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Mana Mana Chagas de Carvalho

Coacção Primeiros Passos


A ESCOLA
E A REPUBLICA
.#
A Questão Política da Educação O que é Educação
Popular CardosR. Brandão
CarlosR. Brandão
O que ê História
Educação, Estado e Poder Vavy Pacheco Borgas
Fábio K. Comparato

A Escola e a Compreen! da
Realidade Colação Tudo é História
Mana Teresa NidelcoH'
São Paulo na Primam
Pedagogia Dialética República
De Adst6teies a Pavio Fteire Silvia Levi-Modera
Wolfdietrich Schmied-Kowarzik
A Burguesia Btasileim
Jacob Gorcnder

editora brasiliense
Copyrlghf(Ê) by Marra À4arfaC/bagasde Carpa/ho, 1989
Nenhuma parte desta publicação pode ser gradada.
armazerzadaem sistemas elefrõrzícos,fotocoplada.
reproduzida por meios mecêrzícosou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.

ISBN: 85-11-02127-2
Primeira edição, 1989
(

Copydesk: Rosemary C. Machado


Revisão: Flauta Cescon e Cristina H. Pinho ÍNDICE
Capa e ilustrações:Daisy Startad

Organizadora da coieção Tudo ê HistóHa - República


Maça Clementina Peneirada Cunha

IntrodiAção. . . . . . . . . . . . . . . 7
A Dívida Republicana . ..... .... . 9
A Escola Modelar 23
t
O Freio do Progresso. . . . .. ' ' ' ' ' ..
A Reforma Moral e Intelectual 54
Indicações para LeiMra . . . . . . . . . . . 8]
t Livros e Artigos Citados. ...... .

Reza da Consolação, 2ó97


0141óSão Paulo SP
Fora (O11)280-1222- Telex: ll 33271 DBLM BR

IMPRESSO NO BRASIL
INTRODUÇÃO

A escola foi, no imaginário republicano, signo da


instauraçãoda nova ordem, arma para efetuaro Progres-
so. Na sociedade excludente que se esüuturou nas malhas
da opção imigrantista, nos üms do século )(IX e início
deste, a escola foi, entretanto, facultada a poucos Nos
anos 20, na avaliação da República instituídafeita por
intelectuaisque se propõem a ;zn.sa" o Brasil, a política
mpublicanaé acusadade ter alegado ao abandono"mi-
lhões de anaKabetosde letras e de ofícios", toda uma
massa popular, núcleo da nacionalidade. Esta legião de
excluídos da ordem republicana aparece então como freio
do Progresso, a impor sua presença incómoda no cotidi-
ano das cidades. A escola foi, em conseqüência, reaümna-
da como amua de que dependia a superação dos entraves
que estariam impedindo a marcha do Progresso, na nova
ordem que se esüuturava. Passa, no entanto, a ser consi-
derada "amua perigosa", exigindo a redefinição de seu es-
tatuto como instrumento de dominação.
8 Mat ta Malta Clt«gas de Ca} \ atll o

Este livro realiza um percurso por este processo de


redefinição do estatuto da escola na ordem republicana.
Centra-se, para isto, na elucidação do projeto político-
pedagógico formulado nos anos 20, ao calor do chama-
do entusiasmo pela educação. A partir da avaliação da
República instituída,que informou este prometo,o livro
se detémnuma leitura da ação reformadora.de Caetano
de Campos, no fim do século, para, em seguida, regis-
trar o deslocamentoque sofre a questão educacional no
6mal da década de 1910. Finalmente, exibe o novo des- A DIVIDA REPUBLICANA
locamento que se produz no discurso pedagógico a partir
de meados da década de 20, interpretando-o como repoli-
tização do campo educacional, expresso num ambicioso
prometode reforma moral e intelectual.
Em seu percurso, o livro recusou a doutrina do
transplante cultural, acionada com freqüência na histo- Sedimentou-senos anos 20, entra intelectuaisque se
aplicavam a pensar o Bía.sil e a avaliar a República instituí-
riografia sobre educação no Brasil, para explicar o abis-
da, a cnnça de que na educação msidia a solução dos pro-
mo que efetua -- pelo confronto entre ideologias e fatos
blemas que identificavam. Este entusiasmo pela educação
-- entre projetos lidos como propostasde democratiza-
condensava expectativas diversas de console e modemiza-
ção da sociedade pela escola e a realidade educacional.
ção social, cuja formulação mais acabada se deu no âmbito
Descartando essa douüina por sua capacidade de tudo ex-
plicar e, portanto, n(z/a explicar, o livro deixa como su- do nacionalismo que contaminaa produção intelectualdo
gestão a novas investigações em história da educação período. Neste âmbito, o papel da educação foi hiperdi-
brasileira uma perspectiva de análise que descarte a ten- mensionado:datava-sede dar forma ao país amorfo, de
tação, sempre recorrente, de entender a importação de tmnsfomiar os habitantesem pa'o, de vitalizar o organis-
idéias estrangeiras como mimetismos inconseqüentes mo nacional, de constituir a nação. Nele se foÜava pmyeto
que atestaiiam a fragilidade das classes dominantes ou de político autoritário: educar em obm de moldagem de um
fração delas na formulação e imposição de projetos povo, matériainfonne e plasmável,confomleos anseios
políticos de seu interesse. de Ordem e Prognsso de um grupo que se auto-investia
como elite com autoridadepam píomovê-los.

B
Perpassava fortemente o imaginário desses entu-
10 Malta Malict Chctgctsde Cala'atino A Escola e a Repúbiic a 11

siastas da educação o tema da amorüla. Referido ao país, idéia de que a educação era favormesológico detemiinante
marcava-o como /bacio/za/i(tzdeem ser a demandar o tm- no aperfeiçoamento
dos povos, sobrepujandoos fatores
balho confomiador e homogeneizador da educação. Refe- raciais. As imagens do negro e do mestiço como "vadio"
rido às populações brasileiras, proliferava em signos da continuam a inquietar esse imaginário, mas deixam de
doença, do vício, da falta de vitalidade, da degradação e ser o signo de uma incapacidade inamovível para o traba-
da degenerescência. O trabalho é, nessas figurações, ele- lho livre. O liberto e seus descendentespemtanecem es-
mento ausente da vida nacional. As imagens dê popu- tigmatizados como criaturas primitivas e por isso pro-
lações doentes, indolentes e improdutivas, vagando .ve- pensasà vadiagem. Mas esta passa a ser também o resul-
getativamente pelo país, somam-se às de uma popu- tado da incúria política de abolicionistas e republicanos
lação urbana resistenteao que era entendido como tra- que não os teriam adestrado para as imposições da liber-
balho adequado, remunerador e salutar. Imigrantes a dade. Era o que, em 1931, Fumando Magalhães -- ilustre
fermentar de anarquia o caráter nacional e populações médico carioca que desde os anos 20 se enganarana cam-
pobres perdidas na vadiagem impunham sua presença panha de ngenemção nacional pela educação -- lastima-
incomoda nas cidades e comprometiam o que se propu- va, ao escnver que o país não se preparam
nha como "organização do trabalho nacional".
Rege/zelar as populações brasileiras, núcleo da na- 'pam o dia seguinte da liberdade que despovoada os cam-
cionalidade, tomando-as saudáveis, disciplinadas e pro- pos pelo delírio dos libertados, meio inconscientes, Guio
dutivas, eis o que se esperava da educação, erigida nesse pümitivismo os manteria na escravidão social, ainda ho-
imaginário em causa cívica de redenção nacional. Rege- je não abolida. A displicênciados govemos despreocu-
pou-se de defender o tmbalho livre, garantia da produtivi-
nerar o brasileiro era dívida republicana a ser resgatada
dade nacional, no momento em que a alucinação da alfor-
pelas novas gerações.
üa houvesse, como houve, de se encaminhar para a va-
A questão da organização do trabalho nacional for-
diagem. A palavra dos pagadores da abolição, se
mulava-se em termos diversos daqueles que haviam
proclamou criaturas livres, não as adestrou pma as im-
predominado no üim do século. As teses racistas, que ha- posições da liberdade."(Á Esta/a RegfonzaD
viam sido articuladas em defesa da imigração, embalando
práticas excludentes da participação do liberto no mercado Por sua vez, o imigrante não em mais marcado no
de trabalho dos setons mais dinâmicos da economia na- imaginário dessas novas elites pelos signos da operosi-
cional, são agora refonnuladas. Se a cor da pele permane- dade, vigor e disciplina que haviam enleado os promotores
cia assombrandoos novos intérpretesdo Brasil que en- da imigração no fim do século )(IX, alimentando.-lhes os
tmm em cena nos anos 20, ganhava força entra eles a sonhos de Prognsso. Tàs sonhos, articulados numa polí-
12 13
Malta Mana Chagas de Can'alhos \ K'A Escola e a República

tecade exclusão do liberto, na expectativa racista e mom- 'as riquezas materiais que se ocultam no .interior do
lizadom de que a tão decantada opeiosidade do imigrante país: são as suas forças vivas, as suas forças morais,
acabasse por erradicar a vadiagem nacional, iuíam agom. únicas capazes de dominar a dissolução dos centros
As greves operárias marcavam a figum do imigrante como urbanos ostentosos e anuquizados." (ibidem)
pmsença também incómoda a 'fermentar de anarquia o
caráternacional", como lastimava o mesmo Magalhães: Desta perspectiva, organizar o trabalho nacional
era, sobretudo-- com o concurso de uma escola que
'Parecia o Bmsil pagar duramente o pecado da escra- disseminasse "não o perigoso conhecimento exclusivo
vidão prolongada. Ao cabo de quase 50 anos, pennanece das letras, mas a consciência do dever domiciliário" --.
a preocupação angustiosa pelo destino da massa popular, fixar o homem no campo, de modo a conter os fluxos
núcleo da nacionalidadee da democmcia, incapaz de migratórios para as cidades e a vitalizar a produção
servir as suas responsabilidades e aítiscada de se falsi- rural. Neste caso, o resgate do que se consideravauma
ficar nas correntes emigratóriasfennentadas de indisci- dívida republicana fazia-se como proposta agrarista: "o
plina." (lóidem)
que não foi feito oportunamente sê-lo-á agora e o traba-
lhador rural, livre, criará o cidadão útil, votado à pro-
A preocupação angustiosa pelo destino da massa priedade do seu recanto."(ibidem)
popular encenava, no discurso de Magalhães, a crítica Outro era o teor da dívida republicana a ser res-
ao citadismo e ao indusüíalismo de importação, conse- gatada, segundo Vicente Licínio Cardoso, intelectual
qüências de mentalidade verbalista cega ao país real e que cunhou a expressãope/zoaro Brusl/ nos anos 20.
fascinada com fórmulas e costumes estrangeiros: Propunha que se revisse a historiografia estabelecida so-
bre o advento do regime republicano, criticando-lhe a
'0 exemplo de outros países de costumes e tradições desconsideraçãodos fenómenos sociais e económicos
diferentes contaminou de suntuosidade o regime, criando postos em jogo com a emancipação dos escravos. No
o novo problema, o citadismo, atraindopara os centros seu entender, tal desconsideração não somente impedia
de grande torvelinho provincianos e sertanejas, crentes a compreensão adequada do processo que conduzira à
no milagre da vida fácil."(lóidem) Proclamação da República, como também induzia a
uma percepção equivocada dos problemas que barmvam
A industrialização era "fenómeno de importação a efetiva republicanização do país. Entendendo democra-
onde a terra definha de emigração". O antídotodesses cia como organização social do tmbalho livre e repúbli-
males em a "educação do povo sertanqo desprotegido", ca como a forma política de tal organização, Licínio jul-
l que o fixasse no campo. Não são apenas, dizia, gava que a República brasileim não se havia ainda efeti-
1+ Mat'ta N4al'iaCitcigas de Ca)-\'«}t\o
T A Escola e a República 15

vamente implantada, dado o estado de desorganização do


trabalho nacional. Desorganizada a economia rural com
a Abolição, tecia havido "um verdadeiro êxodo dos
emancipados para os centros urbanos", determinando a
oferta do "braço operário barato". Disto teria decoiüdo
'uma organização urbana artificial", que funcionava co-
mo "uma válvula de descarga aberta, atraindo continua-
mente o elemento rural emancipado para os bairros fa-
bris das grandes capitais". O fenómeno se Ihe afigurava
como consequência de um processo inadequado de
transição da economia agrícola fundada na escravidão
para a fase industria] do operário urbano livre:

Sem capitais fáceis como a trança e a Inglaterra, sem


o artifício técnico em abundância como a Alemanha e
outros países, sem carvão na medida de suas necessi-
dadese sem a indústria de ferro oganizada, o Brasil, co-
mo a Rúksia, não podia resolver o problema gravíssimo
da transição agrícola, baseada na escravidão do cam-
pónio, para a fase industrial do operário urbano livre.:
(A Margem da República)

Nesses dois países haveria apenas um ingrediente


necessário ao processo: "o braço operário barato, mas
com o inconvenienteda falta de insüução". Desta de-
composição resultava a avaliação de que a República ti-
nha falhado sobretudo por não ter enfrentado a questão da
organização do trabalho nacional, furtando-se a uma
política de "valorização do elemento primordial do üa-
balho -- o homem". Não teria havido "uma única
palavra sobre ensino profissional, nenhum plano de edu-
16 Mal'ía Malta Chagas de Can alh o A Escola e a República 17

cação dos negros emancipados, nenhum programa geral tratégico, técnico e conceitual de defesa nacional, de
de combate ao analfabetismo de letras e ofícios". Para P crescimento indusUial, de modemização agrícola, de n-
Licínio, além de ser preciso enâentar a "complexidade ordenação política, de saneamento e educação.
do problema económico agrícola(campónios sem in- A seção "A Defesa Nacional", publicada de julho
süução e sem máquinas)", urgia também resolver "a de 1927 a agosto de 1928 em A Ba/z(ülru, era uma pu-
gravidade do problema industrial urbano num país de blicação mihtarjá existente desde 1911. O grupo militar
capitais pequenos e, de outro lado, de recursos ftouxíssi- ligado à revista tivera origem em 1906, na política do
mos em ferro e carvão."(-4 Margem da Repzíb/íca) Marechal germes da Fonseça de modernizar o exército
Fomlado pela Escola Politécnica do Rio de Janei- enviando jovens oficiais para servirem anegimentados
ro, Vigente Licínio Cardoso pertencia a um grupo mar- no exércitoalemão. Com a vinda da Missão Francesa,
cadamente indusüialista que se formara em seus bancos. em 1920, os militares ligados à revista ampliaram sua
O grupo vinculava-se ao C/24b dos Bandeirantes do concepção de defesa nacional. Segundo José Murilo de
Brasil, organizaçãoque, além de difundir os sporfs e o Carvalho, o que "existia na área se baseava num con-
roarismo como signos de um modo de vida modemo, ceito estrito de defesa que se limitava quase que só à
moldado em costumes norte-americanos, propunha-se a proteçãode fronteirasdo Sul e do Sudoeste".Com a
renovar a mentalidade brasileira elaborando um "estado vinda da Missão, amplia-sea noção, "incluindo a mobi-
de consciência para a nação brasileira". Ridicularizado lização de recursos humanos, técnicos e económicos
pelo jomal Á Esquerzíz como "ajuntamento mussolínico que abrangiam"todos os aspectosrelevantesda vida do
do Cinema Império", o C/zzb ej'aprestigiado pela grande país, desde a preparação militar propriamente dita até o
imprensa carioca e contava em seus quadros com altas desenvolvimento de indústüas estratégicas como a
personalidades
da vida social e políticado país, entre siderúrgica."("Forças Amladas na Primeira República")
elas o PresidenteWashington Luiz e o então Ministro Os signos de progresso de A Ba/zdeíra estavam a
da Fazenda, Getúlio Vargas. Entre 1927 e 1929, o serviço de um projeto de modernização nacional articu-
C/zzb publicou uma revista, Á Ba/zd?lra, que anexou a lado com essa concepção de defesa nacional. É neste
publicação militar Á Z)(:lesa N2zcío/m/e uma seção ci- quadro que a educação ganha estatuto de peça fundamen-
vil, "A Terra e o Homem". A revista operava com sig- tal de uma política de valorização do homem como fator
nos de progresso, dinamismo, força e unidade, produzin- de produção e de integração nacional. A superação do
do com eles, metonimicamente,
imagensde um país isolamento das diversas regiões brasileiras pelo desen-
dinâmico e próspero, que surgiria de propostas de orga- volvimento dos meios de comunicação e transporte; sua
nização social, política e económica que propagandeava. integração num circuito que garantisse a circulação dos
Entre elas, figuravam prqetos de aprimoramentoes- bens materiais e culturais constituindo um grande mer-
18 Ma} ta Mal ia Chagas de Ca}«valllo Y A Escola e a República 19

cado nacional; a modemização da agricultum; o desen- mação da energia potencial do homem em energia
volvimento industrial com ênfase na indústria de base; a cinética". Insuflando, despertando, desenvolvendo as
dinamização do homem como fator de produção por energias potenciais dissimuladas pela ignorância, a ins-
políticas sanitárias e educacionais integram-se num pro- trução era o "veículo que permite a transfomlação deles
jeto de maximização e integração dos recursos nacionais em energias atuais, cinéticas, donde conseqüentemente,
subordinados à concepção de defesa nacional referida. em resultado, o próprio trabalho amplificado." (ibidem)
Vicente Licínio Cardoso não integravaos órgãos Pensandoo Brasil com apoioem modelosor-
técnicos e diretons do C/zzb, como Ferdinando Labou- ganicistas, Vicente Lichio Cardoso concluía faltar-lhe
riau, Mário de Brito e Paulo Ottoni de Castro Maya, 'coesão, densidade social(...) peças de ligação impres-
seus companheiros da Escola Politécnica e de campanha cindíveis, tecidos sociais económicos fundamentais (...)
educacional. Foi, entretanto, por ocasião de sua posse órgãos aparelhadosque(-.) pudessem facilitar a unidade
como professor naquela escola, festejado por .A Bczn- nacional almejada de um organismo de flexibilidade so-
(üinz como figura-símbolo da mentalidade H.B. cial escassa, perdendo energias -- já de sinal cultivadas
(Homem Bandeirante) nela propagandeada. Suas formu- -- em atritos e resistênciaspassivas fomiidáveis." (ibi-
lações sobre o Brasil coadunavam-se com o nacionalis- dem) O Brasil em um "organismo de vida estéril", sem
mo da revista, pela larga utilização que fazia de metá- 'continuidadede seiva", "ritmo de vida", "seqüênciade
foras energéticas e pela valorização de medidas de orga- energia". Os "milhões de analfabetosde letras e ofí-
nização e integração nacionais. O processo de transição cios", que "vegetavam", desamparados, üos "latifúndios
para o trabalho livre aparecia-lhe marcado por "perdas enormíssimos do país", eram "peso morto" a consumir
sociais de energias gastas em atritos passivos violentís- as escassas energias do incipiente organismo nacional,
simos", abalando, por isso mesmo, "a saúde da própria retardando perigosamente a marcha do Progresso.
sociedade". Neste diagnóstico, a educação era o instru- Um catasüofismo semelhante sobressalta o ima-
mento que permitiria "transformar, sem coação, a ener- ginário dos entusiastas da educação. Ressoa nele, como
gia potencialdo homem em energiacinética". "Tmba- um alanna, o lema de Euclides da Cunha: "Progredir ou
Iho", escrevia Licínio, "é um complexo: energia, ação e desaparecer". Fala-se insistentementeem crise, em ho-
produção. Complexo é o conjunto de condições que ras gravíssimas, significando-se algum enomle perigo
uma sociedade deve satisfazer para o estabelecimento que ameaça o país se suas elites não superarem o pes-
destaorganização do trabalho livre do homem: Instrução simismo, a passividade e a indiferença, lançando-se à
(Energia); Liberdade(Ação); Ordem(Pn)dução)."(Ibi- campanha de regeneração nacional pela educação.
dem) O papel da instrução nas sociedades era o "do con- "Vitalizar pela educação e pela higiene" -- prescrevia
dutor, do transmissorpelo qual é possível a transfor- Miguel Couto, personagem-símbolo do ' entusiasmo

J
20 Mal'ta M«} ia Ciladas cieCala' aillo T .4 Esmo/a ea Repúó/fca 21

pela educação -- "toda essa gente reduzida pela vémlina Regenerar essa massa popular era tarefa comparti-
a meio homem, a um terço de homem, a um quarto de lhada por agraristas, como Magalhães, e indusüialistas,
homem" era a única "salvação"(/Vo Brasa/ só /zá zlm como Vigente Licínio, típicos defensores do ve//zoe do
problema nacioruzl-- a educação do povoa. À. incum- /lavo, que alguns historiadorestêm afamado estarem
bência de educar os "sulFhomens" era alçada por em total polarização no período. As diferenças de diag-
Fumando Magalhães à missão sagrada a ser executada "à nóstico e de terapêutica eram unificadas por sua subordi-
beira do abismo, anteo precipício". nação a um interesse comum: o de minimizar os efei-
Cobrava-se então o preço da incúria política dos re- tos, tidos como perniciosos, dessa massa popular no
publicanos: a massa popular, o núcleo da nacionalidade, cotidiano das cidades. Deter os fluxos migratórios para a
esses milhões de analfabetos de letras e ofícios relegados cidade, promovendopolítica agrarista de fixação do
a condições sub-humanas de vida maculavam a assepsia homem no campo através da escola, ou dinamizar a
burguesa de que vinham sendo tecidos os sonhos de Pro- economia de base industrial, por medidas educacionais
gresso na República. O pesadelo pode ser descrito citan- que incoíporassem levas de.ociosos ao sistema produti-
do-se o higienista Belisário Penna, que em 1912 fora en- vo, eram proletos com um denominador comum: o
carregadopor Oswaldo Cruz de fazer um inventáriodas equacionãmento da questão urbana, a esüuturação de es-
condições de saúde de populações sertanejas e que se in- quemas de controle que viabilizassem, no espaço da
tegrará na campanha educacional nos anos 20: cidade e no tempo da produção-expropriação capitalista,
o disciplinamento das populações resistentes, na vadia-
'3/4 dos brasileiros vegetam miseravelmentenos la- gem ou na anarquia, à nova ordem que se implantava.
tifúndios e nas favelas das cidades, pobres párias que, A empresa regeneradora não era fácil. O balanço
no país do nascimento, perambulam como mendigos feito da República instituída era, para Licínio e para a
estranhos,expatriadosna própria pátria, quais aves de autodenominada "geração dos homens nascidos com a
aiübação de região em ngião, de cidade em cidade, de República"; a qüe ele pertenceu, pessimista:
fazenda em fazenda, desnutridos, esfarrapados, famintos,
l ferreteadoscom a preguiça vemlinótica, a anemia palus- 'A grande e triste surpresa de nossa geração foi sentir
tm, as mutilações da lepra, as defomiações do bacio que o Brasil reü'ogradóu.Chegamos quase à maturidade
endêmico, as devastações da tuberculose, dos males na certeza de que já tínhamos vencido certas etapas. A
venéreos e da cachaça, a inconsciência da ignorância, a educação, a cultura ou mesmo um princípio de expe-
cegueim do tmcoma, as podridões da bouba, da leish- riência, nos tinham revelado a pátria como uma tema
maniose, das úlcer7isftagedêmicas, difundindo sem peias em que a civilização já resolvera de vez certos proble-
esses males."(H Esmo/aRegfona/) mas essenciais. E a desilusão, a tragédia da nossa alma
22 Ma} ta Mal'ia Chagas de Can' a tho

foi sentir quanto de falso havia nessas suposições. O


tempo nos preparava uma volta implacável à realidade.
E essa realidadeera muito outra, muito outra, do que
r
aquela a que o nosso pensamento nos preparara e que a
imaginação delineara.

Encontramo.-nos bruscamente, ao abrir os olhos da


mzão, perante uma pátria ainda por fazer, ainda informe, )

ainda tolhida em sua ação e sem vitalidade, sem alma, sem


idea[, uma pátria que õ lirismo tinha decantadoem coros A ESCOLA MODELAR
rasas e de que a indiferença agora soda ou o pessimismo
negava gmsseiramenté."(.4 Margem c&zRepzZb/lca)

Proclamada a República, a escola foi, no Estado de


São Paulo, o emblemada instauraçãoda nova ordem, o
sinal da diferença que se pretendia instituir entre um pas-
sado de trevas, obscurantismoe opressão,e um futuro
luminoso em que o saber e a cidadania se entrelaçariam
trazendo o Piogmsso. Como signo da instauração da nova or-
dem, a escola devia íàzer ver. Daí a importância das cerimónias
inaugumis dos ediHdos escolares.O rito inaugural repunha o
gestoinstaurador.A fala de Cenário Mota na inaugu-
}

ração do edifício da Escola Normal Caetano de Campos,


em 1894, é paradigmática:

.o historiador, fitando o passado inteiro de nossa pá-


tria, querendo sopesar o grandioso progresso de nosso
Estado, precisando de avaliar a sua extensão, conhecer-
Ihe a base, os lados, os vértices, há de forçosamente
tomar como ponto culminante, ponto de prova, ponto
24 Mana }b4aTiaChagas de Can alho A Escola e a República 25

+
de triangulação, ponto que denote a reunião de todos os ciária do menino, e o ganha-pão do mestre". Dessas es-
lados do polígono social, no início da República em colas não se poderia obter nem educação cívica, nem
São Paulo, a Escola Normal que ora se inaugura.' 'prepamçãopara satisfazeras necessidades
da vida ou
para desempenhar as funções sociais, que o regime re-
E prosseguia: presentativo exige", nem "preparo da mentalidade infan-
"Não porque tenha este palácio as grandes cinti- til para receber as idéias que por ampliação se Ihe deve-
lações artísticas que orgulham os arquitetos, os pintores riam incutir nos anos superiores". Por isso, resolvido o
de todos os tempos", mas porque no edifício celebrado }

prob[emaeconómico,o social e o po]ítico, o governo


:a grandeza, a majestade do simples" simbolizava a
republicano ter-se-ia voltado para o da instrução. O edi-
:força de uma idéia elevada": a instrução do povo.
fício que então se inaugurava era a resposta dos gover-
;Ponto culminante de nossa arquitetânica", o edifício nos republicanos a uma sociedade inteira que, cansada de
revelava "a altura em que a República colocou desde o enviar os filhos ao estrangeiro"para mendigar o saber
início o problema da instrução". A "nobreza" das suas que aqui não se podia obter", e entristecidaem ver os
linhas demonstrava a crença de que não haveria mais no- cárceres repletos, teria bradado com Goethe: "Luzl Luzl
bre. procissão que aquela que se incumbe de "preparar Mais Luz!"
cidadãos para a sustentação, defesa e engrandecimento de Para fazer ver, a escola devia se dar a ver. Daí os
uma pária livre". Sua "vastidão" denotava o gesto do
edifícios necessariamente majestosos, amplos e ilumi-
Govemo, convidando "todas as aptidões, todas as foMi- nados, em que tudo se dispunha em exposição perma-
nas, todas as idades, todos os sexos, todas as vocações nente. Mobiliário, material didático, trabalhos executa-
para virem sagrar-se aqui sacerdotes da !!!!pião do saber, dos, atividades discentes e docentes tudo devia ser da-
em que nós democratas do a ver de modo que a confomiação da escola aos pn-
peranças de prosperidade da pária e de glória para a ceitos da pedagogia modema evidenciasse o Progresso
República' }

que a República instaurava.


A visão do luminoso templo laico levantado com Aquilo que num imaginário fortemente impregnado
recursos que o império havia destinado à construção de pelo positivismo era tido como dogma da constituição
uma catedral, contrapunham-sevisões tenebrosas da es- dos povos modernos -- con/zecer.fura gemer -- era o de-
cola na velha ordem: "casas sem ar e luz. meninos sem saülolançado à República. Sem preparo intelectual,pon-
livros, livros sem método, escolas sem disciplina, t' derava Caetano de Campos em documentoscompilados
mestres tratados como párias". No nuato da educação por Jogo Lourenço Rodrigues, nenhumpovo estariaapto
no Império, a fita de recursos "trazia a de estítnulos, o para as conquistas do Progresso. Facultadas à Huma-
desânimo, e a escola pública era, em geral, a peniten- nidade pela Ciência, tais conquistasdesembocavamna
26 Martd Mana Chagas de Can' alho A Escola e a República 27

evolução "prodigiosa" que o século vinha matizando.


Educar em a aspiração uníssona que se levantava
em todos os países. Não bastava, contudo, ensinar: era
preciso saber ensinar. Não poderia haver ensino produti-
vo sem a adição de métodos que estacam transformando
em t(xla a parte o destino das sociedades. A educação do
homem modemo exigiria uma soma de conhecimentos
que resultavam "sinteticamente das noções enciclopédi-
cas hauridas em diversos ramos de estudo". Como era
impossível "ensinar às crianças tudo quanto pode ser
necessário à vida", tomava-se praticável dar à inteligên-
cia um grau de maturidade que preparasse suHicieóte-
mente o homem novo para entrar na vida social "com
seguros capitais para o êxito". Dos métodos bem enten-
didos e bem praticados é que poderia sair "o cérebro
adaptado à conquista da verdade". Por isso, insistia
Caetano de Campos em discurso aos professores, em
1890:

.quandoum país quer dar a medida de seu progresso,


do alcancede suas instituições,do valor de sua raça,
aponta o número de suas casas de ensino e abre-lhes as
portas como que dizendo: rêde como se aprende!"

A montagem do sistema público de ensino


paulista no início da República, sob a ação reformadora
de Caetano de Campos, levou às últimas conseqüências
o primado da visibilidade. É que, fazendo a educação do
homem novo depender de novos métodos e processos de
ensino eão domínio desses métodos e processos da ex-
periênci=a
de vê-los em execução, essas iniciativas re-
28 Mana h4al-iaCtmgas de Cala' a th o
T A Escora e « República

pemianecesse.(-.) Modemamente o pedagogo atua de


29

publicanas organizaram-seem tomo da instituição da


Escola Modelo. A escola em que se aprendea ensinar, outro modo. Coleciona previamente os fatos que devem
ser explicados, coordena-os tacitamente em seu gabi-
}

dizia Caetano de Campos em Carta à Imprensa, "é ne-


nete, numa sucessão lógica que é muitas vezes o segredo
cessariamente uma escola prática e longa", pois não se- de todo o sucesso do ensino; apresenta-osdepois à
ria possível "ser mestre em tais assuntos sem ter visto apreciação do aluno, atendendo sempre à sua capacidade
fazer e sem ter feito por si". Toda erudiçãoseria de atual, à sua idade, à sua agudeza de espírito e outras
pouco proveito para os mestres se não fossem "ver co- )
condições psicológicas que ele, professor, estudaem ca-
mo as crianças eram manejadas e instruídas' da aluno." (ÍZ)idem)
Na Escola Modelo, instituiçãoque deveria ser o
"coração do Estado", avelar-se-ia, "aos olhos dos futuros Formar o pedagogo modemo consistia em íãzê-lo
professores, o mundo, novo para eles, do ensino intuiti- ver os novos métodos em funcionamento, pois seria "inú-
vo". Os processos intuitivos, que estariam em constante til pensar em adquirir sem ter visto praticar". Mas como
aperfeiçoamento na Alemanha, na Suíça e nos Estados fazê-lo sem mestres que já tivessem visto fazer e feito por
Unidos, eram a base do ensino modemo. Seu mérito, "a
si? A solução era mandar vir do estrangeiro mestres
cultura intensiva do espírito, o aproveitamento de. todos
os detalhes, cada cousa em cada hora, o alimento intelec- hábeis nessa especialidadee, com eles, profuso material
didático adequado às exigências da "modema pedagogia".
tual o mais completo, dado na proporção da receptividade A importação de mestres foi resolvida pela con-
psicológica"("Discurso aos professorandos"). Disciplina tratação de professoras já radicadas no Brasil, mas for-
do espírito pela seleção e dosagem adequada dos "fatos madas nos Estados Unidos. A importação de material
que devem ser explicados" à psicologia infantil, o ensino didático foi possibilitadapelo Govemo e suplementada
intuitivo repetia "o processo que insüuiu a humanidade por alguns empréstimos feitos à Escola Americana. Um
inteira em sua vida intelectual -- a intuição."(JI/emória )

entãoaluno da Escola Nomlal, Jogo Lourenço Rodri-


apresentada em 1891 ao Governo do Estado) Mmcawa- gues, deixou seu depoimento:
se com o signo do novo opondo-se aos processos que ha-
viam camcterizado a educação na velha ordem:
'0 edifício constava de dois corpos ligados por um
comedor,mas, a princípio, dele só foi aproveitadoo
'Dantes, enchia-se a cabeça do aluno com uma série in- pavimento superior. O corpo da frente foi ocupado pela
terminável de deHmiçõespor meio duma instrução im- seção masculina, a cargo de Miss Browne; no corpo do
buída na memória à força de repetições, tantas vezes re- fundo foi instaladaa seção feminina, can6iadaa D.
produzidas quantas eram necessárias para que o fato aí Mana Guilhermina. Completa a instalação das classes e
31
30 Ma} ta Mana C+tagas (!e Cat-va 1110 A Escola e a República

bem encaminhado o trabalho de sua oganizaçãQ, os para traçar a orientação do ensino nas esperadas escolas
alunos e alunas do 3' ano puderam enHm)começar os modelos. No dia marcado para o primeiro encontro, os
alunos, reunidosnuma das salas de aula, as esperavam
}

exercícios práticos de ensino. A princípio deviam limi-


tar-se a observar e a anotar as suas observações. Entre com grande curiosidade. Depois do toque da sineta, as
o que lhes foi dado a ver e as suas reminiscências, ain- duas enfiaram, acompanhadasdo Diretor, muito soni-
da recentes, da escola réguatradicional, o contraste não
dentes,a desfazerem-se
em mesurase cortesias.Feita a
podia ser mais flagrante. A mobília, cedida pela Escola apresentação,
o Dr. Camposretirou-se
e D. Mana
Americana, era nova e envemizada; o aspecto das clas- )
Guilhemlina iniciou sua exposição inaugural. Estava
ses, munidas do material necessário para a prática do visivelmente intimidada e, talvez por isso, não con-
ensino intuitivo, causava excelente impressão. Notava- seguiu dar a essa exposição a clmeza que fora para dese-
se por toda a parte ordem, asseio e não faltava nem jar. Os ouvintes ansiavam por conhecer as diretrizes
mesmo a nota artística de algumas jarras de flores, ali- essenciais da nova pedagogia e D. Mana Guilhemlina,
nhadas sobre as mesas. O ambiente não podia ser mais perdendo-seem minúcias, deixou essas diretrizes na
sugestivo. As crianças, que outrora fugiam com horror penumbra.Por muito bem informadaque se revelasse
da escola, eram agora as primeiras a chega. Pudem! A em processos de ensino, parecia ser dessas pessoas que
imobilidade de outrem, que as fazia morrer de tédio, não sabem elevar-se da noção da árvore à noção da flo-
sucediam agora, altemando com lições curtas, exercí- resta: era dispersiva.(...)Miss Brownefoi mais feliz:
cios de marcha e canto, que imprimiam à vida escolar não conhecendo bem a língua, ficou dispensada de falar
um tom."(t/m Refrospecfo) e mal se aventurou a alguns monossílabos"(ibidem).

Exímias na arte de ensinar, as professorascon- A inépcia das professoras não era, contudo, rele-
tratadaspara a Escola Modelo não tiveram, entretanto, vante para os propósitos republicanos de Caetano de
Campos. O sistema público de ensino paulista monta-
muito êxito na exposição dos princípios que norteavam
va-se, como já foi sublinhado, sob o primado da visi-
sua prática aos a]unosda Esco]a Nom)a]. O mesmo
)

João L. Rodrigues recordava: bilidade. Ver para reproduzir os procedimentos vistos e


dar a ver sua prática como modelo de outras era o que se
:As aulas das escolas modelos não podiam começar des- propunha aos futuros mestres. É que a Pedagogia dos
de logo, em razão das obras que estavam sendo execu= "processos intuitivosi' era uma arte da minúcia, da
fadas no prédio da Rua do Carolo.(-.) O Dr. Caetano de +
dosagem, da gradação, que se queria fundada na obser-
vação de cada aluno, na experiência de cada situação, na
Campos entendeu que as duas professoras poderiam
aproveitar utilmente o seu tempo dando às duas classes concatenação minuciosa dos conteúdos de ensino pa-
cientementeisolados e colecionados no cultivo de cada
do terceiro ano algumas aulas teóricas, que serviriam
32 Malta Malta Cllagas de Ca}«galho 33
A Escola e a República

faculdade da criança numa ordenaçãoque se pretendia vicção científica", tomando realidade o self-governmenf.
fundada na natureza. Seria através desses processos, Para o Govemo, educar o povo era um dever e um inte-
"sem o descuido de um instante, que a criança, graças à Ksse. Interesse "porque só é independente quem tem o
sua natural atividade", tomava-se "produtiva em vez de espírito culto, e a educação cria, avigora e mantém a
vadia, amiga da verdade e induzida a procura-la por posse da liberdade". Tal inteKsse não se restringia ao
hábito, porque tudo o que sabe deve a seu próprio es- ensino primário. Se este era importantíssimo por desen-
forço, muito apta para a conquista das noções, porque volver na criança "o hábito de refletir antes de enunciar,
aperfeiçoaram-lhe os sentidos e com eles a aquisição de a ciência de aproveitar o tempo (...) e sobretudo o amor
idéias"; tomava-se também "hábil e fecunda, porque só ao trabalho",isto não seria suülcientepara formar
se Ihe deu o que ela podia receber; porque o que se Ihe cidadãos. Para tanto se impunha que o ensino fosse,
deu tinha a medida na sua própria psicologia, e tudo o tanto quanto possível, "completo, inteiro em todos os
que adquiriu estava baseado na formação do seu caráter, conhecimentos indispensáveis à vida, enciclopédico por
na justiça das coisas..." (CZp'/a à /?nprensa). assim dizer, já que nosso viver social na atualidade en-
Colhendo nas ciências naturais "os elementosde volve-nos êm contingências oriundas de toda some de
disciplina mental" que fez seus, a "intuição como méto- noções científicas". Não era admissível "apagar o facho
do pedagógico" era a pedra de toque na organização do que deve conduzir a criança para o grande templo da vi-
sistema de ensino paulista. Era, como já .se observou da", temlinadoo ensinoprimário.Não quandoos
aqui, a possibilidade de recapitular, no indivíduo, "o primeiros anos de escolaridadejá tivessem desenvolvido
processo que instruiu a humanidade inteira em sua vida na criança o hábito de pensar e sua curiosidade já hou-
intelectual". Era, por isso, a possibilidade de conquistar vesse sido despertada. Os conhecimentos científicos
para o indivíduo os benefíciosque a Ciência trouxera minisüados na escola secundária deveriam ser a base da
para a Humanidade e, através deles, as condições para o educação. O conhecimento do mundo físico constituía-
exercício da cidadania. Já que a mudança de regime havia se na "melhor disciplina mental", assim como o hábito
entregue "ao povo a direção de si mesmo", nada era de experimentar era garantia de '$omlaéão de um ho-
mais urgente,ponderavaCaetanode Camposem mem apto em todos os sentidos:
A4emória apresentadaao Govemador Jorge Tibiriçá, que Fomecer tal ensino inteiro, completo, de base
"cultivar-lhe o espírito, dar-]he a elevação moral de que científica, condição efetiva da cidadania plena, é o que se
ele precisa, formar-lhe o caráter para que saiba querer" entendia como tarefa republicana. Isto porque era a re-
Num regime em que "o príncipeé o povo" e em que denção da Ciência que a República devia trazer ao povo:
não haveria por que zelar pelo "interesse de uma fmHia
privilegiada", o povo só poderia guiar-se pela "con- 'No século em que vivemos, todas as liberdades foram
T' '. Nafta Mana Cttagas de Cawath o A Escola e a República
35

conquistadas pela ciência. SÓ esta desvenda a realidade


jetos de um Caetano de Campos e de tantos outros re-
das coisas, só esta separa o joio do trigo, só esta no- publicanos que, eloquente e reiteradamente: afinnaram
bilita o homem, só esta combate, resiste e vence.' com palavras e atou sua fé no poder liberalizador e de-
("Discurso aos professorandos") mocratizador da educação podem ter sua extensão
aquilatada. A pergunta que fica ao nos depararmos com
Em preciso "afastar o soHlsma, rechaçar o precon- o imaginário pedagógico republicano é: Quemi nesse
ceito, fustigar o obscurantismo,seja qual for sua pro- imaginário, é o cidadão que a República tem o doer e o
cedência". O que implicava o povo ser "instruído larga- í/z/eresse de educar?
mente, proüicientemente,como quem precisa governar-se Em estudo sobre o negro no imaginário das elites
a si, e poder govemar outros povos, se a ocasião o exi- brasileiras no século XIX, Célia Azevedo mostra como
gir."(A/emórla aprece/z/a(&zao Gover7za(br) A dissemi- se consolidou na Assembléia Legislativa Provincial de
nação desse ensino de base científica, entretanto, deman- São Paulo, no início da décadade 80, o imigrantismo.
dava o estabelecimentoprévio de novas escolas-modelo, Acompanhandoos debatesparlamentaresnos anos 70 e
de 2ee 3Qgraus,anexasà EscolaNormal,em que 80, a autora mostra como o
pudessem ser vistos os novos processos de ensino. Antes
de criar as escolas secundárias adequadas a esses graus es- imigrantismo, bem como a fomiulação correspondente
colares superiores, era preciso preparar os professoras, fa- de seu ideário racista, emerge tal qual uma arma ou ins-
miliarizando-os com "os processos que os naturalistas trumento político manejada contra os negros, adver-
empregampara a obtenção da verdade científica". Havia sários temidos do cotidiano passado, presente e futuro,
;muito que fazer na criação de bons moldes, muito livro e cuja resistência disseminada, e por isso mesmo difícil
a escrever, muita noção a adquirir". A cidadania efetiva de ser coibida,objetivava-se
de algumaformaneu-
dos brasileiros ülcava postergada para o futuro, na tessitu- üalizar. substituindo-ospor uma massa de imigrantes
ra dos moldes pedagógicos com que a República se anun- b arcos:' QOn(h Negra Medo Brancos
ciava. Caetano de Campos dizia: "É preciso não perder
tempo porque devemos andar devagar". As medidas tomadas para sustar a "onda negra" --
imagem vivida do temor suscitado pela multidão de es-
cravos transportados do norte do país para a província
no decorrerdas décadasde 1860e 1870"(ibidem) --
As procissões de fé dos republicanos paulistas não bem como para promover a imigração eram veemente-
podem deixar de ser referidas à opção política da grande mente defendidas nos debates parlamentams põr insis-
lavoum cafeeim pela imigração. SÓ desta forma os pro- tente caracterização do negro como raça inferior, incapaz
36 Mana Murta Chagas de Calva tho A Escola e a República 37

para o trabalho,propensa ao vício, ao crime e inimiga nesta dicção pance sedutor. Não é ele o refomlador que
da Civilização e do Progresso. A partir do início da déca- leva o transplante cultural às últimas conseqüências, im-
da de 80, quando o imigrantismo se consolida, o tema portando métodos, material didático e até professoras,
do aproveitamento do nacional, intensamente debatido num aMarefomlista que lembra o aümcodo personagem
dentro e fora do Parlamento durante todo o século. é de Herzog em montar uma ópera na selvagemAmazõ-
posto de lado. A imigração européia é, então, a alternati- nia? Mais sedutor, entretanto, é pensar os limites deste
va escolhida, "dando vazão aos sonhos de trocar o negro prometoeducacional republicano, referindo-o à sociedade
pelo branco, de transfonnar a 'raça brasileira' e, no caso fortementeexcludente que se esüuturava nas malhas da
de São Paulo, de valorizar as tão decantadasqualidades opção política que foi o recurso à gra/üe imz'oração.
'viris' dos paulistas, tomando-a, no futuro, uma provín- Observa Alftedo Bosi que, com esta política, re-
cia bmnca, capacitada, consequentemente,para um flan- solvera-se o problema do trabalho assalariado, mas não a
co progresso e desenvolvimento."(ibidem) Assim, o
questão do ex-escravo, a questão do negro: "Para este, o
imigrantismo propunha não somente a troca do negro liberalismo republicano nada tinha a oferecer."("A
pelo branco nos setores fundamentais da produção, como Escravidão entre Dois Liberalismos") O que tinha a
também arquitetava um prometode regeneração e capaci- República instituída a oferecer às populaçõesque a polí-
tação para trabalho, cujo instrumento era a miscigenação tica imigrantistadegradava a condições miseráveis ao re-
de que se esperava um desejado branqueamentomoíah- produzir continuamente uma força de trabalho excedente?
zador das populações negras.
Alijando enormes contingentes populacionais do proces-
E dominante na historiogranla educacional o recur- so produtivo e otimizando as condições de expropriação
so à figura do zru/zspZa/zre
cu/Mra/como um lugar-co- do trabalhador incorporado no processo pelos fluxos
mum, que explica um abismo alegado entre os bons imigratórios constantes-- como tem sido pontuadona
propósitos ilustrados de uma elite convencida do poder bibliografia sobre a constituição do mercado de trabalho
democmtizador e liberalizador da educação e os nsultados livre em São Paulo -- tal política exibe os limites da
efetivos desses propositos. Os projetos dessas ilustres cidadania possível na República instituída. Neste con-
elites não se teriam tmnsformado em realidade porque texto, adquire maior precisão a pergunta: Quem era, no
inspirados em ideologia forjada no estrangeiro. imaginário republicano, o cidadão que a República teria
Mimetismos inconsequentesatestaíiam a fragilidade das o dever e o interessede educar? Estariam todas essas
classes dominantes ou de fiação delas na fonnulação e populações degradadas à miséria, excluídas a prior/ dos
imposição de projetos políticos de seu interesse. benefícios das luzes educacionais? Se assim for, não
Interpretaros pmletos de um Caetano de Campos haverá distância entre proJetos e realizações e nenhum
38 Nafta Mana Ctmgas de Carvath o

espaço para o chavão explicativo do transplante cultural.


A importação dos moldes norte-americanos, com
que o darwinista Caetano de Campos andava implantar
não só uma nova escola,mas uma nova sociedade,é
homóloga ao movimento de transplantar para o país no-
vas populações, construindo com elas o tão almejado e
luminoso Progresso. Seu aHapedagógico poda.!çlj!!!gr-
pretado co : Para os
êõfítêiii$õrâneos de Caetano Campos, a escola instituída
se exibiíia como demarcação de dois universos -- o dos O FREIO DO PROGRESSO
cidadãos e o dos sub-homens-- funcionando como dis-
positivode produção/reprodução
da dominaçãosocial.
Se a cidadania plena só era para Caetano de Campos fa-
cultada por um ensino inteiro, completo, de base cientí- O vagar com que Caetano de Campos marcava seu
fica e se a generalizaçãodeste ensino picava.postergala pacienteüabalho de reformador não tem lugar na lin-
para um futuro remoto na dependênciade morosas guagem de cifras e na urgência das metas que caracteri-
providências pedagógicas, ülca a questão: o que tomava zam o relatório apresentadoem 1918 por Oscar Thomp-
possível este vagar? son, Diretor Geral da Insmição Pública do Estado de
São Paulo, ao Secretário do Interior, Rodrigues Alves:
'A evolução do ensino público paulista, já no que toca
aos seus métodos educativos, já no que se refere à sua di-
fusão por todos os 196 municípios do Estado, acnsceu
ao estudo grandes e importantesproblemas que exigem
solução pronta e rápida: 232.62 1 crianças fteqüentaram
escolas em 1918; 247.543 em idade escolar não fieqüen-
taram escolas públicas ou particulares confomle atesta a
estatística.
Que fazer para educar esses milhares de menores
que, crescendo analfabetos, constituirão elementos ne-
gativos do nosso progresso?"
®
40 Malta M«:'i« Chagas de Carv&tho A Esc ola e a República +1

O analfabetismo passava a ser a marca da inaptidão SÓ resolvendo o problema do analfabetismoé que o


para o ProgKsso. Era ele a causa da existência das po- Brasil poderia "assimilar o estrangeiro que aqui se instala
pulações que "mourejavam no Estado, sem ambições, em busca da fortuna esquiva". Não haveüa como fugir
indiferentes,de todo em todo, às cousas e homens do ao dilema: ou o Brasil manteria "o metrodos seus desti-
Brasil." (ibidem) Produz-se, assim, um deslocamento nos. desenvolvendoa culturados seus filhos", ou seria
no discurso educacional: um novo personagem irrompe, dentro de algumas gerações absorvido pelo estrangeiro
um brasileiro doente e improdutivo, peso morto a frear que para ele aflui". Reintroduzia-se, assim, a questão do
o Progresso, substitui a figura do Cidadão abstrato, al- aproveitamentodo chamado elemento nacional. Em es-
vo das luzes escolares. O novo cidadão não é mais invo- tudo sobre a fomnaçãodo mercado de trabalho livre em
cado para oficiar no augusto.templo da Ciência. Basta- São Paulo, Lúcio Kowai'ick observa que o tema da va-
Ihe agora o manejo cívico do alfabeto. lorização da desacreditada mão-de-obra nacional é retoma-
A pergunta formulada pelo Diretor Geral é respondi- do num momento em que, com a Primeira Grande Guer-
da por Sampaio Dória em carta aberta. O futuro refor- ra, os fluxos imigratórios contínuos sofrem brusco cor-
mador da instrução pública paulista em 1920 justificava te. Além disso, as greves operárias do üun da década de
as medidas que preconizava, reiterando as razões para a 10 desüoem os mitos da tão decantada operosidade do
extinção do analfabetismo: imigrante que haviam embalado o imaginário das elites
paulistas no fim do Império e início da República.
:Hoje não há quem não reconheça e não proclame a grama educacional desta revalorização con-
urgência salvadora do ensino elementar às camadas po- centrou-se inicialmente na alfabetização. A partir de
pulares. O maior mal do Brasil contemporâneoé a sua meados da década de 20, esse programa é redefinido ao
porcentagem assombrosa de analfabetos. (...) O mons- calor da campanha de regeneração nacional promovida
tro canceroso,que hoje desviriliza o Brasil, é a igno- pela Associação Brasileira de Educação(ABE), fundada
rância crassa do povo, o analfabetismoque reina do no Rio de Janeiro, em 1924. Para os entusiastas da edu-
norte ao.sül do país, esterilizando a vitalidade nativa e cação que nela se aglutinaram,era preciso combater o
poderosade sua raça'
..y alfabetização
'fetichismo da alfabetização intensiva", valorizando-se o

q'' que se entendiapor "educação integral". Em ambas as


do povo apmsentava-se
para fomnulações, entretanto, o mesmo deslocamento discur-
Sampaio Dória como "a questão nacional por excelên- sivo. A figura do Cidadão abstrato,dominantena retóri-
cia". E que o imigrante de que os republicanos históri- ca dos republicanos históricos, é substituídapela ima-
cos haviam esperado o aprimoramento da "raça brasi- gem de um brasileiro improdutivo, doentee ignorante,
leha" era visto agora como ameaça ao "caíáter nacional". que urge regenerar com o recurso da escola.
42 Mal'ta Mana Chagas de Carvalho A Escora e a Repúhtica

O prqeto de Sampaio Daria, ideólogoda Liga sino elementar de 2 anos a todos. A Refomla opta pela
Nacionalista de São Paulo, não se limitava, contudo, à segunda via. As medidas que adota para erradicar o anal-
alfabetização. A escola primária de objetivos mais fabetismo são arroladas por Heládio Antunha:
modestos e de duração reduzida que sua reforma implan-
tou em São Paulo deveria, enfatiza Heládio Antunha, '(a) a radical modificação efetuada nos níveis inferiores
funcionar como: do ensino público (art. I'), com a reduçãodo ensino
primário a dois anos e a conseqüente criação do ensino
IQinsüumento de aquisição cientíHlca,como aprender a médio de dois anos de duração, correspondendo aos 3' e
[er e escrever;2' educaçãoinicial dos sentidos,no de- 4Q anos primários, então extintos;
senho, no canto e nos jogos; 3P educação inicial da in- (b) a redução da obrigatoriedadee gratuidadeda freqiiên-
teligência, no estudo da linguagem, da análise, do cálcu- cia escolar primária. As cüanças legalmente obrigadas
lo e nos exercícios de logicidade; 4' educação moral e a fteqüentar o curso primário de dois anos passam a ser
cívica, no escotismo,adaptadoà nossa terra e no co- apenas as de 9 e 10 anos de idade;
nhecimento de tradições e grandezas do Brasil; 5P edu- (c) a taxação do curso médio;
cação física inicial, pela ginástica, pelo escotismo e pe- (d) a unificaçãodas escolasisoladasao tipo único de
los jogos." (Á Reforma de /920) dois anos;
(e) a redistribuição de professores de 3' e 4' anos, que
Mesmo a Liga Nacionalista,cujas campanhasde ficavam em disponibilidade, para as novas classes alfa-
alfabetização se atrelavam à luta pelo alistamento elei- betizadoras de I' e 2Qanos a serem fomladas;
toral e pelo voto secreto, não descurava de iniciativas de (f) o desdobramento das escolas isoladas e também do
educação cA'ica de modo a garantir a qualidade do voto trabalho do professor das escolas em que fosse excessi-
e, concomitantemente,a propalada regeneração do va a matrícula e no caso de não haver condições para a
caráter nacional. existência de dois professores;
Apesar disto, a prioridade da difusão do ensino so- (g) isenção dos pobres das taxas em todos os graus do
bre questõesatinentesà sua qualidadeé legível na ur- ensino;
gência das metas e no roteiro das aftas que detemiinam (h) a 'prescrição' escolar às crianças de 7 e 8 anos. As
a lógica da Reforma. O sistema escolar era racionalizado crianças dessa idade deixavam de ser obrigadasà õe-
de modo a conciliar a alegada exigüidade de recursos fi- qüência escolar e, mais do que isso, não lhes seria per-
nanceiros governamentaisàs metas democráticas de ge- mitido o ingresso nas escolas públicas antes de com-
neralização dos benefícios escolares. No conüonto dos pletarem 9 anos de idade;
números, era construído o dilema: dar uma escola de 4 (i) a criação de duas mil escolas isoladas." (Á Rí forma
anos a alguns, excluindo os outros, ou generalizar o en- de 19ZOb
A. Escola e a República
44 Mal'ta Mal-ia Chagas de C«l\ anito
Sediada originalmente no Rio de Janeiro, a ABE
Estas medidas foram acompanhadasde outras,
voltadas para o que era entendido como nacionalização do
ensino. A questão comportava dois aspectos distintos,
embora solidários: tratava-se, por um lado, de ral A ação local desses núcleos deveria ser integrada por
;abrasileirar os brasileiros" através da aHabetizaçãó e da Conferências Nacionais realizadas anualmente, de fomia
educaçãomoral e cívica e, por outro, de integraro imi-
grante estrangeiro. Neste segundo aspecto, o escotismo
foi incentivado, juntamente com outras medidas de for-
mação cívica. Mas a iniciativa mais relevante neste caso malogrado o objetivo de organizar os núcleos estaduais,
foi a intervenção nas escolas estrangeiras. Novas dis- a ABE consolidou-se como entidade nacional quando, a
posições legais prescreviam que respeitassem os feriados partir de 1927, passou a promover as projetadas
nacionais, ministrassem o ensino em vemáculo, in- Conferências Nacionais. Isto é testemunhadopor.Fer-
cluíssem no cubículo o ensino de Pomiguês, Geografia e nando de Azevedo que, ao descrever o movimento educa-
História do Brasil por professores brasileiros natos e en- cional na década de 20, põe em relevo o papel da ABE
sinassem os cantos nacionais nas classes infantis. Além em sua dinamização e expansão, aünmando que sua im-
disso, essas escolas deveriam abrir-se à inspeção do portância msidiu em ter funcionado como força.de
Estado e fomecer-lhe os dados estatísticos solicitados. aglutinação" dos esforços esparsos dos educadoresque se
Com a derrogação da Refomla em 1925, a reorga- vMm empenhando na reforma dos sistemas estaduais
nização do ensino paulista fez-se sob o signo da volta de educação:
ao passado, de retomada dos padrões que haviam Congregando os educadores do Rio de Janeiro, pondo-
prevalecido no início da República e que a Reforma mu- os em contacto uns com os outros, abrindo oportu-
tilara. Era reabilitado o modelar sistema de ensino
nidades para debate largo sobre doutrinas e refomlas, fre-
paulista montado a partir das meticulosas providências qüentementede um conteúdo intelectual confuso e con-
de Caetano de Campos e dos que imediatamente sucede- traditório, e convocando para congressos ou conferên-
ram a ele. O primado da quza/íc&zckimpunha-se à priori- cias de educação",a ABE teria sido "um dos
dade concedida à difusão do ensino. Será uma mudança instrumentosmais eficazes de difusão do pensamento
de ênfase como esta que permeará o discurso educacional pedagógico europeu e norte-americano e um dos mais
dominante na segunda metade da década de 20. Nesta re- importantes, se não o maior centro de coordenação.e de
definição de prioridades, teve importantíssimopapel a debates para o estudo e solução de problemas educa-
Associação Brasileira de Educação(ABE), fundada, co- cionais, ventilados por todas as fomnas, em inquéritos,
mo já foi dito, em 1924.
4 '/
46
Mai'ta f\4a)'ia Chagas de Cai \.alho A Escola e a República

em comunicados à imprensa, em cursos de férias e nos a culpa do atraso, do desgovemo,da anarquiae dos
congressos que promoveu nas capitais dos Estados.' muitos males que afligem nosso pais
(A CulMra Brasileiras

Em especial, as Conferências Nacionais, aproxi-


mando educadores de todos os Estados e congregando-os
em diferentes centros culturais do país, teriam propicia-
do o que chamou de "marcha resoluta para uma política
nacionalde educação."(ibidem)
Em discurso-programa da Associação Brasileira de
Educação, Heitor Lyra da Silva, apontado como princi-
pal idealizador e organizador da entidade, aílímava em
1925

:Cheio interpretar a maioria senão a totalidade dizendo


que não temos o fetichismo da alfabetizaçãointensiva e
que estamos convictos, salvo pequenas divergências se-
cundárias, de que o levantamentodo nível popular tem
que repousar sobre tríplice base: moral, higiênica e
económica, o que significa que sem a cultura das quali-
dades do caíáter, sem a melhoria das condições de saúde
da massa da população e sem uma racional oiEanizaçãa
do trabalho é utopia esperar que a alfabetização rápida e
quase instantânea, se possível, viesse a üansfomiar para
o bem as atuais condições do nosso país."(Discurso)

Para os organizadoresda ABE, era necessário;co-


mo pontuavaAzevedo Sodré em conferênciapor ela e/lmíasi2mpeZa edzicação e ofímismo pedagógico.
promovida em 1925: O entusiasmo orla educação caracterizar-se-ia pela

convencer a nossa gente de que, ao contrário do


que habitualmentese aHinna,não cabe ao analfabetismo
48 +9
Mat ta Mugiu Chagas de Ca} valho A Escola e a Re})úhtica

dagógico manteria, do e/zrusíasmo,a crença no poder da era o da difusão do ensino."(-.).


educação, não de qualquer tipo de educação, enfatizando O entusiasmo pela educação que se manifesta através da
a nnportânciada nova pedagogia na formação do mobilização em favor da difusão do ensino elementar e
homem novo. Na passagem do entusiasmo para o oti- que está ligado às tentativasde recomposiçãodo poder
mismo se teria produzido no movimento uma crescente político através da ampliação do número de votantes,
iniciada em meados da década de 10, não sobrevive com
dissociação entre problemas sociais, políticos e
o mesmo caráter logo após os primeiros anos da década
económicos e problemas pedagógicos.
seguinte, quando foi se tomando claro para os grupos
Existe para Nagle uma anterioridade temporal do en-
em luta pelo poder que, através da educação, a conquista
tusiasmo pela educação em relação ao otimjsmo da hegemonia política era problemática e demandava
pedagógico. Entretanto, não considera alevante o critério muito tempo-: Os políticos efetivamente interessados
cronológico na distinção entre os dois movimentos.
na conquistado poder, abandonameste campo de luta,
Exemplo disto é que toma o discurso de Miguel Couto na deixando-o aos diletantes da educação e enüegando-se às
hBE, em L921,No Brasil só há umproblemattacional, conspirações de revolta amuada."(Edmação PopizZar e
a edzcaçáo'b povo, como caso mais típico do entusias- Educação deAdultosü
mo pela educação. A leituraque \hnilda Paiva faz do tex-
to de Nagle estabelece um limite temporal ngido: até Em Vanilda, Miguel Couto é o principal represen-
1925, estaríamos diante do entusiasmo pela educação; a tante desse diletantismo. Paralelamentea essa sobre-
partir de então, do oümismo. Leia-se o que escreve: vivência do entusiasmocomo diletantismo,teriam sur-
gido os profissionais em educação, representantes do
Com o nacionalismodos anos 10 voltam à baila os otimismo pedagógico. Tais profissionais
ideais republicanos e democráticos, aos quais se ligam
os anseios de universalização do ensino elementar e de 'reuniram-senuma Associação Brasileira de Educação
ampliação das oportunidades educacionais para o povo. (ABE), fundadapor feitor Lura em 1924,a fim de de-
Qganizam-se as 'ligas', em cujos programas sempre fender seu campo de trabalho-. Era a prüneira sociedade
estão presentes reivindicaçõesrelativas à instrução de profissionais da educação com caráter nacional e sua
popular... Este nacionalismo educacional, que se mani- atuação, principalmente através das Conferências
festa na luta pela democratização do ensino, está ligado Nacionais de Educação promovidas a partir de 1927,
ao problema da ampliação das bases dê representação contribuiu no sentido da difusão dos ideais e princípios
eleitoral,pois na medida em que o grupo industrial ur- da Escola Nova e do 'otimismopedagógico'em ge-
bano pretende a recomposição do poder político dentro ral.(...) Durante os anos vinte, passada a fase do 'entu-
do marco da democracia liberal o caminho mais seguro siasmo pela educação', dominam as idéias de tecniHl-
50 Mal'ta Mana Chagas de Carvalho A Escola e a República 51

cação pedagógicade forma quase absolutae unifomie votantes", Vãnilda Paiva apresentao que considera uma
em todo o país, graças à ABE."(ibidem) causa da dissociaçãoprogressivaentre as preocupações
políticas e educacionais: é que "foi se tomando claro pa-
O texto de Vãnilda Paiva amarra o "entusiasmo pela ra o grupo em luta pelo poder que, através da educação,
educação" às "tentativas de recomposição do poder políti- a conquista da hegemonia política era problemática e de-
co através da ampliação do número de votantes iniciada mandava muito tempo". Os "políticos efetivamente in-
em meados da década de 10". Ta-se-ia aí um momento teressados na conquista do poder" teriam abandonado o
em que educação e política estavam vinculadas. A partir "campo de luta" educacional,"entregando-seàs conspi-
de meados da década de 20, esse vínculo desapaieceiia, rações de revolta armada", como já se leu.
dando lugar a um eníbque /éc/ligo da questão educacional. A históriada fundaçãoe da organizaçãoda
Questiona-se aqui esta tese de Vanilda Paiva. Pri- Associação Brasileira de Educação não conHmnaessas
meiramente,porque o grupo que compunha os órgãos annTnaÇÕes. Sua fundação resultou do malogro na orga-
diretoresda Associação dificilmente pode ser qualiãlcado nização de um partido político, devido à precipitação de
de ;)rz?/7sslonaisem educação. Nele predominaram médi- um dos organizadoresque, em julho de 1924, acreditan-
cos, advogados e sobretudo engenheiros, professores da do no sucesso da revolução paulista, chegou a entrar em
Escola Politécnicado Rio de Janeiro, cujos interessese contato com os revolucionários. Além disso, parcela
campo de trabalho abrangiam questões de siderurgia, ur- signiÊlcativados fundadoresda Associação -- a crer na
banismo, economia política, finanças, política, astrono- veracidade das acusações que determinaram a prisão de
mia, física etc. Em segundolugar, porquetal grupo alguns deles -- esteve envolvida em movimentos mi-
guardou do e/zfzlsiasmoa priorização da educação como litares. Finalmente, cerca de metade dos integrantesdos
grande problema nacional, cuja solução transformaria órgãos diretores da Associação foram os fundadores e or-
política, social e economicamenteo país. Em terceiro ganizadoresdo Partido Democráticodo Disüito Fede-
-- razão principal -- porque a ênfase do grupo na quali- ral, tendo composto a cúpula do partido nos anos de
dade do ensino em deüímento da simples difusão da es- 1927 e 1928. Dois deles chegaram mesmo a eleger-se
cola -- o que faria deles ofimís/as -- não foi decorrente intendentesmunicipais nas eleições de 1928e, segundo
de razões pedagógicas, mas políticas. Dependendo de sua informação de Paulo Nogueira Filho, estreitamentevin-
@&ã=&k,a educação foi explicitamente valorizada, co- culado ao grupo, foi o desaparecimentodeste num de-
mo instrumento político de controle social. sastre de aviação em 1928 que inviabilizou o Partido
Depois de realçar a vinculação original das preocu- Democrático do Distüto Federal.
pações educacionais"com as tentativas de recomposição A signiâlcação disso não extrapolaria a simples
do poder político através da ampliação do número de ratificação do relato de Vanilda Parva se fosse possível
52 Mal'ta Mana Chagas de Ca}«valho 53
A Escola c a Repút)liça

sustentar que o grupo aglutinado na ABE na década de


20 era apenas um grupo remanescente do entusiasmo mo pedagógico em ternos que possibilitem evidenciar o
pela educação, convencido da importância da simples di-
fusão do ensino sem qualquer restrição ao conteúdo da
educação a ser difundida. Este não é o caso, como já se
aânmou.A crítica ao que Heitor Lyra da Salva chamara
de "fetichismo da alfabetização intensiva" era mesmo
um dos pontos consensuaisentre os integrantesda As-
sociação, constituindo-se, ao que parece, como um dos
mais importantes móveis da fundação da entidade.
Muito esclarecedora, a respeito, é a informação de
Mattos Pimenta. Pertencia à Comissão Executiva do
Partido Democrático do Distrito Federal em 1927 e 1928
e era muito identificado com intelectuais do Conselho
Diretor da ABE, participantes, nesses anos, daquela
Comissão. Segundoele, o Partido fora organizadoa par-
tir da avaliaçãode que a Revoluçãode 1924em São
Pauta falhara devido à inexistência de uma opinião públi-
ca que desse sustentação à tomada do poder pelas armas.
Isto implicava, a seu ver, deslocar a ênfase que vinha ca-
definição dos esquemas de dominação vigentes.
racterizando as campanhas de aHabeüzação no peribdo
ampliação do número de eleitores -- para questões de or -
ganização do eleitorado. Estas abrangiam a fomtação de
uma opinião pública e, para tanto, partido e sistema edu-
cacional eram propostos como instrumentos principais.
Isto sugere que o abandono da êníàse na diftlsão do ensi-
no, registrado por Vanilda Parva, não significou uma des-
politização do campo educacional mas, ao contrário, sua
politização em novos termos. Compreender este desdo-
bramento requer que se compreenda o aparecimento do
entusiasmo pela educação e sua transfomlação no otimis-
55
A Escora e a República

de atuação. Amalgamando ou diluindo divergências,


atraindo adeptos, a campanha cívica tinha importância
em si mesma, sendo ela própria parte essencial do prome-
to de refomia moral e intelectualem que se enganavaa
ABE. Produzindo o que se entendia como uma taineana
fe/nperaMra mora/, era processo em curso de eímdicação
do que se identiülcava como uma das principais causas da
crise nacional: o ceticismo, o individualismo, a apatia
das elites políticas, cegas à importância da educação
Promover uma refomta da mentalidade dessas elites, con-
A ]ZEFOlZMA MOliAL E
vencendo.-asda necessidade de ngeneiar pela educação as
INTELECTUAL populações brasileiras, moldando-as como povo saudável
e produtivo, era o que se esperava da campanha educa-
cional.
Máquina persuasiva, o discurso cívico da ABE
opera maniqueistamente, produzindo imagens da real.
As principais iniciativas que notabilizaram a dade brasileira que opositivamente se interqualiülcam.O
Associação Brasileira de Educação nos anos 20 foram presente é reiteradamente condenado e lastimado, sendo
marcadas como acontecimentos cívicos: a propaganda que caracterizado de modo a fundamentar temores de
se fez delas, os ütuais que as constituíram colocaram a catástrofes iminentes, que atingirão o país se a campa-
Associação como obra cívica de que dependiaa redenção nha educacional não obtiver os resultados desejados. Ao
do país. As Conferências Nacionais não foram somente futuro insistentementese alude como dependentede
instâncias de debate mas eventos que funcionaram como uma política educacional: futuro de glórias ou de pe-
propaganda da causa educacional. Nelas, discursos e ritu- sadelos, na dependência da ação diretora de uma elite que
ais representaram a ABE como congregação de homens direcione, pela educação, o processo de transfomiação do
de elite, esclarecidos, bem intencionados e devotados ao país. Na oposiçãoconstruídapor imagensde um país
equacionamento das mais graves questões nacionais. presente condenado e lastimado e de um país futuro de-
Nesta prática, operavam mecanismos de constituição e sejado é que se constitui a importância da educação co-
validação da campanha educacional. Divergências eram mo espécie de chave mágica que viabilizará a passagem
relativizadas ou mesmo apagadas na generalidade das do pesadelo para o sonho. Neste espaço é que se ins-
proclamações em que o civismo era o campo consensual creve o entusiasmo pela educação de que a ABE é ao
56 À Esgota e a República 57
Malta Mal'ia(:bagas tie(' al«pa!h o

reformadores se credenciam como colaboradores indis-


mesmo tempo consequência e principal foco de inadia- pensáveis e eficientes na invenção e no aprimoramento
çao
de dispositivos de dominação.
No discurso cívico da ABE, a figura de um brasi-
A Associação Brasileira de Educação foi uma
leiro doente e indolente, apático e degenerado, alegoriza dessas organizações. Nela um grupo de intelectuais se
os males do país. Transfomiar essa espécie de Jeca Tatu auto-representou como elite que deveria dirigir através
em brasileiro laborioso, disciplinado, saudável e produ- da educação o processo de transfomlação do país. Sua
tivo era o que se esperava da escola.
prática constituiu como objetos de intervenção política
As práticas discursivas das organizações cívico-na- a ignorância, o vício, a doença e a indolência das popu-
cionalistas que proliferam no país nos anos 10 e 20 têm lações brasileiras. E, no processo de debates desencadea-
merecido pouca atenção dos historiadores. Interpretado do nas Conferências Nacionais, tal prática credenciou os
como palavrório vazio, ausência de ideologia, ritual es- agentese as técnicas de intervenção preconizadas. A
vaziado, o discurso cívico não é analisado enquanto
ABE funcionou assim como instância de organizaçãoe
prática. Com isto, perde-se a possibilidade de identificar cmdenciamento de reformadoms sociais, produzindo um
não somente estratégias organizacionais de grupos inte- espaço de ação política-- o do técnico -- que seria
ressados em ampliar seu campo de atuação, como tam- gradativamente alargado no interior da burocracia es-
bém os objetos de intervençãoconstituídospor tais es- tatal, principalmente a partir de 1930. Mas funcionou
tratégias. É muito tênue a diferença entre a prática também como instância de disseminação de um saber
dessas organizações cívicas e a que caracterizou as asso- sobre o social, de marcada configuração autoritária, em
ciações de profissionais como médicos, educadores, en- que o povo brasileiro é figurado como matéria informe
genheiros e higienistas que na década de 20 se organi- e plasmáve] pela ação de uma elite que proletava confor-
zaram através de inúmeros congressos e conferências em ma-lo a seus anseios de Ordem e Progresso.
tomo de questõeseleitas como pontos privilegiados de A implantação de hábitos de trabalho e o cultivo
intervenção. Nelas, inúmeros rituais confonnavam tais da operosidade como valor cívico eram pontos essenciais
questõescomo causas cívicas, validando objetos e técni- da "grande reforma de costumes" refez'ida por Lourenço
cas de intervenção e credenciando seus agentes. Nesta Filho. Segundo ele, deveria ajustar os homens a "novas
situação é que se dá a montagem de diversos disposi- condições e valores de vida". O ajustamento dependia de
tivos de controle, ordenação, regulação e produção do uma remodelação e reesüuturação do aparelho escolar.
cotidiano das populações pobres. O refomiador social Mas dependia também do que Gustavo Lesma entendia
cqa presença marcante na década de 20 só recente- como "organização da resistência" na cidade invadida pela
mente tem sido registrada e analisada -- tem nessas or- fábrica. Referindo-se a Londres, dizia ele em 1930:
ganizações o seu lugar de emergência. Nelas é que tais
Mat ia Malta Cl\abas clt' Ctu \ cillt o A Escora e a Repilbtica
58 59

Há mais de um século, quando a cidade começou a se veriam necessariamenteincorporar-seao que se pre-


industrializar, nela despertaram os mesmos valons que conizava como educaçãoí/z/egru/,em oposição ao que
hoje vemos afluir no Rio de Janeircc miséria em vasta se entendia por í/zi/ração pzzfa e si/np/es. Amplamente
escala, superlotação nas habitações, facilidade de contá- fo(jada por rituais de constituição de corpos saudáveis e
gios em doenças, degradação dos padrões de moralidade. de mentes e corações disciplinados, a educação cívica era
Mas a raça inglesa soube suscitar então os &&zcürs
enér- garantia de que a educação não viesse a tomar-se fator de
gicos que ela tem produzidoem todas as emergências,
não só religiosos como leigos. Foi-se organizandoa desestabilização social. Porque a instrução pura e sim-
resistência, foram-se constituindo inúmeras sociedades ples era, como a entendiaHeitor Lyra da Sirva, "uma
arma" e, "como toda arma", "perigosa". Coloca-la nas
pri-vadas para lutar contra a miséria física e moral
Está claro que os males não foram extintos, mas opôs' mãos da populaçãorequeria medidas que preparassem
se à sua violenta invasão a muralha de aço da solidarie- quem a recebesse "pam maneja-la benfazejamente para si
dade humana."("0 papel dos grupos familiares na edu- e para os outros."(JI//suão Ed caclona0 Educação do
cação")
sentimento,dos gestos, do corpo e da mente, assim se
diferenciava a educação integral pnconizada da insüução
A remodelaçãoe a reesmituração do sistema esco- pura e simples, arma perigosa. Era esse poder disci-
lar era tema dos debates que se constituíram como obje- plinador aüibuído à educação prescrita que fazia com que
tivo central da ABE, com vistas à formulação e imple- a questão da organização do trabalho no país -- tema que
mentação de uma política nacional de educação. Mas a avulta, como já se viu no primeiro capítulo, nas avalia-
organização da resistência nos tempos descritos por ções que a geração de 20 faz da República instituída --
Gustavo Lassa era o que definia a atuação da entidade no dependesse fundamentalmente dos recursos educacionais.
Rio de Janeiro. Nesta espécie de cruzada moral, inú- O tema da organização do trabalho é sempre referi-
meros rituais cívicos, propostos como iniciativas que do no discurso da ABE como questão incontroversa, cu-
expandiam o raio de influência da escola na moralização ja estrita nomeação é dotada da magia da argumentação
dos costumes da cidade, absorviam os intelectuaisenga- irrecusável na defesa da importância da educação.
jados na ABE. Cuidados com a formação cívica apare' Embora seja por isso difícil precisar o que se entendia
ciam a eles como garantiado "trabalho metódico, ade- pela formulação, é possível aHnmar que significava um
quado, remunerador e salutar", de "disciplina consciente conjunto de dispositivos que distribuem, integram, di-
e voluntária e não apenas automática e apavorada", co: namizam, aparecendo com referenciais diversos. Referi-
mo também da "ordem sem necessidadedo empKgo da da à escola, a expressão designa medidas de racionaliza-
força e de medidas restritivas ou .supiEssivas. da liber- ção do trabalho escolar sob o modelo da fábrica, tais co-
dade '(Solução de um proa/ema víraD Tãs cuidados de- mo: tecniHicação do ensino, orientação profissional,
Mat ta Malta Chagas de Cai valho A Escola e a República 61
60

dente; o homem que está doente e vai contaminar seus


camaradaspara dirigi-lo ao dispensário; o homem sem
teço, e facilitar-lhe a casa decentepara sua família; o
homem que se quer instruir e, para tantoIhe dar os
meios; o homemque desejasseaproveitarseus momen-
tos de folgae Ihe propiciar um jardim."(iófdem)

Representando seu papel como o de "conduzir


homens", os engenheiros deveriam ser "os bons imiãos
dos jovens operáriose, por isso, velar não só pela
higiene do coito, suas vestes,seus costumes,como
pelas funções morais."(ibidem)
A referência ao tema traduziu-se, em alguns casos,
na valorização dos métodos da chamada pedagogia mo-
dema enquanto possibilidade de realização, no meio es-
colar, das novas máximas organizadoras do trabalho in-
dustrial. A idéia de que aqueles métodos permitiriam
.na ordem capílaiista.a circulação na ABE à pledominân- conseguir melhores resultados com menos esforços, à
ança.dessas máximas, determinou o crivo princi-
pal de valorização das inovações pedagógicas: sua maior
eHlciência comparativamente à chamada pedagogia tradi-
cional. Providências como testes, organizaçãode classes
homogêneas, atendimento aos interesses e habilidades
individuais dos alunos era, dessa perspectiva, valo-
rizadas. Lourenço Filho, por exemplo, em artigo de
1929 sobre "A Escola Nova", apontava duas tendências
principais na pedagogia modema, referindo-se a uma de-
las como "taylorismo na escola": abrangendo "ino-
rior da fábrica. O engenheiro deveria
vaçoes ou sistemas que visam a dar maior rendimento
escolar do ponto de vista da organização das classes ou
notar o homem que está fatigado ou mal empngado,
cursos", esta tendência encararia a escola "como a pro-
para Ihe dar um trabalho menos penoso ou mais conve-
62 Ma)ía Mana ChagasdeCaia'alho A Escola e a República 63

significavanão somenteprescnver normasde organiza


ção das atividades escolares, mas também postular um n-
gramento do aluno, evitando que seu ilz/eresseno proces-
so de apKndizagemse üansformasseem/mlxzã),princí-
pio "intempestivo" de "escolhas caprichosas"(iU(Zem).
hicorpolando expectativas de nacionalização do üabalho
industrial, a valorização da educação, quando vinculada à
cnnça nas virtudes dos novos métodos pedagógicos, visa-
va a que a escola organizasse a atividade clo aluno em
moldes fabris: "No momento em que o mundo proclama
métodos de organização do trabalho como fator essencial
da prosperidadeeconómica", escrevia o mesmo Barbosa
de Oliveira, a ez2bi('%M
/7za(&/vm se instituía dando a esse
trabalho,"desde os pioneiros passos do aluno. uma dire-
ülz segura para a 'mcionalização' unanimemente prescrita
em todos os ramos da atividade humana."(H Exmo/a
Regional)
O tema da organização do trabalho estava também
associado a proUetosde reestruturação do sistema escolar
que melhor assegurassem a homogeneização e disci-
plinamento das populações. Ganha aqui relevo o tema
da fomiação das elites diretoras. Embora o discurso dos
entusiastas da educação fosse eivado de referências às
populaçõespobres, que cumpria regenerarpela edu-
cação, o debate promovido pela ABE voltou-se priori-
tariamente para questões relativas ao ensino secundário
e superior. Se este deveria ser a. ziii/zaonde seriam pro-
duzidos pog/lzP7zas (k vi(ü para o país, como queria
Vigente Licihio Cardoso, aquele deveria formar "diri-
gentes de menor visão e de maiores massas", como
propunha Alba Caãizares Nascimento, em resposta ao
6+
Maiía Mana Chagas de Cai vcilli o À Escola e « República 65

máxima "0 homem certo no lugar certo" significava não


a adequação do üabalhador a uma detenninada ocupação
indusüíal, mas expectativasquanto a uma distribuição
' mcional'' da população pelas atividades rurais e urbanas.
Assim pensada, a questão traduzia-se na valonzação da
chamadaEscola Regional. Nesta acepção,o tema tinha
conotações românticas de idealização utópica da vida
campestre. Imagens da honradez, da simplicidade, da
saúde figuravam virtudes rurais, por oposição idílica a
representações da cidade como vício, comlpção e insalu-
bridade. A escola rural era uma espécie de anüdoto Imga-
mente aceitado contra o "congestionamento das cidades"
e "o pauperismo uroano com seus pemiciosos efeitos."
(Á Edmação .Rzzra/)Abrir-se ao influxo da vida campestre
era o que se propunha como Kcurso disciplinar da escola
rural. Quanto à escola adaptada ao meio urbano. era co-
mum a expectativa de que viesse "combater, ou pelo
menos atenuar em seus efeitos morais, essa vida tumul-
tuosa, corrosiva, ávida de prazeres", com os recursos
oferecidos pela modema pedagogia.(H Esmo/a .4/iva
rios Centros UrbanosÕ
A regionalização como instrumento de alteração
do que Fumando Magalhães entendia por "disüibuição
humana desordenada" não podeíía, enüetanto, compro-
meter a ração homogeneizadora da escola. No progra-
ma nacionalista a ela reservado, era necessário conciliar
as vantagensda regionalizaçãocom o que se propunha

g
como função essencial da escola primária: ':a homo-
geneização necessária dos indivíduos como membros de
uma comunhão nacional", na formulação de Lourenço
Filho. A escola de civismo deveria garantir a unidade
Mana Mana Chagas de Can'alho A Escol« e a República 67
66

modulou-se principalmente como resistência morali-


zadora ao mal urbano. Pregações, festas pedagógicas,
comemoraçõescívicas, console do lazer por procedi-
mentos vários, constituição de Círculos de Pais destina-
dos a ampliar o raio de influência da escola, medidas de
proteçãoà Infância --- tais iniciativas tinham como de-
nominador comum o empenho na moralização dos cos-
tumes citadinos. A elas somente se contrapunhamas
promovidas pela Seção do Ensino Superior do
Departamento carioca da ABE -- seção em que se
aglutinava o grupo de Labouriau -- em que a tónica era
a promoção de cursos e conferências de a//a czz/Mra.nu-
ma tentativa de demonstração prática da viabilidade do
ensino universitário no país. Mas a presença de expres-
sivo número de militantes católicos na Associação deu
à entidade o caráter de resistência moral referido. E por
isso interessante reter a especificidade do caráter que esse
grupo dava à sua atuação.
Em julho de 1929,Femando Magalhães,líder do
grupo católico sediado na ABE carioca, submeteao
Conselho Diretor da Associação um prqero de organi-
zação sacia/ cometido por D. Amélia de Rezende Mar-
tins, a ser desenvolvido como Ação Social Brasileira. A
autora já ülzera sentir sua presença no círculo da ABE
propondo, em 1927, na Primeira Conferência Nacional
de Educação, que o ensino mligioso fundado na douüina
católica integrasseo programa das escolas oâlciais.
Mais tarde, em 1931,D. Amélia tambémseria a res-
ponsável pela área social da Liga de Defesa Nacional, a
convite do mesmo Fumando Magalhães, então presi-
urbanas... . . .:.
guiar o cotidiano das populações dentedo órgão. D. Amélia, contudo,.não integrava os
A atuaçãoda ABE na cidadedo Kio ae iulçuv
Malta Mana Chagas de Cap-Falho A Escola e a República 69
68

de modo que um enunciado como "As mães não sabem


órgãos dintores da Associação, nem se destacavacomo
sócia atuante. . . que divertimentos proporcionar aos rapazes para afmtá-
Submetido à apreciação do Conselho, o prometofoi los das mesas de jogo, dos bilhares públicos do azÓmef.
lado com um voto de apoio à idéia 'generosae do mau cinema, de tudo mais que não pnciso citar, de
útil" A.maior parte do Conselho subscmveu, em agosto todas as diversões, enfim, verdadeiras escolas do vício..."
coexiste com "... as sarjetas continuam cheias de folhas
de 1929, os estatutosda Ação Social Bmsüeüa, sociedade
civil por eles instituídacom sedeno Rio de Janeiro, e papeis que vão entupir os ralos com a primeira chu-
"tendo por objetivo coordenar e desenvolver t«]a.a Ação va , 'ê impraticável e esfdfante, a meu ver, para o pro-
Social no Bmsil, aproveitando, auxiliando, ampliando e fessorado daqui, com o nosso clima deprimente, l:var
turmas de alunos a visitar fábricas, museus, jardins zoo-
completando as iniciativas já existentes: especialmente lógicos, observatórios etc." e "Os literatos enchem as
em benefício da educação e da assistência'.
Mesmo que se tenhaem conta uma provável con- nossas livrarias de uma literaturaperversa" ou, ainda. "A
descendência do Conselho às boas intenções .de. D. Ação Social terá em vista ampliar sempre os seus nms.
Amélia o projeto referido interessa aqui por hiperbolizar cuidara da questão dos prisioneiros, onde o problema não
estiver ainda resolvido, e auxiliará, por exemplo, com
o tipo de redução de cunho moralista operada na identifi- seus/z/ms, as Academias Superiores de Ciências e Arte-
' "--'--

dw:ln
cação do que é nomeado qz4es/ãosoda/ e na constimtçao e também a Saúde Pública". '
concomitante
de um campode açãoeducacional,
per-
mitindo elucidar o significado das práticas da .ABE na
cidade do Rio de Janeiro. .
Montado como enumeração e exemplos de ação
BrasUeira pretendia superar a situação de impotência em
l benemérita, o documento pretendia estar apresentando
uma solução global para 'a chamada questão social.
que se encontravam as senhoras beneficentes:'
l Curiosamente, entretanto, justapunha sugestões de di-
;:l-i';:;;ls "sociais" e "populares", com os quais D. "As festas de caridade caçam em desuso, ninguém mais
Amélia, apaziguando sua aflição de observadorapreocu' se interessa por essas miscelâneas, que dão um trabalho
pada esperava solucionar o ócio inoperane do operário insano para serem organizadas e estão irremediavel-
e a dissolução dos costumes da alta sociedade. .Desta mente sujeitas à mais severa crítica. Os chás já estão
maneim a leitura do prometoproduz um efeito de.incon cansando, muita gente deles se esquiva, e muita gente
gruência, na medida em que não obedece a um prmcil:o lamenta não poder f'mer outro tanto. A festa da Hor já
está muito explorada, apresentandograndes desvanü.
hierárquico de ordenação e adequação..ascursivas: u.
Amélia dispõe seu texto quase que por livre associação, gene, e vai caindo, pela sua repetição, na antipatia do
70 N4alta Murta Clllagas de Cara'all o .4 Est'ola e ci Rcpúl)lit'ci
71

Ü
A Escola e a Reptlbtica 73
M.ai ta. Mat ia Clmgus de Cat \'alta o,

cobertas de folhas de zinco, verdadeiros aglomerados de longe". Era necessário,por isso: reunir forças num.mo-
mento em que "o mundo, convulsionado pelo esBuntode
tocas ignóbeis, torpes espeluncas, verdadeiros antros de desordem, sente o angustioso desejo de organização". Era
miséria física e moral, onde pululam as crianças.en'
rezadase imundas-. O Círculo de Pais, em boa hora preciso, dizia enfeixando Mussolini na ordem do discur-
so, imita-lo: "pelo seu prestígio pessoal: diretamente en-
lembrado pela A.B.E. e posto em prática por multas es- caminha toda a atividade, toda a iniciativa italiana". Por
colas do Distrito Federal, acordará nos pais de família
isso, propunha que se cuidasse de "nossa organização se'
os seus deverespara com os filhos, interessa-los-ános cial antes que o descalabro, que nos ameaça, chegue a
tmbalhos escolares, tomando prestigiados os profes-
sores. Podermos, entretanto, acreditar que o Círculo de ponto de perturbar a nossa vida económica, como esta
sucedendo em outras temas, com as greves sucessivas
Pais proporcionará ocupação aos filhos para as horas de
.
i:Ü.; p à; mã« .êm ««; di,; '.m,d'; pe:" "f' Era necessário, por isso, antecipar-se ao "perigo":. "Se
temos levantes gastamos rios de dinheiro para sufocá-
pações que lhes garantem a subsistência, e o que fmão los". Seria "mais fácil prevenir do que remediar'
as crianças fora do horário escolar? Será essa a hora,
será esse o lugar da Ação Social Brasileira, que propor' Calculando que a diferença entre a obm caritativa
cionará diversões inocentes, jogos recreativos e lnstru- que se antecipavaao perigoe a repressãoamuadaem,
tivos ou brinquedos profissionais, organizando, tam- talvez, apenas uma questão de economia doméstica do
bém, para os operários, o que lhes distraíra o espírito, país. D. Amélia deslocava abruptamente o níenncial de
afundo-os das tavemas, uma vez terminadas as horas seu discurso pam a enumeração de "descalabros" de todo
de serviço, o que se dá ainda com o sol de fora. tipo: crianças gritando pelas ruas e quebrando vidmças;
vanedons que não sabem o seu serviço; crianças da alta
Voltada para obra caritativa que objetivava contem- sociedade sem diversões interessantes; moças de boa
família que se degradam a cada dia; adolescentes que se per-
dem nas mesas de jogo ou na cocaha; operários que tro-
cam a família pela tavema; crianças a dizer inconveniên-
cias e a sujar calçadas; viüines, postais e manequins, "üldo
exposto com o maior atrevimento"; filmes imorais;
artistasperversos; professoresque ganham menos que
porteiros; taqetas postais imorais que vêm da Espanha;
lares desfeitos; escolas sem material didático adequado;
circos de cavalinhos com palhaços repugnantes-. Confia
tão proliferanteperigo, D. Amélia propunha um rol de
52 Mal-taMal'ia Chagas de Calvatho 53
A Escola e a República

sustentarque o grupo aglutinadona ABE na década de


20 era apenas um grupo remanescente do entusiasmo mo pedagógico em tempos que possibilitem evidenciar o
pela educação, convencido da importância da simples di-
fusão do ensino sem qualquer restrição ao conteúdo da
educação a ser difundida. Este não é o caso, como já se
aüimlou. A crítica ao que Heitor Lyra da Salva chamara
de "fetichismo da alfabetização intensiva" era mesmo
um dos pontos consensuaisentre os integrantesda As-
sociação, constituindo-se, ao que parece, como um dos
mais importantesmóveis da fundação da entidade.
Muito esclarecedora, a respeito, é a infonnação de
Mattos Pimenta. Pertencia à Comissão Executiva do
Partido Democrático do Distrito Federal em 1927 e 1928
e era muito identificado com intelectuais do Conselho
Diretor da ABE, participantes, nesses anos, daquela
Comissão. Segundoele, o Partido fora organizadoa par-
tir da avaliação de que a Revolução de 1924 em São
Paulo fàüara devido à inexistência de uma opinião públi-
ca que desse sustentação à tomada do poder pelas armas.
Isto implicava, a seu ver, deslocar a ênfase que vinha ca-
definição dos esquemas de dominação vigentes.
racterizando as campanhas de a#abetização no período
ampliação do número de eleitores-- para questões de or
ganizaç(h do eleitorado. Estas abrangiam a formação de
uma opinião pública e, para tanto, partido e sistema edu-
cacional eram propostos como instrumentos principais.
Isto sugereque o abandonoda ênfase na difusão do ensi-
no, registradopor Vãnilda Paiva, não significou uma des-
politização do campo educacional mas, ao contrário, sua
politização em novos termos. Compreender este desdo-
bramento requer que se compreenda o aparecimentodo
entusiasmo pela educação e sua transfomnação no otimis-
55
A Escola e a República

de atuação. Amalgamando ou diluindo divergências,


atraindo adeptos, a campanha cívica tinha importância
em si mesma, sendo ela própria parte essencial do prole'
to de reforma moral e intelectualem que se engatava a
ABE. Produzindo o que se entendia como uma tameana
rePnpera ra mora/, era processo em curso de erradicação
do que se identificava como uma das principais causas da
crise nacional: o ceticismo, o individualismo, a apatia
das elites políticas, cegas à importância da educação-
Promover uma refomta da mentalidade dessas elites, con-
A REFORMA MORAL E vencendo-as da necessidade de ngenerm pela educação as
INTELECTUAL populações brasileiras, moldando-as como povo saudável
e produtivo, era o que se espemva da campanha educa-
cional. ..
Máquina persuasiva, o discurso cívico da ABE
opera maniqueistamente,produzindo imagens da real.
As principais iniciativas que notabilizaram a dade brasileira que opositivamente se interqualiülcam. O
Associação Brasileira de Educação nos anos 20 foram presenteé reiteradamentecondenado e lastimado, sendo
marcadas como acontecimentos cívicos: a propaganda que caracterizado de modo a fundamentar temores de
se fez delas, os rituais que as constituíram colocaram a catástrofes iminentes, que atingirão o país se a campa-
Associação como obra cívica de que dependiaa redenção nha educacional não obtiver os resultado)sdesdados. Ao
do país. As ConferênciasNacionais não foram somente futuro insistentemente
se alude como dependentede
instâncias de debate mas eventos que funcionaram como uma política educacional: futuro de glórias ou de pe-
propaganda da causa educacional. Nelas, discursos e ritu- sadelos, na dependência da ação diretora de uma elite que
ais representaram a ABE como congregação de homens direcione, pela educação, o processo de transformação do
de elite, esclarecidos, bem intencionados e devotados ao país. Na oposiçãoconstruídapor imagensde um país
equacionamento das mais graves questões nacionais. presente condenado e lastimado e de um país futuro de-
Nesta prática, operavam mecanismos de constituição e sejado é que se constitui a importância da educação co-
validação da campanha educacional. Divergências eram mo espécie de chave mágica que viabilizará a passagem
relativizadas ou mesmo apagadas na generalidade das do pesadelopara o sonho. Neste espaço é que se ms-
proclamações em que o civismo era o campo consensual
P. Escora e a República 57
56 Ma} ta Mal'ia Chagas tie Cal-palha 9

reformadores se credenciam como colaboradores indis-


mesmo tempo conseqüência e principal foco de inadia- pensáveis e eficientes na invenção e no aprimoramento
çao de dispositivos de dominação.
No discurso cívico da ABE, a figura de um brasi- A Associação Brasileim de Educação foi uma
leiro doente e indolente, apático e degenerado, alegoriza dessas organizações. Nela um grupo de intelectuais se
os males do país. Transformar essa espécie de Jeca Tatu auto-representou como elite que deveria dirigir através
em brasileiro laborioso, disciplinado, saudável e produ- da educação o processo de transformação do país. Sua
tivo era o que se esperava da escola. prática constituiu como objetos de intervenção política
As práticas discursivas das organizações cívico-na- a ignorância, o vício, a doença e a indolência das popu-
cionalistas que proliferam no país nos anos 10 e 20 têm lações brasileiras. E, no processo de debates desencadea-
merecido pouca atenção dos historiadores. Interpretado do nas CoMerências Nacionais, tal prática credenciou os
como pa[avrório vazio, ausência de ideo]ogia, ritual es- agentes e as técnicas de intervenção preconizadas. A
vaziado, o discurso cívico não é analisado enquanto ABE funcionou assim como instância de organizaçãoe
prática. Com isto, perde-se a possibilidade de identiHlcar credenciamento de reformadoKS sociais, produzindo um
não somente estratégias organizacionais de grupos inte- espaço de ação política-- o do técnico -- que seria
ressados em ampliar seu campo de atuação, como tam- gradativamente alargado no interior da burocracia es-
bém os objetos de intervençãoconstituídospor tais es- tatal, principalmente a partir de 1930. Mas funcionou
tratégias. É muito tênue a diferença entre a prática também como instância de disseminação de um saber
dessas organizações cívicas e a que caracterizou as asso- sobre o social, de marcada configuração autoritária, em
ciações de profissionais como médicos, educadores, en- que o povo brasileiro é figurado como matéria informe
genheirose higienistasque na década de 20 se organi- e plasmáve] pela ação de uma elite que proletava confor-
zaram através de inúmeros congressos e conferências em ma-lo a seus anseios de Ordem e Progresso.
tomo de questões eleitas como pontos privilegiados de A implantação de hábitos de trabalho e o cultivo
intervenção. Nelas, inúmeros rituais confomtavam tais da operosidade como valor cívico eram pontos essenciais
questõescomo causas cívicas, validando objetos e técni- da "grande reforma de costumes"refciida por Lourenço
cas de intervenção e credenciando seus agentes. Nesta Filho. Segundo ele, deveria ajustar os homens a "novas
situaçãoé que se dá a montagem de diversos disposi- condições e valores de vida". O ajustamento dependia de
tivos de controle, ordenação, regulação e produção do uma remodelação e reesmituração do aparelho escolar.
cotidiano das populações pobres. O reformador social Mas dependia também do que Gustavo Lessa entendia
Gula presença marcante na década de 20 só recente- como "organização da resistência" na cidade invadida pela
mente tem sido registrada e analisada -- tem nessas or- fábrica. Referindo-se a Londres, dizia ele em 1930:
ganizações o seu lugar de emergência. Nelas é que tais
58 Mat ta Meti« Cl\asas clc Cat \ ct Iho A. Escola e a Repúillica 59

Há mais de um século, quando a cidade começou a se


veriam necessariamenteincorporar-seao que se pre-
industrializar, nela despertaram os mesmos valoms que
conizava como educação l/z/eira/, em oposição ao que
hoje vemos afluir no Rio de Janeiro: miséria em vasta se entendia por l/zi/r ção pura e if/np/es. Amplamente
escala, superlotação nas habitações, facilidade de contá-
forjada por rituais de constituição de corpos saudáveis e
gios em doenças, degradação dos padrões de moralidade.
de mentes e corações disciplinados, a educação cívica era
Mas a raça inglesa soube suscitar então os /ea(ü?rsenér-
garantia de que a educação não viesse a tomar-se fator de
gicos que ela tem produzidoem todas as emergências,
não só religiosos como leigos. Foi-se organizandoa desestabilização social. Porque a instrução pura e sim-
resistência, foram-se constituindo inúmeras sociedades ples era, como a entendiaHeitor Lyra da Silva, "uma
amua" e, "como toda arma", "perigosa". Coloca-la nas
pri-vadas para lutar contra a miséria física e moral .
Está claro que os males não foram extintos,mas opas' mãos da população requeria medidas que preparassem
se à sua violenta invasão a muralha de aço da solidarie- quem a recebesse"pam maneja-labenfmjamente para si
dade humana."("0 papel dos grupos familiares na edu- e para os outros."(JI/issão Educacfo/za/) Educação do
cação") sentimento, dos gestos, do corpo e da mente, assim se
diferenciava a educação integral preconizada da instrução
A remodelação e a reesüuturação do sistema esco- pura e simples, aula perigosa. Era esse poder disci-
lar era tema dos debates que se constituí'am como obje- plinador aüibuído à educação prescrita que fazia com que
tivo centralda ABE, com vistas à fomlulação e Tnple- a questão da organização do trabalho no país -- tema que
mentação de uma política nacional de educação. Mas a avulta, como já se viu no primeiro capítulo, nas avalia-
organização da resistência nos termos descritos por ções que a geração de 20 faz da República instituída--
Gustavo Lassa era o que deÊmia a atuação da entidade no dependesse fundamentalmente dos recursos educacionais.
Rio de Janeiro. Nesta espécie de cruzada moral, inú- O tema da organização do trabalho é sempre referi-
meros rituais cívicos, propostos como iniciativas que do no discurso da ABE como questão incontroversa. cu-
expandiam o raio de influência da escola na moralização ja estrita nomeação é dotada da magia da argumentação
dos costumes da cidade, absorviam os intelectuaisenga- irrecusável na defesa da importância da educação.
jados na ABE. Cuidados com a fomtação cívica apare' Embora seja por isso difícil precisar o que se entendia
coam a eles como garantia do "trabalho metódico, ade- pela formulação, é possível aHlímar que significava um
quado, remunerador e salutar", de "disciplina consciente conjunto de dispositivos que distribuem, integram, di-
e voluntária e não apenas automática e apavorada", co: namizam, aparecendo com referenciais diversos. Referi-
mo também da "ordem sem necessidadedo empKgo da da à escola, a expressão designa medidas de racionaliza-
força e de medidas resüitivas ou .supiEssivas. da liber- ção do trabalho escolar sob o modelo da fábrica. tais co-
dade '(Solução de umproa/ema vííaD Tais cuidadosde- mo: tecnificação do ensino, orientação profissional,
Mat ta Malta Chagas de Can' alho A Escola e a República 61
60

testesde aptidões, rapidez, precisão, maximização dos dente; o homem que está doente e vai contaminar seus
resultados escolares etc. Designa também o,.funciona- camaradas para diiígi-lo ao dispensário; o homem sem
mento da escola na hierarquização dos papeis sociais, teto, e facilitar,Ihe a casa decentepara sua famílias o
formando elites condutoras e povo produtivo. Referida homemque se quer instruir e, para tantoIhe dar os
meios; o homemque desejasseaproveitarseus momen-
tos de folga e Ihe propiciar um jardim."(ibidem)

Representando seu papel como o de "conduzir


nada das populações por diversas atividades produtivas.
Referida às populações pobres, aparece como disciphna- homens", os engenheiros deveriam ser "os bons innãos
mento, pela disüibuição regrada das populações em es- dos jovens operáriose, por isso, velar não só pela
higiene do corPO, suas vestes, seus c r"""
paços adequados, pela regulamentação controlada do la- pelas funções morais."(ibidem) tumes, como
zer e do trabalho.Nesta acepção,englobavamedidas
destinadas a atenuar conflitos de classe e a aumentar a A referência ao tema traduziu-se, em alguns casos,
na valorização dos métodos da chamada pedagogia mo-
produtividade do üabalhador, .envolvendo questões de dema enquanto possibilidade de realização, no meio es-
saúde e de moral, com o objetivo de adequar a vida co-
tidiana do operário às exigências do trabalho industrial,

.na ordem (npdevetsua circulação na ABE à predominân-


cia de engenheiros. Defendendo medidas de organização
do trabalho de que seriam os executons, eles se auto-re-
presentavam como "desejosos do bem ,moral e material
dos seus auxiliares"(leia-se "operários", mas, ao mesmo
tempo, "cuidadosos da finalidade dos empreendimentos
enuegues à sua direção.".(O ]l/w/zdoColzfe/nporaneo e a
Erige/z/zarüz)O trabalho organizador do engenheiro impli-
cava observação minudente e apontava para um grande
nomeio de providências que extmpolavam a vida no inte-
rior da fábrica. O engenheiro deveria

'notaro homem que está fatigado ou mal empKgado,


para Ihe dar um trabalho menos penoso ou mais conve-
Malta Malta Cltclgcis de Cwxalh o A Es(ota e a República 63
62

significava não somente prescrever normas de organiza.


ção das atividades escolares, mas também postular um n-
gramento do aluno, evitando que seu interesse no proces-
so de apnndizagem se transformasseem/ml;tzã), princí-
pio "intempestivo" de "escolhas caprichosas"(ib/dem).
Incorpomndo expectativas de mcionalização do üabalho
indusüial, a valorização da educação, quando vinculaKlaà
cnnça nas virtudes dos novos métodos pedagógicos, visa-
va a que a escola organizasse a atividade do aluno em
moldes fabris: "No momento em que o mundo proclama
métodos de organização do trabalho como fator essencial
da prosperidade económica", escrevia o mesmo Barbosa
de Oliveira, a eúbzcz%:lã)
/?zo(ür7mse instituía dando a esse
üabalho, "desde os primeiros passos do aluno, uma dirá.
triz segura para a 'mcionalização' unanimemente prescrita
em todos os ramos da atividade humana."(Á 'Exmo/a
Regiortat)
O tema da organização do trabalho estava também
associado a proUetosde reesmlturação do sistema escolar
que melhor assegurassem a homogeneização e disci-
plinamento das populações. Ganha aqui relevo o tema
da formação das elites diretoras. Embora o discurso dos
entusiastas da educação fosse eivado de referências às
populaçõespobres, que cumpria regenerarpela edu-
cação, o debate promovido pela ABE voltou.lse priori-
tariamente para questões relativas ao ensino secundário
e superior. Se este deveria ser a. zzii/zaonde seriam pro-
L- duzidos magra/7zas (ü vi(dcz para o país, como queria
Vicente Licínio Cardoso, aquele deveria fonnar "did.
gentes de menor visão e de maiores massas". como
propunha Alba Caõizares Nascimento, em resposta ao
Muita Mana Chagas dc Cal \'cll h o A Escola c « República
64 65

máxima "0 homem certo no lugar certo" signinlcavanão


a adequação do tmbalhador a uma determinada ocupação
industrial, mas expectativas quanto a uma distribuição
' racional'' da população pelas atividades rurais e urbanas.
Assim pensada, a questão traduzia-se na valonzaçao da
chamada Escola Regional. Nesta acepção, o tema tinha
conotações românticas de idealização utópica da vida
canlpestn. Imagens da honradez, da simplicidade,da
saúde ülguravam vimides rurais, por oposição idílica a
apresentações da cidade como vício, conupção e insalu-
bridade. A esco]a ruma era uma espécie de antídoto larga-
mente aceitado confia o "congestionamento das cidades"
e "o pauperismo urbano com seus perniciosos efeitos."
(Á Edmação Aura/) Abrir-se ao influxo da vida campestn
era o que se propunha como recurso disciplinar da escola
rural. Quanto à escola adaptada ao meio urbano, era co-
mum a expectativa de que viesse "combater, ou pelo
menos atenuar em seus efeitos morais, essa vida tumul.
tuosa, corrosiva, ávida de prazeres", com os recursos
oferecidos pela modema pedagogia.(Á Exmo/a .4/iva
nos Centros Urbanos]
A regionalização como instrumento de alteração
do que Femando Magalhães entendia por "distribuição
humana desordenada" não poderia, entmtanto, compro-
meter a função homogeneizadora da escola. No progm-
ma nacionalista a ela reservado, era necessário conciliar
as vantagensda regionalizaçãocom o que se propunha

g
como função essencial da escola primária: "a homo-
geneização necessáriados indivíduos como membros de
uma comunhão nacional", na formulação de Lourenço
Filho. A escola de civismo deveria garantir a unidade
Ma} ta Ma} ia Chagas de Cat valho A Escola e a Repúbli(a 67
66

modulou-se principalmente como resistência mordi.


zadora ao mal urbano. Pregações, festas pedagógicas:
comemorações cívicas, controle do lazer por procedi-
mentos vários, constituição de Círculos de Pais destina-
dos a ampliar o raio de influência da escola, medidas de
proteção à Infância --- tais iniciativas tinham como de-
nominador comum o empenho na moralização dos cos-
tumes citadinos. A elas somente se contrapunham as
promovidaspela Seção do Ensino Superiordo
Departamento carioca da ABE -- seção em que se
aglutinava o grupo de Labouriau -- em que a tónica era
a promoção de cursos e conferências de a/la czz/Mra,nu-
ma tentativa de demonstração prática da viabilidade do
ensino universitário no país. Mas a presença de expres-
sivo número de militantescatólicos na Associação deu
à entidade o caráter de resistência moral referido. É por
isso Interessante reter a especiülcidade do caráter que esse
grupo dava à sua atuação.
Em julho de 1929, Ferrando Magalhães, líder do
grupo católico sediado na ABE carioca, submeteao
Conselho Diretor da Associação um/)rl#ero de arfa/zl-
zação iocia/ cometido por D. Amélia de Rezende'Mar-
fins, a ser desenvolvido como Ação Social Brasileira. A
autora já Hlzera sentir sua presença no círculo da ABE
propondo, em 1927, na Primeira Conferência Nacional
de Educação, que o ensino religioso fundado na doutrina
católica integrasse o programa das escolas oficiais.
Mais tarde, em 1931, D. Amélia também seria a res-
ponsável pela área social da Liga de Defesa Nacional, a
convite do mesmo Femando Magalhães, então presi-
guiar o c:Eidiano das populaaoesurbanas. de Janeiro dente do órgão. D. Amélia, contudo,.não integrava os
Mai ta Mai ia Chagas de Cawalh o A Esc'ola e u República 69
68

órgãos diretores da Associação, nem se destacava como


sócia atuante. .
Submetido à apreciação do Conselho, o prometofoi
agraciadocom um voto de apoio à idéia "generosae
útil". A maior parte do Conselho subscreveu, em agosto
de 1929. os estatutos da Ação Social Brasileira, sociedade
civil por eles instituídacom sede no Rio de Janeiro,
"tendo por objetivo coordenar e desenvolvertoda a Ação
Social no Brasil, aproveitando, auxiliando, ampliando e
completando as iniciativas já exisnntes: especialmente
em benefício da educação e da assistência''
Mesmo que se tenhaem conta uma provável con-
descendência
do Conselhoàs boas intenções
de D.
Amélia, o projetoreferido interessaaqui por hiperbolizar
o tipo de redução de cunho moralista operada na identifi-
cação do que é nomeado qzzesióosacia/ e na constimiçao
concomitante de um campo de ação educacional, per-
mitindo elucidar o significado das práticas da ABE na
cidade do Rio de Janeiro.
Montado como enumeração e exemplos de ação
benemérita, o documento pretendia estar apresentando
uma solução global para 'a chamada questão social.
Curiosamente, entretanto, justapunha sugestões de di-
vertimentos "sociais" e "populares", com os quais D. 'As festas de caridade caíram em desuso, ninguém mais
Amélia, apaziguando sua aflição de observadorapreocu' se interessa por essas miscelâneas, que dão um trabalho
pada, esperava solucionar o ócio inoperante do operário insano para serem organizadas e estão irremediavel-
e a dissolução dos costumes da alta sociedade. Desta mente sujeitas à mais severa crítica. Os chás já estão
maneira, a leitura do prometoproduz um efeito de incon- cansando, muita gente deles se esquiva, e muita gente
gruência, na medida em que não obedece a um pnncil:lo :j::Tã' p'd" !b" "t.. t«ti. A fes;:l''='Hor ja
hieíáiquico de onlenação e adequação .discursivas: D. está muito explorada, apnsentando grandes desvanta-
Amélia dispõe seu texto quase que por livre associação, gens, e vai caindo, pela sua repetição, na antipatia do
Malta Mana Chagas de Caixa tho .4 Esc'olu e a Repúl)lic'ü 71
70

na A.B.E. como nas escolas, como nas demais obras


sociais de caráter particular, como em instituições de
caridade-. A A.B.E. que núne a nata da nossa intelectu.
alidade, está no seu papel, levantando planos soberbos.
quejá se vão realizandoaos poucos.(-) Más o que pre-
ga a Associação Bmsilêim de Educação tem que ser reali-

7. Smial Brasileim..' a. É o que pRtende fazer a Ação

Atribuindo à ABE nmalidadesimilar à do seu pro-


Jeto -- que pretendia propor meios mais eficientes que
chás, quermesses, tômbolas, rifas, festas da Hor e ativi.
dades congêneres na prestação de serviços de benemerên-
cia -- D. Amélia evidenciava o caráter de obra assisten-
cial que, segundo ela, algumas de suas integrantes em-
prestavam à Associação. Suas palavras consumam im-

Hmigõnii:iS8z
de um grupo significativode mulheresna entidade se
fez como ação assistencial.
. Prosseguindo sua exposição ao Conselho. D.
Amélia encarregava-se de interpretar algumas das inicia-
tivas da Associação, .apresentando uma leitura possível
de uma dessas iniciativas: seu êompr
chamada qz4esíóosacia/. )misto com a

H' A A.B.E., por exemplo, guiará a educação social do


operariado, pelo seu Círculo de Pais: a Ação Social
Brasileira proporcionará um teto aos infelizes que ve-
getam nas favelas, em casas de caixas de querosene,
/J
A Escola e a República
Malta. Malta (' }tagas de Calva Iho,
72
A Escola e a República
Malta Muita Chagas de Car\' alho
7+

sociais,'educacionais e de assistência

ciedade", no espaço da cidade.

à beneficência sem despe 9


76 Malta Mai ia Ctmgas de Cal' alho 77
A Escola e a República

se da escola e da polícia. Operando por justa oposição Gustave Le Bon, entendia-se a educação como mecanis-
de referências e por sua livre associação, o discurso de
D. Ainélia produz um efeito de expansão do significado l mo de fazer passar atoudo domínio do conscientepara o
do inconsciente.
dessas imagens para a cidade como um todo. Prisioneiro
do imaginário naturalista, o discurso opera uma inter- O valor educativo das festas era, por exemplo, en-
pretação em que toda a sociedade é contaminada pela su- fatizado por Lourenço Filho que, na qualidade de Diretor
jeira, pela doençae pelo vício. Nela, a imoralidadeda da Instrução Pública do Ceará, determinava em instru-
alta sociedade aparece como sintoma da contaminação da ção aos professores:
sujeira e da doença operária. A imoralidade dos cos-
tumes citadinos passa a ser, desta maneira, o ponto de 'As simples comemorações, as festas só valem pelo
incidência principal do "projeto de organização social" caráter educativo de que se revistam, isto é, pela in-
de Amélia de Rezende Mastins. Proporcionar bons "di- fluência que possam ter sobre a alma infantil, antesde
vertimentos populares" fornecendo "exemplos de traba- tudo, e pela influência que possam ter sobre o meio so-
lho, de educação e de moral" e organizar "divertimentos cial em que funcionar a escola
sociais" para os filhos da "alta sociedade" eram, neste
sentido, medidas que se equivaliam na tentativa de "evi- Educando "pela apresentação ou evocação de fatos
tar que rios de dinheiro corram para dominar levantes e dignos de ser imitados", as festas fomeciam às crianças
rios de sangue brasileiro encharquem nosso solo 'oportunidadepam gravar, indelevelmente,muitas lições
Nas iniciativas que marcarama presençada ABE proveitosas". Nelas, a criança começaria a "sentir o efeito
na cidade do Rio de Janeiro na década de 20, evidencia-se da ia/zção socüz/ sobre seus ates, pelos aplausos ou sinais
propósito similar ao de D. Amélia: o de tomar mais de enfado e de crítica que percebe: sente que há um públi-
abrangentee eficiente a ação escolar no disciplinamento co, um conjunto de pessoas que louvam ou reprovam
do cotidiano citadino. Tais iniciativas, de que são exem- Em muitos casos, as festas poderiam "ter também uma
plares as Semanas de Educação dos anos 20, consisti- influência direta sobre o espírito dos pais". Quando isto
ram em práticas comemorativas diversas que foram não ocorresse, as festas teriam pelo menos influência indi-
montadas como celebração de condutas ideais na escola, reta sobra eles, "elevando a escola e o papel do professor'
no lar, no trabalho, postulando a necessidade da Higie- Como/íções vlvicüzs,pelas quais o aluno teria o
ne, da Aplicação, do Devotamento, da Ordem. maior i/z/pressa, as comemorações festivas, como as
A eficiência pedagógica das comemorações festi- Semanas de Educação, eram incoípomdas na prática do cú'-
vas escolaresera, no círculo educacional,a razão de Guio da ABE ao npertório de medidas inovadoras com que
existênciade tais práticas,uma vez que, na esteirade se pretendia assegurar maior eâciênCia ao üabalho escolar.
A Escola e a República 7 i)
Malta Mal'ia Chagas de Cmx'allt o
78
signos de progresso inscritos no corpo que conhece o
movimento adequado e úül para cada ato. Pnceitos de
higiene eram divulgados em palestras e folhetos ou cons-
tituídos, ainda, pelo incentivo à organização de Pelotões
de Saúde, em preceitos cívicos de bom comportamento.
O escotismo -- fusão exemplar de vida saudável e mora-
lizada -- era iniciativa que contava com todo o apoio da
ABE
Dar publicidade a modelos de comportamento esta-
belecendo-se padrões que incidiam sobre a vida familiar,
as relações de trabalho e o lazer no cotidiano urbano foi
o denominador comum das práticas comemorativas da
ABE carioca. Nelas, como um museu, os objetos ex-
postos são ações modelares. Seu campo de recorte, a
pluralidade dos comportamentoshumanos. À coleção
exposta, um conjunto restrito de comportamentos tipi-
ficados. O efeito geral dessas práticas é, assim, a ex-
posição de ações exemplares de uma norma da excelên-
cia
A exposição de ações exemplares dá-se como pro-
gramação de festividades, como roteiros de visitações a
objetos oferecidos em espetáculo. A ação pode ser dire-
tamente exposta -- é o caso, por exemplo, da mon-
tagem de espetáculosde ginástica, de que participam
crianças de diversas escolas -- ou indiretamenteexpos-
ta, quando se tematiza, em discursos dados em espetácu-
lo, o que é agir bem na escola, no trabalhoou no lar.
As ações expostas à visitação nas programações festivas
promovidas pela Associação são construídas como obje-
tos exemplares pela abstração de todo elemento particu-
larizante que as possa relativizar enquanto comporta-
8í) Mutta Mai ia Chagas cleCctt\'alllo

mento simplesmente possível e/ou desejável em deter-


minada situação e/ou sob certas condições; Sua referên-
cia ao vivido dá-se como operaçãode conümamentodo
cotidiano em espaços idealizados: o Lar, a Escola, o
Trabalho, objetivados e expostos também, no caso, co-
mo sínteses ideais das ações que hamtonicamente os
constituem. A operação é hábil: o espectador eventual-
mente cativo dos modelos oferecidos é instado ao locali-
zar-se num desses espaços, neles encontrando a cena in-
dispensável para o sentido de suas ações Constituídos INDICAÇOES PARA LEITURA
como lugares de inclusão do indivíduo, o Lar, a Escola
e o Trabalho o são, também, pela mesma operação, co-
mo instâncias excludentemente formadoras do social.
Produz-se uma representaçãodo social como idealidade
reguladora: lugams sociais têm sua configuração deli- No trabalhode Femando de Azevedo, ,4 Czz/rzzra
neada idealmente, de modo que neles possam ser situa-
Brusl/efta, citado na bibliografia, podem-se obter muitas
dos os indivíduos particulares, como adequação .a um
informações sobre a história educacional republicana.
tipo, e de modo que outros lugares -- como a rua ou o Seu relato sobre o movimento educacional nos anos 20
botequim, por exemplo sejam expurgadosde mpn-
é especialmenteinteressantena medida em que também
sentação que simultaneamente os inclui.
é o depoimento de um protagonista dos episódios relata-
dos
No livro de Casemiro dos Reis Filho. ,4 Edz/-
cação e a //zzsãoZ,IZ)era/,São Paulo, Cortez, 1981, que
trata da educação pública no Estado de São Paulo no
período 1890-1896,a ação refomladora de Caetano de
Campos é amplamente examinada.
Os textos de Caetano de Campos referidos neste
trabalho podem ser encontrados em ZI/m.Rerrospec/o, de
João Lourenço Rodrigues, citado na bibliograHla.Sobre
as iniciativas dos republicanos,os trabalhosde Carmcn

k
Malta Malta CItaS«s clecata'alho

+b

1986.Sob.e a Reforma Sampaio Daria:.o trabalho.de


Sobre
adio Antunha, também citado na bibliografia LIVROS E AlqTIGOS CITADOS
o movimento educacional nos anos 20, há o trabalho de

Ma tesede doutoramento o/ e Na'iomZ ê Forma


Cívica(Higiene Moral e Trabalhono Prometo
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Biblioteca da Associação Brasileira de Edu-
cação/Impressa Nacional, 1931. blema Vital", in

& Cia., 1928. l


Sobre a Autora

'';É8ã=:ãüaH:iX
Rosa, 1930. . . . :
Malta Malta Chagas de Carvalho bachamlou-se em
Pedagogia pela antiga. Faculdade de Filosofia, Ciências e
Hei Letms da Universidadede São Pauio. Obteveo título de
"mestn" na Faculdadede Educaçãoda USP com trabalho
sobre Vicente Licínio Cardoso. Doutorou-se na mesma es-
cola com tese intitulada J14o&Ze
Macio/m/ e ror17m Cúica.'
n-v uv ', são Educacional", in Armanda Al-
Higiene, Moral e Trabalttono Prometoda Associação Bra-
vam Alberto ef a111..4 Esmo/a Regia/za/ de Jllerzfz, sfZelnu(& Eár(«(h(1924-1931). É autom de üabalhos co-

:l;SH%1%:f.:w:
mo "Notas pam Reava]iação do Movimento Educacional
Brasileiro(1920-1930)", em Ckzc&/7ms (ü Pesqz/isada Fun-
dação Cartas Chagas; "Pela Escola Pública, Leiga e Gra-
tuita",na l?wlsza(&z[/mversictaü(ü S:2oFalho; "0 Nacio-
"«:=n=;::=n=%5Hm:.:
rotor Geral da Insüução Pública", in Á/zwárlo do
nal e o Regional .nos Debates Promovidos pela ABE nos
Anos 20", a sair em cademo especialda ANPED. Leciona
}listóíía da Educação Bmsileim na Faculdade de Educação
Ensl/zo do Estado de São raiz/o, São Paulo, da USR
Augusto Siqueira & Cia, 1918.

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