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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM


FONOAUDIOLOGIA

PAULINE LUISE VON BRUSKY SALES DA FONSECA

Fala, escrita e outras expressões de uma criança com

autIsmo: aspectos da constituição subjetiva

São Paulo
2020
PAULINE LUISE VON BRUSKY SALES DA FONSECA

Fala, escrita e outras expressões de uma criança com

autismo: aspectos da constituição subjetiva

Dissertação de Mestrado no Programa de


Estudos Pós-Graduados em
Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Linha:
Linguagem e Subjetividade, sob
orientação da Profª Drª Regina Maria
Ayres de Camargo Freire.

São Paulo
2020
Catalogação da Publicação
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Fonseca, Pauline Luise Von Brusky Sales da


Fala, escrita e outras expressões de uma criança com autismo: aspectos da
constituição subjetiva / Pauline Luise Von Brusky Sales da Fonseca ; orientadora:
Regina Maria Ayres de Camargo Freire. – São Paulo, 2020.

Xxxf. : il.

Dissertação (Mestrado)—Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2020.


FOLHA DE APROVAÇÃO

Nome: FONSECA, Pauline Luise Von Brusky Sales da


Título: Fala, escrita e outras expressões de uma criança com autismo. Aspectos da
constituição subjetiva

Dissertação de Mestrado no Programa


de Estudos Pós-Graduados em
Fonoaudiologia da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) pra a obtenção do título de
Mestre.

Aprovada em:

Banca examinadora
Aos queridos Pedro, novo integrante de nossa família, e Raquel,
pelas tardes que passamos juntos. Onde pude presenciar, com
amor, a contínua construção do elo mãe-bebê.
O presente trabalho foi realizado com o apoio Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) - Código de Financiamento 130187/2018-6

This study was financed in part by the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) - Código de Financiamento 130187/2018-6
AGRADECIMENTOS

Agradeço à Professora Drª Regina Maria Ayres Freire pela orientação.

Aos integrantes da Banca do Exame de Qualificação: Drª Maria Eugenia Pesaro


e Profº Dr. Luiz Augusto de Paula Souza, pela leitura criteriosa e contribuições
importantes, fundamentais para a continuidade dessa escrita.

Aos integrantes da Banca de Defesa dessa dissertação por aceitarem


novamente o convite.

A Profª Drª Glaucinéia Gomes, por suas importantes contribuições a este


trabalho, na Banca de pré-Qualificação e após o exame da Banca de
Qualificação.

A Profª Drª Vera Lucia Ferreira Mendes por uma tarde de conversa,
entusiasmada, daquelas que trazem um novo ânimo.

A Monica Nezan pelo convite que deu origem a essa pesquisa.

A Maria Luiza Valente, pelo incentivo ao investimento em um novo saber.

A Paulina S. Rocha, pela sábia transmissão, dos impasses e entraves do tempo


da infância. Agradeço também por sua leitura e contribuição na escrita do caso
clínico.

A Andrea Loparic pela experiência academica transmitida no tempo preciso.

A Pedro Teixeira pela disponibilidade com que acolhe nossos pedidos, há anos,
e às vezes de última hora, a minha filha e a mim.

A minha filha Anna Luiza, valente em seu tempo de vestibulanda, por já saber
caminhar com as próprias pernas e possibilitar a esta mãe incluir um tempo de
estudo, na vida já atribulada.

Às crianças que conheci, em atendimentos e pela vida, que me trouxeram tanto


alegria quanto aprendizado. Especialmente a Theo, grande parceiro nessa
empreitada aqui narrada.
“No início não havia nada. E este nada não era vazio
nem vago: não precisava de nada senão de si mesmo.
E Deus viu que isso era bom. Por nada desse mundo
ele teria criado o que quer que fosse. O nada não lhe
convinha apenas: dava-lhe plenitude” (NOTHOMB,
2003, p. 5).

Amélie Nothomb é uma escritora autista, vencedora do Grande


Prêmio da Academia Francesa. A Metafísica dos tubos é uma
biografia, como o próprio livro anuncia, “levada às últimas
consequências”. Um sucesso da pós-modernidade, traduzido em
23 países.
SUMÁRIO

1. Introdução 11
1.1 Justificativa 14
2. Autismo: da psiquiatria à psicanálise 16
2.1 Antecedentes do conceito de autismo 16
2.2 O autismo de Leo Kanner: “Os distúrbios autísticos do contato afetivo” 18
2.3 Hans Asperger: “O psicopata autista” 21
2.4 O autismo: para a psiquiatria e para a psicanálise. 22
3. Constituição do sujeito e o autismo: uma leitura da psicanálise 27
3.1 Alienação e separação, operações fundantes 30
3.2 Remate do circuito pulsional e prazer compartilhado 33
3.3 Estádio do espelho: tu és eu 36
3.4 Aspecto da constituição do sujeito na clínica do autismo 39

4. Método, material e análise 43


4.1 Material clínico 45
4.2 Análise e interpretação do material clínico 45
5. Theo – uma criança a trabalho, na clínica psicanalítica 46
5.1 Um tempo preliminar 47
5.2 História clínica e sintomas 50
5.3 O caso clínico 54
5.4 A fala, escrita e outras produções gráficas como eixos orientadores
para o acompanhamento e a leitura do sujeito 72

Imagens 81
Análise do caso clínico e discussão 90
6. Considerações finais 95
7. Referências bibliográficas 101
RESUMO

Este trabalho tematiza a linguagem e a subjetividade no autismo, com base na


concepção da psicanálise de origem francesa, apresentando o caso clínico de uma
criança com o diagnóstico inicial médico de autismo. O fundamento que orienta esta
dissertação é a premissa de Jacques Lacan, para quem o inconsciente é estruturado
como linguagem. O método de pesquisa adotado é o estudo de caso clínico, que
procura entender o valor da fala e da escrita para uma criança, desde os 3 anos de
idade, acompanhada em sessões individuais de uma hora, uma vez por semana, e
apresenta intervenções clínicas que decorreram de seu peculiar movimento. Faz
distinção entre a fala enunciativa para uma mera apreensão da linguagem pela
memorização de um glossário de palavras, que não é endereçada, não permite o
diálogo, não é portadora de mensagem. Aborda a constituição subjetiva na clínica do
autismo. Considera que a criança com autismo pode aceder à fala e à escrita, através
de operações psíquicas que a inserem no campo do simbólico.

Palavras-chave: Autismo, Criança, Constituição subjetiva, Fala e escrita.

ABSTRACT

This work focuses on language and subjectivity in autism, from the conception of
psychoanalysis of French origin, presenting a clinical case of a child with the initial
medical diagnosis of autism. The foundation that guides this dissertation is the premise
of Jacques Lacan for whom the unconscious is structured as a language. The research
method adopted is the clinical case study, which seeks to understand the value of
speech and writing for a child, from the 3 years old, accompanied in individual sessions
of one hour, once a week and, presents clinical interventions that resulted from his
peculiar movement. It distinguishes between enunciative speech and a mere
apprehension of language by memorizing a glossary of words, which is not addressed,
does not allow dialogue, does not carry a message. It addresses the subjective
constitution in the autism clinic. Considers that children with autism can access speech
and writing, through psychic operations that insert them, in the symbolic field.

Keywords: Autism, Child, Subjective constitution, Speech and writing.


1. Introdução

O que há na palavra de tão amedrontador para que o homem,


frequentemente, em vez de fazê-la falar, a faça tagarelar?
(Alain Didier Weill)

Esta dissertação nasce do encontro com uma criança, que, mesmo com
a hipótese diagnóstica de autismo precoce infantil, recebida em consulta
médica, ao ser atendida em sessões de psicoterapia de base psicanalítica,
passa a aparentar uma vontade ou uma necessidade de comunicar-se. Mas
como assim? Autista fala? Fala. Se não falar com palavras, fala de diversas
outras maneiras. Como dizia Lacan (1976), os autistas são até verborrágicos,
nós é que talvez não saibamos escutá-los.

O menino de 3 anos, acompanhado em terapia, parecia querer


comunicar-se. Primeiro, por narrativas em uma espécie de brincar, mais tarde,
por meio da escrita e da palavra falada. Mas aqui precisamos explicitar um
divisor de águas: a constituição de sua subjetividade, sua entrada no simbólico.
O que faz, nesse caso que aqui relatamos, com que o proferir palavras e
escrevê-las tenha um antes e um depois, que percebemos só depois, no
decorrer da presente pesquisa.

Testemunhamos que as tentativas de construção teórica em torno do


autismo não cessam. Assim,consideramos importante fazer um levantamento
histórico de olhares sobre as descobertas de Bleuler, Kanner e Asperger, e a
alguns dos teóricos de orientação psicanalítica que hoje discutem o que é o
autismo. Um campo controverso e com tantas questões em aberto: qual a
etiologia? Em que consiste sua nosologia? Qual a estrutura psíquica? Como
tratar? Existe cura? É possível ainda levantar diversas hipóteses e discutir o
tema no âmbito: é orgânico? É psíquico? Fala-se em epigenética, como uma
possibilidade: fatores genéticos somados ao adoecimento do entorno.

Mas, principalmente, o presente estudo teórico-clínico propõe-se a


acompanhar esse caso por meio de uma certa concepção de infância e uma
especificidade no tratar: a psicanálise enfoca a constituição subjetiva da
criança, que, por alguma razão, não tenha se iniciado na relaçao do bebê e sua
mae, ,,

11
atualizando o trabalho psíquico que possa ter sido interrompido ou nem ter se

presentificado na aposta permanente de que um sujeito do inconsciente possa


advir. Entende que cada ser humano possui uma singularidade que lhe é própria.
O que no autismo é evidente: não existe um autista igual a outro. Assim, temos a
possibilidade de nos perguntar e quem sabe descobrir: por que aquele menino
parecia querer tanto se comunicar? Do autismo ainda se faz um enigma. Mas,
sobre esse menino, pudemos pensar em diversas possibilidades, criativas e
únicas, uma vez que existe uma suposição de sujeito ali, no tempo criança-
psicanalista/terapeuta.

Consideramos que, em vez de encaixá-lo em uma descrição patológica


e propôr para ele um tratamento pré-concebido, tivemos a chance de
acompanhar suas possibilidades, criativas e únicas, do uso da linguagem, em
um tratamento que pode oferecer olhar e escuta às múltiplas formas de
expressão oferecidas e aceitas, como a utilização da massinha, do desenho,
da música tocada e cantada, dos ritmos e instrumentos musicais, do teatro e
seus personagens com diferentes vozes, que em alguns momentos mediaram
a comunicação entre paciente e terapeuta.

O encontro com o menino, que aqui chamaremos de Theo1, se deu em


uma instituição privada de orientação psicanalítica francesa, na cidade de São
Paulo, que recebe crianças com impasses em seu desenvolvimento escolar,
dificuldades no laço social e entraves em sua constituição psíquica.

Relataremos estágios psíquicos vivenciados por Theo e que são parte


do trilhamento da constituição subjetiva de todo sujeito, mas sempre
articulados ao que pudemos acompanhar como acontecimento clínico para o
advir do sujeito Theo. Apresentaremos as produções de Theo contextualizadas
ao seu tratamento, que serão anexadas neste trabalho, representações que
mostram, com a delicadeza da criança, um antes e um depois, relativos a seu
consentimento à ordem simbólica e à submissão ao significante – como sujeito
do inconsciente, estruturado como uma linguagem, como formula Lacan. Um

1
Todos os nomes relativos aos familiares de Theo também foram trocados.

12
ser de linguagem, desde antes de nascer, e, mais além, um menino que
começa a fazer parte do discurso em circulação.

No Capítulo 2, após a introdução e justificativa, serão apresentados os


antecedentes do conceito de autismo, com um percurso histórico da psiquiatria
à psicanalise, e as concepções de Leo Kanner e Hans Asperger.

No Capítulo 3, discute-se a noção de constituição subjetiva, em


psicanálise, privilegiando os conceitos de alienação e separação, circuito
pulsional, prazer compartilhado, estádio do espelho, e conclui-se com as
considerações sobre o autismo e a constituição subjetiva.

No Capítulo 4, será apresentado o método de pesquisa utilizado, o


estudo de caso clínico e como será feita a análise do material clínico. No
Capítulo 5, apresenta-se o caso de Theo e a direção de tratamento realizado,
enfatizando a fala, escrita e outras produções gráficas que orientaram o
tratamento clínico em questão. Em seguida, as reflexões finais.

13
1.1. Justificativa

Este trabalho testemunha o que uma criança pode fazer em um


tratamento psicanalítico em instituição, o que pode dizer, desde aquilo que dela
foi dito, por estar inserida no discurso pela fala do outro, até a sua própria
linguagem balbuciada, cantada, desenhada, rabiscada, narrada através de
brinquedos, tocada em instrumentos, escrita e falada. Buscar tão ampla forma
de comunicação e tão precocemente, como no caso que será apresentado, não
deixa de ser surpreendente, quando sabemos que um dos aspectos que
caracterizam o autismo é a princípio o mutismo e a dificuldade no contato
afetivo. E comumente se vê, na clínica do autismo, que um é decorrência do
outro: o não falar pode ser considerado uma defesa, uma posição de recusa
com relação ao outro, o semelhante, e ao estar no mundo, participar dele.

Mas, se a criança fala, é preciso ater-nos a qual fala estamos nos


referindo. À memorização de palavras, ouvidas em algum lugar e proferidas,
mais tarde, em outro, aparentemente descoladas de um contexto? Ou a
repetição, às vezes, ecolálica e perfeita da fala que acabou de escutar? Ao
contar de um a cem? Ao repetir nomes de frutas em Inglês? (LAZNIK, 2011).
Demonstrações que podem dar esperança e júbilo a pais e mães, que buscam
os consultórios, diante de seus filhos que estavam em um mutismo total. Mas
essa capacidade de listar sonora ou graficamente palavras não caracteriza a
entrada da criança em um processo psíquico de subjetivação, que leva à fala
endereçada, à sustentação de um diálogo, à capacidade de dizer de si. A
incluir-se no discurso em circulação. Pela fala ou pela escrita.

Podemos dizer que a escrita, assim como as outras formações do


inconsciente, tem uma origem comum, que é a própria estrutura do
inconsciente, pois é a partir do escrito inconsciente que se organizam
as demais escritas: o sonho, o desenho e a escrita alfabética
(LERNER, 2010, p.120).

É necessário, no nosso entender, fazer a distinção entre a fala


enunciativa e uma mera apreensão da linguagem pela memorização de um
glossário de palavras, que não é endereçada, não permite o diálogo, não é
portadora de mensagem, e essa é uma das relevâncias deste trabalho.

14
A psicanálise entende ser, por meio do respeito à singularidade da
criança em tratamento, possível auxiliá-la em seu sofrimento, para que, no
lugar de uma aparente recusa, possa haver consentimento: que possa se
deixar capturar pela linguagem, uma das premissas para o advir da fala2.

Atualmente, conhecer e compreender o autismo, seja como enfermidade


ou um modo de ser, parece urgente: em 1943, época em que Leo Kanner
descreveu o autismo pela primeira vez, os casos eram raros. Hoje, a síndrome
vem crescendo enormemente no mundo todo, como uma epidemia.

Alguns especialistas alegam que apenas passamos a diagnosticá-lo


com mais frequência, mas o diagnóstico melhorado dificilmente há de
ser a explicação cabal da escalada de um índice de um em 2.500
nascimentos em 1960 para um em 88, hoje (SOLOMON, 2013, p.
264).

Segundo dados de 2018 do Centro de Controle e Prevenção de Doenças


(CDC) EUA, a prevalência é de uma para cada 59 crianças, uma menina para cada 4
meninos. São dados epidêmicos alarmantes. A busca de compreensão de quem é o
autista, o que pensa, de que maneira se insere no mundo é uma necessidade, que diz
respeito a todos nós. É certamente uma questão de saúde pública, a ser inserida nas
políticas públicas.

2
Para Lacan, a fala é um conceito que diz respeito a capacidade do ser humano, permeável ao
significante em comunicar-se através de um discurso comum ao seu meio. Diferente do proferir
um “banco” de palavras memorizadas, como faz,às vezes, um estrangeiro, sem entender de
fato o sentido da língua que parece usar. A criança está na linguagem desde antes de nascer,
e passa a fazer parte do discurso em circulação quando acede à fala.

Significante aqui: para Ferdinand de Saussure (1916), o signo linguístico é composto de um


conceito (significado) e uma imagem acústica (significante). Lacan (1966) utiliza o conceito
saussuriano de significante e significado, invertendo-os e mostrando a supremacia do
significante sobre o significado.

15
2. Autismo: da psiquiatria à psicanálise

2.1 Antecedentes ao conceito de autismo

Longe de ser uma falha contingente das fragilidades do organismo, a


loucura é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua
essência. Longe de ser um insulto para liberdade (...) ela é sua mais
fiel companheira, segue- lhe o movimento como uma sombra. E o ser
do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura,
como não seria o ser do homem se não carregasse em si a loucura
como limite da liberdade (LACAN, 2003, p. 359).

Embora o autismo seja ainda hoje considerado a patologia mais arcaica


da psiquê humana, sua história é recente. Por ter sido descoberto,
primeiramente como uma patologia da infância, parece obedecer a uma lógica
sobre o lugar da criança no curso da história da humanidade.

A compreensão mínima de que uma criança diferiria de um adulto se


refletiu no curso da Medicina e mesmo na ideia de um psiquismo na infância.
Como descreve Jean-Claude Maleval (2017), até o século XIX, não havia um
olhar para o tratamento da questão psíquica da criança. Historicamente, o
respeito à criança como um ser diferenciado do adulto é recente. Assim. ela era
vista sob uma ótica adultomorfista.

Sabemos, hoje, que a clínica psiquiátrica da infância se constitui com


muito atraso em relação à do adulto. Foi preciso esperar os anos 1930, para
que essa clínica encontrasse sua autonomia e pudesse formar seus próprios
conceitos. Maleval esclarece que: “Durante o século XIX, os problemas mentais
da criança foram confundidos na noção de idiotismo saída da nosologia
esquiroliana” (MALEVAL, 2017, p. 38). Esquirol aponta diferenças entre a idiotia
e a loucura: “(...) uma doença adquirida bem cedo na infância. O demente,
segundo a fórmula de Esquirol, é um rico que faliu, ao passo que o idiota
sempre esteve no infortúnio e na miséria” (MALEVAL. 2017, p.39).

A dificuldade em perceber a especificidade do psiquismo na criança


derivava de não haver, até então, uma clínica psicológica para ela. O que não
significa apenas o conhecimento, mas o saber fazer e o que fazer. Foi preciso

16
que um esboço de psicologia para crianças surgisse, para que a loucura na
criança pudesse também ser pensada, como diz Maleval (2017).

O autor supracitado afirma que foi no século XIX que começaram a


surgir diferenciações, a partir do idiotismo. Como a de Longdon Down na
Inglaterra, que se aproxima de uma nova forma de idiotia, paradoxal, uma vez
que seus portadores tinham capacidades excepcionais, o “idiota prodígio”.

Dessa maneira, a loucura na criança começa a tomar consistência


apenas no século XX e a “demência de Sante De Sanctis “, psiquiatra e
psicólogo Italiano, se aparta da idiotia. Comenta Maleval que Sante de Sanctis
apresenta pela primeira vez a demência, no ano de 1905, em Roma, no V
Congresso Internacional de Psicologia. Parece uma psicose que mostra
semelhanças com a demência precoce de Kraepelin:

Ela se desenvolve mais frequentemente depois de um período de


vida sem sintomas, mas também pode se associar a uma debilidade
mental inata. É caracterizada por alterações graves na atitude e na
conduta, por hipoafetividade, impotência volitiva, alucinações (visuais
no mais das vezes) agitação, ímpetos, fenômenos catatônicos,
debilitação mental residual (MALEVAL, 2017, p.42).

Duas décadas mais foram necessárias para que o trabalho de Bleuler e


Freud abrisse caminho para que as esquizofrenias na criança fossem
pesquisadas. Em 1924, Sante De Sanctis nomeia como “esquizofrenia pré-
pubere” sua demência precossíssima” (2017, p. 42). Mas, o conceito de
esquizofrenia na criança só vai se firmar, ao longo dos anos de 1930. A partir
daí, patologias semelhantes começam a distinguir-se.

Maleval (op. cit.) sublinha que não foi apenas a observação e a


genialidade do psiquiatra Leo Kanner, em 1943, em Baltimore, que possibilitou
seu recorte do autismo precoce infantil, ou o brilhantismo do pediatra Hans
Asperger que, um ano depois, em Viena, observou e distinguiu um quadro
clínico semelhante e o nomeou de autismo. É toda uma quantidade de
informações que começam a circular no meio científico, como observa Maleval,
que faz com que possam refletir e se apropriar de termos, vão buscar
vocabulário em uma clínica que não cessa de lhes constituir referências.

17
Ambos os quadros, naquele momento, têm semelhanças suficientes
para portarem o mesmo nome “autismo” – palavra que é uma contração de
autoerotismo3 – cunhada por Freud (1914), mas com a subtração do eros:
autismo, voltado para si. De costas para o mundo, mas com diferenças
marcantes, sobretudo na área da linguagem.

2.2 O autismo de Leo Kanner: “Os distúrbios autísticos do contato afetivo”

Os relatos de Leo Kanner descrevem, desde 1938, crianças tão


diferentes daquilo que havia sido descrito até então que, segundo ele,
mereceriam “consideração detalhada por suas fascinantes particularidades”.
Kanner refere-se a sua pesquisa com 11 crianças, de idades diversas e
inferiores aos 11 anos, que ele iria acompanhar longitudinalmente.

Algumas delas haviam sido diagnosticadas equivocadamente, como


idiotas, fracas de espírito, esquizofrênicas, mas Kanner encontra nelas um
distúrbio em comum e surpreendente: “a incapacidade destas crianças de
estabelecer relações de maneira normal com pessoas e situações desde o
princípio de suas vidas” (ROCHA, 2012, p. 156).

Em 1943, o pediatra escreve seu artigo princeps sobre esse estudo


“Autistic disturbances of affective contact”, na revista Nervous Children,e
introduz, pela primeira vez, a palavra autismo para diferenciar um quadro
específico, com características próprias, do que antes era classificado como
um sintoma precoce da esquizofrenia.

Eugen Bleuler havia introduzido o termo “autismo” como sintoma


da esquizofrenia, para demarcar a categoria da “demência
precoce”, segundo Emil Kraepeling. Foi o que o tornou conhecido
como o inventor do autismo. Esse sintoma primário da
esquizofrenia, mesmo atualmente, coloca a questão do
diagnóstico diferencial entre a esquizofrenia e o autismo; para
muitos autores, esse último permanece no quadro da
esquizofrenia (LEFORT& LEFORT, 2017 p.41).

3
O autoerotismo é um momento inicial do investimento do bebê em partes do seu corpo próprio, na qual
ele investe no seu corpo como objeto de prazer. Na palavra autismo, não há o termo eros, que remete ao
erotismo (FREUD, 1914).

18
Rosine e Robert Lefort (2017) entendem que a distinção entre essas duas
entidades estruturais se encontra no início da descrição de Kanner e de sua
descoberta: aquilo que é por ele denominado de “autismo infantil precoce” é, de
fato, precossíssimo. Segundo Kanner (1943), começa no nascimento, mesmo
que só seja observado mais tarde no bebê ou na criança. Enquanto a
esquizofrenia compreende uma primeira entrada no mundo e uma posterior
retração, uma desistência da realidade exterior e um voltar-se para si.

Contudo, para Kanner (op. cit.), a desordem fundamental no autismo, é


uma dificuldade de interação, uma inaptidão em lidar com as demais crianças
ou adultos:

Em seu artigo princeps de 1943, e no acompanhamento de seus


casos, trinta anos mais tarde em 1971, Kanner nota inicialmente que os
pais desses infantes “ se referem a eles como tendo sido sempre
‘autossuficientes’, ‘ como dentro de uma concha’, ‘agindo como se
ninguém estivesse lá’ e isso desde o início de sua vida , o que faz uma
diferença essencial com a esquizofrenia infantil, que tem lugar após
uma relação inicial com o meio e o mundo exterior (LEFORT&
LEFORT, 2017, p. 42).

Independentemente da polêmica quanto ao diagnóstico diferencial, o


autismo permanece como um enigma, em diversos campos da ciência. Fala-se
em autismos, por não haver até hoje uma etiologia comum, que caracterize a
patologia. Mas, desde o início, era possível apontar algumas características
que permitem ainda hoje o reconhecimento da síndrome, já observadas por
Kanner e aqui descritas em “Distinções do autismo” (2017):

A solidão do autista faz com que ignore e exclua o mundo exterior.


Parece uma escolha, que pode ser percebida na criança, desde cedo, por
exemplo, pela ausência de antecipação postural, explicitam os autores: o que
uma criança faz quando um adulto conhecido lhe estende os braços? Ela se
antecipa, inclina o corpo para frente em correspondência ao gesto do outro. A
criança com autismo não faz essa antecipação. Aquilo que vem do exterior lhe
é tomado como uma intrusão. O que se reflete em todos os âmbitos da vida.
Inclusive na alimentação. Se os pais não estiverem atentos a hora da
mamadeira, é possível que a criança pule uma refeição, porque,
provavelmente, não reclamará. A criança autista não chama, não faz apelo,
dizem . E, portanto, o seu grito não pode ser tomado como uma demanda
19
específica. Assim como não demonstra afeto, mesmo que seja estimulada.
Vive como se os outros, no seu entorno, não existissem (LEFORT & LEFORT,
2017).

Em 1946, Kanner parece estar convencido do que, antes, eram apenas


observações e, no decorrer de seus estudos, sublinha, reforça a extrema
solidão autística como um ponto que distingue o autismo. Segundo ele, a vida
interior adquire uma predominância mórbida. Assim como, percebeu, que essa
dificuldade relacional da criança com seu meio, cria um outro sintoma também
crucial na distinção do autismo: a imutabilidade, “sameness”, mesmice. A
menor mudança é notada: como um livro que falte em uma prateleira,
exemplifica, faz com que a criança necessite de ver que o que mudou, de volta
ao estado anterior. São especialmente crianças com dificuldades com a
linguagem: parece que não escutam e muitos pais e especialistas, em um
primeiro olhar, pensam em surdez, quando elas não respondem a nenhum
estímulo.

Segundo os Leforts (2017), a maior parte das crianças com o


diagnóstico ou risco de autismo não falam ou tem atraso de fala importante. Se
vem a falar, sua fala não é portadora de mensagem, não conseguem manter
um diálogo. Falam em ecolalia, copiando sons e frases feitas, com sua, em
geral, excelente memória, ou falam de maneira ritualizada, repetitiva. São
capazes de contar de um a cem, e, às vezes sabem letras de músicas,
serializam grupos de palavras e as repetem. Confundem os pronomes e os
tempos verbais. Pela ausência de simbolização, são crianças que dão as
palavras valores específicos. Kanner (op. cit.) relata um “yes” que um pai
consegue de um filho, ao lhe colocar nos ombros. A partir daí, na criança passa
a dizer “yes”, toda vez que quer que o pai lhe coloque novamente nos ombros.

Kanner também observa o ambiente parental: sua hipótese é a de que


alguns pais dessas crianças poderiam eles mesmos serem “afortunadamente
autistas” – as onze crianças estudadas por ele eram filhos de famílias
altamente inteligentes (médicos, cientistas, escritores, artistas) e que teriam
passado aos filhos, apenas a forma manifesta da “desordem”. Ao mesmo
tempo em que Kanner também percebia o estado de confusão desses pais

20
diante desses filhos sem respostas e reação, por uma certa incapacidade de
compreendê-los.

Sobre a evolução do quadro, sabe-se que, dos 11 casos estudados,


entre 1943 e 1971, Kanner fala desde uma “deterioração completa” até uma
“adaptação social e profissional limitada, mas superficialmente boa” (LEFORT&
LEFORT, 2017, p. 45). Procuramos aqui, ao citar o livro dos Lefort deixar o
mais próximo do que foi a descoberta inicial, para podermos mais à frente, falar
como esses conceitos e sintomas são vistos e tratados, com o passar de
décadas, na contemporaneidade, de acordo com a proposta dessa dissertação,
através de um estudo psicanalítico.

2.3. Hans Asperger: “O psicopata autista”

Asperger (1944) pesquisou mais de 200 crianças, durante 10 anos e


afirma que o autismo é geracional, herdado, não sendo capaz de afirmar se é
uma questão genética ou não. Diz, naquela época, anos 40, que precisaria de
mais pesquisas para saber. Asperger, aparentemente, começa a esboçar aqui,
a existência de uma outra herança que não é genética, não passa pelo DNA,
como a herança simbólica, cultural, transmitida de geração a geração.

Ele nota que o autismo é prevalente em meninos, comenta que não


chegou a ter nenhuma menina em sua pesquisa, mas sabemos que, por
questões de época e comportamentais, era mais difícil diagnosticar menina em
décadas passadas, quando ficava sozinha era sinal de recato não sintoma de
doença. Estudo recente com mulheres de mais de 40 anos, mostra diversos
casos de autismo, antes não diagnosticados ou nomeados (BBC NEWS, 2018).

O autismo descrito por Asperger era menos severo, em termos de


isolamento, apenas uma pouca capacidade de “se inserir”. A dificuldade no
falar não se apresentava no autista de Asperger, segundo sua descrição.

Maleval (2017) faz uma crítica aos psicanalistas contemporâneos pela


falta de interesse no autismo de Asperger, como se este não oferecesse a
possibilidade de apreendermos características, para além do autismo infantil

21
precoce. Ao mesmo tempo levanta que, possivelmente, o autista de Asperger
na vida adulta, foi o autista de Kanner na infância.

2.4. O autismo: para a psiquiatria e para a psicanálise

A psiquiatria e a psicanálise compreendem o autismo de maneira bastante


distinta, o que pode ser notado pelas diferentes marcações, nas edições mais
recentes dos Manuais Diagnósticos Estatísticos. As divergências não
promovem avanços, mas alguns debates considerados inócuos. Até porque,
enquanto não há um consenso, como coexistir e lidar com os pais e os
pacientes que, buscam respostas, diagnóstico e tratamento?

Autores lacanianos contemporâneos, como Marie Christine Laznik (2013),


sugerem que o diálogo entre a Psicanálise e a Medicina é o ponto fundamental
para onde devem se dirigir os esforços nos próximos anos para avançar na
prevenção. Do ponto de vista psicanalítico, diz a autora, a manifestação plena de
uma síndrome autística pode ser traduzida clinicamente como a não instauração
de determinadas estruturas psíquicas, que por sua ausência, vão produzir,
dentre outros, déficits cognitivos, que ao se instalarem de modo irreversível,
pode-se falar em deficiência.

Esta deficiência seria então consequência de uma não instauração


das estruturas psíquicas, e não ao contrário. E podemos sustentar
uma semelhante concepção, admitindo uma multifatorialidade e
deixando de lado o debate, quase sempre estéril, entre psicogênese
e organogênese” (LASNIK, 2013, p.21).

Segundo a autora, é apenas pelo registro do psíquico que é possível


intervir. E é também daí que se pode falar de uma possível prevenção. A
intervenção é para que possam ser instauradas as estruturas que suportam o
funcionamento dos processos de pensamento inconsciente, diz ela. Antes dos
défictis cognitivos se produzirem. Uma vez que, referindo-se a uma verdadeira
psicossomática do autismo: “A não instauração das estruturas psíquicas lesa
rapidamente o órgão que as suporta” (LAZNIK, 2013, p. 22).

As mudanças nos manuais diagnósticos não trouxeram facilidade nem


para Medicina e nem para a psicanálise. Ao contrário, a retirada da psicose

22
infantil dos quadros estatísticos, é um dos fatores que levam o diagnóstico de
autismo a alcançar níveis epidêmicos.

Para as crianças também há um sobre-diagnostico, mas por uma razão


distinta (do exagero de diagnósticos em adultos): se relaciona com o discurso
psiquiátrico. A psiquiatria que domina o discurso mundial, decidiu que não há
mais a psicose infantil. Todas as psicoses infantis então foram integradas ao
espectro autista. A maioria das crianças hoje que tem dificuldades são
diagnosticadas “autistas”, e se fala de um “autismo generalizado” na
psiquiatria infantil (MALEVAL, 2019).

A denominação atual é a de “Transtornos Invasivos do


Desenvolvimento”, que engloba 5 categorias: o transtorno Autista, o transtorno
de Rett, o transtorno desintegrativo da Infância, o transtorno de Asperger e o
transtorno Invasivo do desenvolvimento, sem outra especificação. É de chamar
a atenção o porquê o “transtorno autista” e o “transtorno de Asperger” estão
separados como duas categorias distintas. E a questão da extinção da psicose
infantil do manual diagnostico e estatístico dos transtornos mentais:

Esse quadro clínico, segundo o discurso psicanalítico, apresenta


diferenças importantes quanto ao autismo infantil e outros quadros
descritos no DSM-IV, tanto no que se refere ao diagnóstico quanto ao
tratamento. Sua não diferenciação acabou produzindo um incremento
significativo nos casos diagnosticados como de autismo infantil
(BERNARDINO, 2010, p.1).

Ainda que se subtraia equívocos diagnósticos, que haja um discurso


hegemônico mundial, refletido nos manuais estatísticos, o fato é que o espectro
autista vem crescendo, sem que se saiba ainda exatamente o que é o autismo.
O que será do futuro, com tantos mais autistas e esse desconhecimento
confesso da própria ciência sobre o que é, e qual a melhor maneira de tratar,
cuidar ou até mesmo educar?

Das descobertas e recortes nosológicos de Kanner e Asperger aos dias


de hoje, há inúmeras tentativas em pinçar fatores genéticos e epigenéticos em
comum, nos diversos autismos.

.... enquanto a psiquiatria contemporânea confisca o sujeito e o reduz


a seu corpo, induzindo a apreensão dos autistas no universo dos
retardados congênitos por meio de uma rubrica administrativa, a
heterogeneidade dos resultados dos estudos biológicos (fragilidade
de amostragem e taxas de concordância variáveis) impede a
diferenciação de uma especificidade genética: também as
descobertas epigenéticas relativas ao efeito do entorno sobre as
condições biológicas conduzem a consideração da participação de

23
outros fatores, para além dos genes, que justifiquem o quadro
autístico (MALEVAL, 2017, p. 10).

A psicanálise vai considerar o sujeito, independente de etiologias


patológicas, para além do olhar organicista:

...o fato de haver algo de biológico em jogo não exclui a


particularidade do espaço de constituição do sujeito como ser falante.
Nesse sentido, como nota Lacan, a psicanálise não supõe uma
psicogênese das doenças mentais. Ela afirma em contrapartida a
importância do corpopara todo ser falante, para todo falasser
parasitado pela linguagem, o que é bem diferente. A psicanálise no
autismo não depende das hipóteses etiológicas sobre o seu
fundamento orgânico (LAURENT, 2014, p. 32).

Discute-se o autismo, desde sua primeira descrição clínica, feita por


Kanner em 1943, como um recorte da esquizofrenia. Até os dias de hoje, pode-
se dizer que houve avanços na compreensão e na pesquisa do que é o
autismo, mas os resultados ainda são inconclusivos, sobre o que o fundamenta
cientificamente, tanto em termos etiológicos, como na busca de um consenso
nosológico.

Dada não apenas a divergência de olhares, mas por sua mais radical
singularidade: não existe autismo igual ao outro, não se identificou até agora,
por exames, que o autismo está ali, em alguma parte do organismo,
determinando um entrave psíquico. Ou mais claramente: quando se encontra
um fator orgânico específico, que possa dizer que aquele sinal fora do normal,
é o que determina o autismo, não há indícios de que, necessariamente, será
encontrado em outro ser humano autista, o mesmo sinal, a “prova”.

Temple Grandin, autista, em sua busca de conhecimento e


reconhecimento de si e de seu próprio autismo, com sua objetividade, resume:

O problema é que o que está no meu cérebro autista não é


necessariamente o que está no cérebro autista de outra pessoa.
Como me disse certa vez a pioneira em Neuroanatomia Margaret
Bauman: “Só por que sua amígdala é maior que o normal isso não
quer dizer que a amígdala de todas as pessoas autistas seja maior
que o normal" (GRANDIN& PANEK, 2017, p. 39).

O que determina o autismo fica em suspensão, aos nossos olhos, como


diagnóstico e como prognóstico, como uma visão embaçada por diversas
teorias genéticas e epigenéticas – de que elementos adoecidos do entorno
propiciem o campo fértil para o risco de autismo (LAZNIK, 2016). Questões

24
teóricas, subjetivas e, ainda assim, classificatórias, mas importantes, também
são levantadas: será o autismo parte das três estruturas propostas por Freud e
mais tarde aprofundadas por Lacan: neurose, perversão e psicose, e seus
mecanismos de defesa: recalque, desmentido, e foraclusão, considerando
como a mesma estrutura a psicose e o autismo, este com um surgimento
precocíssimo?

Por meio da prática clínica, percebe-se, pela observação longitudinal de


cada criança, que o autismo e a psicose se apresentam de formas diversas
(KUPFER, 2010). Em grupos terapêuticos heterogêneos, em uma clínica para
crianças com entraves no desenvolvimento psíquico e dificuldades de
sociabilização, que faz da psicanálise seu modo de tratar, nota-se
especificidades: enquanto há crianças que acusam de forma desesperada, a
intrusão do semelhante , outras parecem não se importar de forma alguma,
como se estivessem indiferentes a essa intrusão, chamado ou interferência.
Uma forma de defesa: fechar-se totalmente ao grupo, ao meio por ser-lhe
insuportável, a ponto de parecer não reconhecer sua existência (TUSTIN,
1984). Já temos uma diferença interessante para refletir a respeito.

Embora a distinção entre psicose e autismo, não seja óbvia na infância,


em ambos os casos as crianças apresentam entraves no desenvolvimento, que
refletem no reconhecimento próprio – como imagem corporal constituída, como
a existência de si – um “eu” (LACAN, 1998), diferenciando-se de um outro,
operação necessária para o advir psíquico. Reconhecer-se como imagem, para
que em uma nova operação psíquica, intercedida pelo simbólico, constitua-se –
ou não – como sujeitos do inconsciente. Alguns autores, como Leda M.
Bernardino (2004) e Alfredo Jerusalinsky (1993), preferem falar em “psicoses
não decididas na infância”. O que nos parece um olhar e estratégia,
interessantes: tratar e apostar no advir da constituição do sujeito, sem apressar
o diagnóstico. Esperar e acompanhar é radicalmente diferente de extirpar a
psicose infantil (que não é a mesma no adulto) do DSM IV (2002), como foi o
caso, fazendo do apagamento do diagnóstico autismo/ psicose, com suas
diferenças fundamentais, na infância, uma dificuldade maior na vida adulta.

25
Se pensarmos em uma linha de tempo, quantas vezes na história da
humanidade, os modos de fazer, as etiquetas sociais, os conceitos do que é
adequado ou não, mudaram? Se pensarmos geograficamente, o que é loucura,
excentricidade, para um povo, pode ser poder, inteligência, sabedoria,
genialidade, para outro. Se a humanidade fosse padronizada existiria
evolução? É do respeito as diferenças em cada um de nós, o que inclui as
crianças com autismo, do que estamos falando. Não só como políticas
públicas. Mas como ética do viver e do modo de tratar.

Pelo desconhecimento e falta de consenso, que ainda persistem em


torno do autismo – as especulações, teorias, observações clínicas recentes e
de longa data, opiniões médicas, modos de fazer clínicos – o enigma atravessa
as décadas. Recentemente em uma palestra na Clínica Lugar de Vida (2019), a
psicanalista AngelaVorcaro comparava a criança com autismo com um caso de
uma paciente que sofreu um AVC e estava sendo tratada na Derdic. Essa
pessoa relata depois que entendia tudo o que se passava, mas não tinha
recursos para demonstrar.

Dessa forma, AngelaVorcaro abre para debate a possibilidade de o


autismo ser especificamente uma impossibilidade de acesso à fala, mesmo que
a criança tenha todo o recurso, psíquico e orgânico, de escutar e entender e
estar dentro da linguagem e significantes. Há também outras teorias como o
“ponto surdo” (VIVES, 2015), onde a questão seria uma não acessibilidade ao
significante, à cadeia significante, ficando a criança com autismo apenas com a
musicalidade da voz, até poder tornar-se “surdo” a essa sonoridade e entrar no
mundo das significações. Ou seja, os pontos de discussão não cessam. O
autismo ainda é uma interrogação para todos os campos da Ciência. E mesmo
para a psicanalise.

No Capítulo 3, a seguir, veremos algumas das etapas importantes e


constituintes à psique humana, que por razões diversas, a partir do
nascimento, se interromperam, se tornaram precárias ou nem chegaram a se
iniciar como processo, na criança hoje com risco de autismo ou com
diagnóstico de autismo. São operações psíquicas que se tornam balizadoras
para um diagnostico diferencial, com vistas a uma direção de tratamento. Aqui,

26
também visando situar as produções e o tratamento, no caso clínico que será
apresentado no Capítulo 5.

Faremos essa breve apresentação teórica, com alguns aportes


psicanalíticos, incluindo a discussão sobre as operações de alienação e
separação, o circuito pulsional, o estádio do espelho e a constituição do
sujeito4.

3. A constituição do sujeito e o autismo: uma leitura da psicanálise

O bebê pré-existe, no imaginário parental. Carrega uma dívida simbólica


de antemão, e receberá uma herança cultural, também simbólica, que lhe é
externa e Lacan (1954-55/1985) chamará de o Outro5, com letra maiúscula.

A natureza humana é bastante distinta do reino animal, especialmente


no início da vida: o bebê humano recém-nascido, chega ao mundo, com
apetência à simbolização, à comunicação, com capacidade de reconhecer
rostos e responder a estímulos (LAZNIK, 2011). No entanto, diferente dos
outros filhotes, mesmo ao nascer a termo, é prematuro física, motora e
psiquicamente. Encontra-se no mais árido desamparo, e precisará de um outro
humano, não só para garantir sua sobrevivência como organismo, mas para
participar de sua constituição subjetiva, humana.

O filhote do humano nasce sem as inscrições, que determinam seu


destino. Precisará recebê-las através de um outro humano, seu cuidador
primordial, em geral a mãe, ou quem faça sua função. É ela quem será a
representante desse Outro, para seu filho. O Outro primordial, como
representante da cultura e da linguagem, terá, através dos seus cuidados, da
sua comunicação com seu pequeno, a função de transmitir-lhe uma herança
simbólica. Herança essa que vem desde os tempos imemoriais do humano, até
a cultura do nosso mundo, do nosso tempo e o modo de ser da família a que

4
O sujeito que aqui nos referimos não é o sujeito da consciência, cartesiano: “penso logo
existo”. Trata-se do sujeito do inconsciente.
5
Outro, na concepção lacaniana, diz respeito à ordem simbólica, ao campo da cultura e da
linguagem. O Outro primordial é aquele que submetido ao simbólico, tratará o bebê de acordo
com as regras da cultura. Diferente do outro com o minúsculo que se refere ao semelhante
(1954-55/1985).

27
pertença. Essa transmissão irredutível inclui a trajetória psíquica dessa família.
Mesmo que seus agentes, pai e mãe, não percebam, os problemas, os
entraves, os interditos, os – mal-ditos e mal-entendidos, também serão
transmitidos.
Em “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, de 1938, ainda
como jovem psiquiatra, Lacan diz que a família tem papel primordial na
transmissão da cultura. Que acima dos ritos, das tradições espirituais, e dos
costumes, e mesmo que esta primazia seja disputada por outros grupos
sociais, a família prevalece como primeira educação, presidindo processos
fundamentais do desenvolvimento psíquico. Da repressão dos instintos a
aquisição da linguagem na língua “acertadamente chamada de materna”
(LACAN, 1938/2002), a família transmite estruturas de comportamento.

Ela estabelece desse modo, entre as gerações, uma continuidade


psíquica cuja causalidade é de ordem mental. Esta continuidade, se
revela o artificio de seus fundamentos nos próprios conceitos que
definem a unidade de linhagem, desde o totem até o nome
patronímico, não se manifesta menos pela transmissão a
descendência de disposições psíquicas que estão próximas do inato
(LACAN, 1938/2002, p. 13).

Como se dará essa transmissão, de geração para geração, que, de um


bebê, se constituirá um sujeito? O que move o processo de constituição do
sujeito é o desejo do Outro primordial, como mulher e não apenas sua
presença terna de mãe. É com seu investimento libidinal, o empréstimo de seu
corpo, da sua voz, que se dará com sucesso ou não a transmissão que Lacan
(1938) a princípio chamou de ordem mental e mais tarde, de ordem simbólica,
a esse bebê.

Ela será a matriz simbólica, de onde o conteúdo dessa transmissão se


conduzirá pela linguagem. É, preferencialmente pela língua materna, que os
significantes incidirão sobre o corpo do bebê, mapeando-o, deixando-lhe
marcas simbólicas, dando-lhe contorno, erogeneizando seus orifícios e
reconhecendo sentido em sua existência. O bebê por sua vez, deverá ser
permeável a essa incidência significante: para constituir-se como sujeito
humano, ele precisa consentir.

28
Embora pareça natural, aos olhos de quem acompanha a chegada e o
crescimento de um bebê, a constituição do humano é efeito de linguagem.
Diversas operações psíquicas complexas, e na clínica especialmente vemos o
quão complexas, fazem o bebê tornar-se humano, o que sem a incidência de
outro humano não seria nem uma “pessoa”, mas uma “libra de carne” (como
em O mercador de Veneza,de Willian Shakespeare). Essa transmissão, via
desejo materno (LACAN, 1956-57/1985), que se articula à função paterna –
que é justamente barrar o gozo6 materno – se dará de forma pulsional e
desejante. A ela, a mãe, é pressuposto, no dizer de Lacan: “a marca de um
interesse particularizado”, com relação a essa criança e á própria transmissão,
que é irredutível, pois restará e será transmitido o resíduo do que se passou
com as outras gerações. Em Nota Sobre a Criança, de 1969, reflete Lacan:

A função de resíduo exercida, (e ao mesmo tempo, mantida) pela


família conjugal na evolução das sociedades, destaca a
irredutibilidade de uma transmissão- que é de outra ordem que não a
da vida segundo as satisfações das necessidades, mas de uma
constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não
seja anônimo. E por tal necessidade que se julgam as funções da
mãe e do pai. Da mãe na medida em que seus cuidados trazem a
marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio
de suas próprias faltas. Do pai, na medida em que seu nome é
vetor de uma encarnação da Lei no desejo” (grifos nossos) (LACAN,
2003, p. 369).

É por esse interesse particularizado, que o bebê se tornará único e tão


especial em sua família. Ademais, um desejo e que não seja anônimo pode ser
lido como um desejo que produza distinção, marca, assinatura em um texto.
(PEUSNER, 2016).

É pelo olhar e voz maternos, que, desde o seu nascimento, o bebê


humano será convocado e capturado a entrar na linguagem, a se alienar ao
campo do Outro e a encontrar o lugar subjetivo de seu ser no mundo. Logo
veremos “sua majestade, o bebê” começar seus primeiros balbucios, seus
primeiros passos e a ocupar o lugar que lhe darão na família. Ele será incluído
e fará parte de uma filiação e se implicará em sua herança simbólica.

6
Gozo, termo lacaniano, referido a uma satisfação diferenciada de prazer, desejo e satisfação.
Para Roudinesco e Plon (1998), implica a ideia de transgressão da lei, reveste-se de dimensão
jurídica, ligada à noção de usufruto, direito de gozar de bem de terceiros. Para Lacan, este
termo remete à tentativa de ultrapassagem do limite do princípio do prazer. Está ligado ao
sofrimento causado pela busca da coisa perdida, lugar do Outro que falta.

29
Lacan sublinha que esse desejo não deve ser anônimo, porque é preciso
o desejo dos agentes do Outro, seres de carne e osso, para transmitir algo ao
bebê. O desejo e a marca dos cuidadores primordiais. É esse desejo que
veicula e mediatiza o irredutível da transmissão da ordem simbólica, da
linguagem, da cultura. O desejo que nos constitui como falantes e desejantes.

3.1. Alienação e separação, operações fundantes

Existir não é apenas estar vivo. A consistência na existência é um


produto de linguagem, portanto, logo de início, é importante uma nomeação.
Quando o bebê ganha um nome, ele deixa de ser o “bebê” genericamente
falando, e passa a ser representado por seu nome próprio, parte de uma
operação psíquica – “a primeira operação essencial em que se funda o sujeito”
(Lacan, 1956-57/1985, p. 199): a alienação. Ele deverá alienar-se aos
significantes7 do Outro primordial, o adulto experiente, em geral, a mãe.

Esse adulto cuidador, o Outro primordial encarnado, acolhe-o em seu


desejo. Um fading (desaparecimento) dessa pequena criatura acontece, o ser
real8desaparece, para dar lugar a esse bebê que- nomeado, desejado,
imaginarizado e já portador de uma história familiar, mesmo que não saiba,
possa se alojar nessa falta que lhe destina um lugar temporário de falo 9 (Lacan,
1958), de completude, com sua mãe. É quando a criança inicia seu
assujeitamento ao Outro primordial, representante de um Outro que lhe é
externo a cultura, a linguagem, a ordem simbólica.

O corpo do bebê será mapeado pelas primeiras inscrições. Aquilo que


era só carne, nervos e músculos, será nomeado, em cada parte, pelo toque,
pela fala, pela voz da mãe. Esse adulto experiente, lhe mostrará o mundo,
apresentando palavras, sentidos e a ordem de uma estrutura familiar. Com

7
Significante – Na concepção lacaniana, é o que representa o sujeito para o outro significante.
8
Real – Roudinesco e Plon (1998) afirmam ser um termo usado como substantivo, por Jacques
Lacan, em 1953. Designa o que escapa à simbolização.
9
Falo – significante da falta, não é fantasia, objeto parcial ou o órgão genital que ele simboliza
(LACAN, 1958).

30
seus cuidados especiais, criará marcas simbólicas no corpo do bebê, que farão
borda em suas zonas erógenas. É também ela quem começará a contornar, a
construir na linguagem, a antecipar que em algum momento para que um eu
autônomo possa advir de seu filhote. Deverá haver uma alienação, uma
identificação, uma imitação e uma separação, nesse caminho que leva um eu a
distinguir-se. Assim podemos observar na relação mãe-bebê que vai bem:

A mãe fala e faz um intervalo na medida em que supõe o bebê como


sujeito que tem algo a dizer, sustenta ali a suposição de um desejo do
bebê, sustenta ali a alteridade. Temos aí a voz, a voz como objeto da
pulsão oral que produz laço com o outro e que também assume o
sentido de chamado do sujeito (JERUSALINZKY, 2014, p.68).

Com relação a essa especificidade – a alienação e a um sentido de


alteridade que há de advir – que podemos pensar em uma diferença
fundamental nos autismos e nas psicoses e entre eles: enquanto a criança
com autismo parece ter ficado aquém da alienação, ou seja há uma recusa ou
uma impossibilidade de reconhecimento desse Outro primordial. A criança
psicótica se torna presa a essa alienação ao Outro primordial, “(...) capturada
pelo discurso materno numa esfera em que nada falta ou, perante qualquer
esboço de separação, tudo falta acontece, então sem limite” (JERUSALINSKY,
2012, p. 200).

Para que a alienação aconteça, faz-se necessário que a voz materna,


seja maternante10 (VORCARO, 2002), cheia de prosódia e júbilo,
suficientemente atraente, musical, convidativa ao seu pequeno. Seja esse filho
biológico ou não, o bebê receberá a transmissão simbólica de gerações, por
esse elo, com sua mãe. Parafraseando Winnicott, “não existe criança sem
mãe” (PESARO, 2012), pois alguém há de fazer essa função.

Sobre a alienação, citamos Lacan:

A alienação consiste nesse vel que – se a palavra condenado


não suscita objeções , eu a retomo – condena o sujeito a só
aparecer nessa divisão que venho, me parece, de articular
suficientemente ao dizer que se ele aparece de um lado como
sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como
afanise (Lacan, 1964/1985, p. 199).

10
Para Vorcaro (2002), há uma linguagem privada do laço originário que liga o bebê e sua mãe, que
seria uma linguagem maternante.

31
É preciso que a criança se submeta à linguagem, a experienciar a

realidade, entrar no mundo, na vida, no jogo. Ao mesmo tempo, se faz


necessário que essa mãe em função, ofereça cuidados, que saiba capturar
esse bebê com seu investimento libidinal, sua voz e seu olhar, para que ele
nela se reconheça e aceite essa sujeição ao Outro, em troca desse
acolhimento. Ele terá, além de um nome, um lugar na filiação, fará parte de
uma história de fracassos e glórias, que vem de gerações, representado por
significantes. É por esse elo que vai sendo co-construído, esse enlace
primordial, que possibilitará a instalação de um circuito pulsional entre esses
dois campos: adulto cuidador/mãe e o bebê (CRESPIN, 2010), o que será
explicitado no próximo item.

A natureza do enlace, quando ocorre a díade mãe- bebê, é que essa


alienação é por pouco tempo, um tempo lógico- e não cronológico, pois a falta
da mãe, não será preenchida completamente. Em algum momento, voltará seu
olhar para além daquele vínculo tão estreito, entre ela e seu bebê e buscará
seu trabalho, afazeres, horizontes. O bebê há de começar a perceber que ele
não é tudo na vida da mãe, a quem se alienou: há algo a mais que ela deseja,
há algo que a ela falta. Portanto, além de sua insuficiência, o bebê se depara
com algo que também lhe falta (PESARO, 2012).

Sobre esse momento, AngelaVorcaro (1999) comenta:

O valor metafórico da criança é o corte que, enquanto metáfora, a criança promove, ao


dividir o agente materno em mãe e mulher, pois, ao mesmo tempo em que preenche a
mãe, não satura o desejo de uma mulher. Mas, mais ainda, por meio desse corte, que
distingue o agente materno em mãe e em mulher, cria o acesso da criança a um
acréscimo de sentido: a significação fálica. (grifo nosso)

Quando a mãe se volta para seus interesses anteriores ao bebê, vai


haver a chamada separação. Eles que estavam em uma relação tão fusional
desde a gravidez, não formam um só organismo e ser. Ela, a mãe, como
sujeito castrado, já sabia de sua independência e conhecia a própria falta 11.
Isso será sentido pelo bebê e a ele, constituirá em uma falta, a partir de sua
também incompletude. Como uma primeira castração. É pela falta que se
tornará desejante.
11
Falta – em psicanálise, remete à incompletude que caracteriza o humano, fazendo-o ser de desejo.

32
Na tentativa de recapturar aquilo que lhe falta, ou o “objeto perdido para
sempre”, como na visão freudiana sobre a satisfação proporcionada pelas
primeiras mamadas, o ser humano vai em busca dessa sensação, desse objeto
perdido, que nenhum outro trará a não ser temporariamente, ilusoriamente: a
completude perdida, a completude que não há, a não ser imaginariamente.
Podemos dizer que é pela falta que nosso mundo, esse em que vivemos, se
constrói, evolui, uma vez que onde nada falta, não há desejo.

3.2. Remate do circuito pulsional e prazer compartilhado

Como dizíamos no item anterior, o enlace do bebê com quem faz a


função de Outro primordial, em geral a mãe, nesse primeiro elo, a alienação, é
o que permite a entrada do bebê no circuito pulsional.

A articulação pulsional tal como a apreendemos em inúmeros


trabalhos de M-C Laznik (2003) sobre as pulsões é a cavilha
mestra desse fenômeno, ao constituir literalmente uma “correia de
transmissão” entre o sujeito e o Outro. Assim, essa articulação é
fonte de organização e do enriquecimento, por via circular, e
retroativa, alimentando o processo de co-construção (GOLSE,
2006) do sujeito e de seu outro da relação primordial (CULLERE-
CRESPIN, 2010, p. 160)

O conceito de circuito pulsional e seu remate e, ainda, sua operação


prática, é originário do circuito proposto por Freud, em “Projeto para uma
Psicologia Científica” (1895). Aqui, seguindo o raciocínio de Laznik (2013),
trata-se com relação a pulsão12, de completar um certo percurso, com um
remate deste, em três tempos. No primeiro, o bebê busca o objeto externo, o
seio, a mamadeira, no nível da pulsão oral. E é chamado de ativo. O segundo
tempo, o bebê toma parte de seu corpo como um objeto, seu dedo, uma
chupeta. É chamado de reflexivo. O terceiro tempo, nomeado de “passivo” por
Freud, nada tem de passivo: é quando o bebê se oferece ele mesmo como
objeto para um outro- a mãe, o Outro primordial.

12
Pulsão – conceito limite entre o somático e o psíquico, na visão freudiana. Impulso que remete à
satisfação. Em Lacan (1964), é um conceito fundamental da psicanálise, montagem, descontinuidade, na
qual a sexualidade participa da vida psíquica.
33
Na pulsão escópica13, diz Laznik, esse terceiro tempo, consiste em ser
olhado: “Trata-se de se fazer objeto de um novo sujeito. De se fazer
olhar.”(LAZNIK, 2013, p. 28). Sabemos bem da importância para uma criança
pequena desse “olha para mim mamãe”. Mas como representar esse terceiro
tempo na pulsão oral? Pergunta-se ela. É em um “se fazer comer”. É claro que
não se trata de uma necessidade literal, esclarece a autora, mas de um
mostrar-se apetitoso para essa mamãe, de um fingir de se fazer comer. Como
uma brincadeira, um jogo, um prazer mútuo, que segundo Laznik, “salta aos
olhos”.

A autora remete a um anúncio de fraldas, onde a foto de um bebê,


mostra-o botando seu pezinho na boca de uma mãe cheia de encantamento.
Se inúmeros bebês que conhecemos gostam de se fazerem comer, não é o
caso dos bebês que se tornam autistas, diz a autora e, essa não reação pode
ser identificada em filmes caseiros, familiares: “O futuro autista não conhece
esse terceiro tempo do circuito pulsional, esse momento de se fazer objeto de
um novo sujeito. Nele o circuito pulsional não se fecha” (LAZNIK, 2013, p. 145).
Em contrapartida, o bebê que vai bem, se atira como objeto da volúpia de sua
mãe. Ao ser colocado nu, para trocar a fraldinha, mexe-se, incha a barriguinha,
antecipando-se, buscando a alegria no rosto e no olhar do adulto cuidador.

Entendemos que, desde bem cedo, o corpo do humano, vibrante, vivo, é


um corpo pulsional, conceito freudiano, reatualizado por Lacan. Na clínica do
autismo, é uma energia que precisa se colocar em movimento, como no circuito
descrito por Freud (1915), em “As pulsões e suas vicissitudes”. Mas com um
fechamento, um “remate” que pode refazer, reconstruir, o que, de alguma
forma falhou na relação mãe-bebê, logo, ao nascer, e que agora possa circular
tantas vezes quantas forem necessárias para a criança com autismo, em
tratamento:

(...) a hipótese com que trabalho há anos é a de que a patologia


autistica primária numa criança seria consequência da não
instauração do “circuito pulsional completo”, da ausência do terceiro
tempo. É possível encontrar ai a ideia de circuito proposto no Projeto.
Trata-se na pulsão de completar um certo percurso que consiste no
remate de um circuito em três tempos (LAZNIK, 2013, p.144).

13
Lacan introduz outros objetos pulsionais, como a voz e o olhar. Referida ao objeto olhar.
34
A esse remate que “religa”, Maria Cristina Kupfer, (2017) chama de
“prazer compartilhado”, é o momento em que a criança, além de ter prazer nas
brincadeiras, nas trocas, também vai se preocupar em dar prazer para esse
Outro primordial, ou na clínica, na relação de transferência com seu analista,
ou com um semelhante, buscando fisgar a sua atenção e seu olhar, agora
também se ofertando, se oferecendo.

Se o terceiro tempo, ou prazer compartilhado, advém para o autista,


pode-se dizer que assistimos ao início do advento do sujeito, ao início
de sua fundação, ao início da constituição do aparelho psíquico, ao
enodamento do imaginário com o simbólico sobre o real do corpo da
criança (KUPFER, 2017).

Refazer esse circuito pulsional que, de alguma forma, não se completou,


para a criança autista, é adquirir um corpo permeável ao significante. De
fundamental importância para a emergência de uma fala, agora dentro do
discurso, que defina sua posição de sujeito, no mundo. No item 5.4 “Aspectos
da Constituição do Sujeito na clínica do Autismo”, abordaremos com mais
detalhes,como a criança com autismo reage ou não as operações psíquicas,
tão importantes para a sua constituição como sujeito do inconsciente, sujeito do
desejo, sujeito da enunciação.

No próximo item, procuraremos explicitar, uma operação psíquica em


que o real do corpo, apenas o organismo, já foi suplantado pelo imaginário do
casal parental com relação ao seu bebê. Para relembrar, na operação de
alienação, com o acolhimento do Outro primordial encarnado, em geral, a mãe,
vai haver um desparecimento, um apagamento dessa pequena criatura – como
um simples organismo, para dar lugar a um bebê nomeado, desejado,
imaginarizado, e já portador de uma história familiar. Esse bebê, que vai se
deixando capturar pela linguagem, se alienando a voz e aos significantes
maternos, vai se tornando humano como os seus semelhantes, agora já
frequentando um outro registro, o do imaginário. O estádio do espelho é o
momento e que a criança reconhecerá, ou não, sua própria imagem, sempre
assegurada pelo Outro primordial.

35
3.3. Estádio do Espelho: tu és eu

No XVI Congresso de Psicanálise em Zurique, 1949, Lacan fala do


“Estádio do Espelho como formador da função do eu”. Ali, ele propõe que,
entre 6 meses e 18 meses de idade, o bebê é capaz de perceber sua imagem
duplicada em uma superfície plana, o espelho, duplicando o que está em seu
entorno e conseguindo dar conta dessa virtualidade: seu próprio corpo e das
pessoas e coisas que estejam nas imediações.

Diz Lacan (op. cit.) que é um espetáculo cativante um bebê que ainda
nem tem controle da marcha, ou obtém uma postura ereta e independente,
mas que se movimenta, de forma a resgatar o instantâneo dessa imagem de si.
Segundo ele, esse estádio de reconhecimento no espelho – dos 6 aos 18
meses – é como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui ao
termo, a transformação produzida no sujeito, quando ele assume uma imagem.

O júbilo diante de sua imagem especular, quando ele é ainda bebê, vive
a impotência motora e a dependência da amamentação e de tudo o mais de
um outro humano que é o filhote humano nesse estágio de infans. “parecer-
nos-á pois manifestar numa situação exemplar, a matriz simbólica, em que o
(eu) se precipita em uma forma primordial” (LACAN, 1998, p. 97).

O reconhecimento de si através de sua própria imagem, apesar de toda


a sua precariedade motora, confere a ele um sentido de unidade, uma
antecipação de sua maturidade. A forma total de seu corpo pode ser vista pelo
infans, em uma exterioridade virtual. Agora ele não é mais dois ´pés, duas
mãos, aquilo que estava ao alcance de sua vista, ou imaginarizado por aquilo
que é dito e tocado: a barriguinha do bebê, o rostinho do bebê. “A função do
estádio do espelho revela para nós, por conseguinte, como um caso particular
da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua
realidade” (LACAN, 1998, p.100). Ele se percebe, ainda que virtualmente, pela
primeira vez como uma unidade e não mais como fragmentos.

Para que esse reconhecimento aconteça, é preciso também a presença


de um outro humano que confirme a esse bebê o que essa imagem reflete: sim

36
é você. E ao ser você, não sou eu- a mamãe. O bebê se inicia nessa noção do
que é ser, em separado, um eu. Ao mesmo tempo em que há um
desconhecimento desse ser eu. Um enigma que será motivo de especulações
incessantes em sua existência humana. Na visão lacaniana: “o eu é um outro”,
uma vez que essa unidade percebida como imagem no espelho, será sempre
diferente de suas ambiguidades internas.

Para o bebê, é o momento inaugural de um “eu”. Agora, é possível a ele


começar a perceber-se um eu como unidade independente. Essa percepção de
um eu, esse eu e seu necessário reconhecimento, assegurado pela mãe ou em
que esteja nesse lugar de adulto cuidador, entretanto não é, ainda, um sujeito
do inconsciente, uma vez que seu inconsciente ainda está em formação: traços
de memória, sensações, imagens ainda estão em vias de se articular pela
aquisição da linguagem. . Mas nos dá pistas de que esse sujeito pode advir.
Lacan faz a distinção entre o(je) esse eu do espelho que se reconhece. Com
aquele eu (moi)que, sujeito do inconsciente, constituído pela linguagem, e
também o sujeito da enunciação, aquele que poderá se dizer.

Quando esse reconhecimento não acontece no tempo descrito por Lacan,


através da díade mãe-bebê, pode vir a acontecer na clínica. É sempre uma
aposta. Vamos acompanhar o reconhecimento desse eu, no caso que iremos
apresentar, o caso Theo, em que não havia ainda uma imagem de si
assegurada, esse reconhecimento custou a surgir. E nosso sujeito de pesquisa
via ali um amigo, do outro lado do vidro, por suas atitudes dava para perceber.
Isso quando ele começou a poder se ater a essa imagem. Em geral, vemos na
clínica, uma evitação da criança com risco de autismo ou com o autismo já
instalado, quanto a imagem no espelho. Um enviesamento do olhar, que não
acontece diante de uma parede vazia. Portanto, revela que ali há uma imagem
refletida. Mesmo que a criança ainda não saiba conscientemente, a quem
pertence essa imagem.

Conclui-se aqui neste item, o estádio do espelho, que a busca do humano


por uma unidade é encontrada, mas de forma externa, duplicada e especular.
Internamente para se tornar um sujeito, é preciso ser dividido:

37
inconsciente/consciente. Essa é uma grande descoberta freudiana: o homem
não é o centro do universo, uma vez que seu próprio universo é descentrado.

Ao mesmo tempo, procurando compreender o que acontece na clínica do


autismo quando, não estamos mais tratando de bebês, mas de crianças, com
um esquema corporal constituído: correm, não esbarram, sentam, comem, tem
equilíbrio, e no entanto não são ainda um “eu”, não reconhecem a própria
imagem, e muitas vezes nem a existência do próprio corpo, embora sejam
capazes de usá-lo. E assim recorremos a Nasio (2009) que, em “Meu corpo e
suas imagens”, se pergunta:“ O que quer dizer sentir seu corpo?

Na clínica do autismo, presenciamos crianças dando topadas,


cabeçadas, e não tendo reação. Será que alguma informação deixa de chegar
em seu cérebro? Ou uma ausência, um desconhecimento da existência, uma
desconexão com um corpo que sente e existe é que faz com que uma topada
que deixa o dedão do pé roxo, como se fosse absolutamente nada? Nasio diz
que: “o corpo real é matéria viva, onde acontece se produz o acontecimento
sensorial bruto, independente da pessoa que vive esse acontecimento”
(NASIO, 2009, p.8).

Toda sensação real é duplicada por uma virtualidade, diz ele, por uma
representação psíquica. Fala de Leonardo da Vinci, que chamava suas pinturas
de cosa mentale, porque parte da pintura estava na cabeça do pintor, e parte
no espectador que a observa. Portanto, diz Nasio, o corpo também é cosa
mentale, não existe em um espaço, mas na cabeça de quem o carrega. E se a
cabeça que o carrega, estiver apartada desse corpo? Se não houver imagem
especular, apenas imagem despedaçada? “Não há dor física pura fora de nós,
a dor existe em nós. É uma dor que vibra na cabeça, uma dor experimentada,
ou seja, representada. Pois sem a representação o acontecimento doloroso
não seria sentido” (NASIO, 2009,8).

Segundo o autor, esse conjunto evolutivo de representações é fruto de


investimento afetivo, pela presença interiorizada do outro que vai repetindo-se
em nossa história, e formando o conjunto das imagens mentais do corpo.
Aquela imagem que está para além da imagem especular. Nossa

38
singularidade, que podemos carregar conosco, sem precisar de um espelho. “É
justamente essa constelação de imagens – réplica virtual das inumeráveis
excitações e comoções que atravessam nosso corpo – que me dá a sensação
de existir num corpo vivo e de ser eu” ( NASIO, 2009, p.10).

3.4 Aspectos da constituição do sujeito na clínica do autismo

Operações psíquicas que comentamos até agora acontecem na relação


bebê e Outro primordial, ou são fruto da qualidade dessa relação que vem
sendo “co-construída”, tiveram a função no presente trabalho de vir a mostrar o
que acontece de modo particular no autismo.

Para falarmos em constituição do sujeito no autismo, podemos iniciar por


um dos primeiros contatos do bebê, fora do útero: as primeiras mamadas.

Este ciclo de satisfação parte do oferecimento do peito, circula pela


sucção do bebe, retorna glandular e psiquicamente sobre a mãe,
que se sente assim, mais próxima de seu filho, transformando a
separação brusca do parto num gradativo e lento distanciamento
corporal, se exprime primeiro na forma de leite, como alimentação e
apoio, proteção e ensino, e que vai se ressignificando em outros
objetos na medida que a criança torna-se capaz de se sustentar por
si mesma (JERUSALINSKY , 2012, p. 85).

Suas primeiras expressões: o choro, que passa de uma reação


automática para um elemento de comunicação, se a mãe souber ler essa
mensagem que vem do choro de seu bebê. O sorriso, no final do segundo mês,
“passa a ser um dos organizadores centrais da relação mãe e filho, caráter de
resposta diante do sorriso de outro humano. Sobre aqueles primeiros
mecanismos automáticos, realiza o sistema de comunicação humana que a
mãe utiliza e no qual inclui seu filho” (op. cit, p. 88).

Mas, levemos em conta que um dos primeiros entraves da criança com


risco de autismo, segundo o autor, é o não reconhecimento de seus cuidadores
primordiais. Esse não reconhecimento poderá surgir tão precocemente e se
refletir até à dificuldade de sucção das primeiras mamadas.

Muito precocemente, o bebê com risco de autismo dará sinais da sua


impossibilidade de criar um elo com sua mãe e permanecer aquém da
alienação, o que pode surgir já na recusa das primeiras experiências de

39
satisfação que seriam um caminho para dar origem ou solidificar a díade mãe-
bebê.

Por outro lado, a criança pode mamar sem dificuldade, suprindo o


organismo, mas não há esse olhar de reconhecimento, entre bebê e mãe, essa
comunicação tão particular que a díade instalada presentifica. Ao contrário, a
mãe pode passar a ser provedora de necessidades e não se formar um elo, de
parte a parte. Caso a criança não tenha reação, ou sua reação é uma recusa, a
mãe começa a se desorientar com relação a esse bebê (Crespin, 2010; Laznik,
2013).

Se o bebê não responde, a mãe, o pai, os cuidadores primordiais,


também terão dificuldades em sustentar essa não resposta. Maria Christine
Laznik (2016) relata que, em sua própria experiência de psicanalista de bebês,
levou um tempo para entender que o investimento libidinal dos pais, não se
sustenta diante de uma imagem inerte.

Segundo a autora, o bebê recém-nascido é ativo, com extraordinária


capacidade de imitação. Para defender esse ponto de vista ela cita a pesquisa
de longos anos de Emese Nagy “Homo imitans ou homo provocans? Modelo de
Imprinting”, onde propunha aos bebês levantar e abaixar o dedo indicador,
provando que são capazes de imitar, por que o faziam com algumas horas de
nascidos. Ela conta que, quando parava e deixava de olhar para o bebê, ele
mesmo tomava a iniciativa e mostrava o indicador. O que a pesquisadora
chamou não simplesmente de imitação, mas de provocação: o bebê provoca
para que voltem a interagir (LAZNIK, 2016).

E quando ele não usa dessa capacidade, e pelo contrário, nem olha para
o que seria seu Outro primordial, começamos a ver o risco logo nas primeiras
horas de vida, entendem alguns autores, da impossibilidade de laço com esse
representante do Outro. Ou vir a ter uma relação tão que precária, insuficiente
para a instalação de um circuito pulsional (Laznik, 2010), que, como vimos, não
depende só do desejo da mãe, o bebê precisa consentir (Laznik, 2010).

No Seminário XI, Lacan se pergunta: “será que o sujeito está


condenado a só ver surgir in initio, no campo do Outro?” (p.199).
Aparentemente, a resposta é sim, haja visto que ele mesmo afirma, que “a

40
alienação é a primeira operação essencial em que se funda o sujeito” (LACAN,
1964/1985). Se, para o bebê há uma recusa com relação ao Outro,
representado pelo Outro primordial, como vimos dizendo, em geral a mãe, está
aí a impossibilidade primeira de surgimento de um sujeito pulsional, já que o
desejo materno não é o único a operar. De entrada na linguagem, de ocupar
um lugar de fala. No seu desamparo a criança vai sobreviver graças aos
cuidados do outro ainda assim nele não se alienará. Será falado, por que dele
falam. Estará no campo da linguagem nesse sentido.

Se é falado pelo Outro, pode-se dizer que está na linguagem e se é falado, esta
assujeitado a ela, como todos nós os seres falantes e portanto é um sujeito, mas um
sujeito que não transforma esse assujeitamento em enunciação (KUPFER, 2010, p.
132).

Graciela Cullere-Crespin comenta que a apetência simbólica é o que


torna o bebê atento e desejante diante do que o outro transmite-lhe com seus
cuidados. Ele aprende, banhando-se nas características do outro, por
identificação e por imitação. O bebê e a mãe tendem a tornarem-se objetos de
satisfação um para o outro, em uma reciprocidade importante para o processo
de co-construção do sujeito e do seu Outro primordial. Em contrapartida, diz a
autora, o que processo autístico nos mostra, quando desponta e se estabelece,
independente de sua etiologia é que:

a articulação dos dois campos fracassa e os circuitos pulsionais do sujeito e do


Outro se fecham sobre si mesmos, cada qual em circuito fechado, ocasionando
um processo inverso, a partir do qual não haverá mais uma construção em
comum, mas duas construções que se opõem” (CULLÈRE-CRESPIN, 2010).

Quando acontece o fracasso do circuito pulsional, diz Crespin, se por um


lado, o bebê apresentará déficits de interação, o que poderá se presentificar no
segundo ano de vida, com mais clareza, como sintomas característicos do
autismo, o conjunto desses sintomas corresponde ao fato de que as aquisições
da maturação neuro-motora não são postas ao serviço da relação com o outro.
Assim, poderemos observar a falta de perseguição ocular, que não fará o
sujeito dirigir seu olhar, e o aparecimento de um evitamento ativo do rosto e do
“olho no olho” com o outro. A ausência de emissões sonoras que seriam
caminho para fala ou, em contraponto, o surgimento de palavras, sem
endereçamento, intencionalidade e trocas (CRESPIN 2010, p.161).

41
Podem surgir errâncias, crianças que andam de um lado para o outro,
sem objetivo de chegar a algum lugar ou intenção de brincar com outras, assim
como a presença de movimentos estereotipados.

Graciella Crespin observa que no autismo, o conjunto de aquisições não


se organiza em brincadeiras simbólicas que contribuem para aprendizagem do
que a autora chama de “criança normal”. Por outro lado, ela percebe um estado
de extrema confusão nos pais, inibindo suas competências relacionais com
relação a essa criança especificamente. Competências essas e capacidades,
que se mantem intactas com relação as outras pessoas.

O que pretende então a abordagem psicanalítica? Restaurar a


articulação pulsional, diz a autora, para a criança começar a se organizar, se
construir e se enriquecer por meio da identificação e da imitação. Na clínica,
possibilita-se o encontro de dois mundos, explicita Crespin: o autossensorial da
criança autística e o intersubjetivo do terapeuta. Busca-se a construção
psíquica da criança, que levará ao acesso a sua subjetividade.

É pelo laço transferencial que se estabelece com o pequeno paciente,


que o tratamento será possível. A transferência é mesmo o motor do
tratamento, é através dela que a criança poderá atualizar seus afetos e
presentificar aquilo que, muitas vezes em casa, é tão difícil de mostrar: muitas
das vezes, a criança pede ajuda, apela, das formas mais variadas na clínica.
Uma delas é simplesmente quando consente a estar ali, com esse ainda
estranho mas familiar, o terapeuta.

Em uma psicanálise, o motor do tratamento é a transferência, o


instrumento de trabalho é a palavra e o condutor do processo o
inconsciente, tendo o analista como representante de todo este
dispositivo. Pensamos encontrar aí os mesmos elementos básicos
de intervenção que atuam no processo de constituição de um
sujeito singular: a linguagem, suportada enquanto estrutura e
função por um outro, ao mesmo tempo Outro enquanto alteridade
e outro enquanto semelhante, semblante de objeto - funções do
analista na transferência” (BERNARDINO, 2004, p. 138).

Assim como na relação familiar, na clínica do autismo é importante que


essa trajetória que Lacan apresenta: alienação e separação, operações
fundantes, para que haja a possibilidade de constituição do sujeito é que a

42
metáfora paterna incida sobre o gozo da mãe sobre o filho objeto. Esse é uma
das condições no processo para que a criança não se torne ou deixe de ser um
objeto à deriva para tornar-se um sujeito pulsional, dono do seu dizer. É agora
com o terapeuta, que cada uma dessas operações terá uma nova chance de
acontecer.

Para Angela Vorcaro, em “Transferência e interpretação na clínica com


crianças autistas e psicóticas”, questionando-se sobre qual o lugar do analista
e qual a função em uma análise com crianças, Vorcaro assinala que o analista
estará na condição de Outro Primordial. É ele que:

...substitui a operação do significante, para produzir o que não teve


lugar: corte, separação, negativização, furo. Operação de subtração a
partir da qual se engendra um sujeito, ali onde faltava um efeito-sujeito,
que tem o alcance de uma defesa contra o real. Trata-se, portanto, no
caso do autismo ou das psicoses, de uma psicanálise invertida, pois é
uma operação que vai do real ao simbólico e que cria um efeito de
negativização, enquanto, diante de um sujeito constituído, a operação
analítica é inversa, visa a uma travessia do simbólico e do imaginário
em direção ao real da pulsão, para um levantamento, ao menos parcial,
das defesas (1999, s.p.) (destaque nosso).

4. Método, material e análise

O método de pesquisa adotado é o estudo de caso clínico, a partir do


relato do atendimento através da psicanálise, de um menino, dos 3 aos 4 anos
e 8 meses de idade, com hipótese diagnóstica médica de autismo Infantil,
prévia ao atendimento clínico. Esse atendimento se deu em uma instituição
para crianças com entraves no desenvolvimento psíquico, dificuldades de
sociabilização e questões de aprendizagem, na cidade de São Paulo, em
sessões individuais de uma hora, uma vez por semana, de fevereiro de 2017 a
outubro de 2018.

Antecede a pesquisa e ao relato que será apresentado, a assinatura do


termo de consentimento livre e esclarecido pelos responsáveis pela criança
envolvida na pesquisa, que foram informados sobre os seus objetivos. O sigilo
é uma garantia ética e será respeitado. O nome da criança foi trocado, também
foram trocados os nomes de seus familiares e de quaisquer outras pessoas
que tenham proximidade com essa criança, bem como detalhes que possam vir
a identificá-la.

43
A maneira de relatar o caso clínico é inspirada na proposta da
Psicopatologia Fundamental: “a escrita de um caso clínico diz respeito ao
desejo do clínico, do analista, em compartilhar sua experiência, a partir de uma
questão, um enigma, que o tenha levado à pesquisa”. Por isso, o caso pode ser
pensado como do clínico e não do paciente, esclarecem Berlinck e Magtaz
(2012,s.p.). É revelado aquilo que o caso trouxe de surpreendente para o
pesquisador, o que faz diferença. Uma vez que se pensarmos que o caso é do
paciente, uma inibição comparece. Se ele não é do clínico, como ousar contá-
lo? Ao que estaria sendo fiel? O caso tem um ponto de vista, atravessado por
diversas questões, teorias, pelo protagonismo do paciente e pelo sigilo ético.
Mas é o olhar da pesquisadora que está ali.

... é no texto “Recomendações ao médico que pratica a


psicanálise” (1912) que Freud atesta sua contribuição para
uma reflexão sobre a importância do caso clínico em
psicanálise. Comenta que um dos méritos que a psicanálise
reivindica para si é o fato de nela coincidirem pesquisa e
tratamento. Por sua vez, observaque a técnica que serve a
uma, contradiz, a partir de certo ponto, o outro (BERLINCK &
MAGTAZ, 2012s.p.).

Nesse texto, Freud (1912) afirma que o tratamento em psicanálise


coincide com a investigação, pois o saber psicanalítico deve ser examinado a
cada caso. Não é a simples aplicação da teoria. Para Elia (2000):

Em psicanálise não há, a rigor, “pesquisa de campo”, formulação que


pressuponha a existência de outras modalidades de pesquisa, que
justamente não seriam de “campo” e sim “teóricas”, por exemplo,
como se costuma dizer. Na psicanálise, há, isto sim, um “campo de
pesquisa”, que é o inconsciente e que inclui o sujeito. Por isso, a
clínica, como forma de acesso ao inconsciente, é sempre o campo de
pesquisa. Toda pesquisa em psicanálise é clínica, porque radical e
estruturalmente, implica que o pesquisador-analista empreenda uma
pesquisa a partir do lugar definido no dispositivo analítico como sendo
o lugar do analista, lugar de escuta e sobretudo de causa para o
sujeito, o que pressupõe o ato analítico e o desejo do analista (Elia,
2000, p. 23).

Freud (1912), fala da importância de estarmos abertos a nos


surpreender:

São muitomas bem-sucedidos os casos em que agimos sem


propósito, surpreendendo-nos, a cada momento, e que
abordamos sempre de modo despercebido e sem
pressupostos. (p. 154) (BERLINCK/MAGTAZ, 2012).

44
Berlink e Magtaz ressaltam que, para Freud, o importante é manter a
“atenção flutuante”, conceito proposto por ele nesse mesmo texto. Não querer
notar nada de especial e dar a tudo que se ouve a mesma atenção, sem fazer
uma seleção ou crítica. Contrapondo-se a noção de atenção proposital que
predomina em muitos trabalhos de pesquisa a respeito da clínica psicanaiitica,
que tendem a uma atenção deliberada a algum conteúdo, do que já foi dito.
Como se aquilo que já se tem conhecimento prévio, irá ser comprovado (2012,
s.p.).

4.1. Material clínico

O material clínico consta de registros da terapeuta, feitos após cada


sessão semanal, além de desenhos e folhas com palavras escritas pela
criança em momentos diferentes, no decorrer do tratamento. Conta ainda,
com imagens fotográficas de produções feitas pelo paciente, em massinha,
em quebra-cabeça de letrinhas, na casinha lúdica, onde a posição e o
movimento de bonecos, contam uma história e outras situações em que o
brincar mostra uma forma de comunicação.

4.2. Análise e interpretação do material clínico

O material registrado foi relido para reflexão e articulação teórico-clínica,


que é fonte de riqueza para a pesquisa psicanalítica, uma vez que o que
acontece com o terapeuta e os pacientes tratados pela psicanálise ou terapia
de base analítica, leva tempo para ser decifrado. Uma compreensão em um
tempo a posteriori, “só depois”. É frequente termos fatos e revelações que
estão dados, mas ainda não nos distanciamos o suficiente para perceber.

O revisitar clínico e investigativo, através do material registrado, permite


a rememoração e o encontro de novas descobertas, nesse caso,
especificamente, onde uma criança em sofrimento é atendida clinicamente, sob
orientação da psicanálise.

Na construção deste relato, pela via do trabalho de pesquisa, nos


propusemos a separar, sublinhar, ordenar e comentar alguns momentos,

45
através de fragmentos clínicos, em que determinados processos psíquicos
começaram a surgir. Esses fragmentos, estão escritos em um texto contínuo
que aqui intitulamos de “Caso Theo” e em outros momentos no decorrer do
trabalho. A ênfase foi dada aos fatos, expressões da criança e aos
acontecimentos clínicos, articulados ao estudo teórico, baseado em textos
escritos por autores psicanalistas que pensaram o autismo.

5. Theo – uma criança a trabalho, na clínica psicanalítica

A clínica do autismo, por meio da psicanálise, não é redutível a uma


técnica, nem a uma aprendizagem, nem a uma fórmula generalizante. Não
trabalha com extinção de comportamentos socialmente considerados
inadequados, nem com obtenção de recompensas diante do que é considerado
“certo” ou reforça a ideia de que há uma aprendizagem a ser adquirida, como
observa Laurent (2014).

Pela perspectiva da psicanalise não se busca a extinção de determinados


comportamentos tidos como inadequados, mas acompanha-se, na clínica que,
muitos deles, desaparecem com o tempo, como as estereotipias tão
importantes para aplacar angustias, ou o uso de objetos autísticos, (à
semelhança do brinquedo preferido, ou ainda, um objeto transicional
(WINNICOTT, 1975). Toda criança pode precisar dessa estratégia, agarrar-se a
um brinquedo, a um travesseiro, fazendo deles uma fortaleza, no caso do
autismo, vemos acontecer com mais frequência.

O tratamento, pela via da psicanálise, não treina nem tenta extinguir


comportamentos, mas aposta em tratar do sujeito em constituição, em sua
singularidade, aposta que poderia ser feita sobre toda criança diante de
entraves psíquicos ou não. Há mais a fazer do que uma certa pedagogia
(MALEVAL, 2017).

A abordagem psicanalítica, diferente de outras abordagens, busca o


singular a cada sujeito. Pressupõe que a aquisição da fala se dá por uma
operação simbólica, em concomitância com a subjetivação do sujeito. E não

46
por métodos que, de alguma forma, relevem os processos psíquicos que estão
em jogo, tendo em vista prioritariamente a adaptação ao meio.

5.1. Um tempo preliminar

A partir de agora, a opção será de fazer a narrativa em primeira pessoa,


Aqui, o relato na primeira pessoa do singular se torna necessário para criar
mais proximidade tanto da pesquisadora quanto do leitor à narrativa do caso.

Quando encontrei Theo pela primeira vez, ele era um paciente novo que
estava sendo introduzido em um grupo terapêutico, na instituição para crianças
com entraves no desenvolvimento psíquico, dificuldades de sociabilização e
questões de aprendizagem. Theo chegou até ali, porque sua mãe recebeu a
indicação de uma neurologista que suspeitou de risco de autismo.

Na primeira formação de grupo, da qual participei, como estagiária do


programa de formação teórico-clínico da instituição, com Theo, estavam três
crianças. Havia um menino possivelmente psicótico, outro com o que chamam
de “autismo clássico”. Theo, com quase dois anos, o menor da turma, não
parecia ter nem uma coisa nem outra. Na instituição, havia uma discussão
sobre a hipótese diagnóstica de autismo precoce infantil. Ele tinha um
comportamento interessante: corria, gostava de tirar brinquedos da mão dos
outros. Ali, talvez, ele imitasse adultos da família, a lhe tirar o que não pode ser
mexido em casa, e parecia se divertir com isso. Embora fosse um tanto
retraído, em alguns momentos, não era uma criança que parecesse “diferente”.

Essa pesquisadora costumava ficar na sala de espera, observando a


interação das mães umas com as outras, das crianças com as mães e com
outras crianças. No caso de Theo, pensou-se na possibilidade de surdez.
Sempre debruçado sobre algum brinquedo, se o chamassem de longe, ele não
virava para olhar. Mas se chegasse perto e o olhasse e sorrisse, ele olhava nos
olhos e sorria. Assim, Theo começava a mostrar sua singularidade.

47
Na hora do grupo, a performance se repetia: correr, retirar coisas das
mãos dos outros. Theo admirava bastante Fernando, outro menino do grupo.
Ele era criativo, quando brincavam na caixa de areia, inventava uma porção de
novidades, como jogar areia para cima e com a ajuda do reflexo do sol, dizia
estar fazendo o “arco-íris”. Theo procurava imitá-lo. Uma vez, fizemos uma
sessão do grupo, incluindo as mães. Levei o violão. E, ao tocar “Pintinho
Amarelinho”, música que Theo gostava, ele começou a bater os pés no chão,
bater as palmas das mãos, rodar, como se estivesse dançando. Só não sabia
ainda, cantar ou falar. Diferente de Fernando, um ano mais velho e com
diferente posição subjetiva, que falava quase tudo.

Esse grupo se desfez e isso é muito comum na clínica. Crianças mudam


de horário, ou saem. O importante é que o grupo seja, de preferência,
heterogêneo, porque garante a dinâmica do trabalho e apresenta com muita
nitidez a proposta dessa clínica: educação terapêutica (KUPFER, 1997). Como
diz o nome, uma mescla entre o que é terapêutico e a presença de processos
educativos diversos e tem como base a Psicanálise francesa. Com uma
pergunta insiste: “o que uma criança pode fazer pela outra”? Muito. Entre a
convocação de um adulto e a de uma criança a outra criança, ela se irmanará
em seu semelhante, como no dizer de Maria Cristina M. Kupfer (2010). E assim
funcionava para Theo. Se fosse Fernando a acenar, ele iria correndo. Já um
adulto o deixava um tanto indiferente.

Há um segundo grupo, e, nesse, eu consigo me aproximar mais de


Theo. Bebia água comigo e não aceitava oferecimento de comida ou bebida de
mais ninguém. Uma vez, ao tentar sair da sala – e como ele gostava de
escapar – o impedi a tempo e cheguei a escutar o balbuciar de algo que me
pareceu: “sair, preso”. Esta foi a primeira ocasião em que ele enunciou algo.
Nesse grupo também, em uma outra escapada de Theo, nos enlaçamos em
uma brincadeira: ele tentava subir as escadas que o levariam a sala de espera
e a analista inventou que a brincadeira seria de subir e descer várias vezes,
contando “1,2,3 e já”. O que ele pode repetir, sem dificuldades e dar alguns
sorrisos. No mais, continuava em seu mutismo.

48
Nessa época, a irmã de Theo participava de seu grupo. Sua mãe levava
os dois, por não ter onde deixar essa filha, na hora da sessão de Theo e a
menina que entrara, uma vez no grupo, só para conhecer, era falante e
exuberante, animava as outras crianças e passou a ir sempre. Parecia
defender seu irmão, na disputa de brinquedos com outras crianças. Estava ali
de guardiã do Theo. Atitude muito comum em crianças irmãs das que tem
entraves psíquicos. A menina ouve em casa o discurso dos pais, sobre a
fragilidade do irmão – é apontado o lugar que esse pequeno paciente ocupa na
família – e se sente na obrigação de defendê-lo mesmo que ele não precise, ao
custo de que ela deixe de aproveitar um momento de brincadeira, para ser
essa irmã de “plantão”. Ocupava ali o lugar de única falante do grupo. O que
parecia manter essa posição de “enfermo” de Theo, em seu grupo terapêutico.

Um tempo e outros grupos passaram por mim, até que encontrei Theo
em um novo grupo, dessa vez, com maior número de crianças e com
dificuldades bem diversas, como a síndrome do X Frágil e outras questões,
com uma proposta artística e um professor de artes plásticas para fazer
atividades.

Pareceu interessante a proposta. Mas, talvez um pouco mais exuberante


do que algumas crianças pudessem suportar. Muito barulho acontecia e muita
demanda. Assim, pelo motivo que fosse, pude observar Theo se retraindo. Foi
ficando mais quieto em um canto, passou a andar arrastando a mão na parede,
como que procurando superfície. Começou a enfileirar carrinhos com muita
constância: lado a lado, um atrás do outro, para a direita, para a esquerda,
ensimesmado. Theo estava mudando. Continuava sem aceitar um alimento
sólido ou líquido de quem quer que fosse. Não falava. E agora, estava se
fechando mais e mais.

Comecei a atender Theo em sessões individuais, que até aquele


momento só havia experimentado o trabalho em grupo. Os pais, mesmo diante
da necessidade, não tinham condições naquele momento, de pagar um
tratamento individual. E assim começamos. Theo meu primeiro atendimento
individual naquela clínica. E eu, sua primeira psicanalista, em sessão individual.
Sem os colegas, e sem sua irmã. Como seria Theo e eu? Me perguntava

49
antes, sempre na aposta de que, com o olhar que já tinha sobre sua
singularidade, no acompanhamento detalhado que dele pude fazer ao longo de
mais de um ano, diante dos contatos que tive com o menino, que algo do
inédito, pudesse acontecer. Mas como diz a música, “o inesperado fez uma
surpresa”, e foi tudo muito maior, mais profundo, mais bonito e revelador do
que minha imaginação pudesse conceber. Theo acabara de fazer 3 anos.

5.2. História clínica e sintomas

Theo nasceu a termo, de parto normal. Tudo corria bem, até que “antes
de tomar a primeira vacina”, como descreve a mãe, ele teve uma bronquiolite
severa e precisou ser internado. No hospital, a dificuldade de retirar o muco
retido em seus pulmões era grande, seus vasinhos eram como “fios de cabelo”.
E, por isso mesmo, segundo o relato dessa mãe, tiveram que sedá-lo e entubá-
lo, por mais de uma semana, para que o tratamento fosse possível.
Praticamente sua entrada no mundo veio acompanhada de intervenções
intrusivas e dolorosas em seu organismo.

Quando finalmente Theo recebeu alta, o que demorou mais de um mês,


sua mãe debruçou-se sobre ele e como ela mesma diz “não deixou mais
ninguém chegar perto”. É provável que, nesse momento, ou antes, durante a
permanência em uma UTI infantil e tão precocemente longe da mãe, de seu
corpo, do som de suas palavras, de seu aconchego, tão decisivos no começo
da vida, Theo tenha sentido desamparo suficiente, para apresentar um estado
autístico, até como defesa – fechar-se em si mesmo, como as crianças
encapsuladas de Tustin (1981), possivelmente aquém da alienação (LAZNIK,
2016). Mas, a mãe não se lembra de nada incomum. Uma vez que ela mesma,
não parecia estar em condições de ter um olhar sobre o filho naquele
momento, só de “protegê-lo”.

Posteriormente, a mãe informa que, na época do nascimento de Theo,


ela cuidava dele, mas a atenção afetiva dada era à filha mais velha, por achar
que ela necessitava de maior atenção. Do Theo, ela cuidava, não deixando os
outros cuidarem. Estar e ter estado com um filho em uma UTI, confronta a uma
série de questões que não são simples de lidar. Medo de perder, luto

50
antecipado, fragilidade, dor. Sua depressão crônica, relata a mãe, se agravou
ali, mas ela permaneceu atenta a sobrevivência de Theo.

O tratamento bronco-pulmonar de “menino chiador” continuou em outro


hospital, com muito mais recursos, onde uma prima trabalhava, o que tornou
possível a quantidade de consultas necessárias e um atendimento preocupado
com o desenvolvimento global de Theo. Foi assim que aconteceu essa
consulta com a neurologista, como citado anteriormente, que logo alertou para
sinais de autismo precoce infantil.

No momento em que recebeu alta, no primeiro hospital, Theo não teve


dificuldade em voltar a mamar no peito. Mas, não sabemos se durante a
amamentação ele olhava para a mãe e ela para ele, se havia uma
comunicação entre eles. Só que sua alimentação consistia basicamente neste
leite, por decisão materna, até completar 1 ano e meio.

Pela escuta e apoio recebidos nessa instituição para crianças com entraves
em sua constituição psíquica, que a mãe de Theo conseguiu elaborar o
desmame do menino, que havia acostumado a agarrar em seu corpo e puxar
seu peito quando bem quisesse ou necessitasse. Como se esse corpo existisse
– e não uma mãe – apenas para suprir suas necessidades. Também até aquele
momento não se ouvia dela um “manhês”, essa fala maternante, cheia de júbilo
e prosódia, que as mães fazem ao dirigirem-se aos seus bebês. Parecia haver
uma dependência mútua e sem pulsionalidade. A dificuldade no desmame
pode levar a pensar na dificuldade de um corte entre o corpo da mãe e o corpo
da pequena criança.

O menino desmamou, logo no início de sua participação nos grupos.


Uma primeira conquista rumo à independência de ambos. Quando comecei a
observar mais a mãe de Theo e mais tarde, a conversar com ela, notava que
até ali, ainda não havia da parte dela uma suposição de sujeito, com relação ao
seu filho.

Ela falava de suas preocupações com relação a ele e, em tom de


desespero, na frente de todos e, principalmente, na frente dele. Perguntas e

51
queixas como: “será que ele é inteligente? Que doença será que ele tem? Será
que um dia vai falar? Por que será que ele é um menino assim?” Ela falava
como se o filho não estivesse na sala. E estando, não fosse capaz de escutar
ou entender, como se não pudesse supor um sujeito em Theo.

Assim, podemos observar que a fala sintomática dessa mãe,


correspondia ao mutismo sintomático de Theo. Ela falava por ele, ele era falado
pelo Outro. Em um tratamento psicanalítico com crianças, toda a família está
implicada, todos terão de uma forma ou de outra, que lidar com seus entraves.
E, muitas vezes, superá-los.

Mas, Theo tinha sintomas específicos e quando comecei a trabalhar


com ele, principalmente em sessões individuais, precisei encará-los:
seletividade alimentar – ali naquela garganta, que um dia foi entubada e
poderia ter uma memória de dor – só passavam coisas macias e... brancas:
“bisnaguinha", um pãozinho bem mole, com recheio máximo de requeijão,
iogurte de cor clara, e segundo a mãe ele também comia arroz bem molhado
de caldo de feijão branco, com carne desfiada e legumes escondidos”. Essa
era toda a alimentação de Theo. E não adiantava ter uma festa infantil na
clínica, ele não experimentava nada de novo: um doce, um bolo ou um suco.

Parte disso não dava para atribuir a uma recordação de tratamento


invasivo e dor na garganta. Parte dessa seletividade é bastante comum em
crianças com autismo. É como uma espécie de mania. E ainda não existe uma
explicação científica que dê conta. Talvez, aquela necessidade de manter o
mundo sempre igual “sameness”, para prevenir a angústia do inesperado,
fosse o motivo da repetição incessante do mesmo menu, dia após dia.

Além disso, Theo não falava, não por ser mudo, já havia comprovado
antes. Mas, aquele não falar que se parecia com o mutismo, como uma recusa
ao Outro, que tantas crianças com autismo tem. Theo pouco se relacionava
com outras crianças. Seu brincar era praticamente inexistente nos grupos, fora
manter-se em movimento. E, mais tarde, apenas enfileirando coisas, de
preferência, carrinhos.

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Theo também não fazia sons, como o barulho de um carrinho, ficava em
silêncio. Por outro lado, seu ouvido era aguçadíssimo, o que o incomodava
bastante. Quando já conseguia dizer algumas palavras, no atendimento
individual, tentava comunicar: “chora” dizia. E eu perguntava: é o barulho, tem
uma criança chorando lá embaixo. E ele retrucava ou repetia tentando fechar
os ouvidos: “barulho! barulho!!!!”

Penso que Theo tinha um problema de escutar demais e confundir o que


se dizia a ele, com o que o vizinho do outro lado da rua está falando. Ele ouvia
o que se passava no andar de baixo, e se incomodava, o som da campainha
da escola ao lado lhe era quase insuportável. Até que isso foi passando, pelo
menos em termos de reclamação dele. Já conhecia a origem dos barulhos, e
talvez, por isso, com o passar dos meses, deixou de ser um problema. Ou, com
o passar dos meses, tenha conseguido criar uma barreira entre um som e outro
e não mais ouvir tudo de uma vez, como fazem as crianças que tem
dificuldades no processamento auditivo central (PAC): aprendem a selecionar o
que pode ser ouvido, do que deve ser ignorado, em termos de audição.

Um pouco da história familiar

Na família da mãe, havia diversas questões que poderiam ter dado


origem à situação psíquica de Theo. A mãe relata a história da família, de 13
irmãos, em um vilarejo sem recursos, no interior de um estado do Nordeste.
Família alimentada a feijão com farinha. Às vezes, passando fome, sem
conhecimento de leitura ou escrita. Diversas histórias de depressão, ela
mesma sofre de depressão e, embora sempre tenha apresentado uma certa
melancolia, custou a falar sobre isso e sobre a medicação forte, que toma, com
continuidade e tentativas de suicídio nessa família. Dois casos de
esquizofrenia.

Uma saga, a vinda da mãe de Theo e alguns irmãos para São Paulo, na
tentativa de sobreviver. Muita tristeza na chegada, abandono de quem se
propôs a cuidar dela, ainda menor de idade. Assim, ela se aloja e recebe apoio,
em uma casa de família, onde começa a trabalhar. Conhece o futuro marido.
Entra para uma faculdade e estuda Administração. É uma mulher que lutou

53
para adquirir algum conhecimento e, por isso, dava valor a possibilidade do
filho, no futuro, “ser alguém na vida”, através do estudo. Essa parecia ser uma
das suas preocupações com relação a Theo: será que ele vai escrever? A
alfabetização costuma ser aos 6 anos. Naquele momento, Theo acabara de
fazer 3 anos. Foi nesse momento, ao completar 3 anos, que começamos o
atendimento individual.

5.3. O caso clínico

Depois de um ano participando do trabalho em grupos terapêuticos


heterogêneos e acompanhando o desenrolar clínico de Theo, começamos seu
tratamento, agora em atendimento individual, de fevereiro de 2017 a outubro de
2018. A narrativa que se segue será dividida em três momentos, a partir da
proposição de Cullere-Crespin (2010), a respeito da abordagem analítica de
distúrbios autísticos. São estas: etapa de aproximação, etapa de engajamento,
etapa de entrada nas trocas.

Primeiro tempo: etapa de aproximação

De acordo com Cullere-Crespin (2010), quando o terapeuta vai ao


encontro da criança, utiliza o registro sensorial privilegiado pela criança,
deambulações, manipulação de objetos, tapinhas, gritos, introduzindo-se
enquanto companheiro de brincadeiras, aceitando a atividade da criança como
se a ele fosse endereçada. Ele fará à criança o que ela faz a si, introduzindo aí
o seu júbilo: mostrará à criança o que ela mostra a si própria.

É a primeira sessão: Theo entra na sala e, ainda próximo à porta, olha


para o painel de letras e as soletra de A a Z, as últimas letras um tanto
enroladas. Digo, surpresa: você sabe as letras! Mas veja: aqui não tem o K.
Theo lê agora de baixo para cima, de Z a A, dessa vez, retirando o K. Ele me
escutou, me entendeu.

Theo experimenta todos os brinquedos da sala, nas duas primeiras


sessões. Ele passa pelo espelho e, aparentemente, olha-se. Pega um bebê em
um berço do outro lado da sala, faz o bebê andar, segurando-o. Digo: olha só,
Theo é um menino grande, sabe andar, sabe ler as letras, sabe falar, sabe

54
escutar. Enquanto falo, Theo permanece com esse bebê em pé. Noto que ele
está parado com o bebê, me escutando.

Quando eu paro de falar, ele anda mais um pouco com o bebê e o traz
para perto da casinha de madeira, onde fará algumas brincadeiras, ou
narrativas: Theo retira alguns pequenos bebês de dentro da casa, um gato e
um cachorro de feltro. Deixa uma mulher, a única personagem adulta que havia
ali naquele momento. Ele coloca cada um desses pequenos animais em cima
de um carro. Mas, a cada vez, espera que eu diga alguma coisa: o gatinho está
passeando? Ele mexe com o carrinho e, assim, sucessivamente. Theo me
ouve, me entende. Corresponde.

Ele parece estar cheio de júbilo, por mostrar todas essas possibilidades
de comunicação. Theo mostra, com clareza, que escuta, espera e mostra outra
coisa. Existe um tempo, uma pausa em suas atitudes. Não me parece uma
brincadeira, mas uma forma de comunicação.

A cada movimento de Theo, a cada coisa que ele parecia me mostrar,


eu o elogiava. “Por que será que ele é um menino assim?”, era uma pergunta
recorrente por parte da mãe, que fazia pensar que talvez fosse um menino
mais cobrado do que elogiado. Talvez ainda não houvesse um olhar
apaziguado ou uma tentativa de supor que ele estava todo o tempo com algo a
dizer.

Theo cantarolava, em alguns momentos o que coincidia com o que sua


mãe havia dito: que ele às vezes parecia cantar, como um passarinho, um som
indistinguível, como uma lalação14, ou nem isso. Um passarinho mesmo. O
som da palavra sai de sua boca com letras. Somente com as letras, penso.

Chega perto de mim, com a brincadeira de esconder o rosto e achar. Ele


tampa a minha vista e depois a abre, ele mesmo. Digo: olha o Theo! Ih! Theo
achou. Cadê o Theo? E, assim, ficamos um tempo. Theo vai passando de um
assunto a outro como se estivesse mostrando um portifólio, um repertório.
Tudo novo e surpreendente, para um menino que não falava, não emitia
14
Lalação – diz respeito ao balbucio do bebê, uma linguagem não comunicativa, tem a ver com a emissão
de sons da criança que poderá ser interpretada pelo Outro.

55
qualquer som, não parecia ouvir, por que não reagia a qualquer proposta, ou a
qualquer demanda que fosse.

Quase no final da segunda sessão, que transcorreu cheia de surpresas,


como a primeira, Theo busca um caminhão com uma grua. Ele então bate com
essa grua como se fosse um tambor, marcando um ritmo: ta tata – tateteta tata,
ouço e, imediatamente, algo lá do fundo da memória me vem: musicoterapia.
Começo a repetir o som com os pés. Quando eu termino de reproduzir seu
ritmo, Theo faz um outro som, repito e mais outro e repito.

Faz uma sequência rítmica mais sofisticada em que o espaço de pausa


é grande, como se contasse até 10, em silêncio. Antes dessa pausa, não
entendo que será uma pausa e, quando a primeira parte do ritmo termina, tento
imitar, mas Theo segura meu tornozelo, mostrando que há um silêncio, que vai
continuar. Ele continua sua frase rítmica. Eu tento copiar com toda a minha
capacidade de memorizar, inclusive o silêncio, conto até 10 mentalmente. E a
brincadeira, como um código Morse se desfaz na hora em que resolvo propor
um som meu para Theo imitar, ele não imita, não aceita e a brincadeira
desvanece. Estava na hora de ir embora. Final da 2 sessão.

Como naquele instante eu não saberia traduzir em palavras a sua


mensagem cifrada em ritmos, tento imitar e mostrar a Theo que eu o escuto,
que também poderia falar aquela língua e devolvo a ele cada uma das suas
frases rítmicas como resposta. Mais tarde, bem mais tarde, escrevendo este
trabalho, comecei, em um exercício de transliteração15– a inferir o que poderia
ser em palavras, aquela tentativade comunicação de Theo.

Ao mesmo tempo vemos aqui, o quanto é necessário respeitar o tempo


do pequeno paciente. Foi precipitado pensar que Theo copiaria um som feito
por mim. Essa espécie de troca, vi a posteriori, aconteceria bem mais tarde,
quando uma relação de transferência já estava estabelecida e um momento de
trocas podia se iniciar.

15
Transliteração – consiste em “passar de um sistema de escrita para outro sistema de escrita. Por
sistema de escrita entendemos as marcas e traços anteriores e condicionantes da emergência de
significantes” (GOUVÊA, FREIRE& DUNKER, 2011, p. 5).

56
Dessas duas sessões, em que me pareceu grande sua necessidade de
comunicação, Theo parecia utilizar talvez o seu repertório disponível, naquele
momento, para dizer alguma coisa e procurei colocar em palavras, como se
fossem dele, a cada instante que eu considerava propício: Theo escuta, Theo
fala, Theo não é mudo, Theo brinca, Theo entende o que a Pauline diz. E uma
palavra eu não digo, mas penso: vivo. Theo está vivo. Existe um menino bem
vivo, dentro de Theo. Tempos depois, consigo pensar que era Theo ali fazendo
um apelo: Me olhe, me compreenda e me acolha.

Além disso, chamou-me atenção um momento em que, apesar de toda


essa necessidade ou vontade de comunicar-se, dou uma risada porque Theo
se deita sobre uma ponte onde os carrinhos passam, do tamanho exato dele
mesmo. Ele imita a minha risada, rosto sorridente, mas o som que sai é
mecânico, é como se fosse um som de castanholas ou um barulho de azulejos
batendo um no outro. Tac-tac-tac-tac. Penso: ele não consegue dar
gargalhadas.

Talvez Theo jamais tenha dado uma gargalhada antes, mas estava
tentando imitar a minha. Quem sabe dali surgia uma identificação, e um prazer
compartilhado iria advir desse brincar livre e descompromissado de alguma
técnica educativa, ou uma direção pré-determinada a se chegar?

Logo de início, naquela sala, noto que os brinquedos estavam


encostados em cada uma das paredes. O que a mim pareceu um circuito de
brincar. Decido, então, criar um circuito como aquele, mas com o que Theo já
havia se interessado, destacando a posição de alguns brinquedos. Em uma
estante, coloco saquinhos com brinquedos que eu mesma havia trazido, alguns
instrumentos musicais, fazendo um nicho no chão, mais para o centro. Passo
a levar o violão, a cada sessão e o deixo ali. Coloco ainda alguns carrinhos no
chão. Memorizo e fotografo aquela nova arrumação.

Theo chega para a terceira sessão, da mesma forma que veio para as
outras, parecia já me reconhecer, vinha bem, de mãos dadas comigo, desceu
as escadas, sem resistência. Até parecia alegre. Nova surpresa: no momento
que entra na sala, Theo se fecha em um território, se deita no chão e começa a

57
fazer fileiras de carrinhos. Se eu tento me aproximar, ele muda a formação dos
carrinhos. Se eu falo, ele vira de costas para mim. Mostra mesmo que não está
indiferente a minha presença, mas que não pode se comunicar. Talvez as
sessões anteriores tenham sido demais. Muita informação, excesso de energia
vinda de mim? Minha presença fora excessiva?

Eu deito no chão e passo a ficar deitada, algumas sessões seguidas, por


semanas. Eu arrumava a sala no circuito, antes da sessão, sempre deixando
um montinho de massinha para mim e outro para Theo sobre a mesa, um papel
para mim e outro para ele, lápis de cera, os instrumentos. Um dia para
provocar alguma reação, trouxe um carrinho de asas, um aviãozinho e parece
que introduzi um enigma para ele resolver: como arrumar nas fileiras esse que
tem asas? Não correspondia em formato, em cor, não fazia par. Theo deu uma
solução. Coloca o carrinho de asas na ponta junto com uma camionete um
pouco maior, também destoante do resto e criou uma forma de avião, com os
outros carrinhos, um V ao contrário. Só para contar como cada coisinha, cada
detalhe, interferia, mexia com aquela sensibilidade tão à flor da pele, nada de
carapaça. Só na aparência.

Depois de algumas sessões, deitada no chão, Theo ainda estava tão


sensível ao contato, ao ponto de uma respiração mais alta minha, fazer com
que mudasse a direção dos carrinhos, coisa que acontecia toda vez que algo o
incomodava, o invadia, como se fosse uma maneira de rearrumar a sua
fortaleza. Carrinhos duros, carrinhos de ferro. Junto com outros menos duros.
Mas um lugar seguro, aparentemente impenetrável. Busco ajuda. Na conversa
com uma colega de trabalho, conto o que está acontecendo e de meu desejo
em seguir em frente, de fazer alguma coisa para quebrar essa armadura que
Theo agora colocou entre sua terapeuta e ele.

Ela me sugere ter em mãos um carrinho ou dois e oferecer a Theo nas


sessões. Eu aceito a ideia e ofereço meu carrinho a Theo com essas palavras:
O carrinho da Pauline pode brincar com o carrinho do Theo? A essa primeira
oferta, ele pega o carrinho da minha mão, fecha os olhos e o insere em sua fila
de carrinhos.

58
É um momento de grande importância para mim e penso que para ele
também: é decisivo. Entendo que Theo me aceitou e que inseriu meu carrinho
junto aos seus. Digo: o carrinho da Pauline está muito feliz de estar junto dos
carrinhos do Theo. A Pauline também está muito feliz do carrinho dela estar
brincando junto aos carrinhos do Theo. Ali, nos adotamos.

Importante, decisiva também é a leitura que se faz e, nesse momento,


pude ver mais ainda, o quanto é delicado o trabalho na clínica do autismo. Eu
poderia ter entendido: Theo não quer se abrir. Ele pega o carrinho, não como o
“meu” carrinho. Mas, apenas porque tem predileção por carrinhos. Tira de
minha mão-coisa e coloca em sua fila-armadura.

Em segundos, essa hipótese me passou. Mas ao contrário disso, em


minha permanente suposição de sujeito com relação a esse pequeno paciente,
compreendi que Theo tinha aceitado minha oferta, me aceitado. E aquele
gesto, pegar o carrinho e colocar junto aos seus, era o que podia fazer naquele
momento.

Dependendo da leitura, a estratégia seguinte poderia ser outra, ser outra


história. Não que o olhar da analista/pesquisadora tenha preponderância sobre
o tratamento. A criança pode abrir passagem para seu direito a ser, mesmo
que o caminho esteja estreitado, pela dificuldade de manejo do outro. Mas a
leitura desse outro pode facilitar ou intimidar a fluidez do trabalho. Entre
equívocos e acertos, eu ia comemorando os resultados, aprendendo.

De acordo com Cullere-Crespin (2010), com a introdução do terapeuta, a


criança ser inserida em um circuito e pode incluir o Outro, com seu júbilo e
desejo, o que durou um tempo, para que Theo pudesse consentir em outro
júbilo diferente da sua “busca de satisfação autossensorial imediata”
(CRESPIN, 2010, p. 159-166.

Fica nítido o quanto Theo foi se abrindo as proposições feitas, os jogos,


os objetos apresentados. A analista se introduziu no circuito e introduziu o seu
júbilo e o seu desejo. Não se tratava de um trabalho pedagógico, mas de ver
como a criança se colocou em trabalho.

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Nesta etapa, quando ele entra no jogo com a analista, ele responde ao
seu convite, tomando-a como companheira de brincadeiras. Ele usa várias
linguagens (ritmos, narrativas na casinha lúdica, sons), aceitas pela analista
como linguagens possíveis. Poderíamos falar de um esboço de alienação ao
convite do Outro?

A analista testemunha logo de início, júbilo do paciente no brincar, nos


ritmos, em que se expressa, quiçá, uma autossatisfação sensorial. Quando a
analista repete o ritmo que ele faz, talvez ele se veja em espelho e, logo, um
ritmo novo por ele é introduzido. Aqui, pode-se pensar o quanto ele pode ver a
sua própria mensagem no Outro. Inicia-se um compartilhamento de
comunicação, a criança não evita o contato, o olhar, as brincadeiras ofertadas.
Aos poucos, Theo vai se deixando tomar ao que lhe é ofertado.

Segundo tempo, a etapa do engajamento

De acordo com Cullere-Crespin (2010), a perseverança do analista


testemunhará os sinais de reconhecimento. O terapeuta se colocará na posição
de questionador da posição desejante da criança, recém-adquirida, o que
permite a sua entrada no engajamento.

...Essas cenas vão se repetir, durante algumas semanas. Cada vez, com
mais carrinhos e mais inserções. Tenho a ideia de esconder alguns carrinhos
para que Theo pudesse procurá-los, quem sabe. E, além de oferecê-los, passo
a dizer - tenho um carrinho escondido por aqui... e Theo começa a levantar a
cabeça para olhar. Mais tarde, a se levantar de curiosidade para ver onde
estariam os meus carrinhos. Esses momentos foram preciosos: o menino que,
a maior parte do tempo ficava ensimesmado, reapareceu.

Theo agora já circulava pela sala e começava a se interessar novamente


pelo que havia em volta. Um dia, senta-se e pega a massinha a sua frente e
coloca sobre a minha. Digo: a massinha do Theo engoliu a massinha da
Pauline! Ele ri.

Foi um tempo de júbilo, de ver Theo contente e interagindo,


compartilhando a nossa brincadeira. Talvez por isso, me parece que o fato de

60
ter valorizado todos os avanços dele na comunicação, os achados nas
brincadeiras que ele fazia, nos encaminhamos para um lento, mas seguro
progresso. Podia ser porque eu irradiava felicidade nesses momentos e ele via,
mas eu também reafirmava na palavra.

Sem deixar a massinha, que fez caminho para outra atividade, Theo e
eu começamos a brincar com o papel e as canetinhas. Faço pontinhos,
supondo que será algo fácil de copiar e que poderemos fazer juntos,
compartilhar um desenho. Ele aceita e começa a pontilhar. Fazer chuva se
torna a nova aquisição e passamos semanas fazendo chuva. Em todos os
papéis que pontilhávamos, eu desenhava um guarda-chuva e Theo sorria. Ali
ele já começava a dar umas risadinhas, com som de risadinhas. Uma ecolalia
de minhas próprias risadas? Um caminho, imitar para depois fazer sozinho.

Theo começa a fazer algumas garatujas que se parecem lagostas, um


dia faz um gato, e é mais uma surpresa, o primeiro desenho figurativo. Ele diz:
gato! Depois do meu reconhecimento no seu desenho. Desenho junto com ele
alguns peixinhos, e digo que gato gosta de peixes, ele me acompanha a fazer
desenhos de peixes também.

Era fácil perceber que, pela oferta semanal de papel, um para cada um
de nós, um montinho de massinha para cada um, havia um universo de
propostas sobre aquela mesa, que aos poucos ajudava Theo a se organizar. Já
era certo: ocupava seu lugar na mesa e começava a trabalhar. Essa foi uma
ideia básica de compartilhamento. Mas Theo fez mais que isso, parecia estar
entrando no registro do simbólico com seus desenhos ainda rudimentares, se
permeando ao significante e ao Outro, pelo compartilhar, abrindo-se a
possibilidade de ocupar um lugar seu em outros ambientes. Logo surgem
notícias do grupo terapêutico: “Theo está muito mais libidinizado. Interage
mais. Ele agora olha para mim e dá tchau na saída”, comemorava uma das
terapeutas do grupo.

Mas, Theo demonstra um novo interesse, que coincide com sua mãe
dizer que ele está copiando palavras e escrevendo: que escreveu nescafé e

61
também escreve o nome da irmã no papel e no computador, e em uma
“lousinha”, sempre o nome da irmã e nescafé.

Vejo Theo tentar escrever o nome da irmã Lara, com um L bem


rebuscado de letra cursiva. Ele faz diversas tentativas nas sessões seguintes.
Você está escrevendo Lara, Theo, é a sua irmã? Nesse momento, Theo está
concentrado e não quer conversa, parece que vai de novo voltar para seu outro
mundo, e agora com um instrumento: o lápis, o papel e a possibilidade da
escrita. Ele já não passeia pela sala, não mexe em nenhum brinquedo, parece
que perdeu a curiosidade. Está nessa escrita, em que se irrita e joga os papeis
fora. Ensino a escrever Theo e ele aprende imediatamente. Será que já sabia e
não ousava?

Um dia, ele responde à pergunta muda, colocada nas sessões


anteriores. Ele sabia escrever. Theo escreve um nome que parecia com o meu:
Paulinhi, foi o que li. Onde é que esse menino aprendeu a escrever o meu
nome? Tempos depois, descubro que meu nome está superposto ao nome do
pai em outra cor. Não era apenas um P de Pauline, era um R de Renato e
outras vogais e consoantes misturadas. Meses mais tarde também começo a
pensar na importância da função paterna que eu vinha exercendo ali.

Se, por um lado desde o início do atendimento individual, exerci uma


função mediadora entre Theo e o agente materno, tão temerosa e assustada
com relação ao filho, pedindo a ela a cada entrada e saída, a cada encontro na
sala de espera, um tempo para novas respostas. Sempre que havia uma
brecha eu dizia: olha só, pode não parecer, mas Theo presta atenção ao que
você diz, a sua voz. Melhor não falar sobre suas expectativas e temores em
frente a Theo, ele escuta e entende o que você fala, eu dizia. Por outro lado,
aceitava e respeitava o que Theo trazia, ao mesmo tempo ia introduzindo ali
uma tentativa de separação do Outro materno, que poderíamos pensar como
um Outro absoluto, sem mediação, o que poderia deixar meu paciente exposto
a ocupar o lugar do desejo materno. E como Theo precisava dessa mediação.

Voltando às tentativas de escrita, tudo vai para o chão, vejo Theo


nervoso, ansioso. Reclamando. De si? Da vida? Parece não suportar que sua

62
letra não é perfeita o suficiente. Sua destreza manual não é suficiente. Ele
perdeu a vontade de sorrir. Não há mais ali um começo de prazer
compartilhado. Theo faz uma regressão forte ao tentar escrever. Como se
fosse pavoroso não ter o controle, não atingir a perfeição de uma fileira reta de
carrinhos. Ele precisa voltar a ter contato com os brinquedos, com outras
possibilidades, penso. Parece estar em um “dever de casa sem fim”.

Me parece que a melhor coisa é tirar tudo que é letra de imã pregada no
armário e sumir com todos os papeis e lápis. Colocar essa atividade, em
suspensão. Deixar esse espaço clínico para Theo brincar e não satisfazer uma
pressão familiar, especialmente da mãe que incessantemente me lembra que
ele precisa escrever aos 3 anos de idade. Paramos com papéis, guache ou
qualquer coisa que escreva. Theo se volta novamente aos brinquedos, seu
circuito.

A massinha volta a ter importância. Começo a fazer formas de animais e


ele pega tirando pedacinhos e vai transformando em pequenas esculturas
despedaçadas – um corpo sem unidade? Uma escultura, sem forma definida.
Uma reconstrução. Sempre digo algo: olha só Theo transformou o gatinho da
Pauline em uma escultura cheia de pedacinhos, que linda que ficou a escultura
do Theo!

Mais tarde, no decorrer das sessões, passo a jogar bolinhas de


massinha para Theo, que vai transformando-as nessas formas empilhadas.
Antes, era ele quem arrancava os pedaços. Ao mesmo tempo que a entrega
das pequenas bolas era já uma brincadeira: pega Theo, pega Theo, pega
Theo. Ele ria muito, puro jubilo. E juntava as bolinhas em esculturas, agora
utilizando carrinhos para enfeitá-los na caçamba ou fora. Um dia minha
massinha termina e Theo diz: BOLA. Sua primeira palavra contextualizada em
uma brincadeira. Eu pergunto: você quer mais uma bola? Minha massinha
acabou!Theo pode dar um pedaço de massinha para a Pauline jogar mais
bola? E ele joga um pedaço de massinha. Pela primeira vez, ele devolve
alguma coisa. O despontar de uma troca, de uma continuidade. De um ir e um
voltar, um circuito. Semanas mais tarde, nessa mesma brincadeira Theo vai
dizer seu primeiro verbo: PEGUEI.

63
Diversas operações estão acontecendo, nesse aparentemente simples
momento: consentimento – ao demonstrar que quer mais e dizer: bola, Theo
entra no jogo. Sai da recusa e mostra que pode ouvir e entender o significado
das palavras de um outro e pode responder ao Outro. Theo se arrisca a sair
dessa posição de recusa, voltado para si mesmo e entregar alguma coisa de si
ao Outro. Enviando um pedaço de massinha para que possa ser reenviada
para ele como mais uma bola e o prazer de compartilhar que começa a
conhecer, possa continuar. Relaciona-se também a um momento anterior ao
estádio de espelho, quando Theo aqui já consegue se identificar com a
analista, iniciando sua construção de alteridade. Como na alienação e ao
mesmo tempo, a separação.

Se Theo pode me devolver um pedaço de massinha porque quer


continuar brincando, mostra que está saindo de sua posição um tanto rígida de
recusa ao Outro. Consente em compartilhar sua massinha para alcançar mais
satisfação, ou mesmo prazer no jogo que por alguns instantes o fazia vibrar,
naquele universo que parecia tão imutável.

Theo pode fazer esse movimento e isso aparece na fala: já tem uma
referência de si – embora não queira ou não possa assumir ainda o pronome
na primeira pessoa-eu – pode dizer o verbo no tempo correto –- da primeira
pessoa do singular. Mais além, Theo começava a simbolizar com a massinha,
a própria construção que estávamos fazendo. Havia a brincadeira – pega-pega,
início de um prazer compartilhado. Como também uma montagem com os
pedações de massinha que ao se juntarem, bolinha por bolinha, formava um
todo, que continha partes.

Ou seja, de alguma forma já começava a escrever no concreto, suas


inscrições próprias, agora feitas, ou refeitas. Um corpo despedaçado se
juntava. Ao mesmo tempo um conjunto se formava, com partes – Theo não é o
todo, mas já começa um despontar de que partes separadas podem se
enlaçar. A parte que precisa me enviar, para ao passar por mim, voltar para ele
e virar um conjunto, de pelo menos duas partes: ele e eu.

64
Nessa época, eu tinha a tarefa de tentar dar algum alimento novo a
Theo, para tentar superar sua seletividade alimentar. Theo só aceitava se
fossem as mesmas coisas de sempre, brancas e moles. Comer alguma coisa
junto a ele e ver o que acontecia, oferecer, insistir, foi logo extinto das nossas
atividades. Essa tentativa se tornou um tanto pedagógica e não cabia naquela
sessão. Ao mesmo tempo em que esse percalço deu início a descobertas
importantes: Theo começou a explorar o espelho para ver sua língua, boca,
dentes e tudo aquilo que aparentemente tinha relação com sua oralidade.

Excluídos os alimentos, a brincadeira no espelho continuou: Theo


parecia se admirar, ou admirava um amigo, sem se dar conta que se tratava
dele. Essa dúvida permaneceu por dois semestres e mais um pouco. Talvez
tenha sido o maior tempo de dúvida com relação a alguma operação psíquica.
Theo olha para si, ou não se reconhece e olha para um amigo que está do
outro lado?

Às vezes, ela se abaixava, subia. Parecia brincar consigo mesmo.


Outras oferecia sorvete de madeira ao espelho, dava tchau para ir embora.
Estava testando. Poderia estar se experimentando? Sim. Mas, nada dizia que
era com sua própria imagem reconhecida ou com um amiguinho. Pela forma,
como ele fazia, essa dúvida vinha automaticamente.

Pode-se articular este momento ao estádio do espelho. Um processo


que se assemelhava ao do bebê, que antes se percebe em partes e consegue
um sentido de unidade ao reconhecer a própria imagem, confirmada pelo Outro
primordial, antecipando sua maturidade. Theo já vinha entrando na construção
de um sentido de alteridade- fundamental para que o estádio do espelho possa
se concluir – como no jogo da bola de massinha- e agora começava a
interessar-se pela imagem no espelho: a partir da boca, a língua, um orifício
que explora inicialmente, induzido por esse impasse de comer ou não os
alimentos ofertados. Mas ainda é enigma: quem é aquele menino? É provável
que a relação muito colada com sua mãe, mas sem pulsionalidade – presa –
não tenha permitido a Theo, até então, olhar-se e reconhecer-se como um ser
em separado. Agora, embora tivesse dúvidas de quem é que estava vendo,

65
dava mostras de que não mais ignorava aquela imagem e se ela ainda era
enigma, já podia encará-la, investigá-la.

No segundo semestre, Theo fez uma viagem com os pais para o


Nordeste, para a casa da família da mãe. Na volta, a mãe me conta que Theo
estava na praça com o pai, quando viu um ônibus escolar passar. Ela conta,
também, que ele faz um desenho da praça, do pai com ele, do ônibus. De tudo.
É a primeira vez que a mãe de Theo fala dele como uma criança capaz de se
lembrar, de sentir, um para além das necessidades orgânicas, do seu temor à
doença ou das falhas do “menino”, mas não chega a completar o pensamento:
ele desenhou o ônibus escolar porque... poderia estar com saudades da
escola, mas já significativo, de mudança subjetiva tanto da criança junto a sua
realidade – poder desenhar em frente a sua mãe – uma lembrança e, quem
sabe, uma saudade. E dela, de poder captar essa mensagem. Um
reconhecimento de sujeito por parte da mãe, com relação a ele. Theo não é
apenas uma parte de si que nasceu com alguma coisa “estranha”. Ele sente
por conta própria, pensa, é gente e quer expressar o que sente.

Ao seu retorno, voltamos ao papel, lápis de cera, canetinhas, Theo


agora está mesmo interessado em desenhar. Vejo que não vai ser aquele furor
de obrigação por escrever. Até porque sua mãe pareceu tão admirada com seu
desenho. Tem uma mudança qualitativa na relação, não há mais uma
exigência tão pressionante.

Na volta da viagem, Theo passa a desenhar diversos ônibus. Primeiro


vazios, parecendo grandes úteros, onde caberiam muitas coisas. Depois, faz
suas primeiras figuras humanas na sessão, pessoas com grandes cabeças,
dentro desses ônibus. Em seguida, uma serie grande de ônibus, onde ele ia
acrescentando uma escada, em outro, pessoas sentadas, em outro, um
motorista. Theo se apropriando da realidade, do entorno, com seus desenhos.
Theo podendo representar o que gosta. Além das representações
inconscientes contidas ali.

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Carros sempre foram para Theo um elo com seu pai. Que também gosta
de carros. Os dois andavam juntos de carro, conta a mãe e o pai ia apontando
para as marcas, os nomes, conversando com o filho, com esses carros nas
ruas. Ela conta essa história, depois do desenho de Theo.

Interessante, depois desse reconhecimento que o desenho de Theo, a


ela proporcionou, a mãe de Theo começa a relatar retroativamente, o que
antes talvez não lhe parecesse tão relevante, ou quem sabe nem conseguisse
reconhecer: a ligação pai e filho. A identificação do filho a esse pai.

Nessa época, Theo continuava suas narrativas na casinha de madeira,


onde vinha colocando a mãe e a irmã dentro da pia e da privada. A mãe já
esteve sozinha dormindo na cama, em outro momento, já foi o recheio de um
“sanduíche” entre ele e o pai. As representações, as narrativas da casinha
eram fortes. E, algumas vezes, pude constatar que eram de fato narrativas do
que acontecia: Theo estrangula a boneca mamãe na casinha.

Na saída para a sala de espera, ele toma o corpo da mãe, não mais
como um objeto inerte, onde ele puxava o peito, por exemplo, para pegar
impulso e subir no sofá. Agora, é com raiva que ele a estrangula. Será que era
um reconhecimento de ambos? Meses antes, ele já havia puxado com força a
pele do rosto de sua mãe, provavelmente pedindo aquela atenção de qualidade
– olha para mim – antes só direcionada para sua irmã. Agora que ele começa a
se admirar no espelho, afinal parece estar se separando de sua mãe. É uma
separação violenta.

O dia em que concluí que as narrativas de Theo nada tinham de


aleatórias: foi uma única vez em que seu pai o trouxe para a clínica e Theo
parecia muito orgulhoso com aquilo. Ele retira então um bebê de uma rede, que
ficava do lado de fora da casinha, e coloca o boneco que ele usava como Theo,
que depois de muitas narrativas já estava claro que era ele mesmo. Esse
boneco então ocupa a rede, e Theo coloca a figura do pai como que
embalando-a. Digo: hoje foi o papai que trouxe o Theo. Theo está com o papai
na rede. Será que o papai ainda pensa que Theo é um bebê? Theo levanta o
boneco e abraça o boneco papai. Digo: ah! Theo está contando ao papai que

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agora é um menino grande, que sabe falar, que sabe escutar, que sabe
abraçar. Que lindo quanta coisa Theo pode dizer. Theo tinha alteridade com
relação ao seu pai. E começava a ter com relação a sua mãe.

A partir desse dia, Theo sempre colocava ele e o pai sentados um ao


lado do outro, na mesa ou no sofá e eu procurava traduzir o que se passava:
Theo está conversando com o papai, Theo gosta de conversar com o papai.
Theo já é um menino grande e pode conversar com o papai.

Nessa época, um dia, rapidamente, ao pegar os bonecos e logo depois


largá-los, Theo fala: papai, mamãe e Theo. Exclui sua irmã Lara. Que só
voltará a ser incluída na casa, e não mais na privada, ao contrário, Theo
procurando arrumar uma cama para Lara e cuidando dela boneca –
representação – quando a irmã deixa de frequentar o grupo terapêutico que era
de Theo.

Antes, teve essa batalha a ser vencida: Theo, cada vez mais, dava a ver
em seu grupo terapêutico que acontecia logo após sua sessão individual, que a
participação de sua irmã falante e exuberante, parecia incomodá-lo de forma
crescente. E passa a mordê-la. A irmã mais velha participava para impulsionar
o grupo composto em sua maioria de crianças não falantes.

Mas era essa irmã a quem a mãe prestava todas as atenções em


detrimento de Theo, como ela mesma contou. Quando ele nasceu, ela cuidava
mais da irmã, porque entendia que, pelo fato de a menina ter dois anos,
“precisaria mais de afeto”. Para que Lara voltasse ao lar, na terapia individual,
foi preciso que ela saísse do grupo mesmo. Theo só podia começar a imaginá-
la na família, depois que deixou de ocupar concretamente, espaço no grupo.
Não é na ausência que se constrói?!

Uma observação interessante: Um dia, nessas representações na


casinha, Theo coloca diversos bonecos juntos, como se estivessem em uma
reunião, uma conversa. E faz com a boca um som onomatopaico muito
semelhante ao barulho que podemos apreender de uma conversa ao longe, em

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que escutamos o som, mas não conseguimos distinguir as palavras ou o
sentido do que falam.

Nesse momento e, desde o primeiro dia de Theo no atendimento


individual, entendi que ele escutava e entendia o que eu falava. Só não podia
corresponder em palavras. Mas essa representação de vozes de agora,
poderia ser – além da ótima capacidade de Theo em reproduzir sons, um
resquício de um tempo em que vozes eram apenas sons. Um tempo anterior ao
“ponto surdo”, descrito por Vives como o momento em que a criança precisa se
tornar surda ao apelo melodioso das vozes, para entender o sentido das
palavras (VIVES, 2015).

Nessas alturas, Theo tinha diversas brincadeiras preferidas, como abrir e


fechar legumes de velcro, que ele colocava às vezes quase inteiros na boca e
parecia haver um prazer naquilo, um autoerotismo aparecendo. Tinha umas
letras, em forma de quebra-cabeças, com as quais ele conseguia formar
palavras rapidamente. Coisas que ficavam nesse circuito do brincar e que ao
invés de serem oferecidas a Theo como na primeira vez, ficavam expostas e
ele quem escolhia o que iria pegar para brincar/usar.

Eram vários os brinquedos incluídos em seu circuito: patinhos de todos


os tamanhos, outros animais de vinil bem pequenos, que ele passou a se
interessar desde o início. E, principalmente a massinha de modelar que agora
ficava no centro, no chão, construindo tuneis e pontes. Onde o dentro e o fora,
o sumiu engolido pela massinha, e as marcas que todos os brinquedos que
passavam por ali deixavam: sulcos, marquinhas na massinha.

A utilização dos instrumentos musicais era a cada sessão ou duas. Com


duas flautas, ele com uma e eu com outra, fazia um diálogo de sons, variando
de intensidade, com tambores e chocalhos também. Eu me referia a esses
sons como “os sons do Theo”. Que som lindo que Theo faz. Havia uma pianola
única que ele gostava de tocar e ali compunha mesmo lindas melodias,
prestava atenção, se entretinha sério com o próprio som, e eu sempre dizendo:
“que lindo, como Theo toca bem a pianola”.

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Terceiro tempo. etapa de entrada nas trocas

O violão era o instrumento que só havia um. Theo vinha tocar as cordas
enquanto eu tivesse tocando alguma música que ele gostasse. Assim, tocava
junto. A primeira vez que Theo cantou uma parte de uma música foi o “iaiaiao”
do sítio de Seu Lobato. Diversas vezes eu havia tentado esse recurso desde o
início, de fazer silencio em parte da letra como “o pintinho amarelinho, cabe
aqui na minha...” para Theo completar. E assim foram surgindo palavras. Que
sempre estiveram ali. Mas precisavam de uma via, um caminho de volta para
quererem aparecer. E algumas brincadeiras passaram a existir a partir dali:
cantávamos Seu Lobato tinha um sítio... repetidas vezes e colocávamos todos
os bichos possíveis. E novas surpresas: Theo pode fazer uma associação entre
um boneco de madeira, uma boneca mulher, com filhos, em uma fazendinha:
Seu Lobato, disse. A partir daí, comecei a fazer uma voz de Seu Lobato: Theo
pode me ajudar aqui no sítio. Theo a arrumar cercas e tal. e o boneco
agradecendo os serviços. Theo orgulhoso, de ajudar e a dizer: “Seu Lobato”.
Era Theo integrando a música com as representações imaginárias, que no
começo do trabalho, eram tão empobrecidas em uma criança com autismo
infantil.

As brincadeiras passaram a se misturar no chão: desenhos, massinha,


carrinhos, marquinhas. Theo passou a fazer estradas em desenho para os
carrinhos trafegarem. O que se juntava ao túnel de massinha. Aos patinhos,
aos instrumentos. Um dia a ponte não estava, e Theo fez a ponte com um
xilofone de madeira. Me admirei de sua capacidade em transformar uma coisa
em outra. Não é assim que o faz de conta acontece? Já conseguia brincar de
posto: lavar os carrinhos, trocar “olhos”. Theo agora tinha carrinhos com olhos,
boca, nariz. Diversas vezes esses carrinhos representaram sua família. Ele
dizia: mamãe, papai, Lara e Theo. Ao dizer Theo, um dedo apontava para si, o
outro para o carro, para não haver dúvidas.

O imaginário no autismo costuma ser empobrecido, o que torna o brincar


empobrecido. Fica entre o registro do real e do simbólico. Mas Theo começava
a superar esse real e começava a brincar, a criar fantasia. A fazer de conta.
Esse é um ponto de grande importância na clínica.

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Faz parte da clínica corrente que as crianças autistas tem uma falha no campo do Imaginário.
Não somente o corpo não se mantém com as estruturas das outas instancias, mas geralmente
eles apresentam dificuldades para imaginar histórias. Mesmo os autistas de alto nível
apresentam essa dificuldade. Isso libera a possibilidade para tratar, às vezes, o Simbólico com o
Real, sem sobrecarregar as dimensões Imaginárias. Isso pode produzir excelentes engenheiros.
Mas no cotidiano isso não facilita o contato com os outros (LAZNIK, 2016, p. 44).

Theo já dizia diversas palavras, nos tempos verbais corretos: caiu,


peguei, sumiu, chorando. Em um final de sessão, estou sentada em um canto
da sala e Theo se dirige ao espelho. Já haviam acontecido tantas tentativas de
me colocar atrás dele, para confirmar: este é você. E nada surtiu qualquer
efeito, que dessa vez nem me preocupei. De repente olho e vejo que através
do espelho Theo me encontrou na sala. Você está me vendo! Sou eu mesma.
E esse menino aí é o Theo, é você Theo. Foi emocionante, a sessão terminou.
E eu não tinha ideia do que poderia acontecer na próxima.

Na semana seguinte, Theo chegou com um repertório maior de palavras


e frases. Mas notei a ausência de um eu e de um você. Os brinquedos
estavam integrados. Theo já era capaz de criar brincadeiras como pegar um
ônibus, e colocar a família, agora composta de patos: papai, mamãe, Lara e
Theo, papai é motorista, mamãe é professora, estão todos indo para a escola.
Dentro do ônibus de madeira oca, que havia na sala, Theo inclui também todos
os animaizinhos de vinil que costumava brincar. Embaixo da mesa, sem
precisar de uma casa concreta, mas embaixo daquele teto/tampo de mesa,
Theo coloca os bonecos em roda. A roda da nova escola de Theo. Onde ele é
querido, bem recebido, reconhecido em suas habilidades. Theo agora inventa
brincadeiras cada vez mais sofisticadas. Cada vez mais claramente, a
elaboração do seu dia a dia. Theo já sabe brincar!

Em nossa sala de trabalho, havia um quadro negro e este quase sempre


estava todo escrito e o apagador nem sempre à vista, nem me ocorria utilizar.
Nesse dia, aproveitei que estava limpo o quadro e apaguei parte do escrito com
minha mão. O giz estava próximo e comecei a desenhar:

P. Vou desenhar um sol


T. Vou escrever um sol (Theo escreve SÓL)
P. Vou desenhar uma lua

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T.E eu vou escrever: LUA
P. Então eu vou desenhar um foguete
T. E eu vou escrever foguete (ele tira um segundo para pensar): FOGETE
T. E vou desenhar uma estrela. (Theo desenha uma estrela)
T. E vou escrever: ESTRELA

Sim agora Theo já falava frases inteiras, com os tempos verbais


corretos, sujeito de sua enunciação. Ali no quadro negro, descubro que Theo
aprendeu a escrever. Agora não é uma escrita rápida, automática e como eu
chamava, “ecolálica”, por que também memorizada e repetida de algum lugar.
É uma escrita pensada, que busca as letras e os sons. E pode aparecer
inclusive em uma brincadeira, um prazer compartilhado.

A história de Theo continua. Com todos os percalços de um menino com


suas dificuldades e superações, descobertas, o conhecimento de si, em
trabalho. A primeira enunciação de Theo foi antes, bem antes dessa escrita no
quadro negro. Ele disse categórico: “ISSO NÃO É UM PATO”. No dia em que
essa pesquisadora apareceu com um pato inglês, aqueles de uniforme da
rainha, com um chapéu alto na cabeça. Confesso que vibrei. Um menino que já
podia fazer suas distinções. Theo aprendeu a dizer sim, ou um SIM foi extraído
dele com muita brincadeira. Esta é uma outra cena, que ficará entre os
pequenos recortes.

Não dá para contar tudo, senão fica tão grande e espalhado, que não se
conta nada. Essa foi uma escolha, que pode ser feita apenas com o passar do
tempo. Depois da vontade de apreender o todo e contar. Tarefa impossível. Do
sonho sempre sobra um resto não apreensível. De um caso clínico existe a
singularidade mais singular do sujeito. mesmo que gravemos e filmemos, tudo
não estará ali. Existe aquilo que é tão próprio, que jamais foi alienado a
ninguém. Nem ao amor de transferência.

5.4. A fala, escrita e outras produções gráficas como eixos orientadores


para o acompanhamento e a leitura do sujeito
O silêncio não existe; pode se dizer inconsciente, pode se dizer
estrutura, pode se dizer linguagem.
Jacques Lacan

72
Consideramos que múltiplas formas de comunicação são interessantes
quando estamos diante de uma criança que não fala. Se recordarmos aqui o
começo desse relato, vemos que a primeira mensagem de Theo foi através do
ritmo feito com a grua de um caminhão que a mim dizia, na minha leitura, a
posteriori, daquele momento: eu tenho um tempo, um ritmo, uma pulsação.
Essa é a forma que encontro de contar isso para você.

Logo nas primeiras sessões, Theo mostrou que poderia ter uma
comunicação oral. Primeiro lendo alto as letras no painel, no instante que
chegou. Mostrando que a fala seria uma de suas formas de expressão
possíveis. Suas primeiras palavras em sessão individual, foram: “gato”, “papai,
mamãe”, e algumas ecolalias, logo de início e, mais tarde, bola, peguei e caiu”.
Dentro de um contexto de brincadeira em que uma relação de trocas com a
analista já se anunciava. Theo também completava as letras de músicas
tocadas no violão. Uma comunicação oral se iniciava.

Por outro lado, sua primeira palavra escrita, relatada e trazida por sua
mãe foi “nescafé”. Ansiosa, ela dizia que ele escreveu “nescafé” em meios
diversos – caneta, computador, lousinha... “Parece que viu e copiou de algum
lugar”, ela mesma concluiu.

Entendemos a importância do acesso a escrita a toda e qualquer


criança, especialmente aquelas que não tiveram acesso a comunicação oral, a
fala enunciativa, a linguagem que permita a entrada no discurso em circulação.
Compreendemos a proposta da chamada “Educação Terapêutica” (KUPFER,
2013) para pôr em marcha, como uma nova chance, um processo de
constituição subjetiva, que, até então, não tenha se instaurado.
(...)o saber da psicanálise poderá inclinar o educador a transmitir e fazer
aprender por meio de um ato educativo tal como ele é entendido pela
psicanalise: como transmissão da demanda social além do desejo, como
transmissão de marcas, como transmissão de estilos de obturação da falta no
Outro (KUPFER, 2013, p. 119).

Compreendemos essa proposta e essa prática, por isso mesmo, a


utilizamos como dispositivo (uma rede que pode ser estabelecida entre
diversos elementos), em nosso trabalho: papel, lápis, canetinhas, material de

73
pintura, massinha de modelar e instrumentos musicais, que eram oferecidos a
cada sessão, incluídos ali, junto aos brinquedos. Era uma aposta nessa
ampliação de possibilidades de expressão para Theo.

No entanto, percebemos uma diferença entre a escrita que Theo iniciou,


a fala, o desenho, a massinha: é que, na escrita, ele não compartilhava, se
fechava, escrevia compulsivamente alguma coisa e a cena se repetia: jogava
as canetinhas no chão, de alguma forma, se aborrecia com aquela escrita.
Parecia, às vezes, que tentava uma escrita com letra cursiva, que era o que a
irmã dele já vinha fazendo. Theo tentava fazer alguma coisa semelhante a isso
e, depois, fazia a letra bastão.

Ele não parecia se contentar com aquilo que estava fazendo e, por
alguma razão, jogava tudo fora. Esse primeiro contato de Theo com a escrita,
nos pareceu, ao invés de comunicação, um momento de fechamento. Um
retroagir aos avanços já conquistados. Como já relatamos, ele não queria mais
brincar, perdera a curiosidade. Nem se levantava da cadeira.

Theo fazia uma lista de nomes. E eu dizia: são os seus amigos!!! São
seus colegas da escola? Olha só aqui estão as meninas, e os meninos nessa
parte... Suas produções ali pareciam listas de chamada da escola. Theo não
respondia, ele não dava nenhuma resposta como as risadas ao compartilhar
desenhos, dizer palavras que eram demandas – de quero mais – como depois
vimos acontecer com a massinha, e como antes, até bem antes, no comecinho
– se eu sorrisse para ele, ele sorria para mim. Quando desenhava, ele tinha
jubilo naquilo, naquela atividade, naquele compartilhar.

Ao escrever, ele não parecia ter. Nossa leitura clínica foi a de que, para
Theo, era uma obrigação, existia uma pressão em casa para que ele
escrevesse. A irmã de Theo, dois anos mais velha, era elogiada pela mãe, na
clínica e possivelmente dentro de casa, por sua inteligência e capacidade, por
sua “normalidade”, e ela escrevia. A mãe cobrava de sua analista de que ele
também viesse a escrever, ou pelo menos um prazo, quando – na frente de
Theo – ela se sentia responsável pelo “desenvolvimento de Theo” dizia, o pai

74
era o provedor financeiro, deixava a educação dos filhos ao encargo da mãe,
na divisão de tarefas familiares.

Havia aflição e temor nessa mãe – sem limites por parte do pai, com
relação a ela – de que essa criança viesse a não escrever, embora Theo
estivesse apenas com três anos de idade, como já relatado e ainda não falasse
além de algumas palavras, em situação transferencial, nas sessões. O que nos
pareceu mais interessante naquele momento: havíamos oferecido o papel as
canetinhas, as possibilidades, essa sempre é uma boa proposta, agora
achamos por bem oferecer outros objetos, pois a escrita já era bastante
ofertada em sua casa.

O raciocínio e a estratégia clínica era permitir outras formas de


expressão, no campo do jogo, do rabisco, do traço, da brincadeira. Para que,
assim, um espaço para o prazer fornecesse limites, uma aposta de que ele
pudesse voltar quem sabe ao desenho, para que pudesse se expressar
oralmente, como vinha fazendo antes dessa escrita que parecia compulsória,
que ele pudesse compartilhar, o que fosse, como vinha começando a
compartilhar, que é o mais importante para uma criança que esteja em um
estado autístico ou seja autista: não é escrever e sim compartilhar. Alegria,
prazer. Até a escrita, se essa lhe for prazerosa.

Ao contrário, a escrita de Theo estava se fechando nela mesma. Foi


uma escansão. Deixamos o material de escrita em suspenso. Theo respondeu
voltando a brincar, como se tivéssemos tirado um peso dele. Ele voltou
também a falar, só pegando novamente em material para escrita, quando a
mãe nos conta que ele fez um desenho e ela reconhece naquele desenho dele,
um sujeito.

Ela pode notar que esse filho estava passeando na praça com o pai
quando viu um ônibus escolar passar, que esse filho possivelmente sentiu falta
da escola em que ele estava, por que a família tinha saído em viagem em
época escolar (sempre viajam no aniversário da avó materna, o que não
coincide com férias). Ele faz um desenho que é reconhecido por essa mãe. E

75
isso muda o olhar da mãe com relação ao filho. Entendemos que Theo passou
a ter um lugar de reconhecimento. Um reconhecimento de sujeito estava
implícito naquela admiração pelo desenho. Ele tem uma memória, foi capaz de
ter uma lembrança, de representar essa lembrança. Ele é alguém que conta ali.

No momento da volta dessa viagem, em que ela nos conta essa história,
pensamos que seria interessante oferecer novamente o papel e os lápis para
Theo e talvez ele voltasse a desenhar. E assim foi. Ele voltou a desenhar e,
quando voltou a escrever, foi junto aos desenhos, e não mais naquele frenesi
de que precisava escrever alguma coisa, para mostrar para alguém.

Foi um momento de retorno ao desenho, e de possibilidade de saída da


colagem ao signo, das letras, das palavras memorizadas, para simbolização.
Um deixar aquela memorização do que chamei de uma escrita ecolálica:
memorizava e depois escrevia, uma cópia e cola, sem que aquilo tivesse um
sentido para ele, e não necessariamente que Theo soubesse ler o que estava
escrevendo. Ele tinha aquela memória fotográfica, inclusive em ordem, como
vimos ele escrever, de baixo para cima em ordem alfabética, os nomes de
todas as crianças da sala de aula. Era memorização e uma escrita que não
trazia júbilo.

Quando Theo volta a desenhar, agora é diferente: seu desenho já foi


reconhecido antes pela mãe. Um desenho inteiro. Ele parece estar muito feliz
em desenhar e, quando começamos a supor o que eram aqueles desenhos
que ele está fazendo, ele tem um júbilo com relação aquilo. Estamos
entendendo o que ele está comunicando com sua produção. Ele começa a
fazer uns ônibus, e podemos falar sobre esses ônibus. São ônibus da escola.
Quantas crianças podem ir ali. Theo se abre a escutar o que está sendo dito
sobre seus desenhos. Começa a fazer figuras humanas, rudimentares, de
acordo com um menino de sua idade. Mais tarde, ele começa a escrever no
desenho.

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Utiliza também o desenho, para brincadeiras, com a participação de sua
terapeuta: ele faz o fogo, desenho casas, ele chama o bombeiro para apagar o
fogo, ou seja, o desenho tem um enredo, uma dinâmica, um espaço para
brincar, e já não nos preocupava mais que uma escrita aparecesse ali. Por
exemplo: as vezes ele fazia alguma figura representando a PeppaPig. Ele
escrevia lovePeppa, amo Peppa. Tinha um contexto e, depois, ele estava
monstrando estar atento ao entorno. A PeppaPig representava alguma coisa
para ele, ele gostava desse personagem da animação. Mas principalmente
tinha júbilo, compartilhar e comunicação.

Foi um outro momento, a partir de quando ele recomeçou a desenhar


que, depois de um tempo, desenhando e escrevendo umas palavrinhas, pôde
ler e escrever. Agora, ele lia o que escrevia em voz alta. Hoje ele é um menino
escrevente, um leitor e um falante cada vez mais ligado no outro, no
semelhante. É uma criança que tem alteridade.

O acompanhamento de crianças com autismo pode nos apontar uma


relação direta com o campo do simbólico, pela via cognitiva, às vezes muito
desenvolvida, outras vezes idiossincrática, diz Bernardino (2010), refletindo
sobre a importância da escrita na clínica do autismo. Seguindo seu raciocínio
clínico em torno de um caso, por ela apresentado no texto “A importância da
escrita na clínica do autismo”, em que fala de um menino que não se comunica
oralmente mas que escreve sua primeira palavra em uma sessão. Palavra não
copiada, uma vez que aparece como anagrama “MUES”, que a autora conclui
como “MEUS”, uma experiencia como essa, que pode ser inaugural na relação
com o outro, pois abre-se a possibilidade de comunicação.

Acompanhando seu raciocínio, a escrita antes da fala, inverte a lógica a


que estamos acostumados. A autora, no entanto, chama-nos a atenção de que
Lacan (1995) falava da primazia da escrita, através do conceito de letra,
enquanto marca libidinal do Outro. Ela vai discutir o papel da escrita no
autismo, quando o encontro com o Outro não se dá – e alguns autores
consideram a ausência do Outro no autismo – (no caso do bebê seria desde o
início, Outro primordial, a mãe ou o “adulto experiente”, como no dizer de

77
Freud), a criança não se enlaça com o agente cuja função é lhe transmitir a
linguagem, a cultura, o mundo.

A consequência desse não enlaçamento, dessa possível recusa à


interação é a indiferença ou o estabelecimento de interações superficiais com o
semelhante, ou mesmo uma ausência total de comunicação. Ou ainda, uma
fala fora do discurso, “destacada do laço social”, como diz ColetteSoller(apud
Bernardino, 2004).

Consideremos uma criança que não fala, ou fala por ecolalia. Como já
vimos antes, capaz de repetir palavras memorizadas. Não frases articuladas,
passíveis de transmitir sentimentos, vivências, memórias. Destacamos que
aqui Bernardino (2010) refere-se a crianças que, na clínica, não fazem
transferência com o analista:
... Por ser refratária ao agente do Outro, ao não se abrir para a relação
pulsional que a introduziria no campo da libido, ao não se deixar
investir pelo representante do Outro (ou não ser investida por este) e
consequentemente, não se deixar tomar em um primeiro momento
como objeto que suscitaria o gozo do outro, a criança autista fica fora
da dialética da demanda e do desejo”.

Dessa forma, a criança autista permanece fora do circuito pulsional, ao


mesmo tempo em que a relação com o campo da linguagem não se efetiva, no
sentido de poder se representar por significantes, ela também não se torna um
ser libidinal. Nesse caso, o que pode ocorrer em uma possível fala e escrita, é
seguindo o raciocínio da autora: “...uma colagem ao signo, uma exclusão do
Outro, ou uma relação que pode ser direta com o Outro, tesouro dos
significantes, não mediada por um agente que encarnaria essa função”
(Bernardino, 2010).

A autora pergunta-se o que ocorreria no caso da alfabetização de


crianças cujo processo de constituição subjetiva falhou tão radicalmente?
Crianças que ficam fora do discurso, sem acesso a uma fala própria, mas que
tem acesso a escrita? O que aconteceria também, nos perguntamos, com as
crianças que aprendem a escrever sozinhas, sem mediação de um Outro
encarnado, capaz de introduzi-la ao campo do simbólico? Sabemos sim, que
muitas crianças com autismo reproduzem por escrito palavras de outdoors, de

78
propagandas, mesmo que não saibam ler o que escreveram ou nem entendam
o que essas palavras queiram dizer (Bernardino, 2010): “... nesse caso, sofrem
uma intrusão desses significantes, são muito mais capturadas por esses
significantes do que fazem uso deles”.

Theo ao se ver as voltas com uma escrita realizada compulsivamente


para atender ao Outro primordial exigente, para de falar. Quando lhe é ofertada
uma outra via de expressão, pela mediação de um outro que pode acolhê-lo,
tornar-se seu interlocutor, o Outro passa a ter um outro estatuto para Theo. É
aí que encontra um certo apaziguamento e recupera suas outras formas de
expressão, que vinham sendo elaboradas e que foram interrompidas por essa
escrita quase obrigatória. Quando parecia sim capturado pela escrita e não
fazendo uso dela, colado ao signo em uma escrita solitária, sem
endereçamento. Uma vez que a interlocução ali não era consentida por ele.

Theo volta-se então para o desenho. Sai do signo e volta-se ao símbolo.


É interessante lembrar o quanto um desenho carrega de conteúdo
inconsciente. Foi através de olhar o desenho do cavalo e seus bigodes,
produzido pelo Pequeno Hans (1909/1996), que Freud pode associar aos
bigodes do pai do menino, decifrando o enigma de sua fobia. Ele e o pai
gostavam de cavalos, onde há uma identificação pai e filho. Não é coincidência
que a escolha de Hans tenha recaído por temer que cavalos lhe mordessem. É
importante ressaltar também o quanto o desenho surgiu para Theo como uma
forma de brincar. No início a brincadeira da chuva. Os pontihados. Mais tarde
ele irá eleger alguns desenhos para construir cenas interativas com a analista.
Ele cria o “fogo” e aí vem o “bombeiro” com a água para terminar com aquilo.
Diversos sons onomatopeicos eram acrescidos naquela brincadeira, o papel
então adquiria vida própria, onde o simbólico e o imaginário já podiam se
juntar.

Mas, bem antes do impasse entre falar e desenhar x escrever, e também


concomitantemente, Theo fazia narrativas na casinha lúdica, que deixavam
uma certa dúvida entre aquilo ser uma narrativa ou uma brincadeira sem fins
de comunicação.

79
Angela Vorcaro (2008), em “O brincar como operação de escrita” nos
lembra de que em toda a obra freudiana, o brincar tem função decisiva de
repetir e elaborar a vivência, o vivido. Destaca a autora que Freud colecionou
episódios do brincar, fazendo-nos interrogar sobre sua função e dando a eles
um lugar, numa série substitutiva: a mesma que conjuga a alucinação de
satisfação, o pensamento, a fantasia, o devaneio, o sonho, o chiste”.
Manifestações que teriam em comum, no dizer de Freud, o fato de fazerem
vigorar, por deslocamentos substitutos, a realização de desejos. Atribuindo ao
brincar o mesmo caráter do sonho, “no que ele tem de ciframento da
experiência, ou seja, de construção de um dialeto inconsciente, pela criança.”

Mas é em 1925, ressalta Vorcaro, que Freud utiliza um brinquedo, na


época chamado Bloco Mágico, para apresentar o aparelho psíquico como
aparelho de escrita. O papel poderia registrar as novas percepções de um
cientista, mas tem capacidade limitada, diz. A lousa, por sua vez, permite que
se escreva e que se apague, sem conservar seus traços. Já o “bloco mágico”:
um pedaço de cera coberto com duas camadas, uma de papel transparente e
outra de papel encerado, descreve, adere à cera... Sulcos são feitos ali.
Semelhantes aos traços mnêmicos. Vorcaro diz que o bloco mágico é então
uma metáfora, parte da ficção teórica de Freud.

A partir de agora apresentaremos algumas produções de Theo.


Expressões diversas de um menino que queria comunicar-se. E comunica-se,
de corpo e alma.

... a linguagem também é corpo (como queria Lacan) e,


inversamente, o corpo – para os humanos – é também
linguagem, funciona simbolicamente. São faces de um mesmo
processo, que fez nascer o humano no processo evolutivo da
espécie. Processo esculpido pelos afetos, pelas potências
ativas de afetar e de ser afetado por outros corpos, por meio
das quais emerge a linguagem como modo de (fazer) circular,
de traduzir e de elaborar sensações e percepções (PAULA
SOUZA, 2019, p. 6).

80
Imagens

Quando o carrinho de asas fez enigma.

As primeiras possibilidades de Theo esta


junto: a minha massinha juntava com a dele,
eu mandava a bolinha e ele juntava em um
escultura. Assim foram várias.
.

As primeiras garatujas surgem junto ao


desenho compartilhado de pinguinhos de
chuva, anterior ao momento em que Theo
abandona o desenho e passa a escrever..

81
Primeiro desenho após o reconhecimento do sujeito
pela mãe.

No início quando Theo completava meus desenhos.

Theo e a mão, não achou a menor graça nisso.

Gato bebê, escreve primeiro e completa depois.

82
Serie ônibus, volta ao desenho após viagem em que
seu desenho foi reconhecido.

83
Quando começa o furor da escrita:
Theo calcula mentalmente o número e linhas que precisa
ser igual ao número de pessoas.

No quarto semestre,associa as asas do avião que


completou a uma língua.

Volta a desenhar um gato,agora todo dele, sem


completar.

84
No quarto semestre Theo desenhava e construía
cidades inteiras. Carrinhos andavam por suas
estradas desenhadas.

Ainda os ônibus e algumas palavras.


PeppaPig.

Desenho interativo. Fogo, água, bombeiro.

85
Desenho conta história: alguém vai para o
hospital.

Ainda da sequência de ônibus, que, após


reconhecimento pela mãe, pode fazer uma
série de interligações.

Ônibus do quarto semestre.

86
Começo da escrita, rabiscos.

Cada carro tem seu lugar. Há vagas.

Outro desenho interativo: fogo na cidade,


bombeiros vão salvar.

87
Theo transpõe para o desenho seu ponto
de vista do posto em que gostava de
brincar.

Série ônibus, meio pessoas, meio letras.

Theo não suportou não saber fazer essas letras.

Experiência: posso escrever vermelho em


vermelho, verde com o verde...

88
Toda a família de carrinhos, mas tem um
lugar vazio. É o dia em que a terapeuta
anuncia que precisa ir embora.

No quadro-negro, no fim do quarto semestre,


quando Theo já sabe ler o que escreve. Não
é aleatório. Lua, estrelas. E um compartilhar o
prazer de uma troca.

89
Análise do caso clínico e discussão

A partir da análise realizada e das construções teóricas consultadas,


pode-se pensar que Theo vem ao tratamento em um estado autístico que não
se pode, a priori, diferenciar, já que estamos lidando com a plasticidade da
infância, a migração neuronal ainda é grande e tem possibilidades de
mudanças. Não se pode deixar de levar em consideração um olhar médico que
o classificava dentro do espectro do autismo. Não é sem consequências, ele é
marcado por esse significante. E é assim que passa a ter um novo lugar em
sua famíia. Lugar de doente, de uma coisa estranha, “até quando ele vai ser
um menino assim?” Significante que sua mãe nem conseguia proferir, a
princípio.

Ele começou, nos grupos terapêuticos, em uma indiferenciação, em


termos de uma hipótese diagnóstica, com relação à estrutura clínica, tal como
pensada, em termos psicanalíticos. Mas algumas características se fizeram
notar. O mutismo e a indiferença em relação ao contato com o outro. Caso
alguma criança lhe tirasse um brinquedo, ele não reagia. A sua falta de reação
também aparecia diante das demandas a ele endereçadas.

Podemos pensar na hipótese de um diagnóstico estrutural de autismo.


Baseado na compreensão de que há uma estrutura autística, que se diferencia
da estrutura psicótica. Para Maleval (2010), os traços do autismo têm uma
constância, são passíveis de reconhecimento, pois persistem pela vida, há uma
invariabilidade, não há uma evolução que se evidencie tão facilmente. Esse
autor ainda salienta um detalhe importante, o fato de que, com base nos relatos
dos autistas e suas biografias, destaca-se que não se pode separar o autismo
da pessoa do autista. É um modo de ser, uma posição subjetiva.

Evidencia-se, inicialmente, em Theo, um mutismo. De acordo com


Maleval (op. cit.), o mutismo é um modo radical de reter o gozo vocal. Por não
aceitar localizar a voz no campo do outro, há uma relação particular com a
palavra. Maleval cita Asperger,o qual pensa que a palavra dos autistas parece
caricatura, evoca o escárnio e não se endereça a um interlocutor, pois eles
parecem falar no vazio. Falam, diz o autor, sem se implicarem em suas
palavras ou em seus sentimentos, emitem palavras que se originam de

90
repertório mental memorizado. Maleval (2010) chama a atenção para o silêncio
obstinado, em que o autista fala, sem tomar a posição de enunciador, falando,
mas sem nada dizer. Theo começou a falar, aos poucos, uma palavra aqui e
outra ali. Em geral, falava palavras dentro de um contexto, mas sem timbre,
sem entonação, sem expressão do afeto. Um júbilo podia se deixar aparecer,
esporadicamente.

Para Maleval (op. cit), pode-se caracterizar a estrutura autística pela


retenção do objeto do gozo vocal e pelo retorno do gozo na borda. Com
relação à retenção do objeto do gozo vocal, ele refere-se a dois modos de
tratamento da linguagem, pelo autista, quando ele sai do mutismo – a língua
verbosa ou uma língua funcional ou factual. A língua verbosa, com pouco valor
de comunicação, produz solilóquios, com fins de autossatisfação. No caso de
Theo, quando, nas primeiras sessões, ele sai do mutismo, emitia sons como
um cantarolar, sem palavras. Em seguida, ele produziu os sons tac-tac-tac,
como madeira ou vidro, ou uma imitação da minha gargalhada. Uma sucessão
de sons, aparentemente sem afeto. Pode-se pensar em gozo solitário da voz,
Ele parecia gostar do som da sua voz, para sua autossatisfação. Mas,
diferentemente dessa descrição de Maleval, parecia, desde o início, ter
intenção de comunicação.

Em alguns momentos, ele sentava-se ao lado do armário, via as letras-


ímã e parecia buscar encontrar uma palavra, ele queria ler aquelas letras
juntas. Ao recomeçar a fazer desenhos, emitia sons que, para ele,
complementavam os desenhos, desenhava de forma interativa e começou a
falar palavras dentro desse contexto. Ele faz um percurso do mutismo ao som.
Inicia com os sons onomatopaicos, e a música funcionou como uma mediação
para um uso mais ampliado da linguagem.

Logo após iniciar o tratamento, Theo usava a linguagem escrita, de


modo compulsivo, aparentando um grande avanço para uma criança de 3 anos
de idade, mas ela não implicava compartilhamento, levando-o, cada vez mais,
a um estado de fechamento. A escrita era uma expressão que o mantinha no
isolamento. A aposta do tratamento foi oferecer outros objetos, pois a escrita já
era bastante ofertada em casa e na escola. Mais tarde ele pôde apresentar

91
uma escrita mais prazerosa, fazendo parte da brincadeira, mais apaziguada e
menos excessiva.

Maleval (2010) fala, ainda, do retorno do gozo da borda, que pode ser
constituída por três elementos: o objeto autístico, o duplo e a ilhota de
competência. Servem para localizar o gozo do sujeito, como fronteira erguida, e
tornar o seu mundo particular seguro, tendo como referência o objeto que lhe
serve de proteção. Se o mundo externo lhe parece incoerente e angustiante, o
mundo interno pode ser mais seguro e imutável.

Theo colocou uma fortaleza feita de carrinhos à sua frente ou ao seu


lado, podia ser em U ou em C, próxima da qual ele ficava deitado, mudando os
carrinhos de posição, conforme ele se angustiava. Caso escutasse uma
respiração da analista, mudava os carrinhos de lugar. Pode-se entender que
essa proteção dos carrinhos lhe servia como anteparo para o que lhe aparecia
como angustiante. Logo depois, a escrita compulsiva passou a ter função
semelhante.

O instrumento musical, o papel e o desenho tiveram a função de


mediação, na relação com Theo. Ao mesmo tempo em que ele se organizava,
também se via, em sua produção: eu existo, eu fiz isso. Tivemos, quase todo o
tempo, a mediação da massinha. Ambos, Theo e eu podíamos criar e
compartilhar.

Ali se iniciaram trocas, no desenho em que se completa o que o outro


fez, também é uma co-construção, estamos construindo alguma coisa juntos
(um novo lugar e um posicionamento possível com relação ao Outro): nos
desenhos de chuva, nas esculturas de massinha. Havia um prazer
compartilhado, quando ainda não era possível tê-lo em outras situações. Theo
me deixava, a princípio, assistir-lo quando ele mexia na casinha. Tinha um
“olha para mim”, que era também parte de sua narrativa, de sua escrita que eu
podia ler,mas ele não deixava eu me aproximar. Eu podia falar sobre aquilo,
mas não podia mexer.

Quando Theo ainda tirava a minha mão no chão, para que eu não
pegasse no postinho, ou não tentasse brincar junto, esse mesmo Theo já

92
estava desenhando comigo. É interessante perceber por que há consentimento
em um plano da sala – em cima da mesa –, mas não em outro, no chão. Talvez
esses diferentes planos e superfícies não sejam o mais importante, mas sim
aquilo que é feito ali. Mexer em um carrinho era talvez alguma coisa que Theo
usava para se proteger, sua armadura para os momentos difíceis. Não era
apenas uma brincadeira ali. Mas, na mesa, onde havia dois lugares, um para
cada um, Theo podia já mostrar um outro lado, não falante, mas muito mais
conversador.

Com relação à fala, a escrita e a escuta aumentada que tanto incomoda


nas crianças com possibilidade de autismo, tudo vai mudando com o decorrer
das operações psíquicas, da transferência instalada. Theo não aprendeu a
falar, ou começou do tatibitate. Conforme as sessões evoluiam no consultório
da clínica, ele ia sendo capaz de dizer mais.

Hoje, Theo pode dizer de si. Não porque tenha aprendido a falar mais
palavras, como um bebê, mas já sabia. O que amplie seu campo de linguagem
e forma de fazer laço. Hoje, Theo é capaz de entender as metáforas de um
livro. Ainda assim, tem traços que são dessa estrutura, que não é neurótica
nem psicótica, mas muito provavelmente aquilo que chamam de pós-autista.

Jean Claude Maleval (2015), em seu texto “Por que a hipótese de uma
estrutura autística?”, afirma que não se deve desconsiderar os interesses
específicos, desrespeitar o objeto autístico ou, ainda, desconhecer as
proteções que os autistas elaboram contra a angústia. Enquanto o psicótico
tentaria compor com um gozo rejeitado que lhe retorna do exterior, pelos
perseguidores e alucinações, o autista vai se esforçar na retenção de um gozo
dominado por uma borda, o que deve ser tomado em consideração estratégia
defensiva diferente. Esta foi uma orientação fundamental no tratamento de
Theo, que levou em conta as suas estratégias e invenções, ao longo do
tratamento. E o seu consentimento.

Maleval (2015) salienta, ainda, que os fenômenos que caracterizam o


autismo (condutas de imutabilidade, retenção dos objetos pulsionais, escolha
do objeto autístico e construção de uma borda) têm como função a proteção

93
em relação à angústia, que está no princípio das dificuldades de muitos
autistas. Foi visível, na condução do tratamento, o quanto ocorreu de um
apaziguamento progressivo da angústia de Theo, que deu lugar às suas
pequenas invenções (tocar instrumentos, fazer desenhos interativos, começar
a brincar mais livremente, usando a imaginação). A autossatisfação inicial dá
lugar a um compartilhamento possível. Embora muitas dificuldades
permaneçam, houve um deslocamento e novas expressões criativas.

De acordo com Maria Cristina Kupfer (2017), em sua palestra “Três


destinos para o autismo”, apresentada no colóquio do LEPSI, em 2017, diante
da pergunta sobre se existem saídas para o autismo, ela diz que a questão
pode aludir à possibilidade de o autismo ser abandonado ou modificado.
Entende que, para o autista, não foi possível o acesso ao prazer compartilhado,
pela não instalação do terceiro tempo do circuito pulsional, conforme citado no
Capítulo 3, item 3.2., Circuito pulsional e prazer compartilhado. A autora refere-
se à dimensão do compartilhamento próprio do movimento pulsional, pois ele,
no dizer de Kupfer, “supõe, contém e abarca o outro”.

O que se pode entender, no relato do atendimento clínico de Theo, é


que ele saiu de um estado de fechamento e isolamento para a possibilidade de
usufruir do prazer compartilhado. Com a aproximação da analista, seu
consentimento permite a Theo se engajar e realizar as trocas que foram
possíveis.

94
6. Considerações finais

Passados quase 80 anos (1943-2020) da descoberta de Leo Kanner, o


autismo precoce infantil é reconhecido por cada vez mais profissionais de
áreas distintas, especialmente por psicanalistas, fonoaudiólogos, foniatras,
linguistas, por pais que procuram respostas para as dificuldades, os entraves
psíquicos e o jeito de ser de seus filhos, como um sofrimento de contornos
específicos, que aponta para a singularidade de cada um, seres de linguagem,
falantes ou não, em vez de classificarem patologicamente o autismo como um
sintoma da esquizofrenia, compreendendo-o como tendo importantes e
marcantes diferenças com referência à psicose infantil, vemos aqui um avanço
com relação ao modo pelo qual o autismo tem sido visto.

Por outro lado, como vimos, o autismo ainda é enigma, abrangendo as


mais diversas áreas da ciência, uma vez que não se encontrou uma etiologia
comum para a maior parte dos casos. Além de não haver um autista igual a
outro ou uma forma de estudar com “lente de aumento”, caso existissem
episódios delirantes, como na esquizofrenia e nos pensamentos persecutórios
de alguns tipos de psicose. O que tornaria tudo mais fácil de compreender,
classificar e tratar com medicamentos, o que parece ser a pressão para onde
levam os discursos hegemônicos, ao extinguir a psicose infantil e tornar tudo
quase a mesma coisa, todos poderiam ser igualmente medicados com
fármacos de última geração...

Existe uma distinção do autismo: o que temos como marca desde


Kanner é uma sociabilização dificultada pelo retraimento “do contato afetivo”,
que, segundo ele, já na época em que isolou o autismo de um sintoma precoce
da esquizofrenia, se refletiria na fala e levaria à imutabilidade, “sameness”,
essa como uma necessidade de que as coisas estejam sempre da mesma
maneira, em seus devidos lugares, evitando a angústia do que quer que seja
inesperado. É o que se vê, com frequência, na clínica do autismo infantil.
Crianças com risco de autismo, ou autistas, em um mutismo total, ou com
atrasos de fala importantes, ou ainda com uma fala que não permite à criança
dizer-se, ou compartilhar.

95
Se não se encontram as mesmas áreas cerebralmente afetadas em
cada criança com suspeita, risco ou já com o autismo instalado, como chegar a
uma compreensão mínima do que sente e pensa o autista, para considerarmos
uma estratégia de tratamento? Pensamos que um material vasto de ofertas
para o expressar-se é uma das respostas possíveis. Uma vez que, ao longo do
trabalho de pesquisa, junto ao paciente e só depois, durante esta escrita,
pudemos compreender que se trata muito menos de não querer comunicar-se
do que falar.

Entendemos que ao, utilizarmos teatro, música tocada e cantada e todo


um repertório não apenas de estudo psicanalítico, mas de experiência de vida,
demos ofertas diferentes da fala e da escrita, que permitiram um deslocamento
da posição inicial no tratamento. Criou-se uma mediação entre nós e o
paciente. De uma maneira tangente, podíamos nos comunicar, até que a fala
enunciativa pudesse surgir. Foi um tempo necessário para que diversas
operações psíquicas que não se completaram antes pudessem ter uma nova
chance no consultório.

Quando emprestamos aquilo que não temos, a nossa própria falta,


estamos sim, sendo clínicos, pacientes e entusiasmados, em uma aposta
permanente de que um sujeito dono de seu dizer possa advir. Tomando aqui as
palavras de Bernard Nominé como nossas:

Os autistas têm algo a nos ensinar. Os psicanalistas sempre


supuseram que há, por trás desse quadro clínico impressionante, um
sujeito, que tem alguma coisa a lhes ensinar... There’s a boy in here
[Há um menino aí dentro] é o título original de um livro escrito a duas
vozes por uma mãe e seu filho portador de autismo, Judy e Sean
Baron, foi traduzido em Francês: Moi, l’enfantautiste (2007) [Eu, a
criança autista], o que é menos sugestivo. Há um sujeito aí
dentro,nada é possível sem essa aposta mínima a fazer diante de
uma criança autista, e ela tem tudo a nos ensinar, se quisermos
entrar em comunicação com ela. Mas, para aprender com ela, é ainda
preciso descartar todo saber preconcebido que nos embaraça, mas
com o qual ela parece ter escolhido, curiosa, mas não resolutamente,
não se embaraçar (NOMINÉ, 2013, p.42).

As crianças autistas parecem nos chamar à nossa própria singularidade,


e ao que nós entendemos como autenticidade, quando nos dirigimos a elas. Se
parecer “técnica” a nossa tentativa de comunicação, vinda de uma terapia pré-
concebida, ela parece não funcionar. O que nos lembra alguns seminários de

96
Marie Christine Lasnik aqui no Brasil, em diferentes ocasiões, em que ela frisa
com relação aos bebês que é preciso fazer com a própria voz um "manhês"
com picos prosódicos melodiosos, pois os bebês se animam com esse
movimento sonoro, mas é preciso fazer com o fundo da alma, das entranhas,
esse chamamento ao sujeito, senão o bebê, a criança, percebe que é
superficial e não se deixa capturar.

E, se cada um é um, como haver uma técnica generalizante, diferente de


se deixar livre, em atenção flutuante, para entrar em sintonia com essas
crianças? Como adivinhar o que elas querem, a não ser vivenciando? Como
pensar um tratamento, a não ser nos abrindo para conhecer?Quem pode dizer
sobre o autismo: nesse caso, a não ser o próprio autista?

Eric Laurent (2014), em “A batalha do autismo”, nos diz que assistimos a


um “retorno do particular”: a patologia aparentemente mais privada de qualquer
comunicação dá lugar a uma comunicação estranha e multiforme. O autista de
alto nível observa e descreve seu funcionamento próprio, bem como o dos
demais, sem nenhum obstáculo imaginário.

(...) cada testemunho em sua própria particularidade (2014, p. 72).

Devemos escutá-los, é o que nos propõe, uma vez que a ciência ainda
está distante de encontrar respostas conclusivas. E talvez a resposta esteja em
outro lugar, menos estatístico, menos exato, mais paciente e disponível à uma
escuta respeitosa e ampliada.

(...) a consideração de variáveis múltiplas impõe aos pesquisadores


sequenciar variações genéticas atinentes a casos diferentes entre si.
Esse horizonte nos permite pensar que o futuro do espectro dos
autismos repousa nos próprios autistas, em outras palavras, nos
sujeitos autistas, com a singularidade própria de cada um. O
testemunho deles nos sensibiliza para um certo uso da instância da
letra em sua relação com o campo da fala que, nesses sujeitos, é
muito específico, diferente do campo da psicose (LAURENT, 2014, p.
76).

A pergunta que atravessou este trabalho – como podemos pensar a


linguagem e a subjetividade, aquisição da fala e da escrita, em uma criança
com entraves psíquicos graves, portando um diagnóstico médico de autismo –
pode assim ser refeita: como podemos pensar o sujeito Theo, um menino que
97
parecia querer se comunicar? Para trabalhar sobre essas questões, utilizamos
o relato do caso clínico, com base em momentos de seu tratamento, cujas
produções faladas, escritas e gráficas puderem nos ensinar sobre a sua
posição de sujeito singular.

O trabalho analítico com Theo se iniciou, senão com uma transferência


estabelecida, com o encontro de um interlocutor, na pessoa da pesquisadora,
que permitiu a ele as primeiras reações e convocações logo nas sessões
iniciais, quando parece reunir todas as suas forças para fazer um apelo: mostra
seu repertório. Como se dissesse: dentro de mim, sou e faço tudo isso, mas
não sei como continuar a ser fora daqui.

Em seguida, Theo retornou ao seu mundo interior. O circuito pulsional


voltou a se fechar em si mesmo. Nas sessões seguintes, deixou claro, após
essa brecha, sua posição em relação ao Outro. Naquele momento, esta era
ainda de recusa ou uma impossibilidade. O trabalho na clínica passa a ser o de
construção de um espaço para esse Outro, por meio de um outro encarnado.

Foi pela construção da transferência que foi possível acompanhar a


construção desse sujeito, sua construção psíquica. A partir do avanço dessa
co-construção, paciente/analista, as operações psíquicas aconteceram. Ou
seja, a entrada de um outro em cena, em um vínculo transferencial com Theo,
torna possível sua mudança de posição com relação ao Outro. Diante da
palavra, a linguagem e todas as formas de representação linguageiras que se
deram a ver e a escutar.

Entendemos que Theo realmente apresentou, ao longo do tempo, as


características principais descritas por Kanner, mas conseguiu refazer o circuito
pulsional e vivenciar o prazer compartilhado na clínica, ao mesmo tempo em
que vimos também acontecerem transformações importantes, na forma de sua
família compreendê-lo e posicioná-lo. Hoje, Theo tem seu próprio lugar de
importância em sua família, é respeitado em seu jeito de ser, tem seu lugar de
fala e não mais ocupa o lugar de menino doente, com uma expectativa
impaciente ao que poderia se chamar de cura.

Com ele, pudemos aprender que crianças consideradas pós-autistas ainda


têm seus momentos de solidão – importantes para todo humano. Têm um
98
respeito que a nós parece maior – pela fala – do que o comum dos humanos.
Theo não tagarela, respeita a palavra, responde ao que quer ou ao que pode
responder. Assim, pensamos que Theo saiu daquilo que distingue o autismo
precoce infantil, mas não deixou sua posição subjetiva de todo, que lhe confere
particularidades, singularidade, na interação com o outro e o Outro. Podemos
pensar, sim, que o autismo seja um modus vivendi. Passados os entraves,
restam as características que trazem uma singularidade especial a essa
criança.

Este trabalho nos faz questionar e pensar em tantas outras perguntas,


assim como na continuidade deste estudo: o que seria o pós-autismo? Teriam
essas crianças chances maiores de nos mostrar que o autismo, passados os
entraves graves, ofereceria como resto um modus vivendi? Seria a entrada na
subjetividade uma capacidade a ser ampliada, com cada vez mais trabalho?
Um trabalho clínico continuado ou os imputs da própria vida? Teriam os
autistas de alto rendimento chances de sucesso, maiores ou menores, que os
sujeitos neuróticos? Terão outras chances, diferentes, próprias, singulares, que
fazem parte de um mundo em transformação? Questões que podem dar
origem a novas pesquisas.

Para não concluir, encerramos nosso relato, com um escrito, do livro


recém-lançado, Eu adulto e autista, uma autobiografia de João Paulo
Vasconcelos e uma de suas poesias, que mostra que o reconhecimento do
autismo como um modo de ser no mundo é um movimento e uma luta, que dá
voz a uma comunidade, de adultos e autistas.

Quero meu lugar de fala


E também toda atenção
Para as minhas palavras
Nada será dito em vão

Eu não quero a sua pena


Guarde ela para si
Eu não tenho uma doença
Nada que seja ruim

Eu não quero suas lágrimas


Não sinta luto por mim
Eu não vivo em desgraça
Me orgulho por ser assim

99
Eu não sou nenhum coitado
Apenas diferente
E estou determinado
A lutar por muita gente

Eu não quero caridade


Eu exijo meus direitos
Meu lugar na sociedade
Então tenha mais respeito

Eu vou ser protagonista


Chega de ser coadjuvante
São tempos novos a vista
Nada será como antes

Abra a sua consciência


Chegará a revolução
Por que eu sou a resistência
Contra toda a opressão

De quem quer me tornar “normal”


Como se fosse eu o errado
Como se eu causasse algum mal
Nada mais equivocado

Tantas pessoas maltratadas


Não é possível aceitar
Sofrimento a troco de nada
É hora de se libertar

Não vou abaixar a cabeça


Nada cala a minha voz
Pra que você não se esqueça
Nessa luta não estou só

Autistar é resistir
É por nossa identidade
Pelo direito de existir
E de viver em comunidade

E por tantas outras coisas


Que havemos de conquistar
Mostremos, então, nossa força
Nós não vamos hesitar

João Paulo Vasconcelos, 8 de maio de 2019

Baseada na campanha “Autistar é resistir!”, da ABRAÇA


(VASCONCELOS, 2019, p. 261)

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depois-de-adulta.ghtml

Links de Leda Bernardino

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ALEM%20DO%20AUTISMO.pdf

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ALEM%20DO%20AUTISMO.pdf

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