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Chineses no Rio de Janeiro: imigração, história e representações

Article · June 2023

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Marcelo Araujo
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba
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Chineses no Rio de Janeiro: imigração, história e representações
Marcelo Araujo

RESUMO: É sabido que a partir de 1850, a imigração passa a desempenhar um papel central em
nossa história, porém o que a maioria das pessoas desconhece é que a primeira experiência de
trabalho livre deu-se em 1812, com a importação de 2000 chineses para atuarem nas plantações
de chá. Este artigo visa apresentar, de forma sumária, as particularidades desta imigração,
debatendo, com auxílio comparativo dos exemplos do Peru e dos Estados Unidos, as imagens
socialmente criadas e os preconceitos étnicos que recaíram (e recaem) sobre estes “novos
brasileiros”.
PALAVRAS-CHAVE: imigração chinesa; história; etnicidade e cultura.

ABSTRACT: It is known since 1850s the immigration is playing a central role in our history but
what the most of people know is that the first experience of free labor came in 1812, with 2000
Chinese workers imports to work in tea plantations. This article presents briefly the
particularities of this immigration, arguing with the aid of comparative examples of Peru and
United States, the images socially created and the social and ethnic prejudices that falled on these
“new Brazilians”.
KEYWORDS: Chinese immigration; history; ethnicity and culture.

Introdução

Em caráter mundial, a imigração é um dos temas mais discutidos pelas nações do globo; .

Por isso, os contingentes de chineses imigrantes que se instalam ao longo das últimas 3 décadas

no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, merecem atenção em função de suas particularidades.

Entretanto, vale lembrar a antiguidade da relação entre chineses e brasileiros, através das levas

imigratórias para o nosso território.

Este trabalho visa apresentar em caráter sumário algumas particularidades desta imigração

ao longo do século XIX, debatendo, auxiliado pelos casos do Peru e dos EUA, as imagens

socialmente criadas e os preconceitos étnicos nelas embutidos que incidem sobre estes “novos

brasileiros”.


Doutorando em Antropologia pelo PPGA/UFF e professor de Sociologia do Colégio Pedro II.
Primeiro ato: o cultivo de chá

Na história do Brasil, ideias e costumes da China podem ter-nos chegado também através

de escravos chineses, de uns poucos dos quais se sabe da presença no Brasil de começos dos

Setecentos. Mas, é prudente lembrar que ideias e costumes não necessariamente consolidam uma

presença de fato e maciça. Assim, apesar da existência de referências documentais àqueles

escravos no século XVIII, o projeto do cultivo do chá verde do início do século XIX representou

o primeiro esforço sistemático e alicerçado pelo Estado no sentido de se importar asiáticos.

A primeira experiência com a importação de chineses deu-se em 1812, quando D. João VI

autorizou a vinda de 2.000 chineses. Vieram, de fato, em torno de 300 e foram destinados às

plantações experimentais de chá da fazenda da família imperial na cidade do Rio de Janeiro -

mais tarde Jardim Botânico Real - e da Fazenda Imperial de Santa Cruz. Seria a primeira

imigração livre para nosso país.

Contudo, estes trabalhadores não se adaptaram à mudança de clima e às condições de vida

e trabalho (maus tratos, privações, etc.), vários retornando à China. Mortificados pela saudade de

sua terra natal, vítimas de oftalmia e outras moléstias, muitos acharam no suicídio a solução.

Sabe-se que em apenas um dia do ano de 1855, foram encontrados, numa pequena casa no centro

da cidade do Rio de Janeiro, 11 chineses imigrantes enforcados que se suicidaram, deixando

vestígios de solenidade de que haviam procedido ao ato em desespero. Outra ocorrência, embora

não conste registro probatório, é que após o fracasso das plantações de chá, um deputado inglês

denunciava, em 1834 – portanto, mais de vinte anos após o episódio -, que “alguns desses
chineses teriam sido abandonados nas florestas do Rio de Janeiro para serem perseguidos por

esporte por caçadores”.1

Quanto a esse primeiro momento, a Vista Chinesa é digna de menção, como marco dessa

passagem pelo Rio de Janeiro. No período da construção da estrada que vai do Alto da Boa Vista

ao Jardim Botânico, os primeiros chineses faziam habitualmente seu rancho em certo ponto da

via conhecida, a princípio, pela simples indicação de “Rancho dos Chinas”. A partir daí,

mudando seu nome para este que popularmente conhecemos. Apesar do desumano tratamento

que recebiam, muitos chineses, por motivos os mais diversos, permaneceram aqui, dispersando-

se pelo Rio de Janeiro, o que introduz nosso segundo ato da presença chinesa entre nós.

Mas antes mesmo de o iniciarmos, ou seja, travando uma discussão que parte do

aquecimento da política migratória que se abriu, entre outras opções, para o trabalhador

assalariado chinês, destacando as particularidades do caso brasileiro, cabe dizer que outras

correntes migratórias que não se destinaram especificamente à cultura do chá desaguaram no Rio

de Janeiro. Como exemplo, YANG (2002:60) lembra o paradigmático caso do operário cantonês

Lee Shen, que foi contratado por uma companhia ferroviária inglesa e enviado a Manaus. Com a

falência da Companhia, fixou residência no Rio de Janeiro, casou-se com uma brasileira e

investiu no comércio de lingüiças.

Mantendo o exemplo das ferrovias, MENESES (2008:1) argumenta que ao longo desse

mesmo século, algumas iniciativas introduziram outros grupos de chineses no Brasil, pondo em

marcha outras tentativas de substituir a mão-de-obra escrava. Deste modo, além de sua utilização

em obras públicas na própria Corte, “quarenta chineses foram contratados em 1856 para os

canaviais do Dr. Lacaille em Magé, onde, duas semanas depois, trinta e quatro deles se

1
Há sim registro de que, em razão da fuga da fazenda imperial, dois chineses do Jardim Botânico, foram caçados,
com o auxílio de cavalos e cães, pelo filho de D. João VI (Cf. CHANG-SHENG:2011).
rebelaram, alegando a péssima alimentação, a qual não tinha a carne de porco como constava no

contrato, além dos baixos salários, organizando uma greve”.

Segundo ato: o papel dos chineses na política migratória

Nesse mesmo período, segunda metade do século XIX, observa-se também em outras

nações das Américas uma fixação de chineses concomitante ao fluxo brasileiro. A título de

exemplificação e também para enfatizar as tensões que estas experiências geraram, vale a pena

efetuar algumas menções à trajetória dos imigrantes chineses neste vasto território, destacando-se

o caso do Peru, estudado por HUI (1992), e dos Estados Unidos da América, tratado por

SOWELL (1988).

O continente americano tornou-se um polo de atração para esses imigrantes a partir de

meados do século. Em 1849, em vista do bom resultado obtido pelos operários chineses levados

a Cuba, o governo do Peru promulgou a lei de imigração, permitindo a chegada de trabalhadores

chineses dedicados à extração do guano depositado nas costas pelas aves marinhas, elemento de

substantiva importância para o desenvolvimento agrícola da Europa.

Hábeis em ganhar a confiança de seus patrões graças à sua capacidade laboral, alguns

desses trabalhadores foram substituindo os mulatos nos postos de responsabilidade, como manter

a disciplina ou dirigir algumas tarefas. Isso redunda em um dos maiores benefícios e vantagens

para os fazendeiros, que logo perceberam a conveniência de contar com administradores que

conheciam o idioma, as peculiaridades e os modos de vida dos operários.

Contudo, logo que finalizados seus contratos de trabalho e a despeito da reconhecida

habilidade nas tarefas desenvolvidas, estes trabalhadores foram descartados, transformando-se

num estorvo. Assim, generalizou-se o desejo de que retornassem ao seu país de imediato, sendo
inclusive, nesta campanha, acusados de propagar todo tipo de vícios e maus costumes, o que era

reforçado pela convicção da inferioridade de sua raça. Na verdade, havia o temor de que se

unissem à população local, insatisfeita e de longa data explorada pelos poderosos. Entre 1848 e

1874, cerca de 91 mil chineses lá instalados, com grande predominância de mulheres, romperam,

pois, seus contratos de trabalho e deixaram o país em reação à crítica internacional e local quanto

à utilização de sua mão-de-obra em trabalho semi-servil.

Assim como ocorre no Brasil deste momento, a maior expansão da diáspora comercial a

ligar a China com o resto da região ocorreu no comércio dos coolies, ou seja, no aliciamento e

transbordo de trabalhadores contratados como aprendizes para prestar serviço em regiões de

além-mar. Entre 1851 e 1900, mais de dois milhões de “trabalhadores contratados” foram

embarcados para fora da China, cerca de 700 mil deles estacionaram nas Américas.

O caso dos EUA apresenta particularidades distintivas. Desejosos de manter os caracteres

específicos de seu povo, a primeira imigração a ser proibida por este país foi a chinesa, em 1882.

Antes, porém, a inicial imigração se compunha quase exclusivamente de indivíduos do sexo

masculino, o que indicava um movimento exploratório mais do que um movimento de

permanência: muitos deles eram mais temporários do que imigrantes. Os chineses eram

tolerados nas ocupações urgentemente necessárias e que os homens brancos relutavam em

aceitar: cozinhar e lavar roupas nos campos de mineração, por exemplo, ou o serviço doméstico

nas cidades.

Com a grave depressão de 1870, os chineses tornaram-se um alvo fácil do

descontentamento e frustração dos desempregados. Devido ao preconceito, à competição e à

estagnação econômica, surgiram vários movimentos contra esse segmento da população.

Diversos decretos dificultavam ainda mais a vida dos imigrantes chineses. Entre eles:
 A Lei da Calçada (“the Sidewalk Ordinance”), que proibia a utilização de uma vara como
meio para transportar, pendurados nas pontas, legumes para vender e roupas para lavar;
 A Lei do Ar Cúbico (“the Cubic Air Ordinance”), que tornava obrigatório o espaço de
quinhentos pés cúbicos para cada adulto. Isso atingia os chineses em cheio, posto que
viviam em alojamentos abarrotados;
 A Lei da Trança (“the Queue Ordinance”), que determinava aos prisioneiros do sexo
masculino trazerem seu cabelo bem curto (muitos estavam na prisão por infringirem a Lei
do Ar Cúbico). A longa trança era um sinal de respeito e de submissão ao imperador da
dinastia Qing, de forma que aqueles que não a possuíssem eram considerados rebeldes pelo
governo imperial chinês, o que impediu, posteriormente, muitos chineses de retornarem à
terra natal.

Pode-se, no entanto, demarcar o ano de 1850 como aquele em que a imigração passa a

desempenhar um papel central. As elites políticas e econômicas de então adotaram o pressuposto

de que havia uma forte correlação entre o ingresso de imigrantes e a transformação social, fosse

para “civilizar” a nação, através dos imigrantes europeus, fosse para “desafricanizá-lo” com

imigrantes asiáticos (LESSER, 2001:43).

Todos os 4 milhões e 550 mil imigrantes que entraram no Brasil entre 1872 e 1949

trouxeram consigo uma cultura pré-migratória e criaram novas identidades étnicas. Entretanto,

foram os 400 mil asiáticos, árabes e judeus, considerados não-brancos e não-pretos, que mais

puseram em xeque as idéias da elite sobre a identidade nacional.

De acordo com Lesser (idem:37), no que tange à participação de chineses neste processo,

os formuladores das políticas no século XIX passaram décadas discutindo sobre a possibilidade

de os trabalhadores dessa procedência virem a fazer parte da sociedade brasileira e de que modo

isso ocorreria. Num certo prisma, a mão-de-obra chinesa forneceu a solução perfeita para o

duplo problema: uma classe servil, embora não-escrava, poderia ser criada, para ajudar na
desafricanização do Brasil. Uma outra vantagem foi representada por intelectuais chineses e

brasileiros, pois julgavam que os asiáticos eram do mesmo “grupo racial” que as populações

nativas das Américas.

As imagens que as elites brasileiras tinham sobre os trabalhadores chineses eram as piores

possíveis. Em seu imaginário, os chineses não eram “nem imigrantes nem humanos”, mas

perfeitos para o trabalho servil posto que “climaticamente adaptáveis, dóceis, sóbrios e dispostos

a trabalhar por baixos salários” - o que se revelou mais uma vez, como décadas antes, um erro.

Como o chim, nome pelo qual eram denominados pelas elites, era considerado uma “raça

inferior”, pequenas foram as possibilidades nas relações afetivas entre o patrão e ele (LESSER,

idem:47). ELIAS (1970:68) argumenta que “não eram poucos os que temiam a superstição e a

feiura dos chins”, não aceitando o seu cruzamento com os locais, menos ainda “os seus hábitos

extravagantes, a sua linguagem ‘pouco eufônica e até o seu modo deselegante de vestir-se’ ”.

Considerável força teve a imprensa nos contornos deste cenário. Ao veicular impressões

negativas sobre essa imigração, ela contribuía para a formação de um estereótipo do oriental em

geral. Mesmo os que defendiam a imigração chinesa (e japonesa) como solução para a mão-de-

obra na cafeicultura, viam-na como provisória.

A passagem de VAINER (1995:45), discutindo o Decreto nº 528, de 28/06/1890, é

emblemática para a compreensão do contraditório clima institucional do momento:

Artigo 1º - É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos


indivíduos aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação
criminal do seu país, excetuados dos indígenas da Ásia ou da África, que
somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser
admitidos de acordo com as condições que forem estipuladas. (grifos do
autor)
E, citando Xavier de OLIVEIRA, na obra O problema imigratório na Constituição

Brasileira: emendas e discursos na Constituinte e na Câmara Federal. Razões de uma

campanha brasileira de brasilidade (1937), médico que, junto com Miguel Couto, liderou a

bancada contrária à imigração asiática, lembra a defesa deste do fato que:

O amarelo é indesejável porque é inassimilável. Se ele é inassimilável,


sob o ponto de vista da antropologia propriamente, mais ainda de
maneira integral, do ponto de vista do seu psiquismo. Isso como uma
característica do seu normotipo racial e, mais até, por sua própria
constituição intrapsíquica, sem esquecer, nem por de lado, as razões mais
profundas, diria, de seu misticismo religioso, mesclado com o fanatismo
patriótico.

Esse raciocínio, conforme demonstra ELIAS (1970:71), era partilhado até mesmo pelos

defensores da imigração chinesa, como Quintino Bocayuva, que declara, em 1868, serem os

chineses “exigentes quanto aos salários, amantes do jogo, renitentes à disciplina que os impedisse

de jogar; eram de natureza moral pervertida.”

Como mencionado acima, uma vez instalados nas fazendas, os maus tratos e o desrespeito

aos acordos prévios eram constantes, a bem dizer eram a regra. Os chineses não aceitaram de

forma passiva essas condições e muitos fugiram, adensando a comunidade já estabelecida no Rio

de Janeiro. Lá, passam a trabalhar como vendedores ambulantes e como cozinheiros. Sobre isso,

vale o extrato de FREYRE (2000:464), onde afirma que os:

apologistas da importação de trabalhadores asiáticos para o Brasil, país


onde a “extrema desigualdade de fortunas” não oferecia aos olhos de um
plebeu do Oriente o mesmo aspecto estranho e desagradável que aos
olhos de um mecânico europeu da Inglaterra ou da França ou de um
camponês da Alemanha ou da Suíça ou mesmo da Espanha ou de
Portugal. (...) O que importava a esses apologistas da importação de
“homens livres” do Oriente para o Brasil era satisfazerem o inglês quanto
à exigência de abolição do tráfico de escravos. Não ignoravam eles que
africanos e chins “livres” seriam, no Brasil, virtualmente escravos,
dentro de um sistema patriarcal que se assemelhava ao dos países de
origem desses africanos e desses chins.

O próprio termo chim ou coolie, muito comuns no século XIX, é digno de comentário,

face às suas múltiplas formas de entendimento. ELIAS (1970:73, nota 46) coloca que havia duas

classes de trabalhadores chineses: “os chins, que emigravam espontaneamente sob a garantia de

tratados entre autoridades governamentais, e os kulls ou coolies (termo que significa

‘carregadores de fardos’ e é igualmente aplicado aos trabalhadores indianos)”. Estes últimos

“apanhavam violentamente e [eram] metidos a bordo pelo agente recrutador”.

LEITE (1999:21, nota 23), afirma que “culi parece ser a grafia melhor do que a forma

correta, cule”: o vocábulo, que para alguns é de origem indiana, pode ser derivado do chinês ku,

dor, sofrimento, mais li, força. Culi significaria, por conseguinte, força ou trabalho do

sofrimento. Para completar, TROLLIET (2000:12), em nota de rodapé, nos informa que este não

é um termo chinês mas uma “transcrição fonética anglicizada do tamil kûli (salário), a menos que

este não seja do turco kuli (escravo)”. Continua dizendo que “a transcrição é feita pela escolha

entre 3 numerosos homófonos, de caracteres significando ‘penoso’ (ku) e ‘força muscular,

trabalhador de força’ (li)”. PORTO (1992:5) chama a atenção que o próprio dicionário Webster’s

define a palavra coolie como “trabalhador não especializado, carregador, apto para serviços

subalternos ou alugado no Extremo Oriente em troca de baixo salário ou salário de subsistência”. 2

2
Mesmo debate pode ser travado quanto à palavra mandarim, que designa genericamente e para o nosso caso, a
língua majoritária falada no território chinês. LESSER (idem:38) sustenta que a fascinação brasileira com a Ásia
teve origem em Portugal, que em 1511, “tornou-se a primeira potência marítima européia a estabelecer relações
diretas com o império chinês”. Essa relação chegou a afetar até mesmo a língua, e “a palavra ‘mandarim’, derivada
da raiz etimológica ‘mandar’, foi introduzida para designar os integrantes da elite chinesa”. Já LEITE (idem:12, nota
3) garante não ter sentido sustentar a origem portuguesa do vocábulo mandarim, fazendo-o derivar do verbo mandar,
quando na verdade veio do sânscrito. “Como ensina Gaspar Correa em Lendas da Índia (Lisboa, 1858, v. 2, p.
808)”, diz ele, “manderyn quer dizer cavalleiro e é nome estranho à língua portuguesa”, arremata indicando que se
confirme a informação em Joaquim Heliodoro Callado Crespo, Coisas da China, Costumes e Crenças. Lisboa,
1898, p. 8 (grifo meu).
A penetração do Oriente na sociedade oitocentista extrapolava a esfera das trocas

comerciais mais amplamente – quer dizer, para além do fornecimento de mão-de-obra -,

influenciando o caráter da cultura brasileira através da absorção de costumes asiáticos na vida

cotidiana, como o de sentar-se com as pernas cruzadas no chão e divertir-se “soltando fogos e

empinando papagaios de papel de seda à maneira dos chineses”. Isso o atestam os viajantes

europeus, como Rugendas, Eberle, Mawe, Maria Graham, Maximiliano e tantos outros, que, de

passagem pela cidade, a eles se referiram, parecendo ter sido os primeiros a registrar que os

chineses de fato marcaram, no Rio de Janeiro pelo menos, sua presença cultural. Mawe pôde

escrever em seu livro publicado em 1821 que nos princípios do século XIX havia no Brasil

grande abundância de artigos da China (FREYRE, idem:505).

Resta dizer, para o caso brasileiro, que uma grande corrente imigratória corresponde,

ainda no século XIX, à dos cantoneses. Estes, de acordo com YANG (2002), iniciaram e

desenvolveram o ramo da venda de pastéis. No início, estes quitutes eram vendidos pelos

italianos, porém os chineses iniciaram as vendas nos portos e nos navios e, posteriormente,

fixaram-se em lojas que mais tarde ficaram conhecidas como pastelarias. 3

Essas profissões (cozinheiros, pasteleiros, fogueteiros, tintureiros, etc), ou melhor, as

imagens que as caracterizam e a seus praticantes foram registradas magistralmente, através dos

traços ácidos e bem humorados, ao longo da segunda metade do século XIX e primeiras décadas

do século XX, pelas mãos do cartunista como Ângelo Agostini, no Vida Fluminense, e do

jornalista Luiz Edmundo, em O Rio de Janeiro do meu tempo (LEITE:idem)

Neste segundo ato, vimos que tanto a dimensão político-econômica (a imigração em si

mesma) quanto a cultural (representada pelos traços de permanência da presença chinesa no

3
Vale como curiosidade a menção de que os alimentos, massas em geral, foram especialidades chinesas, porém
Marco Pólo difundiu-as para outros países como sua terra natal, a Itália.
século XIX) retratam uma fundamental questão de fundo simbolizada pelos termos chin e coolie:

o caráter de subserviência em que deveriam se colocar os contingentes de imigrantes

trabalhadores chineses numa travestida política pública do governo brasileiro. Os braços destes

trabalhadores eram necessários, contudo sua qualificação social foi pensada desde o primeiro

momento para expressar sua inferiorização enquanto povo e mesmo enquanto cultura.

Conclusão

Os chineses que vieram trabalhar e ajudar a desenvolver o Brasil do século XIX se

instalaram nos arredores da Corte. Até hoje é possível ver, no centro da cidade do Rio de Janeiro,

no trecho entre o que era o Morro do Castelo e o mar, no largo da Rua da Misericórdia, os

vetustos sobrados que margeiam o Beco dos Ferreiros, os locais em que se comprimia sua densa

colônia. O Beco era, como afirma COARACY (1988:342), o “bairro chinês da cidade”.

De 1808, ano em que o Conde de Linhares cogita a hipótese de trazer dois milhões de

indivíduos como forma de contornar a proibição do tráfico negreiro, até o fim do século, a

jornada foi longa em sentido muito mais intenso que apenas de transcurso de um período. De

colonos trazidos de Macau para o Rio de Janeiro pelo Governo Real Português, o projeto

econômico estratégico do governo de Dom João VI e protegido pelo Ministro de Guerra e dos

Estrangeiros, o Conde da Barca, chegaram, juntamente com os 300 chineses mudas e sementes de

chá. Considerado um fracasso, o cultivo da planta, em parte pelos maus tratos (o diretor do

Jardim Botânico tratava os trabalhadores de forma severa, suspeitando de que eles,

propositalmente, mantivessem segredos sobre suas técnicas mais sofisticadas de processamento

do chá, o que não era verdade, pois os chineses geralmente bebem chá verde e simplesmente não
conheciam os gostos eurobrasileiros, que preferiam tomar o chá preto adoçado com açúcar), em

parte pela sua inadaptação.

Trabalhando como mascates (já a partir de 1825 vários chineses registrados com nomes

brasileiros adquiriram licença para tal ofício), peixeiros e pasteleiros, tipos de comércio que

exigiam pouco capital, permitindo ao vendedor trabalhar sozinho, o ano de 1881 tem importância

fulcral. É nele que o Brasil assina um tratado amplo de "amizade, comércio e navegação" com a

China, proibindo e cessando a contratação desta mão-de-obra, dada a realidade de escravos e não

de colonos livres. Ainda assim, em 1882, fundou-se a Companhia de Comércio e Imigração

Chinesa (CCIC), contando com o apoio ativo do governo brasileiro e visando trazer ao país 21

mil trabalhadores.

No rol dos atos violentos sofridos pelos chineses, a imposição de nomes cristãos

portugueses como regra, levadas a cabo pelos proprietários das minas e pelos fazendeiros (da

mesma forma que fizeram com escravos negros), se não é, certamente, o último deles, é

provavelmente o mais impactante, posto que estremece a identidade e a autorrepresentação

pessoal e étnica do migrante.

A seqüência abaixo pode confirmar tal assertiva (MENESES, 2008:1-2):

Dom José Caetano Coutinho, bispo do Rio, durante sua visita pastoral a
freguesia de Nª. Sra. do Pilar do Iguassu, em fevereiro de 1831, encontra
um morador chinês que lhe pede batismo, ao que responde o bispo,
registrado no livro de visita pastoral, “não admitir ao batismo o china
Nan ou João Francisco porque ele não sabia nada do Credo”.

Ao batismo estava também vinculado o que seria depois a certidão de nascimento. Não

sendo batizado, Nan vivia marginalizado em Iguassú: estrangeiro, sem terra e pagão.

Repetia-se, em relação ao casamento, a questão batismal, já que não havia um registro civil de

casamento. A única maneira de se ter um casamento válido era casando-se na Igreja. E os


chineses que não o faziam ficavam em situação de concubinato, sendo os filhos gerados

considerados ilegítimos. Para realizar o casamento, as Constituições Primeiras do Arcebispado

recomendavam aos vigários:

“os examinem se sabem a Doutrina christã, ao menos o Padre Nosso,


Ave Maria, Creio em Deos Padre, Mandamentos da Lei de Deos, e da
Santa Madre Igreja... e achando que a não sabem, ou não entendem estas
cousas, os não recebão até saberem...”.

Ultrapassando, a duríssimas penas, estas agruras, que pesaram sobre sua identidade, auto-

estima e conforto psicológico, os chineses, ao longo do século, conseguiram se estabelecer não

sem preconceitos e rejeições como cidadãos brasileiros. Finalizo este texto, cujo objetivo foi

apresentar em grandes traços o cenário em que se desenrolou a inserção da imigração de trabalho

chinesa, suas dificuldades e, até certo ponto, as imagens sociais às quais são submetidos mesmo

depois de 200 anos de sua presença entre nós. Modernamente e sob outras bases, o dia

15/08/1900 marca oficial e historicamente a chegada dos 100 primeiros chineses (na verdade

107) que legarão à atual geração parte simbólica (os tempos são outros...) mas essencial que

possuem as comunidades que hoje encontramos.

Referências bibliográficas

CHANG-SHENG, S. “Chineses no Rio de Janeiro”.


www.leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/17/artigo125466-5.asp. Acesso em
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COARACY, V. Memórias da cidade do Rio de Janeiro, 3ª ed., BH: Itatiaia/EDUSP, 1988.
ELIAS, M.J. “Introdução ao estudo da imigração chinesa”. Anais do Museu Paulista, tomo
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FREYRE, G. “O Oriente e o Ocidente”. Sobrados e mucambos, 12ª ed., RJ: Record, 2000.
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LEITE, J.R.T. A China no Brasil: influências, marcas, ecos e sobrevivência chinesas na
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LESSER, J. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade
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MENESES, A.L. A presença chinesa em Iguassú – século XIX. www.sobretudo.org.br. Acesso
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TROLLIET, P. La diaspora chinoise, 3ª ed., Paris: PUF, 2000.
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