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VALE A PENA O DIREITO PENAL DO AMBIENTE?

(Assoc. Acad. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2000)


de Paulo de Sousa Mendes

Fernando Torrão 1
Cristina Aragão Seia 2

Na viragem do século XX para o século XXI, numa época de algum furor na


criminalização de comportamentos contra o ambiente na generalidade dos países
ocidentais (em Portugal na revisão ao Código Penal operada pelo DL n.º 48/95, de
15 de março), na senda de um “direito penal do risco” apto a substituir o “direito
penal do bem jurídico”, Paulo de Sousa Mendes interrogava se efetivamente a
tutela jurídica ambiental se constituía em necessidade político-criminal.
Após identificar alguns dos principais problemas (essencialmente)
práticos com que se depara a ciência jurídico-penal na pretensão de punir os
autores de agravos ambientais (nomeadamente a identificação dos verdadeiros
responsáveis), o autor descreve vários modelos da “sociedade de risco” para, a
final, questionar o paradigma de um novo “direito penal do risco”.
A relação entre (todo) o sistema jurídico e o risco é tensa. Situação que se
agrava no domínio jurídico-penal, devido sobretudo à lógica minimalista da sua
legitimação material (assente no momento fictício do contrato social) e inerente
rigidez dos mecanismos de imputação de responsabilidade como é próprio
de uma democracia liberal que não deve prescindir de assegurar as máximas
garantias aos cidadãos nem transigir acerca da premência de eficácia político-
criminal na intervenção do ius puniendi estatal.
Paulo de Sousa Mendes ilustra um exemplo de “direito penal do risco”
na nossa legislação positiva: o tipo legal de crime de poluição (artigo 279.º do
Código Penal).
Começa por sublinhar os fundamentos da inclusão do equilíbrio ambiental
no catálogo dos bens jurídicos (com dignidade penal) assente no argumento

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Universidade Lusíada - Norte (Porto)
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Universidade Lusíada - Norte (Porto)

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Fernando Torrão e Cristina Aragão Seia

(simples) da tomada de consciência acerca da utilidade (para o ser humano) da


proteção do ambiente como um todo, considerando o reconhecimento de que
a mais ínfima destruição de elementos da natureza pode ter consequências
desastrosas no todo (rectius: a simples alteração de componentes naturais
pode acarretar efeitos devastadores; por exemplo, a produção de seres vivos
transgénicos, tais como plantas que prescindem de adubos ou fitofármacos,
é suscetível de afetar os equilíbrios precários entre todos os seres da cadeia
trófica). Todas as peças da natureza têm valor, em suma, enquanto partes de
um todo incindível e, por conseguinte, qualquer atentado ambiental pode vir a
colocar em causa a qualidade de vida do ser humano. Ademais, e talvez por isto
mesmo, do artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa parece resultar
a consagração de um direito social ao ambiente. Neste conspecto, refere o autor
que para aqueles que buscam arrimo na conceção constitucionalista dos bens
jurídico-penais (segundo a qual a ordem axiológica dos bens jurídicos protegidos
pelo direito penal é aferida pela ordem jurídica constitucional, numa relação de
convergência essencial de sentido) também o equilíbrio ambiental assume foros
de dignidade penal.
Num segundo momento, porém, Paulo de Sousa Mendes destaca as
(inevitáveis?) dificuldades da técnica legislativa utilizada na construção deste
tipo legal de crime. Sejam as dificuldades de saber se estamos perante um crime
de resultado, se estamos perante um crime de (verdadeiro) perigo abstrato (ou
se não será, de outro modo, mero perigo presumido), se não se tratará de crime
de pura desobediência, se é legítimo o recurso a normas penais em branco no
contexto da acessoriedade administrativa, etc.
Independentemente da posição que se adote em cada um destes problemas,
a verdade é que as dificuldades suscitadas contribuem para uma aplicabilidade
residual (pelos tribunais) deste tipo legal de crime, designando-o o autor como “tipo
penal de referência” e merecendo, consequentemente, o epíteto de “incriminação
puramente simbólica”. E se esta é já razão suficiente para a inadmissibilidade do
tipo legal em causa, atento o princípio da mínima intervenção penal (e inerentes
corolários da necessidade e eficácia) que do artigo 18.º, n.º 2 da Lei Fundamental
se desentranha, mais acrescenta o autor que a aplicabilidade (ainda que residual)
deste artigo 279.º do Código Penal é suscetível, dadas as dificuldades enunciadas
(assentes sobretudo na indeterminação e falta de clareza do texto legal), de
implicar um acentuado afrouxamento do garantismo penal.
Paulo Sousa Mendes focaliza a sua análise no tipo legal de crime de
poluição (artigo 279.º do Código Penal), não sem antes deixar, em breve alusão,
severas críticas ao tipo legal de crime de danos contra a natureza (artigo 278.º do
Código Penal), assentes, basicamente, nas mesmas faltas de clareza e precisão
que subjazem ao texto legislativo utilizado (inadmissíveis, como se sabe, no
contexto da Teoria da Lei Penal), bem como no carácter simbólico que acaba por
assumir, deixando a entender que tais dificuldades constituem uma problemática
intrínseca à criminalização ambiental.

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Vale a pena o Direito Penal do Ambiente? (Paulo de Sousa Mendes), pp. 169-171

Sem embargo da (supra referida) dignidade penal do bem jurídico em


causa, o autor acaba por concluir pela desnecessidade da intervenção punitiva no
domínio ambiental. Se, por um lado, a maior parte da estratégia de preservação
do ambiente e da qualidade de vida do ser humano deve passar pelo satisfatório
desempenho da Administração Pública na função de acompanhamento das
atividades industriais (cuidando de garantir a adoção, pelas empresas, de padrões
de instalação e laboração amigos do ambiente e, posteriormente, a respetiva
fiscalização), devem, por outro lado, os mecanismos jurídicos de carácter
sancionatório circunscrever-se ao direito de mera ordenação social. Não se trata,
pois, de saber se interessa promover a conservação do ambiente, mas apenas de
esclarecer se é necessário defender o ambiente através de meios penais.
Os atentados puramente ambientais (não se incluindo aqui atentados
ambientais de perigo concreto comum, como é o caso dos previstos no artigo
280.º do Código Penal) não encontram, na perspetiva de Paulo de Sousa Mendes,
resposta eficaz no direito penal. E apesar de o livro contar já com quinze anos,
a verdade é que a análise crítica do autor mantém-se atual. Foram introduzidas
alterações ao artigo 279.º do Código Penal (Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro
e Lei n.º 56/2011 de 15 de novembro), acrescentaram-se novos tipos legais de
crime contra o ambiente no Código Penal (violação de regras urbanística, artigo
278.º-A, aditado pela Lei n.º 32/2010 de 2 de setembro, e atividades perigosas
para o ambiente, artigo 279.º-B, aditado pela Lei n.º 56/2011, de 15 de novembro),
passou a sufragar-se a responsabilidade penal das pessoas coletivas para
diversos crimes, incluindo os ambientais (artigo 11.º, n.º 2 do Código Penal,
após as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro), mas, no
essencial, pode dizer-se que os mesmos problemas se mantêm, continuando os
delitos ambientais a ser alvo de escassa frequência de aplicação nos tribunais,
parecendo a sua tutela jurídica, também por isso, revelar-se mais adequada no
âmbito do direito administrativo sancionatório.
Vale a pena o direito penal do ambiente?

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