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D.U.F
Sinopse
Não sabia, mas foi nosso último encontro, até restarem somente as lembranças
nos álbuns de fotografia e o cheiro pelo quarto. Podia vê-lo sentado sobre a cama,
idealizando projetos, em pé ao lado de seu mural de fotos e na janela admirando a
vista privilegiada que possuía. Quando mudamos de casa o invejava por ter escolhido
o melhor quarto, com a vista mais fantástica de um pôr do sol em todo fim de tarde.
Depois entendi que o quarto era sua identidade e não tinha como me pertencer de
maneira alguma, pois em nenhum fim de tarde eu estava em casa. Após sua partida
tomei a liberdade de me sentar numa cadeira e ficar ali fitando o sol se pôr. Ele tinha
razão ao dizer o quanto ficar ali trazia inspiração e calmaria. Augusto foi o melhor
irmão que eu poderia ter!
Podia ver suas digitais em cada móvel da casa e era como se sua risada ainda
ecoasse pelos cômodos. Ele tinha um jeito brilhante de encarar a vida, uma forma
totalmente aversa de como eu via as coisas. Nossas diferenças eram gritantes, meus
pés sempre no chão, ele todo sonhador, eu mais materialista e ele o desapegado.
Um vírus levou meu irmão e o fez virar estatística no meio de tantas pessoas
que eu não conhecia. Até Gus ser colocado como um número não me afetava
diretamente, lamentava sim as perdas, mas se tornou tão comum que parecia normal
aquele número crescente todos os dias. Todas tinham algo em comum.
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Me perguntava o porquê de o homem cheio de planos ter sido nos arrancado
assim, tão jovem, tão prematuramente. Direcionava essa indagação a minha mãe, mas
ela parecia aceitar melhor que eu, ou apenas fingia bem. Semelhante ao meu irmão, eu
também fazia planos, contudo, minha prioridade sempre foi estabilizar minha carreira
e depois pensar nessa outra etapa.
— Boa tarde, eu falo com Augusto? — Uma voz masculina e grave falou do
outro lado.
— Eu sou o Murilo — falei prontamente, sem deglutir direito tudo o que ouvi.
Me custava processar a informação de uma vez.
— Ah, ótimo, e como você deseja proceder? Infelizmente não temos como
fazer a devolução do dinheiro, a viagem é amanhã e liguei apenas para fazer a
confirmação do hotel.
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Queria dar uns três tipos de surtos e argumentar que isso não era possível.
Ouvia o teclar do computador e a voz do homem, no entanto, eu não compreendia
nada. Era como se minha mente tivesse bagunçada.
— É brincadeira, não é?
Não era uma piada. Eu desliguei na cara do tal John depois de mentir que
estava em um trânsito horrível. Augusto comprou um pacote aleatório por países que
nem pensava em visitar por enquanto. Graças à medicina nossa vida tinha voltado ao
normal há dois meses, ainda me habituava a sair de casa todos os dias, me custava
voltar a ser mais sociável e, sair do país seria fora de cogitação no meio de uma
recuperação econômica pós-pandemia.
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— Não foi essa a educação que te dei, Murilo — reclamou ela, parecendo
brava. — Primeiro a gente bate, depois cumprimenta e por último faz perguntas.
Antes que eu pudesse me desculpar ela solta uma gargalhada, cruza os braços
olhando-me com sarcasmo e diz:
— Estava ansiosa por esse dia! — Ela estava empolgada? — Essa agência
demorou demais para ligar. Gus precisava ver sua cara nesse momento, é impagável!
— Riu, levantando-se de sua cadeira.
— Não tem graça, mãe! — Protestei, passando a mão por meus cabelos ainda
úmidos.
Meu sentimento era de uma pessoa traída. Se meu irmão estivesse vivo
provavelmente o esmurraria.
— Lembra quando falavam que tinham o sonho de conhecer uma ilha? Você
dizia que queria escalar uma montanha, conhecer lugares altos, paisagens bonitas.
Apenas se esqueceu no meio de tanto trabalho, tanta dedicação a esse escritório — faz
menção para o ambiente onde estamos. — Chegou a hora de realizar seus sonhos!
Eu não parava para pensar tanto nos meus sonhos, no entanto, me recordava de
ter o desejo de conhecer alguns lugares. Augusto nunca se esquecia desses detalhes,
sempre viveu a vida intensamente. Jamais o invejei e, sim, me orgulhava da bela
carreira de administrador de sucesso que construiu, sendo uma pessoa sossegada e sem
se cobrar tanto. Tampouco sabia ser como ele, aliás, nem queria, e era o que nos
tornava diferentes e loucos um pelo outro.
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saber como agir — espalma suas mãos em cada lado do meu rosto, olhando-me com
ternura. — Você sempre organizou sua vida, sabe datas para tudo, não perde
compromissos, é um profissional exemplar. Construiu uma carreira impecável!
Minha mãe sempre soube bem como colocar cada palavra em seu devido lugar
e isso a tornava perfeitamente única. Me espelhei nela para arquitetar uma sólida
carreira como advogado e me orgulhava disso.
— Você é perfeito, meu amor, mas trabalho não é tudo! — Balançou a cabeça
em negação, seus olhos eram os mais compreensivos do mundo. — Seu irmão gostaria
que vivesse mais a vida, foi por isso que quis fazer uma viagem surpresa contigo. Ele
ficaria muito triste se você não fosse!
Queria ter lhe dado razão, porém estava travando uma discussão interna com
meu eu. Dificilmente me dava conta desse aspecto, para mim estava bom sair para
beber com amigos aos finais de semana e, vez ou outra fazer uma viagem de negócios.
Fazia sentido ser uma pessoa comum e estava bom ter uma vida organizada e
planejada minuciosamente. Estar bom não é sinônimo de felicidade. Desfrutava
apenas de uma vida cômoda.
Nesse dia não consegui trabalhar direito, acredito até que ganhei alguns fios de
cabelos brancos. Necessitava buscar nos objetos de Augusto alguma coisa para me
fazer acreditar que ele estava plenamente lúcido quando resolveu planejar uma
viagem. Admirei um porta-retrato em seu quarto, papai ainda estava vivo, eu usava
cabelo comprido meio punk e Augusto fazia o tipo adolescente intelectual com seus
óculos quadrados. Nessa fase, sonhava em ter uma banda de rock e viajar o mundo
cantando, e meu irmão dizia que seria meu produtor musical. Ponto importante: não
sabíamos tocar nenhum instrumento e muito menos cantar.
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Entre livros e cadernos acabei encontrando uma agenda dentro de uma gaveta,
repleta de anotações e desenhos toscos. Augusto gostava disso de escrever tudo, dizia
que era uma forma de suas ideias nunca morrerem. Ele era um colecionador de
pequenas coisas, grande amante de detalhes e incontáveis histórias. O que vi pareceria
no mínimo bizarro, mas era a cara dele fazer caricaturas nossas e encaixá-las em
diferentes paisagens. Ria a cada desenho, éramos nós com as cabeças fora da janela de
um avião, em outra, estávamos no topo de uma montanha, na seguinte, em uma ilha
rodeados de bananeiras e coqueiros, mais adiante sentados e bebendo em cadeiras
numa praia. Meu irmão realmente sonhava com tudo isso e curiosamente me senti
feliz ao invés de triste ao ler cada besteira, pois ele permanecia vivo naqueles
desenhos e em cada linha escrita.
Na conversa em que tivemos no hospital, da qual eu não sabia ser a última, ele
me disse a mesma frase que acabara de ler em sua agenda:
Como tinha dormido o voo todo, fiquei muito descansado e pronto para
aproveitar meu primeiro passeio.
— Uau! Você tem muita coragem de fazer uma viagem sozinho! — O menino
moreno e de olhar curioso falou após ter me feito uma dúzia de perguntas. Ele não era
americano, dava para notar um sotaque em seu inglês.
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— Pois é — concordei, embora não pensasse que fosse um ato de bravura. —
E você veio com quem? — Perguntei para não parecer desinteressado. O Senhor
Curioso devia ter uns doze anos.
— Eu moro aqui, meu pai é esse que está dirigindo — apontou para o
simpático motorista. — Serei o guia de vocês na ilha! — Minha expressão foi no
mínimo incrédula. O povo filipino havia me surpreendido em poucos minutos.
— Você tem cara de quem gosta de aventuras, tenho certeza que vai gostar das
lagoas secretas e dos corais — me observou e sorriu.
Pude notar o quão observador parecia e constatei que era verdade. Ao dar de
cara com toda a paisagem ao meu redor foi impossível não sentir a magia. Nunca tive
contato com uma visão única da natureza até estar nas Filipinas. Ilhado e nadando em
um mar azul esverdeado senti que, sim, o mundo era muito maior se comparado ao
espaço onde me encontrava. Pude concluir que desejava explorar mais desse planeta
terra.
A caverna que ele se referia foi a que visitamos minutos antes do almoço. Fiz
um mergulho inesquecível lá, sendo contemplado por uma vida marinha formidável e
com corais de diferentes formas e cores.
— Ela morreu alguns dias depois de pegar o vírus — ele continuou —, já Noah
e eu nos curamos rapidamente. Ela costumava dizer que mesmo se um dia morresse,
suas memórias continuariam vivas em cada pessoa que passou por aqui e a conheceu.
— Por isso digo a todo mundo que vem conhecer esse paraíso que ninguém
sairá igual como entrou e que isso se reflete na forma em como vemos o mundo e em
como ele nos vê.
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Sua fala denotava uma sabedoria por trás dos cabelos grisalhos e absorvi cada
uma de suas frases. Ninguém nunca será o mesmo depois de uma pandemia, depois de
uma viagem, ou de um grande acontecimento, e eu me tornava a prova disso. Frank
além de motorista era um contador de histórias, e Noah, um inteligente conhecedor de
sua terra e cultura.
Chegar em Berlim foi como me trazer de volta às populações urbanas, após ter
passado dias numa ilha, absorvendo a cultura de um povo simples e que carrega uma
história extremamente rica. As pessoas na Alemanha, que não eram viajantes,
pareciam iguais as que conhecia no Brasil: todos apressados e preocupados com os
problemas do dia a dia, fechados em seus carros e outros presos na tela de um
smartphone. Poucos se atreviam a olhar para o lado e sorrir para um desconhecido, dar
um bom dia ou apenas ser cordial no trânsito. Descobri que por muito tempo agi
assim. Ouvia em conferências que as pessoas se tornariam mais amáveis e menos
soberbas depois que o isolamento acabasse, no fundo sempre acreditei que a mudança
que gostaria de ver devesse sempre partir de nós mesmos. Passei a usar essa verdade
ativamente, ainda que não recebesse um retorno e entendi que minha mudança estava
sendo de dentro para fora.
Escolhi jantar na Torre de TV, um ponto muito famoso e que teria uma visão
bonita da cidade. A maioria das pessoas estavam em casais ou acompanhadas, todavia
isso não me intimidava de estar sozinho em uma mesa, a 207 metros do solo, em um
restaurante que girava a cada vinte minutos, nos possibilitando ver algo diferente a
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cada giro. Sentado ao lado da janela podia ver tudo tão pequeno lá embaixo e sob
nossas cabeças um céu imensamente estrelado. Novamente me deparava com um lugar
excepcional, encarado por outro panorama, distinto ao vivenciado na Ásia e que
deixava a experiência em cada lugar muito particular.
— Tenho certeza que seu irmão estaria muito orgulhoso — ela acrescenta. —
Nós estamos dando a volta ao mundo e conhecer pessoas como você, nos inspira! —
A declaração me fez sorrir e ter mais curiosidade a respeito deles. — Nós pegamos
todas as economias, porque não faz sentido guardar dinheiro sendo que podemos
morrer a qualquer momento. Sobreviver a essa doença terrível foi um sinal para
acordar e começar a viver de verdade!
— Já fomos para três países e as pessoas que nos conhecem nos chamam de
loucos — Joseph zombou. Ele já me tratava como se fossemos velhos conhecidos. —
Não ligamos, acredito que todo mundo deveria viajar um pouco quando é jovem,
assim como você, pois na nossa idade a coluna não ajuda muito — disse com humor,
enquanto bebericava uma taça de vinho. Nem de longe os achava loucos. Louco seria
eu se ainda estivesse na comodidade da minha casa.
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o que não tinha adquirido em uma vida inteira. Eu era pequeno demais, mas me
convertia um pouco maior em cada etapa concluída.
Em vinte dias longe do meu país não me sentia fora de casa, de fato descobri
ser meu próprio lar e tudo o que precisasse estaria sempre em minha posse. Já
planejava viajar para outros lugares e registrava tudo em um pequeno caderno que
havia se tornado quase um diário de bordo.
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Olhei para o céu e ao meu redor. Um cenário espetacular por entre diferentes
formatos de montanhas, neve caindo em câmera lenta. O infinito ficava bem além do
que meus olhos poderiam ser capazes de ver.
Sorri. Chorei. Berrei. Agradeci. O mundo ainda tinha muito a ser descoberto
por mim.
Podia ouvir meu grito transformado em ecos pelo espaço. Acreditava que
aonde estivesse havia me escutado.
Não realizei apenas os desejos dele, visto que acabaram se tornando os meus
também. Carecia de pouco para viver feliz e pleno. Uma mochila acabou se tornando o
abrigo dos meus sonhos e das discretas ambições que passei a ter.
— Sim, mãe, eu devo voltar para o natal, quando lhe apresentarei a Catalina —
sorri para a morena ao meu lado, da qual me apaixonei na terceira viagem ao Chile.
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No peito tatuei a famosa frase do Augusto, cito-a para todos que cruzam meu
caminho pelo mundo afora:
FIM.
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