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Além Do Ponto
Além Do Ponto
PARTE 1
CARLOS: Chovia… É lá ia eu por dentro da chuva, indo a seu encontro. Sem guarda-chuva
nem nada por ser esquecido. Dos sete que comprei, perdi seis. Só levava comigo uma
garrafa de conhaque barato apertada contra o peito e uma falta de dignidade sem tamanho.
CARLOS: Parece mentira dito desse jeito, mas bem assim eu ia, por dentro da chuva. O
conhaque e um maço de cigarros molhados no bolso. Acho que podia ter pego um táxi…
Mas não era longe! Não, não era longe. Ganharia tempo para comprar mais conhaque e um
outro maço de cigarros.
CARLOS: E fazia frio, digo, nem tanto frio… A umidade ia entrando pelo panos das roupas,
chegando às cutículas enrugadas pela baixa temperatura que me alcançavam até pela sona
fina esburacada do sapato.
PARTE 2
CARLOS: Mas chovia ainda, enquanto perambulava pela noite a caminho, com meus olhos
que ardiam de frio. De tão gelada que estava a noite, não me dei conta de abrir aquela
garrafa de conhaque ali mesmo. Não queria chegar na casa dele bêbado, hálito fedendo,
não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava.
CARLOS: Tudo que eu andava fazendo e sendo, eu não queria que ele visse ou soubesse,
mas depois de pensar nisso me deu um desgosto, por que fui percebendo, por dentro da
chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.
CARLOS: Tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não
lembrava de nenhum. Ou podia somente parar ali mesmo naquela esquina cinzenta. Mas eu
não podia, ou podia, mas não devia, ou podia mas não queria. Ou não sabia mais, como se
voltava atrás.
CARLOS: Só voltava de volta para esse ponto depois do ponto, na minha cabeça, vendo
ele abrir a porta e me dizendo qualquer coisa do tipo: Nossa, como você está molhado. Sem
nenhum espanto. E eu só ia porque ele me chamava. E eu me atrevia a ir além daquele
ponto de estar parado.
PARTE 3
CARLOS: Quem me via molhado assim, não via segredo. Via apenas um sujeito molhado.
Estava tão perto que uma quentura me subia no rosto. Chegando lá, tomaria minha mãos
entre as suas. Aquecendo para apagar aquele roxo da pele fria. Ele arrumaria uma cama
larga com muitos cobertores…
CARLOS: Então percebi que estava bêbado, fedendo…Ainda estava atento para chegar
inteiro, ou com todos os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa,
como quem brinca com um quebra-cabeça. Eu ia indo pela chuva porque esse era o meu
único destino. Meu único destino era bater naquela porta. (Bate gentilmente)
CARLOS: E bati, e bati, bati outra vez. Continuei batendo sem me importar com as pessoas
que passavam pela rua. Quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome. Se é que alguma
vez o soube, se é que teve algum dia.
CARLOS: Eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar. Não ia mais por dentro
da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia tempo. Além do
ponto, tão escuro que não via nada além de mim mesmo.
CARLOS: Podia tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de apenas continuar
batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo,
batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, nessa porta que não abre nunca.