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Conceição Gomes1
José Mouraz Lopes2
Introdução
Os desafios que, hoje, se colocam aos sistemas de justiça criminal, nos vários
países, são muito exigentes. Desde logo, porque a ação penal, quer no plano da
prevenção, quer no plano do combate ao crime, desenvolve-se a vários níveis: local,
nacional e internacional. Esta circunstância, só por si, torna muita complexa a ação da
justiça e, em geral, das autoridades do controlo em geral. Se, por um lado, têm que
responder a uma criminalidade de pequena e média gravidade, por vezes, com
especificidades muito localizadas (pequenos furtos, ofensas corporais simples, danos,
1
Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Coordenadora
Executiva do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa
2
Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas.
1
crimes estradais, etc.), mas que pode causar grande alarme social; por outro, a
criminalidade mais grave, que atinge de forma mais predadora as pessoas e as estruturas
sociais age, cada vez mais, num contexto internacional, caracterizado pelo movimento
de globalização em muitos sectores da sociedade e do Estado com impacto nos sistemas
de justiça criminal.
Este novo contexto da ação da criminalidade, cada vez mais global, coloca
desafios muito complexos ao direito e à justiça penal de cada Estado. Para Figueiredo
Dias, o movimento de globalização e o “surgimento de novos e grandes riscos à escala
global” colocam três ordens de problemas processuais penais: por um lado, “o reforço
da solidariedade global em ordem a uma mais consistente proteção das vítimas da nova
e grande criminalidade”; por outro, a “diversificação das respostas político-criminais
face à nova criminalidade massificada”; e, por último, “a crescente internacionalização
do direito e do processo penal” (Dias, 2009, pp. 805-819).
2
territorial de determinadas condutas, como é o caso das redes de terrorismo
internacional sem base territorial, ou do cibercrime.
3
1. O direito europeu e o impacto no sistema jurídico português
4
europeu, de segurança jurídica e de manutenção dos princípios da subsidiariedade e de
soberania nacional.
Mas, a luta contra o terrorismo não é o único objetivo do direito penal da União
Europeia. Segundo Ulrich Sieber, podem assinalar-se-lhe os objetivos clássicos do
direito penal de proteção ou garantia da segurança e da liberdade, com algumas
especificidades europeias. Assim, visa, desde logo, a perseguição efetiva da
criminalidade europeia transnacional, resultante do processo de globalização e, em
especial, do processo de europeização com a criação dos mercados à escala da União e o
enfraquecimento das fronteiras. Mas, o direito penal europeu resulta, ainda, da
necessidade de proteção dos novos e específicos bens jurídicos “europeus”, como, por
exemplo, a proteção dos interesses financeiros e da integridade da União Europeia
perante burlas, fraudes, desvio e abuso de poder e violação de segredo profissional; a
proteção da concorrência europeia face a monopólios; a proteção da moeda europeia; ou
a proteção do ambiente ou do património cultural. No lastro do seu desenvolvimento
estão, também, outros desafios, como sejam a necessidade de assegurar a manutenção
de princípios que garantam a liberdade e os direitos fundamentais em todos os Estados
membros (Sieber, 2009, pp. 461-525).
5
vetor, e numa perspetiva supranacional (vetor vertical), procura-se harmonizar as regras
penais e processuais penais entre os diferentes Estados Membros, tendo em vista a
criação de regras comuns. Esta vertente foi sobretudo impulsionada pela criação, com o
Tratado de Amesterdão, das decisões-quadro – instrumento normativo que, adotado pela
unanimidade dos Estados-Membros, vincula quanto ao resultado a alcançar, deixando
no entanto às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios (Dias,
2009, pp. 805-819).
3
Muitas das alterações decorrentes da reforma penal e processual penal de 2007 foram suscitadas
por este instrumento normativo da União Europeia, designadamente: Decisão-Quadro 2000/383/JAI, do
Conselho, de 29 de Maio de 2000, alterada pela Decisão-Quadro 2001/888/JAI, do Conselho, de 6 de
Dezembro de 2001, sobre o reforço da proteção contra a contrafação de moeda na perspetiva da
introdução do euro, através de sanções penais e outras; Decisão-Quadro 2001/423/JAI, do Conselho, de
28 de Maio de 2001, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em
numerário; Decisão-Quadro 2002/629/JAI, do Conselho, de 19 de Julho de 2002, relativa à luta contra o
tráfico de seres humanos; Decisão-Quadro 2004/68/JAI, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2003,
relativa à luta contra a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil; e Decisão-Quadro
2005/667/JAI, do Conselho, de 12 de Julho de 2005, destinada a reforçar o quadro penal para a repressão
da poluição por navios.
6
O desenvolvimento de uma política criminal europeia, a harmonização
legislativa, o reconhecimento mútuo de decisões judiciais, a criação de instrumentos de
cooperação, a criação de uma procuradoria-geral europeia, bem com a concretização de
alguns mecanismos processuais comuns, entre outros, vão no sentido da assunção, pelos
Estados membros, de que também em termos de justiça criminal há um espaço comum
que se impões aos diferentes Estados.
No plano dos princípios, vem-se assistindo à sedimentação de um conjunto de
princípios integrantes de uma emergente política criminal europeia, ainda que nem
sempre com a mesma coerência e sistematização. Os princípios da humanidade, da
necessidade (da ultima ratio do direito penal), da culpa, da legalidade, da
subsidiariedade e o princípio da coerência, entre outros, têm hoje na dogmática europeia
definições inequívocas que podem já considerar-se património de uma europa da
justiça, que deve ser seguida pelos diferentes Estados-membros4.
Através do princípio da humanidade exige-se o tratamento digno, em todas as
vertentes, daqueles que cometem crimes, designadamente, na definição e aplicação de
penas, com reflexos imediatos e diretos na proibição da pena de morte e das penas
cruéis e desumanas, bem como das penas indeterminadas. Com o princípio da
necessidade estabelece-se que o direito penal só deve intervir quando isso seja
necessário e eficaz e também que só deve criminalizar-se um comportamento quando o
mesmo seja essencial para a sobrevivência da comunidade. Daí que só devam ser
protegidos pelo direito penal bens jurídicos fundamentais, assentes no quadro de valores
constitucionalmente consagrados. Com o princípio da culpa, assente na dignidade da
pessoa humana, no direito à liberdade e à inviolabilidade da integridade moral dos
cidadãos, pretende-se que só possa ser responsabilizado criminalmente quem tiver
liberdade de entendimento. Daqui decorre que a pena funda-se na culpa (não há pena
sem culpa) proibindo-se, simultaneamente, a responsabilidade objetiva em direito penal.
Com o principio da legalidade, nas suas várias dimensões, pretende-se garantir, desde
logo, a necessidade de clareza e de precisão das incriminações - crimes, penas e
medidas de segurança e os seus pressupostos e limites - bem como que as mesmas
sejam emanadas de um órgão legislativo parlamentar (reserva de lei), proibindo-se
ainda a retroatividade da lei penal. O princípio da subsidiariedade, com especial
4
É sintomático o apelo efectuado por um conjunto de professores universitários de sete paises da
Europa sobre a emergência destes principios: cf. «Manifeste pour une politique criminelle européenne» in
www.crimpol.eu .
7
relevância do âmbito de uma política criminal europeia, decorre do facto de o legislador
europeu não pode intervir no domínio penal quando os objetivos previstos sejam
passíveis de serem concretizados, de forma suficiente, pelos Estados. Finalmente, o
princípio da coerência impõe que o legislador europeu deva, no âmbito da política
criminal, respeitar a coerência dos sistemas penais de cada Estado membro e dos
princípios que façam parte integrante da identidade desses mesmos Estados membros,
protegidos pelo artigo 4º n.º 2 do Tratado de Lisboa.
Àqueles princípios, acrescenta-se hoje a necessidade de desenvolver e conferir
efetividade ao princípio de eficácia na realização da justiça que, em boa medida, se
sustenta na celeridade. A celeridade é hoje um princípio conformador do processo justo
“afirmação do princípio da celeridade como princípio conformador do processo penal
tem como matriz indispensável a rapidez e a diligência na tramitação dos assuntos bem
como a efetividade real decorrente dos efeitos práticos da decisão”, que, cada vez, está
no lastro das politicas públicas dos diferentes Estados membros (Lopes, 2011, p. 367).
Os países que integram a União Europeia, incluindo Portugal, têm vindo a
incorporar aqueles princípios num duplo sentido: aprofundamento de direitos e
garantias dos cidadãos e eficácia e eficiência no combate ao crime. A questão
fundamental, no entanto, como vem sendo hoje tratada por muitos autores, prende-se, já
não tanto com a consagração de um sistema normativo democrático e garantístico, mas
com a capacidade da sua efetividade, isto é, com a aplicação das normas que o
sustentam. A avaliação do estado do direito e da efetividade de um Estado de Direito
terá que ser tida em conta, não só ao nível da law in books, mas também da law in
action, que se deve primordialmente afirmar.
É na resposta à pergunta do como concretizar a efetividade da proteção dos
direitos, constitucional e legalmente consagrados, mais do que na sua proclamação
normativa, que residem os grande problemas da justiça penal em muitos países. Os
estudos de avaliação do direito e da justiça penal mostram que em muitos países
europeus a prática é menos satisfatória que o ordenamento jurídico5. Também em
Portugal, a disjunção entre law in book e law in action é grande e, nalguns casos, têm
mesmo vindo a agravar-se, fragilizando a relação entre justiça criminal e democracia.
5
Esta preocupação está reflectida no Livro Verde sobre a aplicação da legislação penal da UE
no domínio da detenção de Junho de 2011, in http://www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/livro-verde-sobre-
a/downloadFile/attachedFile_1_f0/Livro_Verde.pdf?nocache=1310467491.07 (julho13).
8
2. As recentes reformas da justiça penal em Portugal
Por influência de dinâmicas nacionais ou internacionais, em especial das
políticas da União Europeia, o direito e a justiça penal têm estado, entre nós, no centro
do debate político e jurídico, com as reformas legais a dirigirem-se, já não tanto à
previsão legal da defesa de direitos e da garantia de liberdades mas, sobretudo, ao
aumento da eficácia do combate ao crime. Os objetivos de reforço e de ampliação de
instrumentos legais no combate ao crime, assim como a adaptação da legislação interna
face aos instrumentos internacionais, foram as principais razões que estiveram no lastro
da última reforma (Setembro de 2007), de dimensão mais alargada, de ambos os
Códigos Penal e de Processo Penal.
9
ratio; ao segredo de justiça, passando a publicidade do inquérito a ser a regra, apenas
podendo ser excepcionada quando verificados determinados pressupostos; e às escutas
telefónicas (a divulgação recorrente do teor das escutas pela comunicação social e a
perceção de um eventual uso excessivo por parte dos órgãos de polícia criminal levou o
legislador a adotar medidas que vão no sentido de uma aplicação mais rigorosa e
controlada destes meios). No que respeita às vítimas, destaca-se as normas que impõem
a comunicabilidade de algumas decisões que as podem afetar.6 O aumento da eficiência
da tramitação processual tinha no alargamento das formas especiais de processo e nas
alterações na fase de recurso as suas principais bases. No que respeita aos processos
especiais (processo sumário, processo sumaríssimo e processo abreviado), foram
introduzidas significativas alterações com vista a, por um lado, tentar remover alguns
bloqueios legais que vinham sendo identificados e, por outro, alargar o âmbito da sua
aplicação de forma a incentivar a sua utilização.
Na mesma data, foi publicada a Lei n.º 20/2013, que veio proceder à 20.ª
alteração ao Código de Processo Penal. Das alterações efectuadas destacam-se, pela sua
relevância, as que se relacionam com as declarações do arguido que, quando prestadas
6
De acordo com o artigo 480.º, n.º 3 do CPP, o tribunal deverá informar o ofendido da data de
libertação do preso, sempre que considere que tal libertação pode criar perigo para o ofendido. O mesmo
se aplica em caso de prisão preventiva aquando da libertação, dispondo a lei que, nestes casos, tal pode
acontecer oficiosamente ou mediante requerimento do Ministério Público (cf. 217º, nº 3 CPP).
7
Passa a prever-se como circunstância passível de ser suscetível de revelar a especial
censurabilidade ou perversidade para efeitos de qualificação do crime de homicídio a questão da
identidade de género da vítima (cf. artigo 132.º CP).
8
A lei passa a considerar as situações de namoro no elenco de situações passíveis de integrar este
tipo de crime (cf. artigo 152.º CP).
10
mesmo durante o primeiro interrogatório9, passam a poder ser utilizadas ao longo de
todo o processo, incluindo em audiência de discussão e julgamento, ao contrário do que
ocorria até então, que só valiam, para efeitos de incriminação, as declarações prestadas
em audiência de discussão e julgamento.
9
Dispõem ainda a lei que quando as declarações sejam prestadas em sede de interrogatório do
arguido deve, sempre que possível, registar-se as mesmas através de meios áudio ou audiovisuais.
10
São eles: criminalidade altamente organizada, crimes contra a identidade cultural e integridade
pessoal, crimes contra a segurança do Estado, crimes previstos na Lei Penal Relativa a Violações do
Direito Internacional Humanitário.
11
função do tipo de crime e o alargamento do elenco das decisões que não admitem
recurso.
A configuração e a utilidade prática desta fase processual têm sido, aliás, objeto
de debate na comunidade jurídica. As posições oscilam entre aqueles que evidenciam
esta fase processual como palco privilegiado de manobras dilatórias por parte da defesa,
considerando, por isso, que deveria ser mesmo suprimida como fase autónoma e aqueles
para quem, pelo contrário, o que se deve pedir é o reforço da sua importância como via
11
Nos termos do artigo 262.º, n.º 2, do CPP, a notícia do crime dará sempre lugar à abertura de
inquérito, “ressalvadas as excepções previstas neste Código”. Estas, dizem respeito aos crimes
vulgarmente designados por semi-públicos ou particulares em que o exercício da ação penal está
dependente de queixa ou acusação particular.
12
de controlo da fase de investigação (rectius, da actuação do Ministério Público, mais
propriamente, de controlo da acusação e/ou do arquivamento do processo). Uma
posição intermédia parece estar a ganhar espaço no sentido de um modelo de controlo
mais leve e flexível, próximo da preliminary hearing norte-americana, prevendo-se a
existência de um debate acerca do material probatório que a acusação e a defesa
carrearam para os autos ( Gaspar, 2009)12. Considerando a atual configuração, o volume
de processos entrados na fase de instrução mantém, desde 2004, ano em que entraram
nesta fase cerca de 8 500 processos, uma tendência decrescente, tendo entrado, em
2012, 8017 processos.
12
A este propósito, ver, ainda, Brandão, 2008.
13
desajustamentos no volume e na estrutura da criminalidade denunciada, julgada e
condenada13.
13
Outra questão é a diferença entre criminalidade real e criminalidade registada. Fora desta ficam
todos os crimes que não foram denunciados ou não chegaram, por qualquer outra forma, ao conhecimento
das autoridades. Esta criminalidade integra a chamada “criminalidade oculta” só possível de aferir através
de metodologias apropriadas, como sejam os inquéritos de vitimização.
14
corrupção agravou-se nos últimos dois anos (Global Corruption Report, 2013, Julho). O
estudo conclui que as pessoas confiam hoje menos nas instituições que deveriam ajudá-
las ou protegê-las, como a polícia, os tribunais e os partidos políticos. Os inquiridos
manifestaram também a convicção de que os trabalhos de combate à corrupção dos
governos deterioraram-se desde 2008, com o início da crise financeira e económica. No
caso de Portugal, oito em cada dez portugueses consideram que a corrupção aumentou
nos últimos dois anos e a maioria diz que "o Governo está nas mãos de um conjunto
restrito de grupos económicos", sendo que 70% dos portugueses encaram a corrupção
como um problema sério ou muito sério no setor público. No que toca ao combate à
corrupção, a grande maioria dos inquiridos consideram-no ineficaz em Portugal.
Saliente-se, ainda, que a forte disjunção entre a perceção mediática daquela
criminalidade, o número de inquéritos abertos e as condenações com trânsito em
julgado faz com que a sociedade se confronte com uma situação de “excessiva
suspeição” vs “fraquíssima condenação”. Na verdade, os indicadores estatísticos
mostram um baixo número de inquéritos abertos, mas, mais do que isso, mostram o
enfraquecimento desta criminalidade na tramitação processual: muitos desses processos
não prosseguem para julgamento e os que prosseguem veem, com frequência, diminuir
o número e a gravidade dos crimes, que o julgamento, em regra, ainda atenua. No seu
lastro estão, sobretudo, as dificuldades com que o sistema se debate na investigação
deste tipo de criminalidade, impedindo a produção de provas robustas. Esta situação
deslegitima a justiça e lança sobre ela uma suspeição: a sua incapacidade ou falta de
vontade em acusar e condenar os agentes desta criminalidade, em regra, pessoas
socialmente poderosas.
15
parte das entidades administrativas na cobrança de impostos e de taxas (crimes
aduaneiros, fiscais e contra a segurança social), e nos crimes contra a liberdade e
autodeterminação sexual. A maior visibilidade social dos fenómenos de natureza sexual,
aliada a uma maior organização e preparação das polícias para os combater, ajuda a
explicar o crescimento desta criminalidade.
Num tempo marcado pela mediatização da justiça e de muitos dos seus agentes,
a informação e as análises produzidas pela comunicação social têm particular
relevância, não só na formação da opinião pública, mas também dos agentes do sistema
16
e de outros analistas e têm um grande potencial de influenciar as políticas de justiça,
colocando na agenda determinadas reformas. Mas, é sobre os cidadãos em geral, com
menos acesso a outras fontes de informação, que a comunicação social exerce maior
influência, até porque o contacto e a experiência com o sistema judicial não se inserem
nas práticas quotidianas, nem seguramente esporádicas, da grande maioria dos
portugueses14. Ora, a cobertura mediática da justiça tende a centrar-se na turbulência e
nas contingências de determinados processos crime em que estão envolvidas pessoas
social ou politicamente relevantes. Esses processos, apesar de constituírem uma ínfima
parte do trabalho dos tribunais, rapidamente se transformam em símbolos de injustiça e
de avaliação do seu desempenho, influenciando as opiniões sobre a eficiência, a rapidez
ou a lentidão dos tribunais. E, embora o problema tenha surgido na comunicação social,
a propósito de determinado processo, assume condição estrutural do sistema de justiça
quando se verifica numa percentagem muito significativa de processos. O modo como a
comunicação social produz o carácter justificado ou injustificado (congestionamento,
inoperância, défices humano e material) do tempo e da ineficiência da justiça e do
desempenho funcional dos operadores concorre, em boa medida, para a formação das
atitudes sociais sobre o funcionamento dos tribunais, para a construção de níveis
diferenciados de tolerância à morosidade e para o desenvolvimento de uma maior ou
menor confiança nas instituições judiciárias.
14
Em dois inquéritos realizados pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
(CES), um em 1993 e outro em 2001, aplicados a uma amostra representativa de indivíduos residentes em
Portugal (nacionais ou estrangeiros) com idade superior a 18 anos, concluiu-se que apenas cerca de 23%
dos cidadãos residentes em Portugal alguma, durante a sua vida, teve experiência em tribunal e, destes, a
grande maioria teve apenas uma única experiência.
17
ao prolongamento quase infinito dos casos ou à absolvição de arguidos por motivos
extra-jurídicos, agrava o ceticismo sobre o recurso aos tribunais, colocando em causa
componentes fundamentais das bases simbólicas e materiais do Estado de direito
democrático (Gomes, 2001).
18
cooperativo15 e de falsificação. O que significa que a dilação dos processos, embora
atinja mais determinado tipo de crimes, tem que ser procurada em outros fatores,
organizacionais ou outros, mais do que na natureza da criminalidade. Ainda no âmbito
deste indicador, uma segunda nota diz respeito aos desempenhos funcionais desiguais
dos tribunais, questão sobre a qual vários estudos do Observatório Permanente da
Justiça têm vindo a chamar a atenção. A duração dos processos pode variar, de forma
significativa, de tribunal para tribunal, o que indicia a falta de eficácia dos mecanismos
de avaliação de desempenho.16
15
Nesta categoria incluem-se os seguintes tipos de crime: burla simples e qualificada, burla
relativa a seguros, burla informática e nas comunicações, burla para obtenção de alimentos, bebidas ou
serviços, burla relativa a trabalho ou emprego, abuso de cartão de garantia ou de crédito, outros crimes
contra o património em geral, insolvência dolosa e negligente, receptação ou auxílio material ao
criminoso, outros crimes contra direitos patrimoniais, crimes contra o sector público ou cooperativo
agravados pela qualidade do agente e outros crimes contra o património não especificados.
16
Sobre esta matéria, ver Gomes (coord.), 2009.
19
Um outro desafio prende-se com a criação de boas condições à preparação e
execução das reformas. As reformas estruturais do sistema de justiça devem ser
precedidas de duas condições fundamentais. A primeira é uma cuidadosa preparação
prévia, para a qual os estudos em muito contribuem. A segunda é que as mesmas sejam
precedidas de um período de adaptação, envolvendo todos os operadores o mais
possível. A inexistência de uma fase de adaptação, que permita a assimilação dos novos
modelos e, se não a adesão a eles, pelo menos a quebra de algumas resistências, tem
como consequência direta, desde logo, que as deficiências que se verificavam
anteriormente sejam transportadas para o período pós-reforma. Não há reformas que
resolvam os problemas estruturais se não houver uma cultura judiciária que as sustente.
A criação de uma nova cultura judiciária exige muito mais, quer das faculdades de
direito, quer dos organismos responsáveis pela formação profissional. Essa cultura é
muito importante, sobretudo, na dinamização da aplicação de inovações no âmbito da
justiça penal e ou da eliminação de resistências, designadamente, no que respeita a uma
maior utilização da formas especiais de processo ou os mecanismos de consenso, bem
como das penas alternativas à prisão. No domínio das penas, é significativo que, nos
últimos anos, a maioria dos reclusos entrados em estabelecimento prisional tenha sido
condenada em penas inferiores a um ano e, destes, uma percentagem de mais de metade,
a penas de duração igual ou superior a 6 meses.
20
judiciais no combate ao crime tem que passar pelo aprofundamento da articulação entre
Ministério Público (MP) e órgãos de polícia criminal, entre os vários serviços do MP,
mas também com outras instituições da sociedade. Esta é uma via fundamental para a
eficácia da resposta, quer à criminalidade de pequena e média gravidade, quer na
resposta à criminalidade grave. O sistema de justiça penal tem que fazer uma distinção
clara na sua organização e funcionamento e na gestão de recursos e meios entre a
criminalidade altamente organizada e complexa e a outra criminalidade de pequena e
média gravidade. É no combate àquela primeira criminalidade que, no caso da
corrupção e da criminalidade económica em geral, é altamente perdadora para a
sociedade e para a democracia, devem centrar-se os maiores esforços e os mais
qualificados. Essa distinção deve fazer-se, não só no âmbito da investigação (alteração
de modelos de investigação e de métodos de trabalho, maior investimento nos meios
periciais e utilização mais racional dos mesmos, entre outros fatores) mas, também, nas
fases subsequentes.
21
em França admitiram-se, pela primeira vez em 2001, soluções de transação penal para
crimes e contravenções na área da concorrência. Na Alemanha, após uma prática de
vários anos no domínio da consensualização de penas, em 200917 legalizou-se o sistema
de negociação da pena para um conjunto de vários crimes, evitando a sobrecarga
jurisdicional de julgamentos. Em Portugal, tem-se vindo a dar alguns passos, mas é
necessário alargar e aprofundar a aplicação das soluções normativas.
Nota conclusiva
17
Lei de 4.8.2009, que modificou o StPo (Código de processo penal alemão).
22
tratamento diferenciado, de um ponto de vista adjectivo e organizacional, da
criminalidade altamente organizada ou violenta.
Um dos problemas estruturais com que a justiça penal se confronta é o problema da
morosidade no tratamento processual dos casos. Vivemos num tempo de "aceleração"
em que as sociedades ocidentais "são confrontadas com uma penúria de tempo, uma
verdadeira crise do tempo que põe em causa as formas e as possibilidade de organização
individuais e politicas", nas palavras de Harmut Rosa, 2010. Este é o tempo, por isso, de
olhar com realismo para a exigência da concretização do conteúdo do "prazo razoável"
na efetivação da justiça. No caso da justiça penal, pode dizer-se, como refere Jean Paul
Jean, que "o ciclo contemporâneo da evolução das regras do processo penal inscreve-se
no paradigma da eficácia" (Jean, 2009). E isso é uma inevitabilidade que qualquer
reforma deve incorporar.
Aliada a esta ideia está uma outra, no centro do debate, que se prende com a
necessidade de dotar os sistemas penais de respostas à sobrelotação das cadeias e à
reincidência, associada ao reconhecimento da urgência em encontrar-se alternativas à
pena de prisão. O crescimento da população prisional que, um pouco por todo o lado,
muitos países enfrentam, incluindo Portugal, é considerado como um dos mais
complexos desafios dos sistemas penais.
A análise dos números da criminalidade, envolvendo a criminalidade participada, a
criminalidade julgada e a dos cidadãos detidos a cumprir penas de prisão, leva-nos a um
conjunto de interrogações sobre a eficácia do modelo penal em função dos princípios
que o sustentam. Exigem-se novas soluções normativas, novos modelos de organização
e novos métodos de trabalho. Desde logo, a introdução de novas metodologias
gestionárias, tanto na fase de investigação como na fase de julgamento. Neste âmbito,
soluções como a gravação da prova pessoal produzida em inquérito (som e imagem) ou
a otimização funcional do papel do Ministério Público, disponibilizando magistrados
experientes para funções de coordenação ou exponenciando a formação especializada de
magistrados, são alguns dos exemplos a seguir. Por outro lado, é fundamental
aprofundar a efetivação de alterações processuais com alguma radicalidade, sustentadas,
por exemplo, numa amplificação das soluções de consenso antes do julgamento, num
novo modelo de consensualização de penas ou no alargamento da possibilidade de
formular sentenças abreviadas.
Mais impressivo é o problema da confiança e da igualdade no sistema de justiça.
À luz dos princípio de uma justiça justa, é racionalmente pouco compreensível suportar
23
o “gap” entre a perceção da não punibilidade de condutas que envolvem atos ilícitos no
domínio da criminalidade económica e financeira e da corrupção e a constatação que os
estabelecimentos prisionais estão sobrelotados com cidadãos, normalmente de baixos
recursos económicos, a cumprir penas de prisão por crimes de "baixa intensidade".
A reflexão sobre o sistema de justiça penal não pode deixar de interpelar o “fim
da linha” do sistema penal, ou seja, o problema penitenciário nas suas várias vertentes:
estabelecimentos prisionais sobrelotados, ausência de programas credíveis de
reinserção social e de respostas adequadas aos inimputáveis perigosos em
estabelecimentos de saúde, que pouco mais são do que depósitos que ninguém quer
conhecer, que ninguém reclama, que quase todos pretendem evitar, mas onde homens e
mulheres, sob a calma de um potente fármaco, se limitam a esperar que o tempo passe.
O aprofundamento do Estado de direito e da democracia também tem que passar por
aqui.
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