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São Paulo
2020
PAULINE LUISE VON BRUSKY SALES DA FONSECA
São Paulo
2020
Catalogação da Publicação
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Xxxf. : il.
Aprovada em:
Banca examinadora
Aos queridos Pedro, novo integrante de nossa família, e Raquel,
pelas tardes que passamos juntos. Onde pude presenciar, com
amor, a contínua construção do elo mãe-bebê.
O presente trabalho foi realizado com o apoio Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) - Código de Financiamento 130187/2018-6
This study was financed in part by the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) - Código de Financiamento 130187/2018-6
AGRADECIMENTOS
A Profª Drª Vera Lucia Ferreira Mendes por uma tarde de conversa,
entusiasmada, daquelas que trazem um novo ânimo.
A Pedro Teixeira pela disponibilidade com que acolhe nossos pedidos, há anos,
e às vezes de última hora, a minha filha e a mim.
A minha filha Anna Luiza, valente em seu tempo de vestibulanda, por já saber
caminhar com as próprias pernas e possibilitar a esta mãe incluir um tempo de
estudo, na vida já atribulada.
1. Introdução 11
1.1 Justificativa 14
2. Autismo: da psiquiatria à psicanálise 16
2.1 Antecedentes do conceito de autismo 16
2.2 O autismo de Leo Kanner: “Os distúrbios autísticos do contato afetivo” 18
2.3 Hans Asperger: “O psicopata autista” 21
2.4 O autismo: para a psiquiatria e para a psicanálise. 22
3. Constituição do sujeito e o autismo: uma leitura da psicanálise 27
3.1 Alienação e separação, operações fundantes 30
3.2 Remate do circuito pulsional e prazer compartilhado 33
3.3 Estádio do espelho: tu és eu 36
3.4 Aspecto da constituição do sujeito na clínica do autismo 39
Imagens 81
Análise do caso clínico e discussão 90
6. Considerações finais 95
7. Referências bibliográficas 101
RESUMO
ABSTRACT
This work focuses on language and subjectivity in autism, from the conception of
psychoanalysis of French origin, presenting a clinical case of a child with the initial
medical diagnosis of autism. The foundation that guides this dissertation is the premise
of Jacques Lacan for whom the unconscious is structured as a language. The research
method adopted is the clinical case study, which seeks to understand the value of
speech and writing for a child, from the 3 years old, accompanied in individual sessions
of one hour, once a week and, presents clinical interventions that resulted from his
peculiar movement. It distinguishes between enunciative speech and a mere
apprehension of language by memorizing a glossary of words, which is not addressed,
does not allow dialogue, does not carry a message. It addresses the subjective
constitution in the autism clinic. Considers that children with autism can access speech
and writing, through psychic operations that insert them, in the symbolic field.
Esta dissertação nasce do encontro com uma criança, que, mesmo com
a hipótese diagnóstica de autismo precoce infantil, recebida em consulta
médica, ao ser atendida em sessões de psicoterapia de base psicanalítica,
passa a aparentar uma vontade ou uma necessidade de comunicar-se. Mas
como assim? Autista fala? Fala. Se não falar com palavras, fala de diversas
outras maneiras. Como dizia Lacan (1976), os autistas são até verborrágicos,
nós é que talvez não saibamos escutá-los.
11
atualizando o trabalho psíquico que possa ter sido interrompido ou nem ter se
1
Todos os nomes relativos aos familiares de Theo também foram trocados.
12
ser de linguagem, desde antes de nascer, e, mais além, um menino que
começa a fazer parte do discurso em circulação.
13
1.1. Justificativa
14
A psicanálise entende ser, por meio do respeito à singularidade da
criança em tratamento, possível auxiliá-la em seu sofrimento, para que, no
lugar de uma aparente recusa, possa haver consentimento: que possa se
deixar capturar pela linguagem, uma das premissas para o advir da fala2.
2
Para Lacan, a fala é um conceito que diz respeito a capacidade do ser humano, permeável ao
significante em comunicar-se através de um discurso comum ao seu meio. Diferente do proferir
um “banco” de palavras memorizadas, como faz,às vezes, um estrangeiro, sem entender de
fato o sentido da língua que parece usar. A criança está na linguagem desde antes de nascer,
e passa a fazer parte do discurso em circulação quando acede à fala.
15
2. Autismo: da psiquiatria à psicanálise
16
que um esboço de psicologia para crianças surgisse, para que a loucura na
criança pudesse também ser pensada, como diz Maleval (2017).
17
Ambos os quadros, naquele momento, têm semelhanças suficientes
para portarem o mesmo nome “autismo” – palavra que é uma contração de
autoerotismo3 – cunhada por Freud (1914), mas com a subtração do eros:
autismo, voltado para si. De costas para o mundo, mas com diferenças
marcantes, sobretudo na área da linguagem.
3
O autoerotismo é um momento inicial do investimento do bebê em partes do seu corpo próprio, na qual
ele investe no seu corpo como objeto de prazer. Na palavra autismo, não há o termo eros, que remete ao
erotismo (FREUD, 1914).
18
Rosine e Robert Lefort (2017) entendem que a distinção entre essas duas
entidades estruturais se encontra no início da descrição de Kanner e de sua
descoberta: aquilo que é por ele denominado de “autismo infantil precoce” é, de
fato, precossíssimo. Segundo Kanner (1943), começa no nascimento, mesmo
que só seja observado mais tarde no bebê ou na criança. Enquanto a
esquizofrenia compreende uma primeira entrada no mundo e uma posterior
retração, uma desistência da realidade exterior e um voltar-se para si.
20
diante desses filhos sem respostas e reação, por uma certa incapacidade de
compreendê-los.
21
precoce. Ao mesmo tempo levanta que, possivelmente, o autista de Asperger
na vida adulta, foi o autista de Kanner na infância.
22
infantil dos quadros estatísticos, é um dos fatores que levam o diagnóstico de
autismo a alcançar níveis epidêmicos.
23
outros fatores, para além dos genes, que justifiquem o quadro
autístico (MALEVAL, 2017, p. 10).
Dada não apenas a divergência de olhares, mas por sua mais radical
singularidade: não existe autismo igual ao outro, não se identificou até agora,
por exames, que o autismo está ali, em alguma parte do organismo,
determinando um entrave psíquico. Ou mais claramente: quando se encontra
um fator orgânico específico, que possa dizer que aquele sinal fora do normal,
é o que determina o autismo, não há indícios de que, necessariamente, será
encontrado em outro ser humano autista, o mesmo sinal, a “prova”.
24
teóricas, subjetivas e, ainda assim, classificatórias, mas importantes, também
são levantadas: será o autismo parte das três estruturas propostas por Freud e
mais tarde aprofundadas por Lacan: neurose, perversão e psicose, e seus
mecanismos de defesa: recalque, desmentido, e foraclusão, considerando
como a mesma estrutura a psicose e o autismo, este com um surgimento
precocíssimo?
25
Se pensarmos em uma linha de tempo, quantas vezes na história da
humanidade, os modos de fazer, as etiquetas sociais, os conceitos do que é
adequado ou não, mudaram? Se pensarmos geograficamente, o que é loucura,
excentricidade, para um povo, pode ser poder, inteligência, sabedoria,
genialidade, para outro. Se a humanidade fosse padronizada existiria
evolução? É do respeito as diferenças em cada um de nós, o que inclui as
crianças com autismo, do que estamos falando. Não só como políticas
públicas. Mas como ética do viver e do modo de tratar.
26
também visando situar as produções e o tratamento, no caso clínico que será
apresentado no Capítulo 5.
4
O sujeito que aqui nos referimos não é o sujeito da consciência, cartesiano: “penso logo
existo”. Trata-se do sujeito do inconsciente.
5
Outro, na concepção lacaniana, diz respeito à ordem simbólica, ao campo da cultura e da
linguagem. O Outro primordial é aquele que submetido ao simbólico, tratará o bebê de acordo
com as regras da cultura. Diferente do outro com o minúsculo que se refere ao semelhante
(1954-55/1985).
27
pertença. Essa transmissão irredutível inclui a trajetória psíquica dessa família.
Mesmo que seus agentes, pai e mãe, não percebam, os problemas, os
entraves, os interditos, os – mal-ditos e mal-entendidos, também serão
transmitidos.
Em “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, de 1938, ainda
como jovem psiquiatra, Lacan diz que a família tem papel primordial na
transmissão da cultura. Que acima dos ritos, das tradições espirituais, e dos
costumes, e mesmo que esta primazia seja disputada por outros grupos
sociais, a família prevalece como primeira educação, presidindo processos
fundamentais do desenvolvimento psíquico. Da repressão dos instintos a
aquisição da linguagem na língua “acertadamente chamada de materna”
(LACAN, 1938/2002), a família transmite estruturas de comportamento.
28
Embora pareça natural, aos olhos de quem acompanha a chegada e o
crescimento de um bebê, a constituição do humano é efeito de linguagem.
Diversas operações psíquicas complexas, e na clínica especialmente vemos o
quão complexas, fazem o bebê tornar-se humano, o que sem a incidência de
outro humano não seria nem uma “pessoa”, mas uma “libra de carne” (como
em O mercador de Veneza,de Willian Shakespeare). Essa transmissão, via
desejo materno (LACAN, 1956-57/1985), que se articula à função paterna –
que é justamente barrar o gozo6 materno – se dará de forma pulsional e
desejante. A ela, a mãe, é pressuposto, no dizer de Lacan: “a marca de um
interesse particularizado”, com relação a essa criança e á própria transmissão,
que é irredutível, pois restará e será transmitido o resíduo do que se passou
com as outras gerações. Em Nota Sobre a Criança, de 1969, reflete Lacan:
6
Gozo, termo lacaniano, referido a uma satisfação diferenciada de prazer, desejo e satisfação.
Para Roudinesco e Plon (1998), implica a ideia de transgressão da lei, reveste-se de dimensão
jurídica, ligada à noção de usufruto, direito de gozar de bem de terceiros. Para Lacan, este
termo remete à tentativa de ultrapassagem do limite do princípio do prazer. Está ligado ao
sofrimento causado pela busca da coisa perdida, lugar do Outro que falta.
29
Lacan sublinha que esse desejo não deve ser anônimo, porque é preciso
o desejo dos agentes do Outro, seres de carne e osso, para transmitir algo ao
bebê. O desejo e a marca dos cuidadores primordiais. É esse desejo que
veicula e mediatiza o irredutível da transmissão da ordem simbólica, da
linguagem, da cultura. O desejo que nos constitui como falantes e desejantes.
7
Significante – Na concepção lacaniana, é o que representa o sujeito para o outro significante.
8
Real – Roudinesco e Plon (1998) afirmam ser um termo usado como substantivo, por Jacques
Lacan, em 1953. Designa o que escapa à simbolização.
9
Falo – significante da falta, não é fantasia, objeto parcial ou o órgão genital que ele simboliza
(LACAN, 1958).
30
seus cuidados especiais, criará marcas simbólicas no corpo do bebê, que farão
borda em suas zonas erógenas. É também ela quem começará a contornar, a
construir na linguagem, a antecipar que em algum momento para que um eu
autônomo possa advir de seu filhote. Deverá haver uma alienação, uma
identificação, uma imitação e uma separação, nesse caminho que leva um eu a
distinguir-se. Assim podemos observar na relação mãe-bebê que vai bem:
10
Para Vorcaro (2002), há uma linguagem privada do laço originário que liga o bebê e sua mãe, que
seria uma linguagem maternante.
31
É preciso que a criança se submeta à linguagem, a experienciar a
32
Na tentativa de recapturar aquilo que lhe falta, ou o “objeto perdido para
sempre”, como na visão freudiana sobre a satisfação proporcionada pelas
primeiras mamadas, o ser humano vai em busca dessa sensação, desse objeto
perdido, que nenhum outro trará a não ser temporariamente, ilusoriamente: a
completude perdida, a completude que não há, a não ser imaginariamente.
Podemos dizer que é pela falta que nosso mundo, esse em que vivemos, se
constrói, evolui, uma vez que onde nada falta, não há desejo.
12
Pulsão – conceito limite entre o somático e o psíquico, na visão freudiana. Impulso que remete à
satisfação. Em Lacan (1964), é um conceito fundamental da psicanálise, montagem, descontinuidade, na
qual a sexualidade participa da vida psíquica.
33
Na pulsão escópica13, diz Laznik, esse terceiro tempo, consiste em ser
olhado: “Trata-se de se fazer objeto de um novo sujeito. De se fazer
olhar.”(LAZNIK, 2013, p. 28). Sabemos bem da importância para uma criança
pequena desse “olha para mim mamãe”. Mas como representar esse terceiro
tempo na pulsão oral? Pergunta-se ela. É em um “se fazer comer”. É claro que
não se trata de uma necessidade literal, esclarece a autora, mas de um
mostrar-se apetitoso para essa mamãe, de um fingir de se fazer comer. Como
uma brincadeira, um jogo, um prazer mútuo, que segundo Laznik, “salta aos
olhos”.
13
Lacan introduz outros objetos pulsionais, como a voz e o olhar. Referida ao objeto olhar.
34
A esse remate que “religa”, Maria Cristina Kupfer, (2017) chama de
“prazer compartilhado”, é o momento em que a criança, além de ter prazer nas
brincadeiras, nas trocas, também vai se preocupar em dar prazer para esse
Outro primordial, ou na clínica, na relação de transferência com seu analista,
ou com um semelhante, buscando fisgar a sua atenção e seu olhar, agora
também se ofertando, se oferecendo.
35
3.3. Estádio do Espelho: tu és eu
Diz Lacan (op. cit.) que é um espetáculo cativante um bebê que ainda
nem tem controle da marcha, ou obtém uma postura ereta e independente,
mas que se movimenta, de forma a resgatar o instantâneo dessa imagem de si.
Segundo ele, esse estádio de reconhecimento no espelho – dos 6 aos 18
meses – é como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui ao
termo, a transformação produzida no sujeito, quando ele assume uma imagem.
O júbilo diante de sua imagem especular, quando ele é ainda bebê, vive
a impotência motora e a dependência da amamentação e de tudo o mais de
um outro humano que é o filhote humano nesse estágio de infans. “parecer-
nos-á pois manifestar numa situação exemplar, a matriz simbólica, em que o
(eu) se precipita em uma forma primordial” (LACAN, 1998, p. 97).
36
é você. E ao ser você, não sou eu- a mamãe. O bebê se inicia nessa noção do
que é ser, em separado, um eu. Ao mesmo tempo em que há um
desconhecimento desse ser eu. Um enigma que será motivo de especulações
incessantes em sua existência humana. Na visão lacaniana: “o eu é um outro”,
uma vez que essa unidade percebida como imagem no espelho, será sempre
diferente de suas ambiguidades internas.
37
inconsciente/consciente. Essa é uma grande descoberta freudiana: o homem
não é o centro do universo, uma vez que seu próprio universo é descentrado.
Toda sensação real é duplicada por uma virtualidade, diz ele, por uma
representação psíquica. Fala de Leonardo da Vinci, que chamava suas pinturas
de cosa mentale, porque parte da pintura estava na cabeça do pintor, e parte
no espectador que a observa. Portanto, diz Nasio, o corpo também é cosa
mentale, não existe em um espaço, mas na cabeça de quem o carrega. E se a
cabeça que o carrega, estiver apartada desse corpo? Se não houver imagem
especular, apenas imagem despedaçada? “Não há dor física pura fora de nós,
a dor existe em nós. É uma dor que vibra na cabeça, uma dor experimentada,
ou seja, representada. Pois sem a representação o acontecimento doloroso
não seria sentido” (NASIO, 2009,8).
38
singularidade, que podemos carregar conosco, sem precisar de um espelho. “É
justamente essa constelação de imagens – réplica virtual das inumeráveis
excitações e comoções que atravessam nosso corpo – que me dá a sensação
de existir num corpo vivo e de ser eu” ( NASIO, 2009, p.10).
39
satisfação que seriam um caminho para dar origem ou solidificar a díade mãe-
bebê.
E quando ele não usa dessa capacidade, e pelo contrário, nem olha para
o que seria seu Outro primordial, começamos a ver o risco logo nas primeiras
horas de vida, entendem alguns autores, da impossibilidade de laço com esse
representante do Outro. Ou vir a ter uma relação tão que precária, insuficiente
para a instalação de um circuito pulsional (Laznik, 2010), que, como vimos, não
depende só do desejo da mãe, o bebê precisa consentir (Laznik, 2010).
40
alienação é a primeira operação essencial em que se funda o sujeito” (LACAN,
1964/1985). Se, para o bebê há uma recusa com relação ao Outro,
representado pelo Outro primordial, como vimos dizendo, em geral a mãe, está
aí a impossibilidade primeira de surgimento de um sujeito pulsional, já que o
desejo materno não é o único a operar. De entrada na linguagem, de ocupar
um lugar de fala. No seu desamparo a criança vai sobreviver graças aos
cuidados do outro ainda assim nele não se alienará. Será falado, por que dele
falam. Estará no campo da linguagem nesse sentido.
Se é falado pelo Outro, pode-se dizer que está na linguagem e se é falado, esta
assujeitado a ela, como todos nós os seres falantes e portanto é um sujeito, mas um
sujeito que não transforma esse assujeitamento em enunciação (KUPFER, 2010, p.
132).
41
Podem surgir errâncias, crianças que andam de um lado para o outro,
sem objetivo de chegar a algum lugar ou intenção de brincar com outras, assim
como a presença de movimentos estereotipados.
42
metáfora paterna incida sobre o gozo da mãe sobre o filho objeto. Esse é uma
das condições no processo para que a criança não se torne ou deixe de ser um
objeto à deriva para tornar-se um sujeito pulsional, dono do seu dizer. É agora
com o terapeuta, que cada uma dessas operações terá uma nova chance de
acontecer.
43
A maneira de relatar o caso clínico é inspirada na proposta da
Psicopatologia Fundamental: “a escrita de um caso clínico diz respeito ao
desejo do clínico, do analista, em compartilhar sua experiência, a partir de uma
questão, um enigma, que o tenha levado à pesquisa”. Por isso, o caso pode ser
pensado como do clínico e não do paciente, esclarecem Berlinck e Magtaz
(2012,s.p.). É revelado aquilo que o caso trouxe de surpreendente para o
pesquisador, o que faz diferença. Uma vez que se pensarmos que o caso é do
paciente, uma inibição comparece. Se ele não é do clínico, como ousar contá-
lo? Ao que estaria sendo fiel? O caso tem um ponto de vista, atravessado por
diversas questões, teorias, pelo protagonismo do paciente e pelo sigilo ético.
Mas é o olhar da pesquisadora que está ali.
44
Berlink e Magtaz ressaltam que, para Freud, o importante é manter a
“atenção flutuante”, conceito proposto por ele nesse mesmo texto. Não querer
notar nada de especial e dar a tudo que se ouve a mesma atenção, sem fazer
uma seleção ou crítica. Contrapondo-se a noção de atenção proposital que
predomina em muitos trabalhos de pesquisa a respeito da clínica psicanaiitica,
que tendem a uma atenção deliberada a algum conteúdo, do que já foi dito.
Como se aquilo que já se tem conhecimento prévio, irá ser comprovado (2012,
s.p.).
45
através de fragmentos clínicos, em que determinados processos psíquicos
começaram a surgir. Esses fragmentos, estão escritos em um texto contínuo
que aqui intitulamos de “Caso Theo” e em outros momentos no decorrer do
trabalho. A ênfase foi dada aos fatos, expressões da criança e aos
acontecimentos clínicos, articulados ao estudo teórico, baseado em textos
escritos por autores psicanalistas que pensaram o autismo.
46
por métodos que, de alguma forma, relevem os processos psíquicos que estão
em jogo, tendo em vista prioritariamente a adaptação ao meio.
Quando encontrei Theo pela primeira vez, ele era um paciente novo que
estava sendo introduzido em um grupo terapêutico, na instituição para crianças
com entraves no desenvolvimento psíquico, dificuldades de sociabilização e
questões de aprendizagem. Theo chegou até ali, porque sua mãe recebeu a
indicação de uma neurologista que suspeitou de risco de autismo.
47
Na hora do grupo, a performance se repetia: correr, retirar coisas das
mãos dos outros. Theo admirava bastante Fernando, outro menino do grupo.
Ele era criativo, quando brincavam na caixa de areia, inventava uma porção de
novidades, como jogar areia para cima e com a ajuda do reflexo do sol, dizia
estar fazendo o “arco-íris”. Theo procurava imitá-lo. Uma vez, fizemos uma
sessão do grupo, incluindo as mães. Levei o violão. E, ao tocar “Pintinho
Amarelinho”, música que Theo gostava, ele começou a bater os pés no chão,
bater as palmas das mãos, rodar, como se estivesse dançando. Só não sabia
ainda, cantar ou falar. Diferente de Fernando, um ano mais velho e com
diferente posição subjetiva, que falava quase tudo.
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Nessa época, a irmã de Theo participava de seu grupo. Sua mãe levava
os dois, por não ter onde deixar essa filha, na hora da sessão de Theo e a
menina que entrara, uma vez no grupo, só para conhecer, era falante e
exuberante, animava as outras crianças e passou a ir sempre. Parecia
defender seu irmão, na disputa de brinquedos com outras crianças. Estava ali
de guardiã do Theo. Atitude muito comum em crianças irmãs das que tem
entraves psíquicos. A menina ouve em casa o discurso dos pais, sobre a
fragilidade do irmão – é apontado o lugar que esse pequeno paciente ocupa na
família – e se sente na obrigação de defendê-lo mesmo que ele não precise, ao
custo de que ela deixe de aproveitar um momento de brincadeira, para ser
essa irmã de “plantão”. Ocupava ali o lugar de única falante do grupo. O que
parecia manter essa posição de “enfermo” de Theo, em seu grupo terapêutico.
Um tempo e outros grupos passaram por mim, até que encontrei Theo
em um novo grupo, dessa vez, com maior número de crianças e com
dificuldades bem diversas, como a síndrome do X Frágil e outras questões,
com uma proposta artística e um professor de artes plásticas para fazer
atividades.
49
antes, sempre na aposta de que, com o olhar que já tinha sobre sua
singularidade, no acompanhamento detalhado que dele pude fazer ao longo de
mais de um ano, diante dos contatos que tive com o menino, que algo do
inédito, pudesse acontecer. Mas como diz a música, “o inesperado fez uma
surpresa”, e foi tudo muito maior, mais profundo, mais bonito e revelador do
que minha imaginação pudesse conceber. Theo acabara de fazer 3 anos.
Theo nasceu a termo, de parto normal. Tudo corria bem, até que “antes
de tomar a primeira vacina”, como descreve a mãe, ele teve uma bronquiolite
severa e precisou ser internado. No hospital, a dificuldade de retirar o muco
retido em seus pulmões era grande, seus vasinhos eram como “fios de cabelo”.
E, por isso mesmo, segundo o relato dessa mãe, tiveram que sedá-lo e entubá-
lo, por mais de uma semana, para que o tratamento fosse possível.
Praticamente sua entrada no mundo veio acompanhada de intervenções
intrusivas e dolorosas em seu organismo.
50
antecipado, fragilidade, dor. Sua depressão crônica, relata a mãe, se agravou
ali, mas ela permaneceu atenta a sobrevivência de Theo.
Pela escuta e apoio recebidos nessa instituição para crianças com entraves
em sua constituição psíquica, que a mãe de Theo conseguiu elaborar o
desmame do menino, que havia acostumado a agarrar em seu corpo e puxar
seu peito quando bem quisesse ou necessitasse. Como se esse corpo existisse
– e não uma mãe – apenas para suprir suas necessidades. Também até aquele
momento não se ouvia dela um “manhês”, essa fala maternante, cheia de júbilo
e prosódia, que as mães fazem ao dirigirem-se aos seus bebês. Parecia haver
uma dependência mútua e sem pulsionalidade. A dificuldade no desmame
pode levar a pensar na dificuldade de um corte entre o corpo da mãe e o corpo
da pequena criança.
51
queixas como: “será que ele é inteligente? Que doença será que ele tem? Será
que um dia vai falar? Por que será que ele é um menino assim?” Ela falava
como se o filho não estivesse na sala. E estando, não fosse capaz de escutar
ou entender, como se não pudesse supor um sujeito em Theo.
Além disso, Theo não falava, não por ser mudo, já havia comprovado
antes. Mas, aquele não falar que se parecia com o mutismo, como uma recusa
ao Outro, que tantas crianças com autismo tem. Theo pouco se relacionava
com outras crianças. Seu brincar era praticamente inexistente nos grupos, fora
manter-se em movimento. E, mais tarde, apenas enfileirando coisas, de
preferência, carrinhos.
52
Theo também não fazia sons, como o barulho de um carrinho, ficava em
silêncio. Por outro lado, seu ouvido era aguçadíssimo, o que o incomodava
bastante. Quando já conseguia dizer algumas palavras, no atendimento
individual, tentava comunicar: “chora” dizia. E eu perguntava: é o barulho, tem
uma criança chorando lá embaixo. E ele retrucava ou repetia tentando fechar
os ouvidos: “barulho! barulho!!!!”
Uma saga, a vinda da mãe de Theo e alguns irmãos para São Paulo, na
tentativa de sobreviver. Muita tristeza na chegada, abandono de quem se
propôs a cuidar dela, ainda menor de idade. Assim, ela se aloja e recebe apoio,
em uma casa de família, onde começa a trabalhar. Conhece o futuro marido.
Entra para uma faculdade e estuda Administração. É uma mulher que lutou
53
para adquirir algum conhecimento e, por isso, dava valor a possibilidade do
filho, no futuro, “ser alguém na vida”, através do estudo. Essa parecia ser uma
das suas preocupações com relação a Theo: será que ele vai escrever? A
alfabetização costuma ser aos 6 anos. Naquele momento, Theo acabara de
fazer 3 anos. Foi nesse momento, ao completar 3 anos, que começamos o
atendimento individual.
54
escutar. Enquanto falo, Theo permanece com esse bebê em pé. Noto que ele
está parado com o bebê, me escutando.
Quando eu paro de falar, ele anda mais um pouco com o bebê e o traz
para perto da casinha de madeira, onde fará algumas brincadeiras, ou
narrativas: Theo retira alguns pequenos bebês de dentro da casa, um gato e
um cachorro de feltro. Deixa uma mulher, a única personagem adulta que havia
ali naquele momento. Ele coloca cada um desses pequenos animais em cima
de um carro. Mas, a cada vez, espera que eu diga alguma coisa: o gatinho está
passeando? Ele mexe com o carrinho e, assim, sucessivamente. Theo me
ouve, me entende. Corresponde.
Ele parece estar cheio de júbilo, por mostrar todas essas possibilidades
de comunicação. Theo mostra, com clareza, que escuta, espera e mostra outra
coisa. Existe um tempo, uma pausa em suas atitudes. Não me parece uma
brincadeira, mas uma forma de comunicação.
55
qualquer som, não parecia ouvir, por que não reagia a qualquer proposta, ou a
qualquer demanda que fosse.
15
Transliteração – consiste em “passar de um sistema de escrita para outro sistema de escrita. Por
sistema de escrita entendemos as marcas e traços anteriores e condicionantes da emergência de
significantes” (GOUVÊA, FREIRE& DUNKER, 2011, p. 5).
56
Dessas duas sessões, em que me pareceu grande sua necessidade de
comunicação, Theo parecia utilizar talvez o seu repertório disponível, naquele
momento, para dizer alguma coisa e procurei colocar em palavras, como se
fossem dele, a cada instante que eu considerava propício: Theo escuta, Theo
fala, Theo não é mudo, Theo brinca, Theo entende o que a Pauline diz. E uma
palavra eu não digo, mas penso: vivo. Theo está vivo. Existe um menino bem
vivo, dentro de Theo. Tempos depois, consigo pensar que era Theo ali fazendo
um apelo: Me olhe, me compreenda e me acolha.
Talvez Theo jamais tenha dado uma gargalhada antes, mas estava
tentando imitar a minha. Quem sabe dali surgia uma identificação, e um prazer
compartilhado iria advir desse brincar livre e descompromissado de alguma
técnica educativa, ou uma direção pré-determinada a se chegar?
Theo chega para a terceira sessão, da mesma forma que veio para as
outras, parecia já me reconhecer, vinha bem, de mãos dadas comigo, desceu
as escadas, sem resistência. Até parecia alegre. Nova surpresa: no momento
que entra na sala, Theo se fecha em um território, se deita no chão e começa a
57
fazer fileiras de carrinhos. Se eu tento me aproximar, ele muda a formação dos
carrinhos. Se eu falo, ele vira de costas para mim. Mostra mesmo que não está
indiferente a minha presença, mas que não pode se comunicar. Talvez as
sessões anteriores tenham sido demais. Muita informação, excesso de energia
vinda de mim? Minha presença fora excessiva?
58
É um momento de grande importância para mim e penso que para ele
também: é decisivo. Entendo que Theo me aceitou e que inseriu meu carrinho
junto aos seus. Digo: o carrinho da Pauline está muito feliz de estar junto dos
carrinhos do Theo. A Pauline também está muito feliz do carrinho dela estar
brincando junto aos carrinhos do Theo. Ali, nos adotamos.
59
Nesta etapa, quando ele entra no jogo com a analista, ele responde ao
seu convite, tomando-a como companheira de brincadeiras. Ele usa várias
linguagens (ritmos, narrativas na casinha lúdica, sons), aceitas pela analista
como linguagens possíveis. Poderíamos falar de um esboço de alienação ao
convite do Outro?
...Essas cenas vão se repetir, durante algumas semanas. Cada vez, com
mais carrinhos e mais inserções. Tenho a ideia de esconder alguns carrinhos
para que Theo pudesse procurá-los, quem sabe. E, além de oferecê-los, passo
a dizer - tenho um carrinho escondido por aqui... e Theo começa a levantar a
cabeça para olhar. Mais tarde, a se levantar de curiosidade para ver onde
estariam os meus carrinhos. Esses momentos foram preciosos: o menino que,
a maior parte do tempo ficava ensimesmado, reapareceu.
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ter valorizado todos os avanços dele na comunicação, os achados nas
brincadeiras que ele fazia, nos encaminhamos para um lento, mas seguro
progresso. Podia ser porque eu irradiava felicidade nesses momentos e ele via,
mas eu também reafirmava na palavra.
Sem deixar a massinha, que fez caminho para outra atividade, Theo e
eu começamos a brincar com o papel e as canetinhas. Faço pontinhos,
supondo que será algo fácil de copiar e que poderemos fazer juntos,
compartilhar um desenho. Ele aceita e começa a pontilhar. Fazer chuva se
torna a nova aquisição e passamos semanas fazendo chuva. Em todos os
papéis que pontilhávamos, eu desenhava um guarda-chuva e Theo sorria. Ali
ele já começava a dar umas risadinhas, com som de risadinhas. Uma ecolalia
de minhas próprias risadas? Um caminho, imitar para depois fazer sozinho.
Era fácil perceber que, pela oferta semanal de papel, um para cada um
de nós, um montinho de massinha para cada um, havia um universo de
propostas sobre aquela mesa, que aos poucos ajudava Theo a se organizar. Já
era certo: ocupava seu lugar na mesa e começava a trabalhar. Essa foi uma
ideia básica de compartilhamento. Mas Theo fez mais que isso, parecia estar
entrando no registro do simbólico com seus desenhos ainda rudimentares, se
permeando ao significante e ao Outro, pelo compartilhar, abrindo-se a
possibilidade de ocupar um lugar seu em outros ambientes. Logo surgem
notícias do grupo terapêutico: “Theo está muito mais libidinizado. Interage
mais. Ele agora olha para mim e dá tchau na saída”, comemorava uma das
terapeutas do grupo.
Mas, Theo demonstra um novo interesse, que coincide com sua mãe
dizer que ele está copiando palavras e escrevendo: que escreveu nescafé e
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também escreve o nome da irmã no papel e no computador, e em uma
“lousinha”, sempre o nome da irmã e nescafé.
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letra não é perfeita o suficiente. Sua destreza manual não é suficiente. Ele
perdeu a vontade de sorrir. Não há mais ali um começo de prazer
compartilhado. Theo faz uma regressão forte ao tentar escrever. Como se
fosse pavoroso não ter o controle, não atingir a perfeição de uma fileira reta de
carrinhos. Ele precisa voltar a ter contato com os brinquedos, com outras
possibilidades, penso. Parece estar em um “dever de casa sem fim”.
Me parece que a melhor coisa é tirar tudo que é letra de imã pregada no
armário e sumir com todos os papeis e lápis. Colocar essa atividade, em
suspensão. Deixar esse espaço clínico para Theo brincar e não satisfazer uma
pressão familiar, especialmente da mãe que incessantemente me lembra que
ele precisa escrever aos 3 anos de idade. Paramos com papéis, guache ou
qualquer coisa que escreva. Theo se volta novamente aos brinquedos, seu
circuito.
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Diversas operações estão acontecendo, nesse aparentemente simples
momento: consentimento – ao demonstrar que quer mais e dizer: bola, Theo
entra no jogo. Sai da recusa e mostra que pode ouvir e entender o significado
das palavras de um outro e pode responder ao Outro. Theo se arrisca a sair
dessa posição de recusa, voltado para si mesmo e entregar alguma coisa de si
ao Outro. Enviando um pedaço de massinha para que possa ser reenviada
para ele como mais uma bola e o prazer de compartilhar que começa a
conhecer, possa continuar. Relaciona-se também a um momento anterior ao
estádio de espelho, quando Theo aqui já consegue se identificar com a
analista, iniciando sua construção de alteridade. Como na alienação e ao
mesmo tempo, a separação.
Theo pode fazer esse movimento e isso aparece na fala: já tem uma
referência de si – embora não queira ou não possa assumir ainda o pronome
na primeira pessoa-eu – pode dizer o verbo no tempo correto –- da primeira
pessoa do singular. Mais além, Theo começava a simbolizar com a massinha,
a própria construção que estávamos fazendo. Havia a brincadeira – pega-pega,
início de um prazer compartilhado. Como também uma montagem com os
pedações de massinha que ao se juntarem, bolinha por bolinha, formava um
todo, que continha partes.
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Nessa época, eu tinha a tarefa de tentar dar algum alimento novo a
Theo, para tentar superar sua seletividade alimentar. Theo só aceitava se
fossem as mesmas coisas de sempre, brancas e moles. Comer alguma coisa
junto a ele e ver o que acontecia, oferecer, insistir, foi logo extinto das nossas
atividades. Essa tentativa se tornou um tanto pedagógica e não cabia naquela
sessão. Ao mesmo tempo em que esse percalço deu início a descobertas
importantes: Theo começou a explorar o espelho para ver sua língua, boca,
dentes e tudo aquilo que aparentemente tinha relação com sua oralidade.
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dava mostras de que não mais ignorava aquela imagem e se ela ainda era
enigma, já podia encará-la, investigá-la.
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Carros sempre foram para Theo um elo com seu pai. Que também gosta
de carros. Os dois andavam juntos de carro, conta a mãe e o pai ia apontando
para as marcas, os nomes, conversando com o filho, com esses carros nas
ruas. Ela conta essa história, depois do desenho de Theo.
Na saída para a sala de espera, ele toma o corpo da mãe, não mais
como um objeto inerte, onde ele puxava o peito, por exemplo, para pegar
impulso e subir no sofá. Agora, é com raiva que ele a estrangula. Será que era
um reconhecimento de ambos? Meses antes, ele já havia puxado com força a
pele do rosto de sua mãe, provavelmente pedindo aquela atenção de qualidade
– olha para mim – antes só direcionada para sua irmã. Agora que ele começa a
se admirar no espelho, afinal parece estar se separando de sua mãe. É uma
separação violenta.
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agora é um menino grande, que sabe falar, que sabe escutar, que sabe
abraçar. Que lindo quanta coisa Theo pode dizer. Theo tinha alteridade com
relação ao seu pai. E começava a ter com relação a sua mãe.
Antes, teve essa batalha a ser vencida: Theo, cada vez mais, dava a ver
em seu grupo terapêutico que acontecia logo após sua sessão individual, que a
participação de sua irmã falante e exuberante, parecia incomodá-lo de forma
crescente. E passa a mordê-la. A irmã mais velha participava para impulsionar
o grupo composto em sua maioria de crianças não falantes.
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que escutamos o som, mas não conseguimos distinguir as palavras ou o
sentido do que falam.
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Terceiro tempo. etapa de entrada nas trocas
O violão era o instrumento que só havia um. Theo vinha tocar as cordas
enquanto eu tivesse tocando alguma música que ele gostasse. Assim, tocava
junto. A primeira vez que Theo cantou uma parte de uma música foi o “iaiaiao”
do sítio de Seu Lobato. Diversas vezes eu havia tentado esse recurso desde o
início, de fazer silencio em parte da letra como “o pintinho amarelinho, cabe
aqui na minha...” para Theo completar. E assim foram surgindo palavras. Que
sempre estiveram ali. Mas precisavam de uma via, um caminho de volta para
quererem aparecer. E algumas brincadeiras passaram a existir a partir dali:
cantávamos Seu Lobato tinha um sítio... repetidas vezes e colocávamos todos
os bichos possíveis. E novas surpresas: Theo pode fazer uma associação entre
um boneco de madeira, uma boneca mulher, com filhos, em uma fazendinha:
Seu Lobato, disse. A partir daí, comecei a fazer uma voz de Seu Lobato: Theo
pode me ajudar aqui no sítio. Theo a arrumar cercas e tal. e o boneco
agradecendo os serviços. Theo orgulhoso, de ajudar e a dizer: “Seu Lobato”.
Era Theo integrando a música com as representações imaginárias, que no
começo do trabalho, eram tão empobrecidas em uma criança com autismo
infantil.
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Faz parte da clínica corrente que as crianças autistas tem uma falha no campo do Imaginário.
Não somente o corpo não se mantém com as estruturas das outas instancias, mas geralmente
eles apresentam dificuldades para imaginar histórias. Mesmo os autistas de alto nível
apresentam essa dificuldade. Isso libera a possibilidade para tratar, às vezes, o Simbólico com o
Real, sem sobrecarregar as dimensões Imaginárias. Isso pode produzir excelentes engenheiros.
Mas no cotidiano isso não facilita o contato com os outros (LAZNIK, 2016, p. 44).
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T.E eu vou escrever: LUA
P. Então eu vou desenhar um foguete
T. E eu vou escrever foguete (ele tira um segundo para pensar): FOGETE
T. E vou desenhar uma estrela. (Theo desenha uma estrela)
T. E vou escrever: ESTRELA
Não dá para contar tudo, senão fica tão grande e espalhado, que não se
conta nada. Essa foi uma escolha, que pode ser feita apenas com o passar do
tempo. Depois da vontade de apreender o todo e contar. Tarefa impossível. Do
sonho sempre sobra um resto não apreensível. De um caso clínico existe a
singularidade mais singular do sujeito. mesmo que gravemos e filmemos, tudo
não estará ali. Existe aquilo que é tão próprio, que jamais foi alienado a
ninguém. Nem ao amor de transferência.
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Consideramos que múltiplas formas de comunicação são interessantes
quando estamos diante de uma criança que não fala. Se recordarmos aqui o
começo desse relato, vemos que a primeira mensagem de Theo foi através do
ritmo feito com a grua de um caminhão que a mim dizia, na minha leitura, a
posteriori, daquele momento: eu tenho um tempo, um ritmo, uma pulsação.
Essa é a forma que encontro de contar isso para você.
Logo nas primeiras sessões, Theo mostrou que poderia ter uma
comunicação oral. Primeiro lendo alto as letras no painel, no instante que
chegou. Mostrando que a fala seria uma de suas formas de expressão
possíveis. Suas primeiras palavras em sessão individual, foram: “gato”, “papai,
mamãe”, e algumas ecolalias, logo de início e, mais tarde, bola, peguei e caiu”.
Dentro de um contexto de brincadeira em que uma relação de trocas com a
analista já se anunciava. Theo também completava as letras de músicas
tocadas no violão. Uma comunicação oral se iniciava.
Por outro lado, sua primeira palavra escrita, relatada e trazida por sua
mãe foi “nescafé”. Ansiosa, ela dizia que ele escreveu “nescafé” em meios
diversos – caneta, computador, lousinha... “Parece que viu e copiou de algum
lugar”, ela mesma concluiu.
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pintura, massinha de modelar e instrumentos musicais, que eram oferecidos a
cada sessão, incluídos ali, junto aos brinquedos. Era uma aposta nessa
ampliação de possibilidades de expressão para Theo.
Ele não parecia se contentar com aquilo que estava fazendo e, por
alguma razão, jogava tudo fora. Esse primeiro contato de Theo com a escrita,
nos pareceu, ao invés de comunicação, um momento de fechamento. Um
retroagir aos avanços já conquistados. Como já relatamos, ele não queria mais
brincar, perdera a curiosidade. Nem se levantava da cadeira.
Theo fazia uma lista de nomes. E eu dizia: são os seus amigos!!! São
seus colegas da escola? Olha só aqui estão as meninas, e os meninos nessa
parte... Suas produções ali pareciam listas de chamada da escola. Theo não
respondia, ele não dava nenhuma resposta como as risadas ao compartilhar
desenhos, dizer palavras que eram demandas – de quero mais – como depois
vimos acontecer com a massinha, e como antes, até bem antes, no comecinho
– se eu sorrisse para ele, ele sorria para mim. Quando desenhava, ele tinha
jubilo naquilo, naquela atividade, naquele compartilhar.
Ao escrever, ele não parecia ter. Nossa leitura clínica foi a de que, para
Theo, era uma obrigação, existia uma pressão em casa para que ele
escrevesse. A irmã de Theo, dois anos mais velha, era elogiada pela mãe, na
clínica e possivelmente dentro de casa, por sua inteligência e capacidade, por
sua “normalidade”, e ela escrevia. A mãe cobrava de sua analista de que ele
também viesse a escrever, ou pelo menos um prazo, quando – na frente de
Theo – ela se sentia responsável pelo “desenvolvimento de Theo” dizia, o pai
74
era o provedor financeiro, deixava a educação dos filhos ao encargo da mãe,
na divisão de tarefas familiares.
Havia aflição e temor nessa mãe – sem limites por parte do pai, com
relação a ela – de que essa criança viesse a não escrever, embora Theo
estivesse apenas com três anos de idade, como já relatado e ainda não falasse
além de algumas palavras, em situação transferencial, nas sessões. O que nos
pareceu mais interessante naquele momento: havíamos oferecido o papel as
canetinhas, as possibilidades, essa sempre é uma boa proposta, agora
achamos por bem oferecer outros objetos, pois a escrita já era bastante
ofertada em sua casa.
Ela pode notar que esse filho estava passeando na praça com o pai
quando viu um ônibus escolar passar, que esse filho possivelmente sentiu falta
da escola em que ele estava, por que a família tinha saído em viagem em
época escolar (sempre viajam no aniversário da avó materna, o que não
coincide com férias). Ele faz um desenho que é reconhecido por essa mãe. E
75
isso muda o olhar da mãe com relação ao filho. Entendemos que Theo passou
a ter um lugar de reconhecimento. Um reconhecimento de sujeito estava
implícito naquela admiração pelo desenho. Ele tem uma memória, foi capaz de
ter uma lembrança, de representar essa lembrança. Ele é alguém que conta ali.
No momento da volta dessa viagem, em que ela nos conta essa história,
pensamos que seria interessante oferecer novamente o papel e os lápis para
Theo e talvez ele voltasse a desenhar. E assim foi. Ele voltou a desenhar e,
quando voltou a escrever, foi junto aos desenhos, e não mais naquele frenesi
de que precisava escrever alguma coisa, para mostrar para alguém.
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Utiliza também o desenho, para brincadeiras, com a participação de sua
terapeuta: ele faz o fogo, desenho casas, ele chama o bombeiro para apagar o
fogo, ou seja, o desenho tem um enredo, uma dinâmica, um espaço para
brincar, e já não nos preocupava mais que uma escrita aparecesse ali. Por
exemplo: as vezes ele fazia alguma figura representando a PeppaPig. Ele
escrevia lovePeppa, amo Peppa. Tinha um contexto e, depois, ele estava
monstrando estar atento ao entorno. A PeppaPig representava alguma coisa
para ele, ele gostava desse personagem da animação. Mas principalmente
tinha júbilo, compartilhar e comunicação.
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Freud), a criança não se enlaça com o agente cuja função é lhe transmitir a
linguagem, a cultura, o mundo.
Consideremos uma criança que não fala, ou fala por ecolalia. Como já
vimos antes, capaz de repetir palavras memorizadas. Não frases articuladas,
passíveis de transmitir sentimentos, vivências, memórias. Destacamos que
aqui Bernardino (2010) refere-se a crianças que, na clínica, não fazem
transferência com o analista:
... Por ser refratária ao agente do Outro, ao não se abrir para a relação
pulsional que a introduziria no campo da libido, ao não se deixar
investir pelo representante do Outro (ou não ser investida por este) e
consequentemente, não se deixar tomar em um primeiro momento
como objeto que suscitaria o gozo do outro, a criança autista fica fora
da dialética da demanda e do desejo”.
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propagandas, mesmo que não saibam ler o que escreveram ou nem entendam
o que essas palavras queiram dizer (Bernardino, 2010): “... nesse caso, sofrem
uma intrusão desses significantes, são muito mais capturadas por esses
significantes do que fazem uso deles”.
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Angela Vorcaro (2008), em “O brincar como operação de escrita” nos
lembra de que em toda a obra freudiana, o brincar tem função decisiva de
repetir e elaborar a vivência, o vivido. Destaca a autora que Freud colecionou
episódios do brincar, fazendo-nos interrogar sobre sua função e dando a eles
um lugar, numa série substitutiva: a mesma que conjuga a alucinação de
satisfação, o pensamento, a fantasia, o devaneio, o sonho, o chiste”.
Manifestações que teriam em comum, no dizer de Freud, o fato de fazerem
vigorar, por deslocamentos substitutos, a realização de desejos. Atribuindo ao
brincar o mesmo caráter do sonho, “no que ele tem de ciframento da
experiência, ou seja, de construção de um dialeto inconsciente, pela criança.”
80
Imagens
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Primeiro desenho após o reconhecimento do sujeito
pela mãe.
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Serie ônibus, volta ao desenho após viagem em que
seu desenho foi reconhecido.
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Quando começa o furor da escrita:
Theo calcula mentalmente o número e linhas que precisa
ser igual ao número de pessoas.
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No quarto semestre Theo desenhava e construía
cidades inteiras. Carrinhos andavam por suas
estradas desenhadas.
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Desenho conta história: alguém vai para o
hospital.
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Começo da escrita, rabiscos.
87
Theo transpõe para o desenho seu ponto
de vista do posto em que gostava de
brincar.
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Toda a família de carrinhos, mas tem um
lugar vazio. É o dia em que a terapeuta
anuncia que precisa ir embora.
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Análise do caso clínico e discussão
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repertório mental memorizado. Maleval (2010) chama a atenção para o silêncio
obstinado, em que o autista fala, sem tomar a posição de enunciador, falando,
mas sem nada dizer. Theo começou a falar, aos poucos, uma palavra aqui e
outra ali. Em geral, falava palavras dentro de um contexto, mas sem timbre,
sem entonação, sem expressão do afeto. Um júbilo podia se deixar aparecer,
esporadicamente.
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uma escrita mais prazerosa, fazendo parte da brincadeira, mais apaziguada e
menos excessiva.
Maleval (2010) fala, ainda, do retorno do gozo da borda, que pode ser
constituída por três elementos: o objeto autístico, o duplo e a ilhota de
competência. Servem para localizar o gozo do sujeito, como fronteira erguida, e
tornar o seu mundo particular seguro, tendo como referência o objeto que lhe
serve de proteção. Se o mundo externo lhe parece incoerente e angustiante, o
mundo interno pode ser mais seguro e imutável.
Quando Theo ainda tirava a minha mão no chão, para que eu não
pegasse no postinho, ou não tentasse brincar junto, esse mesmo Theo já
92
estava desenhando comigo. É interessante perceber por que há consentimento
em um plano da sala – em cima da mesa –, mas não em outro, no chão. Talvez
esses diferentes planos e superfícies não sejam o mais importante, mas sim
aquilo que é feito ali. Mexer em um carrinho era talvez alguma coisa que Theo
usava para se proteger, sua armadura para os momentos difíceis. Não era
apenas uma brincadeira ali. Mas, na mesa, onde havia dois lugares, um para
cada um, Theo podia já mostrar um outro lado, não falante, mas muito mais
conversador.
Hoje, Theo pode dizer de si. Não porque tenha aprendido a falar mais
palavras, como um bebê, mas já sabia. O que amplie seu campo de linguagem
e forma de fazer laço. Hoje, Theo é capaz de entender as metáforas de um
livro. Ainda assim, tem traços que são dessa estrutura, que não é neurótica
nem psicótica, mas muito provavelmente aquilo que chamam de pós-autista.
Jean Claude Maleval (2015), em seu texto “Por que a hipótese de uma
estrutura autística?”, afirma que não se deve desconsiderar os interesses
específicos, desrespeitar o objeto autístico ou, ainda, desconhecer as
proteções que os autistas elaboram contra a angústia. Enquanto o psicótico
tentaria compor com um gozo rejeitado que lhe retorna do exterior, pelos
perseguidores e alucinações, o autista vai se esforçar na retenção de um gozo
dominado por uma borda, o que deve ser tomado em consideração estratégia
defensiva diferente. Esta foi uma orientação fundamental no tratamento de
Theo, que levou em conta as suas estratégias e invenções, ao longo do
tratamento. E o seu consentimento.
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em relação à angústia, que está no princípio das dificuldades de muitos
autistas. Foi visível, na condução do tratamento, o quanto ocorreu de um
apaziguamento progressivo da angústia de Theo, que deu lugar às suas
pequenas invenções (tocar instrumentos, fazer desenhos interativos, começar
a brincar mais livremente, usando a imaginação). A autossatisfação inicial dá
lugar a um compartilhamento possível. Embora muitas dificuldades
permaneçam, houve um deslocamento e novas expressões criativas.
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6. Considerações finais
95
Se não se encontram as mesmas áreas cerebralmente afetadas em
cada criança com suspeita, risco ou já com o autismo instalado, como chegar a
uma compreensão mínima do que sente e pensa o autista, para considerarmos
uma estratégia de tratamento? Pensamos que um material vasto de ofertas
para o expressar-se é uma das respostas possíveis. Uma vez que, ao longo do
trabalho de pesquisa, junto ao paciente e só depois, durante esta escrita,
pudemos compreender que se trata muito menos de não querer comunicar-se
do que falar.
96
Marie Christine Lasnik aqui no Brasil, em diferentes ocasiões, em que ela frisa
com relação aos bebês que é preciso fazer com a própria voz um "manhês"
com picos prosódicos melodiosos, pois os bebês se animam com esse
movimento sonoro, mas é preciso fazer com o fundo da alma, das entranhas,
esse chamamento ao sujeito, senão o bebê, a criança, percebe que é
superficial e não se deixa capturar.
Devemos escutá-los, é o que nos propõe, uma vez que a ciência ainda
está distante de encontrar respostas conclusivas. E talvez a resposta esteja em
outro lugar, menos estatístico, menos exato, mais paciente e disponível à uma
escuta respeitosa e ampliada.
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Eu não sou nenhum coitado
Apenas diferente
E estou determinado
A lutar por muita gente
Autistar é resistir
É por nossa identidade
Pelo direito de existir
E de viver em comunidade
100
7. Referências bibliográficas
101
DOLTO, Françoise. As imagens inconscientes do corpo. São Paulo:
Perspectiva, 2015.
KUPFER, Maria Cristina Machado. Lugar de Vida, vinte anos depois. São
Paulo: Escuta, 2010.
102
. O que os bebês provocam nos psicanalistas? (Autismo, uma
estrutura decidida?). São Paulo: Escuta, 2008.
103
. Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1969-70/1992.
104
LERNER, Ana Beatriz Coutinho. A escrita e a psicose da criança: uma proposta
de tratamento. Lugar de Vida vinte anos depois. São Paulo: Escuta, 2010.
NASIO, Juan-David. Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2009.
PAULA SOUZA, Luiz Augusto de. Linguagem, corpo, alteridade. [Texto apresentado no
“Colóquio transdisciplinar sobre autismo e psicose” promovido pelo Instituto Langage –
institutolangage.com.br – em 23 e 24/08/2019 na cidade de São Paulo]
106
. Palestra na Clínica Lugar de Vida, 2019 [informação verbal].
Matérias, links:
file:///C:/Users/lindo/OneDrive/Imagens/LEDA%20BERNARDINO%20MAIS%20
ALEM%20DO%20AUTISMO.pdf
file:///C:/Users/lindo/OneDrive/Imagens/LEDA%20BERNARDINO%20MAIS%20
ALEM%20DO%20AUTISMO.pdf
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