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O COLECIONADOR DE SONHOS

D.U.F

Sinopse

Meses após perder o irmão, e o país estar em recuperação econômica, ambos


ocasionados por uma pandemia, Murilo recebe uma notícia que mudará todo o curso
de sua vida. A maneira como encara a vida e a percepção que tem do mundo o farão
tomar decisões importantes. Augusto, seu irmão, gostaria que ele vivesse a vida
intensamente e sempre deixou isso claro, mesmo após sua morte. Cumprindo um dos
últimos desejos do irmão, Murilo é impulsionado a realizar seus sonhos e a fazer
descobertas a respeito de si mesmo, deixando para trás uma vida monótona e
organizada.
O COLECIONADOR DE SONHOS

De longe, pelo vidro, tornou-se a única maneira de vê-lo. Pálido, sem


expressão, corpo inerte sobre uma cama cheia de aparelhos. Por detrás daquelas
camadas protetoras podia imaginar seu sorriso, o verde água dos seus olhos e ouvir sua
fala serena dizendo que tudo iria ficar bem. Duro não podermos nos abraçar, ou sequer
lhe dizer o quanto sentia sua falta. Presenciar a dor era muito diferente quando não era
dentro da sua própria família.

Não sabia, mas foi nosso último encontro, até restarem somente as lembranças
nos álbuns de fotografia e o cheiro pelo quarto. Podia vê-lo sentado sobre a cama,
idealizando projetos, em pé ao lado de seu mural de fotos e na janela admirando a
vista privilegiada que possuía. Quando mudamos de casa o invejava por ter escolhido
o melhor quarto, com a vista mais fantástica de um pôr do sol em todo fim de tarde.
Depois entendi que o quarto era sua identidade e não tinha como me pertencer de
maneira alguma, pois em nenhum fim de tarde eu estava em casa. Após sua partida
tomei a liberdade de me sentar numa cadeira e ficar ali fitando o sol se pôr. Ele tinha
razão ao dizer o quanto ficar ali trazia inspiração e calmaria. Augusto foi o melhor
irmão que eu poderia ter!

Podia ver suas digitais em cada móvel da casa e era como se sua risada ainda
ecoasse pelos cômodos. Ele tinha um jeito brilhante de encarar a vida, uma forma
totalmente aversa de como eu via as coisas. Nossas diferenças eram gritantes, meus
pés sempre no chão, ele todo sonhador, eu mais materialista e ele o desapegado.

Um vírus levou meu irmão e o fez virar estatística no meio de tantas pessoas
que eu não conhecia. Até Gus ser colocado como um número não me afetava
diretamente, lamentava sim as perdas, mas se tornou tão comum que parecia normal
aquele número crescente todos os dias. Todas tinham algo em comum.

Eram importantes para alguém!

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Me perguntava o porquê de o homem cheio de planos ter sido nos arrancado
assim, tão jovem, tão prematuramente. Direcionava essa indagação a minha mãe, mas
ela parecia aceitar melhor que eu, ou apenas fingia bem. Semelhante ao meu irmão, eu
também fazia planos, contudo, minha prioridade sempre foi estabilizar minha carreira
e depois pensar nessa outra etapa.

Em vinte e seis anos eu juntei dinheiro demais e sonhos de menos.

Pessoas importantes se vão e a vida segue seu percurso. Nós seguimos. As


coisas mudaram bastante desde aquela ligação para nossa casa. Hesitei em atender,
estava atrasado para uma reunião.

— Boa tarde, eu falo com Augusto? — Uma voz masculina e grave falou do
outro lado.

Meu irmão e eu tínhamos praticamente os mesmos amigos, era normal que


ligassem perguntando como eu estava, porém todos sabiam da sua morte, então era
estranho uma ligação desconhecida depois de tanto tempo.

— Não, o Augusto faleceu há nove meses. Quem gostaria? — perguntei,


alinhando meu corpo ao sofá da sala. A pessoa ficou em silêncio por alguns segundos.

— Oh, eu lamento! — Percebi seu desconforto pelo tom baixo. — Presumo


que você seja da família e preciso saber como proceder agora. Me chamo John, sou da
Rocha Viagens e Turismo, onde o Augusto adquiriu um pacote de viagem e no nosso
cadastro consta o nome de... — ele pausa e nesse meio tempo voam inúmeras dúvidas
na minha cabeça — Murilo Sanches como acompanhante.

— Eu sou o Murilo — falei prontamente, sem deglutir direito tudo o que ouvi.
Me custava processar a informação de uma vez.

— Ah, ótimo, e como você deseja proceder? Infelizmente não temos como
fazer a devolução do dinheiro, a viagem é amanhã e liguei apenas para fazer a
confirmação do hotel.

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Queria dar uns três tipos de surtos e argumentar que isso não era possível.
Ouvia o teclar do computador e a voz do homem, no entanto, eu não compreendia
nada. Era como se minha mente tivesse bagunçada.

— Murilo? Você está aí?

— Sim, estou — consegui pronunciar.

— Você pode escolher um novo acompanhante, só precisa me passar os dados.

A frase me deixou incomodado. Embora eu não fosse à viagem alguma, não


me agradava ouvir que meu irmão poderia ser substituído. Não ligava para o dinheiro
que seria perdido, mas me perguntava como Augusto marcou uma viagem com tanta
antecedência sem nunca me dizer nada. Não era nenhuma data comemorativa, nem
meu aniversário. Definitivamente não havia motivo para fazer uma viagem nesse
momento.

— E para onde é essa viagem?

A pergunta era apenas por curiosidade, Augusto costumava ser peculiar em


suas escolhas e poderia apostar que ele havia ido a essa agência bêbado e não se
lembrou de nada depois.

— Alemanha, Filipinas, Chile e Argentina — ele respondeu. Fiquei


boquiaberto.

— É brincadeira, não é?

Não era uma piada. Eu desliguei na cara do tal John depois de mentir que
estava em um trânsito horrível. Augusto comprou um pacote aleatório por países que
nem pensava em visitar por enquanto. Graças à medicina nossa vida tinha voltado ao
normal há dois meses, ainda me habituava a sair de casa todos os dias, me custava
voltar a ser mais sociável e, sair do país seria fora de cogitação no meio de uma
recuperação econômica pós-pandemia.

— Mãe, a senhora sabia dessa viagem que o Augusto programou? — Foi a


primeira pergunta que fiz ao abrir a porta da sua sala. Nós tínhamos um escritório de
advocacia juntos. — Ele só podia estar louco! — Emendei.

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— Não foi essa a educação que te dei, Murilo — reclamou ela, parecendo
brava. — Primeiro a gente bate, depois cumprimenta e por último faz perguntas.

Antes que eu pudesse me desculpar ela solta uma gargalhada, cruza os braços
olhando-me com sarcasmo e diz:

— Estava ansiosa por esse dia! — Ela estava empolgada? — Essa agência
demorou demais para ligar. Gus precisava ver sua cara nesse momento, é impagável!
— Riu, levantando-se de sua cadeira.

— Não tem graça, mãe! — Protestei, passando a mão por meus cabelos ainda
úmidos.

Meu sentimento era de uma pessoa traída. Se meu irmão estivesse vivo
provavelmente o esmurraria.

— Augusto queria muito fazer essa viagem e você também...

— Eu não! — Interrompi-a. — Ele foi um sem noção tramando isso.

— Lembra quando falavam que tinham o sonho de conhecer uma ilha? Você
dizia que queria escalar uma montanha, conhecer lugares altos, paisagens bonitas.
Apenas se esqueceu no meio de tanto trabalho, tanta dedicação a esse escritório — faz
menção para o ambiente onde estamos. — Chegou a hora de realizar seus sonhos!

Eu não parava para pensar tanto nos meus sonhos, no entanto, me recordava de
ter o desejo de conhecer alguns lugares. Augusto nunca se esquecia desses detalhes,
sempre viveu a vida intensamente. Jamais o invejei e, sim, me orgulhava da bela
carreira de administrador de sucesso que construiu, sendo uma pessoa sossegada e sem
se cobrar tanto. Tampouco sabia ser como ele, aliás, nem queria, e era o que nos
tornava diferentes e loucos um pelo outro.

— Mas, mãe, a viagem é amanhã!! — Arregalei os olhos, enquanto ela dava


voltas despreocupadas ao redor de sua mesa. — Têm inúmeros clientes para atender,
coisas para redigir...

— E daí? — Foi a vez de ela me interromper. — Era essa a reação que


desejava ver em você, de não ter tudo no controle, de temer o desconhecido, de não

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saber como agir — espalma suas mãos em cada lado do meu rosto, olhando-me com
ternura. — Você sempre organizou sua vida, sabe datas para tudo, não perde
compromissos, é um profissional exemplar. Construiu uma carreira impecável!

Minha mãe sempre soube bem como colocar cada palavra em seu devido lugar
e isso a tornava perfeitamente única. Me espelhei nela para arquitetar uma sólida
carreira como advogado e me orgulhava disso.

— Você é perfeito, meu amor, mas trabalho não é tudo! — Balançou a cabeça
em negação, seus olhos eram os mais compreensivos do mundo. — Seu irmão gostaria
que vivesse mais a vida, foi por isso que quis fazer uma viagem surpresa contigo. Ele
ficaria muito triste se você não fosse!

Queria ter lhe dado razão, porém estava travando uma discussão interna com
meu eu. Dificilmente me dava conta desse aspecto, para mim estava bom sair para
beber com amigos aos finais de semana e, vez ou outra fazer uma viagem de negócios.
Fazia sentido ser uma pessoa comum e estava bom ter uma vida organizada e
planejada minuciosamente. Estar bom não é sinônimo de felicidade. Desfrutava
apenas de uma vida cômoda.

Comecei a buscar o propósito de uma viagem, mesmo na incerteza, indaguei se


minha mãe iria comigo, recebendo um não bem grande como resposta, juntamente da
frase: “Você precisa fazer essa viagem sozinho!”. Não se assemelhava ao meu estilo
viajar sozinho, não ter com quem conversar e poder dividir os momentos. Outro
detalhe importante seria deixar todos os compromissos para trás e passar trinta dias
fora da minha realidade. Minha genitora enxergava solução para qualquer empecilho
que eu colocava e afirmou cuidar de tudo na minha ausência.

Nesse dia não consegui trabalhar direito, acredito até que ganhei alguns fios de
cabelos brancos. Necessitava buscar nos objetos de Augusto alguma coisa para me
fazer acreditar que ele estava plenamente lúcido quando resolveu planejar uma
viagem. Admirei um porta-retrato em seu quarto, papai ainda estava vivo, eu usava
cabelo comprido meio punk e Augusto fazia o tipo adolescente intelectual com seus
óculos quadrados. Nessa fase, sonhava em ter uma banda de rock e viajar o mundo
cantando, e meu irmão dizia que seria meu produtor musical. Ponto importante: não
sabíamos tocar nenhum instrumento e muito menos cantar.

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Entre livros e cadernos acabei encontrando uma agenda dentro de uma gaveta,
repleta de anotações e desenhos toscos. Augusto gostava disso de escrever tudo, dizia
que era uma forma de suas ideias nunca morrerem. Ele era um colecionador de
pequenas coisas, grande amante de detalhes e incontáveis histórias. O que vi pareceria
no mínimo bizarro, mas era a cara dele fazer caricaturas nossas e encaixá-las em
diferentes paisagens. Ria a cada desenho, éramos nós com as cabeças fora da janela de
um avião, em outra, estávamos no topo de uma montanha, na seguinte, em uma ilha
rodeados de bananeiras e coqueiros, mais adiante sentados e bebendo em cadeiras
numa praia. Meu irmão realmente sonhava com tudo isso e curiosamente me senti
feliz ao invés de triste ao ler cada besteira, pois ele permanecia vivo naqueles
desenhos e em cada linha escrita.

E se eu fosse e voltasse alguns dias depois? Parecia sensato! Não me sentiria


culpado por desapontar meu irmão e sairia alguns dias da minha zona de conforto.

Na conversa em que tivemos no hospital, da qual eu não sabia ser a última, ele
me disse a mesma frase que acabara de ler em sua agenda:

“Celebre a vida! Somos feitos de pequenos instantes!”

Augusto tinha uma história e eu iria memorá-la na forma de realizar os seus


sonhos. Abandonei os ternos, sapatos sociais e disse até breve para a minha vida
corriqueira. Carregava uma mala de mão, uma mochila e várias sensações esquisitas.
O desconhecido ainda me causava medo, entretanto esperava que depois da viagem eu
não fosse mais o mesmo. E não fui.

Como tinha dormido o voo todo, fiquei muito descansado e pronto para
aproveitar meu primeiro passeio.

— No que você me meteu, Augusto — sussurrei ao me ver dentro de uma van


cheia de pessoas e uma criança tagarelando ao meu lado.

— Uau! Você tem muita coragem de fazer uma viagem sozinho! — O menino
moreno e de olhar curioso falou após ter me feito uma dúzia de perguntas. Ele não era
americano, dava para notar um sotaque em seu inglês.

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— Pois é — concordei, embora não pensasse que fosse um ato de bravura. —
E você veio com quem? — Perguntei para não parecer desinteressado. O Senhor
Curioso devia ter uns doze anos.

— Eu moro aqui, meu pai é esse que está dirigindo — apontou para o
simpático motorista. — Serei o guia de vocês na ilha! — Minha expressão foi no
mínimo incrédula. O povo filipino havia me surpreendido em poucos minutos.

— Você tem cara de quem gosta de aventuras, tenho certeza que vai gostar das
lagoas secretas e dos corais — me observou e sorriu.

Pude notar o quão observador parecia e constatei que era verdade. Ao dar de
cara com toda a paisagem ao meu redor foi impossível não sentir a magia. Nunca tive
contato com uma visão única da natureza até estar nas Filipinas. Ilhado e nadando em
um mar azul esverdeado senti que, sim, o mundo era muito maior se comparado ao
espaço onde me encontrava. Pude concluir que desejava explorar mais desse planeta
terra.

— Minha esposa gostava de mergulhar naquela caverna — comentou Frank, o


pai de Noah, o guia mais jovem que eu tinha conhecido. Ele nos servia um peixe
assado a bordo de seu barco.

A caverna que ele se referia foi a que visitamos minutos antes do almoço. Fiz
um mergulho inesquecível lá, sendo contemplado por uma vida marinha formidável e
com corais de diferentes formas e cores.

— Ela morreu alguns dias depois de pegar o vírus — ele continuou —, já Noah
e eu nos curamos rapidamente. Ela costumava dizer que mesmo se um dia morresse,
suas memórias continuariam vivas em cada pessoa que passou por aqui e a conheceu.

O que ele disse me lembrou Augusto automaticamente.

— Por isso digo a todo mundo que vem conhecer esse paraíso que ninguém
sairá igual como entrou e que isso se reflete na forma em como vemos o mundo e em
como ele nos vê.

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Sua fala denotava uma sabedoria por trás dos cabelos grisalhos e absorvi cada
uma de suas frases. Ninguém nunca será o mesmo depois de uma pandemia, depois de
uma viagem, ou de um grande acontecimento, e eu me tornava a prova disso. Frank
além de motorista era um contador de histórias, e Noah, um inteligente conhecedor de
sua terra e cultura.

No meio daquelas pessoas descobri que existe perspectiva de um mundo menos


egoísta. Elas me transmitiram otimismo, me fizeram dividir minha história e
compartilharam as suas, não foi somente eu que perdi uma pessoa importante, todos
que ali estavam conheciam ou perderam alguém da família. Me sentir grato por estar
ali me fez enxergar que não voltaria para casa enquanto não cumprisse os sonhos do
meu irmão, ou melhor, os nossos sonhos. Deixei para trás o receio de ter largado meu
trabalho e uma vida ordenada. Comecei a usufruir de uma liberdade que sempre me
pertenceu, e, foi difícil dizer até logo para aquele lugar do qual me permitiu conhecer
alguém que me mudou por completo.

O Murilo, aspirante a viajante e a minha melhor companhia!

Chegar em Berlim foi como me trazer de volta às populações urbanas, após ter
passado dias numa ilha, absorvendo a cultura de um povo simples e que carrega uma
história extremamente rica. As pessoas na Alemanha, que não eram viajantes,
pareciam iguais as que conhecia no Brasil: todos apressados e preocupados com os
problemas do dia a dia, fechados em seus carros e outros presos na tela de um
smartphone. Poucos se atreviam a olhar para o lado e sorrir para um desconhecido, dar
um bom dia ou apenas ser cordial no trânsito. Descobri que por muito tempo agi
assim. Ouvia em conferências que as pessoas se tornariam mais amáveis e menos
soberbas depois que o isolamento acabasse, no fundo sempre acreditei que a mudança
que gostaria de ver devesse sempre partir de nós mesmos. Passei a usar essa verdade
ativamente, ainda que não recebesse um retorno e entendi que minha mudança estava
sendo de dentro para fora.

Escolhi jantar na Torre de TV, um ponto muito famoso e que teria uma visão
bonita da cidade. A maioria das pessoas estavam em casais ou acompanhadas, todavia
isso não me intimidava de estar sozinho em uma mesa, a 207 metros do solo, em um
restaurante que girava a cada vinte minutos, nos possibilitando ver algo diferente a

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cada giro. Sentado ao lado da janela podia ver tudo tão pequeno lá embaixo e sob
nossas cabeças um céu imensamente estrelado. Novamente me deparava com um lugar
excepcional, encarado por outro panorama, distinto ao vivenciado na Ásia e que
deixava a experiência em cada lugar muito particular.

Um casal de idosos aproximou-se e se ofereceu para sentarem comigo. Ela,


com os cabelos ruivos, um olhar bem expressivo e bastante falante. O senhor, mais
sério, embora sorrisse vez ou outra, se mostrava tímido. Fui questionado do porquê
estava sozinho e que pela minha pouca idade deveria estar cercado de amigos. Acabei
contando minha história e soube que eles eram holandeses, visitando pela primeira
vez a Alemanha.

— É muito corajoso da sua parte fazer uma viagem sozinho. — Ele me


observou com um manear de cabeça e me fez lembrar o comentário de Noah.

— Tenho certeza que seu irmão estaria muito orgulhoso — ela acrescenta. —
Nós estamos dando a volta ao mundo e conhecer pessoas como você, nos inspira! —
A declaração me fez sorrir e ter mais curiosidade a respeito deles. — Nós pegamos
todas as economias, porque não faz sentido guardar dinheiro sendo que podemos
morrer a qualquer momento. Sobreviver a essa doença terrível foi um sinal para
acordar e começar a viver de verdade!

A simpatia da senhora, de nome Claire, e o modo de relatar a trajetória com seu


marido, me prenderam de tal forma que poderia ouvi-los pelo resto da noite sem ficar
entediado.

— Já fomos para três países e as pessoas que nos conhecem nos chamam de
loucos — Joseph zombou. Ele já me tratava como se fossemos velhos conhecidos. —
Não ligamos, acredito que todo mundo deveria viajar um pouco quando é jovem,
assim como você, pois na nossa idade a coluna não ajuda muito — disse com humor,
enquanto bebericava uma taça de vinho. Nem de longe os achava loucos. Louco seria
eu se ainda estivesse na comodidade da minha casa.

Não ousei ser inconveniente ao ponto de perguntar a idades deles, contudo,


ficava nítido que já carregavam mais de seis décadas. Em uma noite aprendi com eles

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o que não tinha adquirido em uma vida inteira. Eu era pequeno demais, mas me
convertia um pouco maior em cada etapa concluída.

Em vinte dias longe do meu país não me sentia fora de casa, de fato descobri
ser meu próprio lar e tudo o que precisasse estaria sempre em minha posse. Já
planejava viajar para outros lugares e registrava tudo em um pequeno caderno que
havia se tornado quase um diário de bordo.

Meu espírito aventureiro de principiante seria presenteado com as montanhas e


apesar de não ter preparo algum para escalada, me sentia pronto. Até o momento de
alcançar o objetivo passamos por alguns problemas que me renderam risadas depois
de ocorrido. Faria o trajeto para os Andes com dois amigos que conheci na Argentina,
que me acompanhariam na loucura de subir uma montanha. Nos reuniríamos no outro
dia a um grupo, juntamente de um profissional em escaladas.

As coisas começaram a dar errado quando o carro enguiçou na metade do


caminho e foi preciso nos alocarmos em um hotel bem estranho. Sequer havia outro
estabelecimento próximo, além da atendente que se mostrou ignorante e que inclusive
era a dona e cozinheira do lugar também. Éramos os únicos hóspedes do hotel, no
meio do nada e de uma neve densa cobrindo as janelas do quarto. O auge da noite foi a
falta de energia na madrugada e nos pegarmos arrastando móveis para a porta como
medida de proteção, me passava pela cabeça nosso sumiço do mapa sem deixar
vestígios e acabarmos dentro de freezers de um açougue clandestino.

O dia amanheceu e continuamos vivos, chuto que foi pura sorte.

A escalada pela Cordilheira do Andes exigiu muito do meu físico, embora


levasse uma vida ativa, senti dores no corpo e dificuldade para respirar devido à
altitude. O chão branco pela neve e ao longe um contraste do marrom escuro das
rochas, sendo pincelado por raios de sol de um fim de tarde congelante. A cada
inspiração o ar cortava e doía ao passar por meu peito, pareciam agulhas penetrando-
me. O bastão de apoio me sustentava a cada fincada no gelo, como se Augusto
estivesse ali me dando força para não desistir do meu alvo. Pausei inúmeras vezes e
respirei fundo, sendo encorajado por meus companheiros da subida.

Alcançamos o topo a mais de quatro mil metros do chão.

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Olhei para o céu e ao meu redor. Um cenário espetacular por entre diferentes
formatos de montanhas, neve caindo em câmera lenta. O infinito ficava bem além do
que meus olhos poderiam ser capazes de ver.

Sorri. Chorei. Berrei. Agradeci. O mundo ainda tinha muito a ser descoberto
por mim.

— Mais um para a conta, Gus!

Podia ouvir meu grito transformado em ecos pelo espaço. Acreditava que
aonde estivesse havia me escutado.

Tinha conseguido realizar mais um sonho e não fazia questão de controlar as


lágrimas, em meio à neve, ao vento, ao frio e a todas as condições que me fizeram
chegar até ali. O choro, muitas vezes, é uma expressão de saudade, alegria ou tristeza,
porém para mim era um sentimento de pura gratidão.

Finalmente compreendi quando ele dizia que a felicidade nunca seria


preenchida com uma nota monetária. Entendi cada anotação que ele fez, com seus
desenhos caricatos e seu senso de humor ridículo. Um novo sentido para a vida foi
descoberto, tinha outras perspectivas acerca da vida e de como conduzi-la. Desde
sempre organizei tudo, agora não sabia onde estaria na semana seguinte, que novas
coisas aprenderia, os novos amigos que surgiriam e as histórias que teria para contar.

Não realizei apenas os desejos dele, visto que acabaram se tornando os meus
também. Carecia de pouco para viver feliz e pleno. Uma mochila acabou se tornando o
abrigo dos meus sonhos e das discretas ambições que passei a ter.

— Sim, mãe, eu devo voltar para o natal, quando lhe apresentarei a Catalina —
sorri para a morena ao meu lado, da qual me apaixonei na terceira viagem ao Chile.

Isso me lembrou um dos desenhos do Augusto, onde estou abraçado a uma


mulher a bordo de um navio, como na cena icônica do filme Titanic. Segundo meu
irmão, eu deveria viver um amor intenso. Cata exala intensidade, me faz ter todas as
sensações de uma paixão tórrida. Sou infinitamente grato por cada desenho dele que
acabou tornando-se realidade. Ainda tenho muitos sonhos a cumprir, pois agora quem
faz os desenhos, não tão bons quantos os dele, sou eu.

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No peito tatuei a famosa frase do Augusto, cito-a para todos que cruzam meu
caminho pelo mundo afora:

Celebre a vida! Somos feitos de pequenos instantes!

FIM.

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