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Intensivão de Advento e Natal – Novembro de 2023

Material complementar
Ana Flávia Basso – Educar com Histórias

João, o felizardo - Conto dos irmãos Grimm com


atmosfera natalina

João serviu por sete anos a seu patrão e depois lhe disse:
– Senhor, meu prazo terminou, e eu agora gostaria de voltar para a casa de minha
mãe. Dai-me o meu salário.
O patrão respondeu:
– Tu me serviste fiel e honestamente; assim como foi o serviço, também deve ser o
salário.
E deu-lhe uma peça de ouro que era do tamanho da cabeça de João. João tirou seu
lenço do bolso, enrolou nele o ouro, colocou-o ao ombro e se pôs a caminho de casa. E
ia ele assim andando, pondo sempre uma perna adiante da outra, quando surgiu a
seus olhos um cavaleiro bem-disposto e alegre montado num cavalo cheio de vida, que
vinha a trote.
– Ah! – disse João, bem alto – Que bela coisa é cavalgar! Vai-se sentado como numa
cadeira, não se tropeça em nenhuma pedra, economiza-se o sapato e vai-se para
frente sem nem saber como.
O cavaleiro, que o ouvira, parou e gritou:
– Eh, João! Por que andas a pé?
– Não há outro jeito – respondeu ele – pois tenho de carregar este bloco para casa. É
certo que é de ouro, mas eu nem posso manter a cabeça reta e, além disso, ele me
comprime o ombro.
– Sabes de uma coisa? – disse o cavaleiro – Façamos uma troca: eu te dou o meu
cavalo, e tu me dás o teu bloco de ouro.
– Com todo o prazer, – disse João – mas eu vos previno que tereis de carregá-lo.
João ficou radiante de felicidade quando se viu em cima do cavalo e, livre e
desimpedido, foi por ali afora. Depois de algum tempo, ocorreu-lhe que podia ir ainda
mais depressa, e começou a estalar a língua e a gritar: “Upa, upa!”
O cavalo se lançou num trote mais forte, e João, antes que se apercebesse, foi jogado
da sela e caiu num valo que separava os campos da estrada. O cavalo teria mesmo
disparado se não fosse detido por um camponês, que vinha pelo caminho conduzindo
à sua frente uma vaca. João juntou seus ossos e se pôs de novo em pé. Ele estava,
porém, aborrecido e disse ao camponês:
– É uma brincadeira sem graça andar a cavalo, sobretudo montando um matungo
como este, que nos sacode e derruba de modo a nos poder quebrar o pescoço; não
monto mais, nem agora nem nunca. Por isso é que admiro a vossa vaca, que pode ser
conduzida com sossego e que, além disso, dá-nos, seguramente, manteiga e queijo
todo dia. Que não daria eu para ter uma vaca como esta!
– Ora, – disse o camponês – se te agrada tanto, eu bem que gostaria de trocar contigo
a vaca pelo cavalo.
João concordou, radiante de alegria, e o camponês saltou sobre o cavalo e foi-se
embora depressa.
João foi conduzindo sossegado a vaca à sua frente, pensando no bom negócio que
fizera: “Vamos que eu tenha só um pedaço de pão (e isso não me faltará); então,
sempre que eu desejar, posso comê-lo acrescentando manteiga e queijo. Se tenho
sede, é só ordenhar minha vaca e beber o leite. Ó meu coração, que mais podes
desejar?”
Chegando a uma estalagem, ele parou, comeu com grande alegria tudo o que trazia
consigo, seu almoço e seu jantar todinho e, com suas últimas moedas, se fez servir de
um copo de cerveja. Depois, continuou conduzindo sua vaca, sempre em direção à
aldeia de sua mãe.
O calor se tornava cada vez mais abafado à medida que se aproximava o meio-dia, e
João se achava numa charneca que ele ainda levaria uma hora para atravessar.
Começou então a sentir muito calor e, de tanta sede, sua língua se colou no céu da
boca. “Para isso há remédio”, pensou, “vou agora ordenhar minha vaca e me refrescar
com seu leite”. Ele a amarrou numa árvore seca e, como não tinha balde, pegou seu
boné de couro como vasilha; mas, apesar de seus esforços, não aparecia uma só gota
de leite. E, como ele ordenhasse com muita falta de jeito, o impaciente animal acabou
por lhe dar um tal coice na cabeça com uma das patas traseiras, que ele cambaleou e
foi ao chão, ficando por algum tempo sem saber onde estava. Por sorte, vinha vindo
pelo caminho um açougueiro, que levava um porquinho num carrinho de mão.
– Que artes são essas? – exclamou ele, ajudando o bom João a se levantar.
João contou o que se passara. O açougueiro lhe estendeu sua garrafa e disse:
– Toma um trago e restaura tuas forças. A vaca não quer mais dar leite, é velha; só
serve como animal de tração e para o corte.
– Ora, ora… – disse João, alisando o cabelo – quem havia de pensar? Não há dúvida
que é bom quando se pode abater um animal desses em casa; quanta carne não dá!
Mas eu não faço caso de carne de vaca, não é bastante suculenta para mim. Ah, se eu
tivesse um porquinho como este… Tem outro gosto e ainda dá salsichas.
– Ouve, João. – disse o açougueiro – Para te agradar, quero fazer uma troca e te deixar
o porco no lugar da vaca.
– Deus vos pague pela vossa bondade – disse João. E, entregando-lhe a vaca, deixou
que o outro tirasse o porquinho do carrinho e lhe pusesse na mão a corda que o atava.
João seguiu seu caminho pensando em como tudo corria conforme seus desejos;
assim, se lhe ocorria um aborrecimento, imediatamente era remediado. Logo, juntou-
se a ele um moço que trazia debaixo do braço um belo ganso branco. Eles se
cumprimentaram, e João começou a falar de sua sorte e de como suas trocas lhe
tinham sido sempre vantajosas. O moço contou que levava o ganso para uma festa de
batizado.
– Segura-o um pouco, – continuou ele, pegando-o pelas asas – vê como é pesado; mas,
também, esteve na engorda durante oito semanas. Quem o comer assado vai precisar
enxugar a gordura dos dois cantos da boca.
– Sim, – disse João, e ergueu-o com uma das mãos – ele tem lá seu peso, mas meu
porco também não é dos mais leves.
Entretanto, o moço olhava cautelosamente para todos os lados e ainda sacudia a
cabeça.
– Escuta-me, – começou ele a dizer em seguida – há algo errado com teu porco. Na
aldeia de onde vim, foi roubado um do chiqueiro do prefeito. Receio… receio que seja
esse que levas pela mão. Já mandaram gente à sua procura, e seria um péssimo
negócio se te apanhassem com ele. No mínimo te meteriam num escuro cárcere.

O bom João ficou com medo.


– Ai, meu Deus! – disse ele – Ajudai-me a sair desta dificuldade, já que conheceis
melhor estas redondezas; levai meu porco e dai-me vosso ganso.
– Vou ter de correr algum risco, – respondeu o moço – mas não quero ser culpado pela
tua desgraça.
Assim, tomou ele a corda pela mão e puxou depressa o porco para um atalho. O bom
João, livre de suas preocupações, pôs-se então a caminho de sua aldeia natal, com o
ganso debaixo do braço. “Se eu pensar bem”, disse ele falando consigo mesmo, “ainda
saí ganhando com a troca: em primeiro lugar, um bom assado; depois, a quantidade de
gordura que sobrar, ah… isso dará pão com gordura de ganso por três meses; e,
finalmente, as lindas penas brancas com que vou encher meu travesseiro, sobre o qual
dormirei sem precisar ser embalado. Que alegria terá minha mãe!”
Ao passar pelo último povoado, estava lá um amolador de tesouras com seu carrinho.
Sua roda ronronava, e ele ainda cantava:
– Afio tesouras todo o tempo.
Rápido a roda eu movimento
e penduro a casaquinha conforme o vento.
João ficou parado olhando para ele e finalmente o interpelou:
– As coisas caminham bem para vós, pois estais a afiar tão alegremente.
– Sim, – respondeu o amolador – todo ofício tem moedas no fundo. Um bom amolador
é um homem que, cada vez que mete a mão no bolso, encontra dinheiro. Mas, onde
compraste esse lindo ganso?

– Eu não o comprei, apenas troquei pelo meu porco.


– E o porco?
– Esse eu obtive em troca de uma vaca.
– E a vaca?
– Recebi em troca de um cavalo.

– E o cavalo?
– Dei por ele um bloco de ouro do tamanho de minha cabeça.
– E o ouro?
– Ora, esse foi o meu salário por sete anos de serviço.
– Em qualquer situação tu te saíste muito bem. – disse o amolador – E agora, se
conseguires ouvir as moedas tilintando no bolso ao te levantares, tua vida estará feita.
– E o que devo fazer para isso? – perguntou João.
– Terás de ser um amolador como eu; para tanto não é necessário mais do que uma
pedra de amolar, o resto virá por si. Eu tenho uma, que na verdade está um pouco
estragada, mas em compensação terás de dar por ela apenas o teu ganso. Estás de
acordo?
– Ainda tendes de perguntar? – respondeu João – Serei o homem mais feliz sobre a
face da terra; se eu tiver dinheiro toda vez que meter a mão no bolso, que mais posso
desejar?
E passou para ele o ganso e recebeu a pedra de amolar.
– E agora – disse o amolador, e apanhou uma pedra comum, pesada, que estava a seu
lado no chão – aqui tens mais uma ótima pedra sobre a qual pode-se bater bem e
endireitar pregos velhos. Pega-a e guarda-a com cuidado.
João pegou a pedra e continuou a caminhar com seu coração cheio de alegria; seus
olhos luziam de felicidade.
– Devo ter nascido empelicado. – exclamou – Tudo que desejo vem ao meu encontro
como se eu fosse uma criança que nasce num domingo.
Entretanto, como estava a pé desde que raiara o dia, começou a ficar cansado; a fome
também o atormentava, pois já havia comido todas as suas provisões de uma vez só,
na alegria de ter negociado a vaca. Por fim, só com esforço é que prosseguia e
necessitava parar a todo instante; além disso, as pedras lhe pesavam demais. Não
pôde então deixar de pensar o quanto seria bom se já não precisasse mais carregá-las.
Como um caracol, vagarosamente ele chegou até um poço e quis descansar e matar a
sede com um gole de água fresca.
Porém, para não danificar as pedras ao se sentar, colocou-as cuidadosamente a seu
lado, na beirada do poço. Em seguida, sentou-se e ia inclinar-se para beber quando,
sem querer, esbarrou ligeiramente nelas, e ambas caíram n’água. João, vendo com
seus próprios olhos as pedras irem ao fundo, pulou de alegria, ajoelhou-se e agradeceu
a Deus, com lágrimas nos olhos, por lhe ter ainda concedido mais essa graça, de livrá-lo
das pesadas pedras, sem que tivesse de que se recriminar, pois só elas lhe estavam
estorvando.
– Não há homem algum debaixo do sol – exclamou ele – que seja tão afortunado
quanto eu.
E então, despreocupado e livre de toda carga, ele deitou a correr, até que chegou de
volta à casa e foi para junto de sua mãe.

(tradução de Renate Kaufmann e revisão de Ruth Salles)

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