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TEORIA E APLICAÇÃO DA LEI PENAL

UNISINOS
Prof. Tomás Grings Machado
O QUE ESTUDAR NO DIREITO PENAL? A IMPORTÂNCIA DA CIÊNCIA CONJUNTA DO
DIREITO PENAL PARA A COMPREENSÃO DO FENÔMENO DELITIVO

 Questionamento inicial: Sobre a “essência” criminosa: há algum comportamento


que tenha sido sempre considerado crime?

 Conceito de direito penal

João Mestieri - «O direito penal é ramo do direito público interno, com a missão de
enunciar quais sejam os comportamentos, especialmente danosos, para a vida em
sociedade e, conseqüentemente, de prevenir, com o maior sucesso possível, a
ocorrência desses comportamentos, estabelecendo a priori quais as medidas de
caráter penal aplicáveis a cada situação. No moderno Direito Penal encontramos ainda,
obrigatoriamente, certos princípios, possibilitando a eficaz aplicação da disciplina
penal.» (Manual de direito penal: parte geral, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, p.3)

Faria Costa - «O direito penal é, formalmente, o conjunto de normas que trata,


jurídico-penalmente, os pressupostos, a determinação, a aplicação e as
conseqüências (máxime, as penas e as medidas de segurança) dos crimes e dos
“factos” susceptíveis de desencadearem medidas de segurança.» (Noções
fundamentais de direito penal, Coimbra: Coimbra ed., 2007, p.13).

- Pontos importantes dos conceitos apresentados pelos autores


o Ramo do direito público interno
o Missão de enunciar previamente quais são os comportamentos
especialmente danosos para a vida em sociedade
o Estabelecer condições para prevenir, com o maior sucesso possível, a
ocorrência destes comportamentos
o Prevenção associada a prévia fixação de uma medida de caráter penal
aplicável a cada caso
o Previsão de princípios que auxiliam e orientam a aplicação da lei penal

 Definições de direito penal:

- Direito penal em sentido objetivo – é o conjunto de regras jurídicas de direito público


interno responsáveis por definir: i) os princípios gerais referentes a lei penal, ao
delinquente e à reação criminal; ii) as infrações penais; iii) as penas e as medidas de
segurança, com a finalidade de garantir as condições de vida da sociedade.
É o conjunto de normas jurídicas que associa ao crime, como pressuposto, a pena
como sua consequência jurídica.

- Direito penal em sentido subjetivo – faculdade/interesse de o Estado criar infrações


penais e suas respectivas sanções, também denominado de ius puniendi.

A) Relação entre direito penal e sociedade


 Todos os comportamentos ilícitos que ocorrem na sociedade são de interesse
do direito penal?
 Minima non curat praetor
 Direito (direito penal) como fenômeno produzido pelo convívio em
sociedade e não algo descoberto ou revelado, o crime, portanto, deve ser
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compreendido como uma construção social (expressão social, cultural e
comunitária)
o Nem todos os comportamentos ilícitos que ocorrem na sociedade são
de interesse do direito penal – direito penal reservado aos fatos mais
graves e que realente causam sérios prejuízos ao convívio social
o direito penal e a noção de crime como fenômeno produzido (e não
descoberto ou revelado);
 Direito penal como razão instrumental – o uso e o recurso ao direito penal
deve cumprir funções mínimas dentro de uma determinada sociedade e para
essa sociedade
 criminalização de determinados comportamentos como forma de
assegurar a liberdade – restrição da liberdade para assegurar a
liberdade – tensão entre esses dois pólos e constante busca por
equilíbrio – busca por segurança e sacrifício da liberdade
o Carrara – «a ciência penal é o código supremo da liberdade,
tendo por escopo subtrair o homem à tirania dos demais e
ajudá-lo a subtrair-se à sua própria, bem como às de suas
paixões.» Programma dei Corso di diritto criminale
o Carmignani – a criminalização/restrição da liberdade tem por
objetivo «conter dentro do possível, nos justos limites, as
paixões humanas e impor um freio à violência dos
sentimentos desordenados.» Elementi di diritto criminale,
1882
 direito penal como expressão da hegemonia de classes, como expressão de
poder x direito penal legitimado por uma participação e legitimação
democrática;

B) Direito Penal e modelos de Estado


 O direito penal, o crime, é, antes de qualquer coisa, uma escolha
política profundamente influenciada pelo modelo de Estado vigente.
O direito de punir é a mais intensa forma de manifestação do poder
de supremacia do Estado no confronto com o cidadão: relação
indivíduo-autoridade.
o Diferentes modelos de Estado = diferentes formas de tratar
essa relação de confronto – Estado Absolutista; Estado de
direito; Estado social de direito; Estado constitucional e
democrático de direito – diferentes níveis de liberdade
assegurados pelo Estado
 Ao Estado secularizado cabe a guarda da paz externa: a ação externa
socialmente danosa é o fundamento de toda coação penal
 É com o iluminismo que esta concepção se consolida: a separação
entre crime e pecado é o primado do objetivo sobre o subjetivo.
o Beccaria: “a verdadeira medida do crime é o dano a nação e
assim erraram aqueles que creditaram que a verdadeira
medida dos delitos é a intenção de quem a comente”.
 Síntese da importância do trabalho de Beccaria,
segundo Francesco Venturi : “O laço que por milênios
era formado unindo, com milhares de fios, pecado e
crime, crime e culpa, veio talhado por Beccaria com
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um simples golpe. Que a igreja se ocupasse apenas
com os pecados. Ao Estado competia apenas o dever
de valorar e ressarcir os dano que a infração da lei
havia levado ao indivíduo e à sociedade. O grau de
utilidade e inutilidade media todas as ações humanas.
A pena não era expiação. Os juízes não tinham outro
dever que restabelecer o equilíbrio turbado. O direito
penal vinha totalmente desacralizado”. (Utopia e
reforma no Iluminismo, 1970).
- Estado Teocrático/absolutista (legitimação transcendental e braço
armado da Igreja); com o iluminismo o Estado perde esse
fundamento exclusivo na dimensão teocrática e se torna um Estado
Laico e Liberal (fundado por homens e com objetivos imanentes à
sociedade humana e portador de valores como a tolerância civil, a
liberdade religiosa e a inviolabilidade de consciência).
o Para o direito penal isto significa: retirada de uma série de
ações humanas do espaço de intervenção legítima do direito
penal e o alargamento de liberdade individual.

- Crime/comportamento criminoso compreendido enquanto um desvio, uma


patologia social, algo que se apresenta como socialmente desvalioso dentro de
um determinado contexto histórico e dentro de uma determinada sociedade
 Direito penal como realidade/ramo do direito que pode ser
compreendido por vários ângulos diferentes, isto é, os
comportamentos socialmente desvaliosos não são apenas estudados
pelo direito penal, por exemplo.
 História – percepção do crime/direito penal como realidade
historicamente situada
 Filosofia – análise e estudo do crime enquanto realidade
ligada ao nosso modo de ser – constante questionar sobre o
humano;
 Sociologia – crime como fenômeno social que reclama uma
explicação, quais as origens, quais a causas e consequências
desses fatos
 Psicologia – crime realizado por homens que possuem
paixões, tristezas, pulsões diferentes e, muitas vezes,
inexplicáveis.

II. Formas de organizar e ordenar as leituras plurais realizadas sobre o direito penal
- Enciclopédia das ciências criminais (primeiro momento de Liszt, ao longo de
1800)
 estudo do crime realizado a partir de uma leitura empreendida
exclusivamente por uma ciência (normativa) do direito penal
(dogmática penal) auxiliada por outras disciplinas (antropologia,
história, sociologia, psicologia, medicina) cujo caráter era
meramente acessório
 influência dessas demais ciências no direito penal: meramente
auxiliar, isto é, não seria possível promover qualquer mudança na
dogmática penal.
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- Ciência conjunta do direito penal (gesamte Strafrechtswissenschaft)


(segundo momento de Liszt, final de 1800)
 Dogmática jurídico-penal + Política criminal (estratégias) +
Criminologia (estudo empírico dos comportamentos desviantes)
 Significativo aumento da importância das antigas
disciplinas auxiliares do direito penal expressos,
principalmente pela necessidade de estratégia de controle
social (aumento de importância da política criminal); e,
necessidade de conhecimento empírico da criminalidade
(criminologia).
Característica fundamental desse conceito – a relação entre as ciências
que compõem da denominada Ciência conjunta do direito penal é
marcada pela preponderância da dogmática penal como estatuto de
garantia.
 relação entre as ciências: preponderância da dogmática penal
como estatuto de garantia, nas palavras de Liszt, “O Direito
Penal é a barreira intransponível da Política Criminal”

- Ciência conjunta do direito penal – composição e modo de configuração atual


Ciência conjunta do direito penal – composição
a) ciência estrita do direito penal/dogmática penal: conjunto de princípios e
regras que fundamentam a ordem jurídico-penal e que devem ser explicitados de
forma sistemática e dogmática.
b) criminologia: estudo das causas do crime e da criminalidade; estudo da
conduta desviante; estudo do crime/criminoso/consequências enquanto fatos
sociais
c) política-criminal: função de definir as estratégias de combate ao crime
fundamentalmente: i) as causas do crime; e ii) os efeitos da pena
 conceito de Política criminal em Liszt - «é o conjunto de princípios e
instituições pelo qual o Estado conduz a sua luta contra a
criminalidade e que tem por finalidade conter o aumento da
criminalidade»

- Criminologia (interpretar):
- Criminologia Geral – estudo do crime como um fenômeno social
 Busca a identificação do processo causal do crime dentro da
sociedade
- Criminologia positiva x criminologia crítica
 Criminologia Positiva (Lombroso): exame causal-explicativo do
crime e do criminoso.
 Criminologia Clínica/Etiológica – estuda o homem
delinquente e busca as causas do seu comportamento
– criminoso como doente e que deve ser curado –
crime como doença social
 Conhecendo/estudando as causas seria possível: i)
estabelecer um prognóstico e ii) impor um tratamento
- não permite qualquer crítica à lei penal, sua formação e
sua seletividade;
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- legitimação da ordem estabelecida – seu objeto de estudo
já está previamente definido.
 Criminologia Crítica: examina o processo de formação da lei e da
infração da lei penal, bem como o seu impacto social.
- permite a análise do processo de criminalização – não se limita aos
comportamentos criminalizados – analisa o desempenho prático do
sistema penal – seletividade do sistema e processos de
criminalização.

- Política criminal (transformar): estratégias de controle social – opções que devem ser
limitadas e adequadas ao fins e ao modelo de Estado vigente.
- Disciplina que orienta o processo de criminalização e de descriminalização
de condutas
- Estuda a forma segundo a qual o Estado deve orientar o sistema de
prevenção e repressão das infrações penais.
 o quê e quando criminalizar/descriminalizar;
 alguns movimentos político criminais - lei e ordem x direito
penal mínimo (crime e pena)/garantismo penal/abolicionismo
penal

 Disciplina do direito penal/Dogmática jurídico-penal/Ciência estrita do direito


penal
 compreendida enquanto conjunto inter-relacionado de diversas realidades
normativas – diversos campos de saber
 articulação entre:
 orientações estratégicas
 conhecimento/estudo empírico (prático) dos comportamentos
desviantes para a criação/reforma das normas;
 regras e princípios que assegurem as funções de proteção aos bens
jurídicos, garantia, segurança e coesão (manutenção do convívio
social)

 Atualmente – não há mais espaço para primazias absolutas ou imposições ilimitadas


dentro das ciências conjuntas do direito penal
 Qual a diferença dessa atual apresentação em relação ao defendido por
Liszt?
 Busca-se uma efetiva conjugação de conhecimentos estabelecidos entre:
Direito penal (dogmática) – criminologia – política criminal – todas as
esferas de estudo do crime no mesmo plano e atuando de forma conjunta
 Direito penal (dogmática) – criminologia – política criminal – todas
as esferas de estudo do crime no mesmo plano e atuando de forma
conjunta

 Relação – Criminologia – dogmática penal


 Criminologia
 raiz nitidamente empírica e responsável pela concretude aos fatos
desviantes.
o fornece dados empíricos concretos responsáveis por delimitar o
sentido, o âmbito de proteção e a eficácia da norma penal
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 atribui dinamicidade ao fenômeno criminal
 contribuição no sentido da refundação ou correção da racionalidade penal

 Dogmática penal
 Norma penal – cristaliza/sedimenta uma determinada situação e define a
resposta repressiva mais adequada à evitação do fenômeno identificado
como desvalioso pela criminologia
 Dados empíricos fornecidos pela Criminologia – seriam leis absolutas?
 Não – apenas faz emergir correlações estatísticas que somente demonstram
uma tendência – portanto, não são leis absolutas
o v.g. pena de curta duração – elevação do índice de reincidência
 Esses dados colhidos pelos estudos criminológicos são repassados à
política criminal que os processa e remete suas conclusões ao legislativo
que edita/reforma/mantém uma lei

 Relação política criminal – dogmática penal


 Política criminal – verdadeira situação de otimização da situação
apresentada, isto é, busca pela melhor estratégia de controle – melhor
resposta estatal
o Escolha e limitação da política criminal não a partir da dogmática
jurídico penal, mas antes a partir da própria limitação
constitucional das escolhas admitidas pela política criminal –
impossibilidade lógica de conflito entre política criminal e
dogmática penal
 Isto é, não se pode cogitar da possibilidade de
reconhecimento de uma política criminal que deixe de
considerar na sua atividade princípios como:
 Ultima ratio
 Fragmentariedade
 Proporcionalidade
 Culpabilidade
 Ofensividade
 Além de princípios de ordem político criminal, são,
sobretudo, princípios de ordem constitucional
 Síntese da relação entre política criminal e direito penal - «o direito penal
não é apenas o instrumento prioritário de que se serve a política criminal
para a realização do seu objetivo (contenção da criminalidade). É,
sobretudo, o limite insuperável da própria política criminal. No seu aspecto
de garantia, de verdadeira magna charta do delinqüente.» (Faria Costa,
José de, Noções Fundamentais de direito penal, p.79)

o Sistema de interconexão das ciências criminais – circularidade do processo de articulação


– Criminologia – Política Criminal – Dogmática Penal – definitiva mostra de que o direito
penal não é estático
 «a criminologia observando a realidade fornece dados empíricos; estes, lidos e
valorados por um horizonte político-legislativo, vão sufragar, justamente, as
escolhas político-criminais as quais, por último, se traduzem em normas penais.
Normas estas que, ao serem aplicadas, vão permitir nova observação da
criminologia que produz novos dados, novas tendências, que serão valoradas pelo
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novo horizonte político-legislativo que alterará ou confirmará a escolha legislativa
anterior e que, desse jeito, levará à manutenção da norma positivada ou a uma
posterior alteração.»

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