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Talvez seja difícil para um nutricionista pensar que em um tempo não muito
passado, produtos que hoje estariam regulados em uma dieta saudável, como o
açúcar e o chocolate, não só foram consumidos em larga escala, mas além de
simples guloseimas, foram considerados importantes para uma boa saúde. Barquera
(1830) aconselhava o consumo de uma libra de açúcar por dia. Segundo o autor,
esse costume asseguraria uma longevidade para além dos 90 anos. Thomas Gage,
em seu Nuevo reconocimiento de las Indias Orientales, relata como era capaz de
passar a noite em vigília graças ao consumo de cacau. Sobre esse tema, temos um
curioso estudo do historiador Antonio León de Pinelo publicado em 1603, que é o
Questión moral si el chocolate quebranta el ayuno eclesiástico.
Mas para além das questões biomédicas que envolvem o açúcar e seus
derivados, registra-se o lado afetivo e social que esse produto teve nas sociedades
americanas que durante o seu período colonial foram centros produtores ou de
abundante circulação de açúcar. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo o
estudo e resgate de um livro de receitas que nos fornece uma visão das práticas
alimentares dos habitantes do virreinato da Nova Espanha, com foco no consumo de
açúcar. O texto é o Libro de cocina, da célebre poeta e freira jerônima Sor Juana
Inés de la Cruz, escrito no século XVII. Paralelamente aos temas citados, e partindo
de uma abordagem ecocrítica proposta por Garrard (2006), integram o nosso
objetivo as problematizações sobre a produção e distribuição do açúcar na
sociedade colonial, bem como as formas de pensar a natureza de então. A
metodologia empregada tem sua base nos Estudos Literários Coloniais, na História
da Vida Cotidiana e na História dos Materiais. Nesse sentido, utiliza-se neste
trabalho fontes digitais através das quais se tentou recriar a dinâmica alimentar nos
costumes culturais novohispanos, relacionados com a convivência e com o
conhecimento do entorno natural.
A natureza e o açúcar novohispanos.
A Nova Espanha foi um reino sob o domínio da Coroa Espanhola que existiu
de 1535 a 1821. Durante a sua máxima expansão territorial, a Nova Espanha
correspondeu ao que hoje é o Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada, Novo México e
Utah nos Estados Unidos, chegando à Costa Rica, tendo como capital a Cidade do
México. Comportava também o arquipélago das Filipinas, na Ásia. Pela sua
dimensão geográfica, pode-se supor a diversidade natural, cultural e política que o
território novo-hispano compreendia. O jesuíta Joseph de Acosta, em sua Historia
natural y moral de las Indias, publicada em Sevilha em 1590, relata que nos
territórios americanos “se han hallado tres géneros de gobierno y vida en los indios”
(p. 430). Os governos mais complexos estavam representados pelos impérios de
Moctezuma no México ou pelos incas no Perú, que eram repúblicas à maneira
aristotélica e com notório nível de desenvolvimento na agricultura. Logo, o jesuíta
utiliza o termo “behetrías” para se referir às comunidades que possuíam dimensões
espaciais e demográficas mais reduzidas que o primeiro grupo, como os araucanos.
Por fim, o terceiro grupo enquadrava os povos “totalmente bárbaros”, que ainda
viviam como recoletores. O padre Joseph de Acosta, porém, transpassa na sua obra
a próspera natureza americana, a qual Caminha já havia relatado ao chegar ao
Brasil em 1500 e outros inúmeros relatos atestam. A natureza que os
conquistadores encontraram nas terras americanas é digna dos mais fabulosos e
idílicos escritos.
O continente aparece como uma cornucópia: as árvores são sempre verdes,
as águas são infinitas, o clima é ameno, a possibilidade de achar ouro e
espécies é sempre grande, os indígenas nus, saudáveis e carentes de toda
religião ou “seita” são mansos e haverão de se converter ao Cristianismo
em pouco tempo. (CORDIVIOLA, 2009, p. 74).
Uma postura diferente adota Ortiz Díaz (2009) na sua tese La fusión de
tendencias culinarias: cuatro libros de cocina novohispanos en la segunda mitad sel
siglo XVIII. A autora analisa o receituário de Dominga Guzmán e o compara com
outros livros de cozinha daquela centúria, chegando à conclusão que então já estava
em marcha um processo de mestiçagem gastronômica. Como exemplo, Ortiz Díaz
(2009, p. 59) cita a decaída no consumo de carne de rês (produto típico espanhol)
em detrimento de carnes mais presentes na dieta dos nativos, como a de perú.
O processo de conquista requereu a aquisição de uma nova cognição
(MIRANDA POZA, 2007, p. 70). O lugar ao qual havia chegado Colombo
apresentava uma diversidade ecológica que a língua espanhola era então incapaz
de abarcar. Fernández de Oviedo, cronista do século XVI, ao escrever para
destinatários que não vivam no contexto colonial, descreve um sapotizeiro da
seguinte maneira:
Pode-se afirmar que a prática culinária não era desconhecida de Sor Juana.
Embora não estivesse tal tema à frente nos seus interesses intelectuais, nota-se,
através do seu receituário, uma preocupação por preservar e transmitir. Essa
afirmação parece ganhar força se considerarmos a função de centro intelectual que
os conventos desempenhavam na sociedade novohispana (SCHMIDHUBER, 2010).
No Libro de Cocina de Sor Juana, as receitas doces se sobrepõem às
salgadas e podemos numerar 16 receitas que têm o açúcar entre os ingredientes.
Como citamos, uma das funções de receituário é a de registrar a dinâmica alimentar
de um determinado setor de uma sociedade. Sendo o livro de cozinha condicionado
à disponibilidade de ingredientes e pelo fácil acesso ao açúcar que havia então,
podemos afirmar que desde as primeiras décadas da conquista, as receitas
açucaradas tiveram uma fácil aceitação nas cozinhas americanas, sendo
transmitidas oralmente (diferente de Sor Juana, a maioria das mulheres não eram
alfabetizadas). Se os ingredientes são o que melhor caracterizam um receituário,
assim como os utensílios, não são eles estáticos. A depender da situação e da
disponibilidade, podem sofrer variação na quantidade ou podemos observar uma
substituição equivalente. Em algumas receitas o açúcar divide o protagonismo com
outros produtos, nativos ou não. É o caso da receita de Turco de maíz cacaguazintle,
que tem o milho como ingrediente também de destaque, além de ser uma das
receitas mais detalhadas do livro de Sor Juana:
Conclusão
Acosta, J. :. d. (1590). Historia natural y moral de las Indias, en que se tratan las
cosas notables del cielo, y elementos, metales, plantas, y animales dellas: y los ritos,
y ceremonias, leyes, y gouierno, y guerras de los Indios. Compuesta por el padre
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