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Texto Publicado em “Justiça Criminal e Democracia”

Bruno Amaral Machado (coord.)


Marcial Pons: S. Paulo – ver capa junto

Justiça criminal em Portugal: contextos e desafios

Conceição Gomes1
José Mouraz Lopes2

A justiça criminal, como instrumento essencial do controlo social, tem vindo a


incorporar, nos vários países, desde o final do século passado e o início deste milénio,
princípios estabelecidos em várias convenções e ou em recomendações de organismos
internacionais num duplo sentido: eficácia no combate ao crime, mas também
aprofundamento de direitos e garantias. Particularmente no espaço da União Europeia,
as políticas desenvolvidas vieram concretizar um espaço jurídico e judiciário único,
procurando a articulação, a cooperação e a harmonização dos vários sistemas
judiciários. No entanto, a concretização prática de princípios e das leis penais nos vários
sistemas jurídicos veio demonstrar, em muitos países, as dificuldades da sua aplicação e
mesmo a fraca democraticidade do direito e da justiça penal. Centrando-nos no caso
português, pretendemos refletir, neste artigo, sobre os atuais contextos e desafios à
justiça penal, designadamente, de como as dificuldades na investigação da
criminalidade complexa, os resultados frágeis no combate à corrupção e aos crimes
conexos, entre outros fatores, evidenciam uma justiça penal desigual que atinge
diferenciadamente cidadãos com ou sem capacidade económica.

Palavras chave: criminalidade – justiça – eficiência -reformas – democracia

Introdução
Os desafios que, hoje, se colocam aos sistemas de justiça criminal, nos vários
países, são muito exigentes. Desde logo, porque a ação penal, quer no plano da
prevenção, quer no plano do combate ao crime, desenvolve-se a vários níveis: local,
nacional e internacional. Esta circunstância, só por si, torna muita complexa a ação da
justiça e, em geral, das autoridades do controlo em geral. Se, por um lado, têm que
responder a uma criminalidade de pequena e média gravidade, por vezes, com
especificidades muito localizadas (pequenos furtos, ofensas corporais simples, danos,
1
Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Coordenadora
Executiva do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa
2
Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas.

1
crimes estradais, etc.), mas que pode causar grande alarme social; por outro, a
criminalidade mais grave, que atinge de forma mais predadora as pessoas e as estruturas
sociais age, cada vez mais, num contexto internacional, caracterizado pelo movimento
de globalização em muitos sectores da sociedade e do Estado com impacto nos sistemas
de justiça criminal.

A emergência de novas áreas criminais a exigirem tutela dos sistemas de justiça,


designadamente, na área da economia e do sistema financeiro (veja-se, por exemplo, a
conduta de agentes bancários), do ambiente, do consumo (por exemplo, no que respeita
à segurança alimentar), do desporto, o cibercrime, o aumento das várias formas de
tráfico (de órgãos, de pessoas, de droga, de armas, etc.), da lavagem de dinheiro e de
transações ilícitas de capitais são, entre muitos outros, áreas de ação da criminalidade
que apontam para modos organizados de atuação dos agentes do crime, cada vez mais
com conexões internacionais, ainda que o impacto dessa actuação se circunscreva
localmente.

Este novo contexto da ação da criminalidade, cada vez mais global, coloca
desafios muito complexos ao direito e à justiça penal de cada Estado. Para Figueiredo
Dias, o movimento de globalização e o “surgimento de novos e grandes riscos à escala
global” colocam três ordens de problemas processuais penais: por um lado, “o reforço
da solidariedade global em ordem a uma mais consistente proteção das vítimas da nova
e grande criminalidade”; por outro, a “diversificação das respostas político-criminais
face à nova criminalidade massificada”; e, por último, “a crescente internacionalização
do direito e do processo penal” (Dias, 2009, pp. 805-819).

A internacionalização dos riscos e do crime colocam, assim, ao nível nacional e


local, problemas e desafios cada vez mais complexos, no que respeita ao combate à
criminalidade e à proteção das vítimas, para os quais o direito e a justiça não estavam
preparados. Desde logo, porque os sistemas penais tradicionais foram desenhados
segundo um esquema nacional, em que o direito penal é visto como o último reduto da
soberania dos Estados, o que torna difícil a cooperação judiciária e, mais ainda, a
harmonização normativa, mesmo no âmbito de espaços políticos assentes na ideia de
unidade, como é o caso da União Europeia. As condutas criminais e os seus efeitos nas
vítimas podem estender-se muito para lá das fronteiras dos Estados e, com frequência,
abrangem vários Estados. Mais, em muitos casos é, por vezes, difícil identificar a base

2
territorial de determinadas condutas, como é o caso das redes de terrorismo
internacional sem base territorial, ou do cibercrime.

Por outro lado, as novas formas e os novos métodos de atuação da criminalidade


e os desafios por eles colocados obrigam, também, a repensar o equilíbrio entre a
exigência de garantias e a exigência de eficácia e eficiência na prevenção e no combate
ao crime, procurando-se respostas rápidas e eficientes, mas que não descurem o respeito
pelo valor da dignidade humana e pelos direitos e garantias constitucionais. Como
encontrar o equilíbrio entre aquelas duas vertentes é hoje um dos grandes temas do
debate sobre o direito e a justiça penal que atinge os pilares da democracia.
A profunda deterioração dos termos da democracia representativa, mesmo nos
países onde foi mais inclusiva, que cada vez menos assegura direitos, viola direitos
humanos e direitos fundamentais, não assegura a plenitude da soberania (o que os
cidadãos decidem, no Parlamento, através dos seus representantes, pode ser destruído
por uma decisão de uma agência financeira internacional), nem a coesão social e gera
muitas incertezas, tem impacto nos sistemas de justiça de todos os países. Uma
democracia frágil produz direitos humanos e sociais frágeis. E se a densificação
constitucional dos direitos e das garantias de suspeitos e arguidos foi uma das bandeiras
do constitucionalismo do século XX, hoje assiste-se, um pouco por todo o lado, a um
crescente movimento de restrição desses direitos e garantias em nome da segurança e da
prevenção de fenómenos criminais.
Este novo contexto leva a que o direito e a justiça penal estejam a merecer
crescente atenção, quer de organismos internacionais, quer dos diferentes governos
nacionais, evidenciando-se um conjunto alargado de recomendações e reformas de
carater normativo e organizacional. Este movimento afirma-se, sobretudo, em dois
campos: através de respostas de caracter normativo, penal e processual penal, a
fenómenos criminológicos novos de natureza global, sustentadas na necessidade de
responder a matérias ou modos de atuação especialmente carentes de resposta; e na
resposta ao aumento da criminalidade de pequena e média gravidade que pode assumir
várias vertentes, como seja a adopção de formas especiais de processo, ou mesmo
formas alternativas ao procedimento penal stricto sensu que, de uma forma célere e
eficaz, respondam àquela criminalidade. Com este pano de fundo, este artigo pretende
caracterizar, em traços necessariamente breves, a justiça penal em Portugal.

3
1. O direito europeu e o impacto no sistema jurídico português

Temos vindo a assistir a uma crescente internacionalização do direito penal em


resposta à internacionalização do crime e dos riscos, o que permite falar já na
emergência de uma ciência internacional do processo penal. Esta vertente está
particularmente presente no âmbito da União Europeia, condicionando as reformas do
direito e da justiça dos seus Estados-membros. A criação, evolução e sedimentação de
instituições internacionais europeias na segunda metade do século XX, que nasceram
como resposta à necessidade de garantir na Europa a existência de estruturas
fundamentais que sustentassem a criação de Estados de Direito assumiram, nos
primeiros anos do século XXI, uma importância fundamental na concretização da rule
of law. Tendo na sua base os princípios fundamentais de direito (e as garantias para os
cidadãos daí decorrentes), consagrados na Convenção Europeia dos Direito do Homem,
aprovada em 4 de Novembro de 1950, nos seus Protocolos e nos vários documentos de
referência que foram entretanto aprovados, quer o Conselho da Europa, através dos seus
órgãos executivos, administrativos e jurisdicionais, quer a União Europeia, construíram
uma rede normativa vinculante a todos os Estados Europeus, cujo reflexo é hoje
evidente, quer na introdução nas ordens jurídicas de cada Estado membro desses
princípios, quer na garantia que os cidadãos têm no acesso ao Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem ou ao Tribunal de Justiça da União para fazerem valer os seus
direitos quando estes são postos em causa nos seus Estados de origem. O Tratado de
Lisboa, com a integração da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, ainda que
restritivo na sua aplicação a uma Europa de 28 Estados (já incluindo a Croácia, desde 1
de Julho de 2013), veio normativizar a relevância da implementação de um espaço
judiciário europeu. Os tempos recentes refletem essa relevância, na medida em que a
Comissão Europeia aprovou, em 17 de julho de 2013, a proposta de criação do
Procuradoria Geral Europeia (European Public Prossecutor’s Office) através da decisão
COM (2013) 534 de 17 de julho.

São, assim, vários os campos de ação do direito e das instituições da União


Europeia a influenciar os sistemas jurídicos e judiciais dos Estados membros. Contudo,
a expansão das instituições supranacionais para campos de reserva tradicional da
soberania, como são o direito e a justiça penal, não é isenta de controvérsia, levantando
problemas vários, designadamente, de legitimação democrática do direito penal

4
europeu, de segurança jurídica e de manutenção dos princípios da subsidiariedade e de
soberania nacional.

O terrorismo e a criminalidade grave, organizada e transfronteiriça, são duas


áreas onde mais tem incidido a intervenção da União Europeia no sentido de
harmonização dos sistemas penais dos diferentes Estados membros. De acordo com
Anabela Rodrigues, "a construção de um espaço penal europeu é hoje marcada pela
aceleração. É inegável o impulso que os atentados, em Nova Iorque, de 11 de Setembro
de 2001, deram aos trabalhos conduzidos no âmbito do ‘terceiro pilar’ do Tratado da
União Europeia, colocando o tema da luta contra o terrorismo no centro dos debates
travados neste fórum" (Rodrigues, 2008).

Mas, a luta contra o terrorismo não é o único objetivo do direito penal da União
Europeia. Segundo Ulrich Sieber, podem assinalar-se-lhe os objetivos clássicos do
direito penal de proteção ou garantia da segurança e da liberdade, com algumas
especificidades europeias. Assim, visa, desde logo, a perseguição efetiva da
criminalidade europeia transnacional, resultante do processo de globalização e, em
especial, do processo de europeização com a criação dos mercados à escala da União e o
enfraquecimento das fronteiras. Mas, o direito penal europeu resulta, ainda, da
necessidade de proteção dos novos e específicos bens jurídicos “europeus”, como, por
exemplo, a proteção dos interesses financeiros e da integridade da União Europeia
perante burlas, fraudes, desvio e abuso de poder e violação de segredo profissional; a
proteção da concorrência europeia face a monopólios; a proteção da moeda europeia; ou
a proteção do ambiente ou do património cultural. No lastro do seu desenvolvimento
estão, também, outros desafios, como sejam a necessidade de assegurar a manutenção
de princípios que garantam a liberdade e os direitos fundamentais em todos os Estados
membros (Sieber, 2009, pp. 461-525).

Através de um modelo de cooperação (vector horizontal), que está na base do


princípio do mútuo reconhecimento, pretende-se favorecer “a cooperação policial e
judiciária entre os Estados-membros, de modo a que cada Estado possa prosseguir mais
eficazmente os seus interesses na investigação, perseguição e efetiva repressão penal”
(Dias, 2009, pp. 805-819). É o princípio do reconhecimento mútuo que está na origem
de diversas decisões-quadro, como por exemplo, as relativas ao mandado de detenção
europeu, ao reconhecimento de multas e coimas, ao mandado europeu de obtenção de
provas e a utilização de alternativas estrangeiras à prisão preventiva. Num segundo

5
vetor, e numa perspetiva supranacional (vetor vertical), procura-se harmonizar as regras
penais e processuais penais entre os diferentes Estados Membros, tendo em vista a
criação de regras comuns. Esta vertente foi sobretudo impulsionada pela criação, com o
Tratado de Amesterdão, das decisões-quadro – instrumento normativo que, adotado pela
unanimidade dos Estados-Membros, vincula quanto ao resultado a alcançar, deixando
no entanto às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios (Dias,
2009, pp. 805-819).

Através de decisões-quadro, o Conselho da União Europeia tem legislado em


matérias tão distintas, como o estatuto das vítimas em processo penal, a proteção contra
a falsificação da moeda, o branqueamento de capitais, a criação de uma rede europeia de
prevenção da criminalidade, a criação da Eurojust, o mandado de detenção europeu, a
proteção do ambiente ou a aproximação dos códigos penais dos Estados-Membros,
quanto ao terrorismo. A integração no ordenamento jurídico português de algumas
dessas decisões esteve no lastro de grande parte das alterações aos Códigos Penal e de
Processo Penal em 20073. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem
legitimado esta intervenção da União em matéria penal, reconhecendo “competência
comunitária (por oposição a intergovernamental) quando estiverem em causa atentados
graves a uma política comunitária que não possam ser reprimidos senão mediante a
aplicação de sanções penais efetivas, proporcionadas e dissuasivas” (Rodrigues, 2009,
pp. 153-164). Na densificação deste caminho, refira-se a proliferação de organismos de
suporte ao desenvolvimento do direito penal europeu, como é o caso da Europol (órgão
de cooperação entre os serviços policiais e aduaneiros dos Estados-Membros), a
Eurojust (órgão responsável por reforçar a luta contra as formas graves de
criminalidade, através de uma cooperação judiciária mais estreita) ou a Rede Judiciária
Europeia (instrumento destinado a facilitar o auxílio judiciário mútuo no quadro da luta
contra a criminalidade transnacional).

3
Muitas das alterações decorrentes da reforma penal e processual penal de 2007 foram suscitadas
por este instrumento normativo da União Europeia, designadamente: Decisão-Quadro 2000/383/JAI, do
Conselho, de 29 de Maio de 2000, alterada pela Decisão-Quadro 2001/888/JAI, do Conselho, de 6 de
Dezembro de 2001, sobre o reforço da proteção contra a contrafação de moeda na perspetiva da
introdução do euro, através de sanções penais e outras; Decisão-Quadro 2001/423/JAI, do Conselho, de
28 de Maio de 2001, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em
numerário; Decisão-Quadro 2002/629/JAI, do Conselho, de 19 de Julho de 2002, relativa à luta contra o
tráfico de seres humanos; Decisão-Quadro 2004/68/JAI, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2003,
relativa à luta contra a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil; e Decisão-Quadro
2005/667/JAI, do Conselho, de 12 de Julho de 2005, destinada a reforçar o quadro penal para a repressão
da poluição por navios.

6
O desenvolvimento de uma política criminal europeia, a harmonização
legislativa, o reconhecimento mútuo de decisões judiciais, a criação de instrumentos de
cooperação, a criação de uma procuradoria-geral europeia, bem com a concretização de
alguns mecanismos processuais comuns, entre outros, vão no sentido da assunção, pelos
Estados membros, de que também em termos de justiça criminal há um espaço comum
que se impões aos diferentes Estados.
No plano dos princípios, vem-se assistindo à sedimentação de um conjunto de
princípios integrantes de uma emergente política criminal europeia, ainda que nem
sempre com a mesma coerência e sistematização. Os princípios da humanidade, da
necessidade (da ultima ratio do direito penal), da culpa, da legalidade, da
subsidiariedade e o princípio da coerência, entre outros, têm hoje na dogmática europeia
definições inequívocas que podem já considerar-se património de uma europa da
justiça, que deve ser seguida pelos diferentes Estados-membros4.
Através do princípio da humanidade exige-se o tratamento digno, em todas as
vertentes, daqueles que cometem crimes, designadamente, na definição e aplicação de
penas, com reflexos imediatos e diretos na proibição da pena de morte e das penas
cruéis e desumanas, bem como das penas indeterminadas. Com o princípio da
necessidade estabelece-se que o direito penal só deve intervir quando isso seja
necessário e eficaz e também que só deve criminalizar-se um comportamento quando o
mesmo seja essencial para a sobrevivência da comunidade. Daí que só devam ser
protegidos pelo direito penal bens jurídicos fundamentais, assentes no quadro de valores
constitucionalmente consagrados. Com o princípio da culpa, assente na dignidade da
pessoa humana, no direito à liberdade e à inviolabilidade da integridade moral dos
cidadãos, pretende-se que só possa ser responsabilizado criminalmente quem tiver
liberdade de entendimento. Daqui decorre que a pena funda-se na culpa (não há pena
sem culpa) proibindo-se, simultaneamente, a responsabilidade objetiva em direito penal.
Com o principio da legalidade, nas suas várias dimensões, pretende-se garantir, desde
logo, a necessidade de clareza e de precisão das incriminações - crimes, penas e
medidas de segurança e os seus pressupostos e limites - bem como que as mesmas
sejam emanadas de um órgão legislativo parlamentar (reserva de lei), proibindo-se
ainda a retroatividade da lei penal. O princípio da subsidiariedade, com especial

4
É sintomático o apelo efectuado por um conjunto de professores universitários de sete paises da
Europa sobre a emergência destes principios: cf. «Manifeste pour une politique criminelle européenne» in
www.crimpol.eu .

7
relevância do âmbito de uma política criminal europeia, decorre do facto de o legislador
europeu não pode intervir no domínio penal quando os objetivos previstos sejam
passíveis de serem concretizados, de forma suficiente, pelos Estados. Finalmente, o
princípio da coerência impõe que o legislador europeu deva, no âmbito da política
criminal, respeitar a coerência dos sistemas penais de cada Estado membro e dos
princípios que façam parte integrante da identidade desses mesmos Estados membros,
protegidos pelo artigo 4º n.º 2 do Tratado de Lisboa.
Àqueles princípios, acrescenta-se hoje a necessidade de desenvolver e conferir
efetividade ao princípio de eficácia na realização da justiça que, em boa medida, se
sustenta na celeridade. A celeridade é hoje um princípio conformador do processo justo
“afirmação do princípio da celeridade como princípio conformador do processo penal
tem como matriz indispensável a rapidez e a diligência na tramitação dos assuntos bem
como a efetividade real decorrente dos efeitos práticos da decisão”, que, cada vez, está
no lastro das politicas públicas dos diferentes Estados membros (Lopes, 2011, p. 367).
Os países que integram a União Europeia, incluindo Portugal, têm vindo a
incorporar aqueles princípios num duplo sentido: aprofundamento de direitos e
garantias dos cidadãos e eficácia e eficiência no combate ao crime. A questão
fundamental, no entanto, como vem sendo hoje tratada por muitos autores, prende-se, já
não tanto com a consagração de um sistema normativo democrático e garantístico, mas
com a capacidade da sua efetividade, isto é, com a aplicação das normas que o
sustentam. A avaliação do estado do direito e da efetividade de um Estado de Direito
terá que ser tida em conta, não só ao nível da law in books, mas também da law in
action, que se deve primordialmente afirmar.
É na resposta à pergunta do como concretizar a efetividade da proteção dos
direitos, constitucional e legalmente consagrados, mais do que na sua proclamação
normativa, que residem os grande problemas da justiça penal em muitos países. Os
estudos de avaliação do direito e da justiça penal mostram que em muitos países
europeus a prática é menos satisfatória que o ordenamento jurídico5. Também em
Portugal, a disjunção entre law in book e law in action é grande e, nalguns casos, têm
mesmo vindo a agravar-se, fragilizando a relação entre justiça criminal e democracia.

5
Esta preocupação está reflectida no Livro Verde sobre a aplicação da legislação penal da UE
no domínio da detenção de Junho de 2011, in http://www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/livro-verde-sobre-
a/downloadFile/attachedFile_1_f0/Livro_Verde.pdf?nocache=1310467491.07 (julho13).

8
2. As recentes reformas da justiça penal em Portugal
Por influência de dinâmicas nacionais ou internacionais, em especial das
políticas da União Europeia, o direito e a justiça penal têm estado, entre nós, no centro
do debate político e jurídico, com as reformas legais a dirigirem-se, já não tanto à
previsão legal da defesa de direitos e da garantia de liberdades mas, sobretudo, ao
aumento da eficácia do combate ao crime. Os objetivos de reforço e de ampliação de
instrumentos legais no combate ao crime, assim como a adaptação da legislação interna
face aos instrumentos internacionais, foram as principais razões que estiveram no lastro
da última reforma (Setembro de 2007), de dimensão mais alargada, de ambos os
Códigos Penal e de Processo Penal.

A reforma do Código Penal assentava, em especial, em seis orientações gerais:


diversificação das penas alternativas à privação da liberdade; consagração da
responsabilidade das pessoas coletivas; agravação da responsabilidade criminal em
fenómenos criminais graves; reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas;
reforço da autoridade do Estado democrático; e adaptação da legislação penal
portuguesa face aos instrumentos internacionais. Destaca-se, assim, como matriz da
reforma do Código Penal, o reforço da diversificação das penas, enquadrado nas
finalidades da prevenção geral e da importância da reinserção, através de um novo
paradigma baseado na aplicação de medidas alternativas à prisão. Simultaneamente,
para os fenómenos criminais de maior gravidade, aumentaram-se algumas molduras
penais de prisão e estabeleceram-se novas incriminações. O legislador deu, assim, um
sinal claro da necessidade de implementação de uma perspetiva diferenciada em função
da natureza da criminalidade.

Por sua vez, a revisão do Código de Processo Penal assentou, no essencial, em


quatro objetivos: aperfeiçoamento das garantias dos direitos das vítimas e dos arguidos;
celeridade e simplicidade processual; reforço do leque de instrumentos legislativos no
combate ao crime; e compatibilização das decisões penais proferidas na ordem interna
com as decisões de instâncias internacionais. Esta reforma assenta, assim, em duas
dimensões principais: uma, de celeridade e eficiência processual, e uma outra dimensão
de natureza “garantística” ao introduzir um conjunto de medidas que concretizam uma
maior proteção dos sujeitos processuais, tanto da vítima, como do arguido.

No que respeita à garantia dos direitos dos arguidos, destacam-se as alterações à


prisão preventiva, circunscrevendo o recurso a esta medida de coacção como ultima

9
ratio; ao segredo de justiça, passando a publicidade do inquérito a ser a regra, apenas
podendo ser excepcionada quando verificados determinados pressupostos; e às escutas
telefónicas (a divulgação recorrente do teor das escutas pela comunicação social e a
perceção de um eventual uso excessivo por parte dos órgãos de polícia criminal levou o
legislador a adotar medidas que vão no sentido de uma aplicação mais rigorosa e
controlada destes meios). No que respeita às vítimas, destaca-se as normas que impõem
a comunicabilidade de algumas decisões que as podem afetar.6 O aumento da eficiência
da tramitação processual tinha no alargamento das formas especiais de processo e nas
alterações na fase de recurso as suas principais bases. No que respeita aos processos
especiais (processo sumário, processo sumaríssimo e processo abreviado), foram
introduzidas significativas alterações com vista a, por um lado, tentar remover alguns
bloqueios legais que vinham sendo identificados e, por outro, alargar o âmbito da sua
aplicação de forma a incentivar a sua utilização.

Mais recentemente, a Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, procedeu à 29.ª


alteração ao Código Penal. De entre as medidas incorporadas pela reforma destacam-se
duas: o alargamento de situações consideradas como condutas típicas de determinados
crime, como é o caso dos crimes de homicídio qualificado7 ou de violência doméstica8
e, como uma das alterações mais significativas, o alargamento dos períodos de
suspensão da prescrição. Com esta medida, o legislador visa responder a um problema
que, com alguma frequência, ocorre no nosso sistema judicial: o da prescrição dos
crimes de natureza económica, em especial de corrupção, quando estão em causa
arguidos social ou economicamente poderosos que, através de manobras dilatórias,
acabam por conseguir a prescrição dos crimes, ainda que já condenados.

Na mesma data, foi publicada a Lei n.º 20/2013, que veio proceder à 20.ª
alteração ao Código de Processo Penal. Das alterações efectuadas destacam-se, pela sua
relevância, as que se relacionam com as declarações do arguido que, quando prestadas

6
De acordo com o artigo 480.º, n.º 3 do CPP, o tribunal deverá informar o ofendido da data de
libertação do preso, sempre que considere que tal libertação pode criar perigo para o ofendido. O mesmo
se aplica em caso de prisão preventiva aquando da libertação, dispondo a lei que, nestes casos, tal pode
acontecer oficiosamente ou mediante requerimento do Ministério Público (cf. 217º, nº 3 CPP).
7
Passa a prever-se como circunstância passível de ser suscetível de revelar a especial
censurabilidade ou perversidade para efeitos de qualificação do crime de homicídio a questão da
identidade de género da vítima (cf. artigo 132.º CP).
8
A lei passa a considerar as situações de namoro no elenco de situações passíveis de integrar este
tipo de crime (cf. artigo 152.º CP).

10
mesmo durante o primeiro interrogatório9, passam a poder ser utilizadas ao longo de
todo o processo, incluindo em audiência de discussão e julgamento, ao contrário do que
ocorria até então, que só valiam, para efeitos de incriminação, as declarações prestadas
em audiência de discussão e julgamento.

Um segundo tipo de alterações de maior significado ocorreu no âmbito do


processo sumário no sentido de alargar o leque de aplicação desta forma de processo. O
processo sumário pode agora ser aplicado, com exceção feita a um conjunto restrito de
tipo de crimes10, a todas as situações de detenção em flagrante delito (cf. artigo 381.º do
CPP), com o início da audiência a poder ter lugar no prazo de 20 dias após a detenção.–
(cf. artigos 382.º, n.º 4 e 387.º, n.º 2, al. c) e n.º 7 do CPP). Esta tem sido, contudo, uma
matéria objeto de profunda controvérsia, sendo considerado por vários agentes judiciais
que houve um alargamento excessivo da possibilidade de aplicação desta forma de
processo, rejeitando, por exemplo, a admissibilidade de julgamento em processo
sumário (por tribunal singular) dos crimes de homicídio.

Em recente decisão, o Tribunal Constitucional declarou a norma


inconstitucional, considerando que o julgamento através de tribunal singular oferece
menos garantias de defesa, desde logo, porque aumenta a margem de erro na apreciação
dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa. Mas, também, diminui as
garantias do arguido o facto de "o tribunal singular [para crimes menores] ser
normalmente constituído por um juiz em início de carreira, com menos experiência, o
que poderá potenciar uma menor qualidade da decisão", defendendo o Tribunal
Constitucional que "a celeridade processual não pode deixar de ser articulada com as
garantias da defesa". Para os casos de criminalidade grave, a que possa corresponder a
mais elevada moldura penal, "nada justifica que a situação de flagrante delito possa
implicar, por si, um agravamento do estatuto processual do arguido, com uma limitação
dos direitos de defesa e a sujeição a uma forma de processo que envolva menores
garantias de uma decisão justa" (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 428/2013, de
15 de Julho).

Ainda no sentido de promoção da eficácia e eficiência processual, salienta-se,


como medidas da reforma, a introdução de limites temporais à produção de prova em

9
Dispõem ainda a lei que quando as declarações sejam prestadas em sede de interrogatório do
arguido deve, sempre que possível, registar-se as mesmas através de meios áudio ou audiovisuais.
10
São eles: criminalidade altamente organizada, crimes contra a identidade cultural e integridade
pessoal, crimes contra a segurança do Estado, crimes previstos na Lei Penal Relativa a Violações do
Direito Internacional Humanitário.

11
função do tipo de crime e o alargamento do elenco das decisões que não admitem
recurso.

3. O volume e a estrutura da criminalidade

No sistema jurídico português, a noticia de um crime implica sempre a


obrigatoriedade de abertura de inquérito, que terá como finalidade única investigar a
existência de um crime, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade e descobrir
e recolher as provas em ordem a que seja tomada uma decisão sobre a acusação 11.
Vigora, assim, na ordem jurídica portuguesa o princípio da legalidade. Nos últimos
cinco anos, os dados estatísticos conhecidos indicam uma certa estabilização na
estrutura da criminalidade denunciada ou participada, registando-se, contudo, uma
crescimento mais acentuado do volume de inquéritos abertos nos últimos dois anos. Em
2007 foram abertos 493.472 inquéritos, cinco anos depois, em 2012, o número de
processos de inquérito abertos cresceu para 557.554.

De acordo com a tramitação processual, à fase de inquérito segue-se a fase de


instrução, que é facultativa. Tem como objetivo garantir o controlo do inquérito e
sindicância, antes do julgamento, da atuação do Ministério Público por um juiz que
profere despacho de pronúncia ou não pronuncia do arguido. Deste despacho não há,
em regra, admissibilidade de recurso. O número de processos entrados nesta fase tem
vindo a diminuir. Esta tendência de diminuição poderá estar relacionada com a perceção
da falta de interesse dos arguidos em mobilizar esta fase processual. É significativo, a
esse respeito, o facto de quase metade dos processos objeto de instrução terminarem
como um despacho de pronúncia.

A configuração e a utilidade prática desta fase processual têm sido, aliás, objeto
de debate na comunidade jurídica. As posições oscilam entre aqueles que evidenciam
esta fase processual como palco privilegiado de manobras dilatórias por parte da defesa,
considerando, por isso, que deveria ser mesmo suprimida como fase autónoma e aqueles
para quem, pelo contrário, o que se deve pedir é o reforço da sua importância como via

11
Nos termos do artigo 262.º, n.º 2, do CPP, a notícia do crime dará sempre lugar à abertura de
inquérito, “ressalvadas as excepções previstas neste Código”. Estas, dizem respeito aos crimes
vulgarmente designados por semi-públicos ou particulares em que o exercício da ação penal está
dependente de queixa ou acusação particular.

12
de controlo da fase de investigação (rectius, da actuação do Ministério Público, mais
propriamente, de controlo da acusação e/ou do arquivamento do processo). Uma
posição intermédia parece estar a ganhar espaço no sentido de um modelo de controlo
mais leve e flexível, próximo da preliminary hearing norte-americana, prevendo-se a
existência de um debate acerca do material probatório que a acusação e a defesa
carrearam para os autos ( Gaspar, 2009)12. Considerando a atual configuração, o volume
de processos entrados na fase de instrução mantém, desde 2004, ano em que entraram
nesta fase cerca de 8 500 processos, uma tendência decrescente, tendo entrado, em
2012, 8017 processos.

Para a fase de julgamento transitam os processos que foram objeto de acusação


ou, tendo sido requerida a instrução, de pronúncia. Uma primeira nota a ser evidenciada
diz respeito à forte disjunção entre o volume de processos entrados na fase de inquérito
e na fase de julgamento. Considerando as estatísticas dos últimos anos, cerca de 70% do
total de inquéritos abertos findam por arquivamento. O peso relativo aumenta quando
analisada a taxa de arquivamento nos departamentos de investigação e ação penal nos
grandes centros urbanos. Esta realidade encontra-se intimamente relacionada com o tipo
de criminalidade mais representativa em contexto urbano: crimes contra a propriedade,
crimes em que os inquéritos contra desconhecidos têm mais peso.

A disjunção entre a criminalidade conhecida, a criminalidade acusada e a


criminalidade condenada é uma das questões que está recorrentemente no centro do
debate no âmbito da justiça penal. No seu lastro estão vários fatores, como sejam a
maior ou menor eficiência das autoridades na investigação das condutas criminais, a
melhor ou pior organização e articulação dos órgãos de investigação criminal e do
Ministério Público, a colaboração de outras intuições externas ao sistema de justiça, a
maior ou menor utilização de formas “negociadas” ou de consenso, fatores que, entre
outros, podem determinar a passagem ou não de um determinado processo das fases
preliminares de investigação para julgamento e, em última análise, influir na decisão de
condenação/absolvição. Das fases preliminares de investigação à condenação, a
criminalidade passa, assim, por diferentes momentos de “seleção”. A atuação de vários
fatores leva ao chamado “efeito de funil” e à existência, em regra, de grandes

12
A este propósito, ver, ainda, Brandão, 2008.

13
desajustamentos no volume e na estrutura da criminalidade denunciada, julgada e
condenada13.

O número de processos na fase de julgamento é, naturalmente, menor que o


número de processos em inquérito, uma vez que uma parte será sempre objeto de
arquivamento, porque não existe ilícito criminal, não se conhecem os seus autores ou
porque, conhecendo-se, não existe culpa ou porque ocorreu uma causa de extinção do
procedimento. Já na fase de julgamento, poderão atuar mecanismos de consenso,
levando à extinção do procedimento criminal “por acordo”, e ou a prova da inocência
do arguido conduzir à absolvição. O que significa que, em boa medida, aquele
afunilamento decorre do normal funcionamento dos mecanismos legais, em especial dos
mecanismos processuais e/ou consensuais.

Esta questão deve, contudo, merecer especial atenção quando o desajustamento


se situa a níveis elevados, em especial em determinados tipos de criminalidade, como é
o caso dos crimes económicos, sobretudo, os crimes de corrupção, e quando existe uma
forte suspeita de que, em boa parte, estaremos perante crimes efetivamente cometidos. É
certo que, mesmo nesses casos, haverá sempre, por razões várias, uma parte
significativa de crimes, cujos agentes, apesar de conhecidos, “escaparão à punição”.
Contudo, a hipótese de trabalho que os estudos especificamente dirigidos à análise desta
questão deverão trabalhar é que as fortes transformações operadas no volume e na
estrutura da criminalidade decorrem da ação de fatores que enfraquecem fortemente a
investigação, como sejam a ineficiência da investigação, a morosidade processual ou,
no caso de determinados tipos de crime, a falta de preparação técnica adequada dos
operadores para a investigação, acusação e julgamento, cujos efeitos negativos os
sistemas judiciais devem procurar atenuar o mais possível.

A falta de preparação adequada dos operadores judiciários para a investigação e


julgamento da criminalidade económica complexa, em especial da corrupção, é uma das
questões recorrentes do debate sobre a justiça penal em Portugal. Aliás, o tema da
corrupção e o papel do sistema judicial no seu combate têm natureza global. Segundo
um estudo da organização não-governamental, Transparency International,
recentemente publicado, cerca de 53 % da população mundial considera que a

13
Outra questão é a diferença entre criminalidade real e criminalidade registada. Fora desta ficam
todos os crimes que não foram denunciados ou não chegaram, por qualquer outra forma, ao conhecimento
das autoridades. Esta criminalidade integra a chamada “criminalidade oculta” só possível de aferir através
de metodologias apropriadas, como sejam os inquéritos de vitimização.

14
corrupção agravou-se nos últimos dois anos (Global Corruption Report, 2013, Julho). O
estudo conclui que as pessoas confiam hoje menos nas instituições que deveriam ajudá-
las ou protegê-las, como a polícia, os tribunais e os partidos políticos. Os inquiridos
manifestaram também a convicção de que os trabalhos de combate à corrupção dos
governos deterioraram-se desde 2008, com o início da crise financeira e económica. No
caso de Portugal, oito em cada dez portugueses consideram que a corrupção aumentou
nos últimos dois anos e a maioria diz que "o Governo está nas mãos de um conjunto
restrito de grupos económicos", sendo que 70% dos portugueses encaram a corrupção
como um problema sério ou muito sério no setor público. No que toca ao combate à
corrupção, a grande maioria dos inquiridos consideram-no ineficaz em Portugal.
Saliente-se, ainda, que a forte disjunção entre a perceção mediática daquela
criminalidade, o número de inquéritos abertos e as condenações com trânsito em
julgado faz com que a sociedade se confronte com uma situação de “excessiva
suspeição” vs “fraquíssima condenação”. Na verdade, os indicadores estatísticos
mostram um baixo número de inquéritos abertos, mas, mais do que isso, mostram o
enfraquecimento desta criminalidade na tramitação processual: muitos desses processos
não prosseguem para julgamento e os que prosseguem veem, com frequência, diminuir
o número e a gravidade dos crimes, que o julgamento, em regra, ainda atenua. No seu
lastro estão, sobretudo, as dificuldades com que o sistema se debate na investigação
deste tipo de criminalidade, impedindo a produção de provas robustas. Esta situação
deslegitima a justiça e lança sobre ela uma suspeição: a sua incapacidade ou falta de
vontade em acusar e condenar os agentes desta criminalidade, em regra, pessoas
socialmente poderosas.

No que respeita à estrutura da criminalidade, os indicadores mostram que grande


parte da criminalidade conhecida (participada e julgada) integra-se na chamada
criminalidade de média e pequena gravidade e, dentro desta, de uma criminalidade de
"massa" constituída, sobretudo, por crimes contra a segurança das comunicações
(condução sem habilitação legal e sob o efeito do álcool) e pequenos furtos. O peso
relativo dos dois primeiros tipos de crime ultrapassa 30% dos processos crime na fase
de julgamento. Seguem-se os crimes contra a integridade física e maus tratos e os
crimes contra a honra, reserva da vida privada e outros bens jurídicos pessoais. Nos
últimos anos tem vindo a aumentar o peso relativo de tipos de crime relacionados com a
conjuntura socioeconómica (crimes contra a propriedade), com um maior ativismo, por

15
parte das entidades administrativas na cobrança de impostos e de taxas (crimes
aduaneiros, fiscais e contra a segurança social), e nos crimes contra a liberdade e
autodeterminação sexual. A maior visibilidade social dos fenómenos de natureza sexual,
aliada a uma maior organização e preparação das polícias para os combater, ajuda a
explicar o crescimento desta criminalidade.

4. A morosidade judicial: um problema também da justiça penal

A ideia de crise domina o debate social e político sobre o sistema judicial


português, desde há várias décadas. Prevalece o discurso de que o estado da justiça,
mais do que uma fonte de preocupação num determinado momento, converteu-se num
estado permanente de crise, próximo do ponto de rutura. A dimensão temporal é a
questão mais constante, quando o tema é a crise da justiça. De tal modo que o tempo da
justiça se converteu na morosidade da justiça, o que leva a que, com frequência, a
expressão seja usada, mesmo quando se quer referir a mera duração dos processos. A
ideia de que os tribunais usam tempo de mais para decidir é, assim, intrínseca às
análises sobre o sistema judicial português, sejam mediáticas, políticas, corporativas e
/ou sociojurídicas. Todas elas convergem na seguinte conclusão: a ineficiência e
ineficácia dos tribunais estão a corroer a sua legitimidade social (Gomes, 2011).
Como acima já referimos, aumentar a eficiência da justiça penal, diminuindo os
tempos dos processos nas diferentes fases processuais constituía um dos objetivos
centrais das últimas reformas da justiça. Daí o forte investimento legislativo nas formas
especiais de processo, alargando significativamente o seu campo de aplicação. Contudo,
apesar das reformas, os indicadores mostram uma justiça penal muita dividida entre
processos céleres, em regra, os que respeitam à chamada "criminalidade de massa", que
podem ser tramitados na forma de processo sumário e uma lentidão processual que
atinge, sobretudo, a criminalidade económica, mas também, criminalidade sem especial
complexidade. Isto é, sempre que o processo tramita como processo comum tende a
alongar a sua duração.

Num tempo marcado pela mediatização da justiça e de muitos dos seus agentes,
a informação e as análises produzidas pela comunicação social têm particular
relevância, não só na formação da opinião pública, mas também dos agentes do sistema

16
e de outros analistas e têm um grande potencial de influenciar as políticas de justiça,
colocando na agenda determinadas reformas. Mas, é sobre os cidadãos em geral, com
menos acesso a outras fontes de informação, que a comunicação social exerce maior
influência, até porque o contacto e a experiência com o sistema judicial não se inserem
nas práticas quotidianas, nem seguramente esporádicas, da grande maioria dos
portugueses14. Ora, a cobertura mediática da justiça tende a centrar-se na turbulência e
nas contingências de determinados processos crime em que estão envolvidas pessoas
social ou politicamente relevantes. Esses processos, apesar de constituírem uma ínfima
parte do trabalho dos tribunais, rapidamente se transformam em símbolos de injustiça e
de avaliação do seu desempenho, influenciando as opiniões sobre a eficiência, a rapidez
ou a lentidão dos tribunais. E, embora o problema tenha surgido na comunicação social,
a propósito de determinado processo, assume condição estrutural do sistema de justiça
quando se verifica numa percentagem muito significativa de processos. O modo como a
comunicação social produz o carácter justificado ou injustificado (congestionamento,
inoperância, défices humano e material) do tempo e da ineficiência da justiça e do
desempenho funcional dos operadores concorre, em boa medida, para a formação das
atitudes sociais sobre o funcionamento dos tribunais, para a construção de níveis
diferenciados de tolerância à morosidade e para o desenvolvimento de uma maior ou
menor confiança nas instituições judiciárias.

Se atentarmos no tratamento mediático dos temas que envolvem o judiciário,


concluímos que, na grande maioria dos casos, esse tratamento tem como subtexto a
ideia de que o tempo da justiça constitui uma anomalia face ao tempo social,
enfatizando temas como o volume das pendências, a longa duração de processos com
cidadãos à espera vários anos por uma decisão final, a especial lentidão dos processos-
crime relacionados com a criminalidade económica, sobretudo quando os suspeitos são
pessoas poderosas. Todas as notícias convergem na ideia de que atrasos do sistema de
justiça são endémicos e altamente perniciosos, não só para o exercício efetivo dos
direitos, da pacificação social, do funcionamento das organizações e do
desenvolvimento social e económico, mas também para a qualidade da democracia. A
percepção de que a lentidão processual aumenta os riscos de impunidade, podendo levar

14
Em dois inquéritos realizados pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
(CES), um em 1993 e outro em 2001, aplicados a uma amostra representativa de indivíduos residentes em
Portugal (nacionais ou estrangeiros) com idade superior a 18 anos, concluiu-se que apenas cerca de 23%
dos cidadãos residentes em Portugal alguma, durante a sua vida, teve experiência em tribunal e, destes, a
grande maioria teve apenas uma única experiência.

17
ao prolongamento quase infinito dos casos ou à absolvição de arguidos por motivos
extra-jurídicos, agrava o ceticismo sobre o recurso aos tribunais, colocando em causa
componentes fundamentais das bases simbólicas e materiais do Estado de direito
democrático (Gomes, 2001).

Repetindo os anteriores inquéritos acima referidos, realizados pelo CES/OPJ, foi


aplicado, no âmbito do estudo sociológico "as mulheres nas magistraturas em Portugal:
percursos, experiências e representações", coordenado por Conceição Gomes (2013),
um inquérito a uma amostra representativa da população portuguesa, através do qual se
pretendia aferir das perceções e opiniões dos cidadãos acerca do direito e do sistema de
justiça. Mais de 60% dos inquiridos avalia negativamente o sistema de justiça
português. A desigualdade social no desempenho dos tribunais é sublinhada pela ampla
maioria dos respondentes, levando 93% a considerar que os tribunais conferem um
tratamento diferenciado entre ricos e pobres. As opiniões negativas são mais relevantes
em três domínios: os mecanismos da justiça não são suficientemente eficazes para
garantir a condenação dos culpados; na influência do dinheiro no recurso ao tribunal e
na justiça praticada; e em relação aos tempos da justiça, que consideram marcados pela
forte morosidade. A maioria dos inquiridos duvida da capacidade dos tribunais para
fazer justiça (quer em condenar as pessoas que efetivamente são culpadas, quer em
condenar os crimes cometidos por pessoas com poder e com dinheiro) e considera que
com dinheiro e um bom advogado um pessoa consegue o que quer do tribunal. É
significativo que, apesar de várias reformas centradas no aumento da eficiência e
eficácia do sistema de justiça nas últimas décadas, cerca de 60% dos inquiridos
subscreve a afirmação de que «as decisões dos tribunais são tão lentas que não vale a
pena recorrer ao tribunal».
Os indicadores de duração dos processos sustentam, em grande medida, aquelas
perceções. Fora dos casos em que os crimes são acusados e julgados sob a forma de
processo sumário, os processos tendem a ultrapassar, por vezes, em meses ou anos, os
prazos previstos na lei para a conclusão das diferentes fases. Daí que a duração média
dos processos crime suba, de forma significativa, quando se excluem os processos
sumários. É, ainda, relevante destacar que, com excepção dos crimes julgados sob a
forma de processo sumário, em todos os tipos de criminalidade se registam durações
longas, sendo que o peso relativo dos processos, na fase de julgamento, com duração
superior a 3 anos é mais acentuado nos crimes contra o património e sector público ou

18
cooperativo15 e de falsificação. O que significa que a dilação dos processos, embora
atinja mais determinado tipo de crimes, tem que ser procurada em outros fatores,
organizacionais ou outros, mais do que na natureza da criminalidade. Ainda no âmbito
deste indicador, uma segunda nota diz respeito aos desempenhos funcionais desiguais
dos tribunais, questão sobre a qual vários estudos do Observatório Permanente da
Justiça têm vindo a chamar a atenção. A duração dos processos pode variar, de forma
significativa, de tribunal para tribunal, o que indicia a falta de eficácia dos mecanismos
de avaliação de desempenho.16

5. Desafios à justiça penal

O conteúdo e o curso das reformas são necessariamente diferentes, consoante o


diagnóstico que for mais valorizado: o diagnóstico político e dos comentadores e
analistas da comunicação social, dos operadores ou o diagnóstico sociológico assente na
avaliação sólida e rigorosa do desempenho do sistema judicial. No domínio da justiça
penal, é frequente o legislador ser influenciado pelo mediatismo de determinada
situação, por exemplo, no sentido da criminalização de determinadas condutas ou no
aumento das molduras penais. Ora, as profundas alterações no contexto social e político
de ação da criminalidade e os desafios que se colocam ao sistema judicial exigem uma
avaliação sólida e rigorosa da criminalidade (oculta e participada) e do desempenho
funcional do sistema judicial, quer na prevenção, quer no combate às várias formas de
criminalidade. A par deste, um outro desafio com ele interligado prende-se com a
necessária perspetiva sistémica que deve presidir às reformas. Não é certamente
possível reformar todo o sistema de justiça em simultâneo. Mas, quando se intervém em
determinado sector, essa intervenção tem que incorporar uma visão global, não só de
todo o sistema, mas, por maioria da razão, do subsector onde se está a intervir, sob pena
de gerar incongruências na aplicação da lei.

15
Nesta categoria incluem-se os seguintes tipos de crime: burla simples e qualificada, burla
relativa a seguros, burla informática e nas comunicações, burla para obtenção de alimentos, bebidas ou
serviços, burla relativa a trabalho ou emprego, abuso de cartão de garantia ou de crédito, outros crimes
contra o património em geral, insolvência dolosa e negligente, receptação ou auxílio material ao
criminoso, outros crimes contra direitos patrimoniais, crimes contra o sector público ou cooperativo
agravados pela qualidade do agente e outros crimes contra o património não especificados.
16
Sobre esta matéria, ver Gomes (coord.), 2009.

19
Um outro desafio prende-se com a criação de boas condições à preparação e
execução das reformas. As reformas estruturais do sistema de justiça devem ser
precedidas de duas condições fundamentais. A primeira é uma cuidadosa preparação
prévia, para a qual os estudos em muito contribuem. A segunda é que as mesmas sejam
precedidas de um período de adaptação, envolvendo todos os operadores o mais
possível. A inexistência de uma fase de adaptação, que permita a assimilação dos novos
modelos e, se não a adesão a eles, pelo menos a quebra de algumas resistências, tem
como consequência direta, desde logo, que as deficiências que se verificavam
anteriormente sejam transportadas para o período pós-reforma. Não há reformas que
resolvam os problemas estruturais se não houver uma cultura judiciária que as sustente.
A criação de uma nova cultura judiciária exige muito mais, quer das faculdades de
direito, quer dos organismos responsáveis pela formação profissional. Essa cultura é
muito importante, sobretudo, na dinamização da aplicação de inovações no âmbito da
justiça penal e ou da eliminação de resistências, designadamente, no que respeita a uma
maior utilização da formas especiais de processo ou os mecanismos de consenso, bem
como das penas alternativas à prisão. No domínio das penas, é significativo que, nos
últimos anos, a maioria dos reclusos entrados em estabelecimento prisional tenha sido
condenada em penas inferiores a um ano e, destes, uma percentagem de mais de metade,
a penas de duração igual ou superior a 6 meses.

A formação profissional, quer a formação inicial, quer a formação permanente,


em especial a formação dos magistrados, assume um papel central no sistema de justiça,
tendo em vista melhorar a sua eficiência e qualidade e a criação de uma nova cultura
judiciária. É uma reforma estruturante do sistema judicial à qual é preciso dar muito
mais atenção. Além da formação que deve preceder a entrada em vigor das reformas,
salientam-se as carências de formação especializada para o exercício de determinadas
funções, sobretudo, quando, no caso da justiça penal, elas se confrontam com uma
crescente complexidade dos fenómenos criminais.

A investigação criminal depende de uma teia de múltiplas organizações e


agentes judiciais, quer dentro do sistema judicial, quer de outras entidades que com ele
colaboram, nacionais e internacionais. Este funcionamento multi-direccionado exige,
para o sucesso da investigação, uma forte articulação entre as diversas instituições e
agentes. Daí o esforço, acima referido, das instituições da União Europeia no
alargamento e aprofundamento de redes de cooperação. O fortalecimento dos sistemas

20
judiciais no combate ao crime tem que passar pelo aprofundamento da articulação entre
Ministério Público (MP) e órgãos de polícia criminal, entre os vários serviços do MP,
mas também com outras instituições da sociedade. Esta é uma via fundamental para a
eficácia da resposta, quer à criminalidade de pequena e média gravidade, quer na
resposta à criminalidade grave. O sistema de justiça penal tem que fazer uma distinção
clara na sua organização e funcionamento e na gestão de recursos e meios entre a
criminalidade altamente organizada e complexa e a outra criminalidade de pequena e
média gravidade. É no combate àquela primeira criminalidade que, no caso da
corrupção e da criminalidade económica em geral, é altamente perdadora para a
sociedade e para a democracia, devem centrar-se os maiores esforços e os mais
qualificados. Essa distinção deve fazer-se, não só no âmbito da investigação (alteração
de modelos de investigação e de métodos de trabalho, maior investimento nos meios
periciais e utilização mais racional dos mesmos, entre outros fatores) mas, também, nas
fases subsequentes.

As novas tecnologias de informação e de comunicação podem desempenhar um


papel central na eficiência do sistema de justiça. No âmbito da justiça penal, é
fundamental melhorar a eficiência dos sistemas informáticos permitindo, não só a
comunicação de informação entre diferentes entidades, em especial entre o Ministério
Público e os órgãos de polícia criminal, mas também armazenar dados, centralizar
informação e fazer uma gestão eficiente do volume processual.

Por último, mas não de menos importância, consideramos que os sistemas de


justiça penal dos Estados de direito democrático devem ter uma política mais assertiva e
consentânea com a realidade, no combate e na penalização de condutas que, embora
tipificadas como crime, se inserem no que se considera de criminalidade de pequena e
média gravidade. Duas das grandes questões em debate nos estudos sobre o direito e a
justiça penal prendem-se, por um lado, com a necessidade de incentivar a aplicação de
vias alternativas à intervenção jurisdicional e de sanções alternativas à prisão e, por
outro, com a reflexão sobre a excessiva criminalização de condutas, transferindo-se para
o campo da justiça penal problemas que deveriam ser resolvidos através de outras
respostas sociais.
Algumas soluções têm sido construídas em vários Países Europeus. Apenas a
título exemplificativo, refere-se que em França, no domínio da criminalidade rodoviária,
em 2003, foram criadas soluções legais que evitam a intervenção jurisdicional. Também

21
em França admitiram-se, pela primeira vez em 2001, soluções de transação penal para
crimes e contravenções na área da concorrência. Na Alemanha, após uma prática de
vários anos no domínio da consensualização de penas, em 200917 legalizou-se o sistema
de negociação da pena para um conjunto de vários crimes, evitando a sobrecarga
jurisdicional de julgamentos. Em Portugal, tem-se vindo a dar alguns passos, mas é
necessário alargar e aprofundar a aplicação das soluções normativas.

Nota conclusiva

O direito e a justiça são instrumentos centrais da qualidade da democracia. No


âmbito da justiça penal, os poderes político e judicial, em sentido lato, têm que assumir
um alto compromisso com os cidadãos: o combate à criminalidade grave,
designadamente, à grande criminalidade económica e à corrupção, devem ser
considerados desafios centrais do sistema de justiça. A necessidade de diversificação
das respostas político-criminais em face da igual diversidade dos fenómenos criminais e
dos seus agentes, faz emergir, nos diferentes ordenamentos jurídicos nacionais, dois
sub-sistemas processuais penais distintos: um sub-sistema contraditório, adversarial e
formal para o processamento da criminalidade mais grave; e um sub-sistema que se
pretende mais desformalizado e que privilegia formas de consenso sob tutela pública,
dirigido a uma criminalidade menos grave, mas quantitativamente muito mais
expressiva, visando a obtenção, da forma menos dispendiosa e no mais curto período de
tempo possíveis, de uma solução susceptível de reparar o dano e pôr fim ao conflito.
Contudo, os estudos efectuados vão no sentido de que existe um segmento
substancial de pequena e média criminalidade que, sem grande variação ocupa, em
regra, uma dimensão não proporcional dos recursos policiais e judiciais. Trata-se de um
fenómeno transversal a todo o espaço europeu, que tem levado à criação de mecanismos
processuais e gestionários no domínio jurídico e criminal, expressamente orientados
para a sua resolução, cuja aplicação se considera necessário incentivar. Exige-se uma
especial atenção à diferenciação. Não faz sentido continuar a suportar um tratamento
pouco diferenciado da criminalidade que chega aos tribunais, onde se trata com muito
pouca diferença processual um pequeno furto de supermercado, um roubo violento a um
banco ou um crime grave de violação. A criminalidade de "massa" impõe um

17
Lei de 4.8.2009, que modificou o StPo (Código de processo penal alemão).

22
tratamento diferenciado, de um ponto de vista adjectivo e organizacional, da
criminalidade altamente organizada ou violenta.
Um dos problemas estruturais com que a justiça penal se confronta é o problema da
morosidade no tratamento processual dos casos. Vivemos num tempo de "aceleração"
em que as sociedades ocidentais "são confrontadas com uma penúria de tempo, uma
verdadeira crise do tempo que põe em causa as formas e as possibilidade de organização
individuais e politicas", nas palavras de Harmut Rosa, 2010. Este é o tempo, por isso, de
olhar com realismo para a exigência da concretização do conteúdo do "prazo razoável"
na efetivação da justiça. No caso da justiça penal, pode dizer-se, como refere Jean Paul
Jean, que "o ciclo contemporâneo da evolução das regras do processo penal inscreve-se
no paradigma da eficácia" (Jean, 2009). E isso é uma inevitabilidade que qualquer
reforma deve incorporar.
Aliada a esta ideia está uma outra, no centro do debate, que se prende com a
necessidade de dotar os sistemas penais de respostas à sobrelotação das cadeias e à
reincidência, associada ao reconhecimento da urgência em encontrar-se alternativas à
pena de prisão. O crescimento da população prisional que, um pouco por todo o lado,
muitos países enfrentam, incluindo Portugal, é considerado como um dos mais
complexos desafios dos sistemas penais.
A análise dos números da criminalidade, envolvendo a criminalidade participada, a
criminalidade julgada e a dos cidadãos detidos a cumprir penas de prisão, leva-nos a um
conjunto de interrogações sobre a eficácia do modelo penal em função dos princípios
que o sustentam. Exigem-se novas soluções normativas, novos modelos de organização
e novos métodos de trabalho. Desde logo, a introdução de novas metodologias
gestionárias, tanto na fase de investigação como na fase de julgamento. Neste âmbito,
soluções como a gravação da prova pessoal produzida em inquérito (som e imagem) ou
a otimização funcional do papel do Ministério Público, disponibilizando magistrados
experientes para funções de coordenação ou exponenciando a formação especializada de
magistrados, são alguns dos exemplos a seguir. Por outro lado, é fundamental
aprofundar a efetivação de alterações processuais com alguma radicalidade, sustentadas,
por exemplo, numa amplificação das soluções de consenso antes do julgamento, num
novo modelo de consensualização de penas ou no alargamento da possibilidade de
formular sentenças abreviadas.
Mais impressivo é o problema da confiança e da igualdade no sistema de justiça.
À luz dos princípio de uma justiça justa, é racionalmente pouco compreensível suportar

23
o “gap” entre a perceção da não punibilidade de condutas que envolvem atos ilícitos no
domínio da criminalidade económica e financeira e da corrupção e a constatação que os
estabelecimentos prisionais estão sobrelotados com cidadãos, normalmente de baixos
recursos económicos, a cumprir penas de prisão por crimes de "baixa intensidade".
A reflexão sobre o sistema de justiça penal não pode deixar de interpelar o “fim
da linha” do sistema penal, ou seja, o problema penitenciário nas suas várias vertentes:
estabelecimentos prisionais sobrelotados, ausência de programas credíveis de
reinserção social e de respostas adequadas aos inimputáveis perigosos em
estabelecimentos de saúde, que pouco mais são do que depósitos que ninguém quer
conhecer, que ninguém reclama, que quase todos pretendem evitar, mas onde homens e
mulheres, sob a calma de um potente fármaco, se limitam a esperar que o tempo passe.
O aprofundamento do Estado de direito e da democracia também tem que passar por
aqui.

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