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PODER JUDICIÁRIO

Tribunal Regional Federal da 1ª Região


Gab. 09 - DESEMBARGADOR FEDERAL NEY BELLO
Processo Judicial Eletrônico

HABEAS CORPUS CRIMINAL (307)1040447-42.2023.4.01.0000

Processo referência: 1000199-34.2023.4.01.3201

PACIENTE: MARCELO AUGUSTO XAVIER DA SILVA

Advogados do(a) PACIENTE: BERNARDO LOBO MUNIZ FENELON - DF52679-A, RAISSA


FRIDA RORIZ RIBEIRO ISAC - DF51535-A, YASMIN BREHMER HANDAR - PR97751-S

IMPETRADO: JUIZO FEDERAL DA SUBSECAO JUDICIARIA DE TABATINGA - AM

DECISÃO

Cuida-se de ordem de habeas corpus impetrada por Bernardo Fenelon, por Raíssa
Frida Isac e por Yasmin Brehmer Handar, em favor de Marcelo Augusto Xavier, em face de
decisão do Juízo da Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Tabatinga/AM que
indeferiu pedido de trancamento de inquérito policial, pugnando seja, liminarmente, determinada
a suspensão das investigações pertinentes ao paciente nos autos do IPL n. 2022.0037654-
DPF/TBA/AM (cf. fl.14 – doc. n. 354524145).

Para tanto, os impetrantes alegam que, em 12/05/2023, o paciente foi surpreendido


com a notícia acerca do seu indiciamento indireto, pela autoridade policial federal, referente aos
crimes de homicídio e de ocultação de cadáver contra as vítimas Dominic Mark Phillips e Bruno
da Cunha Araújo Pereira. Aduzem, pois, que o indiciamento se lastreou única e exclusivamente
no cargo de Presidente da FUNAI, ocupado pelo paciente até 29/12/2022, evidenciando “clara e
inaceitável tentativa de imposição de responsabilidade penal objetiva” (doc. n. 354524145).

Narram que, diante da ausência de elementos mínimos aptos a justificar o referido


indiciamento, foi apresentada, nos autos n. 1000199-34.2023.4.01.3201, petição requerendo o
trancamento do respectivo inquérito policial em favor do investigado, ora paciente, pleito que
restou indeferido pela autoridade indicada como coatora (doc. n. 356716147).

Informações prestadas pelo Juízo de origem – doc. n. 355629135.

É o relatório. Decido.

Assinado eletronicamente por: NEY DE BARROS BELLO FILHO - 27/11/2023 18:56:49 Num. 368681619 - Pág. 1
https://pje2g.trf1.jus.br:443/pje/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=23111414450867200000357212604
Número do documento: 23111414450867200000357212604
Inicialmente, pontuo que as questões sob exame não dizem respeito estritamente
ao direito de ir e vir do ora paciente, na medida em que não se discute a existência ou não de
fundamentos para prisão cautelar. Contudo, a jurisprudência pátria, capitaneada pela Suprema
Corte, já entendeu ser possível discutir, em sede de habeas corpus, questões desta natureza.

Alega-se, em síntese, que o indiciamento do paciente, por se lastrear apenas e tão


somente no cargo por este ocupado à época dos fatos, constitui inaceitável imposição de
responsabilidade objetiva.

A matéria é plenamente apreciável pela via do habeas corpus, sendo a ausência de


justa causa uma das hipóteses excepcionais de cabimento do writ para fins de trancamento de
procedimento investigatório.

Nesse diapasão, é cristalino o entendimento jurisprudencial acerca do uso do writ


para a suspensão da persecução criminal, em curso contra o ora paciente.

Dou pelo cabimento deste writ.

Por oportuno, anoto que o trancamento ou a suspensão de uma investigação


criminal pela via do habeas corpus somente é autorizada na evidência de uma situação de
excepcionalidade, vista como "a manifesta atipicidade da conduta, a presença de causa de
extinção da punibilidade do paciente ou a ausência de indícios mínimos de autoria e
materialidade delitivas" (HC 110.698 - STF).

Nesse toar, o trancamento de inquérito policial constitui forma anômala de extinção


do procedimento investigatório. Nas lições de Renato Brasileiro:

"A instauração de um inquérito policial contra pessoa determinada traz consigo inegável
constrangimento. Esse constrangimento, todavia, pode ser tido como legal, caso o fato
sob investigação seja formal e materialmente típico, cuide-se de crime cuja punibilidade
não esteja extinta, havendo indícios de envolvimento dessa pessoa na prática delituosa.
Em tais casos, deve a investigação prosseguir. Todavia, verificando-se que a
instauração do inquérito policial é manifestamente abusiva, o constrangimento
causado pelas investigações deve ser tido como ilegal, afigurando-se possível o
trancamento do inquérito policial, objeto de nosso estudo neste tópico.

(LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. Salvador:
Ed. JusPodivm, 2016 - negrito nosso).

Compulsando os autos, verifica-se que o ato formal de indiciamento restou


fundamentado nos seguintes termos:

"Tendo em vista se encontrar devidamente caracterizada a materialidade do Duplo-


Homicídio de Bruno e Dom Phillips, e a ocultação de seus respectivos cadáveres,
inclusive com os executores e demais partícipes devidamente denunciados, e, processo
na fase de instrução de julgamento, bem como no entender do signatário, plenamente
comprovado através da documentação à seguir relacionada: fls. 110/140, fls. 1399-
1405 – Ata de Reunião FUNAI realizada em 09/10/2019, fls. 1341, fls. 1338, bem como
no conteúdo dos Apensos 7, 9 e 10 dos presentes autos, a consciência das
consequências prováveis, bem como o consentimento prévio do resultado
criminoso na esfera volitiva do então Presiente da FUNAI, na sua deliberada
omissão nas devidas medidas de proteção que deveria ter adotado na proteção dos
servidores que tinham o dever de fiscalizar crimes ambientais em Terras Indígenas,

Assinado eletronicamente por: NEY DE BARROS BELLO FILHO - 27/11/2023 18:56:49 Num. 368681619 - Pág. 2
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Número do documento: 23111414450867200000357212604
e concomitante anunciado desmonte da estrutura do órgão nesse sentido, Indicio
MARCELO AUGUSTO XAVIER DA SILVA, CPF: 120.901.688-54, Delegado de Polícia
Federal, Matrícula: 16854, por afrronta aos comandos normativos dos art. 121, caput § 2º,
incisos I e IV; art. 121, caput e § 2º, incisos IV e V; e no art. 211, c/c com o art. 29, nos
termos do art. 18, inciso I, in fine: “assumiu o risco de produzi-lo”, todos do Código Penal.
(doc. n. 354524148)" (destaquei).

Extrai-se, pois, da fundamentação constante do ato de indiciamento, que a


autoridade policial imputa ao ora paciente a assunção do risco de materialização do resultado
(homicídio das vítimas) com fulcro na sua omissão quanto ao dever de proteção dos servidores e
quanto à adoção de providências em relação ao quadro extremamente reduzido de servidores
em exercício.

Destarte, nota-se uma clara tentativa de impor ao paciente a condição de uma


espécie de “garantidor universal”, o que não se admite nem mesmo no âmbito da
responsabilidade civil do Estado, quiçá em relação à responsabilidade criminal de um agente
público.

Com efeito, a doutrina e a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal


entendem que no caso de responsabilidade civil extracontratual por conduta omissiva, a
responsabilização do Estado deve ser de natureza subjetiva, condicionada à demonstração dos
elementos de dolo ou culpa. (RE 369.820, Rel. Min. Carlos Velloso, DJE 27/02/2004 e RE
602.223 AgR, Rel. Min. Eros Grau, DJE 12/03/2010.)

Na hipótese vertente, tem-se como fundamento essencial do indiciamento a ciência


do paciente acerca dos altos índices de violência na região em que os crimes ocorreram. Nesse
toar, cumpre destacar que, a partir dos documentos indicados pela autoridade policial como base
para o precitado ato, vislumbra-se que diversos outros órgãos foram cientificados acerca da
situação periclitante da região no que se refere à segurança pública. Com efeito, extrai-se dos
autos que os ofícios recebidos pela FUNAI, noticiando fatos que já revelavam a insegurança do
local, também foram encaminhados, por exemplo, ao Ministério Público Federal, à Força Nacional
de Segurança Pública em Tabatinga-AM, e, até mesmo, à Delegacia de Polícia Federal em
Tabatinga-AM (doc. n. 354524152).

Não obstante, verifica-se que a imputação, desprovida de demonstração de nexo de


causalidade, incidiu apenas em face do ora paciente, ocupante do cargo de Presidente da FUNAI
à época dos fatos, cargo este que – frise-se – não possui ingerência direta sobre a atuação das
forças de segurança pública. A relação causal, no caso sob exame, só se revelaria possível
diante da aplicação descuidada e leviana do chamado “regressus ad infinitum”, desassociada de
qualquer análise subjetiva.

O simples dever genérico de proteção e de zelo pelo quadro de servidores de


determinada fundação de direito público não pode servir de justa causa para responsabilizar
criminalmente o seu gestor pelos dois crimes de homicídio ocorridos no Vale do Javari. O ato que
visa à imputação dos aludidos crimes apenas e tão somente no cargo ocupado pelo paciente, de
fato, configura responsabilidade penal objetiva, inadmissível no ordenamento jurídico pátrio.

Ademais, cumpre destacar que, para fins de subsunção aos termos do art. 29 do
Código Penal, que trata acerca do concurso de pessoas, revela-se imprescindível o liame
subjetivo, que não se vislumbra minimamente no caso vertente.

Assinado eletronicamente por: NEY DE BARROS BELLO FILHO - 27/11/2023 18:56:49 Num. 368681619 - Pág. 3
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Número do documento: 23111414450867200000357212604
Acerca do referido pressuposto do concurso de agentes, leciona Cleber Masson:

Vínculo subjetivo: Esse requisito, também chamado de concurso de vontades, impõe


estejam todos os agentes ligados entre si por um vínculo de ordem subjetiva, um
nexo psicológico, pois caso contrário não haverá um crime praticado em concurso,
mas vários crimes simultâneos. Os agentes devem revelar vontade homogênea,
visando à produção do mesmo resultado. É o que se convencionou chamar de
princípio da convergência. Logo, não é possível a contribuição dolosa para um crime
culposo, nem a concorrência culposa para um delito doloso. Sem esse requisito
estaremos diante da autoria colateral. O vínculo subjetivo não depende, contudo, do
prévio ajuste entre os envolvidos (pactum sceleris). Basta a ciência por parte de um
agente no tocante ao fato de concorrer para a conduta de outrem (sci[1]entia sceleris ou
scientia maleficii), chamada pela doutrina de “consciente e voluntária cooperação”,
“vontade de participar”, “vontade de coparticipar”, “adesão à vontade de outrem” ou
“concorrência de vontades”. 1 Não se reclama o prévio ajuste, nem muito menos
estabilidade no agrupamento, o que acarretaria a caracterização do delito de associação
criminosa (art. 288 do CP), se presentes ao menos três pessoas. (MASSON, Cleber.
Código Penal comentado. 2. ed., São Paulo: Gen – Grupo Editorial Nacional, 2014).

Nesse diapasão, inexistindo conjunto probatório mínimo que evidencie qualquer


vínculo entre o ora paciente e os executantes e mandantes dos delitos (que, conforme restou
informado no próprio ato de indiciamento, já estão submetidos à devida persecução penal),
revela-se incabível falar-se em concurso de pessoas.

Excluída a condição de partícipe por conduta omissiva, única adequação que se


revelaria possível no caso em tela, não há fundamento jurídico que sirva de base para justificar
nexo de causal para fins de responsabilidade penal, razão pela qual resulta esvaziado de
validade o ato de indiciamento do paciente.

Ante a irrefutável ausência de justa causa, mostra-se não apenas possível, mas até
mesmo necessária, a suspensão do curso do IPL n. 2022.0037654-DPF/TBA/AM, no que se
refere ao ora paciente, por caracterizar patente constrangimento ilegal. Nesse sentido, trilha a
mansa jurisprudência dos Tribunais Superiores:

(...). 2. O habeas corpus é via adequada ao trancamento da ação penal apenas em casos
excepcionais, de evidente atipicidade da conduta, extinção da punibilidade ou ausência de
justa causa. Foi demonstrada tal hipótese a partir da instauração de persecução
penal temerária. 3. Peça acusatória genérica que não observou todas as exigências
formais do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez não evidenciados os elementos
essenciais da figura típica do delito imputado ao paciente (homicídio qualificado), o que,
ao permitir o entendimento sobre os fatos atribuídos na denúncia, possibilitaria o pleno
exercício do direito de defesa. A denúncia é inepta notadamente pela ausência de
efetiva demonstração da participação do paciente na conduta alegadamente
criminosa. 4. A falta de indícios de autoria evidencia ausência de justa causa, condição
imprescindível para o recebimento da denúncia, o que revela excepcionalidade apta a
justificar o trancamento da ação penal ( CPP, art. 395, III). 5. Não se admite como justa
causa para a instauração da ação penal contra o paciente o simples fato de ser ele
“patrono de Escola de Samba”, empregador ou ex-empregador de um ou alguns dos
demais acusados, sem que estejam minimamente identificados o nexo de
causalidade entre a conduta a ele imputada e o dano causado e, ainda, o liame
subjetivo entre o autor e o fato supostamente criminoso, sob pena de indevida
aplicação da responsabilidade penal objetiva. 6. A ausência de apreciação, pela
autoridade policial responsável, de pedido, formulado pela defesa, de acesso ao
procedimento investigatório sinaliza evidente desrespeito às garantias constitucionais
fundamentais que permeiam o devido processo legal na esfera da persecução

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penal, quais sejam, a ampla defesa e o contraditório (CF, art. 5º, LV), bem assim
inobservância do enunciado vinculante n. 14 da Súmula. 7. A presença de ilegalidade
evidente autoriza a superação do consagrado entendimento jurisprudencial no que toca ao
óbice da supressão de instância. 8. Habes corpus não conhecido, mas ordem concedida
de ofício ( CPP, art. 654, § 2º).

(STF, HC: 205000 RJ 0058761-03.2021.1.00.0000, Segunda Turma, Rel. Min. Nunes


Marques, Data de Publicação: 28/04/2022.) – Destaquei.

Assim, no caso vertente, observo ser extremamente plausível a tese desenvolvida


nesse habeas corpus, o que supre com folga a necessária fumaça do bom direito para a
concessão da ordem de habeas corpus requerida.

Na espécie vertente, a excepcionalidade apta a ensejar a interrupção da persecução


penal, em face do ora paciente, restou evidenciada, ante a ocorrência inequívoca de indiciamento
pautado em responsabilidade penal objetiva, em grave violação ao devido processo legal e às
garantias constitucionais que lhe são inerentes.

Ante o exposto, defiro o pedido liminar, para determinar o sobrestamento das


investigações em relação ao paciente nos autos do IPL n. 2022.0037654-DPF/TBA/AM, até o
julgamento do mérito do presente habeas corpus.

Comunique-se, com urgência, ao Juízo da Vara Federal Cível e Criminal da


Subseção Judiciária de Tabatinga/AM, enviando-lhe cópia do inteiro teor deste decisum.

Em seguida, encaminhem-se os autos à Procuradoria Regional da República da 1ª.


Região.

Após, voltem-me conclusos os autos.

Intimem-se. Cumpra-se.

Desembargador Federal NEY BELLO

Relator

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Número do documento: 23111414450867200000357212604
PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 1ª Região
Gab. 09 - DESEMBARGADOR FEDERAL NEY BELLO
Processo Judicial Eletrônico

HABEAS CORPUS CRIMINAL (307)1048162-38.2023.4.01.0000

Processo referência: 1000741-52.2023.4.01.3201

PACIENTE: ALCIR AMARAL TEIXEIRA

Advogados do(a) PACIENTE: ALEXANDRE OLIVEIRA BARROSO - DF65744, THALITA CUME


DE OLIVEIRA STEVANATO - DF34912

IMPETRADO: VARA FEDERAL CÍVEL E CRIMINAL DA SSJ DE TABATINGA-AM

DECISÃO

Cuida-se de ordem de habeas corpus impetrada por Alexandre Oliveira Barroso e


Thalita Stevanato, em favor de Alcir Amaral Teixeira, em face de decisão do Juízo da Vara
Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Tabatinga/BA que indeferiu pedido de
trancamento de inquérito policial, pugnando seja, liminarmente, determinada a suspensão das
investigações pertinentes ao paciente nos autos do IPL n. 2022.0037654-DPF/TBA/AM (cf. doc.
n. 377255632).

Para tanto, os impetrantes alegam que o procedimento investigatório foi instaurado


em 08/06/2022, com o escopo de apurar – inicialmente – o desaparecimento Dominic Mark
Phillips e Bruno da Cunha Araújo Pereira, tendo os fatos posteriormente constatados se
amoldado aos tipos penais de homicídio qualificado e de ocultação de cadáver.

Narram, assim, que foi determinada a notificação do paciente, em 18/05/2023,


acerca do seu indiciamento indireto, pela autoridade policial federal, sob o fundamento de que “a
consciência das consequências prováveis, bem como o consentimento prévio do resultado
criminoso na esfera volitiva do então Vice-Presidente da FUNAI, devidamente registrada na Ata
de Reunião com servidores da Coordenação Regional Vale do Javari e a Presidência da FUNAI,
representada no Ato pelo Presidente Substituto, de nº 01, realizada em 09/10/2019, fato que
resultou na omissão das devidas medidas de proteção que deveriam ter sido adotadas na
proteção dos servidores que tinham o dever de fiscalizar crimes ambientais em Terras Indígenas,
e concomitante anunciado desmonte da estrutura do órgão” (doc. n. 377255639).

Assinado eletronicamente por: NEY DE BARROS BELLO FILHO - 19/12/2023 19:39:33 Num. 382177645 - Pág. 1
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Aduzem que o referido indiciamento indireto decorre de aplicação de
responsabilidade penal objetiva, instituto rechaçado pelos Tribunais Superiores, com fulcro
apenas no cargo ocupado pelo paciente à época dos fatos (vice-presidência).

Narram que, diante da ausência de elementos mínimos aptos a justificar o referido


indiciamento, foi impetrado habea corpus (autos n. 1000741-52.2023.4.01.03201), no qual restou
pugnado o trancamento do respectivo inquérito policial em favor do investigado, ora paciente,
pleito que restou indeferido pela autoridade indicada como coatora (doc. n. 377255639 – fls.
52/56).

Informações prestadas pelo Juízo de origem – doc. n. 379996208.

É o relatório. Decido.

Inicialmente, pontuo que as questões sob exame não dizem respeito estritamente
ao direito de ir e vir do ora paciente, na medida em que não se discute a existência ou não de
fundamentos para prisão cautelar. Contudo, a jurisprudência pátria, capitaneada pela Suprema
Corte, já entendeu ser possível discutir, em sede de habeas corpus, questões desta natureza.

Alega-se, em síntese, que o indiciamento do paciente, por se lastrear apenas e tão


somente no cargo por este ocupado à época dos fatos, constitui inaceitável imposição de
responsabilidade objetiva.

A matéria é plenamente apreciável pela via do habeas corpus, sendo a ausência de


justa causa uma das hipóteses excepcionais de cabimento do writ para fins de trancamento de
procedimento investigatório.

Nesse diapasão, é cristalino o entendimento jurisprudencial acerca do uso do writ


para a suspensão da persecução criminal, em curso contra o ora paciente.

Dou pelo cabimento deste writ.

Por oportuno, anoto que o trancamento ou a suspensão de uma investigação


criminal pela via do habeas corpus somente é autorizada na evidência de uma situação de
excepcionalidade, vista como "a manifesta atipicidade da conduta, a presença de causa de
extinção da punibilidade do paciente ou a ausência de indícios mínimos de autoria e
materialidade delitivas" (HC 110.698 - STF).

Nesse toar, o trancamento de inquérito policial constitui forma anômala de extinção


do procedimento investigatório. Nas lições de Renato Brasileiro:

"A instauração de um inquérito policial contra pessoa determinada traz consigo inegável
constrangimento. Esse constrangimento, todavia, pode ser tido como legal, caso o fato
sob investigação seja formal e materialmente típico, cuide-se de crime cuja punibilidade
não esteja extinta, havendo indícios de envolvimento dessa pessoa na prática delituosa.
Em tais casos, deve a investigação prosseguir. Todavia, verificando-se que a
instauração do inquérito policial é manifestamente abusiva, o constrangimento
causado pelas investigações deve ser tido como ilegal, afigurando-se possível o
trancamento do inquérito policial, objeto de nosso estudo neste tópico". (LIMA,
Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. Salvador: Ed.
JusPodivm, 2016 - destaquei).

Assinado eletronicamente por: NEY DE BARROS BELLO FILHO - 19/12/2023 19:39:33 Num. 382177645 - Pág. 2
https://pje2g.trf1.jus.br:443/pje/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=23121816465916300000369862099
Número do documento: 23121816465916300000369862099
Compulsando os autos, verifica-se que o ato formal de indiciamento restou
fundamentado nos seguintes termos:

"Tendo em vista se encontrar devidamente caracterizada a materialidade do Duplo-


Homicídio de Bruno e Dom Phillips, e a ocultação de seus respectivos cadáveres,
inclusive com os executores e demais partícipes devidamente Denunciados, em processo
na fase de instrução de julgamento, bem como no entender do signatário, plenamente
comprovado através da documentação à seguir relacionada: fls. 110/140, fls. 1399-
1405 – Ata de Reunião FUNAI realizada em 09/10/2019, fls. 1341, fls. 1338, bem como
no conteúdo dos Apensos 7, 9 e 10 dos presentes autos, a consciência das
consequências prováveis, bem como o consentimento prévio do resultado
criminoso na esfera volitiva do então Vice-Presiente da FUNAI, devidamente
registrada na Ata de Reunião com servidores da Coordenação Regional Vale do
Javari e a Presidência da FUNAI, representada no Ato pelo Presidente Substituto, de
nº 01, realizada em 09/10/2019, fato que resultou na omissão das devidas medidas de
proteção que deveriam ter sido adotadas na proteção dos servidores que tinham o
dever de fiscalizar crimes ambientais em Terras Indígenas, e concomitante
anunciado desmonte da estrutura do órgão nesse sentido, Indicio ALCIR AMARAL
TEIXEIRA, CPF: 093.359.432-15, ex-Vice-Presidente da FUNAI, Delegado de Polícia
Federal Aposentado, por afronta aos comandos normativos dos art. 121, caput § 2º,
incisos I e IV; art. 121, caput e § 2º, incisos IV e V; e no art. 211, c/c com o art. 29, nos
termos do art. 18, inciso I, in fine: “assumiu o risco de produzi-lo”, todos do Código Penal"
(cf. doc. id. n. 377255639 - negritos nossos).

Extrai-se, pois, da fundamentação constante do ato de indiciamento, que a


autoridade policial imputa ao ora paciente a assunção do risco de materialização do resultado
(homicídio das vítimas e a ocultação dos cadáveres) com fulcro na sua omissão quanto ao dever
de proteção dos servidores e quanto à adoção de providências em relação ao quadro
extremamente reduzido de servidores em exercício.

Destarte, nota-se uma clara tentativa de impor ao paciente a condição de uma


espécie de “garantidor universal”, o que não se admite nem mesmo no âmbito da
responsabilidade civil do Estado, quiçá em relação à responsabilidade criminal de um agente
público.

Com efeito, a doutrina e a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal


entendem que no caso de responsabilidade civil extracontratual por conduta omissiva, a
responsabilização do Estado deve ser de natureza subjetiva, condicionada à demonstração dos
elementos de dolo ou culpa. (RE 369.820, Rel. Min. Carlos Velloso, DJE 27/02/2004 e RE
602.223 AgR, Rel. Min. Eros Grau, DJE 12/03/2010.)

Na hipótese vertente, tem-se como fundamento essencial do indiciamento a ciência


do paciente acerca dos altos índices de violência na região em que os crimes ocorreram. Nesse
toar, cumpre destacar que, a partir dos documentos indicados pela autoridade policial como base
para o precitado ato, vislumbra-se que diversos outros órgãos foram cientificados acerca da
situação periclitante da região no que se refere à segurança pública. Com efeito, extrai-se dos
autos que os ofícios recebidos pela FUNAI, noticiando fatos que já revelavam a insegurança do
local, também foram encaminhados, por exemplo, ao Ministério Público Federal, à Força Nacional
de Segurança Pública em Tabatinga-AM, e, até mesmo, à Delegacia de Polícia Federal em
Tabatinga-AM (doc. n. 377267118).

Não obstante, verifica-se que a imputação, desprovida de demonstração de nexo de

Assinado eletronicamente por: NEY DE BARROS BELLO FILHO - 19/12/2023 19:39:33 Num. 382177645 - Pág. 3
https://pje2g.trf1.jus.br:443/pje/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=23121816465916300000369862099
Número do documento: 23121816465916300000369862099
causalidade, incidiu apenas em face do ora paciente, ocupante do cargo de Vice-Presidente da
FUNAI à época dos fatos, cargo este que – frise-se – não possui ingerência direta sobre a
atuação das forças de segurança pública. A relação causal, no caso sob exame, só se revelaria
possível diante da aplicação descuidada e leviana do chamado “regressus ad infinitum”,
desassociada de qualquer análise subjetiva.

O simples dever genérico de proteção e de zelo pelo quadro de servidores de


determinada fundação de direito público não pode servir de justa causa para responsabilizar
criminalmente o seu gestor pelos dois crimes de homicídio ocorridos no Vale do Javari. O ato que
visa à imputação dos aludidos crimes apenas e tão somente no cargo ocupado pelo paciente, de
fato, configura responsabilidade penal objetiva, inadmissível no ordenamento jurídico pátrio.

Ademais, cumpre destacar que, para fins de subsunção aos termos do art. 29 do
Código Penal, que trata acerca do concurso de pessoas, revela-se imprescindível o liame
subjetivo, que não se vislumbra minimamente no caso vertente.

Acerca do referido pressuposto do concurso de agentes, leciona Cleber Masson:

"Vínculo subjetivo: Esse requisito, também chamado de concurso de vontades, impõe


estejam todos os agentes ligados entre si por um vínculo de ordem subjetiva, um
nexo psicológico, pois caso contrário não haverá um crime praticado em concurso,
mas vários crimes simultâneos. Os agentes devem revelar vontade homogênea,
visando à produção do mesmo resultado. É o que se convencionou chamar de
princípio da convergência. Logo, não é possível a contribuição dolosa para um crime
culposo, nem a concorrência culposa para um delito doloso. Sem esse requisito
estaremos diante da autoria colateral. O vínculo subjetivo não depende, contudo, do
prévio ajuste entre os envolvidos (pactum sceleris). Basta a ciência por parte de um
agente no tocante ao fato de concorrer para a conduta de outrem (sci[1]entia sceleris ou
scientia maleficii), chamada pela doutrina de “consciente e voluntária cooperação”,
“vontade de participar”, “vontade de coparticipar”, “adesão à vontade de outrem” ou
“concorrência de vontades”. 1 Não se reclama o prévio ajuste, nem muito menos
estabilidade no agrupamento, o que acarretaria a caracterização do delito de associação
criminosa (art. 288 do CP), se presentes ao menos três pessoas" (MASSON, Cleber.
Código Penal comentado. 2. ed., São Paulo: Gen – Grupo Editorial Nacional, 2014 -
destaquei).

Nesse diapasão, inexistindo conjunto probatório mínimo que evidencie qualquer


vínculo entre o ora paciente e os executantes e mandantes dos delitos (que, conforme restou
informado no próprio ato de indiciamento, já estão submetidos à devida persecução penal),
revela-se incabível falar-se em concurso de pessoas.

Excluída a condição de partícipe por conduta omissiva, única adequação que se


revelaria possível no caso em tela, não há fundamento jurídico que sirva de base para justificar
nexo de causal para fins de responsabilidade penal, razão pela qual resulta esvaziado de
validade o ato de indiciamento do paciente.

Ante a irrefutável ausência de justa causa, mostra-se não apenas possível, mas até
mesmo necessária, a suspensão do curso do IPL n. 2022.0037654-DPF/TBA/AM, no que se
refere ao ora paciente, por caracterizar patente constrangimento ilegal. Nesse sentido, trilha a
mansa jurisprudência dos Tribunais Superiores:

(...). 2. O habeas corpus é via adequada ao trancamento da ação penal apenas em casos
excepcionais, de evidente atipicidade da conduta, extinção da punibilidade ou ausência de

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Número do documento: 23121816465916300000369862099
justa causa. Foi demonstrada tal hipótese a partir da instauração de persecução
penal temerária. 3. Peça acusatória genérica que não observou todas as exigências
formais do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez não evidenciados os elementos
essenciais da figura típica do delito imputado ao paciente (homicídio qualificado), o que,
ao permitir o entendimento sobre os fatos atribuídos na denúncia, possibilitaria o pleno
exercício do direito de defesa. A denúncia é inepta notadamente pela ausência de
efetiva demonstração da participação do paciente na conduta alegadamente
criminosa. 4. A falta de indícios de autoria evidencia ausência de justa causa, condição
imprescindível para o recebimento da denúncia, o que revela excepcionalidade apta a
justificar o trancamento da ação penal ( CPP, art. 395, III). 5. Não se admite como justa
causa para a instauração da ação penal contra o paciente o simples fato de ser ele
“patrono de Escola de Samba”, empregador ou ex-empregador de um ou alguns dos
demais acusados, sem que estejam minimamente identificados o nexo de
causalidade entre a conduta a ele imputada e o dano causado e, ainda, o liame
subjetivo entre o autor e o fato supostamente criminoso, sob pena de indevida
aplicação da responsabilidade penal objetiva. 6. A ausência de apreciação, pela
autoridade policial responsável, de pedido, formulado pela defesa, de acesso ao
procedimento investigatório sinaliza evidente desrespeito às garantias constitucionais
fundamentais que permeiam o devido processo legal na esfera da persecução
penal, quais sejam, a ampla defesa e o contraditório (CF, art. 5º, LV), bem assim
inobservância do enunciado vinculante n. 14 da Súmula. 7. A presença de ilegalidade
evidente autoriza a superação do consagrado entendimento jurisprudencial no que toca ao
óbice da supressão de instância. 8. Habes corpus não conhecido, mas ordem concedida
de ofício ( CPP, art. 654, § 2º).

(STF, HC: 205000 RJ 0058761-03.2021.1.00.0000, Segunda Turma, Rel. Min. Nunes


Marques, Data de Publicação: 28/04/2022 - grifos nossos).

Assim, no caso vertente, observo ser extremamente plausível a tese desenvolvida


nesse habeas corpus, o que supre com folga a necessária fumaça do bom direito para a
concessão da ordem de habeas corpus requerida.

Na espécie vertente, a excepcionalidade apta a ensejar a interrupção da persecução


penal, em face do ora paciente, restou evidenciada, ante a ocorrência inequívoca de indiciamento
pautado em responsabilidade penal objetiva, em grave violação ao devido processo legal e às
garantias constitucionais que lhe são inerentes.

Destaque-se, por oportuno, que, no bojo do habeas corpus n. 1040447-


42.2023.4.01.0000, impetrado pelo corréu Marcelo Augusto Xavier Da Silva, ocupante do cargo
de Presidente da FUNAI, à época dos fatos, e indiciado indiretamente pela autoridade policial
federal nos exatos mesmos termos do ora paciente, foi concedida liminar para fins de suspensão
do IPL n. 2022.0037654-DPF/TBA/AM. Nesse toar, tendo em vista a similitude fático-processual
existente entre o corréu beneficiado e o ora paciente, em observância às regras de hermenêutica
jurídica, revela-se imperiosa a aplicação da mesma solução, posto que “onde há a mesma razão
haverá o mesmo direito” (ubi eadem ratio ibi idem jus).

Ante o exposto, defiro o pedido liminar, para determinar o sobrestamento das


investigações em relação ao paciente nos autos do IPL n. 2022.0037654-DPF/TBA/AM, até o
julgamento do mérito do presente habeas corpus.

Comunique-se, com urgência, ao Juízo da Vara Federal Cível e Criminal da


Subseção Judiciária de Tabatinga/BA, enviando-lhe cópia do inteiro teor deste decisum.

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Em seguida, encaminhem-se os autos à Procuradoria Regional da República da 1ª.
Região.

Após, voltem-me conclusos os autos.

Intimem-se. Cumpra-se.

Desembargador Federal NEY BELLO

Relator

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