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UNIVERSIDADE LUSÍADA

PORTO
Maria Leonor Esteves

Teoria da Lei Penal

A Ciência Conjunta (total/global) do Direito Penal

Tópicos

1. Da Enciclopédia das Ciências Criminais abrangendo a multiplicidade de ciências que visavam o estudo do
crime (nomeadamente, a antropologia criminal, a biologia criminal, a caracteriologia criminal, a sociologia
criminal, a que se somarão, mais tarde, a psiquiatria criminal, a genética criminal) à “gesamte
Stafrechtswissenschaft” Ciência Conjunta do Direito Penal englobando a ciência penal em sentido estrito - a
dogmática penal- a criminologia e a política criminal (Von LISZT, 1888/1905).
Segundo LISZT, a criminologia (ciência etiológica - estudo das causas do crime e do fenómeno criminoso) e a
política criminal (conjunto sistemático de princípios fundados na investigação científica das causas do crime e
dos efeitos das penas segundo os quais o Estado deve lutar contra o crime por meio da pena e das instituições
com ela relacionadas) seriam ciências penais secundárias, auxiliares da ciência estrita do direito penal (conjunto
de princípios que suportam o ordenamento jurídico e devem ser explicitados dogmática e sistematicamente) que
detinha o papel principal e, na verdade, a única ciência que devia interessar ao jurista.
À dogmática penal competia a última palavra na interpretação e aplicação da lei penal. Por isso, LISZT afirma
que “a dogmática-penal constitui a barreira intransponível da política criminal”.

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A função da política criminal reconduzia-se, apenas, à indicação de caminhos à reforma penal, ao direito penal a
constituir, iure constituendo, estando-lhe vedado intervir na realização prática do direito penal vigente iure
constituto. Deve compreender-se este
entendimento à luz dos princípios que fundam o Estado de Direito Formal da viragem do século XIX para o séc.
XX e as convicções próprias do positivismo jurídico, acérrimo defensor do princípio da legalidade, nullum crimen
nulla poena sine lege. O direito penal positivado constituiria a “magna carta” do criminoso, uma garantia de
segurança face ao poder de punir, o ius puniendi, do Estado.

2. A autonomia científica e independência da criminologia e da política criminal face à lei penal, que acompanha
o reconhecimento da sua importância no sistema social de controlo, durante o Estado de Direito Social, o Welfare
State, o Estado assistencialista da segunda metade do séc. XX, que se propunha criar mecanismos eficazes de
controlo social, nem sempre respeitadoras dos princípios jurídicos como o princípio da legalidade, a fim de
prevenir e reprimir as condutas “desviantes”, que revelavam patologias sociais.
Com a escola de criminologia crítica, em particular o labeling approach que se louva da tese defendida por
BECKER, (Outsiders, 1963) - o comportamento desviante é uma criação do sistema de controlo social que
estigmatiza, coloca um labéu nas pessoas que “escolhe”, selecciona” – a criminologia atribui-se a si própria o
papel de avaliar criticamente do sistema penal. Assiste-se, assim, a uma alteração epistemológica e metodológica
da criminologia que exprime a transição de uma ciência puramente etiológico-determinista para uma ciência com
forte componente crítica.
Nos anos vindouros ocorrerá um “divórcio” entre criminologia/direito penal, política criminal/direito penal. Nas
Universidades, a criminologia passa a integrar a área das Ciências Sociais, designadamente a área da Sociologia,
e a política criminal a área das Ciências Políticas.

3. O estatuto e a importância da criminologia e da política criminal sofreram alterações no âmbito do Estado de


Direito Material.
Afirma-se, contemporaneamente, que a criminologia, a política criminal e a dogmática jurídico-penal, apesar da
sua autonomia científica, integram uma unidade teleológico-funcional (Figueiredo DIAS, 2019, Cfr. com Claus
ROXIN, 1972,1997, 2000).

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A criminologia passou a ocupar-se do estudo do total processo social de produção da delinquência. Não tem,
apenas, como objecto das suas preocupações científicas, o autor do crime, o facto criminoso e as modalidades de
reacção à aplicação e execução das sanções penais mas, também, os modos de funcionamento das instâncias
informais de controlo social (família, escola), e das instâncias formais de controlo social (polícias, Ministério
Público, Tribunais).

Quanto à política-criminal, complexo de decisões estratégicas que incumbe ao Estado tomar, visando o controlo
do crime na sociedade - antes, ciência “auxiliar” da dogmática jurídico-penal, com um papel secundário, remetida
ao papel de “revelar os caminhos da reforma penal” – ganha um estatuto definitivamente autónomo, agora numa
posição de domínio e transcendência face à dogmática penal. “As categorias e os conceitos básicos da dogmática
jurídico-penal devem agora ser (…) determinados e cunhados a partir de proposições político-criminais e da
função que por estas lhes é assinalada no sistema” (DIAS, acolhendo-se ao pensamento de ROXIN).
À política criminal cabe determinar as adequadas linhas de orientação que irão conformar quer a actividade do
legislador na criação da lei penal e processual penal, quer a função do juiz que a aplica ao caso concreto, quer a
actuação dos órgãos da administração na sua execução (Marc ANCEL).
Ora, política criminal, devido à sua posição trans-positiva, trans-sistemática, adquire a função última de padrão
crítico quer do direito constituído, quer do direito a constituir. Porém, atenta a sua posição intra-sistemática
quanto à concepção do Estado, é-lhe exigido que se conforme ao sistema jurídico-constitucional, especialmente
ao quadro axiológico-constitucional - valores e interesses aceites consensualmente pela comunidade e
mediatizados e positivados na Constituição (DIAS).
Por isso, a política criminal não se limita à determinação das reacções mais eficazes para prevenir o crime, mas
abrange os princípios e elementos fundamentais vertidos na Constituição e na lei penal, os quais devem presidir
à fixação e desenvolvimento, quer dos pressupostos do crime, quer das sanções penais ( ROXIN)

Num Estado de Direito material a política criminal não pode ser uma ciência meramente consequencialista.
Instância mediadora entre a criminologia e a dogmática criminal é, também, instância valorativa, na medida em

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que lhe compete, tendo em atenção os conhecimentos criminológicos, tomar uma decisão axiológica (Heinz ZIPF,
1973).

Síntese conclusiva
Num Estado de Direito material e democrático a política criminal vincula-se, imprescindivelmente, a
pressupostos axiológico-constitucionais que lhe delimitam o âmbito de actuação e lhe conferem legitimidade.
Se é atribuído ao Estado o poder/dever de prevenir e reprimir a prática das condutas criminosas que gravemente
ofendem ou colocam em perigo valores cuja integridade é comunitariamente considerada indispensável ao
funcionamento da sociedade e ao livre desenvolvimento da personalidade de cada um dos seus membros,
perseguindo e punindo os autores dessas condutas criminosas e criando condições que possibilitem a diminuição
das taxas de reincidência, cumpre-lhe, indubitavelmente, respeitar e garantir a concretização direitos, liberdades
e garantias individuais fundamentais, expressão da dignidade da pessoa humana.

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