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Moisés No Judaísmo, No Cristianismo e No Islamismo
Moisés No Judaísmo, No Cristianismo e No Islamismo
no judaísmo,
no cristianismo
e no islamismo
Christfried Böttrich
Beate Ego
Friedmann Eissler
MOISÉS
no judaísmo,
no cristianismo
e no islamismo
Tradução:
Uwe Wegner
Título original:
Mose in Judentum, Christentum und Islam
© Vandenhoeck & Ruprecht GmbH & Co. KG
Christfried Böttrich, Original title: Mose in Judentum,
Christentum und Islam, Göttingen 2010
Theaterstrasse 13, 37073 Göttingen, Germany
ISBN 978-3-525-63018-1
Böttrich, Christfried
Moisés : no judaismo, no cristianismo e no islamismo / Christfried
Böttrich, Beate Ego, Friedmann Eissler ; tradução Uwe Wegner. -- São
Paulo : Edições Loyola, 2013.
Título original: Mose in Judentum, Christentum und Islam.
ISBN 978-85-15-04032-2
1. Moisés (Líder bíblico) 2. Moisés (Líder bíblico) - Interpretações
islâmicas I. Ego, Beate. II. Eissler, Friedmann. III. Título.
13-06946 CDD-222.1
ISBN 978-85-15-04032-2
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2013
SUMÁRIO
PREFÁCIO —————————————————————— 7
MOISÉS
no judaísmo ———————————————————— 9
1. INTRODUÇÃO: A FIGURA DE MOISÉS NA CRÍTICA —————— 9
2. A TRADIÇÃO BÍBLICA SOBRE MOISÉS ——————————— 10
3. MOISÉS NA LITERATURA DO JUDAÍSMO ANTIGO
EM ÉPOCA PRÉ-RABÍNICA ——————————————— 27
4. MOISÉS NA LITERATURA RABÍNICA ——————————— 46
5. PERSPECTIVA: “MOISÉS, NOSSO MESTRE” NA LITURGIA ———— 54
6. SUGESTÕES DE LITERATURA (SELEÇÃO) —————————— 56
MOISÉS
no cristianismo —————————————————— 61
1. INTRODUÇÃO: JUSTIÇA EM LIBERDADE —————————— 61
2. MOISÉS NOS ESCRITOS DO NOVO TESTAMENTO —————— 64
3. MOISÉS NA TRADIÇÃO CRISTÃ ————————————— 91
4. PERSPECTIVA: ÉTHOS MUNDIAL ———————————— 98
5. SUGESTÕES DE LITERATURA (SELEÇÃO) —————————— 99
MOISÉS
no islamismo ——————————————————— 103
1. INTRODUÇÃO ——————————————————— 103
2. MOISÉS NO ALCORÃO ———————————————— 109
3. SUGESTÕES DE LITERATURA (SELEÇÃO) —————————— 166
7
PREFÁCIO
É difícil a relação entre judeus, cristãos e muçulmanos, mas eles po-
dem haurir de uma fonte em comum: o rico tesouro das grandes
narrativas bíblicas. Eles confessam um Deus único, que criou o céu
e a terra. Em sua história, eles se entrelaçam e se inter-relacionam
com frequência. No entanto, quanto maior a proximidade, mais ni-
tidamente também se formam os conflitos, como sabemos. A longa
história das relações judaico-cristão-muçulmanas foi frequentemen-
te acompanhada por demarcações e hostilidades, por pogroms, cru-
zadas, genocídios e atos terroristas. Evidentemente houve também
períodos de convivência pacífica. A época áurea da espantosa sim-
biose judaico-islâmica na Espanha dos séculos XI/XII, por exemplo,
se inscreveu de modo inesquecível nos anais da história europeia.
Personalidades individuais foram capazes de transpor os abismos
das diferenças religiosas. Mas a vasta massa de fiéis continuou a ter
dificuldades para ver irmãos e irmãs em seus semelhantes. As expe-
riências de conflitos seculares têm um peso muito grande. Por isso,
o entendimento comum é mais urgente do que nunca neste nosso
mundo com interconexões cada vez mais estreitas.
Tanto a assimetria das relações quanto a diferença estrutural das
três religiões abraâmicas revelam ser uma dificuldade especial nessa
convivência. As inter-relações têm proporções diversas e pesos dife-
rentes. As categorias teológicas de uma religião não são simplesmen-
te compatíveis com as da outra. Todavia, para além da necessidade
pragmática de encontrar uma convivência pacífica em nosso mundo
moderno, ameaçado, há também uma ampla base de semelhanças
teológicas. Há décadas os cristãos e judeus têm avançado bastante
no reconhecimento desse fato. Em contrapartida, o diálogo com o
islamismo é totalmente incipiente. Mas aqui falta principalmente
ampliar, numa base de conhecimentos gerais e evidentes, o saber es-
pecial das poucas pessoas envolvidas num diálogo. É nesse ponto que
este livro gostaria de dar uma contribuição.
O pressuposto mais importante para todo encontro consiste em
levar em conta um ao outro e obter conhecimento um do outro. Isso
8 se revela de especial importância justamente onde as três religiões
abraâmicas acolhem tradições comuns, pois o livro se ocupa com as
figuras marcantes das narrativas bíblicas que são igualmente signifi-
cativas entre judeus, cristãos e muçulmanos. Nisto a tradição judai-
co-veterotestamentária adquire importância fundamental. Tanto os
escritos do Novo Testamento como as obras da teologia que começa
no século II remetem a ela. O Alcorão e a tradição islâmica a ele co-
nectada retomam tradições judaicas e várias tradições cristãs e lhes
dão nova forma. Essas linhas deverão se tornar visíveis aqui. Trata-se,
nesse processo, tanto das semelhanças definidas pelo material comum
quanto das diferenças influenciadas pelo contexto de cada comuni-
dade religiosa. Ao mesmo tempo, as grandes figuras das tradições se
vinculam a importantes campos temáticos.
Este livro sobre “Moisés” reflete sobre o papel da Lei e da ética.
A experiência nos diz que o medo do estranho é maior onde não o
conhecemos ou o conhecemos apenas vagamente. Portanto, se este
livro puder transmitir conhecimentos fundamentais, teremos dado
um passo importante para o entendimento comum. Nesse processo, o
olhar sobre a crença do outro e sobre o que lhe é importante faz nos-
sa própria tradição reaparecer numa luz inteiramente nova. Este livro
pretende ser um estímulo para isso.
As três partes do livro foram escritas com toda a necessária ex-
pertise em teologia judaica, cristã e islâmica, mas de um ponto de vista
cristão comum. O público leitor almejado será muito provavelmente
um grupo predominantemente cristão. No entanto, damos prioridade
ao esforço de fazer justiça, tanto quanto possível, à compreensão que
os judeus, cristãos e muçulmanos têm de si mesmos. Pois, apesar de
toda a busca por semelhanças, não se pode tratar de apagar as frontei-
ras para criar uma grande uniformidade. Ao contrário, a atenção im-
parcial de uns aos outros deve também possibilitar uma conversa ins-
truída e construtiva. Quanto aos textos bíblicos, usa-se, via de regra, a
Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). Nada mais apropriado do que
promover um diálogo inter-religioso a partir da figura de Moisés. As
três religiões “abraâmicas” se reencontram em seu nome para um diá-
logo sobre a Lei e a ética, na esperança de uma convivência nova.
Beate Ego 9
MOISÉS
no judaísmo
1
INTRODUÇÃO:
A FIGURA DE MOISÉS NA CRÍTICA
2
A TRADIÇÃO BÍBLICA SOBRE MOISÉS
MOISÉS
no judaísmo
entanto, são percebidos pelos egípcios como ameaça, o que faz que os
israelitas sejam obrigados a executar trabalhos forçados; além disso, o
faraó ordena a matança dos primogênitos varões (Ex 1). Agora Moisés
aparece em cena. Ele é o filho de Joquebede e Amrão, descendentes
da casa de Levi. Por temor diante da decisão do faraó, a criança, cuja
beleza já é exaltada na narrativa bíblica, é escondida numa arca de
juncos no Nilo, com a idade de três meses. Ali ela é descoberta pela
filha do faraó e trazida para a corte, onde é educada (Ex 2,1-10). Esta
história da infância de Moisés mostra várias correspondências com a
lenda de Sargão, texto assírio dos séculos VIII/VII a.C. Segundo essa
tradição, a mãe de Sargão, uma sumo sacerdotisa, deixou seu filho
ilegítimo numa pequena arca de juncos à beira do rio. Akki, o cria-
dor das águas, encontra a criança e a cria; quando em certa ocasião se
encontra a trabalhar no jardim, a deusa Ishtar se apaixona por ele e o
faz ascender à condição de grande rei. Como esclareceu Eckart Otto,
a tarefa desse texto é relativizar o princípio dinástico da legitimidade
para dominar e legitimar o domínio de Sargão, concebido extracon-
jugalmente. Pela aplicação dessa história a Moisés, sua figura aparece,
até certo ponto, como antítipo do rei neoassírio.
MOISÉS
no judaísmo
deve poder ser encontrado nenhum fermento (Ex 12,15-20; 13,3-10).
A festa descrita aqui, denominada em regra como festa da Páscoa, é co-
memorada até hoje no judaísmo. Presume-se que tenha raízes nôma-
des. De qualquer forma, ela se desenvolve na direção de uma festa de
peregrinação, na qual se levava o sacrifício pascal para Jerusalém. Após
a destruição do segundo templo pelos romanos no ano 70 d.C., ela se
transformou numa festa de família. Agora, uma vez que o sacrifício
não pode mais ser levado ao templo, tem-se a obrigação de pelo menos
recordar esse sacrifício de outrora durante a ceia pascal em família.
Assim, retornemos à narrativa bíblica: logo após o hino de louvor
de Moisés e o hino de Miriam, inicia-se em 15,22 um novo trecho
narrativo no livro do Êxodo, a narração do tempo no deserto. Com
isso é introduzido um leque narrativo que termina só quarenta anos
depois, com a entrada na terra prometida (cf. Ex 16,35; Nm 14,33 s.;
Dt 1,3). O ponto central desse período no deserto é a perícope do
Sinai, segundo a qual Israel recebe na montanha de Deus o manda-
mento divino e na qual se narra acerca dos inícios do culto. Com a sal-
vação no mar dos Juncos Deus libertou seu povo da escravidão. Que
essa liberdade não representa só uma dádiva, mas também uma tarefa,
torna-se rápida e claramente perceptível. Ora, o tempo no deserto que
se seguiu ao êxodo é um tempo em que Israel sempre precisa voltar a
lutar por sua existência, um tempo em que Israel duvida e murmura;
mas é, simultaneamente, também um tempo em que sempre pode
voltar a experimentar a mão salvífica do seu Deus. Assim sendo, o
tempo do deserto é uma época de transição em meio a crises. Sob as
duras condições de vida no deserto, Israel não demora a sentir sauda-
des das “panelas do Egito” (Ex 16,3) e murmura contra Moisés, que
o fez sair da escravidão. Inicialmente Deus se mostra extremamente
complacente e ajuda diante das necessidades do deserto e de seus pe-
rigos elementares, fazendo que por meio de Moisés recebam água e
comida de maneira milagrosa (Ex 15,22-27; 16; 17,1-7) e libertando-
os — novamente por Moisés — da ameaça dos amalequitas (Ex 17,8-
16). De grandes consequências para as tradições posteriores sobre
Moisés é neste contexto a ordem de Deus para que Moisés escreva
num livro a vitória sobre os amalequitas (Ex 17,14). Moisés aparece
aqui pela primeira vez em sua função de escrevente, um motivo que
14 na tradição posterior será de eminente importância. Pela nomeação de
anciãos, Moisés e o povo são apoiados na legislação (Ex 18).
Beate Ego
MOISÉS
no judaísmo
com as tábuas e vê o povo dançando ao redor do bezerro, ele quebra
as tábuas escritas pelo próprio Deus (Ex 32,19), que lhe haviam sido
dadas sobre a montanha. Ele está perplexo, mas procura então acalmar
Deus. Após Deus ter assegurado a Moisés sua misericórdia, ele é so-
licitado a subir mais uma vez a montanha, ocasião na qual escreve ele
próprio as dez palavras sobre tábuas especificamente preparadas para
isso (Ex 34,28). Sobre a montanha Moisés é também contemplado
com uma aparição de Deus, em que este se revela a ele como “miseri-
cordioso, e gracioso, e paciencioso, e muito rico em graça e fidelidade”
(Ex 34,6); além disso, Deus renova sua promessa da terra e previne
contra a apostasia com outros deuses (Ex 34,6-16).
Ao final do livro de Êxodo narra-se como os israelitas constroem
um santuário que corresponde exatamente às prescrições reveladas a
Moisés em Êxodo 25–31. A narração culmina em Êxodo 40,34-38:
a glória de YHWH enche o santuário construído pelos israelitas. Ela
se revela por uma nuvem que cobre o tabernáculo; ela também sina-
lizará aos israelitas quando deverão abandonar o seu lugar (cf. Nm
9,15-23; 10,11 s.; 10,34-36). Em outros discursos divinos, que ago-
ra podem ser ouvidos a partir do novo tabernáculo construído (Lv
1,1; sem menção do local, em 4,1; 5,14; 11,1; 12,1; 13,1; 14,1; 16,1;
17,1; 18,1; 19,1; 20,1; 21,1; 22,1.17.26 e ainda várias vezes) Moisés
recebe, segundo a narrativa do livro do Levítico, ainda outras prescri-
ções legais, como indicações relativas a sacrifícios (Lv 1–7), a leis de
purificação (Lv 11–15), determinações relativas ao grande dia da re-
conciliação (Lv 16), bem como indicações da assim denominada “lei
da santidade” (Lv 17–26). Agora, uma vez construído o tabernáculo,
Moisés também consagra seu irmão Aarão e os seus filhos ao sacer-
dócio (Lv 8), depois do que estes oferecem o primeiro sacrifício.
Em Números 10,11 segue-se então a narração da partida do Si-
nai, e novamente é Moisés que conduz o povo pelo deserto. Partindo
do Sinai, os israelitas chegam inicialmente a Cades-Farã (Nm 13,26),
um local ao sul da terra prometida, no deserto de Sin. Aqui Moisés
envia seus espiões, que lhe informam sobre a fertilidade da terra, mas
também sobre os seus enormes habitantes, intimidando com isso de
tal forma o povo que acontece mais uma crise de fé. Novamente o
povo murmura; como castigo necessita ficar agora por quarenta anos
16 no deserto, correspondentes aos quarenta dias de reconhecimento do
território (Nm 13,1–14,34). Assim fica claro que o motivo da mur-
Beate Ego
MOISÉS
no judaísmo
conhece a sepultura de Moisés. A narrativa bíblica sobre Moisés fina-
liza com as palavras segundo as quais nunca mais surgiu um profeta
como Moisés e ninguém é comparável a ele por causa dos milagres e
atos poderosos que realizou (Dt 34,10-12).
MOISÉS
no judaísmo
todos os israelitas — do milagre do mar dos Juncos.
Mesmo que neste espaço não se possa proceder à complexa dis-
cussão sobre o caráter das partes que compõem o Eloísta, pode-se
constatar bem genericamente o seguinte: a figura de Moisés segundo
o Javista é modificada nas partes da tradição textual tradicionalmente
classificadas como eloístas na medida em que Moisés agora recebe a
incumbência de Deus de conduzir Israel para fora do Egito; dessa ma-
neira, ele aparece como comandante de Israel, que age em proximida-
de direta de Deus. Moisés é, além disso, caracterizado como mago que
pode provocar grandes milagres com o seu cajado — o que fica claro
tanto nas pragas como no evento da saída do Egito. O ofício profético
de Moisés contém, dessa forma, os traços de um taumaturgo (como
também é o caso nas figuras proféticas anteriores de Elias e Eliseu). Às
tradições textuais provavelmente mais antigas sobre Moisés, datadas
da época pré-exílica, pertence também, ao que tudo indica, a narrativa
fundamental de Êxodo 32, na qual — como evidenciou Erik Aurelius
— o motivo da intercessão de Moisés tem as suas origens.
Uma mudança decisiva ocorreu na pesquisa com a suposição de
que essa parte mais antiga da tradição mosaica ainda nem continha o
livro da aliança e provavelmente também nem o decálogo. Assim, se-
gundo o juízo de Julius Wellhausen, a importância original do Sinai
era independente da promulgação da lei; o Sinai era simplesmente
uma montanha sagrada e sede da divindade; Martin Noth, por sua
vez, viu no Sinai um local de peregrinação das tribos meridionais
de Israel. Essa tese, segundo a qual a lei originalmente não consti-
tuiu parte da perícope do Sinai, é ainda defendida com frequência
na atualidade. A teofania do Sinai deve, assim, ser interpretada como
uma espécie de “encontro místico com a divindade” por parte do
povo. Uma vez, porém, que o verdadeiro conteúdo do encontro no
Sinai desta forma permanece indeterminado e nebuloso, Wolfgang
Oswald, reportando-se a uma tese de Christoph Levin já mais an-
tiga, sugeriu admitir uma história sobre êxodo-montanha de Deus
como narrativa mais antiga do livro do Êxodo, que continha também
a permanência no Sinai, com inclusão da dádiva da lei do livro da
aliança. A narrativa forma, dessa maneira, a moldura para a procla-
mação da lei. Como no Antigo Oriente a legitimação do direito e
20 da lei era tradicionalmente atribuição do rei, o Moisés legislador é,
assim, implicitamente retratado como figura real. Diante deste pano
Beate Ego
MOISÉS
no judaísmo
da lei no Sinai, bem como as numerosas outras tradições situadas no
período do deserto. Que Moisés não tenha desempenhado papel al-
gum na tomada da terra por algumas tribos é expresso narrativamente
pelo fato de a figura ter sido proibida de pisar a terra.
MOISÉS
no judaísmo
obstante, P também entendeu Moisés como totalmente humano;
sim, esse escrito de fontes tem ciência de um grave delito cometido
por Moisés, em razão do qual não teve a permissão para entrar na
terra prometida (Nm 20,8 s.12.24; 27,13) (G. von Rad, Theologie des
Alten Testaments, vol. 1, 308).
MOISÉS
no judaísmo
Moisés é colocada no contexto da tradição dos mártires. A confiança
de Moisés em Deus, que ele expressa ao final de sua vida em Deu-
teronômio 32,6, torna-se exemplo para os sete filhos se disporem a
enfrentar consolados o martírio (2Mc 7,6). O mais jovem dos sete
filhos também deixa bem claro que a obediência à lei dada ao povo
por Moisés representa o motivo decisivo para aceitar a morte como
mártir (2Mc 7,30). Todas essas tradições sobre a lei de Moisés acen-
tuam unanimemente a importância da Torá.
Outras tradições bíblicas fora do Pentateuco apresentam Moi-
sés como mediador da ação graciosa de Deus: neste contexto cabe
apontar inicialmente para o discurso de Samuel no qual ele polemiza
contra o desejo do povo de um rei, relembrando-lhes os benefícios
passados de YHWH (1Sm 12,6.8). Numa sequência argumentativa
bem semelhante, também Oseias 12,14, em retrospectiva histórica,
aponta para a salvação efetuada por Deus do Egito e para a proteção
concedida ao povo no deserto, sendo Moisés o profeta que, até certo
ponto, funciona como instrumento da ação divina. Essa ação graciosa
contrasta diretamente com a culpa de Israel, representada, sobretu-
do, pelo primogenitor Jacó. Por fim, também em Miqueias 6,4 ss. se
encontra um esquema argumentativo correspondente, quando Deus,
num discurso de juízo, aponta para os exemplos de Balac e Balaão
em relação à condução para fora do Egito e a proteção concedida no
deserto. Moisés, Aarão e Miriam foram — por assim dizer, como ex-
pressão do cuidado divino — enviados diante do povo. Na oração de
intercessão em Isaías 63, por sua vez, o povo recorda a salvação do
Egito efetuada por Deus através de Moisés (v. 11 s.) como ação salvífi-
ca do passado, a fim de motivar Deus também no presente para inter-
vir novamente em favor de seu povo. Também a tradição dos Salmos
conhece este motivo: em Salmos 77,21 Moisés é mediador da ação di-
vina em relação a Israel. Juntamente com Aarão ele conduziu o povo
“como rebanho miúdo” pelo deserto. Segundo Salmos 103,7 Deus
concedeu a Moisés conhecer os “seus caminhos”; esse enunciado re-
cebe uma concreção logo no versículo seguinte, quando a fórmula de
graça é tomada de Êxodo 34,6. Toda a reminiscência mosaica, por sua
vez, serve no contexto deste Salmo à comprovação da graça divina,
pregada pelo salmista nessa passagem. Em Salmos 105,26, por sua vez,
26 a figura de Moisés aparece numa retrospectiva histórica; como em
Salmos 77,21 e 99,6, ele é citado juntamente com Aarão, e ambos por-
Beate Ego
1
[…] amado por Deus e pelos homens,
Moisés, cuja memória é uma bênção.
2
E o Senhor, Deus, o estabeleceu
e o fez poderoso por ações aterradoras.
3
Por sua palavra rapidamente se realizaram sinais miraculosos,
e ele lhe deu força na presença do rei,
e ele ordenou que fosse ter com seu povo,
e permitiu que visse sua glória.
4
Por causa de sua fidelidade e por causa de sua humildade
escolheu-o entre todos os viventes.
5
E permitiu que ouvisse sua voz
e permitiu que se aproximasse das trevas das nuvens
e colocou em sua mão o mandamento,
o ensino sobre a vida e a inteligência,
para ensinar a Jacó suas leis, 27
e a Israel seus mandamentos e prescrições
MOISÉS
no judaísmo
(citado segundo Sauer, Jesus Sirach, 306).
3
MOISÉS NA LITERATURA DO
JUDAÍSMO ANTIGO EM ÉPOCA PRÉ-RABÍNICA
MOISÉS
no judaísmo
como que mágica, detém também o nome de Deus: quando o faraó,
imediatamente após esse episódio, ouve o nome de Deus, acaba des-
maiando; Moisés, porém, levanta novamente o faraó. Um sacerdote
que fazia gracejos sobre o nome de Deus morre imediatamente, com
horríveis convulsões. A narrativa finaliza então com uma reconta-
gem livre das dez pragas e uma nota sumária sobre os quarenta anos
da peregrinação no deserto. Considerando o seu todo, o que cha-
ma a atenção nesta apresentação é quão fortemente o momento do
mágico-miraculoso se encontra em primeiro plano na descrição de
Moisés. Além disso, é digno de nota com que desembaraço Artapa-
no pode vincular Moisés com a religião egípcia. Ele, por exemplo,
teria atribuído um deus a cada um dos 36 distritos administrativos
que instituiu. Também a instrução dos sacerdotes egípcios na escri-
ta hieroglífica pertence a esse âmbito religioso. Implicitamente fica
claro que a figura do deus egípcio Thot-Hermes teve força deter-
minante no delineamento da figura de Moisés. O nome de honra
de Moisés junto ao povo é “Hermes”; no local em que seu exército
tão vencedor se havia aquartelado é fundada a cidade de Hermupo-
lis, na qual o Íbis foi declarado santo. Como o deus egípcio “Thot”
foi identificado com Hermes e o Íbis era simultaneamente o animal
sagrado desse deus, essa tradição parece ter influenciado a formação
do perfil da figura de Moisés (para outros escritores gregos, Thot-
Hermes é, aliás, considerado o que traz a cultura). Mas não é só
para os egípcios que Moisés é importante; ele é descrito, além disso,
como mestre do Orfeu, que na literatura grega pode valer como im-
portante fundador da cultura. Assim, tanto egípcios quanto gregos
são seguidores do grande Moisés.
É possível ficar admirado, como leitor e exegeta da Bíblia he-
braica, com tais exposições sobre Moisés, uma vez que também com
certeza não podem ser entendidas para além de simples floreios ha-
gádicos do texto hebraico. O sentido de tais afirmações se revela,
contudo, a partir do pano de fundo sócio-histórico de sua origem.
Os judeus da diáspora egípcia desfrutavam de uma imagem extre-
mamente negativa, já que podiam valer como um povo de párias e
existências sombrias. De acordo com os Aegyptiaca de Hekataios de
Abdera, surgidos aproximadamente por volta de 300 a.C., o êxodo
30 não constituiu senão uma expulsão do povo judeu, cuja mera pre-
sença já havia provocado grandes prejuízos aos egípcios. Os egípcios
Beate Ego
MOISÉS
no judaísmo
entre os dois testamentos]:
Não podemos abandonar a diáspora egípcia sem nos entreter, por fim,
com a apresentação que faz de Moisés aquele que se constitui even-
tualmente no mais importante antigo pensador judeu e filósofo, a sa-
ber, o filósofo judeu da religião Fílon de Alexandria (cerca de 15 a.C.
a 40 d.C.). Fílon viveu em Alexandria, no Egito, onde — como já
mencionado acima — havia surgido ao longo dos séculos uma grande
e importante comunidade judaica da diáspora, que se encontrava em
relação cultural estreita com a cultura greco-helenista. Como seus
antecessores, também Fílon teve de assegurar e defender o espaço
do judaísmo num entorno pagão. Essa temática tornou-se premente
justamente em tempos de vida de Fílon, quando os judeus foram
obrigados, sob Caio Calígula (37-41 d.C.), a erigir estátuas de Ca-
lígula em suas sinagogas, como sinal de sua lealdade ao imperador.
Como os judeus se recusassem, houve violentos conflitos no ano 38,
em que locais de veneração, casas e lojas comerciais judaicas foram
destruídos. Durante esses anos, Fílon fez parte de uma delegação ju-
daica enviada a Caio Calígula a fim de defender os antigos direitos
judaicos. O imperador, contudo, só encontrou palavras irônicas para
a delegação dos alexandrinos, de modo que unicamente depois da
morte de Calígula, no ano 41, seu sucessor restabeleceu os direitos
corporativos especiais dos judeus em Alexandria. E, não obstante,
32 mesmo assim não deixaram de persistir as tensões entre os diferentes
grupos étnicos existentes na cidade pluricultural de Alexandria.
Beate Ego
MOISÉS
no judaísmo
— assim o sabe Fílon —, não tinha somente educadores egípcios,
mas seus mestres também vieram de países limítrofes com o Egito,
bem como, inclusive, da Grécia (1,21-24). Moisés — assim o escla-
rece este motivo da história de infância — simboliza uma síntese
de toda a sabedoria humana. Interessante na apresentação de Fílon
— diferentemente das apresentações mais antigas sobre Moisés — é
o fato de ele racionalizar determinados acontecimentos na narrativa
do êxodo. As pragas, por exemplo, são explicadas por ele como que
cientificamente tendo por pano de fundo a cosmologia grega e fatos
egípcios, distanciando-se assim do sensacionalismo, que permite ser
observado vez por outra em sua época.
Na segunda parte de sua biografia sobre Moisés, Fílon procede de
forma temática, descrevendo agora a figura dirigente de Moisés como
rei, legislador, sumo sacerdote e profeta. Se Moisés é, a um só tempo,
rei e filósofo, fica rapidamente claro que nesse caso imiscuíram-se na
caracterização de Moisés tradições gregas. Já para Platão era caracterís-
tica a ligação entre “reinado” e “filosofia” (Platão, República 431c, 473d,
487a). Dessa maneira, fica claro em que grande medida Fílon participa-
va da filosofia de seu entorno pagão. Um traço específico da concepção
de Fílon reside, contudo, no fato de Moisés ter recebido seu reinado
quando permaneceu sobre a montanha do Sinai, fundamentando-o,
assim, sobre a participação de Moisés no mundo celestial.
Seguem-se afirmações sobre Moisés como legislador. Suas leis
são superiores a todas as demais leis, uma vez que se “se encontram
cunhadas como que pela própria natureza com o seu selo, e por man-
terem sua validade desde o dia em que foram redigidas até hoje”
(II,12-14; citado segundo Cohn, 301). Com isso Fílon dá o impor-
tante passo que consiste em identificar a Torá judaica com a lei geral
da natureza. Além disso, Fílon louva Moisés como sumo sacerdote.
Nesse contexto ele foca inicialmente a dimensão ética deste ofício,
quando pode afirmar:
MOISÉS
no judaísmo
elementos do tabernáculo e da veste sacerdotal desempenham um im-
portante papel. Assim, Fílon descreve — para só selecionar aqui um
exemplo — a tampa do propiciatório sobre a arca como “um símbolo
da graça de Deus e, entendido eticamente, um símbolo do pensamen-
to […], que realiza em si próprio a obra da graça, atribuindo-se, por
meio de amor e humildade, em conexão com conhecimento, a tarefa
de refrear e exterminar a petulância que se eleva e insufla até alturas
irracionais (II [III], 96; citado segundo Cohn, 320). Moisés acaba in-
vestindo então também finalmente seu irmão Aarão sumo sacerdote.
Fílon termina sua descrição dos ofícios de Moisés com explana-
ções acerca de sua profecia, que se destaca pelo fato de ele ser mediador
das palavras de Deus. Nesta função Deus lhe pode inspirar suas pala-
vras diretamente, como que por iniciativa própria. Moisés, entretanto,
também se encontra numa relação tão íntima com seu criador que
ele o pode interpelar diretamente. As revelações divinas recebidas por
Moisés e para as quais aponta Fílon originam-se, neste contexto, espe-
cialmente do âmbito mais abrangente do direito e das determinações
histórico-religiosas. Mas o dom profético de Moisés se mostra tam-
bém pelo fato — e com isso a apresentação de Moisés por Fílon chega
ao seu final — de que Moisés pode até contemplar sua própria morte:
MOISÉS
no judaísmo
ções de Fílon. A mais importante linha de argumentação, aqui, reside
no fato de que, segundo a apresentação de Fílon, exatamente a figura
de Moisés pode valer como uma espécie de vivificação da lei. Sua
vida serve como que à contemplação da lei. Ela acontece consoante
as leis (II, 48), pois Moisés foi “criado em sua personalidade como a
lei provida de alma e inteligência pela vontade da providência divina,
a qual, sem que ele soubesse, o designou mais tarde como legislador”
(I, 162, citado segundo Cohn, 359; cf. também II, 5). Assim sendo,
Hindy Najman pode formular de forma concisa e pregnante que Fí-
lon subordina a lei de Moisés à figura de Moisés, e que a vida do
sábio pode ser concebida como expressão da lei.
De certa maneira a apresentação que Fílon faz de Moisés en-
contra sua continuidade no historiador judeu Josefo, que viveu no
século I d.C. na Palestina e testemunhou a primeira guerra judaica,
bem como a destruição do templo de Jerusalém. Como no caso de
Fílon, é também propósito seu apresentar o povo judeu de forma
positiva para fora e procurar evidenciar uma harmonia aparentemen-
te grande com o entorno pagão. Essa tendência pode ser explicada
tanto biográfica quanto historicamente: Josefo foi inicialmente co-
mandante na guerra judaica contra Roma; após sua prisão na batalha
de Jotapata (67 d.C.), porém, viveu e atuou junto ao acampamento
do comandante supremo Vespasiano e de seu sucessor, Tito. Com
este último foi para Roma após a vitória dos romanos, onde recebeu
o direito de cidadania romana, bem como uma pensão da casa de
César. Em Roma escreveu suas obras. Ele escreveu, sobretudo, para
os indivíduos cultos de Roma, aos quais procurava mostrar que seu
povo era detentor de um nível cultural elevado, não consistindo de
forma alguma — o que poderia parecer ser o caso em função dos
ataques dos zelotes — num povo de fanáticos violentos.
Para a apresentação da figura de Moisés é especialmente impor-
tante sua obra Antiquitates judaicorum, as Antiguidades judaicas, surgida
nos inícios da década de 90 em Roma. Também para Josefo Moisés
é o legislador ideal. Seu ofício profético encontra-se intimamente
ligado a essa característica de legislador, pois ele repassa ao povo as
palavras de Deus (Ant. III, 85-87). Segundo Josefo, Moisés é, além
disso, ainda detentor de características de um comandante militar
38 ideal. De especial importância é aqui a campanha militar efetuada
contra os etíopes, sobre a qual já houve também menção na literatura
Beate Ego
MOISÉS
no judaísmo
designadas na ciência como rewritten Bible. Aqui caberia apontar em
primeiro lugar para o assim denominado Livro dos jubileus, surgido
em conexão com o levante macabeu e atualmente conservado comple-
to só ainda em idioma etíope. Do tempo anterior à destruição do tem-
plo de Jerusalém origina-se também a assim chamada Assumptio Mosis
[Ascensão de Moisés], transmitida em latim. Nessa época devem ser
datados também os textos de Qumran, que no presente contexto, en-
tretanto, só poderão ser considerados tangencialmente. As Antiguidades
bíblicas, por fim, surgiram nos decênios posteriores à destruição do
segundo templo no ano 70.
A provável evidência textual mais antiga para Moisés como me-
diador da revelação se encontra no Livro dos jubileus, surgido na metade
do século II a.C. no contexto do levante macabeu e no confronto do
judaísmo com a cultura helenística. Essa obra compreende uma re-
contagem da história bíblica, desde a criação até a revelação da Torá no
Sinai, apresentada a Moisés em forma de uma revelação angélica. Ao
lado de inúmeras ampliações da tradição bíblica, sobre as quais ainda
ouviremos adiante, é típico da referida obra que os diferentes aconte-
cimentos sejam enquadrados numa moldura cronológica. A unidade
temporal padrão é, neste processo, o ano jubilar bíblico, também de-
nominado jubileu, que compreende sete semanas de anos, ou seja,
49 anos. Para o autor do Livro dos jubileus, a soma de anos entre o
tempo de Adão e a entrada na terra prometida compreende cerca de
49 × 49 anos, ou seja, 49 jubileus (cf. Jub. 50,4).
As indicações do Livro dos jubileus quanto ao papel desempenhado
por Moisés são diferenciadas: segundo Jubileus 1,1, Deus mesmo escre-
veu tudo e repassou as tábuas para Moisés. De acordo com Jubileu 1,5
e 1,7a, no entanto, Deus dita o conteúdo das tábuas, para que Moisés
possa transcrevê-lo. Segundo Jubileus 1,27, é o anjo que escreve tudo a
mando de Deus, e, finalmente, de acordo com Jubileus 2,1, o conteú-
do das tábuas é ditado pelo anjo a Moisés. A Moisés é revelado neste
processo que a história de seu povo é uma história de culpa, caracte-
rizada por uma contínua transgressão do mandamento divino e pela
dedicação a outros deuses. Por essa razão Deus dará o povo nas mãos
de outros povos “para cativeiro, para jactância (dos gentios) e para des-
truição” (Jub. 1,13; citado segundo a tradução de Berger, 317). Mas, ao
40 final, o povo se converterá novamente ao seu Deus, e serão trazidos de
volta por Deus de todos os povos: “E me buscarão, para que eu seja
Beate Ego
MOISÉS
no judaísmo
um lado, um soberano universal exerce o seu domínio aterrador, os
piedosos, por outro, conseguem se resguardar graças à sua obediên-
cia à lei. Deus, no entanto, julgará a terra e tornará visível seu domí-
nio sobre toda a sua criação, a fim de castigar os gentios e assegurar
para Israel um sólido lugar no firmamento (cap. 10). Essa profecia
recorre indiscutivelmente a Daniel 12,1-3, bem como a Henoc etío-
pe 104,2-6, em que os justos se tornam semelhantes a estrelas relu-
zentes depois de sua morte. Aqui, na subida de Moisés ao céu, aliás,
tem-se a impressão de que, em última análise, Israel como um todo
haverá de participar na salvação da criação vindoura.
Dessa forma, com os elementos do tempo presente de necessida-
des, de uma mudança em meio à crise, bem como de um tempo sal-
vífico futuro, trata-se neste texto claramente de um apocalipse. Com
isso Moisés é apresentado como profeta apocalíptico, iniciado nos
mistérios. Toda a sua existência tem, por assim dizer, dimensões cós-
micas: ele foi preparado antes da criação do mundo para ser mediador
da aliança entre Deus e Israel (Ass.Mos. 1,14); ele é o “Espírito santo,
digno do Senhor, múltiplo e inacessível, o Senhor da palavra, fiel em
tudo, o profeta divino sobre toda a terra, o perfeito mestre no mundo”
(Ass.Mos. 11,16; citado segundo a tradução de Brandenburger, 79). Em
razão de sua ação como intercessor ele pode, inclusive, ser designado
como o “grande anjo”, “que a toda hora do dia e da noite mantinha
escorados os seus joelhos sobre a terra, rezando para e contemplando
aquele que domina todo o mundo com clemência e justiça, a fim de
lembrar(á-lo) da aliança com os pais e acalmar o Senhor com invoca-
ção” (Ass.Mos. 11,17; citado segundo Brandenburger, 80).
Como mediador da revelação Moisés aparece, por fim, também
em diversos escritos de Qumran, já que ali foram encontrados alguns
manuscritos cujo conteúdo é atribuído a Moisés. As Palavras de Moi-
sés (1Q 22), por exemplo, contêm um fragmento maior com um dis-
curso de Moisés sobre o monte Nebo antes da entrada na terra santa;
como pseudepigráficos de Moisés são considerados, entre outros,
4Q 374, em que é narrado sobre o êxodo, 4Q 375, com instruções
contra a falsa profecia, bem como 4Q 390, com uma revelação da
renegação futura de Israel a Deus, em que a influência da linguagem
deuteronômico-deuteronomista é claramente perceptível.
42 Como mediador da revelação a figura de Moisés também é em-
pregada no 4º livro de Esdras, quando Deus aqui fala para Esdras:
Beate Ego
3
Visivelmente eu me revelei sobre a sarça e falei com Moisés, quan-
do meu povo fazia trabalho escravo no Egito. 4Eu o enviei, tirei
meu povo do Egito e o trouxe até a montanha do Sinai. Eu o man-
tive comigo por muitos dias, 5dei ao seu conhecimento muitas coi-
sas maravilhosas e lhe mostrei os segredos dos tempos e o fim dos
tempos. Eu lhe ordenei e disse: 6Estas palavras tu deves publicar,
aquelas, guardar em segredo (4 Esd14,3-6; citado segundo a tradu-
ção de Schreiner, 400).
MOISÉS
no judaísmo
sentadas como ação de vingança de Deus contra os egípcios —, mas
os anjos controlam a ação de Mástema, de modo que os mágicos não
conseguem praticar nenhum milagre de cura, acabando por ser neu-
tralizados em suas ações por causa de doenças. Além disso, Mástema
é responsável pelo fato de os egípcios irem ao encalço dos israelitas
e os perseguirem. Por fim ele, entretanto, é acorrentado, de modo
que não pode acusar os israelitas de terem roubado os tesouros dos
egípcios na saída do seu país (Jub. 48,1-19).
Largo espaço a apresentação de Moisés também ocupa nas Anti-
guidades bíblicas (também denominadas Pseudo-Fílon), um escrito que
reconta a história bíblica do Gênesis até a morte de Saul, colocando
neste processo acentos bem próprios. Pode-se supor que nesse caso
se trate de uma obra fragmentária, já que uma abordagem limitada a
esse período da história de Israel dificilmente pode ser tornada plau-
sível. Como para a Ascensão de Moisés, também para Pseudo-Fílon a lei
constitui uma grandeza importante, cuja relevância não pode ser ques-
tionada; Israel, no entanto, sempre volta a correr o perigo de ab-rogar
essa lei. Este pecado se concretiza de maneira mais clara no culto às
imagens e na ligação com os povos estrangeiros. Como mostrou Odil
Hannes Steck com clareza, essa obra se encontra na esteira da teologia
deuteronômica-deuteronomista. Diante deste pano de fundo de uma
alta apreciação da lei, não deixa de ser natural que a figura de Moi-
sés receba um papel destacado nesse livro, de modo que são logo dez
capítulos (LAB 9-19) nos quais se conta sobre Moisés e nos quais a
fonte bíblica é acentuada de maneira bem específica. O nascimento de
Moisés encontra-se, desde o início, sob um bom astral. Ora, enquanto
os contemporâneos dos pais de Moisés se encontram tão desesperados
por causa da perseguição egípcia que nem mais se atrevem a ter filhos,
Amrão, o pai de Moisés, expressa sua confiança na promessa divina
e na validade da aliança com Abraão. Deus retribui essa confiança a
Amrão com uma promessa, uma vez que se lê agora:
7
[…] Pelo fato de ter o pensamento de Amrão encontrado agrado
diante de minha face e por ele não ter destruído minha aliança, fir-
mada entre mim e seus pais, por isso eis agora: o que dele será gera-
do deve me servir para sempre, e por ele realizarei milagres na casa
44 de Jacó e por meio dele farei sinais e feitos milagrosos para meu
povo, como não fiz para nenhum outro (povo); e eu criarei minha
Beate Ego
glória entre eles e lhes anunciarei meus caminhos. 8Eu, Deus, acen-
derei minha luz para ele, que deve morar nele, e quero lhe mostrar
minha aliança que ninguém viu, e lhe pretendo revelar minha su-
perioridade, e as ordenanças legais, e os juízos, e a luz eterna, para
que o ilumine. Pois por sua causa refleti em antigos dias e disse:
“Meu Espírito não será eternamente mediador nestas pessoas, pois
elas são carne e seus dias de vida serão 120 anos” (LAB 9,7-8; citado
segundo a tradução de Dietzfelbinger, 124).
MOISÉS
no judaísmo
montanha e desceu nas planícies. E ele lhe deu ordens […] sobre
a tenda e a arca do Senhor, e sobre o sacrifício das oferendas quei-
madas e das ofertas de incenso, e sobre a regra em relação à mesa
e ao candelabro, e sobre a bacia e seu utensílio, e sobre o éfode, e
sobre a bolsa de peito, e sobre as pedras muito preciosas, (as quais)
eles deveriam fazer dessa maneira entre filhos de Israel. E ele lhes
mostrou a imagem delas, a fim de que eles (as) fizessem segundo o
modelo que ele tinha visto. E ele lhe falou: “Faça-me um santuário
e ele será a tenda da minha glória entre vós” (LAB 11,15; citado
segundo Dietzfelbinger, 132).
4
MOISÉS NA LITERATURA RABÍNICA
MOISÉS
no judaísmo
que acabou por superar em muito o volume das tradições extrabíbli-
cas mais antigas da época do segundo templo. Diante deste pano de
fundo temos que nos limitar aqui a algumas questões essenciais.
Como em outros contextos, também nos textos rabínicos fica
claro que o acabamento posterior e a descrição de figuras bíblicas
podem ser entendidos, até certo ponto, como reflexo de processos
histórico-religiosos. O judaísmo rabínico, ao qual queremos nos de-
dicar a seguir, surgiu, como é de conhecimento geral, após a des-
truição do templo de Jerusalém em 70 d.C. Como seguidamente
acentuado na literatura científica, a destruição do templo de Jerusa-
lém pelos romanos representou um corte fundamental na história
do judaísmo. Enquanto antes do ano 70 o culto prático do templo e
os sacrifícios dos sacerdotes desempenhavam um papel essencial na
religião judaica, depois da destruição do templo fizeram-se necessá-
rios tanto direcionamento quanto colocação de acentos fundamen-
talmente novos. Decisivo neste processo foi que existiam, mesmo
ao tempo em que ainda havia o templo de Jerusalém, correntes no
judaísmo que davam grande importância à Escritura e à interpre-
tação da Escritura em particular, e que acentuavam especialmente
os aspectos éticos da religião judaica. A tais tradições era possível se
reportar depois do desastre da destruição do templo e criar um novo
sistema religioso simbólico, em que a Escritura e sua interpretação
podiam valer como coordenadas essenciais, bem como suas práti-
cas consequências, a saber, a observância da Torá. Que dentro deste
grande contexto referencial, sobretudo, a figura de Moisés tenha tido
uma importância dominante é evidente, uma vez que já na tradição
bíblica ele se encontrava estreitamente vinculado à dádiva da Torá.
Mas para o judaísmo rabínico também a discussão do passado
desempenhou um importante papel, já que agora se tratava de assi-
milar os acontecimentos históricos que tinham redundado no colap-
so do antigo sistema. Retomando a teologia deuteronômico-deute-
ronomista bem mais antiga, surgida no século VI a.C. e que buscava
avaliar criticamente a destruição do primeiro templo de Jerusalém
no ano 587 a.C., acentuava-se que, em última análise, foram unica-
mente os pecados de Israel os responsáveis pelo desastre da guerra
romana e pela submissão de Israel à dominação estrangeira romana.
48 Diante do pano de fundo de tal consciência de pecado, que sempre
se pode voltar a perceber claramente nos textos rabínicos, um mo-
Beate Ego
MOISÉS
no judaísmo
fica suas raízes nos sacerdotes, mas em círculos escribas. Nesta cons-
trução de uma corrente traditiva deve-se ter em mente que Moisés é
visto neste contexto como transmissor não só da tradição escrita, mas
também da oral, ou seja, de toda aquela tradição do judaísmo que en-
contramos hoje nas obras do Talmude e do midrash. Neste contexto
fica logo claro também o entendimento judaico de tradição, que di-
ferencia a Torá escrita e a oral, que atualiza e complementa a tradição
escrita. Segundo a compreensão rabínica, ambos os tipos da Torá,
tanto a oral quanto a escrita, fazem remontar sua autoridade de igual
forma a Moisés. A tradição oral, sem a qual uma sobrevivência do
judaísmo sob as condições alteradas após a destruição do templo de
Jerusalém teria sido impossível, é dotada de grande autoridade neste
processo. A afirmação da derivação da Torá oral de Moisés deve ser
compreendida inicialmente como uma afirmação teológica; na ver-
dade, havia plena consciência de que a Torá oral era o resultado de
um processo histórico. Esta tensão é retratada com muita clareza por
uma breve história do Talmude, quando se relata que no Sinai Moi-
sés escutou as interpretações da Torá dos discípulos do Rabi Aqiba,
que designavam esta como Torá de Moisés, mas não as conseguiu
entender (Talmude babilônico, Menachot 29b).
Como de início já formulado brevemente, a literatura rabínica
sempre volta a acentuar também o papel de Moisés como intercessor.
Renée Bloch deixou claro em seu ensaio sobre a figura de Moisés na
tradição rabínica que esta “medita sobre as passagens da Escritura (sc.
nas quais Moisés aparece como intercessor) incessantemente e que
ela acentua ainda mais fortemente a intercessão em prol de Israel. Os
rabinos colocaram na boca de Moisés toda uma série de comoventes
argumentos — que, aliás, se movimentam bem na linha dos textos
bíblicos —, a fim de conseguir misericórdia para Israel” (Bloch, Die
Gestalt des Mose, 126).
Do grande número de tradições que descrevem a intercessão de
Moisés seja aqui indicado o Talmude babilônico Berakhot 32a, em
que se lê:
MOISÉS
no judaísmo
sido o próprio Deus que trouxe Israel para o Egito, e justamente esta
influência egípcia da idolatria é que, por sua vez, deve ser vista como
razão para o fato de Israel agora adorar, bem à semelhança dos egíp-
cios, imagens de animais (ExR 43,7). Além disso, Moisés também
ainda alega neste contexto que Israel, quando conduzido para fora da
terra do Egito, ainda era um povo de formação recente e, por isso, até
certo ponto desculpável. Seu apelo a Deus termina com as comoven-
tes palavras: “Tem um pouco de paciência com eles, e realizarão boas
obras diante de ti” (ExR 43,8).
Outro teologúmeno central da figura rabínica de Moisés é a
concepção do sofrimento e do cossofrimento de Moisés na sorte de
seu povo. Pelo fato de Moisés estar disposto a participar do sofri-
mento do seu povo, Deus se humilha e se revela na sarça, a fim de
anunciar a salvação do seu povo. Esse nexo é claramente expresso na
seguinte tradição:
“Uma noite de vigília” (Ex 12,42): Nesta noite eles foram redimi-
dos, e nesta noite eles novamente haverão de ser redimidos um dia.
Estas são as palavras de R. Jehoschua, como está escrito: “Esta noite
é uma noite de vigília”.
MOISÉS
no judaísmo
quebrado. Moisés surgirá do meio do deserto, o rei messias do meio
de Roma. Um irá no alto de uma nuvem, e o outro, igualmente, e a
Palavra do Senhor irá em meio aos dois. E eles serão transformados.
para si sua alma por meio de um beijo de sua boca. Até o próprio
Deus passa então a prantear a morte de Moisés, e começa a se lamen-
tar. Céu e terra participam deste hino de lamentação.
5
PERSPECTIVA:
“MOISÉS, NOSSO MESTRE” NA LITURGIA
MOISÉS
no judaísmo
Verdadeira instrução concedeu Deus a seu povo
por intermédio do seu profeta, o preservado de sua casa.
Deus não irá trocar nem modificar
sua lei numa outra eternamente
(citado segundo Fohrer, Glauben und Leben im Judentum, 63).
6
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MOISÉS
no cristianismo
1
INTRODUÇÃO:
JUSTIÇA EM LIBERDADE
Estes são os sagrados dez mandamentos,/ Que nos deu nosso Se-
nhor, Deus/ Por Moisés, seu fiel servo,/ no alto da montanha do
Sinai (Martin Luther 1524, EG 231,1).
MOISÉS
no cristianismo
crucificado. Essa libertação, porém, não vale mais só para Israel, e sim
para toda a humanidade. Direito e justiça ganham com isso igualmen-
te um novo acento, com o qual especialmente Paulo sempre volta a se
entreter: Deus renova a aliança (1Cor 11,25) com suas criaturas, as-
sim que ele de novo toma a iniciativa de dar o primeiro passo, fazendo
dessa maneira do exemplo de desistência do direito o ponto de partida
para uma nova e sadia relação com Deus. Isso, entretanto, por sua vez,
não permanece sem consequências para o entendimento de Moisés,
que até aqui era de forma tão exclusiva e indiscutível representante de
liberdade e direito. Onde a fé em Cristo representa o único acesso a
Deus, relativiza-se forçosamente a importância de Moisés como fi-
gura simbólica central para a relação entre Deus e os seres humanos.
Moisés e Cristo acabam por entrar numa relação tensa que, pelo lado
cristão, progressivamente é entendida como a de uma relação tipoló-
gica: na figura de Moisés se prenuncia o que só mais tarde, com Jesus
Cristo, chegará à sua perfeição.
E, não obstante, as histórias veterotestamentárias sobre Moisés
conservam seu fascínio também na história do cristianismo. Sempre
onde existir opressão e aumentar o anseio por liberdade as histórias
do êxodo e da proteção de Deus no deserto representarão textos de
esperança — o que, por exemplo, é retratado por inúmeros gospels
da América dos séculos XVIII/XIX. Além do mais, também a ética
cristã não pode prescindir da pregnância do direito veterotestamen-
tário, cuja síntese ela sempre de novo entendeu constituírem os “dez
mandamentos” — perpassando os corpos legais antigos e textos de
catecismo mais recentes, até para dentro das modernas discussões
sobre a Constituição. Dentro disto Moisés preserva seu papel como
figura simbólica e conserva viva uma das mais prementes perguntas
teológicas: Como se relacionam o “Antigo” e o “Novo Testamen-
to”? Existem junto a Deus caminhos diferentes de introduzir justiça
em liberdade — ou em que residem as estruturas comuns entre a
experiência de Deus feita por Israel e aquela feita pelo cristianismo?
Nessa relação cheia de tensões Moisés também continua a viver na
tradição cristã, tornando-se admoestador para que não se perca do
horizonte as raízes judaicas da fé em Jesus Cristo.
64
2
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
mata a golpes o egípcio e foge; depois de 40 anos de permanência em
Midiã, retorna ao Egito e se coloca como liderança do seu povo; 40
anos demora, por fim, a peregrinação pelo deserto. No primeiro pe-
ríodo a história do assassínio do egípcio (segundo Ex 2,11-15) ocupa
o maior espaço. Sua composição já permite reconhecer um esquema
que caracteriza todo o trecho: Moisés é enviado por Deus, mas é ini-
cialmente rejeitado por seu povo. Esse esquema de envio–rejeição–
confirmação já faz dele exemplo da história de Jesus de Nazaré, aliás o
objetivo último para o qual converge Atos 7 como um todo. O segun-
do período, que se desenrola em Midiã, é determinado especialmente
pelo encontro com Deus na sarça (segundo Ex 3,2-10). Novamente é
o momento da incumbência que é determinante neste trecho: Moisés
é enviado por Deus como “soberano e libertador” (7,35). O terceiro
período da época do deserto se concentra na edificação do bezerro de
ouro (segundo Ex 32) e introduz ao fim, desta maneira, mais uma vez
o momento da rejeição. A dádiva da Torá e a proteção no deserto são
citadas unicamente numa numeração breve, que pressupõe conheci-
mento de detalhes. Com a incumbência na sarça no segundo período
já está também situado o conhecido anúncio de que Deus vai suscitar
aos israelitas “um profeta como Moisés”, de Deuteronômio 18,15, e
que excede em muito o contexto da presente história. Seleção e ênfa-
se de todo o trecho deixam indiscutivelmente claro que a história de
Moisés é contada e interpretada tendo em vista Cristo.
Um contexto narrativo maior também pode ser visualizado mais
uma vez em Hebreus 11,23-29. Ele faz parte daquela “série de paradig-
mas” (Hb 11,1-40/12,1-2) em que os exemplos de fé da antiga aliança
são reunidos sob as palavras-chave “nuvem de testemunhas”. Quatro
episódios ilustram como a vida de Moisés era determinada “pela fé”: o
primeiro diz respeito aos seus pais, que escondem a criança sem medo;
o segundo tem como conteúdo a negação daquele que estava crescen-
do de requerer para si os privilégios de um príncipe na corte do faraó;
o terceiro tem como meta sua saída do Egito (em que fica em aberto
se isso pretende ser referência à fuga para Midiã ou já para o êxodo); o
quarto trata da instituição da festa da Páscoa. Um quinto episódio ain-
da é acrescido, que na passagem pelo mar dos Juncos associa Moisés
com todo o povo de Israel em termos de grandeza de fé. A afirmação
66 programática do início da série de paradigmas, segundo a qual fé é um
“manter-se firme naquilo que se crê e uma atestação para coisas que
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
Êxodo 2, apesar de constituir um motivo constante em diversas tra-
dições sobre Moisés do judaísmo primitivo (por exemplo, Jub. 47,8;
LAB 9,16; Fílon, Vit.Mos. I, 20-23; Josefo, Ant. II, 232-237). Que,
além disso, o encontro na sarça (At 7,31.35.38) ou a revelação da
Torá (At 7,53) tenham sido mediados por anjos não pode ser encon-
trado no texto bíblico, mas em diversos escritos judaicos primitivos
(p. ex. Jub. 2,1; 1,27 ss.; LAB 11,5; Test.Dn. 6,2; Josefo, Ant. XV, 136).
Também Gálatas 3,19 e Hebreus 2,2 pressupõem tal mediação da
Torá por anjos.
Digna de nota é a observação em Hebreus 11,24-26 de que
Moisés se negou, “sendo já crescido, a ser chamado filho da filha de
faraó”. De acordo com Êxodo 2,10 diz-se de forma bem simples que
“ele se tornou seu filho e ela o chamou de Moisés”; seu crescimento
é referido só incidentalmente. Tal negação como em Hebreus 11,24
ressoa, aliás, em Josefo, que conta a respeito da brincadeira deprecia-
tiva da criança com a coroa do faraó (Ant. II, 233).
A indicação mais segura de tradições extrabíblicas sobre Moi-
sés oferece, contudo, 2 Timóteo 3,8. No contexto deste versículo é
traçada inicialmente uma imagem sombria dos “últimos dias”, que,
além de por uma queda moral generalizada, são caracterizados prin-
cipalmente pelo surgimento de falsos mestres: “E, como Janes e Jam-
bres resistiram a Moisés, assim também estes se opõem à verdade:
pessoas de espírito corrupto, de fé inconsistente”. Janes e Jambres
como opositores de Moisés — isso só pode ser referência a Êxodo
7,11.22, em que os mágicos egípcios se levantam contra Moisés e
Aarão com suas artes! Ali não são citados nomes. Parece, entretan-
to, ter havido uma história em que este episódio se encontrava mais
desenvolvido — o Escrito de Damasco, de Qumran, igualmente faz
referência ao fato (CD 3,17-19), como 2 Timóteo 3,8. Fragmentos
de um escrito correspondente Janes e Jambres foram preservados no
Papyrus Chester Beatty XVI e no Papyrus Vindobonensis G 29 465.
Interesse merece, por fim, também a carta de Judas, na qual é
feita referência à morte misteriosa de Moisés. Deuteronômio 34,6
notifica sobre o tema só vagamente que Deus mesmo enterrou Moi-
sés e que ninguém conhece sua sepultura “até hoje”. Judas 9, no
entanto, sabe informar que “o arcanjo Miguel contendia com o diabo
68 e disputava a respeito do corpo de Moisés”. Aparentemente aquele
“lugar vago” em Deuteronômio 34 estimulou para que o final de
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
assinala que Jesus pretendia orar ali. A seguir ocorre bem repentina-
mente aquilo que os evangelistas designam como uma “transforma-
ção”: o rosto de Jesus passa a brilhar, e suas vestes resplandecem num
branco brilhante. De repente aparecem Moisés e Elias, que passam a
falar com Jesus. Só Lucas também insinua o conteúdo desta conversa
(“eles falavam sobre a sua morte, que haveria de cumprir-se em Jeru-
salém”), já preparando o leitor para o segundo anúncio da paixão (Lc
9,43-45). Quando os confusos discípulos (em Lucas eles tinham aca-
bado de acordar) mal assimilaram o cenário, uma nuvem encobre o
monte, da qual ressoa uma voz (Mc 9,7): “Este é meu filho, o amado!
A ele ouvi!” Em Mateus os discípulos a seguir são tomados por temor
e necessitam ser primeiramente acalmados por Jesus. Entrementes
a aparição já passou, ocorrendo a descida do monte com a ordem
de, por enquanto, manter silêncio. Não existem explicações simples
para essa narrativa. Ela apresenta muitas facetas e emprega conscien-
temente uma gama de diferentes associações. Claramente ela retrata
os traços inerentes às narrativas de teofanias veterotestamentárias. O
ponto de referência mais forte é, neste contexto, a lembrança da his-
tória do Sinai em Êxodo 24 e 34: também ali Moisés sobe a montanha
com três amigos escolhidos, onde Deus se encontra com eles (Ex
24,1.9-11); uma nuvem encobre o evento (Ex 24,15-18) e a voz de
Deus fala para Moisés (Ex 25 s.); quando Moisés novamente desce
da montanha, seu rosto apresenta um reflexo da glória de Deus, insu-
portável para o seu povo, de modo que ele necessita se encobrir (Ex
34,29-35). O reflexo destes motivos na “história da transfiguração”
não é nenhuma casualidade; eles são compostos conscientemente pe-
los evangelistas e como tais também devem ser percebidos por seus
públicos leitores. De forma bem especial, porém, a figura de Moisés
faz uma ponte entre o Sinai e aquele “alto monte” sobre o qual Jesus
de repente aparece no esplendor da “glória” divina.
Por essa razão o papel de Moisés merece mais uma vez um in-
teresse destacado. Em conjunto com o profeta Elias, ele representa
o mundo de Deus, que sobre o monte repentinamente faz entra-
da na realidade vivencial dos três discípulos. Sobre Elias a história
veterotestamentária (2Rs 2,11) conta que ele não morreu, mas foi
arrebatado diretamente para Deus — uma distinção que, no mais, só
70 é ainda concedida ao patriarca proto-histórico Henoc (Gn 5,21-24).
Moisés parece ter sido aqui acolhido neste grupo. Em Josefo é sinali-
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
Em toda uma série de textos dos evangelhos — histórias de curas,
controvérsias ou histórias de exemplos — pode ser observada uma
argumentação natural com a autoridade de Moisés. Neste processo
se misturam o recurso a Moisés, à lei, respectivamente à Torá, ao
livro de Moisés, à Palavra de Deus ou à Escritura. E, não obstante,
parece que justamente o bom e há tempo introduzido nome de Moi-
sés — até certo ponto a “marca registrada” da vontade revelada de
Deus — é por mais uma vez detentor de uma importância especial.
Os textos merecem, por essa razão, ser examinados brevemente.
Entre os primeiros atos poderosos de Jesus no início de seu sur-
gimento na Galileia é também narrada a cura de um leproso (Mc
1,40-45//Mt 8,1-4//Lc 5,12-16). O leproso aproxima-se de Jesus e
pede por cura. Jesus o toca com a mão e emite uma palavra de or-
dem: “Fica limpo!”. Imediatamente a lepra sai do doente. Jesus lhe
ordena não dizer nada sobre essa cura a ninguém — com uma exce-
ção: “Mas vai mostrar-te ao sacerdote e oferece por tua purificação
o que Moisés prescreveu, para servir de testemunho a eles”. A pres-
crição para o caso de uma lepra se encontra em Levítico 13–14. De
forma bem geral, ela é declarada como “prescrição de Moisés”. Jesus
cura por autoridade própria, mas na legislação atribuída a Moisés ele
se insere como aquele mesmo que fala. A lei ritual, respectivamente
as prescrições concretas de purificação continuam aqui vigentes, não
sendo, por exemplo, contrapostas às prescrições éticas da Torá.
Com a temática do puro e impuro se entretém também uma
controvérsia enquadrada por Marcos e Mateus numa disputa entre
Jesus e os fariseus e escribas (Mc 7,1-23//Mt 15,1-20). Seu ponto de
partida reside numa pergunta, provocada pela prática da piedade: é
preciso ou não lavar as mãos antes de comer? Na Torá a pergunta
não está regulamentada; ela é inserida pelos fariseus de forma inova-
dora na legislação sobre purificação. Parece, pois, que o assunto aqui
giraria só sobre questões pragmáticas. Mas, de repente, a disputa pas-
sa para um nível fundamental. Inicialmente Jesus atribui hipocrisia à
pergunta de seus interlocutores e apela, nesse caso, a ninguém menos
que ao profeta Isaías: eles, de qualquer forma, só insistiriam em coisas
exteriores visíveis, em vez de se preocupar com a sinceridade do seu
coração (Is 29,13)! Para fundamentar isso, Jesus recorre a um exemplo
72 que até o momento nem ainda estava sendo debatido. Trata-se, nesse
caso, da assim denominada prática do Corban, que permite consagrar
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
Numa outra controvérsia, debate-se a prática do divórcio (Mc
10,1-12//Mt 19,1-12). Também aqui Moisés funciona inicialmente
como o afiançador normativo — e para ambos os lados. A pergun-
ta inicial (“É permitido ao homem abandonar a sua mulher?”) pare-
ce inofensiva, pois o direito de separação já está fixado na Torá (Dt
24,1.3); só Mateus 19,3 ainda concretiza a pergunta com um acréscimo
(“ […] por qualquer razão?”). Por isso, Jesus recorre com sua resposta
imediatamente à Torá (Mc 10,3-5): “‘Que vos mandou Moisés?’ Eles,
porém, disseram: ‘Moisés permitiu escrever uma carta de separação
e abandoná-(la)’. Jesus, entretanto, lhes disse: ‘Tendo em vista a du-
reza do vosso coração é que vos escreveu este mandamento; desde o
princípio da criação, contudo, Deus os criou como macho e fêmea’”.
Segundo Mateus, que reestrutura levemente a história, Jesus nem
aceita entrar primeiramente no mérito da legislação, mas menciona
imediatamente a história da criação, em que aparece algo assim como
a “protossituação” ideal da comunhão dos sexos. Os interlocutores
necessitam, por isso, insistir mais uma vez na questão legal colocada
(Mt 19,7-8): “‘Por que, então, Moisés mandou dar-lhe carta de sepa-
ração e abandoná-la?’. Ele lhes disse: ‘Moisés vos permitiu abandonar
vossas mulheres por causa da dureza dos vossos corações. Mas desde
o princípio não foi assim’”. Isso é surpreendente! Jesus concede que
Moisés tenha regulamentado o problema de forma pragmática, assina-
lando, contudo, sua diferença em relação à vontade original de Deus.
A vontade criadora de Deus representaria a intenção do matrimônio,
a Torá de Moisés, no entanto, a concessão feita à “dureza de coração”
dos seres humanos. Esta última também Jesus naturalmente tem de
aceitar. Ele mesmo, porém, nessa controvérsia, se entende decidida-
mente como intérprete plenipotenciário da vontade de Deus, e não
como intérprete da Torá de Moisés. Jesus não questiona a legislação
deles, mas unicamente lhes apresenta os limites dela.
Também na controvérsia sobre a “pergunta dos saduceus” (Mc
12,18-27//Mt 22,23-33//Lc 20,27-40) ambos os partidos, independen-
temente um do outro, se baseiam em Moisés. No tempo de Jesus os
saduceus são conhecidos como aqueles que rejeitam qualquer espe-
rança numa ressurreição geral dos mortos. Isso é consequente por
só reconhecerem a Torá como fonte de sua teologia — e ali uma es-
74 perança de ressurreição ainda não aparece. Consequentemente, eles
também baseiam sua pergunta capciosa numa prescrição da Torá, a
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
mo instransponível. Inicialmente o outrora rico pede que Abraão lhe
envie Lázaro para que alivie seus tormentos. Depois de Abraão rejeitar
este pedido, o atormentado começa a pedir por sua família: Lázaro
poderia ser enviado aos seus cinco irmãos para preveni-los. Mas tam-
bém em relação a isso a resposta é curta e precisa: “Eles têm Moisés
e os Profetas; que os ouçam”. Com “Moisés e os Profetas” pode-se,
portanto, aprender tudo o que é necessário para viver uma vida em
justiça social! Mais uma vez Jesus introduz a si próprio ou o amor
de Deus na argumentação. Também para ele a vontade de Deus é
expressa com validade em “Moisés e nos Profetas”. A ética de Jesus
baseia-se na instrução de Deus — na Torá de Moisés e na palavra dos
Profetas. Em nenhum outro lugar do Novo Testamento esse fato está
formulado de forma tão clara e pregnante como aqui. O outrora rico,
contudo, ainda não satisfeito com isso, volta a perguntar: se alguém
dos mortos retornasse, isto não teria força de persuasão bem maior?
O pai Abraão permanece, contudo, inabalável em sua decisão: “Se não
escutam nem a Moisés nem aos Profetas, mesmo que alguém ressus-
cite dos mortos, não se convencerão”. A ética cristã às vezes teve difi-
culdades com essa informação, de maneira semelhante ao rico glutão
na história. Mas a palavra de Jesus permanece. “Moisés e os Profetas”
contêm tudo o que também Jesus de Nazaré, o Senhor e Cristo, tem
a dizer em relação ao tema da justiça social.
Além dos textos em que a autoridade de Moisés é tematizada
por meio de perguntas sobre questões concretas, Moisés sempre vol-
ta a ser referido como representante da lei de maneira generalizante e
destacada. Isso ocorre sobretudo através de formas fixas ou por cita-
ções que, de maneira natural, identificam Moisés com a Torá.
De forma praticamente programática aparece neste contexto
uma breve passagem que se encontra no início da polêmica contra os
fariseus em Mateus (Mt 23,1–24,2). Ali é afirmado (Mt 23,2-3): “Os
escribas e fariseus sentaram-se na cátedra de Moisés. Portanto, fazei
e observai tudo quanto vos disserem! Mas não imiteis as suas ações,
pois (só) dizem, mas (eles próprios) não (o) fazem!”. Nesse contexto
o evangelista reporta-se a uma instituição normativa como autoridade
doutrinal em questões referentes à interpretação da Torá: a “cátedra
de Moisés”. Isso é aqui mais que simples metáfora. “Cátedras doutri-
76 nais” estão comprovadas literária e arqueologicamente como objetos
de mobília pertencentes a sinagogas. Em tais assentos especialmente
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
“Profetas”, mesmo que isto só seja referido explicitamente em poucas
passagens (apesar de importantes). “Moisés e os Profetas” já foram se-
gundo Lucas 16,19.31 (o rico glutão e o pobre Lázaro) as autoridades
normativas para questões de ética social. Na história de Emaús (Lc
24,13-35) relata-se sobre o ressuscitado: “E, começando por Moisés
e por todos os Profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que
sobre ele (diziam)” (Lc 24,27). Pouco mais tarde, na aparição do res-
suscitado ao círculo dos discípulos (Lc 24,36-49), esse pré-seminário
cristológico volta a se repetir: “[…] É preciso que se cumpra tudo o
que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Sal-
mos” (Lc 24,44). Também o Paulo lucano se comprova como aluno
aprendiz nesse quesito. Em seu discurso de defesa diante de Festo e
Agripa, ele assevera: “[…] continuo a dar o meu testemunho dian-
te de pequenos e grandes, nada mais dizendo senão o que os Pro-
fetas e Moisés disseram que havia de acontecer” (At 26,22). Mesmo
preso em Roma ele procura, em relação a seus compatriotas, “[…]
persuadi-los a respeito de Jesus, tanto pela Lei de Moisés como pelos
Profetas, desde a manhã até a noite” (At 28,23). Com isso Moisés, que
na tradição é ele próprio estilizado como um Profeta, se enquadra na
totalidade do testemunho da “Escritura”, que leva a Jesus Cristo.
MOISÉS
no cristianismo
primeira vez examina e desenvolve o tema “vida”. Novamente aí são
correlacionados Moisés e Jesus. “E como Moisés levantou a serpente
no deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do Homem”
(Jo 3,14). A comparação faz referência à curiosa história em Números
21,4-9 na qual Deus envia ao povo insurreto no deserto uma praga de
serpentes. Quando o povo se arrepende, Moisés, por ordem de Deus,
levanta uma “serpente abrasadora” — e “quem a mirar viverá”. Ponto
de comparação é o termo da “ascensão”. Confiança na palavra de Moi-
sés (mesmo que de difícil execução), bem como confiança na ação de
Deus em Jesus transmitem “vida”. Uma coisa aponta para a outra. No
primeiro caso, trata-se da esperança de sobrevivência no entorno hostil
do deserto; no segundo caso, trata-se da promessa de “vida eterna” por
meio de morte e ressurreição (a “ascensão”) de Jesus. O sinal de Moi-
sés permanece limitado, enquanto a ascensão de Jesus abre uma nova
dimensão. A relação interna, contudo, é mais forte que sua diferença.
Em João 5 se desenvolve uma controvérsia a partir da cura do
doente na piscina de Betesda. Os adversários de Jesus reclamam
que a cura tenha ocorrido num sábado; ao longo da disputa ainda
é acrescentada a acusação de que Jesus “se faz igual a Deus”. O fi-
nal apresenta então o ponto crucial da reação de Jesus (Jo 5,45-47):
“Não penseis que vos acusarei diante do Pai; existe um que vos
acusa, Moisés, em quem puseste a vossa esperança./Se crêsseis em
Moisés, haveríeis de crer em mim, porque foi a meu respeito que
ele escreveu./Mas, se não credes em seus escritos, como crereis em
minhas palavras?”. Nesta controvérsia Moisés está do lado de Jesus!
Ele não permite ser colocado em oposição à mensagem de Jesus.
Jesus e Moisés, ao contrário, apresentam uma concordância funda-
mental. Mas agora Moisés, que no livro do Êxodo sempre defende o
seu povo, transforma-se em seu acusador. A interpretação posterior
isolou e absolutizou esse ponto. Neste processo ela deixou de ver,
contudo, que o tom da propaganda predomina sobre o da delimita-
ção: os “escritos de Moisés” conduzem a Jesus e não distanciam dele.
Engano semelhante também cometem os adversários de Jesus numa
controvérsia posterior, que se segue à cura do cego de nascença (Jo
9). Eles atacam o curado com a acusação (Jo 9,28-29): “Tu és discí-
pulo dele; nós, porém, somos discípulos de Moisés!/Sabemos que
80 Deus falou a Moisés; mas esse, não sabemos de onde procede!”. As
leitoras e os leitores do evangelho nesse meio-tempo já sabem desde
Christfried Böttrich
2.2.4. Exemplo de fé
Para a carta aos Hebreus a figura de Moisés tem uma função especial.
A história do povo de Deus que peregrina pelo deserto e vai ao en-
contro do alvo de sua promessa é, sem exceção, exemplo e doadora
de imagens para a história da comunidade cristã. Também para ela o
tempo não passa de um provisório, que não oferece nenhuma “cida-
de permanente”. Seu objetivo é o grande “descanso sabático” junto a
Deus, para o qual Cristo já aplainou o caminho. Assim como Moisés
foi diante do povo no tempo do deserto, assim também Cristo pre-
cedeu a sua comunidade. Esta função o autor da carta atrela, especial-
mente, a um motivo: Moisés é um exemplo de fé.
O início desta visão sobre Moisés é formado pela passagem de
Hebreus 3,1-6. Os destinatários, interpelados com a importante lo-
cução “meus santos irmãos e companheiros da vocação celestial”,
devem procurar visualizar Jesus:
MOISÉS
no cristianismo
honra que a própria casa.
Toda casa, com efeito, tem alguém que a constrói; mas o arquiteto
de tudo é Deus.
Ora, Moisés era fiel em toda a sua casa, como servo, para ser teste-
munha das coisas que deveriam ser ditas.
Cristo, porém, (é fiel) como Filho à sua casa. Esta casa somos nós,
se mantivermos a confiança e a notoriedade da esperança.
com a Lei; Hebreus 10,28, por fim, assegura mais uma vez a validade
inquebrantável da “Lei de Moisés”.
O caráter exemplar de Moisés apresentado em Hebreus 3,1-6 é
retomado somente em 11,23-29, agora de novo amplamente desen-
volvido. O significado da palavra pistis encontra-se agora totalmente
concentrado na “fé” como confiança, mesmo contra o que é visível.
Tal fé representa o tema central que perpassa todos os episódios da
vida de Moisés. Cinco vezes se diz que “por fé” aconteceu isso ou
aquilo na vida de Moisés. Dessa maneira Moisés passa a ser enqua-
drado entre os heróis da fé de Israel, que têm em “Jesus, o iniciador e
finalizador da fé” (Hb 12,2), seu ponto de partida e de chegada. Mas
eles não são simplesmente agrupados secundariamente no exemplo
de Jesus, nem se dissolvem nele. Eles conservam, ao contrário, seu
valor próprio. Embora suas histórias marcantes e com riqueza de
imagens ofereçam muitas pontes para a história de Jesus, elas consti-
tuem também ainda na atualidade um reservatório autônomo para o
ensino e o fortalecimento da fé da comunidade cristã.
MOISÉS
no cristianismo
Bem conscientemente, a visão evoca logo de início a salvação de
Israel no mar dos Juncos (Ex 14–15). “Vi também como que um mar
de vidro misturado com fogo, e os que venceram a Besta, sua imagem
e o número do seu nome: estavam de pé sobre o mar de vidro e segu-
ravam as cítaras de Deus” (Ap 15,2). Trata-se de uma cena comparável:
o mar simboliza a ameaça que ficou para trás; as cítaras dos vencedores
são sinais do salvamento. Por conseguinte, seu cântico parece ser uma
nova edição modificada daquele cântico de vitória de Êxodo 15 (Ap
15,3-4): “E eles cantam o cântico de Moisés, o servo de Deus, e o cân-
tico do Cordeiro: ‘Grandes e maravilhosas são as tuas obras, ó Senhor
Deus, todo-poderoso! Teus caminhos são justos e verdadeiros, ó Rei
das nações./ Quem não te temeria, ó Senhor, e não glorificaria o teu
nome? Sim! Só tu és santo! Todas as nações virão prostrar-se diante de
ti, pois tuas justas ações se tornaram manifestas’”.
Muitas coisas são dignas de nota neste cântico. Inicialmente ele
evoca aquela enigmática passagem de Apocalipse 14,3 em que já houve
referência a um “novo cântico” dos vencedores. Há identidade entre
este e o cântico de Apocalipse 15,3-4? E qual dos diferentes cânticos
atribuídos a Moisés (Ex 15,1-21; Dt 31,19-22; 32,1-43) se tem em
mente aqui? Pela situação, o mais provável seria Êxodo 15; as reminis-
cências linguísticas mais fortes, contudo, encontram-se relacionadas
com Deuteronômio 32, pois quanto ao conteúdo nem se trata mais
da vitória sobre os opressores ou da retrospectiva, mas exclusivamente
da salvação futura, quando todos os povos haverão de professar Deus.
Acima de tudo, porém, esse cântico é o “cântico de Moisés, o servo
de Deus, e o cântico do Cordeiro”, cujo texto ressoa, por assim dizer,
uníssono. Ambos os “autores” são designados com epítetos fortes, de
grande força expressiva. Moisés é o “servo de Deus”, o que retoma o
título de honra correspondente da tradição veterotestamentária (por
exemplo, Ex 14,31; Nm 12,7; Dtn 34,5; Js 1,1.2.7; 14,7; 2Cr 1,3). No
contexto, contudo, o termo “servo” vem substituído pelo termo grego
doulos/“escravo”, o que deixa ressoar a autodesignação cristã (apostóli-
ca) estereotipada do “escravo de Jesus Cristo”. Cristo, por sua vez, é
portador do título arníon/“cordeiro” (cf. sobre amnós/“cordeiro” ainda
Jo 1,29.36; At 8,32; 1Pd 1,19; além disso, Cristo como “cordeiro pas-
cal” em 1Cor 5,7). Aqui, como pano de fundo, torna-se novamente
84 visível o êxodo com o sacrifício dos cordeiros e a instituição da Páscoa
na qualidade dos elementos mais marcantes dessa história libertária.
Christfried Böttrich
Como tipo de Jesus, Moisés aparece mais claramente ali onde se en-
contra estilizado como profeta. Também Jesus de Nazaré é entendido
inicialmente como uma figura profética por seus contemporâneos.
Que neste contexto viesse a ocorrer a lembrança da “lei profética”
do livro do Deuteronômio (Dt 16,18–18,22) parece ser praticamen- 85
te inevitável. Ali o próprio Moisés anuncia, em Deuteronômio 18,15:
MOISÉS
no cristianismo
“Iahweh, teu Deus, suscitará um profeta como eu no meio de ti e dos
teus irmãos. A ele ouvireis!”. É provável que com isso originalmente
se tenha pensado numa espécie de instituição profética — não uma fi-
gura profética individual, mas uma autoridade que aparecesse sempre
que fosse necessário e que assumisse a função de Moisés. Foi só no de-
correr de sua história interpretativa que esta promessa se cristalizou na
esperança de uma figura salvífica individual, escatológica, como é pos-
sível ser reconhecido, por exemplo, nos escritos de Qumran (4QTest).
Esse desenvolvimento encontra-se relacionado com aquela convicção
de que o espírito profético teria se afastado de Israel (cf., por exemplo,
Sl 74,9; 1Mc 4,46; 9,27; 14,41; Dn 3,38 LXX; 2Br 85,3). De maneira
consequente se intensifica progressivamente a esperança em seu re-
torno (cf., por exemplo, Jl 3,1-2). Deuteronômio 18,15 é agora lido
segundo tal perspectiva escatológica e interpretado em relação a uma
figura profética bem específica. A cristandade primitiva naturalmente
pensava aqui primeiramente em Jesus de Nazaré.
Esta relação pode ser constatada muito claramente em duas pas-
sagens dos Atos dos Apóstolos que citam Deuteronômio 18,15 na ín-
tegra. O tema é abordado em primeiro lugar pelo discurso de Pedro no
templo (At 3,11-26). Após uma breve exposição dos acontecimentos
em torno da Sexta-feira Santa e da Páscoa, Pedro conclama seu público
à conversão, justificando isso com a indicação para Jesus, “a quem o
céu deve acolher desde os tempos da restauração de todas as coisas,
das quais Deus falou pela boca dos seus santos profetas desde o início”
(At 3,21). Então se segue a citação de Deuteronômio 18,15 que apre-
senta e reclama o ressuscitado como sendo exatamente aquele profeta
prometido: “vós o ouvireis em tudo o que ele disser!”. Dessa forma,
a mensagem de Jesus é autorizada em relação a um público judeu por
aquela bem conhecida palavra de Moisés. Fato bem semelhante ocorre
pouco mais tarde no discurso de Estêvão (At 7,1-53). Entre os episó-
dios escolhidos sobre a vida de Moisés (At 7,17-43), ele cita igualmen-
te Deuteronômio 18,15 na íntegra (At 7,37), deixando, contudo, aos
ouvintes a tarefa de realizar eles próprios a ponte para Jesus. O ponto
de comparação é aqui a recusa experimentada por Moisés e todos os
profetas de Israel; ela também atinge Jesus, cuja história é interpretada
à luz do prenúncio do destino violento dos profetas.
86 Segue-se uma série de outras alusões. A mais importante en-
contra-se na história da transfiguração, quando a voz do céu procla-
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
como indicações de “alimento espiritual e bebida espiritual”. Grande
importância tem a locução de uma “nova aliança”, empregada por
Paulo nas palavras de instituição da eucaristia (1Cor 11,25) e que ele
em 2 Coríntios 3,5-18 amplia para a relação entre “aliança nova” e
“antiga”. Ela retoma, além de Jeremias 31,31-33 (promessa de uma
“nova aliança”), sobretudo a aliança com Moisés no Sinai, de Êxodo
34,27; o mesmo pensamento na carta aos Hebreus (Hb 8,1-13; 9,15-
19) prende-se, de forma análoga, a Êxodo 24,3-8.
No centro da tipologia paulina Moisés-Cristo encontra-se, po-
rém, 2 Coríntios 3,5-18. Pode-se ler as observações de Paulo em rela-
ção a esse trecho praticamente como um midrash sobre Êxodo 34,29-35
— sobre aquele episódio, portanto, que narra a descida de Moisés do
Sinai com as tábuas da lei e a história do resplendor da glória de Deus
sobre o seu rosto. Esse midrash de Paulo experimentou uma demorada
e controversa discussão, pois parece que o apóstolo constrói aqui uma
grosseira antítese entre aliança “antiga” e “nova”. Dessa maneira, no
entanto, seu propósito seria mal interpretado. O que Paulo exterioriza
de polêmica deve-se unicamente ao conflito que ele precisa travar com
seus opositores em Corinto. Eles colocam em dúvida o apostolado de
Paulo e provavelmente se reportam, nesse contexto, a Moisés. Paulo
acolhe esse argumento e o devolve. Mesmo assim, em meio a toda a
polêmica, ele justamente não se deixa levar a uma depreciação funda-
mental da aliança de Moisés. Sua palavra-chave decisiva denomina-se
“glória” — e isso significa uma qualidade proveniente da soberania de
Deus. Depois de Paulo ter inicialmente realizado uma diferenciação
entre “letra” e “Espírito” (3,6), concede a ambas as grandezas tal “gló-
ria” divina (3,7-8): “Ora, se o ministério da morte, gravado com letras
em pedras, foi tão assinalado pela glória que os israelitas não podiam
fixar os olhos no semblante de Moisés, por causa do fulgor que nele
havia — fulgor, aliás, passageiro —, como não será ainda mais glorioso
o mistério do Espírito?” Paulo não fala sobre um “ministério da mor-
te” porque a própria Torá representaria uma fatalidade ou porque teria
qualquer déficit. Que ela leva à morte reside unicamente na situação dos
seres humanos sob o pecado, que não conseguem corresponder à rei-
vindicação da vontade de Deus na Torá. A relação do Evangelho com a
Torá de Moisés, no entanto, é comparativa. Por um lado o Evangelho
88 constrói sobre a Torá, por outro vive da transbordante glória de Deus.
E então Paulo joga com o fascinante motivo de Êxodo 34,29-35, em
Christfried Böttrich
que lemos ter sido o reflexo da glória de Deus sobre o rosto de Moisés
tão forte que este, como que para proteger o povo, precisou escondê-
lo. Paulo reverte a interpretação do motivo: Moisés teria escondido
seu rosto para poupar o povo da visão do reflexo desvanecente (2Cor
3,13). Pois para ele a relação entre Evangelho e Torá de Moisés não
reside só num mais, na medida e sobremedida da glória de Deus, mas
também nas categorias “passageiro” e “permanente”. A ocultação do
rosto transforma-se por essa razão e às escondidas numa metáfora teó-
rico-cognitiva. Pelo tempo em que a Torá de Moisés é compreendida
independentemente do Evangelho, ela permanece no status da provi-
soriedade. Sem dúvida, mesmo nessa condição, ela já detém a qualida-
de de glória divina, mas sem alcançar ainda sua medida transbordante
e extravasante. Por esta razão, leitura da Torá sem Cristo (“todas as
vezes em que Moisés é lido”) é para Paulo algo assim como glória
oculta de Deus — que busca com insistência por revelação: “Por ter-
mos tal esperança, damos-lhe toda a publicidade […]” (3,12). A meta,
porém, permanece sendo alcançar por inteiro o conhecimento sempre
ainda limitado (“como num espelho”) e então “sermos transformados
nesta mesma imagem de glória em glória” (3,18). O “véu de Moisés”,
portanto, não é nenhum véu diante dos olhos, mas uma cortina que
promete ser aberta para o último ato da glória de Deus.
Também o evangelista João pressupõe junto ao seu público leitor
o conhecimento de diversos tipos de histórias de Moisés. Um exem-
plo notório oferece o “discurso sobre o pão” (Jo 6,26-59), que remete
especificamente ao episódio do maná (Ex 16; Sl 78,24-25; 105,40; Sb
16,20-21.26). Como lembrança do milagre da alimentação, os interlo-
cutores de Jesus inicialmente fazem referência ao tema (6,31): “Nossos
pais comeram o maná no deserto, como está escrito: Pão do céu lhes
deu de comer”. Jesus, contudo, corrige imediatamente (6,32-33): “Em
verdade, em verdade, vos digo: não foi Moisés quem vos deu o pão do
céu, mas é meu Pai quem vos dá o verdadeiro pão do céu;/porque o
pão de Deus é aquele que desce do céu e dá a vida ao mundo”. Pou-
co mais tarde, o tipo encontra então a sua correspondência (6,49-51):
“Vossos pais no deserto comeram o maná e morreram./Este pão é o
que desce do céu para que não pereça quem dele comer./Eu sou o pão
vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente”. Em
João 7,38 a relação permanece vaga (água para os sedentos); por vezes a 89
citação escriturística não claramente identificável foi vinculada ao mi-
MOISÉS
no cristianismo
lagre de Moisés, que conseguiu extrair água da rocha no deserto (Ex
17,6; Nm 20,7-11; sobre isto, cf. também Sl 78,15-16; 1Cor 10,4).
Na teologia da carta aos Hebreus, tipologias acabam constituindo
um elemento dominante: o rei sacerdote Melquisedec torna-se tipo
de Cristo, o ritual do dia da reconciliação transforma-se em tipo do
evento salvífico, o povo de Deus do deserto torna-se tipo da Igreja,
os piedosos da antiga aliança convertem-se em tipos dos que creem.
Nesse esquema de pensamento também se encontram inseridas di-
versas tipologias de Moisés. Em Hebreus 3,1-6 a fidelidade e a glória
de Moisés são apresentadas como tipos da fidelidade e da glória de
Cristo; a fidelidade de Moisés é alusão a Números 12,7, sua glória
depreende-se de Êxodo 34,29-35. O caminho da comunidade cristã
rumo ao local de repouso dos últimos tempos (Hb 3,7–4,13) tem em
vista Daniel 12,9 (cf. 1Rs 8,56; Sl 132,14). A “consumação do culto”
desenvolvida em Hebreus 9,1-28 não faz referência ao templo de Sião,
mas à tenda do templo da época do deserto (Ex 26,1-37; 36,8-38). To-
dos os registros da perícope do Sinai são, por fim, apresentados uma
vez mais em Hebreus 12,18-24, em que um detalhado relatório de
Êxodo 19,12-13 (a montanha, fogo, fumaça, trevas, tempestade, toque
de trombetas e palavras atemorizadoras, delimitação física para animais
e seres humanos) é vinculado às palavras de Moisés de Deuteronômio
9,19 (“Eu estou cheio de temor e tremor!”). A essa figura do monte
Sinai justapõe-se a figura do monte Sião, que se torna símbolo para “o
mediador da nova aliança, Jesus”: “Vós não vos aproximastes de um
monte palpável […] Mas vós vos aproximastes do monte Sião […]”.
Em tais tipologias a comunidade cristã encontra uma rica reserva
de possibilidades para descrever suas experiências de fé. Diante disso,
Moisés e o povo de Deus da época do deserto não oferecem uma figu-
ra eventualmente contrastante, mas um importante ponto de contato.
MOISÉS
no cristianismo
descrever como um “Deuteronômio cristão”. Mas, além disso, tam-
bém todo o texto encontra-se coberto por uma rede de “leituras do
Êxodo” que, aliás — como mostra o mais recente trabalho de Kerstin
Schiffner (2006) —, abrange ambas as partes da obra lucana. Neste
particular domina o motivo da experiência de libertação, enquanto o
motivo da legislação estranhamente é pouco referido.
Observações desse tipo conseguem descobrir surpreendente-
mente novas perspectivas nos textos correspondentes. Ao mesmo
tempo, elas correm o perigo de descobrir mais objetivos ocultos que
na verdade os textos alguma vez contiveram. Deveríamos realmente
sobrecarregar o raro termo do “Êxodo” na história da transfigura-
ção em Lucas 9,31 — “falavam de sua partida (éxodos/Êxodo) que
iria se consumar em Jerusalém — com todo o peso da tradição do
Êxodo? Ou devemos interpretar forçosamente a libertação de Pedro
do cárcere em Atos 12,1-17 como “êxodo” pessoal? O que ganha a
compreensão do sermão da montanha se a comprovação minuciosa
de reminiscências linguísticas e de conteúdo sobrecarrega a caracte-
rística especial desse discurso? No detalhe cabe, por isso, ter sempre
cautela. O perene direito de todas as observações intertextuais é, po-
rém, que a história de Jesus e de sua comunidade não pode ser lida à
parte da história de Moisés e do povo de Deus, cuja luz, em verdade,
é imprescindível para poder ser adequadamente entendida.
3
MOISÉS NA TRADIÇÃO CRISTÃ
MOISÉS
no cristianismo
tos eremitérios de homens santos e uma igreja, ali onde se encontra a
sarça; esta sarça sobrevive e dá ramos até hoje […].” (Peregrinatio 4,6).
Na metade do século VI, o imperador Justiniano construiu aos pés da
“montanha de Moisés” um mosteiro fortificado, que dali em diante
levava o nome de “Santo e real mosteiro da montanha do Sinai, pisa-
da por Deus” (só a partir do século XI denominado de “Mosteiro de
Santa Catarina”). Nos séculos subsequentes a irmandade do mosteiro
se dedicou inteiramente ao cuidado do lugar santo e à atenção aos
peregrinos. Nas dependências do mosteiro eles também integraram
uma “Capela da sarça santa”, em que para transitar até hoje ainda os
homens e as mulheres que o visitam devem tirar os sapatos, segundo
Êxodo 3,5. Numa vegetação rasteira na parede externa desta cape-
la a fantasia piedosa pensa encontrar desde os tempos de Egéria um
descendente tardio daquela sarça em que Deus outrora falara com
Moisés (Ex 3,2 ss.). Um impressionante mosaico adorna a abside da
igreja: ele é representação da “transfiguração de Cristo”, emoldurada
por duas cenas adicionais — à esquerda, por Moisés diante da sarça
ardente; à direita, por Moisés no recebimento das tábuas da lei. Os
incontáveis turistas que atualmente visitam o mosteiro no Sinai cos-
tumam também escalar a montanha de Deus antes do raiar do sol.
Como e se, de fato, a narrativa de Moisés permite ser localizada nes-
ta empreitada torna-se secundário diante da fantástica paisagem ro-
chosa. O Sinai meridional apresenta-se ao visitante também ainda na
atualidade como paisagem com uma densa atmosfera espiritual, que
recebeu na piedade cristã sua história bem particular.
Os ascetas cristãos sobre o Sinai sempre leram, em sua guarda
dos “locais sagrados”, as narrativas bíblicas pela lente da exegese ti-
pológica. Isso já se mostra programaticamente no mosaico sobre a
“transfiguração”. Numa série de ícones, por exemplo, vê-se Moisés
ajoelhado diante da sarça, na qual, contudo, não aparece o próprio
Deus, mas a mãe de Deus, com a criança. Tais tipologias passam a
caracterizar então permanentemente a iconografia cristã relacionada
com a figura de Moisés: o abandono de Moisés como criança cor-
responde ao batismo de Jesus, a transformação da água no Egito em
sangue ao milagre do vinho em Caná, o cordeiro pascal à Eucaristia,
o maná ao milagre da alimentação, a serpente de bronze à crucifica-
94 ção, o recebimento das tábuas da lei ao derramamento do Espírito
em Pentecostes, e assim por diante. Moisés tornou-se uma figura da
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
Criador do mundo o que por primeiro elaborou esses mandamentos
e os deu a Moisés […]” (Contra Celso I 18). Após isso, entretanto, ele
procura, no interesse da própria teologia, deixar Moisés ser mais uma
vez sobrepujado por Cristo, remetendo a filosofia pagã, com isso,
ao terceiro lugar: “E isto eu digo ainda não estendendo a pesquisa a
Jesus, mas mostrando que Moisés, que se encontra bastante abaixo
do Senhor, como o comprovará a razão, excede em muito teus sábios
poetas e filósofos […]” (ibid.).
Grande difusão atinge o argumento de que pela autenticidade
profética de Moisés seria confirmada a credibilidade da Palavra de
Deus. Nesse sentido, por exemplo, escreveu Basílio Magno (século
IV): “Este (Moisés), portanto, que à semelhança dos anjos foi honra-
do com uma visão direta de Deus, nos conta o que ouviu de Deus.
Ouçamos, portanto, as palavras da verdade […]” (Homilia 1 ao He-
xaemeron). Constantemente as palavras de Moisés são enquadradas no
esquema de promessa e cumprimento, que Efraim, o Sírio (século
IV), por exemplo, exemplifica na história da transfiguração. O con-
teúdo do diálogo entre Moisés e Elias com Jesus ele avalia da seguinte
maneira: “Eles lhe agradeceram pelo fato de tanto as suas como tam-
bém as palavras de todos os coprofetas se cumprirem com sua vinda
[…]. Os apóstolos e os profetas se entreolharam; olhavam-se ali os
líderes da antiga e da nova aliança: o santo Moisés via o santificado Si-
mão (Pedro), o administrador do Pai, o administrador do Filho […].
O monte tornou-se modelo para a Igreja, e Jesus unia sobre ele os
dois testamentos recebidos pela Igreja, informando-nos de que ele se-
ria o doador de ambos […]” (Discurso sobre a transfiguração de Cristo 7).
De maneira progressiva, contudo, o papel de Moisés é entendi-
do como solução provisória, sendo propagada sua substituição por
Cristo. Um exemplo clássico fornecem as poesias do teólogo sírio
Jacó de Sarug (séculos V/VI), relacionadas com diversos temas exe-
géticos. Tendo por base 2 Coríntios 3,5-18, ele desenvolve uma rigo-
rosa tipologia antitética. O rosto oculto de Moisés significaria, nesta
visão, uma forma oculta de discurso profético por princípio, que só
conseguia falar sobre Cristo por meio de insinuações e enigmas. O
brilho no rosto de Moisés teria sido Cristo, que ainda deveria per-
manecer oculto diante dos hebreus. Desde Cristo, no entanto, tal
96 ocultação não se faria mais necessária: “Moisés foi agora substituído
honrosamente no seu serviço; pois o Filho de Deus cingiu-se a si
Christfried Böttrich
MOISÉS
no cristianismo
iustitia fidei). Neste contexto a figura de Moisés sob o púlpito também
se torna testemunha auricular daquela controvérsia que logo mais vi-
ria entreter e abalar a teologia reformatória: qual a relação existente
entre os dois “regimentos” que se pode deduzir do emprego teológico
e político da lei? E existe ainda um terceiro uso (o tertius usus legis),
que conservaria atual a reivindicação válida e diretamente perene da
lei? Estas perguntas conservaram-se atuais na tradição luterana. Só em
época bem mais recente, por meio de uma nova perspectiva em rela-
ção à teologia do apóstolo Paulo e de sua posição diante da Torá, elas
também se deparam com novas respostas. Nesse processo, Moisés se
transforma de ouvinte novamente em parceiro de diálogo.
Um exemplo especialmente palpável para a interpretação da fi-
gura de Moisés oferece um motivo da arte protestante que tem por
tema a apresentação das tábuas da lei. Pode-se encontrá-lo de forma
representativa no famoso tapete Croy de Greifswalder. Este gobelino
monumental de 1554 representa o casamento do duque da Pomerâ-
nia, Filipe I, com uma princesa saxã. Bugenhagen participa da ocasião
como testemunha de casamento, Lutero se encontra sobre o púlpito.
Ao lado dos símbolos dos evangelistas sobre o estrado do púlpito é
possível também visualizar Moisés na subida para o púlpito, tendo
em suas mãos as tábuas da lei. Ambas as tábuas estão cobertas por
letras hebraicas, cujo conteúdo só é acessível ao letrado. Quem espe-
ra aqui por uma síntese dos “dez mandamentos” acaba, aliás, saindo
decepcionado. O teor das duas curtas frases é: “Amarás o Senhor, teu
Deus!” e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo!” Isso é dupla-
mente surpreendente. Por um lado, trata-se dos dois mandamentos
de Deuteronômio 6,5 e Levítico 19,18, que em Mateus 22,36-40 são
sintetizados por Jesus no “duplo mandamento do amor a Deus e ao
próximo”, acompanhado do comentário: “Desses dois mandamentos
dependem toda a Lei e os Profetas”. Dessa forma, não só o decálogo,
mas também a totalidade da tradição veterotestamentária é colocada
nas mãos de Moisés. Por outro, no entanto, a inscrição hebraica nem
segue literalmente o texto original, mas bem provavelmente uma
retrotradução de Mateus 22,37.39 do grego. O tapete-Croy não se
encontra isolado com sua representação. Para tal procedimento ou-
tros exemplos também podem ser encontrados. Mas dificilmente a
98 interpretatio cristiana de Moisés poderia transcorrer de maneira mais
clara: Moisés não traz seu próprio texto para o púlpito, mas o repassa
Christfried Böttrich
4
PERSPECTIVA: ÉTHOS MUNDIAL
MOISÉS
no cristianismo
do judaísmo. Existe, portanto, um éthos mundial pelo qual poderiam
as grandes religiões chegar a um entendimento e cujo fundamento
seria dado pelo decálogo (as “dez palavras” do Sinai)?
Em 1993 o teólogo católico Hans Küng trilhou esse caminho com
sua declaração sobre o éthos mundial. Entre os antiquíssimos esfor-
ços da humanidade por normas éticas elementares, que forneçam um
acervo fundamental de regras gerais compromissivas, ele conta, entre
outros, também com o decálogo. O decálogo, contudo, passou pela
sua própria história, que não diz respeito somente às suas pré-formas
no tempo primitivo do antigo Israel, mas também à sua história poste-
rior no Novo Testamento, bem como, aliás, também entre cristãos e
muçulmanos: “À medida que também o cristianismo se apropriou das
‘dez palavras’ e à medida que também o Alcorão oferece uma síntese
correspondente das mais importantes obrigações éticas, já se pode falar
aqui de um éthos fundamental comum, pelo menos das três religiões
proféticas, cujo interesse está em garantir a humanidade elementar das
pessoas com o recurso à autoridade divina” (Weltethos, p. 117).
Que o caminho que vai de tais pensamentos até a convivência
pacífica das religiões em nosso mundo globalizado é ainda longo fica
atestado não só pelos inúmeros conflitos também no início do século
XXI. E, não obstante, todo passo nesse caminho é mais importante
que a aceitação resignada da problemática. A figura de Moisés pode-
ria ser apropriada para assumir o suporte espiritual da procura por
uma convivência pacífica em liberdade e justiça.
5
SUGESTÕES DE LITERATURA (SELEÇÃO)
MOISÉS
no cristianismo
Theologie. Ed. Markus Öhler. Darmstadt, 1999, 117-140.
HOFIUS, O. Das Gesetz des Mose und das Gesetz Christi. ZThK 80,
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Christfried Böttrich
MOISÉS
no islamismo
1
INTRODUÇÃO
MOISÉS
no islamismo
pírito”, Kalimat Allah wa-Ruhuhu. Maomé costuma ser denominado
Habib Allah, “amado de Deus”, embora seja conhecido preferencial-
mente como Khatam al-anbiya, “selo dos profetas”. Moisés vale na tra-
dição judaico-cristã e na islâmica como aquela figura notória na série
de profetas destacada por Deus por meio de invocação direta, sem
intermediação, e à qual foi confiada a transmissão da revelação divina
assim recebida (Ex 33,11; Nm 12,7-8; sura 4,164). Nesse sentido, na
visão islâmica, Moisés encontra-se acima de todos os profetas.
Por outro lado, já no Alcorão e, mais intensamente, na tradição
posterior pode ser observado que o papel destacado de Moisés é re-
lativizado. Por um lado a revelação a Moisés é objetificada: Moisés
recebe um “livro”, a revelação é objetificada nas “folhas de Moisés”
como parte ou cópia do umm al-kitab, do “protoescrito” divino (suras
3,7; 13,39; 43,4), e torna-se tão acessível como as “folhas de Abraão”
ou o “Evangelho de Jesus” (suras 53,36 s.; 87,19; 5,44-49). De outra
parte, Moisés é enquadrado na série de todos os profetas (cf. sura
2,136) enviados por Deus aos seus povos como proclamadores de
boa-nova e admoestadores — assim a dupla função dos profetas se-
gundo as suras 2,213; 4,165 —, sempre com, em princípio, a mesma
mensagem. Trata-se da una mensagem do uno Deus, que é dirigida
desde os tempos remotos à humanidade, sendo ouvida e buscando
ser obedecida em cada nova ocasião. Já Adão e, com ele, toda a hu-
manidade foram comprometidos com ela (sura 7,172), Noé a procla-
mou como Abraão, Moisés da mesma maneira que Jesus, e Maomé
igualmente não traz nada de novo, mas unicamente a confirmação
da mesma mensagem (sura 5,44-49). A equiparação funcional fun-
damental dos profetas permite a Maomé referir-se tanto a Moisés
(segundo e terceiro períodos tardios de Meca) quanto — o que fez
mais tarde, principalmente na época de Medina — a Abraão.
Aliás, como já referido, a maneira pela qual Moisés é acolhido no
Alcorão retrata fortemente as diferentes situações na vida de Maomé
e de seus contemporâneos. O auge da tradição sobre Moisés no Al-
corão reside no segundo e no terceiro períodos de Meca, sendo os
traços essenciais já visíveis desde o início. Detalhes são acrescidos
posteriormente, sobretudo as partes mais extensas seguem por volta
do final do período de Meca. As maiores unidades narrativas coesas
106 encontram-se nas suras 20 e 28. O pano de fundo para a massiva
reelaboração de temas bíblicos é o progressivo confronto com os Ahl
Friedmann Eissler
MOISÉS
no islamismo
ralmente, por via de regra, só uma metade do discurso se encontre
conservada, enquanto a outra necessita ser reconstruída com dificul-
dade em caso de necessidade. Ele reage diante de acusações, acolhe
argumentos, ajusta o direcionamento de suas investidas discursivas,
colocando para tanto os protagonistas proféticos como exemplos e
precursores dele próprio. Entre o profeta e seus endereçados, entre
Maomé e seus primeiros ouvintes existe uma dependência recíproca,
uma relação de mútua influência, o que é passível de comprovação
por meio de minucioso trabalho exegético e constatável em largos
traços pelo desenvolvimento das histórias proféticas do Alcorão.
É óbvio que sob essas circunstâncias a biografia profética (Sira)
torna-se sumamente importante para a interpretação dos textos. O
presente trabalho procura considerar esse aspecto. Ele, portanto, não
oferece uma visão de conjunto de todos os textos sobre Moisés do
Alcorão, como até agora tem sido experimentado na maioria das ve-
zes, com a finalidade de narrar algo assim como uma história islâ-
mica completa sobre Moisés. Nossa orientação quanto ao provável
desenvolvimento histórico dos textos segue a cronologia apresentada
por Theodor Nöldeke (Geschichte des Qorāns). Em caso de paralelos,
escolhemos, em regra, a variante mais útil para os nossos propósitos,
não deixando, porém, de continuar a considerar também as demais
versões, sem, contudo, separar nitidamente em cada caso ou mesmo
pretender efetuar uma comparação exegética detalhada. Mesmo as-
sim, serão citadas parcialmente também passagens mais extensas do
Alcorão e oferecidas muitas referências cruzadas. Assim, é possível
ter uma impressão da maneira pela qual ocorrem as narrações no
Alcorão e dos grandes contextos inerentes à história de Moisés, abor-
dada em várias passagens.
Além do próprio Alcorão, deve-se dar atenção aos comentários
sobre ele. Um dos principais é o comentário de trinta volumes de
Abu Dschafar Muhammad at-Tabari (morto em 923), que reúne os
primeiros três séculos de exegese do Alcorão num compêndio, váli-
do como ponto alto e, simultaneamente, como término do período
clássico de formação da interpretação do Alcorão (Dschami al-bayan
an ta’wil ay al-Qur’an). Só pequenas partes da volumosa obra foram
traduzidas do arábico para o inglês, respectivamente francês.
108 Em tempo anterior surgiu a assim denominada biografia dos
profetas, a Sira an-nabawiya, de Ibn Ishaq (morto em 768) na recen-
Friedmann Eissler
MOISÉS
no islamismo
procura-se em vão pela viagem para o céu de Maomé, uma das lendas
populares especialmente conhecidas, que narra sobre um encontro
de Maomé com Moisés. Quem der pela falta da misteriosa história
da viagem de Moisés para o legendário Khidr (sura 18,60-64.65-82)
seja lembrado de um título planejado mais para o futuro nesta série,
que terá por tema outras personagens proféticas.
Mais algumas considerações formais. Os nomes e conceitos
árabes serão reproduzidos em escrita fortemente simplificada. A tra-
dução do Alcorão segue a versão de A. F. Bubenheim e N. Elyas,
Der edle Qur’ān und die Übersetzung seiner Bedeutungen in die Deutsche
Sprache (2005), mas com substituição de Allah por “Deus” e com a
adaptação das formas nominais.
As suras serão citadas de acordo com a forma de citação usual
entre nós, a saber, por sua enumeração, mesmo que o islamismo
empregue em seu lugar os nomes das suras (a sura 2, por exemplo,
é citada comumente como al-Baqara, “A vaca”). Ao final se encontra
uma seleção de indicações de literatura.
2
MOISÉS NO ALCORÃO
MOISÉS
no islamismo
povo) e discursou. (24) Ele falou: “Sou o vosso senhor supremo!”
(25) Então Deus o tomou como exemplo de advertência para o
mundo futuro e o mundo presente. (26) Certamente, nisto há uma
lição para quem é temente a Deus.
MOISÉS
no islamismo
riores (fosse): (120) “Que a paz esteja com Moisés e Aarão!” (121)
Em verdade, assim recompensamos os benfeitores. (122) Ambos se
encontram entre os nossos servos fiéis.
MOISÉS
no islamismo
Maomé como “nítido mensageiro” (v. 13) e que deve fortalecer sua
autoridade profética. Por isso também nesse caso a referência pode
ficar anônima. Seu interesse é destacar que Maomé não age baseado
em sua própria autoridade, o que, por outro lado, de forma alguma
significa que ele seja possesso, mas antes um enviado de Deus e por
Ele poderosamente autorizado. A consequência do encargo de Moi-
sés é aqui referida pela primeira vez, liberando a visão para a situação
de Maomé e sua esperança: no confronto entre fé e incredulidade,
ocorre de noite a saída dos servos de Deus, perseguidos por inimigos,
é verdade, mas que não conseguem vencê-los, sendo, pelo contrário,
julgados por Deus no tempo previsto.
íntimo diálogo entre Deus e Moisés; essa parte é retomada mais uma
vez posteriormente (ver 2.10).
A história de Moisés inicia na sura 20 com os v. 9-16:
Que um trecho principie com uma pergunta retórica que faça re-
lembrar conhecimentos por parte dos ouvintes e se reporte a eles já
vimos em outra passagem (sobre a sura 79,15, ver 2.2). A partir daí,
na maior parte de seus 135 versículos, a sura desenvolve a história
de Moisés segundo os seus conhecidos eventos do livro de Êxodo,
mesmo que com particularidades características. Moisés, por exem-
plo, não se encontrava só quando apascentava as ovelhas de Jetro (Ex
3), mas a caminho com sua família. De onde e para onde não mais
fica claro; também as circunstâncias permanecem às escuras. Havia
o séquito se perdido? Moisés se desprende do grupo depois de ter
percebido um fogo. Ele pensava que iria encontrar lenha para quei-
mar ou uma tocha, de qualquer forma pessoas que pudessem mos-
trar o caminho a ele e a sua família. Moisés é, porém, surpreendido
pelo chamado do seu nome. Quem chama fica imediatamente claro:
Deus, “teu Senhor” (cf. sura 79,16). De onde chama a voz não é dito
explicitamente; o paralelo na sura 27,8 faz também menção ao moti-
vo do fogo. A voz chama: “Abençoado seja quem se encontra no fogo
e em sua redondeza, e glória seja a Deus, o Senhor dos habitantes
da Terra!” Na sura 28,29-30, um dos demais paralelos, é citada uma 117
árvore a partir da qual a voz de Deus chama por Moisés. É só uma
MOISÉS
no islamismo
interpretação posterior que efetua a ligação com a sarça que ardia mas
sem queimar (cf. Ex 3,2 ss.).
Moisés recebe uma instrução que acaba sendo bem mais funda-
mental que o esperado. Ela indica para muito além do horizonte do
momento, sim, até mesmo para além da vocação de Moisés. Deus se
apresenta a Moisés como o Senhor. Na autoapresentação ressoa a con-
fissão de fé islâmica, formulada assim ou de forma semelhante em 32
passagens do Alcorão: “Eu sou Deus. Não existe nenhum deus além
de mim”. A reação primeira e imediata consiste em desatar as sandálias
sobre a terra santificada pela revelação de Deus. Então Moisés fica sa-
bendo que foi eleito. Isso visa à reação indireta, ou seja, o ouvir e servir
do profeta, o que permite entrever o horizonte mais amplo da incum-
bência de Moisés. Todo o complexo encontra-se, finalmente, sob o
signo da hora do juízo no derradeiro dia, acrescentando a dimensão do
fim dos tempos: “É certo que a hora vai chegar”.
Com isso temos diante de nós a confissão de fé islâmica em seus
traços fundamentais, como constante no Alcorão: a confissão do Deus
uno encontra sua correspondência fundamental no serviço dos seres
humanos, e este, por sua vez, sua correspondência na hora, como
justiça no horizonte do juízo. O acento recai sobre a confissão de
unicidade (tauhid) e o servir, sobre a veneração a Deus (ibada: “assim,
pois, me sirva!”), que tem em mente o dia derradeiro vindouro.
Nisso reside também o principal conteúdo de toda a pregação pro-
fética. Sintetizada ela pode ser encontrada na sura 21,25: “Não há ne-
nhum deus além de mim, portanto servi-me!” (cf. 3,51; 21,92; 43,63-
65; também 23,52. — Noé 7,59; Hud 7,65; Salih 7,73; Shu’aib 7,85).
Já notamos que a descrição não coloca praticamente nenhum va-
lor sobre as circunstâncias mais exatas, sobre local e tempo. Ao lado de
detalhes como Midiã, Horeb, sarça, há, juntamente com isso, também
regressão daquilo que caracteriza terminantemente a apresentação bí-
blica: a dimensão histórico-salvífica. A fidelidade de Deus ao povo de
Israel, que se mostra pela referência histórica aos Pais (“o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”, Ex 3,6) e no cuidado liber-
tador para com o povo sofredor no Egito, não desempenha aqui papel
algum. Mais tarde, também no Alcorão será tratado a respeito do povo
e do conflito com o faraó idólatra. A tarefa do profeta, entretanto, é
118 separada disso e generalizada. Dessa forma, ela se torna transparente
para a autocompreensão de Maomé, que sempre pode voltar a remeter
Friedmann Eissler
(24) “Vai ao faraó, pois é certo que ele excede a medida (de blas-
fêmias)”. (25) Ele disse: “Senhor meu, dilata-me o peito, (26) e
facilita minha demanda. (27) E desata o nó na minha língua, (28)
para que compreendam minhas palavras. (29) E concede-me den-
tre os meus parentes um que carregue junto (o peso), (30) Aarão,
meu irmão. (31) Consolida por seu intermédio minha força, (32) e 119
associa-o à minha demanda, (33) para que te glorifiquemos segui-
MOISÉS
no islamismo
damente (34) e te lembremos muitas vezes. (35) É certo que tu nos
vês”. (36) Ele disse: “Teu pedido foi atendido, ó Moisés!”.
Moisés sente a tarefa como fardo e teme. Mesmo assim, sua resistência
não é tão veemente a ponto de se negar ou até de Deus tornar-se irado
(Ex 4,14). Fala e resposta entre Deus e Moisés não transcorrem de
maneira tão dramática e aberta como na narrativa bíblica. No Alcorão o
peso recai sobre a autoridade e a grandeza de Deus, que desde o início
pairam sobre a vida de Moisés. Por isso, nesta parte se segue um retros-
pecto daquele início, com a finalidade de deixar claro a Moisés e, dire-
tamente, também a Maomé que o envio profético correspondeu desde
o princípio ao plano de Deus, havendo se encontrado sob sua proteção
e seus cuidados. A sura 20,37-41 dá continuidade à fala divina:
(42) “Vai tu com teu irmão, com meu sinal, e não deixeis de lem-
brar-me. (43) Ide ao faraó, porque ele se insurge. (44) Por isso,
falai-lhe com palavras brandas, a fim de que reflita ou tema”. (45)
Disseram: “Ó Senhor nosso, certamente tememos que ele muito
rapidamente se ponha contra nós ou que exceda a medida”. (46)
Disse ele: “Não temais, porque eu certamente estarei convosco; eu
ouço e vejo (o que acontece). (47) Ide, pois, a ele, e dizei: ‘Nós dois
somos mensageiros do teu Senhor. Deixa sair conosco os filhos
de Israel e não os castigues. Nós viemos a ti com um sinal do teu
Senhor. E paz seja com aquele que segue a reta orientação. (48)
Foi-nos dado (como revelação) que o castigo recairá sobre quem
declarar (a mensagem) como falsa e (dela) se afastar’”.
MOISÉS
no islamismo
o profeta do seu entorno e das circunstâncias nas quais havia se ema-
ranhado o seu povo, passando a considerá-lo unicamente em relação
ao dominador violento. É em torno dele que gira o assunto, em tor-
no daquele que não segue a reta orientação, que declara a mensagem
do profeta mentirosa, que se rebela contra Deus. É verdade que, não
obstante, nessa passagem o povo de Israel é mencionado uma vez,
quase que incidentalmente, como o povo que o faraó deve deixar
partir. A situação de opressão do povo no Egito, terra estranha que se
lhe tornou pátria, entretanto, e a ação histórico-salvífica libertadora
de Deus não recebem destaque algum. O conflito é aquele entre o
profeta impotente e o dominador poderoso violento, que é confron-
tado com as “brandas palavras” da mensagem divina. O motivo do
êxodo deu lugar ao motivo individual da fé. E este, por sua vez, liga-
se com a ação criadora de Deus, que faz emergir “sinais para pessoas
sensatas”, como consta na sura 20,49-56:
A questão fica ainda mais clara nos versículos seguintes, que mos-
tram que não se trata, em primeiro lugar, da libertação do povo de
Israel, mas da pergunta se o poder do incrédulo, respectivamente
da incredulidade — que se vê a si própria como exemplar maneira
de viver (v. 63) — deve dominar, ou se e como o poder de Deus irá
conseguir se impor (sura 20,57-70):
122 (57) Disse ele: “Ó Moisés, vieste, acaso, para nos expulsar das nos-
sas terras com a tua magia? (58) Em verdade, apresentar-te-emos
Friedmann Eissler
(71) Ele (o faraó) disse: “Credes nele sem que eu vo-lo permita?
Certamente ele é o vosso ancião, que vos ensinou a magia. Eu cer-
tamente farei que sejam amputados vossas mãos e pés alternada-
mente e que com certeza sejais crucificados em troncos de palmei-
ras. E sabereis com certeza quem de nós é mais severo no castigo e 123
persistente”. (72) Disseram: “Não daremos preferência a ti diante
MOISÉS
no islamismo
do que chegou até nós como provas irrefutáveis e (diante) daquele
que nos criou. Assim sendo, decide o que tens que decidir; tua
decisão não ultrapassa essa vida terrena. (73) Nós cremos em nos-
so Senhor, para que nos perdoe nossos erros e (também) a magia
que nos obrigaste a fazer. Deus é melhor e mais persistente”. (74)
Quem comparecer como malfeitor perante o seu Senhor irá segu-
ramente para o inferno, onde não morrerá nem viverá. (75) Para
aqueles que comparecerem diante dele como fiéis, como fazedo-
res de boas obras existem as mais elevadas posições, (76) os jardins
perpassados por córregos para morarem eternamente. Tal será a
retribuição de quem se purifica.
MOISÉS
no islamismo
Se continuarmos acompanhando a sura 20, verificaremos que ela
permanece no tema indução ao erro e reta conduta, obediência a
Deus e rebelião. Só que agora não mais dirigida contra os incrédulos
de fora, mas contra os, por assim dizer, de dentro, na medida em
que Moisés é confrontado com o fenômeno dentro do seu próprio
povo. Por esta razão não interessam nessa parte o povo no monte
Sinai, mandamentos e tábuas de mandamentos, estabelecimento da
aliança e tenda da aliança, mas diretamente a perícope do bezerro de
ouro, segundo o Alcorão: do bezerro que mugia. Há fraca referência
ao contexto original (cf. Ex 32), enquanto, por outro lado, aparecem
elementos pós-bíblicos, o que faz que surja, na verdade, uma história
parcialmente diferente disso tudo (sura 20,83-98):
mãe, não me puxes pela barba nem pela cabeça. Temi que dissesses:
Criaste divergências entre os filhos de Israel e não cumpriste a minha
palavra”. (95) Disse ele: “Ó Samiri, o que há contigo?” (96) Disse
ele: “Eu concedi o que eles não concederam e, por isso, tomei um
punhado (de terra) das pegadas do mensageiro e o joguei (no fogo
— ou: sobre o bezerro). Assim, eu me persuadi pessoalmente”. (97)
Disse ele: “Vai embora! Estás condenado a dizer por toda a vida: Não
me toqueis! E tu tens um encontro que não será desfeito. E olha para
o teu deus, a cuja meditação tens te entregado permanentemente.
Certamente iremos queimá-lo e depois disso o lançaremos com cer-
teza ao grande caudal. (98) Somente o vosso Deus é Deus. Não há
nenhum deus além dele. (Sua) sabedoria a tudo abrange!”.
MOISÉS
no islamismo
por transformar-se num bezerro vivo, que visivelmente deve tomar
o lugar de Deus. Que ele, no entanto, não prejudica nem traz benefí-
cios é uma característica de ídolos (sura 21,66) — são imagens fúteis,
feitas por mãos humanas e que afastam da fé em Deus.
Talvez esteja relacionado com isso o fato de Aarão não ter exer-
cido como sacerdote e profeta o papel negativo desempenhado pelo
Samiri. Este seria, pelo fato de erigir o ídolo ou, pelo menos, ter fo-
mentado a fazê-lo, algo semelhante à sombra escura de Aarão.
Moisés está horrorizado e interroga Aarão e depois o Samiri,
que é expulso com maldição e advertência. Nas frases conclusivas
dos v. 99-101, mais uma vez são sublinhados o caráter admoestador,
o horizonte do juízo e, com ele, a dimensão moral-religiosa indivi-
dual da história de Moisés na sura 20. Eles marcam uma cesura:
MOISÉS
no islamismo
morte infligida ao egípcio (suras 28,15; 26.14), que ele deixa, inclusi-
ve, derreter na língua (v. 19): “tu praticaste tua ação que (naquele
tempo) praticaste” — em árabe esse fato pode ser ouvido ainda me-
lhor: wa-fa’alta fa’lataka llati fa’alta, literalmente: e tu praticaste tua
ação, que praticaste. Viu! A frase seguinte: “e tu pertences aos ingra-
tos”, apresenta conotação religiosa, uma vez que também pode ser
traduzida por: tu pertences aos descrentes (kafirin). Muito rapida-
mente Moisés passa para o papel de acusado. A prova decisiva chega
a tornar-se insuportável. O faraó coloca direito e injustiça de pernas
para o ar e quase parece que ele vai ter sucesso com sua estratégia. De
repente Moisés acaba caindo na defensiva. Ele se defende, mas de-
pois contra-ataca (v. 22): “Será isso (porventura) um favor com que
me censuras, que escravizaste os filhos de Israel?” Queres te louvar
pelo fato de me teres dado acolhida junto aos teus — quando, na
verdade, escravizaste e oprimiste meu povo (ver sura 2,49)?
Diante desse argumento, o faraó parte para o tudo ou nada.
Ele quer saber das coisas e para tanto aborda o tema principal pela
raiz. O tom cínico e sarcástico pode ser percebido formalmente na
ocasião (v. 23):
Uma vez que Moisés permanece firme, o faraó torna-se ainda mais
claro: vosso mensageiro está possesso, simplesmente maluco. De-
pois segue a radical intensificação em relação à pergunta por Deus. O
tirano não deixa dúvidas quanto a considerar-se o Senhor. Deus ou
130 o faraó! Essa é a pergunta decisiva, no momento em que o soberano
se coloca a si próprio no lugar de Deus (v. 29):
Friedmann Eissler
Disse ele: “Se tomares para ti outro deus que eu, com toda a certeza
te farei um dos meus prisioneiros”.
(52) Ou não sou eu melhor que este, desprezível e que mal con-
segue se expressar direito? (53) Por que então não foram colo-
cadas sobre ele pulseiras de ouro ou não vieram os anjos em sua
companhia?!
MOISÉS
no islamismo
O êxodo é narrado um pouco mais detalhadamente que na sura
20. Moisés toca com a vara no mar, que se parte a seguir. Moisés e os
seus são salvos, “os outros” se afogam.
MOISÉS
no islamismo
tes, que encontraram a morte em virtude de sua conduta. No Alco-
rão eles, provavelmente, são referenciados como exemplos dos po-
derosos (sura 28,6) e dos ricos (sura 28,76). Aqui, em sua primeira
menção, eles pertencem ao Conselho do faraó. Alguns intérpretes
supõem que Amã nada tenha a ver com o persa Amã do livro de Es-
ter, por tratar-se, antes, de uma designação para o sumo sacerdote do
culto egípcio de Amun (Ha-Amen).
A ordem para matar os meninos recém-nascidos (Ex 1,16) trans-
formou-se na ofensiva contra o pessoal de Moisés. Faraó pretende
aniquilar o cabeça do movimento e matar o próprio Moisés. Ele que
peça por ajuda ao seu Senhor! Pode-se supor que Maomé estava exa-
tamente na mesma situação. Também as acusações do faraó parecem
se referir a essa situação: o temor de que aqui alguém estivesse que-
rendo mudar a religião e trazer desgraça sobre o país. Moisés refugia-
se no Senhor, que está acima de todos (cf. suras 113.114).
Segue-se uma cena que só aparece aqui no Alcorão. Um ho-
mem dos círculos do faraó, designado como crente, mas que, em
verdade, resguardava sua fé oculta, toma abertamente partido a favor
de Moisés. Sua conclamação assemelha-se ao conselho de Gamaliel
em Atos 5,38-39: Moisés reconhece Deus como seu Senhor e apre-
sentou claras provas. Se ele for um mentiroso, terá que arcar com as
consequências. Se ele estiver dizendo a verdade, então “haverá de vos
suceder algo daquilo com que ele vos ameaça” (v. 28). É ao próprio
Deus que compete o juízo. O homem, por isso, sugere ponderação:
“Quem nos auxiliará então contra a violência divina, quando ela re-
cair sobre nós?” (v. 29).
A concepção de justos ocultos entre os povos, que devem asse-
gurar a continuidade do mundo e cujo número, de acordo com uma
interpretação de Isaías 30,18 (“bem-aventurado todo aquele que nele
espera”), nunca é menor que 36, foi importante no judaísmo da época
e pode ser encontrada no Talmude (Talmude babilônico, Sanhedrin
97b). De uma forma completamente diferente desempenha um papel
a “ocultação” da fé na ideia da assim denominada Taqiyya, que com
base naquela figura é apoiada exatamente com esse versículo e com
a sura 3,28 e, principalmente, a sura 16,106. Com isso é designada a
negação exterior da fé em situações de necessidade e ameaças.
134 Sem que a cena seja conduzida a um final, o faraó dirige-se a
Amã numa interpolação (v. 36 s.):
Friedmann Eissler
(45) E eis que Deus o preservou (ao egípcio crente) das maldades
relacionadas com as posições que tinham forjado, e o pessoal do faraó
sofreu o severo castigo, (46) o fogo (infernal), ao qual serão apresen-
tados, de manhã e ao anoitecer. E no dia em que chegar a hora (será
dito): “Deixai entrar o pessoal do faraó no mais severo dos castigos”.
MOISÉS
no islamismo
só sugerida, para desembocar numa pregação generalizada do Alcorão
sobre a reta orientação por meio dos muitos profetas ao longo da his-
tória da humanidade. A reta orientação é também o tema que trans-
corre como um fio vermelho ao longo do relato. Chama a atenção que
aqui é empregado um tom mais objetivo, dando por vezes a impres-
são de se encontrar, praticamente, distanciado. Parece que Maomé
ainda quis retomar mais uma vez a narrativa por sua ordem, a fim de
demonstrar uma decisiva frase de Moisés — segundo a sura 28, tra-
ta-se das únicas palavras que Moisés contrapõe ao faraó (sura 28,37):
(37) Moisés disse: “Meu Senhor sabe melhor quem virá de sua par-
te para trazer a reta orientação e quem obterá a última morada. Em
verdade os iníquos jamais prosperarão”.
Aqui cada palavra tem seu peso. “Meu Senhor” está contra a reivin-
dicação de senhorio e a presunção blasfematória do faraó de ser ele
mesmo o Senhor. “Deus sabe melhor” (Allahu a’lam) constitui para
muitos muçulmanos uma expressão idiomática para os casos de mu-
dança na vida. O fato de Deus conhecer de antemão em sua ciência
todos os acontecimentos da vida, de ele predeterminá-los e, do início
ao final, efetuá-los segundo o seu sábio propósito dá aos crentes a
necessária tranquilidade e esperança de mudanças para melhor, mes-
mo que só como recompensa na eternidade. Deus haverá de, em
última análise, fazer prevalecer sua vontade contra toda tentação e
toda inimizade, uma vez que nela se encontra decidido o bem-estar
dos crentes. Esta confissão, Moisés contrapõe ao faraó. A ela corres-
ponde a atitude básica mais serena da sura. Como ela era atual para
o próprio Maomé se mostra em várias formulações desse texto da
época tardia de Meca. O conflito em torno da reta orientação é o
conflito pela legitimidade de seu ofício profético. É Maomé o men-
sageiro de Deus, que — como os antigos mensageiros o fizeram para
seu povo, cada um a seu tempo — renova, reforça e torna conhecida
a reta orientação de Deus para os árabes? Essa foi a pergunta decisiva
para aquela ocasião! Com as palavras de Moisés, Maomé aponta para
longe de si: meu Senhor o sabe melhor! E ele passa a apontar da sua
atualidade para o horizonte do juízo divino, que haverá de decidir
136 sobre a natureza e a recompensa das ações atualmente praticadas.
Que para ele, nesse caso, estão em jogo as “moradias” dificilmente
Friedmann Eissler
MOISÉS
no islamismo
(ou: líderes), constituí-los herdeiros, (6) dar-lhes uma posição só-
lida na terra e fazer que faraó, Amã e seus exércitos experimentas-
sem aquilo do qual sempre buscavam se precaver.
MOISÉS
no islamismo
falou: “Ó Moisés, queres matar-me como mataste ontem uma alma
(humana)? Não anseias outra coisa que ser praticante de violência
na terra e não queres ser um dos que promovem salvação”. (20) E
dos confins da cidade acudiu rapidamente um homem. Disse ele:
“Ó Moisés, os chefes dirigentes deliberam sobre ti para matar-te.
Sai, pois, da cidade, porque sou para ti, realmente, um dos que dão
bons conselhos”. (21) Saiu então dela, temeroso e (sempre) obser-
vando. Disse ele: “Ó Senhor meu, liberta-me do povo injusto”.
MOISÉS
no islamismo
xo”. (25) Então veio envergonhada uma das duas até ele. Disse ela:
“Meu pai te chama para pagar-te o salário por teres dado de beber
para nós (aos animais)”. E quando veio a ele e lhe contou a história,
disse ele: “Não temas! Tu te livraste do povo injusto”. (26) Uma
das suas filhas disse: “Ó meu estimado pai, emprega-o, pois o me-
lhor que poderás empregar é o forte e digno de confiança”. (27)
Disse ele: “Quero casar-te com uma das minhas duas filhas, com
a condição de que me sirvas durante oito anos; se, porém, cum-
prires dez, será por teu gosto, pois não quero impor-te um fardo.
Se Deus quiser, achar-me-ás entre os justos”. (28) Disse ele: “Tal
fica (combinado) entre mim e ti, e, seja qual for o prazo que eu vá
cumprir, que não haja pressão contra mim. E Deus é testemunha
sobre aquilo que (aqui) dizemos”.
(SURA 28,36-42)
(36) Quando Moisés veio com nossos sinais como provas claras,
disseram eles: “Isso não passa de magia inventada. Coisa assim não
ouvimos dos nossos antepassados”. (37) Moisés disse: “Meu Se-
nhor sabe melhor do que ninguém quem de sua parte trará a reta
orientação e quem obterá a última morada. O injusto com certeza
não irá bem”. (38) E faraó disse: ‘Ó grupo de chefes, desconhe-
ço outro deus para vocês que não eu (próprio). Por isso, ó Amã,
acende-me um fogo sobre barro, e constrói-me um edifício para
que possa subir até o Deus de Moisés. Eu creio, realmente, que ele
pertence aos mentirosos”.
MOISÉS
no islamismo
apanhamo-lo, juntamente com os seus exércitos, e os precipitamos
na grande extensão de água. Repara, pois, como foi o fim dos injus-
tos. (41) E os fizemos líderes (ou: exemplos), que convidam para o
fogo (do inferno). E no dia da ressurreição não receberão nenhum
socorro. (42) E deixamos que fossem perseguidos por uma maldição
no aquém, e no dia da ressurreição pertencerão aos execrados.
2.16. DIRECIONAMENTO DA
COMUNIDADE OPRIMIDA NA ORAÇÃO
(SURA 10,83-87)
A sura 10, que tematiza em sua primeira parte sobretudo a origem di-
vina do envio de Maomé e da mensagem do Alcorão, retoma a partir
do v. 75 novamente a história de Moisés. Ela inicia diretamente com
o fato de que Moisés e Aarão são enviados ao faraó e ao seu “grupo de
chefes” juntamente com “nossos sinais”, portanto os milagres com-
probatórios. O desenrolar-se dos eventos é narrado de forma seme- 145
lhante como até agora. Com a constatação de que Moisés encontrou
MOISÉS
no islamismo
fé unicamente entre as pessoas mais jovens (Paret: descendência) do
seu povo, o foco concentra-se mais fortemente na comunidade dos
crentes (sura 10,83-87):
tação para Jerusalém nas orações, então isso deveria servir como
exemplo para a comunidade. Se o texto deve ser entendido assim,
que as casas deveriam ser dispostas de tal forma que sugerissem o
direcionamento na oração, ele poderia conter uma modificada lem-
brança da ordem de pintar os marcos e as travessas das portas das
casas com o sangue dos cordeiros sacrificais (Ex 12,21-28).
MOISÉS
no islamismo
ma empedernida, insensível e fechada a ponto de não conseguir mais
absorver nada delas, seu coração tornou-se obstinado e endurecido
(assim também traduz Muhammad Asad). E, não obstante, uma im-
portante diferença em relação ao entendimento bíblico reside no fato
de que, enquanto biblicamente é falado tanto de autoendurecimento
do faraó (Ex 8,11.28; 9,34) quanto do seu endurecimento provocado
por Deus (Ex 4.21; 9,12; 10,1), aqui é unicamente o profeta que de-
seja ao inimigo o castigo de Deus em forma de oração. Esta oração é
logo atendida, e a passagem dos israelitas pelo mar se transforma em
cenário para o cumprimento dessa promessa (sura 10,90-93):
MOISÉS
no islamismo
se seguem, segundo a sura 7,130-135:
çoada”, e na sura 5,21 será falado de forma ainda mais clara sobre a en-
trada na “terra santa”. Talvez na fase do conflito com os habitantes de
Meca Maomé tenha se perguntado mais incisivamente onde haveria
de encontrar guarida com os seus quando eles tivessem de abandonar
a cidade (ver também o trecho anterior) (sura 7,136-137):
MOISÉS
no islamismo
Logo depois de os israelitas terem sido salvos, eles entram no
perigo de, em contato com pessoas estranhas, praticar a idolatria. Eles
pedem a Moisés: “Faze para nós um deus, assim como eles também
têm deuses!”. Moisés retruca (sura 7,138-140):
Com isso está preparado o que vem a seguir. Não se pode, sim-
plesmente, fazer Deus. Ele não é nenhum objeto. Sim, é grande a
pergunta se é, inclusive, possível ver Deus — e, em caso positivo,
como se deveria imaginar isso. A pergunta pela possibilidade da con-
templação de Deus não interessou somente à teologia islâmica. Na
Bíblia encontram-se, justamente em relação a Moisés, afirmações
sobre a proximidade e o imediatismo entre Deus e ser humano de
forma surpreendentemente direta: Deus fala com Moisés “de boca
a boca” (Nm 12,8) ou “face a face, como um homem fala com seu
amigo” (Ex 33,11); a Moisés é concedido “ver o Senhor em sua for-
ma” (Nm 12,8), sim, ele e mais alguns sacerdotes, com anciãos do
povo, subiram ao monte Sinai “e viram o Deus de Israel” (Ex 24,10).
E, não obstante, uma afirmação importante da tradição é igualmente
a convicção, em Êxodo 33,18-23, de que nenhuma pessoa pode ver
Deus “e permanecer em vida”; ela tem seu similar em 1Timóteo 6,16
152 (Deus mora numa luz inacessível) e em outras passagens que vão até
o seio da própria tradição islâmica. Essa afirmação era inicialmente
Friedmann Eissler
MOISÉS
no islamismo
Moisés assim pergunta é porque isso justamente comprova que ver
Deus não somente pode ser objeto de prece, mas, segundo a onipo-
tência divina, também possibilidade real aos seres humanos. A partir
disso chega-se mais tarde à explicação que acaba desculpando Moisés
e que entende ter o profeta só formulado a pergunta para instruir
seu povo, ou mais precisamente para repreendê-lo por ter exigido ver
Deus (cf. sura 2,55). Ou então a questão é depurada pelo fato de o
arrependimento de Moisés ao final do v. 143 ser vinculado à sua pre-
tensão arrogante, com a qual o profeta não havia sido incumbido.
Não admira, pois, que o texto do Alcorão possa ter sido uti-
lizado para justificar interpretações contrárias. Sem pretender ler o
texto demais sob a ótica da tradição posterior, a resposta à pergunta
de Moisés inicialmente ainda fica em aberto. O texto não deixa claro
se a contemplação de Deus é negada só para uma situação concreta
ou se é afirmada uma impossibilidade geral (“Tu não me — agora e
sob estas circunstâncias — poderás ver” contraposto a “Tu não podes/
ninguém pode — realmente — me ver”).
A montanha torna explícita a possibilidade impossível; com isso,
o motivo só intensifica o paradoxo. De acordo com o fio da narrativa
bíblica, a tendência seria pensar no Sinai, mas Moisés aparentemente
não se encontra na montanha, mas só próximo a ela. Ele deve con-
templá-la — não Deus —, a corporificação de grandeza e estabilidade,
sim, de firmeza inabalável. Se essa magnífica obra criadora conseguir
suportar a teofania do criador, o próprio Moisés verá Deus. Aconteceu
como devia ter acontecido. Deus aparece, de fato. Só que tal aparição
é tão colossal e deve ter representado um abalo fundamental de tal
magnitude para a esfera criatural que da montanha nada sobra além de
pó. Moisés, seguindo a queda da montanha, cai desmaiado por terra
(morto?), como que atingido por um raio. Ao movimento para baixo
sucede, por assim dizer, a nova criação, quando Moisés levanta — res-
suscita (na interpretação posterior isso também é entendido como res-
surreição dos mortos! — cf. sura 2,56). Dessa forma ele é preservado,
depois do que confessa: “Sou o primeiro dos que creem”. Após essa
depuração é mencionada a eleição. Moisés recebe de Deus as tábuas
escritas com todas as admoestações necessárias para uma vida do povo
que seja agradável a Deus. O que está escrito sobre as tábuas, entretan-
154 to, não é explicado, como também fica em aberto a relação existente
entre essas tábuas e a “tábua guardada” de sura 85,22.
Friedmann Eissler
Não se pode fazer Deus nem se pode simplesmente ver Deus. Pode-
se, porém, segui-lo, especialmente as claras admoestações que contêm
orientação e misericórdia para as pessoas. Nesse sentido se insere no
presente trecho da sura 7 mais uma vez a cena do bezerro que mugia
(cf. 2.8). O contexto sinaliza o direcionamento. O bezerro não pode
nem falar nem dar orientação — ele é um ídolo. Na cena claramente
mais curta em relação à sura 20, o Samiri não desempenha mais papel
algum; o próprio povo arranja o bezerro e, por isso, não tem descul-
pas. O trecho tem o objetivo de provocar contrição, a partir da qual
pode ser concedido perdão. Isso vale tanto para o povo quanto para o
próprio Moisés. Também ele carece de perdão (sura 7,150-154):
MOISÉS
no islamismo
são escritas por Moisés a mando de Deus na segunda passagem (Ex
34,27-28). A produtiva tensão daí decorrente entre Palavra de Deus
e participação humana não conseguiu ficar sem influenciar o enten-
dimento da Escritura no judaísmo e no cristianismo.
Sugeriu-se tomar como pano de fundo bíblico para esta cena Nú-
meros 11,16-30 e Êxodo 32,30-35. Mais indicado parece ser inicial-
mente o nexo com Êxodo 24,1-11, em que Moisés é conclamado a
subir a montanha com três sacerdotes e 70 anciãos. Para o Alcorão
é importante na linha dos trechos anteriores, por um lado, destacar
efetivamente a intercessão de Moisés e, por outro, sublinhar mais
uma vez a possibilidade do perdão daí decorrente. Moisés reconhece
a onipotência de Deus sem reservas. O castigo, entretanto, caberia
só àqueles que o teriam merecido. E até em relação a eles vale que a
vontade de Deus está acima do seu erro. Dessa maneira o caminho
retorna à proteção divina por intermédio do pedido por perdão e mi-
sericórdia, que ao mesmo tempo expressa a submissão à vontade ab-
soluta de Deus. É só dessa maneira que, em última análise, é possível
proteger-se contra o perigo de pretender fazer um deus a si próprio.
156 Dessa maneira, na sura 7 os “promotores de salvação” (v. 170)
se encontram contrapostos paradigmaticamente aos promotores de
Friedmann Eissler
(151) Dize: Vinde! Quero ler o que vosso Senhor vos proibiu: [1]
Nada coloqueis do seu lado [2] e tratai com benevolência os
pais; [3] e não matai vossos filhos pela miséria — nós susten-
tamos a vós e a eles; [4] e não vos aproximeis das obscenidades,
tanto as públicas quanto as privadas; [5] e não mateis a alma, que
Deus proibiu (de matar), a não ser por um motivo justo! Isso
ele vos prescreveu para que entendais. (152) [6] E não vos aproxi-
meis do patrimônio do órfão senão da melhor forma possível, até
que chegue à idade adulta. [7] E oferecei medida e peso comple-
tos em justiça. Não destinamos a nenhuma alma carga maior que
ela pode suportar. [8] Quando sentenciardes, sede justos, ainda
que se trate de um parente. [9] E cumpri vossa aliança (’ahd) com
Deus. Isso ele vos prescreveu, a fim de que (o) mediteis! (153) E (ele
vos ordenou): Este é meu caminho, um reto. Segui-o! Não segui os
(outros) caminhos, para que não vos desviem da sua vereda! Isso ele
vos prescreveu, a fim de vos tornardes tementes a Deus!
E o “código de deveres” do Alcorão na sura 17,22-39 diz: 157
MOISÉS
no islamismo
(22) [1] Não coloques nenhuma outra divindade ao lado de
Alá, porque, do contrário, estarás vituperado e abandonado. (23)
O decreto do teu Senhor é que não sirvais senão a Ele [2] e sejais
bondosos com os vossos pais. Se, portanto, a velhice alcançar um
deles ou ambos, em vossa companhia, não dizei a eles: “Que chati-
ce!” nem os trateis com desdém, mas falai-lhes palavras honrosas.
(24) E proceda humildemente com eles e diga: “Meu Senhor, te-
nha misericórdia deles, como eles me criaram quando era peque-
nino.” (25) Vosso Senhor certamente tem conhecimento daquilo
que há em vossos corações. Em caso de serdes virtuosos, ele certa-
mente perdoa tudo para aqueles que sempre se voltam (para ele).
(26) Concede a teu parente o que lhe é de direito, bem como ao
necessitado e ao viajante. E não ajas como perdulário. (27) Porque
os perdulários são com certeza os irmãos dos demônios, e o demô-
nio é muito ingrato para com o seu Senhor. (28) Porém, se agora te
afastas deles — com o objetivo de alcançares uma misericórdia de
teu Senhor, a qual almejas — então lhes fala afetuosamente. (29)
Não cerres a tua mão excessivamente, nem a abras completamente,
porque te verias censurado e arruinado (de todos os meios). (30)
Certamente teu Senhor provê o sustento prodigamente a quem ele
quer e avalia. Com certeza ele conhece e observa os seus servos.
(31) [3] E não mateis vossos filhos por temor à pobreza, pois
nós os sustentaremos, bem como a vós. Certamente o seu assas-
sinato é um grave delito. (32) [4] Evitai a fornicação, porque
certamente é uma obscenidade — e quão ruim é o caminho! (33)
[5] E não mateis a alma que Deus proibiu (de matar), senão
legitimamente; mas, quanto a quem é morto injustamente, fa-
cultamos ao seu parente (o direito a represália); porém, que não
se exceda no ato de matar, pois ele com certeza será auxiliado. (34)
[6] “E não disponhais do patrimônio do órfão senão da me-
lhor forma possível, até que ele tenha chegado à maturidade. [9] E
mantende a aliança (’ahd) [ = cumpri o dever convencionado].
Com certeza será perguntado pela aliança (e o seu cumprimento).
(35) [7] E quando medirdes, aplicai medidas corretas; pesai
com balanças justas; isso é mais vantajoso e de melhor conse-
quência. (36) [8] E não sigas o que ignoras, porque certamente
158 pela tua audição, visão e pelo teu coração [ = entendimento] — por
tudo isso — serás perguntado! (37) [10] E não te conduzas com
Friedmann Eissler
MOISÉS
no islamismo
de não impor a nenhuma alma mais do que ela consegue realizar tem
como objetivo uma suavização diante da coerção representada por
um legalismo exagerado. Por trás disso encontra-se a concepção de
que os judeus não preservaram a Torá original, acrescentando arbi-
trariamente mandamentos, respectivamente proibições. Algumas das
proibições devem ser entendidas como castigo divino pelos pecados
dos judeus (suras 16,118; 4,160). Por isso, segundo a sura 3,50, fazia
originalmente parte da missão do profeta Jesus permitir novamente
algumas coisas que aos judeus haviam sido proibidas. No fundo, o
que Deus quer é “facilitar” as coisas para os muçulmanos (sura 22,78;
cf. 2,178.185.286; 5,6). A isso pode ser acrescido o pensamento da
completa responsabilidade pessoal de cada indivíduo: segundo a sura
6,164, Maomé deve pregar que “Cada alma só obtém coisas contra si
própria” e “Nenhuma alma que carrega fardos transporta as cargas de
outra”, pregação que é repetida em diversas outras passagens do Al-
corão e que, simultaneamente, exclui o pensamento cristão de uma
expiação vicária (cf. suras 53,38; 17,15; 35,18; 2,48; 4,111).
MOISÉS
no islamismo
sugerir uma consequência que, partindo do Alcorão, foi largamente
discutida na tradição como “falsificação da Escritura” (tahrif), “ocul-
tação” (kitman) ou “troca, modificação” de partes da Escritura (tabdil)
por judeus e cristãos (suras 2,75; 4,46; 5,13; 2,159; 2,59.181; 7,162). Se
o ser humano é, segundo sua “inclinação natural” (fitra, sura 30,30),
um submisso a Deus, um muçulmano, então desvios do culto original
a Deus e da confissão da unicidade (tauhid) no judaísmo e no cris-
tianismo, por exemplo, devem ser atribuídos a sua culpa e remontar,
em princípio, a uma relação negligente ou interesseira, de qualquer
maneira, em última análise, corrompida com a verdade revelada no
transcorrer da história da transmissão da “Torá” e do “Evangelho”. De
forma breve: o que na Bíblia hebraica e no Novo Testamento con-
traria o conteúdo do Alcorão como revelação última de Deus, não a
“confirmando” (sura 2,97; 5,48; 10,37), portanto, só pode remontar a
tais “desvios” (sura 1,7; 5,60.77).
Por isso na sura 2, levando em conta o tratamento preferencial
que têm recebido os “filhos de Israel” por meio da benevolência de
Deus (v. 47.122) e sua ingratidão e seu descumprimento dos manda-
mentos (v. 65), os judeus são confrontados com a exigência de reco-
nhecer a reta orientação de Deus. Eles são diretamente interpelados
com o compromisso em relação à aliança (v. 40): “Ó filhos de Israel,
lembrai-vos da minha benevolência, que eu vos prestei! E mantende
vossa aliança em relação a mim, que eu também manterei minha
aliança em relação a vós!”.
Este fato é importante para o entendimento dos outros textos
sobre Moisés. Pois os opositores de Maomé agora não são mais os
habitantes de Meca e, com isso, os incrédulos, mas, em algumas das
passagens que nos interessam, diretamente os judeus contemporâ-
neos. Sua rebeldia e seu desvio da orientação divina que justamente se
encontrava na iminência de ser renovada pelo profeta árabe acabaram
irritando progressivamente Maomé, colocando-o em oposição a eles.
Moisés acaba agora desempenhando neste contexto outro papel que
até o momento, uma vez que ele, como exemplo para Maomé, neces-
sita prefigurar a mudança contra os judeus, por assim dizer, de forma
exemplar. Ele se encontra mais e mais em relação ao seu povo, os filhos
de Israel, como se encontrava Maomé em relação aos judeus. O desen-
162 volvimento do Alcorão em Medina mostra, desta forma, como Maomé
avalia criticamente a história do povo de Israel contra os judeus do seu
Friedmann Eissler
A sura 2 compreende, após uma parte geral, uma parte histórica (v.
30-141), um ponto central e de mudança (v. 142-162), bem como uma
parte cultual-legal (v. 163-283), com finalização (v. 284-286). Num es-
tudo muito sugestivo e revelador, Bertram Schmitz apresentou um sur-
preendente número de paralelos formais e de conteúdo entre a segunda
sura e os cinco livros de Moisés, até mesmo na sequência dos diferentes
complexos temáticos. Em referências bem diferenciadas tanto em con-
texto maior como em menor, é possível verificar que e como Maomé
inicialmente se refere à Torá como diretriz para, finalmente, no tempo
de Medina, ao contrário, estabelecer praticamente o Alcorão como di-
retriz para a Torá e sua história repercussiva. Por meio do arranjo arti-
ficial a sura e, sobre esse fundamento, o Alcorão se apresentam como
nova “constituição” para a humanidade. E isso justamente também pela
inversão da história dos patriarcas (v. 124-141) e de Moisés (v. 40-101),
que, pela referência a Abraão, valida o islamismo decididamente como
renovação da religião de Abraão. A passagem central decisiva é a transição
de Jerusalém para Meca, a ser entendida não somente de maneira es-
pacial e geográfica, mas total e fundamentalmente de forma teológica,
preparada argumentativamente por Abraão como pai da fé em Meca e
realizada pela mudança do direcionamento nas orações (v. 142-145),
a qual, por sua vez, dificilmente se encontra colocada só casualmente
num local de mudança, ou seja, exatamente na metade da sura 2.
A história de Moisés determina, portanto, os v. 40-101, em que
se discorre sobre o confronto com judaísmo e cristianismo, exem-
plificado no antagonismo entre os israelitas e seu profeta Moisés.
Os judeus são acusados de rejeitar a revelação de Maomé da mesma
forma como seus antepassados rejeitaram a revelação de Moisés e de
outros profetas na história de Israel. As duas coisas têm importância
similar: a legitimação da revelação atual de Maomé pelo recurso à
história da revelação, bem como também a recusa prototípica. Por
meio disso surge a tensa dialética segundo a qual o Alcorão, por um 163
lado, se vê a si próprio como parte, respectivamente continuidade
MOISÉS
no islamismo
legitimada por Deus da história bíblica, mas, interpreta esta, simulta-
neamente, como história de rebelião, admoestando criticamente por
seu intermédio cristãos e judeus. Sob esses presságios, a história de
Moisés volta a ser relembrada em seus aspectos essenciais.
Nos dez mandamentos (acima 2.20) não havia sido falado de aliança,
mesmo que as tábuas da lei no contexto bíblico constituam pratica-
mente o fundamento da aliança firmada no Sinai (Ex 34,27; 19; 24,1-
11; Dt 5,2; cf., entretanto, sura 2,83-84). Um dos mandamentos do
Alcorão (em nossa contagem o nono) pelo menos exigia a manuten-
ção da aliança, respectivamente o cumprimento da obrigação. Mos-
tra-se também aqui que o conceito expresso em árabe por ’ahd (su-
ras 2,27.40.124; 3,76 s. e várias outras vezes) ou mithaq, “acordo” (suras
2,63.83.93; 3,81; 4,154; 5,12.70; 33,7 e várias outras vezes) é, sem dú-
vida, importante. A aliança nesse contexto, entretanto, não se encontra
tão profundamente enraizada na teologia que pudesse ser entendida,
como na Bíblia, praticamente como promessa e expressão da proximi-
dade e da fidelidade de Deus a partir da eleição (Ex 34,10; Dt 4; 7,6-11;
Jr 31). Ela representa, em primeiro lugar, o compromisso das pessoas
em relação à ordem de vida estabelecida por Deus. Já na criação foi
firmado um “acordo compromissivo” entre Deus e o ser humano, co-
nhecido, portanto, pelo ser humano desde Adão (sura 7,172) e com
vistas ao qual todo ser humano foi criado (fitra, sura 30,30). Isso é re-
forçado pelo exemplo de Abraão (sura 2,124). De forma concisa, a sura
2,83 resume da seguinte maneira o seu conteúdo:
164 (83) E quando fizemos um acordo com os filhos de Israel (mithaq):
Não adoreis a ninguém senão a Deus! E tratai com benevolência
Friedmann Eissler
MOISÉS
no islamismo
cimento interno da comunidade muçulmana e para um perfil mais
distintivo em relação a judeus e cristãos: ações benévolas de Deus,
ingratidão e incredulidade dos filhos de Israel, perdão de Deus, re-
novada iniquidade seguem-se uns aos outros.
Os sofrimentos dos israelitas no Egito e sua fuga com o auxílio
de Deus são lembrados, bem como o encontro de Moisés com Deus
durante “quarenta noites” e a adoração do “bezerro que mugia” (cf. 2.8
e 2.19.3). Deus perdoa e concede a Moisés “a Escritura e a capacidade
de distinção” para a condução correta do povo. Segue-se o desejo cen-
surável do povo de querer ver Deus de forma descoberta (cf. ainda mais
claramente na sura 4,153). Isto retoma o tema da sura 7,143-144 (ver
acima 2.19.2), mesmo que com o interessante deslocamento de que, na
atualidade, não mais o profeta, mas o povo comum padece por isso —
o que agora é usado para acusar os judeus. Isso corresponde ao novo
papel pelo qual Moisés é aproximado de Maomé — respectivamente,
de modo contrário — e simultaneamente é colocada uma cunha entre
ele e os “filhos de Israel” (cf. sura 33,69). Além disso, são retomados
exemplos da época da peregrinação pelo deserto do povo de Israel. O
que sobressai de maneira peculiar é a violação do sábado, pelo que os
judeus são denegridos a macacos desprezíveis, o que a maioria dos co-
mentaristas realmente entendeu em sentido físico. Esta expressão de
máxima repulsa e aversão aparece em três passagens e só neste sentido
no Alcorão (ver 2.20). A aceitação do sacrifício de uma vaca vermelha
(ou amarela), numa reinterpretação de Números 19,1-10 e Deutero-
nômio 21,1-9 em estilo grotesco, denuncia a indignação e a prepotência
autocrática dos israelitas (sura 2,67-73; daí o nome de “A vaca” para a
sura 2). Chama a atenção o distanciamento do povo em relação ao seu
profeta Moisés, marcado pela menção de “teu Senhor” por três vezes,
como se Deus fosse só o seu, e não também o Senhor de todo o povo.
A partir do v. 74 a sura 2 comenta esta recordação da história, a
fim de destacar o comportamento “típico” de Israel e, com isso, tam-
bém dos judeus ao tempo de Maomé. Os judeus falsificam a men-
sagem, sim, a própria Escritura, e eles só fingem crer, o que os leva
a uma perigosa contestação do profeta enviado por Deus. De forma
consequente Moisés é retratado ao final como vítima, ameaçado pela
insubordinação e pelas intrigas do próprio povo (sura 2,87 ss.). Ele
166 é rejeitado, como também o foram Jesus e, antes dele, muitos dos
profetas (cf. Mt 5.12; 23,30-36.37), e é justamente nisso novamente
Friedmann Eissler
(135) Eles dizem: “Sede judeus ou cristãos, que estareis bem con-
duzidos”. Diga: Não! Pelo contrário, a confissão de fé de Abraão,
partidário da fé correta, e ele não pertencia aos idólatras. (136) Dizei:
Cremos em Deus e no que nos tem sido enviado para baixo (como
revelação), e naquilo que foi enviado para baixo a Abraão, a Ismael, a
Isaac, a Jacó e às tribos e (no que) foi dado a Moisés e a Jesus, e (no
que) foi dado aos profetas por seu Senhor. Nós não fazemos dis-
tinção alguma entre eles e nos submetemos a ele (muslimuna). (137)
Se crerem na mesma coisa que vós credes, estão bem conduzidos. Se,
porém, se desviarem, se encontram em conflito. Deus, porém, ser-
te-á suficiente contra eles. Ele é o que ouve e sabe tudo.
3
SUGESTÕES DE LITERATURA (SELEÇÃO)
3.1. FONTES
MOISÉS
no islamismo
de aproximadamente um quarto do texto árabe transmitido).
KHOURY, A. T. Der Koran Arabisch-Deutsch. Übersetzung und wissen-
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PARET, R. Der Koran. Übersetzung. Stuttgart, 82001.
———. Der Koran. Kommentar und Konkordanz. Stuttgart, 51993.
QURTUBI, Abu Abd Allah Muhammad b. Ahmad b. abi Bakr al-. Al-
Dschami’ li-ahkam al-Qur’an. Beirut, 1414/1993. 11 v.
SAHIH, al-Buchari: Ibn Rassoul, Muhammad ibn Ahmad: Auszüge aus
dem Sahih Al-Buharyy, aus dem Arabischen übertragen und kom-
mentiert. [s.d.: s.l.] (www.arcelmedia.de).
SUYUTI, Dschalal ad-Din as-. Al-Itqan fi’ulum al-Qur’an. Ed. N. M. al-
Baz. Riad 1417/1996. 4 v.
TABARI, Muhammad Ibn-Garir at-. The History of al-Tabari. An annota-
ted translation (Ta’rikh al-rusul wa’l-muluk), übersetzt und kom-
mentiert William M. Brinner, Franz Rosenthal, Moshe Perlmann
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THA’LABI, Abu Ishaq Ahmad b. Muhammad an-Naisaburi ath-. Qi-
sas al-anbiya’, al-musamma ’ara’is al-madschalis (Prophetengeschich-
ten, genannt “Die Bräute der Versammlungen”). Beirut [s.d.]. Em
alemão: Islamische Erzählungen von Propheten und Gottesmännern: Qi-
sas al-anbiya’ oder ’ara’is al-madschalis von Abu Ishaq Ahmad b.
Muhammad b. Ibrahim ath-Tha’labi, übersetzt und kommentiert
Heribert Busse, Diskurse der Arabistik, 9. Wiesbaden, 2006.
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PRENNER, K. Muhammad und Musa. Strukturanalytische und theolo-
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Perikopen des Qur’ān, Studien 6. Altenberge, 1986.
SCHMITZ, B. Der Koran: Sure 2 „Die Kuh“. Ein religionshistorischer
Kommentar. Stuttgart, 2009.
SCHREINER, S. Der Dekalog der Bibel und der Pflichtenkodex für
den Muslim. Judaica 43, 1987, 171-184.
SIDERSKY, D. Les origines des légendes Musulmanes dans le Coran et dans les
vies des prophètes. Paris, 1933.
SPEYER, H. Die biblischen Erzählungen in Qoran. 3. Nachdruckauflage
der Ausgabe Gräfenhainichen 1931. Hildesheim, 1988.
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TOTTOLI, R. Biblical Prophets in the Qur’an and Muslim Literature, Cur-
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WATT, W. M. (BELL, R.). Bell’s Introduction to the Qur’ān, completely
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WHEELER, B. M. Moses in the Quran and Islamic Exegesis, Routledge
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———. Prophets in the Quran. An Introduction to the Quran and Mus-
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ZIRKER, H. Christentum und Islam. Theologische Verwandschaft und
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———. Islam. Theologische und gesellschaftliche Herausforderungen.
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