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O sacerdócio de Cristo

Que Jesus tivesse de oferecer na cruz um sacrifício ao Pai pode ser mais bem
compreendido, numa primeira aproximação, se considerarmos que é conatural a
todo ser humano, mesmo que o pecado não tivesse entrado no mundo, a
necessidade de sacrificar algo a Deus, em reconhecimento de sua absoluta
soberania: dele saímos, para Ele voltamos e a Ele devemos tudo o que somos e
possuímos.

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34. Noção de sacrifício. — A palavra “sacrifício” pode tomar-se em três


sentidos, do mais comum e genérico, aplicável a qualquer tipo de sacrifício, ao
mais restrito e específico, próprio do sacrifício religioso. a) Em sentido comum e
genérico, entende-se por sacrifício a entrega de algum bem, sensível ou não,
motivada por um fim honesto (assim, v.gr., diz-se que faz um sacrifício a criança
que renuncia à sua parte do bolo para que os irmãos possam comer mais); b)
em sentido religioso amplo, entende-se por sacrifício todo ato interno de entrega
de si mesmo a Deus, bem como toda manifestação externa dessa entrega
interior (assim, v.gr., diz-se que faz um sacrifício quem reza, jejua ou dá
esmola); c) em sentido religioso estrito, entende-se por sacrifício todo rito externo
em que se oferece a Deus um dom sensível por intermédio de um ministro
legítimo, com a finalidade de (i) reconhecer o domínio soberano de Deus e, no
estado atual de pecado, de (ii) reconciliar-se com Ele pela expiação das culpas
(assim, v.gr., diz-se que oferece um sacrifício o padre que celebra a Santa
Missa) [1].

35. Observação. — Embora a oferta a Deus de um sacrifício em


sentido estrito seja competência de um sacerdote — como veremos adiante —,
todo ser humano tem, enquanto criatura, o dever natural de sacrificar a Deus, ao
menos em sentido religioso amplo. A razão disso é que, sendo Deus a causa
eficiente primeira e a causa final última de todas as coisas, o homem
está naturalmente obrigado a reconhecer a soberania de Deus sobre o conjunto
da criação e, portanto, de assumir livremente os deveres de servidão e entrega
que se seguem de sua própria dependência de Deus, em tudo o que é e possui.
Por isso, pode-se dizer que o homem é, por natureza, um animal sacrificial: se
toda criatura, com efeito, está destinada a dar glória a Deus, o ser humano,
enquanto criatura racional, não pode realizar esta glorificação senão por
intermédio de suas potências espirituais, a inteligência e a vontade, o primeiro de
cujos atos é reconhecer e aceitar sua total dependência de Deus e, com isso,
entregar-se a Ele, fonte de seu ser e finalidade de sua existência. Nisso se salva,
ao menos em sentido amplo, a acepção religiosa de “sacrifício” [2].

36. O sacerdote. — Em sentido restrito e mais específico, todo sacrifício exige


um ministro legítimo, também chamado sacerdote. É sacerdote, portanto, quem
é constituído por mandato de autoridade pública como intermediário entre Deus
e os homens para oferecer a Deus, em protestação de sua soberania, dons e
sacrifícios. Daí se segue que: a) quem, destituído de mandato público, oferece a
Deus dons e sacrifícios em sentido impróprio (v.gr., oblações espirituais, como a
oração) não é propriamente sacerdote, mas pode assim ser chamado em
sentido amplo, em razão de certa semelhança, como no caso do sacerdócio
comum dos fiéis (cf. 1Pd 2, 9); b) quem tem por ofício a faculdade de oferecer a
Deus um sacrifício propriamente dito e de dispensar aos homens as coisas
sagradas é, no sentido mais rigoroso da palavra, sacerdote. O
múnus principal do sacerdote, porém, é oferecer a Deus sacrifícios, como diz
a Epístola aos Hebreus: “Todo pontífice é […] e constituído […] nas coisas que
dizem respeito a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5, 1),
competindo-lhe apenas secundariamente o de dispensar aos homens as coisas
sagradas. Logo, o sacerdócio é a função principal de um mediador entre Deus e
os homens, porquanto lhe cabe oferecer a Deus o que é do homem (orações e
dons) e dar aos homens o que é de Deus (graças e sacramentos) [3].

37. Conclusão. — Com base nestas noções, pode-se afirmar que Jesus Cristo
é, verdadeira e propriamente, sacerdote e mediador perfeitíssimo entre Deus e
os homens. Atestam-no as SS. Escrituras: “O Senhor jurou e não se
arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec”
(Sl 109, 4); “Temos, portanto, um grande Sumo Sacerdote que penetrou nos
céus, Jesus, Filho de Deus” (Hb 4, 14), e confirma-o a razão teológica. Com
efeito, o ofício próprio do sacerdote é ser mediador entre Deus e os homens,
enquanto dispensa ao povo as coisas sagradas e apresenta a Deus as preces
do povo e oferece-lhe sacrifícios; ora, tudo isto convém a Cristo por excelência,
como está escrito: “Aprouve a Deus fazer habitar nele toda a plenitude e por seu
intermédio reconciliar consigo todas as criaturas, por intermédio daquele que, ao
preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na
terra e nos céus” (Col 1, 19); logo, é evidente que Cristo-homem é, por
excelência, mediador entre Deus e os homens e, por isso mesmo, própria e
verdadeiramente sacerdote [4].

Veremos nas aulas seguintes, à luz do que vimos nesta, a natureza de seu
sacrifício redentor.

Referências

1. L. Ott, Manual de teología dogmática. Trad. esp. de Constantino R. Garrido. 5.ª


ed., Barcelona: Herder, 1966, p. 291.

2. É por isso que o homem teria o dever de sacrificar a Deus ainda que o pecado
não tivesse entrado no mundo. O estado de natureza decaída, em outras
palavras, só acrescenta ao dever de sacrifício a necessidade
da expiação (supondo que Deu exija alguma satisfação pelos pecados dos
homens).

3. Cf. V. Zubizarreta, Theologia dogmatico-scholastica. 3.ª ed., Bilbao: Eléxpuru


Hnos., 1938, vol. 3, pp. 509-510, n. 865.
4. Cf. Pe. R. Garrigou-Lagrange, De Christo Salvatore. Turim: Marietti, 1945, p.
361.

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