Você está na página 1de 14

As doces receitas de Sor Juana: uma abordagem ecocrítica.

Luiz Carlos de Barros Silva1


Resumo
A dinâmica alimentar de uma sociedade, além de a caracterizar, é movida
pelo entorno natural e pelos processos culturais que nela estão presentes. Nesse
sentido, neste artigo estudamos o papel do açúcar no Libro de Cocina, uma obra da
poeta Sor Juana Inés de la Cruz, que somente veio à luz no último século. A obra da
freira jerônima foi escrita, aparentemente, com o objetivo de reunir as receitas do
convento onde vivia em clausura. Para além desse objetivo, o Livro de Cocina nos
serve de valioso registro do contexto alimentar do reino na Nova Espanha e de como
o açúcar, alimento trazido pelo conquistador espanhol, ganhou destaque na
América, criando em seu entorno uma sociedade açucareira caracterizada pela mão
de obra de negros e indígenas escravizados e pela ocupação dos espaços naturais
em prol da monocultura. Assim, a partir do ecocriticismo de Garrard (2006),
analisamos o conceito de natureza americana e como os processos passados
justificam a situação ecológica presente.

Resumen
La dinámica alimentar de una sociedad, además de caracterizarla, está
impulsada por el entorno natural y los procesos culturales que en ella están
presentes. En este sentido, en este artículo estudiamos el papel del azúcar en el
Libro de Cocina, obra de la poeta Sor Juana Inés de la Cruz, que vino a luz apenas
en el siglo pasado. La obra de la monja jerónima fue escrita, al parecer, con el
objetivo de recoger las recetas del convento donde vivía en clausura. Además de
este objetivo, el Libro de Cocina sirve como un valioso registro del contexto
alimentario del reino novohispano y de cómo el azúcar, alimento traído por el
conquistador español, ganó protagonismo en América, creándose en su entorno una
sociedad azucarera caracterizada por el trabajo de negros e indígenas esclavizados
y por la ocupación de espacios naturales a favor del monocultivo. Así, a partir de la
ecocrítica de Garrard (2006), analizamos el concepto de naturaleza americana y
como los procesos pasados justifican la situación ecológica presente.

1
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), na área de Teoria da Literatura. Bolsista
FACEPE. Contato: luiz.carlosbarros@ufpe.br
Introdução

Talvez seja difícil para um nutricionista pensar que em um tempo não muito
passado, produtos que hoje estariam regulados em uma dieta saudável, como o
açúcar e o chocolate, não só foram consumidos em larga escala, mas além de
simples guloseimas, foram considerados importantes para uma boa saúde. Barquera
(1830) aconselhava o consumo de uma libra de açúcar por dia. Segundo o autor,
esse costume asseguraria uma longevidade para além dos 90 anos. Thomas Gage,
em seu Nuevo reconocimiento de las Indias Orientales, relata como era capaz de
passar a noite em vigília graças ao consumo de cacau. Sobre esse tema, temos um
curioso estudo do historiador Antonio León de Pinelo publicado em 1603, que é o
Questión moral si el chocolate quebranta el ayuno eclesiástico.
Mas para além das questões biomédicas que envolvem o açúcar e seus
derivados, registra-se o lado afetivo e social que esse produto teve nas sociedades
americanas que durante o seu período colonial foram centros produtores ou de
abundante circulação de açúcar. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo o
estudo e resgate de um livro de receitas que nos fornece uma visão das práticas
alimentares dos habitantes do virreinato da Nova Espanha, com foco no consumo de
açúcar. O texto é o Libro de cocina, da célebre poeta e freira jerônima Sor Juana
Inés de la Cruz, escrito no século XVII. Paralelamente aos temas citados, e partindo
de uma abordagem ecocrítica proposta por Garrard (2006), integram o nosso
objetivo as problematizações sobre a produção e distribuição do açúcar na
sociedade colonial, bem como as formas de pensar a natureza de então. A
metodologia empregada tem sua base nos Estudos Literários Coloniais, na História
da Vida Cotidiana e na História dos Materiais. Utiliza-se neste artigo fontes digitais
através das quais se tentou recriar a dinâmica alimentar nos costumes culturais
novohispanos, relacionados com a convivência e com o conhecimento do entorno
natural.

A natureza e o açúcar novohispanos.

A Nova Espanha foi um reino sob o domínio da Coroa Espanhola que existiu
de 1535 a 1821. Durante a sua máxima expansão territorial, a Nova Espanha
correspondeu ao que hoje é o Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada, Novo México e
Utah nos Estados Unidos, chegando à Costa Rica, tendo como capital a Cidade do
México. Comportava também o arquipélago das Filipinas, na Ásia. Pela sua
dimensão geográfica, pode-se supor a diversidade natural, cultural e política que o
território novo-hispano compreendia. O jesuíta Joseph de Acosta, em sua Historia
natural y moral de las Indias, publicada em Sevilha em 1590, relata que nos
territórios americanos “se han hallado tres géneros de gobierno y vida en los indios”
(p. 430). Os governos mais complexos estavam representados pelos impérios de
Moctezuma no México ou pelos incas no Perú, que eram repúblicas à maneira
aristotélica e com notório nível de desenvolvimento na agricultura. Logo, o jesuíta
utiliza o termo “behetrías” para se referir às comunidades que possuíam dimensões
espaciais e demográficas mais reduzidas que o primeiro grupo, como os araucanos.
Por fim, o terceiro grupo enquadrava os povos “totalmente bárbaros”, que ainda
viviam como recoletores. O padre Joseph de Acosta, porém, transpassa na sua obra
a próspera natureza americana, a qual Caminha já havia relatado ao chegar ao
Brasil em 1500 e outros inúmeros relatos atestam. A natureza que os
conquistadores encontraram nas terras americanas é digna dos mais fabulosos e
idílicos escritos.
O continente aparece como uma cornucópia: as árvores são sempre verdes,
as águas são infinitas, o clima é ameno, a possibilidade de achar ouro e
espécies é sempre grande, os indígenas nus, saudáveis e carentes de toda
religião ou “seita” são mansos e haverão de se converter ao Cristianismo
em pouco tempo. (CORDIVIOLA, 2009, p. 74).

A cana-de-açúcar, porém, não é uma espécie de origem americana, mas para


cá foi trazida pelos conquistadores. A história do açúcar é uma história de expansão.
Gilberto Freyre, em Assucar (1932), ressalta a origem oriental da cana-de-açúcar e
sua expansão pelo continente asiático. Através dos árabes, o açúcar chega à
Península Ibérica, sendo um produto bastante popular em Al-Andalus. Embora o
açúcar novohispano não tenha sido um produto principalmente destinado à
exportação, como no Brasil, não deixou de congregar e formar ao seu redor uma
espécie de sociedade açucareira. Sobre o contexto comercial da Nova Espanha no
século XVII, Assadourian (2005) afirma:

La oferta de tabaco fue monopolizada después de 1612 por la colonia


inglesa de Virginia, el cacao tenía en ese tiempo en Europa un uso
solamente medicinal, la demanda de cueros estaba prácticamente cubierta
por los mismos intercambios intra europeos mientras la exportación de lana
–que hacia 1580 intentaron los criadores de oveja de la Nueva España– fue
vetada por la metrópolis para no lesionar su propia producción interna.
Queda el azúcar. En Nueva España y el espacio andino, como ya se ha
señalado en este texto, hubo un impresionante desarrollo de su cultivo pero
estuvo absolutamente dirigido hacia el consumo interno. Las plantaciones
de caña de azúcar, en consecuencia, solo definieron como economías agro
exportadoras al área de las Antillas –Cuba de manera sobresaliente– y a
Brasil (ASSADOURIAN, 2005, p. 12).

A fazenda açucareira novohispana, assim como no Brasil, dependia do


trabalho forçado de africanos de forma quase exclusiva. Durante o século XVII, o
fluxo de escravizados foi contínuo, mesmo nos anos de instabilidade na oferta e
demanda das safras. Assim, na fazenda açucareira novohispana formou-se uma
verdadeira comunidade de negros que eram os encarregados do processo desde a
colheita até a destribuição.
O contexto do cultivo do açúcar que englobava os negros e nativos
escravizados, também se extendia à natureza. A consciência ecológica que a atual
geração está desenvolvendo não parece pertencer a uma antiga tradição da cultura
ocidental, mas sim ter raízes nas reflexões que a partir do século XIX dominaram os
espaços científicos com as nascentes ciências naturais e acalentadas pelas teorias
de célebres pesquisadores, como Charles Darwin. Pela primeira vez se considera a
possibilidade de este mundo chegar ao fim, não pelas vias religiosas ou
messiânicas, mas pela degradação causada pelos próprios humanos. Assim como
outras antigas espécies não se adaptaram a ambientes desfavoráveis e hostis, como
o ser humano, uma espécie a mais, resistia a tais contextos?
Se hoje percebemos a natureza como um conjunto que está em constante
ameaça, diferimos da visão que há alguns séculos, pela época que Sor Juana
escrevia o seu livro, tinha-se da natureza, em especial, a americana: um depósito
ilimitado de recursos, quando não a de um locus amoenus digno das mais idílicas
idealizações. O jesuíta Cristóbal de Acuña, no começo do seu famoso texto Nuevo
descubrimiento del gran río de las Amazonas, ao se referir à visão dos territórios
amazônicos diz que “asoma a menudo la perspectiva de lo maravilloso, coherente
con la imagen del Nuevo Mundo” (p. 34). Abundantes são os cronistas que
compartilham dessa imagem. De acordo com Walter Benjamin:

Para o Barroco a natureza era dotada de fins na medida em que sua


significação podia exprimir-se, em que seu sentido podia ser representado
emblematicamente, de forma alegórica e como tal irreconciliavelmente
distinta de sua realização histórica. Em seus exemplos morais e suas
catástrofes, a história era vista apenas como um momento substantivo da
emblemática. A fisionomia rígida da natureza significativa permanece
vitoriosa, e de uma vez por todas a história está enclausurada no adereço
cênico. (BENJAMIN, 1984, 193)

A ecocrítica, tida desde o ponto de vista acadêmico e quando se refere à


literatura, representa uma nova perspectiva nos estudos literários ao traçar relações
entre literatura e meio ambiente. O nascimento dessa vertente crítica se fez urgente
em face da conscientização ambiental e dos esforços que vários países fizeram na
tentativa de barrar a crise climática, que é resultado, entre outros motivos, da má
gestão que os seres humanos fizeram da natureza, sejam os do presente como os
do passado.
De acordo com Garrard (2006), a ecocrítica está diante da necessidade de
pensar sua relação com a globalização de maneira a estar posicionada frente aos
problemas decorrentes das questões globais atuais (e passadas, poderíamos
agregar), tendo como uma das finalidades a de formular uma poética da
responsabilidade, além da necessidade de lançar luz sobre experiências de leitura
que possibilitam o debate ecológico.
Além da tendência pós-colonial, Garrard (2006, p. 14) afirma que a ecocrítica
tem “uma modalidade de análise confessadamente política [...] os ecocríticos
costumam vincular explicitamente suas análises culturais a um projeto moral e
político 'verde'''. Glen A. Love lembra que a ecocrítica inclui temas como:

nature writing, deep ecology, the ecology of cities, ecofeminism, the


literature of toxicity, environmental justice, bioregionalism, the lives of
animals, the revaluation of place, interdisciplinarity, eco-theory, the
expansion of the canon to include previously unheard voices, and the
reinterpretation of canonical works from the past (LOVE APUD MENDES,
2020, p. 10).

Na sua obra, Garrard (2006, p. 89) aborda o processo de colonização ocorrido


na América e na Oceania, mas “particularmente os Estados Unidos, o Canadá e a
Austrália -, com suas paisagens aparentemente indomadas e a clara distinção entre
as forças da cultura e da natureza”. Se estendermos a análise do autor aos
territórios latino-americanos, obteremos um aprofundamento dos enfoques
apresentados. Com a conquista europeia, os territórios americanos sofreram uma
acelerada submissão natural às exigências de produção dos conquistadores, como a
difusão da monocultura e da criação de res. Uma nova utilização dos recursos
naturais foi imposta. Começa-se nas cidades e nos campos o processo de
marginalização. Como afirma von Wobeser:
El surgimiento y posterior crecimiento y expansión de las unidades
productivas de españoles trajo consigo profundas transformaciones
económicas y sociales en la región. La economía de subsistencia
paulatinamente se fue convirtiendo en una economía mercantil. La
producción, que en un principio estaba en manos de los indios, pasó a
manos de los españoles. El paisaje agrario y el equilibrio ecológico se
transformaron con la introducción de las nuevas plantas y del ganado. La
caña empezó a extenderse, ocupó las mejores tierras y desplazó las milpas
y los campos algodoneros. Los sistemas de trabajo intensivo fueron
sustituidos por los extensivos, que mediante el uso del arado y los animales
de tiro lograron cultivar grandes extensiones de tierra con un mayor
rendimiento por unidad de trabajo invertida. Por último, muchos indígenas
perdieron su libertad al ser despojados de sus tierras y tener que sumarse a
los contingentes de trabajadores de las haciendas azucareras (WOBESER,
2004, p. 16).

O extrativismo, como bem lembra Alberto Acosta (2016, p. 25), é um termo


que se relaciona com conceitos como o saque, acumulação, concentração e
devastação coloniais. A partir das demandas da metrópole europeia e dos nascentes
centros comerciais, o cenário natural americano sofreu significativas alterações,
como o desenvolvimento da monocultura do cacau e do açúcar, bem como o
estabelecimento de centros de mineração ou expansão de áreas destinadas à
criação de gado. O resultado dessas formas de organização passadas nota-se
atualmente na urgente agenda ambiental dos países latino-americanos, assim como
nas formas de neo-colonialismos que sobre eles atuam (ACOSTA, 2016, p. 27).
Rapidamente, os trapiches e engenhos foram se multiplicando nos territórios
novohispanos. Por exemplo, de acordo com Gisela von Wobeser (2004, p. 65), em
Cuernavaca e Cuautla, no atual estado mexicano de Morelos, durante as primeiras
déxadas do século XVII, cerca de 20 engenhos e trapiches eram responsáveis pela
produção de açúcar naquela região. Pouco tempo depois, já na segunda metade
daquele século, essas unidades ampliaram, se consolidaram e aumentaram
consideravelmente sua produção. De acordo com a historiadora, “hacia 1680 los
capitales invertidos en la industria [azucarera] sobrepasaban a los de las haciendas
trigueras, lo que quiere decir que se consumía más azúcar que pan de trigo” (p. 65).

O livro de receitas de Sor Juana Inés de la Cruz

Em uma de crônica de 1878 em O Cruzeiro, Machado de Assis (1938, p. 12)


afirma que “no meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos
investigadores do nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode
parecer vulgar a espíritos vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente
significativo”. Machado fazia eco então ao que até hoje parece ser um problema de
crítica e de classificação: os manuais de cozinha.
Os livros de cozinha pertencem a um gênero antigo. De re coquinaria, um
compêndio de receitas culinárias da Roma antiga, que é um dos exemplos mais
destacados do gênero, data do século primeiro. Alguns séculos antes, na
Hedypatheia, um poema satírico escrito em data incerta, Arquéstrato põe na boca de
um dos seus personagens, um cozinheiro, como possivelmente foi o autor, uma
pergunta interessante: “Não sabes que a arte culinária contribuiu mais para a vida
benevolente do que qualquer outra arte?”.
Refletindo sobre isso, podemos afirmar que os livros de cozinha, dada a sua
antiguidade e abundância na literatura ocidental, cumprem três funções principais:
registrar, conservar e transmitir o patrimônio culinário de uma época ou povo.
Porém, em uma sociedade que sofre o processo de conquista e colonização, como
se observou na Nova Espanha, ainda que as receitas contivessem ingredientes e
utensílios nativos, a forma e os temas obedecem a uma tradição pré-estabelecida, a
do conquistador. Nesse sentido, León García (1997) afirma que ainda no século
XVIII não é possível estabelecer uma mestizaje gastronómico em todos os grupos
sociais da sociedade novohispana. Para defender sua hipótese, a autora argumenta
que, por exemplo, nos livros de cozinha novohispanos, a utilização de ingredientes
nativos ainda não era expressiva. De acordo com León García, a mestizaje
gastronómico se desenvolveu apenas no século XX, em paralelo com o discurso de
uma identidade nacional mexicana. Assim, após fazer um levantamento quantitativo
dos sabores e ingredientes do receituário de Dominga Guzmán, um importante livro
de receitas do século XVIII, a autora conclui que, embora haja uma aceitação de
ingredientes nativos, o modo de preparo e de registro são espanhóis.

Las evidencias de la cuantificación permitieron pensar en la acción de la


política nacionalista conformadora de la representación de la nación
mexicana. Su discurso impone maneras de comer que identifican a la
“cocina mexicana” y unifican la historia de la alimentación en detrimento de
la variedad cultural, de las costumbres de diferentes sectores de la
población y de los platillos regionales. Complementar este análisis de las
recetas en el libro de Dominga de Guzmán implicaba una emoción suprema.
Tendríamos elementos para dejar de escuchar tantos lugares comunes con
los que se habla de la “cocina mexicana”, resultante mestizada del
“encuentro entre la olla de barro y el cazo de cobre” o “entre el chile y la
manteca” (LEÓN GARCÍA APUD ORTIZ DÍAZ, 2009, p. 53).
Uma postura diferente adota Ortiz Díaz (2009) na sua tese La fusión de
tendencias culinarias: cuatro libros de cocina novohispanos en la segunda mitad sel
siglo XVIII. A autora analisa o receituário de Dominga Guzmán e o compara com
outros livros de cozinha daquela centúria, chegando à conclusão que então já estava
em marcha um processo de mestiçagem gastronômica. Como exemplo, Ortiz Díaz
(2009, p. 59) cita a decaída no consumo de carne de rês (produto típico espanhol)
em detrimento de carnes mais presentes na dieta dos nativos, como a de perú.
O processo de conquista requereu a aquisição de uma nova cognição
(MIRANDA POZA, 2007, p. 70). O lugar ao qual havia chegado Colombo
apresentava uma diversidade ecológica que a língua espanhola era então incapaz
de abarcar. Fernández de Oviedo, cronista do século XVI, ao escrever para
destinatários que não vivam no contexto colonial, descreve um sapotizeiro da
seguinte maneira:

Acana es un árbol grande, e la hoja cuasi como la del


peral. La fructa es tamaña como un huevo e de aquella
hechura, e huele muy bien, como una camuesa, e así
está amarilla, e tiene el cuero o corteza delgada. El sabor
es como proprio queso; y aun si mucho se trae en la
mano, huele a queso, e es buena fructa e de buena
digestión (OVIEDO, 1851, p. 309).

A partir dessas informações, podemos afirmar que os livros de cozinha, para


além das suas funções principais citadas, têm um papel documental importante, já
que são um registro da culinária de determinada época, de sua evolução e
adaptação. Nesse sentido, a gastronomia não poderia ser um tema alheio à autora
do texto estudado neste trabalho. É conhecida a personalidade polifacética de Sor
Juana. Durante os seus 44 anos de vida, a freira jerônima se dedicou à poesia, ao
teatro, à escrita em prosa, à teologia e também à astronomia. Um manuscrito
divulgado há algumas décadas veio desvelar outra área à qual a freira parece ter
dado bastante atenção: a cozinha. Trata-se do Libro de cocina (1979), cuja edição
esteve a cargo da Profa. Dra. Josefina Muriel de González Mariscal. O Libro de
cocina é uma coleção e seleção de receitas que Sor Juana parece ter preparado
para integrar o livro de cozinha do Convento de San Jerónimo, onde vivia em
clausura. É importante uma reflexão acerca das condições de produção dessa obra
pouco estudada de Sor Juana. Teria escrito a freira esse folheto por vontade própria,
ou para satisfazer as obrigações do convento que escolhera como casa? Ou teria
Sor Juana, que viu na clausura uma espécie de liberdade, expandido sua atividade
de criação a tal ponto que hoje entre seus escritos podemos encontrar esse
documento da cozinha barroca? Porém, o interesse da poeta pela cozinha não é só
demonstrado através desse achado paleográfico. Na sua conhecida Respuesta de la
poetisa a la muy ilustre sor Filotea de la Cruz, afirma Sor Juana:

Pues ¿qué os pudiera contar, Señora, de los secretos naturales que


he descubierto estando guisando? Veo que un huevo se une y fríe en
la manteca o aceite y, por contrario, se despedaza en el almíbar; ver
que para que el azúcar se conserve fluida basta echarle una muy
mínima parte de agua en que haya estado membrillo a otra fruta
agria; ver que la yema y clara de un mismo huevo son tan contrarias,
que en los unos, que sirven para el azúcar, sirve cada una de por sí y
juntos no. Por no cansaros con tales frialdades, que sólo refiero por
daros entera noticia de mi natural y creo que os causará risa; pero,
señora, ¿qué podemos saber las mujeres sino filosofías de cocina?
Bien dijo Lupercio Leonardo, que bien se puede filosofar y aderezar
la cena. Y yo suelo decir viendo estas cosillas: Si Aristóteles hubiera
guisado, mucho más hubiera escrito (SOR JUANA, 2006, p. 3).

Pode-se afirmar que a prática culinária não era desconhecida de Sor Juana.
Embora não estivesse tal tema à frente nos seus interesses intelectuais, nota-se,
através do seu receituário, uma preocupação por preservar e transmitir. Essa
afirmação parece ganhar força se considerarmos a função de centro intelectual que
os conventos desempenhavam na sociedade novohispana (SCHMIDHUBER, 2010).
No Libro de Cocina de Sor Juana, as receitas doces se sobrepõem às
salgadas e podemos numerar 16 receitas que têm o açúcar entre os ingredientes.
Como citamos, uma das funções de receituário é a de registrar a dinâmica alimentar
de um determinado setor de uma sociedade. Sendo o livro de cozinha condicionado
à disponibilidade de ingredientes e pelo fácil acesso ao açúcar que havia então,
podemos afirmar que desde as primeiras décadas da conquista, as receitas
açucaradas tiveram uma fácil aceitação nas cozinhas americanas, sendo
transmitidas oralmente (diferente de Sor Juana, a maioria das mulheres não eram
alfabetizadas). Se os ingredientes são o que melhor caracterizam um receituário,
assim como os utensílios, não são eles estáticos. A depender da situação e da
disponibilidade, podem sofrer variação na quantidade ou podemos observar uma
substituição equivalente. Em algumas receitas o açúcar divide o protagonismo com
outros produtos, nativos ou não. É o caso da receita de Turco de maíz cacaguazintle,
que tem o milho como ingrediente também de destaque, além de ser uma das
receitas mais detalhadas do livro de Sor Juana:

Puesto el maíz como para niscomil (sic) después lavado, despuntado y


molido como para tamales se Ie revuelve manteca, azúcar y las yemas que
quieras, con tal que no sean muchas; Ileva picadillo con pasas, almendra,
acitrón, piñones, alcaparras, huevo cocido y una punta de dulce. Se va
moliendo como para tortillas de metate y se va echando en la cazuela untada
con manteca. Después el picadillo y Iuego otra capa de masa y puesto a dos
fuegos untándole manteca con unas plumas y así que está cocido se Ie echa
azúcar en polvo y aparta (SOR JUANA, 1979, p. 26).

Os títulos do livro de cozinha de Sor Juana são bastante chamativos. Pelos


títulos, pode-se entrever o entorno social em que são transmitidas as receitas.
Podemos classificá-los, a priori, em três grupos: 1) os que fazem referência ao local
onde foi criado ou se desenvolveu: Clemole de Oaxaca, Pollas portuguesas, etc.; 2)
aqueles que refletem no título o ingrediente principal, embora não fazem alusão ao
preparo nem à quantidade: Purín de espinacas, Torta de arroz, Ante de betabel,
Buñuelos de queso, etc.; 3) os títulos que têm uma forte carga metafórica: Ante de
cabecitas de negro y Bien me sabe.
Os livros de cozinha não são apenas a materialização das tendências
culinárias de determinada sociedade, mas podemos entrever neles as
características organizacionais próprias dessa sociedade. Por exemplo, quando Sor
Juana identifica a quantidade dos produtos a ser utilizada pelo preço, podemos
observar as características de uma sociedade altamente hierarquizada, que possui
um centro e uma ou várias margens: “una libra de harina”, “una libra de azúcar”, “dos
reales de Ieche y dos tortas de mamón de real y medio y doce huevos. Se echan las
yemas, cuatro mantequillas y dos libras de azúcar”, etc. Das camadas menos
privilegiadas que não dispunham de recursos para receitas tão elaboradas, por
exemplo, vêm pratos hoje populares e representativos da gastronomia
latino-americana, como o cebiche e a cazuela.
No que diz respeito às recomendações, procedimento e ações dadas pela
cozinheira, observamos o caráter oral das receitas, ou seja, à medida que se relata o
modo de preparo se atua dentro da cozinha. A narração é dinâmica, sequenciada,
sem pausa, indicando uma ação imediata e tendo apenas vírgulas e pontos como
pausa, sem nenhum momento prévio. Na receita do Guisado prieto, por exemplo,
Sor Juana se dirige diretamente ao cozinheiro:
En iguales partes de agua y vinagre, cocerás la carne, Iuego muele
jitomate, canela, clavo, pimienta y puesto a freír con rebanadas de
cebolla y perejil, bastante desahogado, así que está hecho el caldillo,
su azafrán, suve (sic) haciendo como la capirotada a una capa (DE
LA CRUZ, 1979, p. 27).

Apesar do seu conteúdo sintético, o receituário de Sor Juana se mostra


bastante completo, uma vez que abrange desde os modos de proceder na cozinha
até como se deve apresentar o prato. Sobre esse último ponto, na receita da Torta
de Arroz, depois de ter todos os ingredientes prontos, “se unta la cazuela con
manteca y se echa la mitad del arroz abajo y Iuego el picadillo y después la otra
mitad del arroz y encima azúcar molida y se pone a dos fuegos (p. 27). Nota-se a
formulação de uma estética na apresentação do prato. No fim da receita do Guijote
cuajado, por exemplo, a poeta recomenda: “...luego otra capa de pan, sigues
haciendo lo mismo hasta llenar la cazuela, la que concluirás con las rebanadas,
después echarás todo el caldo que quedó del gigote, echándole encima una capa de
yemas de huevo batidas” (p. 30).
Difícil é precisar a origem das receitas que Sor Juana transmite. Haveria a
freira se interessado pela arte da cozinha no Convento de San Jerónimo, apenas
registrando o que ouvia e observava das suas irmãs de clausura, ou haveria escrito
no seu livro receitas típicas da sua infância em Amecameca, Yecapixtla e Panoaya,
onde, como se sabe, tinha grande contato com os criados indígenas da sua casa,
com quem teria aprendido a língua nahuat? O que se tem certo é que nas receitas
de Sor Juana percebemos a variedade de sabores que a natureza novohispana
oferecia, com azúcar, betabeles, chiles e chilitos, pasas, alcaparras, almendras,
piñones, aceitunas, jitomate, canela, clavo, pimienta, “todo género de especias,
menos azafrán” (p. 17), mamey, etc.

Conclusão

Na introdução deste trabalho afirmamos que nosso objetivo era evidenciar a


formação de uma cozinha novohispana e o papel do açúcar nela, tendo como objeto
de estudo o Libro de Cocina, de Sor Juana. Para isso, mostramos que desde o
século XVI formou-se um intercâmbio das tendências alimentares entre dois lados
do Atlântico, sendo elas materializadas nos livros de cozinha, um gênero europeu
que representava, na maioria das vezes, os hábitos da elite local. Apesar disso, no
livro de Sor Juana, notamos a abundância da natureza americana e como a
cana-de-açúcar se adaptou a ela, criando ao seu redor uma sociedade açucareira
que dependia da escravização de africanos e indígenas. Se bem a freira jerônima
escreve seguindo a tradição do gênero, notamos nos seus escritos a lenta
introdução na sociedade novohispana de utensílios, gostos e procedimentos com
características nativas.
Integrava o nosso objetivo propor uma reflexão e crítica sobre o contexto de
produção e distribuição do açúcar na Nova Espanha. Partindo do texto de Garrard
(2006), analisamos como o nosso futuro neste planeta é resultado das ações
presentes e passadas e qual o papel da literatura nesta situação . A ausência de
uma reflexão ecológica no passado fez com que soframos os efeitos do
esgotamento dos recursos naturais, fazendo urgente qualquer agenda que trace
objetivos que busquem minimizar os efeitos da crise climática.
Normalmente, os livros de cozinha, como o de Sor Juana, são excelentes
espelhos dos múltiplos aspectos de uma sociedade e seus dilemas, da sua
sensibilidade e do seu cotidiano. No texto estudado, podemos notar a importância
que o açúcar adquiriu na sociedade novohispana, embora fosse a cana-de-açúcar
uma espécie não nativa trazida pelos conquistadores, que encontraram na América
o ambiente propício para a exploração da natureza e o desenvolvimento das ideias
mercantis desenfreadas, o que resultou os problemas ecológicos que vivemos hoje.
Bibliografia

Acosta, A. Aporte al debate: el extractivismo, como categoría de saqueo y


devastación. Negotiating Nature. Imaginaries, Interventions and Resistance. fiar –
forum for inter-american research, Brasília, v. 9.2, p. 25-33, sep. 2016. Disponível
em: https://pub.uni-bielefeld.de/record/2930477. Acesso em: 05 jun. 2022.

Acosta, J. :. d. (1590). Historia natural y moral de las Indias, en que se tratan las
cosas notables del cielo, y elementos, metales, plantas, y animales dellas: y los ritos,
y ceremonias, leyes, y gouierno, y guerras de los Indios. Compuesta por el padre
Ioseph de Acosta religioso de la Compañia de Iesus .... (n.p.): en casa de Iuan de
Leon.
Acuña, C. d. (1641). Nuevo descubrimiento del gran rio de las Amazonas. Espanha:
Impr. del reyno.
Assis, Machado de. Chronicas. v. 4. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1938.
Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e
notas de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
Assadourian, Carlos Sempat AGRICULTURA Y TENENCIA DE LA TIERRA ANTES
Y DESPUÉS DE LA CONQUISTA. Población & Sociedad [en linea]. 2005, (12-13),
3-56[fecha de Consulta 7 de Junio de 2022]. ISSN: 0328-3445. Disponible en:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=386939739001
Cordiviola, A. Uma relação conturbada: interpretações da natureza americana.
Língua e Literatura, São Paulo, v. 29, p. 71-86, 2009.
Cristóbal de Acuña, Nuevo descubrimiento del Gran río de las Amazonas. Editores:
Ignacio Arellano, José María Díez Borque y Gonzalo Santonja. Madrid / Frankfurt,
Universidad Navarra, Iberoamericana, Vervuert, 2009, 181 p.
De la Cruz, Sor. Respuesta de la poetisa a la muy ilustre Sor Filotea de la Cruz. [en
lí­nea] Editorial El Cardo, 2006 [Fecha consulta : 7 de junio 2022].
_____________. Libro de Cocina. Edição a cargo de Josefina Muriel de Gonzáles
Mariscal. México: Asociación Cultural para las Zonas Rurales de Tabasco, 1979.
Gage, s. T., & México, S. d. E. P. (1982). Nuevo reconocimiento de las Indias
Occidentales / Thomas Gage. México: [Dirección General de Publicaciones y
Bibliotecas, Sep ; CONAFE.

GARRARD, Greg. Ecocrítica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

Fernández de Oviedo y Valdés, G. (1851). Historia general y natural de las Indias:


islas y tierra-firme del mar océano. Primera parte. Espanha: Imprenta de la Real
Academia de la Historia.
FREYRE, Gilberto, 1900 – 1987. Açúcar : uma sociologia do doce, com receitas de
bolos e doces do Nordeste do Brasil / Glberto Freyre : com apresentação de Maria
Lecticia Monteiro Cavalcanti ; biobliografia de Edson Nery da Fonseca ; ilustrações
de Manoel Bandeira – 5. Ed. – São Paulo : Global, 2007.

Leon Pinelo, A. d. (1636). Question moral, si el chocolate quebranta el ayuno


eclesiastico. Tratase de otras bebidas j confecciones, que se usan en varias
provincias. Espanha: Goncalez.
MENDES, M. do C. No princípio era a Natureza: percursos da Ecocrítica.
Anthropocenica. Revista de Estudos do Antropoceno e Ecocrítica, [S. l.], v. 1, 2020.
DOI: 10.21814/anthropocenica.3100. Disponível em:
https://revistas.uminho.pt/index.php/anthropocenica/article/view/3100. Acesso em: 7
jun. 2022.

Ortiz Díaz, L. (2014). La fusión de tendencias culinarias: Cuatro libros de cocina


novohispanos en la segunda mitad del siglo XVIII. Pontificia Universidad Javeriana.
POZA, J. A. M. Cognición, estereotipo, imaginario y fantasía en el proceso de
aprehensión de la nueva realidad a través del léxico del castellano: los testimonios
de los Cronistas de Indias. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, v. 63, n. 1,
2019. DOI: 10.1590/1981-5794-1904-2. Disponível em:
https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/10961. Acesso em: 7 jun. 2022.

Schmidhuber, Guillermo. (2019). Los conventos de la Nueva España del siglo XVII
como espacios de desarrollo femenino: el caso del Convento de San Jerónimo de
México. Sincronía. xxiii. 411-432. 10.32870/sincronia.axxiii.n76.21b19.

Wobeser, Gisela von, La hacienda azucarera en la época colonial, 2a. ed.,


fotografías de Mariana Yampolsky, México, Universidad Nacional Autónoma de
México, Instituto de Investigaciones Históricas, 2004,
www.historicas.unam.mx/publicaciones/publicadigital/libros/hacienda/azucarera.html.
Acesso em: 06 de jun. 2022.

Você também pode gostar