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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO

THAIS PADULA TROMBETA

SOBRE O ESPAÇO URBANO PATRIMONIALIZADO E PROCESSOS DE


GENTRIFICAÇÃO:
Estudo de caso da Rua Direita em Ouro Preto/MG

Ouro Preto
2020
THAIS PADULA TROMBETA

SOBRE O ESPAÇO URBANO PATRIMONIALIZADO E PROCESSOS DE


GENTRIFICAÇÃO:
Estudo de caso da Rua Direita em Ouro Preto/MG

ARQ 381: Trabalho Final de Graduação II. Trabalho Final


de Graduação apresentado ao Departamento de
Arquitetura e Urbanismo da Escola de Minas da
Universidade Federal de Ouro Preto – DEARQ/EM/UFOP,
como requisito para obtenção do título de bacharel em
Arquitetura e Urbanismo.

Orientadora: Profª. Drª. Monique Sanches Marques - UFOP


SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMAÇÃO

T849s Trombeta, Thais Padula.


TroSobre espaços urbanos patrimonializados e processos de
gentrificação [manuscrito]: estudo de caso sobre a Rua Direita em Ouro
Preto/MG. / Thais Padula Trombeta. - 2020.
Tro91 f.: il.: color., gráf., tab., mapa.

TroOrientadora: Profa. Dra. Monique Sanches Marques.


TroMonografia (Bacharelado). Universidade Federal de Ouro Preto. Escola
de Minas. Graduação em Arquitetura e Urbanismo .

Tro1. Patrimônio cultural - Comercialização. 2. Neoliberalismo. 3.


Mercantilismo. 4. Gentrificação. I. Marques, Monique Sanches. II.
Universidade Federal de Ouro Preto. III. Título.

CDU 711.4:719

Bibliotecário(a) Responsável: Sione Galvão Rodrigues - CRB6 / 2526


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
Universidade Federal de Ouro Preto
Escola de Minas
Departamento de Arquitetura e Urbanismo

ATA DE DEFESA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Em 15 de Dezembro de 2020, reuniu-se a banca examinadora do trabalho apresentado como Trabalho


de Conclusão de Curso Arquitetura e Urbanismo da Escola de Minas da UFOP, intitulado: SOBRE O
ESPAÇO URBANO PATRIMONIALIZADO E PROCESSOS DE GENTRIFICAÇÃO: Estudo de caso da
Rua Direita em Ouro Preto/MG, do aluno(a) THAIS PADULA TROMBETA.
Compuseram a banca os professores(as) MONIQUE SANCHES MARQUES ( Orientadora ), SIBELE
FERNANDA DE PAULA PASSOS ( Avaliadora 1 ) e MAURÍCIO LEONARD DE SOUZA ( Avaliador 2 ).
Após a exposição oral, o(a) candidato(a) foi argüido(a) pelos componentes da banca que reuniram-se
reservadamente, e decidiram, pela aprovação com a nota 9,5.

________________________________________
Orientador(a)

________________________________________
Avaliador 1

_______________________________________
Avaliador 2

Campus Universitário – CEP: 35400-000 – Ouro Preto – MG


Home page: http://www.em.ufop.br – E-mail: dearq@em.ufop.br – Fones: (0xx)31 3559-1484
RESUMO

Ouro Preto foi a primeira cidade brasileira reconhecida pela UNESCO como
Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1980. A patrimonialização da cidade irá trazer
mudanças para sua conformação socio espacial, principalmente, devido ao marketing
urbano ligado a sua imagem. Dessa forma, a cidade, apropriada pelo sistema
neoliberal, é mercantilizada e os produtores do espaço – motivados pelo poder do
capital – priorizam a fruição apenas para alguns usuários, que fomentam a indústria
cultural, deixando a população local em último plano e fragilizando não só as relações
de permanência, mas também de pertencimento com o espaço urbano. A partir do
estudo do TFG “Mudanças nas formas de uso em Espaços Urbanos
Patrimonializados: o caso da Rua Direita de Ouro Preto/MG” – de autoria de Sibele
Fernanda de Paula Passos e desenvolvido no DEARQ/UFOP, propomos aprofundar
na pesquisa do processo de gentrificação que está em curso na Rua Direita,
expulsando e distanciando a população local. Todavia, sabe-se que existem ouro
pretanos presentes na rua. O presente trabalho pretende questionar e entender em
que condições essas pessoas ali permanecessem, através da elaboração de uma
cartografia social para identificar quem são, em quais bairros residem, qual o tempo
de permanência e sua relação com a rua Direita, quais seus modos de uso e
apropriação cotidiana desse espaço urbano, suas lidas, lutas, resistências e táticas
de ocupação frente a lógica neoliberal.

PALAVRAS CHAVES – Patrimonialização, Neoliberalismo, Mercantilização,


Cartografia Social, Gentrificação, Rua Direita, Ouro Preto/MG
ABSTRACT

Ouro Preto was the first Brazilian city recognized by UNESCO as a Cultural
Heritage of Humanity in 1980. The heritage of the city will bring changes to its socio-
spatial conformation, mainly due to the urban marketing linked to its brand, which is
sold nationally and internationally. Therefore, the city, appropriated by the neoliberal
system, is commodified and the producers of space - motivated by the power of capital
- prioritize the enjoyment of the city only for some users, who foster the cultural
industry, leaving the local population in the background and weakening. not only the
relations of permanence, but also weakening the relations of belonging with the urban
space. From the TFG “Changes in the ways of use in Heritage Urban Spaces: the case
of Rua Direita de Ouro Preto / MG” - authored by Sibele Fernanda de Paula Passos,
it was possible to see the process of gentrification that is underway at Rua Direita,
expelling and distancing the local population. However, it is known that there are some
ouro pretanos still present on the street. This work intends to question and understand
under what conditions the neoliberal logic allowed these people to stay there, through
the elaboration of a social cartography to identify who they are, in which neighborhoods
they live, how long they stay and their relationship with Rua Direita.

KEY WORDS – Patrimonialization, Neoliberalism, Mercantilization, Social


Cartography, Gentrification, Rua Direita, Ouro Preto / MG
SIGLAS

CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna


FNRU – Fórum Nacional de Reforma Urbana
OMS – Organização Mundial da Saúde
PND – Plano Nacional de Desenvolvimento
PNDU – Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
TFG – Trabalho Final de Graduação
UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Inserção geográfica de Ouro Preto ............................................................ 20


Figura 2: Croqui demonstrando a evolução urbana de Ouro Preto, ilustrando os polos
de extração de ouro ao redor do caminho tronco. ..................................................... 22
Figura 3: Croqui que mostra o crescimento dos arraiais ao redor do caminho tronco,
conformando, gradualmente, a cidade de Ouro Preto. .............................................. 22
Figura 4: Mapa Crescimento da cidade ao redor do caminho tronco ........................ 23
Figura 5: Mancha urbana de Ouro Preto em 2004 .................................................... 26
Figura 6: Ouro Preto vista do centro histórico ........................................................... 27
Figura 7: Ocupação das encostas da cidade ............................................................ 27
Figura 8: Localização esquemática da Rua Direita no distrito sede de Ouro Preto... 30
Figura 9: Brasão da prefeitura de Ouro Preto representando os três importantes
morros com as freguesias mais ricas do século XVIII em seus vales ....................... 31
Figura 10: Rua Direita em Ouro Preto/MG. ............................................................... 31
Figura 11: Mapas demonstrando a modificação de usos entre os anos 2000 e 2018
.................................................................................................................................. 34
Figura 12: Mapas demonstrando mudanças nos tipos de comércios e serviços da Rua
Direita ........................................................................................................................ 35
Figura 13: A transversalidade pode acessar um plano comum e heterogêneo,
operando singularidades e subjetividades das diferenças ........................................ 39
Figura 14: Questionário Distribuído na Rua Direita, página 1.. ................................. 44
Figura 15: Questionário Distribuído na Rua Direita, página 2 ................................... 45
Figura 16: Questionário Distribuído na Rua Direita, página 3 ................................... 46
Figura 17: Ouropretano em uma das fachadas da Rua Direita durante a tarde ........ 47
Figura 18: Gráfico de raça/cor/etnia dos ouro-pretanos que trabalham na Rua Direita
.................................................................................................................................. 49
Figura 19: Tabela descrevendo os Níveis de Área Residencial do distrito sede de Ouro
Preto, de acorcordo com Costa (2011) ..................................................................... 50
Figura 20: Gráfico de trabalhadores da Rua Direita categorizados por Nível de Área
Residencial considerando raça/cor/etnia. .................................................................. 53
Figura 21: Vendedora de vassouras e rodos para limpar o teto de estabelecimentos,
divulgando seu produto na voz para os comerciantes numa quarta feira durante o
horário de almoço...................................................................................................... 55
Figura 22: Esquina com a Praça Tiradentes durante o dia em uma quarta feira,
pipoqueiro ausente. ................................................................................................... 56
Figura 23: Esquina com a Praça Tiradentes, durante um sábado a noite, pipoqueiro e
dona do milho trabalhando ........................................................................................ 56
Figura 24: Bar Satélite durante um sábado a noite. .................................................. 62
Figura 25: Correios, no início do mês com fila que vai até a rua e ao prédio vizinho.
.................................................................................................................................. 62
Figura 26: Ouropretana durante horário de intervalo, sentada à sombra no degrau de
um dos becos da rua Direita...................................................................................... 63
Figura 27: Ouropretana sentada em uma das fachadas, numa quarta feira, horário de
almoço ....................................................................................................................... 65
Figura 28: Rua Direita todos os dias da semana com muitos carros estacionados dos
dois lados da rua ....................................................................................................... 66
Figura 29: Retrato da edificação onde atualmente se encontra o Hotel Pousada Solar
da Ópera e o Ópera Café, na década de 1990 ......................................................... 69
Figura 30: Hotel Pousada Solar da Ópera em 2020, o hotel se instaurou no prédio
após revitalização em 2005 ....................................................................................... 69
Figura 31: Fachadas em 2009, estabelecimento Beijinho Doce e o Sótao. .............. 70
Figura 32: Fachadas em 2014, ambas edificações vazias e pouco conservadas. .. 70
Figura 33: Fachadas em 2019, ambas reviltalizadas, uma delas sem informação a
outra o estabelecimento Império Cacau. ................................................................... 70
Figura 34: Fachadas em 2020, novamente a primeira fachada passou por
revitalização, a segunda mudou o nome para Le Chalet .......................................... 70
Figura 35: Fachadas em 2013, comércios e serviços elitizados. Armazém Vila Rica
Queijos e Bellita Acessórios Boutique ....................................................................... 71
Figura 36: Fachadas em 2009, comércios e serviços populares, Kadura Presentes e
Loja de Roupas o Brasileirão .................................................................................... 71
Figura 37: Fachadas em 2009, restaurante Maximus e Kadura Presentes. .............. 71
Figura 38: Fachadas em 2007, comércios e serviços populares, lojas de roupas. ... 71
Figura 39: Fachadas em 2020, restaurante Mr. Cheff (antigo restaurante Máximus),
Armazém Vila Rica e Bellita Acessórios. ................................................................... 72
Figura 40: Fachadas em 2009, Itafotos e Casa Azevedo .......................................... 72
Figura 41: Fachadas em 2020, boutique Amuleto e loja de móveis Casa Azevedo. . 72
Figura 42: Postagens do Bar Barroco na rede social Facebook. .............................. 74
Figura 43: Parede do Barroco, "Ideias e expressões anônimas se unem e constroem
a originalidade do bar"............................................................................................... 74
Figura 44: Despedida do Bar Barroco da rua Direita, reunindo inúmeras pessoas e
enchendo a rua, 31 de setembro de 2014. ................................................................ 75
Figura 45: Seu Antônio, dono do Bar Barroco há 32 anos ........................................ 76
Figura 46: Fachada da Pousada Clássica em 2020. ................................................. 76
Figura 47: Interior do anexo da Pousada Clássica, antigo Barroco, um ambiente
homogeneizado e esterilizado.. ................................................................................. 77
Figura 48: Bar Barroco no dia da despedida, cheio de sorrisos, histórias, diversidade,
contrastes e vida. ...................................................................................................... 77
Figura 49: As famosas coxinhas do bar do Barroco.. ................................................ 78
Figura 50: Rua Direita em 2020, Pousada Clássica e anexo (antigo Barroco),
envidraçados. ............................................................................................................ 78
Figura 51: Ouropretana em seu local de trabalho em uma das fachadas da rua Direita.
.................................................................................................................................. 79
LISTA DE MAPAS

Mapa 1: Onde moram os ouropretanos que trabalham na Rua Direita .................... 54


Mapa 2: Você frequenta a Rua Direita para atividades de lazer? ........................... 58
Mapa 3: Você frequenta a Rua Direita para atividades de lazer? ............................ 59
Mapa 4: Que outros espaços você frequenta no Centro Histórico? ......................... 61
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 6
2 ESPAÇOS URBANOS PATRIMONIALIZADOS .................................................. 9
2.1 A Cidade Patrimonializada .......................................................................... 9
2.2 Processos de Gentrificação, Expulsão e Turistificação ......................... 14
2.3 A Rua Direita em Ouro Preto ..................................................................... 20
2.3.1 Evolução Urbana de Ouro Preto ............................................................ 20
2.3.2 Sobre Processos de Gentrificação na rua direita................................... 29
3 OS OURO-PRETANOS E A RUA DIREITA NA CONTEMPORANEIDADE ...... 37
3.1 A cartografia como Metodologia............................................................... 37
3.1.1 Construindo a cartografia social ............................................................ 40
3.1.2 Elaborando a Metodologia da Cartografia Social .................................. 41
3.1.3 COVID-19: sobre cartografar em épocas pandêmicas .......................... 41
3.2 Quem são os ouro-pretanos na Rua Direita ............................................ 47
3.2.1 Caminhos percorridos por ouropretanos que trabalham no espaço
urbano patrimonializado...................................................................................... 48
3.2.2 Atividades de fruição no território patrimonializado sob a ótica dos
trabalhadores ...................................................................................................... 56
3.2.3 Perspectivas dos moradores de Ouro Preto para a Rua Direita ............ 64
4 SOBREPOSIÇÕES E LEITURAS ...................................................................... 68
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 80
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 81
1 INTRODUÇÃO

Ouro Preto/MG foi tombada como Patrimônio Cultural da Humanidade em 1980


pela UNESCO, logo, a sua patrimonialização implica em mudanças nas relações sócio
espaciais e econômicas da população para com a cidade. Neste contexto, para o
desenvolvimento deste trabalho será utilizado como referência para o estudo o
Trabalho Final de Graduação intitulado “Mudanças nas formas de uso em Espaços
Urbanos Patrimonializados: o caso da Rua Direita de Ouro Preto/MG” – de autoria de
Sibele Fernanda de Paula Passos, trabalho orientado pela Prof.ª Dr.ª Sandra Antunes
Nogueira em 2018, ambas do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal de Ouro Preto. Neste estudo, foram abordados os processos
pelos quais a rua Direita vem passando, nas últimas décadas. Tais processos estão
relacionados a modificações quando se diz respeito ao uso dos espaços privados e
públicos da Rua Direita, e que acarretaram no distanciamento e expulsão da
população autóctone da rua, transformando não só as relações de permanência, mas
também de pertencimento da população ouro-pretana com esse espaço urbano.
Portanto, este trabalho pretende identificar quem são as pessoas de Ouro Preto ainda
presentes na Rua Direita e, assim, problematizar quais são suas relações com rua
diante do processo de gentrificação em curso.
Sendo assim, pretende-se identificar a população ouro-pretana atualmente
presente na rua Direita, diante dos processos de gentrificação em curso indicados e
problematizados no TFG “Mudanças nas formas de uso em Espaços Urbanos
Patrimonializados: o caso da Rua Direita de Ouro Preto/MG” – de autoria de Sibele
Fernanda de Paula Passos. Quem são os ouro-pretanos que ocupam a rua direita
hoje? Suas subjetividades e singularidades? Essa apropriação se dá na condição de
moradores, trabalhadores, transeuntes, outros? Portanto, trata-se de buscar
aprofundar na problematização dos processos de gentrificação da rua Direita e, assim,
entender em que condições os ouro-pretanos permanecessem na rua atualmente.
Para isso, foram utilizados referenciais teóricos sobre conceitos relacionados
ao Patrimônio (patrimonialização, gentrificação, turistificação, segregação sócio

6
espacial, cidades parque temático) e ao Planejamento Urbano no Brasil, além de
estudo sobre a evolução urbana de Ouro Preto e definição da cartografia como
método. Dessa maneira, no Trabalho final de Graduação 2 será elaborada uma
cartografia social, a partir de um trabalho de campo realizado na Rua Direita,
identificando quem são os ouro-pretanos presentes, hoje, na rua, qual o uso e sua
ocupação, seu local de origem/moradia e tempo de permanência na mesma. Após
finalizado o processo da cartografia, serão elaboradas sobreposições e leituras da
cartografia social realizada neste estudo com TFG utilizado como referência para este
trabalho e, assim, problematizar, não só em as relações de permanência da população
autóctone na rua Direita, mas também suas relações de pertencimento. O objetivo é
para além de reconhecer o processo de gentrificação já constatado no Trabalho da
Sibele Passos identificar que população ocupa hoje essa rua e dentre essa quem são
os ouro-pretanos, onde estão e quais atividades desenvolvem nessa rua.
Os conceitos contemporâneos de patrimônio cultural entendem a importância
da preservação para além do bem material e histórico, ou seja, o objeto por si só –
preservado – não se faz útil sem que haja pessoas que o utilizem, que o signifiquem;
a preservação de conjuntos urbanos se faz necessária para a população e para suas
gerações futuras. Logo, é necessário haver usuários que ressignifiquem e atualizem
suas relações com estes espaços, não só alguns usuários, pré selecionados por
critérios do sistema neoliberal, mas também a população da cidade como um todo.
Sendo assim, a partir do referido TFG sobre as mudanças nos usos da rua Direita nas
últimas décadas, foi possível constatar o processo de gentrificação que vem
ocorrendo, e concluiu-se que apenas uma pequena parcela da população – atores
selecionados pela indústria cultural – mantém relações de permanência para com a
rua, devido ao tipo de comércios e serviços que hoje a constituem. Entretanto, o
conceito de gentrificação pode ser aprofundado, já que foi possível observar que ainda
há moradores de Ouro Preto que permanecem na rua; todavia, estas pessoas estão
presentes da forma que a lógica neoliberal permitiu, como trabalhadores formais ou
informais. Portanto, cartografar quem são essas pessoas e onde moram na cidade,
corrobora para o entendimento sobre qual situação ainda estão presentes entre ouro-

7
pretanos e a rua Direita. Para quem o espaço urbano está sendo patrimonializado?
Existe justiça social no espaço urbano patrimonializado?

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2 ESPAÇOS URBANOS PATRIMONIALIZADOS

Cada vez mais, a patrimonialização dos espaços vem causando


transformações em sua conformação socio-espacial. Dessa forma, será explicado
como se construiu o conceito de patrimônio histórico e suas implicações no mundo
contemporâneo atual, estas são oportunizadas pelo o sistema neoliberal aliado ao
planejamento urbano e resguardadas pelas políticas preservacionistas, resultando em
fenômenos como a gentrificação, expulsão e turistificação.

2.1 A Cidade Patrimonializada

A importância da preservação das cidades se dá em um intervalo de quase


quatrocentos anos após as primeiras discussões sobre a preservação de monumentos
e objetos históricos, Ruskin, Sitte e Giovannoni foram os primeiros teóricos
responsáveis por introduzir os conceitos de preservação aplicados ao patrimônio
histórico.
A partir da segunda metade do século XIX, devido à Revolução Industrial, as
cidades começam a sofrer um intenso processo de urbanização, tendo como
consequências diversas mudanças em suas conformações. Por esse motivo,
começam a surgir preocupações para além da preservação de edifícios isolados e
bens móveis e integrados, inicia-se então a valorização de conjuntos e malhas
urbanas. Segundo Choay (2001), Ruskin foi um dos primeiros teóricos a iniciar a
discussão sobre preservação de cidades antigas.
Logo, Ruskin percebe que as cidades absorvem as características de seus
habitantes em relação ao espaço e tempo, e ainda “[...] são as garantias de nossa
identidade, pessoal, local, nacional, humana” (CHOAY, 2001, p.181). Entretanto,
observa-as sob uma ótica museal, apenas no sentido de preservar os tecidos urbanos
do passado para que estes permaneçam intocáveis. Ruskin acredita que se deva viver
estas cidades como na época em que foram concebidas, ou seja, sem considerar
como estes tecidos se relacionariam com as novas conformações morfológicas e
socioeconômicas da modernidade.

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Já no final do século XIX, o arquiteto e historiador Camillo Sitte lança seu livro
Städtebau, no qual aborda os conjuntos urbanos antigos de forma histórica, para ele,
enquanto a “cidade contemporânea é assumida em toda sua extensão e positividade”
(CHOAY, 2001, p.182), a cidade pré industrial torna-se obsoleta, pertencente ao
passado – em oposição a Ruskin, que defendia habitar esses espaços urbanos como
se fazia nos tempos antigos. Dessa forma, Sitte observa o papel histórico das cidades
antigas, todavia, no que diz respeito apenas ao seu valor estético, o que o leva a
realizar diversos estudos sobre plantas de malhas e sítios urbanos antigos,
observando seus traçados e vazios urbanos. Por esse motivo, ele será o fundador da
morfologia urbana, deixando em seu livro grandes contribuições para o urbanismo no
que diz respeito ao traçado urbano.
Foi a partir do século XX, que as cidades antigas passaram a ser observadas
de outra forma: as cidades param de ser preservadas como objeto museal – como
obra de arte em um museu –, e passam a ser consideradas como tecidos vivos. Ou
seja, as cidades antigas são vistas tanto para além da visão de Ruskin (a cidade como
figura memorial, conservada para ser imutável), quanto para além da visão de Sitte (a
cidade como figura histórica, utilizada como fonte para estudos). O teórico Giovannoni
foi pioneiro na utilização do termo Patrimônio Urbano, foi o responsável por sintetizar
a figura memorial e a figura histórica das cidades, atribuindo, ao mesmo tempo, o valor
de uso e o valor museal às cidades antigas, referindo-se a estas como ‘organismos
cinéticos’ (CHOAY, 2001). Portanto, Giovannoni evidencia a “conservação de
conjuntos antigos para a história, para arte e para a vida presente [...], a cidade do
presente e, mais ainda, a do futuro estarão em movimento.” (CHOAY, 2001, p. 195).
Assim, é nesse contexto que se concretiza a Carta de Atenas de 1931 (“a do
restauro”), a qual voltou-se à preservação e restauro do patrimônio, por isso,
ressaltava a importância de aspectos técnico-construtivos, aspectos legais e
princípios básicos da ação de conservação de conjuntos urbanos de forma oficial.
Porém, houve oposição do conselho formado por modernistas integrantes do CIAM1,

1O Congresso Internacional de Arquitetura Moderna foi fundado em 1928, na Suiça, por um grupo de
arquitetos modernistas com o objetivo de discutir as diversas instâncias da arquitetura, urbanismo e
10
pois contestavam os princípios da Carta e defendiam a destruição de malhas antigas
em prol da urbanização (com exceção de alguns monumentos considerados ícones).
Nesse mesmo ano, Giovannoni lança seu livro Vecchie città ed ediliza nuova, no qual
abordará sua doutrina de conservação e preservação do patrimônio urbano:

“Em primeiro lugar, todo fragmento urbano antigo dever ser integrado a um
plano diretor (piano regolatore) local, regional e territorial, que simboliza sua
relação com a vida presente. [...] Em seguida, o conceito de monumento
histórico não poderia designar um edifício isolado, separado do contexto das
construções no qual se insere, [...] o entorno do monumento mantém com ele
uma relação essencial. Finalmente, preenchidas essas primeiras condições,
os conjuntos urbanos antigos requerem procedimentos de preservação e
conservação análogos aos definidos por Boito para os monumentos [...] que
tem por objetivo essencial respeitar sua escala e sua morfologia [...]. Admite-
se, portanto, uma margem de intervenção limitada pelo respeito ao ambiente
[...].” (CHOAY, 2001, p. 200-201)

Nessa direção, percebe-se que Giovannoni procurou relacionar a preservação


do patrimônio urbano com o planejamento urbano, visto que considerava a cidade
como um organismo vivo, que existe, acontece e se desenvolve devido à vida
cotidiana de seus moradores. Então, ao criar o plano diretor – um instrumento que iria
ao mesmo tempo atuar, “do ponto de vista técnico, por um trabalho de articulação com
as grandes redes primárias de ordenação, e do ponto de vista humano, ‘pela
manutenção do caráter social da população’.” (CHOAY, 2001, p. 200) – pretendia,
com a ferramenta, integrar a proteção de bens patrimoniais com o planejamento
urbano, resguardando – em teoria – o direito à cidade2 para a população.
Entretanto, na Carta de Atenas de 1933 (defendida pelo CIAM), foi concretizado
e defendido o urbanismo racionalista, devido à um pensamento formulado por homens
brancos e burgueses, embasado na universalização e racionalização de
epistemologias cientificistas hegemônicas (CARON, etal, 2020). Dessa forma, a
produção da urbe se sedimentou cada vez mais excludente e fragmentada, baseando-
se em princípios neoliberais que garantiam a prosperidade, exclusivamente, devido à

design, além de difundir os conceitos do Movimento Moderno. Entre os fundadores estavam arquitetos
influentes da época como Le Corbusier e Hannes Meyer.
2 Para Léfèbvre (2001, p. 135), o “direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito
à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar”.

11
produção econômica. Portanto, foram propostas renovações em cidades
consolidadas, onde apontavam como solução para mobilidade, o automóvel. Assim,
os espaços urbanos foram sendo tornados, pouco a pouco, insustentáveis não só,
economicamente e sustentavelmente, mas também, socialmente, resultando em
cidades desiguais e injustas.
No ano de 1972, em Paris, é criada a Convenção à Proteção do Patrimônio
Mundial, Cultural e Natural, na décima sétima sessão da Conferência Geral da
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, adotada pela
Assembleia geral da UNESCO. Nesta Convenção, são criados parâmetros, diretrizes
e conceitos para regularizar a proteção do patrimônio em escala mundial, entendendo
que o patrimônio deveria ser de responsabilidade não só do Estado, em escala
nacional, mas também de toda a humanidade, para que assim, possa ser usufruído
pelas gerações futuras, acarretando, dessa maneira, em uma mundialização dos
valores e referências ocidentais – e também a democratização do saber –, culminando
na expansão do campo cronológico e tipológico do patrimônio. Sendo assim, os
países que validaram as diretrizes acordadas na Convenção, deveriam assumir o
compromisso de colaborar para a preservação, além de valorizar o patrimônio, já que
o mesmo seria de interesse da coletividade universal presente e futura.
Entretanto, com a mundialização das questões patrimoniais, começaram a
surgir questionamentos sobre a relação entre proteção do patrimônio cultural e o
direito à cidade, evidenciando se a proteção do patrimônio cultural contribui
efetivamente para o desenvolvimento das funções sociais da cidade, reascendendo
questões levantadas por Giovannoni há mais de quatro décadas. Para Simão,

“O tradicional critério de escolha dos bens a serem preservados, a


importância histórica e artística revelada na sua materialidade, funda uma
hegemonia incompatível com a diversidade e multiplicidade de valores
assumidos pelos diversos grupos sociais, além de romper com os significados
que esses objetos possuem no momento presente. O risco do agravamento
das vulnerabilidades, da não compreensão e, consequentemente, da
negação dos valores contidos nesses espaços é presumível.” (SIMÃO, 2016,
p. 21)

Ou seja, a cidade é conservada e recebe títulos patrimoniais por interesses do


Estado – muitas vezes pressionado e/ou incentivado por agenciamentos privados –,
respaldado por interesses relacionados a lógica mercadológica pelo regime do capital.
12
Dessa maneira, o espaço é valorizado quando pode gerar lucro, por isso, a vida
cotidiana, relações de convívio, vivência e pertencimento para com a cidade são
colocadas em último plano – ou ignoradas. Segundo Léfèbvre (2001, p. 6), “a cidade
e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a generalização
da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao subordiná-las a si, a cidade
e a realidade urbana”.
Assim, principalmente nos dias atuais, é possível perceber como a cidade
patrimonializada pode congelar a dinâmica da vida social, devido, principalmente, à
desvalorização de seu valor de uso, levantando questionamentos como ‘por que – e
ainda, para quem – é significativo a preservação da cidade?’. Dessa forna, é
importante ressaltar que a patrimonialidade não provém dos objetos, mas dos sujeitos
(Simão, 2016) e, por isso, suas narrativas e relações que deveriam ser levadas em
consideração quando se fosse pensar a conservação das cidades, esta não deveria
se basear nos interesses neoliberais. Para Viñas (2004, p. 152) “o patrimônio é aquilo
que os grupos ou pessoas convêm entender como tal, e seus valores não são já algo
inerente, indiscutível ou objetivo, senão algo que as pessoas projetam sobre eles”.
Assim, o objeto preservado por si só, não se faz útil sem que hajam pessoas que o
signifiquem e o ressignifiquem, para Cury um bem autêntico considerado patrimônio
seria

“quando há correspondência entre o objeto material e seu significado [...]. O


objeto para a preservação da memória e de seus referenciais culturais deve
ser estabelecido a partir da função de ele se prestar ao enriquecimento do
homem, muito além daquele material.” (CURY, 2000, p. 326)

Todavia, as motivações que levam à patrimonialização nos dias atuais, não


garantem ou resguardam o direito à cidade para a população, já que “a valorização
do Patrimônio Cultural é mais eficaz na sua qualidade como mercadoria do que na
sua capacidade de representar e interpretar vivências, memórias, identidades [...]”
(CAVALLAZZI, 2010, p. 136). Dessa maneira, a patrimonialização excessiva das
cidades acontece por motivos relacionados a lógica neoliberal, desconsiderando os
sujeitos e sua relação com a cidade.

“Por sua vez, os monumentos e o patrimônio histórico adquirem dupla função


– obras que propiciam saber e prazer, postas à disposição de todos; mas

13
também produtos culturais, fabricados, empacotados e distribuídos para
serem consumidos. A metamorfose de seu valor de uso em valor econômico
ocorre graças à ‘engenharia cultural’, vasto empreendimento público e
privado, a serviço do qual trabalham grande número de animadores culturais,
profissionais de comunicação, agentes de desenvolvimento, engenheiros,
mediadores culturais. Sua tarefa consiste em explorar os monumentos por
todos os meios, a fim de multiplicar indefinidamente o número de visitantes”
(CHOAY, 2001, p. 211)

Sendo assim, a mercantilização das cidades patrimonializadas – processo no


qual o valor de uso torna-se insignificante quando comparado ao valor de troca – é
fator determinante nas transformações socio espaciais das mesmas, trazendo
consequências para a população local devido à falta de justiça social, como os
processos de gentrificação, turistificação, financeirizações e outras formas de
expulsões inerentes as dinâmicas urbanas contemporâneas.

2.2 Processos de Gentrificação, Expulsão e Turistificação

O neoliberalismo – um processo tanto político, quanto econômico – instaurado


hoje no Brasil, e em grande parte do mundo, é um dos resultados de uma série de
mudanças causadas pela reestruturação produtiva do final do séc. XX. Segundo
Maricato (2009), essa reestruturação ocorre no final da década de 70, quando os
“anos gloriosos” – welfare state (1945 – 1975), os países capitalistas de primeiro
mundo passaram por um grande crescimento econômico – chegam ao fim. Portanto,
até 1980 a matriz de planejamento urbano instaurada nos países capitalistas era a
chamada matriz modernista/funcionalista, a qual “[...] atribuía ao Estado o papel de
portador da racionalidade, que evitaria as disfunções do mercado, como o
desemprego (regulamentando o trabalho, promovendo políticas sociais), bem como
asseguraria o desenvolvimento econômico e social [...]” (MARICATO, 2009, p. 126).
Sendo assim, essa matriz herdou não só parâmetros positivistas, focados no
progresso linear – iluminismo –, mas também parâmetros do fordismo e
keynesianismo, como o estado forte e o mercado de massas.
Entretanto, essa matriz será aos poucos desconstruída a partir de 1980, devido,
principalmente, ao desentendimento entre os interesses de massas trabalhadoras e
de grandes empresas capitalistas. Sendo assim, gradualmente, a política de

14
privatização de empresas públicas alastra-se pelos países capitalistas, e a
governança urbana é gradativamente substituída pelo empreendedorismo urbano.
Além disso, a globalização – fenômeno econômico, político e ideológico – irá acentuar
e contribuir para esse processo devido aos investimentos pesados de grandes
corporações. Com a reestruturação econômica, instaura-se o sistema neoliberal, o
qual é marcado pela descentralização do estado e afirmação do poder local, onde a
soberania do mercado prevalece, esta é favorecida não só pelas parcerias público
privadas, mas também pela auto gestão dos serviços coletivos. Portanto, a
reestruturação produtiva trás mudanças para as atividades econômicas, para a
composição tecnológica de produção, para as relações de trabalho e aumenta a
mobilidade do capital; todas essas mudanças irão implicar, necessariamente, em
mudanças urbanas e de produção do espaço:

“[...] há mudanças nas atividades econômicas, há mudanças na composição


tecnológica de produção, há mudanças na relação de trabalho, há uma
centralização no controle dos negócios e ao mesmo tempo a possibilidade do
espraiamento da produção pós-fordista, há o aumento na mobilidade do
capital, esses e outros argumentos justificam, portanto, as mudanças urbanas
e urbanísticas.” (MARICATO, 2009, p. 132)

Em contrapartida, os padrões internacionais, quando importados de realidades


completamente distintas, sem quaisquer adaptações ou considerações, acabam por
gerar pobreza e exclusão, como é o caso do Brasil. Sendo assim, a globalização
aumenta o gap existente entre os países ricos e pobres, devido à heterogeneidade
nas cidades e nos espaços intra urbanos, diminuindo a mobilidade social e
aumentando, não só a concentração do poder privado, mas também a segregação: “a
globalização é um fato. Mas é tudo, menos global” (Fiori, 1997). Para Maricato (2009),
os padrões de primeiro mundo foram aplicados a apenas uma parte da
cidade/sociedade e, por esse motivo, as cidades brasileiras foram marcadas por uma
modernização incompleta e excludente, como discute em seu livro “As ideias fora do
lugar e o lugar fora das ideias” (2009). A matriz modernista, importada pelo Brasil,
pode ser colocada como matriz postiça ou “plano discurso”; ou seja, o plano marcado
pelo estado centralizado com políticas sociais e distribuição de renda não ocorre de
forma efetiva no país. Entre 1875 e 1906, o planejamento urbano será regido pela elite
brasileira, a qual foi responsável pelos planos de obras urbanas, porém, seu objetivo
15
principal era o embelezamento e melhoramento das cidades (como exemplo, pode-se
citar a Reforma de Pereira Passos3, no Rio de Janeiro, em 1903).
Já na década de 1930, quando é instaurada a Era Vargas, segundo Maricato
(2009) “a cidade da produção precisa ser eficaz”, sob liderança da burguesia urbana,
o planejamento cresce em novos âmbitos para além da estética, como a eficiência e
a técnica – principalmente em obras viárias –, ainda sem atenção aos problemas
sociais ligados à cidade. Todavia, a época em que mais irá se desenvolver o
planejamento urbano no Brasil será durante a ditadura militar, a partir de 1964, quando
foi instaurada a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), prevista no II
Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), elaborado em 1973.
Entretanto, “a maior parte desses planos foi elaborada por especialistas pouco
engajados na realidade sociocultural local. A população não foi ouvida e,
frequentemente, nem mesmo os técnicos municipais.” (MARICATO, 2009, p. 139). A
partir dos anos 1980, com a reestruturação produtiva nos países de primeiro mundo,
as classes dominantes brasileiras – após o fim da ditadura militar, os sindicatos de
trabalhadores urbanos emergem na cena política – entendem que precisam se
adequar à esse contexto. Portanto, o FNRU4 foi o responsável por garantir alguns dos
direitos à cidade na Constituição de 1988, mas apenas no eixo legislativo, sendo
pouco eficaz na prática.
Ou seja, o planejamento urbano no Brasil – principalmente por ser baseado em
padrões que fogem à realidade da desigualdade social brasileira – não acompanha a
produção do espaço urbano, ou acompanha de forma excludente, deixando à margem
as minorias sociais. Para Harvey (2005), essas dinâmicas são atenuadas pela
governança urbana, ou seja, a substituição da dinâmica administrativa urbana pelo
empreendedorismo urbano, que ocorreu devido à transição do capitalismo de um

3 A Reforma de Pereira Passos tinha como objetivo retirar a população pobre local de seus cortiços
para construir grandes avenidas inspiradas no padrão europeu, o que culmina na Revolta da Vacina,
liderada justamente por essa população contra as mudanças propostas pelo governo

4 Fórum Nacional de Reforma Urbana entidade formada por setores da igreja católica (tendência
progressista), setores não governamentais e técnicos de assessoria aos movimentos sociais urbanos
e lideranças dos movimentos urbanos, bastante ativa nos anos 80 (Maricato, 2009)
16
regime fordista-keynesiano para um sistema neoliberal após os processos de
globalização, tendo como consequência cidades administradas de acordo com os
interesses do capital.
Dessa maneira, o que acontece no Brasil nos dias atuais é um planejamento
estratégico, ligado ao marketing urbano e a imagem que as cidades representam
nacional e internacionalmente, já que os produtores do espaço não pretendem
resguardar o direito à cidade (LÉFÈBVRE, 2001) e sua consequente fruição para a
população local, mas estão interessados no lucro que pode ser obtido a partir da
espetacularização urbana e mercantilização das cidades – consequência do
neoliberalismo e da indústria cultural.
Assim sendo, o que as cidades representam foi ressignificado pelo poder do
capital, já que estas são consideradas uma unidade relevante para a formação das
riquezas das nações (JACOBS, 1984). Por esse motivo, o marketing sobre as cidades
é de grande importância para os interesses do regime neoliberal, pois o turismo
gerado pelo status associado àquela cidade garante, não só o lucro para os
investimentos das empresas do setor privado, mas também retorno financeiro para as
diferentes instâncias estatais. Isso ocorre, inclusive, em cidades patrimonializadas,
como é o caso de Ouro Preto, referenciada pela mídia por ser Patrimônio Cultural da
Humanidade, lê-se patrimônio cultural como a “dimensão aurática5 da herança
material e imaterial transmitida de geração em geração” (CRUZ, 2012, p. 95), dessa
maneira, a cidade é posta como um produto mercadológico,

“É evidente que a publicidade insistente e a mídia, de um modo geral, têm um


papel especial na dissimulação da realidade do ambiente construído e na
construção da sua representação, destacando os espaços de distinção. É
evidente também que a representação ideológica é um instrumento de poder
– dar aparência de ‘natural’ e ‘geral’ a um ponto de vista parcial, que nas
cidades está associado aos expedientes de valorização imobiliária. A
representação da cidade encobre a realidade científica.” (MARICATO, 2009,
p. 165)

5 Aurática é um termo utilizado por Walter Benjamin em seu ensaio “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, publicado em 1935. Adorno (1988) coloca que, em relação à definição de
Benjamin, a aura “pertence ao sentido da obra de arte, da aparência estética, ser aquilo em que se
converteu, na magia do primitivo, o novo e terrível: a manifestação do todo no particular”. Ou seja, as
obras de arte originais irão possuir, cada uma, sua própria aura, de acordo com sua autenticidade
(Martins, 2013).
17
A visão hegemônica da representação ideológica das cidades na mídia prioriza
as demandas de empresas privadas – com o objetivo de obter lucro para seus
investimentos através do turismo e da indústria cultural – em detrimento das
demandas de populações locais. Portanto, “a globalização do capital, que estimula a
competição entre cidades, traz como um dos produtos finais a fragilização do
planejamento urbano, que possibilitaria uma política com maior equidade social e
fortalece o planejamento estratégico, que por sua vez favorece as empresas.”
(PASSOS, 2018, p. 40-41).
Portanto, a patrimonialização das cidades gera diversas inconsistências para
seus habitantes, principalmente, quando observa-se as relações entre a proteção do
patrimônio cultural e o direito à cidade. O espaço público patrimonializado tornou-se
uma mercadoria cultural passível de apropriação pelo capital, desenvolvendo as
funções sociais da cidade seletivamente de acordo com os interesses neoliberais –
de forma que a sua fruição seja garantida apenas à alguns atores sociais. É possível
observar a prioridade dada à fruição dos turistas nos centros culturais em detrimento
da fruição da população local, já que a ‘venda’ da experiência cultural da cidade será
rentável para a mesma, isto é, a mercantilização do espaço é uma “estratégia para o
desenvolvimento da economia global que visa o capital e desconsidera o social”
(PASSOS, 2018, p. 20). Segundo Jacques,

“A memória da cultura local – que deveria ser preservada – se perde, e em


seu lugar são criados cenários para turistas. Na maior parte das vezes, a
própria população local, responsável e guardiã das tradições culturais, é
expulsa do local da intervenção pelo processo de gentrificação.” (JACQUES,
2004, p. 24-25)

A gentrificação – processo de substituição da população local por outras


populações, que pode ter como consequência a substituição de usos –, surgiu de
forma espontânea devido ao interesse de intelectuais de classe média por alguns
bairros marginalizados e de baixo poder aquisitivo de Greenwich Village e Soho em
Nova Iorque, e depois foi se expandindo globalmente. Entretanto, essa substituição,
mesmo que em pequena proporção, ao ser notada pelo mercado imobiliário – que
observa uma oportunidade de lucro –, transforma-se em um mecanismo de
18
especulação. Por esse motivo, os preços do mercado elevam-se cada vez mais,
causando, gradativamente, a expulsão da população local de seu próprio bairro. De
acordo com Silva (2006),

“Smith nos conta que o processo em Nova Iorque começa de forma pontual
e esporádica, por artistas que instalam seus ateliês e passam a viver em
bairros como Greenwich Village e Soho desde os anos cinquenta e sessenta
(primeira onda). É posteriormente assumido pelos promotores imobiliários,
que obtêm enormes lucros (segunda onda). E, finalmente, se torna uma
estratégia da cidade, atingindo todos os bairros antigos populares (terceira
onda)” (SILVA, 2006, p.9

Assim, a gentrificação ocorre nos espaços urbanos patrimonializados, em um


primeiro momento, como consequência de revitalizações de áreas que se
encontravam em processo de degradação; a substituição da população local por
populações com maior poder aquisitivo, torna-se consequência da recuperação do
patrimônio. Porém, a partir de 1980 – quando a globalização se intensifica e o
neoliberalismo concretiza-se com mais força ao redor do globo devido à
mundialização dos valores e referências ocidentais – esse processo deixa de ser um
acontecimento meramente espontâneo e será induzido pelos produtores do espaço.
Para Jacques (2004), a mercantilização espetacular das cidades patrimonializadas e
centros históricos culturais leva à petrificação ou pastiche do espaço urbano, além de
fenômenos como a museificação – pedaços de cidades tornam-se museus e deixam
de ser consideradas organismos vivos e mutáveis –, ocorrem também processos que
levam a produção de cidades parque temáticos e a disneylandização urbana – cidades
fabricadas para turistas, sem vida espontânea ou participação da população local. Na
perspectiva situacionista6, existe uma relação inversamente proporcional entre,
participação popular e espetacularização urbana: “somente através de uma

6 O pensamento situacionista sobre a cidade ou a Internacional Situacionista constituiu-se por um grupo


de artistas, pensadores e ativistas liberados pelo cineasta Guy Débord nos anos 1950 que lutavam
contra o espetáculo, a cultura espetacular e a ‘espetacularização’ em geral, ou seja, contra a não-
participação, a alienação e a passividade da sociedade. O principal antídoto contra o espetáculo seria
o seu oposto, a participação ativa dos indivíduos em todos os campos da vida social e principalmente
naquele da cultura. O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas é uma consequência da
importância dada por estes ao meio urbano como terreno de ação, de produção de novas formas de
intervenção e de luta contra a monotonia, ou ausência de paixão, da vida cotidiana moderna. A
Internacional Situacionista pretendia novas propostas de apropriação da cidade por meio da
participação ativa de seus habitantes. (MARQUES, 2010, p.93)
19
participação efetiva o espaço público pode deixar de ser cenário e se transformar em
verdadeiro palco urbano: espaço de trocas, conflitos e encontros.” (JACQUES, 2004,
p.27-28).

2.3 A Rua Direita em Ouro Preto

Nesse contexto, Ouro Preto, como cidade patrimonializada, tem seus espaços,
principalmente, o centro histórico – foco da mídia e do turismo – alvo da
espetacularização urbana. Por isso, a Rua Direita, devido ao status adquirido frente à
indústria cultural pelo seu valor de troca, vem sofrendo mudanças em sua
conformação social espacial. Além disso, a mercantilização da cidade acarreta em
injustiças sociais nas dinâmicas urbanas, não garantindo à toda a população o direito
à cidade, resultando em processos como a gentrificação observada na Rua Direita,
pelo TFG “Mudanças nas formas de uso em Espaços Urbanos Patrimonializados: o
caso da Rua Direita de Ouro Preto/MG” – de autoria de Sibele Fernanda de Paula
Passos e desenvolvido no DEARQ/UFOP. Para entender esses processos, faz-se
necessário estudar como Ouro Preto surgiu e sua evolução urbana ao longo do tempo.

2.3.1 Evolução Urbana de Ouro Preto

Figura 1: Inserção geográfica de Ouro Preto, mapas ilustrativos do Brasil, Minas Gerais e Ouro Preto.
Fonte: Própria autora

Ouro Preto surgiu no início do século XVIII, com a exploração do ouro no interior
do Brasil, sua ocupação foi espontânea com um traçado irregular, poli-nuclear e
contorno indefinido, seguindo as características de grande parte das primeiras cidades

20
brasileiras devido à sua colonização portuguesa. Essas características foram ainda
agravadas no caso de Ouro Preto devido à sua topografia extremamente íngreme e
desfavorável à ocupação. Por esse motivo, a linearidade da cidade foi uma
consequência, já que cresceu ao longo de uma antiga estrada a qual ligava as
freguesias locais, perpassando por três morros, Cabeças, Santa Quitéria e Santa
Efigênia. Ao vale destes, próximo aos cursos d’água, e ao redor de pequenas capelas
desenvolveram-se as freguesias mais ricas, principais polos de extração de ouro:
Antônio Dias e Pilar (Figura 2). Devido à extração intensa do minério, a cidade se
desenvolveu rapidamente ao redor desses pequenos núcleos que, gradativamente,
se uniram ao longo do caminho tronco (Figura 3), tendo como consequência um
crescimento populacional acelerado. Em 1721, a antiga Vila Rica – nome sugestivo à
grande quantidade de ouro encontrada na cidade – torna-se capital de Minas Gerais,
devido à magnitude que atinge em tão pouco tempo. Por esse motivo, a conformação
urbana da cidade também sofre modificações:

“[...] não é difícil imaginar o importante papel desempenhado pelos espaços


públicos – ruas e praças –, palcos de grande parte das atividades econômicas
e sociais do período. Se inicialmente são simples caminhos, que ligam polos
de ocupação de mineiros, à medida em que as cidades crescem, as ruas
tornam-se locais de permanência, de contato e de discussão. Até seu aspecto
plástico modifica-se com sua nova importância: as casas passam a ser feitas
para serem vistas, e as fachadas que dão para elas ganham maior destaque.
Consolida-se, assim, a fisionomia de nossas cidades coloniais: uma
sequência de ruas irregulares, constituídas, como num cenário, por fileiras de
casas construídas sobre o alinhamento e os limites laterais dos terrenos,
formando superfícies contínuas.” (CASTRIOTA, 2009, p. 134)

21
Figura 2: Croqui demonstrando a evolução urbana de Ouro Preto, ilustrando os polos de extração de
ouro ao redor do caminho tronco. Fonte: VASCONCELOS (1956).

Figura 3: Croqui que mostra o crescimento dos arraiais ao redor do caminho tronco, conformando,
gradualmente, a cidade de Ouro Preto. Fonte: VASCONCELOS (1956).

Todavia, no início do século XIX, Ouro Preto, aos poucos, é empobrecida, já


que há a decadência na exploração do ouro devido ao seu esgotamento gradual e,
consequentemente, perde seu status. Portanto, após a perda de sua vitalidade
econômica, a cidade irá se consolidar, não só através de atividades administrativas –

22
colocadas em primeiro plano, seguidas pelas comerciais e manufatureiras –, pois
mantém seu título de capital de Minas Gerais; mas também através de atividades
institucionais, visto que, em 1875, a Escola de Minas é instaurada na cidade,
contribuindo para a formação técnica e acadêmica no país.
Após a proclamação da República em 1889, quando é instaurada a República
Velha, o país irá resgatar características positivistas, principalmente no que diz
respeito à políticas públicas, visando “ordem e progresso”, como uma dessas
consequências, a capital será transferida para Belo Horizonte, em 1897. É nesse
momento que Ouro Preto sofrerá uma perda de quase metade de sua população,
passando de 17.860 habitantes para menos de 10.000 (Castriota, 2009). Sendo
assim, a conservação do patrimônio da cidade de Ouro Preto – maior conjunto com
tipologia urbana e arquitetônica do século XVIII no Brasil – será, a princípio, uma
consequência de seu esvaziamento populacional, visto que as discussões sobre
preservação do patrimônio só irão se iniciar no país a partir do século XX.

Figura 4: Nesse mapa é possível perceber o crescimento da cidade ao redor do caminho tronco,
principalmente, no século VXIII, ápice da atividade mineradora, antes da decadência de sua vitalidade
econômica ao final do sec. XIX, quando perde quase metade de sua população. Fonte: OLIVEIRA,
SOBREIRA (2015).

23
A partir de 1920, com o movimento modernista brasileiro, é que as questões
preservacionistas são colocadas em pauta, devido, principalmente, ao forte
nacionalismo ligado ao movimento. Segundo Castriota,

“É nesse período também que a temática da preservação do patrimônio –


expressa como preocupação com a salvação dos vestígios do passado da
Nação, e, mais especificamente, com a proteção dos monumentos e objetos
de valor histórico e artístico, começa a ser considerada politicamente
relevante no Brasil, implicando no envolvimento do Estado. [...] No caso
brasileiro, cabe notar uma peculiaridade: não vão ser os setores
conservadores, mas alguns intelectuais modernistas que elaboram e
implementam as políticas de preservação do patrimônio. Neste sentido, é
importante lembrar que o modernismo, movimento renovador da cultura no
Brasil, teve como característica geral, ao lado de uma crítica exacerbada à
arte acadêmica, tradicional, a busca de raízes, colocando como parte de sua
agenda a questão da identidade nacional.” (CASTRIOTA, 2009, p. 137-138)

Após 1930, tem-se o início da Era Vargas no Brasil, e foi um período que
buscou estabelecer uma política cultural a partir do Estado, onde alguns dos
intelectuais progressistas do movimento moderno se envolveram com questões de
política urbana (sob a hegemonia da burguesia composta majoritariamente por
homens brancos), além de permanecer forte a questão da identidade nacional. Apesar
disso, nenhuma medida efetiva é tomada em relação a proteção do patrimônio nesse
período. Em contrapartida, no restante do mundo as discussões patrimoniais já estão
avançadas, em 1931 é publicada a Carta de Atenas (“a do restauro”), ressaltando,
principalmente, a importância de preservar conjuntos urbanos.
Entretanto, no Brasil, a primeira ação em relação à proteção do patrimônio
acontece em 1933 quando a Inspetoria de Monumentos Nacionais declara Ouro Preto
como um Monumento Nacional, contudo, o caráter desta declaração é apenas
simbólico, já que nenhum direito legal é garantido através da mesma. Dessa maneira,
a primeira ação efetiva ocorreu em 1937, após a criação do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – SPHAN –, quando foi atribuído à este órgão
instrumentos legais para garantir a preservação dos monumentos históricos, sendo o
instrumento central o tombamento, “a consequência central deste procedimento legal
foi permitir ao SPHAN tanto prevenir danos ou demolições dos bens tombados quanto
controlar a introdução de novas edificações no sítio protegido” (CASTRIOTA, 2009, p.
140).
24
Apesar de receber o tombamento pelo SPHAN a partir de 1938, apenas o ‘valor
artístico’ de Ouro Preto foi colocado como objetivo para sua preservação,
considerando a cidade como ‘obra de arte’, com o intuito de congelá-la, ignorando
completamente a história local e a população residente. Segundo Lia Motta “esvaziada
economicamente, a cidade foi usada como matéria-prima para um laboratório de
nacionalidade de inspiração modernista, deixando as populações que lá moravam
subordinadas a esta visão idealizada, não sendo elas sequer motivo de referência”
(MOTTA, 1987, p.8). Além disso, com o tombamento e a busca por símbolo
arquitetônico nacionalista – segundo os ideais modernistas, as cidades coloniais
barrocas – fez com que a cidade fosse homogeneizada, retirando representações do
século XIX, o maior exemplo é a fachada do Cine Vila, já que a platibanda eclética foi
removida e substituída por um telhado colonial. Segundo Castriota,

“[...] na busca de um símbolo nacional, o SPHAN passa a executar uma ação


de homogeneização da imagem da cidade, eliminando grande parte das
transformações urbanas e arquitetônicas mais recentes e, com elas,
importantes referências da história local. Assim, inicia-se uma ação
sistemática de apagamento do século XIX, com a exigência na aprovação de
projetos de reforma, da retirada de elementos da arquitetura neoclássica ou
eclética, como frontões e platibandas.” (CASTRIOTA, 2009, p.142)

Todavia, a produção do espaço e a dinâmica urbana mudou drasticamente em


Ouro Preto a partir de 1950, quando a Alcan – indústria de extração de alumínio – se
instaura na cidade. Essa mudança retomou a vitalidade econômica da cidade, tendo
como consequência um grande aumento populacional, abrangendo 28.229 habitantes
em 1960 (COSTA, 2011, p. 331). Assim, uma cidade que estava congelada devido à
padrões preservacionistas, com objetivos artísticos, não consegue absorver, dando
início a um processo de periferização. Por esse motivo, as populações de baixa renda
começaram a ocupar áreas irregulares de encostas e alto risco geológico, devido à
falta de abrangência de um planejamento urbano integrado com as políticas
preservacionistas que garanta direitos mínimos de moradia a essas populações
vulnerabilizadas. Segundo Simão, “o adensamento urbano, principalmente, a
ocupação da paisagem envoltória do núcleo antigo, ocorreu descolado da ação do
estado, em áreas de risco geológico potencial, carente de infraestrutura urbana e de
equipamentos públicos” (SIMÃO, 2016, p. 116). Além disso, o próprio centro histórico
25
sofre mudanças em sua conformação sócio espacial, já que também passa por um
adensamento significativo, com a ocupação de lotes vagos e remanejamentos
internos. Ou seja, por não considerar a cidade um organismo vivo “[...] as políticas de
preservação aí implementadas nunca puderam incorporar de fato esses novos
agentes, não conseguindo elaborar estratégias que lograssem compatibilizar
preservação e desenvolvimento” (CASTRIOTA, 2009, p. 147).

Figura 5: Mancha urbana de Ouro Preto em 2004, onde já existiam bairros consolidados em áreas
periféricas da cidade, em grandes encostas e de alto risco geológico, como por exemplo Morro
Santana e São Cristóvão. Fonte: OLIVEIRA, SOBREIRA (2015)

26
Figura 6: Ouro Preto vista do centro histórico. Disponível em
<https://www.odonto.ufmg.br/cenex/noticias/7-congresso-brasileiro-de-extensao-universitaria-
inovacao-e-emancipacao/>, acesso dezembro de 2019.

Figura 7: Ocupação das encostas da cidade, que existe para além do centro histórico e cresce
diariamente apesar do congelamento imposto pelas políticas patrimoniais. Fonte: disponível em <
https://www.brasildefato.com.br/2016/09/02/expansao-desordenada-coloca-ouro-preto-em-risco/>,
acesso em dezembro de 2019.

27
Outra condicionante que trouxe mudanças para Ouro Preto é o turismo de
massa, que começa a criar interesse pela a cidade não só pelo seu ‘valor artístico’,
mas também pelo seu ‘valor histórico’. Ou seja, Ouro Preto começa a ser alvo da
indústria cultural, principalmente, após os anos 60 quando o Festival de Inverno7, e
outros eventos sazonais, começam a acontecer, atraindo público do Brasil e do mundo
para adquirir experiências culturais possibilitadas pela vivência na cidade. Porém, o
“turismo cria impactos na vida cotidiana da cidade, com a redefinição de usos e
ocupações de algumas áreas do centro histórico e a transformação de habitações em
hotéis ou estabelecimentos comerciais” (CASTRIOTA, 2009, p. 146). Em 1980, é a
primeira cidade a ser reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Cultural da
Humanidade, elevando seu status nacional e internacionalmente, além de utilizar essa
imagem para promover e intensificar o marketing urbano – como já visto
anteriormente, processo desenhado pelo mundo globalizado com o objetivo de
aumentar a competição entre as cidades, onde produtores de espaço são motivados
pelo valor de troca dos centros históricos, com o objetivo de atrair cada vez mais
turistas, garantindo retorno para os investimentos privados e estatais.
Após receber o título de Patrimônio Cultural, Ouro Preto, que já vinha
construindo uma imagem de memória nacional desde 1920, com o movimento
modernista, tem essa marca consolidada e reconhecida internacionalmente. Esta
memória é importante para o capital, pois é ela que irá construir a imagem de cidade,
que será comercializada internacionalmente e vendida pela mídia. Esta, retrata a
cidade, principalmente, pela Praça Tiradentes e pela Rua Direita. Assim, o centro
histórico recebe políticas preservacionistas que tem como objetivo preservar o
conjunto, principalmente, pelos interesses ligados ao valor de troca da cidade. Por
consequência, “[...] muitas vezes, para se criar um símbolo nacional, apagam-se as
marcas da história local, que foram se sedimentando ao longo dos anos”
(CASTRIOTA, 2009, p. 131), ou seja, as políticas preservacionistas são

7Festival de Inverno foi organizado pela Universidade Federal de Minas Gerais até 1979, tendo como
objetivo promover atividades artísticas e culturais, principalmente ligadas à liberdade de expressão e
autonomia, em um contexto político desfavorável. Sendo retomado na década de 1990, pela
Universidade Federal de Ouro Preto, dando continuidade ao caráter educacional, artístico, cultural,
social e econômico, lidando com a realidade política atual.
28
acompanhadas de um planejamento estratégico. Logo, o planejamento urbano – que
poderia minimizar as consequências desse sistema, preservando a tradição da
população local, seguidas por suas particularidades e individualidades – é colocado
em último plano.
“conservada quase intacta graças à estagnação econômica, a cidade vai ser
objeto desde a década de 1930 de políticas de preservação que, se, por um
lado conseguiram manter o conjunto, por outro, criaram um objeto idealizado,
desconsiderando a histórica local e afastando a população da cidade.”
(CASTRIOTA, 2009, p .131)

A rua Direita é um dos principais focos do marketing urbano de Ouro Preto


devido à sua localização na cidade e consequente relevância histórica para a
construção da cidade. Por esse motivo, a rua é apropriada pela indústria cultural –
fomentada pelo turismo e investimentos dos setores privados –, transformando
completamente as relações socio espaciais da população local com a mesma.

2.3.2 Sobre Processos de Gentrificação na rua direita

A rua Conde de Bobadela, mais conhecida como Rua Direita, sempre foi uma
rua importante para a conformação socio morfológica da cidade. Como já falado
anteriormente, Ouro Preto se desenvolveu ao redor de arraiais que eram responsáveis
pela extração do ouro, os dois mais relevantes, Antônio Dias e Pilar, com o morro de
Santa Quitéria entre eles, ligados por uma estrada linear que será denominada de
caminho tronco. Portanto, com o passar do tempo o morro de Santa Quitéria se
tornará a atual Praça Tiradentes que, diferente das outras praças, que se localizavam
próximo as igrejas8 – representando locais de fruição, lazer, convívio e atividades
cotidianas da população –, esta terá um caráter político e não representando um
espaço de vida social. Isto ocorre devido à instalação do Palácio do Governo na praça,
em 1741, uma edificação de arquitetura militar como uma tentativa de controle da

8 O Brasil, por ser uma colônia portuguesa, terá a religião católica como um forte instrumento de
conformação socio espacial das cidades brasileiras. Por esse motivo, a vida cotidiana do século XVIII
acontecia, principalmente, entorno das capelas e Igrejas, ou seja, estas irão atuar como articuladoras
do espaço (geralmente associadas a uma praça), sendo suas localizações significativas para entender
as cidades, a paisagem urbana e a vida social. (Castriota, 2009)
29
cidade devido à magnitude de sua vitalidade econômica na época. Assim, a praça
instaurada no alto do morro ligava-se às freguesias através do caminho tronco, dando
origem a duas das mais importantes ruas da cidade: a rua Esquerda, que descia da
Praça Tiradentes para a Igreja do Antônio Dias, e a rua Direita, que descia da praça
para a Igreja do Pilar.

Figura 8: Localização esquemática da Rua Direita no distrito sede de Ouro Preto. Fonte: Própria
autora.

30
Figura 9: Brasão da prefeitura de Ouro Preto representando os três importantes morros com as
freguesias mais ricas do século XVIII em seus vales. Fonte: Própria autora.

Figura 10: Rua Direita em Ouro Preto/MG. Disponível em


<https://mulheralienigena.blogspot.com/2016/06/personagens-de-ouro-preto-1-solitaria.html>, acesso
dezembro de 2019.

Dessa maneira, devido à sua localização, a rua Direita foi palco de diversas
apropriações ao longo do tempo, principalmente, após a década de 1950, com o
adensamento populacional e o turismo cultural, fatores que foram determinantes para

31
as mudanças de usos nas edificações da rua. Para entender essas mudanças, será
utilizado como base de estudo o Trabalho Final de Graduação apresentado ao
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Ouro Preto,
“Mudanças nas formas de uso em Espaços Urbanos Patrimonializados: o caso da Rua
Direita de Ouro Preto/MG”, de autoria de Sibele Fernanda de Paula Passos, orientado
pela professora Dr.ª Sandra Maria Antunes Nogueira.
O estudo realizado por Passos foi um mapeamento de usos de todas as
edificações presentes na rua Direita dos anos 2000 até 2018, a partir de levantamento
de dados que possibilitaram a confecção de mapas de uso dos anos 2000, 2005, 2009,
2011, 2014 e 2018. Para isso, foi efetuado o cruzamento de dados coletados utilizando
listas telefônicas (2000 a 2017), pesquisa iconográfica (imagens de 2000 a 2018) e
levantamento de campo (2018), além do aplicativo Google Maps, que tem disponível
informações da Rua Direita entre 2007 e 2017. O principal objetivo era entender em
qual medida o poder do capital vem refletindo no distanciamento da população
autóctone da rua.
De acordo com o levantamento realizado, concluiu-se que houve uma
substituição (figura 12) de comércios e serviços populares por estabelecimentos
voltados para um público de maior poder aquisitivo: os primeiros (TIPO 01) devem ser
entendidos como estabelecimentos com a oferta de produtos mais acessíveis sob a
ótica do capital monetário, para além dos valores cobrados, foram considerados o tipo
de produto, se este é caracterizado como de consumo cotidiano; já os últimos (TIPO
02), são estabelecimentos com a oferta de produtos com valores mais elevados, assim
também como especificidades que fomentam a indústria cultural. Portanto, saíram da
rua Direita estabelecimentos como um supermercado, duas lojas de fotografias,
acessórios e presentes, seis lojas de roupas populares, três bares, sendo substituídos
por lojas de artesanato, joias, serviços de hotelaria, cafés e restaurantes. Um
crescimento gradual e constante de estabelecimentos elitizados e franquias (apesar
de acessíveis monetariamente, estas homogeneízam a paisagem e a relação com o
espaço o urbano).
Passos (2018) parte da premissa que os usos das edificações é um dos fatores
que determina quais sujeitos irão utilizar aquele espaço urbano. Por esse motivo,

32
quando se esvaem, com o passar do tempo, os estabelecimentos populares da rua
Direita, acontecem transformações nas relações socio espaciais dos moradores com
a mesma. Já que os produtores do espaço – motivados pela lógica neoliberal e
resguardados pelo espaço patrimonializado fomentador da industrial cultural –
privilegiam a fruição de apenas alguns atores sociais, como os turistas.

“Em meados do século XX e início do século XXI, a Rua Direita foi apropriada
pelos moradores de Ouro Preto, que significaram este espaço sobre a ancora
de usos que estabeleciam atividades da vida cotidiana urbana e de
entretenimento. Entretanto, quando se identifica a saída de lojas de roupas
para a entrada de pousadas, ou a retirada de bares com características mais
populares para a inserção de cafeterias elitizadas, pode-se afirmar que essas
alterações incidiram na eliminação dos significados atribuídos pela população
local.” (PASSOS, 2018, p. 81)

Portanto, o poder do capital mercantiliza o espaço urbano patrimonializado,


colocando o valor de troca em primeiro plano em detrimento do valor de uso.

33
Figura 11: Mapas demonstrando a modificação de usos entre os anos 2000 e 2018. Fonte: PASSOS,
2018, recorte da própria autora.

34
Figura 12: Mapas demonstrando mudanças nos tipos de comércios e serviços presentes na rua
Direita ao longo do tempo. Passos caracteriza como TIPO 01 comércios e serviços populares, e TIPO
02 comércios e serviços para público com maior poder aquisitivo. Fonte: PASSOS, 2018, recorte da
própria autora.

Após o entendimento das questões patrimoniais, associa-se as políticas


preservacionistas integradas ao planejamento urbano como possível ferramenta na
tentativa de garantir o direito à cidade para as populações. Com a revisão do trabalho

35
“Mudanças nas formas de uso em Espaços Urbanos Patrimonializados: o caso da Rua
Direita de Ouro Preto/MG” (PASSOS, 2018) foi possível entender o processo de
gentrificação que vem ocorrendo na rua Direita, levando ao distanciamento dos
moradores da cidade e enfraquecendo suas relações de pertencimento. Contudo,
existem habitantes, comerciantes, trabalhadores, transeuntes, população de Ouro
Preto que se apropria cotidianamente desta rua. Este trabalho investigou em que
condições estas pessoas se apropriam desta rua nos dias de hoje, quem são, em
quais bairros residem, qual seu tempo de permanência na rua, quais atividades
desenvolvem, dentre outros questionamentos. Essa pesquisa foi realizada tendo a
cartografia social como método. Posteriormente, foram realizadas sobreposições com
os mapas de Usos produzidos por Passos, para observar de forma relativa o conceito
de gentrificação. Trata-se de aprofundar acerca do processo de gentrificação a partir
dos testemunhos dos próprios ocupantes do espaço e estudar em que medida esses
processos de exclusão tem ocorrido.

36
3 OS OURO-PRETANOS E A RUA DIREITA NA CONTEMPORANEIDADE

Dentro do contexto apresentado, faz-se necessário estudar a gentrificação na


Rua Direita de forma relativa, observando narrativas às margens com o objetivo de
identificar quem está atuando de forma contrária a gentrificação. Assim, o método da
Cartografia Social foi escolhido para realizar esse estudo por ser uma potente
ferramenta nas lutas das minorias em oposição à produção urbana hegemônica,
possibilitando não só visibilidade, mas também representando suas subjetividades.

3.1 A cartografia como Metodologia

No mundo neoliberal atual, o conhecimento científico é tradicionalmente


produzido por ferramentas epistemológicas, que estruturam, instituem, classificam,
segmentam e geram a vida de forma hegemônica – baseado na racionalização e
universalização. Partindo do pressuposto de Foucalt (1979), “a verdade não existe
fora do poder ou sem poder”, ou seja, a informação não é neutra; assim, as epistemes
produzidas são utilizadas para embasar interesses, principalmente do capital, como
métodos de controle e dominação. Por esse motivo, novas maneiras de representar o
território se fazem necessárias para entender a subjetividade de agenciamentos
contra hegemônicos, contar e retratar narrativas singulares e invisíveis das minorias
diante do regime capitalista.
A produção do espaço urbano vem sendo ditada por homens brancos da elite
burguesa, resguardados pelo saber científico, principalmente, desde a Carta de
Atenas no CIAM, em 1933, quando se concretizaram diretrizes racionalistas e
funcionalistas para o planejamento urbano. Assim, devido à ótica a qual foram
submetidas, as cidades acabaram “[...] fragmentadas, dispersas, injustas, desiguais;
social e ambientalmente insustentáveis” (CARON, etal, 2020, p.2) e,
consequentemente, seus corpos humanos

“[...] racializados, sexualizados, comercializados, controlados, encarcerados


e transformados em peças de engrenagem de uma máquina produtora e
consumidora de bens, onde a terra e os saberes, antes compartilhados, se
tornaram bens patrimoniais individuais e não recursos a que todos têm direito
de fruição.” (CAROM, etal, 2020, p.2)
37
A cartografia social, surge nesse contexto, também denominada por Santos
(2001) como “cartografia participativa”, “cartografia da ação” – idenficiando-a ainda
como “ativismo cartográfico”9 – para valorizar aspectos ignorados pela representação
espacial de forças dominantes, não só através da ruptura com convenções
cartográficas, mas também através da produção coletiva e dinâmicas participativas.
Logo, os mapas – antes justificados como ferramentas neutras de representação
gráfica espacial e utilizados para respaldar agenciamentos hegemônicos (SANTOS,
2001, p.2) – tem a possibilidade de representar o que escapa da episteme tradicional,
valorizar potencialidades de grupos não evidentes que possuem forças inéditas.
Portanto, além de uma composição gráfica do território, a cartografia, segundo
Deleuze e Guattari (1995), é também uma ferramenta micropolítica (molecular). Ou
seja, opera para produzir inquietações, insistir no que escapa às determinações
históricas, em oposição à macropolítica (molar) que institui as formas e os
seguimentos visíveis, homogeneizando e universalizando a vida. Assim, os extratos
molar e molecular existem justapostos, compondo um mundo de formas e forças, onde
tudo é político, e a valorização compulsiva do espaço culmina em disputas de poder.
Por isso, o grande desafio é entender a produção de conhecimento mais na dimensão
de plano de forças e menos de forma (KASTRUP, PASSOS, 2013).
O rizoma (DELEUZE, GUATTARI, 1995) são as redes de relações, os variados
vetores, processos de forças moventes que coexistem em um mundo complexo.
Tornando a pesquisa e seus resultados, imprevisíveis, cartografar “não é um método
baseado em informações, é um método baseado em experiências”, e ainda “não é um
método de soluções de problemas, é um método de problematizações” (KASTRUP,
Virgínia. Citado no I Seminário Nacional de Cartografias e Contra Condutas, sessão

9“Este campo [...] para nós tem quatro vetores centrais de emanação de práticas que vêm crescendo
e se fortalecendo: 1) o debate acadêmico sobre as representações espaciais; 2) o uso de cartografias
como instrumentos de luta; 3) o uso de cartografias como tecnologias sociais de gestão pelo Estado;
4) Cartografias como sistemas de informações, “meio” de comunicação e representação cujo controle
é objeto de disputa.” (SANTOS, 2011, p.3)
38
110). Dessa forma, é possível identificar narrativas negadas pelo conhecimento
normativo, o pesquisador passa de mero observador externo para participar como ator
na rede, vivendo forças que produzem estranhamentos e inquietações, para
acompanhar processos e cartografar a história do problema, nos termos de Moraes e
Kastrup (2010), um pesquisar com. Por isso, é um método baseado na epistemologia
da experiência e da informação produzida coletivamente, dando a cartografia social
um caráter completamente processual, buscando traçar um plano comum e
heterogêneo.

Figura 13: A transversalidade pode acessar um plano comum e heterogêneo, operando


singularidades e subjetividades das diferenças. Fonte: KASTRUP, PASSOS, 2013, autoria própria.

Como a cartografia social corrobora para a construção de tal plano, esta


possibilita a conexão entre as diferenças através do conceito de Kastrup e Passos
(2013) de transversalidade, acessando subjetividades singulares e ampliando a
participação coletiva. Assim, enquanto a verticalidade (hierarquiza os diferentes,
segregando, excluindo e aumentando as desigualdades sociais) e a horizontalidade,
(homogeneíza e iguala, representando o corporativismo dos iguais) operam de forma
limitada, a transversalidade irá operar numa dimensão “fora” de organizações
(KASTRUP, PASSOS, 2013, p.265-266). Essa situação pode ser observada através
da Figura 13, onde a transversalidade consegue acessar um plano comum em

10I Seminário Nacional de Cartografias e Contra Condutas, sessão 1, seminário online organizado pelo
Indisciplinar UFMG, realizado no dia 10 de Agosto de 2020. Disponível em <
https://www.youtube.com/watch?v=oSR2FV5_yKc&t=6121s>. Acesso em 11 de agosto de 2020.
39
oposição às óticas restritas verticais e horizontais. Ademais, o conceito de comum
também é abordado por Dardot e Laval (2017) como uma forma alternativa e de
resistência à dinâmica capitalista, destacando a complexidade das diferenças, das
heterogeneidades, cada experiência é única e, o que cada pessoa constrói no lugar,
é a sua singularidade. Assim, a experiência do comum potencializa questões sociais,
culturais, políticas, ambientais e econômicas, a partir de narrativas deixadas à
margem pelo regime do capital, acessando “múltiplas experiências na e da cidade”
(CAROM, etal, 2020, p.3).

3.1.1 Construindo a cartografia social

Os iconoclasistas11 publicaram em 2013 o Manual de Mapeo Colectivo, com


direcionamentos sobre a metodologia que criaram de mapeamentos coletivos, a frase
de Milton Santos escolhida para abrir o manual é sugestiva: “El território es el espacio
socialmente construido”. O mapear coletivo consiste em trabalhar de forma
cooperativa sobre mapas e planos cartográficos com uma série de suportes gráficos
que batizaram como “dispositivos múltiplos”: linhas de tempo e rugosidades;
representações discursivas; constelações; deriva urbana com instruções; a cidade e
os sentidos; paisagens reveladoras. Apesar disso, está claro que não há regra para a
utilização do manual, a plataforma deve ser adaptada de acordo com a pesquisa, com
o campo, com a alteridade em questão, já que cada trabalho é único e suas
especificidades e singularidades devem ser levadas em consideração na hora de
construir a metodologia. De qualquer maneira, o importante para os iconoclasistas é
que a informação seja construída de forma coletiva entre pesquisadores e
participantes da pesquisa, assim,

11 “Iconoclasistas es un dúo formado por Julia Risler y Pablo Ares en mayo de 2006. Elaboran proyectos
combinando el arte gráfico, los mapeos creativos y la investigación colectiva. Sus producciones se
difunden en la web a través de licencias creative commons, potenciando la libre circulación y su uso
derivado. [...] Desde esa multiplicidad, crean soportes visuales que derivan por esa trama política y
afectiva, y permiten ajustar la elaboración de recursos lúdicos y pedagógicos dentro de una horizonte
táctico.” (Disponível em < https://iconoclasistas.net/nosotres/>, Acesso em 28 de agosto de 2020)
40
“é construído um panorama complexo sobre o território, que permite distinguir
prioridades e recursos quando chega o momento de se projectarem práticas
transformadoras que em seguida adoptam diversos cursos de acção.”
(RISLER, ARES, 2012, p.2)

3.1.2 Elaborando a Metodologia da Cartografia Social

A metodologia criada para este trabalho, tem o objetivo de entender quem são
os ouro-pretanos que ainda estão presentes no cotidiano da Rua Direita, de que forma
se dá sua apropriação, suas relações de pertencimento e em que condição
frequentam a rua, como moradores, trabalhadores, transeuntes ou outras. Por isso, a
proposta desenvolvida aconteceria a partir de uma conversa com os moradores de
Ouro Preto que se fazem presentes na rua, para criar conexão e aproximação,
procurando o engajamento dos participantes, a conversa possibilitaria difundir e
explicar do que se trata a pesquisa, além de entender a ocupação, a raça, o tempo de
permanência na rua e onde moram essas pessoas. Devido ao COVID-19 a
metodologia foi repensada para um questionário semi estruturado, que garantisse a
segurança e saúde de todos os envolvidos na pesquisa.

3.1.3 COVID-19: sobre cartografar em épocas pandêmicas

Em dezembro de 2019 foi identificado pela primeira vez como doença


infecciosa, a COVID-19, em Wuhan, na China. Os coronavírus, segundo o Ministério
da Saúde Brasileiro, são famílias de vírus encontradas em diferentes espécies de
animais e que, no geral, não representam riscos para a sociedade por não infectarem
seres humanos. Entretanto, a COVID-19 é uma doença transmitida pelo SARS-CoV-
2, o qual pode ser facilmente disseminado de uma pessoa para outra por ser um vírus
que se pega pelo ar. Assim, devido à rápida evolução e contágio da doença ao redor
do mundo, no dia 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou o
mais alto nível de alerta conforme o Regulamento Sanitário Internacional: uma
Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. Aproximadamente dois
meses depois, em 11 de março, o surto causado pelo novo coronavirus foi declarado
pela OMS como uma pandemia.
41
De acordo com a OMS, entorno de 80% dos infectados se recupera
completamente da doença sem precisar de cuidados hospitalares, por serem
assintomáticos ou oligossomáticos (apresentarem poucos sintomas). Contudo,
existem pessoas que são classificadas como Grupos de Riscos, por apresentarem
maior chance de evoluir para sintomas graves (20% dos casos necessitam de
tratamento hospitalar devido à dificuldade respiratória, destes, aproximadamente 5%
podem precisar de suporte para respiração). Entre os Grupos de Riscos encontram-
se pessoas idosas e pessoas com condições especiais de saúde, como pressão alta,
problemas respiratórios e/ou cardíacos, diabetes e câncer. Apesar disso, a OMS deixa
claro que qualquer um pode ser infectado pela doença e acarretar em um quadro
grave.
A contaminação da COVID-19 se dá, segundo a OMS e o Ministério da Saúde,
através do contato de uma pessoa contaminada para outra, podendo ser por um
aperto de mãos contaminadas, por gotículas de saliva, tosse, espirro, catarro, e ainda
por objetos ou superfícies contaminadas como, por exemplo, celulares, mesas,
maçanetas, brinquedos e teclados de computador. Dessa maneira, as principais
recomendações oficiais para se evitar o contágio são não só o distanciamento social,
pelo menos 1m de distância entre outras pessoas em locais de convívio social, evitar
aglomerações, evitar contato físico como abraços e apertos de mão, entre outros; mas
também cuidados redobrados com a higiene como lavar as mãos com frequência ou
utilizar álcool em gel 70%, evitar compartilhas itens de uso pessoal, higienizar objetos
como celulares, e principalmente, utilizar máscaras em todos os ambientes ao sair de
casa.
Logo, devido ao estado pandêmico do mundo, a quarentena foi adota em
diversos lugares ao redor do mundo, afim de conter o contágio da doença. No Brasil,
essa situação varia de acordo com determinações estaduais e municipais. Assim, na
cidade de Ouro Preto, o funcionamento não só de comércios e serviços, mas também
da manutenção da vida – em geral –, encontrava-se afetado desde março e até o
momento em que foi desenvolvida a cartografia social do presente trabalho. Então,
além do desafio de alguns estabelecimentos estarem com o funcionamento alterado
(fechados, parcialmente abertos ou apenas via delivery), existia também o grande

42
desafio de cartografar seguindo as normas e recomendações da OMS, além das
diretrizes da UFOP para realização de TFGs em período letivo especial.
Portanto, a plataforma que antes havia sido pensada como uma grande base
comum colocada na rua para que as pessoas desenhassem e interagissem, teve que
ser adaptada para um formato de questionário estruturado para respeitar as
recomendações de distanciamento social e preservar a saúde de todos os envolvidos
na pesquisa, com o objetivo de saber quem são os ouro-pretanos na Rua Direita.
Então foi elaborado o questionário abaixo (Figura 14, Figura 15 e Figura 16) e
distribuído pelos estabelecimentos na Rua Direita, solicitando o preenchimento e
explicando os motivos da pesquisa. Os questionários foram recolhidos mais ou menos
uma semana após terem sido entregues.

43
Figura 14: Questionário Distribuído na Rua Direita, página 1. Fonte: elaborado pela autora.

44
Figura 15: Questionário Distribuído na Rua Direita, página 2. Fonte: elaborado pela autora.

45
Figura 16: Questionário Distribuído na Rua Direita, página 3. Fonte: elaborado pela autora.

46
3.2 Quem são os ouro-pretanos na Rua Direita

O questionário foi respondido por 65 pessoas que moram no distrito sede de


Ouro Preto (57 pessoas) – ou locais próximos, como o distrito de Cachoeira do Campo
(3), o município de Mariana (4) e o município de Ouro Branco (1) – e trabalham na
Rua Direita12. Assim, após a leitura das respostas e a compilação dos dados
recolhidos, foi possível perceber alguns dos anseios de trabalhadores invisibilizados
frente a indústria cultural, que se fazem presentes na rua da soleira para dentro dos
estabelecimentos, mas que estão presentes no cotidiano, passando mais de 6 horas
ao dia – em pelo menos 6 dias da semana – na Rua Conde de Bobadela.

Figura 17: Ouropretano em uma das fachadas da Rua Direita durante a tarde. Fonte: Registro da
autora em dezembro de 2020.

12Para que se sentissem mais confortáveis em responder as perguntas, não foi solicitado o nome do
entrevistado. Dessa forma, cada um será identificado como “ouropretano X”, numerados de 1 a 65.
47
3.2.1 Caminhos percorridos por ouropretanos que trabalham no espaço urbano
patrimonializado

O Brasil é um país historicamente marcado pela desigualdade e falta de justiça


social, “sob essa ótica, o racismo nasce como processo político, histórico e sistêmico
de discriminação, portanto, estrutural, que organiza determinada sociedade”
(MORADO, 2020, p. 109). Dessa forma, o racismo presente no espaço urbano tem
como consequência a segregação socio espacial, devido principalmente a um
planejamento urbano ineficiente que deveria oferecer mecanismos afim de iniciar um
processo amenizador da desigualdade sistêmica advinda de séculos atrás, com a
colonização do Brasil. Como já foi citado anteriormente, Ouro Preto foi uma cidade
que surgiu devido à exploração mineral e, portanto, uma cidade construída e
constituída por pessoas escravizadas. Uma cidade de negros que, mesmo após a
abolição da escravidão, não tiverem seus direitos para uma vida digna garantidos,
como moradia, educação e lazer, ocupando territórios indesejados da cidade – que
“sobraram” –, como morros e áreas de deslizamentos.
Por isso, durante evolução urbana de Ouro Preto, a partir de 1950 (com a
abertura da Alcan, empresa exploradora de alumínio na região), houve um
crescimento populacional acelerado e um consequente processo de periferização. As
áreas de risco foram ocupadas pela população de baixa renda por falta de
mecanismos do estado que acolhessem essas pessoas de forma segura e digna,
carecendo-lhes justiça social:

“enquanto processo político, histórico e sistêmico, o racismo


institucionalizado, autoritário e violento se alimenta das desigualdades
urbanas, implicadas por processos econômicos, jurídicos, institucionais e
culturais decorrentes da escravidão e do colonialismo.” (MORADO, p. 113)

Dentre os participantes que aderiram a pesquisa, a grande maioria se auto


afirmou como negro ou pardo, totalizando 68% dos entrevistados (Figura 18). Porém,
para entender de forma mais completa quem são essas pessoas que trabalham na
rua Direita, também foi realizado na pesquisa uma sobreposição da raça/cor/etnia com
os bairros onde moram.

48
Figura 18: Gráfico de raça/cor/etnia dos ouro-pretanos que trabalham na Rua Direita com base nos
dados coletados pelo questionário, considerando um total de 65 pessoas. Fonte: Elaborado pela
autora, dezembro de 2020.

Os bairros de Ouro Preto foram categorizados de acordo com a Tese de


doutorado escrita por Eduardo Costa, em 2011, para a Universidade Federal de São
Paulo, “Totalidade Urbana e Totalidade Mundo: as Cidades Coloniais Barrocas Face
à Patrimonialização Global”. Costa estuda os bairros do distrito sede, classificando-os
em 6 níveis de áreas de moradia (como descrito na Figura 19), considerando os
seguintes critérios: predominância do uso residencial de cada bairro; presença ou
proximidade a equipamentos de educação, lazer e serviços; além do padrão
construtivo das moradias (alto, médio, baixo e precário)13.

13 Mapa “Áreas residências em Ouro Preto: predominâncias do uso e enclaves de exclusão na


totalidade do território urbano” (COSTA, 2011, p. 353).
49
Figura 19: Tabela descrevendo os Níveis de Área Residencial do distrito sede de Ouro Preto, de
acorcordo com Costa (2011). Fonte: Elaborada pela autora, dezembro de 2020.

Assim, Costa (2011) irá considerar Áreas Residenciais de Nível I como bairros
com predominância de uso residencial, que concentram ou estão próximas a
equipamentos de educação, lazer e serviços, e possuem alto padrão construtivo,
estas também apresentam marcante presença de municipalidade14 (todos
subsistemas de infraestrutura urbana presentes nos bairros). Já as Áreas
Residenciais de Nível II possuem um uso equilibrado entre residências e outros usos,
apresentam ou estão próximas a equipamentos de educação, lazer e serviços e
possuem padrão construtivo médio a elevado, além de apresentarem marcante ou
razoável presença de municipalidade (todos ou principais subsistemas de

14A presença de municipalidade irá levar em conta os subsistemas de infraestrutura urbana presente
nos bairros. Os subsistemas considerados são a) Subsistema Viário; b) Subsistema de Drenagem
Pluvial; c) Subsistema de Abastecimento de Água; d) Subsistema de Esgotos Sanitários; e) Subsistema
Energético; f) Subsistema de Comunicações. Sendo assim, bairros com marcante presença de
municipalidade possuem todos os subsistemas presentes, bairros com razoável presença de
municipalidade possuem 3 ou mais subsistemas presentes, bairros com frágil presença de
municipalidade possuem 2 subsistemas presentes e bairros com municipalidade ausente não possuem
nenhum subsistema presente. (COSTA, 2011, p. 351)
50
infraestrutura urbana presentes nos bairros). Os bairros dentro das Áreas
Residenciais de Nível III predominam o uso residencial, com equipamentos de
educação, lazer e serviços precários ou inexistentes, e padrão construtivo de médio a
baixo, apresentam frágil presença de municipalidade (subsistemas de infraestrutura
urbana pouco presentes). Enquanto as Áreas Residenciais de Nível IV, também
possuem uso residencial predominante, o “morar se desempenha de forma não
desejada e não própria para a vida digna” (COSTA, 2011, p. 353) com casas de
padrão construtivo precário e ausência de municipalidade (subsistemas de
infraestrutura urbana ausentes). Já os bairros de Áreas Residenciais de Nível V, tem
presença de uso residencial, porém não é prevalente em relação a outros usos, são
áreas homogêneas do “estilo patrimônio”, e possuem marcante presença de
municipalidade (todos os subsistemas de infraestrutura urbana presentes). As Áreas
Residenciais de Nível VI, são bairros de Nível III com enclaves do Nível IV, possuindo
frágil ou ausente presença de municipalidade, ou seja, a junção de áreas fragilizadas,
no Brasil,

“os processos de segregação urbana se refletem nas áreas periféricas, na


demanda habitacional latente, na dificuldade de acesso ao emprego, assim
como na precariedade da infraestrutura, da mobilidade urbana e da
dificuldade de acessos a equipamentos e serviços públicos” (MORADO,
2020, p. 158)

Dessa forma, os bairros classificados como Nível III, Nível IV e Nível VI, são
bairros vulnerabilizados socioeconomicamente – no Brasil, “a população preta ou
parda tem uma proporção de acesso aos serviços de saneamento consideravelmente
menor à verificada na população branca” (IBGE, 2017a, p. 78) –, que além dos
critérios apresentados por Costa, ainda possuem o agravante de estarem em áreas
de alto risco geológico e susceptibilidade (muitas dessas áreas pelo zoneamento do
Plano Diretor de Ouro Preto, inclusive estão demarcadas para não serem ocupadas,
principalmente devido a deslizamentos). Segundo Morado,

“Piketty (2014) nos alerta que, mesmo se a desigualdade dos rendimentos


pudesse ser controlada, a história nos fala de outra força maligna que tende
a amplificar as desigualdades de riqueza até atingir níveis extremos: os
retornos revertem para os proprietários de capital mais rápido do que o
crescimento da economia, dando aos capitalistas uma parcela cada vez maior
dos despojos, a custa das classes média e baixa. Tal força alimentou a
51
desigualdade no século XIX e as atuais condições econômicas e políticas
tornaram-se susceptíveis ao ponto de aprofundarem as desigualdades
sociais e econômicas no século XXI” (MORADO, 2020, p. 164)

Com as respostas do questionário, foi possível concluir que a maior parte dos
trabalhadores moram em bairros periféricos e vulnerabilizados, representando um
total de 50,8% dos entrevistados (somando bairros em Áreas Residenciais de Nível III
e de Nível VI), estes moradores são, em sua maioria, negros ou pardos (Figura 20),
somando 27 pessoas pardas ou negras que saem das periferias de Ouro Preto para
trabalhar na Rua Direita. No Brasil, as desigualdades de renda estão intrinsicamente
relacionadas à raça ou cor, segundo o IBGE (2017a, p. 61) apesar de negros ou
pardos representarem mais da metade do total de pessoas com rendimentos (54,6%,
enquanto brancos foram 44,5%), os brasileiros que possuem os 10% menores
rendimentos são majoritariamente negros ou pardos (78,5%, contra 20,8% brancos).
Portanto, através do Mapa 01, é possível notar muitas pessoas moram no bairro
Morro Santana e São Cristóvão, além de algumas pessoas no bairro Santa Cruz e
São Francisco (todos considerados como Áreas Residenciais de Nível VI). Além disso,
a maioria dos entrevistados mora em Áreas Residenciais de Nível III, concentrados
no bairro Alto da Cruz e Nossa Senhora da Piedade, também estando presentes no
Morro da Queimada, Padre Faria, Saramenha, Vila Operária e Pocinho (Nossa
Senhora do Carmo), bairros que carecem de infraestrutura urbana, e são habitados
por classes sociais baixas – no Brasil, 72,7% dos pobres eram pretos ou pardos em
2018 (NERY, 2019).

52
4,8% 25,4% 28,6% 6,3% 22,2% 12,7%

Figura 20: Gráfico de trabalhadores da Rua Direita categorizados por Nível de Área Residencial
considerando raça/cor/etnia. Fonte: Elaborado pela autora, dezembro de 2020.

Já os bairros mais ricos (Áreas Residenciais de Nível I e Nível V), que possuem
infraestrutura completa e elevado padrão construtivo, são em sua maioria habitados
por brancos. No Mapa 01, é possível visualizar onde moram os proprietários de
estabelecimentos na Rua Direita (5 dentre os 65 entrevistados) ademais, a partir dos
questionários sabe-se que 100% dos trabalhadores que são proprietários se considera
branco. Destes, 3 residem na própria Rua Direita (Área Residencial Nível V), 1 deles
no bairro Nossa Senhora de Lourdes (Área Residencial Nível I), e 1 em Ouro Branco.
Segundo Morado,

“entre as pessoas que recebem até 1,5 salário mínimo no Brasil, 67% são
negros, em contraste com menos de 45% dos brancos; cerca de 80% das
pessoas negras ganham até dois salários-mínimos (OXFAM 163 BRASIL,
2017). Em 2017, os trabalhadores brancos (R$ 2.615,00) ganhavam, em
média, 72,5% mais que os pretos ou pardos (R$ 1.516,00). Em outras
palavras, os pretos ou pardos representavam, em 2017, 75,2% das pessoas
com os 10% menores rendimentos (AGÊNCIA IBGE, 2018).” (MORADO,
2020, p. 162)

53
Mapa 01_ Onde moram os ouropretanos que trabalham na Rua Direita

3 2 Morro São
Sebastião
São Cristóvão
Cachoeira
do Campo
4 Morro Santana
2 São
Fora do Distrito Francisco
Sede de Ouro Preto
Cabeças
Água Morro da 6 Mariana
12,1% 3,5%
1
Limpa 3 Lajes Queimada
Piedade
1
2 4
2 Rosário
24,1% 27,6%
1
4
Funcionários
Nossa Senhora 4
de Lourdes 5
1,7% Alto da Cruz
31,0%
Centro 2
Antônio
Dias
2
20,0% 20,0%
2 Barra Padre Faria

Proprietários

Vila
60,0%
Operária 2
1
Santa Cruz
Gráfico de ouropretanos que trabalham
na Rua Direita de acordo com o Nível de
Area Residencial onde moram.
Dados de um total de 65 pessoas, sendo Quantidade de ouropretanos que
que 2 pessoas não responderam o bairro
5 Bauxita trabalham na Rua Direita por bairros
em que moram. 2 6
5
Saramenha 4
Ouro Branco 3
2
1
Nossa Senhora 1
do Carmo
(Pocinho)

2
Além disso, é importante destacar o caráter fluído que a dinâmica da rua Conde
de Bobadela possuí, variando não só as atividades cotidianas durante os dias da
semana mas também, consequentemente, as pessoas que frequentam a rua. Assim,
além dos ouropretanos que trabalham nos estabelecimentos, também estão presentes
diferentes trabalhadores ao longo das calçadas, de forma sazonal. Ao amanhecer, é
possível encontrar funcionários da prefeitura que fazem a limpeza da rua, já na hora
do almoço eventualmente passam os vendedores de vassouras e rodos que oferecem
seus produtos para os comerciantes (Figura 21), ao longo do dia também transitam
pela rua os tomadores de conta de veículos. Aos finais de semana aparecem o
pipoqueiro e dona do milho cozido, ambos ficam na esquina com a Praça Tiradentes
até o anoitecer (Figura 22 e 23).

Figura 21: Vendedora de vassouras e rodos para limpar o teto de estabelecimentos, divulgando seu
produto na voz para os comerciantes numa quarta feira durante o horário de almoço. Fonte: Retrato
da autora, fevereiro de 2020.
55
Figura 22

Figura 22 e 23: Esquina com a Praça Tiradentes, na primeira foto durante o dia em uma quarta feira,
pipoqueiro ausente. Na segunda foto, durante um sábado a noite, pipoqueiro e dona do milho
trabalhando. Fonte: Retratos da autora em fevereiro de 2020.

3.2.2 Atividades de fruição no território patrimonializado sob a ótica dos


trabalhadores

Foi perguntado se as pessoas utilizam a Rua Direita para atividades de lazer,


para assim entender se existem outros usos da mesma além do horário de trabalho:
das 65 pessoas, 46 responderam que não frequentavam a rua para atividades de lazer
(representando 70,8% dos entrevistados), como é possível observar no gráfico
presente no Mapa 02.
Os ouropretanos ao serem questionados o porquê de não frequentarem a rua
para atividades de lazer, tiveram diversas respostas, entre elas destacam-se o alto
custo dos estabelecimentos e a falta de interesse nas atividades de lazer oferecidas
pela rua (inclusive, vários não consideram que exista qualquer lazer ou fruição para
eles neste local).
“Não tem lazer por aqui”
ouropretana 36, parda, moradora do bairro Piedade, vendedora

“Não possui atrativos para mim e minha família”


ouropretano 42, pardo, morador do Morro Santana, motoboy

“Não me identifico com os eventos”


ouropretano 41, negro, morador da Barra, garçom do Bar Satélite

Além disso, vários falaram sobre preferir utilizar outros espaços para fruição,
como no próprio bairro em que residem, o ouropretano 36, negro, morador do bairro
56
Piedade, que frequenta a Rua Direita há 30 anos, acrescenta “Desculpe, mas já me
basta o trabalho”. Em contrapartida, os poucos que comentaram utilizar a rua para
atividades de lazer, apontam, em sua grande maioria, apenas o Bar Satélite como
local frequentado. A partir dessa análise, ao relacionar as pessoas que frequentam a
Rua Direita para atividades de lazer com a raça/cor/etnia, podemos perceber que a
maioria são brancos (dentre eles, 3 são proprietários de estabelecimentos). Já os que
afirmaram não frequentar para atividades de lazer, são em sua maioria funcionários
pardos ou negros (somando 76,1% dos que responderam não), moradores de bairros
periféricos. Alguns apontamentos sobre pessoas que responderam frequentar a Rua
Direita para atividades de lazer (todas as falas sobre esse questionamento podem ser
observadas no Mapa 02 e 03, distribuídas por raça e bairro onde moram):

"Opões de bons comércios e restaurantes (Le Chalet, Escada a Baixo, Satélite, Parada do
Conde)”
ouropretano 26, branco, morador do município de Ouro Branco, proprietário do
estabelecimento Le Chalet

"Saio com amigos para bares e restaurantes"


ouropretana 55, branca, moradora do Alto da Cruz, vendedora

Porque não gosto, não tem muitos lugares atrativos além do Satélite. Os outros são bem
caros.”
ouropretano 64, negro, morador do Alto da Cruz, vigia patrimonial

Logo, apesar de ainda existirem muitos ouropretanos presentes no cotidiano


da Rua Direita que contrariam o processo de gentrificação que vem ocorrendo há
décadas, o poder do capital e a descriminação racial seguem ditando quem usufrui o
espaço urbano patrimonializado. Ou seja, permanecem na rua 6 dias por semana, por
no mínimo 6 diárias horas, moradores de diversas raças, maioria negra e parda vinda
vários bairros periféricos, que não possuem relações de pertencimento com a Rua
Conde de Bobadela. pois, não existe justiça social ou importância do valor de uso do
território patrimônial, é um espaço utilizado para além das relações de trabalho apenas
por poucos ouropretanos, aqueles/as que moram em bairros de classes sociais média
ou alta e que, em sua maioria, são brancos. Na dinâmica contemporânea, “em quase
todas as sociedades se discrimina e socialmente se exclui, humilha ou rebaixa quem
tem antepassado escravo” (SILVA, 2018, p. 10).

57
1
3

Mapa 02_ Você frequenta a Rua Direita para atividades de Lazer? 6


dados a partir de um
total de 65 pessoas
18 Não frequento
16

6 Sim frequento
Nossa Senhora do Carmo (Pocinho) Bauxita 19
Proprietário
"Não tem nada atrativo pra quem é de Ouro Preto" "Como trabalho na rua direita, prefiro outros 46
"Não me sinto segura" 3 Funcionário
lugares" 3
44
"As vezes quando tem algum evento" Amarelo
2
Antônio Dias 2
Branco
“falta de interesse” Barra 2
Pardo
“falta de tempo, não me 17
identifico com os eventos” 7 Negro

Rosário
“Porque tem poucos estabelecimentos de lazer”
Sátelite Água Limpa
"Não possui atrativos que
entretenha a minha família"

Padre Faria
“não frequento, apenas farmácias”
“Não curto”

Alto da Cruz Nossa Senhora de Lourdes


Piedade
"só trabalho mesmo, não tem lazer nenhum" “não é atrativa a rua”
"Desculpe, mas já basta o trabalho" “não frequento, só possui lojas de
"Saio com amigos para bares e restaurantes"
“barzinho (satélite)” artesanato”
São Francisco
"Não tem lazer por aqui"
"bebo. bar Satélite"
Lajes
Morro da Queimada “não frequento”
“de vez em quando para ir a
restaurantes, Café das Flores, Satélite” Cachoeira do Campo
“Só frequento para trabalho”
Morro Santana “não frequento”
São Cristóvão
“Eventualmente não, mas fora da pandemia as vezes. No
Satélite, com amigos, jogando conversa fora, distraindo” “não frequento, produtos caros. prefiro atividades nos distritos”
“vou a bares, restaurantes”
“não frequento, dificuldade de estacionar”
“custo alto”
"Não possui atrativos para mim e minha família" Face de Quadra Rua Conde de Bobadela 1
“Costumo ir a outros lugares”
1
3

Mapa 03 Você frequenta a Rua Direita para atividades de Lazer? 6


dados a partir de um
total de 65 pessoas
18 Não frequento
16

São Cristóvão Morro São Sebastião Morro Santana 6 Sim frequento


19
"vou em barzinhos, Satélite" "bares e restaurantes"
"não frequento” Proprietário
"No meu bairro há espaços para "barzinhos” 3
46
Funcionário
3
estas atividades" Morro da Queimada 44
Amarelo
2
“não frequento” 2
Branco
Cabeças 2

"não tem lazer nenhum" São Francisco Pardo


17
“bares, restaurantes, lojas” 7 Negro

Alto da Cruz
Água Limpa "vou ao Satélite" Piedade
"Não acho interessante" “satélite”
"quase não há!"
“Porque não gosto, não tem muitos lugares atrativos
"Costumo ir a outros lugares, clube além do Satélite. Os outros são bem caros.”
Cachoeira do Campo entre outros"
“não frequento”

Correios

Santa Cruz
Rua Direita “não frequento, falta de tempo”
Antônio Dias
"restaurante, lanchonete" “não frequento, falta de tempo”
"não tem muitos lugares para ir e os “não frequento”
lugares que tem são mais caros"
Vila Operária “bares, restaurantes, lojas”
“não frequento, não sei porque”
Mariana
Barra "frequento bares/restaurantes: República Cervejeira, Quinto do
Bauxita “boteco Satélite” Ouro. Lojas: artesanatos e doces/queijos"
Saramenha “frequento bares e restaurantes” “não frequento”
“não frequento” "tomo cerverja, café, drinks em bares como Satélite ou Ópera" "Antigamente tinham bares e restaurantes mais acessíveis
"Não oferece opções de lazer, apenas para os moradores da cidade"
“não frequento”
comércio (consumo) ou alimentação" “não frequento”

Ouro Branco
"opões de bons comércios e restaurantes (Le Chalet, Escada
a Baixo, Satélite, Parada do Conde" Face de Quadra Rua Conde de Bobadela 2
Outra pergunta presente no questionário foi “Que outros espaços você
frequenta na Rua Direita? E no Centro Histórico”, 19 pessoas responderam não utilizar
nenhum outro espaço além do local de trabalho. Entre as 45 que frequentam outros
espaços, obteve-se diferentes respostas, alguns lugares apareciam com mais
frequência. A grande maioria citou locais de serviços e comércios, como por exemplo
a Lotérica, farmácias, bancos e Correios, poucos citaram locais de lazer, como
Museus e Igrejas. Porém, o Bar Satélite foi o espaço que mais apareceu, sendo
apontado por 13 pessoas. Assim, é importante retomar as tipologias categorizadas
por Passos (2018) para os comércios e serviços da Rua Direita, e assim, entender
quais tipologias estão sendo frequentadas pelos moradores de Ouro Preto que
trabalham na rua:
Os comércios e serviços populares, tratados neste trabalho como TIPO 01,
devem ser entendidos como estabelecimentos com a oferta de produtos mais
acessíveis sob a ótica do capital monetário. Para além dos valores cobrados,
foram considerados o tipo de produto, se este é caracterizado como de
consumo cotidiano, por exemplo, lojas de roupas, lojas de artigos de
presentes, óticas, farmácias, bares, lanchonetes.
Já os comércios e serviços para o atendimento de um público com maior
poder aquisitivo, tratados neste trabalho como TIPO 02, foi considerado os
estabelecimentos com a oferta de produtos com valores mais elevados, assim
também como especificidades que fomentam a indústria cultural, com a oferta
de produtos como artesanato, joias, serviços de hotelaria, cafés,
restaurantes. (PASSOS, 2018, p. 60)

Portanto, o Mapa 04 identifica quais os locais citados nos questionários de


outros espaços no território patrimonializado – dentro Zona de Proteção Especial
(ZPE), popularmente conhecida como Centro Histórico – e por quem estão sendo
utilizados. A maior parte das pessoas utiliza comércios e serviços populares,
categorizados como Tipo 1, e são em sua maioria negros e pardos (totalizando
77,1%). Já os comércios e serviços do Tipo 2 são frequentados por uma esmagadora
maioria branca (totalizando 87,5%).

60
Mapa 04_ Que outros espaços você frequenta no Centro Histórico?

O Passo

Mapa chave do perímetro urbano do distrito sede de Ouro Preto,


com destaque para a ZPE (Zona de Proteção Especial) de acordo
com o zoneamento do Plano Diretor, considerada popularmente
como “Centro Histórico”. O recorte foi realizado através dos
lugares retratados pelos ouropretanos na pesquisa.

Cinema
Pastelzinho
Museus
Rua das Flores
Bancos Sentada do lado de
Rua São José fora mesmo
Café das Flores

Correios
Lotérica
Café
Geraes Na rua
República Farmácias
Cervejeira
Escada a
Rua São José Baixo Sentada na
Quinto Estátua
dOuro
Visitando as lojas
Rosário
Parada
do Conde Laboratório
Sentada na porta da loja Claudino

Tropea Praça
 Amarelo Nas fachadas ou portas Casa do Tiradentes
2,9% Casa da Ópera Satélite Ouvidor
  Negro
48,6% Branco
Ouropretano Amarelo 20,0%

Ouropretano Branco
Tipo 1
Ouropretano Pardo
Adro Igreja do Carmo
Ouropretano Negro

Pardo
Ouropretano durante
horário de intervalo 28,5% Igrejas
Comércios/Serviços Tipo 1
Negro Sentada na calçada
12,5%
Comércios/Serviços Tipo 2

Tipo 2
             
Gráficos de ouropretanos que trabalham na Rua Direita de
Atrás do Museu
   !
"  #$%      &       
      '  ($  ) acordo com raça/cor/etnia e frequentam Comércios/Serviços
do Tipo 1 ou do Tipo 2.
  #%   &$  )

Branco Dados de um total de 65 pessoas, sendo que 19 pessoas não


87,5% frequentam nenhum outro espaço além do trabalho.
Portanto, os locais de lazer utilizados no Centro Histórico são em sua maioria
elitizados (Tipo 2) e usufruídos por pessoas brancas – com exceção do Bar Satélite
que está na categoria Tipo 1 e é frequentado por todos os tipos de raça/cor/etnia
(Figura 24).

Figura 24: Bar Satélite durante um sábado a noite. Fonte: Retrato da autora, dezembro de 2020.

Figura 25: Correios, no início do mês com fila que vai até a rua e ao prédio vizinho. Fonte: Retrato da
autora, novembro 2020.

Além disso, o Mapa 04 também mostra alguns locais frequentados durante o


horário de intervalo dos trabalhadores (grande parte fica dentro do próprio local de
trabalho), estes permanecem invisíveis diante do regime neoliberal, dessa forma a
fruição do espaço continua atrelada ao poder de compra – valor de troca – e portanto,
os ouropretanos reinventam a utilização de locais durante seu pouco tempo de
intervalo, através de espaços não convencionais, em busca de sombras, bancos
improvisados e descanso, como por exemplo atrás do Museu, no adro da Igreja do
62
Carmo e ao longo da rua (sentados nos becos, como na Figura 26, nas portas e
fachadas, nas calçadas...). Dessa forma,

“na sociedade moderna, a escravidão permanece, essencialmente por conta


das condições de trabalho degradantes, notadamente relacionadas a
segurança, saúde, descanso e higiene, oferecidas por empresas a
trabalhadores, usualmente migrantes e imigrantes.” (MORADO, 2020, p. 65)

Figura 26: Ouropretana durante horário de intervalo, sentada à sombra no degrau de um dos becos
da rua Direita. Fonte: Retrato da autora, fevereiro de 2020.

Assim, a Rua Direita representa um espaço de lazer e fruição apenas para


turistas, além de alguns moradores de Ouro Preto que possuem maior poder aquisitivo
compartilham dessa visão. Já o restante dos ouropretanos tem com a rua uma relação
de passagem ou trabalho. De acordo com os questionários, foi possível perceber que
a maior parte das pessoas que trabalha na rua Direita tem a visão do espaço como
um “Centro Turístico/Histórico” ou “Centro Comercial”, que é importante por causa do
“Trabalho”, e algumas ainda não vêm importância alguma para com a mesma.

63
"Vejo como qualquer outro lugar”
ouropretana 31, negra, moradora do Pocinho, diarista

“Não vejo muita importância”


ouropretano 64, negro, morador do Alto da Cruz, vigia patrimonial

3.2.3 Perspectivas dos moradores de Ouro Preto para a Rua Direita

Em um outro campo para apontamentos sobre sugestões ou modificações


positivas para a Rua Direita, os comentários mais recorrentes foram relacionados ao
desejo por lugares mais acessíveis, locais que os moradores da cidade pudessem
frequentar e não tivessem como público alvo os turistas – ou ainda pessoas com alto
poder aquisitivo (12 pessoas falaram sobre estes tópicos em um total de 43 respostas,
já que 22 não responderam). Alguns dos comentários:

“Mais áreas de lazer que possam integrar a população ouropretana”


ouropretano 41, negro, morador da Barra, garçom

"Abrir algo de uso público para todo mundo, tudo na rua direita é pago e caro"
ouropretana 31, negra, moradora do Pocinho, diarista

“Os preços dos estabelecimentos foram feitos só para turistas ricos"


ouropretana 11, branca, moradora de Mariana, vendedora

“Lugares mais acessíveis, os lugares por aqui nessa rua são mais frequentados por turistas”
ouropretana 5, branca, moradora da Bauxita, vendedora

“Nossa cidade é pronta, a mudança que se vê é no lado cultural, voltar o jazz, mais atividades de
lazer que respeitem o patrimônio histórico."
ouropretana 62, branca, moradora da Rua Direita, proprietária de loja

64
Figura 27: Ouropretana sentada em uma das fachadas, numa quarta feira, horário de almoço. Fonte:
Retrato da autora, novembro de 2020.

Além dos apontamentos em relação a locais mais acessíveis para os


moradores, também apareceram comentários em relação a mobilidade urbana e ao
calçamento (8 pessoas falaram sobre melhorar o calçamento do leito carroçável e das
calçadas, algumas até sugeriram que deveria ser colocado “asfalto” ou “concreto”). Já
sobre a mobilidade urbana (11 comentários), o maior questionamento é relacionado
aos carros (Figura 28), a Rua Direita não é voltada para os pedestres, por isso, muitos
sugeriram retirar os carros estacionados, proibir o estacionamento ou fechar a rua nos
finais de semana (“corredor cultural”). Em contrapartida, também foi falado pelo
ouropretano 33, negro, morador do Morro Santana que não ter estacionamento é mais
um empecilho para que se usufrua da rua: "Rotativo dia de domingo é mais um

65
obstáculo para quem mora e trabalha, se tiver algum programa para família e crianças,
não pode ficar por ser caro o rotativo".

Figura 28: Rua Direita todos os dias da semana com muitos carros estacionados dos dois lados da
rua. Fonte: Retratos da autora, fevereiro 2020.

Algumas sugestões também foram relacionadas à segurança (8


apontamentos), nesse caso, abordam a segurança para os comerciantes e turistas, já
que afirmam ter aumentado “a quantidade de dependentes químicos, tomadores de
conta de veículos e pedintes” (ouropretano 26, branco, morador de Ouro Branco,
proprietário de estabelecimento na Rua Direita). Em contrapartida, uma ouropretana
negra, moradora do Pocinho, comenta não frequentar a rua para atividades além do
trabalho por não se sentir segura, e preferir estar em locais “onde as pessoas não
fazem distinção umas das outras”.

"Polícias e guardas circulando na rua"


ouropretano 10, branco, morador da Rua Direita, proprietário de joalheria

"Aumentar policiamento para evitar constrangimento aos trabalhadores e turistas”


ouropretano 26, branco, morador de Ouro Branco, proprietário do Le Chalet

66
Portanto, os moradores de Ouro Preto que ainda se fazem presentes em um
espaço patrimonializado que insiste em expulsá-los, não usufruem o espaço de forma
plena, tendo seu principal uso – e em grande parte, único – como local de trabalho.
O regime neoliberal expulsa, repele e esteriliza os atores urbanos que não consomem
o patrimônio construído através do capital, esquecendo e ignorando o patrimônio
cultural. Assim, a indústria cultural garante o direito à cidade apenas aos turistas, ou
moradores de classes sociais altas, que consomem o espaço pelo valor de troca
devido ao marketing urbano ligado ao turismo em um território patrimonializado, ou
seja, um território marcado pela desigualdade, segregação social e descriminação
racial. A contradição pode ser explicada por Carsalade (2009), quando destaca que é
através da simbiose entre objeto e sujeito que o patrimônio cultural existe, já que a
história do objeto só pode ser construída através do sujeito. Dessa maneira, se dá a
importância de que todos os cidadãos – principalmente os moradores da cidade –
devem usufruir do patrimônio, garantindo a memória, comum a todos.

67
4 SOBREPOSIÇÕES E LEITURAS

A Rua Direita passou por diversas mudanças em sua conformação social


espacial, principalmente nas últimas duas décadas, devido ao marketing urbano e a
indústria cultural, que a transformaram em um espaço fabricado para os turistas. Logo,
os usos nas edificações ao longo da rua foram sendo modificados, o que afetou o
público que frequenta a mesma, afastando os moradores da cidade e enfraquecendo
suas relações de permanência e pertencimento. Passos (2018) realizou uma análise
minuciosa sobre as mudanças de uso de todas as edificações presentes da rua Conde
de Bobadela do ano 2000 a 2018, concluindo que a maior parte dos comércios e
serviços presentes na rua em 2018 eram elitizados (Tipo 2) e substituíram comércios
e serviços populares (Tipo 1) os quais atendiam a população ouropretana.
As revitalizações de algumas das edificações é um dos pontos que impulsiona
o início das mudanças de uso na rua Direita – e consequente expulsão da população
ouropretana –, em 2005 são instaladas duas pousadas que contribuem para a
transformação da dinâmica da rua: a Pousada Clássica e o Hotel Pousada Solar da
Ópera (Figura 29 e 30). Até então a rua possuía pousadas mais modestas, e com a
entrada de duas elitizadas em espaços recém revitalizados, a vida noturna começou
a sofrer restrições, “pois com um público mais exigente a “ordem” deveria ser mantida
para o ‘bem-estar’ dos novos atores” (PASSOS, 2018, p. 55). Além disso, em 2005
também saem da rua comércios e serviços populares como o Supermercado Aliança
(substituído pela Farmácia Drogramed), Loja Casa Popular (substituído pela Pousada
Clássica), Bar da Dona Antônia (hoje, Ópera Café), Cabloca Modas, Marselha
Presentes (substituído pela Casa Azevedo) e Tele Entrega Tic Tac, ademais, algumas
joalherias se instalaram na rua (Argetum Aurum, Diamond Joalheria, Pacto Joias, Ita
Gemas e Estrada Real - Comércio de Gemas e Joias).
Em 2009, outra mudança pontual chama a atenção devido ao seu impacto na
vida noturna: o Bar do Alves (estabelecimento ao lado da Pousada Clássica) que
continuou com o mesmo dono, porém, mudou seu uso para Alpes Materiais de Pesca.
A loja de roupas Stoke (Tipo 1) também é substituída, pela Chocolateria Cacau, além

68
de mais joalherias serem abertas (Itacolomy Gemas, Prima Face e Fábrica de Artes e
Joias). Para Passos,

“[...] não se pode desconsiderar as mudanças já percebidas nesses primeiros


anos (2000 a 2009), em que se identificou a substituição de comércios e
serviços, como supermercado, salão de beleza, instituição educacional, lojas
de roupas populares, entre outros, por pousadas, lojas de joias, lojas de
artesanato, restaurantes, que refletiram na substituição dos usuários. [...]
Como se pode perceber, houve a troca de estabelecimentos que integravam
a cotidiano na vida comum do ouro-pretano por estabelecimentos
fomentadores da indústria cultural.” (PASSOS, 2018, p.58)

Figura 29: Retrato da edificação onde Figura 30: Hotel Pousada Solar da Ópera em 2020, o
atualmente se encontra o Hotel Pousada hotel se instaurou no prédio após revitalização em 2005.
Solar da Ópera e o Ópera Café, na década Fonte: Retrato da autora, novembro de 2020.
de 1990. Fonte: PASSOS, 2018, p. 54.

A partir de 2011 uso dos estabelecimentos continuou a ser transformado,


inclusive de forma mais intensa, os comércios e serviços populares se esvaem, sendo
substituídos por chocolaterias, cafés, mais joalherias, restaurantes, boutiques e lojas
“gourmetizadas”, além de diversas franquias. Somado a isso, o que se percebe são
mudanças também no sentido estético, em direção a uma padronização do “estilo
patrimônio” e do cenário colonial, higienizando os ambientes e homogeneizando o
design dos interiores. Assim, caminhando para uma cidade cada vez mais standard,

“a cidade standard tem como característica a crescente vulnerabilidade que,


de forma exemplar se concretiza na produção de seu espaço, essencialmente
fragmentado e desconectado da história produzida pelos seus habitantes.
Espaço este cada vez mais adaptado à precarização com relações sociais
igualmente fragilizadas tudo em consonância com o atual processo de
globalização. O habitante, portanto, adere a uma cidade que não abre
69
diálogo, e sua sobrevivência cada vez mais se constitui em espaços da
desigualdade” (CAVALLAZZI; FAUTH, p. 3, 2014)

Nas figuras a seguir é possível observar as modificações nas fachadas e nos


estabelecimentos, em 2009 nota-se a presença do restaurante popular Beijinho Doce
(Figura 31), o qual já não existe mais na rua em 2014 (Figura 32), e tem sua fachada
restaurada ao longo dos anos, porém, continua fechado após a saída do restaurante
(Figura 33 e 34). Além disso, também houve mudança no estabelecimento ao lado,
que funciona o restaurante popular Sótão até 2009, o prédio ficará fechado até 2014,
quando é reformado para receber o Império Cacau e Chocolateria Café, atualmente
funciona outro serviço elitizado o Le Chalet, cafeteria.

Figura 31: Fachadas em 2009, estabelecimento Figura 32: Fachadas em 2014, ambas edificações
Beijinho Doce e o Sótao. Fonte: Google Street vazias e pouco conservadas. Fonte: Google Street
View, disponível em <www.google.com.br/maps>, View, disponível em <www.google.com.br/maps>,
acesso em dezembro de 2020. acesso em dezembro de 2020.

Figura 33: Fachadas em 2019, ambas Figura 34: Fachadas em 2020, novamente a
reviltalizadas, uma delas sem informação a primeira fachada passou por revitalização, a
outra o estabelecimento Império Cacau. Fonte: segunda mudou o nome para Le Chalet. Fonte:
Google Street View, disponível em Retrato da autora, novembro de 2020.
<www.google.com.br/maps>, acesso em
dezembro de 2020.

70
Na Rua Direita também existiram diversas lojas de roupas populares,
frequentadas pelos moradores e comunidade local, aos poucos foram sendo
substituídas por outros usos como lojas de queijos e goiabadas gourmets (figuras 37
e 38). A Bellita acessórios ao substituir a loja de roupas o Brasileirão, manteve o uso
continuando a ser uma loja de roupas e acessórios, porém mudando completamente
o público, devido à oferta de produtos de alto capital monetário, além de mudar o
interior, aparecendo vitrines de vidro e mostruários requintados (figuras 35 e 36).

Figura 36: Fachadas em 2009, comércios e Figura 35: Fachadas em 2013, comércios e
serviços populares, Kadura Presentes e Loja de serviços elitizados. Armazém Vila Rica Queijos e
Roupas o Brasileirão. Fonte: Google Street View, Bellita Acessórios Boutique. Fonte: Google Street
disponível em <www.google.com.br/maps>, View, disponível em
acesso em dezembro de 2020. <www.google.com.br/maps>, acesso em
dezembro de 2020.

Figura 38: Fachadas em 2007, comércios e Figura 37: Fachadas em 2009, restaurante Maximus e
serviços populares, lojas de roupas. Fonte: Kadura Presentes. Fonte: Google Street View,
PASSOS, 2018, p.62. disponível em <www.google.com.br/maps>, acesso
em dezembro de 2020.

71
Figura 39: Fachadas em 2020, restaurante Mr. Cheff (antigo restaurante Máximus), Armazém Vila
Rica e Bellita Acessórios. Fonte: Retrato da autora, novembro de 2020.

Em 2014, o estabelecimento Itafotos também sai da Rua Direita, este oferecia


serviços populares agregando para os moradores usos cotidianos como xerox (figura
40). Atualmente a edificação funciona uma boutique de roupas, Amuleto, pouco
acessível para a comunidade local (figura 41).

Figura 40: Fachadas em 2009, Itafotos e Casa Figura 41: Fachadas em 2020, boutique
Azevedo. Fonte: Google Street View, disponível em Amuleto e loja de móveis Casa Azevedo.
<www.google.com.br/maps>, acesso em dezembro Fonte: Retrato da autora, novembro de
de 2020. 2020.

72
Em uma das perguntas do questionário, havia um campo sobre as mudanças
na rua Conde de Bobadela ao longo dos últimos anos, os apontamentos foram
diversos, alguns sobre o aumento de comércios e joalherias, outros diziam ter apenas
lojas de artesanato, além de moradores que comentaram a mudança nas fachadas e
a mudança de público. Houveram inclusive comentários de pessoas que acharam que
a rua continua igual, “não tem nada diferente de antes” (ouropretana 13, branca,
frequenta a rua direita há 10 anos), e ainda sobre a rua estar “cada vez mais
sedentária” (ouropretano 59, pardo, morador da Bauxita).

"Os estabelecimentos e o público mudaram"


ouropretano 4, parda, moradora da Bauxita, frequenta a rua Direita há 20 anos

“Antigamente tinham bares e restaurantes mais acessíveis para os moradores da cidade”


ouropretana 11, branca, moradora de Mariana

"Continua sem atrações para os moradores"


ouropretana 14, negra, moradora do Morro São Sebastião, frequenta a rua Direita há 10 anos

“Aumento de restaurantes, cafés, artesanato e hotéis”


ouropretano 9, branco, morador da Rua Direita há 30 anos

“Algumas fachadas das casas mudaram”


ouropretano 42, pardo, morador do Morro Santana, frequenta a rua há 7 anos

“Acabou o lazer e divertimento”


Ouropretano 30, negro, morador do São Cristóvão, frequenta a rua Direita há ‘décadas’

“Aumento de comércios, mudança de público”


Ouropretana 40, pardo, morador do bairro Água Limpa, frequenta a rua Direita desde que se entende
por gente

“Agora é mais para turistas do que os moradores”


ouropretana 50, branca, moradora da Bauxita, frequenta a rua Direita desde sempre

Havia mais movimento de pessoas”


ouropretana 55, branca, moradora do bairro Alto da Cruz

Ainda em 2014, o estabelecimento mais frequentado e querido pelos


moradores da cidade de Ouro Preto também é retirado da rua Conde de Bobadela, o
que causou uma comoção imensa à todos. O Bar Barroco permaneceu durante 32
anos na rua, como um local eclético, recebendo um variado público como intelectuais,
artistas de rua, turistas, moradores da cidade, “advogados, bebuns, engenheiros,
estudantes, viajantes, lunáticos e tudo o mais que você pensar. O buteco mais
democrático deste Brasil, no coração de Minas Gerais” (publicação no perfil do
73
Facebook do Bar Barroco, figura 42). Em matéria intitulada “Barroco: mais famoso que
Alejadinho”, da revista Tecer – reportagem e entrevista UFOP:

“O Bar Barroco, também conhecido como Bar das Coxinhas, devido à fama
do petisco, é um lugar de aparência rústica e aconchegante. Recanto de
ideias e memórias, o local é feito a partir das histórias de todos aqueles que
lá frequentam, seja por um dia ou por vários anos. Nas paredes do boteco
têm-se nomes, frases, origens, destinos e sonhos a construírem o ambiente.
Os que por lá passaram continuam a discussão com frases que deixaram
cravadas, enquanto os que lá estão bebem, brincam, riem, filosofam e
observam. Passado e presente dividem o mesmo cenário: desde as paredes
às mesas do bar, a essência das pessoas jamais é esquecida.” (Tecer, agosto
de 2014).

Figura 42: Postagens do Bar Barroco na rede social Facebook. Fonte: Facebook Bar Barroco, acesso
em dezembro de 2020.

Figura 43: Parede do Barroco, "Ideias e expressões anônimas se unem e constroem a originalidade
do bar". Fonte: Flávio Ribeiro, Tecer – reportagem e entrevista UFOP. Disponível em
<https://www.jornalismo.ufop.br/tecer/?p=4432>. Acesso em dezembro de 2020.
74
O bar trazia vida a rua, que ficava lotada, movimentando a vida noturna de Ouro
Preto, a ouropretana 35, branca, moradora do bairro Nossa Senhora de Lourdes
relembra “a rua Direita já foi o point de encontro da minha juventude, morei 15 anos
fora da cidade e retornei em 2020”, e ainda acrescenta quando se pergunta sobre as
mudanças na rua ao longo dos anos:

"A rua Direita foi o point jovem da cidade e isso não ocorre mais na atualidade.
A construção de dois hotéis (Pousada Clássica e Solar da Ópera), segundo
se sabe, fez pressão para retirar os bairros da rua, já que o barulho
incomodava os hóspedes do setor hoteleiro. Isso fez com que acabasse parte
da vida noturna do centro da cidade. Na minha opinião, também enfraqueceu
parte do turismo que buscava conhecer a famosa vida noturna de Ouro Preto.
O Bar Barroco representava bem isso que menciono acima." (depoimento
dado pela ouropretana 35 em questionário, 2020)

Figura 44: Despedida do Bar Barroco da rua Direita, reunindo inúmeras pessoas e enchendo a rua,
31 de setembro de 2014. Fonte: Eduardo Trópia, Disponível em
<http://www.ouropreto.com.br/noticia/347/bar-do-barroco-32-anos-fotos-eduardo-tropia>. Acesso em
dezembro de 2020.

75
Figura 45: Seu Antônio, dono do Bar Barroco há 32 anos agradece a família, amigos e clientes no dia
da despedida, 31 de setembro de 2014. Fonte: Eduardo Trópia, Disponível em
<http://www.ouropreto.com.br/noticia/347/bar-do-barroco-32-anos-fotos-eduardo-tropia>. Acesso em
dezembro de 2020.

O poder do capital retira o Barroco da rua Direita para dar espaço a um anexo
da Pousada Clássica (localizada ao lado do bar), a qual irá movimentar a indústria
cultural e garantir lucro aos produtores do espaço. Já que o Barroco era um espaço
voltado para a comunidade local e não para os turistas, além do dono ser um morador
local, o boteco era – e ainda é – parte do patrimônio cultural dos ouropretanos,
representando a memória, narrativas e histórias de tantas pessoas que passaram pela
rua.

Figura 46: Fachada da Pousada Clássica em 2020 – envidraçada para fazer mais uma divisão entre
quem entra e quem fica na rua – com o anexo do lado, onde se encontrava o Bar Barroco até 2014,
por 32 anos. Fonte: retrato da autora, novembro de 2020.
76
Figura 47: Interior do anexo da Pousada Clássica, antigo Barroco, um ambiente homogeneizado e
esterilizado. Fonte: PASSOS, 2018, p. 51.

Figura 48: Bar Barroco no dia da despedida, cheio de sorrisos, histórias, diversidade, contrastes e
vida. Fonte: Lucas de Godoy. Disponível em <https://www.jornalismo.ufop.br/tecer>. Acesso em
dezembro de 2020.

O Barroco foi citado diversas vezes nos questionários, principalmente em


relação as mudanças na rua Direita ao longo dos anos. quando o bar ainda existia, os
trabalhadores após finalizarem os turnos as sexta-feiras ou nos finais de semana,
paravam no Barroco para descansar e aproveitar nas calçadas, comendo coxinha,
bebendo cerveja ou conversando com amigos.

"Antigamente eu ia no Barroco, depois que saiu da rua, as vezes frequento o Satélite"


ouropretano 1, negra, moradora do Alto da Cruz, vendedora

“Mudança de público com a saída do Bar Barroco”


ouropretano 10, branco, morador da Rua Direita, proprietário da Ita Gemas

77
"Barroco não existe mais"
ouropretano 19, parda, moradora do Morro São Sebastião, vendedora

“Retiram o Bar Barroco da Rua Direita”


Ouropretana 48, negra, moradora do Pocinho, vendedora

“Fechou o Barroco e gormetizou”


Ouropretana 63, branca, moradora da Barra, coordenadora do Museu Casa Guignard

"O melhor bar da rua foi fechado, digo, mudou de endereço"


ouropretano 64, negro, morador do Alto da Cruz, vigia patrimonial

Figura 50: Rua Direita em 2020, Figura 49: As famosas coxinhas do bar do Barroco.
Pousada Clássica e anexo (antigo Fonte: Facebook do Bar Barroco. Disponível em
Barroco), envidraçados. Fonte: Retrato <https://www.facebook.com/barrocoouropreto/photos/277
da autora, dezembro de 2020. 8251422259931/>. Acesso em dezembro de 2020.

Então, o processo de gentrificação que vem evoluindo na Rua Direita há


décadas, além de expulsar os moradores da cidade devido às transformações dos
estabelecimentos e produtos ofertados, também fragiliza suas relações de
pertencimento com a rua – principalmente após os produtores do espaço retirarem o
principal espaço de aconchego e reconhecimento da comunidade. Não há lugar para
todos no espaço urbano patrimonializado, não há lugar para pobres, não há lugar para
negros, não há lugar para lazer,
“de todo modo, a desigualdade coloca-se ao lado da exclusão pois não só a
potencializa como também a determina diante de condições de existência
iniciais. Sob essa ótica, a compreensão da situação social desfavorável de
um indivíduo ou de um grupo de indivíduos é evidente [...], os excluídos estão
no lugar de extrema desigualdade, ou seja, em desvantagens diante das
vantagens de outros em termos de renda, de acesso a recursos, seja de que
natureza for, bem como de direitos.” (MORADO, 2020, p.64)

78
Figura 51: Ouropretana em seu local de trabalho em uma das fachadas da rua Direita.

79
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após realizada a escuta dos moradores de ouropreto que trabalham na Rua


Direita, outras perspectivas sobre o espaço urbano patrimonializado foram colocadas
em foco. A importância e a relação que a comunidade tem com a rua é
majoritariamente em relação ao trabalho, sob o olhar desses trabalhadores, o espaço
urbano patrimonializado nada mais é do que comum.
Portanto, através da pesquisa, foi possível perceber que o território discrimina
e segrega inclusive os ouropretanos que estão presentes no dia a dia da rua Direita,
principalmente, os que pertencem a classes sociais mais baixas e são negros ou
pardos. Assim, os produtores do espaço, por meio de mecanismos da indústria cultural
presentes no patrimônio construído, naturalizam e legitimam a desigualdade e a
segregação, além de justificar através do valor de troca destes espaços, a expulsão
dos moradores da cidade.
Para Simão (2016) o patrimônio não deveria polarizar a cidade, separando o
espaço patrimonializado do restante da cidade, já que juntos são um organismo vivo,
com dinâmicas sociais relacionadas a uma única sociedade. A cultura local das
pessoas que habitam e vivem o espaço urbano o mantém orgânico e natural, assim,
ignorar quem mantém a memória da cidade viva é fabricar ambientes estéreis, para
serem consumidos de forma pronta, sem experiências ou acontecimentos únicos,
inesperados. O patrimônio construído precisa ser devolvido para os moradores da
cidade, faz-se necessário a volta da valorização da cultura local e a busca por justiça
social no espaço urbano patrimonializado.

80
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85
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
Universidade Federal de Ouro Preto
Escola de Minas
Departamento de Arquitetura e Urbanismo

Certifico que a aluna Thais Padula Trombeta, autora do trabalho de conclusão de curso
intitulado “Sobre Espaços Urbanos Patrimonializados e Processos de Gentrificação:
Estudo de Caso da Rua Direita em Ouro Preto/MG”, efetuou as correções sugeridas
pela banca examinadora e que estou de acordo com a versão final do trabalho.

Ateciosamente,

___________________________________________
Profa Dra Monique Sanches Marques
Orientadora
Curso de Arquitetura e Urbanismo
Escola de Minas – Universidade Federal de Ouro Preto.

Ouro Preto, 06 de janeiro de 2021

Campus Universitário – CEP: 35400-000 – Ouro Preto – MG


Home page: http://www.em.ufop.br – E-mail: dearq@em.ufop.br – Fones: (0xx)31 3559-1484

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