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ISSN 1984-4263

CCJE

MAIO DE 2022 Nº9

REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DO CCJE/UFRJ

ILUSTRAÇÃO: BERNARDO MARQUES

2 ANOS DE PANDEMIA
VERSUS Acadêmica: Fania Fridman e Carlos Henrique Ferreira (IPPUR), Paula Mello e Leila Dahia (FCC/SIBi), Isabela Carlim (FND), Marga-
rida Gutierrez e Antonio Licha (COPPEAD), João Felippe Cury (IE), Sandra Becker (IRID), Mª Cecília Chaves (FACC), Júlia Figueredo (GPDES)
#VERSUS imagem

MARIANA MOYSÉS

Mariana Moysés, Vitografia, 2021


42 x 47 cm.
Em março de 2020, quando o mun- sanitária em um século. Mas não foi só
do inteiro mergulhou na pandemia de isso, o que já seria o bastante. Todas as
COVID-19, evento mais dramático para áreas de conhecimento se adaptaram
a Humanidade desde a Segunda Guer- com impressionante rapidez ao ensino
ra Mundial, não foram poucos os que remoto, a complexa gestão universitá-
acreditaram que para as universida- ria ganhou novas regras e também se
des públicas brasileiras a noite que se adaptou, a produção científica e a ex-
aproximava seria ainda mais escura. tensão percorreram o mesmo caminho
Em meio a problemas estruturais gra- e ganharam novos impulsos. Claro que
ves por conta dos cortes de recursos não faltaram dificuldades e dúvidas du-
que há anos estrangula essas institui- rante todo esse caminho, mas as univer-
ções, como poderiam sobreviver dian- sidades públicas continuaram produzin-
te de uma crise dessa envergadura? do, formando profissionais e cidadãos,
Como conseguiriam dar assistência a e mostrando para toda a sociedade que
seus alunos e manter em algum nível o são e continuarão sendo os faróis da
ensino e a produção científica? Como Ciência no Brasil.
fariam para manter suas instalações Dois anos depois, em meio ao início
e seus insumos? Tantas foram as per- do retorno presencial de todas as ati-
guntas inicialmente sem respostas, que vidades, ao reencontro real com cole-
muitos chegaram a pensar que a era do gas e alunos que só víamos nos qua-
ensino público universitário de qualida- dradinhos dos aplicativos de reuniões e
de no Brasil chegara a seus estertores, de aulas, ao vermos as salas de aulas
e que tudo seria diferente em um futuro novamente lotadas, os laboratórios em
não muito distante. pleno funcionamento, os cafés abertos,
Erraram. A capacidade e a velocidade mesmo sabendo que a pandemia ainda
de reação da comunidade universitária não acabou, apesar de termos supera-
em todo o Brasil, e em particular na do seus momentos mais difíceis, pode-
UFRJ, certamente farão parte no futu- mos afirmar — não mais com as dúvi-
ro de estudos sobre gestão de crise e das daquele março de aflição, que as
sobre capacidade de resistência. Em universidades públicas brasileiras vive-
pouco tempo, as áreas ligadas à Saúde ram, sim, essa longa noite, e perderam
nas universidades públicas não apenas muitos para essa doença terrível, mas
se ergueram, como se tornaram as gran- resistiram, se fortaleceram, e na linha
des condutoras dos rumos que o país do horizonte já é azul da manhã.
deveria tomar em meio à maior crise
Leonardo Valente
Diretor do IRID
CCJE NOTA DO EDITOR
Denise Pires de Carvalho
Reitora
Carlos Frederico Leão Rocha Antonio Licha
Vice-Reitor Editor
Flávio Alves Martins
Decano

H
Antonio Licha
Vice-decano
á dois anos a Organização sistema de saúde do Rio de Janei-
Alessandra Monteiro Mundial da Saúde decla- ro. Prestamos uma homenagem
Superintendente do CCJE
Thais de Souza Andrade
rava o início da pandemia da Co- a Josué de Castro, dada a impor-
Chefe de Gabinete vid-19, mas a maioria dos países tância da fome nas pandemias.
Coordenadores do CCJE
Esther Dweck e Ítalo Pedrosa (Coordenação Acadêmi-
ca em Pós-Graduação);
ainda está aprendendo a conviver Outro homenageado é Zé Ketti,
Junya Rodrigues Barletta (Coordenação Acadêmica em
Graduação); com o vírus. Como toda grande destacando as vozes e lideranças
Sandra Maria Becker Tavares (Coordenação Acadêmi-
ca em Extensão e Pesquisa); crise, a pandemia é também uma do samba. Apresentamos tam-
Vinicius Simas Pereira Fernandes (Coordenação de
Comunicação e Tecnologia da Informação);
Waldelice Maria Silva de Souza (Coordenação de
oportunidade de aprendizagem. bém as ações desenvolvidas sobre
Atividades Culturais);
Zenildo Ferreira de Oliveira (Coordenação Acadêmica Tivemos que viver num mun- Covid-19 por grupos de trabalho
em Planejamento e Projetos de Pesquisa).
do diferente e estranho tentando que atuam no CCJE. Na Versus
COORDENAÇÃO DE ATIVIDADES CULTURAIS
Revista Versus refletir sobre os desafios que se Acadêmica o tema central dos ar-
Conselho Editorial
Eduardo Bastian (IE); Eliane Ribeiro Pereira (FACC);
Margarida Gutierrez (COPPEAD); Mauro Osório (FND);
apresentavam. tigos são as diferentes realidades
Josiane Alcântara (Biblioteca Eugênio Gudin); João
Pedro Nogueira Abdo (Discente - FND); Leonardo Neste número da Revista Versus sob a pandemia. Por último, des-
Valente (IRID); Maria Luiza Busse (ABI – Associação
Brasileira de Imprensa/Comunidade externa); Renata
Bastos (IPPUR).
fazemos, a partir de fatos e dados, tacamos uma seção especial com
Editor um pequeno balanço desses de- um conto de quarentena.
Antonio Licha
Editor Executivo safios e das suas consequências. Manifestamos nossa solidarie-
Renata Bastos da Silva
Jornalista Apresentamos temas e vozes dade às vítimas da Covid-19 no
Elisa Monteiro
Diagramação e arte
diferentes, mas nosso fio condu- Brasil e no mundo e aos profissio-
Beatriz Braga
Projeto Gráfico
tor é mostrar as várias facetas de nais da saúde que lutam na linha
Beatriz Braga, Elisa Monteiro e Júlia Barreto nossa realidade durante a pande- de frente. Todos teremos histórias
Pesquisa
Antonio Licha, Beatriz Braga, Elisa Monteiro,
Gabrielle Dias, Josiane Alcantara, Júlia Barreto, mia. Tratamos de aspectos gerais para contar como testemunhas
Letícia Maia, Mariana Oliveira e Renata Bastos da
Silva. da educação e de alguns temas dos eventos vividos. Convidamos
Revisão
Jorgelina Rivera (Agência Rivera de Consultoria em específicos, como a gestão esco- vocês a lerem os artigos, que cons-
Comunicação).
Bolsistas: lar e as crianças refugiadas. Em tituem um registro histórico deste
Beatriz Braga (PIBIAC - PR1); Gabrielle Dias
(Desenvolvimento acadêmico – CCJE), Letícia Maia saúde analisamos os legados para período, e a refletirem sobre os
(Desenvolvimento acadêmico – CCJE).
Extensionistas: a saúde brasileira e a atuação do desafios vividos.
Júlia Barreto (Produção Editorial), Mariana Oliveira
(Produção Editorial), Bernardo Ribeiro Marques (Artes
Visuais - Gravura) e João Felipe Rocha (Ciência da
Computação)
Colaboradores da Edição
Adolfo Lachtermacher, Adriana Marques, Adriana
Norbert Gomes de Araújo, Alípio Carmo, Ana Luisa
Conheça a Versus:
Cople, Anna Maria de Castro, Antonio Bokel, Antonio
Licha, António Nóvoa, Carlos Henrique Ferreira Jr., versus.ccje.ufrj.br
Dalia Maimon, Diogo Costa, Élida Graziane, Elizabeth
Accioly, Fania Fridman, Flávia Guerra, Geisa Ketti,
Isabela Coimbra, João Felippe Cury, João Sánchez,
Julia Figueredo, Juliana Cristina da Silva Ignácio, Leila
Dahia, Ligia Bahia, Lívia Macieira, Luiane Amorim,
Marcelo Macedo, Margarida Gutierrez, Maria Lidia
Valdivia, Maria Luiza Busse, Maria Cecília Machado,
Mariana Barbosa, Mariana Moysés, Mateu Velasco,
Mauro Osorio, Míriam Maia, Mychelle Araújo, Onésio
Meirelles, Otto Drumond, Pablo Spinelli, Paula Mello,
Pedro Sánchez, Ricardo José de Azevedo Marinho,
Tereza Campello, Vinicius Wu.
Fotos
Fernando Souza / ADUFRJ, Marcelo Camargo /EBC,
Silvana Sá / ADUFRJ, Tânia Rêgo / Agência Brasil.
Apoio Institucional
ADUFRJ
Coordenação de Comunicação e Tecnologia da
Informação (CCJE/UFRJ).
Ação de Extensão Vida Pública - Os temas republica-
nos nos espaços escolares e de ensino. Estúdio Baren.
Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ
Agradecimentos
Níneve Belangieri (Gabinete da Secretaria Municipal de
Niterói), Instituto de Nutrição Josué de Castro (UFRJ);
Geisa Keti, Onésio Meireles.
Revista VERSUS
Publicação semestral do Centro de Ciências Jurídicas e
Edição anterior
Econômicas (CCJE)
Av. Pasteur, 250 – fundos - Campus da Praia Vermelha
22290-240 - Urca, Rio de Janeiro/RJ
SUMÁRIO EDIÇÃO Nº 9

A Educação é uma viagem 6


para outros mundos
Redação Fania Fridman
Carlos Henrique Ferreira
Paula Mello
Financiamento da Educação 13 Leila Dahia
durante a pandemia Isabela Carlim
Élida Graziane Pinnto Margarida Gutierrez
Antonio Licha
O desafio de integrar a criança 15 João Felippe Cury
refugiada na Escola Pública Sandra Becker
Pág. X
Flávia Guerra, Maria Lídia Mattos e Mariana Perillo Danielle Silva
Maria Cecília Chaves
Júlia Figueredo
O bom professor: 18
Versus entrevista Vinícius Wu
Redação

O legado depois da onda 22


do Ômicron
93 100 anos de Zé Keti:
Lígia Bahia
A voz do povo
Crise estrutural e Pandemia 29 Josiane Alcântara
Mauro Osório
101 CCJE e o GT COVID
Gabrielle Dias
Josué de Castro: O legado do 31
cidadão do mundo contra fome
Letícia Maia
106 Tempos Interessantes
#VERSUSimagem Maria Luiza Busse

39

114 Como contar nossa história e


trauma comum no contexto
da COVID-19
Renata Bastos da Silva
FOTO: DIVULGAÇÃO / ARTE: BEATRIZ BRAGA
Entrevista
Antonio Nóvoa

A EDUCAÇÃO É
UMA VIAGEM PARA
OUTROS MUNDOS
REDAÇÃO

Um dos maiores especialistas inter- escola e o aprofundamento da sua cri-


nacionais em Educação, António Nó- se ocasionada pela pandemia. Sua obra
voa também se notabilizou em Política confere maior historicidade à educação
Educacional, História da Educação e em e introduz a comparação nos estudos
Educação Comparada e no território que históricos educacionais. Ele preocupa-
chamamos História da Formação Do- -se em desenvolver trabalhos de pes-
cente. É autor de referência nos estudos quisa e políticas públicas voltadas para
a respeito das políticas educacionais, a conexão entre as diversas dimensões
especialmente a última desenvolvida espaciais da educação e o seu nexo pla-
coletivamente pela Organização das Na- netário. A inventividade de seu trabalho
ções Unidas para a Educação, a Ciência tem sido reconhecida pelo impacto de
e a Cultura da Comissão de Educação sua obra em termos internacionais. Nes-
(UNESCO, 2021). É um dos maiores co- ta instigante entrevista Nóvoa faz uma
nhecedores do repertório da educação, avaliação do percurso da educação ime-
tendo reconhecimento internacional diatamente antes do início da pandemia
e hoje é, nesse sentido, uma voz funda- até o momento e oferece-nos um convi-
mental no debate educacional contem- te a caminharmos juntos pela educação
porâneo, abordando aspectos acerca da num traçado compartilhado com vistas
organização histórica e da atualidade da ao futuro.

7 VERSUS, MAIO DE 2022


VERSUS: A Revista tem como tema o segun- por aprendizagens ubíquas, isto é que se fazem em
do ano pandêmico, já sendo lançada no terceiro todos os lugares, em todos os tempos, etc. E a ou-
ano pandêmico; então, a educação mundial, não só tros, como nós, como eu advogo, como advoga esse
no Brasil, já antes do contexto pandêmico revelava a terceiro relatório, que procuram valorizar a ideia do
sua insuficiência, portanto, poderá a educação con- comum e a ideia de que a escola tem que ser o espa-
tribuir para a luta final contra o covid-19? ço de renovação do comum. E o comum é aquilo
que nos junta em nossa diversidade, e passa por
PROFESSOR ANTÔNIO NÓVOA: A isso por uma valorização do encontro humano, das
educação vai ter que mudar muito. Nós estamos a interdependências, da noção de que a educação
viver a maior experimentação caótica, desorgani- não é apenas um banho individual, mas é também
zada na história da educação. Nunca houve tantas comum pela ideia de que aprendemos uns com os
mudanças na educação como nos últimos três anos, outros e não apenas sozinhos. A questão do tem-
mas foram mudanças caóticas, totalmente desestru- po, da resposta econômica nesta previsível saída da
turadas. Mas, obviamente, que a pandemia tornou pandemia vai implicar muito, também, que a escola
mais evidentes determinadas mudanças na área da pense a sua evolução como a do trabalho, a impor-
tância das nuances demográficas, a sua relação com
escola. Nós vamos precisar de uma nova realidade.
as alterações climáticas, isto é que é um conjunto,
Nós acabamos de publicar um relatório na Unesco,
hoje, de mudanças em curso das nossas sociedades
que é o terceiro sobre os futuros da educação, em
que vão ter profundos impactos, do ponto de vista
que podemos ver que é preciso um novo contrato
econômico, na hora da organização da economia e
social da educação, uma nova concessão da relação
da sociedade para as quais a escola tem que dar uma
da escola e da sociedade e uma nova maneira de or-
resposta e encontrar uma resposta. Não é possível
ganizar o trabalho escolar.
ao pensar na escola sem essa relação com o mundo
do trabalho, com as questões digitais, demográficas,
VERSUS: Então essa visão que acaba recor-
planeta e alterações climáticas e, obviamente, eco-
dando e recuperando Rousseau, que vocês estão
nômicas e a evolução da economia no pós pande-
propondo é perfeitamente compreensível. E se,
mia.
hipotético, a economia não concordar com essa
movimentação e ela querer, no caso do campo dela, VERSUS: Ao menos nas escolas com menos
estabelecer uma relação diferenciada em querer di- recursos, os professores já revelavam as dificuldades
tar o caminho que vocês estão colocando, então está que os alunos tiveram para acompanhar as aulas re-
em um contexto de conflito. motas. Então, nós temos uma geração perdida, ou
melhor, que se afasta da escola sem volta?
NÓVOA: Tem muitos que falam da morte
da escola, do acabar com os professores, de subs- NÓVOA: Eu julgo que há uma geração, que
tituí-los por dispositivos digitais, de substituí-los viveu os tempos da pandemia, que é uma geração

VERSUS, MAIO DE 2022 8


Entrevista
Antonio Nóvoa
perdida. Nós, na Unesco, calculamos que algumas Essa dimensão da relação é absolutamente cen-
dezenas de milhões de crianças e de jovens não vão tral para educar uma criança ou um jovem. Nada
ingressar mais à escola em determinadas zonas do impede que essa relação seja enriquecida pelas di-
planeta. Antes da pandemia, havia 250 milhões mensões digitais, mas uma coisa é dizer que a rela-
de crianças e de jovens que ainda não iam à esco- ção é enriquecida através dos dispositivos digitais,
la, logo esse número vai aumentar, porque a pan- outra coisa é dizer que ela é substituída pelos dispo-
demia trouxe mais desigualdades e dificuldades sitivos digitais.
em acessar a escola. Mas, eu não falaria de geração
perdida em termos globais, vejo que esse é um pro- VERSUS: Então é a sua posição, nós enten-
blema que vai afetar algumas dezenas de milhões de demos isso, mas em termos globais a lógica com
crianças, mas que não afetará a esmagadora maio- relação a toda dinâmica produtiva é cada vez mais
ria das crianças no mundo. poupadora de mão de obra,
E creio que a esmagadora o que, consequentemen-
maioria das crianças, no
"AGORA, É A te, não têm a locação para
mundo, está desejosa de vol- ESCOLA QUE aqueles que passam pelo
tar à escola, está desejosa de sistema educacional no vo-
reencontrar a escola. SENTE UMA lume que nós temos, quero
Agora, é a escola, que dizer, o número. Por isso
sente hoje mais do que NECESSIDADE quando você falou aqui uma
nunca, uma necessidade de coisa muito importante, e
se transformar, aquilo que DE SE duríssima, que é a perda
eu tenho vindo a designar de uma quantidade gigan-
como a metamorfose da
TRANSFORMAR" te de milhões de crianças,
escola. A escola do novo algo impactante. Então, não
contrato social, vai ser a escola dos vários. Tem essa sabemos como isso está acontecendo dentro da
ideia de que a escola vai ter que ter essa transfor- Unesco no grupo de vocês. Gostaríamos de saber,
mação se quiser atender o que é necessidade dessa se puder, claro.
metamorfose, dessa mudança de forma. Isso vai
implicar também o digital? Sim, a nova geração é NÓVOA: Então, duas coisas que são impor-
uma geração digital, uma geração para que esses tantes. É claro que quando falo desse relatório, pen-
instrumentos são normais, mas não a ideia de que sar nossos futuros juntos, até a ideia do together, que
tudo vai passar para o digital, não a ideia de que os é a ideia forte do relatório, depois teve-se o título “O
professores serão substituídos pelo digital. O profes- novo contrato social da educação”. Há certamente
sor é insubstituível, não há relação educativa que muitas expectativas e tragédias diferentes, o relató-
não tenha essa dimensão humana. rio foi apresentado e aprovado pelos 193 países da

9 VERSUS, MAIO DE 2022


Unesco. Portanto, é evidente que não é possível um mos fazer deste relatório sobretudo um convite para
acordo entre todos eles. Mas é muito curioso que conversar com as pessoas. Então, este relatório tem
nós, sempre que pusemos a palavra “comum”, que como função não dizer o que se deve fazer, mas sim
é a palavra que organiza grande parte do relatório, sistematizar um conjunto de ideias — que resultou
colocamos sempre ao lado da palavra “público”. de toda uma consulta que participaram cerca de
E, portanto, elas vêm sempre juntas, o comum 1 milhão de pessoas no mundo — e agora dizer o
para nós é o alargamento, ou o aprofundamento, que, a partir daqui, dessa conversa inicial, podemos
do público, e não a sua tomada pelas lógicas do pri- fazer a seguir. E como podemos partilhar experiên-
vado ou pelas lógicas do mercado. E é por isso que cias em uma conversa mais estruturada uns com
ao longo do relatório, nós usamos várias expressões, os outros. Agora o que conta são as plataformas, o
mas sempre a educação como um projeto público trabalho conjunto, a partilha, que a Unesco vai faci-
e um bem comum. Uma citação da Maxine Gre- litar ou vai tentar encontrar os mecanismos de pla-
ene (1917 – 2014), uma filósofa norte-americana, taformas, de encontros, de debates, de congressos,
uma das primeiras gerações feministas dos Estados de iniciativas locais etc. Para, de algum modo, dar
Unidos da América da década de 70. E ela diz essa visibilidade, essa continuidade. É por isso que o re-
frase: “não consigo imaginar nenhum propósito co- latório termina justamente com as palavras “convite
erente para a educação senão acontecer alguma coi- para continuar”. Vamos ver como é que as pessoas
sa comum num espaço público”. Ela junta as duas agarram ou não agarram esse convite.
ideias, a ideia do comum e do público, e essa foi a
maneira como nós construímos uma parte desse VERSUS: Como um dos recursos que foi usa-
relatório, porque, obviamente, nós tivemos muitas do pela Secretaria de Educação do Estado do Rio de
vezes o comum é tomado por interesses do merca- Janeiro foi oferecer exercícios domiciliares para seus
do, por interesses privados. alunos, durante esse período da pandemia, será que
Então se eu, de alguma forma, me apropriar de isso reforçou a ideia de ensino domiciliar, por isso a
uma parte mais significativa desse bem comum, baixa procura às escolas mesmo depois de abertas?
esse bem fica mais escasso para os outros. Na área
da educação e do conhecimento esse problema NÓVOA: É claro que a educação domiciliar
não se coloca, porque não é por eu me apropriar foi forçada pela pandemia, não havia alternativa. O
do conhecimento, que ele fica menos disponível problema é se ela foi forçada provisoriamente ou se
para vocês. Então, este problema, do ponto de vista foi algo que veio para ficar. E isto entra no debate
do conhecimento, não se põe necessariamente da que eu nos trouxe a pouco, que acho que há duas
mesma maneira que se põem nos debates jurídicos grandes tendências. Uma tendência que vai gerar a
e econômicos sobre o tema dos comuns. morte da escola, vai ser substituída pelas famílias,
A segunda questão é que nós não quisemos fazer pelo digital, pelo ensino domiciliar. Nós queremos
deste relatório um conjunto de instruções. Quise- que as crianças aprendam a nossa religião, valores,

VERSUS, MAIO DE 2022 10


Entrevista
Antonio Nóvoa
atitudes, comportamentos. Queremos que elas vi- os conhecimentos científicos, as culturas, as manei-
vam num ambiente protegido, num certo sentido, ras de pensar, as diversidades, e é isso que nos edu-
cremos que a escola seja uma espécie de prolonga- ca. São as diferenças que nos instruem. E, portanto,
mento da família. E é evidente que estas tendências, não é o que é igual.
não apenas no Brasil, são muito fortes no mundo e Sempre falamos de educação com exemplos de
há muitos anos. Mas, essa é uma primeira tendên- metáforas. A metáfora do jardineiro, que rega a
cia, que o digital força muito, e sobretudo a ideia da planta e deixa a planta crescer. A melhor metáfora
personalização das aprendizagens. Isto é a ideia de da educação é a metáfora da viagem. A educação
que, hoje, cada um de nós, de frente para esta tela, é uma viagem do conhecido para outros conhe-
pode receber a educação que precisa. Então, são cidos. É uma viagem daquilo que conhecemos – a
instrumentos capazes de dar essa aprendizagem nossa família, nossas crenças, nossas religiões e nos-
individualizada personalizada, que se junta com o sa comunidade – para o que ainda não conhece-
discurso conservador sobre mos. Por isso que é uma via-
essa proteção das crianças, gem para outros mundos.
esta proteção dos meios, das
"O QUE NOS EDUCA
atitudes, dos comportamen- SÃO AS NOSSAS VERSUS: Como você
tos, dos valores. acabou de colocar que o re-
E há outros (entre os DIFERENÇAS, latório não teve o propósito
quais eu me incluo), que di- de gerar dinâmica normati-
zem justamente o contrário
NÃO É O QUE SE va, já que, na verdade é um
disso, dizem, justamente,
É IGUAL." convite para a luta, vamos
que a educação é o contrá- debater, mas vamos ter que
rio disso. A educação é o lutar, não será fácil essa luta.
encontro com os outros que são diferentes. O que Pois tem muitas forças contrárias, e acho que essa
nos educa são as nossas diferenças, não é o que se percepção é interessante, mas, ao mesmo tempo
é igual. E, portanto, dou como exemplo: os meus muito desafiadora.
pais sempre quiseram que nós, eu e meus irmãos,
fossemos educados nos princípios católicos, sempre NÓVOA: O menos provável, o improvável,
disseram: “queremos que vocês vão à escola para mas possível, é irmos a tempo da metamorfose.
conhecer tudo, para conhecer todas as religiões, Digo o mesmo sobre a educação, o mais provável
todas as culturas, todos os conhecimentos, todos hoje é que haja a extinção das escolas, uma segre-
os mundos. Nós cremos, senão, não precisaríamos gação das universidades – substituídas pelas forças
que vocês fossem a escola.”. A escola é justamente, do mercado, substituídas pelas grandes indústrias
em um certo sentido, o contrário da família. E é a globais da educação, pela profissionalização das
realidade em que somos postos em confronto com aprendizagens. Isso é o mais provável, o improvável,

11 VERSUS, MAIO DE 2022


mas que acredito que ainda é possível, é justamente Universal dos Direitos Humanos, foi precisamente
o novo contrato social e uma nova lógica. a 50 anos. E quando penso nisso, digo para mim
Não está em nosso relatório, mas teve na minha mesmo, há muita gente no mundo que não está a
apresentação, nós precisamos pensar a educação cumprir suas responsabilidades, muitos estados,
como um direito humano, tal como está consagra- muitas corporações, muitas instituições e muitos
do na declaração, mas não apenas como um direito de nós cidadãos, que temos que cumprir nossas res-
dirigido a este contrato social outorgado no século ponsabilidades com os direitos humanos que estão
XIX e que teve origem em muitas das constituições como estão no mundo de 1998. Então, o que tenho
liberais, porque esse direito era um direito dirigido, aqui a vos propor nesse brinde de saudação ao prê-
sobretudo, às crianças e a ideia da escola obrigatória, mio Nobel é que se possa escrever uma declaração
durante alguns anos. E é preciso alargar esse concei- universal dos deveres humanos que esteja espe-
to de educação como direito humano, muito além lho contra o coração dos Direitos Humanos e que
da idade escolar. E essa foi uma das nossas preocu- seja o nosso dever, o nosso compromisso, a nossa
pações neste relatório, e é uma preocupação minha responsabilidade de nos batermos pelos Direitos
nas minhas intervenções, sobretudo quando penso Humanos. ” E quem espelha, seja de nós cidadãos,
que a expectativa de vida, vai passar para 100 anos, disse José Saramago, essa responsabilidade e esse
muitos cientistas já falam que até 2035, daqui a 15 dever de nós batermos pelos Direitos Humanos, e
anos, a expectativa de vida pode vir a ser superior isto é, em um certo sentido, muitos anos mais tarde,
a 100 anos. O que significa a educação para alguém uma espécie de declinação do protesto da filósofa
com 70 anos, ou 80 ou 90 ou 100. O que significa a Hannah Arendt quando dizia: “Quando olho para
educação já não como preparação para o trabalho, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, há
mas como bem-estar. O que significa a educação um direito que é mais importante do que todos os
como cultura. O que significa a educação como outros, o direito de ter direitos.”. O direito de ter
manutenção das relações sociais e do bem-estar. O direitos é provavelmente o mais importante de
que significa a educação de uma maneira muito di- todos. Direito de ter educação. Direitos na cultu-
ferente daquela como a educação foi pensada no sé- ra. Direitos de participação na sociedade. Direitos
culo 19. E quando se fala nesse repensar do contrato no trabalho. E isso é uma coisa que por conta da
social, estamos também a falar desse tipo de coisa, fragmentação que estamos assistindo, por conta da
sempre com a cabeça no discurso do José Sarama- segregação que estamos a assistir na sociedade, nas
go, quando recebeu o prêmio Nobel da literatura do democracias, no trabalho, na cultura, vale a pena
dia 10 de dezembro de 1998. E José Saramago em hoje recordar a Saramago e a Hannah Arendt.
seu pequeno discurso, em sua saudação, disse: “Es-
tou a falar vós no dia 10 de dezembro de 1998, estou
a pensar que foi a precisamente a 50 anos no dia 10
de dezembro de 1948 que foi assinada a Declaração

VERSUS, MAIO DE 2022 12


Orçamento

Financiamento da Educação
durante a pandemia
FOTO: FERNANDO SOUZA | ADUFRJ / ARTE: BEATRIZ BRAGA

ÉLIDA GRAZIANE PINTO1

Desde março de 2020, os orçamentos públicos política pública de educação durante a crise sanitá-
têm sido impactados pela pandemia da Covid-19 ria da Covid, quais sejam:
em âmbito internacional, donde emergiu como 1) Promulgação e ainda insuficiente regula-
prioridade o custeio das dimensões sanitária, assis- mentação da Emenda nº 108, de 26 de agosto de
tencial e econômica no seu enfrentamento. 2020, que trata da constitucionalização em caráter
A seara educacional foi preterida, a pretexto de permanente do Fundo de Desenvolvimento e Ma-
distanciamento social, quando, a bem da verdade, nutenção da Educação Básica e de Valorização dos
deveria ter sido aprimorada para mitigar a crônica Profissionais da Educação (Fundeb);
desigualdade de oportunidades que afeta as crian- 2) Aprovação no Senado e tramitação na
ças e os jovens inscritos na etapa obrigatória de Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda
ensino. Eis a razão pela qual merecem registro, em Constitucional nº 13/2021, que visa anistiar prefei-
especial, três eventos acerca do financiamento da tos e governadores que tiverem incorrido em déficit

13 VERSUS, MAIO DE 2022


de aplicação dos recursos vinculados à educação Vale lembrar que a insuficiente complementação
nos exercícios de 2020 e 2021, pretensamente me- federal à sistemática de fundos para equalizar o cus-
diante compensação diferida até 2023; teio da educação básica tem como pano de fundo a
3) Parcelamento em três anos da quitação pura e simples omissão da União em cumprir o ar-
dos precatórios decorrentes de demandas relati- tigo 206, VII e o artigo 214 da Constituição de 1988,
vas à complementação da União aos Estados e aos bem como as citadas estratégias do PNE. Direta ou
Municípios por conta do Fundo de Manutenção e indiretamente, estamos envoltos em uma repetição
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Va- do debate sobre a insuficiente complementação
lorização do Magistério (Fundef), na forma do art. federal ao extinto Fundef (1996-2006, em conso-
4º da Emenda 114, de 16 de dezembro de 2021. nância com a EC 14/1996), já duramente refutada
Em todos os eventos acima há a mesma tônica de pelo STF nas Ações Cíveis Originárias nºs 648, 660,
669 e 700 (julgadas conjuntamente procedentes em
formalmente prometer prioridade, mas, na prática,
2017). Tais ações, aliás, é que deram causa aos pre-
entregar postergação.
catórios parcelados na forma do art. 4º da Emenda
A Emenda 108/2020 completou seu primeiro
114/2021.
ano de vigência, sem que tenha sido regulamenta-
O problema dessa estratégia de adiamento é que
do, por exemplo, o §7º do art. 211 da Constituição,
ela tem sido usada, recorrente e primordialmente,
relativo à pactuação federativa de “condições ade-
para negar efetividade aos direitos sociais e até mes-
quadas de oferta” de ensino em aderência ao con-
mo para permitir o falseamento do financiamento
ceito de Custo Aluno Qualidade (CAQ), para fins
de tais direitos. Essa, por sinal, é a finalidade tanto
de padrão mínimo de qualidade. O CAQ é um pa-
da Emenda 114/2021 em relação ao parcelamento
râmetro extremamente sensível até para que sejam
dos precatórios federais do extinto Fundef, quanto
efetivamente implementadas as “normas de fiscali- da PEC 13/2021, no que concerne ao adiamento até
zação, de avaliação e de controle das despesas com 2023 da quitação dos déficits educacionais verifica-
educação nas esferas estadual, distrital e municipal”, dos durante a pandemia.
a que se refere o §9º do art. 212. Isso porque, sem Em suma, o financiamento da educação tem
noção clara de custos, não se controlam resultados. sido preterido historicamente e, ainda que pontuais
É antiga, por sinal, a omissão em regulamentar avanços sejam conquistados no plano normativo,
o custo-aluno qualidade inicial (CAQi) e o custo- sua execução pragmática não está assegurada, ten-
-aluno qualidade (CAQ), a que se referem as estra- dência essa que, durante a pandemia, se manteve.
tégias 7.21 e 20.6 a 20.8 da Lei 13.005/2014 (Plano
1. Doutora em Direito Administrativo pela UFMG,
Nacional de Educação), como já denunciado pelo
com estudos pós-doutorais em Administração pela
Tribunal de Contas da União desde seu Acórdão EBAPE-FGV/RJ. Procuradora do Ministério Público de
618/2014 e reiterado pelos Acórdãos 906/2015, Contas do Estado de São Paulo e Professora da FGV/SP.
1897/2017, 717/2019 e 1656/2019.

VERSUS, MAIO DE 2022 14


VERSUS, MAIO DE 2022 15
FOTO: MARCELO CAMARGO | EBC / ARTE: BEATRIZ BRAGA
Migração

O desafio de integrar
a criança refugiada à
Escola Pública
FLAVIA GUERRA CAVALCANTI1, MARIA LIDIA MATTOS VALDIVIA2 E MARIANA PERILLO VELLOSO BARBOSA3

Nosso projeto com crianças refugiadas começou textos sobre migrações e documentos do Ministério
exatamente no dia em que a Organização Mundial da Educação sobre as orientações para o magistério
da Saúde (OMS) confirmou a pandemia da Sars- durante a pandemia.
-COV-19, em 11 de março de 2021. Estávamos eu, A partir das conversas com duas professoras de
Flavia Guerra, e a professora Renata Bastos na sede4 escolas municipais, Jaspe Marques de Mattos (Es-
do IRID, na Praia Vermelha, entrevistando os can- cola Capistrano de Abreu) e Cátia Simone Pereira
didatos às duas bolsas, que o projeto “Vida Pública: de Sousa5 (Escola Adalgiza Nery), pudemos conhe-
como os temas republicanos impactam a integra- cer as dificuldades colocadas pela pandemia6 para o
ção de crianças refugiadas nos espaços escolares e processo de aprendizagem das crianças refugiadas.
de ensino do Estado” acabara de ganhar do Centro Em 2021, a Secretaria Municipal de Educação criou
de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE), quan- o aplicativo de ensino remoto “Rio Educa em Casa”
do veio o anúncio da OMS que mudaria as condi- disponibilizando ferramentas para o ensino remoto
ções nas quais nosso projeto seria desenvolvido. sem resolver as disparidades de aprendizado entre
O objetivo de nossa extensão era ir às escolas do os alunos pois nem todos contavam com as tecno-
Estado do Rio para interagir com a comunidade es- logias adequadas para acessar as aulas.
colar no acolhimento de crianças refugiadas. Com No entanto, as dificuldades não se resumiram à
a decretação da pandemia – e o consequente fecha- precariedade da infraestrutura. O espaço escolar
mento das escolas - nossas visitas tiveram de ser constitui-se como um todo que engloba a sociabi-
substituídas por encontros remotos para leitura de lidade, a saúde e o aprendizado. Num primeiro mo-

1 Professora do Curso de Relações Internacionais.


2 Graduanda e Extensionista do Curso de Relações Internacionais.
3 Graduanda e Extensionista do Curso Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES).
4 Professora do curso Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES).
5 Coordenadora Pedagógica da Escola Municipal Capistrano de Abreu (Horto).
6 Diretora Adjunta da Escola Municipal Adalgiza Nery (Santa Cruz).

16 VERSUS, MAIO DE 2022


mento, a interrupção das aulas acarretou também Para as crianças refugiadas, estes obstáculos torna-
a suspensão das refeições das crianças, o que pro- ram-se ainda mais perversos, pois significaram a
vocou uma situação de insegurança alimentar para perda de contato com a língua e a cultura do país
aqueles que tinham na refeição escolar a sua única receptor. Neste momento, aguardamos a finalização
fonte de nutrição. As refeições foram restabelecidas de um convênio entre a UFRJ e a Secretaria Muni-
posteriormente (2020), com a distribuição de cestas cipal de Educação para obtermos a autorização ne-
básicas e cartão alimentação para as famílias. cessária à visita das escolas e participação nos pro-
Ambas as escolas citadas contam com alunos re- jetos de acolhimento das crianças refugiadas que já
fugiados e já possuíam, antes mesmo do início da vêm sendo realizados na Escola
pandemia, um projeto de acolhimento desses alu- Capistrano de Abreu e na Escola Adalgiza Nery.
nos. No caso da Escola Municipal Adalgisa Nery, Paralelamente, aguardamos o estabelecimento de
localizada em Santa Cruz, duas crianças venezuela- outro convênio, desta vez com o Colégio Pedro II,
nas refugiadas - um menino de 12 anos, e sua irmã para a mesma finalidade.
de 14 anos. A suspensão das aulas significou um Finalmente, em função do momento pandêmico,
atraso no processo de adaptação dos irmãos à escola atuamos de forma online com a produção de uma
e à língua portuguesa, promovido pelo contato so- série de podcasts que aborda as temáticas do “Guia
cial com crianças da mesma faixa etária. Na Escola para guia para pais e educadores sobre integração
Capistrano de Abreu, no Horto, a criança venezue- de crianças e adolescentes refugiadas nas escolas”,
lana refugiada de 8 anos chamada Jaspe relata que uma iniciativa da Acnur com apoio do Ministério
os professores recorreram à literatura infantil para da Educação. A série se divide em três podcasts de
criar um espaço de acolhimento: “Optamos por curta duração e discute a questão da educação para
aproximá-los da comunidade escolar por meio de migrantes de forma acessível 7.
uma roda de leitura do livro ‘Uma casa no mundo’,
de Daniela Chindler e Juliana Portenoy, que trata
de migrantes que moram no Brasil. Conversamos
sobre a memória desses outros lugares. Os alunos
refugiados também puderam falar sobre o seu país
para os demais”.
Apesar das duas escolas estarem situadas em
bairros com Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) discrepantes, as dificuldades apontadas pelas
professoras foram similares: falta de acesso à tecno-
logia, perda da refeição diária na primeira fase da
pandemia e esgarçamento dos laços socioafetivos.

7 Os podcasts podem ser acessados por meio do perfil do grupo de extensão “Vida Pública” no Spotify: https://
open.spotify.com/show/6e2d5NgNCOD27YNcXwaan5?si=fb47571fe8854eb6

VERSUS, MAIO DE 2022 17


Gestão Pública

O bom professor: Versus


entrevista Vinícius Wu
REDAÇÃO

ativamente da área da educação; por exemplo, re-


FOTO: SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE NITERÓI / ILUSTRAÇÕES: BERNARDO MARQUES

centemente foi Secretário de Educação de Niterói


— município da região metropolitana do estado do
Rio de Janeiro, com aproximadamente 515 mil ha-
bitantes — e esteve à frente da construção de uma
série de projetos educacionais da gestão do prefeito
Axel Grael, a exemplo do Educação XXI. Além dis-
so, um eterno professor apaixonado pelo ofício de
ensinar. Wu é filho da escola pública, negro e vin-
do da periferia. Na política, um gestor público de
bastidores, mas de participação ativa na construção
do bem social desde quando participa no espaço no
poder público como aconteceu com Tarso Genro
no governo do Rio Grande do Sul. Ainda no âmbi-
to político, é um crítico ao atual momento do país.
Wu pede discernimento aos colegas que congre-

V
das Nações Unidas (ONU) e Banco Internacional
inicius Wu é um nome técnico unânime
entre os políticos. Prêmios da Organização
gam com ideias contrárias às suas. Ao mesmo tem-
po, pede dias melhores e livres do negacionismo,
tão maléfico para a gestão da pandemia que ainda
para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) em nos acompanha. Para a Revista Versus, Wu conce-
projetos de Governo Eletrônico (E-Gov), o his- deu uma aula em formato de entrevista, a qual ofe-
toriador egresso de nossa UFRJ tem participado recemos trechos abaixo, como todo bom professor.

18 VERSUS, MAIO DE 2022


VERSUS: A situação gripal, as variantes do co- tes realidades locais e com relação ao debate sobre
ronavírus e as demais mazelas agregadas ou não a educação não tem sido diferente. Ou seja, à luz
impõem a pergunta: qual a postura pública da es- dessa experiência concreta dessa pandemia vivida
cola municipal em Niterói, como viver tudo isso se no país e em outras partes do mundo que nós pode-
a escola é de tempo integral ou é uma Unidade Mu- remos buscar respostas para o problema complexo
nicipal de Educação Infantil (UMEI)? que envolve múltiplas dimensões da atuação do po-
der público. No caso da educação, o que nós temos
VINÍCIUS WU: Bom, eu acho que em relação percebido é que há, de fato, após 2 anos de pande-
a esse debate nós precisamos recuperar um pouco o mia, uma percepção generalizada de que houve um
que tem sido a experiência desenvolvida pela edu- excesso de cautela em relação ao funcionamento
cação pública no Brasil e também, claro, tentando das escolas e da educação como um todo em fun-
se aproximar daquilo que tem sido desenvolvido ção, inclusive, do desconhecimento que nós todos
por outras cidades e países no mundo. Uma vez que tínhamos em relação a dinâmica da dimensão do
as soluções que têm sido buscadas em nível global, coronavírus.
elas têm se mostrado muito válidas de uma maneira Especificamente na cidade de Niterói, nós, escu-
em geral, independente da particularidade de cada tamos as autoridades sanitárias. Mas, respondendo
cidade e de cada região. O repertório com o qual o então, objetivamente, a pergunta, a nossa pretensão
poder público tem agido tem sido compartilhado e como gestores públicos é, sim, de uma retomada
experimentado com relativo sucesso pelas diferen- plena da educação em 2022.

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE NITERÓI

Nova realidade. Em sala de aula, professores e alunos se adaptam as restrições


contra a COVID-19

VERSUS, MAIO DE 2022 19


Gestão Pública

VERSUS: A questão da dimensão lúdica da

AGÊNCIA BRAISL / MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA


educação, essas atividades se fazem sem o envolvi-
mento, que a pandemia colocou e não poderia ser
diferente, dos familiares e das crianças. Então, na
verdade, é um acúmulo de forças que aconteceu en-
volvendo a escola, a família ou quem mais pudesse
ter a convivência com a criança para essa criação.
Um dos nossos desafios é tornar e fazer outras for-
mas da disponibilização da educação com esse es-
forço coletivo, não o esforço só da escola, mas, de
todos nós. Outra questão é a dos repasses do Fundo
de Desenvolvimento da Educação Básica (FUN-
DEB), por conta da situação esdrúxula e recorrente
do represamento que recebe, eufemisticamente, a
Mesmo com a falta de recursos, o EAD
expressão de contingenciamento, e o gritante abo- ganhou espaço na pandemia
no à docência diante da ausência de auxílios e de
recursos ao corpo discente. O que dizer sobre isso? aos educadores e educadoras que tiveram que se
virar para manter suas atividades pedagógicas,
WU: Bom, há uma reflexão que precisa ser feita manter vínculos, enfim. A ação dos educadores
pelo país relativa à negligência que nós, enquanto brasileiros no ano de 2020 foi extremamente criati-
sociedade brasileira, operamos em relação à edu- va, penosa, e ela se deu, praticamente, a não contar
cação neste ano de pandemia. No ano de 2020, em com quase nenhum apoio parte das instâncias go-
especial, a educação ficou fora do debate político, vernamentais, em geral.
houve pouquíssima atenção por parte dos gestores, Em 2021, o debate, de uma certa maneira, teve
dos agentes políticos e, é claro, por parte principal- mais visibilidade e, também, por conta de uma
mente do próprio governo federal e do Ministério organização de fora para dentro, movimentos da
da Educação, que deveria ter sido um grande arti- sociedade, e de alguns gestores em planos mais
culador de políticas educacionais e construtor de locais que foram pautando a necessidade de nós
soluções para apoiar os estados e municípios na pensarmos a educação nesse cenário de pandemia.
garantia do direito da educação. As soluções que foram sendo encontradas, algu-
Então, nós passamos um ano de grandes ausên- mas mais outras menos duvidosas, sem nenhuma
cias. Ausências em relação a políticas, por exemplo, instância governamental articuladora que pudesse
de inclusão digital, políticas em relação à minimi- orientar e evitar que erros fossem cometidos, que já
zação dos efeitos da pandemia e de apoio, também, foram experimentados por diferentes cidades e re-

20 VERSUS, MAIO DE 2022


alidades, e que não tiveram um compartilhamento. WU: Então, a nossa propensão é buscar o máxi-
Os gestores tiveram que se virar ao longo do tempo mo de alinhamento com as políticas que estão sen-
nesse ano, e a falta de articulação e de coordenação do desenvolvidas, não só no Brasil, mas no mundo
também se refletiu no financiamento. Muitos mu- para enfrentar esse contexto. Fica um grande apren-
nicípios voltam agora com a recepção de recursos dizado da pandemia que todas as negligências re-
do FUNDEB, que foram deixados contingenciados alizadas historicamente aqui no Brasil elas cobram
e distribuídos de uma maneira totalmente aleatória um preço muito caro. Nesse caso da pandemia, a
para efeito de cumprimento daquilo que dispõe a ausência de políticas sólidas, principalmente nas es-
Constituição Federal, e isso se tornou também um colas municipais, mostra que já estamos em risco
grande problema, porque muitos municípios estão de uma evasão escolar sem precedentes no Brasil, o
recebendo repasses em grande volume há poucas abandono da escola, não só da escola, mas da uni-
semanas do final de 2021. versidade, hoje em dia, vai prejudicar significativa-
Ou seja, toda uma estratégia que poderia ter mente o desenvolvimento educacional do país em
sido pensada ao longo do ano de 2021. O uso ra- função da ausência de estratégias dentro da oferta
cional, escalonado, desses recursos estão sendo tecnológica possibilitasse nós enfrentarmos de uma
feitos repasses que inviabilizam qualquer tipo de maneira diferente da qual nós enfrentamos.
planejamento de política pública. E que na verda- Nós temos imensos desafios pela frente, mas eu
de, também, expressa um pouco o que foi a postura acho que o determinante é exatamente construir a
do Governo Federal ao longo de toda a pandemia afirmação de uma agenda nacional para a educação
em relação à educação. Nós estamos enfrentan- brasileira que considere a necessidade, inclusive, de
do essas dificuldades que dizem respeito à falta de ampliação dos investimentos e da integração fede-
uma agenda pública nacional, de uma articulação rativa para a construção de soluções para os próxi-
dos órgãos que compõem o sistema de educação, mos anos. Além disso, essa dimensão importante
mesmo em relação às políticas que dizem respeito de uma afirmação da escola como um território de
ao ensino médio, ao ensino estadual. afirmação de outros direitos, direito a cidade, direi-
to a cultura.
VERSUS: Existe algo de muito nítido que a
pandemia revelou, pelo menos a maioria dos es-
tudantes e educadores está resignado no relatório
“Imaginando os nossos futuros — um novo contra-
to social de ensino” da UNESCO. O ensino remo-
to não funciona nem de perto como substituto do
presencial, não devemos nem cair no equívoco de
aproximar essa situação ao conceito de ensino hí-
brido, são coisas totalmente distintas.

VERSUS, MAIO DE 2022 21


FOTO: SILVANA SÁ | ADUFRJ / ARTE: BEATRIZ BRAGA
SUS

oDepois
legado
da onda
do Ômicron LÍGIA BAHIA

Manifestações de apreço à ciencia e ao Sistema tornaram-se heróis embora o país tenha perdido
Único de Saúde (SUS), que estiveram na linha de mais de 620 mil pessoas, se tornando o primeiro lu-
frente das intepretações, recomendações e atendi- gar em número acumulado de óbitos por habitante.
mento aos pacientes estão presentes em um cotidia- O reconhecimento dos méritos de uma política
no que se arrasta há mais de dois anos. Ao invés pública universal e suas ações objetivas e especial-
das notícias sobre as deficiências assistenciais da mente pelo trabalho de pesquisadores e profissio-
rede pública e universidades públicas consideradas nais de saúde ocorreu em diversos países. Em tese,
custosas e ineficientes. O sinal de mais foi acrescen- bons sistemas saúde, com base cientifica tecnologia
tado na frente das instituições de pesquisa e na pa- adequada, seriam capazes de interpor barreiras efe-
lavra SUS, no contexto das respostas equivocadas e tivas para proteger vidas da população. Experiên-
omissões do governo federal para o enfrentamento cias bem-sucedidas de supressão de casos covid-19
da pandemia do novo coronavírus. Ciência e SUS ocorreram em países asiáticos e na Australia e Nova
Zelandia1, evidenciando a importância das estraté- dades econômicas, medicamentos e vacinas. O que
gias populacionais. Reino Unido, Itália, França e mudou foi a extensão consenso sobre as virtudes do
mesmo Alemanha, apesar da adoção de políticas de SUS para a mídia tradicional. A experiência com a
contenção da transmissão distintas, apresentaram Covid-19 transformou o SUS em talismã nacional.
altas taxas de mortalidade. O país que mais gasta A expressão “se não fosse o SUS seria muito pior”
com saúde no mundo, os EUA, acumula o maior passou a ser pronunciada como agradecimento e
número de mortes. Sob este critério, evitar mortes, respeito. A saúde pública de mazela se tornou so-
tradicionais sistemas universais de saúde europeus lução. A valorização do SUS tal como ocorreu em
e o orientado pelo mercado, na America do Norte, países com sistemas públicos universais veio acom-
teriam sido reprovados.2 panhada pela conscientização sobre a relevância da
Entretanto, em países com governos bem ava- ciência e fragilidade da base tecnológica e produtiva
liados ou não, os sistemas públicos de saúde rece- setorial.
beram elogios. Um apoio amplo, inclusive à de- Falta de testes, oxímetros, cilindros de oxigênio,
claração de profissionais de saúde“não queremos aventais, máscaras cirúrgicas, leitos de CTI e pro-
só aplausos” em diversas línguas3, expressandoa fissionais de saúde que evidenciaram a forte de-
necessidade de condições adequadas de trabalho, pendência de importações de itens estratégicos e
desde equipamentos de proteção individual, remu- incompetências administrativas trouxeram à tona
neração ajustada à sobrecarga laboral, equipes com- desafios antigos que se somaram à competição nos
pletas e oferta adequada de leitos, equipamentos e processos de aquisição de insumos favoráveis aos
medicamentos. compradores privados.4 O SUS exibiu mais insufi-
No Brasil, apesar da magnitude dos desfechos ciências do que os sistemas de saúde de países ricos.
letais, houve uma mudança radical em direção a A rede capilarizada e potencialmente capaz de rea-
um status positivo do SUS. Sob o fogo cruzado dos lizar ações de vigilância epidemiológica nos territó-
debates sobre lockdown e testagem versus políticas rios permaneceu desmobilizada e o atendimento a
menos radicais de fechamento de atividades econô- casos graves tem sido perpassado por atos nobres e
micas, o atendimento aos pacientes, exigente de or- angústia e desespero de pacientes, familiares e res-
ganização de serviços e dedicação de médicos, en- ponsáveis pelo atendimento.
fermeiros, que foram junto com pacientes idosos os Portanto, o SUS e a ciência tornaram-se heróis
primeiros a morrer causou enorme comoção. Foi trágicos: as tentativas de proteção alcançaram resul-
estabelecida uma linha divisória entre os governos tados insuficientes. Suas imensas e extensas falhas
e as instituições públicas de saúde. assistenciais, antes objeto de críticas sobre proble-
A admiração pelo SUS contou, desde o início, mas de acesso e qualidade das ações da rede públi-
com a adesão de lideranças de todos os matizes po- ca, cederam vez a crônicas emotivas das batalhas
líticos. As polêmicas se concentraram em torno da pela vida. As glórias nacionais, no entanto, não tive-
magnitude da pandemia, funcionamento das ativi- ram as mesmas consequências daquelas outorgadas
SUS

FERNANDO SOUZA / ADUFRJ

Enfermeira durante a vacinação drive-thru da UFRJ no Sambódromo

a outros sistemas nacionais de saúde. Experiências ERROS E OMISSÕES


da pandemia estimularam mudanças nas políticas Desde quando foram iniciados os primeiros es-
de fortalecimento científico e sistemas de saúde forços para conhecer o processo de transmissão do
em diversos países.5 Mais recursos orçamentários covid-19, estudiosos brasileiros de diferentes áreas
destinados às áreas, valorização de profissionais de de conhecimento alertaram as autoridades públicas
saúde e intensificação das conexões entre institui- sobre a necessidade de mobilizar vigorosamente
ções de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias políticas, programas e ações para o enfrentamento
constituem pontos de uma agenda básica e quase da pandemia. Contudo, as políticas públicas per-
consensual. No Brasil, as marcas “Mais Ciencia e meadas por erros e omissões e seus trágicos des-
Mais SUS” ficaram no ar e têm sido aspergidas por dobramentos sanitários, políticos e econômicos
movimentos sociais, mídia comercial e alternativa, tragaram o país para o epicentro da pandemia em
mas sem contrapartidas objetivas em fóruns polí- função de respostas tardias e insuficientes à preven-
tico-partidários e governamentais. Não é preciso ção de casos e óbitos. A indisposição, hesitação e
ir longe para constatar que ao invés de incremento, recusa para conter e monitorar a infeção rompeu
o orçamento para 2022 prevê cortes de gastos para com boas tradições de vigilância epidemiológica,
saúde e universidades. medidas preventivas e preparação de cuidados aos
pacientes graves desenvolvidas nacionalmente ao

FERNANDO SOUZA / ADUFRJ


longo de décadas.
Decisões atravessadas pelo descaso com o con-
trole de portos, aeroportos e fronteiras, funciona-
mento de atividades econômicas e apoio financeiro
a indivíduos e empresas foram incorretas e ambí-
guas. Faltaram insumos estratégicos para a saúde
e as lacunas na oferta de recursos assistenciais não
foram supridas e atualmente há escassez de vaci-
nas. Medidas de proteção populacional e individual
foram substituídas por ataques à ciencia e às expe-
riências históricas. A legislação promulgada em
fevereiro de 2020 autorizou o governo a mobilizar
recursos existentes e ampliou o orçamento público.
No entanto, leitos privados e a readequação da ca-
pacidade instalada para a produção de insumos, tais
como testes e máscaras de maior qualidade e me-
nor custo e orçamentários, não foram devidamente
mobilizados.
Diferentes formas de protesto foram
Estratégias de bloqueio da disseminação do ví-
vistas durante a vacinação
rus se tornaram indisponíveis pela conjugação de
quatro ordens de fatores: a minimização da mag- frentamento da Covid-19.7 Em nome da “saúdeda
nitude da pandemia e descrédito nas orientações economia”, o governo federal se tornou cumplice de
cientificas; adoção de programa oficial para “trata- mortes que poderiam ter sido evitadas e não logrou
mento precoce” (uso de medicamentos ineficazes) reverter a recessão econômica. Essa escolha polí-
enganoso6; políticas insuficientes e intermitentes tica nos conduziu para uma situação na qual não
de auxílio pecuniário emergencial e demora para tivemos políticas efetivas contra a covid-19, nem
a expansão da capacidade instalada de leitos de te- melhorias nas taxas de emprego e renda.
rapia intensiva; descontinuidades administrativas e
pessima gestão financeira no Ministério da Saúde e MORTES EVITÁVEIS, RESPONSABILIDA-
inação de comitês de crise. A banalização das mor- DES ATRIBUÍVEIS
tes e das sequelas causadas pela doença e a difusão Em situações de crises sanitárias, a responsabi-
da ideia de que faleceriam apenas idosos ou pacien- lidade de evitar mortes na pandemia compete aos
tes com comorbidades, ou quem não tivesse acesso governos nacionais. No Brasil, a recusa às orienta-
ao “tratamento precoce” sintetiza a recusa ao en- ções para mitigar casos e mortes impediu poupar
SUS

vidas. Aproximadamente 120 mil mortes, entre as cial de transmissão tem sido rarefeito e desigual
que ocorreram até o final de março de 2021, po- em termos de raça/cor e renda, uma inversão entre
deriam ter sido evitadas por medidas de controle, necessidades e obtenção de cuidados inadmissível,
baseadas em ações de isolamento social e vigilância especialmente durante uma pandemia. Haveria
epidemiológica8. As mortes em excesso foram mais ainda a possibilidade de poupar vidas de pacientes
elevadas em homens na faixa etária entre 20 a 59 hospitalizados. Maisde 20 mil pessoas morreram,
anos, negros e indígenas.9 em 20208, em unidades de atendimento pré-hos-
Profissionais de saúde, trabalhadores expostos a pitalar ouemergências na rede pública, não conse-
ambientes com ar rarefeito e aglomerações, pessoas guiram ter acesso a leitos de terapia intensiva. Seria
vivendo em instituições asilares e prisionais, povos imprudente ter um cálculo preciso de quantas vidas
indígenas, quilombolas (comunidades remanes- seriam salvas se essas pessoas tivessem acesso a hos-
centes da escravidão) e ribeirinhos (povos que vi- pitais e unidades de terapia intensiva. Mas é impor-
vem à margem de rios com dificil acesso a serviços tante afirmar que as informações sugerem retenção
de saúde) e habitantes de favelas e periferias e mor- do acesso e que as mortes em instalações de urgên-
bidades prévias deveriam ter sido prioritariamente cia e emergência não foram igualmente distribuí-
protegidas. das. Ocorreram óbitos especialmente na popula-
O país atravessa uma pandemia há mais dois ção que buscou a rede pública, integrada por uma
anos sem implementar as ações necessárias para en- maior proporção de negros e pessoas com menor
frentar a disseminação do novo coronavírus, agora status de renda e possivelmente mais vulneráveis.
com o predomínio da cepa Ômicron. O desprezo
do governo pelas vidas impediu realizar campanhas SALVAR VIDAS E REGENERAR O
sanitárias informativas, mobilizar a solidariedade MUNDO EM QUE VIVEMOS
social (convocação de movimentos sociais, igrejas, A chamada urgente é para salvar vidas mediante
empresas, mídias e instituições de ensino e pesqui- uma dupla estratégia vacinação e adesão a medidas
sa), prover máscaras de boa qualidade, testes para de saúde pública de proteção da infecção. Ninguém
rastreamento e aquisição tempestiva de vacinas. está seguro até que todos estejam seguros. O Pre-
Outro contingente significativo de mortes evitá- sidente da República, que continua estimulando
veis, embora também de difícil dimensionamento, aglomerações, não se vacinou e retirou a máscara
são aquelas que poderiam não ter ocorrido pela de uma criança, encarna o estado de coisas incons-
efetiva atuação da rede básica de serviços de saúde, titucional na política pública de saúde brasileira.
ou seja, incluindo testes, monitoramento de casos, Diversas iniciativas, solicitam: garantir a alocação
providências para autoisolamento e referenciamen- do maior volume possível de recursos para o SUS,
to ágil para hospitais de qualidade. O acesso a testes imposição de realização de testes na população em
para detecção de casos e contatos, que deveriam condições de suspeita de infecção por Covid-19,
permanecer isolados para buscar reduzir o poten- distribuição gratuita de máscaras PFF-2; levanta-
mento e divulgação de dados estatísticos sobre os política, desastres ambientais e aumento da miséria.
casos confirmados, suspeitos e em investigação; e a Depois da Omicron encontraremos um legado de
criação de uma central nacional de regulação unifi- perda, angústia e marginalização. Para uma parcela
cada de leitos públicos e privados em unidades de da população, o futuro aberto está bloqueado pela
tratamento intensivo. intensificação das desigualdades e racismo. Precisa-
Em contrapartida, a mensagem do governo fe- mos desenvolver políticas de saúde que contribuam
deral “temos que aprender a viver com o vírus” se para o sentimento de pertencimento igualitário e
cristalizou com slogans conectados com o afã da emancipado no mundo.
abertura indiscriminada de atividades econômi-
cas. Vacinas e medidas de saúde pública altamente REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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var a ciência em consideração, agredir cientistas e nitário), Faculdade de Saúde Pública da USP. A linha do tempo
da estratégia federal da disseminação da covid-19. Atualizado
mesmo ridicularizar as possibilidades de realizar
mediante solicitação da Comissão Parlamentar de Inquérito,
ações de cuidados à saúde minaram as bases para por meio do Ofício 57/2021-CPIPANDEMIA. 28 de maio de
o enfrentamento de ameaças da saúde pública. A 2021.
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certeza de que o Brasil ter evitado milhares de mor-
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te em experiências históricas anteriores. A maioria Pandemia em 23 de junho de 2021.
dos países estão transformando seus sistemas de 9.Santos, A. M. dos et al. Excess deaths from all causes andby
COVID-19 in Brazil in 2020. Revista De Saúde Pública, 55, 71,
saúde, dotando-os de recursos humanos, materiais
2021
e financeiros para proteger suas populações de ris-
cos à saúde. Mas o Brasil, ainda está às voltas com
ondas sucessivas de crises. Crise econômica, crise
Artigo
BANSKY / REPRODUÇÃO | INSTAGRAM

Crise estrutural
e pandemia
MAURO OSÓRIO1

A partir dos anos 1970, com a consolidação


da transferência da Capital Federal para Bra-
sília, o Estado do Rio de Janeiro-ERJ entra em
um círculo vicioso socioeconômico do qual
ainda não conseguiu sair. Entre 1970 e 2019,
o ERJ perdeu 37,6% de participação no PIB
nacional (IBGE).
Com o início da crise política e econômica no os 92 municípios do ERJ, 52 tinham uma cobertura
país, em 2015, o ERJ aprofundou sua crise estrutu- vacinal inferior à média do estado, sendo que 8 ti-
ral. Por exemplo, entre 2014 e 2020, perdeu 18,8% nham menos que a metade de sua população va-
do total de seus empregos formais, contra uma per- cinada - incluindo grandes municípios da Baixada
da no país de 6,7%, sofrendo a maior perda entre Fluminense, como Belford Roxo, Queimados e São
os estados. João de Meriti (Vacinômetro SUS).
Assim, o ERJ entra na pandemia em situação Os dados acima evidenciam que, em uma estra-
de particular fragilidade. Enquanto 32,2% da sua tégia para tirar o ERJ de seu longo círculo vicioso e
população precisou, em 2020, do auxílio emergen- colocá-lo em um círculo virtuoso, a política pública
cial do Governo Federal, no Sudeste e no total do de saúde deve ter papel central.
país esse percentual foi de respectivamente 28,9%
e 31,6%. Em seis municípios fluminenses mais de 1. Professor Associado da FND/UFRJ
45,0% da população precisou do auxílio emergen-
cial. No município de Búzios, esse percentual che-
gou a 59,0% (Portal da Transparência/Governo
Federal e IBGE).
A crise estrutural no ERJ também traz uma si-
tuação de fragilidade aos dados de infraestrutura e
na área social, atingindo principalmente a perife-
ria metropolitana do Rio (todos os municípios da
RMRJ, excetuando a cidade do Rio). No Índice Fir-
jan de Desenvolvimento Municipal-IFDM/Saúde
para o ano de 2016 (últimos dados disponíveis), dos
66 municípios da periferia metropolitana das capi-
tais de estados do Sul e Sudeste do país com mais de
cem mil habitantes, não existe nenhum município
da periferia da RMRJ entre os 20 primeiros coloca-
dos no ranking. Já entre os 20 piores colocados, 12
são da periferia da RMRJ.
No cenário atual de pandemia, o ERJ e a maio-
ria de seus municípios não aparecem bem na co-
bertura vacinal contra a Covid-19. Em 02/03/2022,
69,4% da população do ERJ recebeu a segunda dose
ou a dose única, estando na 15ª posição entre os es-
tados (Consórcio de Veículos de Imprensa). Entre
ARTE: BEATRIZ BRAGA

VERSUS, MAIO DE 2022 31


Carestia

Josué de Castro
O legado do cidadão do mundo contra a fome
LETÍCIA DA PAZ MAIA

Será a calamidade da fome um fenômeno natural, inerente à própria vida,


uma contingência irremovível como a morte?
Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio homem?
Geopolítica da Fome, 1951.
Josué de Castro

Quando comer se torna um privilégio é pos- mentar grave, o país passou a integrá-lo novamente
sível entender as palavras de Carolina Maria de em 2018 e em 2020 foram registrados 55,2% dos
Jesus: “quem inventou a fome são os que comem”. brasileiros vivendo sob algum grau de insegurança
A doutora honoris causa da UFRJ, escritora e cata- alimentar, segundo os dados da Rede Brasileira de
dora de papéis sentiu no estômago a dor do prato Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e
vazio, como expresso no livro Quarto de Despejo: Nutricional e da ONU. O fantasma da falta do que
Diário de uma Favelada (1960). Alguns anos an- comer assombra novamente Carolinas e Josués do
tes, em 1946, Josué de Castro publicava Geografia século XXI que, tão atuais quanto no século passa-
da Fome, obra de referência mundial que revelou a do, exigem que a fome seja encarada de frente - e
fome como um problema cronicamente histórico, pra ontem.
social e político, afastando-o das usuais associações O reencontro com os escritos de Josué de Castro
a um fenômeno natural ou biológico e propondo na atualidade não é particularmente especial ape-
caminhos para enfrentá-lo. Depois do Brasil sair nas devido à comemoração dos 75 anos de publi-
do Mapa da Fome da FAO/ONU (Organização das cação do Geografia da Fome, que ocorreu em 2021,
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) mas também configura-se como um refúgio onde
pela primeira vez na história em 2014, com menos se pode encontrar algum horizonte para um Brasil
de 5% da população em estado de insegurança ali- que morre de fome. Há quase um século, um brasi-

32 VERSUS, MAIO DE 2022


leiro já traçava os caminhos pelos quais poderíamos vimento e as injustiças históricas, políticas, sociais,
escapar desse precipício a nível global. A pergunta raciais, econômicas e ambientais. Josué provocou
que fica é: por que ainda estamos despencando uma mudança de chave: só é possível acabar com
nele? a fome ao admiti-la enquanto estado não-natural,
Este texto é dedicado a Josué de Castro e seu lega- assim, da mesma forma que é possível construí-la,
do ao combate à fome no mundo. é possível destruí-la.
Josué Apolônio de Castro nasceu em 5 de se- “Josué de certa forma desvendou esse debate da
tembro de 1908 no Recife, lugar em que observou a fome, trouxe o tema para a agenda. Ele mesmo fala
fome de perto desde a infância. Na década de 1930, que descobriu a fome que, na verdade, é secular, mi-
já como médico, publicou Alimentação e Raça, O lenar, mas é um fenômeno diferenciado a cada mo-
problema da alimentação no Brasil e o Inquérito mento político. Não existe justificativa para a fome,
Sobre as Condições de Vida das Classes Operárias não é um fenômeno natural ou biológico, como ele
no Recife, obras que denun- dizia. A contribuição dele é
ciam o cruzamento entre "NÃO EXISTE fenomenal nesse sentido”,
desigualdades históricas e pontua a professora Tereza
interpretações falaciosas JUSTIFICATIVA Campello, titular da Cáte-
sobre as origens da fome dra Josué de Castro de Siste-
como fator responsável por PARA FOME, NÃO mas Alimentares Saudáveis
sustentar e mascarar o pro- e Sustentáveis da Faculdade
blema como um tabu e, por- É UM FENÔMENO de Saúde Pública da USP e
tanto, intocável. ex-ministra do Desenvol-
Aos 28 anos Josué iniciou NATURAL OU vimento Social e Combate
sua carreira como Professor à Fome, em entrevista para
Titular de Geografia Huma- BIOLÓGICO..." esta matéria. Campello des-
na na Faculdade Nacional taca que a maior inovação
de Filosofia da Universidade do Brasil e, desde en- científica de Castro foi abordar o problema como
tão, teve uma extensa lista de célebres publicações um fenômeno político; além disso, metodologica-
como A alimentação brasileira à luz da geografia mente foi inovador ao mobilizar a Geografia como
humana (1937), Geografia Humana (1939), Geo- lente de análise ao “mostrar que é preciso olhar para
grafia da Fome (1946), Geopolítica da Fome (1951), o território, não adianta fazer uma discussão etérea,
Homens e caranguejos (1967), El hambre: problema você tem que baixar no território e tentar entender,
universal (1969), dentre outras. Estas obras marca- compreender esse fenômeno. Poderíamos ter apro-
ram a literatura científica mundial ao estudarem as veitado o que Josué nos trouxe e ter enfrentado o
causas e as consequências da insegurança alimentar, fenômeno da fome no Brasil. E o mundo também”,
propondo uma ligação íntima com o subdesenvol- comenta a professora.

VERSUS, MAIO DE 2022 33


Carestia

Um dos pilares desse enfrentamento, para Josué diretor do Serviço Técnico de Alimentação Nacio-
de Castro, são as políticas públicas. Em sua linha de nal (STAN) - transformado em 1945 na Comissão
análise, é preciso ter estratégia e agir politicamente Nacional de Alimentação (CNA) - cargo que Josué
sobre as manifestações da fome em suas dinâmi- de Castro ocupou até 1954.
cas territoriais, ambientais, sociais e culturais es- Devido a sua trajetória e contribuições no com-
pecíficas, levando em consideração o diálogo com bate à insegurança alimentar, foi eleito Presidente
o cenário macro de disponibilidade, produção e do Conselho Executivo da FAO e pôde expandir
distribuição de alimentos. Dessa forma, é possível suas ações por todo o mundo. A partir de 1955,
atacá-la por meio de esforços do Estado que pressu- buscou na política institucional brasileira caminhos
põem a alimentação como um direito à vida. para avançar nessa agenda no país, foi deputado fe-
Nesse sentido, Josué atuou em movimentos à deral de Pernambuco em 1955 e 1959 e, ao sair da
sua época pelo estabelecimento do salário mínimo presidência da FAO em 1957, fundou a Associação
nacional para a subsistência dos trabalhadores, rei- Mundial de Luta Contra Fome (ASCOFAM).
vindicação que foi conquistada em 1940 por meio A conciliação entre a teoria e a prática é funda-
de Decreto-Lei, e pela criação dos Restaurantes mental ao se pensar uma questão que é responsável
Populares. Durante a década de 1940 trabalhou na diretamente pela morte de milhões de pessoas ao
fundação dos Arquivos Brasileiros de Nutrição e redor do planeta todos os anos. Quem tem fome,
da Sociedade Brasileira de Alimentação, assumiu tem urgência de ação. Josué de Castro exemplificou
como professor de Nutrição no curso de Sanitaris- essa postura durante toda sua carreira como médi-
tas do Departamento Nacional de Saúde e como co, geógrafo, político, intelectual público, professor

TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL

População na fila do Restaurante Cidadão, atual Restaurante Popular, no Rio de Janeiro

34 VERSUS, MAIO DE 2022


e ativista. Nas palavras de Tereza Campello: “Josué Ao desenharmos uma linha do tempo, obser-
dizia: é com políticas públicas que enfrentamos vamos que houve uma melhora significativa na
esse fenômeno que não é natural, é um fenômeno segurança alimentar no Brasil por um período
econômico e político. O argumento de que a fome de aproximadamente uma década, entre 2004 e
sempre foi assim é histórico”. 2014, ano que saímos do Mapa da Fome da FAO/
Traçando um paralelo com a atualidade, obser- ONU. Accioly atribui tal feito às políticas públicas
vamos a recorrência de recentes associações entre o governamentais implementadas no período, que
índice elevado de desnutrição no Brasil e a pande- reconheciam o direito humano à alimentação e à
mia do Covid-19, que atingiu o planeta com crises segurança alimentar, como o Programa Fome Zero
sanitárias e econômicas desde fins de 2019. Para a (2003), o Bolsa Família (2004), o Guia Alimentar da
professora Elizabeth Accioly, diretora do Instituto População Brasileira (2006), a Política Nacional de
de Nutrição Josué de Castro (INJC) da UFRJ, em Segurança Alimentar e Nutricional (2006), o Mais
entrevista à Versus “a obra de Josué vem sendo mui- Alimentos (2008), a inserção da alimentação como
to revisitada desde que a pandemia se instalou uma direito social na Constituição Federal (2010), den-
vez que, à sua época, ele já denunciava a fome como tre outras políticas sociais e econômicas de enfren-
um problema relacionado ao modelo político-eco- tamento à desnutrição no país. “O que se verificou
nômico das nações que sofriam desse flagelo e que após esse período foi uma piora nas condições de
não se podia responsabilizar fatores naturais como segurança alimentar da população, antes mesmo da
sendo os determinantes principais da fome. Essa pandemia que, quando chegou, foi um fator agra-
máxima de Josué nos auxilia a entender a atual situ- vante, mas não o principal. O desmantelamento de
ação. Trazendo sua obra para a contemporaneida- políticas de garantia à alimentação adequada so-
de, podemos dizer que a crise sanitária intensificou mada à crise econômica que já identificamos desde
um problema já preexistente”. 2015 são determinantes para o quadro de insegu-
rança que vemos hoje”, destaca a professora. Além
disso, pontua que o avanço do agronegócio, da
"PODEMOS DIZER QUE mineração, do desmatamento, da industrialização
da alimentação, dos conflitos agrários e dos crimes
A CRISE SANITÁRIA ambientais no Brasil agravam o cenário.
Em 2021 foi realizado o Seminário Geografia
INTENSIFICOU da Fome: 75 anos depois - Novos e velhos dilemas,
um espaço de reconhecimento e oportunidade de
UM PROBLEMA JÁ interlocução entre as contribuições de Josué e a de
pesquisadores de distintas áreas sobre o presente e
PREEXISTENTE." o futuro da alimentação no Brasil e no mundo. Ao
longo de quatro dias de evento foram debatidos te-

VERSUS, MAIO DE 2022 35


Carestia

mas como: “as interseccionalidades entre gênero,

INTERNET
raça, idade, território e as nuances da má nutri-
ção”; “implicações do modelo de desenvolvimen-
to agroindustrial nas principais crises ambientais
globais – mudanças climáticas, perda da biodiver-
sidade, disponibilidade hídrica – e na persistência
da pobreza e das desigualdades no meio rural”; “sis-
tema de produção e consumo de alimentos vigente,
desigual e excludente, responsável pela convivência
e pelo acirramento de três pandemias: a pandemia
da fome, a da obesidade e a das mudanças climá-
ticas (uma sindemia)”; “governos, produtores ru-
rais, indústria de alimentos, consumidores: quais
responsabilidades e mudanças de postura podem
Livro "Fome: Um Tema Proibido"
ser adotadas, contribuindo com sistemas alimen-
tares mais sustentáveis?”; “como as desigualdades positivos significativos. “O maior absurdo de nos-
se somam e se retroalimentam na explicação dos sa sociedade é termos deixado morrer centenas de
flagelos da pobreza e da fome como fenômenos milhões de indivíduos de fome num mundo com
políticos, sociais e econômicos no Brasil de hoje e capacidade quase infinita de aumento de produção
no Brasil que virá?” e “perspectivas e construção e que dispõe de recursos técnicos adequados à reali-
de uma narrativa para um Brasil sem fome, sem zação desse aumento. (...) Não podemos viver num
miséria e com menor desigualdade”. Campello co- mundo partilhado por 2/3 que não comem e, tendo
menta que os resultados do Seminário foram po- consciência das causas de sua fome, se revoltam, e
sitivos tanto como homenagem a Josué de Castro 1/3 que come bem – às vezes demais – mas que já
quanto como ambiente propositivo para enfrentar não dorme com medo da revolta dos 2/3 que não
a agenda da fome no Brasil. Accioly também des- comem”, as palavras de Josué de Castro soam mais
taca os recorrentes tributos promovidos pela UFRJ atuais do que nunca, ainda que ele estivesse se refe-
às efemérides de seu primeiro diretor do Instituto rindo ao mundo do século passado no livro Fome:
de Nutrição, que em 2021 também comemorou 75 um tema proibido.
anos, como forma de fortalecimento de sua memó- A atemporalidade de suas contribuições foi reco-
ria e legado. nhecida: concorreu três vezes ao Prêmio Nobel, em
Elaborar perspectivas de futuro que vislumbrem 1954 foi indicado ao Nobel de Medicina e em 1963
o fim da fome implica em considerar ações que e 1970 ao Nobel da Paz. Recebeu o Franklin Delano
Josué de Castro já propunha e que, quando apli- Roosevelt, da Academia de Ciências Políticas dos
cadas na experiência brasileira, deram resultados Estados Unidos em 1952 e o Prêmio Internacional

36 VERSUS, MAIO DE 2022


da Paz, pelo Conselho Mundial da Paz, em 1954. tárias, institutos, músicas, peças artísticas, entre ou-
No ano de 1962 foi convidado para ser embaixador tras homenagens. Sob o ponto de vista da cultura
do Brasil na ONU e foi contemplado com honrarias e da arte, Adolfo expressa que, ao produzir o filme
e prêmios em vários países, inclusive com a carteira Ciclo dos caranguejos (1994), inspirado no conto
de Cidadão do Mundo. homônimo presente no livro de ficção Homens e
Josué de Castro - Cidadão do Mundo é o título Caranguejos, procurou se aproximar da metáfora
de um dos documentários mais difundidos sobre a literária que Castro propunha: “como já havíamos
vida e o legado do médico e geógrafo que impactou falado da biografia de Josué no outro filme, a ideia
o planeta. Lançado em 1994, o filme foi dirigido por era mostrar um pouco do olhar dele. Fomos para
Silvio Tendler e produzido por Adolfo Lachterma- Recife a fim de fazer uma abordagem comparativa
cher que, em entrevista para a Versus, define que da perspectiva do jovem Josué da década de 1930
o ponto de partida para a produção da obra foi a com a situação ao final do século e como esses dois
realização da Conferência das Nações Unidas sobre tempos se comunicavam. Em seu livro, Castro ob-
o Meio Ambiente e o Desenvolvimento no Rio de servou que os restos de alimentos da população re-
Janeiro em 1992, também conhecida como Eco-92 cifense muitas vezes eram largados nos rios e chega-
ou Rio 92. O produtor afirma que, em meio aos de- vam até os manguezais, as pessoas que lá viviam se
bates sobre a situação socioambiental do mundo, o alimentavam, junto aos caranguejos, desses restos e
nome de Josué de Castro era incontornável e junto desses animais que, por sua vez, em um processo de
à sua família foi lançado um projeto para o forta- retroalimentação, comiam os restos dos humanos,
lecimento de sua memória no Brasil. “Josué teve completando o “ciclo do caranguejo””.
seus direitos políticos cassados por 10 anos a partir A provocativa imagem do homem-caranguejo
do golpe militar de 1964 e foi exilado na França. Lá marcou a cena das artes em outras expressões de
atuou como professor e foi bastante reconhecido, peso, como o espetáculo de dança Cão sem Plumas
entretanto, ele tinha a vontade de voltar para o Bra- da Companhia de Dança Deborah Colker e o mo-
sil, o que nunca conseguiu. Josué morreu em 1973, vimento manguebeat liderado por Chico Science,
em Paris, aguardando seu passaporte chegar para por exemplo. A perspectiva literária-artística é parte
voltar ao país natal. Seu nome e sua obra dificilmen- da construção do pensamento de Josué de Castro,
te circulavam por aqui devido a censura, porém na que dedicou sua principal obra à Rachel de Queiroz
década de 1990 surgiu a oportunidade de voltar a e a José Américo de Almeida, escritores da fome no
falar sobre ele, no documentário abordamos bas- Brasil. Esse artifício revela uma abordagem ímpar
tante essa questão”, comenta. da fome não apenas como um problema artificial-
Nas últimas décadas, a memória e a produção mente moldado política e socioeconomicamente,
de Josué ecoam sob diferentes signos e significa- mas também como uma dor palpável e injustiça
dos, como um clássico que sempre tem o que dizer. inaceitável. “O povo daí vive de pegar caranguejo,
Hoje seu nome está em escolas, cátedras universi- chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos

VERSUS, MAIO DE 2022 37


Carestia

até que fiquem limpos como um copo e com sua mentar”, conceito elaborado por Castro, é pressupor
carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a do o fim das monoculturas agrícolas e de pensamento,
corpo de seus filhos. São duzentos mil indivíduos, o fim do agronegócio, da lógica de produtividade
duzentos mil cidadãos feitos de carne de carangue- industrial sem limite, do lucro sobre a dignidade
jos. O que o organismo rejeita volta como detrito humana, é entender que é preciso voltar à terra, ao
para a lama do mangue para virar caranguejo outra seu ritmo e sua diversidade. Assim, é possível elabo-
vez. Nesta aparente placidez do charco desenrola-se rar políticas públicas eficazes que garantam o equi-
trágico e silencioso o ciclo do caranguejo. O ciclo da líbrio ambiental e humano, rompendo a falsa hie-
fome devorando os homens e os caranguejos todos rarquização imposta pelo capitalismo moderno. A
atolados na lama” (CASTRO, 1967, p. 28-9). concentração de renda e terra, apontadas por Josué
Desde as análises geográficas e sociológicas, até o como uma das grandes causas da fome, nos levarão
ativismo político e a veia literária, Josué de Castro e ao fim que precisamos adiar através da demarcação
sua obra são incontornáveis ao pensarmos um pro- de terras indígenas e tradicionais, da reforma agrá-
jeto de país que parte da perspectiva do seu chão, da ria, de políticas voltadas para o fomento à agroeco-
lama, para construir um futuro socialmente justo e logia, à agricultura familiar, à recuperação de áreas
livre da fome, a pior de todas as doenças. Para isso, é degradadas e das águas, ao saneamento básico, à
preciso oportunizar que as pessoas e os saberes dos assistência social, à educação ambiental e seguran-
povos originários, quilombolas, ribeirinhos, favela- ça alimentar, ao combate às mudanças climáticas e
dos, de rua, da floresta, dos mangues e dos sertões, aos crimes ambientais, além de um compromisso
aqueles que sentem na pele os flagelos da má nu- com o direito à qualidade de vida das pessoas e do
trição, desnutrição e destruição ambiental, sejam planeta.
postos no centro do debate e das decisões aliados O legado de Josué de Castro reverbera e apon-
ao conhecimento científico. Pensar em tecnologias ta caminhos. Que possamos aprender a andar por
e maneiras de driblar a miséria e a “monotonia ali- eles, sem voltar atrás.

Encontrei o cidadão do mundo no manguezal da beira do rio - Josué!


Chico Science & Nação Zumbi, O Cidadão do Mundo, 1994.

Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça


INSTITUTO DE NUTRIÇÃO DA UFRJ

Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça


Peguei um balaio, fui na feira roubar tomate e cebola
Ia passando uma velha e pegou a minha cenoura
Aê minha véia, deixa a cenoura aqui
Com a barriga vazia não consigo dormir
E com o bucho mais cheio, comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar!
Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos, 1996.

Josué de Castro

38 VERSUS, MAIO DE 2022


ANA LUIZA COPLE

Obra produzida no laboratório


da professora Ana Luiza Cople

#VERSUSimagem
PEDRO SÁNCHEZ1

Em março de 2020, impossibilitado de frequen- em parceria com estes, edições de obras gráficas.
tar seu ateliê, João Sánchez lançou mão dos mate- “Durante o período de restrição da mobilidade,
riais que tinha em sua casa e iniciou uma pesquisa fiquei sem acesso ao meu ateliê, às ferramentas
em busca de meios alternativos de impressão que o e equipamentos. Todos os projetos foram inter-
levou ao desenvolvimento da técnica que ele veio a rompidos ou cancelados e a falta de perspectiva se
chamar de "vitrografia". Desde 2011, após retornar apoderou de todos. Tratei então de continuar meu
de uma vivência de 5 anos em Madri, João criou e trabalho de investigação com os escassos materiais
vem atuando no Estúdio Baren, onde recebe artis- que tinha à mão”, conta o artista.
tas atuantes nos mais variados meios e desenvolve, A vitrografia é uma vertente alternativa da tra-

VERSUS, MAIO DE 2022 39


#VERSUSIMAGEM

dicional litografia criada pelo suíço Aloys Sene- A resposta veio com uma pesquisa coletiva, le-
felder em 1798 e que, ao longo do século seguin- vada adiante ao longo dos períodos letivos subse-
te, popularizou-se em todos os continentes como quentes. Partindo da obra da artista-pesquisadora
uma técnica moderna, ágil, extremante versátil e Emilie Aizier, com quem entrou em contato, e fun-
economicamente interessante de reprodução de damentando-se na cultura DIY ("do it yourself"),
imagens2. Nas palavras de Walter Benjamin, no seu Ana Luisa e suas turmas desenvolveram a técnica
ainda impactante artigo, A obra de arte na era de da "litografia de cozinha", ou "kitchen lithography",
sua reprodutibilidade técnica, esse procedimento um conjunto de procedimentos alternativos, de
"permitiu às artes gráficas pela primeira vez colo- guerrilha, que se fundamentam no mesmo princí-
car no mercado suas produções não somente em pio bicentenário e revolucionário da litografia, ob-
massa, como já acontecia antes, mas também sob a tendo imagens multiplicáveis a partir de materiais
forma de criações sempre novas" 3. como papel alumínio, Coca-Cola, vinagre, sabão
Enquanto João Sánchez obtinha seus primeiros de coco e ferramentas manufaturadas a partir de
resultados positivos em suas experimentações nas rolos de espuma, manoplas de bicicleta e cabides de
placas de vidro granitado, testando diversos mate- roupa. “Dadas as circunstâncias de uma disciplina
riais para obter uma imagem capaz de ser entinta- prática cujo pensamento é desenvolvido a partir
da com tinta a base de óleo e tornar a matriz hidró- de experiência em ateliê, buscamos alternativas de
fila, ou seja, receptiva à água, passando a convidar criação gráfica com materiais e recursos passíveis
artistas para testarem e expandirem os limites do de obtenção no ambiente doméstico”, relata.
procedimento, em agosto daquele primeiro ano de As imagens reunidas na Galeria da edição nú-
pandemia, iniciava-se finalmente o período letivo mero 9 da Revista Versus, além de reproduzirem
na UFRJ. No momento em que toda a comunidade obras elaboradas por artistas colaboradores do
universitária começava a encarar o desafio de adap- Estúdio Baren e estudantes da EBA, apresentam
tar-se a uma nova realidade — isolada e remota—, etapas do processo criativo das pesquisas desenvol-
Ana Luisa Cople, artista visual e professora subs- vidas por João Sánchez e Ana Luisa Cople diante
tituta responsável pelas disciplinas de litografia do do desafio do isolamento trazido pela pandemia.
curso de Artes Visuais — Gravura da Escola de Be- Revelam também que isso que demos o nome de
las Artes, interpretava esse desafio em sua própria arte é — sempre foi — não apenas uma atividade
realidade: como reproduzir as condições de traba- coletiva, fruto da ação colaborativa de uma série de
lho criativas e pedagógicas encontradas nos ateliês agentes, como também uma ação simbólica, capaz
e laboratórios da universidade dentro de casa — a de mudar a realidade do mundo e de nós mesmos.
sua e a de seus estudantes?

1 Professor Associado do curso de Artes Visuais – Gravura da Escola de Belas Artes


2 O procedimento desenvolvido por Senefelder revolucionou a história das técnicas de reprodução imagética ao apresentar a
gravação química, planar, como alternativa à gravação física da matriz. Utilizou a pedra calcária, mas também chapas de zinco e,
logo, de alumínio, como suporte e fundamentava-se na incompatibilidade entre água e gordura.
3 BENJAMIN, Walter, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

40 VERSUS, MAIO DE 2022


VITOR BOKEL

Antonio Bokel, Vitografia desenvolvida


no Estúdio Baren, 2021. 97 x 65 cm

VERSUS, MAIO DE 2022 41


#VERSUSIMAGEM

MATEU VELASCO

Mateu Velasco, Vitografia desenvolvida


no Estúdio Baren, 2021. 80 x 50 cm

42 VERSUS, MAIO DE 2022


Matriz, Vitografia do Estúdio
Baren, 2021.

JOÃO SÁNCHEZ

VERSUS, MAIO DE 2022 43


#VERSUSIMAGEM

MARCELO MACEDO

Marcelo Macedo, Vitografia desenvolvida


no Estúdio Baren, 2021. XX x XX cm

44 VERSUS, MAIO DE 2022


Matriz, Vitografia do Estúdio
Baren, 2021.
JOÃO SÁNCHEZ

VERSUS, MAIO DE 2022 45


#VERSUSIMAGEM

ANA LUIZA COPLE

Ana Luiza Cople, Litografia de


cozinha, 2021. 30 x 20 cm

46 VERSUS, MAIO DE 2022


LUIANE AMORIM

Luiane Amorim, Litografia de


cozinha, 2021. 30 x 20 cm

VERSUS, MAIO DE 2022 47


#VERSUSIMAGEM

OTTO DRUMOND

Otto Drumond, Litografia de


cozinha, 2021. 30 x 20 cm

48 VERSUS, MAIO DE 2022


LÍVIA MACIEIRA

Lívia Macieira, Litografia de cozinha,


2021. 30 x 20 cm

VERSUS, MAIO DE 2022 49


#VERSUSIMAGEM

ANA LUIZA COPLE

Ana Luiza Cople, Litografia de


cozinha, 2021. 30 x 20 cm

50 VERSUS, MAIO DE 2022


O controle das epidemias na
cidade carioca no século XIX
Fania Fridman
Carlos Henrique Ferreira Pág. 52
As bibliotecas na pandemia:
sobrevivência e criatividade
Paula Mello
Leila Dahia Pág. 58
Por mais ciência nos tribunais:
a atuação do GREAT durante a
pandemia
Isabela Coimbra Carlim Pág. 65
Reflexos da pandemia no financiamento
do déficit fiscal brasileiro
Margarida Gutierrez Pág. 68
Antonio Licha

Covid-19, meio ambiente e políticas


públicas: reflexões para o
pós-pandemia
João Felippe Cury Pág. 71

Curricularização, pandemia e a
internacionalização da Extensão
Sandra Becker
Danielle Costa da Silva Pág. 74

A FACC e a Pandemia da COVID-19:


vivências e aprendizados
Maria Cecília Chaves Pág. 77

Não há tristeza que possa suportar


tanta alegria
Júlia Arruda Figueredo Pág. 84

ADUFRJ
FERNANDO SOUZA / ADUFRJ
Versus Acadêmica

O controle das epidemias


na cidade carioca no
século XIX1
Fania Fridman2
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Jr.3

Ao longo da história da cidade e, so- Com a comparação das propostas e


bretudo no século XIX, epidemias de medidas implementadas no Rio de Janei-
proporções consideráveis assolaram o ro no período compreendido entre as dé-
Rio de Janeiro. A repercussão dos danos cadas1850 e 1860, apontamos para as nu-
causados e a preocupação com a saúde da ançadas perspectivas adotadas pelas duas
população tornaram as enfermidades ob- vertentes. O arrolamento encontra-se
jeto de estudo e de ação e, como até hoje, baseado em publicações representativas
de disputa político-ideológica no Estado. dos ideais do socialismo romântico edita-
Resgatamos aqui duas linhas de pensa- das no período de acordo com Fridman
mento que se entrelaçam e que propu- (2017)e na recuperação das ideias do 2.º
seram erradicar ou mitigar os efeitos das Barão do Lavradio(Rego, 1872).
recorrentes moléstias. A primeira delas,
está nas proposições dos socialistas ro- Socialismo romântico à brasilei-
mânticos, militantes presentes na cidade ra da década 1840 aos anos 1860
desde a década de 1840. A segunda de- No segundo quartel do Oitocentos, a
lineia-se a partir do trabalho do médico modernidade na Europa ensejou a crítica
José Pereira Rego, personagem que veio de socialistas à civilização capitalista. Tra-
a ocupar importantes cargos influencian- tava-se de uma evocação ao tempo pré-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

do as ações públicas no enfrentamento -capitalista e a um futuro com progresso


das doenças. político e econômico. Este socialismo

1 Este artigo é uma versão de nosso trabalho publicado em uma coletânea (Almico; Goodwin Jr.; Saraiva, 2020)
reunindo reflexões sobre economia, história e pandemias elaboradas no contexto das medidas de isolamento
impostas para conter a pandemia de COVID-19.
2 Professora titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ. e-mail: fania@ippur.ufrj.
br
3 Doutor em Planejamento Urbano e Regional, advogado e pesquisador associado do Instituto de Pesquisa Eco-
nômica Aplicada – IPEA. e-mail: carloshenrique@alu.ufc.br 52
teve seu sentido conferido pelo movi- Uma característica importante deste
mento romântico(Lowy; Sayre, 2015). pensamento encontrava-se na escala das
Seus militantes argumentavam que além intervenções: a reestruturação total das
de avanços civilizatórios a modernidade cidades em um “plano de conjunto”, inau-
trazia sofrimento. gurando a perspectiva de harmonizar o
Um de seus mais importantes pen- território levando em conta as demandas
sadores foi Charles Fourier que, em sua da população. Por exemplo, O Globo,
crítica ao capitalismo, apontava a cida- órgão de representação dos simpatizan-
de industrial como epicentro das graves tes socialistas, trazia a recomendação de
dificuldades sociais. Recomendava sua um “plano de organização para as vilas
extinção e a organização de falanstérios. que (os novos habitantes) devem povoar”
Seu discípulo dileto, Victor Considerant, antes da implementação da política de
pregava um socialismo para superar as imigração (O Globo, 13/10/1844, p. 2). O
precárias condições de vida das popula- jornal manifestava-se contra a escravidão,
ções urbanas realizando o cristianismo e a favor do descanso aos domingos e da
através da “verdadeira higiene” com a eli- igualdade entre mulheres e homens.
minação do lixo, dos cafés e das casas de Nossas cidades insalubres, nos-
jogos aliada à limpeza das ruas, ao con- sas aldeias, nossas vilas serão subs-
forto e à estética. O cristianismo incluiria tituídas pelas salubres e suntuosas
também a abolição da escravatura. Entre moradas discutidas pelo gênio
os socialistas românticos estava Pierre de Fourier. Este palácio fornecerá
Leroux que fundou e dirigiu o LeGlobe, todo o necessário e ainda o ar, a
órgão dos sainsimonianos, no qual mili- água pura, a luz, o calor, conforme
tava pela não sujeição das mulheres aos o gosto de cada um [...] (O Globo,
homens, dos estrangeiros aos nacionais e 13/10/1844, pp.3-4).
dos proletários aos burgueses. O Socialista da Província do Rio de Ja-
Os seus seguidores no Brasil propuse- neiro, editado desde agosto de 1845 pelo
ram ações para transformação social na médico francês Benoit Mure era uma
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cidade carioca em meados do século XIX. gazeta que se manifestava a favor do fim
Face às epidemias, uma constante que assumia da escravidão, da demarcação das terras
contornos dramáticos com as elevadas taxas de indígenas, da conservação (com refor-
mortalidade, sugeriam medidas de “higiene” mas) da monarquia constitucional para
para mitigar os efeitos das doenças. a estabilidade política, e da homeopatia

53 4 Chegado ao Rio de Janeiro após a fracassada experiência do Falanstério de Saí, considerada a primeira experi-
ência socialista romântica no país.
Versus Acadêmica
em favor dos despossuídos. No primei- fico das Ciências da Saúde no Brasil).
ro número, o socialismo foi interpretado A Nova Minerva além de apoiar e vei-
como “introdução de novidade no pro- cular os benefícios da homeopatia, posi-
gresso universal [...] quer na parte moral, cionava-se criticamente quanto ao uso de
quer na material,[...] seu fim é ensinar aos violência contra os indivíduos no contro-
homens a se amarem uns aos outros” (O le das epidemias. Essa prática baseava-se
Socialista da Província do Rio de Janeiro, na ideia de que os pobres eram respon-
01/08/1845 apud Rodrigues, 1996, p.3) sáveis por sua condição e pela sujeira em
mantendo o que houvesse de bom e me- que viviam, propiciando a propagação de
lhorando o insuficiente. moléstias. A folha considerava ser dever
Mure em conjunto com Manuel Gas- do Estado socorrer o “homem laborioso”
par de Siqueira Rego, João Vicente Mar- estabelecendo uma junta de caridade e
tins e Edmond Tiberghien, declarados
beneficência em cada freguesia da cidade.
“discípulos veneradores de Fourier”,
De outras publicações extraímos de-
abriram em 1844 o primeiro dispensário
núncias das más condições sanitárias e
homeopático. No ano seguinte fundaram
de medidas a tomar. Como exemplos, O
o Instituto Homeopático do Brasil, cujo
Compilador (17/05/1852) trazia que a si-
periódico, O Hahnemannista, defendia
tuação da cidade “não é infelizmente qual
além da homeopatia, preceitos como ba-
seria de desejar” e o semanário A Abelha
nhos, ar puro, casas construídas acima
apontava para a necessidade de fiscaliza-
do nível do solo, expostas ao vento leste
ção dos estabelecimentos industriais
e com aberturas para entrada da luz (O
Hahnemannista, 17/09/1846, pp.1-2). Polícia e intervenção em José
Em fevereiro de 1850, quando a epidemia Pereira Rego
da febre amarela assolava a cidade, João José Pereira Rego, o segundo Barão do
Vicente Martins se dirigiu à Câmara dos Lavradio, médico e importante agente
Deputados oferecendo medicamentos público, no seu Esboço histórico das epi-
homeopáticos para tratamento dos males demias que tem grassado na cidade do
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que afligiam a população e propondo a Rio de Janeiro desde 1830 a 1870 levanta
criação de hospitais onde estes pudessem os dados das enfermidades surgidas na
ser administrados. Chegou a ser ameaça- urbe e critica as ações implantadas. Neste
do de deportação por sua crítica à medi- inventário (ver tabela abaixo), das 40 epi-
cina alopática e insistência na adoção da demias, 22 ocorreram na década de 1850
homeopatia (Dicionário histórico biográ- e outras 18 no decênio seguinte.
54
Observações: Tabela elaborada a partir da pág. 172 de Rego (1872) e demais dados contidos na obra.
*As doenças inseridas nesta coluna referem-se àquelas consideradas como causas prevalecentes das mortes no
respectivo ano; **No original há um erro de impressão, pois a soma indicada é 92.955.

A febre amarela e o cólera-morbo eram Ainda que melhoramentos tivessem


as que mais vitimavam a população, mas sido verificados nas décadas de 1850 e
a varíola, diarreia, difteria, tuberculose, 1860, culpava a falta de “execução me-
sarampo e as gripes também afligiam a tódica” das obras, tanto públicas como
população. Comparando os dois decê- particulares. Apesar da Câmara ordenar
nios, Rego afirmou que a mortalidade o aterro dos mangues e baixios, como
era elevada decorrente dos “miasmas”, aqueles da Cidade Nova, as “imundícias”
“mal tempo”, más condições sanitárias e eram cobertas apenas com um palmo de
do comércio de escravos que propagavam camada de terra. “Desmoralizada” para
as moléstias. Denunciava a falta de uma fazer valer a lei, aquela assembleia tam-
polícia sanitária para barrar a importação de pouco exigia o cumprimento de regras
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

“elementos patogênicos” da Costa da África para aterros particulares quando da aber-


e culpava também os hábitos alimentares tura de ruas.
da população mais pobre, como o abuso no Os cortiços podiam ser comparados
consumo de pinhões, amendoins, “o célebre a “verdadeiras pocilgas”. Para alojar imi-
angu com dendê”, pimenta da Índia e da Cos- grantes, sua construção sempre nos “lu-
ta da África e camarões (Rego, 1872, p. 181). gares mais insalubres” e as habitações
55
Versus Acadêmica
“mais pareciam ranchos para guardar localidade e as atuações violentas contra
animais”(Rego, idem, p. 201). No rol das os pobres.
más práticas, também difundiu a lerdeza Rego também divisava a necessidade
na execução das valas que, abandonadas de melhoramentos para a cidade, entre-
por muito tempo, logo enchiam-sede tanto compreendia que, excluída a execu-
água podre, excrementos e lixo lançados ção das redes de água e esgotos, era papel
pela população. Entre os pontos positi- dos particulares edificarem prédios con-
vos, destacou o fim dos enterros nas igre- forme as diretrizes normativas. Elogiava
jas e o hospital de quarentena extramuros a ocupação dos morros como o de Santa
que traria segurança para a tripulação dos Teresa, com boas casas e ruas calçadas
navios mercantes estrangeiros. Incluiu além de “esgotos apropriados”. No entan-
ainda o estabelecimento das repartições to, noticiava os problemas de alagamento
de saúde e da polícia sanitária voltadas ao que essas mesmas ocupações começavam
controle da atividade médica e às postu- a causar, por exemplo, nas ruas do Catete,
ras relativas à “higiene”. dos Arcos e do Rezende.
O barão de Lavradio, quando vereador
Para concluir
(1865-1868), redigiu um projeto de pos-
É possível divisar nas duas linhas de
turas para uniformizar a arquitetura das pensamento -uma expressa pelo socialis-
casas, cujos modelos seriam fornecidos mo romântico e aquela representada pela
pela Câmara, e para impedir a construção figura de José Pereira Rego - que ambas
de cortiços na Cidade Velha. Apesar de defendiam a necessidade de intervenções
arquivado, tornou-se uma das bases do estruturais na cidade e da adoção de me-
Relatório da Junta de Higiene Pública na didas de higiene além do tratamento dos
sua presidência (1864-1881).Esta insti- doentes. As diferenças estão na sua abor-
tuição baseava-se no primado da relação dagem dos problemas.
direta entre insalubridade das habitações, Os socialistas românticos propugna-
imundície do meio ambiente, inexistên- vam pela construção de uma sociedade
cia de redes de água potável, de esgoto mais justa, igualitária e republicana, sem
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e de coleta regular de lixo, desnutrição e escravos, com intervenções através da


as doenças. Associando as carências de formulação de um “plano de conjunto”
toda a sorte com sujeira e enfermidade, para a cidade. Reconhecendo que as clas-
responsabilizava os indivíduos pelas ca- ses trabalhadoras não tinham condições
lamidades, justificando assim a fiscali- de superar sozinhas a pobreza e as más
zação das condições sanitárias de cada condições sanitárias das moradias e lo-
56
cais de trabalho, requeriam ações mais ção contra o contágio e para a preserva-
contundentes das autoridades. ção da vida.
Ante ao insucesso das intervenções
oficiais, a reação dos agentes do Estado Referências
Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da
representados pela figura do Barão de
Saúde no Brasil (1832-1930)
Lavradio, previa o reforço do que hoje é Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz. Disponível em:
entendido como poder de polícia em suas <www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br> acesso em: 12

duas acepções: a polícia administrativa, nov 2016.


Fridman, Fania. Socialismo romântico e a cidade do
voltada à regulação das atividades de par- Rio de Janeiro. Revista do Arquivo Geral da Cidade do
ticulares, e a polícia judiciária, repressora Rio de Janeiro, n.12, agosto 2017.
de práticas criminosas. Rego via, na inép- Fridman, Fania; Ferreira Jr., Carlos H. Epidemias
e ordem pública: a cidade do Rio de Janeiro no século
cia das autoridades em fazer cumprir as
XIX. In Almico, Rita; Goodwin Jr., James; Saraiva, Luiz.
posturas, o principal problema. Cobrava Na saúde e na doença. Hostória, crises e epidemias. Re-
o respeito à ordem pública prescrita pelos flexões da História Econômica na época da Covid-19.
São Paulo: Hucitec Editora, 2020.
representantes do governo, desrespeita-
Lowy, Michel.;Sayre, Robert. Revolta e melancolia.
da até mesmo pela Câmara Municipal. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015 [1992].
Os particulares e a população em geral Rego, José Pereira. Esboço Histórico das Epidemias
que tem grassado na Cidade do Rio de Janeiro desde
também eram alvo de suas queixas. Ele
1830 a 1870. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1872.
defendia que os empreendimentos e as Rodrigues, E. Pequena história da imprensa social
práticas sociais deveriam ser enquadra- no Brasil. Comunicação Comunitária, 1996. Disponível

dos nos preceitos recomendados pelas em: <www.portalgens.com.br/comcom/textos.htm>.


Acesso em: 11 fev. 2012.
polícias sanitária e administrativa.
As duas perspectivas traçam um para- Fontes consultadas
lelo importante com as dificuldades atu- Biblioteca Nacional
ais em lidar coma Covid-19. Ainda per- Periódico microfilmado: O Hahnemannista (1846)
- PR-SUR 00750;
sistem as disparidades sociais e espaciais
Hemeroteca Digital:Disponível em: <http://bndi-
na cidade carioca que contribuem para o gital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.A Nova Minerva
agravamento dos efeitos da pandemia. Os (1845-1847); O Globo (1852-1854); O Compilador
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

(1852-1853); A Abelha (1856).


mais pobres, com suas frágeis moradias
situadas em locais sem instalações sani-
tárias adequadas, continuam com baixos
salários, péssimas condições de trabalho e
alijados do acesso a um sistema de saúde
adequado, um agravante para a preven-
57
Versus Acadêmica

As bibliotecas na pandemia:
sobrevivência e criatividade
Paula Mello1
Leila Dahia2

As bibliotecas universitárias são fun-


damentais para o desenvolvimento do
ensino, da pesquisa e da extensão. Cum-
prem o seu papel acadêmico oferecendo
à UFRJ locais de aprendizagem, acolhi-
mento, cultura e cidadania. A pandemia
de Covid-19 provocou alterações radicais
no funcionamento das bibliotecas do O primeiro instrumento orientador
mundo inteiro e na UFRJ não foi dife- para as bibliotecas foi escrito em maio de
rente. Tradicionalmente presenciais, pas- 2020: um Guia com orientações e proto-
saram a incrementar e a desenvolver ser- colos para cuidados pessoais com acervo,
viços e produtos digitais além de utilizar ambientes de trabalho e recomendações
meios de comunicação na internet para para um possível retorno presencial ba-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

manter o vínculo com as comunidades seado em documentos publicados em


que atendem. Portugal, Inglaterra e Estados Unidos

1 Coordenadora do Sistema de Bibliotecas e Informação - SiBI/UFRJ


2 Diretora da Divisão de Desenvolvimento de Bibliotecas - DDB/SiBI/UFRJ
3 MELLO, Paula Maria Abrantes Cotta de. Orientações gerais para a reabertura das Bibliotecas da UFRJ. 2020.
Documento revisado pelas bibliotecas integrantes do SiBI. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1rxZN-
DG_GRT3hISD-wV-k_tGtcr4yuQRU/view. Acesso em: 23 fev. 2022. 58
4 Grupo de Trabalho Multidisciplinar para Enfrentamento à Pandemia de COVID-19 da UFRJ
por associações de bibliotecas. Com suas catálogo coletivo das bibliotecas da UFRJ,
variações, altos e baixos, o documento manteve um alto índice de consultas.
digital tem sido atualizado e faz parte do
repositório de documentos sobre proto-
colos da UFRJ, criado pelo GT Pós-pan-
demia .
No exterior também achavam que se-
ria algo passageiro, porém prolongou-se,
fazendo com que as instituições se organi-
zassem para manterem-se ativas. A UFRJ
foi protagonista e dinâmica formando
grupos de especialistas para estudos per-
manentes sobre a Covid4 , e grupos de
Fonte: UFRJ/SIBI/DDB/BAGER 2016-2021
trabalho pós pandemia na produção de
documentos com base científica que fo- O Pantheon6, repositório institucional
ram e ainda são norteadores de conduta. da UFRJ tornou- se uma importante fon-
Além disso, haviam sucessivos ofícios e te de pesquisa contabilizando 828.414 vi-
normativas que o governo federal enviava sualizações em 2020 e 837.474 visualiza-
à Universidade que nos moviam a deba- ções em 2021. (Fonte: UFRJ/SIBI/DDB/
ter e estabelecer as regras internas.5 BAGER 2020)
Com os serviços presenciais suspen- Durante 2020 houve um grande in-
sos, rapidamente, o Sistema de Bibliote- vestimento do pessoal em qualificação
cas e Informação - SiBI e a maioria das e aquisição de competências no uso de
bibliotecas atentaram para a necessidade softwares, produção de conteúdo na in-
de manter o vínculo com seus usuários, ternet, elaboração e manutenção de sites
uma vez que as aulas estavam suspensas. e podcasts - que seriam as ferramentas de
Já seria por demais penoso aos alunos não comunicação na internet. Também foram
terem acesso aos acervos, então teríamos realizados cerca de 1.085 cursos e eventos
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

que ser criativos e ágeis. A Base Minerva, pertinentes em 2021, que podem ser ob-

5 UFRJ. (org.). Plano de contingência para enfrentamento da pandemia de covid-19 no âmbito da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro. 2021. Aprovação e ativação do Plano de Contingência: Denise Pires de Carvalho e
Carlos Frederico Leão Rocha; Coordenação Técnica: Alexandre Barbosa de Oliveira. Disponível em: https://prefei-
tura.ufrj.br/images/_prefeitura/Plano_de_Contingencia_COVID-19_-_UFRJ_-_v_1.4.pdf. Acesso em: 23 fev. 2022.
6 “O Pantheon, repositório institucional da UFRJ, tem o objetivo de coletar, preservar e divulgar a produção
acadêmica digital da universidade. São os ativos do repositório, além de teses e dissertações da UFRJ, Trabalhos de
Conclusão de Curso de Graduação, Trabalhos de Conclusão de Curso de Especialização, artigos científicos, livros
eletrônicos, capítulos de livros e trabalhos apresentados em eventos por professores, pesquisadores, funcionários
59 administrativos e alunos de mestrado e doutorado.” UFRJ/SiBI (org.). Pantheon. 2021. Disponível em: http://www.
sibi.ufrj.br/index.php/inicio/524-pantheon-repositorio-institucional-da-ufrj. Acesso em: 23 fev. 2022.
Versus Acadêmica
servados no quadro a seguir, incluindo -dados-menu/sibi-em-numeros-menu
2016 com a finalidade de mostrar o que Os canais de comunicação utilizados
todos constataram: a participação remota foram WhatsApp, e-mail, Twitter, Fa-
sem deslocamentos, e na maioria das ve- cebook e Instagram. A pesquisa biblio-
zes sem custos, facilitou a realização dos gráfica, a catalogação, a inserção de do-
cursos e eventos aumentando considera- cumentos no Pantheon, a qualificação
velmente a audiência. dos registros na Base Minerva, foram os
serviços técnicos mais praticados pelas
bibliotecas. A atividade remota foi incre-
mentada e incorporou-se às boas práticas.

Fonte: UFRJ/SiBI/DDB/BAGER 2020

Com as bibliotecas funcionando remo-


tamente, foi necessário suspender tem-
porariamente o serviço de empréstimo
domiciliar e as devoluções agendadas no
período. Foram mantidos os serviços de
pesquisa, normalização, nada consta, en-
tre outros. A análise estatística das ativi-
dades mostrou que em 2020 o número de
atendimentos ao usuário de forma remo-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

ta foi de 37.352 e em 2021, com a grande


maioria das equipes bibliotecárias capaci-
tadas nas ferramentas de telecomunica-
ção, passou para 113.852. As atividades
podem ser consultadas em https://www.
sibi.ufrj.br/index.php/o-sibi/gestao-de-
60
Foi difícil manter a motivação dos
profissionais diante da situação mundial
que nos encontrávamos, ao ritmo da
pandemia e suas graves consequências,
das dores sofridas com perdas de pessoas
próximas, pela própria experiência com a
doença e o forçado isolamento social.
O Programa realizado anualmente
pelo SiBI, denominado Mapeamento de
Competências e desenvolvido pela Divi-
são de Desenvolvimento de Bibliotecas,
DDB, foi muito útil porque ali estão re-
gistrados sugestões, anseios, projetos de
todos os servidores das bibliotecas. Uma
das atividades sugeridas e motivadoras
foram as Rodas de Conversa7 onde pu-
demos tratar de temas de interesse atuais
além de convidar colegas do SiBI e pro-
fissionais de outras instituições para uma
enriquecedora troca de conhecimento.
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

7 Transmissão online através do canal do Forum de Ciência e Cultura no Youtube: https://www.youtube.com/c/


F%C3%B3rumdeCi%C3%AAnciaeCulturadaUFRJ/videos.
Em 2022 será lançada a terceira edição no formato híbrido. Em 2020 e 2021 foram realizadas 9 Rodas de Conversa.
eletrônicos, capítulos de livros e trabalhos apresentados em eventos por professores, pesquisadores, funcionários
administrativos e alunos de mestrado e doutorado.” UFRJ/SiBI (org.). Pantheon. 2021. Disponível em: http://www.
61
sibi.ufrj.br/index.php/inicio/524-pantheon-repositorio-institucional-da-ufrj. Acesso em: 23 fev. 2022.
Versus Acadêmica
Como política de desenvolvimento de bibliografias das disciplinas. Neste contex-
coleções na pandemia, decidiu-se prio- to, surgem as exigências de habilidades e
rizar a aquisição de livros eletrônicos, no competência informacional dos profissio-
modelo de assinatura perpétua - apesar nais das bibliotecas além da necessidade
das dificuldades orçamentárias atuais da de capacitar alunos e professores para
UFRJ – pois a instituição organizou-se usarem adequadamente os recursos das
para realizar aulas remotas sob platafor- plataformas, que são muitos e apresen-
ma EaD, acrescidas a outros recursos tam muitas diferenças entre si.
ofertados pela internet como o Google Nesse período, a DDB em parceria com
Meet. Essa assinatura contempla livros o Centro Referencial do SiBI, fizeram um
eletrônicos citados em bibliografias de levantamento para o BAGER, Base de
cursos de graduação e pós-graduação, Dados Gerenciais do SiBI8 , com o obje-
contribuindo para a oferta de títulos em tivo de identificar o status das bibliotecas
português, ainda limitados no mercado em relação ao uso de mídias e recursos de
nacional. Foi realizada ampla divulga- comunicação da internet.
ção dos títulos e cada biblioteca passou Resumidamente, os resultados de-
a orientar seus usuários. Essa aquisição monstraram o seguinte panorama:
é somada ao acervo eletrônico existente,
apresentando uma coleção de 35.742 li- CANAIS DE COMUNICAÇÃO
vros eletrônicos na UFRJ. DIGITAIS
O SiBI iniciou a aquisição de livros
eletrônicos em 2007, ação protagonista
no cenário das bibliotecas universitárias
brasileiras, seguindo na política de in-
crementar as coleções digitais, limitada
apenas pelas restrições orçamentárias. A
UFRJ incorpora o uso efetivo dessas cole-
Algumas bibliotecas não têm suporte
ções no ensino e na pesquisa, atualizando na unidade para desenvolver um site e
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

suas bibliografias básicas e introduzindo tampouco equipe suficiente para mantê-


essa modalidade bibliográfica em suas -lo. Outras, que correspondem a 39,4%
atividades didáticas e de pesquisa. Hou- do conjunto, têm as informações da bi-
ve uma flexibilização do MEC/INEP que blioteca inseridas no Menu do site da
permitiu a inclusão de livros digitais nas unidade.

8 Mecanismo de coleta de dados estatísticos sobre as 44 bibliotecas e 1 centro de documentação da UFRJ, atualiza- 62
do semestralmente, tornando-se estratégico na gestão do SiBI.
YOUTUBE Esse resultado foi importante para
A criação de canais no Youtube tem comprovar que as mídias sociais e canais
sido fundamental para as bibliotecas re- na internet são eficientes, como ferra-
alizarem treinamentos, divulgar tutoriais, mentas definitivamente incorporadas às
entrevistas e lives. Algumas unidades e boas práticas das bibliotecas.
centros também compartilham seus ca- Estamos trabalhando no modelo hí-
nais com as bibliotecas. brido mas com muita esperança na volta
plena ao presencial, ao retorno da comu-
nidade acadêmica aos campi, às bibliote-
cas. Há diferentes cenários, experiências
e práticas que estão sendo construídas
pelas bibliotecas para a retomada de ser-
viços, ações e programações culturais. O
conhecimento sobre a instituição, sobre
o ensino e a pesquisa desenvolvidos na
INSTAGRAM
UFRJ são fundamentais para o planeja-
O Instagram já é utilizado pela maioria
mento que objetiva eficiência e eficácia,
das bibliotecas. Tem sido um aliado efi-
as bibliotecas sendo pró-ativas, vislum-
ciente na comunicação.
brando cenários potenciais e traçando
estratégias para aperfeiçoar os serviços de
informação. A liderança do bibliotecário
é indispensável para essa articulação, ma-
peamento de problemas e definição das
melhores resoluções.

REFERÊNCIAS
(COVID-19), Grupo de Trabalho Sobre O Pós-
-Pandemia Coronavirus Disease 19; FARIA, Maria de
Fátima Bruno de (org.). Diretrizes para o retorno gra-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

dativo presencial na UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 2021.


57 p. Disponível em: https://www.iq.ufrj.br/arqui-
vos/2021/11/Diretrizes-para-o-retorno-gradativo-pre-
sencial-na-UFRJ.pdf. Acesso em: 23 fev. 2022.
GRUPO DE TRABALHO PARA PLANEJAMEN-
TO DO RETORNO GRADUAL DAS ATIVIDADES
DIDÁTICAS PRÁTICAS. Universidade Federal do Rio
de Janeiro (org.). Orientações para Elaboração do Pla-

63
Versus Acadêmica
no de Retorno Gradual: de atividades didáticas práticas
na graduação. Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: ht-
tps://www.iq.ufrj.br/noticiasiq/plano-de-retorno-ati-
vidades-didaticas-praticas-graduacao/. Acesso em: 23
fev. 2022.
MELLO, Paula Maria Abrantes Cotta de. Orienta-
ções gerais para a reabertura das Bibliotecas da UFRJ.
2020. Documento revisado pelas bibliotecas integran-
tes do SiBI. Disponível em: https://drive.google.com/
file/d/1rxZNDG_GRT3hISD-wV-k_tGtcr4yuQRU/
view. Acesso em: 23 fev. 2022.
UFRJ. (org.). Plano de contingência: para enfren-
tamento da pandemia de covid-19 no âmbito da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro. 2021. Aprovação
e ativação do Plano de Contingência: Denise Pires de
Carvalho e Carlos Frederico Leão Rocha; Coordenação
Técnica: Alexandre Barbosa de Oliveira. Disponível em:
https://prefeitura.ufrj.br/images/_prefeitura/Plano_
de_Contingencia_COVID-19_-_UFRJ_-_v_1.4.pdf.
Acesso em: 23 fev. 2022.

REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

64
Por mais ciência nos
tribunais: a atuação do
GREAT durante a pandemia
Isabela Coimbra Carlim1

O Grupo de Pesquisa sobre Epistemo- se mostra como instrumento primordial


logia Aplicada aos Tribunais (GREAT), para o presente e futuro da vida humana,
ligado ao Programa de Pós-graduação enquanto uma onda do pensamento ne-
em Direito (PPGD-UFRJ), liderado por gacionista científico emerge no mundo.
Rachel Herdy2 e Janaína Matida3 , estuda A análise do grupo sobre a pandemia teve
o diálogo entre a ciência e o direito. Seus dois principais objetos: o sistema penal e
pesquisadores buscam oferecer uma con- a atuação do Supremo Tribunal Federal.
tribuição à prática do direito que leve a Nesse contexto, Rachel Herdy e Janaí-
sério os avanços do conhecimento cien- na Matida defenderam4 a importância de
tífico. O grupo buscou investigar, com autoridades - judiciário, legislativo e exe-
um olhar crítico durante a pandemia da cutivo - buscarem orientações nas opini-
COVID-19, como o mundo do direito ões de experts. Quando trata-se de deci-
trata a ciência no momento que ela mais sões judiciais no cenário de pandemia,

1 Graduanda em direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Bolsista PIBIC vinculada ao
Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT) e pesquisadora no Instituto Ensaio
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

Aberto.
2 É Professora do Departamento de Teoria do Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (FND/UFRJ) e Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ). Doutora em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Mestre e graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
É co-líder do GREAT (Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais), na UFRJ.
3 É Professora da Faculdade de Direito da Universidade Alberto Hurtado, Chile. Doutora pela Universitat de
Girona, Espanha, tese “sobresaliente cum laude”. Mestre e graduada em Direito pela PUC-Rio. É co-líder do GRE-
AT (Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais), na UFRJ. É consultora do projeto Prova sob
Suspeita, do IDDD.
4 Em "O tribunal é lugar de ciência também", artigo publicado no site Consultor Jurídico (Conjur), na coluna
65 limite penal, em 3 de abril de de 2020. Acesso em https://www.conjur.com.br/2020-abr-03/limite-penal-tribunal-
-lugar-ciencia-tambem
Versus Acadêmica
"o que se deve exigir da parte dos nossos tes com câncer e HIV teriam falhado na
juízes é que enfrentem de forma respon- demonstração de que as suas unidades
sável o argumento técnico oferecido pe- prisionais não ofereceriam tratamento
los especialistas", sem adotar uma pos- suficiente à manutenção de sua saúde,
tura de deferência cega. Os juízes devem enquanto o Paciente com as comorbida-
se guiar por critérios de admissibilidade, des não teria demonstrado o incremento
tendo cuidado com as muitas formas de do risco de contágio por Covid-19, caso
pseudociências. No artigo em questão, as fosse mantida a sua custódia".
autoras analisam a Ação de Descumpri- Diante disso, a autora justifica os equí-
mento de Preceito Fundamental - ADPF vocos em matéria probatória a partir
347 - na qual o sistema penitenciário foi dos conceitos de inferências probatórias
reconhecido como "estado de coisas in- epistêmicas e inferências probatórias nor-
constitucional" e a importância de se levar mativas6 . "O argumento central de Ma-
a sério o vasto conjunto de fatos. Janaína tida afirma que a Recomendação n. 62
Matida, ainda sobre o cenário do agrava- do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
mento do "estado de coisas inconstitucio- — que recomenda a adoção de medidas
nal", causado pela pandemia, escreveu preventivas à propagação da Covid-19
sobre a necessidade de se dar fim à seleti- nos estabelecimentos prisionais e socioe-
vidade probatória5 . O texto começa com ducativos — deveria causar um constran-
cenas do cotidiano de isolamento social, gimento normativo no raciocínio dos
descrevendo a rotina de dois juízes fictí- magistrados. Logo, conclui, “erra o juiz
cios que reiteradamente denegam pedi- que não a observa.” 7
dos de habeas corpus que tenham como Já em relação ao auxílio da opinião dos
fundamento o avanço da Covid-19. Ma- especialistas, um importante indicador
tida faz um recorte de três decisões que de expertise é a existência de consenso
dizem respeito a indivíduos com alguma científico. Quando o Supremo Tribunal
comorbidade, as quais denegam o pedido Federal (STF) decidiu que o agente pú-
com base em uma "suposta insuficiência blico que basear sua escolha política em
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probatória". Nas decisões, "Os Pacien- consenso de entidade técnica ou científi-

5 Em "É preciso se dar fim à seletividade probatória", artigo publicado no site Consultor Jurídico (Conjur), na
coluna limite penal, em 17 de julho de 2020.
6 Ambos conceitos são conceitos centrais nas discussões do GREAT, a partir do artigo escrito por Rachel Herdy e
Janaína Matida, 'As Inferências Probatórias: Compromissos Epistêmicos, Normativos e Interpretativos', considera-
do fundador da linha teórica trabalhada pelo grupo.
7 HERDY, R. A recomendação de uma instituição normativa serve para quê?. Artigo publicado no site Consultor
Jurídico, na coluna limite penal, em 31 de julho de 2020. No artigo, Herdy comenta as críticas à publicação de
Matida, à luz da teoria do direito e da teoria da decisão judicial sobre a obrigatoriedade normativa da resolução do 66
CNJ e o problema do não-consenso científico sobre as orientações da resolução.
ca, nacional ou internacionalmente reco- na qual se permite a prescrição de medi-
nhecida, não pode ser responsabilizado camentos ineficazes, como a cloroquina e
por eventuais danos causados no contex- a hidroxicloroquina.
to da pandemia da COVID-19, Rachel A última publicação9 de Herdy com
Herdy traçou uma reflexão crítica sobre a o tema da pandemia foi sobre a decisão
suficiência do critério do consenso cien- do ministro Ricardo Lewandowski, a
tífico e as condições de sua obtenção. Se- qual suspendeu decisão do presidente
gundo Herdy, "acreditamos no consenso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
formado por um grupo de experts por- (TJRJ) sobre decreto estadual que alterava
que acreditamos na qualidade do proces- a ordem da vacinação contra a Covid-19,
so de deliberação". Assim sendo, o STF pela falta de motivação técnica e científica
poderia ter inserido como critério de afe- da medida. Mais uma vez o STF reforça
rição da qualidade do consenso científico a importância do uso de evidências cien-
uma série de perguntas relevantes que tíficas para elaboração de políticas pú-
servem como bons indicadores de exper- blicas, contudo, uma análise mais detida
tise, as quais questionam, por exemplo, o da decisão sugere que a relação entre o
enfrentamento de opiniões divergentes tribunal e a ciência ainda é problemática,
àquela consensuada, a revisão por pares uma vez que o próprio ministro fez uso
ou se existe alguma razão para acreditar de fontes jornalísticas de baixa fiabilidade
que a opinião esteja enviesada. epistêmica para fundamentar a decisão.
Herdy defende que a crítica que se As publicações das pesquisadoras Ra-
deve fazer à decisão do Supremo é a su- chel Herdy e Janaína Matida sobre a pan-
posição de que a suficiência para aferir demia refletem o esforço e a seriedade
o erro grosseiro do agente público possa das análises do GREAT. O grupo ainda
ser pensada de forma atomística, como se é composto por nove pesquisadores da
um único elemento - o consenso cientí- graduação, do mestrado e do doutorado,
fico - pudesse cumprir esta função pro- além de uma bolsista do programa PI-
batória. Quase um ano depois, em outro BIC-UFRJ. Além do tema da pandemia,
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

artigo, Herdy concluiu8 que o precedente os membros do GREAT discutem e pro-


estabelecido pelo STF pode beneficiar ne- duzem frequentemente sobre o papel da
gacionistas, uma vez que a principal enti- ciência no direito, sobre injustiças epistê-
dade médica do país, o Conselho Federal micas e direito probatório.
de Medicina (CFM), mantém orientação

8 Em "Precedente do STF pode beneficiar negacionistas", artigo publicado no site JOTA em 31/05/2021 e no sítio
67 eletrônico da revista Questão de Ciência em 01/06/2021.
9 HERDY, R. 'Lewandowski e suas fontes científicas'
Versus Acadêmica

Reflexos da pandemia no
financiamento do déficit
fiscal brasileiro
Margarida Gutierrez
Antonio Licha

A pandemia da Covid−19 provocou agravamento do desequilíbrio fiscal: a dí-


uma resposta forte em política fiscal pelo vida bruta do governo central (como pro-
governo brasileiro. Segundo dados da porção do PIB) passou de 74% em 2019
Secretaria do Tesouro Nacional (2020), o para 89% em 2020.
impacto fiscal da pandemia em 2020 foi A elevada necessidade de financiamen-
de 7,5% do PIB, considerando reduções to no setor público, o aumento da dívida
temporárias de impostos e aumento de pública e as incertezas em relação aos
gastos.1 Os estímulos fiscais brasileiros rumos da política fiscal em 2021 provo-
superaram a média dos países emergen- caram um aumento da aversão ao risco e
tes (que foi de 4,3% do PIB em 2020) al- da preferência pela liquidez dos agentes
cançando a média dos avançados (7,1% econômicos a partir do mês de março
do PIB). Embora o pacote fiscal, associa- de 2020. Por exemplo, o spread do swap
do a abrangentes medidas de cunho mo- Pré-DI de 10 anos e 1 ano aumentou de
netário e cambial, tivera papel fundamen- março até outubro de 2020 de 2,5% para
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tal na sustentação do nível de atividade e 5%. Nesse mesmo período, a dívida bru-
manutenção do emprego e da renda das ta de Governo Geral, a vencer em até 12
famílias em 2020 (o PIB sofreu uma con- meses, passou de 30 para 40% do PIB.
tração de apenas 4,1%, muito inferior à da Ainda que a partir de outubro de 2020
maior parte dos países), houve um brutal esses indicadores começaram a cair, nos

1 A resposta de política econômica brasileira acompanhou o realizado pela maioria dos países. Para uma síntese 68
das respostas de política em diversos países, ver International Monetary Fund (2020).
meses de novembro e dezembro o risco Podemos resumir o argumento desta-
e a iliquidez ainda estavam num patamar cando que uma parte substancial da ele-
elevado. vação das despesas públicas e das neces-
Para garantir seu financiamento, o Te- sidades de rolagem da dívida pública foi
souro Nacional recorreu aos recursos da financiada pela expansão da base mone-
sua Conta Única no Banco Central do tária e das operações compromissadas re-
Brasil. O uso dessa conta implicou na alizadas pelo Banco Central. O montante
expansão da base monetária e o Banco de operações compromissadas colocadas
Central do Brasil precisou esterilizar par- dependeu da demanda de reservas por
te dessa expansão monetária para permi- parte dos bancos e da demanda do pú-
tir que a taxa de juros Selic, estabelecida blico por papel moeda emitido. Como
pelo Comitê de Política Monetária (CO- a demanda por reservas bancárias e por
POM), mantivesse a sua meta.2 Por esse papel moeda emitido aumentou, o Banco
motivo, as operações compromissadas Central precisou colocar menos opera-
(que são a colocação de títulos públicos ções esterilizadas para manter a taxa de
de curto prazo em poder do Banco Cen- juros Selic.
tral com compromisso de recompra) Ressaltemos que o encurtamento da
expandiram-se rapidamente. De acordo dívida pública e o aumento das operações
com os dados apresentados pelo Banco compromissadas tornaram o financia-
Central do Brasil (2020), as operações mento do setor público extremamente
compromissadas do Banco Central equi- frágil às circunstâncias vigentes, não ape-
valiam a 13,1% do PIB em dezembro de nas por obrigar o Tesouro Nacional ir
2019, mas chegaram a 16,7% do PIB em frequentemente a mercado, mas também
dezembro de 2020. porque facilitaram a migração de recur-
Nem toda a expansão da base monetá- sos nele aplicados para outros ativos (dó-
ria foi esterilizada, pois houve um cresci- lares e outros).
mento acentuado da base monetária em A contrapartida macroeconômica no
2020 devido à expansão da demanda de aumento do déficit público foi uma eleva-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

moeda. Em especial, boa parte da população ção da poupança privada. Pires de Souza
brasileira, receptora dos auxílios emergen- (2021) analisa e quantifica o comporta-
ciais e que não tem conta bancária, aumen- mento do setor privado (financeiro e não
tou a demanda de papel moeda emitido. financeiro) entre os meses de fevereiro e

2 Esta expansão monetária, sem paralelo no passado recente da economia brasileira, levou a que o Banco Central
do Brasil transferisse R$ 375 bilhões para o Tesouro Nacional no mês de agosto de 2020, decorrente da valorização
69 das reservas internacionais (efeito desvalorização cambial), e discutiu-se a possibilidade de transferir títulos do
Tesouro Nacional para a carteira do Banco Central.
Versus Acadêmica
outubro de 2020 e mostra que aconteceu que dispunha de um instrumento finan-
uma forte variação patrimonial. A rique- ceiro aceito pelos bancos. As operações
za financeira líquida do setor privado compromissadas cumpriram um papel
aumentou em 12,2% do PIB, quase que fundamental por serem ativos com risco
compensando a redução da riqueza líqui- baixo e liquidez elevada que permitiram
da do setor público que foi -13,1 do PIB. ajustar os portfolios privados durante um
Desta forma, quase todo o ajuste macroe- período de estresse financeiro. Sem essas
conômico do déficit público brasileiro foi operações, o Banco Central do Brasil não
realizado através do setor privado domés- esterilizaria adequadamente a expansão
tico. da base monetária gerada pelo uso da
Esse ajuste patrimonial, visto do ponto Conta Única, levando o aumento das re-
de vista macroeconômico, mostra que o servas bancárias a reduzir a taxa de juros
setor privado aumentou a demanda de Selic. Nesse contexto, o Banco Central do
ativos financeiros e que parte desse au- Brasil perderia o controle do processo in-
mento pode ser explicado pela demanda flacionário e fragilizaria o regime de me-
de operações compromissadas dos ban- tas de inflação. A credibilidade do Banco
cos comerciais. Os bancos, por sua vez, Central do Brasil permitiu fazer essa “tra-
desenvolveram fundos lastreados nessas vessia” sem provocar nenhuma ruptura
operações que foram oferecidos a seus nas condições financeiras brasileiras afe-
clientes. O aumento da poupança priva- tando apenas o tamanho, a estrutura e as
da foi a contraface da expansão fiscal e taxas de juros da dívida pública.
foi constituída pela demanda de ativos fi-
nanceiros lastreados nas operações com- Referências bibliográficas
promissadas dos bancos. Banco Central do Brasil (2020), Cartas circulares
divulgadas no período de março a agosto, vários nú-
Concluindo, a Covid−19 afetou o fi-
meros.
nanciamento do déficit fiscal brasileiro International Monetary Fund (2020), Policy Res-
entre os meses de março e outubro de ponses to Covid-19, in https://www.imf.org/en/Topics/
imf-and-covid19/Policy-Responses-to-COVID-19.
2020. A especificidade do caso brasileiro
Pires de Souza, F.E. (2021), Panem et circenses: A
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

foi o uso da Conta Única da União por propósito da Macroeconomia da pandemia, Revista de
parte do Tesouro Nacional e das opera- Economia Política, Vol. 41, Nº 2, abril-junho, pp. 236-
253.
ções compromissadas por parte do Ban-
Secretaria do Tesouro Nacional (2020), Transparên-
co Central do Brasil. O Banco Central do cia do COVID, publicações de junho, julho e agosto.
Brasil assumiu um papel importante no
financiamento fiscal, porém apenas por-
70
Covid-19, meio ambiente e
políticas públicas: reflexões
para o pós-pandemia
João Felippe Cury Marinho Mathias

Pensando fora da caixa mia não deve ser diferente: abandonar o


A pandemia de SARS-CoV-2 (Co- business as usual.
vid-19) abriu uma janela de oportunida- Admitindo que o futuro pós-pandemia
des para que economistas e outros cien- requeira novas formas de produção, dis-
tistas sociais reflitam sobre as razões pelas tribuição de renda e padrões de consumo,
quais chegamos até a essa crise e, princi- abre-se espaço para a reflexão sobre um
palmente, sobre o futuro que desejamos. novo modelo desenvolvimento – susten-
As condições de vida foram alteradas a tável – lastreado na transição em direção
tal ponto que “pensar fora da caixa” tor- a uma economia socialmente inclusiva e
nou-se um exercício indispensável para ambientalmente adequada para o futuro
entender a nova contemporaneidade. pós-pandemia. Um modelo que lida com
Passado o falso dilema entre preser- os problemas sociais (desigualdade e po-
var vidas ou salvar a economia (pois não breza), ambientais (conservação, polui-
existe economia sem vida), é tempo para ção e mudanças climáticas) e econômicos
pensar na agenda para o futuro. Se para (emprego, renda e produto).
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

lidar com os problemas da pandemia foi


necessário “pensar fora da caixa e fazer o Epidemias, Meio Ambiente e
que fosse preciso”, o que gerou um afas- Governança Ambiental
tamento das soluções estabelecidas, he- Há epidemias que surgem como con-
gemônicas e consolidadas, o passo para a sequência da ação humana, particular-
reflexão sobre o que fazer no pós-pande- mente associadas à degradação do meio
71
Versus Acadêmica
ambiente. Estudos recentes estimam que da nas metas associadas aos Objetivos de
31% dos surtos epidêmicos estavam li- Desenvolvimento Sustentável (ODS) es-
gados ao desmatamento, isto é, ligados à tabelecidas pela Agenda 2030. Para isso,
perda de habitats naturais e a redução da é fundamental que os programas de re-
diversidade biológica (Young e Mathias, construção econômica apresentem uma
2020). abordagem multidimensional que tam-
A literatura também reconhece que os bém contemple aspectos sociais (redução
serviços ecossistêmicos são fundamental- da pobreza, fome, doença, desigualdade
mente necessários para a saúde humana. de gênero, saúde) e ambientais (mudan-
Nesse sentido as políticas públicas volta- ças climáticas, poluição, conservação da
das para a conservação do meio ambien- biodiversidade). Isso requer coordenação
te são essenciais, embora muitas vezes de esforços e recursos públicos, privados
tenham sido desprestigiadas em termos e organizações sociais, através de abor-
orçamentários em seus principais órgãos dagens inovativas para o desenho de in-
executivos (ICMBio e IBAMA), o que centivos, contratos e formas de regulação
pode ser visto, no caso do Brasil, no au- que vão além da dinâmica convencional
mento do desmatamento nas áreas prote- de fomentar gastos e de políticas públicas
gidas e unidades de conservação. (Young e Mathias, 2020).
Para o sucesso das políticas públicas é A transição para uma economia sus-
essencial que haja uma boa governança tentável não ocorre espontaneamente,
ambiental. Problemas relacionados ao mas precisa ser induzida por políticas
meio ambiente são, geralmente, associa- públicas ativas e coordenadas pelo Esta-
dos às questões institucionais e de go- do com o setor empresarial e a sociedade
vernança. Os problemas causados pela civil. Envolve um enorme esforço fiscal e
pandemia de Covid-19 e outros desastres orçamentário, como nos casos em curso
do passado não são estritamente naturais, na Europa (New Deal Europeu) e nos
mas causados por ações humanas, in- EUA (American Jobs Plan). O caso eu-
cluindo políticas públicas equivocadas ou ropeu, mais avançado, traz uma inovação
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

mal coordenadas. em relação ao financiamento do plano de


retomada econômica: a emissão de títu-
Um novo modelo de desenvol- los verdes (green bonds). Em outubro de
vimento 2021 a primeira emissão desses títulos de
O que desejamos? A concepção de 15 anos teve elevada demanda e arreca-
uma “transição socioambiental”, centra- dou 12 bilhões de euros, configurando
72
o maior lançamento de títulos verdes da
história.
Essa transição para uma economia sus-
tentável é possível? Sim. Mas exige uma
mudança das prioridades políticas e dos
paradigmas econômicos vigentes, tal
como ensina os casos recentes na Europa
e nos EUA.

Referências
YOUNG, Carlos Eduardo Frickmann; MATHIAS,
João Felippe Cury Marinho. Covid-19, meio ambiente e
políticas públicas. São Paulo: Hucitec, 2020. Disponível
para download gratuito na página: https://pantheon.
ufrj.br/handle/11422/13400
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

73
Versus Acadêmica

Curricularização, pandemia
e a internacionalização da
Extensão
Sandra Maria Becker Tavares
Danielle Costa da Silva

A linha do tempo da História do Homo -se com três opções: a) aliar à atual sem
sapiens, tem sinalizado que tempos ex- rupturas expressivas; b) aliar à atual com
cepcionais costumam ser largas portas de rupturas expressivas; ou, c) excluir a reali-
envolvimento entre os âmbitos público e dade anterior e criar outra.
privado. Isto posto, a emergência sanitá- Feita a escolha, em algum momento
ria decorrente do vírus SARS-CoV-2, ca- da transição ou término da excepciona-
racteriza uma excepcionalidade. lidade, a decisão deverá ser analisada e
Em essência, a excepcionalidade susci- avaliada como um fato histórico. Como
ta o caos social e a redução, ou total cerce- afirma Santos (2021, p.15) “os fatos estão
amento, dos direitos civis. A COVID-19 todos aí… cabe a nós com que se tornem
provocou, de forma direta ou indireta, fatos históricos… para formar um novo
abruptas alterações dos hábitos, dos cos- sistema temporal…”.
tumes, das tradições e das normas. O primeiro fato se refere ao Instituto de
Assim sendo, pode-se afirmar que a Relações Internacionais e Defesa (IRID)
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

pandemia exigiu a mudanças nos estilos que integra o Centro de Ciências Jurídi-
de viver, incluindo os processos de en- cas e Econômicas (CCJE). Sua finalidade
sino-aprendizagem, até então vigentes. consta no Artigo 2.º do seu Regimento: …
Para se adaptarem à realidade, atores so- abordagem integrada e multidisciplinar
ciais em instâncias de decisão, deparam- na área da Análise de Assuntos Interna-

74
cionais e Defesa, criar, desenvolver, forta- através do Conselho Nacional de Edu-
lecer e difundir as atividades de pesquisa cação (CNE) definiu as diretrizes para a
e de extensão reiterados nos desdobra- Extensão instituindo princípios, os fun-
mentos do Artigo 3.º I- Difundir a refle- damentos e os procedimentos que de-
xão acadêmica sobre Análise de Assuntos vem ser observados no planejamento,
Internacionais e de Defesa, inclusive no nas políticas, na gestão e na avaliação das
ensino, na pesquisa e na extensão… re- instituições de educação de ensino supe-
forçando ainda a orientação extensionista rior… assim como, a curricularização das
III- Oferecer atividades de extensão sobre atividades de extensão, ou seja, que 10%
temas pertinentes aos seus objetivos. do total de qualquer currículo universitá-
Este texto busca registrar o fato histó- rio, obrigatoriamente, devem contemplar
rico e responder se o período pandêmico a Extensão.
repercutiu na curricularização da Exten- Essa norma veio ao encontro da equi-
são, no IRID mediante a análise de três dade entre as atividades de ensino e de
dos seus Projetos de Extensão intitulam- pesquisa, tradicionalmente sistematiza-
-se Debates Pós-Coloniais e Decoloniais; das no Brasil. Gadotti (2022), explica que
Vida pública: como os temas republica- as atividades de Extensão eram minimi-
nos impactam a integração de crianças zadas nos currículos universitários, ape-
refugiadas nos espaços escolares e de en- sar de inseridas na Reforma Universitária
sino do Estado; e, Migrantes e refugiados de 1968; nos anos 60/70 reivindicadas pe-
venezuelanos no Brasil contemporâneo. los movimentos da sociedade civil; a cria-
Como fato, os decisores do IRID tive- ção do Fórum Nacional de Pró-Reitores
ram que somar à criação e à instalação de Extensão das Universidades Públicas
de um Instituto com dois cursos de gra- Brasileiras (FORPROEX); e, ainda, pela
duação (de temáticas internacionalistas) Constituição de 1988 que no seu artigo
e adequações curriculares da Extensão, 207 prescreve a indissociabilidade do en-
mais uma variante, a pandemia da CO- sino, pesquisa e extensão.
VID-19 com quarentena e rígidas medi- Os três Projetos do IRID, já mencio-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

das sanitárias. nados, quando analisados sob os prismas


Outro fato ocorria desde 2018, im- curricularização x pandemia e correlacio-
pactando o tripé universitário ensino- nados à internacionalização, indicaram
-pesquisa-extensão. Diz respeito à Reso- que: no Projeto, é necessário prever al-
lução No 7, de 18 de dezembro de 2018, gumas atividades extensionistas virtuais;
do Ministério da Educação (MEC) que procurar/ajustar a Plataforma à atividade;

75
Versus Acadêmica
ajuste de carga horária mesmo que altere EX – UNILA (org.) Foz do Iguaçu: PROEX – UNILA,
2022. Disponível em: https://portal.unila.edu.br/pro-
partes do Projeto; instalação de equipes/
ex/copy_of_comunica_extensao/publicacoes-proex/
estratégias para atendimento de deman- copy_of_EbookExtensoePandemia_compressed.pdf
das por meios eletrônicos; desenvolver Acesso em: 01 abril 2022
SANTOS, Boaventura de Sousa. O futuro começa
atividades extensionistas remotas em ou-
agora: da pandemia à utopia. 1ª edição. São Paulo: Boi-
tra(s) língua(s) e horários compatíveis; a tempo, 2021.
curricularização da Extensão possibilita SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem.
5ª edição, reimpressão – São Paulo: Editora da Univer-
acessar as intrincadas redes de interna-
sidade de São Paulo, 2021
cionalização como fizeram as áreas de
ensino e da pesquisa; incremento da sis-
tematização de parcerias internacionais.

Considerações Finais
A pandemia afetou a curriculariza-
ção da Extensão do IRID sendo incluída
como agenda permanente dos Núcleos
Docente-Estruturante (NDE) do IRID,
pois alertou para a equidade do tripé uni-
versitário oportunizando expandir e for-
talecer os laços dos extensionistas junto às
organizações internacionais e instâncias
superiores que promovem a internacio-
nalização da Universidade.

Referências
BRASIL. RESOLUÇÃO Nº 7, DE 18 DE DEZEM-
BRO DE 2018 Disponível em: https://www.in.gov.br/
materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/
id/55877808 Acesso em: 03 abril 2022
GADOTTI, Moacir. Extensão Universitária: Para
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

quê? Disponível em: https://www.paulofreire.org/ima-


ges/pdfs/Extens%C3%A3o_Universit%C3%A1ria_-_
Moacir_Gadotti_fevereiro_2017.pdf Acesso em: 01
abril 2022
PROEX. Pró Reitoria de Extensão – UNILA (org.)
Extensão e pandemia: relatos de extensionistas so-
bre suas ações no primeiro ano de Pandemia / PRO-

76
A FACC e a Pandemia da
COVID-19: vivências e
aprendizados
Maria Cecília ?

Como elaborar um relato idôneo acer- discutiu sobre o avanço da doença na Eu-
ca de um dos períodos mais difíceis pelo ropa e acerca de uma eventual suspensão
qual passamos nos últimos cem anos? das aulas, que, inicialmente, deveria se
Como não imputar aos colegas minha dar por apenas uns 15 dias, para achatar a
visão própria do que vivemos? Este é um curva de contágio. Lembrando disso hoje,
desafio que espero poder transpor. Ape- penso: éramos felizes e não sabíamos. No
sar dos quase dois anos de pandemia, dia 12 de março foi realizada a colação de
ainda não acredito ter o distanciamento grau presencial dos formandos da FACC
necessário para uma análise crítica ade- de 2019/2. A última presencialmente em
quada, que não esteja carregada de fato- dois anos.
res como o medo, a política e mudanças No dia 16 de março iniciamos o afas-
no cotidiano advindas de medidas adota- tamento social e as atividades presenciais
das ao longo da pandemia. foram suspensas por um período, que
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

A escolha foi destacar alguns momen- hoje sabemos, ter perdurado dois anos.
tos críticos vivenciados ao longo desse O primeiro comunicado oficial da Di-
período. reção da FACC foi enviado aos técnicos e
O dia 11 de março de 2020 foi o pri- docentes no dia 15 de março. Ainda com
meiro desses dias marcantes. A Con- tão pouca definição sobre a situação, esse
gregação da FACC se reuniu e muito se comunicado foi limitado a basicamente
77
Versus Acadêmica
ratificar as diretrizes de contingência no 17 março de 2020) que autorizava, em
âmbito da UFRJ, as notas de nossa Reito- caráter excepcional, a substituição das
ria e o comunicado emitido pela Decania disciplinas presencias por aulas em meios
do CCJE. As atividades presenciais foram digitais. Nessa mesma portaria, ainda
suspensas por 15 dias, estabelecendo um constava a possibilidade de manutenção
esquema provisório de atendimento das da suspenção das atividades acadêmicas.
situações emergenciais. A partir desse A vigência da portaria era de 30 dias, que
momento, muita insegurança, receios e poderiam ser prorrogados. Os colégios
indefinições tomaram conta não só da particulares rapidamente se adequaram à
FACC, como de toda a Instituição e do nova realidade e, em abril, já retomavam
próprio país. suas atividades de ensino no modelo re-
A falta de uma perspectiva correta da moto. As IES privadas e públicas, assim
gravidade da situação fez com que alguns como as escolas municipais e estaduais,
de nossos docentes acreditassem que se- mantiveram suas atividades suspensas.
ria viável, de algum modo, lecionar nesse Impossível desassociar as dificuldades
período de suspensão das atividades. Fo- enfrentadas pela FACC das enfrentadas
ram prontamente cerceados pela Dire- pela UFRJ. Como adotar um modelo re-
ção. Inúmeras questões surgiam e é pos- moto mediante um cenário com severa
sível apontar uma situação particular: a restrição orçamentária, falta de capacita-
angústia de parte dos técnicos, cujas ativi- ção docente ao formato remoto e que, si-
dades tinham natureza mais operacional multaneamente, não agravasse a já imen-
no dia a dia. Como trabalhar à distância? sa desigualdade presente entre nossos
No caso da FACC, parte desses servidores discentes? Essa discussão tomou conta
estava contemplada como grupo de risco, de nossa comunidade por muito tempo.
sendo de fato temerário permitir que re- Recuso-me a dizer que a pandemia nos
alizassem atividades presenciais. Essa dis- trouxe algo positivo. O aprendizado que
cussão sobre o trabalho remoto foi uma fomos, na nossa maioria, obrigados a ad-
situação bastante desafiadora, mas feliz- quirir num exíguo espaço de tempo po-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

mente superada por novas distribuições deria, e deveria, ter sido obtido sem que
de atribuições. centenas de milhares de vida fossem per-
Seguindo o mais precisamente possível didas. Contudo, o aprendizado veio. Nes-
a linha do tempo, é importante relembrar se aspecto a interação entre os docentes
que no dia 17 de março de 2020, o MEC foi muito positiva. Como narradora que
publicou uma portaria (Portaria 343, de mantém-se imparcial, ouso afirmar que
78
talvez tenha sido o momento de maior maio de 2020) causou muita controvérsia.
cooperação que tenha presenciado na Em linhas gerais, a portaria estabelecia
Universidade. Foi uma troca dinâmica, orientações quanto às medidas de prote-
generosa, bonita de se se presenciar. Di- ção e organizava o Trabalho Remoto na
versas iniciativas autônomas surgiram, UFRJ. As críticas feitas pelos sindicatos
vários colegas se dispuseram a ajudar, (ADUFRJ e Sintufrj) indicavam alguns
compartilhando suas experiências com o elementos do texto que poderiam ocasio-
ensino à distância com os demais. Tenho nar prejuízos aos trabalhadores da UFRJ.
certeza de que isso ajudou a muitos. Apontando para a uma solução que bus-
O período compreendido entre 16 de cava o diálogo, a Reitora da UFRJ, profª
março e 13 de agosto de 2020 foi de mui- Denise Carvalho, decidiu suspender a
to trabalho. E retrabalho. Alguns proble- portaria 3.188 sobre o trabalho remoto na
mas, devido à complexidade envolvida, universidade durante a pandemia.
geraram muita discussão. Impossível Na FACC, apesar do clima de intran-
negar a forte resistência inicial que parte quilidade gerado pela portaria, foi pos-
dos docentes manifestou mediante a pos- sível encaminhar a situação de modo
sibilidade da adoção do ensino remoto. razoavelmente tranquilo. A Direção da
Outro grave obstáculo dizia respeito à pa- FACC, na época exercida pela profª Elia-
dronização dos procedimentos que deve- ne Ribeiro, foi sempre muito transparente
riam ser adotados para viabilizar o ensino em seus direcionamentos e esteve cons-
remoto. Todos usariam a mesma plata- tantemente aberta a ouvir todo seu cor-
forma? O nosso sistema suportaria um po social. Tal posicionamento foi funda-
aumento tão substancial de demanda tão mental para possibilitar o bom clima na
repentinamente? As aulas seriam síncro- Unidade.
nas? E as avaliações? Como garantir que Em paralelo a essa situação institucio-
todos os discentes possuíssem recursos nal, não podemos perder o olhar sobre a
para acessar as aulas? Além dessas ques- situação em que o país mergulhava. Essa
tões que atingiram a todos, não apenas contextualização nos ajuda a entender
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

a FACC, também foi necessário definir algumas das razões do aprofundamento


como se daria o exercício e o controle das das dificuldades pelas quais passamos.
atividades profissionais de nossos servi- Não era só a doença que assustava. Mui-
dores. tos já sentiam na pele as consequências da
A portaria publicada no BOU de 4 de redução das atividades econômicas e do
maio de 2020 (Portaria nº 3.188, de 4 de consequente desemprego. Embora ainda
79
Versus Acadêmica
estivéssemos longe do que seria um perí- particular de nossos coordenadores de
odo muito mais severo, já enfrentávamos curso, era de que a escolha por esse gru-
uma situação de enorme desgaste emo- po restrito era temerária. Como atender
cional. Apesar de nunca termos adotado apenas aos concluintes? Dentre diversos
um lockdown com ele maiúsculo, era empecilhos destaco dois: que disciplinas
inegável a sensação de esvaziamento em deveriam ser ofertadas? Afinal, só em um
muitas regiões da cidade. Pessoas afasta- mundo perfeito os concluintes somente
das e isoladas de seus amigos e familiares cursam as disciplinas correspondentes ao
e o que era ainda pior: a curva de casos último período da grade curricular e essa
e mortes continuava subindo. Embora definitivamente não era (e não é) a reali-
matematicamente isso não chegasse a dade de nossos alunos. Outro aspecto im-
surpreender, todos tínhamos a ilusão de portante envolvia a dificuldade de como
que poderíamos frear o avanço da do- justificar aos demais estudantes que eles
ença. Uma pergunta já estava presente e não seriam contemplados. Naquela oca-
não tinha resposta: e as nossas crianças e sião já havia uma pressão muito grande
jovens? Como estariam reagindo ao en- pelo retorno às atividades (ainda que re-
sino remoto? Ainda que poucos naquele motas) e todos os discentes demandavam
momento usufruíssem do ensino remo- pela volta. Após muito trabalho e discus-
to, a preocupação com as consequências são, a Instituição optou por contemplar
futuras já começava a emergir. Para os a todos os discentes, embora muitos te-
nossos alunos a pergunta era ainda mais nham ficado impedidos de estudar em
cruel: como estariam se sentindo com a função da reduzida oferta de vagas.
suspensão absoluta das aulas? O PLE foi estabelecido pela Resolução
Finalmente, em agosto de 2020 a UFRJ CEG 03/2020. Os artigos 2º e 3 º mere-
iniciou suas atividades acadêmicas remo- cem uma ressalva por afirmarem que
tas com o início do período Letivo espe- a adesão às atividades pedagógicas não
cial (PLE), cinco meses após a publicação presenciais teria caráter facultativo para o
da Portaria 343 pelo MEC. A Instituição corpo docente e discente. Mais uma vez
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

inicialmente concebeu uma retomada a Direção da FACC precisou apoiar com


gradual que contemplaria, a princípio, firmeza a condução dos trabalhos dos
apenas os alunos concluintes. Essa decisão Departamentos. Apesar da rede de apoio
foi muito difícil. As pressões sofridas pela criada para dar suporte aos docentes me-
reitoria eram muito fortes. No âmbito da nos familiarizados com os meios de ensi-
FACC, a opinião de muitos docentes, em no digital, muitos não se sentiam confor-

80
táveis diante dessa nova modalidade. Um da Unidade pudesse ultrapassar este limi-
semestre com 12 semanas? Impossível! te. Nossos coordenadores e nossa Secre-
Além disso, havia os que simplesmente taria Acadêmica trabalharam incansavel-
entendiam que isso não seria socialmen- mente para esclarecer e atender os alunos.
te apropriado. Houve muitas reuniões, Nesse aspecto a FACC foi beneficiada por
muita troca de ideias e, finalmente, nos poder contar com o apoio de profissio-
foi viável ofertar praticamente o mesmo nais muito comprometidos, que conse-
total de vagas do período 2020, pré pan- guiram manter o foco e a disposição mes-
demia. Uma vitória para os alunos e para mo diante de elevada demanda.
a comunidade da FACC. Para os docen- Embora em nenhum momento os
tes foi uma oportunidade de começar a problemas tenham desaparecido, percor-
desmistificar suas crenças sobre a adoção remos os meses com mais tranquilidade.
da nova modalidade, agora imposta pela Aparentemente, até os mais contunden-
realidade da pandemia. tes adversários do ensino remoto pare-
A experiência com o PLE não agradou ciam estar ficando mais confortáveis com
a muitos. Talvez a crítica mais contun- a situação. Talvez até demais. Inegável que
dente seja a que questiona sua real ne- termos tido condição de exercer nossas
cessidade. Ele caracterizou-se como um atividades em casa, com segurança, com
semestre especial que oficialmente faria baixo nível de exposição ao vírus redu-
parte do 2020/1. Quase como um adian- zido foi muito bom. Mas é inegável que
tamento. Em 7 de outubro uma nova nosso papel como educadores sofreu um
resolução CEG foi publicada dispondo impacto muito grande. Como narradora
sobre as regras de transição entre o PLE fiel que me proponho a ser, posso garantir
e o reinício do ano letivo de 2020. Mui- que nas inúmeras discussões que partici-
tos problemas operacionais surgiram. pei, a preocupação expressa com os dis-
Inúmeros discentes tiveram dificuldade centes não teve o protagonismo esperado.
para compreender onde foram parar suas O incômodo com o fato de estarmos com
disciplinas cursadas no PLE. E o limite de as portas trancadas aos alunos há mais de
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

32 créditos? Por que considerar tal limite um ano parecia não nortear as discussões.
se de fato os créditos eram efetuados em Como poderíamos propor alternativas
momentos distintos do tempo? Seguindo que possibilitassem aos que precisassem
uma possibilidade apresentada na Reso- ou desejassem frequentar nossos campi?
lução, a Congregação da FACC tomou a Essa é uma questão que me acompanhou
decisão de permitir que o corpo discente durante todo esse período.
81
Versus Acadêmica
Avançando um pouco mais no tempo, delo e pelo desejo do retorno presencial,
alcançamos o que, a meu ver, foi o início inclusive muitos que poderiam se bene-
de uma fase crítica pela qual passamos e ficiar pela Normativa SGP/SEDGG/ME
que trouxe diversos desdobramentos. Em nº 90, de 28 de setembro de 2021. Outros
julho de 2021, ocorreu o recebimento da tantos, por motivos sanitários ou políti-
ação civil pública proposta pelo Ministé- cos, ou mesmo por conveniência pessoal
rio Público Federal (MPF), que pedia à clamavam pelo não retorno. Havia bons
Justiça o retorno às aulas presenciais até argumentos de ambos os lados, mas a jus-
18/10 nas Instituições Federais de Ensino tiça nos exigia o retorno. A FACC, na me-
Superior (Ifes) do Rio de Janeiro. Nesse dida do possível, cumpriu às exigências e
momento o ensino fundamental I e II já elaborou um plano de retorno às ativida-
haviam retornado ao formato presencial des presencias. Louvável a condução da
(parcialmente), os índices da pandemia já Direção, neste momento já exercida pelo
indicavam uma queda e o ritmo de vaci- prof. Antônio José Barbosa, que soube
nação finalmente parecia mais consisten- conduzir a questão respeitando os diver-
te. Contudo, a situação ainda era difícil e sos pontos de vista, sem perder de vista a
o retorno presencial, de fato, mantinha-se necessidade do cumprimento da ordem
uma questão bastante delicada e polê- judicial e da posterior opção adotada pela
mica. Nesta época, a situação acadêmica reitoria. Contudo, essa volta foi extrema-
da UFRJ consistia em ministrar quase a mente desafiadora. Com as restrições
totalidade de suas aulas remotamente, sanitárias, o que foi possível oferecer não
conforme as condições sanitárias permi- atendeu às expectativas do corpo social
tidas, concomitante com a oferta de au- da Unidade, que enxergou nesse retorno
las presenciais de disciplinas práticas. A uma solução muito aquém da desejada.
discussão no campo jurídico perdurou A FACC enfrentou inúmeros problemas
por um bom tempo, até que a Instituição operacionais nessa volta. Foi impossível
optou pela retomada geral das atividades o retorno ao Campus da Cidade Uni-
presenciais, desde que nos moldes preco- versitária, pois devido à falta de infra-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

nizados pelo Comitê de Biossegurança da estrutura e de transportes, a Direção do


UFRJ, que manteve as condições de bios- prédio de Letras, onde são realizadas as
segurança bastante rígidas. atividades da FACC, não disponibilizou
A reação dos docentes e técnicos da espaço físico. Por outro lado, O Campus
FACC foi bem heterogênea. Muitos já da Praia Vermelha (PV) teve uma volta
sinalizavam pelo esgotamento do mo- altamente prejudicada pelo esvaziamen-
82
to do Campus e a falta de segurança, que
talvez tenha sido o pior fator. Os demais
prédios da PV mantiveram-se fechados
ou abriram por períodos muito restritos.
Mesmo nos turnos da manhã e da tarde a
movimentação de alunos era muito redu-
zida. O risco ao qual nosso corpo social
ficou exposto nessa situação fez com que
as atividades presenciais fossem descon-
tinuadas após o recesso do final do ano.
A FACC teve um saldo positivo ao lon-
go da pandemia. Conseguimos contornar
os problemas mais críticos e saímos com
a cabeça erguida ao fim desse processo,
cientes do esforço de todos pela cons-
trução coletiva de soluções para cumpri-
mento de nosso papel frente à sociedade.
Não nos furtamos em discutir, avaliar e
ponderar diversos aspectos e pontos de
vista muitas vezes conflitantes para ga-
rantir que as decisões a serem tomadas
fossem representativas do grupo.
Agora, desejamos continuar com nos-
so papel ativo na busca por melhores
condições para que todos possam reto-
mar com segurança e com qualidade suas
atividades.
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

83
Versus Acadêmica

Não há tristeza que possa


suportar tanta alegria
Julia de Arruda Figueredo1

Em meio a discussão sobre “deve ter quase 1/4 da população mundial na épo-
ou não carnaval” em um contexto que ca, matando de 20 a 50 milhões de pes-
ainda podemos considerar pandêmico, o soas, ultrapassando o resultado de quatro
Rio de Janeiro revisita o passado: a Gri- anos de guerra global ininterruptos .
pe Espanhola, de 1918, que foi a maior e Seu surgimento, apesar de ainda deba-
mais mortal epidemia do Século XX. No tido, sabe-se que não se deu na Espanha,
Brasil, foi na ‘cidade maravilhosa’ que ela como ironicamente sugere seu nome. O
mostrou sua face mais terrível. Por outro termo se deu pela postura da Espanha
lado, após amenizada sua devastação, na 1ª Guerra Mundial que, por ter sido
também foi no Rio a festa mais intensa. um país neutro durante o conflito, não
No carnaval de fevereiro de 1919, os ca- costumava censurar as notícias sobre a
riocas não se importaram com o vírus e epidemia. Dessa forma, as primeiras in-
decidiram ir às ruas brincar aquele que foi formações que chegavam no Brasil sobre
considerado, até então, o maior carnaval a “nova epidemia” vinham quase que ex-
da história. clusivamente da Espanha. Naturalmente,
Durante o quarto ano da Primei- o termo “Gripe Espanhola” acabou se po-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

ra Guerra Mundial, a “Gripe Espanhola” pularizando injustamente.


surgiu infectando, de janeiro de 1918 a Enquanto na Europa “A Espanhola” se
dezembro de 1920 - segundo estimativas disseminava, no Rio de Janeiro - capital
- 500 milhões de pessoas; equivalente a da República, as notícias chegavam aos

1 Graduada em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
2 SCHWARCZ, Lilia M, e STARLING, Heloisa M: A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil. Companhia 84
das Letras, 1ª ed, São Paulo, 2020.
poucos pelos jornais. Contudo, todos mas,variados. Segundo Mota Rezende,
amenizavam a doença, uma vez que não de simples zoeiras nos ouvidos, surdez,
havia o conhecimento necessário sobre cefaleias e hipertermias simples, a doen-
o vírus e que a gripe não iria sobreviver ça se desenvolvia apresentando sintomas
por muito tempo no Brasil por causa do como calafrios, hemorragias, urinas e
clima tropical, temperaturas altas ou que vômitos sanguíneos, acompanhados por
dificilmente a doença chegaria aqui. perturbações nos nervos cardíacos, infec-
No dia 16 de setembro de 1918, depois ções nos intestinos, pulmões e meninges,
de fazer paradas em Recife e Salvador, levando a vítima em poucas horas a su-
mesmo com a notificação que contava focações, dores lancinantes, ao letargo, ao
com os enfermos que apresentavam vá- coma, à síncope e finalmente à morte3.
rios estágios da doença na sua tripulação, O número de gripados saltou de 440,
o navio Demerara recebeu autorização no dia 10 de outubro, para cerca de 20 mil
para desembarcar, e assim, a doença co- dois dias depois4 . As primeiras mortes
meçou a se espalhar pelo Rio de Janeiro. pela moléstia foram divulgadas apenas
Aos poucos, a cidade começava a adoecer. dia 13 de outubro, vinte e sete dias após
Por falta de conhecimento dos gestores da chegada do navio Demerara no porto
da época, não havia noção das propor- carioca.
ções que a gripe poderia atingir. O diretor A situação no Rio de Janeiro era o caos.
geral da Saúde Pública da capital “estava Faltavam leitos, remédios, médicos, hos-
convencido que não havia motivos para pitais para tratar os doentes mais graves
intranquilidade”. Desta forma, não eram e até comida. Os socorros, além de insu-
passadas informações suficientes para a ficientes, restringiam-se à população que
população que mantinha sua rotina na habitava os centros urbanos, enquanto os
capital. Não tardou para as pessoas co- subúrbios, morros e outras localidades
meçarem a passar mal, cairem doentes e periféricas sofriam imensa carência no
morrer em questão de horas. atendimento mais básico.
Era extremamente rápida a velocidade Condicionada pela marcha sombria da
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

de contágio, o período de incubação era epidemia, o Rio de Janeiro se tornou um


curto e o número de pessoas acometidas cemitério a céu aberto de corpos largados
pela moléstia muito elevado, como tam- nas ruas reformadas por Pereira Passos.
bém era o grau de letalidade. Os sinto- A espanhola fez fenecer no Rio de Janeiro

3 MOTA, Rezende: Basites pulmonares. Arquivos brasileiros de Medicina. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de
Medicina, pp. 305-8, 191.
85 4 MEYER CL, Teixeira JR. A grippe epidêmica no Brazil e especialmente em São Paulo. São Paulo: Casa Duprat;
1920.
Versus Acadêmica
algo em torno de 15 mil pessoas, levan- 1918, com a curva natural de declínios
do para o leito seiscentos mil cariocas, ou das epidemias.
seja, cerca de 66% da população local5 . Aos poucos, a população começou a
A população foi buscar maneiras alter- sair às ruas e voltar à rotina. O pico da gri-
nativas de se tratar. Usavam com frequ- pe espanhola havia passado e com ela o
ência aspirina, desinfetante do álcool ou medo da população. Ninguém dotava de
do vinagre e reconheciam as vantagens certeza quando ou se a gripe espanhola
no uso de máscara, no sentido de reduzir iria retornar. Mas, enquanto ela não vol-
o risco de contaminação. A cloroquina já tava, o carnaval de 1919 se aproximava,
havia sido apontada como uma alterna- desencadeando, na população, a vontade
tiva contra a gripe, entretanto, nenhuma de aproveitar a vida antes que fosse tarde
autoridade de saúde aprovou a medica- demais.
ção, pois a mesma só era indicada para Desde o começo de 1919, os jornais
tratar malária, assim como hoje. dedicaram páginas e mais páginas aos
A situação instaurada pela epidemia de preparativos para a folia – o pré-carnaval
gripe espanhola foi encarada como fruto já foi animado, com bailes nos principais
de negligência, descaso, incompetência clubes e blocos nas ruas da então capital
administrativa do governo que não pos- federal. “Os cariocas caíram na farra, co-
suía estratégia alguma para lidar com as memorando o fato de que tinham sobre-
ameaças que intimidavam a nação, fato- vivido ao fim do mundo”, conta o pesqui-
res amplamente explorados pelos jornais. sador da Fiocruz Ricardo dos Santos.
A reação e a tensão populares espelha- Além do fim da primeira grande onda
vam o fracasso do governo em persuadir da gripe, o início de 1919 celebrava tam-
as pessoas sobre a racionalidade de suas bém o encerramento da primeira guerra
ações. mundial e, por isso, motivos não faltavam
Apenas no dia 30 de setembro de 1918 para uma grande festa nas ruas cariocas.
começaram a ser instaurados os servi- Nem a morte do presidente do país, Ro-
ços de assistência domiciliar e socorros drigues Alves, que havia sido acometido
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

públicos. As mortes começaram a dimi- pela gripe espanhola, comoveu os cario-


nuir consideravelmente em novembro de cas 6.

5 GOULART, A. da C.: Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. História, Ciências,
Saúde – Manguinhos, v. 12, n. 1, p. 101-42, jan.-abr. 2005.
6 Até hoje existe o mito de que Rodrigues Alves morreu de gripe espanhola. Mas o presidente, segundo Schwarcz.
tinha problemas cardíacos e respiratórios que já vinham há muito tempo. E sabe-se que a gripe matava em poucos
dias após o início dos sintomas. Como o presidente contraiu a gripe em outubro e faleceu em janeiro, fica im-
provável que a morte seja por causa da doença. "Ao dizer que Alves morreu de gripe espanhola, cria-se a ideia de
um herói que morreu junto de seu povo, e não que os brasileiros haviam eleito uma pessoa que já estava doente", 86
completa Schwarcz.
A população brincou e fez pouco da TZ: Assim que terminou o carnaval,
doença, e em 1º de março de 1919 o car- a pandemia já estava entrando no Bra-
naval explode nas ruas da capital. Sem sil e a gente começou a pensar algo que
medo da doença, grande parte da po- fosse importante pra esse momento, que
pulação aproveitou os festejos contando trouxesse alguma mensagem saudável,
com a omissão e nenhuma interferência que tivesse algum diálogo com a atuali-
do governo da época. dade, então fomos em busca de algo que
A gripe, inclusive, foi tema de mar- pudesse nutrir esse anseio das pessoas de
chinhas e carros alegóricos das Grandes passar por aquele momento difícil. E en-
Sociedades Carnavalescas, que é o mais tão a gente leu uma reportagem da Folha
próximo hoje do que é o desfile de Esco- de São Paulo falando sobre o carnaval de
las de Samba. Os cariocas foram para as 1919, que já tínhamos uma vaga ideia
ruas celebrar uma possível vitória contra sobre, já que pra fazer carnaval precisa
a influenza e à vida. “E se for o último car- entender a história, mas a gente não sabia
naval da minha vida?”. Só restava festejar. que era exatamente um carnaval pós pan-
E assim aconteceu o maior carnaval da dêmico e pós a primeira guerra mundial,
história do Rio de Janeiro. e que esse carnaval tinha sido considera-
103 anos depois, a atual campeã do do o maior carnaval de todos os tempos.
carnaval carioca, Unidos do Viradouro, Isso foi o que mais nos estimulou, e até
contará mais sobre esse carnaval e afirma: naquele momento nos trouxe um alento,
“não há tristeza que possa suportar tanta que era um momento de comemorar. A
alegria”. Esse será o enredo da escola de gente tinha acabado de sair de um cam-
Niterói em 2022. peonato, que a gente não pôde comemo-
Os carnavalescos da Viradouro, Mar- rar da forma devida até hoje, então queria
cus Ferreira e Tarcísio Zenon, aceitaram trazer uma mensagem que fosse saudá-
compartilhar um pouco sobre como eles vel, que tivesse esse diálogo com a atuali-
pretendem contar essa história na Sapu- dade e que trouxesse uma esperança para
caí, que retrata uma realidade que, apesar o próximo carnaval, assim como há 103
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

de acontecida há 102 anos atrás, conversa anos atrás, quando o carioca conseguiu
diretamente com o nosso momento atual. ressignificar e virar essa página.

Como surgiu a ideia de trazer Como vocês pretendem retra-


essa história para um desfile de tar uma doença com efeitos tão
escola de samba? duros e fortes, transformar o
87
Versus Acadêmica
desfile sem deixar pesado? tamente inesperado durante a
TZ: O nosso carnaval é datado em pesquisa?
1919, a gente não fala diretamente sobre TZ: Tiveram algumas coisas que eu
a pandemia de gripe espanhola, nós es- fiquei bem surpreso. A gente descobriu
tamos falando sobre o carnaval de 1919. um personagem que não é conhecido
Como se deu essa alegria? Como a so- pelo grande público, o Jamanta, que era
ciedade, que os grupos carnavalescos, um condutor ferroviário. Ele conduzia
que os blocos, ressignificaram a doença? os corpos durante a pandemia, porque
O carioca, pelo que a gente pesquisou, não existia um sistema de saúde, só casas
teve várias formas de significar isso. Por de saúde, e era muito precário, não tinha
exemplo, na pandemia surgiu a caipiri- muito acesso à informação, remédios
nha como um xarope e se tornou a maior específicos, vacina, nada e muitas pes-
bebida nos blocos e símbolo da cidade. A soas morriam nas ruas. E esse condutor,
canja de galinha com homens vestidos de Jamanta, levava os corpos para uma vala
galinha nos blocos, brincando com essa única. Ele conseguiu sobreviver à gri-
coisa da canja ser curativa, então a gen- pe e no carnaval ele repintou o bonde e
te foi por esse caminho jocoso, como foi conduzia os blocos e foliões pra praça da
em 1919. É importante falar que o nosso república. Eu acho isso um dos simbo-
desfile vai tratar a alegria pós a dor, se so- lismos que o carnaval tem. Ele repintou,
brepondo a dor, assim como o título do ele deu uma nova vida, ele celebrou um
enredo, que é retirado de uma marchi- novo momento com a função dele e com
nha do clube dos democráticos: “não há a energia de folião que ele também tinha.
tristeza que possa suportar tanta alegria”.
Foi dessa forma que o carioca foi pra esse Qual foi a melhor parte de fa-
carnaval – e que a gente acredita também zer esse Carnaval?
que vá ser no próximo carnaval. Com
TZ: A melhor parte é essa resposta do
certeza deve ter um bloco vestido de jaca-
público já no pré-carnaval. Sentimos des-
ré, então a gente acredita que o carioca vai
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

de o lançamento do enredo. A Viradouro


conseguir ressignificar a dor e viver esse
é uma escola que tem essa veia emocio-
carnaval de maneira plena, celebrando a
nal muito forte. Então ao decidir enredos
vida.
a gente pensa muito que tem que ter um
Teve alguma descoberta mui- viés emocional, porque o viradoense gos-
to interessante ou algo absolu- ta disso. E mais do que isso, você conse-
88
guir trazer uma mensagem de esperança, da leva e quando os sambas voltaram, a
já no pré-carnaval, sentimos que a aveni- maior parte conseguiu resolver aquilo
da vai entender o nosso recado. E ao falar sentimentalmente. E quando a gente ou-
de carnaval pós pandêmico, você conse- viu o samba da parceria campeã não tive-
gue incluir a todos, ninguém conseguiu mos dúvidas, porque a gente se emocio-
fugir dessa doença, ninguém conseguiu nou, sentimos exatamente o que a gente
não viver essa doença, então é um tema tinha pedido a eles, um samba emotivo,
que com certeza, de alguma forma, vai um samba que não fosse somente histori-
tocar o coração de cada um. cista, mas que mantivesse todos esses sen-
O que vocês acharam do sam- timentos que levaram esse carnaval a se
ba escolhido? Quando escuta- tornar inesquecível. É claro que foi uma
ram pela primeira vez se sentia expertise nossa porque se fala de um sen-
que seria ele? timento que os cariocas viveram em 1919
e que são os mesmos que estamos tendo
MF: Tivemos a primeira leva de sam-
hoje. Como a gente vê que o samba está
bas para a escola, mas houve uma difi-
tocando muitas pessoas, apesar de ser um
culdade porque a Liga Independente das
samba diferente, não temos dúvida que
Escolas de Samba (LIESA) estava naquela
foi a melhor escolha para a escola.
indecisão se iria ter o carnaval de 2021 ou
Com a covid se relacionando direta-
não. Então o processo de feitura junto com
mente com o tema, como vocês lidam
os compositores foi muito rápido, porque
com as possíveis críticas sobre "fazer fes-
estávamos no meio de uma pandemia,
ta" sobre um tema que, apesar de extre-
eles não estavam se encontrando, então
mamente importante, naturalmente gera
muitos fizeram o samba pelo WhatsApp.
dor em tanta gente?
E a gente sempre deixou claro pra eles que
O título do enredo já começa com “não
queríamos um samba emocional, que foi
há tristeza”, então o cuidado que a gente
o tom que a gente usou na sinopse e no
teve foi de não retratar a gripe espanhola,
enredo. E recebemos exatamente o con-
a gente não retrata a pandemia, a gente re-
trário, que foram sambas descrevendo a
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

trata a alegria que foi esse carnaval. Então


história do carnaval de 1919 que não era
o enredo ganha força nisso, nesse anseio
o que a gente pretendia. Ouvimos todos
os sambas e, como não teve o carnaval, esperançoso e motivador. A pandemia
decidimos que teríamos tempo pra poder mudou a cabeça de todo mundo, então a
passar o sentimento que a gente queria gente tem esse cuidado de não criar fan-
empregar nos sambas. Veio uma segun- tasias que retratassem a gripe espanhola
89
Versus Acadêmica
Como é preparar o carnaval Qual a contribuição da Vira-
em um contexto pandêmico? douro nesse contexto pandêmi-
co? (vocês fizeram as máscaras)
MF: A gente sempre olha as coisas
com um lado positivo e outro negativo. MF: A escola já faz um trabalho social
Positivo é que a gente teve um tempo grande na cidade de Niterói, mas com a
além. E as vezes o processo criativo de pandemia, a escola, e outras agremia-
uma escola é muito rápido, então a pan- ções também, fizeram Equipamentos de
demia nos trouxe isso de bom. Mas o Proteção Individual (EPIs), como más-
fator negativo é o fator psicológico. Tive- caras, envelopes cirúrgicos para a linha
mos que conversar com os profissionais, médica, distribuição de cestas básicas.
as vezes senti que eles não estavam bem, E muitas pessoas da própria escola, que
teve uma profissional nossa que produz frequentam a quadra, precisavam de um
flores com vários tipos de materiais que apoio. A cidade do samba foi interditada
perdeu praticamente toda família de co- e, quando a pandemia diminuiu a Vira-
vid. Dois filhos, o esposo e a mãe. O fator douro foi a primeira escola a continuar o
emocional pesou e a gente sentiu que os trabalho em um ateliê próximo, porque a
profissionais estavam muito abalados. preocupação da nossa presidência foi que
E a gente também não aguenta mais ver aos poucos fosse empregando os profis-
esse projeto (risos) a gente quer virar a sionais, e conseguimos fazer isso a longo
página. Não só nós, mas todas as escolas prazo.
querem vislumbrar o próximo carnaval,
porque são quase dois anos e meio em Como está a organização do
cima de um projeto. Além disso não teve grupo especial das escolas de
uma diversidade de materiais novos para samba junto às prefeituras de
fazer esse carnaval. A maioria da matéria Niterói e do Rio?
prima é importada da China então, com MF: A cidade de Niterói abraça sem-
a pandemia, esse laço comercial, pro car- pre a Viradouro, porque a Viradouro é
naval, foi um pouco rompido. Então tra-
um dos símbolos hoje da cidade de Ni-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

balhamos com muita coisa do almoxari-


terói. Então a gente recebe essa verba da
fado e com o que a indústria do carnaval
prefeitura, assim como outras escolas de
tinha em mãos. E a alta do dólar elevou o
preço de tudo, fez com que a madeira, a outros municípios recebem. E no Rio de
fibra, a ferragem, aumentasse muito o va- janeiro, esse ano, temos a graça de ter o
lor. Então é um carnaval que a gente teve prefeito Eduardo Paes que não só gosta da
que fazer com o talento. festa, mas entende a importância cultural
90
e econômica que as escolas promovem soas que se foram com essa pandemia. O
pra cidade, turismo, hotelaria, indústria, samba é muito delicado quando fala “que
trabalhador informal. E ele ressuscitar o além do infinito o amor se renove”. Esse é
respeito cultural, para as escolas de sam- o recado que a gente quer passar no final.
ba, é o mais importante depois da gestão
anterior que, além de não dar um suporte
para as escolas, ele minimizou os sambis-
tas e a cultura do carnaval, e independen-
te do gestor que for assumir a cidade do
rio, ele tem que o Rio de Janeiro é muito
sustando pelo próprio carnaval das esco-
las de samba e desfiles de bloco.

O que esperar do desfile da Vi-


radouro?
MF: Muito beijo na boca, muito abra-
ço, muita emoção (risos). Todos esses
sentimentos que envolveram o carnaval
de 1919 vão estar presentes, o reencontro
com os familiares, a homenagem a linha
médica. [...] apostamos muito no desfile,
no samba, no enredo, nas fantasias, nas
surpresas que vão ter durante o desfi-
le, comissão de frente. Estamos levando
muita fé e esperança que a Viradouro,
além de disputar mais um título, vai emo-
cionar.
TZ: A Viradouro pretende transpor-
REVISTA VERSUS ACADÊMICA, MAIO DE 2022

tar os componentes e quem está na ar-


quibancada para reviver essa catarse de
alegria de 1919. E mais do que isso, ser
também um grito de liberdade, um gri-
to de passagem dessa pandemia para um
novo momento. Sem se esquecer das pes-
91
ILUSTRAÇÕES: BERNARDO MARQUES
Samba

100 anos de Zé Keti:


a voz do povo
JOSIANE ALCÂNTARA

“Eu sou o samba


A voz do morro sou eu mesmo sim senhor
Quero mostrar ao mundo que tenho valor
Eu sou o rei dos terreiros”
A voz do morro, 1955
Zé Keti

Verso presente na memória musical brasileira, derados apartados na dinâmica artístico-cultural do


certamente o leitor já deve ter se deparado com seu momento de atuação.
esta composição e outras tantas letras emblemáticas A proposta da Revista Versus é apresentar e ho-
produzidas pelo compositor e cantor Zé Kéti, figura menagear esse sambista, e buscar dar contornos
importante para história do samba carioca e para a a uma trajetória tão rica, permeada de luta, nego-
música popular brasileira, cujo centenário foi co- ciação e resistências. Nossos guias para retratar Zé
memorado em setembro de 2021. Kéti são os relatos de sua própria família, a partir de
Essa personagem era um indivíduo de circula- entrevistas que a equipe da revista Versus realizou
ção, foi um empreendedor, mediador no campo com sua filha Geisa Kéti, herdeira e responsável pela
da cultura, comunicador, militante, articulador. preservação do legado do compositor, e seu genro,
Essas múltiplas dimensões da figura de Zé Kéti vão Onésio Meireles, biógrafo e escritor do livro Zé Kéti
compor uma imagem para além de uma trajetória e suas andanças por aí (2018).
única, linear, restrita à sua atuação na música. Suas Para compor este texto, nos ajudam, também, Alí-
experiências artísticas e políticas eram mais amplas, pio Pereira do Carmo, historiador e mestrando do
cheias de camadas e baseadas na interação com Programa de Pós-Graduação em História (UFRJ), e
indivíduos e espaços que, socialmente, eram consi- o professor e historiador Pablo de las Torres Spinelli.

93 VERSUS, MAIO DE 2022


José Flores de Jesus, mais conhecido como Zé 1930. Zé Kéti integrou a ala de compositores da
Kéti — um encurtamento de Zé Quieto ou Zé Portela, escola de samba pela qual é recorrentemen-
Quietinho, apelidos de infância — nasceu em te associado —uma relação de altos e baixos, mas
Inhaúma, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, em que não deixou de ser tratada como sua escola do
16 de setembro de 1921, e faleceu na mesma cidade coração. Ele, também, foi compositor do Grêmio
em 14 de novembro de 1999 . Recreativo Escola União de Vaz Lobo e frequentava
A música fez parte do seu cotidiano familiar: a Estação Primeira de Mangueira, local onde teve
seu pai tocava cavaquinho e seu avô era flautista e contato com figuras como Cartola. Como estraté-
pianista, e as rodas de choro eram eventos frequen- gia para divulgar as suas composições, ele passou a
tes na sua casa de infância. Com o falecimento do frequentar o Café Nice — estabelecimento que se
pai, em 1924, o adolescente Zé Quietinho foi mo- situava na Avenida Rio Branco, entre as décadas de
rar com o avô, no bairro carioca de Bangu, porém 1930 e 1940 — em busca de contatos com artistas
sua vida esteve relacionada a diferentes bairros da famosos, já que este era o ponto de encontro da bo-
região suburbana do Rio de Janeiro, ambiente pre- emia carioca.
sente em suas músicas. Conforme diz Geisa, Zé Kéti Seu primeiro grande sucesso foi o samba Amor
foi um suburbano “com muito orgulho”. de Passageiro (1951), em parceria com Jorge Abda-
Zé Kéti estudou até o ensino primário e, no início la, gravado por Linda Batista. No entanto, sua car-
da adolescência, trabalhou com venda de peixes e reira ganha projeção com a participação no filme
em uma fábrica de calçados. Aos 19 anos, ingressou Rio 40º (1955), filme do cineasta Nelson Pereira dos
no II Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Santos (1928-2018), cuja música A Voz do Morro
durante a Segunda Guerra Militar. Porém, como (1955) é melodia tema para a narrar o cotidiano de
afirma em entrevista à Rádio Nacional , no final dos cinco jovens moradores de uma favela na periferia
anos 1940, retorna àquela profissão que identificava carioca. Essa relação entre Zé Kéti e Nelson Perei-
como sendo a sua: no campo gráfico, cuja atuação ra dos Santos é lembrado por Geisa Kéti e Onésio
era de ajudante de offset no setor de litografia. Meireles como um momento importante na carrei-
Sua carreira musical se inicia no final dos anos ra de ambos. Segundo Meireles, Nelson tinha aca-
bado de chegar ao Rio de Janeiro e Zé Kéti foi uma
espécie de anfitrião para o jovem diretor paulista.
O encontro, no antigo bar Vermelhinho, reuniu
expectativas muito similares: ambos queriam um
lugar ao sol, Nelson como cineasta e Zé Kéti como
compositor. O filme, antes de ser lançado, foi censu-
rado sob argumento de que o Rio de Janeiro nunca

1 ZÉ KETI. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural. Disponível em: < https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa26387/ze-keti>.


2 Zé Kéti: um repórter musical. Locução: Vidal Assis e Raquel Ricardo. Brasília: Empresa Brasileira de Comunicação, 04 set.
2021. Podcast. Disponível em: < https://radios.ebc.com.br/especiais-radio-mec/ze-keti>. Acesso em: 25 jan. 2022.

VERSUS, MAIO DE 2022 94


Samba

tinha atingido os 40ºC indicado no título da obra.


Porém, como nos explica o professor e historiador
Pablo Spinelli, a real razão era o incômodo dos gru-
pos dirigentes pelo filme retratar o cotidiano do su-
búrbio e suas desigualdades sociais.
A relação de Zé Kéti com Nelson Pereira dos
Santos — que posteriormente seria reconhecido
como um dos fundadores do Cinema Novo — se
estendeu na produção do filme Rio Zona Nor- tos de reconhecimento de artistas do passado e, ao
te (1957), protagonizado pelo ator Grande Otelo mesmo tempo, dando a chance para novos artistas”.
(1913–1993), e que narra as adversidades da vida O papel de liderança de Zé Kéti é reafirmado por
cotidiana do sambista carioca Espírito da Luz, em seu biógrafo, Onésio Meireles, indicando que Zé
busca do reconhecimento dos seus direitos como Kéti sempre procurou dar apoio e ajudar os demais
compositor. sambistas e compositores de sua rede a encontrar o
Estas experiências com o cinema e com o am- sucesso, e que a sua estratégia era buscar apoio ‘ba-
biente gráfico demonstram uma vocação comuni- tendo em diferentes portas’: “Ao longo da vida dele,
cadora que atravessou, constantemente, a trajetória quando começou a lutar por isso [reconhecimento
de Zé Kéti, não se restringido àquela por via musical: dos artistas], ele falava assim: ‘Bato em várias portas,
Zé Kéti foi ator e assistente de câmera no cinema, muitas não vão abrir, mas vai ter uma que vai abrir”.
atuou em rádios, na imprensa, no teatro. Em muitos E uma das estratégias se desenrolou em um local
momentos se intitulava um cronista musical, con- famoso: ZiCartola, restaurante criado por D. Zica
tando o que viu em suas andanças e interações pelo e Cartola, que funcionou entre 1963–1965. Ali, Zé
subúrbio do Rio de Janeiro. O morro, a cidade do Kéti criou uma famosa roda de samba que contava
Rio de Janeiro, o cotidiano das populações pobres com a presença de personalidades e intelectuais e,
são personagens frequentes em sua obra. sobretudo, virou ambiente para a projeção de novos
Para os entrevistados, Zé Kéti atingiu o auge da nomes de sambistas e compositores das regiões pe-
sua carreira entre as décadas de 1960 e 1970, sen- riféricas da cidade. Como articulador, Zé Kéti bus-
do um dos principais interlocutores da música cou estabelecer uma zona de contato entre o pessoal
brasileira. Pablo Spinelli afirma que, neste período, da Bossa Nova e o pessoal do Samba, a partir das
Zé Kéti estabeleceu um diálogo entre gerações de seguintes estratégias. Primeiro, fez um acordo com
sambistas. “Ele era um elemento aglutinador, era Carlos Lyra, para que este o levasse a conhecer os
uma força que centralizava essa cultura pelas mais principais nomes da Bossa Nova e ele, Zé Kéti, fi-
variadas regiões do Rio de Janeiro, especialmente caria responsável por levar o cantor e compositor
da região suburbana, das periferias. E Zé Kéti tinha de Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, para co-
um papel de liderança e de organização de even- nhecer os redutos de samba no subúrbio da cidade,

95 VERSUS, MAIO DE 2022


conforme conta Onésio Meireles. Segundo, buscou dida para mostrar a qualidade dos com-
ampla divulgação, anunciando a roda de samba do positores da Zona Norte. Mostrar que as
ZiCartola nas rádios e em prospectos distribuídos pessoas de lá sabiam escrever, sabia fazer
nas ruas. Assim, neste restaurante começaram a cir- melodias e sabiam, também, cantar. E
cular figuras como Tom Jobim, Dorival Caymmi, através desses que ele conheceu lá do café
o próprio Carlinhos Lira, Nara Leão, Roberto Me-
Nice, na Praça Tiradentes, no ponto dos
nescal, Oduvaldo Viana Filho, Roberto Menescal,
compositores, na Cidade, ali havia uma
e os universitários vinculados à União Nacional de
circulação muito grande desses artistas
Estudantes.
–sempre se encontrando – uns procura-
Estar em movimento, em contato, criar pontes
vam as músicas e os outros compositores
entre grupos e pessoas das artes foi uma marca
na trajetória de Zé Kéti. Ele cruzava as fronteiras,
da Zona Norte e do subúrbio levavam
negociava e criava estratégias para contornar as as suas composições, suas músicas para
barreiras impostas aos músicos e compositores, oferecer e para nessa parceria também
especialmente aqueles de origem mais popular. A ganhar, como Pai Zé Kéti dizia, ‘o pé-de-
experiência do ZiCartola coloca em evidência essa -moleque e a cocada’, para poder fazer a
figura articuladora que procurava estabelecer inter- feira de domingo, pelo menos, para levar
câmbios culturais. Segundo Geisa Kéti, esses inter- o leite para as crianças”.
câmbios, essa circulação, essas andanças pela cidade
foram alimento para sua obra, e ao mesmo tempo,
demonstram o papel de liderança que seu pai cum-
priu, concomitante ao papel de artista:
"Ele era um líder bem forte, porque ele
ousava mesmo, se metia em tudo o que
era buraco para conseguir conquistar as
coisas, porque sabia das dificuldades do
sambista. Ele sabia que algo precisava ser
feito além de escrever e cantar. Escrever
e cantar, só, não ia mudar praticamente
muita coisa, então ele saiu lá de Oswal-
do Cruz e começou vir para o Centro da
Cidade para fazer aquele intercâmbio,
falar com outras pessoas, pessoas que já
cantavam nas rádios, pessoas bem-suce-
Ilustração inspirada na filha de Zé
Keti, Geiza Keti

VERSUS, MAIO DE 2022 96


Samba

Zé Kéti era uma personalidade no mundo mu- das pessoas que o produziam: “O que ele fez foi isso,
sical e intelectual daquele momento, e usava o seu ele conseguiu unir o outro lado do túnel, a Zona Sul
espaço para alçar novos nomes, amigos com quem com a Zona Norte”.
atuava frequentemente nas rodas de samba do Zi- Para o historiador e professor Pablo Spinelli, essas
Cartola. O conjunto A Voz do Morro é um exem- críticas dirigidas a Zé Kéti tinham origem nas ‘ga-
plo: Zé Kéti criou o grupo musical em meados da vetas’ que tradicionalmente se colocavam os com-
década de 1960, e reuniu a nova geração de sam- positores: “Zé Kéti, na verdade, era bastante plural
bistas daquele momento, cujos integrantes incluí- e bastante moderno, porque ele percebeu que a
am nomes como Paulinho da Viola, Elton Medei- Bossa Nova era filha do samba e que a Bossa Nova
ros, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho. Segundo poderia dialogar com o seu pai, que era o samba”.
Alípio Carmo, o grupo era formado por integrantes O pesquisador ainda complementa que essa intera-
de diferentes escolas de samba, e evidenciava uma ção promovida pelo compositor era uma forma da
vontade de abrir espaço para novos sambistas. Zona Sul ouvir as críticas sociais da periferia: “Sair
Mas a sua ação não passou sem cismas, con- do sol, da praia, do barquinho e começar a ouvir os
forme lembra Onésio Meireles, afirmando que as problemas de moradia, os problemas da violência, a
principais críticas direcionadas a Zé Kéti diziam de falta d’água…”
um certo ‘embranquecimento’ do seu trabalho de- Falar da realidade, das urgências dos grupos pe-
vido às parcerias com artistas como Nara Leão, ou riféricos, é uma marca no samba composto por Zé
que este estaria ‘traindo’ os compositores de sam- Kéti. Lembremos do samba Opinião (1964), feito
ba, indo para o outro lado. Porém, Onésio ressalta em protesto às remoções dos moradores das favelas
um elemento importante na experiência artística da região central da cidade do Rio de Janeiro, para
de Zé Kéti: o que ele estava querendo era promo- a Zona Oeste do Rio de Janeiro, política tocada du-
ver pontos de interação entre grupos e indivíduos rante a gestão do prefeito Carlos Lacerda:
para ampliar os espaços de circulação do samba e “Podem me prender,
podem me bater.
Podem até deixar-me sem comer.
Que eu não mudo de opinião.
Daqui do morro eu não saio não,
daqui do morro eu não saio não.
(Zé Kéti. Opinião. 1965)
Esta música integrou o show de mesmo nome
que reuniu Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale no Te-
atro Arena, em 1965. Com o seu sucesso, o samba
de protesto contra a violenta política habitacional

97 VERSUS, MAIO DE 2022


ganhou novos contornos, ganhou a rua e tornou-se
canto dos manifestantes contra o Golpe Militar e a
instauração da ditadura.
Conforme nos lembra Geisa Kéti, a postura polí-
tica de Zé Kéti e sua indignação com a precariedade
das condições de vida das populações pauperizadas
são o combustível para suas letras de samba, e de-
vem ser consideradas como atemporais pelas per- creveu sambas sobre o amor, sobre a poesia, sobre o
manências que a falta de políticas públicas adequa- carnaval. Assim como, Zé Kéti não foi um homem
das promove. A música Acender as velas (1964) é de apenas uma faceta. Ele foi empreendedor, inves-
uma lembrança ‘cantada’ por Geisa, que considera tindo por um curto tempo na linha de barcas en-
esta composição como uma das mais emblemáti- tre Rio – São Gonçalo, em uma empresa chamada
cas: Mar-Keti. Foi um homem engajado na luta pelos
“Acender as velas direitos dos artistas, liderando as mobilizações pelos
Já é profissão direitos autorais dos compositores. Ele se articulou,
Quando não tem samba politicamente, para a construção do conjunto habi-
Tem desilusão tacional Cidade do Som, condomínio para músicos
criado em 1969, no bairro do Engenho da Rainha.
Desilusão… Desilusão
Este é o local que a família, ainda hoje, habita.
É mais um coração
Zé Kéti viveu para a comunidade, para troca, vol-
Que deixa de bater
tou seus esforços de luta para o outro. Entendeu a
Um anjo vai pro céu
sua arte como instrumento para favorecer as comu-
Deus me perdoe
nidades das periferias, e para que seus indivíduos
Mas vou dizer
fossem reconhecidos por sua cultura, suas formas
O doutor chegou tarde demais de viver e de resistir. A luta, a mobilização e a mili-
Porque no morro tância pela cultura e pelos artistas brasileiros estão
Não tem automóvel pra subir presentes na experiência política de Zé Kéti, que foi
Não tem telefone pra chamar integrante do Partido Comunista Brasileiro, assim
E a gente morre sem querer morrer.” como outros sambistas da sua geração, atuando em
(Zé Kéti. Acender as velas. 1964) prol das artes e, sobretudo, para a profissionaliza-
Zé Kéti construiu em suas composições um espa- ção, regulamentação e garantias jurídicas do profis-
Zé Kéti construiu em suas composições um espaço sional compositor. “Zé Kéti foi um aglutinador, era
para gritar em favor das populações mais vulnerá- ativista sim, e era, também, um tanto militante. Ele
veis, conforme aponta Geisa, mas não restringiu a se dividiu bastante, mas tudo pensando no samba,
sua música às dificuldades da realidade social. Es- colocando o samba para ser instrumento para valo-

VERSUS, MAIO DE 2022 98


Samba

rizar o próprio povo e nossa cultura”, afirma Geisa. o Estado do Rio de Janeiro atribuiu o nome do sam-
Garantir que as gerações futuras conheçam essa bista, porém a família indica ser insuficiente:
personagem é um dos projetos tocados por sua fi- “Já que ele é carioca, ele nasceu no Rio e morreu
lha Geisa, que no ano de 2021, lançou o projeto Ma- no Rio, então eu acho que pelo que ele fez, pela his-
triarcas do Samba, show em parceria com as her- tória dele, ele tinha que ter um equipamento públi-
deiras de Cartola, Clementina de Jesus e Candeia, co, um teatro, uma rua, uma escola pública com o
cujo objetivo é apresentar aos espectadores compo- seu nome. Mas até hoje não apareceu ninguém para
sições importantes para a história do samba cario- fazer isto”, afirma Onésio.
ca. Porém o projeto visa preservar os legados desses Esta luta pela memória, pelo reconhecimento e
sambistas, dar visibilidade à presença das mulheres preservação dos legados dos sambistas é constan-
no universo do samba e, também, reagir ao esqueci- te, levada com afeto, dignidade e muita resistência,
mento promovido pelos poderes públicos. A esco- como podemos apreender da fala de Geisa Kéti, ao
lha do repertório, segundo Geisa, foi feita por ela e narrar que os projetos junto às demais herdeiras de
seu marido, Onésio Meireles, baseada em questões personalidades do samba, se viram desestabilizados
afetivas, mas buscando aquelas composições e me- pela pandemia e pelas dificuldades, de diferentes
lodias de seu pai, que carregam as lembranças e sig- naturezas, que este contexto evidenciou.
nificados do que a música conseguiu transformar e No entanto, para finalizar este texto, escolhemos
ajudar o povo a pôr em evidência sobre as questões ficar com as palavras carregadas de afeto e satisfação
políticas mais urgentes da sociedade. E afirma que de Geisa, ao lembrar de uma gravação do seu pai
suas músicas prediletas são A voz do morro, Opi- em que ele dizia que sonhava ver o seu nome, como
nião e Máscara Negra, pois para ela essas letras de sambista, na manchete dos jornais e nos outdoors
Zé Kéti “[…] representam, representaram, e ainda dos teatros, e que suas músicas fossem tocadas nas
hoje a gente pode falar sobre com essa juventude, rádios. “Ele queria que valorizassem o samba de
para que eles nunca se esqueçam e nunca percam qualquer maneira, a todo o custo”. E tudo isso acon-
essa essência de também se indignar contra as coi- teceu. “A gente fica feliz porque valeu a pena viver.
sas erradas nesse país”. Houve conquistas, houve sofrimento, mas não há
Apesar das diversas comemorações ao cente- vitória sem luta. E isso é muito bacana, é muito
nário de Zé Kéti, Onésio Meireles denuncia que o gratificante contar a história do meu pai Zé
compositor não teve o reconhecimento que mere- Kéti”, completa Geisa.
cia pelos poderes públicos, carecendo de um equi- Zé Kéti foi um artista do povo. E con-
pamento público com seu nome, promovido pelo forme afirma Onésio de Meireles:
município do Rio de Janeiro, como uma forma de “Zé Kéti, vive. Vive através
eternizar aquele que tão bem cantou a realidade do das suas músicas, que não mor-
subúrbio carioca e seus habitantes. Atualmente, há rem, são imortais”.
um conjunto habitacional na região do Estácio, que Zé Kéti vive.

99 VERSUS, MAIO DE 2022


CCJE

CCJE E O
GT COVID
GABRIELLE DIAS

No intuito de reconhecer a importância e o lugar Responsabilidade Social e Terceiro Setor, Economia


ocupado pelos institutos ligados às ciências sociais e Gestão da Sustentabilidade, Turismo e Políticas
aplicadas da UFRJ no enfrentamento à pandemia Públicas. Além disso, as pesquisas acadêmicas re-
de Covid-19, entrevistamos a professora Dalia Mai- alizadas pelo LARES dirigem-se, boa parte das ve-
mon, coordenadora do Laboratório de Respon- zes, às comunidades de baixa renda. Nesse sentido,
sabilidade Social e Sustentabilidade (LARES) do além do trabalho desempenhado na Mangueira, há
Instituto de Economia da UFRJ, bem como Míriam também projetos em andamento no Vidigal e na
Maia e Diogo Costa, integrantes do grupo e parti- Rocinha, ambos relacionados ao desenvolvimento
cipantes da pesquisa sobre as estratégias de comu- de territórios de economia criativa e inclusão digi-
nicação para prevenção do novo coronavírus na tal. Dentre outros trabalhos relevantes desempe-
Mangueira, comunidade localizada na Zona Norte nhados pelo LARES, cabe destacar o mapeamento
da cidade do Rio de Janeiro. dos territórios criativos na cidade, realizado em par-
Criado em 2004, o LARES tem uma história ceria com a Secretaria de Cultura do Município do
pautada pela produção de conhecimento voltado Rio de Janeiro, cujo objetivo final era o treinamento
às inovações sociais e tecnológicas. Com mais de desses pontos de cultura para uma captação de re-
mil e quinhentos alunos formados em seus cursos, cursos mais eficiente, capaz de gerar melhorias de
o laboratório oferece especializações nas áreas de renda significativas.

101 VERSUS, MAIO DE 2022


Questionada sobre os detalhes do projeto de- Diante disso, o objetivo principal do trabalho foi
sempenhado na Mangueira, Dalia Maimon chama a elaboração de uma estratégia específica de preven-
a atenção para a importância da extensão no fazer ção a epidemias virais em comunidades de baixa
acadêmico, afirmando que os trabalhos do grupo renda. Mais uma vez, cabe destacar a importância
se iniciaram com um diagnóstico participativo, do trabalho de campo nesse processo: “mesmo com
isto é, um processo de coleta de informações por toda a situação da Covid, seguindo os protocolos de
questionários, seguida da identificação dos líderes segurança, estando com máscara, nós conseguimos
da comunidade, culminando na elaboração de um ir a campo. Seguimos o mapeamento da Clínica da
projeto de extensão. De acordo com Míriam Maia, Família, que foi uma liderança importante. Eles di-
o primeiro questionário foi direcionado às lideran- videm a Mangueira em cinco áreas, que nós subdi-
ças comunitárias, na tentativa de identificar o papel vidimos e entrevistamos os moradores nos mesmos
desses grupos na frente de mobilização contra a Co- percentuais”, conta Míriam. A partir desse mapea-
vid-19, enquanto o segundo, mais curto, era voltado mento, o grupo chegou a duas conclusões princi-
aos moradores da comunidade, para entender me- pais: a primeira, de que havia um grau de conscien-
lhor as vivências e percepções da população diante tização entre os entrevistados, seja pela influência
do cenário de pandemia. das mídias tradicionais, com destaque para a tele-
A partir desses questionários, um primeiro im- visão, seja pela atuação das lideranças comunitárias;
passe identificado pelo grupo foi o tom adotado a segunda, de que houve alguma diferença entre as
nas campanhas de prevenção ao vírus, que, embora áreas da Mangueira no que tange às ações de pre-
pautadas nas orientações da Organização Mundial venção: a higienização das ruas pela Prefeitura, por
da Saúde, pouco amparavam as populações de bai- exemplo, limitou-se aos locais de mais fácil acesso.
xa renda. Se, por um lado, as recomendações ofi- De qualquer modo, a desigualdade social e o au-
ciais convidavam os moradores a lavar as mãos e mento do desemprego e da fome representaram um
manter o isolamento social, a realidade das favelas obstáculo para a execução das medidas de preven-
mostrava um cenário bem diferente, com espaços ção em todo o território. Morador da Mangueira
apertados, dificuldade no acesso à água e ao sanea- durante boa parte de sua vida, Diogo Costa relatou
mento básico e precarização do trabalho. Nas pala- que a motivação para participar da pesquisa surgiu
vras de Dalia, “para a população que vive apenas do devido àa inquietação que estava vivenciando junto
trabalho e está no informal, existe um dilema: mor- aos familiares: “Sou nascido e criado na comunida-
rer de fome ou morrer de vírus. [...] Não havia uma de da Mangueira. Faz quatro anos que não moro lá,
comunicação específica para a classe de renda mais mas meus amigos, minha mãe e minhas atividades
baixa. A gente teve o Auxílio Emergencial, uma coi- de lazer permanecem lá. Eu fiquei muito preocupa-
sa virtuosa, mas a confusão para implementá-lo foi do com essa questão da pandemia, tanto que trou-
tanta que as pessoas se contaminavam na fila”. xe minha família, minha tia que tem comorbidade

VERSUS, MAIO DE 2022 102


CCJE

gravíssima, para passar um tempo aqui em casa”. O mundo digital propicia oportunidades e é valori-
Sobre a questão da precarização do trabalho, Diogo zado por essa juventude”.
acrescentou: “Eu, por exemplo, pude trabalhar de Por fim, em breve análise sobre o papel das uni-
home office, mas a maioria dos meus amigos não versidades e das demais instituições ligadas à pes-
conseguiu se colocar nessa condição. Boa parte de- quisa na luta contra a pandemia, a professora faz
les são motoboys, eles recebiam informações sobre uma avaliação positiva, destacando o protagonis-
a importância do isolamento social, mas saíam de mo da Fiocruz e do Instituto Butantan na produção
casa e percebiam que, na prática, isso estava total- e distribuição de vacinas, principais responsáveis
mente distante da realidade deles”. pela diminuição no número de casos e mortes por
Por outro lado, um fator interessante apontado Covid-19 no país. Além disso, Dalia ressalta a re-
pelo grupo foi o sucesso da comunicação comu- levância das ciências sociais no enfrentamento das
nitária nas ações contra o vírus da Covid-19. Na drásticas consequências da pandemia: “o papel das
carência de um olhar mais cuidadoso do setor pú- ciências sociais é fundamental hoje em dia porque
blico, a população das favelas tende a organizar-se há uma crise muito grande no momento: proble-
internamente, e não foi diferente com a chegada mas que já existiam, de distribuição de renda, de
da pandemia: “se a comunicação do governo não oportunidades, da diferença entre trabalho manu-
é boa, o que eu vou fazer? Vou ter carro de som fa- al e trabalho intelectual, tudo isso se acirrou com a
zendo uma comunicação de prevenção, vou fazer a pandemia. Essa nossa postura lá no LARES, de ino-
limpeza das ruelas com aparelhos de lava jato. As fa- vação social com tecnologia, é fazer com que as pes-
velas passaram a ter suas próprias estatísticas do nú- soas possam ter outras oportunidades, ganhar mais,
mero de mortes e de morbidade [...], uma iniciativa ir para frente em termos profissionais. É melhorar a
dos moradores”, conta Dalia. Ainda nesse sentido, a qualidade de vida das pessoas. Estamos nessa luta”.
professora evidencia a importância da internet não
só como uma plataforma bem-sucedida de comu-
nicação entre as comunidades, mas também como
uma alternativa à precarização do trabalho nesses
territórios, por meio do empreendedorismo digital:
“Essa tentativa de criar parques tecnológicos nas
favelas é extremamente importante. Quando você
chega para um adolescente e diz ‘Vamos fazer um
curso de profissionalização’, o mundo digital hoje é
o grande atrativo, porque a gente tem no imaginário
que os homens mais ricos do mundo são dessa área.
ADRIANA MARQUES

Pandemia e Defesa:
ARQUIVO PESSOAL

a trajetória e os desafios do Ministério da


Defesa no enfrentamento à COVID-19

A pandemia de coronavírus trouxe mudanças No projeto Pandemia e Defesa, estudamos a atu-


em diversos aspectos da vida das pessoas e das or- ação do Ministério da Defesa a partir de três eixos: o
ganizações que têm impactado diretamente os pa- organizacional, o operacional e o internacional. No
íses, tanto internamente como externamente. As eixo organizacional, acompanhamos as mudanças
universidades precisaram se adaptar rapida¬mente estruturais e as ações operacionais, ocorridas e em
ao ambiente virtual e contribuir com os esforços de andamento na estrutura do Ministério da Defesa
outras instituições e da sociedade civil para enfren- e das Forças Armadas que foram direcionadas ao
tar e compreender a nova realidade que se impôs
apoio às medidas do Governo Federal contra o
globalmente. Diante desses desafios, nós do Obser-
Covid-19. No eixo operacional, avaliamos a conti-
vatório do Ministério da Defesa direcionamos nos-
nuidade ou descontinuidade do preparo e emprego
sas atividades para um projeto temático onde esta-
das Forças Armadas com vistas ao cumprimento
mos analisando a atuação do Ministério de Defesa
de sua missão constitucional de proteção das fron-
frente à pandemia do coronavírus. O Observatório
teiras, garantia da soberania nacional e integrida-
do Ministério da Defesa faz parte do Laboratório de
Estudos de Segurança e Defesa (LESD) criado em de territorial. No eixo internacional, caracterizado
2017. O LESD é um desdobramento do Laborató- pelas ações conjuntas dos Ministérios das Relações
rio de Estudos Estratégicos e Institucionais criado Exteriores e da Defesa, observamos o processo de
em 2013 para fomentar a pesquisa no curso de De- repatriação de brasileiros, o apoio aos fluxos migra-
fesa e Gestão Estratégica Internacional (DGEI) do tórios, questões sanitárias nas fronteiras e o apoio
Instituto de Relações Internacionais e Defesa. pertinente a outros países.

VERSUS, MAIO DE 2022 104


CCJE

Um fenômeno muito importante ao qual demos Operação COVID-19, mapeamos as regiões do


atenção no começo da pesquisa foi a extensa utili- país onde ocorreram o maior número de ações do
zação das forças armadas pelos governos ao redor Ministério da Defesa e a categoria de atividade de-
do mundo, seja para apoiá-los logisticamente no sempenhada pelos militares nessas ações. Também
âmbito doméstico, seja para realizar o repatria- analisamos as despesas emergenciais realizadas no
mento de cidadãos no exterior. No caso brasileiro, enfrentamento à pandemia pelas três Forças Ar-
a capilaridade das Forças Armadas em todo o país madas e pelo Hospital das Forças Armadas no ano
foi utilizada pelo Ministério da Defesa na Opera- de 2020. Nos próximos meses divulgaremos mais
ção COVID-19. Essa operação teve início em 20 de dados da pesquisa em elaboração pela participante
março de 2020 e empregou diariamente cerca de 34 equipe de estudantes de graduação do DGEI. Ad-
mil militares. Comparando com outros eventos nos quira mais informações sobre o projeto Pandemia e
quais houve uma grande mobilização no Brasil, o Defesa na página: https://observatoriomd.irid.ufrj.br
contingente empregado na Operação COVID-19
foi próximo ao contingente enviado para o Caribe
durante os 13 anos da Missão das Nações Unidas
para a Estabilização no Haiti e maior que o contin-
gente da Força Expedicionária Brasileira enviado a
Europa na Segunda Guerra Mundial. Porém, essa
mobilização de tropas tem características bem dis-
tintas: trata-se de uma operação para realizar ativi-
dades não militares em território nacional.
Se, por um lado, estes números impressionam
quando comparados com outros eventos nos quais
as tropas brasileiras foram mobilizadas, por outro,
identificamos que outros países latino-americanos
envolveram um contingente militar bem maior que
o brasileiro no enfrentamento à pandemia. O Brasil
empregou cerca de 10% de suas tropas na Operação
COVID-19, a Argentina mobilizou mais de 80% de
suas tropas no enfrentamento à pandemia, o Chile
utilizou cerca de 43% do seu contingente militar em
apoio a outras instituições do país.
Na página do nosso projeto disponibilizamos
um balanço das principais atividades desempenha-
das pelas Forças Armadas brasileiras no âmbito da
Contos da Quarentena

Tempos
Interessantes
MARIA LUIZA FRANCO BUSSE
RIO DE JANEIRO, BRASIL

V izinhos? Não sabia que os tinha.


Aquele coletivo de janelas havia de abri-
gar pessoas. Coletivo de janela. Hum, qual seria o
coletivo de janela?
Está bom para falar besteira. Chutar lata, não dá.
São muitos obstáculos, acaba quebrando alguma
coisa e, quanto mais não seja, não há lata. Menos
uma coisa para problematizar.
A filha é craque em problematização:
- Pode pegar um dinheiro para mim, filha? Aqui
está o cartão. A senha você já sabe.
- Mãe, é.… onde, quando, por que, para que, em
que sentido, você não acha...?!?
O tempo em que as questões iam sendo implica-
das, Dedé só pensava que já tinha ido e voltado. Era
assim, e Lili se aborrecia, ficava zangada:
-Tá vendo, você é sempre assim, não espera... a escrita se dá por contenção e a oralidade por acrés-
Batata! Era a deixa para Dedé se sentir culpada. cimo. Como não se tratava de uma coisa nem outra,
A culpa que mesmo as mães analisadas carregam. já que a conversa era com ela mesma ou, dizendo
Nem seria arriscado dizer que essa relação de bola de outro modo, da imaginação com a imaginação
e parede é a causa primeira de frequentarem o divã. e ela no meio disso, chegou a pensar que estaria
Uma mãe puxa a outra e da filha à bisavó não é um diante de uma nova perspectiva conceitual. Como
pulo. São muitíssimas sessões. Era só tirar dinheiro o desenvolvimento da questão demandaria grandes
no caixa eletrônico. Lili não deixava Dedé parar de esforços adicionais, achou melhor deixar quieto.
pensar, de motivar seu coração a seguir pulsando O vizinho estava lá. A presença dele a inibia um
forte nas horas em que riam e choravam juntas e pouco. Ou não. Ainda estava por decidir. Acabara
de bater no ritmo acelerado das situações em que de ver um unicórnio. De fato, a cabeça. Um unicór-
se quer sair correndo para escapar da chateação. No nio sem corpo. Não era nada disso. Atrás da cabeça
caso delas, fuga que não durava mais do que a bre- saltitante do balão estava uma garotinha. É domin-
vidade da volta. Assim iam vivendo do amor, fazia go, o dia está lindo. Ela na janela. Não sabia que a
tempo. “Relação de bola e parede”. Dedé adorava garotinha existia, assim como dizem que unicórnio
usar essa imagem grafada quando o assunto era não existe. Dedé se felicitou por nunca ter acredita-
relacionamento e se apressava em dar crédito ao do nessas histórias de que muitas coisas não exis-
autor. tem. Sobretudo nos dias que correm, a desconfian-
“Acho que o vizinho de uma das janelas, que ain- ça é de grande valia.
da aguardam eu resolver o coletivo, me descobriu”- A garotinha e o unicórnio trouxeram um espe-
diz Dedé para ela mesma. cial sentimento de alegria. Tão real! “Nunca mais
Estava frequentando o jardim de inverno nos fi- vou esquecer deles, nem que o balão arrebente, a
nais de tarde e a entrada no recinto era sempre pre- menina cresça, e nem daqui a quanto tempo tudo
cedida da risadinha irônica de quem suspeita: - “Jar- isso for outra coisa” - jubilou-se já com a impressão
dim de inverno...”. Mas o espaço tinha mesmo essa de estar levantando voo.
configuração. Um avarandado arrematado com Os dias eram intensos para ela. Não faltavam no-
vidros que abriam- naturalmente, não era uma es- vidades na rua deserta. “Pela primeira vez, desde a
tufa-, projetado de um modo que se podia contem- II Guerra Mundial...”, - Dedé pôs-se a rir de si mes-
plar o mar até lá longe e ainda tomar sol. Quase uma ma nestes tempos de chorar e rir ao mesmo tempo.
praia particular. O que é a imaginação! Essa ‘louca Observou que desde a inauguração do calçadão
da casa’, como a nomeiam os franceses, é capaz de para o passeio de pedestres aos domingos e feria-
ampliar a realidade sem limites. dos na orla de Copacabana, há mais de trinta anos,
Na verdade, era no fim de tarde, início de noite. era a primeira vez que a pista não estava fechada
Crepúsculo. Dedé vem se descobrindo chegada a para o tráfego que, por sua vez, era quase nenhum.
uma definição sintética, certeira. Alguém disse que O relógio parou na sua cabeça. Viajou até o porão

107 VERSUS, MARÇO DE 2022


no centro de Londres onde foi instalado o bunker intolerância, a estupidez e a fúria da ignorância or-
do gabinete de guerra quando a Inglaterra entrou gulhosa de si. Tudo isso transportou Dedé da varan-
no conflito em 1939.Na parede da sala de Comuni- da nomeada de jardim de inverno para o Aljube, o
cações os ponteiros indicavam a hora do início em museu lisboeta guardião da memória da liberdade e
que a cidade foi bombardeada pela ação relâmpago da resistência contra o fascismo, o qual pelas sendas
da Luftwaffe, a força aérea alemã, em setembro de do horror, levou-a à sala dos cravos que lhe permi-
1940. Era dia. Os ponteiros interrompidos em seu tiram voltar a respirar. Antes, porém, se deteve para
movimento marcaram Dedé, que fazia um esforço ouvir o discurso de Salazar pronunciado de uma sa-
tremendo para lembrar dos números... cada com o povo embaixo: “Não discutimos Deus
e a virtude. Não discutimos a pátria e a sua história.
A las cinco de la tarde
Não discutimos a autoridade e o seu prestígio. Não
Eran las cinco en punto de la tarde.
discutimos a família e a sua moral. Não discutimos
Un niño trajo la blanca sábana
a glória do trabalho e o seu dever.“.
a las cinco de la tarde.
Aberrações do negacionismo a serem combati-
Una espuerta de cal ya prevenida
das. “-Bacurau neles! “, revidou.
a las cinco de la tarde.
O vizinho continua lá. Tanto mundo a navegar
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde. que se esqueceu dele, ali, logo ali, pertinho. Não dá
para ver se ele faz seu tipo. Está na contraluz. É uma
Na falta da memória precisa, socorreu-se na po-
silhueta. Não parece baixo porque a cintura está na
esia. Fazia sentido. O texto denunciava a face trai-
altura do parapeito. É mais para magro e o cabelo
çoeira e autoritária da morte que toma a esfera da
é curto. “Ai, ai”, suspirou Dedé. Saudades de Por-
vida em circunstâncias das quais o próprio poeta foi
tugal. Daqui, da sua aldeia, que um dia se chamou
vítima. Assassinado com um tiro na nuca, sobre ele
praia de Sacopenapã, para nunca mais, desde que
assim declarou o fascista: “ mais perigoso com a ca-
o comerciante boliviano sobreviveu ao naufrágio,
neta do que outros com o revólver”. O poder da ca-
bateu nas costas do Rio de Janeiro, e dedicou à sua
neta, para mais e para menos, não importa se Bic ou
Nossa Senhora a igrejinha que rebatizou o lugar
tinteiro Caran d’Ache Modernista Diamonds. Dedé
com o nome da cidade ribeirinha do lago Titicaca
nunca esqueceu de quando a repressão quebrou as
de onde ainda hoje saem os barcos para o que era a
mãos do colega que, apesar, ainda encontrou fôlego ilha sagrada dos Incas. Ilha do Sol. Tudo a ver com
para deixar registrado: “- Que tolos, eles pensam essa restinga não menos solar que agora Dedé não
que os jornalistas escrevem com as mãos”. se banha e nem pisa na areia.
O nazismo e o fascismo sempre povoaram os Da cadeira de ferro pintada de branco, almofa-
caminhos de Dedé. Para ela, essas duas faces do dada, como manda o figurino dos clássicos da de-
radicalismo da direita são moinhos concretos que coração para as áreas que sugerem relaxamento do
espalham o vento da irracionalidade semeando a cotidiano das casas, Dedé recitou, em silêncio

VERSUS, MARÇO DE 2022 108


Da minha aldeia vejo quanto da terra Tem seus mitos e seres de luz
se pode ver no Universo... É bem perto de Osvaldo Cruz
Por isso a minha aldeia é tão grande Cascadura, Vaz Lobo e Irajá
como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que O meu lugar
vejo É sorriso é paz e prazer
E não do tamanho da minha altura... O seu nome é doce dizer
Madureira, lá laiá, Madureira, lá laiá
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste Ai meu lugar
outeiro. A saudade me faz relembrar
Na cidade as grandes casas fecham a Os amores que eu tive por lá
vista à chave, É difícil esquecer
Escondem o horizonte, empurram o
nosso olhar para longe Doce lugar
de todo o céu, Que é eterno no meu coração
Tornam-nos pequenos porque nos ti- Que aos poetas traz inspiração
ram o que os nossos olhos Pra cantar e escrever
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa Ai meu lugar
única riqueza é ver. Quem não viu Tia Eulália dançar
Vó Maria o terreiro benzer
De imediato, veio Madureira. O bairro suburba-
E ainda tem jongo à luz do luar
no que não é só mais um bairro e um subúrbio na
letra e música do sambista
Ai que lugar
O meu lugar é caminho de Ogum e Iansã Tem mil coisas pra gente dizer
Lá tem samba até de manhã O difícil é saber terminar
Uma ginga em cada andar Madureira, lá laiá
Madureira, lá laiá
O meu lugar Madureira, lá laiá
É cercado de luta e suor
Esperança num mundo melhor Em cada esquina um pagode num bar
E cerveja pra comemorar Em Madureira
Império e Portela também são de lá
O meu lugar Em Madureira

109 VERSUS, MARÇO DE 2022


E no Mercadão você pode comprar seu rosto de modo a parecer ter sido prensado por
Por uma pechincha você vai levar um torno a manivela. A sensação a acompanha até
Um dengo, um sonho pra quem quer hoje, agora sabendo o que significa constrangimen-
sonhar to, cada vez maior, já que as causas do mal-estar só
Em Madureira fizeram se aprofundar.
No casarão em frente ao seu, Marlene não tinha
E quem se habilita até pode chegar um quarto só para ela. O cômodo era a casa onde
Tem jogo de lona, caipira e bilhar vivia com a mãe e o irmão. Todos tinham nome
Buraco, sueca pro tempo passar para Dedé. Dona Margarida, a mãe, Ratinho, o ir-
Em Madureira mão. Ratinho não era exatamente o nome, mas o
E uma fezinha até posso fazer apelido que predominava, quem sabe até hoje, so-
No grupo dezena, centena e milhar bre o original. Assim como o Lula, do Lula, que no
Pelos sete lados eu vou te cercar caso não substituiu e foi, sim, incorporado à certi-
Em Madureira dão. Mas Lula escapou do destino por sua trajetória.
E lalalaiala laia la la ia Quanto a Ratinho, nunca mais soube dele.
E lalalaiala laia la la ia Dedé respirou fundo. O pulmão estava funcio-
E lalalaiala laia la la ia nando bem. Vontade de saber da Marlene. “Não,
Em Madureira agora, não. Já pensou encontrar uma religiosa faná-
tica ou eleitora convicta do tirano brasileiro, nazista,
Eram quase oito da noite quando Dedé parou
genocida, miliciano? Melhor não arriscar”, conside-
de sonhar com o encontro entre o Tejo e o berço do
rou.
samba carioca. Sempre acreditou que a mistura de
Uma lembrança bateu fundo. Francisca, ah!,
dobrada à moda do Porto e boi com abóbora não
como os tufinhos de Francisca encantavam Dedé.
daria para mais ninguém. Nazistas e fascistas jamais
Por toda a cabeça aqueles pontinhos salientes fixa-
passariam. Não se assentam no banquete fino da
dos por elásticos sem cor. Lindos, linda. Dedé não
diversidade. São excludentes, exterminadores do
tinha coragem de tocar neles. Guardava respeito,
presente e de todo projeto de futuro que não seja
não sabia dizer o porquê. Muitas vezes foi tentada.
o deles.
Havia oportunidades. A mais razoável era quando
Sentiu que devia comer alguma coisa. Não era
fome, era precisão. As janelas, aquelas, - não repe- entravam na grande casa de boneca armada no
tiu o que continuava se devendo- estavam vazias. quintal. Era de madeira pintada de azul. A dela. A
Por certo foram todos jantar. Desde pequena sentia da irmã era rosa. A porta tinha a altura adequada
grande constrangimento quando ouvia chamar: -“o para crianças de crescimento considerado ideal
jantar está servido”. Não sabia o que era constran- pelo padrão médico da época que desconsidera-
gimento nem entendia o porquê daquela contor- va mais de 80 por cento da população infantil. Na
ção na boca do estomago e do enjoo que trincava casa de Dedé, a família tinha um jeito peculiar de

VERSUS, MARÇO DE 2022 110


falar sobre isso: “Passa mal de boca”. Dedé custou a alegria ver hoje os tufinhos desfilando por todos os
entender que não se tratava de problema dentário, lados, ornados por xuxinhas ou amarrados de con-
mas de fome. Tinham a altura da desnutrição. tas multicoloridas.
Não era o caso de Francisca. Nem fome, nem A salada estava ótima. Dedé saliva diante de um
desfome. O pai, pedreiro, ganhava para o básico. pé de alface. Juntou tomate, pepino, cogumelos fres-
Francisca era tão reservada à mesa! Diante dos cos e uma bolinha média de muçarela de búfala. Re-
pratos ia direto no arroz e no feijão e com muita gou de azeite. Um pouquinho de sal. Acrescentou
distinção aceitava do que já tinha ouvido falar ou couve refogada morna, e mandou brasa. A propósi-
era informada na hora. Entretanto, impossível não to, mas nem tanto, ou sei lá, ele ligou com tudo logo
notar o arregalado dos olhos com uma piscada es- na primeira hora da manhã. Ele é o rolo de Dedé,
candida e lenta, mas no tempo suficiente para não e lá se vão sete anos neste jogo em que ninguém
causar embaraço a ela e a todos. Acho que pensava mais sabe quem é a bola e quem é a parede. Avisou
nos pais, nas recomendações- “ se comporta direiti- que seria um pandemônio depois que a pandemia
nho, não abusa, não pede nada”. passasse. Dedé ficou apreensiva com a intensidade
Mesa desservida, Dedé voltava aos tufinhos. do anúncio. “O negócio vai ser de lascar o crânio”,
“Quando Francisca entrar na casa das bonecas, a pensou, já que em condições normais tudo corria
hora é essa”, conjecturava. O argumento era plau- de modo muito satisfatório. Traduzindo, era bom
sível- “vou abaixar sua cabeça para não bater, tá?”. que nem a salada. “No fim, tudo é barriga”, refletiu.
Seria, se fosse a verdade. Claro que Dedé não que- “Tempo de tempo lento. De resistência à ordem
ria que ela batesse a cabeça, disso Francisca tam- da indiferença trazida pela modernidade tardia que
bém sabia. Eram boas companheiras. Se divertiam. abraçou a lógica da velocidade contrária à solida-
Francisca gostava muito dos cabelos escorridos de riedade dos homens refratários ao individualismo
Dedé. Ah, se ela soubesse como os tufinhos ine- rival e à competição desalmada”. Ufa. De um jorro
briavam a amiguinha! Foram muitas tentativas Dedé rascunhou a pensata. Levantou da escrivani-
para realizar o desejo. Dedé apelava para as fitas de nha. Foi no corredor que o vórtice a pegou de sur-
gorgorão, mas o máximo que conseguia era o que presa e lançou Dedé contra a predição do fascista
depois passou a ser conhecido como Maria Chiqui- Marinetti e seu Manifesto Futurismo:
nha. Mesmo assim, sucesso momentâneo, porque
Queremos cantar o amor ao perigo, o
a seda escorregava. Os elásticos entraram mais tar-
hábito da energia e da temeridade. A co-
de, contrabandeados por Albertina, a cozinheira de
ragem, a audácia e a revolta serão os ele-
mão cheia, entusiasta da luta contínua. Em meio às
mentos essenciais da nossa poesia.
brincadeiras de casinha, lá estavam Dedé a elogiar
Até agora a literatura refletiu a imobili-
Francisca pela boniteza de seus tufinhos e Fran-
cisca a reclamar dos elásticos. Só mais tarde Dedé dade melancólica, o êxtase e o sono. Nós
percebeu que não era disso que se tratava. Quanta queremos exaltar o movimento agressi-

111 VERSUS, MARÇO DE 2022


vo, a insônia febril, a corrida, o salto mor- patriotismo, o gesto destruidor dos anar-
tal, o soco e o tapa. quistas, as belas ideias pelas quais se mor-
Declaramos que o esplendor do mun- re, e o desprezo pela mulher.
do se enriqueceu de uma nova beleza: a Queremos demolir os museus, as bi-
beleza da velocidade. Um automóvel de bliotecas, combater o moralismo, o femi-
corrida cuja carroceria é adornada por nismo e todas as covardias oportunistas
grandes tubulações como serpentes de e utilitárias.
alento explosivo… um automóvel que Cantaremos as grandes multidões agi-
ruge, que parece correr acima da metra- tadas pelo trabalho, o prazer ou a revol-
lha, é mais belo do que a Vitória de Sa- ta; as multicoloridas e polifônicas marés
motrácia. revolucionárias nas capitais modernas;
Queremos cantar o homem ao volan- a vibração noturna dos arsenais e dos
te, cuja lança ideal atravessa a Terra, ela estaleiros incendiados por violentas luas
própria lançada no circuito de sua órbita. elétricas; as estações ferroviárias vorazes
É preciso que o poeta se consuma de ar- devorando serpentes que fumam; as fá-
dor, esplendor e prodigalidade, a fim de bricas suspensas nas nuvens pelos fios de
aumentar o fervor entusiástico dos ele- suas fumaças; as pontes lançadas, como
mentos primordiais. saltos de ginastas, sobre rios ensolarados
Só há beleza na luta. Não existe obra- que brilham como uma cutelaria diabó-
-mestra sem um caráter agressivo. A poe- lica; os paquetes aventureiros farejando
sia deve ser um ataque violento contra as o horizonte; as locomotivas de peito lar-
forças desconhecidas, para fazer com que go, que batem as patas nos trilhos, como
se prostrem diante do homem. enormes cavalos de aço embridados por
Nós estamos sobre o promontório ex- longos tubos; e o voo deslizante dos ae-
tremo dos séculos! …. De que vale olhar roplanos, cujas hélices estalam ao vento
para trás, no momento em que nos cabe como bandeiras e aplaudem como uma
arrebentar os portais misteriosos do Im- multidão entusiasta.
possível? O Tempo e o Espaço morreram Chegou à cozinha toda doída como quem corre
ontem. Agora vivemos no absoluto, pois de uma noite longa e medonha. Ia experimentar a
já criamos a velocidade eterna e onipre- receita que recebeu pelo sApp : ‘Quibe de Pronun-
sente. ciamento, também conhecido como abobrinha’. No
Queremos glorificar a guerra – a úni- vídeo, o jovem cozinheiro mixava a relação dos in-
ca higiene do mundo –, o militarismo, o gredientes e o modo de fazer com a realidade para

VERSUS, MARÇO DE 2022 112


além das bocas do fogão, e terminava dizendo: -“se
você gostou curta, comente compartilhe, se você
não gostou pelo menos faça algo útil com as suas
panelas: vá para a varanda e bata sem piedade”.
Dedé repassou para todos os seus grupos https://.
youtu.be/.4N5GkXE-Vco
-. Uma delícia. Gosto de saber com sabor.
As notícias não param de chegar. Todo dia não
é sempre igual. Os presos, os privados de liberda-
de, que o digam. Dedé se propôs sugerir aos canais
alternativos de jornalismo que entrevistem os pre-
sos políticos que atravessaram os vinte e um anos
da ditadura militar. Os presos políticos são grandes
entendidos em confinamento e podem dar boas di-
cas de como cuidar do corpo para manter o físico
são, o emocional também, e valorizar as pequenas
alegrias muitas vezes desdenhadas. Sem esquecer o
mais importante: o que têm a dizer sobre as condi-
ções opressivas contra às quais se insurgiram e que
voltam a rondar na forma de uma cepa de vírus e
de uma colônia de parasitas. Estava decidida. Seria
a principal tarefa do dia.
O crepúsculo se anuncia. Dedé vai para a varan-
da sem o coletivo de janela. Lili foi ao banco pegar
dinheiro.
Que maldição é essa que faz de cada um de nós
o hospedeiro e o responsável pela morte do outro?
De fato, são tempos interessantes.
OPINIÃO

Nossa história comum


Como contar o trauma na pandemia da COVID-19
RENATA BASTOS DA SILVA1

H á dez anos, em 2012, a mesa diretora da Câ-


mara dos Deputados recebeu, para a revi-
são, o Projeto de Lei do Senado n.º 368, de 2009, de
transmissão que organizamos intitulada: A Gripe
Espanhola: Encontros internacionais 'O brasileiro
entre os outros hispanos': afinidades, contrastes e
autoria do Senador Paulo Paim, que propunha re- possíveis futuros nas suas inter-relações2.
gulamentar a profissão de historiador. Somente em E ao final de 2021 é lançado um livro que, acredi-
17 agosto de 2020 foi promulgada a lei n.º 14.038, tamos, nos estimulará a refletir e produzir narrativas
que dispõe sobre a regulamentação da profissão de e depoimentos sobre nosso trauma contemporâneo
Historiador em nosso país. Assim, nós, historiado- que vivemos juntos até o momento, que é o impac-
res, alcançamos o status de profissionais expertises to em nossas vidas na Casa Comum da covid-19.
em nossa área de atuação, bem aos moldes da quali- Trata-se de uma coletânea de artigos, História &
ficação profissional instituída na era Vargas. Traumas: linguagens e Usos do Passado, organizado
Neste sentido, em pleno contexto pandêmico pelos historiadores e professores da Faculdade de
os historiadores acabam por se destacar também História da Universidade Federal de Goiás, Fabiana
como os principais responsáveis pelo registro da de Souza Fredrigo e Ivan Lima Gomes.
memória de nosso trauma recente. Num primei- Os organizadores iniciam o tema com as formas
ro momento, voltamo-nos para os registros da de narrar o trauma nas perspectivas historiográfi-
epidemia da gripe espanhola, daí que no primeiro cas. Em seguida, apresentam-nos duas concepções
Festival do Conhecimento da UFRJ, ocorrido em teóricas de historiadores renomados no assunto
2020 o tema foi abordado. Entre outros espaços, na que são Dominick LaCapra e Hery Rousso, cujo os

1 E Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional–
IPPUR. Coordenadora de extensão do Programa de graduação Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social.
2 A Gripe Espanhola: Encontros internacionais 'O brasileiro entre os outros hispanos': afinidades, contrastes e possíveis futuros
nas suas inter-relações, disponível em https://youtu.be/u7Xc-l1nPk4

VERSUS, MAIO DE 2022 114


artigo da professora, também da Faculdade de His-

INTERNET
tória da UFG, Libertad Borges Bittencourt sobre o
a autobiografia de um menino-soldado no Sendero
Luminoso, que no período dos anos de 1980 abalou
a sociedade peruana, a terra e pátria do marxista
José Carlos Mariátegui.
Por fim, a terceira parte da coletânea revela-nos
quatro autores que buscam em arquivos e nas ar-
tes o registro de processos traumáticos. Como no
artigo da professora de história da arte, Ana Lucia
Vilela que destaca o Espacio de Arte y Memória
inaugurado em Bogotá, Colômbia, e idealizado
pela artista colombiana Doris Salcedo, instalado
próximo à Plaza Bolívar, no coração da cidade, o lo-
cal celebra o Acordo de Paz, selado em 2016, entre
Livro "História & Traumas: o então Presidente da República Colombiana Juan
Linguagens e Usos do Passado" Manuel Santos e o representante das Forças Arma-
das Revolucionárias da Colômbia — Exército do
referenciais de padecimento nos remetem às expe- Povo (Farc – EP), Timochenko, que se apresentou
riências europeias, em especial aos desdobramen- com seu nome civil, Rodrigo Londoño. O artigo
tos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). nos leva a recuperar o contexto de atuação da Farc
Através de cinco textos na segunda parte do livro nos anos de 1980. Aqui, aproximo a reflexão do fil-
os organizadores vão além e nos oferecem, inclusive me baseado no livro homônimo de Héctor Abad,
da organizadora da coletânea, uma narrativa do sul ganhador do Prêmio Goya de 2020 como melhor
do mundo, da nossa América Latina, a perturbação filme Iberoamericano, El Olvido que seremos
que as experiências de governos ditatoriais na Ar- (2020), que narra a história de seu pai Héctor Abad
gentina, no Brasil, Chile e suas respectivas opressões Gómez. Héctor foi médico e professor que contri-
trouxeram para nossa sociedade. Aqui, permitam- buiu para a promoção da tolerância, lutando pelos
-me fazer um pequeno paralelo com a filmografia direitos humanos em seu país. No filme, o filho, ex-
recente do diretor espanhol Pedro Almodóvar em põe seus sentimentos acerca de sua relação com seu
seu filme: Madres paralelas (2021), no qual trás para pai, descrevendo sua história familiar e o drama por
cena o enfrentamento com o passado de resistência trás de seu trágico assassinato pelos paramilitares
de civis, em uma pequena comunidade do inte- colombianos.
rior da Espanha, em plena Guerra Civil Espanhola Voltamos ao livro e seguimos o percurso no re-
(1936-1939). Essa segunda parte finda-se com o gistro dos traumas pelas artes, destacando o artigo

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do professor da Universidade Estadual de Goiás Assim, apresentamos as várias possibilidades
Eliézer Cardoso de Oliveira, que sublinha o aci- que temos do ponto de vista historiográfico para
dente ocorrido em Goiânia no ano de 1987 com o registramos, parafraseando a pneumologista e pro-
césio-137, através das artes plásticas. Considerando fessora Margareth Dalcolmo, o tempo que vivemos
que o maior responsável pela representação estética a covid-19. No qual muita coisa mudou e ainda
do acidente radiológico foi o artista Siron Franco, mudará na nossa Casa Comum. E espero, como a
um artista que se situa entre a valorização das tra- nossa pesquisadora, que a mudança venha “com
dições e a vanguarda estética — segundo Oliveira, um olhar mais generoso de uns para os outros”
citando Ferreira Gullar. Para Oliveira: “A produção (DALCOLMO, 2021, p. 19). Deste modo, possa-
pictórica de Siron Franco sobre o acidente com o mos seguir em frente uns cuidando dos outros, pois
césio-137 provoca significativas indagações sobre ninguém solta a mão de ninguém.
os limites e as possibilidades da representação esté- Niterói, Icaraí, outono de 2022.
tica da dor, da morte e do sofrimento advindo com
a catástrofe (OLIVEIRA, E. C. 2020, p. 263).” Uma REFERÊNCIAS:
memória de um acidente que abalou uma cidade e Livro: História & Traumas: linguagens e Usos do Passado. Fa-
biana de Souza Fredrigo e Ivan Lima Gomes (Organizadores).
um país registrado nas obras do artista, muito pre- Vitória: Editora Milfontes, 2020.
ciosas as imagens e a narrativa de Oliveira sobre o
caso e as obras. DALCOLMO, Margareth. Um tempo para não esquecer: a vi-
são da ciência no enfretamento da pandemia do coronavírus e
Por fim, distinguimos o texto da professora de o futuro da saúde. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.
História da Universidade Federal Fluminense, Ana
Maria Mauad. Seu artigo é resultado do encontro
com a fotógrafa paulista Rosa Gauditano, no âmbi-
to do projeto “Memória e história da fotografia no
Brasil”, em curso no Laboratório de História Oral e
Imagem. Pela metodologia da História Oral, a pes-
quisadora chegou a um conjunto de fontes orais
para estudar a história da experiência fotográfica no
Brasil contemporâneo, com as fotografias produzi-
das pela paulista entre as comunidades indígenas
no Brasil (1989-2018). O livro fecha com o artigo
do professor da Universidade do Sul de Santa Ca-
tariana (Unisul), Alexandre Link Vargas que parte
de uma história em quadrinhos (HQ) dos anos de
1970 para tratar da leitura da Segunda Guerra Mun-
dial e seus desdobramentos em mundo polarizado.

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REPRODUÇÃO: ADUFRJ / FÓRUM DE CIÊNCIA E CULTURA
versus.ccje.ufrj.br

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