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Maria Leonor Esteves

Universidade Lusíada Porto


Faculdade de Direito

Curso de Licenciatura em Direito

Teoria da Lei Penal

A Ciência Conjunta (total/global) do Direito Penal


Aulas 9/3/2023 e 10/3/2023

Tópicos

1. Da Enciclopédia das Ciências Criminais abrangendo a multiplicidade de ciências que


visavam o estudo do crime (nomeadamente, a antropologia criminal, a biologia criminal,
a caracteriologia criminal, a sociologia criminal, a que se somarão, mais tarde, a
psiquiatria criminal, a genética criminal) à “gesamte Stafrechtswissenschaft” Ciência
Conjunta do Direito Penal englobando a ciência penal em sentido estrito - a dogmática
penal- a criminologia e a política criminal (Von LISZT, 1888/1905).
Segundo LISZT, a criminologia (ciência etiológica - estudo das causas do crime e do
fenómeno criminoso) e a política criminal (conjunto sistemático de princípios fundados
na investigação científica das causas do crime e dos efeitos das penas segundo os quais o
Estado deve lutar contra o crime por meio da pena e das instituições com ela relacionadas)
seriam ciências penais secundárias, auxiliares da ciência estrita do direito penal (conjunto
de princípios que suportam o ordenamento jurídico e devem ser explicitados dogmática e
sistematicamente) que detinha o papel principal e, na verdade, a única ciência que devia
interessar ao jurista.
À dogmática penal competia a última palavra na interpretação e aplicação da lei penal.
Por isso, LISZT afirma que “a dogmática-penal constitui a barreira intransponível da
política criminal”.

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A função da política criminal reconduzia-se, apenas, à indicação de caminhos à reforma


penal, ao direito penal a constituir, iure constituendo, estando-lhe vedado intervir na
realização prática do direito penal vigente iure constituto. Deve compreender-se este
entendimento à luz dos princípios que fundam o Estado de Direito Formal da viragem do
século XIX para o séc. XX e as convicções próprias do positivismo jurídico, acérrimo
defensor do princípio da legalidade, nullum crimen nulla poena sine lege. O direito penal
positivado constituiria a “magna carta” do criminoso, uma garantia de segurança face ao
poder de punir, o ius puniendi, do Estado.

2. A autonomia científica e independência da criminologia e da política criminal face à


lei penal, que acompanha o reconhecimento da sua importância no sistema social de
controlo, durante o Estado de Direito Social, o Welfare State, o Estado assistencialista da
segunda metade do séc. XX, que se propunha criar mecanismos eficazes de controlo
social, nem sempre respeitadoras dos princípios jurídicos como o princípio da legalidade,
a fim de prevenir e reprimir as condutas “desviantes”, que revelavam patologias sociais.
Com a escola de criminologia crítica, em particular o labeling approach que se louva da
tese defendida por BECKER, (Outsiders, 1963) - o comportamento desviante é uma
criação do sistema de controlo social que estigmatiza, coloca um labéu nas pessoas que
“escolhe”, selecciona” – a criminologia atribui-se a si própria o papel de avaliar
criticamente do sistema penal. Assiste-se, assim, a uma alteração epistemológica e
metodológica da criminologia que exprime a transição de uma ciência puramente
etiológico-determinista, para uma ciência com forte componente crítica.
Nos anos vindouros ocorrerá um “divórcio” entre criminologia/direito penal, política
criminal/direito penal. Nas Universidades, a criminologia passa a integrar a área das
Ciências Sociais, designadamente a área da Sociologia, e a política criminal a área das
Ciências Políticas.

3. O estatuto e a importância da criminologia e da política criminal sofreram alterações


no âmbito do Estado de Direito Material.
Afirma-se, contemporaneamente, que a criminologia, a política criminal e a dogmática
jurídico-penal, apesar da sua autonomia científica, integram uma uma unidade

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teleológica-funcional (Figueiredo DIAS, 2019, Cfr. com Claus ROXIN, 1972,1997,


2000).

A criminologia passou a ocupar-se do estudo do total processo social de produção da


delinquência. Não tem, apenas, como objecto das suas preocupações científicas, o autor
do crime, o facto criminoso e as modalidades de reacção à aplicação e execução das
sanções penais mas, também, os modos de funcionamento das instâncias informais de
controlo social (família, escola), e das instâncias formais de controlo social (polícias,
Ministério Público, Tribunais).

Quanto à política-criminal, complexo de decisões estratégicas que incumbe ao Estado


tomar, visando o controlo do crime na sociedade - antes, ciência “auxiliar” da dogmática
jurídico-penal, com um papel secundário, remetida ao papel de “revelar os caminhos da
reforma penal” - ganha um estatuto definitivamente autónomo, agora numa posição de
domínio e transcendência face à dogmática penal. “As categorias e os conceitos básicos
da dogmática jurídico-penal devem agora ser (…) determinados e cunhados a partir de
proposições político-criminais e da função que por estas lhes é assinalada no sistema”
(DIAS, acolhendo-se ao pensamento de ROXIN).
À política criminal cabe determinar as adequadas linhas de orientação que irão conformar
quer a actividade do legislador na criação da lei penal e processual penal, quer a função
do juiz que a aplica ao caso concreto, quer a actuação dos órgãos da administração na sua
execução (Marc ANCEL).
Ora, política criminal, devido à sua posição trans-positiva, trans-sistemática, adquire a
função última de padrão crítico quer do direito constituído, quer do direito a constituir.
Porém, atenta a sua posição intra-sistemática quanto à concepção do Estado, é-lhe exigido
que se conforme ao sistema jurídico-constitucional, especialmente ao quadro axiológico-
constitucional - valores e interesses aceites consensualmente pela comunidade e
mediatizados e positivados na Constituição (DIAS).
Por isso, a política criminal não se limita à determinação das reacções mais eficazes para
prevenir o crime, mas abrange os princípios e elementos fundamentais vertidos na

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Constituição e na lei penal, os quais devem presidir à fixação e desenvolvimento, quer


dos pressupostos do crime, quer das sanções penais ( ROXIN)

Num Estado de Direito material a política criminal não pode ser uma ciência meramente
consequencialista. Instância mediadora entre a criminologia e a dogmática criminal é,
também, instância valorativa, na medida em que lhe compete, tendo em atenção os
conhecimentos criminológicos, tomar uma decisão axiológica (Heinz ZIPF, 1973).

Num Estado de Direito material e democrático a política criminal vincula-se,


imprescindivelmente, a pressupostos axiológico-constitucionais que lhe delimitam o
âmbito de actuação e lhe conferem legitimidade.
Se é atribuído ao Estado o poder/dever de prevenir e reprimir a prática das condutas
criminosas que gravemente ofendem ou colocam em perigo valores cuja integridade é
comunitariamente considerada indispensável ao funcionamento da sociedade e ao livre
desenvolvimento da personalidade de cada um dos seus membros, perseguindo e
punindo os autores dessas condutas criminosas e criando condições que possibilitem a
diminuição das taxas de reincidência, cumpre-lhe, indubitavelmente, respeitar e
garantir a concretização direitos, liberdades e garantias individuais fundamentais,
expressão da dignidade da pessoa humana.

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