais redes.
96
Museu Normativo, definido por Maria Cristina Oliveira Bruno em 2021, como “museus
tradicionais que são organizados em torno de coleções e acervos'' BRUNO, Maria Cristina
Oliveira, Sinergias e enfrentamentos: as rotas percorridas que aproximam a museologia
56
realizadas nestes Museus, como forma de explicitar como algumas instituições
estão aderindo a este tema.
É possível observar que ações afirmativas e culturais têm sido realizadas por
essas instituições, trazendo o protagonismo da população LGBT para suas
atividades. Em São Paulo, por exemplo, alguns Museus ou espaços culturais
como o Instituto Moreira Salles, a Pinacoteca do Estado, entre outros,
promoveram ações afirmativas priorizando a contratação de pessoas LGBT,
sobretudo de pessoas trans. Essa ação possui um diálogo direto com a política
pública do Município de São Paulo Transcidadania, já comentada anteriormente
no subcapítulo - A exclusão sistemática de pessoas LGBT dos espaços de
cultura e educação.
Outras ações realizadas abordam a atuação dessa população. E, a título de
exemplo, podemos mencionar algumas exposições realizadas que levantaram
essas bandeiras:
● A exposição do Clóvis Bornay no Museu da República, no Rio de Janeiro,
de curadoria do Mario Chagas, ficou aberta de 28/01/2016 a 02/05/2016 97;
● A exposição Orgulho e Resistências: LGBT na Ditadura Militar, no
Memorial da Resistência de São Paulo, com curadoria do professor
Renan Quinalha, realizada de outubro de 2020 a maio de 202198;
● A exposição Memória e Resistência: Brenda Lee, a anja das Travestis, no
Museu da Cidade de São Paulo, com curadoria de Alecsandra Matias,
aberta de 30 de outubro de 2021 a 16 de outubro de 202199;
100
Informações sobre a exposição, podem ser consultadas no site oficial do Museu:
<https://ims.com.br/exposicao/madalena-schwartz-as-metamorfoses_ims-paulista/>
101
As informações sobre a censura da exposição no Farol Santander (Porto Alegre), Museu da
Arte do Rio (MAR), foram retiradas das seguintes fontes: MENDONÇA, Heloísa, Queermuseu:
O dia em que a intolerância pegou uma exposição para Cristo, São Paul: El País, 2017.
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html>
Acesso em 05 de Jul. de 2022 e CARNEIRO, Júlia Dias, 'Queermuseu', a exposição mais
debatida e menos vista dos últimos tempos, reabre no Rio, Rio de Janeiro: BBC News Brasil,
2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45191250> Acesso em 05 de Jul.
de 2022 e sobre a montagem no Parque Lage, foi retirada da seguinte fonte: VÖLZ Filipe,
Queermuseu no Parque Lage, Rio de Janeiro: Esquerda Online, 2018. Disponível em:
<https://esquerdaonline.com.br/2018/09/11/queermuseu-no-parque-lage/> Acesso em 05 de jul.
de 2022
58
memórias e histórias LGBT na área da cultura. E como algumas instituições
foram corajosas ao apresentar essas narrativas por meio de suas ações.
102
Desbunde é um termo popularizado durante a Ditadura Militar, que se referia, de forma
pejorativa, aos grupos que segundo a esquerda tradicional “deram a bunda para a Ditadura
Militar”. Esses grupos buscavam por meio da cultura dar uma resposta política à censura moral
do Regime. E os homossexuais puderam se assentar nesse movimento durante o período.
59
200 personalidades do interior e litoral do Estado de São Paulo e foi realizada
por meio do edital Mais Orgulho do Estado de São Paulo de 2020.
103
Redesignação Sexual é o nome dado para a pessoa que começa a adequar o seu corpo ao
gênero que se identifica. No Brasil esse processo pode ser feito integralmente pelo Sistema
Único de Saúde por Ambulatórios Trans.
60
espaço referenciado por fontes bibliográficas e orais como o primeiro espaço
público a ser frequentado por homossexuais.
A Galeria Metrópole abriu as portas no ano de 1960, as fontes que utilizamos
mencionam a circulação de pessoas e grupos homossexuais desde o início
dessa década104. A Galeria que se tornou em um primeiro momento, ponto de
encontro de homossexuais, lésbicas e travestis entre as décadas de 1960 e
1970, passou a receber um fluxo menor dessa população nos final dos anos
1970 e início dos anos 1980, quando a Rua Augusta e outras regiões do
denominado centro velho, como Av. Vieira de Carvalho, se tornaram os novos
pontos de encontro.
Nas décadas de 1990 e 2000, não encontramos tantas referências da Galeria
Metrópole como um lugar de memória LGBT, contudo recentemente algumas
ações que unem a população LGBT começaram ser apresentadas na Galeria,
voltando a reunir essa população. Logo, esse espaço pode ter significados
distintos, para cada uma das gerações de pessoas LGBT que o frequentaram. E
é importante que nesse instrumento esses marcos geracionais estejam bem
identificados.
Esse processo de “uso” e "desuso" dos espaços públicos é comum em uma
cidade e para uma população que está em constante mudança. E mesmo que
esses espaços possuam um objetivo de criação, nesse processo, a sua
significação se dá por meio dos grupos que os frequentam.
104
VARGAS, Lili. Entrevista concedida ao Museu da Diversidade Sexual. Entrevistador:
Leonardo Arouca, São Paulo, p. 3, 2018
61
Considerando que os Museus são instituições fruto de tecnologias coloniais de
dominação e valorização de uma cultura eurocêntrica em detrimento de outras,
essas ações ressignificam o papel dos Museus na sociedade. Como aponta
Maria Amélia Bulhões:
(...) os museus, constituídos a partir das aquisições dos mecenas,
tornadas públicas no âmbito dos ideais iluministas da Revolução
Francesa, ocupam um lugar de destaque. Elas cumpriram, desde sua
origem, o papel de legitimar artistas e produções, em uma perspectiva
eurocêntrica, expandindo uma história da arte escrita a partir de suas
coleções, que desempenhavam uma função de distinção social,
designando de forma subalterna outras produções simbólicas como
artesanato ou as ditas artes menores. Assim, a maioria das obras que
reconhecemos por arte está nos grandes museus da Europa, onde
escrevem sua história de sua arte superior, incorporando obras de
períodos anteriores, como pré-história, Grécia e Roma, para
desenvolver concepções evolucionistas e afirmar seus valores
estéticos. BULHÕES , M. A. Museus de arte, das práticas coloniais aos
desafios da virada digital . MODOS: Revista de História da Arte,
Campinas, SP, v. 6, n. 2, p. 179-200, mai.2022. DOI:
10.20396/modos.v6i2.8668410. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/
view/8668410.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOITA, Tony William. Cartografia etnográfica de memórias desobedientes,
2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal de
Goiás, Goiás, 2019. Disponível em
<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/9364>
62
BORGES, Viviane Trindade e SCHAEFER, Murilo Maluche, “Mais Um
Problema Social A Ser Resolvido Pela Medicina”: A Homossexualidade Sob
A Ótica De Leonídio Ribeiro (1935), Florianópolis: UDESC. Disponível em:
<www1.udesc.br/arquivos/id_submenu/2561/3.pdf>, Acesso em 05 de Jul. de
2022
3.1. Introdução
Este capítulo foi pensado como um caderno de orientações para compreender a
constituição desse inventário, a partir das inflexões e decisões que precisaram
ser tomadas durante o processo e refere-se à parte prática e experimental desse
projeto.
O mesmo busca apresentar ao (à) leitor(a) mais do que um instrumento
formatado, mas sobretudo os percalços (erros e acertos) nesta jornada. Em
parte, este capítulo também representa um diário de campo, considerando que
alguns desafios que precisaram ser enfrentados estão descritos abaixo.
Cabe mencionar que boa parte dos referenciais adotados nesta parte do texto
são provenientes de cursos e conversas informais com profissionais da área da
museologia, história e arquivística e não propriamente são referências
bibliográficas. Contudo, é importante mencionar de imediato que algumas
publicações e cursos foram fundamentais no processo de constituição desse
instrumento.
Entre os referenciais de maior importância para este capítulo, destaca-se o
Manual de Aplicação de Inventários Participativos do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)105 e o curso livre de Inventário Participativo
do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), disponível no catálogo de cursos da
Escola Virtual do Governo (EVG) 106. A partir desses aportes metodológicos
subsidiados por essas duas referências e por metodologias emprestadas da
História Oral, buscou-se criar um instrumento, que para além de arrolar e
sistematizar os lugares, permitisse o engajamento dos entrevistados nesse
processo.
105
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Brasil). Educação Patrimonial:
inventários participativos: manual de aplicação / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional ; texto, Sônia Regina Rampim Florêncio et al. – Brasília-DF, 2016. 134
106
Escola Nacional de Administração Pública: Inventário Participativo [online]. Disponível na
Internet via correio eletrônico < https://sabermuseu.museus.gov.br/inventario-participativo/>.
2021
66
Este capítulo busca discutir e elucidar todo o processo de construção desse
instrumento, apresentar questões, dificuldades, potencialidades e possíveis
desdobramentos. E demonstrar por meio de uma metodologia ou de um passo-
a-passo como as etapas de trabalho foram constituídas – considerando ainda
que foi um trabalho realizado em um período atípico, devido à epidemia do
COVID-19, que impactou diretamente nos resultados da pesquisa.
107
Entende-se por objeto-conceito aqui como a representação de um patrimônio ou bem
cultural de natureza imaterial, como práticas de diversas naturezas, memórias e etc.
108
As atualizações nos trabalhos de Waldisa Rússio foram constantes, a pesquisadora sempre
buscou aprimorar os seus conceitos e não mantê-los cristalizados. Assim, conceitos como fato-
museal ou musealização se alargaram em determinados momentos para elucidar práticas com
o patrimônio imaterial e para a extensão da musealização para fora da instituição museal.
109
O conceito de musealização está muito bem elucidado na publicação do Comitê Brasileiro do
Conselho Internacional de Museus, de tradução da museóloga Marília Xavier Cury e Bruno
Brulon, intitulado “Conceitos-chave de Museologia”. (ICOM, 2013)
110
Essa percepção se deu por meio de aula com o Museólogo João Pedro Rodrigues, na pós-
graduação em Museologia, Cultura e Educação da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, em 2022.
67
de sociabilidade LGBT. Assim, a musealização desses lugares a partir da
representação feita pelos entrevistados não possui mais sentido de ser. 111
Cabe mencionar também que a competência e domínio pela preservação desses
lugares, do ponto de vista arquitetônico, não compete apenas aos Museus, mas
sim às instituições de preservação do patrimônio nas três esferas (municipal
paulistano, estadual paulista e federal), como o Departamento de Patrimônio
Histórico (DPH), o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico (Condephaat) e
o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a partir dos
processos de tombamento, que podem ser solicitados pelos museus e agentes
do patrimônio, mas não são eles os encarregados administrativos a realizar o
processo.
Retomando os processos mencionados por Waldisa Rússio e requalificados por
teóricos da museologia, como Cristina Bruno, a musealização dessas memórias
ocorre de diversas maneiras. Passa por um processo de pesquisa prévia,
seleção, registro, pesquisa, documentação, comunicação e valorização desses
referenciais.
Os processos de pesquisa estiveram presentes em várias etapas do inventário.
Assim, ações como seleção, registro, documentação e comunicação também
foram subsidiadas por pesquisas prévias, de forma a entender, contextualizar e
documentar essas memórias. Nos próximos subcapítulos, serão detalhados os
processos de pesquisa, seleção dos entrevistados, captação e documentação
dessas memórias.
111
São exemplos dessa descaracterização lugares emblemáticos como a boate Medieval, que
hoje abriga o shopping Center 3 e o Ferro's Bar que hoje abriga um vestiário da família Mancini
- empresários proprietários de restaurantes e responsáveis por restaurar ruas no centro de São
Paulo, como a rua Avanhandava.
68
como constam nas fontes bibliográficas consultadas remontam o início e
primeiras décadas da ocupação pública de homossexuais e transexuais na
cidade.
Fontes bibliográficas de jornais como Lampião da Esquina, ChanacomChana e
revistas como Um Outro Olhar112, G Magazine113 e livros como “Devassos no
Paraíso”, de João Silvério Trevisan (2018), ”Além do Carnaval”, de James Green
(2019) e “Ditadura e Homossexualidades”, de Renan Quinalha e James Green
(2014), foram fundamentais para compreensão do processo histórico de
ocupação do espaço público por essa população e para referenciar possíveis
entrevistados. Do mesmo modo, a atuação profissional do autor no Museu da
Diversidade Sexual, durante o período de 2017 a 2021, foi imprescindível para a
aproximação com alguns (mas) entrevistados (as).
Assim, o processo de pesquisa levou às pessoas referenciadas e/ou próximas a
essa atuação profissional, como Franco Reinaudo, Fátima Tassinari e Laura
Bacellar (envolvidos na construção da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo
entre 1990 e 2000) e pessoas a posteriori indicadas por elas.
Cumpre ressaltar que o processo de entrevistas e contato com os entrevistados
pode ser caracterizado como muito dinâmico e permite aproximações com novos
sujeitos (potenciais entrevistados) que foram fundamentais para esse inventário.
E muitas vezes a primeira pessoa com quem se tem contato (do segmento ou
grupo focal) será a mais importante no sentido de aproximar de outros potenciais
112
A revista Um Outro Olhar, foi produzida pela jornalista Miriam Martinho e pela Rede de
Informação Um Outro Olhar, a partir da década de 1990, substituindo assim o jornal artesanal
Chanacomchana. A Revista possuía uma proposta editorial mais arrojada e foi comercializada
em diversas bancas do país. MARTINHO, Miriam. Memória lesbiana: há 32 anos surgia a Rede
de Informação Um Outro Olhar, paladina da visibilidade lésbica, São Paulo: Um outro olhar:
para mulheres lesbianas e afins, 2021. Disponível em
<http://www.umoutroolhar.com.br/2021/04/memoria-lesbiana-rede-um-outro-olhar-paladina-da-
visibilidade-lesbica.html>, Acesso em 03 de ago. de 2022
113
A G Magazine foi uma revista criada em 1998 pela jornalista Ana Fadigas, e sempre teve uma
proposta bem comercial, exibindo nus de modelos, atores e cantores famosos. A revista foi um
grande sucesso editorial entre as décadas de 1990 e 2000. Seu interior era recheado de colunas
escritas por representantes da população LGBT, como João Silvério Trevisan, Claudia Wonder
e etc. HYSTERIA, Revolucionárias | Ana Fadigas, a editora Criadora da 'G Magazine',
mostrou homens em nu frontal pela primeira vez na história da imprensa mundial, São
Paulo: Revista Hysteria, 2017. Disponível em: < https://hysteria.etc.br/ler/revolucionarias-ana-
fadigas/#:~:text=Em%201998%2C%20a%20jornalista%20Ana,os%20para%20um%20público%
20homossexual.>, Acesso em 03 de ago. de 2022
69
entrevistados. Neste sentido, pessoas como Franco Reinaudo foram
fundamentais para que essa inserção fosse feita e novos contatos fossem
travados.
Assim,114, foi possível conhecer pessoas como Lili Vargas, uma mulher trans que
frequenta os espaços de sociabilidade LGBT da cidade desde a década de 1960.
E por meio da relação estabelecida com Lili Vargas, foi possível conhecer Jacque
Chanel, mulher trans que fundou uma das primeiras igrejas trans do Brasil, a
ICM Séforas, na cidade de São Paulo.
É importante entender que essa população se constitui em rede e acessar
inicialmente essa rede, por meio de um dos envolvidos, foi um processo
fundamental para conhecê-la. Se almejava desde o início da pesquisa chegar a
pessoas dessa rede e com esta faixa etária, que não necessariamente haviam
sido popularizadas pelas fontes bibliográficas.
A entrevista com pessoas que não ocuparam lugares de protagonismos, ou não
foram referenciadas nessas fontes bibliográficas enriqueceram esse inventário
no sentido de apresentar lugares inusitados e por outras perspectivas. Esse
objetivo era sobretudo, para que se tivesse no inventário narrativas de pessoas
que ainda não puderam dar suas entrevistas e musealizá-las, colocando-as em
lugares de importância. A proposta, aqui, era e é fugir da lógica de contemplar
apenas as narrativas de protagonistas esquecendo-se dos demais.
Outro critério para seleção de pessoas para as entrevistas, além da faixa etária,
foi a opção feita por pessoas que tornaram sua orientação sexual pública. Além
disso, também foram priorizadas pessoas que possuíam uma circulação mais
livre entre os lugares de sociabilidade LGBT, entre as décadas de 1960 - 1990 e
não teriam amarras ao abordar minuciosamente esses lugares.
114
O contato, nesse caso, se deu pela via profissional, considerando que Franco Reinaudo era
diretor do Museu da Diversidade Sexual e possibilitou aproximações com alguns dos
entrevistados.
70
inventário, os participantes precisam se sentir parte desse processo.
Compreendendo que suas agências são fundamentais para a constituição desse
instrumento e o entendendo como um legado que deixarão às gerações futuras.
Nesse sentido, foi importante o estabelecimento de diálogos e trocas permeadas
por afetividade entre entrevistador e entrevistado, e com explicações prévias
sobre conceitos básicos mobilizados, como: patrimônio, memória e lugares de
memória e explicando a razão de ser de um inventário participativo.
Aqui cabe ressaltar que um dos objetivos da pesquisa, além de formalizar um
inventário, apresentando uma lista e descrição de lugares de memória, é
representar como esses entrevistados constroem e preservam suas referências
culturais, de caráter material e imaterial e como fazem museologia, mesmo que
não esteja apropriados dos códigos e procedimentos da área museológica, o que
não necessariamente implica a não realização dessa prática. Essa tomada de
consciência, coletiva e individual de que a população LGBT constrói processos
museológicos é fundamental para a valorização dos seus saberes e vivências
cotidianas no tratamento de suas referências culturais.
Em uma perspectiva prolongada, esse processo de engajamento proporcionado
inicialmente por esta pesquisa pode gerar uma aproximação futura com as áreas
ligadas ao patrimônio, museologia, memória e história e envolver cada vez mais,
essa população nas tomadas de decisão sobre os seus bens culturais. Para que
no futuro, essa mesma população possa realizar o tratamento e manutenção dos
seus referenciais (materiais e imateriais) tornando-se os próprios e próprias
agentes de preservação e divulgação desses bens.
3.5. Documentação
A museologia, diferente da arquivologia e da biblioteconomia, não possui um
modelo pré-concebido para disponibilização e documentação de acervos. No
caso da biblioteconomia que possui os sistemas de organização de seus acervos
a partir de CDD, CDU e AACR2115, ou na arquivística com a Norma Brasileira de
115
O Sistema de Classificação Decimal de Dewey (CDD), o Sistema de Classificação Decimal
Universal (CDU) e a Anglo American Cataloguing Rules 2nd Edition (AACR2), são classificações
71
116
Descrição Arquivística (Nobrade) . A museologia, por sua vez, não possui
formatos pré-concebidos, mas sim orientações para a construção da
documentação museológica.
Dentro das instituições museais, essa documentação precisa auxiliar e
comprovar processos como a entrada de acervos, saída e mobilidade dos
mesmos, como cita CARDOZO (2014, pp, 18) 117. Além disso, a documentação
deve auxiliar na identificação, localização e controle dos seus objetos e/ou
referenciais imateriais. Para isso, instrumentos como o inventário, fichas
catalográficas e bases de dados são fundamentais.
Neste sentido, algumas orientações como a norma de origem britânica Spectrum
4.0118 é utilizada como ponto de partida por várias organizações da área museal,
como a Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da Secretaria de
Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo119. A norma Spectrum
estabelece 21 procedimentos que podem ser adotados ou adaptados por
qualquer instituição de caráter colecionista, dentre elas os museus. Ela parte da
prerrogativa que os procedimentos devem ser orientados a partir de uma missão
e visão claras, além da existência de uma política de gestão de acervos robusta.
Sendo assim, a Spectrum pode ser considerada como uma das obras que
orientam a construção de um sistema de documentação, entendendo que tais
sistemas são arranjos conceituais e pragmáticos de como um trabalho deve ser
feito. Neste sentido, a norma Spectrum prevê a organização de um inventário de
um acervo como um procedimento para a gestão das coleções [SPECTRUM,
2014, pp. 43].
120
Para ver o termo livre esclarecido de cessão de entrevista leia o anexo 1.
121
Para ver o roteiro da entrevista leia o anexo 2.
73
modo a sistematizar os principais dados dos entrevistados e entrevistadas, bem
como sistematizar dados da entrevista, como local e hora que foram realizadas,
a técnica de registro da entrevista, a menção dos profissionais que participaram
do registro, a duração e etc.122
Assim, por exemplo, a entrevista de Lili Vargas, por ter sido a primeira a ser
realizada, adquiriu o seguinte código de referência INV-LM-0001 e assim, por
diante. Optou-se por um intervalo de 0 a 9.999, para caso o projeto seja
continuado por alguma instituição no futuro, esse intervalo possibilitaria uma
quantidade crescente de entrevistas.
122
Para ler a Ficha Técnica de Coleta de Entrevistas leia o anexo 3.
123
Um código tripartido é um código dividido em três partes, enquanto um código bipartido é
dividido apenas em duas partes. (CARDOZO, 2014, PP. 42)
74
Compreende-se que a transcrição literal é importante porque dá uma dimensão
dos trejeitos e traços de personalidade, que não necessariamente são
demarcados nas entrevistas. Todos esses elementos são fundamentais para
entender o sentido e o valor de cada um desses lugares para os entrevistados.
Em paralelo, aproveitou-se para enviar uma planilha aos (às) entrevistados (as),
como uma espécie de inventário resumido - apenas de sua entrevista, arrolando
todos os lugares mencionados pelo (a) entrevistado (a) para que se apontasse
e justificasse quais dos lugares mencionados pela pessoa, a mesma considerava
124
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. José Carlos Sebe Bom Meihy (parte 3) . [Entrevista
concedida à equipe Ludopedia] João Gabriel de Lima. Ludopedia, São Paulo, 23 jan. 2013.
125
Nos anexos 4, 6, 7, 8, 9 e 10, é possível observar as transcriações realizadas neste processo.
75
passível de ser musealizado, por refletirem um lugar de memória dessa
população126.
● Id.
● Código de Referência
● Período
● Nome do Local e outros nomes/nomenclaturas
● Descrição
● Descritores
● Endereço (Rua/Av; Bairro; Cidade (UF)
● Referência
O Id. é um número seriado iniciado a partir do número 01, sem fim estabelecido.
Esse número serve para a identificação do local de memória no inventário,
podendo ou não ser aproveitado para outros instrumentos (ficha de coleta de
entrevistas, catalogações futuras e etc).
126
No anexo 5, apresenta-se a devolutiva desse “pré-inventário”, respondido pelo entrevistado
Ubirajara Caputo Denone.
76
O Código de Referência da Entrevista, como citado anteriormente, seguiu um
padrão tripartite e alfanumérico. Esse código se refere à entrevista (origem) de
onde as informações foram retiradas.
Esse campo pode ser complementado por pesquisas futuras, caso as entrevistas
não deem conta de apresentar o intervalo de tempo que determinado lugar
esteve aberto. Considera-se aqui o momento (década) que lugar começou a ser
ocupado pela população LGBT e o momento (década) que deixou de ser
ocupado e/ou que fechou. No caso do presente inventário, quando não havia
exatidão sobre os períodos de início e fim, se utilizou a data entre pontos de
interrogação invertido para demarcar que a informação é uma aproximação.
Referência, campo escrito no formato ABNT e que retoma a entrevista, com link
de acesso à mesma. O padrão de escrita desse campo é constituído da seguinte
forma: SOBRENOME, nome do entrevistado. Nome completo do entrevistado ou
78
entrevista: data de entrevista. Entrevistador: nome do entrevistador. cidade:
instituição para qual a entrevista foi concedida, ano. Quantidade de arquivos que
a entrevista resultou. Projeto em que a entrevista foi realizada. Exemplo:
VARGAS, Lili. Lili Vargas: depoimento ago. 2018. Entrevistador: Leonardo
Arouca. São Paulo: Museu da Diversidade Sexual, 2018. 1 arquivo de áudio.
Entrevista concedida ao Projeto Memórias da Diversidade Sexual.
Nível Descrição
Instrumento Inventário
Título do Id. Código de Período Nome do local Descrição do Descritores Rua/Av. Bairro Cidade Referência
campo 1 Referência da (outros local (UF)
Entrevista nomes do
local)
Formato de Numé Alfanumérico Data Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto
preenchime rico textual
nto
80
No subcapítulo - Potencialidade e dificuldades para a construção do
inventário, discutiremos um pouco sobre como tratar a pluralidade de narrativas
neste instrumento.
127
As famílias LGBT são famílias não sanguíneas, que se estruturam a partir do encontro de
pessoas LGBT para uma proteção mútua na noite. Uma das famílias LGBT de São Paulo,
frequentadoras do Largo do Arouche é a Família Stronger, que pode ser melhor refletida a partir
do artigo de opinião de um dos seus formadores, Elvis Stronger. - JUSTINO, ELVIS. Família
LGBT, São Paulo: Blog da Família Stronger, 2017, Disponível em
<www.familiastronger.com/familia-lgbt/>, Acesso em 03 de Ago. de 2022
128
Arouchianos é um coletivo formado por pessoas frequentadoras do Largo do Arouche, uma
de suas principais reivindicações atuais é a patrimonialização do Largo do Arouche como um
patrimônio da população LGBT.
82
população, assim as narrativas não devem ser equalizadas e se forem, serão
pelo próprio consenso dessa população.
Assim, buscou-se uma alternativa em que todas as narrativas dos entrevistados
fossem contempladas. Por isso, ao visualizar o inventário, o leitor e a leitora irão
notar a presença de lugares como as boates Nostro Mondo e Medieval, em
algumas alíneas, mas com descrições distintas e/ou complementares.
Caso seja criada uma base de dados no futuro para esse inventário, todas as
narrativas oriundas de determinada entrevista estarão expressas na ficha de
determinado local. Por isso, o código do entrevistado é um campo fundamental
para salientar que aquela narrativa diz respeito àquele sujeito e àquela
entrevista.
Vale ressaltar que o mote central do inventário referia-se aos lugares de memória
da população LGBT da cidade de São Paulo, contudo como mencionado acima,
durante as entrevistas era habitual que alguns entrevistados mencionassem
eventos e manifestações dessa população.
De forma a não perder essas informações, optou-se por criar um anexo desse
mesmo inventário - mais reduzido, em termos de dados. Mas com informações
importantes referentes às manifestações e eventos de uma época, que dialogam
com a planilha central e que podem inspirar um segundo projeto de pesquisa.
85
Auxiliaram a subsidiar a pesquisa para esse inventário trabalhos e projetos
realizados, como no Laboratório - Outros Urbanismos, da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenado pelo professor Dr. Renato
Cymbalista129. A fim de complementar as pesquisas dos lugares que eram
citados, mas não aprofundados em entrevistas. Da mesma forma, artigos como:
Do footing aos afters: vem com a gente fazer uma viagem pela noite gay de São
Paulo nos últimos 100 anos, escrito pelo cineasta Lufe Steffen no Uol 130, assim
como seu filme - São Paulo em Hi-Fi, foram fundamentais para essa pesquisa.
Acredita-se que sem esses esforços prévios o inventário teria informações muito
mais reduzidas do que possui.
Referências Bibliográficas
129
OUTROS - Laboratório para Outros Urbanismos, LUGARES DE MEMÓRIA LGBT+ NA
CIDADE DE SÃO PAULO, São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Disponível em <outrosurbanismos.fau.usp.br/lugares-memoria-lgbt-sao-paulo/> Acesso em 20
de Ago. de 2022
130
STEFFEN, Lufe, Do footing aos afters: vem com a gente fazer uma viagem pela noite
gay de São Paulo nos últimos 100 anos, São Paulo: Uol, 2017. Disponível em
<https://musicnonstop.uol.com.br/uma-viagem-pela-cena-noturna-lgbt-de-sao-paulo-nos-
ultimos-100-anos/> Acesso em 22 de Ago. de 2022
86
Escola Nacional de Administração Pública: Documentação Museológica
[online]. Disponível na Internet via correio eletrônico
<https://www.escolavirtual.gov.br/curso/266>. 2020
Escola Nacional de Administração Pública: Inventário Participativo [online].
Disponível na Internet via correio eletrônico <
https://sabermuseu.museus.gov.br/inventario-participativo/>. 2021
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Brasil). Educação
Patrimonial : inventários participativos : manual de aplicação / Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ; texto, Sônia Regina Rampim Florêncio
et al. – Brasília-DF, 2016. 134
STEFFEN, Lufe, Do footing aos afters: vem com a gente fazer uma viagem
pela noite gay de São Paulo nos últimos 100 anos, São Paulo: Uol, 2017.
Disponível em <https://musicnonstop.uol.com.br/uma-viagem-pela-cena-
noturna-lgbt-de-sao-paulo-nos-ultimos-100-anos/> Acesso em 22 de Ago. de
2022
87
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ressalta-se que não foram registrados no âmbito dessa pesquisa espaços nas
zonas leste e norte da cidade. O que pode indicar uma hipótese, de que, em
diversas épocas, as populações dessas regiões teriam que migrar para o centro,
zona sul e zona oeste da cidade a fim de poder desfrutar de uma sociabilidade
com seus pares e/ou de que essa pesquisa não conseguiu alcançar
entrevistados (as) que indicassem lugares de memória nessas regiões.
Referências bibliográficas
ASSMANN, Aleida. Introdução. In Espaços de recordação. Formas e
transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. p.
15-27.
BOITA, Tony William. Cartografia etnográfica de memórias desobedientes,
2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal de
95
Goiás, Goiás, 2019. Disponível em
<https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/9364>
CAPUTO, Ubirajara.Ubirajara
Casa noturna, constantemente
Caputo: depoimento [03 de dez.
lembrada por ser um dos primeiros
2021. Entrevistador: Leonardo
INV- bares feitos para ir a dois. Lugar que São
Bar para namoros (denominação Rua Rego Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
1 LM- 1970 266 West permitia entrada e flerte de República Paulo
dada pelo entrevistado) Freitas de vídeo Entrevista concedida ao
0002 homossexuais, mas não se (SP)
projeto do Inventário Participativo
denominava como uma casa
dos Lugares de Memória LGBT da
destinada ao segmento.
cidade de São Paulo
CAPUTO, Ubirajara.Ubirajara
Ficou conhecida por ser frequentada Caputo: depoimento [03 de dez.
pelo pessoal que curte drogas. Isso 2021. Entrevistador: Leonardo
INV- R. Frei São
1990 - não era tão comum em tempos mais Drogas (local marcado por jovens que Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
2 LM- A Lôca Caneca, Consolação Paulo
2010 remotos. Atualmente a casa reabriu, utilizavam drogas ilícitas) de vídeo Entrevista concedida ao
0002 916 (SP)
mas com outra proposta e outros projeto do Inventário Participativo
donos. dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
102
CAPUTO, Ubirajara.Ubirajara
Caputo: depoimento [03 de dez.
O bar já funcionava nos anos 60 e era
2021. Entrevistador: Leonardo
INV- famoso pela frequência das gays Lugar de pegação (espaço utilizado Av. Vieira São
1960 - Caneca de Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
16 LM- idosas. Está em funcionamento até para sexo entre pessoas do mesmo de República Paulo
Atual Prata de vídeo Entrevista concedida ao
0002 hoje. Claro que é um patrimônio gênero) Carvalho (SP)
projeto do Inventário Participativo
LGBT.
dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
CAPUTO, Ubirajara.Ubirajara
Caputo: depoimento [03 de dez.
Nunca antes ou depois houve shows 2021. Entrevistador: Leonardo
INV- São
de transformistas com tamanha Shows de transformistas (shows de Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
LM- 1980 Corintho Ibirapuera Paulo
qualidade. Importantíssima homens que se vestem de mulheres) de vídeo Entrevista concedida ao
0002 (SP)
referência. projeto do Inventário Participativo
dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
CAPUTO, Ubirajara.Ubirajara
Caputo: depoimento [03 de dez.
2021. Entrevistador: Leonardo
INV- Rua Rego São
1990 - Casa noturna de grande frequência Travestis e transexuais Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
23 LM- Danger Freitas, República Paulo
Atual de transexuais e travestis. (frequentadoras do espaço); de vídeo Entrevista concedida ao
0002 470 (SP)
projeto do Inventário Participativo
dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
111
CHANNEL, Jaqueline.Jaqueline
Channel: depoimento 09 de dez.
Dark Room (lugar escuro, habitual em 2021. Entrevistador: Leonardo
INV- Rua Rego São
1990 - Casa noturna de grande frequência algumas boates para relações Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
LM- Danger Freitas, República Paulo
Atual de transexuais e travestis. sexuais entre parceiros do mesmo de vídeo Entrevista concedida ao
0003 470 (SP)
gênero) projeto do Inventário Participativo
dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
CAPUTO, Ubirajara.Ubirajara
Caputo: depoimento [03 de dez.
2021. Entrevistador: Leonardo
INV- Rua São
Acho a maior referência da noite gay Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
LM- 1970 Augusta, Consolação Paulo
paulistana. de vídeo Entrevista concedida ao
0002 1605 (SP)
projeto do Inventário Participativo
dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
REINAUDO, Franco. Franco
Inaugurado nos anos 1990,
Reinaudo: depoimento 19 de ago.
O Mercado Mundo Mix foi uma feira
Beto Lago (empresário que concebeu 2022. Entrevistador: Leonardo
INV- itinerante, do que hoje é possível São
1990 - Mercado o empreendimento); Casa das Arouca.São Paulo, 2022. 1 arquivo
43 LM- chamar de economia criativa. Paulo
2000 Mundo Mix Caldeiras (espaço que sediou uma de vídeo Entrevista concedida ao
0005 Segundo o entrevistado o Mercado (SP)
das edições do evento) projeto do Inventário Participativo
Mundo Mix marca a passagem da
dos Lugares de Memória LGBT da
população LGBT da noite para o dia.
cidade de São Paulo
122
TASSINARI, Fátima. Fátima
Tassinari: depoimento 07 de abr.
Restaurante comandado por Ina de R.
Gay Friendly (termo ligado a espaço 2022. Entrevistador: Leonardo
INV- Abreu e aberto nos anos 1990, possui Fernando São
1990 - que são inclusivos a pessoas LGBT); Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
44 LM- Mestiço uma proposta LGBT Friendly, mas de Consolação Paulo
Atual Ina de Abreu (Chef e proprietária do de vídeo Entrevista concedida ao
0004 não se reivindica como um espaço Albuquerq (SP)
espaço) projeto do Inventário Participativo
LGBT ue, 277
dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
Tinha um tipo de música bem melosa,
BACELLAR, Laura. Laura Bacellar:
bem dramática. E a mulherada
depoimento 29 de ago. 2022.
dançando em parzinhos. Muita gente
Entrevistador: Leonardo Arouca.São
INV- bebia muito e tinha uma mistura de Garotas de programa São
1980 - Rua Paulo, 2022. 1 arquivo de vídeo
45 LM- Moustache mulheres mais velhas, umas bem (frequentadoras da casa); Músicas Consolação Paulo
1990 Sergipe Entrevista concedida ao projeto do
0006 mocinhas, tinham garotas de melosas (repertório tocado na casa) (SP)
Inventário Participativo dos Lugares
programa, tinha garota de programa
de Memória LGBT da cidade de São
que ia lá para espairecer porque
Paulo
gostava de mulheres.
Casa noturna fundada por Condessa
Mônica no ano de 1971, marcada por
festas e concursos de travestis VARGAS, Lili. Lili Vargas:
Condessa Mônica (primeira
durante as décadas de 1960, 1970 e depoimento [ago. 2018.
proprietária); Concursos de miss
INV- 1980. Embora sua primeira R. da São Entrevistador: Leonardo Arouca .
1970 - Nostro (evento realizado nas casas); Clóvis
46 LM- proprietária tenha falecido no ano de Consolaçã Consolação Paulo São Paulo: Museu da Diversidade
2000 Mondo (nome de registro de Condessa
0001 1981, a casa esteve em atividade até o, 2554 (SP) Sexual, 2018. 1 arquivo de áudio.
Mônica); Norminha (apresentadora
o ano de 2014 sendo considerada a Entrevista concedida ao Projeto
de shows da casa)
casa noturna voltada ao segmento Memórias da Diversidade Sexual
LGBT de maior longevidade na
América Latina.
123
CAPUTO, Ubirajara.Ubirajara
Caputo: depoimento [03 de dez.
A Nostro Mondo abriu as portas do 2021. Entrevistador: Leonardo
INV- Casa popular (nome dado para R. da São
1970 - fervo para a periferia e as gays Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
LM- representar um público com baixo Consolaçã Consolação Paulo
2000 jovenzinhas. Importantíssima de vídeo Entrevista concedida ao
0002 poder aquisitivo) o, 2554 (SP)
referência. projeto do Inventário Participativo
dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
CHANNEL, Jaqueline.Jaqueline
Casa noturna fundada por Condessa Channel: depoimento 09 de dez.
Concurso de Travestis (Concursos de
Mônica no ano de 1971, marcada por 2021. Entrevistador: Leonardo
INV- Miss Travesti, eram habituais na R. da São
1960 - festas e concursos de travestis Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
LM- casa); Condessa Mônica (Proprietária Consolaçã Consolação Paulo
2000 durante as décadas de 1960, 1970 e de vídeo Entrevista concedida ao
0003 do espaço); Jacqueline Channel o, 2554 (SP)
1980. Onde Jacque Channel chegou projeto do Inventário Participativo
(Jurada do concurso de travestis)
a ser jurada. dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
REINAUDO, Franco. Franco
Reinaudo: depoimento 19 de ago.
Para o entrevistado, este é um dos
2022. Entrevistador: Leonardo
INV- lugares mais icônicos da Condessa Mônica (primeira R. da São
1970 - Arouca.São Paulo, 2022. 1 arquivo
LM- sociabilidade LGBT da cidade, pela proprietária); Shows de travestis Consolaçã Consolação Paulo
2010 de vídeo Entrevista concedida ao
0005 sua longevidade e por todos os (programação da casa) o, 2554 (SP)
projeto do Inventário Participativo
artistas que passaram pela casa.
dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
124
REINAUDO, Franco. Franco
ONG fundada no ano de 1989, teve
Jorge Beloqui (membro 0 do Pela Reinaudo: depoimento 19 de ago.
como seu membro 0 o ativista Jorge
Vidda - Sp); Hebert Daniel (ativista 2022. Entrevistador: Leonardo
INV- Beloqui, sua irmã no Rio de Janeiro - Rua Gen. São
1980 - Ong Pela contra a epidemia do HIV/Aids e ex- Vila Arouca.São Paulo, 2022. 1 arquivo
47 LM- Pela Vidda - RJ, foi fundada em 1983 Jardim, Paulo
Atual Vidda - SP guerrilheiro da luta armada na Buarque de vídeo Entrevista concedida ao
0005 pelo ativista Hebert Daniel. Hoje em 566 (SP)
Ditadura Militar); Thais Azevedo projeto do Inventário Participativo
dia tem como sua presidente a
(presidenta do Pela Vidda - SP) dos Lugares de Memória LGBT da
ativista Thais Azevedo.
cidade de São Paulo
REINAUDO, Franco. Franco
Reinaudo: depoimento 19 de ago.
Bar e restaurante aberto pelo Movimento clubber (tribo urbana de
2022. Entrevistador: Leonardo
INV- empresário Almir Nascimento na pessoas, marcado pelos gêneros Rua da São
1990 - Jardim Arouca.São Paulo, 2022. 1 arquivo
48 LM- Paparazzi região do Jardins, ao lado da casa musicais como house e techno); Consolaçã Paulo
2000 Paulista de vídeo Entrevista concedida ao
0005 noturna - Massivo e considerado vídeo-bar gay (bar onde as pessoas o (SP)
projeto do Inventário Participativo
como o primeiro vídeo-bar gay podem ver filmes)
dos Lugares de Memória LGBT da
cidade de São Paulo
VARGAS, Lili. Lili Vargas:
Footing (passeio a pé, com
depoimento [ago. 2018.
Parque marcado pelo footing de perspectiva de encontrar pessoas Rua
INV- São Entrevistador: Leonardo Arouca .
Parque homens gays que buscavam outros para encontros amorosos e sexuais); Peixoto Cerqueira
49 LM- 1960 Paulo São Paulo: Museu da Diversidade
Trianon parceiros para se relacionar Cruising (prática de encontrar alguém Gomide, César
0001 (SP) Sexual, 2018. 1 arquivo de áudio.
sexualmente. para realizar o ato sexual com 949
Entrevista concedida ao Projeto
facilidade);
Memórias da Diversidade Sexual
125
VARGAS, Lili. Lili Vargas:
depoimento [ago. 2018.
Praça localizada no Centro de São
INV- Glamour (definição dada a praça na São Entrevistador: Leonardo Arouca .
1960 - Praça da Paulo e foi um ponto de encontro de Praça da
LM- época); Encontros (espaço de República Paulo São Paulo: Museu da Diversidade
Atual República gays e lésbicas nas décadas de 1960- República
0001 encontro entre homossexuais) (SP) Sexual, 2018. 1 arquivo de áudio.
1970 e tinha muito Glamour.
Entrevista concedida ao Projeto
Memórias da Diversidade Sexual
Cód. Manifesta
da ção e/ou Cidade Referência
Id. Entrev. Período evento Descrição da Manifestação Descritores Rua/Av. Bairro (UF)
133
O Fórum Municipal de Travestis e
Transexuais de São Paulo -
FMTTSP, foi um espaço de
aglutinação de pessoas da
sociedade civil para tratar de
assuntos específicos a políticas e
cidadania plena a Travestis,
Mulheres Transexuais e Homens
Fórum Trans. Teve como principal foco CHANNEL, Jaqueline.Jaqueline
Municipal fomentar, articular, organizar e Channel: depoimento 09 de dez.
de apoiar qualquer tipo de 2021. Entrevistador: Leonardo
Travestis e acontecimento que estivesse no Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
Transexuai âmbito desse Segmento T, levando de vídeo Entrevista concedida ao
INV- s de São demandas deste segmento para São projeto do Inventário Participativo
LM- 2000 - Paulo – Conselho Municipal LGBT e Fórum Paulo dos Lugares de Memória LGBT da
01 0003 2010 FMTT-SP Paulista TT. Viaduto do Chá (Local de realização) (SP) cidade de São Paulo
CHANNEL, Jaqueline.Jaqueline
Channel: depoimento 09 de dez.
Fórum 2021. Entrevistador: Leonardo
Paulista Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
de Centro de Referência da Diversidade de vídeo Entrevista concedida ao
INV- Travestis e São projeto do Inventário Participativo
(espaço onde ocorreram algumas
LM- 2000 - Transexuai Fórum do Estado de São Paulo de Paulo dos Lugares de Memória LGBT da
02 0003 2010 s - FPTT Travestis e Transexuais. assembléias e reuniões) (SP) cidade de São Paulo
134
TASSINARI, Fátima. Fátima
Tassinari: depoimento 07 de abr.
2022. Entrevistador: Leonardo
O Festival Mix Brasil de Cultura e Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
Diversidade foi criado em 1993 por de vídeo Entrevista concedida ao
INV- André Fischer, após sua participação São projeto do Inventário Participativo
LM- 1990 - Festival como curador no New York Gay and André Fischer (idealizador); Cinema Paulo dos Lugares de Memória LGBT da
02 0004 Atual Mix Brasil Lesbian Experimental Film Festival. (foco do festival) (SP) cidade de São Paulo
TASSINARI, Fátima. Fátima
A 1º Parada do Orgulho GLT de São Tassinari: depoimento 07 de abr.
Paulo ocorreu no ano de 1997. 2022. Entrevistador: Leonardo
Contando com poucas pessoas em Márcia (amiga da depoente); Lu Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
sua primeira edição. Fátima (amiga da depoente; Av. Paulista de vídeo Entrevista concedida ao
INV- I Parada Tassinari, entrevistada do inventário, (local concentração e passagem da São projeto do Inventário Participativo
LM- do Orgulho foi à manifestação para acompanhá- Parada) Av. Paulo dos Lugares de Memória LGBT da
03 0004 1990 GLT la e fotografá-la. Paulista Consolação (SP) cidade de São Paulo
Fátima Tassinari (membro da
organização); Celso Curi (membro
da organização); Franco Reinaudo
(membro da organização); Sérgio
Miguez (proprietário da Livraria
Futuro Infinito e membro da
Conhecida como a Parada da virada, organização); Fábio e Augusto
a IV Parada do orgulho GLBT de São (apoiadores do evento e membros TASSINARI, Fátima. Fátima
Paulo, contou com cerca de 100 mil da agência de publicidade FAM); Tassinari: depoimento 07 de abr.
pessoas. Fátima Tassinari foi uma Diógenes Moura (produtor da 2022. Entrevistador: Leonardo
das organizadoras do cobertura fotográfica da IV Parada Arouca. São Paulo, 2021. 1 arquivo
evento/manifestação e aponta que do Orgulho); Almir Nascimento de vídeo Entrevista concedida ao
INV- IV Parada nunca viveu um momento tão (membro da organização); Angela São projeto do Inventário Participativo
LM- do Orgulho sinérgico quanto a realização desse Chaves (amiga de Fátima Tassinari); Paulo dos Lugares de Memória LGBT da
04 0004 2000 GLBT evento. Av. Paulista (local concentração e (SP) cidade de São Paulo
135
passagem da Parada); IG (empresa
patrocinadora do evento); Bia Aydar
(produziu os balões da IG que foram
dispostos na Parada)
--
________________________
Assinatura
4-a) Como eram esses locais, em qual período frequentava e o que ficou para
você daquela época?
4-b) Poderia descrever um pouco mais desses locais, se possível indicar bairros
e ruas onde se situavam e as pessoas que lá frequentavam e marcaram a sua
vida?
138
5) E as pessoas que frequentavam esses locais, como eram? E como
socializavam?
6-a) E que lugares de sociabilidade LGBT+ você frequenta hoje? Como são
esses lugares e as pessoas com quem você tem contato neles.
6-b) Poderia descrever um pouco mais esses locais, se possível indicar bairros
e ruas onde se situam e as pessoas que lá frequentam e fazem parte da sua
vida?
7) Ficou alguma questão que você gostaria de aprofundar mais? Alguma pessoa
que você gostaria de citar e não foi possível nas perguntas anteriores. Caso
tenha também referência de pessoas que podem ser entrevistadas para esse
projeto, gostaria que mencionasse se possível.
Dados Gerais
Código da entrevista: Código do entrevistado:
Projeto:
Nome do Entrevistador:
Data da entrevista:
Local:
Duração da sessão: h às h
Entrevistador (es):
Operador de câmera ou plataforma utilizada:
Fotógrafo (se necessário):
Dados do Entrevistado
Dados Pessoais
Nome: Apelido/nome social:
Data de nascimento:
Local de nascimento (cidade/Estado):
Endereço (completo com CEP):
Telefone(s):
E-mail:
Gênero: Estado Civil:
Profissão (atual):
Grau de instrução:
140
ANEXO 5 - ENTREVISTA UBIRAJARA DENONE CAPUTO
U: Então a algum tempo atrás, uns 10 anos, talvez, eu tive contato, acho que
mais até, eu tive contato com o Museu da Pessoa, que você deve conhecer. E
eu fiquei muito interessado em História Oral, tanto que eu pretendia fazer meu
doutorado na área de memória social. Eu vou acabar fazendo depois o doutorado
porque eu acabei mudando o meu projeto. E quando eu comecei a conhecer
essa história de memória, de história oral, mais da história do cotidiano, digamos,
eu pensei muito em como os homossexuais carecem de referências, ou pelo
menos careciam, né. Hoje em dia já não tanto, mas na minha juventude careciam
de referência e pensei em como seria interessante se as pessoas tivessem um
local onde elas pudessem ouvir as histórias dos outros.
U: É, eu nem sei se eles lembram disso, mas eu tive esses papos. Bati alguns
papos com Franco, com o Cássio, inclusive. Falando disso e como seria
importante ter registrado a memória do cotidiano
L: Totalmente!
L: É, essa é de certa forma, uma briga minha desde que eu entrei no Museu, que
a gente conseguisse fazer mais entrevistas. E eu acho que a gente conseguiu
dar um gás grande agora nessa pandemia, até porque, enfim, os recursos
tecnológicos ficaram mais à disposição. Essa questão de podermos fazer
entrevista pelo Meet, você não precisa de todo aquele equipamento, aquele
arsenal, para você conseguir. Enfim, fazer uma entrevista de qualidade, então
142
acho que isso facilitou muito e a gente conseguiu fazer muitas entrevistas nesta
pandemia.
Eu acho que não é só fazer as entrevistas, acho que essas entrevistas precisam
passar por um processamento, de pesquisa, de comunicação, eu acho que tem
que ter um mapeamento ali dessas referências dentro de um inventário. Então
esse inventário vem um pouco nessa proposta, de dar vazão a essas questões.
Então queria saber, a princípio, se você concorda com todas essas questões, de
ceder a entrevista. Eu também vou te mandar, já te mandei, na verdade um termo
de cessão, que você pode me enviar por e-mail, mesmo, mas enfim. São
questões de praxe, que eu acho que são importantes.
143
U: Sim, eu estou de acordo com a gravação e vou te mandar o termo de
consentimento assinado. Eu já li, aliás eu concordo com os termos de
consentimento, você pode gravar mas eu vou te mandar assinado, claro.
L:Perfeito, Bira.
U: Tá, meu nome é Ubirajara Denoni Caputo, minha família tem ascendência
italiana de pai e mãe, eu tenho 61 anos, nasci em fevereiro de 1960, na cidade
de São Paulo. E eu nasci no bairro da Mooca.
É a Mooca é um bairro grande, então tem a Mooca próxima do rio, mais para o
lado do centro da cidade, o rio - Tamanduateí! Que agora ele tá na Avenida do
Estado. Eu falo rio, porque eu conheci o rio, mas agora a Avenida do Estado
cobriu o rio. A Mooca começa ali no Parque Dom Pedro e ela vai embora até a
Vila Bertioga. E eu nasci e morei até os 4 anos de idade no que eu chamo a
Mooca de baixo, a Mooca mais próxima do centro, eu vivi lá até os 4 anos de
idade.
Meu pai trabalhava fora e minha mãe tinha um Empório, então com quatro anos
a gente saiu de lá e fomos para o Alto da Mooca, ou seja, a gente se afastou do
centro. E foi morar em uma casa mais distante do centro, ainda na Mooca, mas
144
no que a gente chamava de Alto da Mooca, Belenzinho, Alto da Mooca, são
regiões próximas. Bom eu vivi lá até os 20 anos e depois eu entrei na
universidade, enfim, aí eu já considero a minha vida adulta porque eu saí de casa
e fui tocar o barco.
Então da minha infância o que eu posso te dizer é isso, eu lembro bem desse
bairro, um bairro muito fabril, tinham muitas fábricas, quase todo mundo
trabalhava em fábrica, em tecelagem. Tinha muita tecelagem, fábricas de
tecelagem e eu lembro muito pouco porque eu saí com quatro anos de idade,
mas eu lembro bem disso. Lembro que tinha, hoje tem um viaduto por cima, mas
tinha a linha do trem que cortava a rua da Mooca e eu lembro muito dessa coisa
do trem passando, do barulho do trem e a porteira fechando, ter que esperar
outro passar para abrir a porteira, enfim, era uma realidade muito esquisita
pensando a de hoje em dia, né.
Mas a minha infância foi isso, brincando assim com a molecada em ruas, quase
todas de barro, que agora estão todas asfaltadas, a gente tinha campinhos para
brincar, tinha várias regiões que ainda não tinham construções, então a gente
tinha essa vida mais próxima da natureza, embora,em uma área urbana e é isso
que eu lembro da minha infância.
L: Legal! E aí você já comentou com a gente, que depois disso você vai para
Mooca de cima, e aí esse período já faz parte de sua adolescência e vida adulta.
Então eu acho que já entra no ponto que é mais, fundamental para esse
inventário, que é um pouco de quando você começa a sair, quando você começa
a frequentar os locais de sociabilidade LGBT. A partir de que ano, a partir de que
idade você começa a frequentar esses locais? Eles estavam presentes na sua
adolescência e no início da sua vida adulta?
145
U: Olha, isso envolve minha descoberta, a descoberta da minha da minha
homossexualidade. O Jean wyllys falou isso uma vez e ele tem toda razão, nós,
os homossexuais em geral são avisados da sua sexualidade.
Na escola lá pelos meus 9, 10, 11 anos tinha toda a questão do bullying. Eu era
um menino muito educado, muito delicado, então me chamavam de viadinho,
bichinha, mariquinha era palavra que se usava, mas eu não achava que era
aquilo, eu não entendia direito o que era aquilo e também não achava que era
aquilo. Eu sentia uma violência mas eu não entendia e não me sentia identificado
com o que eles falavam de mim. Então, eu posso dizer que isso foi a descoberta
e foi, digamos assim, que tentaram me impor uma imagem que eu não sabia o
que era.
Mas aos 14 anos eu conheci uma rapaz, um amigo, brother assim e aí ele na
realidade, ele era primo de um amigo que saía junto conosco, aquela coisa de ir
para bailinho, né, e eu lembro que ele falou, teve um dia que íamos sair só eu e
ele, e aí ele falou assim:
- olha eu queria visitar um professor meu, ele era do interior, veio para São Paulo
e disse assim, olha tem um professor meu que mora em São Paulo.
- E eu queria visitá-lo, vamos, você topa? e a gente sai vai para um barzinho.
Tá bom!
- não ele é homossexual, ele gosta de homens, transa com homens e tal.
E aí a gente saiu e nesse dia mesmo, nesse primeiro dia, eu fui em uma boate
chamada Roleta, que era uma boate, nem era uma boate, era um bar na Rua
Rego Freitas e depois virou uma boate chamada - Danger, e hoje em dia não é
nada é um escombro qualquer. E ali, era o Roleta, um bar que as pessoas iam
e tinha uma fonte, assim, que tinha uma água que corria e tinha as mesinhas,
que a gente sentava e ficava paquerando, uns aos outros, tudo sentadinhos,
tomando um drink, ficamos se olhando, coisa e tal.
Nesse mesmo dia, eu conheci um cara chamado César, que tinha 22 anos e eu
tinha 14, achei ele lindíssimo disse e a gente foi para casa e transamos, eu e ele.
Então esse foi meu primeiro contato, a primeira coisa que me fez pensar, que
"uau", eu tenho alguma coisa a ver com isso né.
Bom e aí conheci uma outra pessoa, nada sério com ninguém e depois me retrai,
né, falei:
- Não, não acho que tá legal esse negócio, né, de ser gay.
147
A palavra não existia, existia o entendido, como se falava na época, que não era
uma coisa boa, não era legal, era o que eu achava naquele momento e aí eu me
retraí, aí eu tive namorada. E aos 18 anos, finalmente, eu conheci um rapaz e
me apaixonei por ele e eu associei a minha sexualidade com esse amor, ao que
eu sentia por ele e quando eu fiz essa associação, entre a minha sexualidade e
o amor, eu falei:
- Não há como isso ser ruim, né, não tem como, isso não é atacável moralmente,
porque se trata de amor, então o mundo que se f***, isso é uma coisa boa.
Aí eu vou desligar meu frango, que tá queimando e volto para te contar daí para
frente, tá? Não saia daí!
U: Tá bom, então tinha alguns lugares nessa época para ir e não só lugares de
diversão, mas lugares que você podia transar. Então por exemplo, você conhecia
uma pessoa e ia transar com ela, você precisava saber que lugar que você podia
ir, porque se você fosse em um lugar, que não fosse, que não aceitasse
148
homossexuais, você podia apanhar, você podia ser agredido, chamar polícia, um
monte de coisa. Então tinha que saber onde você poderia ir e tal, e alguns bares,
alguns lugares, aqui no centro de São Paulo, tinha uns banheirões também -
Largo do Arouche, República e tal.
Aquela Galeria Metrópole, que era um super point, então tinha alguns points da
cidade que a gente ia e os banheiros públicos e os cinemas todos e balada
mesmo, que não chamava balada, chamava boate. A primeira que eu conheci
foi a Medieval, que parece que foi a segunda boate para o público gay em São
Paulo. A primeira que era a dona, era ela mesma, que foi antes ainda Medieval,
mas eu não conheci, durou muito pouco tempo e tinha uns bares aqui pelo
centro, então naquela época eram os lugares que eu frequentava. Dali na década
de 1980 teve a Corintho, 1990 teve a Gentes, teve o Cabaré, que foi uma boate
maravilhosa, não! Sempre esqueço o nome, era um cabaré, mas eu não lembro
agora, Village People, o Village People e era isso.
E hoje em dia, eu não, eu saio muito menos hoje em dia para a balada, que hoje
em dia chama balada, né, não é um programa que eu goste. Eu gosto de ir em
bar, beber um drink, bater um papo, ir ao cinema e eventualmente eu vou em
uma balada, mas não é frequente.
L: E Bira, esses locais que eram mistos? Acho que essa é uma grande questão
a se abordar. Claro que a gente tá falando de marcadores de sexualidade e
locais que são de certa forma exclusivos para as pessoas LGBTs, mas eu acho
que esses locais mistos, são muito importantes de serem abordados.
Aí eu queria que você falasse um pouco mais deles, você citou uma dessas
boates que podia ir gays, mas queria saber também, se tinha outras, ou bares
também. E aí só para frisar, de que lugares de sociabilidade, lugar de memória
é qualquer lugar, então, se você quiser me contar eu vou ficar muito feliz em
saber.
149
L: Aí, tá difícil essa plataforma, hoje. O que eu tava falando é que seria muito
legal também ouvir um pouco mais sobre esses lugares mistos, que eram
majoritariamente héteros, mas que poderiam ir gays. Eles poderiam ficar
tranquilamente nesses lugares? E tudo que você citou é de certa forma lugar de
memória, né, então banheirão é também um lugar de memória, cinemão é
também lugar de memória, então se você quiser falar mais deles eu vou ficar
muito feliz em ouvir.
U: Tá, agora veja, esses lugares que eu tô falando, bares e boates dessa década
de 70, não era um muito misto não, sabe? Era o que tinha, tinham gays e
lésbicas, tinha alguns lugares que tinham mais gays do que lésbicas e tinham
alguns lugares que tinham mais lésbicas do que gays. E as pessoas héteros
eram exceções, excepcionalidades, tá? Então eram lugares autorizados para
beijar na boca, ter namorado, dançar junto, rostinho colado e tal, eram lugares
autorizados. Os lugares assim, liberou geral, quer dizer, que vai hétero a vontade
e os gays vão também como, o Senhora Kravits, por exemplo, como o
Colorido, de uma certa forma, como aquele famoso que era ali, nossa, como é
o nome, o Massivo, esses lugares são década de 90, entendeu? Quer dizer,
nesses lugares, vamos dizer híbridos, modernos, né? Lugares modernos, que ia
moçada e que eventualmente você estava com um cara, você dava um beijo e
é uma pegada que até hoje acontece. Na década de 1970, “No” bebê!
Na década de 70, você tinha que saber se aquele lugar chamava boate gay, não
era qualquer boate, era uma boate gay! Então, os heterossexuais iam, mas eles
sabiam que o espaço era gay. O Medieval por exemplo, quando inaugurou, era
um lugar chiquérrimo, um monte de artistas frequentavam, iam ver os shows.
150
Muita gente ia ver os shows, heterossexuais, mas era um lugar autorizado para
gays e onde os gays iam.
Essa coisa de mistura, é uma coisa mais recente, porque se eu entrasse, sei lá
na década de 1970, entrasse com o meu namorado em um lugar que não fosse
autorizado, pré-autorizado, que eu não soubesse que eu estava autorizado a
beijar meu namorado eu não beijaria, sob pena de apanhar, ser expulso e o
c****** a quatro. Então era uma coisa bem mais, não que era delimitado, era uma
coisa escondida, quer dizer, era segregado, então você sabia onde você podia
ir.
Então o 266 West, que eu citei, era um lugar gay, então se fosse um casal hetero,
não ia ter problema nenhum, agora se fosse um casal hetero, encher o saco das
gays, iam falar - escuta meu senhor, o senhor não pode encher o saco da gente,
porque esse lugar, aqui a gente pode! Entende? Então tinha essa distinção,
assim.
Agora banheiro não né, banheiro sempre foi uma festa, até hoje você não
conhece as pessoas no banheiro público, você pega em um pinto, você não fala
assim: você pode mostrar a certidão de casamento, se o senhor é casado com
homem ou com mulher? Isso não existe, então os lugares de sexo, esses sempre
foram uma bagunça e continuam sendo e serão sempre, uma bagunça no
sentido que não tem nada de identitário ali, tem é tesão.
U: Era K-7.
L: K-7, exatamente
U: Mas a Hi-Fi existiu, existiu, mas não era da Elisa, era mais um bar, assim, um
lugar de encontro e era em cima de uma discoteca, uma coisa assim, pequena,
uma escadinha que você subia. Discoteca, espera um pouquinho, discoteca era
um lugar que vende discos, não é o movimento disco dos anos 1980, que eu tô
falando discoteca, é porque é o nome que se dava para o loja de discos. Os
discos eram coisas redondas, pretas, deste tamanho, enormes, que se vendiam,
eram físicas. Aí você subia uma escadinha e tinha a Hi-Fi.
E de uma certa forma, a liberação, a liberalidade com os gays era uma proposta
política, era uma maneira política de se colocar no mundo, né? Então, não tinha,
não poderia dizer que havia um movimento identitário, ligado às LGBTs na
universidade.
Bom mas assim, por conta de conseguir espaço na constituição e por conta de
algumas pessoas se organizarem, a gente passou a ter alguns focos de
desenvolvimento político, que acabou redundando em sociabilidade, em
espaços de sociabilidade. Eu nunca frequentei um lugar para me reforçar, para
reafirmar a minha identidade, eu sempre frequentei lugares de lazer, só que os
lugares de lazer que eu escolhi, eram lugares que eu me permitia que eu fosse
eu mesmo, que eu beijasse, que eu caçasse, imagina? Porque você toma banho,
se arruma toda linda é porque você quer caçar alguém, né? Porque eu ia no
lugar hétero, entendeu? Que eu tinha que ficar durão, porque se eu olhasse
muito para um cara, podia ter problema, enfim. Então claro que eu procurava
lugares de sociabilidade gay, mas era por isso, porque eu queria conhecer
pessoas, transar e me divertir e até hoje inclusive.
L: Sim! E Bira, você poderia falar um pouco, acho que você comentou, bastante
sobre essa questão dos lugares dos anos 90 e essa questão desse Mix. Aí eu
queria que você adentrasse mais nesses lugares. Pode falar um pouco dessas
casas? Fazer uma pequena descrição, principalmente onde eles ficavam
localizados, porque eles são fundamentais. Acho que de 1980 e 1970, que você
já abordou os principais, mas de 1990 em diante seria legal ouvir também.
154
L: Eu caí, mas eu só perdi a parte final, tá difícil esse meet hoje, desculpa.
Outra coisa é a seguinte, antes de falar dos mistos, dos lugares mistos, que eu
sei que você tá interessado, eu acho que à noite, que a gente pode chamar
155
assim, à noite gay. Esses espaços de lazer e sociabilidade gay, eles tiveram um
impacto muito grande no começo dos anos 1980, um pouco por conta do filme
do Al Pacino, como é que chama aquele filme? Eu vou lembrar! Eu vou lembrar
o nome do filme é um filme que falava de uns fetiches, assim, tinha uma boate
lá em Nova Iorque, que tinha uns fetiches, um povo que fazia xixi um no outro,
que batia e não sei o quê. Não lembro agora do nome, Parceiros da Noite! E
nesse momento, inclusive tinha um código de lenço, de cor do lenço, que você
usava. Você sabe a história dos lenços? Você deve saber, não?
L: Não.
U: Então você tinha cores que significavam coisas, então assim, por exemplo,
vermelho é porque você era sadomasoquista, mas se você usasse no bolso
direito é porque você era sadomasoquista querendo dar porrada, se você usasse
no esquerdo é porque você era um sadomasoquista querendo apanhar, enfim,
tinha lá uns códigos.
Enfim, foi assim, uma subcultura ligada à sexualidade, ligada a P********, melhor
dizendo, dos gays e isso teve um impacto muito grande na noite brasileira,
acredito que no mundo todo, por que começaram a aparecer nas boates, lugares
para trepar, que não existiam antes. Começaram aparecer os Darkrooms,
começaram a aparecer, aqueles Glory Holes, que você deve saber o que é
naturalmente, então começou a ter, muito mais recentemente nos anos 90, tinha
aqui, uma boate no centro, lá no Jardins, que tinha um andar inteiro para transar,
Danger. Esqueci o nome da boate agora, tinha boates que eram sauna junto,
então tinha bar, boate e sauna que era um aquário, não, não era um aquário,
enfim não lembro o nome, mas que era na Treze de Maio.
Então começou a ter essa coisa da p****** e as pessoas iam se divertir, mas elas
não iam apenas para se conhecer e depois iam para casa transar, como até no
156
começo dos anos 1980, elas iam fazer lá mesmo, já transava lá mesmo e com
esses requintes de p*********.
Evidentemente, que chegou a AIDS e deu uma derrubada geral, né, todo mundo
sabe disso, naquela época abriram muitas saunas, fecharam muitas saunas
também. Mas também é verdade, talvez em razão dessa visibilidade que os gays
foram tomando, os gays e as lésbicas, que esses espaços de mistura
começaram a ser modernos, digamos assim, se a frequência do seu espaço, da
sua casa noturna fosse mista, seria interessante isso. Era um ponto, vamos dizer
assim, elogiável. Não vou dizer um ponto de venda, né, mas o fato de você ter
gays e lésbicas, queria dizer que você era um super empresário descolado,
então maior legal, sabe?
Então tinha uns lugares assim, o Massivo, que foi uma casa muito conhecida,
muito bochichada, aqui no Jardins, que era isso, você não podia dizer que era
uma casa gay, ninguém falava era uma casa gay, mas sei lá 80% das pessoas
eram gays e tinha muita gente que não era gay.
Teve umas outras baladas a Trash 80, também era uma balada que você não
podia dizer. Você já tá começando a fazer carinhas, de já ouvi falar disso, né?
Que era umas baladas, assim, tipo, não era uma balada gay, porque balada gay,
não tem nada a ver falar assim - balada gay. Segrega muito, é para todo mundo
e tal, então também foi um movimento de acolhimento, foi uma proposta digamos
assim, de um modelo de diversão, de vida noturna. Assim como teve uma época
dos bailes punks. Por exemplo, teve uma época que não tá ligada aos gays,
embora os gays frequentavam muito, de baladas em porão, tudo pintado de
preto, um povo todo furado, gritando e tal, né. Então é uma estética, sei lá, um
modelo e os viados tavam em todas, (risos).
Bom, mas aí você pediu descrição, né, tinha Senhora Kravitz, que tinha esse
modelo parecido com o Massivo, que era basicamente assim, uma garagem que
você entra e vai, entendeu? Não tinha, assim, espaços que a gente chamava de
balada, era disco! Discoteca! Então teve uma época que se falava assim:
discoteca, discoteca era um lugar mais arrumadinho, sabe? Um lugar que tinha
um DJ, às vezes tinha show ao vivo, às vezes você jantava na discoteca, tinha
um espaço que você podia jantar e tal, isso era discoteca. Agora quando eu tô
te falando desses lugares chamados alternativos, como a Senhora Kravitz e o
Massivo, estamos falando assim de lugares que abriram as portas, bota o povo
lá e vai! Então era uma coisa muito mais, não é popular, porque não eram
propriamente lugares baratos, mas era uma proposta, uma proposta de estar
tudo meio bagunçado, tudo meio, como o Radar Tantã foi assim, como aqui no
Bixiga também tinha uma casa, uma casa dessas, Madame Satã, sabe?
Madame Satã era isso, uma casa velha, toda pintada de preto, que você abre a
porta e botava o povo todo lá dentro, deus me livre, parecido com lembra um
pouco hoje, essa da Frei Caneca, A Lôca.
L: A Lôca.
U: Lembra um pouco essa proposta da A Lôca, abre a porta, bota tudo lá. Só
que tinha uma proposta cultural também, de vez em quando tinham uns shows,
umas danças, umas performances e tal. Então nesse momento, realmente era
tudo misturado, gay não gay, tava todo mundo para negócio na realidade, a partir
de um certo momento os lugares, digamos assim, mais segregados,
continuaram. Em geral mais ligados aos jovens, a Condessa Mônica da Nostro
Mondo, a boate dela, sempre foi para jovenzinhos, sabe? Não misturou, quer
dizer, algumas boates que começaram para o público gay, elas continuaram,
mas vieram também esses espaços mistos para somar. Então as gays mais
158
modernas, mais descoladas, em geral iam nesses espaços mistos. E as mais
pobrezinhas assim, poderiam ir em um lugar, ir no outro. Mas manteve-se
aquelas boates mais segregadas, como a Corintho, foi também e também esses
espaços acolhedores, que são mistos né.
L: Ah muito legal, Bira! E me conte um pouco sobre as pessoas, tem alguém que
te marcou muito, dentro desse período, imagino que tenha várias pessoas. Mas
pessoas que também você possa indicar para entrevistar, pessoas que talvez
tenham essa vontade de falar e estavam presentes nesses espaços, enfim que
flutuam na sua memória.
U: Bom, das vivas, são poucas né, porque tem pessoas importantíssimas que
morreram. Porque a AIDS, não precisa falar né, todo mundo sabe. Eu tenho um
rapaz que é um amigo meu, um pouquinho mais velho, que ele gosta de falar
dessas coisas e tal, ele tá casado. Eu tô com 61, ele deve estar com 65, por aí
e ele foi inclusive meu namorado, foi o meu primeiro namorado e a gente é amigo
até hoje. Está super casado e tal e ele gosta, às vezes eu indico, assim, quando
alguém quer uma entrevista e ele gosta bastante de falar e, ele foi do grupo
Somos.
L: Ai que legal!
L: Ah, seria super legal conversar com ele. Ah, gostei muito, Bira. E aí queria
saber se tem mais alguma coisa, que você queria comentar e acabou passando
despercebido nas perguntas, alguma coisa que você queria dar mais ênfase
também, que você acha importante para ficar.
159
U: Ah, o que eu acho importante de acrescentar é que as pessoas da minha
idade também gostam de se divertir, de sair, de curtir, né. E a gente tem uma
balada, que acho que todo mundo conhece, que chama ABC Bailão, que é uma
balada que vai gente da minha idade. Assim, eu não tô gostando muito de
barulho ultimamente, então eu não tenho ido. Mas o que eu quero dizer é que a
gente gosta de dançar, de cantar, de trepar, de beber, a gente continua gostando
de tudo que sempre gostou, mas os espaços são mais raros, para as pessoas
mais idosas. Embora eu nunca tenha sido rejeitado em um espaço jovem, mas
a gente fica meio assim, meio sem ter o que fazer, sabe? Meu último namorado,
ele tinha 26 anos, quando a gente namorava. Nossa faz tempo já! Mas enfim, eu
tinha o dobro da idade dele e ele gostava muito da A Lôca e eu ia na A Lôca e
eu dizia para ele - mas a gente vai na Lôca, mas quando me der sono eu vou
embora e você fica aí.
Então eu nunca fui maltratado, lá, eu tava sempre com ele e tal, mas é um lugar
que se eu fosse sozinho, eu acho que eu me sentiria mais excluído. Acho que
por falta de pontos de contato, mesmo, por socializar com pessoas muito jovens,
né? Então, o ABC Bailão quis registrar, porque é um local de pessoas da minha
idade, mais velhas do que eu até, que é o modelo igualzinho do que era
antigamente. Então se você quiser saber como era uma balada, uma boate
antigamente, vai no ABC Bailão que é aquilo, exatamente aquilo. Um monte de
gente querendo beijar, um monte de gente querendo trepar, um monte de gente
querendo namorar, um monte de gente bebendo, um monte de gente dançando,
só que estão mais velhinhos, mas era exatamente isso. Tirando os shows, os
shows eram mais comuns, hoje em dia não tem mais show no bailão, mas
antigamente a gente tinha muito show no Bailão e tals e isso já acabou um pouco.
L: É, hoje tem a Blue Space, ainda, mas tá meio que em um abre e fecha, assim,
não sei se era assim, mas acho que é a única que eu frequentei, que tem show.
160
U: É, tem shows mas, muitas vezes é meio focada no erotismo, né, aparece uns
boys, uns boys com pinto duro e tal e aparece umas bonitas lá. Mas quando eu
estou falando, no São Paulo em Hi-Fi, a gente vê bem isso, que quando eu estou
falando de show lá na década de 1970 e começo de 1980, a vocação do lugar
era essa. Então vinha, veio Teatro de Revista, veio o Walter Pinto. Tinham casas
noturnas, tinha o Sargentelli, casas noturnas focadas em show, na performance,
no glamour, isso não tem mais. Mas aparece umas bonitas meio penosas, de
vez em quando na Blue Space, ainda tem isso, mas não é a alma da casa é
outra coisa.
L: Sim, totalmente, totalmente! Então Bira queria encerrar por aqui, queria
agradecer demais! Você mencionou vários lugares que eu não conhecia e que
eu nunca tinha ouvido falar, principalmente esses da década de 1990. Eu garanto
que essa entrevista vai ser super importante para compor esse inventário. E
assim que eu transcrever e também formalizar esse inventário eu te mando uma
cópia para você poder ver, dar uma devolutiva, para você falar também o que
você achou. Acho muito importante essa participação, esse feedback de todas
as pessoas que eu vou entrevistar e, queria agradecer demais, foi um prazer
enorme em te conhecer também!
L: Legal, vou querer saber sim, então vou encerrar aqui a nossa gravação. Deixa
eu ver como é que eu faço isso aqui, encerrando.
U: Tá bom!
161
Lili Vargas: Bom, é um prazer imenso estar aqui, é uma satisfação, de eu ter
chegado até aqui e estar podendo narrar algumas coisas que nós, eu e as
minhas colegas, que muitas delas já não estão mais, do que acontecia, de como
era o meio GLS. As coisas que eram, e que hoje não tem.
Então, meu nome é Lili Vargas, eu tenho 68 anos, novinha ainda e eu sou
consultora de imagem, sou formada na faculdade Anhembi Morumbi e sou
autônoma. Não tenho fixo, não tenho compromisso com ninguém. Então eu pego
eventos de coisas que me convém e eu faço os eventos, muito nos interiores.
O meio que eu lido, que é o meio GLS a noite, que é assim as baladas, as boates,
os desfiles, os eventos e shows, eu to sempre participando. Então eu fazia muito
show na época né. Na época a gente não tinha trans, não tinha travesti, então
eram - montadas, que a gente falava, a gente falava assim, que a gente se
montava para fazer um show, montada no palco, que hoje é tipo uma drag, na
época a gente era montada.
E era muito legal, foi aí que eu comecei a minha vida, comecei com 14 anos. Foi
quando eu fui conhecer o meio, porque até os 14 anos eu praticamente não sabia
que eu… sabe? O que acontecia comigo, porque eu achava muita diferença nas
coisas, principalmente, no setor sexual, assim, sabe.
Então eu nunca me senti um garoto, um homem… nunca! Sempre me senti
mulher - feminina, então eu tenho uma alma feminina, tá. Eu nunca tive nada de
homem, nada, mesmo quando eu era garoto, eu tinha todos os traços de menina,
tanto é que me confundiam muito.
Falavam - Ah é a sua filha, né? E minha mãe falava - não é meu filho.
Então eu sempre fui delicada, assim, carinha de menina, e aí, por dentro eu
sempre fui feminina. É o que eu sempre falo, não é que eu queira ser mulher, eu
sou feminina, então é diferente. E tudo isso aqui, essas, esse visual feminino que
eu tenho agora, foi no acompanhamento, no tempo, tá, que eu fui me
preparando, fui sentindo muitas coisas diferentes, no homem, numa mulher, foi
então com 14 para 15 anos, que eu comecei a perceber que tinha alguma coisa,
que não era o que a sociedade queria. Enquanto a minha família, meu pai e
minha mãe, que sempre foram pessoas maravilhosas que eu já não tenho mais
os dois.
Meu pai era jornalista e trabalhava na época com o Ibrahim Sued, que era um
jornalista muito conceituado, muito conhecido na época. E a cabeça dele era
muito sabe, muito, para frente, evoluída mesmo, uma pessoa que não se
preocupava com esse tipo de sexualismo, sabe? Se a gente era homossexual,
se não era, para ele tava tudo bem. Aí eu fui percebendo as coisas… que eu não
era mais o menino que eu via. Assim, a diferença entre os meninos na escola e
os meninos sempre, sabe? fazendo chacotinha. E eu era assim menina, porque
eu era bem delicada, entao na época a gente nem falava assim - homossexual,
falava pederasta, porque era uma coisa meio assim, pesada com as palavras,
entao nao tinha essa coisa de gay, era pederasta, entao voce já era marcada.
E a gente era muito julgado, muito, muito. Sabe, as famílias, os meninos, os
outros meninos, não queriam ficar com a gente, sabe, então a gente sempre foi
excluído, sempre era excluído, ali a gente era diferente, querendo ou não
querendo, você é diferente.
Mas nessa parte, de rejeição, das pessoas agredirem e os meninos irem e
fazerem chacota, como se diz hoje, bullying, eu não tinha muito, porque eu
sempre fui uma pessoa mais meiga, mais assim, tranquila, então eu sempre
conseguia envolver eles numa amizade, sabe? E fazer com que eles
percebessem que eu não era aquela coisa que todo mundo fala, ou falava, então
eu conseguia amenizar a situação com os meninos. Lógico que às vezes, eles
falavam - ah, sua mulherzinha. Aquelas brincadeiras, de quando a gente
brincava com eles, assim, então, eles sempre falavam, mas até aí nada mais.
Mas com o tempo eu fui crescendo, eu morava no interior, minha família era do
interior, nós somos, eu sou de mineira, eu nasci em mineira, minha família é de
mineira, minha família tinha fazenda de laranja, um monte de coisas, uma família
bem conceituada. Mas eu vim para Jundiaí, morar em Jundiaí e fiquei lá
praticamente, até 11 anos, eu fui criada em Jundiaí, aí com o serviço do meu pai,
ele viajava muito, ele tinha muitos, esses eventos de reportagem dele, ele
precisou vir para São Paulo.
Aí, nós viemos para São Paulo, eu tinha 11 anos, foi quando eu terminei o meu
primário, depois terminei meu colégio, aí que eu fui fazer faculdade. E eu vim
para o Ipiranga, para o bairro do Ipiranga, ali no Museu do Ipiranga, que é a Av.
Nazaré. A gente tinha uma casa, inclusive ainda eu tenho, que ficou, no começo
da Nazaré quase, com o Museu ficou, ali foi a minha infância, todos os meninos,
o pessoal todo, do colégio. E aí eu fui crescendo, crescendo e sempre, os
meninos sempre, polindo, enchendo, aquelas brincadeiras de garoto com garoto,
mas eu gostava (risos).
Então, foi lindo, aí eu comecei a conhecer um pessoal do bairro que também era
gays, aí a gente começou a ter amizade, Kaká di Polly, meu amigo de infância,
que é do Ipiranga, nós fomos vizinhos até bons anos ali, um tempão. A gente
ficou morando vizinhos e as nossas famílias eram também conhecidas e ele é
uma pessoa, sempre foi aquele Kaká maravilhoso, também com as exigências
da família, aquelas coisas todas, mas aí, a gente começou a se entrosar. Eu
comecei a me entrosar com o pessoal do bairro, e aí era um pessoal mais
avançado, que frequentava a cidade. Até então eu não conhecia nada, eu só
conhecia o bairro e um pessoalzinho do bairro, aí um dia me trouxeram para a
cidade. Falaram - Vamos, vamos para a cidade, aí eu - vamos conhecer, né,
vamos lá.
Aí eu cheguei na cidade, naquela época era a Av. Ipiranga, a Galeria Metrópole,
que as ruas 24 de Maio, Barão de Itapetininga e 7 de Abril, era, a gente chamava
de Autorama, porque os rapazes de carro ficavam rodando e as meninas… os
gays, ficavam tudo ali, andando a pé e eles ficavam de carro, paquerando.
Naquela época, faziam o Teatro Municipal, era tudo aberto, e no final, assim, do
encontro, o ponto de encontro era a Galeria Metrópole, onde tinha um bar de
esquina, onde todos tomavam café. Então os meninos de carro vinham, paravam
de frente e ali ficava todo mundo, os meninos da cidade, os gays. E não tinha
travesti na época, não tinha nada, só tinham garotos femininos, bem afeminados
e não tinha nada disso ainda.
Aí, era muito movimentada, era todos os dias, aí eu fiquei apaixonada, eu falei -
Meu Deus, que coisa maravilhosa, aí não sei o que, aí a gente fazia Metrópole,
descia a Av. São Luiz, a Ipiranga, descia até no Cine Ipiranga, que hoje não tem
e na esquina, tinha um bar que se chamava Jeca e esse bar era esquina com a
São João e a Ipiranga, era um barzinho de esquina assim, que hoje agora é uma
lanchonete de frutas, de sucos, e ali iam todos, todos, todos e todos. À noite iam
tomar café ali, então ficava ali, e o Cine Ipiranga ficava aberto até então, então
aquele vulco vulco lá dentro, né.
Aí a gente subia de novo a Ipiranga, São Luiz e ia para a Galeria Metrópole,
chegava lá na Metrópole e ficava outro fervo com o pessoal todo, aquela coisa
toda, aquelas paqueras e descia de novo, e isso ia a noite toda, era a noite toda
todos os dias.
E nesta época nós tínhamos a Ditadura que a viatura da polícia era preta e
branca e eles tinham um carro que se chamava Veraneio, não é um Caravan, é
um carro enorme era tipo de uma perua… eu nao sei como que é o nome, mas
é um carro assim, tipo de um carro grande e era, eles, só tinha aquele carro
quem era polícia, quem era do Deic naquela época. E a gente ficava ali, naquele
fervo, não sei o que. E aquele preconceito, né? E quando eles vinham, ele vinha
assim, de quatro, cinco, de repente, sabe? Eles chegavam batendo, sabe,
pegando pelo cabelo, te arrastando, não importava, onde, o momento, e te
jogavam no meio do carro e normalmente eles levavam a gente, no Parque Dom
Pedro, naquele castelinho, que era uma delegacia deles, da repressão.
Então não tinha, não tinha, certo, sabe, se você estava ali naquele local você ia,
se você estava sentado ali no meio do bar, vários te tiravam do meio do bar e
você ia, não tinha, entendeu? E tinha uma lei na épocas que chamava Vadiagem,
era uma lei, se você não trabalhasse, se você não tivesse uma carteira
registrada, para profissional registrada, eles te levavam, então você tinha que
estar trabalhando com a carteira no seu nome, no bolso, registrado, porque a
hora que eles te parassem você, tinha que mostrar, se você tava registrado,
senão eles te mandam embora. Mas se você não tinha registro, você ia como
vadiagem, aí você ia até o distrito, chegava lá, assinava um termo que era
Vadiagem e ficava lá, às vezes ficava até dois dias, sabe? E jogava todo mundo
lá, dentro do meio da cela, aquela coisa toda e tinha que esperar a vontade deles
soltar e isso foi assim um bom tempo, bons anos.
Na Vieira de Carvalho...
Lili Vargas: Foi em 1968, mais ou menos, para 1966, 1967, daí para frente.
Lili Vargas: Já, já foi o auge, foi o auge inclusive. Era a mesma coisinha, tudo
aqueles barzinhos que tem, que agora são restaurantes, era a mesma coisa e
aquela praça, eram ruas, onde os carros paravam e passavam e a 24 de Março,
7 de Abril e Barão, era tudo aberto, eram ruas onde vocês podiam andar com o
carros.
Então nessa época, o que aconteceu, na Av. Vieira de Carvalho começou um
movimento, dos gays, dos homossexuais. E no final e agora que na esquina, que
tem a Cantho, aquelas boates que tem ali, no final quase lá para baixo, tinha um
barzinho… eram vários barzinhos, tinha um barzinho que se chamava DiVocê.
Esse barzinho era uma porta, né, com umas mesinhas, um corredor imenso, com
as mesinhas e as cadeiras laterais, depois tinha mais para o fundo e no meio da
entrada, tinha uma vitrola mágica que se chamava Vitrola Mágica. Você
comprava as moedas, as fichinhas e escolhia a música e jogava e escutava uma
música que você queria, então você estava lá e ali era o único lugar, o ponto de
encontro das Gays, de São Paulo.
Não tinha outro lugar, cê não podia andar na rua, porque nós éramos caçadas
como animais, caçadas, literalmente. Então, você era um bicho, sabe? Gays,
naquela época, homossexual, era bicho, era marginal, era dito como marginais,
dito como marginais mesmo.
E, então, o que aconteceu, esse rapaz, esse dono do bar que eu não lembro…
era um casal, eles abriram esse bar e permitiram que as gays começassem a
frequentar, aí todo mundo foi para lá, era o único lugar, que eles abriram as
portas. Então ali era o Point de todas, de todas, era a noite toda também e as
meninas ficavam lá e brincavam, conversavam e paqueravam. E não tinha nada
de show, nada de espetáculo, nada disso, não existia isso, não existia. Era
realmente para a gente se encontrar, bater um papo, conversar e ficar juntos ali,
trocar as ideias, conversar sobre o que passou durante a semana e esse
barzinho era muito legal, mas eles, a polícia, enfim, eles, eles chegavam assim,
de repente, que aí ficou manjado, né. Que aí já ficava aquele pessoal na porta,
muitas meninas, né, então, não podia ter, então, a viatura parava e não tinha
como sair, então, eles entravam e arrancavam você pelo cabelo mesmo, te
puxavam pelo cabelo mesmo e levava, bom, isso constantemente era assim,
porque, levava, ficava lá. Tem dia que às vezes que ficavam 3 horas, às vezes,
ficava o dia inteiro, às vezes passava o dia todo, dependendo do delegado e do
Plantão e era o único lugar que tinha mesmo para a gente ficar e você não podia
andar na rua.
Porque a gente que era mais feminina, a gente chamava atenção, então imagina,
a gente tá do lado de cá e tinha uns rapazes do lado de lá, uns meninos, um
grupo, do lado de lá e percebia que você era gay, nossa senhora, eles iam tudo
em cima, sabe? Você apanhava deles e você não podia chamar a polícia, porque
se você chamasse a polícia, além de você apanhar deles, você ia apanhar da
polícia também, porque eles batiam e levavam. Então você não tinha direito
nenhum, você não tinha, não tinha mesmo. A gente era caçado mesmo e isso
como meninos, né, porque naquela época não tinha nada de você se produzir,
você, fazer umas cirurgias, ou se transformar, mesmo em efeminado, em
feminina mesmo. Mas isso era só com os meninos, porque eram muitos gays na
época e tudo novo, na época, uns novos sabe e era muito complicado.
Então eu morava no Ipiranga e vinha sempre para o centro, porque era o único
lugar que podia curtir, que eu passei a conhecer e peguei amizade toda com o
pessoal, na época, a falecida Cris Negrão, também era da minha turma, era um
menino, magrinho, bem, né. E ele sempre foi terrível, sempre foi peralta mesmo,
sempre aprontava e saia correndo e os cara atrás, então era aquela coisa. Então
no fundo, no final da noite a gente se divertia, porque era engraçado, porque a
gente passava aquele perigo todo, aquela aventura toda a noite toda, corre
daqui, corre daqui e uma turminha ali que vem vindo, aí você vai para lá tem
outra turminha, entendeu? Então era aquela coisa, a noite toda, mas a gente se
divertia, porque a gente tinha muita amizade, tinha muita sinceridade, tinha muita
união, entre nós, tá?
Não importava, se você, vamos supor, tinha te conhecido hoje, você, a gente se
conheceu, pronto, já era amigo, então uma defendia outra e não era que nem
hoje, que é uma coisa assim, individual, cada um na sua, que se dane. Não tem
mais aquela coisa, da minha época, que era uma coisa unida, uma coisa mais,
sabe? Hoje é muito diferente. Não tinha drogas, na época, não tinha drogas, aí,
depois com o tempo que veio começar a surgir as drogas, aí começou a ficar
pesado o negócio.
Mas eu me lembro que em uma fase no Rio, eu com a Thais Azevedo, que
trabalha aqui em São Paulo, nós estávamos no Rio, morávamos no Rio e lá tinha
uma Av. que todos os meninos faziam, tipo Copacabana, mas lembro que não
era Copacabana, era em outro local. Que era tipo Trianon, tipo assim e todos
ficavam ali, naquela paquera, os meninos e as meninas, aquelas coisas todas
como sempre, paquerosa, e a polícia quando vinha… tanto é que eu achava que
a polícia daqui era bem menos violenta, assim, apesar de ser violenta, mas em
comparação do Rio, lá era barra. Então, o que acontecia eles pegavam aquele
bando e levavam para a Urca e então, quem se salvava, se salvava e quem não,
não aparecia mais, ninguém sabia de mais nada.
Lili Vargas: Então, a gente fugia, lógico, se arrebentava lá embaixo, mas muitas
não conseguiam né e a gente nunca mais via. Então era uma coisa bem
complicada na época, bem complicada. Foi muito, muito pesada para a gente,
mas depois com o tempo foi melhorando, parece que foi diminuindo a
perseguição e foi passando o tempo e foi mudando.
E aí começou a vir, esse tipo de montagem e aí veio show, aí começou vir as
casas e show de boate, que a primeira boate em São Paulo, porque aqui não
tinha boate, aí surgiu a Hi-Fi, era uma boate, que era na parte de baixo da
Paulista. Atravessava a Paulista, a Augusta e ela ficava do lado direito, onde
tinham até um salão de beleza que chamava Colonial, que era famosíssimo na
época. E o Hi-Fi ficava assim, em uma loja de disco em baixo, que chamava Hi-
Fi, tanto é que por isso que chamava Hi-Fi e uma portinha pequenininha com
uma escada imensa que subia e o salão, que a gente dizia que era boate, era
esse pedaço que aceitava, então você não precisava dançar, nem se
movimentar, então o povo ficava assim, era engraçado. Então você entrava e
ficava assim (parado), era divertido, aquilo lotava, aquilo era gente, assim, nas
escadas, se segurando, uma loucura, que foi a primeira boate que se chamava
Hi-Fi, onde todas, as finas, as mais bonitas, as mais feias, as mais sabe? Enfim,
estavam todas ali, todas entravam.
E aí surgiu a moda do Maxi Casaco, que era um casacão que usava até aqui e
que aquilo era só para mulher. Aí de alguém homem ou uma coisa assim, colocar
aquilo, nossa senhora, era uma loucura, apanhava, né? E elas colocavam, elas
compravam o casaco, enrolavam e botavam no carro e ia para a boate (risos)
Lili Vargas: Chegava na porta da boate e botava o casaco e ficava lá dentro, né,
e ficava ali na porta da boate desfilando, e não podia ir para a Paulista com
aquele casaco, que o pessoal agredia mesmo, mas a gente se divertia. Aí a
polícia também dava as batidas dela e ali não tinha como você fugir. Ali era pior,
porque lá em cima, era aquela coisa, você não podia se mexer e a escada era
em cima, tipo Nostro Mondo, não sei se você chegou a conhecer o Nostro
Mondo? E a escada era assim.
Lili Vargas: Então, eles entravam, paravam na porta, já fechava todo mundo, aí
ia saindo um por um, em fila. Paravam três, quatro carros de polícia e enchiam
aqueles carros, levavam todo mundo. E aí acabava a festa, e aí tinha um
jornalista, que saia muitas vezes nos jornais, saia os meninos, saiam nos jornais,
aí complicou muito, as famílias, os pais descobriram, enfim, foi muito complicado
para muita gente ali.
Aí veio o Nostro Mondo, que é, Clóvis… a Condessa Mônica que era
maravilhosa. A Condessa trabalhava no Fórum com meu tio, então ela
trabalhava de paletó e gravata, então não tinha nada haver, era o senhor Clóvis.
Uma pessoa maravilhosa também e um dia eu lá no fórum, eu conheci ela e a
gente começou a conversar, porque você sabe, né, a gente não tem como, se
vê e já vai conversando e ela falou… ah, na época meu nome não era Lili Vargas.
Era meu nome de registro social e ela falava assim, no meu nome de registro -
Vamos, eu tenho uma casa, uma boate, você já foi na boate? E eu falei - Ah, eu
fui no Hi-Fi, eu conheço, mas é lá embaixo na Augusta. E ela falou - Olha, eu
tenho uma casa, que se chama Nostro Mondo, na Consolação. E eu fiquei toda
exaltada, falei - Que legal, né. Aí ela falou - Eu vou te levar lá, vamos combinar
e você vai lá. Aí eu falei - Tá.
Aí eu fui um dia, um sábado, eu me lembro, um sábado, uma casa também que
na época, era um sucesso total. Só que lá já era maior, tinha uma, o mesmo
sistema, uma escada que subia para cima em um salão, aí tinha palco e tinha
show. Foi aí então que começou a montagem dos meninos, que se montavam
para fazer show, então tinha uma tal de Norminha, que fazia apresentação. Uma
série de pessoas, para a época, que se montavam e faziam show no palco e
cada um fazia da sua forma, dublava, ensaiava em casa e ia fazer e foi, né, foi
aumentando, aumentando e começou a se profissionalizar o negócio, o pessoal
começou a levar mais a sério, a roupagem, fazer as roupas mais bonitas, mais
de acordo, com as músicas e o palco já tinha. A Condessa mudou muito, a cada
três, de três em três meses ela mudava, enfim, aí começou a vir o pessoal, a
fazer o show sério mesmo.
Aí começou os concursos, que não tinham, os concursos de miss, dos meninos
que se montavam e iam fazer o concurso, mas era muito errado, porque às
vezes, alguns concursos saiam perfeitos. Mas alguns, eram terríveis, porque na
hora do título, umas não concordavam, então era mesa e cadeira para tudo
quanto é canto, sabe? Era, muito (risos), nossa era aquele boom e aí eles
pulavam a cerca da Consolação, na divisão, elas pulando aquilo, vestindo aquilo,
que os vestidos enroscavam, porque a gente ficava em pânico, eu me lembro
muito, como se fosse hoje e aquelas que conseguiam sair para fora (risos), elas
pulavam e rolavam e os carros paravam e eles não entendiam nada, Então aí,
voltava tudo e acalmava e continuava a folia, muito engraçado, sabe? Mas era
uma briga, era um desentendimento momentâneo, mas não essas agressões
que tem, a brutalidade, a maldade, não tinha isso, mas era muito divertido e isso
foi na parte do Medieval, aliás, desculpa, do Nostro Mondo, que também foi um
bom tempo que a gente curtiu lá.
Aí passamos, aí veio a Elisa, a Elisa Máscaro, uma pessoa divina, nossa, é
incrível, uma pessoa, que além de profissional, ela é humana, ela é muito
humana, quem conhece ela profundamente, que viveu com ela na época, sabe.
Então eu vivi com ela, desde o primeiro dia que ela abriu a Medieval. Então, ela
abriu o Medieval, que foi assim, um estouro, sabe? Uma explosão e ela, era uma
pessoa muito além, de visão, ela naquela época, o que ela fazia, não tinha, não
dava, entendeu? Era muita coragem, ela tinha fibra, ela encarou a sociedade,
ela encarou o preconceito, encarou a agressividade, correu risco, tá? Porque a
boate dela, a Medieval, era uma coisa assim, maravilhosa, era realmente, muito
linda, era uma coisa bem medieval mesmo, inclusive hoje é um restaurante que
serve Self-Service.
Então ali, ela começou a fazer festas, todo, todo mês ela dava uma festa, uma
noite na Arábia, uma noite no Havaí, então cada mês tinha uma festa a fantasia,
vinha gente do interior, de Santos, de Belo Horizonte e todos fantasiados. Então
ela foi a única mulher, que na época, nos anos 1970, 1980, 1979 ou 1978 para
1980, ou um negócio assim, foi a única mulher que conseguiu com uma boate
gay, parar em dias de festa, a Augusta. Fechar a parte da Paulista, descendo a
Augusta até a outra esquina, aquele pedaço era fechado, sabe? Não sei se era
o Detran, o pessoal que cuida da rua, né? Do trânsito eles fechavam, né, ali.
Porque as meninas, cada uma, queria se destacar mais, porque tinha o jornalista
e o jornal, né, saia todo o mês, então o que acontecia, as festas eram
aglomeradas. Então eu via o Darby, maravilhoso, que coordenava, que fazia
umas coisas maravilhosas na época. Então o que acontecia, cada um tinha sua
imaginação, vinha de patins e tinham coisas hilárias na época e era família que
ia lá ver, todo mês, ficava aquele bando, aquele monte de família, de gente para
ver, sabe, tipo Parada Gay, hoje em dia? Era a mesma coisa, eles iam para ver
as gays, então tinha, aqueles holofotes na porta e elas vinham da Paulista para
cá, então elas desciam, todas, mas todas de maiô, quase peladas naquela época
e o pessoal batia palma (palmas) e a família toda achava um luxo, uma coisa
assim. Aí tinha as ideias mais assim, que foram maravilhosas, tinha uns meninos,
que isso foi uma obra do Darby, ele, inclusive, a Zilda Maio, uma atriz de cinema,
que não sei se você conhece, ela era assim uma pessoa maravilhosa, minha
prima, que está em Araraquara hoje, que ela só mexe com Teatro agora, mas
ela foi uma das rainhas, lá, dos filmes Pornô Chanchada na época.
É, bom, uma série daquela época, que eu não me lembro agora, que a gente
participa de tudo e ela era muito famosa, muito, muito famosa, ela o Dimmy Kier
a Helena Ramos, aquele pessoal. O Davi, eu não me lembro, eu sou uma pessoa
que agora hoje em dia, nao to mais, mas eram pessoais atuais, era um pessoal,
famosíssimo na época.
E o Pornô Chanchada nao era um filme de sexo explícito, era um filme de mais
excitação, mais sensual. É aqueles filmes que eles faziam assim, mais dos
prazeres proibidos, era mais biquini, mais aqueles abraços, mas nao tinha nada
de sexo, nada disso. Mas era o filme porno chanchada, que se falava assim, não
de sexo, mas enfim, aí ela era. O Darby contratou ela, para ela fazer uma, para
vir em uma das festas, então ela vinha dentro de uma banheira, semi-nua, com
um gelo seco assim e aquela fumaça na banheira e uns 4 rapazes, aqueles
musculosos, bem trabalhados segurando a banheira assim, sabe? É com ela
assim dentro, então era um luxo, eram essas ideias, então a banheira cheia de
sangue, com aquelas fumaças assim, e ela nua dando aquele close e os meninos
carregando a banheira.
A Wilza Carla teve um ano que ela desceu com um elefante, ela desceu com um
elefante para boate. Então eram coisas assim homéricas, que você não
acreditava e tinha carruagem, que vinha de cavalo, sabe? E todos fantasiados.
Então as ideias homéricas que tinha naquela época, que a gente ia, era muito
divertido aquilo, sabe? Aquele pessoal… era um luxo chegar, que era um
holofote, o tapete vermelho e povo na porta para aplaudir, porque lá dentro
depois era aquela coisa total. Aí começou a vir com um, quando começou a
frequentar os artistas, na época, eu lembro que era Vera Fischer, Perri Salles, a
Arlete Salles, quem mais? Renata Sorrat e outros artistas, vários, vários artistas
que hoje, que praticamente quase conviviam em todas as festas, porque eles
participavam de todas as festas. Então, você queria ver um dos artistas, você ia
no dia da festa do mês. Então ficou muito famosa, né? Famosíssima.
Aí depois ela inventou a matinê, para as meninas, para as gays, no domingo.
Então também ficou patenteado, a matinê do Medieval no domingo, todas, todas
iam para lá, todos os domingos, as menininhas, né, as mais novinhas iam para
lá, então ficou, depois uma série de coisas, que o Medieval ficou muito tempo
nesse auge total, né, muito bem frequentado, muito bem selecionado, enfim,
geral, os gays, as pessoas que, até os héteros frequentavam, iam casais para
conhecer, os artistas até levavam outro pessoal. Então ficou bem, bem
frequentado.
Aí depois uma série de coisas também dela, né, família, uma série de coisas,
ela, de repente fechou a boate, quer dizer, foi um choque para todo mundo,
porque a gente estava acostumado, Medieval, Medieval, sabe? Era Medieval, a
distração, a curtição era o Medieval, mas a Nostro Mondo continuava com seu
público, com seu povo, continuava a mesma coisa, você entendeu? Era uma
coisa, tipo, né, cada um tem o seu espaço, cada um ia naquele que se sentia
bem, que gostava do local. Aí ela fechou o Medieval, então foi uma coisa muito
triste, porque já não tinha mais a matinê, não tinha mais festas, né, todo mês, a
fantasia, então não tinha, aí ficou um tempo, sem boate.
Aí ela abriu a Corintho que foi no Ibirapuera, que não foi tanto, como o Medieval,
mas foi também uma coisa maravilhosa, estrondosa e lá o espaço era maior,
porque era do Ibirapuera, perto do shopping, as ruas eram mais largas, a casa
também era bem mais larga, bem mais espaçosa e foi também um lugar muito
legal. Continuou fazendo os seus shows, daí, que ela não montava o show que
nem no Medieval, porque no Medieval tinha um show montado por ela, na época
e já começou a surgir as travestis, tá? De montadas já passaram a travestis,
então tomavam hormônios, o corpo já era mais feminino, já era uma coisa mais
detalhada, os shows já era praticamente coreografado, show de Holywood
mesmo, com corpo de bailarinos maravilhosos, uma roupagem chiquérrimo, tipo
um Boulevard de Paris, o mesmo, era igual. E ela não media os esforços para
gastar o dinheiro em roupa. Ela foi a única pessoa que registrou os seus
funcionários, todas que faziam show na casa eram registradas, eram
funcionárias, eram legalizadas e eram exclusivas, elas não podiam ficar na rua,
então fazia-se o show, entrava dentro do táxi e iam embora para casa. Não ficava
na rua, não ficava em exposição e nem nada, era realmente, artistas mesmo,
exclusiva da casa e faziam suas casas, mas era ali. Então era uma companhia,
um tipo de companhia que ela criou, particular. Então tinham os coreógrafos,
tinham as meninas que faziam, as costureiras, que a Elisa ia pessoalmente
comprar os panos na 25 de Março e ela mesmo escolhia para fazer a roupagem
das meninas e era uma coisa linda, linda, por isso que os artistas iam direto ver
o show, porque era, sabe? todas as escadas, viam aquelas pessoas descendo,
com o corpo de bailados e a principal vinha fazer o show, aí começou.
Tinha a Evinha, aí que começou a Marcinha, que se fala a Marcinha do Corintho,
que o nome agora é Marcinha do Corintho, foi aonde ela começou, foi aonde a
Cuba começou, foram várias, várias, a Phedra de Córdoba, famosa, né,
maravilhosa, começou ali… não era nada, a Phedra não era nada, ela pisou no
palco, era profissional desde a época de Cuba, né, mas ela entrou ali, era crua
e ali que ela se criou, como muitas outras, sabe? Jaqueline, sabe? Belíssima, as
montagens, os shows, as performances, belíssimas mesmo, era uma coreografia
montada que era assim de enlouquecer, então tudo isso foi a dona Elisa que fez,
ela tinha uma visão, sabe? E ela era muito rígida, muito rígida, no sentido de ser
mãe, era uma mãe, entendeu? Se você viesse com uma meia desfiada, você
não fazia o show, você era, suspensa, entendeu? Então, ela, esse pessoal, ela
implicou, ela fez a pessoa ser profissional, sabe? Responsável por ser realmente
uma pessoa de palco e então, tudo isso ela fez, sabe? Ela era muito visionária e
o pessoal tinha o seu salário, era registrado e se mantinha com os shows da
noite, porque ela que pagava, sabe?
Ela que orientava, ela era uma mãe, ela não deixava as meninas irem por aí, ou
se envolver em outras coisas ilícitas, ela não permitia isso, então era muito rígido.
Então as meninas, seguiam aquele caminho mesmo e isso sem contar que aí
veio a maldita doença HIV. Foi quando surgiu o HIV que ninguém sabia o que
era, era uma coisa horrível, foi uma nuvem negra que caiu, então, muitas, muitas
foram embora, né.
Lili Vargas: Olha, sim, era uma coisa assim, não tinha especificamente, de voce
ir lá para sexo, a gente não ia lá nessa intenção. A gente ia para se encontrar,
para se soltar, porque ali era o único lugar, num momento que você poderia fazer
o que você tinha vontade de fazer, de ser você mesmo, entendeu? Ali, você
podia rebolar, você podia dançar ballet, você podia bater palma, você podia
puxar o cabelo que tudo bem, sabe? Você não estava sendo reprimido por nada.
Então você se sentia solto, claro que você, entendeu? mas era aquela paquera,
mais assim, mais suave, sabe? Aí, de repente olhei para você, gostei, aí fica
naquela coisa, até que chega e bate papo e se fosse para rolar, rolava, mas uma
coisa é diferente, não era uma coisa específica, de eu ir lá.
Lili Vargas: Aí, aquele lá é legal e pum, aí daqui a pouco. E não tinha isso, nessa
época. Então era uma coisa mais unida, então por isso que eu digo que, nós
antigamente, a união era mais forte, era mais conscientizada, hoje é…, não tem.
Você vai para uma balada à noite. Para a boate você ia para curtir. Nunca existiu
esse negócio de um canto específico para esse tipo de coisa. Então você ia para
curtir o som, a música, as meninas e os meninos, "ai a minha roupinha, ai o meu
sapato, a minha camiseta", sabe? Então uma ia para mostrar, uma para a outra,
como que tava e não tinha aquele negócio, sabe? Que tem hoje em dia, então
era diferente.
Leonardo Arouca: E o Jeca, ele existia nesse mesmo período que a Galeria
Metrópole existia, era junto?
Lili Vargas: Sim, exatamente, era tipo de uma ligação, sem nada haver, mas era
uma ligação, porque Metrópole - Jeca, Jeca - Metrópole, Metrópole - Jeca, Jeca
Metrópole, era a noite toda. Então a gente tava na Galeria - Ah, você viu o Silvio?
Ah tá lá no Jeca, ah então vamos lá, aí descia para bater papo, então, entrava
no Jeca - Ah, a Luciana? Ah tá lá na Galeria Metrópole, ia lá, era assim que a
gente se encontrava e se via, porque às vezes a gente ia e ficava para lá e estava
melhor na Galeria. Aí a gente ficava lá em cima na Galeria e tinha o pessoal que
estava no Jeca, aí sempre, a outra descia para tomar café. Aí - Ah, fulano tá lá.
- Ah, então eu vou lá, sabe?
Então ficava aquela, aquele círculo, então sempre, sempre, eram as mesmas
meninas e meninos. Aí começou vir… teve uma onda de gente na época que
veio para cá e se misturou ali também e percebeu o movimento, né, aí eles
também se enfiaram ali, sabe? Vinha um monte de lá para fora, aí, aqueles
homão, aí, eu to com um Argentino, sabe?
Lili Vargas: Mas era muito engraçado, era muito divertido e tinha o Cine
Ipiranga, que o Cine Ipiranga também, eles ficavam naquele hall que tinha e
ficava todo mundo ali, paquerando, encostados ali, as gays também. A República
era bem mais suave, era um lugar tranquilo, não era uma coisa bem pesada
mesmo, como tá, né. Então, tranquilo, mas o Point mesmo era, tipo Vieira de
Carvalho hoje em dia, era do Jeca, que era esquina da Ipiranga com São João,
subia, virava a São Luiz e chegava na Metrópole, então tudo aquilo ali e fora, as
paqueras que tinham.
As paqueras de carro, dos meninos que tinham carro e que ficavam rodando ali
nas ruas e as outras ficavam paradas ali na esquina para paquerar, então era na
parte de baixo, então, quem queria paquerar, que queria passear de carro, com
o pessoal que tinha carro.
- Oi, vamos dar uma voltinha?
E iam, então era mais na parte onde tem hoje a 24 de maio, a 7 de abril, que
fazia o circuito que se chamava Autorama.
Lili Vargas: Isso, isso, tinha o Trianon, tinha o Trianon que seria, aquela região
do Theatro Municipal, da 24 de Maio, Barão de Itapetininga, porque eu nao sei
como era o roteiro, o caminho que dava direitinho, para eles circularem e sair de
novo para a São João e subir a São Luiz e parar na Galeria Metrópole, entendeu?
Era uma coisa que dava direitinho as ruas que eles entravam e na Marconi,
aquela ruazinha que tem na Marconi que sai na Barão de Itapetininga, com a 7
de Abril, tem a Metrópole. Você indo na Metrópole, da São Luiz para a Metrópole,
você entrando, no final dela tem a 7 de abril, ali tem uma ruazinha que se chama
Marconi, ali ficavam um monte de carros parados e as meninas ficavam e os
meninos iam namorar ali. Então abriam o carro e ficavam namorando, batendo
papo e o pessoal andando a pé e os carros passando, aquelas que se, que
achavam que era de interesse, parava.
- Ui, ui e aí vamos dar uma volta?
Entravam e davam uma volta e era esse tipo de coisa, tipo o Trianon que tem
atualmente, então era esse tipo de paquera, mas não tinha baixaria assim, não,
não tinha, nem podia, porque a polícia tava constantemente, você via uma preta
e branca lá em baixo e saiam todas, parecia um arrastão, a gente se divertia
demais.
Leonardo Arouca: E outras duas perguntas que me surgiram agora com você
falando do Vitrola Mágica, ele começou a inflar quando a Galeria Metrópole
existia e estava no auge das pessoas LGBTs irem lá. Como foi assim, o tempo?
Lili Vargas: Sim, sim, não, A Vitrola Mágica ela veio depois, porque a Vieira de
Carvalho veio depois, essa em 1969, 1968, era a parte Galeria Metrópole com o
Jeca, aí depois de 1970 que aí, 1971, que o pessoal começou a vir, não foi na
Vieira, foi na Marquês de Itu, foi na Marquês de Itu que começou a surgir uns
barzinhos, que inclusive, não tem o ABC Bailão? Que era o antigo ABC Bailão?
Então do lado de cá eram 5 barzinhos e esses barzinhos é tipo esses barzinhos
da Vieira de Carvalho que você podia parar na porta, podia entrar e ficar, lá
estava amenizado a situação da polícia, tava mais calma. Então a polícia não
tava tanto, de chegar e toda hora, elas vinham realmente, mas era
esporadicamente, não era como antes na Galeria, que eles vinham com tudo,
que era constantemente.
Você estava assim, se eles batiam o olho e achavam que você era feminina, já
te pegava, já te jogavam dentro do carro, eram coisas assim, mas a Vieira de
Carvalho veio depois da Metrópole, ali no pessoal, foi quando, continuou, claro
que continuou a circulação ali, mas aí veio a Vieira de Carvalho com esse
barzinho, o DiVocê no Largo do Arouche.
Lili Vargas: Depois, aquele era o único barzinho que tinha essa Vitrola Mágica,
era lotado. Era uma máquina assim, com o nome das músicas, dos discos, que
era Lps, aqueles bolachão. Aí você comprava a fichinha no caixa e escolhia a
música, apertava o botão da música e jogava a fichinha que chegou e aí tocava
a música, entendeu? Às vezes, tinham aquelas meio chatas, aquelas que
estavam com dor de cotovelo e elas escolhiam uma música, 5, 6 vezes seguidas,
então quer dizer que não podia fazer nada. E pá pá pá, tem que esperar, não é
mesmo?
Mas era engraçado, gente, eu ficava - Meu Deus, vendo elas colocando as
mesmas músicas. Então era muito engraçado e o único meio de você se divertir
com música, esse era esse modo.
Leonardo Arouca: Isso, quando a Galeria Metrópole já não era mais aquele
Point de socialização, né?
Lili Vargas: Não, uma parte foi tudo para a Vieira sim.
Lili Vargas: Não, não, porque a família, na época, tinha problemas de família,
todas, todas, ninguém aceita, nossa ninguém aceitava. Nenhuma família queria
um gay. Um gay na família era uma coisa de outro mundo, era um pecado, então
todas se escondiam, claro, a mãe sabe, mãe é mãe, mas finge que não vê, não
quer ver. Então todas, todas as gays tinham problemas e então elas se
escondiam, tinham medo, elas ficavam retraídas, porque elas não podiam se
soltar, não podiam mostrar e falar que era gay, tá? Então não se falava. Então
tinha que vir, para a rua, o que tinha que fazer? Se encontrar no local onde todas
estavam ali juntas e se soltar.
Lili Vargas: Não, o Hi-Fi vem bem antes, nossa o Hi-Fi veio bem antes, foi a
primeira, o Hi-Fi foi a primeira.
Lili Vargas: É sim, existia o polo daqui, que seria no caso o Largo do Arouche,
São Luiz, Ipiranga e tinha o do lado de lá que era Hi-Fi, Nostro Mondo, que era
a parte chique, que aqui em baixo sempre foi a parte mais pobre, marginal. Mas
aqui fervia, era povão, é que nem na Vieira, não interessa, era aqui o babado.
Lá era chique, mas o negócio era aqui.
Lili Vargas: São aqueles homens mais velhos que gostam de garotos, então na
época, o nome era Franchona, entendeu. É um homem velho que gosta de
meninos.
Lili Vargas: Nossa senhora, muito, muito. A moda era essa, os velhos, tanto é,
o que eu to te contando, o que eu te narrei, essas voltas no Autorama, os que
estavam nos carros eram os frachonas, que estavam lá, porque seriam os mais
velhos, não era os rapazes novos que ficavam ali para pegar os novos, eram os
mais velhos que passavam e pegavam os garotinhos. Então o nome era
Franchona.
Leonardo Arouca: E as mesmas pessoas que frequentavam aquele espaço,
não frequentavam o Hi-Fi ou às vezes ou algumas pessoas frequentavam os
dois?
Lili Vargas: Isso, ali estava tudo infiltrado. Mas lá, Hi-Fi, Medieval, Nostro
Mondo, era um outro tipo de pessoa. As daqui podiam ir raramente, porque elas
não tinham condições, era outro nível, custo maior e o pessoal, mais assim, a
maneira de ser. Então por isso aqui era chamado a parte podre, a parte baixa,
desse lado de cá e lá era a parte mais chique, né. Então, tudo bem, era liberado,
você podia sair daqui e ir na Vieira, quem frequentava aquelas mais, podiam
entrar tranquilo, não tinha exceção, assim de chegar e não vai entrar. Sabiam
que era daqui de baixo, mas deixavam entrar, porque formalmente não tinha.
Mas o povo de lá, não vinha para cá, vinha raramente, quando vinha de carro,
que descia, para tomar um café no Jeca, por isso que o Jeca era famosíssimo.
As de lá vinham tomar café no Jeca. Tinham duas que gostavam demais, de
coisas mais baixas, aí elas vinham aqui procurar, sabe?
Leonardo Arouca: Acabava sendo um ponto que unia, né? Esses dois lados.
Lili Vargas: Então não tinha, não é que, né, "lá não pode vir para cá e daqui não
pode ir para lá..." Não, nada haver, nem pensar nisso. Quer dizer não é na hora
que chegava era bem recebido, a Edna que sempre vinha e tudo bem. Mas não
era a união que era as debaixo, mesmo as que iam daqui para lá, não era a
mesma coisa, porque a união delas era outra, então elas não conseguiam entrar
naquele meio, mas era bem recebido, não tinha esse tipo de rivalidade.
Leonardo Arouca: Entendi... E o Jeca, o DiVocê e o Hi-Fi, duravam mais ou
menos até quando? Chegaram até o final da década de 1970.
Lili Vargas: Chegou, nossa chegou sim, tanto é que quando o Medieval abriu
em 1969, não em 1970 e pouco, 1970 pouco foi, o Jeca e Galeria Metrópole
ainda aestva em audiência, ainda tava fervendo, porque o pessoal às vezes
ficava lá em baixo até tarde e depois ia para o Medieval, para depois ir terminar
a noite no Medieval, então tinha, era uma coisa.
O Hi-Fi durou uns bons anos, quando era sozinho, tá, que era só ele. Então quem
reinava era o Hi-Fi, mas aí depois então veio as casas, Nostro Mondo, Medieval,
Corintho, aí pronto, o negócio já ficou mais... você tinha escolha, entendeu? Você
tinha escolha para fazer né.
Leonardo Arouca: E você lembra desse meio tempo todo, desde o começo da
Galeria Metrópole até o Medieval, de ter lido algum jornal com temática LGBT?
Leonardo Arouca: De ter lido alguma coisa, de circular alguma coisa, porque
isso era um pouco comum no Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro tinha umas
circulações.
Lili Vargas: Tinha, tinha, no Rio de Janeiro era mais liberado, era mais evoluído,
havia condições de conversas, de trocar ideia, de se expor, e escritas e
entendeu? Aqui não, aqui jamais! A única notícias de jornais que saia é "bando
de homossexuais, de gays", não é nem de gays que falavam, nem de
homossexuais, de pederastas, que saia nos jornais as fotos das meninas,
coitadas, e aqueles letreiros imenso, escrachando, era muita desgraça, porque
famílias e famílias vieram descobrir, muitas.
Leonardo Arouca: Ah, entendi, era mais nesse flagra, não uma coisa de
homossexuais escreverem, para encontrar outros homossexuais para conversar.
Lili Vargas: Não, não existia, nem pensar, aqui em São Paulo nem pensar. Tanto
é que eu sempre falo para as meninas, transgêneros, lá, que a gente vive entre
elas, as vezes elas perguntam, né? Que a gente tem que dar graças a deus,
agradecer mesmo, de termos leis, quem disse, quem diria que nós iríamos ter
leis, que nós íamos ter algum pequeno direito, qualquer pequeno direito, a gente
jamais, porque para nós era impossível. Não ia nunca acontecer isso, na nossa
época, sabe? Família, autoridades, nós nunca, nunca, sabe? A gente nunca vai
ter um dia, a gente nunca, porque a gente não tinha esperança. Então é uma
coisa muito gratificante, às vezes quando eu paro e fico analisando, às vezes eu
vejo um filme, o Hi-Fi, então, às vezes a gente até chora, porque certas coisas,
certas emoções da época vem, porque foi muito forte, sabe? (Choro)
Foi forte, então eu sempre falo para elas, a gente entregou tudo de bandeja,
então continuem carregando essa bandeja sem deixar cair o copo, porque é tão
fácil, hoje você pode se defender, hoje você pode ir ao Tribunal, você pode exigir
os seus direitos, você tem leis, você tem leis! Nós não tínhamos, nós éramos
caçados como animais.
Então nós, as sobreviventes, tá? As que conseguiram chegar até aqui, fomos
gratificadas e abençoadas por Deus, então que presente melhor que esse? De
tá aqui conversando com vocês, nessa época e dizendo coisas maravilhosas
que aconteciam, da cidadania que estão entregando as GLS, né? As meninas,
uma coisa que sabe, é gratificante e a gente tá vendo que a luta não foi em vão,
não tá sendo em vão.
Tá sendo em vão a maneira, o modo, de certas que estão chegando, as atitudes
dessas novas que estão chegando, sabe? Elas estão meio sem noção, sabe?
Não é por aí, então a gente tem que matar, infelizmente ainda hoje, tudo isso, as
leis, a proteção, o sindicato, tudo, tudo, esses movimentos todos, essas ONGS,
tudo que isso que a gente tem a gente ainda, tem que matar um leão por dia,
todo o dia a gente tem que se explicar para certas pessoas, certas famílias, ou
certas pessoas, que se julgam normais, que não é nada disso, sabe?
E que não é generalizado, que nós, trans e travestis, não é todo mundo igual,
sabe? E também, infelizmente, não são todas que tiveram uma felicidade como
muitas, como eu, outras, que tiveram a sua oportunidade de ter uma pilastra, de
ter uma família maravilhosa, de ter um estudo, sabe? E de pensar que no futuro,
seria complicado, se eu não tivesse um estudo, então o meu caso, eu vim
transformando aos poucos e vim realizando, porque eu não me sentia como
garoto, eu não me sentia, eu não me sentia bem, então hoje eu estou realizada,
hoje eu sou a Lili Vargas, sabe?
Então eu me sinto realizada porque a minha forma de pensar, era assim, eu
tenho que primeiro estudar, eu tenho que primeiro ter uma cultura, eu tenho que
primeiro aprender, saber as minhas leis, os meus direitos e saber lidar com a
sociedade. Porque lá na frente eu vou sofrer, que a idade chega, né? Então, o
que que eu fiz, eu procurei estudar, procurei ter um pouco de cultura, procurei
manter a minha família, manter a minha postura, eu não me desviei de caminho
nenhum, não fui para a droga, não fui para o roubo, não fui para lugar nenhum
fui para aquele caminho. Porque lá no fundo eu tinha luz e quis chegar e eu
cheguei.
Hoje em dia com 68 anos que eu cheguei a essa luz e estou nessa luz, estou
casada há 37 anos, com um homem maravilhoso, que me assumiu como garoto
na época e hoje eu sou Lili Vargas e vivemos felicíssimos, entendeu? E a gente
se ama muito e ele é uma pessoa que eu respeito, porque ele me viu nos
melhores e piores momentos, nós estivemos juntos nos altos, nos baixos e tudo
que nós temos hoje em dia, que nos move, sabe? O nosso luxo, o nosso conforto,
foi ambos lutando e ambos chegamos lá, então ele é uma pessoa maravilhosa,
que me ama, me trata bem, você entendeu? A gente tá sempre junto e familiar,
a gente tem almoços familiares, nós temos os nossos contatos, independente do
meu meio, que é uma outra sociedade, entendeu? Um outro tipo de pessoa.
Porque ele me respeita e sabe que eu sou trans, não há problema nenhum, então
eu sou feliz, eu sou muito feliz, eu quero que todo mundo seja feliz, a minha
felicidade é ver todo mundo, meus amigos que estão à minha volta, felizes e o
que eu puder fazer, sabe? Para que os meus amigos fiquem confortáveis, eu
faço.
Então por isso que eu me dou com todo mundo, não tenho problema, se eu tenho
eu não sei, se eu tenho inimigo eu não sei.
Lili Vargas: Mas, graças a Deus, onde eu vou, sabe? eu tenho todas como, as
mesmas, tenho todas iguais, são todos iguais, eu trato da mesma forma com a
humildade que eu aprendi na vida, porque a humildade a gente tem que ter e em
primeiro lugar, a humildade, não ser boba, ser humilde é ser boba é diferente,
tá? Então a gente ser humilde, não importa, seja quem for, então para mim todo
mundo é igual, você é igual a ela, é igual a aquele que tá aí, coitadinho, jogado
em um canto, é tudo igual, eu trato, eu dou a mão, eu dou atenção, entao eu nao
tenho, entao por isso, nesse meio gay, eu sou muito amada, muito, graças a
deus.
Eu peço a deus, sabe? que um dia, sabe? Eu nao sei, como eu posso agradecer
ele, de ter me dado os meus amigos, a você, ela e cada dia mais eu conheço
gente maravilhosa, que me trata bem, que me respeita e que me faz eu me sentir
gente, porque eu to aqui com vocês, sabe? Eu to aqui de pé, nesse salto, por
vocês e quero que vocês, sabe? Cheguem a luz, que vocês já estão na luz, mas
quero que vocês cada dia mais brilhe, porque se vocês brilham, eu vou brilhar,
então isso para mim é muito importante, então a minha vida é vocês! Não canso
de falar e eu vou morrer falando… são vocês.
O dia que não tiver vocês, o dia que eu não tiver aqui, para mim acabou tudo,
mas a minha parte eu acho que eu fiz, sabe? E o que eu posso fazer eu faço, o
que eu posso dar, conselho. Eu acho que conselho é uma palavra, sabe? Muito
assim, fora do contexto, eu acho que uma orientação, sabe? Uma conversa
pessoal. "Ah, olha eu, eu sei porque eu fui, eu passei", sabe? Então é isso, isso,
isso, não porque você tem que fazer, não! Porque você é você, a escolha é sua,
sabe? Não adianta eu chegar para você e falar - Você vai ser... Se não é não é,
depende de vocês, depende da gente, se a gente quer a gente consegue, não é
mesmo?
Se eu quiser partir para um lado esquerdo, um lado do mal, eu parto, mas eu to
querendo, não vai ser você, não vai ser ninguém que vai me levar, sabe? Já é
adulto, entendeu? Então o que acontece, o que eu posso orientar, é contar, falar,
sabe? Não é por aí, pensa bem o que você quer fazer, sabe? Não, tudo bem,
deixa eu falar, vocês tem que relevar, passa por cima, sabe? e pronto, é um meio
mais fácil de você cultivar uma raiva, cultivar, se eu nao gosto de uma pessoa,
eu não fico naquela "Eu nao gosto de fulano", ou vai lá fica te provocando, fica
falando, não, não gosto, não existe, não existe, eu vou procurar evitar de tá onde
tá a pessoa tá e de ver a pessoa, só, acabou, nao tem mais problema nenhum.
Agora o problema de muitas é assim, entendeu? Que a briga vai crescendo,
crescendo e não resolve nada, então se eu não gosto de você, não vou fazer
questão também de falar, de saber, e de falar para você que eu não gosto, não
vou fazer questão, sabe? De ficar, sabe, de ficar falando, nao, nao gosto, nao
gosto, você não existe para mim, acabou, entendeu? Você fica na tua, eu fico na
minha, você não me faz mal e eu não faço mal, é o único meio de você viver em
paz, com a gente mesmo e com os outros, não é? Então é o que eu faço, eu
sempre procuro, pedir sempre nas minhas orações, nos meus pedidos, para que,
sabe? Para que esses meninos e meninas, essa geração que tá vindo, para que
tome noção das coisas que Deus, sabe? Uma sabedoria para eles, para que não
fique nessa coisa que tá tendo, nessa agressão uma com a outra, um
desentendimento uma com a outra, uma desunião, sabe?
Leonardo Arouca: É só mais uma agora (risos) para a gente encerrar. Eu vou
fazer duas perguntas, será que ainda dá? Vamos ver! Duas perguntas. A
primeira é, você é da primeira geração, pelo menos a primeira geração, que a
gente conhece de pessoas trans, aqui na cidade de São Paulo, ou no Brasil. Já
que você tem 68 anos, quase 70 e você conhece ainda mais pessoas trans,
dessa geração que ainda estão vivas.
Lili Vargas: Conheço a Thais Azevedo que trabalha no CRD, com a Michelle,
com a Jacque Channel, conheço mais umas que estão em Florianópolis, que
estão nessa faixa de 68 anos, conheço a Terta, que é famosíssima, mas ela está
no exterior. São pessoas que estão bem e tão na ativa, sabe? Estão realizadas
e também da minha época, que passaram por tudo isso que eu passei, tem
muitas, muitas que estão bem e a gente ainda se comunica, sabe? Então, eu
quer dizer, a maior parte né, já se foi, mas a gente tem uma turminha, a Biá, que
era da minha época, mas a Biá não pegou uma parte da Ditadura, porque ela
veio depois, no convívio desse meio, já tava mais suave, né.
Leonardo Arouca: Eu falo isso porque você hoje é uma das poucas vozes que
ainda pode falar por essas pessoas, porque você viveu tudo.
Lili Vargas: Nossa, tudo, muita coisa, sabe? Que às vezes a gente sabe? A
gente relembra depois, mas é uma história, assim, se um dia eu fizer um relatório
de todos os dias, parar assim para gravar, acho que tem muita coisa que eu
preciso, sabe? Né, para falar, para mostrar para as pessoas saberem, porque foi
mesmo, uma época pesada, por isso que eu digo, sobreviventes! A gente é
sobreviventes, essa é a palavra certa, sobreviventes, porque quem sobrevive é
que tem que agradecer. Ao que eu falo todos os dias, eu agradeço, tô aqui! Quer
dizer, estar aqui, olha? Nessa estrutura, sabe? Nesse mundo de São Paulo,
nessa gente maravilhosa, sabe gente linda, assim, que tá entendendo,
compreendendo a gente, se preocupando em querer saber da história, sabe?
Poxa vida! Sabe? Então, quer dizer, você tem esperança, sabe? Como vocês,
as que vierem, vão também chegar na sua categoria, no seu patamar de
pensamento, de interesse, isso que é, isso que eu luto! Sabe? Se vocês existem,
vai existir mais.
Lili Vargas: E eu só tenho, e vocês não tem nada que agradecer, jamais, vocês
nunca tem que agradecer nada, jamais. Quem tem que agradecer somos nós,
eu, minhas amigas da época, nós agradecemos, assim, de coração, explodindo
de felicidade e de emoção, sabe? Eu fiz um trabalho, uma matéria no UOL, que
também foi uma coisa muito forte e eles, sabe? Igual vocês, um anjo, sabe?
Então, só tenho a agradecer, só isso.
Lili Vargas: Não, a gente, não, não nós não nos interessamos neste termo,
essas coisas de leitura, de era o que eu te falei, a única coisa que a gente via,
era as notícias das batidas policiais contra as gays, porque saía no jornal era
estampados, fazendo um texto, escrachando, jogavam você na foto do jornal e
e punha em letras garrafais, mas era esse tipo, de assim, de coluna, de noticiário,
de comentários, a gente não tinha acesso, a gente nem imaginava, sabe? A
gente sabia, veio saber depois, que nem o Pasquim, Pasquim, né? Esse sim,
que a gente depois, veio a propagar mesmo, mas a gente não sabia nada disso,
assim, não é que nem hoje, sabe? Que você sabe que tem, colunas, ou tem
comentários, coisas, então naquela época a gente não se interessava, né,
porque, porque não era propagado.
Lili Vargas: Não, não, é uma coisa que a gente era leigo, né? Não sabia sobre
isso, porque, nós na época não tínhamos muita cultura, sabe? A gente não tinha
cultura, não tinha interesse, de, mesmo assim, de unir coisas, de jornais e essas
coisas, de revistas, o negócio era, era sair, curtir, se encontrar e se soltar.
Antigamente fala se soltar, hoje em dia fala sair do armário, então a gente queria
se soltar (risos). Então não via a hora de chegar a noite ou o fim de semana,
para ir para aquele local e nossa, a gente se soltava, né, se realizava, mas era,
mas olha, com tudo com tudo, na época a gente era feliz, sabia? A gente era
feliz, com todo o problema, com toda a repressão, com toda a humilhação, com
toda a agressão, as famílias não aceitando, a rejeição, a gente era feliz. Porque
a gente quando se encontrava, a gente se realizava, sabe? Uma realizava a
outra, na conversa, em uma amizade, na sinceridade, no divertimento, sabe?
Nesse simples passeio, de descer e subir, Metrópole-Jeca, Metrópole-Jeca, era
para nós uma vitamina, porque se passava, porque toda semana a gente tinha
uma roupinha nova, era uma calcinha nova, uma camisetinha nova, um tênis
novo e aí, toda iam lá para mostrar (risos) E aquele jogo de "Aí, olha, sabe?", era
mais na simplicidade mesmo, não era naquela coisa maldosa, então a gente era
feliz por isso, sabe? Não tinha aquela coisa de agressão, de inveja, você vê, né,
então não tinha, não tinha, era uma coisa, entre aspas, meio pura, sabe? As
gays, eram estilo assim, puras, assim, inocentes, sem maldade, uma coisa que
vinha de dentro, então sabe? Era legal, então tem horas que a gente sente uma
saudade, sabe?
Aquele Jeca, que a gente ficava parada na porta do café e passava um
rebolando, sabe? Uma queria ser mais menina que a outra, era uma curtição.
Hoje eu me lembro e falo "Eu fui assim, caramba", aí outro dia, o menino soltou
até uma graça, era um rapaz, mas ele quis dar uma cutucada e eu falei - Meu
amor, não se preocupe não, eu já fui assim como você, tá? Então não esquenta
não.
Então ele quis tirar uma comigo, sabe? Porque eu era trans, aí eu falei - Não se
preocupe não, eu já fui como você, mas você não sabe como eu sou. Eu já fui
até você, você não veio até mim, é aquela coisa, eu conheço a juventude, mas
a juventude não conhece a velhice. Eu já fui jovem né, então eu sei como é,
sabe? A gente não pode falar, não pode julgar, sabe? A gente tem que
compreender, entender, procurar.
Uma coisa que eu aprendi muito na Europa, é o respeito. Eu piso no seu pé, lá
eu penso 5 vezes antes de falar "ô merda", cinco, porque se eu não pensasse 5
vezes, antes de 5 vezes, eu vou para o júri, eu sou processada no ato, aqui se
você esbarra em uma pessoa dentro do ônibus, ela só falta te cortar pescoço
fora e te jogar pela janela.
Então eu aprendi, lá é o respeito, o pessoal, sabe? Respeito, não importa, é
criancinha, é família em shopping, você passa, vai no meio deles, você entra, eu
nao senti nenhum problema, de xingar de falar "O João, o Mané" nunca, graças
a deus, nao que eu não goste do mano, porque o mano quem anda é durinha,
não é mesmo, e sozinha você procura sempre, mantendo sua, sua postura e
para que ficar na rua, fazendo certas coisas que não é para fazer. Ninguém é
obrigada a aturar você, os seus escândalos, nenhuma família, nenhum casal do
seu lado, vai, é obrigado a ver certas coisas, não é porque você é gay, ou é trans,
ou é que seja, que tem uma liberdade, sabe, que você vai fazer o que você quer,
em qualquer lugar, em qualquer hora, tudo tem seu limite, tudo tem seu lugar e
tudo tem a sua hora.
Lili Vargas: Porque não é todo mundo que aprova, a sua maneira, sua forma de
pensar.
Leonardo Arouca: Entendi. Então, a gente vai encerrar aqui, queria dizer muito
obrigado, por você, muito obrigado por ter compartilhado tudo isso com a gente,
é muito especial para a gente o seu depoimento, uma coisa muita rica, que eu
acho que é um dos poucos relatos que a gente pode ter desse período, com
tanta proximidade, com tanta vivência, com tanta vivacidade.
Lili Vargas: Tudo que eu falei é a pura verdade, não tem nada a menos, nada a
mais, tem muito mais! Que eu, infelizmente, não dá para falar.
Leonardo Arouca: A gente vai conversar, porque eu quero ver muitas coisas.
Lili Vargas: Mas eu acho assim, eu acho que, tudo isso, vocês, que estão
lidando com o presente, vocês que me dão o presente todos os dias, por isso,
esse carinho, por esse acolhimento, por esse amor, puro que você, vocês aqui,
lá, me transmitem e eu sei que é profundo. Então, sabe? Eu sou feliz, eu sou
feliz, sabe? Porque, sabe? Se eu não for feliz, tudo que eu tenho são vocês,
então eu não sei o que é a felicidade e quem tem que agradecer aqui, continuo
falando, vou continuar falando, quem tem que agradecer, somos nós, eu, esse
pessoal, sabe? Venha também um dia participar, tá? Que nós é que
agradecemos, sabe? Porque vocês é que estão, mostrando o que ninguém
mostrou, o que ninguém mostrava, então vocês estão fazendo, o que todo
mundo quer, sabe? Que todo mundo conheça, que saiba a verdade e que não é
isso, o que o pessoal às vezes pensa, certas pessoas, sabe? Então sempre a
gente tá aqui para falar, para se comunicar, para mostrar, enquanto a gente tiver
de pé, a gente tá mostrando que a realidade é essa.
A gente tem que ir em frente, ter postura, respeitar o próximo, ser humilde e
procurar unir as pessoas, mesmo que seja um pouco difícil. Então a gente tá
fazendo isso e eu por aqui, no meio, enquanto puder tá aqui, eu to, procurando
jogar aquele laço, para que todo mundo entre, vendo todo mundo da mesma
forma.
Mas é muito bom, eu agradeço muito!
Lili Vargas: Isso para mim é muito gratificante, acho que é, são muitos anos de
vida que eu to respirando, sabe? É muitos anos de vida.
Lili Vargas: Eu nem sei, nem tenho mais o que falar, porque não tem mais o que
falar, mas o que tá aqui dentro, sabe? Você deve saber o que tá aqui dentro, é
essa a verdade.
ANEXO 8 - ENTREVISTA JAQUELINE CHANEL
L: Começou a gravar.
Bom Jaque, primeiramente é um imenso prazer poder conversar com você.
Acho que eu te conheci uma primeira vez com a Lili Vargas, em um evento, se
eu não me engano e depois disso você me deu um cartão, mas a gente nunca
se conversou. Então acho que essa é uma oportunidade muito boa para eu poder
te conhecer. Eu conheço um pouco dos seus projetos, do Sephora, falei com
pessoal mandato da Érica Malunguinho, então eu tô um pouco por dentro das
coisas que você faz e queria muito poder te entrevistar para esse inventário né.
Te passando assim por cima, esse é um inventário participativo dos lugares de
memória LGBT em São Paulo, para o meu TCC na PUC-SP, mas a ideia é que
esse inventário também se torne, no futuro, um programa do Museu da
Diversidade Sexual.
Eu decidi criar esse instrumento do inventário, por que é nitido que
principalmente os LGBTs da minha idade não tem referências dos lugares do
passado e sem essa referência a gente acaba ficando sem memória, a gente
acaba ficando sem história e a gente acha que tudo aconteceu sempre no
presente, então a ideia desse inventário é poder retomar esses lugares do
passado para que as pessoas de hoje consigam acessar esses lugares e
consigam se identificar com eles também.
Então eu queria saber a princípio, se você está de acordo com a gravação, de
prestar essa entrevista para esse inventário. É para uma pós-graduação em
Museologia, Cultura e Educação da PUC-SP e o projeto é um inventário
participativo dos lugares de memória LGBT de São Paulo e queria saber a
princípio se você está de acordo com a gravação?
J: Ok, bem, meu nome social é Jaqueline Chanel, mais conhecida como o
Jacque Chanel, o meu nome de registro foi/é, ainda, eu ainda não consegui, não
me dediquei a mudar o nome, meu nome de registro geral é Ricardo Lopes Góes,
eu sou de Belém do Pará e eu tenho 56 anos de idade, eu vou fazer 57 dia 20
de dezembro, tá pertinho.
J: Sim, bem a minha infância foi meio difícil, eu me lembro quando eu tinha 5
anos, eu tinha tesão pelo pé do meu pai, eu queria muito, muito, tá do lado do
meu pai, porque eu sentia maior tesão no pé do meu pai, quer dizer quando eu
era criança não era exatamente um tesão, mas era algo parecido. Só que como
eu era criança eu não sabia o que que era, mas eu me lembro que a minha
referência naquela fase, era isso e eu gostava muito de me deitar com a cabeça
no pé do meu pai.
E depois fui crescendo e aí já passou para a fase da escola, e eu uma criança
afeminada, então eu sempre chamava muita atenção nos lugares e na escola
não era diferente. Os Meninos, eu me lembro dos meninos mexendo comigo,
passando a mão no meu bumbum, os meninos mostravam o peru para mim, era
uma coisa assim fora do comum. Os meninos pegavam aqueles calendários
pequenos, eu não sei se você conheceu? Aqueles que tinham foto de mulher
pelada naquela época, eles pegavam aqueles calendários e ficavam esfregando
no piu-piu deles, na minha frente, para que eu visse né, era alguma coisa assim,
quando eu tinha mais ou menos sete anos de idade, mas eu não sei, eu acho
que eu era muito criança e aquilo não me atraia, não me chamava atenção.
E aí com o passar dos tempos, eu fui percebendo uma coisa, que eles tinham
desejos diferentes dos meus, que eles gostavam de fazer essas coisas e eu não
gostava, eu sentia vergonha e outra coisa é que eles. Tipo, transavam entre si,
ou buscavam as meninas para transar, mas eu não tinha o menor tesão naquilo,
aquilo não me chamava atenção e eu não me identificava com eles e nem
exatamente com as meninas. Mas eles percebiam que eu era uma criança
diferente, que eu era afeminada.
E daí já parte, para, nos meus lances de memória, no seguinte lance, lá pelos
meus 12, 13 anos, eu já tendo, assim, uma certa atração pelos meninos mas eu
não sabia exatamente o que era aquilo. E eu me lembro, de eu falando para
minha irmã, que a minha irmã era lésbica, então a minha irmã eu acho que já
tinha tido já, mais oportunidade de se jogar mesmo nas aventuras com as outras
crianças, com os meninos, com as meninas e eu não tive experiência. Mas eu
chamava muita atenção, por ser efeminada.
Então aos 13 anos a minha mãe me jogou na igreja, me entregou na igreja, pediu
para o pastor terminar de me criar com medo do que, tipo assim, do que eu
viesse a sofrer, com o que eu viesse a passar, com as outras crianças, com a
vizinhança. Então ela teve muito medo e me entregou para o pastor terminar de
me criar. E daí pronto, daí sufocou ainda mais essa questão sexual em mim e eu
fiquei até os 19 anos na igreja, sem ter nenhum contato sexual com ninguém, a
minha vida era realmente dentro da igreja. Eu saia da igreja somente para
estudar e voltava para igreja, eu morava na igreja, eu morava no quartinho dentro
da igreja, ele não me levou para casa dele, mas dentro da igreja ele cuidava de
mim, como um filho, como uma filha, mas ele nunca falou absolutamente nada
em relação a sexo, sexualidade e alguma coisa parecida comigo, nem mesmo
por causa dos meus trejeitos, nem mesmo por causa do meu comportamento,
ele nunca falou absolutamente nada e sempre me criou.
Me deu as condições para eu estudar e eu estudei até os 19 anos, quando ele
foi assassinado, então quando ele foi assassinado, aí eu entrei em parafuso.
Porque ele era a minha família, ele era minha referência, eu não tinha mais a
referência da família. Então quando eu saí, eu fui bater imediatamente na porta
da minha família, que queria voltar para casa. Aí eles deixaram voltar para casa,
né. Mas e aí eu fui, tendo certeza de que meu irmão era gay e minha irmã era
lésbica, entendeu?
Só que eles não sofriam dentro de casa. Quando eu voltei, eles continuavam
com aquela marcação em cima de mim, tipo, eu tinha um comportamento
efeminado que chamava muita atenção. Só que não era meu, não era não era
assim, eu forçando, era uma coisa natural minha e nunca foi forçado, mas isso
incomodava eles. Incomodou tanto que eles me colocaram para fora novamente,
sobre a alegação de que eu causava vergonha neles, que eles tinham vergonha
de mim e me colocaram para fora novamente.
E foi aí que eu fui morar sozinha, literalmente e aí eu comecei a trabalhar numa
multinacional de petróleo, eu já estava na faculdade e comecei a trabalhar numa
multinacional de petróleo. E depois de um certo tempo, depois de uns 5 anos,
mais ou menos menos, aí eu fui mandado embora. Teve uma redução de
quadros, aí eu resolvi vir para São Paulo, porque eu tive que parar a faculdade,
perdi meu marido que eu tinha na época, perdi a família mais uma vez, né, fui
expulsa de casa mais uma vez. Perdi o marido, perdi a faculdade aí eu falei: não
é muita perda, para uma pessoa só!
Eu vou me embora para São Paulo, só que eu coloquei isso na cabeça e não sai
logo, então eu tive ainda oportunidade de participar do projeto Rondon, que foi
um projeto assim que foi um divisor de águas na minha vida. Porque o projeto
Rondon confrontava os universitários, os participantes cada um com a sua
realidade e quando eu fui confrontada com a minha realidade que eu achava
difícil, eu vi que tinha outras pessoas que viveram em situações muito piores do
que a minha.
E aí aquilo me causou um choque de realidade e o bichinho da militância entrou
no sangue, porque eu comecei a me posicionar e um dos posicionamentos foi
justamente em relação a matança, que tinha em Belém da comunidade, que na
época se tratava como - gay, né. Então eram os gays eram as travestis, as
pessoas que mais eram assassinadas em Belém, era todo dia. Todo dia tinha 2,
3 - era um gay, duas travestis, era uma travesti, dois gays, mas era todo dia. Eu
digo - não é possível um negócio desse, ninguém aguenta negócio isso.
E aí eu comecei a me interessar pelo assunto, pelo tema, busquei algumas
informações e me passaram a informação de que o Luiz Mott, o antropólogo da
Bahia, o professor era referência. E tinha o grupo gay, que ele tinha fundado, o
GGB - Grupo Gay da Bahia. Pedi para ele as orientações através de cartas, que
antigamente era carta, pedi para ele algumas informações, ele me mandou as
informações e eu mandei imprimir 5.000 panfletos de uma carta a população,
carta aberta à população.
E foi assim com esses 5 mil panfletos que eu articulei o primeiro movimento gay
em Belém, então fui eu, a doida lá, que articulou o primeiro movimento em Belém
e justamente em função dessas mortes. Feito isso e eu tendo me resolvido nesse
período aí. Eu me resolvi, assumi a minha identidade, o que realmente era.
É nesse período também, que eu fui convidada para participar de um concurso,
que era de transformistas na época, então um amigo meu da faculdade me
convidou para participar desse concurso. E foi aí que eu descobri realmente a
minha identidade feminina, porque eu fui fazer um teste de maquiagem, para
esse concurso e quando o maquiador me maquiou… ele me maquiou de costa
para o espelho, quando ele acabou o trabalho dele, ele me virou de frente para
o espelho, aí eu percebia meus olhos a minha identidade. Aquele momento,
assim, foi de extrema importância para mim, entendeu? Eu tô tentando me
controlar, porque é emocionante é tão emocionante que dá vontade de chorar,
realmente, mas eu tô tentando me controlar. Então é muito forte, foi muito forte
descobrir isso, porque você, até você ser gay, tudo bem né? Eu tenho um
comportamento gay e você nem sabe exatamente, por que mas, foi por aí que
caminhou a coisa. E eu nunca tinha tido experiência sexual, a minha experiência
sexual foi tardia, então foi difícil para eu reconhecer a minha identidade. Foi difícil
para me reconhecer, tipo assim, quem eu era na realidade né.
E outra coisa que me impedia, era aquele período que eu fiquei dentro da igreja.
Porque era um período que eu fui criada achando que tudo é pecado, então tudo
na minha mente era pecado e eu tinha que me libertar daquilo também.
Então foi uma briga que gerou três tentativas de suicídio, a maior parte das
pessoas têm uma história de suicídio, principalmente nós, assim que somos de
mais idade. Porque era muito opressor o sistema todo, era muito opressor a
família, tudo era muito opressor. Então era inevitável naquela época, alguém não
não passar por essa história de tentar o suicídio porque a barra era muito grande,
se hoje ainda existem muitos suicídios, muitas tentativas de suicídio, imagina
naquela época? Foi um período muito difícil.
E aí passado isso e o movimento que eu criei em Belém chamou: MHB -
Movimento Homossexual de Belém e, passado essa fase assim e quando veio
as percas, aí eu digo - eu não tenho mais nada para fazer em Belém, eu vou me
embora. E foi aí que eu decidi vir embora, vendi algumas coisas que eu tinha, e
vim embora para São Paulo. Não conhecia ninguém, vim literalmente com a cara
e a coragem para São Paulo, só que tipo a minha busca na realidade, em vir me
embora para São Paulo, não era questão financeira, não era se dar bem, não
era profissional, a minha questão era ter um lugar onde eu não fosse tão
reprimida.
A referência que eu tinha de São Paulo, por ser a maior capital do país, por ser
uma cidade evoluída, era que eu nunca ia passar por alguma situação de
preconceito ou algo parecido. Então isso era minha busca, isso era minha
referência, só que aconteceu totalmente ao contrário, né.
Quando eu cheguei em São Paulo eu pude observar que as pessoas são muito
preconceituosas, ou eram preconceituosas em relação a mim. Então foi muito
difícil se estabelecer aqui, foi muito difícil conseguir o trabalho para o qual estava
preparada. Que eu já estava em outro nível em Belém, pelo menos eu me sentia
assim, como se eu tivesse em outro nível - nível superior, trabalhando em
multinacional, então essa era minha referência, era a referência que eu trazia.
Só que quando eu cheguei aqui, eu tive que ir, para não passar fome, eu tive
que ir trabalhar de auxiliar de cozinha, porque como eu não tinha uma reserva
de dinheiro, como eu não tinha referências aqui, não tinha ninguém conhecido,
eu tive que me virar. Aí eu vim morar numa pensão e tinha que trabalhar, então
nessa época, auxiliar de cozinha você via em tudo quanto era lugar. E aí eu
peguei um auxiliar de cozinha e depois de um mês, aí foi que eu comecei. Eu
peguei meu primeiro salário, aí que eu comecei a buscar outras coisas, aí foi que
eu consegui um trabalho na Beneficiência Portuguesa, no hospital, na
contabilidade.
E aí fui trabalhar lá, nesse hospital, com um mês todo mundo já sabia quem era
eu, todo mundo já me apontava e com um mês de trabalho o meu gerente me
chamou para me dizer que, se eu não mudasse o meu comportamento, o meu
jeito, a minha atitude, que eu seria dispensada. Aí nesse mesmo período
apareceu um concurso da antiga empresa TELESP, que tinha aqui em São
Paulo. Fiz o concurso para Telesp, fui aprovada e no dia da contratação, eu não
fui com maquiagem, eu não fui com cabelo solto, fui de boné e fui com uma roupa
masculina para eu poder ser contratada. Porque senão com certeza, eu não seria
contratada e saí de lá contatada, com crachá e tudo mais.
E aí a vida seguiu e nesse período eu tava naquela, numa denominação religiosa
muito grande, e estava frequentando os cultos, porque eu não aguentava ficar
sozinha em São Paulo e não ter ninguém e não ter uma referência, não ter nada
para fazer da vida. Eu senti a falta de Deus, senti a falta da família, muito embora
eles não tivessem sido aquela referência de família para mim, mas eu sentia a
falta deles.
E aí eu procurei uma determinada igreja, frequentei durante algum tempo e esse
durante algum tempo, eu articulei, junto com outros gays, outras lésbicas que
frequentavam dentro da igreja, era inevitável, né. Você ver uma pessoa igual a
você e você não procurar, né? Então aí eu fui procurando e fui fazendo, tipo um
grupinho, dentro da igreja e aí com pouco tempo, o pastor chamou a gente em
frente ao púlpito, chamou o grupo, porque o grupo não se largava mais e, aí ele
chamou o grupo na frente do púlpito e nos expulsou da igreja, simples assim.
Aquilo foi tão frustrante para mim foi tão decepcionante e aí eu digo - agora eu
quero viver algo novo, agora eu quero viver algo diferente. Ainda continuava na
empresa e eu quis conhecer a Avenida, eu quis conhecer de fato o que era viver
na Avenida, porque eu escutava muito falar, muito falar, mas eu nunca tinha tido
uma experiência. Então eu queria viver de fato a experiência de estar na Avenida
e eu fui para Avenida, só que eu fui para Avenida diferente né, eu fui para
Avenida com um crachá, de uma empresa multinacional né, onde eu trabalhava.
Então aquilo ali para mim, não era um trabalho exatamente, era mais um lazer,
mais conhecer o local, né, mas conhecer aquela vivência.
Então eu fui, aí eu tive experiências de Caminhão do Faustão, já ouviu falar
disso? O Caminhão do Faustão, que era um caminhão da polícia, que chegava
na Avenida e levava todas as meninas para delegacia, marcava o nome e
deixava elas presas até o dia seguinte, no dia seguinte eles soltavam elas às 7
horas da manhã. E eu passei diversas vezes por isso, por essa situação essa
referência, que eu tenho já dos anos 90, não foi antes, mas foi nos anos 90,
quando eu cheguei aqui em São Paulo. Quando eu cheguei aqui eu já tava com
28 anos.
Então essas foram as lembranças que eu trago desse tempo e passei também,
por diversas revistas que eles faziam na gente, no meu caso, quando eu
apresentava o crachá, aí eles me perguntavam se os meus chefes, se os meus
gerentes, se as pessoas com quem eu trabalhava sabiam disso? E eu dizia -
eles sabem sim, mas se você quiser, você pode me levar lá agora, pode me
confrontar com os meus chefes, com os meus gerentes que eles estão tudo lá.
Porque eu trabalhava em um posto, que era no centro, na Rua Sete de Abril,
perto da República e esse posto funcionava 24 horas, então ele tava o tempo
todo aberto, né. Como todo mundo me conhecia, então todo mundo poderia dar
referências minhas. E esses policiais, eles ficavam com tanta raiva, com tanta
revolta, que eu me lembro bem deles perguntando essas coisas com muita raiva
- e a droga tá aí?
E eu falava - Meu amor não uso droga, não cuido disso, eu tenho um trabalho,
meu trabalho me dá um bom um bom salário, então não preciso dessas coisas.
Eles ficavam muito indignados, né? Porque era totalmente o contrário daquelas
outras meninas, né, da vida. Então, eles ficaram com muita raiva, dessa situação.
Teve uma vez, que me colocaram na polícia, me colocaram na viatura e me
levaram para um lugar que eu não sei exatamente, qual que era, mas eu sei que
era algum lugar, tipo assim, um parque e que pelo jeito eles estavam
acostumados sempre a levar as meninas para aquele local, né? Para usar, para
sexo, para humilhar, para tentar fazer com que a pessoa desistisse daquela vida,
eles esfregavam a arma na nossa cara, na nossa cabeça, entendeu? Eu digo
assim, na nossa, porque eles me levaram sozinha nesse dia, mas eu acredito
que eles faziam sempre aquilo, com outras também, para que elas desistissem,
para que elas saíssem da rua, da avenida, né.
E então foram essas experiências, além das outras, de várias outras violações,
que eu passei assim, de não querer fazer o programa e as pessoas mesmo
assim puxar você para dentro do carro, empurravam você para dentro do carro,
levar você e tipo, já que você não consentiu, então foi um estupro, né? E nem
tão pouco eles te pagaram, ou às vezes eles até pagaram, mas jogaram assim
o dinheiro em cima de você, humilhando você, acabando com você, entre outras
várias situações, muito, muito desagradáveis, muito violentas, mas que eu posso
falar: eu vivi eu, eu experimentei isso, porque senão você não vive, você não
sabe de fato o que aconteceu e você não sabe o que acontecia, né, com a
comunidade naquela época.
Era muito comum também a gente estar na Avenida e ser agredida do nada, de
repente, se você não tivesse olhando para o lado, muito atenta, você de repente
era agredida, ou por alguém que passava no carro e jogava alguma coisa, ou
por alguém que tava andando, passava olhava, não gostava de você e partia
para cima de você, coisas assim desse tipo.
E em relação à militância, eu fui convidada para participar de fóruns, né, que
tinham muito atuantes na época, o Fórum de travestis e transexuais do
município e do estado, eram muito atuantes. Mas depois, o próprio estado foi
comprando, foi sufocando esses fóruns e os fóruns foram se enfraquecendo e
foram sumindo. Hoje, bem dizer, nós não temos atuação de fóruns, hoje nós
temos mais atuação de pessoas militantes independentes, independente de
fórum estadual ou municipal.
E tem muito mais participação de ONGs de travestis, que estão em ONGs, né,
como é o meu caso, eu tô hoje num coletivo, em determinado momento, eu
resolvi sair dessa militância e parti para atuar dentro do meu espaço. Que aí, eu
consegui me colocar dentro de um segmento do cristianismo, que é o evangelho
inclusivo, né. Comecei a atuar dentro de uma igreja inclusiva, a cerca de 10 anos
atrás, quando tive a oportunidade de conhecer o evangelho inclusivo. E eu
comecei a atuar dentro desse espaço, pela necessidade que eu sentia, assim,
que eu conheci a primeira igreja porque tinham cerca de 300 pessoas, gays e
lésbicas e só tinha duas travestis. Então achei muito injusto e eu pensei isso
comigo, eu preciso fazer alguma coisa, eu preciso mudar essa realidade, porque
eu tava acabando de conhecer era muito bom, era ótimo, era um espaço
maravilhoso, mas era para mim porque eu tava me incluindo, eu não eu não sou
o tipo de pessoa que eu fico esperando alguém me incluir. Eu estava no
Evangelho Inclusivo, então eu queria ser incluída de fato e eu me propus a isso.
Então como eu vi que não tinha representatividade na minha comunidade, então
eu comecei a liderar um movimento para isso dentro da igreja e graças a Deus,
a diretoria acabou aceitando e acabou me entregando um ministério próprio, para
que eu desenvolvesse atividades para travestis e transexuais. E assim poder
evangelizar e trazer meninas para dentro da igreja. E eu consegui fazer isso, eu
consegui levar cerca de 250 meninas para dentro da da igreja e foi com formato
diferente de reunião, com muita dedicação, eu peguei assim como uma missão
para mim, uma missão para minha vida, uma missão que Deus me deu. Então
juntou tudo aquilo, aquela experiência que eu tive de articular o MHB, juntou
aquela experiência que eu tive de participar do projeto Rondon e ser confrontada
com a minha realidade, juntou o fato de ter sido criada dentro do evangelho e de
ter tido uma boa criação em relação, em relação à educação, em relação à
palavra do evangelho, em relação a vivência minha dentro da igreja, né.
Porque na igreja, além das atividades que eu fazia, de limpar a igreja, de decorar
a igreja, de visitar as pessoas nos hospitais, de visitar as famílias de senhoras
que participavam da igreja, de fazer culto na casa delas. Então juntou tudo isso,
toda essa experiência que eu tive de vida. E eu trouxe agora para dentro do
Evangelho Inclusivo.
Porque, eu estava muito feliz de ter conhecido, de ter tido uma nova
oportunidade de viver com Deus. Só que de uma forma totalmente diferente.
Porque dentro do Evangelho Inclusivo, em tese, é para te acolher do jeito que
você é, do jeito que você está, para você ter uma nova oportunidade de viver um
amor muito maior com Deus. E esse evangelho, ele se confunde com o trabalho
que a militância faz, então é te acolher, é te incluir, agora não são políticas
públicas, mas são políticas cristãs dentro da igreja que você tem que requerer
para sua comunidade, eu passei a requerer para minha comunidade e também
passei a requerer para população de rua, para os nossos irmãos de rua, porque
eu vi, eu particularmente vejo essas pessoas como nossos irmãos.
E também tenho a seguinte visão, de que se Jesus voltasse hoje para terra, com
certeza ele estaria com essas pessoas, com os nossos irmãos de rua, com as
nossas irmãs de rua, com as nossas irmãs que estão na prosituição, que vivem
essa vida muito difícil e que muitas pessoas acham que é fácil, mas essas
pessoas eu escolhi para colher no meu ministério, no meu trabalho dentro da
igreja.
E é por essas pessoas que eu tenho comprometimento real com Deus e é com
essas pessoas que eu faço um trabalho, então a minha dedicação toda, passou
a ser para essas duas comunidades e a requerer espaços dentro dessa igreja.
Que se diz inclusiva, mas que não é, ela só tem a placa de inclusiva ou somente
é intitulada pelos seus líderes e religiosos, como se fosse inclusiva, mas ela não
é! Ela é, na realidade, elitista, ela é uma igreja de ostentação. Todas elas, que
são, que tem placas de inclusivas elas trazem o evangelho de ostentação e não
faz o trabalho social que precisa ser feito, o trabalho social que Jesus traz como
exemplo, na passagem dele pela terra. Ele deixou isso como exemplo, de
acolher as pessoas em vulnerabilidade social, o trabalho de Jesus, foi
basicamente, entregar o milagre na vida dessas pessoas. E a proposta do
Evangelho Inclusivo, na maior parte das igrejas não é essa, é o evangelho de
ostentação, é o evangelho de elite.
Então a minha proposta é a acolher, incluir a comunidade de travestis e
transexuais, trazendo o protagonismo para essa população e para essa
comunidade, porque é o recorte mais sensível da comunidade LGBT, queira ou
não queira essa é a realidade. Não é mimimi, é a mais pura realidade, então é
para esse pessoal que eu trago a Jesus e é para população de rua eu trago
Jesus. Resumindo é esse meu trabalho.
E agora na pandemia, quando tudo se fechou, eu me lembro bem que o meu
pastor Reverendo Cristiano ele disse para mim: - Você não vai para rua! Você é
grupo de risco! Você não vai para rua! Porque eu tenho comorbidades, eu tenho
hipertensão e tenho diabetes, então ele disse para mim: - Você não vai para rua,
a Prefeitura vai fazer tudo para essa população.
E eu digo quem foi que disse que a prefeitura faz tudo para a população? Não
faz quando tem que ser feito, imagina agora, você acha que vai fazer, quando
tudo fechou? E ele falou: - Não, a prefeitura vai fazer.
E eu falei - Tá bom.
No mesmo dia, no mesmo horário, eu segui o meu caminho, com um grupo que
eu já tinha marcado, para gente fazer a distribuição de marmitas e assim eu segui
a pandemia toda, até agora ainda tô conseguindo fazer, muito embora as
doações tenham caído muito, né. Mas eu ainda tô conseguindo fazer a entrega
de refeições e, eu entrego lá na Praça da Sé, ou no pátio do colégio, e também
entrego a porta do prédio onde eu tenho um restaurante. Então todo dia, no final
do dia, sempre sobra alguma comida, eu dou de 30 a 50 marmitas e todo dia,
uma vez durante a semana, eu levo de 300 a 500 marmitas, uma vez por
semana, então esse é o resumo aí, da minha da minha trajetória.
E no final daí, no final do período pior da pandemia, a minha igreja me consagrou
como a pastora, me chamou e me consagrou como pastora e me entregou um
ministério e, pediu para que eu escolhesse o nome, né. E eu escolhi o nome de
Primeira Igreja Trans ICM/Séforas, ICM é a igreja, tipo mãe minha, né, que me
deu todo suporte e Séforas, pelo projeto Séforas, que é na realidade um coletivo,
né, que eu criei, em função de ter saído do ministério. Então eu criei a ONG, quer
dizer, a ONG não, um coletivo que chama projeto Séforas e que tem o mesmo
objetivo da igreja, né. Só que a igreja é algo mais fechado e tal, mas a igreja
também, eu acredito que tem que abraçar as mesmas causas. Então agora tudo
virou uma coisa só, bendizer, projeto Séforas e igreja também Séforas.
Só que a igreja traz traz esse protagonismo, né, mas não é um local totalmente
aberto a participação de todas as pessoas, todas as outras comunidades são
muito bem-vindas, todas as pessoas que são excluídas são muito bem-vindas,
todas as pessoas que estão na vulnerabilidade e todas as pessoas afins, em
situação semelhante, todos são muito bem-vindos, inclusive os ricos, mas eu
acho difícil que eles compareçam, mas está aberto.
E agora nesse último período aí, teve muita repercussão, inclusive internacional
Euronews, repercutindo a igreja trans, repercutindo essa primeira igreja Trans.
E teve algumas repercussões, também no YouTube dizendo que os nossos
cultos são satânicos e eu não me assusto, porque eu aprendi assim né, dentro
do Evangelho fundamentalistas, dentro do Evangelho tradicional. E qualquer
coisa, qualquer coisa diferente do tradicional que eles apresentam, eles
demonizam, eles satanizam.
Então eu particularmente falo por mim, falo pela minha igreja, que na minha
igreja eu só uso a Bíblia e eu só uso os versículos que estão dentro da Bíblia, eu
trago basicamente o que eu aprendi dentro da igreja fundamentalista. É o mesmo
Deus, só quer um Deus colocado de uma forma diferente da deles, eles estão
muito preocupados em demonizar as pessoas, em demonizar qualquer situação
e eu pelo contrário. Eu quero colocar amor em todas as situações, eu quero
colocar a graça de Deus em todas as situações, porque essa é a melhor parte
de Deus, essa é a parte que eles precisam conhecer de fato. Deixarmos de ser
religiosos hipócritas e partir para viver efetivamente a palavra e Jesus só manda
acolher e, Jesus só é amor, Jesus morreu na cruz por todos nós.
Ele não morreu na cruz somente por héteros, ele não morreu na cruz somente
por religiosos hipócritas, ele não morreu na cruz para para alguns, ou para alguns
ricos e poderosos, ele morreu na cruz por todos nós e esse é o meu lema de
vida, entregar amor para minha comunidade, entregar amor para todas, para
todas as pessoas que buscam por Deus e que precisam de Deus.
Foi isso que eu aprendi ao longo da minha vida, eu fui preparada para isso pela
vida. Então essa experiência que eu tenho que trocar com você e deixar, esse é
o meu, como dizem o meu legado. Esse é o meu legado, enquanto uma mulher
travesti e transexual. Eu digo que eu sou as duas coisas travesti para manter a
história viva e memória viva daquelas que antecederam a minha história e
transexual é o que o meu corpo é na realidade, então é essa história.
L: Opa, tá me ouvindo agora? não? Eita, será que é o seu celular? Não tá
funcionando. Eu vou sair e entrar de novo.
J: Oi?
L: Eu posso te mandar pelo Whats app, Jacque, você acha que funciona?
J: Você não quer que eu tente sair e entrar novamente? Porque as vezes volta
o som.
L: Jacque, então, eu queria que você falasse um pouco mais, se possível, sobre
os lugares de sociabilidade, que você frequentou comigo desde que você chegou
em São Paulo, né.
Então, se possível falar o nome das ruas, que você trabalhou, que você
frequentou, se possível falar o nome das igrejas. Caso você tenha frequentado
festas, falar o nome das festas, também, todas as informações seriam muito
importantes para compor esse inventário. Ficaria muito feliz se você falasse um
pouco delas também?
J: Vamos lá!
J: Não, essa Cris Negão, também era uma referência da época, mas era outra
que era dona da boate.
L: Ah, tá.
J: Agora não me lembro o nome dela, mas ela era bem famosa da época e ela
também era violenta, mas ela era de outra forma e eu fui algumas vezes na boate
dela, mas eu não gostava muito de ambiente. Isso Andréa de Maio! Eu não
gostava de ir na boate, porque tinha muito cafetão, né, quando eles vinham,
quando eles viram que a travesti era bonita ou a trans era bonita, eles se
aproximavam para querer envolver a pessoa, né, para o esquema dele. Então,
eu não gostava muito de frequentar lugares fechados, eu preferia os lugares
abertos, muito embora a gente tivesse muito mais exposta a violência. Mas como
eu sempre fugia da violência, então, eu conseguia sobreviver, viver melhor na
Avenida do que em lugares fechados, lugar fechado eu era muito visada, eu era
muito visada porque eu sou alta, né, eu sou grande, então eu era muito visada.
E olha que naquela época não usava o cabelo loiro, né. Depois eu passei a usar
o cabelo bem loiro e agora eu voltei de novo a escurecer, mas eu já usei o cabelo
muito loiro, eu gostava do cabelo muito loiro, então eu alta e com cabelo muito
loiro, eu chamava muita atenção.
L: Jacque, foi muito bom ouvir a primeira e a segunda parte, eu realmente estou
muito feliz com essa entrevista. É eu acho que para finalizar, eu queria saber se
você quer indicar alguém, também, alguém importante para falar, alguém que
possa contar também algumas histórias, né, para esse inventário. E queria
agradecer demais, depois eu vou te mandar uma mensagem agradecendo
também, mas queria agradecer demais, por todas as informações, por todo esse
depoimento que foi tão rico para mim assim. Foi muito importante te ouvir,
mesmo, muito obrigado!
L: Te mandei, Jacque.
J: Que bom! Muito bom saber, fico muito feliz, de contribuir de alguma forma e
deixar essa história aí, porque outras pessoas talvez venham, venham ter como
uma referência, né, para suas vidas. Porque eu na minha na minha vida, eu
precisei de muitas referências para construir e uma das referências, muito
importantes assim na minha vida, foi a finada Rogéria, eu logo no meu início eu
tive um contato com ela, né. Então foi muito importante para mim, outra pessoa
muito importante para mim foi a Ney, que foi a costureira do meu primeiro vestido,
do vestido que eu usei no concurso de transformistas em Belém.
Eu não sei se você tem tempo ainda?
L: Tenho.
Legendas
Fátima Tassinari: (F)
Leonardo Arouca: (L)
L: Tá gravando, pronto.
Só para passar algumas questões de praxe, eu já te falei anteriormente. Essa
entrevista é para um trabalho de TCC na pós-graduação em Museologia e queria
saber a princípio, se você concorda com a gravação?
L: Perfeito Fátima e quando você chega em São Paulo, você vem para São Paulo
para estudar? Para trabalhar? Como acontece?
F: Não, eu ainda não tinha transado com nenhuma uma mulher. E foi aqui em
São Paulo, foi uma amiga, super querida na faculdade, que um dia perguntou se
eu era - Entendida. E eu perguntei para ela - Entendida em quê? E aí depois ela
falou - vamos ali conversar. E a gente tava dentro da aula e saímos e ela foi me
explicar o que era. E eu comecei a rir.
Mas eu, durante a adolescência, eu tinha namorados, não tinha um despertar,
assim, tinha algumas meninas, que mais elas olhavam, eu não tinha um
despertar. Mas aí depois sim, aí começou. E eu tive uma primeira namorada que
chamava Leila e depois foi um monte de namoradas que eu fui tendo.
Mas ainda até os 35 anos eu era bisexual, depois fui ficando mais só com
mulheres mesmo, hoje em dia não tenho olhar para homem, realmente, sei lá,
parece que é uma coisa que passa, né. Não sei te explicar, mas eu nunca tive
também, sexualmente tudo bem para mim, eu vejo que muita gente fala que não
consegue. Para mim, não, não tive nunca problema de ter um relacionamento
com um homem, acho que é bem natural assim.
Mas vai indo, fica uma química, para mim pelo menos, ficou uma química mais
focada. Mas eu também nunca tive vontade de fazer transição, nunca tive. Eu
gosto dessa coisa da outra mulher, mesmo, assim sabe, ser uma mulher e de ter
outra mulher. Não tenho essa vontade e super compreendo, tenho um monte de
amigas trans mas não tenho a vontade de transicionar.
L: Entendo, compreendo.
Fátima e quando você começa a sair para lugares, em que você começa
encontrar outras lésbicas? ou outros gays, ou outras pessoas trans? Como se
dá esse processo? Quais são esses lugares? Queria que você descrevesse um
pouco.
F: Ah, assim, São Paulo tinha poucos lugares. Era, veja que em 1978, eu tinha
20 anos, foi de 1978 a 1985, que foi uma coisa mais abundante aqui em São
Paulo. Acho que o primeiro lugar de mulheres que eu fui chamava Bug House,
que era uma casa na Augusta e foi lá que eu dei meu primeiro beijo na boca, na
Eleila. Depois eu frequentei muito o Espaço Off, gostava muito, que era do Celso
Curi gostava muito, adorava ir no Off, era o meu lugar preferido, mas tinha um
lugar que chamava Feitiço também, uma época que era em Moema, que foi
muito bacana essa casa. Era uma casa de mulheres também, que tinha uma
figura central que chamava Marta e foi acho que uma casa mais interessante. O
Bug era mais assim, mais farra. O Feitiço já tinha uma coisa de música, era mais
Cult, que mais?
Eu não ia muito em Ferro's Bar, mas fui, fazia parte. Mas não era um lugar. Eu
não gosto de beber, então eu não bebo! Então essa vida noturna assim, essa
coisa, o ambiente mais bar, bar, álcool, álcool… eu acabo não fazendo.
Mas eu tinha um amigo, que a gente estudou na faculdade, e eu tinha uma
mobilete. Ele era gay e aí ele ia atrás da mobilete e a gente ia de bar em bar em
São Paulo, de sexta e sábado e a gente ficava 15 minutos em cada lugar e ia
conferindo a cena - saindo São Paulo afora de mobilete, mas era divertido,
porque a gente dava uma geral. Passava pela Rua Augusta e passava pelas
casas noturnas mais de gays, sai bastante. Mas também eu sempre gostei muito
de arte e cultura, então sempre tinha muito programa cultural.
Mas eu não entrei na cena de militância aqui, não conheci nada nessa época, eu
só fui para uma relação com a militância em 1999, é bem mais tarde.
L: Entendi, e esses três primeiros locais que você comentou. Você poderia
descrever eles um pouquinho para mim? Porque eu fiz uma entrevista
recentemente com o Ubirajara e ele comentou sobre alguns locais que não eram
necessariamente gays, mas eram autorizados que gays frequentassem. Esses
locais também eram assim?
F: Não, não, esses três lugares que eu citei eram gays, o Bug House era mais
de mulheres, porque sempre tem menos, né? Sempre os espaços dedicados às
lésbicas são em menores quantidades e todos os espaços, em geral que tem
lésbicas, têm gays. Todos os espaços de lésbicas tem gays, mas não
necessariamente os espaços de gays têm lésbicas, às vezes tem só gay, né?
Isso sempre foi assim.
Fora do Brasil também é assim, é muito parecido. Você vai em Paris é bem igual,
você vai no Canadá é igual, você vai em Londres é igual, às cenas se repetem
nos tempos. Agora faz tempo que eu não vou, mas durante esses períodos
quando você vai lá fora, você vê uma coisa sempre igual.
O Bug House era uma coisa, mais de cena lésbica, mais no centro de São Paulo,
então comparativamente, é o público desse movimento que hoje fica na rua,
sabe ali na redondeza da Rua Itu e Rua Jaú? Que tem aquela cena, também
bastante lésbica e gay, era um tipo de público mais semelhante, um público mais
novo, jovem e mais de classe C, né, do que de classe B ou A. O Off já misturava
mais, tinha uma coisa também, de uma classe A e B, misturava, mas eu acho
que que era também uma tendência mais elitista um pouco. E o feitiço, ele era
de mulheres, ele não era tão jovem quanto o Bug House e era de eu acho que,
de pessoas mais universitárias também, uma coisa mais o público também mais
parecido com o OFF, mas mais feminino. Era mais como fosse o Farol, sabe
depois? Não era uma coisa que era autorizado como é o caso do Rits como é o
caso do Mestiço, que jamais conseguirão a chancela, né? Eu já participei disso,
eles não querem ter uma chancela, eles são Gay Friendly, mas eles não querem
ter essas chancelas, estão lá para tudo como diz a Ina, que é dona do Mestiço,
é mestiço é misturada, é diverso, ela não quer caracterizar, esses três espaços
que eu citei eles eram realmente gays.
L:1980, 1990, perfeito! E além desses espaços Fátima, tinha outros assim que
não necessariamente você era uma assídua frequentadora, mas que você
lembra?
L: É, até porque era uma relação de trabalho, também, né? É diferente né.
F: Ah, sim, todos né, todos. Show de Bethânia, show de Gal, que andou não
andou, mas ia, em tudo né. A gente no Rio, né, porque a gente tinha também
uma entrada mais facilitada, aqui em São Paulo também, essa cena era bastante
comum e porque acontecia, né, Léo, uma coisa meio espontânea assim, né?
Era tipo, sei lá, tem Zélia Duncan, quem mais? Tudo. E depois no Brasil a gente
tem uma coisa de muitas lésbicas serem cantoras, né? Isso é uma coisa muito,
Ana Carolina. Eu confesso que eu não gosto muito de Ana Carolina, assim, não
sei explicar porque. Eu fui acho que em um show dela, mas não tenho interesse
pelo trabalho dela.
Assim eu sempre gostei de música popular e de todo tipo de música, então para
mim também não era uma questão identitária. Eu nunca consumi música por
conta de ser LGBT. Tem alguma identificação, mas não tem uma escolha por aí.
O que escolho para mim é uma coisa do ouvido, sabe? Igual comida pelo
paladar, música ouviu gostou, igual você gosta de uma pessoa quimicamente.
Tudo para mim funciona na percepção, no sentido.
Lógico que a gente para, para escutar, mas assim como eu paro para escutar o
Chico Chico, porque é filho da Cássia, porque eu vi ele na barriga dela, mas
porque a gente tem aí, os afetos, mas não é por essa ligação.
Assim agora, em arte também né, em qualquer tipo de arte. Teve uma época até
que eu falava com Franco Reinaudo, que isso nós deveríamos estudar. Teve um
dia até que eu conversei sobre isso com o Emanuel Araujo - Emanuel será que
tem uma relação? Assim porque para mim, acho que quando a gente tem uma
determinação sexual, você tem uma uma ligação. Eu acho que você tem uma
matriz que se altera, psicologicamente falando. Eu não sou uma estudiosa de
Psicologia, nem nada, mas eu acredito nisso, que você tem uma matriz e isso
faz com que haja uma diferença.
Então se você olhar e colocar tipo, como se fosse uma régua, uma medição e
nível de criatividade, quanto mais rompido, mais criativo, que é o caso das
transexuais. Vamos pensar no dicionário Aurélia da Língua Afiada? Ah esqueci
o nome dele, o que fez o dicionário. Ele falou que a riqueza era principalmente
os termos trazidos das Transexuais? Começa ali, vamos falar a frase, a palavra
mais conhecida, Mona, né? Você vê, você vai no Museu da Língua Portuguesa
e isso é extraído e é colocado, claramente, que vem do grupo e se você olhar,
quase que praticamente são as transexuais em primeiro lugar, né?
Eu diria que as lésbicas que contribuem menos porque eu acho que no final das
contas rompe menos, sei lá, talvez uma coisa sexualmente falando. Mas acho
que a transição, faz com que a pessoa tenha uma matriz um pouco mais rica.
Então tenham uma percepção diferente, sabe? Porque ela tem uma matriz
diferente, então ela enxerga diferente, não é criatividade, sabe? É olhar.
É igual quando você trabalha em Marketing. O olho, você vê na medida em que
o seu olho é preparado, então depois que você vê uma marca, se você a
conhece, digamos da Coca-Cola, você vê ela de longe, você reconhece mesmo
que ela não esteja mais escrita Coca-Cola e daí eu acho que é muito muito por
aí.
F: Eu acho que tem uma coisa, quando você vai em Artes Plásticas, é muito
comum que você pegue um grupo, com trabalhos muito bonitos, trabalhos de
literatura. Tem tudo, né. Então acho que a música, a literatura, as artes plásticas,
o cinema. Então, eu gosto de artes, eu consumo porque gosto, não porque eu
faço parte desse segmento.
Agora, claro, tem o Festival Mix Brasil, a gente vai lá, vai prestar atenção, ver
o que está acontecendo, nesse sentido sim. Mas é porque tem uma coisa, que
tem uma propriedade. Igual tem lá, um evento, quando a Laura Bacellar fazia e
você vai, você vai lá ver o que tem, mas não necessariamente, eu tenho vontade
de consumir, por exemplo. Muita coisa de literatura eu não tenho vontade de
consumir, sou bem assumida, já fui muito criticada por isso, mas tem coisas que
eu não tenho vontade de consumir.
Acho que em Literatura, uma lésbica que eu gosto bastante… Assim tem
pessoas que escrevem, mas ficam escrevendo a própria história, mas não tem
nada que acrescenta é tudo igual. Eu gosto de comer muitas coisas, mas comida
mal feita eu não gosto, de literatura mal feita eu não gosto, de música mal feita
eu não gosto.
Aí uma vez eu falei para Cássia - Ah, não, eu não entendo de música. Aí ela
começou perguntar e foi me reparando, né, assim, aí ela falou assim - para com
isso, né, você só gosta do que é bom. Não é que você precisa entender, né, é a
tua percepção, então tem muita coisa, que não dá por exemplo.
A Milly Lacombe, não sei se você conhece, que é uma jornalista e ela tem alguns
livros, não sei, o jeito dela escrever é muito bacana, é muito simplista, sabe?
Então ela fala da homosexualidade feminina de uma forma muito leve, sabe? É
aquilo, é aquilo só. Você está ali, você está namorando e a pessoa que você
ama está ali escovando os dentes e de repente você se pega olhando para ela,
só está ali escovando os dentes, então ela coloca de uma forma tão simples.
Agora aquela coisa, que é cheia… E por mais que eu saiba que tem um caminho
difícil, que para muitas pessoas tem. Eu não gosto muito de conviver com a
vitimização, é meio que uma personalidade que eu tenho e tudo bem. A gente
precisa, precisa passar por elas, mas eu prefiro fazer coisas que rompam, sem
ter que lidar muito com essa relação direta da vitimização, essa coisa dramática.
Ah bicho, se aceita, fica tranquila, fica tranquilo com isso, vamos fazer coisas
legais para mudar. Mas também, sei lá, sabe? Pode ser tranquilo, eu acho.
L: Eu concordo, tem gente que acaba vivendo, adota isso para si. Vive essa
vitimização para sempre.
F: É assim, tem que brigar, tem que se auto-afirmar demais, né? Aí eu fico
sempre olhando pensando, bom então, será que tá bem aceito internamente, aí
por dentro? As outras coisas, a gente tem né Leonardo, eu tô com 63 anos, a
gente vai vivendo. Quer dizer, todo mundo tem suas particularidades, suas
experiências infantis, suas marcas emocionais. Todo mundo tem peteca para
jogar, mas não por isso, né.
L: Sim.
F: Eu acho também que a sociedade é muito burra, né? Vamos falar, burra,
cretina. Porque nós estamos falando de LGBT, né. Mas até quando a questão
do racismo? Que no mínimo, até quando a questão da mulher? A gente tá
falando de lesbianismo, mas e a mulher? Então acho que, sei lá, é difícil nesse
sentido, claro, é muita ignorância é muita.
Não sei o que que as pessoas pensam, eu fico olhando as vezes assim, quando
a pessoa fica também expressando muito preconceito. O que ela pensa, que
passa na minha cabeça, né? Que diferença tem para ela, eu me deitar com uma
mulher? Ela não deita comigo, não tem que conviver com isso, porque que choca
ela me ver beijar outra mulher? Eu vejo ela beijar às vezes um homem tão feio,
barbudo, você é barbudo, mas sabe? Tem umas coisas. O que é vulgar, né? É
condicionamento, então isso aí na verdade, a gente precisa ajudar a sociedade
a romper, mas em todos os níveis.
E a gente vive agora um momento, ainda em que. Eu nunca imaginei que fosse
passar por uma questão política tão desastrosa. Imagina, eu sou paisagista e
fico vendo queimar árvores toda hora. Por que isso? O que que tá acontecendo,
por que tem raiva de árvore? Então a gente voltou para trás, tudo. Assim e sem
árvores não tem solução.
Agora deixou de ser o foco, não é vamos trabalhar em prol do LGBT, vamos
trabalhar em prol da árvore, porque é em prol da vida. Porque no momento em
que nós vivemos, pós-pandemia, agora, além disso tudo, ainda a gente tem uma
fome, uma pobreza, uma miséria, decorrente da miséria humana. Que isso não
é só no Brasil, a gente está vivendo isso, você vai vendo coisas, a gente tem
essa questão do morador de rua, no mundo inteiro, a gente tem uma explosão
da miséria. O que é a miséria? O que que tá sendo exposto, que questionamento
é esse, que a gente não está fazendo? E por que que a gente não se articula de
verdade? Eu falo porque eu me coloco nisso.
Eu hoje olhei, ajudei várias pessoas ao longo de onde eu passo, que eu ponho
coisas no meu carro, vou pondo, mas eu posso ajudar. Aí comecei a pensar no
meio da rua hoje, se a pessoa tá comendo tudo bem, mas ela consegue morar?
Quem tá cuidando disso? Onde essa pessoa vai ao banheiro? Como é que ela
toma banho? Quer dizer, que tempo, que coisa né? A gente tá vivendo o tempo
da caverna de novo.
L: Sim, parece que o Brasil é sempre isso, né? Você dá 10 passos para frente e
depois 50 para trás. E você fica naquele eterno ir, não ir. Que as coisas não se
resolvem, nunca se resolvem.
L: Olha só
L: Sim, totalmente, e aí você falou um pouquinho sobre essa questão do eco das
paradas? Dos temas da parada e de que às vezes não têm o eco que vocês
queriam. E eu acho que, todas as políticas públicas, de certa forma, a partir dos
anos 2000, são ecos do que a parada se tornou, né. Então acho que
efetivamente a parada trouxe uma mudança. No campo das políticas públicas e
das políticas culturais.
F: É, agora, a gente também não pode nunca deixar de falar, que além de
Stonewall, a gente tem uma questão, que é: a gente tem um movimento gay, que
eu acho que ele tem uma origem bastante também no advento AIDS, que foi
necessário. Então também tem uma coisa aí de necessidade, que precisou fazer
coisas em política públicas. Houve uma necessidade de correr atrás.
Inclusive dentro do conjunto de pessoas, tem uma pessoa também
importantíssima nessa, eu não vou lembrar o nome, é um pecado não falar
nome. Mas o Carlos Passarelli, era do Ministério da Saúde e ele, além de ter
conseguido apoiar mesmo, efetivamente com grana, ele também auxiliou no
trabalho com DST/Aids na parada, que foi enorme. Então eu acho que a gente
não pode deixar de falar. Tem a coisa temática, tem as coisas que vão
acontecendo das políticas públicas, isso aqui, mas tem aí uma questão de saúde,
que foi necessário, né, Leonardo e que também impulsionou.
L: Sim, totalmente.
Nossa, mas incrível, Fátima. Foi muito bom, muito legal te ouvir! Eu sempre ouvi
muito o Franco Reinaudo, trabalhei com ele por quatro anos e ele sempre contou
essa história da parada, sempre mencionava alguns nomes como o seu
inclusive. Mas eu acho que é muito bom ouvir você e ter outras visões, ter outras
apresentações e foi realmente muito incrível.
E aí para finalizar, eu queria agradecer e queria saber se você tem alguém, que
gostaria de indicar, alguns nomes que faltaram, algumas pessoas que talvez
tenham vontade de falar sobre essa questão. Eu acho que seria muito rico para
esse inventário, mas no todo eu gostei muito.
F: Mas você queria assim, do inventário, o que? Tipo Laura Bacellar? Laura
Bacellar acho que não participa muito do inventário, mas ela tem um inventário
maravilhoso, que é a produção dela na Malagueta. Você entrevistou a Laura?
L: A Laura ainda não, eu acho que eu vou partir para ela então.
F: João Silvério, mas é que João Silvério também passa para outra fonte, porque
daí deu uma produção própria, né? Quem participa mais diretamente, o Almir
Nascimento, mas também não, né? Porque quem fez produção mesmo, o Franco
Reinaudo que você entrevistou, que quem tava mais ao redor, né? Talvez que
tenha uma memória, talvez o Renato Baldin, que era da parada.
L: Não, ele mora no Canadá agora, mas é super acessível né, por meio do
google meet.
F: É e talvez o próprio Beto de Jesus, mas não sei, porque tem esse aspecto,
né. Eu acho que quem criou, né? Acho que o André Fischer, se você não falou.
F: Eu acho também que o pessoal da Diversa, né? Porque hoje também tem
aquele, o que você é do Arouca da Diversa? Tem um Arouca da Diversa.
F: Mas tem aí uma derivação que eu não conheço, tem que pedir mais para o
Franco, te dizer porque tem umas pessoas que trabalharam diretamente no
Acervo do museu. Porque, o acervo ninguém se preocupou muito, quem se
preocupou foi o Franco Reinaudo, através do museu e da Diversa. Porque a
Diversa, na verdade é quem detém o Acervo.
L: É, com o Acervo eu que fiquei um pouco lá, nos 04 anos que eu fiquei no
Museu eu fiquei lá.
F: Então, e quem estava ao seu redor? Não nos últimos 04 anos, mas antes?
L: É, na verdade, assim. É, então, por muito tempo foi só eu. Antes tinha mais
um menino que ficou por muito pouco tempo, mas é que as coisas foram
chegando do Acervo. Então acho que não houve, necessariamente, aquele
planejamento. Vamos estruturar, vamos estruturar esse programa de memória
para uma sequência de anos.
F: Mas para o seu TCC, o que você mais está procurando em termos de, estamos
falando de acervo, mas.
F: Eu acho que não escapa o que fez os filmes, o Lut (Lufe Steffen).
L: Não, com certeza, o Lufe Inclusive, eu pedi para ele os depoimentos que eu
tô transcrevendo.
F: Ele já tem um material vastíssimo, né? Mas eu acho que você tinha que
entrevistar o André Fischer.
F: Eu acho que ele é acessível e ele tem uma visão bem diferente da minha. E
acho que é Interessante, acho interessante também você falar com as pessoas
da parada, assim, quem era mais lá para trás, de falar com Lula, com o Ideraldo
e o Renato Baldin, o Beto de Jesus, eu acho que tem que falar com Nelson
Mathias, porque ele que permanece e acho que assim, esse pessoal para fora,
né.
Mas acho que seria interessante você tentar falar com Fábio e com o Augusto
da Fan, que eu acho que nunca ninguém entrevista eles e é de uma suma
importância, é uma logomarca né, uma logomarca, você saber como foi criado
acho que isso ninguém tem essa memória, acho que você poderia ter essa essa
riqueza no teu trabalho, porque eu acho que nunca ninguém pegou depoimento
deles.
E é super assim se você pensar em uma logomarca que permaneceu, né? É um
ícone, né? Um ícone brasileiro que nós temos né. Eu acho que não valoriza muito
isso porque seria a nossa bandeira própria, né?
L: Eu vou, acho que eu vou procurar o Fábio também, por que é isso, né, às
vezes a gente acaba entrevistando as mesmas pessoas? Porque pega a
referência ali do trabalho do outro e acaba, assim, não rompendo muito esse
ciclo. E ouvindo sempre as mesmas vozes. Mas eu acho que eu vou procurar o
Fábio também e procurar algumas pessoas que não tiveram tanto nesse
holofote, tiveram um pouco mais por trás dessa organização.
F: Então eu acho que assim, apesar do Celso Curi estar sempre em todas, mas
assim que eu tô te falando. Elencando, mas é você buscar essas pessoas que
fizeram, eu acho que você também podia partir para essa coisa um pouco mais
icônica. Assim o que que permaneceu? O festival Mix Brasil não escapa, a
logomarca que já é uma coisa que ninguém nunca fez, lá, quem que trabalhou
em nível de clipping da parada, você sabe? Quem trabalha até hoje? Isso
também é uma coisa interessante. Como começou a documentação né?
L: Sim, eu não sei, eu sei que quando a gente pegou o acervo, quando eu vi o
acervo da parada de 2000 a 2006, estava tudo muito organizado. Tudo bem
organizado, bem clipado, tudo em pasta, tudo bem catalogado.
L: Legal, verdade!
F: Mas você pode falar para o Nissan, de repente, eu acho que ele lembra de
mim, falar que eu recomendei. Você fala que a Fátima é amiga da Alicia Fábio.
para minha amiga da Alicia Fábio eu acho que que é uma coisa que derivou
assim, que foi importante. Quem mais? A Canadian Airlines, eu não lembro o
nome do cara, mas o Franco vai lembrar, a South Africa também, a Red Bull.
Por que foram investimentos primários.
Se você quiser entrevistar o Carlos Passarelli eu tenho, se você olhar no meus
amigos do Facebook você vai chegar nele, pode mandar, ele responde bem por
Messenger. Pode dizer que eu que indiquei. Ele está morando em Buenos Aires
agora, mas ele trabalha naquela instituição internacional de DST/AIDS, agora
esqueci o nome dele, ele trabalhava em Genebra.
L: A UNAIDS?
F: Não, eu acho que não era. O Paulo Teixeira teve muito envolvimento. O Paulo
Teixeira é o que é deputado agora?
L: Acho que sim, ele chegou a ser secretário aqui em São Paulo.
F: Então precisa conferir isso com o Franco, você pode falar - A Fátima
desmemoriada, pediu para te perguntar. Eu acho que seria interessante, porque
ninguém nunca fez isso né, porque foi tão. Se você pensar nesse recorte a partir
da Aids e que chega nisso, né. Tem a coisa da Rebelião de Stonewall que foi lá,
chega de policia, chega de. Mas tem um movimento, que eu acho que o
movimento gay ele tem um peso do movimento hip, né?
L: Sim, sim.
F: Então, é por causa também que ele cola e ele destrói outras coisas, porque
ele pega, ele também vai para as coisas em torno de gênero, racismo, né. Acho
que tem uma coisa que pega tudo.
Na época, logo depois da parada, foi criado na prefeitura quem era? Era o Serra,
não é? Porque as criações, por incrível que pareça, foi PSDB, que fez, não foi
PT. E eles montaram uma na Secretaria da participação, não sei o que lá. E que
era o José Police Neto, o secretário e que foi aí que começou, que teve o Cássio
Rodrigo, o Cássio, né. Você entrevistou o Cássio Rodrigo?
L: O Cássio ainda não também, mas acho que uma pessoa bem interessante,
né.
F: Mais radical.
L: (risos)
F: Cheguei.
F: Cheguei, tem até uma entrevista da Cássia que eu escrevi, que a Miriam
Martinho queria que trocasse, a Cássia falou um monte de b***** e ela queria
que eu estivesse escrito ao invés de b*****, escrever Chana. Mas eu falei - não
sairia nunca da boca da Cássia: Chana. Você quer que eu fale Chana?
Chaninha, da Cássia? Não vai sair, bicho. Agora vamos para o lado escracho,
não dá, não dá.
Acho que entendeu, fiz só um recorte para você? A parte de Aids, a parte política
e a outra, dos ícones. O que foi de construção acho que um pouco a Adriana,
um pouco a Fan. E perguntar para o Franco, quem mais criou ícones, quem criou
símbolos? Acho que foi, quem será que você viu lá?
L: Faz tempo que eu não vou lá, já tem um bom tempo, mas eu to pensando em
passar lá, por agora.
L: Ah, ele é maravilhoso, né. A gente, quando a gente fez a Vânia Toledo lá no
museu, ele arrasou, Ele é incrível!
L: Sim, ah, essa exposição é algo que tem que ter, eu acho que ela é muito
importante, até porque é a primeira exposição da Parada.
F: Eu acho que foi a mais bonita, até hoje, não por nada. Porque ela foi pensada
antes, ela foi feita uma curadoria antes. Imagina, a gente escolheu os fotógrafos,
a gente deu os filmes, todos os filmes brutos foram para a mão dos Diogenes. O
Diógenes acompanhou os fotógrafos na Parada.
F: É uma curadoria que antecede, coisa que em geral não faz, né?
L: Sim, sim.
L: Prazer em te conhecer, Fátima. Fica bem, boa semana e logo logo a gente se
vê por aí.
Legendas:
Leonardo Arouca: (L)
Franco Reinaudo: (F)
F: Vou ver se eu me lembro, né? Olha eu lembro que nos anos 1980, eu acho
que é claro, o Teatro sempre teve uma ligação muito forte com essa questão
LGBT. Eu acho que muitos LGBT foram procurar o teatro, as Artes, porque era
um espaço mais tranquilo digamos assim, para viver a sexualidade.
Eu acho que nesses anos 1980, a frequência maior era na Rua Augusta mas, a
Augusta do lado do centro, virando ali onde tem o Ferro's Bar. Aquele pedaço
ali, do final da Rua Augusta, Martim Francisco e onde se concentrava a
população LGBT de uma certa forma nessa época. Mas muito assim, uma
população LGBT um pouquinho mais ligada à cultura, ligada ao teatro, às artes.
Você tinha uma série de restaurantes e tinha alguns bares que a população
frequentava, que eu lembro bem dos anos 1980 e principalmente do início dos
anos 1980 é esse pedaço.
F: Eu lembro de um bar mas eu não vou lembrar o nome. Mas era o nome de
uma bebida, daqui a pouco eu lembro. Ali na Augusta, um bar que não durou
muito, mas que era muito, um dos primeiros lugares, que eu lembro, assim de
frequência LGBT naquele pedaço, que você tinha por exemplo, um restaurante
bastante conhecido do Mask.
O Mask era uma figura LGBT bastante conhecida e ele tinha esse restaurante,
que eu também não vou lembrar, que eu tô com Pirandello na cabeça, que era
outro. Mas era um bar na Augusta que inclusive embaixo tinha um Antiquário,
que era um lugar onde tinha muita frequência LGBT, mais atores famosos, era
um lugar bacana.
L: Sim, e sobre casas noturnas, boates, bares. Durante esse período de 1970,
1980 e 1990, quais são os bares mais emblemáticos que vem a sua mente e que
hoje você olha para trás e você fala - Não, isso é um patrimônio da comunidade?
F: Eu acho então, aí quando eu falo do Jardim, que você tinha uma série de
lugares, por exemplo, o Paparazzi, o Massivo, o Allegro, o Diretor 's Gourmet,
que era um lugar onde as pessoas iam bastante nesta região. Você teve, mais
para baixo, eu lembro da Rave, você teve a Soho, que mais que tinha? Poxa
vida, tinha uma época, assim, que os lugares não ficavam muito tempo. Os
lugares iam mudando, bom aí você tem os grandes, como a Corintho, a
MadQueen, que esses lugares ficavam fora desse circuito. Que foi uma tentativa
no Ibirapuera de criar uma série de casas LGBT e várias abriram e depois
fecharam, mas eu lembro muito da MadQueen e da Corintho naquela região do
Ibirapuera.
E você tinha o centro, com outro tipo de frequência, mas com casas também
emblemáticas. Você tem a HS, né, inclusive eu trabalhei na HS como ator. Esse
eu acho que é um lugar importante de memória, porque não só um lugar, de uma
boate de frequência LGBT, mas que apresentava shows, shows um pouco
diferentes, porque era meio peças de teatros. Tem muitos atores que fizeram
coisas lá, como Paulo Gorgulho, atores que depois foram para a Globo. Mas que,
quando nessa época de teatro.
Teatro na época você tinha três lugares para fazer teatro, o teatro mesmo ,teatro
adulto e teatro infantil e você tinha essas casas, algumas casas, principalmente
a HS você fazia esse show, que muitos na verdade eram pequenas peças de
teatro. Eram apresentadas lá, então ali tem uma uma história grande onde se
apresentaram muitas pessoas importantes. E era muito legal ali, porque você ia
assistir o show, o negócio funcionava de segunda-feira a segunda-feira e depois
você ficava na boate, eu lembro desses.
A gente falou sobre uma coisa importante que é o Mercado Mundo Mix, que é
essa passagem das pessoas da noite para o dia, então o Mix, o Mercado Mundo
Mix eu acho que ele tem essa função muito emblemática de trazer a comunidade
para luz, né? Vai para luz Caroline (risos).
Porque é a hora que a gente vai para o dia, né, era um espaço, uma feira com
moda, música e tal, mas isso é feito durante o dia e eu acho que é por isso que
o mercado também é um lugar muito emblemático nesse sentido, da gente sair
do gueto e ir para o espaço de dia.
L: Eu acho que falando um pouco sobre essa passagem, que ela é tão central,
de você, claro, à noite tem seu papel muito importante, mas essa passagem da
noite para o dia, ela também se reverbera em várias outras construções, né? As
construções são muito datadas a partir dos anos 2000, muito também por conta
da influência da Parada.
E eu queria que você falasse um pouquinho também, dessas construções,
desses lugares, que são lugares não só festivos, obviamente, de sociabilidade,
mas também, lugares que se colocam e se apresentam com uma proposta,
muitas vezes de política pública para sociedade, para essa população e o que
você considera hoje como patrimônio dessa população?
F: Olha, eu acho que a partir da chegada dessa questão, né. Eu acho que é,
claro, que é um processo, em que as pessoas vão se assumindo publicamente,
de uma certa forma, né. Então, o Mundo Mix chama Mix, até por uma questão,
que era o que era possível, né?
O GLS é o que era possível na época, mas eu acho que tem uma grande
importância, porque essa estratégia de misturar tudo, faz com que a população
consiga se expor de alguma maneira, né? Que é uma característica muito da
parada, a parada ela vai ser enorme quando as pessoas entenderam a
possibilidade de ter segurança no espaço público.
No começo, sempre conto isso a parada, as pessoas iam disfarçadas, de
máscara, ficavam escondidas, a partir do momento que uma enorme quantidade
de pessoas foi a rua, foi aí que a parada dá um salto. É muito por causa disso,
por uma questão, de você perder o medo de se expor.
Então, eu acho que a partir disso, você tem a entrada de uma série de outros
espaços, que têm características de funcionamento diferentes da noite, né.
Livrarias, que é que a gente fala do Futuro Infinito e antes foi a Livraria do
Meio, você tem outros espaços culturais, galerias, enfim.
Aí uma área que eu atuei bastante foi a área do Turismo. Que você começa a
ter uma série de empresas e produtos específicos para a população, eu não sei,
eu acho que se você pensar nesse sentido, eu acho que você tem espaços de
dia e um pouco misturados. Então você tem ali a galeria, como chamava aquela
galeria na Augusta? Que durante um período ela foi bem LGBT, assim tipo, as
pessoas vão cortar o cabelo em tal lugar, né. Como chama aquela Galeria, meu
deus? É uma galeria no final da Augusta, que eu acho que virou por um período
e depois não rolou, o que mais lugares? Lugares que tinham?
F:É, só que eu acho que isso é bem mais recente, você tem, claro, você tem ali,
muito, uma questão depois, que também é muito emblemática, é a questão
ligada a AIDS. Que aí você vai ter uma série de espaços, não é o Centro de
Referência da Diversidade, ou mesmo esses espaços, tipo o Gapa, o Pela
Vidda.
Eu acho que um lugar importante ali, é o centro de referência para a diversidade,
ali na… como chama? Marquês de Itu? É
L: Major Sertório?
F: Exato! Na Major Sertório, eu acho que é um lugar, que. Mas é mais recente.
L: Sim.
L: Quais delas, você acha elas são, pelo seu tempo de atuação, talvez por ser
dirigida por determinada pessoa, por ter feito tal coisa. Podem hoje ser
consideradas como patrimônio da população LGBT?
F: É que o que, eu acho que uma grande coisa das saunas é que também, eram
lugares de guetos e meio escondidos.
Você teve uma sauna que foi emblemática, durante muito tempo, chamada For
Friends, né? A For Friends era uma travessa da Tutóia, não lembro direito onde
era. Era uma sauna onde a população ia bastante, você tem as outras saunas,
que tinha uma questão mais ligada a garoto de programa, né. E aqui duas, são
as mais antigas, uma ainda existe, mas mudaram de lugar, a outra não, que é a
Fragata ,que eu acho que é mais antiga é a Lagoa, são duas saunas, a Lagoa
ainda existe. São saunas muito antigas e depois você tem outras saunas, que
vem depois, né.
Por exemplo, você tem a Wild Thermas, você tem uma outra sauna que eu não
lembro agora o nome, mas que fica ali, na… meu Deus, não vou lembrar, mas
enfim.
L: Não é a Le Rouge?
L: E hoje? Olhando, claro, pouco para trás, mas o que ainda hoje está na ativa e
que você olharia e falaria - olha, acho que isso é um patrimônio da comunidade,
que a comunidade deveria lutar para preservar, que a comunidade deveria
reivindicar como tal?
F: Eu acho que um lugar que foi muito emblemático durante muito tempo, que
eu esqueci de falar, acho que a Nostro Mondo. O Nostro Mondo foi um lugar
que realmente durou durante muitos anos e que eu acho que é um lugar que
teve muita história importante, relacionada não só à idade, mas também à arte,
né. Porque você também tinha shows.
Hoje, eu acho que seria importante a gente preservar aquela área do centro, eu
acho que ali é onde você tem, uma… acho que uma longevidade maior em
relação a histórias muito diferentes, né. E é um lugar que realmente faz parte da
história da comunidade.
Eu acho que ali é um ponto nevrálgico, até por isso que o Museu da Diversidade
Sexual, escolheu estar lá, por isso. Eu acho que ali é um lugar muito de
resistência em relação, né. Que a gente a gente… isso que eu falo, ali no Jardins,
a gente foi expulso, né? Ali no centro a gente conseguiu se manter de alguma
forma enquanto comunidade, né. Apesar de claro, vamos combinar que tem
menos gente endinheirada para te expulsar ali no centro, mas de qualquer forma,
um lugar onde a gente conseguiu prevalecer, né.
F: Eu acho, até porque por conta que as pessoas não sabem quem é Darcy
Penteado. E outra coisa eu acho que essa Praça, não existiu por conta dele ser
um ativista homosexual, né? Então eu acho que isso precisa ser recuperado, eu
acho que a gente tentou fazer um trabalho de preservação, lá atrás, enfim. Mas
hoje, por exemplo, você passa lá e não tem nem placa, né. A placa foi roubada
e a praça está super mal cuidada. E acho que sim, eu acho que isso é uma forma
de colocar no espaço geográfico e apontar e é necessário também que se aponte
a história do Darcy, né? Porque é isso, tudo bem a gente tem um monte de nome
de rua monte, um monte de nome de praça, que ninguém sabe quem é o que é,
né. Então você divulgar, valorizar e passar essa informação adiante, acho que é
fundamental para a construção de uma memória. Concordo.
L: Perfeito, aí eu acho que a gente pode encerrar, não sei se tem mais algumas
considerações que você queria fazer? Nomes de lugares que faltaram,nomes
importantes que você acabou não citando, então fica a vontade para você falar,
aí a gente encerra.
F: Puts, eu agora não lembro muito, mas eu acho que muita está faltando sim.
Mas acho que os principais foram.
F: Sim, total.
L: Aí, acho que é isso então, muito obrigado, Franco
F: Muito obrigado.
LA: Na sequência queria pedir para você se apresentar, dizer seu nome
completo, idade e profissão.
LB: Meu nome é Laura Bacellar, eu tenho, no momento em 2022, 61 anos e sou
editora de livros.
LA: Ah, legal! Ela ainda não está completa. Tem muitas coisas que eu vou
ajustar, os verbetes, mas por enquanto eu estou nesse momento de constituição
desse inventário, eu tô levando muito em conta as apresentações que os
entrevistados fazem dos lugares e não só um verbete estritamente técnico. Mas
como de fato, eu consigo articular as memórias das pessoas dentro deste
instrumento.
LB: Uhum
LA: Então queria na verdade começar com a primeira pergunta. E já bem direta,
sobre o momento em que você começa a sair na sua juventude, quando você
começa a ir para a rua e começa a frequentar os lugares sociabilidade LGBT.
Então eu queria que você falasse um pouco desses lugares, das memórias que
você conserva deles e de quais desses lugares você julga hoje, como patrimônio
dessa população.
LB: Você quer que eu fale só apenas os lugares que eu gostava? Ou de todos
os lugares?
LA: Eu acho que é legal falar de todos, inclusive a questão das memórias é isso
né - elas podem ser boas e podem ser ruins, não é uma regra.
LB: Então, lá nos anos 1990, mesmo, aí eu já estava com uma namorada para
cima e para baixo, então era mais tranquilo entrar nos lugares. Não era estranho
entrar sozinho. Mas eu me lembro de entrar em um lugar que ele tinha uma coisa,
uma particularidade, com dois andares e embaixo tinha uma mesa de sinuca,
inclusive. Nossa um lugar muito esquisito, mas era o que tinha. Só que era assim,
você entrava e não podia sair imediatamente, você só podia sair depois de meia
hora e tinha um segurança que não deixava você entrar, dar uma xeretada e sair,
entendeu? Não tem que ficar meia hora, se ficasse meia hora sem consumir
nada, tudo bem, depois ele deixava sair. Só que se você ficasse meia hora,
provavelmente você acabaria consumindo alguma coisa, ou seja, olha o pique
impositivo desse bar.
Aí eu me lembro, achei horrível o bar, achei horrível fazerem isso, né. Não tive a
menor vontade de consumir porcaria nenhuma lá e me lembro que nesse bar
uma fulana que entrou e ligou de lá de dentro, ela já tinha celular e ligou de lá,
para a polícia, dizendo - vocês não estão me deixando.
LA: Gente.
LB: Vocês estão me prendendo aqui (Risos), a polícia com todo prazer entrou
arrasando.
LB: Eu não lembro o nome desse lugar, era um nome cult, mas eu não lembro
exatamente. Mas só para você ver, o bar tinha uma postura super desrespeitosa,
a época era pecado, anos 1990 já estava melhor, não era anos 1980, nos anos
1980 era capaz de todo mundo ir para a prisão. Mas nos anos 1990 já estava
assim “tudo bem, vamos respeitar, mas não muito (risos)”. A fulana ligou, a
polícia foi com prazer e aí lógico que todo mundo pode sair a hora que queria e
nem sei se eles não pararam com essa história.
LA: Gente, do céu, que surreal.
LB: Pois é, então, então muitos desses lugares lá no entorno da Santo Antônio.
Ali, aquela baixada, você conhece? Então tinha vários, ta. Tinha uns 07, 08…
bar, boteco, não sei, várias coisas. Tinha um motel, por exemplo, que aceitava,
sem encheção de saco, não lembro o nome dela. Tinha um motel lá que aceitava
casais de homens ou de mulheres, sem discussão, não eram todos os motéis
que aceitavam na década de 1990. Então eu me lembro de ir lá falar com eles.
Todos esses lugares, sem querer ser muito classista, eram muito xumbregas,
muito…Assim, as opções de bebida, era melhor tomar só cerveja, né, não se
atrever a tomar nada destilado que vai saber a procedência ou misturado com o
quê, que seria. As comidas todas eram coisas fritas, bem duvidosas, sabe, nada
excelente. E a música eu achava terrível, muito brega, sabe? Muito brega, então
tinha esse panorama ali no centro da cidade, mas tinha bastante movimento, o
lugar que eu mais gostava de ir nos anos 1990 é um que está mencionado aí na
sua lista que era o Feitiços, o Feitiços não era nessa área, era em Moema e aí
tinha um pique diferente, era um lugar que a música era melhor, eu achava e
ficava cheio, insuportavelmente cheio, mas assim, tinha algumas opções mais
de bebida um pouco melhor, tinha um público um pouco diferente do que ia lá na
Santo Antônio e era bem misturado. Aí eram homens e mulheres, mas era mais
o gosto das mulheres, então, os gays que iam nesse lugar eram, são aqueles
gays amigos das sapas, sabe? Então era um pique, porque não era um lugar
assim, não tinha Darkroom, nada disso, mas era um lugar assim iluminado, que
as pessoas se viam, era mais para conversar, não tinha um negócio assim de
chegar se agarrando nos cantinhos, então não era o tipo de boate gay.
LB: Da época, eu eu gostava bastante lá, fui bastante lá, eu acho que a Fátima
Tassinari disse para você, né? Quem tinha uma das donas era uma fulana que
cantava, que chamava Marta, isso mesmo. Essa Marta namorava uma outra
fulana, mas as duas eram donas daquele lugar e aí era o maior bafafá, porque
as duas eram bonitonas, mas essa Marta era bem bonitona e ficava a mulherada
dando em cima dela, ai dava mil bochichos. E teve uma frequentadora que
acabou tendo um caso e esse lugar de sapas, não sei, é perfil das sapas, né?
Onde tem muita mulher assim,umas bonitas dando em cima e bebendo, você
sabe, sai briga. E a mulherada, diferentemente dos gays, briga mesmo, então
apesar desse lugar ser em Moema, eu me lembro de uma dessas brigas que a
namorada de uma olhou para a outra, não foi para a Marta. A Marta tentava
manter a coisa lá funcionando, porque ela estava ganhando dinheiro com isso.
Mas umas namoradas lá, uma se desentendeu com outra e começou uma briga
e isso era bastante normal de ver. E eu não era de frequentar o lugar que isso
acontece, em Moema eu vi acontecer, de uma fulana pegar uma garrafa de
cerveja, bater no chão e aí virar a parte de vidro e ir para cima da outra sim.
Então, os ânimos das sapas nos anos 1990 era uma coisa assim, era como, elas
não tinham muitos locais de expressão, os locais que elas consideravam delas,
nossos, né. A mulherada podia expressar que tava interessada, podia expressar
que estava namorando, que tava sei lá. E também podia expressar o ciúme do
jeito extravagante, então era um lugar também que eu rolava muita briga e briga
assim, briga de sapa.
LA: Risos
LB: Pergunte.
LA: Eu achei fantástico. Sobre esses bares que você falou na rua Santo Antônio,
você lembra o nome de alguns também?
LB: Sky Pererês eu me lembro. O Sky Perepepês era o maior, tinha dois andares
e eu me lembro de descer, porque era um negócio cumprido, grande, cheio de
mesas, me lembro de até tomar, comer, beber, mas eu achava assim,
decididamente, mesmo querendo assim ser simpática com o lugar, apoiar e, mas
achava - meu deus, esse lugar é muito brega (risos)
LA: Laura, sabe uma coisa que eu queria te perguntar eu vi quando eu assisti o
documentário da Cassandra Rios da Hannah Corick. Eu vi vocês comentando
um pouco sobre aquela editora, que na verdade não era da Cassandra, mas
tinham muitos livros dela. E eu queria te perguntar um pouco desse circuito
literário, a partir da Cassandra Rios e outros circuitos que existiram.
LB: É, porque a Cassandra ela é, ela começou muito pioneira, ela começou a
publicar nos anos 1960. Publicou bastante nos anos 1970, ela fez um sucesso
extravagante nos anos 1970 e continuou publicando nos anos 80, até recolherem
todos os livros dela. Ela foi publicada por várias editoras, tá? Ela foi publicada
até pela Record, uma das editoras que a publicou foi a Emos, e eu a conheci lá.
Eu trabalhei na Emos, deixa eu pensar, em 1985. A Cassandra ela já tinha, ela
já estava com um pouco de problema, já tinham recolhido alguns livros dela, tal,
mas ainda tinha uns livros na praça. E o editor da época me apresentou a
Cassandra e a gente conversou muito rapidamente, não estendi, não era eu que
cuidava dos livros dela. Eu era muito jovenzita, estava ali bem no início de
carreira e ela era uma autora publicada, com um monte de livros, vendendo,
fazendo sucesso e tal. Mas ela já estava tendo problemas com a
comercialização, como um monte de livros dela tinha sido proibido, recolhido.
Ela estava com problema de dinheiro, sabe? Então ela não estava extremamente
feliz.
Mas aí vou confessar também, né, eu sou meio do contra, tá? Eu não gostava
da literatura da Cassandra. Eu li, eu sempre li tudo que fosse possível a respeito
de, na época não se chamava LGBTQ+, mas eu lia, o que fosse. Na época se
chamava, deixa eu ver os nomes, nos anos 1980 - desviados, pervertidos,
ninguém se chamava, chama tinham vários nomes, né. Então você quando
achava um livro, às vezes tinha um código, uma palavra dessas, sabe? E eu li
tudo, que era possível, que me caia nas mãos, mas eu não gostava da
Cassandra porque ela era, que eu achava muito pessimista. Não sei se você já
leu algum livro dela?
LB: Ela tinha um pique de considerar, não sei se pela época, talvez, por ser a
cabeça dela, não sei qual dos dois. De considerar que era uma perversão de
você ser homossexual, entendeu? E tudo bem, a pessoa se via ali, mas ela não
considerava isso, nem saudável, nem natural, entendeu? Era um azar a pessoa
se ver nessa condição, mas é uma condição que não é legal, sabe assim? Então
eu não gostava disso nos livros, porque eu achava assim, eu não me sentia, eu
não me sentia pervertida, né? Então, fiquei putz, esse discurso aqui não é para
mim, não tô curtindo. Então eu tive essa leitura lá nos anos 1980, quando assim,
cruzei muito com ela com a Cassandra. A própria Cassandra foi mudando de
ideia, tá? Em 2002, que foi o ano da morte dela, ela participou de uma roda de
conversa que um grupo que eu organizava chamado - Umas e outras,
promoveu e ela apareceu lá, ela tava com bastante dificuldade para andar, ela
não estava muito bem de saúde. E aí ela tava com um posicionamento diferente,
né? Ela tava assim, com um pique mais - sim, a gente precisa falar, a gente
precisa se assumir e tal. Mas a literatura dela não tinha essa fala, entende? A
literatura era um alto detonante. Ainda que ela fosse muito pioneira porque ela
mostrava às pessoas, ela mostrava gays, mostrava lésbicas, mostrava travestis,
mostrava um monte de gente, então ela falava dessas pessoas que eram
invisíveis na sociedade, então ponto para ela. E essas pessoas todas faziam
sexo, então ponto para ela. Porém essas pessoas todas se ferravam, não ponto
para ela. Então eu, é assim, eu não me sentia em casa, como eu não me senti
em casa no Ferro’s, eu não me senti em casa no Sky Perepepês, eu não me
senti em casa na literatura da Cassandra Rios, mas vamos lá.
LA: Laura, uma coisa que apareceu muito, nessas entrevistas foram falas sobre,
na verdade não lugares, mas manifestações, né. Como é o caso da parada,
como é o caso do festival Mix Brasil, né. E aí eu queria te perguntar, tinham
algumas manifestações, principalmente de lésbicas, que você se recorda? Que
você fala - Hmm, acho que isso é algo para ser guardado. Como não sei o Mix
Literário, como o caso da parada, não propriamente, mas ma manifestações, às
vezes lançamentos de livros e coisas do gênero.
LB: Olha, eu fiz um monte, né. Não sei se você tem noção, né. Se quiser depois
posso te passar um currículo, mas eu fiz bastante coisa. Assim, eu participei,
junto com o grupinho da organização da Parada de São Paulo, lá em 1998/1999,
a gente fez muito trabalho voluntário para transformar a parada em uma coisa
grande, bem divulgada com um pique simpático, amigável. Para ser diferente
daquelas coisas que eu tinha sentido, sabe? Muita coisa que eu fiz depois, foi
justamente no primeiro contato que eu tive com a militância, esses lugares que
eu não gostei, sabe? Então muita coisa que eu fiz, uma delas foi assim - gente,
a parada tem que ser simpática, tem que ser sorridente, tem que ser - venham,
venha. Inclusive no pique da gente dizer - é aberto para as diversidades, não
tem que ser gay, tem que ser aberto a diversidade, que permite que as pessoas
participem, sem necessariamente serem gays, né? Acho que isso foi, foi experto
da gente, então ajudei a organizar isso, com o Franco, junto com a Fátima, junto
com o Sérgio Miguez e um monte de gente.
Mas assim, fiz algumas coisas de lésbicas, a gente e fez a Caminhada de
Lésbicas, quem deu a ideia foi uma autora que eu tinha publicado, primeiro nas
edições GLS, depois na editora Malagueta - Fátima Mesquita, que é ótima
escritora e que morava no Canadá e tinha participado de uma caminhada de
lésbicas lá e falou - caramba, porque a gente não faz uma aqui? E isso foi numa
reunião justamente desse grupo - Umas e Outras, que esse grupo Umas e
Outras eu mantive reuniões, eu junto com a Valéria Mélqui, nós organizamos, a
gente fez reuniões, primeiros mensais e depois semanais, a gente por 4 anos
manteve uma intensa atividade lésbica em São Paulo, de 2000 a 2004, forte,
feroz.
E em um desses encontros, justamente a Fátima Mesquita estava participando
e contando de uma série de coisas, ela estava lançando um dos livros dela e
falou - vamos fazer uma caminhada e falei - vamos, porquê não? Então fizemos.
E aí a gente combinou de fazer uma caminhada de mulheres, um dia anterior,
no sábado anterior à Parada, porque as pessoas vão estar em São Paulo e as
mulheres, muitas vezes não se sentem confortáveis na Parada. Que a Parada
começou com tudo né, os homens vão na frente, então tinha, né. Era muito mais
masculina do que feminina, ainda né? Mas na época, no começo era mais ainda,
então resolvemos fazer uma caminhada e eu participei da realização de duas, a
primeira e a segunda e eu achei muito legal, apesar de serem poucas mulheres
que participaram. Na primeira devia ter umas 200, 300 no máximo, na segunda
tinha 500, tinha muitas. Não foi nada de parar o centro, não foi nada de parar a
paulista, mas foi super legal. Então é, sim, fizemos isso.
Umas e Outras, foi um movimento fortíssimo e foram nesses encontros que eu
organizei junto com a Valéria, os encontros tinham um perfil cultural, então
sempre convidava alguém que tinha alguma coisa a ver com cultura ou cultural.
Ou cantora, ou poeta, ou sei lá o que, entendeu? E que tivesse haver e que fosse
lésbica, todas lésbicas.
E durante esses encontros na sala, no salão onde quer, onde a gente realizava,
a gente não deixava entrar nenhum homem, foi uma experiência bem
interessante, foi bem difícil isso, sempre tinha algum homem querendo entrar e
os amigos sempre ficavam brincando - eu fico imaginando o que vocês ficam
fazendo? tá rolando maior suruba. E eu falava - não, a gente não é gay, a gente
é sapa. Não tá rolando suruba nenhuma. E eles enchiam o saco, mas
respeitavam (risos) e eu cheguei a fazer no andar superior da Futuro Infinito, a
livraria do Sérgio Miguez, eu fiz uma vez no Allegro, no restaurante no Marinho.
Fiz um tempo, a gente fez alguns dos encontros lá no espaço do Satyros e eles,
todos eles, assim respeitando que tá bom, quando começa só pode entrar
Mulher, então eles respeitavam, mas virava e mexia e tinha alguns, sabe? Alguns
serezinhos queriam entrar e a gente, aí quer dizer - não, esse é um espaço de
mulheres. E eles falavam - mas que preconceito, não sei o que, eu sou a favor
das mulheres. E eu falava - não, esse é um espaço de mulheres. Foi
interessante, foi um exercício interessante e a gente fez um monte de coisas e
depois teve um tempo que a gente alugou um espaço na Consolação e aí
fazíamos encontros com mais frequência flá, aí passou a ser semanal. E aí tinha
de tudo, filme, encontro xamânico, encontro de ajuda mútua, a Valéria que é
psicóloga, ela conduziu alguns grupos de ajuda mútua, não era terapia, mas as
pessoas falavam dos seus problemas, nossa começou um monte de coisas. E
tinha esse forte viés cultural, eu continuei levando autoras, cantoras, lésbicas,
sempre lésbicas para falar com a mulherada lá.
LA: E esse espaço, então ele chegou a ter sede na Consolação, por um tempo?
E em que período ele operou Laura?
LB: Então, a gente começou em 2000 e foi até 2004, então a gente operou por
4 anos e em resposta ao desafio desafio, que nem sei se foi o André Fischer,
que falou - Mas, pô, tudo que a gente faz, a mulherada não aparece, cadê as
mulheres? Elas não gostam de sair de casa? E aí eu disse assim - olha, as
mulheres não vão porque os programas são pensados para homens, eles não
são feitos para interessar as mulheres, você quer ver?
LA: É muito legal você falar isso porque parece que assim, existe um recorte
muito claro de programa Cultural, de serviço que interessa as lésbicas e que é
muito diferente dos gays, né? Então, assim eu queria te perguntar também se
tinham circuitos culturais, assim que não necessariamente eram lésbicas, mas
que tinha uma enxurrada, muitas lésbicas que iam? Porque, nos eventos que
vocês faziam tinha essa demanda, tinha essa procura, você enxerga outros
eventos que tinham?
LB: É, veja o Umas e Outras, esse grupo era como princípio a gente disse - isso
é para mulheres, ponto. A Malagueta, a editora Malagueta e as coisas que a
gente fazia, eram direcionados às mulheres, mas não era proibido entrar homem,
que tinha um monte de homem entrando e saindo. Mas ainda assim a ideia era
dar protagonismo, pelo menos igual às mulheres, mas na medida do possível.
Mas muitas vezes a gente teve uma feira do livro, que a gente fez, por exemplo,
tava cheio de homem também, mas, no máximo pau a pau, tá? Mas o que que
eu acho, é que tem interesses diferentes, não é uma crítica, não é uma crítica.
Assim, tem muita mulher, eu vejo, tem muitas lésbicas, que são assim um pouco
viradas com os gays, que acham que eles tomam os espaços rapidamente e é
verdade se você tem um grupo qualquer, quem vai falar primeiro são os gays,
depois homens e mulheres trans e a lésbiquinha lá, para falar ela tem que meio,
que forçar a barra quase. Eu acho que isso não é exatamente incomum, não é
uma característica malévola, é só como as pessoas são. Então eu acho assim,
os gays rapidamente tem mais coragem, mais voz, vão nos lugares, põe a cara
tapa, eu acho, né? Então as mulheres ficam assim, nessa posição de retaguarda
e não podem reclamar que também não tem espaço, os gays tomam a frente.
Agora as pessoas trans estão tomando a frente também e os gays não estão
gostando (Risos), porque agora eles estão vendo o que é ter protagonismo de
um grupo bem falante. Agora eles estão vendo como é que é essa história, mas
então, apesar disso existir, eu acho assim, não estou criticando, eu não to
achando ninguém malvado, mas é fato, então se você quer dar protagonismo às
lésbicas é preciso fazer um esforço, porque se você junta todo mundo, deixa
correr naturalmente, elas não tem espaço.
LA: Entendi, eu imaginava isso também, que você ia por essa linha. Que você ia
falar sobre isso, nessa linha. Ah, prefeito, Laura, eu queria na verdade, eu acho
que como é uma entrevista bem sucinta. Eu queria te fazer uma pergunta final,
se você lembra também de alguns lugares que você não citou e queria
mencionar, que você acha que são importantes, pessoas que você acha que são
importantes e que se ainda for possível entrevistar, a gente pode ir atrás também,
mas isso uma fala final dos lugares que você acha que faltou.
LB: Que tinha? Ah, a Rua Augusta teve determinado momento, que a Augusta,
ali do lado Jardins, que não durou muito tempo, mas o tempo que durou foi bem
interessante, teve um quadrilátero ali, na Jaú, na Itú… tinham muitos lugares
gays, gays não, LGBT, né? Então criou assim um enclave, um centro de
diversidade nesse bairro, aspas, aspas, chique, burguês de São Paulo, então eu
achei, eu lembro de andar com prazer ali, vendo aquele um monte de lugares,
que eu acho que foi um trabalho interessante de conquistar espaço, sabe?
Então eu tenho, eu não lembro dos nomes, dos lugares, só do Allegro e a Futuro
Infinito que estavam ali, mas eu não lembro do nome dos lugares. Mas tinha
bastante, tinha vários e eram bem legais, eu gostava de lá. Tinha até umas
boates, então eu curti aquele movimento lá e deixa eu ver.
Teve muita gente que ajudou, sabe? Até esse movimento, nos anos 1990, assim
nos 1990 para os 2000, para fazer a parada andar, muita gente trabalhou e
assim, eu trabalhei, eu fiz parte de um grupo que trabalhou para caramba, mas
teve muita gente ajudou, talvez não tanto, mas assim, em um pique de - vamos
fazer esse movimento coletivo? Foi uma das raras experiências, que eu tive de
ver um movimento, realmente coletivo, sabe? Depois aí apareceu cada um com
o seu interesse, mas naquele momento, assim 1999, 2000 foi um movimento
coletivo, então eu achei muito legal e transformador, que foi impactante.
O fato da parada conseguir reunir em 2000, a gente dizia para os meios de
comunicação, né? Aliás, nos arriscando, né, porque a gente não tinha muita
garantia disso, mas a gente dizia que haveria 100 mil pessoas na rua e os meios
de comunicação achavam tão extraordinário que deram a notícia e eles estavam
assim - vocês vão botar 100 mil gays na rua, né? E a gente falava - aguarde, vai
lá olhar. E a Parada de 2000 teve 120 mil, contados pela polícia, não foi a gente,
a polícia deu como dado oficial de que tinham 120 mil pessoas na rua.
Então, putz foi um movimento que muita gente participou e que deu um ganho
de visibilidade extraordinário, então bem, depois aconteceu um monte de coisas,
que não vou entrar no mérito, mas foi importante. Eu acho que todo mundo que
participou, em 1998, 1999 e 2000, Parada de São Paulo, viva! Heróis silenciosos
da diversidade no Brasil. Uma dessas pessoas, você não pode entrevistar,
porque ela já morreu, Vange Leonel, por exemplo, né, nossa todo mundo que
ajudou a organizar um monte de coisas, o próprio Sérgio Miguez. O Sérgio
Miguez era ótimo, também já faleceu, né, uma pena, muita gente trabalhou.
Se você quiser entrevistar mais gente, eu não sei se precisa, mas se quiser você
pode entrevistar a Valéria, que foi minha companheira, não era minha
companheira, nós éramos amigas, mas nós trabalhamos juntas para criar esse
grupo chamado Umas e Outras.
LA: Eu vou querer sim, provavelmente no futuro, né, porque agora eu tô a um
mês de entregar a minha monografia. Mas eu pretendo continuar, né, porque eu
acho que não tem como esgotar esse inventário assim, dessa forma em um
projeto de TCC, eu acho que é um projeto que tem que ser continuado, então
vou querer muito. Daqui para a frente, mas acho que é isso, então, Laura, queria
agradecer muito pela participação, pelo depoimento, fico muito feliz, acho que
vai ser muito útil para esse inventário e agradecer por tudo.
LA: Obrigado!