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Neuroprogressão e Estadiamento No Transtorno Bipolar
Neuroprogressão e Estadiamento No Transtorno Bipolar
Revisão técnica:
Flávio Kapczinski
Professor Titular de Psiquiatria na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul.
Diretor do Laboratório de Psiquiatria Molecular do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre.
Membro da Academia Brasileira de Ciências.
Versão impressa
desta obra: 2017
2017
Obra originalmente publicada sob o título Neuroprogression and Staging in
Bipolar Disorder, 1st Edition
ISBN 9780198709992
SÃO PAULO
Rua Doutor Cesário Mota Jr., 63 – Vila Buarque
01221-020 – São Paulo – SP
Fone: (11) 3221-9033
Adriane R. Rosa
Professora de Farmacologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, -
Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil.
Aline André Rodrigues
Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil.
Anabel Martinez-Aran
IDIBAPS, Programa de Transtornos Bipolares, Hospital Clinic, University of
Barcelona, CIBERSAM, Barcelona, Espanha.
Anusha Baskaran
Centro para Estudos de Neurociências, Queen’s University; Providence Care,
Serviços de Saúde Mental, Kingston, ON, Canadá.
Aroldo A. Dargél
Laboratório de Psiquiatria Molecular, INCT Medicina Translacional,
Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil.
Bartholomeus C. M. Haarman
University Medical Center, Departamento de Psiquiatria, Groningen, Países
Baixos.
Benicio N. Frey
Professor Associado, Departamento de Psiquiatria e Neurociências
Comportamentais, McMaster University, Hamilton, ON, Canadá.
Benjamin I. Goldstein
Sunnybrook Research Institute, Sunnybrook Health Sciences Centre,
Toronto, ON, Canadá.
Brisa Solé
IDIBAPS, Programa de Transtornos Bipolares, Hospital Clinic, University of
Barcelona, CIBERSAM, Barcelona, Espanha.
Carla Torrent
IDIBAPS, Programa de Transtornos Bipolares, Hospital Clinic, University of
Barcelona, CIBERSAM, Barcelona, Espanha.
Caterina del Mar Bonnin
IDIBAPS, Programa de Transtornos Bipolares, Hospital Clinic, University of
Barcelona, CIBERSAM, Barcelona, Espanha.
Clarissa S. Gama
Laboratório de Psiquiatria Molecular, Hospital de Clínicas de Porto
Alegre/CPE, Porto Alegre, Brasil.
Diego J. Martino
Programa de Transtornos Bipolares, Departamento de Psiquiatria, Instituto de
Neurociências da Fundación Favaloro, Buenos Aires, Argentina.
Esther Jiménez
IDIBAPS, Programa de Transtornos Bipolares, Hospital Clinic, University of
Barcelona, CIBERSAM, Barcelona, Espanha.
Francesc Colom
IDIBAPS, Programa de Transtornos Bipolares, Hospital Clinic, University of
Barcelona, CIBERSAM, Barcelona, Espanha.
Frank Bellivier
INSERM U797, Polo de Psiquiatria, CHU de Créteil, Hôpital Henri Mondor
& Paris 12 University, Créteil, França.
Gabriel R. Fries
Laboratório de Psiquiatria Molecular, Centro de Pesquisas Experimentais, -
Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil.
Gustavo H. Vázquez
Departamento de Neurociências, University of Palermo, Buenos Aires,
Argentina.
Imma Torres
IDIBAPS, Programa de transtornos Bipolares, Hospital Clinic, University of
Barcelona, CIBERSAM, Barcelona, Espanha.
Iria Grande
Unidade de Transtornos Bipolares, Instituto Clínico de Neurociências,
Hospital Clinic, University of Barcelona, IDIBAPS, CIBERSAM, Barcelona,
Catalunha, Espanha.
Jan Scott
Psiquiatria Acadêmica, Unidade Wolfson, Camous for Vitality & Ageing, -
Newcastle upon Tyne, Reino Unido.
Janusz K. Rybakowski
Departamento de Psiquiatria Adulta, Universidade de Ciências Médicas de -
Poznan, Poznan, Polônia.
Joana Bücker
Laboratório de Psiquiatria Molecular e Programa de Transtornos Bipolares e
INCT Medicina Translacional, Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.
Lakshmi N. Yatham
Departamento de Psiquiatria, University of British Columbia, Vancouver,
BC, Canadá.
Luciano Minuzzi
Departamento de Psiquiatria e Neurociências Comportamentais, McMaster
University, Hamilton, ON, Canadá.
Manon H. J. Hillegers
UMC Utrecht Brain Center Rudolf Magnus, Utrecht, Países Baixos.
Marcia Kauer-Sant’Anna
Laboratório de Psiquiatria Molecular, Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
Porto Alegre, Brasil.
María Lacruz
Hospital Francesc de Borja, Valência, Espanha.
María Reinares
IDIBAPS, Programa de Transtornos Bipolares, Hospital Clinic, University of
Barcelona, CIBERSAM, Barcelona, Espanha.
Marion Leboyer
Université Paris-Est, INSERM U955, Psiquiatria Genética, Créteil, França.
Maurício Kunz
Laboratório de Psiquiatria Molecular, Centro de Pesquisas, Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, Programa de Pós-graduação em Medicina –
Psiquiatria, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.
Rafael Tabarés-Seisdedos
Departamento de Medicina, University of Valência, CIBERSAM, Valência,
Espanha.
Ralph W. Kupka
Altrecht Institute for Mental Health Care e University Medical Center
Utrecht, Utrecht, Países Baixos.
Robert M. Post
Bipolar Collaborative Network, Bethesda, MD, Estados Unidos.
Roberto B. Sassi
Departamento de Psiquiatria e Neurociências Comportamentais, McMaster
University, Hamilton, ON, Canadá.
Roger McIntyre
UHN, Toronto Western Hospital, Toronto, ON, Canadá.
Romain Icick
CSAPA Espace Murger, Serviço de Psiquiatria de Adultos, Grupo Hospitalar
Saint-Louis – Lariboisiere – Fernand Widal, Assistência pública – Hospitais
de Paris, Paris, França.
Sergio A. Strejilevich
Programa de Transtornos Bipolares, Departamento de Psiquiatria, Instituto de
Neurociências da Fundación Favaloro, Buenos Aires, Argentina.
Vicent Balanzá-Martínez
Departamento de Medicina, University of Valência, CIBERSAM, Valência,
Espanha.
Xenia Gonda
Departamento Clínico e Teórico de Saúde Mental, Faculdade de Medicina,
Semmelweis University, Budapeste, Hungria.
PREFÁCIO
Willem A. Nolen
Presidente ISBD, 2012-2014
REFERÊNCIAS
Berk M, Hallam KT, McGorry PD. (2007) The potential utility of a staging
model as a course specifier: a bipolar disorder perspective. J Affect Disord
100:279–281.
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psychiatric disorders: a heuristic framework for choosing earlier, safer and
more effective interventions. Aust NZ J Psychiat 40:616–622.
Kapczinski F, Dias VV, Kauer-Sant’Anna M, et al. (2009) Clinical
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Kapczinski F, Magalhaes PV, Balanza-Martinez V, Dias VV, Frangou S,
Gama CS, Gonzalez-Pinto A, Grande I, Ha K, Kauer-Sant’Anna M, Kunz M,
Kupka R, Leboyer M, Lopez-Jaramillo C, Post RM, Rybakowski JK, Scott J,
trejilevitch S, Tohen M, Vazquez G, Yatham L, Vieta E, Berk M. (2014)
Staging systems in bipolar disorder: an International Society for Bipolar
Disorders Task Force Report. Acta Psychiatr Scand 130:354–363.
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
Estadiamento clínico no transtorno bipolar:
Uma perspectiva histórica
Robert M. Post
CAPÍTULO 2
Sistemas de estadiamento do transtorno bipolar
Ralph W. Kupka, Manon H. J. Hillegers e Jan Scott
CAPÍTULO 3
Carga alostática e envelhecimento acelerado
no transtorno bipolar
Iria Grande e Flávio Kapczinski
CAPÍTULO 4
Neuroprogressão e bases biológicas para
estadiamento do transtorno bipolar
Gabriel R. Fries, Pedro V. S. Magalhães, Flávio Kapczinski e Michael Berk
CAPÍTULO 5
Funcionamento e progressão da doença no
transtorno bipolar
Adriane R. Rosa, Clarissa S. Gama e Eduard Vieta
CAPÍTULO 6
Cognição e progressão da doença no
transtorno bipolar
Anabel Martinez-Aran, Caterina del Mar Bonnin, Carla Torrent, Brisa Solé,
Imma Torres e Esther Jiménez
CAPÍTULO 7
Cognição social e estadiamento do transtorno
bipolar
Sergio Strejilevich e Diego J. Martino
CAPÍTULO 8
Temperamentos afetivos: Estágios latentes
potenciais dos transtornos bipolares
Gustavo H. Vázquez e Xenia Gonda
CAPÍTULO 9
Neuroimagem e progressão da doença
Benicio N. Frey, Luciano Minuzzi, Bartholomeus C. M. Haarman e Roberto
B. Sassi
CAPÍTULO 10
Biomarcadores da progressão da doença no
transtorno bipolar
Aroldo A. Dargél e Marion Leboyer
CAPÍTULO 11
Adversidade na infância e progressão da
doença no transtorno bipolar
Joana Bücker, Marcia Kauer-Sant’Anna e Lakshmi N. Yatham
CAPÍTULO 12
Comorbidades médicas vasculares e
metabólicas e neuroprogressão no transtorno
bipolar
Anusha Baskaran, Benjamin I. Goldstein e Roger McIntyre
CAPÍTULO 13
Uso indevido de substâncias no estadiamento
do transtorno bipolar
Romain Icick e Frank Bellivier
CAPÍTULO 14
Excelentes respondedores ao lítio, resiliência e
estadiamento do transtorno bipolar
Janusz K. Rybakowski
CAPÍTULO 15
Estadiamento e intervenção precoce no
transtorno bipolar
Vicent Balanzá-Martínez, María Lacruz e Rafael Tabarés-Seisdedos
CAPÍTULO 16
Tratamento farmacológico do transtorno
bipolar em estágio final
Aline André Rodrigues e Maurício Kunz
CAPÍTULO 17
Progressão da doença e intervenções
psicossociais no transtorno bipolar
María Reinares e Francesc Colom
CAPÍTULO 18
Sistemas de estadiamento do transtorno
bipolar: Achados atuais, rumos futuros e
implicações na prática clínica
Flávio Kapczinski, Eduard Vieta, Pedro V. S. Magalhães e Michael Berk
Conheça também
Grupo A
ESTADIAMENTO CLÍNICO NO
TRANSTORNO BIPOLAR: UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA
Robert M. Post
INTRODUÇÃO
Kraepelin (1921) esteve entre os primeiros a colocar implicitamente em
estágios o desenvolvimento e a evolução do transtorno bipolar, e o fez de
diversas maneiras. Com base em representações gráficas minuciosas do curso
longitudinal do transtorno bipolar, ele observou que a recorrência de
episódios apresentava a tendência a acelerar com o decorrer do tempo, e a
qualificou como uma função da duração progressivamente menor dos
intervalos de eutimia entre episódios sucessivos. Essa tabulação forneceu a
base para considerar a progressão dos episódios (o que denominamos
sensitização por episódio), bem como a identificação posterior de
recorrências mais rápidas, como ciclagem rápida e ultrarrápida. Na mesma
época, com base em suas observações clínicas minuciosas, Kraepelin
identificou que os episódios iniciais costumavam ser precipitados por
estressores psicossociais, mas, no caso de ocorrências múltiplas, eles também
podiam acontecer apenas com a expectativa de estressores, ou sem qualquer
estressor, o que rendeu a ideia de um estágio posterior mais autônomo da
doença.
Kraepelin também identificou que alguns subtipos de mania e depressão,
como mania disfórica (caracterizada por níveis elevados de ansiedade e
irritabilidade), tinham um curso mais difícil e exigiam mais hospitalizações,
especialmente em mulheres. Portanto, diferenças nos aspectos qualitativos da
apresentação clínica também poderiam ter relevância prognóstica.
Todas essas três observações sobre recorrência mais rápida de episódios,
sobre a transição de ocorrências precipitadas para ocorrências mais
espontâneas de episódios e sobre subtipos da doença, como mania disfórica,
foram extensamente replicadas e prepararam o terreno para sua incorporação
em diversos modelos de estadiamento, implícitos ou explícitos.
RECORRÊNCIAS MAIS RÁPIDAS DE
EPISÓDIOS E ACELERAÇÃO DO CICLO
Jules Angst e Paul Grof, entre muitos outros, também observaram a tendência
geral de aceleração do ciclo como uma função da quantidade de episódios
anteriores, e revisões iniciais da literatura (Post, 1992) apoiaram essa
tendência geral, porém inconstante. Em uma das maiores e mais convincentes
demonstrações, Lars Kessing e colaboradores (1998) descobriram que a
quantidade de hospitalizações anteriores por depressão era o melhor preditor
de recorrências subsequentes (com latência mais breve), seja em depressão
unipolar ou bipolar, e que diversos fatores de confusão não podiam explicar
esse efeito. Um efeito semelhante foi demonstrado no caso de número de
episódios anteriores de mania e vulnerabilidade à recaída.
O número de episódios anteriores e a frequência de sua recorrência
assumiram uma nova importância na era moderna da psicofarmacologia, em
que, por exemplo, se observou que indivíduos com ciclagem rápida (quatro
ou mais episódios ao ano) apresentavam menor tendência de resposta ao lítio
(Dunner et al., 1979). Diversos estudos replicaram esses achados, com
poucas exceções (Post et al., 2012). Ademais, um maior número de episódios
anteriores parecia um preditor relativo de ausência de resposta a um
tratamento naturalista e com diversos agentes.
Um continuum da frequência dos ciclos e padrões mais rápidos de
recorrência são hoje amplamente reconhecidos (Kupka et al., 2005).
Realizaram-se tentativas para categorizar episódios mais rápidos, como
ciclagem ultrarrápida (quatro ou mais episódios ao mês) e ciclagem
ultraultrarrápida (ou ultradiana, em que oscilações caóticas e drásticas de
humor ocorrem várias vezes em um período de 24 horas em quatro ou mais
dias por semana) (Kramlinger e Post, 1996). Pacientes com padrões de
ciclagem ultradiana parecem responder particularmente bem à di-
hidropiridina, bem como ao bloqueador dos canais de cálcio tipo L
nimodipina (Davanzo et al., 1999; Pazzaglia et al., 1993; Post e Leverich,
2008). Novas investigações são necessárias para definir a resposta
farmacológica nesse estágio da doença, o qual tende a ocorrer relativamente
tarde no curso da doença em adultos (Post e Leverich, 2008) ou
extremamente cedo nas crianças mais jovens com apresentações de
bipolaridade sem outra especificação (SOE) (Birmaher et al., 2009; Geller et
al., 1998).
PROGRESSÃO DE EPISÓDIOS
DESENCADEADOS PARA EPISÓDIOS
ESPONTÂNEOS
Esse padrão geral de autonomia crescente de episódios como uma função do
número de recorrências anteriores (sensitização ao estresse) foi mais bem
documentado na depressão unipolar (Kendler et al., 2000, 2001; Slavich et
al., 2011), mas também parece se aplicar a pacientes com transtorno bipolar
(Post e Miklowitz, 2010). Contudo, na doença bipolar, também há evidências
de acumulação de estresse ou amplificação de estresse entre indivíduos com
adversidade na infância (Dienes et al., 2006), de forma que pode ocorrer tanto
um aumento na quantidade de estressores quanto na sensibilidade a eles.
MANIA DISFÓRICA
As observações iniciais de Kraepelin sobre o prognóstico desfavorável de
mania disfórica foram confirmadas, e uma dissecção farmacológica mais
moderna sugere que o lítio costuma ser eficaz com maior frequência em
mania eufórica clássica, enquanto o valproato pode apresentar um pouco de
vantagem no subtipo disfórico (Post e Leverich, 2008).
SENSITIZAÇÃO E KINDLING COMO
MODELOS DE PROGRESSÃO E
ESTADIAMENTO DA DOENÇA
Fundamentado nas observações kraepelinianas do curso da doença, Post
(1992) traçou analogias a outras síndromes comportamentais em animais que
também demonstraram evidências de progressão de doença – kindling e
sensitização. No kindling experimental, a amígdala é estimulada uma vez ao
dia durante um segundo, o que gera aumento na resposta comportamental
(evolução para o estágio convulsivo) que culmina no desenvolvimento de
convulsões totalmente manifestas com o comportamento de “ rearing ”
seguido de queda. Após certo número de convulsões induzidas por
eletricidade, as convulsões começam a surgir espontaneamente (Post, 2007).
Portanto, o kindling da amígdala apresenta três estágios gerais: (I) o
estágio inicial ou de desenvolvimento; (II) o estágio intermediário ou
completo de convulsões totalmente manifestas; e (III) o estágio final ou
espontâneo (Fig. 1.1). A evolução e a progressão desses estágios em
convulsões por kindling são relativamente invariáveis e relevantes devido às
suas implicações fisiopatológicas e farmacoterápicas.
FIGURA 1.1 Dissociação da resposta farmacológica como função da evolução
de fase do kindling da amígdala.
++ = extremamente eficaz; ± = ambíguo; 0 = não eficaz; ( ) = dados
inconsistentes.
*Antagonista de glutamato NMDAR.
No estágio de desenvolvimento do kindling, eletrofisiologia, bioquímica,
neuropeptídeos e genes precoces imediatos (fatores de transcrição) aumentam
progressivamente desde nenhuma alteração, ou alterações mínimas na
neurobiologia e no comportamento, a alterações unilaterais e, por fim,
bilaterais, o que revela uma evolução anatômica impressionante de alterações
neurobiológicas em resposta à repetição do mesmo estímulo. Como seria de
se esperar dessa programação espaço-temporal do “rastro de memória” da
amígdala que sofreu kindling, intervenções farmacológicas têm eficácias
diferentes nos estágios de desenvolvimento, completo e espontâneo, ou seja,
alguns fármacos funcionam em um estágio, mas não em outro (Fig. 1.1).
Formulamos a hipótese de que a fase de desenvolvimento inicial, a fase
intermediária de episódios precipitados e os episódios espontâneos em fases
tardias do transtorno bipolar podem apresentar respostas diferenciadas de
modo semelhante a intervenções farmacológicas diversas e mesmo a algumas
abordagens psicossociais (Scott et al., 2013). Há evidências de que essa
hipótese seja verdadeira, mas um estudo muito mais aprofundado é
necessário (Fig. 1.2). A grande advertência a se considerar nesse caso é que
os fármacos específicos que são eficazes em estágios diferentes das
convulsões resultantes do kindling na amígdala provavelmente não sejam os
mesmos fármacos que funcionam para o transtorno bipolar (apesar de alguns
deles também serem anticonvulsivantes). O caso torna-se particularmente
evidente ao se considerar lítio e antipsicóticos atípicos, os quais não são
anticonvulsivantes.
FIGURA 1.2 A farmacologia do transtorno bipolar varia como função de fase da
evolução da doença?
Eficácia: +++ = muito bom; ++ = bom; + = moderado; ± = duvidoso.
(Observe que todas as pontuações são altamente preliminares e temporárias.)
TABELA 1.1
Estadiamento da doença bipolar
Primeiros estágios
Estágio I II III IV
4. Depressão
5. TDDH
6. Abuso de
substância
C. Perinatal C. C. TB SOE
1. Raiva baixa Adversidade/abuso Na idade
2. Anoxia neonatal na Duração
adolescência/idade
adulta
1. Verbal
2. Física
3. Sexual
4. Negligência
5. Bullying
E. Neuropsicologia
1. Reconhecimento
de emoções
faciais pobre
F. Êxito acadêmico
1. Somente notas
máximas no
ensino médio
G. Marcadores
sanguíneos
H. Marcadores
cerebrais
1. RM
2. RMf
3. PET
Estágios posteriores
V VI VII VIII
G. Demência
H. Morte
prematura por:
1. Suicídio
2. Doença
médica
3. Acidente
4. Outro
CACNA1C, subunidade alfa da di-hidropiridina do canal de cálcio; Idade de início ______ (preencher com a idade).Duração ______
(preencher com a duração do episódio); E/EA = esquizofrenia/esquizoafetivo; PCR = proteína C-reativa; TOD = transtorno de
oposição desafiante; TDDH = transtorno disfórico de desregulação do humor; TB = transtorno bipolar; UP = unipolar; BCSE = baixa
condição socioeconômica; TB-I = transtorno bipolar tipo I; TB-II = transtorno bipolar tipo II; TB SOE = transtorno bipolar sem outra
especificação; TAG = transtorno de ansiedade generalizada.
A DEFESA DE MÚLTIPLOS ESTÁGIOS E
SUBCATEGORIAS
Assim como no caso de progressão tumoral, sugerimos a utilidade de iniciar
de forma mais abrangente e de multiplicar modelos de estágios e subdivisões
para a progressão da doença afetiva, o que oferece diversas vantagens sobre
os modelos de estadiamento mais seccionados, apesar de que estes seriam,
inicialmente, mais fáceis de validar. Contar com mais estágios desde o
primeiro momento permitiria que diversos grupos de investigadores falassem
uma língua comum em suas pesquisas futuras, e categorias provisórias,
posteriormente, poderiam ser combinadas ou, caso os dados justifiquem,
simplificadas. Mais estágios e subcategorias também contemplariam a
complexidade do transtorno bipolar em si, o qual apresenta maior número de
comorbidades psiquiátricas e médicas, padrões e subtipos de episódios e
frequências de recorrência do que os outros transtornos psiquiátricos.
Caso se comece com apenas alguns estágios distintos, ou simplesmente
com a dicotomia inicial-tardio, conforme o campo amadurece mais distinções
serão criadas, o que levará à elaboração de múltiplos modelos de
estadiamento. Esse seria, especificamente, o caso, já que modelos de
estadiamento teriam muitos usos e implicações diferentes.
Conforme já implícito nas primeiras ideias de estadiamento e explícito nas
propostas mais recentes, a noção de estágios é mais convincente ao se
considerarem intervenções de tratamento diferentes como uma função do
estágio da doença, com a premissa de que o tratamento antecipado seria mais
eficaz do que o tratamento posterior e talvez menos complexo (Berk et al.,
2010). A caracterização da condição de risco antes da doença nos estágios I
(vulnerabilidade) e II (intervalo de eutimia) desde o início permitirá a
integração de marcadores genéticos e de outros marcadores neurobiológicos
no processo de estadiamento, o que, por fim, facilitará o desenvolvimento de
uma intervenção precoce e até mesmo de uma profilaxia primária para
indivíduos em risco extremamente elevado (Post et al., 2013).
Da mesma forma, incluir subcategorias, por exemplo, que envolvam
presença ou ausência de ansiedade e de transtornos por uso de substâncias no
momento atual ou ao longo da vida permitirá que se delineiem seus efeitos
sobre o curso da doença, sobre a resposta ao tratamento e, em última análise,
a execução de experimentos clínicos mais específicos para avaliar as
abordagens ideais para essas comorbidades, as quais complicam o tratamento
e anunciam um resultado desfavorável. O desenvolvimento de algoritmos de
tratamento e a aplicação de medicina personalizada provavelmente
dependerão de uma combinação entre atributos clínicos, estágios e, por fim,
seus correlatos neurobiológicos.
O exame de correlatos neurobiológicos do estágio da doença e a tentativa
de validar estágios como uma função do grau de anormalidade
neurobiológica também variam enormemente. Em alguns casos, apenas
distinções grosseiras como fases iniciais em contraposição a fases tardias
podem ser adequadas (Kauer-Sant’Anna et al., 2009), mas medidas
biológicas mais aprimoradas com variáveis contínuas podem ser mais
apropriadas para a alocação a múltiplos estágios ou quantidade, tipo ou
complexidade dos episódios. A presença dessas várias categorias detalhadas
de estágios já definidas desde o início irá facilitar a coleta desses dados e a
comparação de um grupo de pesquisa com outro, com a visão de que os
estágios podem ser ainda mais subcategorizados conforme a necessidade ou
facilmente encurtados e abreviados caso os dados assim o exijam.
Como indicado, uma série de variáveis, incluindo disfunção cognitiva,
resposta ao tratamento e anormalidades neurobiológicas, já foi associada ao
número de episódios anteriores. Portanto, lidar apenas com um primeiro
episódio em contraposição a um episódio recorrente, por exemplo, não
permitiria a análise de relações mais detalhadas que seriam possíveis com a
representação total do número de episódios. Ademais, a capacidade de usar
variáveis contínuas em vez de dicotomias aumenta a probabilidade de
encontrar relações estatisticamente significativas.
No estadiamento do câncer de colo, diferenças sutis no grau de invasão da
membrana basal ou a distância de propagação a outros órgãos revelaram
implicações prognósticas notáveis. Embora não estejam tão bem resolvidos,
os estágios de câncer de colo também têm implicações fisiopatológicas em
termos do desenvolvimento progressivo de mutações somáticas que
envolvem tanto a perda sucessiva de fatores supressores do tumor quanto a
aquisição de mutações de função em processos oncogênicos e de proliferação
de células (Vogelstein et al., 2013). Suporíamos que uma progressão
semelhante de alterações sucessivas na expressão genética ocorreria em uma
base epigenética no transtorno bipolar e, de forma análoga, envolveria tanto
supressão de alterações neurobiológicas adaptativas positivas quanto
intensificação das alterações patológicas primárias (Post, 2007). O aumento
da proporção de alterações patológicas para alterações adaptativas,
hipoteticamente, conduziria fases de doença e fases de eutimia, aceleração da
ciclagem, incapacidade de alcançar um intervalo de eutimia e, por fim,
ausência de resposta ao tratamento.
Os mecanismos fisiopatológicos potenciais no transtorno bipolar foram
examinados nos últimos 50 anos em diversos níveis, cada vez mais
aprofundados e analisados em vários domínios. Os estudos evoluíram: das
vias de transdução de sinais de neurotransmissores a receptores, a segundos
mensageiros, quinases, fatores de transcrição, genes precoces imediatos e
modificações epigenéticas; no tipo de tecido examinado a partir de amostras
de sangue, líquido cerebrospinal e medidas encefálicas endócrinas, de
citocinas e de estresse oxidativo; e de observação estática para imagens
cerebrais funcionais de diversos tipos. Portanto, a definição clínica e
detalhada de estágios desde o início facilitaria a análise de diversas medidas
distintas, as quais apenas cresceriam em quantidade com o decorrer do
tempo. Assim que forem replicáveis e consistentes, os achados
neurobiológicos poderão ser acrescidos às definições clínicas de estágios
(assim como nos estágios IIa, b e c do câncer de colo), bem como
examinados quanto a implicações de tratamento e relações prognósticas.
De forma semelhante, no estágio relativamente tardio VII (resistência ao
tratamento), a presença de subcategorias precisas do grau de resistência ao
tratamento com lítio, anticonvulsivantes estabilizadores do humor,
antipsicóticos atípicos, estimulação magnética transcraniana (EMT) e
eletroconvulsoterapia, ou sua combinação, permitirá uma análise dessas
gradações na resistência ao tratamento em relação ao resultado funcional, à
cognição e à neurobiologia.
Descrever e definir estágios no transtorno bipolar também traria outros
benefícios e ajudaria na percepção pública de que a doença é potencialmente
progressiva e necessita de esforços planejados no tratamento e na prevenção.
Uma definição mais detalhada dos correlatos neurobiológicos da progressão
em estágios da doença também seria de grande ajuda para sua
desestigmatização. Esforços para uma intervenção precoce na tentativa de
prevenir ou retardar o desenvolvimento da síndrome totalmente manifesta
têm mais de uma década de estudos no caso da esquizofrenia em comparação
ao transtorno bipolar, em parte devido à definição criteriosa do estágio de
“em risco” ou prodrômico (McGorry et al., 2006).
A identificação de que aproximadamente um quarto dos adultos nos -
Estados Unidos desenvolveu doença bipolar antes dos 13 anos de idade e
cerca de dois terços, antes dos 19 anos (Perlis et al., 2004; Post et al., 2013), e
que esses inícios precoces são um fator prognóstico desfavorável, coloca
ênfase na importância de definições de estadiamento pertinentes a crianças.
Esse estadiamento pode ajudar a abreviar a longa demora até o primeiro
tratamento, o que, em si, é um fator independente de contribuição para um
resultado desfavorável na idade adulta (Post et al., 2010), além de encorajar
um estudo mais profundo da intervenção precoce com o objetivo de
desenvolver estratégias preventivas eficazes e bem-toleradas (Post et al.,
2013).
Parece prudente e útil encarar o estadiamento do transtorno bipolar em seu
contexto histórico de forma que o próprio exercício de estadiamento possa ser
visto como um processo iterativo e de evolução progressiva. Construir uma
estrutura abrangente para o estadiamento do transtorno bipolar que permita
máxima flexibilidade para incorporar novos dados e conceitos pode ser a
forma ideal de seguir adiante.
REFERÊNCIAS
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stress and amphetamine in sensitization. Science 207(4428):329–331.
Ballenger JC and Post RM (1978) Kindling as a model for alcohol
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Berk M, Brnabic A, Dodd S, et al. (2011) Does stage of illness impact
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implication for the staging model and early intervention. Bipolar Disord
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SISTEMAS DE ESTADIAMENTO
DO TRANSTORNO BIPOLAR
Ralph W. Kupka
Manon H. J. Hillegers
Jan Scott
INTRODUÇÃO
Neste capítulo, analisamos alguns dos sistemas de estadiamento empregados
em medicina e destacamos a forma como esses modelos estão sendo
gradativamente introduzidos na psiquiatria de forma geral. Passamos, então, a
nos concentrar nos sistemas de estadiamento que foram descritos
especificamente para uso no transtorno bipolar e resumimos algumas das
premissas básicas do modelo de estadiamento. A fim de estabelecer o
cenário, fornecemos um breve panorama das características básicas e dos
sistemas atuais de classificação utilizados para os transtornos bipolares.
O transtorno bipolar é um transtorno do humor grave e crônico que se
caracteriza por episódios recorrentes de mania, hipomania e depressão,
intercalados por intervalos de eutimia de duração mais curta (dias a semanas)
ou longa (meses a anos) (Fig. 2.1). Estima-se que a prevalência do transtorno
bipolar seja de 2,4% da população mundial (Merikangas et al., 2011), estando
entre as 10 doenças mais onerosas em todo o mundo (OMS, 2001).
FIGURA 2.1 Padrões heterogêneos de curso longitudinal da doença e diversos
graus de resistência ao tratamento em quatro pacientes ambulatoriais com
transtorno bipolar tipo I que foram tratados; episódios
maníacos/hipomaníacos aparecem acima da linha de base; episódios
depressivos, abaixo da linha de base (exemplos de Registros de Vida
prospectivos com pontuação diária da Stanley Foundation Bipolar Network,
dados coletados a partir de Post et al., 2003; Kupka et al., 2005).
TABELA 2.1
Classificação do DSM-5 de transtorno bipolar e transtornos relacionados
(dados da APA, 2013)
Código Definição Episódio Especificador
(com...)
TABELA 2.2
Modelo de estadiamento “combinado” ou transdiagnóstico proposto
para transtornos psicóticos e transtornos do humor graves (dados de
Scott et al., 2013; McGorry et al., 2006, 2010)
Estágio Definição de estágio (psicose ou transtorno do humor grave)
TABELA 2.3
Comparação dos modelos de estadiamento complementares do
transtorno bipolar conforme dados de Berk e colaboradores (2007) com
ênfase na recorrência de episódios e de Kapczinski e colaboradores
(2009a) com ênfase no funcionamento interepisódico;o momento e a
numeração dos estágios não correspondem totalmente devido a enfoques
diferentes
Estágio Modelo de Estágio Modelo de estadiamento de
estadiamento de Berk e Kapczinski e colaboradores
colaboradores
1b Características
prodrômicas: risco
ultraelevado
3a Recorrência de sintomas
do humor abaixo do
limiar
Iria Grande
Flávio Kapczinski
INTRODUÇÃO
O transtorno bipolar (TB) está entre as 10 condições mais incapacitantes do
mundo com relação à carga de incapacidade (Kupfer, 2005). Essa carga
global abrange não apenas a cronicidade do TB referente às oscilações de
humor, como também uma ampla gama de condições médicas e psiquiátricas
comórbidas, bem como deterioração neurocognitiva, relatadas como mais
prevalentes em pacientes com TB em comparação com a população saudável.
No que se refere a comorbidades, pacientes com TB desenvolvem, em sua
maioria, morbidade e mortalidade cardiovascular (Angst et al., 2002;
Birkenaes et al., 2007). Seria possível alegar que essa é uma consequência da
intervenção psiquiátrica, o que de fato é, em certa medida, no que tange ao
tratamento com antipsicóticos atípicos. Todavia, muitos relatos defendem
uma associação independente entre distúrbios cardiovasculares e TB (Garcia-
Portilla et al., 2009). Além disso, a prevalência de comorbidade psiquiátrica é
elevada em pacientes com TB, sendo os transtornos por uso de substâncias e
os transtornos de ansiedade as mais frequentes (Merikangas et al., 2007;
Mantere et al., 2010). O TB também foi associado a déficits neurocognitivos
significativos em todos os estados de humor, bem como em eutimia
(Martinez-Aran et al., 2004b). Essa disfunção parece estar relacionada à
gravidade da doença, à presença de sintomas psicóticos, a uma maior duração
da doença e a um número mais elevado de episódios maníacos (Robinson e
Ferrier, 2006).
As consequências sistêmicas do TB, que abrangem comorbidades e
déficits neurocognitivos, podem ser estudadas a partir do conceito de carga
alostática (Kapczinski et al., 2008; Grande et al., 2012). Sterling e Eyer
(1988) foram os primeiros a empregar o termo alostase e, nos anos
subsequentes, McEwen e Stellar (1993) empregaram o termo para definir um
conceito mais amplo de estresse e suas consequências. Alostase é a
capacidade de atingir estabilidade por meio de mudanças produzidas por
mecanismos adaptativos que ajudam o indivíduo a lidar com as situações da
vida diária. O termo utilizado para definir as consequências sistêmicas desses
mecanismos adaptativos é carga alostática (CA).
Neste capítulo, retrataremos os conceitos de alostase, CA e sobrecarga
alostática (SA), bem como suas aplicações a doenças neuropsiquiátricas,
especialmente TB, com a finalidade de explanar o impacto dos transtornos
mentais sobre o organismo.
ENFRENTAMENTO DE EVENTOS DE VIDA:
ALOSTASE E CARGA ALOSTÁTICA
O cérebro é o órgão fundamental na orquestração da resposta ao estresse. Ele
também controla as respostas comportamentais e fisiológicas, as quais são tão
importantes quanto as próprias experiências estressantes para o
desenvolvimento de CA (McEwen, 2008) (Fig. 3.1).
Gabriel R. Fries
Pedro V. S. Magalhães
Flávio Kapczinski
Michael Berk
INTRODUÇÃO
Evidências clínicas mostram que uma proporção substancial dos pacientes
com transtorno bipolar (TB) apresenta um curso progressivo (Kessing et al.,
1998). Essa progressão está geralmente associada a vários resultados clínicos
desfavoráveis, tais como intervalos interepisódios reduzidos, resposta inferior
ao tratamento – especialmente com lítio e terapia cognitivo-comportamental
–, índices mais elevados de comorbidade, prejuízos funcionais, maior risco de
suicídio e hospitalização, bem como piores resultados relativos à
psicoeducação familiar (Reinares et al., 2010; Berk et al., 2011a; Fries et al.,
2012; Rosa et al., 2012). Ademais, o prejuízo cognitivo se agrava com
episódios cumulativos e afeta funções executivas e outros testes cognitivos,
como memória verbal, inibição de resposta, atenção sustentada, velocidade
psicomotora, abstração e alternância cognitiva (Torres et al., 2007; López-
Jamarillo et al., 2010).
O termo “neuroprogressão” será utilizado neste capítulo como a
reprogramação patológica do cérebro que acontece quando ocorre
deterioração clínica e cognitiva no contexto da progressão do TB.
Historicamente, podemos remontar às origens desse conceito nos escritos de
Griesinger (1867):
Geralmente ocorre que, nos pacientes que sucumbem à insanidade, [...] os ataques, com o
decorrer do tempo, se tornam mais prolongados e mais graves, os intervalos de lucidez são
mais breves e, a cada novo ataque, o prognóstico se torna mais desfavorável.
Neurotrofinas
A família das neurotrofinas é composta por vários fatores reguladores que
mediam a sobrevivência e a diferenciação neuronal, além de modular a
transmissão e plasticidade sinápticas. Em mamíferos, os membros da família
incluem fator de crescimento neural (NGF), fator neurotrófico derivado das
células gliais (GDNF), fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF),
neurotrofina-3 (NT-3) e neurotrofina-4/5 (NT-4/5). Entre esses, o BNDF é o
fator neurotrófico mais abundante no sistema nervoso central de seres
humanos adultos, sendo capaz de induzir efeitos neurotróficos e
neuroprotetores em longo prazo. Os níveis cerebrais de BDNF diminuem em
ratos após estresse crônico (Gray et al., 2013), e sua expressão aumenta em
diferentes regiões do cérebro após o tratamento crônico com estabilizadores
do humor e antidepressivos (Hunsberger et al., 2009). Ademais, tarefas de
aprendizado estão associadas a um aumento nos níveis de BDNF, que
também contribui para a potenciação em longo prazo (Gómez--Palacio-
Schjetnan e Escobar, 2013). Essas ações são mediadas pela capacidade do
BDNF de se ligar ao receptor B de tirosina quinase (TrkB) que, ao se ligar,
ativa cascatas de sinalização de células protetoras, incluindo vias de
fosfolipase C gama, proteína quinase regulada por sinal extracelular (Erk) e
fosfatidilinositol 3-quinase (PI3K) (Grande et al., 2010).
Evidências sugerem que há um desequilíbrio nos níveis periféricos de
BDNF no TB. Foi demonstrado que os níveis séricos de BDNF são menores
em pacientes com TB durante episódios maníacos e depressivos e foram
correlacionados negativamente à gravidade dos sintomas (Cunha et al., 2006;
Machado-Vieira et al., 2007a; Fernandes et al., 2011). Além disso, a remissão
de sintomas foi associada à normalização dos níveis séricos de BDNF
(Tramontina et al., 2009), o que sugere que essa proteína pode ser um
marcador de atividade da doença no TB. Desse modo, provou-se que seus
níveis são menores em pacientes em estágios finais em comparação com
pacientes em estágios iniciais, o que está correlacionado negativamente à
quantidade de episódios (Kauer-Sant’Anna et al., 2009). Esses dados
conduziram à hipótese de que as mudanças relacionadas ao aumento na
quantidade de episódios podem explicar, pelo menos em parte, algumas das
alterações estruturais observadas em pacientes com TB. Os níveis de BDNF,
no mesmo estudo, também foram correlacionados negativamente com a
duração da doença, o que sugere um papel fundamental da neurotrofina na
progressão do TB. Destaca-se que alguns estudos recentes encontraram
resultados opostos, em que os níveis de BDNF aumentaram em pacientes
maníacos e também em pacientes com TB de longa duração (Barbosa et al.,
2010; Barbosa et al., 2013a). Isso sugere que os níveis de BDNF podem ser
modulados de maneiras diferentes em populações variadas e, provavelmente,
dependem do tipo de medicamento que compõe o tratamento do paciente.
Nessa mesma linha, revelou-se que outras neurotrofinas encontravam-se
alteradas também em episódios agudos de humor, como o GDNF (Rosa et al.,
2006; Barbosa et al., 2011), a NT-3 (Walz et al., 2007; Fernandes et al.,
2010) e a NT-4/5 (Walz et al., 2009), mas seu envolvimento na
neuroprogressão do TB ainda precisa ser investigado.
Estresse oxidativo
Conforme abordado nas seções anteriores, a disfunção mitocondrial pode
desempenhar um papel fundamental na fisiopatologia do TB, principalmente
por prejudicar o metabolismo energético, a resiliência celular, entre outras
funções celulares vitais. Na realidade, demonstrou-se que o metabolismo
energético fica prejudicado em pacientes com TB (Kato, 2007). Relatou-se
que o metabolismo energético do cérebro aumenta nesses pacientes durante
episódios maníacos e diminui durante a depressão (Baxter et al., 1985), o que
ganha mais respaldo na evidência de uma taxa metabólica basal maior em
mania e VO2 máximo mais elevado, independentemente da ingestão calórica
(Caliyurt e Altiay, 2009).
Entre as funções das mitocôndrias, foram identificados os principais locais
de produção de radicais livres na célula, especialmente o complexo I (NADH:
ubiquinona oxidorredutase) da cadeia de transferência de elétrons (ETC) da
mitocôndria. Estudos post-mortem mostram que a atividade do complexo I da
ETC é reduzida no córtex pré-frontal de pacientes com TB (Andreazza et al.,
2010). Além disso, demonstrou-se que o lítio consegue aumentar a atividade
dos complexos I/II e II/III mitocondriais no tecido cerebral humano (Maurer
et al., 2009), o que corrobora ainda mais a hipótese de uma disfunção
mitocondrial no TB.
Assim que formadas, espécies de oxigênio e nitrogênio reativas podem
reagir com moléculas orgânicas na célula e induzir danos em lipídeos (e
consequentemente em membranas), DNA e proteínas. Esse cenário é
prejudicado pela ação de moléculas antioxidantes, as quais atuam como
detritívoros dos radicais livres, reduzindo, assim, sua toxicidade. Nesse
sentido, um aumento na atividade da enzima superóxido dismutase (SOD) foi
relatado em pacientes durante os episódios maníacos e depressivos, mas não
em eutimia (Andreazza et al., 2007b; Kunz et al., 2008). Esse mesmo
resultado foi replicado em outro estudo que avaliou a atividade da SOD em
pacientes maníacos sem uso de medicamento com TB (Machado-Vieira et al.,
2007b). Além disso, demonstrou-se que a atividade da catalase reduz em
pacientes eutímicos e aumenta em pacientes maníacos não medicados
(Andreazza et al., 2007b; Machado-Vieira et al., 2007b), o que sugere um
desequilíbrio na produção e no controle de espécies reativas. Em
consequência, relatou-se o aumento dos produtos de peroxidação de lipídeos
em pacientes com TB em estado maníaco, depressivo ou eutímico
(Andreazza et al., 2007b; Kunz et al., 2008). Observa-se que o tratamento de
pacientes com N -acetilcisteína (NAC), que é um precursor da glutationa
capaz de buscar radicais livres, reduz os sintomas depressivos e melhora o
funcionamento e a qualidade de vida dos pacientes (Berk et al., 2011c).
Quanto à progressão da doença, demonstrou-se que as atividades da
glutationa redutase e da glutationa S -transferase aumentam em pacientes nos
estágios finais em comparação com pacientes nos estágios iniciais
(Andreazza et al., 2009), o que sugere uma falência progressiva de
mecanismos compensatórios no decorrer do tempo. Todavia, o mesmo estudo
encontrou níveis maiores de 3-nitrotirosina, um marcador de nitração de
proteínas, tanto em estágios iniciais quanto em estágios finais. Um estudo
mais recente também relatou aumento na carbonilação proteica em pacientes
em estágios iniciais (Magalhães et al., 2012a). Na verdade, as alterações
oxidativas em pacientes nos estágios iniciais parecem mais sutis do que as
que ocorrem nos estágios finais (Magalhães et al., 2012a). Isso sugere que
algumas alterações referentes ao estresse oxidativo já estão presentes nos
primeiros estágios da doença, incluindo o dano oxidativo a proteínas,
enquanto outras ocorrem apenas como um meio de neuroprogressão do TB.
Inflamação
Diversos estudos relacionaram a fisiopatologia do TB à inflamação, nos quais
alterações imunológicas estão associadas à gravidade dos sintomas, a
episódios de humor agudos, à progressão da doença, a perturbações
metabólicas, a efeitos de fármacos, ao aumento na prevalência de transtornos
autoimunes e alérgicos e a alterações neurotróficas em pacientes (Berk et al.,
2011b; Stertz et al., 2013). A maioria dos dados publicados está relacionada à
atividade da doença e a episódios agudos, e pouco realmente se sabe sobre a
progressão do TB em si. Apesar disso, a soma dos achados sobre episódios
agudos ajuda a propor mecanismos pelos quais os episódios cumulativos
podem ser deletérios, conforme a abordagem a seguir.
Episódios agudos foram caracterizados como estados pró-inflamatórios
com base em achados sobre o aumento dos níveis periféricos de citocinas
pró-inflamatórias na depressão, como interleucina (IL)-6 e fator de necrose
tumoral alfa (TNF- α), e de IL-2, IL-4, IL-6 e TNF- α em mania (Kim et al.,
2007; Ortiz-Dominguez et al., 2007; Brietzke et al., 2009). Ademais,
metanálises relataram um aumento nos níveis de TNF- α, receptor solúvel de
TNF tipo 1, receptor solúvel de IL-2 e antagonista do receptor de IL-1 em
pacientes maníacos, enquanto foi revelado que pacientes eutímicos
apresentavam níveis alterados de antagonista do receptor IL-1 em
comparação com controles (Munkholm et al., 2012; Modabbernia et al.,
2013). Demonstrou-se também que pacientes com TB apresentam níveis
maiores de proteínas de fase aguda, como proteína C reativa e haptoglobina
(Maes et al., 1997; Cunha et al., 2008), cuja produção geralmente é induzida
por citocinas pró-inflamatórias. Nessa mesma linha, fatores de complemento
como C3 e C4 também foram associados ao TB (Wadee et al., 2002). Em
resumo, estudos periféricos indicam que o TB pode ser caracterizado como
uma doença inflamatória sistêmica, apesar de os mecanismos pelos quais
essas alterações periféricas ocorrem serem desconhecidos. Destaca-se a
sugestão de que alterações no sono e no ritmo circadiano, estresse, ativação
imunológica por infecção retroviral de disfunções autoimunes, estilo de vida
não saudável, bem como exposição prolongada a fármacos/drogas podem
contribuir para o estado inflamatório associado ao TB (Goldstein et al.,
2009).
Essas alterações inflamatórias podem desempenhar um papel fundamental
no desenvolvimento de várias comorbidades relatadas em pacientes e podem,
provavelmente, contribuir para a progressão da doença. Demonstrou-se que
as citocinas pró-inflamatórias IL-6 e TNF- α encontram-se elevadas nos
estágios iniciais e finais da doença, enquanto a citocina anti-inflamatória IL-
10 aumentou apenas no estágio inicial do transtorno (Kauer-Sant’Anna et al.,
2009; Magalhães et al., 2012b). Além disso, níveis plasmáticos maiores de
CCL11, CCL24 e CXCL10, bem como níveis plasmáticos menores de
CXCL8 foram relatados em pacientes nos estágios finais do TB quando
comparados com controles saudáveis (Barbosa et al., 2013b). Com base
nesses achados, postulou-se que um aumento nas citocinas pró-inflamatórias
nas fases iniciais do transtorno pode ser parte do próprio processo da doença
ou representar uma resposta adaptativa ao prejuízo. Embora a resposta anti-
inflamatória possa ser eficaz no curso inicial da doença, ela se torna menos
eficaz após vários episódios. Em consequência das elevações contínuas das
citocinas pró-inflamatórias, seus efeitos deletérios se tornariam mais
aparentes conforme a doença progride.
Mecanismos epigenéticos
Evidências sugerem que a modulação da expressão de genes e as interações
genéticas em contraponto ao ambiente podem desempenhar papéis
fundamentais no TB (Petronis, 2003; Pregelj, 2011). Isso indica a
importância da modulação da estrutura de cromatina por mecanismos
epigenéticos na fisiopatologia do TB, visto que se trata da principal via pela
qual os fatores ambientais acabam modulando as atividades dos genes.
Estudos mostram que eventos no início da vida, como trauma e abuso na
infância, podem induzir marcadores epigenéticos de longo prazo sobre genes
específicos, os quais também podem interagir com alterações genéticas
(polimorfismos) e, por fim, levar a um fenótipo patológico (Szyf, 2013). O
marcador epigenético mais estudado é a metilação do DNA, que pode inibir a
transcrição do gene ao induzir a formação de heterocromatina ao redor do
promotor de um gene. A metilação do DNA também é o marcador
epigenético mais estável, e vários estudos pré-clínicos demonstraram que a
metilação do DNA induzida por eventos no início da vida pode durar até a
idade adulta em animais (Champagne, 2013). Com base na hipótese de carga
alostática, parece razoável presumir que estressores cumulativos (i.e.,
episódios agudos) podem agir como estímulos ambientais para induzir
alterações específicas em marcadores epigenéticos que, ao final, interferem
na capacidade do paciente de responder e lidar com um novo estressor. Esses
marcadores seriam, então, responsáveis pelas diferenças de resiliência de um
paciente para outro, possivelmente ajudando a elucidar os mecanismos pelos
quais alguns deles acabam desenvolvendo prejuízos graves no funcionamento
após poucos episódios, enquanto outros conseguem superar os efeitos do
estressor e enfrentá-lo de modo adequado.
Mostrou-se, ainda, que pacientes com TB apresentam alterações na
metilação do DNA dentro de vários genes. Um estudo recente revelou que
pacientes com TB tipo II apresentam uma hipermetilação da região
promotora de BDNF em comparação com controles, a qual foi acompanhada
por uma infrarregulação significativa da expressão do gene BNDF
(D’Addario et al., 2012). Ademais, demonstrou-se que o DNA derivado tanto
do cérebro quanto da saliva apresenta uma hipometilação do promotor da
catecol- O -metiltransferase ligada à membrana (MB-COMT) em pacientes
(Nohesara et al., 2011), e um aumento da metilação do DNA do promotor
genético do receptor serotoninérgico 5HTR1A também foi relatado em
leucócitos (Carrard et al., 2011). Observa-se que a metilação global de
leucócitos não foi alterada em pacientes eutímicos com TB em comparação
com controles (Bromberg et al., 2009), o que sugere que alterações
epigenéticas são exclusivas de genes específicos em tecidos diferentes. Essas
alterações podem estar relacionadas à expressão modificada de DNA
metiltransferases (DNMTs), a qual se dá de forma dependente de estado em
pacientes com TB (Higuchi et al., 2011). Até o momento, nenhum estudo
avaliou as diferenças nos níveis de metilação entre pacientes em estágios
iniciais e pacientes em estágios finais.
A relevância da epigenética na fisiopatologia e na progressão do TB
também é corroborada pelos mecanismos conhecidos de ação de
estabilizadores do humor e de antidepressivos, os quais são capazes de
modular várias enzimas e vias associadas à remodelação de cromatinas. Por
exemplo, o valproato de sódio pode inibir a enzima histona desacetilase até
induzir a formação de eucromatina ao redor de promotores específicos (Monti
et al., 2009; Machado-Vieira et al., 2011). Além disso, demonstrou-se que
esse fármaco induz a desmetilação do DNA em extratos nucleares a partir do
cérebro de camundongos adultos (Dong et al., 2010), o que sugere um novo
mecanismo de alteração epigenética. Demonstrou-se também que
antidepressivos revertem alterações de histona induzidas por paradigmas de
estresse crônico em ratos (Tsankova et al., 2006), o que comprova a
capacidade desses fármacos psicotrópicos de reverter alterações induzidas
pelo ambiente. Ao se considerar que a progressão do TB esteve associada a
uma resposta reduzida a determinados tratamentos, especula-se se a
capacidade desses fármacos de modificar a cromatina pode ficar
comprometida com a progressão da doença.
Com base nos efeitos do estresse crônico sobre marcadores epigenéticos,
postulamos que alterações epigenéticas específicas podem determinar a
própria resiliência ao estresse e a outros estímulos ambientais. Isso pode ser
não apenas vital para determinar a gênese do TB em indivíduos sob risco
elevado, mas também para modular a história natural da doença no paciente.
Assim, marcadores epigenéticos podem regular os efeitos malignos de
episódios recorrentes, o que se encaixa na hipótese de estadiamento do TB.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os mecanismos biológicos associados à neuroprogressão do TB parecem ser
complexos, envolvendo vários sistemas no sistema nervoso central e
periférico (Fig. 4.1). Embora os meios pelos quais cada um desses sistemas se
articula individualmente para gerar o transtorno não sejam conhecidos,
postulamos que os prejuízos na resiliência celular são, inicialmente,
induzidos por estresse crônico, o qual torna as células mais vulneráveis a
estímulos estressantes. Além disso, a sinalização trófica reduzida e o aumento
do estresse oxidativo observados em pacientes em estágios finais também
funcionam como mecanismos estimuladores na amplificação da disfunção
celular, deixando as células mais vulneráveis a estressores, além de induzir
apoptose e inflamação. Esses sistemas podem interagir e, por fim, mediar os
resultados clínicos associados à progressão da doença, como aumento da
comorbidade, menor resposta ao tratamento, parâmetros cognitivos e
funcionais prejudicados, entre outros.
Uma vez que os mecanismos biológicos da progressão do TB forem
esclarecidos, eles ajudarão em um estadiamento clínico de base biológica dos
pacientes. Modelos diferentes de estadiamento para o TB já foram propostos
(Berk et al., 2007; Kapczinski et al., 2009a), mas o uso de biomarcadores
para o estadiamento clínico ainda não dispõe de evidências biológicas mais
contundentes e consistentes (Kapczinski et al., 2009b; Fries et al., 2012).
Com esse propósito, futuras pesquisas devem investigar de maneira
aprofundada essas diferenças em estudos longitudinais. Além disso, o campo
também será beneficiado de forma significativa pela avaliação desses
biomarcadores em adolescentes e jovens adultos com TB, bem como pela
análise dos efeitos de tratamento nos mesmos parâmetros. Entre todas as
alterações já mencionadas, os mecanismos epigenéticos parecem ter uma
relevância de destaque, visto que podem, em si, modular todos os outros
sistemas, incluindo neurotrofinas, inflamação e estresse oxidativo.
Conforme abordado anteriormente, dados atuais disponíveis sobre o uso de
biomarcadores no TB se concentram principalmente na atividade da doença e
pouco se sabe sobre esses parâmetros e a progressão do TB. Ademais, os
modelos de estadiamento que foram propostos até o momento são diferentes
entre si, bem como o próprio conceito de progressão da doença (alguns
pesquisadores se concentram na quantidade de episódios, enquanto outros
levam em consideração a duração da doença ou o resultado funcional), o que
poderia explicar as inconsistências entre estudos para as mesmas medidas.
Em suma, um estudo mais aprofundado dos fundamentos biológicos da
neuroprogressão do TB pode conter a chave para a descoberta de biomarca-
dores com valor prognóstico, além de contribuir para o desenvolvimento de
novos fármacos com o objetivo de impedir os prejuízos progressivos no fun-
cionamento e na cognição do paciente, melhorando, assim, sua qualidade de
vida.
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FUNCIONAMENTO E
PROGRESSÃO DA DOENÇA NO
TRANSTORNO BIPOLAR
Adriane R. Rosa
Clarissa S. Gama
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INTRODUÇÃO
O transtorno bipolar (TB) é uma doença mental crônica e grave, sendo a sexta
maior causa de anos de vida perdidos ajustados por incapacidade no mundo
na faixa etária dos 15 aos 44 anos (Catalá-López et al., 2013). O TB
representa um grande problema de saúde pública, com perturbações
psicossociais graves somadas a um aumento da mortalidade (Baldessarini et
al., 2006; Rosa et al., 2008). Embora estudos iniciais tenham indicado que o
prejuízo funcional está associado a episódios de humor agudos (Altshuler et
al., 2006; Rosa et al., 2010), estudos contemporâneos demonstram que esse
prejuízo persiste mesmo durante a remissão (Strakowski et al., 1998; Tohen
et al., 2005). Além disso, disfunções psicossociais no TB não se limitam a
períodos sintomáticos, podendo persistir ou resultar em incapacidade
contínua, o que contribui para sofrimento pessoal elevado e custos
socioeconômicos (Gardner et al., 2006; González-Pinto et al., 2010).
CONCEITO DE FUNCIONAMENTO
O funcionamento psicossocial é um conceito complexo que envolve a
capacidade de o indivíduo desempenhar tarefas cotidianas e desenvolver
relacionamentos com outras pessoas de maneira gratificante tanto para o
indivíduo quanto para os demais e que satisfaça as necessidades da
comunidade na qual a pessoa está inserida (Zarate et al., 2000). A avaliação
do funcionamento psicossocial, portanto, deve envolver, idealmente, a análise
de um ou mais domínios comportamentais, tais como a capacidade de o
indivíduo funcionar nos âmbitos ocupacional ou social ou de viver de forma
independente, sendo que a recuperação funcional, em geral, é definida como
a restauração do funcionamento normal do papel do indivíduo em diversos
domínios (Mintz et al., 1992; Üstün e Kennedy, 2009). Contudo,
pesquisadores tradicionalmente medem um ou dois elementos de
funcionamento e, em geral, não levam em consideração todos os outros
aspectos necessários para o funcionamento ideal. A escala de Avaliação
Global de Funcionamento (GAF, Global Assessment of Functioning), por
exemplo, costuma ser utilizada para avaliar incapacidade, embora suas
instruções originais solicitem uma pontuação dos sintomas e também do
funcionamento geral (Martinez-Aran et al., 2007). Além da GAF, existem
outros instrumentos utilizados para avaliar o funcionamento em transtornos
psiquiátricos como a Escala de Ajustamento Social (SAS, Social Adjustment
Scale), o Questionário de Funcionamento da Vida (LFQ, Life Functioning
Questionnaire), o Formulário Breve-36 (SF-36, Short Form-36) e a Escala de
Avaliação da Incapacitação Psiquiátrica da Organização Mundial da Saúde
(WHO-DAS, World Health Organization – Disability Assessment Schedule).
No caso do TB, um novo instrumento breve de 24 itens administrado por
entrevistador foi desenvolvido para avaliar o funcionamento psicossocial em
domínios distintos da vida. O Teste Breve de Avaliação do Funcionamento
(FAST, Functioning Assessment Short Test) tem fortes propriedades
psicométricas e parece sensível para determinar mudanças mínimas no
funcionamento em curto e longo prazo (Rosa et al., 2008, 2011). O FAST
está disponível em vários idiomas e também foi validado para diversos
transtornos psiquiátricos como TB, esquizofrenia, bem como em pacientes
com um primeiro episódio psicótico (Cacilhas et al., 2009; González-Ortega
et al., 2010).
EVIDÊNCIAS DE PREJUÍZO FUNCIONAL NO
TRANSTORNO BIPOLAR
Novas evidências mostram que, em muitos casos de TB, as recuperações
funcional e sintomáticas não ocorrem ao mesmo tempo. Um estudo
conduzido por Tohen e colaboradores (2000) nos Estados Unidos, por
exemplo, relatou que 98% dos pacientes com o primeiro episódio maníaco
apresentaram remissão dentro de dois anos, enquanto apenas 38% deles
obtiveram recuperação funcional (definida pela proporção de pacientes que
recuperaram o nível pré-mórbido de funcionamento). Keck (2004) descobriu
que apenas 24% dos pacientes com TB tipo I alcançaram recuperação
funcional em algum momento durante o intervalo entre a alta hospitalar e o
acompanhamento de 12 meses. Resultados do estudo Mania Europeia na
Avaliação Longitudinal Bipolar de Medicamentos (EMBLEM, European
Mania in Bipolar Longitudinal Evaluation of Medication) revelaram que
apenas cerca de 20% dos pacientes retornaram aos níveis normais de
funcionamento dentro de 12 meses após um episódio agudo, mesmo quando
não estavam sofrendo de sintomas subsindrômicos (Montoya et al., 2007).
Em um período de acompanhamento de 10 anos, Goldberg e Harrow (2004)
revelaram que aproximadamente 50% dos pacientes bipolares tiveram
remissão sustentada ou padrões de melhora, enquanto 30 a 40%
experimentaram algum grau de incapacidade social. De modo semelhante,
nossos achados anteriores mostraram maior incapacidade associada ao TB,
visto que apenas um quarto dos pacientes que atingiram a remissão
sintomática dentro de seis meses de tratamento contínuo alcançou
funcionamento favorável (Rosa et al., 2010). Pacientes com TB
experimentam uma disfunção grave em domínios distintos da vida
(Strakowski et al., 1998; Goetz et al., 2007; Rosa et al., 2012); essas
disfunções podem começar já no início do curso da doença (ver a Fig. 5.1).
FIGURA 5.1 Prejuízo funcional em pacientes no primeiro episódio em
comparação a pacientes com vários episódios.
Quantidade de episódios
Um corpo de evidências relata que o mau funcionamento pode, em parte, ser
explicado pela gravidade da doença (i.e., pela quantidade de episódios). Por
exemplo, MacQueen e colaboradores (2000) revelaram que os pacientes com
maior quantidade de episódios, especialmente depressões passadas, têm
maior probabilidade de experimentar mau funcionamento global, conforme
avaliação pela GAF. Além disso, depressões passadas foram associadas a
prejuízo nas subescalas de saúde mental e funcionamento social do
Questionário de Resultado do Humor (MOS, Mood Outcome Questionnaire),
o que destaca o impacto negativo da quantidade de episódios sobre o
funcionamento (MacQueen et al., 2000). Por meio do instrumento FAST,
demonstramos que a quantidade de episódios mistos anteriores esteve
associada a funcionamento pobre, principalmente nas áreas de funcionamento
social, cognição e questões financeiras (Rosa et al., 2009). Além disso, um
estudo recente de acompanhamento de um ano comparou o funcionamento
entre pacientes com primeiro episódio e com vários episódios, e mostrou uma
recuperação funcional e sintomática maior no primeiro grupo. Em especial,
pacientes com um único episódio mostraram um nível maior de autonomia,
melhor desempenho no trabalho e maior capacidade de aproveitar seus
relacionamentos e o tempo destinado ao lazer quando comparados a pacientes
com vários episódios (Rosa et al., 2012). Combinados, esses dados oferecem
respaldo para o modelo de estadiamento no TB e sugerem que a quantidade
de episódios é um fator importante que contribui para a progressão de
estágios da doença de apresentações menos graves para apresentações mais
graves e, consequentemente, para um resultado mais desfavorável.
Além disso, documentou-se que o grau de prejuízo funcional pode variar
conforme a natureza dos episódios de humor (Simon et al., 2007). Ao
compararmos o prejuízo funcional e a incapacidade de passar de um estado
de humor para outro, encontramos uma pontuação maior no teste FAST em
pacientes durante um episódio depressivo, seguidos por pacientes em
episódio (hipo)maníaco e, por fim, o grupo eutímico (Rosa et al., 2010).
Especificamente, pacientes com depressão apresentaram maior dificuldade
em desempenho de trabalho e em relações interpessoais do que pacientes
maníacos (Rosa et al., 2010). Simon e colaboradores (2007) encontraram uma
forte associação entre a gravidade da depressão e o prejuízo ocupacional,
medido pela probabilidade de emprego e pelos dias perdidos no trabalho
devido à doença. No entanto, as associações entre mudanças maníacas e
desempenho no trabalho foram menos consistentes (Simon et al., 2008).
Ademais, alguns relatos mostraram o impacto negativo da quantidade de
episódios maníacos sobre o desempenho neurocognitivo e,
consequentemente, funcionamento pobre (Robinson e Ferrier, 2006; Lopez-
Jaramillo et al., 2010). Esses dados são compatíveis com estudos anteriores
que mostram uma associação entre substância cinzenta reduzida e quantidade
de episódios maníacos no córtex pré-frontal de sujeitos com TB; essas
alterações podem contribuir para disfunções executivas (Lyoo et al., 2004).
Um levantamento epidemiológico de grandes proporções conduzido nos
Estados Unidos mostrou que pacientes com estado misto eram mais
propensos a sofrer prejuízo no trabalho e a ter problemas no relacionamento
conjugal do que pacientes sem sintomas (Goldberg et al., 1995). Além disso,
um estudo independente revelou que pacientes com episódios
mistos/ciclagem precisavam de um tempo maior (40 semanas) para responder
ao tratamento quando comparados a pacientes com depressão bipolar (24
semanas), bem como para estabilizar pacientes com mania (11 semanas)
(Chegappa et al., 2005). Da mesma forma, demonstrou-se que pacientes com
episódio depressivo e componentes mistos, especialmente sujeitos com TB
tipo II, são mais propensos a tentativas de suicídio e a um prognóstico
desfavorável (Rihmer, 2005).
Sintomas depressivos
Documentou-se que sujeitos com TB passam cerca de um terço de suas vidas
adultas com sintomas depressivos (Judd et al., 2004). A sintomatologia em
níveis sindrômicos ou subsindrômicos esteve consistentemente associada a
um funcionamento pobre (Fagiolini et al., 2005; Altshuler et al., 2006; Simon
et al., 2008; Marangell et al., 2009). Um estudo britânico envolvendo
pacientes com depressão unipolar demonstrou que 34% deles sofrem de
sintomas depressivos residuais após o episódio índice de depressão. Além
disso, pacientes com sintomas residuais são mais propensos a experimentar
funcionamento pobre em termos de estado civil, tempo de lazer,
relacionamentos sociais, funcionamento ocupacional e funcionamento geral
no acompanhamento (Coryell et al., 1993). Dados do Programa de Pesquisa
Cooperativa para o Tratamento de Depressão do Instituto Nacional de Saúde
Mental (National Institute of Mental Health Treatment of Depression
Collaborative Research Program) mostram uma relação aparentemente linear
entre o aumento dos sintomas depressivos e o aumento da incapacidade,
incluindo ocasiões quando os sintomas não são graves o suficiente para
satisfazer os critérios de um episódio depressivo (Judd et al., 2005). Outro
trabalho independente relatou que a melhora de um nível na gravidade da
depressão esteve associada a uma melhora de 22 pontos na subescala de
Desempenho Emocional do Levantamento de 36 itens dos Resultados
Médicos (Role-Emotional subscale of the Medical Outcomes Survey 36-item
SF-36), bem como a 3,8 dias adicionais a cada três meses de ser capaz de
participar em atividades habituais (Simon et al., 2007). Os sintomas
depressivos subsindrômicos estiveram fortemente relacionados a prejuízos
em vários domínios de funcionamento, como responsabilidades no
trabalho/escola, tarefas domésticas e relacionamento com família/amigos
entre pacientes bipolares (Simon et al., 2007). Da mesma forma, nossos
estudos anteriores mostram que sintomas depressivos residuais, ainda que
mínimos, são os melhores preditores de prejuízo cognitivo e ocupacional
(Rosa et al., 2008). Além disso, sintomas depressivos contínuos estão
fortemente associados a recaídas (Keller et al., 1992; Atkinson et al., 1997).
Considerando o impacto negativo dos sintomas depressivos sobre o
funcionamento, se faz necessária a introdução de intervenções terapêuticas
concentradas no tratamento desses sintomas, mas visando melhorar o
funcionamento psicossocial e prevenir recaídas.
Idade de início
O impacto da idade de início da doença sobre o resultado foi documentado
em um estudo de grande porte para o Programa para a Intensificação do
Tratamento Sistemático para o Transtorno Bipolar (STEP-BD, Systematic
Treatment Enhancement Program for Bipolar Disorder) conduzido por Perlis
e colaboradores (2009). Os autores relataram que pacientes com início dos
sintomas de humor antes dos 13 anos de idade experimentaram pior
funcionamento e qualidade de vida, bem como menos dias de eutimia do que
indivíduos cujo início dos sintomas se deu após os 18 anos de idade (Perlis et
al., 2009). Esses achados são compatíveis com um relato recente de
Baldessarini e colaboradores (2012) que mostra melhores resultados sociais e
funcionais em pacientes cujo início dos sintomas se deu mais tarde (≥19
anos), em comparação a indivíduos cujo início ocorreu durante a infância
(<12 anos) e adolescência (12-18 anos). Pacientes com idade de início mais
precoce são mais propensos a apresentar história familiar e índices elevados
de sintomas psicóticos, comorbidades e ciclagem rápida. Ao investigar
diferenças clínicas em potencial entre pacientes com alternâncias
relacionadas ao tratamento em oposição ao grupo sem alternância, Valentí e
colaboradores (2012) revelaram que a idade de início esteve fortemente
associada à ocorrência de uma alternância relacionada a antidepressivos.
Além disso, uma análise recente de evidências relacionadas à idade de início
no TB enfatizou a importância do momento de início em termos de
prognóstico. Pacientes com início precoce e tardio de TB parecem apresentar
diferenças significativas em alguns aspectos clínicos, como história familiar,
neurocognição e perfil anatômico (Geoffroy et al., 2013). Combinados, todos
esses estudos indicam que o TB com início durante a juventude pode estar
associado a uma forma mais virulenta da doença e destacam a importância de
identificação, diagnóstico imediato e tratamento precisos para o subgrupo
com TB de início precoce.
Déficits cognitivos
O prejuízo cognitivo parece relacionado a um pior curso clínico, bem como a
um funcionamento psicossocial mais pobre (Tabarés-Seisdedos et al., 2008).
Déficits cognitivos maiores também estão associados à gravidade da doença
(Robinson e Ferrier, 2006; Martinez-Aran et al., 2007) e, especialmente, a
episódios de humor cumulativos (Torres et al., 2007). De fato, a quantidade
de episódios maníacos parece prever o prejuízo cognitivo (Robinson e
Ferrier, 2006). A esse respeito, Lopez-Jaramillo e colaboradores (2010)
revelaram um desempenho neurocognitivo mais baixo em pacientes
eutímicos que haviam tido pelo menos três episódios maníacos em
comparação àqueles com apenas um episódio de mania. Outras características
clínicas, tais como hospitalizações (Lopez-Jaramillo et al., 2010), duração da
doença (Martinez-Aran et al., 2007) e comorbidades psiquiátricas (Sánchez-
Moreno et al., 2009), parecem contribuir para o prejuízo cognitivo. Déficit de
memória, de atenção e de funcionamento executivo são relatados de forma
consistente em pacientes bipolares eutímicos (Torrent et al., 2006); tais
deficiências podem levar ao prejuízo funcional (Delbello et al., 2007; Jaeger
et al., 2007). Especificamente, prejuízos no aprendizado e na memória
verbais foram identificados como os melhores preditores de funcionamento
em longo prazo (Bonnín et al., 2012). De modo semelhante, outros estudos
longitudinais demonstram que pacientes com maiores disfunções executivas
são propensos a ter mais dificuldades em suas atividades diárias (Tabarés-
Seisdedos et al., 2008; Martino et al., 2011). Martinez-Aran e colaboradores
(2007) compararam o desempenho neurocognitivo em pacientes com
funcionamento baixo e elevado, relatando que pacientes com baixo
funcionamento apresentavam prejuízo significativamente maior na memória e
nas funções executivas. Os autores sugerem que os pacientes com disfunções
na memória experimentam dificuldade em se lembrar de informações de
longo prazo, o que pode estar associado a um funcionamento pobre,
particularmente na produtividade laboral e nos relacionamentos interpessoais
(Martinez-Aran et al., 2007).
Alguns estudos investigaram a contribuição de déficits neuropsicológicos
no funcionamento psicossocial em uma população jovem com TB. Por
exemplo, um desses estudos mostrou que um subgrupo de pacientes com
maior déficit cognitivo apresentava risco maior de ser colocado em uma aula
especial, bem como tendência ao baixo aproveitamento acadêmico. Contudo,
os autores não encontraram uma relação entre o prejuízo neuropsicológico e o
prejuízo psicossocial nessa população específica (Biederman et al., 2011).
Henry e colaboradores (2013) analisaram a capacidade funcional cotidiana,
por meio da Avaliação de Habilidades com Base em Desempenho
(Performance-Based Skills Assessment), em adultos maníacos, deprimidos e
eutímicos com TB. Os autores descobriram que pacientes bipolares
experimentam funcionamento mais fraco em todos os domínios (incluindo
planejamento, atividades recreativas, finanças, habilidades de comunicação,
transporte, habilidades domésticas e manejo de medicamentos) em
comparação com controles saudáveis. Pacientes maníacos, em particular,
apresentaram desempenho significativamente mais baixo no funcionamento
geral e também na parte de manejo de medicamentos em comparação aos
outros grupos. Ao investigar os preditores de prognóstico no TB, Reinares e
colaboradores (2013) mostraram que quatro características clínicas –
densidade de episódio, sintomas depressivos residuais, inteligência verbal
estimada e controle inibitório – estavam fortemente associadas a um curso
mais grave da doença (Reinares et al., 2013). Recentemente, o impacto de
déficits cognitivos sobre o funcionamento psicossocial foi investigado em um
estudo de acompanhamento mais prolongado, com duração de seis anos. Os
autores revelaram que os déficits cognitivos, em especial o funcionamento
executivo, a inibição e a velocidade de processamento e a memória verbal,
persistiram no decorrer do tempo, estando fortemente associados a prejuízo
cognitivo e ocupacional conforme medição do instrumento FAST. Além
disso, o estudo mostrou que os déficits cognitivos persistem durante os
estágios intermediários e finais do TB, sendo mais acentuados em pacientes
com uma duração mais prolongada da doença (Mora et al., 2013). Em suma,
essas evidências indicam que há uma forte relação entre déficit cognitivo e
funcionamento pobre, e que um prejuízo maior pode ser consequência da
duração mais prolongada da doença e da quantidade mais elevada de
episódios (Fig. 5.3).
FIGURA 5.3 Os principais fatores associados ao funcionamento pobre.
Anabel Martinez-Aran
Caterina del Mar Bonnin
Carla Torrent
Brisa Solé
Imma Torres
Esther Jiménez
INTRODUÇÃO
O transtorno bipolar (TB) está associado a prejuízo cognitivo, o qual também
ocorre durante períodos de eutimia. Essa afirmação tem o respaldo de várias
publicações. Até o momento, seis metanálises sobre os déficits cognitivos
associados ao TB eutímico foram conduzidas (Robinson et al., 2006; Torres
et al., 2007; Arts et al., 2008; Bora et al., 2009; Mann-Wrobel et al., 2011;
Bourne et al., 2013). De acordo com esses estudos, domínios específicos de
prejuízo incluem controle executivo, aprendizado e memória verbais,
memória de trabalho e atenção sustentada. Os prejuízos cognitivos já estão
presentes no início do curso do TB (Torres et al., 2011). Além disso, uma
associação positiva entre disfunção neurocognitiva e prejuízo funcional foi
demonstrada em estudos transversais (Zubieta et al., 2001; Dickerson et al.,
2004; Martinez-Aran et al., 2004b; Laes e Sponheim, 2006) e longitudinais
(Jaeger et al., 2007; Tabarés-Seisdedos et al., 2008; Martinho et al., 2009;
Bonnín et al., 2010). De qualquer forma, deve-se ter em mente que estudos
recentes demonstraram que o percentual de pacientes com prejuízos
neurocognitivos clinicamente significativos oscila entre 30 e 62% (Martino et
al., 2008; Gulatieri e Morgan, 2008; Reichenberg et al., 2009; Iverson et al.,
2011), o que indica que alguns indivíduos com TB podem apresentar
funcionamento neurocognitivo dentro dos limites da normalidade.
Robinson e Ferrier (2006) forneceram uma análise narrativa de estudos
que consideraram a relação entre as variáveis da doença e os déficits
cognitivos. Eles encontraram uma associação entre a quantidade de episódios
anteriores, particularmente episódios maníacos, e o funcionamento
neurocognitivo, o que sugere que episódios sucessivos podem estar
relacionados a um declínio neurocognitivo progressivo. Na mesma linha,
outra análise recente revelou aumentos na disfunção cognitiva como função
da quantidade anterior de episódios de humor (Post et al., 2012). Contudo,
esses resultados divergem dos poucos e restritos estudos longitudinais acerca
do funcionamento neurocognitivo publicados até o momento (ver a seção
“Estudos de acompanhamento e modelos de estadiamento”). Martino e
colaboradores (2013), todavia, não encontraram respaldo para o fato de a
experiência de episódios sucessivos estar relacionada a um declínio
neurocognitivo progressivo, mas sim para o fato de o prejuízo cognitivo
poder simplesmente ser a causa, mais do que a consequência, de um curso
clínico mais desfavorável. Da mesma forma, Depp e colaboradores (2012)
sugeriram uma relativa independência entre a gravidade do sintoma de humor
e as capacidades cognitivas.
IMPLICAÇÕES CLÍNICAS E SOBRE O
FUNCIONAMENTO
Há diferentes fatores que, direta ou indiretamente, podem influenciar o
funcionamento cognitivo no TB: a história de sintomas psicóticos anterior
pode estar associada a um funcionamento cognitivo mais pobre em pacientes
bipolares (Martinez-Aran et al., 2004b; Albus et al., 2006; Daban et al., 2006;
Martinez-Aran et al., 2008). Contudo, outros relatos recentes sugerem que a
presença de história anterior de sintomas psicóticos não estava relacionada a
mais disfunções cognitivas (Selva et al., 2007; Brissos et al., 2011). Esse
fator justifica novas investigações, visto que ainda há pouquíssimas pesquisas
sobre essa questão no TB.
No que se refere ao subtipo de TB, tanto o tipo I como o tipo II
apresentam disfunção cognitiva. Apesar disso, sujeitos com TB tipo I
geralmente apresentam maior prejuízo do que os indivíduos com o tipo II
(Harkavy-Friedman et al., 2006; Torrent et al., 2006; Solé et al., 2012;
Kessler et al., 2013).
A sintomatologia subdepressiva também tem um impacto negativo sobre o
funcionamento geral (Bauwens et al., 1991), especificamente sobre o
funcionamento ocupacional e o funcionamento cognitivo (Kessing, 1998;
Martinez-Aran et al., 2000, 2002; Bonnín et al., 2010).
Pesquisas neurobiológicas revelam que algumas correlações com a função
cognitiva, como níveis elevados de homocisteína, têm sido associadas a
prejuízo cognitivo em adultos mais velhos que, afora o transtorno, eram
saudáveis, especialmente prejuízo na atenção, na linguagem e na evocação
imediata (Dittman et al., 2007). Fatores hormonais também podem estar
associados a disfunções neurocognitivas (Prohaska et al., 1996), juntamente
com a hipercortisolemia. A hipercortisolemia pode ocorrer nas fases
deprimida e maníaca do TB. Alguns estudos sugeriram que níveis elevados
de cortisol podem produzir danos ao hipocampo, além de explicar
parcialmente o desempenho prejudicado encontrado em medições
neuropsicológicas de aprendizado e memória declarativos (Altshuler et al.,
1998; van Gorp et al., 1998). Apesar disso, um estudo recente sobre o
desempenho neurocognitivo de pacientes bipolares eutímicos não encontrou
associação entre as medições cognitivas e a hipercortisolemia (Thompson et
al., 2005).
A duração do TB sempre esteve associada à disfunção cognitiva
(Johnstone et al., 1985). A duração da doença esteve correlacionada de forma
negativa com a pontuação em testes de função executiva (Clark et al., 2002;
Thompson et al., 2005), velocidade psicomotora (Martinez-Aran et al.,
2004a; Thompson et al., 2005) e memória verbal (Cavanagh et al., 2002;
Deckersbach et al., 2004). A memória verbal foi a medida associada de forma
mais consistente com a duração da doença. Nenhum dos estudos relatou
associações significativas entre a duração dos períodos de eutimia e o
desempenho em testes cognitivos (El-Badri et al., 2001; Clark et al., 2002;
Thompson et al., 2005).
Segundo vários estudos, déficits cognitivos, especificamente nos domínios
de atenção, memória e funcionamento executivo, estão relacionados à
quantidade de episódios de humor anteriores (Post et al., 2012); os efeitos de
sintomatologia maníaca sobre a cognição parecem mais fortes do que os
efeitos dos sintomas depressivos (Lopez-Jaramillo et al., 2010; Aminoff et
al., 2013).A maioria dos estudos relatou que os pacientes com número mais
elevado de hospitalizações mostraram pior desempenho em medições
cognitivas (Zubieta et al., 2001; Clark et al., 2002; Thompson et al., 2005). É
provável que a quantidade de internações possa constituir uma medida
indireta da gravidade dos episódios e do curso da doença.
Revelou-se que outros fatores, como abuso de substância (van Gorpo et
al., 1998; Sanchez-Moreno et al., 2009) e perturbações do sono (Cipolli,
1995), influenciam o desempenho cognitivo de forma negativa. No que se
refere a medicamentos, a maioria das evidências atuais sugere que o efeito de
prejuízo parece mais relacionado à própria doença do que aos efeitos da
farmacoterapia.
NEURODESENVOLVIMENTO OU
NEUROPROGRESSÃO?
Há evidências que sugerem que indivíduos com TB apresentam alterações
neuropsicológicas de desenvolvimento e progressivas. O TB pode ser
considerado um transtorno do desenvolvimento, com início precoce e que
resulta em condições patológicas durante a idade adulta (Geoffroy et al.,
2013). Pacientes com TB experimentam um curso crônico caracterizado por
prejuízo cognitivo progressivo, sintomas residuais, perturbações do sono e do
ritmo circadiano, desregulação emocional e aumento do risco de comorbidade
psiquiátrica e médica entre episódios de humor (Leboyer e Kupfer, 2010).
Conforme a hipótese de neurodesenvolvimento, alguns déficits cognitivos
podem estar presentes antes do início da doença, provavelmente em um grau
menor ou em um pequeno subgrupo de pacientes bipolares. Por exemplo,
tanto o desenvolvimento neural quanto a função do córtex pré-frontal
sabidamente apresentam anormalidades na esquizofrenia e no TB. Tabarés-
Seisdedos e colaboradores (2006) tentaram testar a hipótese de que essas
características possam estar relacionadas a genes que regulam a migração
neuronal. Seus achados preliminares sugerem que mutações de genes
envolvidos na migração neural observada em pacientes bipolares e
esquizofrênicos podem levar a um desempenho mais fraco em testes de
função executiva. É possível que alguns déficits cognitivos estejam presentes
antes do início da doença, mas pouquíssimos estudos foram feitos em
populações de alto risco. Gourovitch e colaboradores (1999) relataram
déficits cognitivos em um grupo de alto risco composto por irmãos não
afetados de gêmeos monozigóticos discordantes para TB, como prejuízo leve
no aprendizado geral e na evocação. Vários estudos relataram prejuízo em
parentes de primeiro grau não afetados de pacientes bipolares (Zalla et al.,
2004; Antila et al., 2007; Schulze et al., 2011) quando comparados a
controles. Esses achados consideram a disfunção cognitiva como um
marcador endofenotípico para o TB.
Quanto a funções cognitivas emocionais, casos de TB de início precoce
mostram maior reatividade a estímulos emocionais, bem como reações mais
fortes a situações ameaçadoras (Grillon et al., 2005). Em comparação a
controles saudáveis, tanto crianças com TB quanto crianças com risco
familiar elevado de TB mostram menos aptidão para o reconhecimento de
expressões faciais emocionais, e esse déficit parece prever a progressão para
TB nas crianças que correm risco mais elevado (Brotman et al., 2008).
Prejuízos na memória de trabalho, nas habilidades visuomotoras e no
controle inibitório parecem particularmente acentuados em pacientes jovens
com TB, em comparação a adolescentes saudáveis com idade e gênero
correspondentes (Lera-Miguel et al., 2011).
Uma metanálise recente de estudos sobre esquizofrenia de início precoce e
TB pediátrico revelou que indivíduos com TB pediátrico demonstram déficit
no aprendizado verbal e na memória, na velocidade de processamento e no
controle executivo. Curiosamente, esses déficits são quantitativamente menos
acentuados, mas qualitativamente semelhantes aos encontrados em pacientes
com esquizofrenia de início precoce (Nieto e Castellanos, 2011).
Seguindo a hipótese neuroprogressiva, um curso clínico mais desfavorável
da doença também parece ter uma influência negativa sobre a cognição. Isso
significa que uma maior quantidade de episódios, especialmente do tipo
maníaco, a duração da doença e a quantidade de hospitalizações podem estar
relacionadas a um prejuízo cognitivo maior.
Outro achado interessante surgiu de um estudo realizado por Kessing e
Andersen (2004), os quais sugeriram que o risco de demência parecia
aumentar com a quantidade de episódios em transtornos afetivos depressivos
e bipolares. Em média, o índice de demência tendia a aumentar em 13% a
cada episódio que levava à internação de pacientes unipolares e em 6% a
cada episódio que levava à internação de pacientes bipolares. Mais pesquisas
são necessárias para examinar se o declínio cognitivo no TB é diferente ou
não do que se espera do envelhecimento normal. Mesmo assim, o avanço da
perturbação após episódios repetidos não está totalmente evidente, visto que
outros autores não encontraram diferenças significativas entre pacientes
bipolares de primeiro episódio e com vários episódios no que tange o
funcionamento cognitivo (Nehra et al., 2006). Esses achados contraditórios
indicam que mais pesquisas são necessárias para elucidar o impacto da
cronicidade.
Estudos longitudinais são necessários para avaliar a evolução do prejuízo
cognitivo em pacientes bipolares, com a finalidade de determinar a
estabilidade ou a progressão do déficit cognitivo no que se refere a essas duas
hipóteses. Provavelmente, ambas as hipóteses sejam complementares no que
diz respeito ao TB..
ESTUDOS DE ACOMPANHAMENTO E
MODELOS DE ESTADIAMENTO
Recentemente, um corpo de evidências cada vez maior de estudos
longitudinais confirmou os achados indicados por estudos transversais
anteriores.
Os primeiros estudos longitudinais foram realizados durante um ano de
acompanhamento (Martino et al., 2009; Bonnín et al., 2010) e revelaram que
o prejuízo neurocognitivo estava relacionado a um resultado psicossocial
desfavorável. Contudo, esses estudos avaliaram apenas o desempenho
neurocognitivo de base e não no acompanhamento.
O primeiro estudo de acompanhamento, com duração de dois anos, foi
publicado em 2008. A neurocognição foi avaliada duas vezes: na linha de
base e dois anos depois. Descobriu-se que pacientes tratados com lítio
apresentavam um desempenho fraco na velocidade de processamento e nas
funções executivas. Esses autores revelaram ainda que o prejuízo se mantém
estável com o tempo. No entanto, vale mencionar que apenas alguns
pacientes tiveram recaídas durante o período de acompanhamento (Mur et al.,
2008). Resultados semelhantes foram demonstrados em um estudo
longitudinal com acompanhamento de seis anos pelo mesmo grupo:
funcionamento executivo, inibição, velocidade de processamento e memória
verbal foram os domínios mais afetados, com efeito residual sobre a
adaptação psicossocial dos pacientes (Mora et al., 2013).
Um estudo de acompanhamento de três anos que comparou pacientes
esquizofrênicos e bipolares sugeriu que ambos os grupos de pacientes
apresentavam mais prejuízo em várias medidas neuropsicológicas do que os
controles saudáveis (Balanzá-Martínez et al., 2005).
De modo geral, estudos longitudinais de funcionamento neurocognitivo
publicados até o momento revelam um padrão estável de prejuízo cognitivo
no decorrer do tempo. A exceção é um estudo longitudinal de nove anos, que
revelou um agravamento no funcionamento executivo. Análises posteriores
revelaram que a duração da doença e os sintomas subdepressivos estiveram
associados a um desempenho mais fraco nas funções executivas (Torrent et
al., 2013).
Outros estudos sugerem o efeito do curso clínico sobre a neurocognição e
o funcionamento psicossocial. Por exemplo, Lopez-Jaramillo e colaboradores
(2010) avaliaram três grupos de pacientes bipolares eutímicos conforme a
quantidade de episódios maníacos anteriores. Embora não fosse um estudo de
acompanhamento, as evidências indicaram que a recorrência de mania em
longo prazo teve impacto sobre a neurocognição. Os pacientes que
experimentaram três ou mais episódios apresentaram mais prejuízo na
atenção e nas funções executivas quando comparados a pacientes que haviam
sofrido apenas um episódio.
A literatura mostra que os pacientes com TB apresentam bom
funcionamento neurocognitivo pré-mórbido antes do início da doença
(Lewandowski et al., 2011). Contudo, depois do início da doença,
especialmente após o primeiro episódio de mania, mudanças fisiopatológicas
significativas começam a ocorrer (Andreazza et al., 2009; Kauer-Sant’Anna
et al., 2009). Essas alterações (redução no fator neurotrófico derivado do
cérebro, aumento das citocinas inflamatórias), detectáveis em níveis séricos,
podem mediar a disfunção, afetando o desempenho neuropsicológico. Na
realidade, muitos estudos destacam o efeito neurotóxico de episódios
maníacos sobre a neurocognição, especificamente das funções executivas
(Thompson et al., 2005; Elshahawi et al., 2010; Lopez-Jaramillo et al., 2010).
Portanto, episódios maníacos parecem estar relacionados de forma mais
consistente ao prejuízo neurocognitivo (especialmente memória verbal e
funções executivas), enquanto episódios depressivos se relacionam de forma
menos consistente a uma gama mais ampla de prejuízos (Savitz et al., 2005).
Em comparação com a esquizofrenia, um estudo longitudinal com duração
de cinco anos sugere que a neurocognição sofre um declínio constante no
decorrer do curso inicial da doença, mas, no TB, ela parece mais estável.
Burdick e colaboradores descobriram que pacientes esquizofrênicos exibiam
deterioração significativa no funcionamento executivo, mas sem alterações
relevantes em outros domínios, enquanto pacientes com TB mostravam
estabilidade no decorrer do tempo nas medidas de atenção, mas maior
variabilidade em outros domínios (Burdick et al., 2006).
Uma metanálise recente (Mann-Wrobel et al., 2011) subdividiu os estudos
com base nas variáveis do curso clínico (p. ex., quantidade de episódios, -
insight, psicose, etc.) com a finalidade de avaliar o impacto do curso clínico
sobre a neurocognição. Os resultados obtidos sugerem que o grupo com curso
clínico desfavorável teve um desempenho modestamente pior em comparação
com o grupo com bom curso clínico. Nessa mesma linha, Bora e
colaboradores (2009) revelaram que uma idade mais jovem de início esteve
associada a prejuízo na memória verbal e lentidão psicomotora. Outra
metanálise apontou que a função neurocognitiva esteve relacionada de forma
negativa a determinadas características do transtorno, como duração da
doença (Robinson et al., 2006). Por fim, Arts e colaboradores (2008)
encontraram um efeito para sexo, idade e educação. Especificamente, maiores
proporções de efeito foram encontradas no caso de educação em testes que
mediram as variáveis de amplitude, fluência e classificação de cartas em
estudos nos quais o nível médio de educação dos participantes era maior. De
maneira similar, Mann-Wrobel e colaboradores (2011) revelaram que o
tamanho do efeito do prejuízo cognitivo diminui como função de educação.
Os autores postularam que a educação poderia ser um marcador relacionado
ao início e à gravidade do transtorno, já que uma doença precoce e grave
interfere com o nível de instrução.
Esses resultados estão alinhados com a hipótese de neuroprogressão
(Goodwin et al., 2008) e modelos de estadiamento (Kapczinski et al., 2009),
então é possível que a neuroprogressão funcione conforme mostra a Tabela
6.1.
TABELA 6.1
Estadiamento clínico do transtorno bipolar (Kapczinski et al., 2009)
Estágio Características clínicas Cognição
Sergio Strejilevich
Diego J. Martino
INTRODUÇÃO
A maioria dos sintomas característicos do transtorno bipolar (TB) está
relacionada a distorções ou falhas em comportamentos, as quais estão
relacionadas à tomada de decisão e ao processamento emocional. Erros em
decisões de natureza financeira, vocacional e social devido à subestimação ou
a uma compreensão distorcida dos sentimentos das outras pessoas são
frequentes em episódios maníacos e, provavelmente, estão entre as fontes
mais importantes do ônus dos transtornos afetivos. Além disso, dificuldade
em tomar decisões simples – como que roupa vestir para o trabalho – ou
temores inadequados que podem levar a desafios cotidianos são sintomas
típicos, presentes no âmago do TB. Uma das formas mais promissoras de
tratar as bases fisiológicas desse tipo de sintomatologia é por meio dos
paradigmas de cognição social. A cognição social se refere às operações
mentais subjacentes às interações sociais, as quais podem ser relativamente
independentes dos outros aspectos de cognição e não são avaliadas por
tarefas neurocognitivas tradicionais (Pinkham et al., 2003).
Um dos aspectos fundamentais da cognição social é a capacidade
cognitiva de atribuir estados mentais – como crenças, desejos e intenções – a
si mesmo e aos outros. Essas capacidades foram conceitualizadas como a
teoria da mente (TdM). A TdM, também chamada de mentalização ou leitura
da mente, começa a se desenvolver depois da aquisição de representação
secundária no segundo ano de vida (Suddendorf e Withen, 2001). Outro
aspecto de cognição social está relacionado à capacidade de fazer a distinção
precisa entre diferentes emoções expressadas facialmente. Acredita-se que
essas emoções sejam inatas, automáticas e universais (Darwin, 1872; Ekman
e Friesen, 1971); e novas pesquisas demonstram que elas podem ser
moduladas por fármacos timolépticos como os antidepressivos (Harmer et al.,
2009). A maioria das investigações que avaliam o reconhecimento de
expressões faciais de emoções solicitou que os sujeitos combinassem
(paradigmas de combinação) ou nomeassem (paradigmas de nomeação)
imagens de expressões faciais posadas segundo as seis emoções básicas
exibidas: alegria, tristeza, raiva, aversão, medo e surpresa (Young et al.,
2002; Bozikas et al., 2006).
Por fim, um domínio intimamente relacionado à cognição social são as
tomadas de decisão afetivas, que implicam contrapor escolhas em associação
a graus variáveis de recompensa e castigo. Diferentes paradigmas foram
desenvolvidos com a finalidade de simular processos de tomada de decisão
na vida real, os quais exigem que o sujeito considere ganhos em curto prazo
contra perdas potenciais em longo prazo (Bechara et al., 1994; Rubinsztein et
al., 2000). Pesquisas sobre cognição social no TB podem ajudar a obter uma
melhor compreensão sobre os mecanismos cognitivos envolvidos nesse
transtorno. Contudo, apesar das fortes evidências que oferecem respaldo ao
prejuízo de diferentes domínios neurocognitivos tradicionais em pacientes
bipolares e da forte associação entre disfunção cognitiva e incapacidade
funcional (Martino et al., 2009; Bourne et al., 2013), pesquisas sobre
cognição social e emocional no TB ainda são escassas.
Tendo por objetivo analisar uma possível contribuição da cognição social
para os modelos de estadiamento do TB (Berk et al., 2007; Kapczinski et al.,
2009), abordamos, neste capítulo, as evidências de: (1) cognição social no
TB, (2) cognição social e funcionamento e (3) cognição social e o curso do
TB. Na seção “Considerações finais”, os autores esboçam os rumos de novas
pesquisas na área e analisam uma possível contribuição da avaliação de
cognição social nos modelos de marcação no TB.
COGNIÇÃO SOCIAL NO TRANSTORNO
BIPOLAR
O primeiro estudo elaborado especificamente para avaliar habilidades da
TdM no TB revelou que tanto pacientes maníacos quanto depressivos
apresentavam prejuízos, enquanto pacientes eutímicos tinham um
desempenho comparável aos controles (Kerr et al., 2003). Estudos posteriores
demonstraram de forma consistente que pacientes bipolares eutímicos
apresentam déficit em tarefas da TdM (Inoue et al., 2004; Bora et al., 2005;
Olley et al., 2005; Lahera et al., 2008; Shamay-Tsoory et al., 2009;
McKinnon et al., 2010; Montag et al., 2010; Wolf et al., 2010; Martino et al.,
2011). Esses estudos encontram-se resumidos na Tabela 7.1. Contudo, os três
estudos com maior amostragem relataram que prejuízos na TdM podem ser
mediados, pelo menos em parte, por prejuízos nos domínios neurocognitivos
tradicionais (atenção e funções executivas) e exposição a drogas psicoativas
(Bora et al., 2005; Lahera et al., 2008; Martinho et al., 2011). Portanto, mais
estudos são necessários antes que se possa concluir que os déficit na TdM são
marcadores de traços no TB.
TABELA 7.1
Estudos sobre a teoria da mente em pacientes eutímicos com transtorno
bipolar
Estudo Amostra Idade Medidas Principais achados
(média) eutímicas
44,5
Inoue e 16 TBI, Depressão em Prejuízos na TdM tanto em
colaboradores, 34 TDM remissão: TB quanto em TDM
2004 e 50 HDRS ≤ 7
controles
TB: transtorno bipolar; TBI: transtorno bipolar tipo I; TBII: transtorno bipolar tipo II; TDM: transtorno depressivo
maior; BDI: Inventário de Depressão de Beck; HDRS: Escala de Depressão de Hamilton; YMRS: Escala de Mania em
Jovens; TdM: teoria da mente.
TABELA 7.2
Estudos sobre tomada de decisão em pacientes eutímicos com transtorno
bipolar
Estudo Amostra Idade Medidas Principais achados
(média) eutímicas
35,9
Clark e 30 TBI e 300 Eutimia: Sem diferenças
colaboradores, controles HDRS < 8, entre grupos no IGT
2002 YMRS < 8
TB: transtorno bipolar; TBI: transtorno bipolar tipo I; TBII: transtorno bipolar tipo II; HDRS: Escala de Depressão de
Hamilton; YMRS: Escala de Mania em Jovens; CGT: Tarefa de Jogo de Cambridge; IGT: Tarefa de Jogo de
Iowa;MADS: Escala de Montgomery-Asberg para Depressão.
Gustavo H. Vázquez
Xenia Gonda
INTRODUÇÃO
A fim de poder diagnosticar melhor as doenças psiquiátricas e identificar as
condições que se situam entre as categorias, houve uma mudança no rumo do
conceito de espectro de doença psiquiátrica em geral e dos transtornos
afetivos e bipolares em especial. Essa visão pode ajudar a expandir nosso
entendimento da continuidade de estados patológicos relacionados para o
domínio de apresentações não clínicas e subclínicas, bem como para as
manifestações que, embora fiquem abaixo da definição de doença bipolar,
constituem um risco elevado, ou estado prodrômico, podendo já causar
sofrimento significativo ou aumento do risco de agravamento e
desenvolvimento posterior de formas mais graves da doença, as quais
exigirão atenção profissional e, possivelmente, tratamento específico. Esse
conceito de espectro de doença afetiva e bipolar também significa ampliar o
continuum à saúde mental, além de identificar os indivíduos que carregam o
potencial de futuramente estabelecer a base para o desenvolvimento da
doença, possivelmente com uma origem genética, de personalidade ou
comportamental. Compreender os dois extremos da faixa desse espectro nos
proporciona a oportunidade de realizar pesquisas sobre o transtorno bipolar
(TB) em uma abordagem de continuum em vez de realizá-la sob uma
perspectiva de controle de caso, a qual mais tarde poderia nos levar a ignorar
associações importantes. Portanto, identificar a porção mais saudável, não
afetada e subclínica do espectro bipolar, a qual também pode constituir
estágios latentes da doença, é vital para a compreensão, o tratamento, a
previsão e, possivelmente, a prevenção desse transtorno debilitante.
Akiskal e colaboradores propuseram o conceito do espectro bipolar suave,
o qual inclui diferentes manifestações de hipomania, somados a estados
depressivos, e também expande a desregulação temperamental subjacente que
serve como pano de fundo das manifestações afetivas. Essa abordagem tem o
potencial de contribuir para uma diferenciação mais sofisticada de subtipos
da doença bipolar com a introdução de novas descrições clínicas mais
detalhadas (Akiskal e Mallya, 1987). Posteriormente, além da descrição de
subtipos, o conceito de temperamentos afetivos também foi introduzido com
a finalidade de investigar de forma mais aprofundada o extremo
patologicamente menos afetado do espectro bipolar.
Além do modelo clássico de espectro, o modelo de estadiamento da doen-
ça bipolar também defende uma abordagem de continuum, com a finalidade
de prever a evolução, o prognóstico e os resultados, bem como indicar o
tratamento mais adequado em determinado estágio (Grande et al., 2013). O
estadiamento da doença bipolar se baseia na avaliação clínica e na
funcionalidade, especialmente no intervalo entre episódios maiores.
Atualmente, esse modelo teórico apresenta cinco estágios, compostos por
quatro estágios clínicos e uma fase latente para os indivíduos que manifestam
sintomas afetivos não específicos (Grande et al., 2013). O estágio latente
inclui aqueles indivíduos que podem ser considerados em risco extremamente
elevado de desenvolver a doença bipolar, mas que ainda não apresentaram
sintoma específico, apenas sinais prodrômicos atípicos, incluindo história
familiar positiva, ansiedade, hiperfagia e hipersonia, flutuações sazonais de
humor, labilidade do humor e irritabilidade, retardo psicomotor, além de
traços temperamentais hipertímicos ou ciclotímicos (Balanzá-Martínez et al.,
2008). Visto que os sintomas nesta fase podem não ser específicos, e que o
curso posterior e o resultado da doença podem ser imprevisíveis, é fortemente
controversa a recomendação de farmacoterapia, ainda que ela possa ser útil
no tratamento da sintomatologia sublimiar (Grande et al., 2013).
Embora ainda não existam estudos disponíveis para testar a validade
definitiva do modelo de estadiamento, a descrição do estágio latente (Grande
et al., 2013) muito se assemelha aos estados caracterizados pela presença de
temperamentos afetivos predominantes. Há vários fatores que ligam
temperamentos afetivos à doença afetiva, o que postula a busca de
manifestações de temperamentos afetivos como um possível fator de risco ou
estado precursor para o desenvolvimento de doenças afetivas maiores. Posto
isso, os temperamentos afetivos fariam parte do que Grande e colaboradores
(2013) descrevem como o estágio latente.
VISÃO GERAL DO DESENVOLVIMENTO DO
MODELO DE TEMPERAMENTO AFETIVO
Supostos traços subjacentes aos traços dos TBs representam um paradigma
adequado para conceitualizar a conexão potencial entre transtornos mentais e
atributos temperamentais adaptativos (Akiskal e Akiskal, 2005).
Temperamentos se referem a traços comportamentais estáveis no decorrer do
tempo, com forte reatividade afetiva e que têm sido associados aos
fundamentos biológicos da personalidade, tais como níveis de atividade,
ritmos, humores, cognição e suas variações. Temperamentos afetivos não
apenas poderiam ter um papel relevante na predisposição a transtornos
afetivos maiores, como também representariam a expressão fenotípica mais
prevalente dos genes por trás dos TBs (Akiskal e Akiskal, 1992; Kelsoe,
2003). As origens do conceito moderno de temperamentos afetivos nas
teorias do humor remontam às descrições feitas por Hipócrates (Akiskal,
1996). Mais tarde, o psiquiatra alemão Emil Kraepelin descreveu quatro
disposições afetivas básicas (depressiva, maníaca, ciclotímica e irritável),
com base em sua hipótese temperamental a partir das obras clássicas de
Galeno, que anteriormente elencou quatro disposições básicas do humor, a
saber: melancólico, colérico, fleumático e sanguíneo, e seus desequilíbrios
como a principal origem das diferentes doenças humanas. Kraepelin
considerou esses temperamentos afetivos básicos como as formas subclínicas
de insanidade maníaco-depressiva – atualmente conhecida como os
transtornos afetivos maiores –, a qual podia ser encontrada não apenas em
pacientes doentes mentais, mas também em seus parentes saudáveis
(Kraepelin, 1921). Tanto Kraepelin quanto seu colega alemão Ernst
Kretschmer consideravam que os temperamentos afetivos poderiam predispor
a psicose endógena ou os episódios de humor. Contudo, postulou que a
presença de um temperamento dominante deve ser considerada uma variação
da afetividade normal, a qual potencialmente poderia levar à doença mental.
Ao combinarem esses fundamentos com o uso de ampla observação
clínica e científica moderna e pesquisas de campo, Akiskal e colaboradores
desenvolveram o conceito moderno de temperamentos afetivos para abranger
todo o espectro de perturbações afetivas, desde tipos saudáveis de reatividade
emocional até doenças afetivas maiores. O modelo inclui os quatro tipos
clássicos de temperamento, complementados por um quinto, o temperamento
ansioso. Uma descrição clínica detalhada de cada temperamento e sua
avaliação com um instrumento com validade psicométrica (TEMPS-A)
podem ser encontradas em outras obras (Akiskal e Akiskal, 2005).
Akiskal considera os cinco temperamentos afetivos como espectros que se
prolongam desde a saúde até a patologia, envolvidos em padrões
característicos de reatividade emocional em um extremo e em diferentes tipos
de transtornos afetivos maiores em outro (Akiskal e Akiskal, 2007). Em meio
a esses extremos encontram-se os chamados temperamentos afetivos
predominantes, os quais, expressos de forma acentuada, podem constituir a
manifestação subclínica e subafetiva de doenças afetivas, podendo ser
considerados precursores, ou estados latentes, que podem representar
condições de alto risco, correspondentes a fases latentes de transtornos do
humor.
ASPECTOS CLÍNICOS DOS
TEMPERAMENTOS AFETIVOS
Conforme descrito anteriormente, temperamentos afetivos são
conceitualizados como parte do espectro de transtornos afetivos, uma noção
que encontra amplo respaldo de estudos genéticos, biológicos, familiares e
clínicos. O espectro afetivo descreve um continuum entre ciclotimia, TB tipo
I e TB tipo II (Akiskal et al., 1977; Evans et al., 2008), bem como depressão
subsindrômica, depressão menor, distimia e depressão maior unipolar
(Akiskal et al., 1978; Judd e Akiskal, 2000; Lewinsohn et al., 2003).
Temperamentos afetivos, além de constituírem fases latentes de doença que
prolongam esses espectros em direção aos estados de saúde mental, poderiam
desempenhar um papel patoplástico. Dessa forma, os temperamentos teriam
um papel importante na determinação e modelação do surgimento e da
evolução clínica de transtornos afetivos. Isso incluiria várias características
importantes, como polaridade predominante, expressão sintomática, curso e
consequências em longo prazo, resposta e adesão ao tratamento e resultados
do tratamento (Vázquez e Gonda, 2013). Entretanto, a relação entre
temperamentos e doenças afetivas pode ser muito mais complexa.
Temperamentos afetivos predominantes estão presentes em até 20% da
população geral saudável e variam de 13% na Argentina a 20% na Alemanha
(Vázquez et al., 2012). Temperamentos afetivos mostram uma distribuição
característica de gênero, sendo que temperamentos tanto depressivos quanto
ansiosos são mais comuns no sexo feminino, enquanto a hipertimia é
encontrada com maior frequência no sexo masculino na maioria dos estudos
nacionais de grade escala (Vásquez et al., 2012). A maior prevalência de
temperamentos depressivos e ansiosos entre as mulheres na população geral
está correlacionada à maior prevalência de depressão maior unipolar e
transtornos de ansiedade em mulheres (Kuehner, 2003; Somers et al., 2006),
enquanto a prevalência mais elevada de temperamento hipertímico entre
homens está em consonância com a maior proporção de episódios maníacos
relatados no sexo masculino (Baldassano et al., 2005). Esses achados também
oferecem respaldo à hipótese de que temperamentos afetivos podem ser
formas subclínicas ou precursores de transtornos psiquiátricos maiores, os
quais claramente apresentam uma distribuição de gênero particularmente
diferente (Vázquez et al., 2012).
Segundo estudos diferentes em amostras clínicas, o temperamento
depressivo costuma ser mais prevalente entre pacientes com depressão maior
e hipertímicos, e os temperamentos ciclotímicos compõem uma característica
afetiva específica da doença bipolar. Ademais, alguns estudos relataram que o
temperamento ciclotímico está presente em ambas as apresentações – tipo I e
tipo II – do TB, além do transtorno depressivo recorrente. Além disso, não foi
encontrada diferença na prevalência de pontuações no temperamento irritável
entre esses transtornos afetivos (Gassab et al., 2008). Conforme os estudos
clínicos relatam uma associação mais sutil e complexa entre temperamentos
afetivos e doença afetiva, percebe-se, cada vez mais, que os temperamentos
afetivos se mostram importantes dentro de variações da mesma doença, além
do padrão conhecido entre as doenças. Uma abordagem mais complexa em
relação a detecção e identificação de temperamentos afetivos dentro das
constelações básicas, conforme descrito anteriormente, poderá permitir a
execução de uma classificação mais sofisticada de doença afetiva, prevendo e
determinando subtipos e características (Mazzarini et al., 2009).
Mesmo no caso de depressão maior unipolar, a presença de outros
temperamentos afetivos além do temperamento depressivo tem um papel
fundamental para determinar o quadro clínico, e a presença de outros
temperamentos afetivos em pacientes com episódio depressivo maior pode
ser valiosa na previsão do curso da doença e conversão bipolar. A presença
de temperamento ciclotímico nos casos de depressão maior foi relacionada a
características clínicas atípicas (Perugi et al., 2003). Em pacientes com
depressão maior unipolar recorrente, pontuações mais elevadas de
temperamento ciclotímico também estão associadas aos seguintes fatores:
idade mais jovem de início, quantidade mais elevada de episódios
depressivos anteriores, maior número de características psicóticas e
melancólicas e ideação e tentativas suicidas, as quais são fatores preditores de
bipolaridade em depressão recorrente (Mechri et al., 2011).
O temperamento pode ser um dos principais fatores que influenciam as
características na evolução clínica do TB. De acordo com isso, a quantidade
de episódios foi associada a uma maior pontuação no que diz respeito ao
temperamento depressivo e a uma menor pontuação em pacientes com
temperamento hipertímico. Além disso, o temperamento depressivo foi
associado a uma proporção maior de episódios depressivos; enquanto o
temperamento hipertímico, a episódios maníacos (Henry et al., 1999).
Demonstrou-se também que temperamentos afetivos estão relacionados à
idade de início de manifestação do TB (Oedegaard et al., 2009). O
temperamento depressivo pode prevalecer entre pacientes com TB tipo I com
polaridade depressiva predominante, e o temperamento hipertímico
geralmente está presente em pacientes com TB com polaridade maníaca
predominante (Henry et al., 1999). Os pacientes com TB com temperamento
predominante ciclotímico e hipertímico são significativamente diferentes de
outros grupos em características clínicas e de curso relevantes, incluindo
proporção de gênero, polaridade e quantidade de episódios, hospitalizações,
suicidalidade, transtornos de ansiedade comórbidos e transtornos da
personalidade (Perugi et al., 2012). Além disso, o temperamento hipertímico
tem sido associado a características psicóticas tanto no TB tipo I quanto no
tipo II (Gassab et al., 2008; Mazzarini et al., 2009). No que se refere ao curso
da doença, o temperamento ciclotímico tem sido relacionado a uma
quantidade maior de todos os tipos de episódios bipolares afetivos (Kochman
et al., 2005), e também está associado a um resultado mais desfavorável
(Cassano et al., 1992). Alternâncias maníacas ocorrem com maior frequência
em pacientes bipolares com temperamento hipertímico, enquanto
características psicóticas se manifestam em sujeitos com temperamento
irritável. Comorbidades entre pacientes afetivos com temperamento
ciclotímico são frequentes, e o temperamento irritável está significativamente
associado a um primeiro episódio maníaco da doença (Kesebir et al., 2005a).
Pontuações mais altas de temperamento hipertímico estão associadas a riscos
mais elevados para mania induzida por antidepressivo em pacientes bipolares
depressivos (Henry et al., 2001; Tondo et al., 2013).
Enquanto, no caso do TB tipo I, muitas constelações comportamentais
diferentes podem constar no pano de fundo, o TB tipo II está relacionado
mais especificamente ao temperamento ciclotímico (Hantouche et al., 1998).
O temperamento ciclotímico está presente não apenas na maioria dos
pacientes com TB tipo II, mas também tem um valor preditivo para
conversão bipolar a partir de depressão unipolar (Akiskal et al., 1995;
Kochman et al., 2005). Entre os pacientes com TB tipo I, mas não tipo II,
pontuações de temperamento hipertímico e depressivo revelaram ter uma
correlação negativa. O temperamento hipertímico esteve correlacionado de
forma negativa com a quantidade de episódios depressivos e características
sazonais nos pacientes com transtorno bipolar tipo II (Gassab et al., 2008).
Os temperamentos depressivo, ciclotímico, irritável e ansioso são
significativamente mais frequentes em pacientes afetivos com episódios
mistos, o que indica uma relação entre episódios afetivos mistos e a presença
simultânea de tipos temperamentais opostos (Rottig et al., 2007). A presença
de temperamento depressivo também poderia ajudar a distinguir entre estados
mistos e estados maníacos puros (Hantouche et al., 2001).
FUNDAMENTOS GENÉTICOS E
NEUROQUÍMICOS DE TEMPERAMENTOS
AFETIVOS
Uma característica importante do modelo de estadiamento é a atribuição de
características genéticas, neuroquímicas, neuroanatômicas, neurobiológicas e
neurocognitivas que distinguem os diferentes estágios da doença (Berk et al.,
2007; Kapczinski et al., 2009; Grande et al., 2013). Embora tenhamos
achados limitados para respaldar a associação desses fatores a temperamentos
afetivos, há relatos de alguns resultados positivos, os quais também defendem
os temperamentos afetivos como fases latentes de doença afetiva.
Por definição, os temperamentos possuem uma base genética e biológica
forte (Bouchard, 1994; Cloninger, 1994), o que também parece ser o caso de
temperamentos afetivos (Chiaroni et al., 2005; Evans et al., 2005). Uma
abordagem mais recente do TB conceitualiza o espectro bipolar como um
traço genético quantitativo com uma distribuição contínua, em vez de ser
qualitativo, conforme sugere a abordagem categórica (Evans et al., 2005).
Nessa linha de pensamento, o TB tem maior probabilidade de ser um traço
poligênico que surge como resultado de interações entre fatores ambientais e
genes múltiplos, sendo que cada um, por si só, tem apenas um pequeno efeito
(Evans et al., 2005; Carddoci e Sklar, 2013). Esses genes que predispõem aos
TBs podem provocar fenótipos que se misturam continuamente em
constelações observadas com frequência em populações saudáveis não
clínicas, e podem ser descritos como variações normais de temperamentos
afetivos. Conforme mencionado anteriormente, as doenças afetivas são
reservatórios genéticos para temperamentos e traços adaptativos (Akiskal e
Akiskal, 2007).
Vários estudos demonstraram que parentes saudáveis de probandos
exibem graus mais elevados de desregulação do humor do que controles
normais (Evans et al., 2005; Mendlowicz et al., 2005). Postulou-se também
que esses traços temperamentais podem ter uma base genética em comum
com o TB (Kelsoe, 2003). Estudos genéticos familiares de pacientes com
transtornos afetivos identificaram uma forte agregação de temperamentos
afetivos, principalmente ciclotímicos e, em menor grau, hipertímicos e
ansiosos, entre parentes de primeiro grau saudáveis de pacientes com TB tipo
I, o que oferece respaldo à teoria de que há base genética em temperamentos
afetivos (Chiaroni et al., 2005; Evans et al., 2005, 2008; Kesebir et al.,
2005b; Mendlowicz et al., 2005; Vázquez et al., 2008; Mazzarini et al.,
2009). Esses traços ciclotímicos subafetivos poderiam servir como potenciais
marcadores de vulnerabilidade, oferecendo apoio às formas sublimiares e à
extremidade mais suave do espectro bipolar (Akiskal e Pinto, 1999). Há
argumentos razoáveis de que o temperamento ciclotímico poderia contribuir
para uma definição fenotípica ampla da condição bipolar (Chiaroni et al.,
2005; Kochman et al., 2005) e seria considerado um estágio preliminar ou
latente do TB totalmente manifesto.
A despeito da crescente atenção voltada para os temperamentos afetivos
tanto nas áreas de pesquisa clínica quanto de personalidade, nosso
conhecimento a respeito de sua base genética requer mais investigações. Em
um estudo seminal, Gonda e colaboradores relataram uma associação
significativa entre o alelo s do polimorfismo 5-HTTLPR do gene
transportador de serotonina e os temperamentos afetivos que carregam um
componente depressivo (depressivo, ciclotímico, irritável e ansioso) (Gonda
et al., 2006), a qual não foi confirmada por estudos subsequentes (Kang et al.,
2008; Landaas et al. 2011). A possível correlação entre o alelo 5-HTTLPR e
os temperamentos afetivos não foi surpreendente, pois se revelou que esse
alelo está associado a traços relacionados à ansiedade (Sen et al., 2004;
Homberg e Lesch, 2011) e a traços relacionados com o neuroticismo (Gonda
et al., 2009), bem como a transtornos afetivos unipolares (Clarke et al., 2010)
e bipolares (Levinson, 2006). Acredita-se que o alelo 5-HTTLPR s exerça sua
influência sobre o aparecimento de depressão ao mediar o efeito do estresse
da vida e de eventos de vida adversos (Caspi et al., 2003, 2010; Karg et al.,
2011). Em consonância, a reatividade emocional é uma característica
importante abrangida por temperamentos afetivos. Além disso, um efeito
significativo de interação entre o 5-HTTLPR e o polimorfismo do promotor
do gene receptor de canabinoide 1 (CNR1) foi relatado posteriormente no
caso de temperamento ansioso (Lazary et al., 2009), oferecendo ainda mais
respaldo a uma forte determinação genética de temperamentos afetivos, bem
como à alegação de serem estágios latentes de doença afetiva.
Além da codificação genética para elementos do sistema serotoninérgico,
outros genes monoaminérgicos frequentemente surgem como candidatos
potenciais que contribuem para a determinação de temperamentos. Um
estudo coreano relatou uma associação positiva entre o gene DRD4 e os
temperamentos irritável e ciclotímico em sujeitos saudáveis do sexo
masculino (Kang et al., 2008). Tanto o temperamento irritável quanto o
ciclotímico são classicamente conceitualizados como subtipos
temperamentais mistos, incorporando características tanto depressivas quanto
hipertímicas, simultaneamente no caso do temperamento irritável, e
alternativamente no caso do temperamento ciclotímico (Kraepelin, 1921), de
forma que a associação com o gene DRD4 pode sugerir uma ligação possível
entre esse receptor e os traços hipertímicos, como no estudo de Gonda e
colaboradores (2006), em que o alelo HTTLPR s foi associado ao
componente depressivo dos temperamentos afetivos. O temperamento
depressivo também foi associado de forma significativa ao haplótipo mais
frequente do gene receptor de oxitocina em uma amostra de sujeitos
japoneses saudáveis (Kawamura et al., 2010). Um estudo relatou uma
associação positiva entre temperamento e um locus cromossômico em 18p11
em famílias com TB. Outros picos de ligação com regiões potenciais de
interesse também foram detectados nos cromossomos 3 e 7 (Evans et al.,
2008).
Os poucos estudos restantes voltados para a base genética dos
temperamentos afetivos forneceram achados negativos. Há uma atenção
crescente à associação entre o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF)
e os transtornos afetivos, com alguns resultados positivos (Neves-Pereira et
al., 2002; Sklar et al., 2002; Lohoff, 2010). Há resultados semelhantes para o
polimorfismo de glicogênio sintase quinase-3 β (GSK3 β) rs6782799 (Zhang
et al., 2010) e o polimorfismo rs2267665 do gene PPARD (receptor delta
ativado por proliferador de peroxissomo) no caminho de sinalização Wnt, o
qual também pode estar implicado na fisiopatologia de transtornos afetivos
(Zandi et al., 2008). Contudo, um estudo recente não encontrou associação
entre esses polimorfismos e os temperamentos afetivos em uma população
saudável (Tsutumi et al., 2011). Deve-se observar que esse estudo envolveu
uma pequena amostra de sujeitos japoneses e deve-se ter em conta que as
associações genéticas são específicas para cada etnia, e também que a
distribuição de pontuações de temperamento afetivo no Japão é
acentuadamente diferente da distribuição em outros países, com pontuações
em geral muito mais baixas (Matsumoto et al., 2005).
As evidências descritas anteriormente indicam que pode haver uma
heterogeneidade genética comum na base de temperamentos afetivos e nas
manifestações e síndromes de diferentes doenças afetivas maiores. Portanto,
o esboço dos correlatos genéticos de temperamentos afetivos ajudaria a
compreender a contribuição genética e, assim, a fundação etiopatogênica dos
transtornos afetivos. Contudo, selecionar genes candidatos apenas por meio
da extrapolação a partir de polimorfismos sabidamente associados a
transtornos afetivos ofereceu resultados mistos, possivelmente porque tanto a
base genética quanto a expressão fenotípica dos temperamentos afetivos estão
presentes de uma forma mais diluída entre amostras saudáveis (Akiskal e
Akiskal, 2005).
A associação potencial entre temperamentos afetivos e função
neurotransmissora e estruturas neuroanatômicas também gerou poucos
estudos até o momento. Em um estudo com pacientes portadores de
transtornos do humor maiores, perfis predominantemente de temperamento
depressivo, caracterizados por pontuações elevadas de temperamento
depressivo, ciclotímico, ansioso e irritável, bem como por pontuação baixa de
temperamento hipertímico, revelaram estar associados a diferentes padrões de
hiperintensidades de substância branca no cérebro, o que indica uma relação
positiva entre alguns subtipos de temperamento afetivo e alterações
específicas em regiões cerebrais subcorticais (Serafini et al., 2011).
Em outra série recente de artigos, relatou-se uma associação entre
temperamentos afetivos e data de nascimento com padrões característicos
(Rihmer et al., 2011). Curiosamente, esse padrão de associação corresponde
ao padrão sazonal de nascimento já relatado no caso de pacientes bipolares
dos tipos I e II em uma pequena amostra clínica (Rihmer, 1980). A estação
do ano em que ocorre o nascimento é um marcador importante, além de uma
variável identificadora para vários fatores ambientais que variam com as
estações e estão ativos durante o momento da concepção, da gestação ou do
nascimento (Chotai et al., 2002). Não se sabe ainda quais dos possíveis
fatores variáveis exercem efeito, nem durante qual período de importância,
todavia uma associação com a estação do ano em que ocorre o nascimento
também foi relatada em caso de diversas doenças somáticas e
neuropsiquiátricas, bem como para traços psicológicos saudáveis (Rihmer et
al., 2011). Uma explicação provável é que a estação em que ocorre o
nascimento exerce influência por meio do estímulo do neurodesenvolvimento
de neurotransmissões monoaminérgicas (Chotai et al., 2006).
Comprovou-se que vários biomarcadores estão associados à progressão do
TB, mas não à fase latente. Por isso, acredita-se que polimorfismos que
conferem maior suscetibilidade para doenças bipolares podem ser
importantes como biomarcadores que sinalizam essa fase (Kapczinski et al.,
2009). Contudo, mudanças bioquímicas associadas às características clínicas
da fase latente incluem sintomas de humor e ansiedade, além de desregulação
temperamental, podendo ser significativos já nesse estágio inicial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O construto teórico de temperamentos afetivos foi desenvolvido a partir de
uma combinação de conceitos antigos com observações científicas e clínicas
modernas. Temperamentos afetivos abrangem o domínio total de reatividade
emocional desde a patologia afetiva até a saúde. Acredita-se que os
temperamentos afetivos surjam a partir de bases genéticas e neuroquímicas,
as quais foram desenvolvidas e preservadas ao longo da evolução devido a
vantagens evolutivas e sociais. Temperamentos afetivos podem constituir a
manifestação subclínica de doenças afetivas maiores. Nesse sentido,
temperamentos afetivos podem ser considerados um estado precursor, ou a
fase latente, para o desenvolvimento de transtornos do humor.
Além disso, temperamentos afetivos não são apenas fatores de risco ou
precursores de transtornos afetivos, mas também têm um papel patoplástico
importante, podendo constituir ferramenta valiosa para prever o surgimento
de uma doença afetiva em uma população saudável de alto risco, ou potencial
conversão de transtorno unipolar para TBs entre pacientes com transtornos do
humor, bem como para um diagnóstico mais sofisticado de transtornos
afetivos, especialmente de subtipos da doença bipolar, e para prever o curso
da doença, a resposta terapêutica, a adesão ao tratamento, o prognóstico e os
resultados, incluindo suicídio. Já na população saudável, temperamentos
afetivos podem ser considerados uma base importante da personalidade. O
aprofundamento dos estudos sobre temperamentos afetivos e suas bases
neuroanatômicas, bioquímicas e genéticas nos ajudaria a compreender os
mecanismos internos por trás da afetividade humana.
A ideia de um modelo teórico unificado que inclua temperamentos
afetivos como manifestações de estágios iniciais do TB pode auxiliar a
estabelecer uma ligação entre as ideias desenvolvidas por Akiskal (1996) e
aquelas promovidas por Berk e colaboradores (2007) e Kapczinski e
colaboradores (2009). Um modelo unificado foi proposto a partir do uso do
conceito de carga alostática e prejuízos acumulativos no desenvolvimento ao
longo do tempo com a progressão da doença bipolar (Kapczinski et al.,
2008). Contudo, o conceito de estágio latente sugerido por Kapczinski e
colaboradores (2009) merece mais estudos, tanto em termos de características
biológicas quanto de características fenotípicas. Uma caracterização mais
precisa da fase latente do TB seria um passo importante para a detecção
precoce, intervenção e, talvez, prevenção da doença. Um estudo detalhado
dos temperamentos afetivos como precursores dos transtornos afetivos pode
contribuir com insights importantes para o modelo de estadiamento em
termos de novas pesquisas e uso clínico do conceito.
RECONHECIMENTO
Xenia Gonda recebeu a Janos Bolyai Research Fellowship da Hungarian
Academy of Sciences.
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NEUROIMAGEM E PROGRESSÃO
DA DOENÇA
Benicio N. Frey
Luciano Minuzzi
Bartholomeus C. M. Haarman
Roberto B. Sassi
INTRODUÇÃO
O estadiamento é amplamente utilizado em diversas áreas da medicina, como
oncologia e cardiologia, devido a sua utilidade em orientar a escolha de
tratamento e/ou prognóstico. Conforme analisado em capítulos anteriores, o
conceito de estadiamento foi aplicado ao transtorno bipolar (TB) conduzido
principalmente por pesquisas clínicas neurocognitivas sobre biomarcadores
periféricos. Pesquisas com neuroimagens acerca da progressão da doença
ainda são limitadas, principalmente devido à ausência de pesquisas com
imagens de longo prazo e longitudinais. Contudo, estudos com a prole em
risco mais elevado de desenvolvimento de TB, TB pediátrico (TBP), TB
adulto e TB em idosos podem esclarecer quais áreas/circuitos cerebrais
podem ser mais relevantes para a progressão do transtorno. Aqui, analisamos
de forma crítica os estudos com neuroimagens estruturais e funcionais no TB,
com enfoque nas alterações nos circuitos cerebrais que podem estar
associadas ao curso do transtorno.
CRIANÇAS EM RISCO DE
DESENVOLVIMENTO DE TRANSTORNO
BIPOLAR
Existem desafios clínicos significativos no diagnóstico de TB em amostras
pediátricas. Frequentemente, uma apresentação prodrômica de sintomas não
específicos como perturbações do sono, ansiedade ou irritabilidade pode
anteceder o surgimento de mania em muitos anos, atrasando o diagnóstico
correto e o tratamento adequado (Duffy et al., 2010). Além disso, o clínico
pode facilmente superestimar o risco de TBP se considerar apenas esses
sintomas pouco definidos, o que leva a um aumento artificial em sua
prevalência (Moreno et al., 2007). Entre todos os fatores de risco potenciais
para o desenvolvimento do TB, a história familiar parecer ser um dos mais
importantes, podendo ser utilizada com sucesso para aumentar a precisão do
diagnóstico (Jenkins et al., 2011). Contudo, apesar de uma história familiar
de TB em um parente de primeiro grau aumentar drasticamente o risco de o
indivíduo desenvolver o transtorno (Rasic et al., 2013), a maioria das crianças
com esse fator de risco não desenvolverá a doença (Birmaher et al., 2009).
Estudos longitudinais com a prole de pais com TB demonstraram que apenas
a apresentação clínica não pode prever efetivamente quais crianças com
ansiedade ou depressão unipolar terão um episódio maníaco ou não (Mesman
et al., 2013). Portanto, tem havido interesse renovado por encontrar
marcadores potenciais que possam discriminar com exatidão quais crianças
devem ser classificadas como estando no estágio prodrômico da doença.
Estudos utilizando neuroimagens realizados ao longo dos últimos anos
começaram a investigar essa questão. Conforme abordado mais adiante neste
capítulo, há evidências convincentes de que o TB esteja associado a
alterações funcionais e estruturais específicas em estruturas encefálicas
envolvidas na expressão e regulação das emoções. Estudos que examinaram
crianças não afetadas que correm risco elevado de desenvolver TB,
geralmente definido por terem um pai ou outro parente de primeiro grau com
a doença, encontraram diferenças no volume da substância cinzenta (VSC) no
córtex cingulado anterior, estriado ventral, giro frontomedial, giro pré-central,
córtex insular e giro orbitomedial (Matsuo et al., 2012; Nery et al., 2013).
Contudo, nenhuma diferença foi encontrada no volume de outras estruturas
geralmente associadas à regulação das emoções, como os volumes
hipocampal, talâmico, caudado e cingulado subgenual (Hajek et al., 2009,
2010; Karchemskiy et al., 2011). O volume das amígdalas, por sua vez,
parece estar reduzido entre jovens em risco elevado que tiveram sintomas de
humor e, por fim, desenvolveram TB em um estudo único (Bechdolf et al.,
2012). Portanto, na ausência de estudos longitudinais, com a exceção do
volume das amígdalas, os volumes de outras regiões encefálicas dificilmente
serão úteis como endofenótipos morfológicos para risco de TB entre jovens
que correm risco familiar do transtorno, a menos que consideremos seu
estado sintomático versus seu estado não sintomático.
Quanto ao funcionamento cerebral, há evidências de diferenças
significativas entre jovens não afetados que correm risco elevado de
desenvolverem TB e controles saudáveis. Comprovou-se ativação frontal
reduzida e ativação exagerada da amígdala durante o processamento facial
em jovens em risco, semelhante à observada entre jovens com diagnóstico de
TB (Olsavsky et al., 2012; Roberts et al., 2013). As amígdalas compõem uma
área de interesse crítica devido a sua relevância no processamento emocional
e seu papel bastante conhecido em outras formas de psicopatologia. A
hiperatividade das amígdalas também é observada em transtornos de
ansiedade, por exemplo (Beesdo et al., 2009). Ademais, a ansiedade parece
ser um fator de risco para desenvolver TB entre crianças com história familiar
da doença (Duffy et al., 2013). Logo, o funcionamento das amígdalas pode
ser um candidato promissor a marcador de neuroimagens do estadiamento
prodrômico. Atualmente, a ausência de estudos longitudinais que mapeiem as
correlações entre a hiperatividade das amígdalas, os sintomas de ansiedade e
o inevitável episódio maníaco inicial entre crianças em risco limita a utilidade
desse marcador.
Há também evidências de que a substância branca como um todo passa por
processos anormais de desenvolvimento em crianças que correm alto risco de
desenvolver TB (Sprooten et al., 2011). Dados de imagens por tensor de
difusão (DTI) sugerem que o corpo caloso e os tratos associativos temporais
podem mostrar padrões opostos em mudanças relacionadas à idade em
anisotropia fracionada (AF), uma medida da integridade da substância
branca, na prole saudável de pais bipolares e controles saudáveis (Versace et
al., 2010). De fato, uma metanálise composta por 27 estudos de imagens
estruturais e por 10 estudos de imagens funcionais revelou correlações
significativas entre o risco genético de TB e anormalidades na substância
branca (Fusar-Poli et al., 2012), as quais foram sugeridas também por outras
linhas de evidências (Mahon et al., 2010). Contudo, hiperintensidades na
substância branca (HSB) – ou seja, pequenas lesões não específicas na
substância branca associadas a etiologias múltiplas, como doença
cardiovascular e desmielinizantes – não diferem entre jovens em risco
elevado de desenvolvimento de TB e controles (Gunde et al., 2011). Portanto,
não está claro se são anormalidades disseminadas ou localizadas na
substância branca que estão associadas a risco familiar elevado de TB.
Estudos longitudinais com medidas tanto abrangentes quanto específicas da
integridade da substância branca são necessários para determinar se esses
achados terão valor suficiente a ponto de serem úteis para determinar o
estadiamento da doença em casos prodrômicos.
TRANSTORNO BIPOLAR PEDIÁTRICO
Até o momento, a maioria dos estudos com neuroimagem de jovens pacientes
com diagnóstico confirmado de TB tende a encontrar anormalidades em
paralelo às encontradas em adultos mais velhos. De modo geral, a disfunção
frontolímbico-estriatal parece ser um achado comum tanto em jovens como
em adultos afetados (Blond et al., 2012). Ao se usar paradigmas que
envolvem o processamento de emoções faciais, vários estudos confirmaram a
hiperativação das amígdalas e a hipoativação pré-frontal em jovens afetados
quando comparados a controles saudáveis (Chang et al., 2004; Rich et al.,
2006; Brotman et al., 2010, 2013; Schneider et al., 2012). Embora haja
pouquíssimos estudos que comparam diretamente a doença bipolar de início
precoce com a doença bipolar de início tardio, um estudo importante
comparou o grau de hiperatividade das amígdalas em casos de TBP e TB
adulto, o qual revelou que os casos de TBP mostraram um padrão de
hiperatividade das amígdalas em uma faixa mais ampla de emoções faciais
(Kim et al., 2012) em comparação com os pacientes mais velhos com TB.
Esse foi um estudo transversal, portanto, ainda se espera um estudo
longitudinal a fim de confirmar os aspectos de desenvolvimento do
funcionamento das amígdalas no TB.
Todavia, estudos longitudinais foram conduzidos visando mensurar o
volume das amígdalas. Há evidências significativas de redução no volume
das amígdalas no TBP em geral confirmadas por duas metanálises (Pfeifer et
al., 2008; Hajek et al., 2009). Contudo, estudos longitudinais sobre o volume
das amígdalas forneceram resultados conflitantes (Schneider et al., 2012),
embora estudos mais recentes sugiram que o volume das amígdalas se reduz
com o decorrer do tempo (Geller et al., 2009; Bitter et al., 2011). Ademais,
parece haver uma correlação inversa entre o funcionamento e o volume das
amígdalas, ou seja, a hiperativação das amígdalas está associada a volumes
menores (Kalmar et al., 2009), o que sugere que uma possível perda de
neurônios inibidores dentro das amígdalas poderia explicar tanto seu volume
progressivamente menor quanto o aumento da ativação após estímulos
emocionais (Schneider et al., 2012). Apesar disso, esses dados, juntamente
com a resposta exagerada das amígdalas a emoções faciais encontrada em
jovens que correm risco elevado de desenvolvimento de TB (embora
apresentem volume normal), destacam as amígdalas como uma estrutura
potencialmente chave no estadiamento da doença. Novos estudos terão que
avaliar se outros paradigmas de imagens de ressonância magnética (RM)
capazes de ativar de forma diferente as amígdalas permitirão que entendamos
seu papel nos estágios prodrômico, inicial e final da doença.
Um componente importante da bibliografia sobre imagens no TBP
envolve a comparação entre jovens com TB estreitamente definido – tipo I ou
tipo II – e “desregulação grave do humor” (DGH) – irritabilidade crônica não
episódica. O fato de a DGH representar ou não uma manifestação pediátrica
de TB tem sido continuamente discutido na literatura (Biederman et al.,
2000). De modo geral, tanto TBP quanto DGH apresentam uma classificação
anormal das expressões faciais de emoção (Rich et al., 2008) e ativação
exagerada das amígdalas a emoções faciais (Thomas et al., 2013), mas com
diferenças pré-frontais na atividade neural subjacente que faz a mediação
desses déficits (Brotman et al., 2010; Thomas et al., 2013a, b).
Não causa espanto que anormalidades na substância branca também
tenham sido encontradas em diversas regiões em casos de TBP, incluindo
joelho, tronco e esplênio do corpo caloso, corona radiada e comissura anterior
(Saxena et al., 2012; Lagopoulos et al., 2013). Contudo, na ausência de
estudos longitudinais, não é possível ligar esses achados ao estadiamento ou à
progressão da doença.
TRANSTORNO BIPOLAR ADULTO
TENDÊNCIAS FUTURAS
Estudos longitudinais que acompanham crianças em risco e pacientes com
TB pediátrico até a idade adulta podem auxiliar na compreensão de por que
alterações cerebrais estão relacionadas à emergência do fenótipo bipolar e
quais estão relacionadas à progressão da doença.
Mudanças anatômicas como as HSB e a redução do volume do CPF podem
ajudar a identificar casos de TB em estágio final.
Disfunção das amígdalas, tratos anormais da substância branca e ativação da
micróglia parecem ter uma função importante na patologia do TB. Estudos
longitudinais envolvendo diferentes modalidades de tratamento são
necessários para avaliar se essas estruturas podem ser utilizadas como
biomarcadores de estadiamento, prognóstico ou resposta ao tratamento.
Estudos longitudinais em longo prazo com image, anatômicos, com RMf e
moleculares são os próximos passos críticos para a compreensão da
fisiopatologia e da progressão de doença no TB.
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BIOMARCADORES DA
PROGRESSÃO DA DOENÇA NO
TRANSTORNO BIPOLAR
Aroldo A. Dargél
Marion Leboyer
INTRODUÇÃO
Um biomarcador é um indicador de processos biológicos, patogênicos ou de
respostas farmacológicas a uma intervenção terapêutica, que pode ser medido
de forma precisa e reproduzível (Biomarkers Definitions Working Group,
2001). Na medicina, os biomarcadores são utilizados para respaldar a
presença de uma doença específica (biomarcador diagnóstico), para
monitorar a progressão da doença (biomarcadores prognósticos), para medir
as intervenções terapêuticas (biomarcadores de tratamento) e para prever o
início de uma doença futura (biomarcadores preditivos) (Biomarkers
Definitions Working Group, 2001). O desenvolvimento de biomarcadores é
um processo multifásico, no qual as melhorias na assistência clínica são
avaliadas em estágios posteriores. Em oncologia, por exemplo, essas fases
foram descritas como: (1) pré-clínica; (2) validação de ensaio em populações
independentes; (3) capacidade do biomarcador de detectar doença pré-clínica;
(4) avaliação de efeitos sobre o manejo do paciente e os resultados; (5)
eficácia do biomarcador em termos de custo (Pepe et al., 2001). Em
psiquiatria, no entanto, ainda não há biomarcadores com utilidade clínica
estabelecida para doenças mentais, como o transtorno bipolar (TB).
Hoje, o diagnóstico de TB se baseia fundamentalmente em entrevistas com
pacientes e questionários de autorrelato, os quais não apresentam
objetividade nem validação biológica (Frey et al., 2013). Com uma
prevalência mundial estimada em 2,4% (Merikangas et al., 2011), o TB está
associado a uma ampla gama de efeitos malignos sobre a saúde e sobre o
funcionamento do paciente, e encontra-se entre as 20 principais causas de
incapacidade em todo o mundo (OMS, 2008). Crescentes evidências mostram
que a frequência de recorrência sintomática (i.e., episódios de humor) tem
impacto negativo sobre a progressão da doença, com prejuízos cognitivos e
funcionais acentuados, menor resposta a tratamentos farmacológicos e
psicológicos e índices mais elevados de comorbidades médicas, como
doenças cardiometabólicas e neurológicas (Post et al., 2012). Além disso,
mecanismos epigenéticos, que são mediados pelo ambiente, podem interagir
com mecanismos genéticos, os quais mediam o início precoce e/ou um curso
mais grave da doença (Schmitt et al., 2014).
A neuroprogressão foi definida como um processo de reprogramação do
cérebro que ocorre com a progressão do TB (Berk et al., 2011). O resultado
final dessas mudanças neuroprogressivas envolve lesão nos tecidos,
mudanças estruturais e sequelas funcionais, que são o substrato neural da
regulação do humor; elas têm a capacidade de aumentar o risco de novas
recorrências e de reduzir o potencial de resposta ao tratamento (Kapczinski et
al., 2008; Berk et al., 2011). A neuroprogressão é um processo dinâmico e
multifatorial que inclui rotas biológicas envolvidas em processos de
inflamação, estresse oxidativo e neuroproteção (Fries et al., 2012).
Análises anteriores fornecem uma perspectiva detalhada quanto ao estado
atual de biomarcadores em TB (Frey et al., 2013; Pfaffenseller et al., 2013).
Portanto, o objetivo deste capítulo é resumir a literatura existente que trata da
relevância dos biomarcadores periféricos como neurotrofinas, estresse
oxidativo e marcadores pró-inflamatórios na progressão do TB. Além disso,
esboçamos algumas perspectivas futuras por meio das quais os
biomarcadores periféricos podem contribuir para uma melhor compreensão
da fisiopatologia do TB e para a elaboração de novas estratégias terapêuticas.
BIOMARCADORES PERIFÉRICOS NO
TRANSTORNO BIPOLAR
Fatores neurotróficos
As neurotrofinas são proteínas fundamentais para o desenvolvimento, a
plasticidade e a conectividade neuronais (Lang et al., 2007; Klein et al.,
2011). Evidências crescentes demonstram que pacientes com TB têm níveis
sanguíneos anormais de fatores neurotróficos, como fator neurotrófico
derivado do cérebro (BDNF) (Post, 2007; Lin, 2009), neurotrofina-3 (NT-3),
neurotrofina-4/5 (NT-4/5), fator neurotrófico derivado das células gliais
(GDNF) e fator de crescimento neural (NGF) (Berk et al., 2011; Post et al.,
2012).
O BDNF é uma neurotrofina amplamente distribuída no sistema nervoso
que atua como um regulador fundamental do crescimento neuronal e da
atividade/plasticidade sináptica (Lang et al., 2007; Klein et al., 2011).
Estudos pré-clínicos relataram correlações entre os níveis séricos de BDNF e
a expressão de BDNF em áreas corticais e hipocampais (Lang et al., 2007;
Schmidt e Duman, 2010), as quais estão implicadas na regulação do humor e
da emoção (Post, 2007; Lin, 2009; Schmidt e Duman, 2010). Perifericamente,
o BDNF é expresso em níveis relativamente altos em células endoteliais
vasculares, linfócitos e músculo liso (Schmidt e Duman, 2010). O
polimorfismo val66met do BDNF, associado à baixa função desse fator, foi
relacionado a alterações morfométricas e metabólicas no córtex pré-frontal no
TB (Frey et al., 2007; Matsuo et al., 2009) e também ao início precoce da
doença (Geller et al., 2004; Tang et al., 2008).
Vários estudos mostraram que os níveis de BDNF em circulação eram -
significativamente menores durante mania ou depressão (Cunha et al., 2006;
Vieira et al., 2007; Oliveira et al., 2009; Grande et al., 2010). Pandey e
colaboradores (2008) encontraram níveis reduzidos de BDNF derivado de
linfócitos de RNA mensageiro (RNAm) e também de proteína de BDNF em
plaquetas de crianças e adolescentes maníacos livres de drogas e fármacos em
comparação a controles. Recentemente, duas metanálises demonstraram que
pacientes com TB apresentavam níveis séricos/plasmáticos menores de
BDNF em comparação a sujeitos saudáveis, sobretudo durante episódios
maníacos ou depressivos (Li, 2009; Fernandes et al., 2011). Fernandes e
colaboradores (2011), em uma análise de metarregressão (n =548 pacientes
com TB; n =565 controles), encontraram níveis menores de BDNF, com
grandes tamanhos de efeito (TE) para depressão (TE -0,97) e mania (TE
-0,81) em comparação a controles (Fernandes et al., 2011). Contudo, os
níveis de BDNF entre pacientes eutímicos com TB em comparação a sujeitos
de controle não foram significativos, apresentando pequena magnitude (TE
-0,20). Houve uma variabilidade substancial nos resultados na fase eutímica,
e tanto idade quanto duração da doença influenciaram significativamente essa
variabilidade (Fernandes et al., 2011). Destaca-se que níveis reduzidos de
BDNF foram relatados em pacientes eutímicos em estágios finais de TB
(Kauer-Sant’Anna et al., 2009; Barbosa et al., 2012). De fato, a associação
entre níveis mais baixos de BDNF periférico com idade, duração da doença
(Yatham et al., 2009) e estágio final de TB (Kauer-Sant’Anna et al., 2009)
contribui para a hipótese de TB como uma doença neuroprogressiva (Berk et
al., 2011; Fries et al., 2012).
Outros fatores neurotróficos também foram estudados no TB. O NGF foi a
primeira neurotrofina a ser descoberta, em 1951, por Rita Levi-Montalicini.-
Recentemente, um estudo sobre TB relatou uma correlação negativa entre a
gravidade de episódios maníacos e os níveis de NGF (Barbosa et al., 2011). -
Verificou-se aumento nos níveis de NT-3, que compartilha rotas de
transdução com o BDNF, em pacientes bipolares durante mania e depressão
em comparação a pacientes eutímicos e controles saudáveis (Walz et al.,
2007; Fernandes et al., 2010; Kapczinski et al., 2011). Um estudo encontrou
aumento nos níveis de NT-4/5 em circulação no TB, mas nenhuma diferença
entre as fases de humor (Walz et al., 2009). Sob estresse, astrócitos/células
microgliais aumentam a produção de GDNF para evitar perda neuronal
(Miller, 2011). Níveis anormais de GDNF foram encontrados nas diferentes
fases de humor no TB (Rosa et al., 2006; Takebayashi et al., 2006; Zhang et
al., 2010). Além disso, níveis plasmáticos maiores do fator de crescimento
endotelial vascular (VEGF) foram detectados durante episódios depressivos
maiores ou maníacos em pacientes com transtornos do humor (Lee e Kim,
2012). Outros estudos indicaram que o VEGF pode ser um dos moduladores
do efeito terapêutico de estabilizadores do humor (Sugawara et al., 2010;
Gupta et al., 2012). Tomados em conjunto, esses achados reforçam a
possibilidade de que a alteração nos níveis de neurotrofinas pode ser uma
resposta compensatória para restaurar a neurogênese decorrente da toxicidade
potencial de episódios de humor. Contudo, são necessários mais estudos a
fim de investigar a aplicabilidade dos fatores neurotróficos como marcadores
da progressão da doença no TB, em particular, para identificar indivíduos nos
primeiros estágios da doença, a fim de facilitar a intervenção adiantada e,
potencialmente, reduzir a carga alostática na fase inicial (Kapczinski et al.,
2008).
Biomarcadores inflamatórios
Cada vez mais evidências mostram que os mecanismos inflamatórios podem
ter um papel crucial na fisiopatologia do TB (Leboyer et al., 2012),
especialmente por meio de sua regulação da transmissão/plasticidade
sináptica e sobrevivência neuronal (Dantzer et al., 2008; Yirmiya e Goshen,
2011).
Em pacientes bipolares, disfunções imunológicas foram relacionadas à
gravidade e à quantidade de episódios de humor (Tsai et al., 2011; Ortiz--
Dominguez et al., 2007; Brietzke et al., 2009; Magalhães et al., 2012a), a
efeitos de medicamentos (Boufidou et al., 2004; Knijiff et al., 2007) e à
progressão da doença (Berk et al., 2011; Pfaffenseller et al., 2013).
Vários estudos relataram aumento nos níveis periféricos de citocinas pró-
inflamatórias, incluindo interleucinas (IL-2, IL-4, IL-6 e IL-1) e fator de
necrose tumoral alfa (TNF- α) durante mania (O’Brien et al., 2006; Kim et
al., 2007; Ortiz-Dominguez et al., 2007; Brietzke et al., 2009; Barbosa et al.,
2011, 2012; Hope et al., 2011) e depressão (O’Brien et al., 2006; Ortiz-
Dominguez et al., 2007). Evidências convincentes demonstraram níveis
maiores de receptores solúveis de TNF (sTNF-R1 e sTNF-R2) e de IL-2 (sIL-
2) em pacientes maníacos em comparação a pacientes eutímicos e controles
(Barbosa et al., 2011, 2012; Hope et al., 2011; Cetin et al., 2012; Tsai et al.,
2012). Além disso, níveis maiores de sTNF-R1 e de sTNF-R2 foram
correlacionados positivamente com a idade do paciente e a duração do TB
(Barbosa et al., 2011, 2012), e indivíduos bipolares com níveis maiores de
TNF-R1 apresentaram funcionamento pobre em idade adulta avançada (Hope
et al., 2013). Níveis maiores preexistentes de IL-1 β e de IL-1Ra podem
prever vulnerabilidade a novos episódios de humor (Ortiz-Dominguez et al.,
2007). Ademais, um estudo recente demonstrou que marcadores de
neuroinflamação são significativamente maiores no córtex frontal post-
mortem de pacientes bipolares (Rao et al., 2010). Especificamente, esse
estudo encontrou uma ativação importante da cascada de receptor IL-1 (Rao
et al., 2010), a qual está envolvida em vários processos de inflamação
regulatórios (Buttner et al., 2007). A IL-10 exerce um papel central na
resposta imunológica por meio da infrarregulação de citocinas pró-
inflamatórias, incluindo TNF- α, IL-1 β e IL-6. Níveis elevados de IL-10
foram demonstrados em pacientes bipolares em remissão após episódios
maníacos (Boufidou et al., 2004; Remlinger-Molenda et al., 2012) ou
depressivos (Barbosa et al., 2012), enquanto outros relatos não encontraram
diferenças significativas nos níveis de IL-10 (Remlinger-Molenda et al.,
2012). Os níveis de IL-10 parecem reduzir substancialmente desde os
estágios iniciais até os estágios finais do TB (Kauer-Sant’Anna et al., 2009).
Portanto, o efeito cumulativo de episódios de humor sucessivos e a duração
da doença parecem influenciar os níveis de citocinas pró-inflamatórias, as
quais atuam como mediadores fundamentais tanto na inflamação central
quanto na periférica, podendo contribuir para a neuroprogressão no TB.
Vale mencionar que TNF- α, IL-1 β e, particularmente, IL-6 são os
principais indutores de proteínas de fase aguda, incluindo a proteína C reativa
(PCR) (Gabay e Kushner, 1999). A PCR é um marcador de inflamação
sistêmica inferior, além de um fator de risco estabelecido para doença
cardiovascular (DCV). Em uma metanálise recente (incluindo 11 estudos;
1.618 indivíduos) para estimar a magnitude da associação entre os níveis de
PCR e TB, encontramos uma elevação significativa nos níveis de PCR em
pacientes bipolares em comparação a sujeitos de controle, com um tamanho
de efeito moderado (TE=0,39) (IC de 95%, 0,24-0,55; P <0,0001) (Dargél et
al., 2014). Na análise de subgrupo por fases de humor, descobrimos que
pacientes maníacos tiveram níveis de PCR significativamente mais elevados
do que sujeitos de controle com um grande TE (0,74) (IC de 95%, 0,44-1,02;
P <0,001) (Dargél et al., 2014). Um estudo de acompanhamento com duração
de dois anos demonstrou que níveis aumentados de PCR foram um
importante fator de risco para o início de sintomas maníacos em homens
deprimidos (Becking et al., 2013). Outro estudo relatou uma associação entre
gravidade dos sintomas maníacos e PCR de alta sensibilidade, além de uma
associação negativa entre os níveis proteicos de IL-6 e BNDF séricos em
adolescentes com TB (Goldstein et al., 2011). Um estado pró-inflamatório
parece estar relacionado com sintomas maníacos, o que acrescenta a noção de
que a PCR possa ser um marcador de estado no TB. Embora os mecanismos
explanatórios para essa relação ainda não estejam claros, um possível
mecanismo pode estar ligado à perturbação do sono, frequente em mania
(Harvey, 2008). Sabe-se que pacientes bipolares estão associados a níveis
elevados de citocinas e PCR (Mullington et al., 2009). Na mesma metanálise,
diferenças nos níveis de PCR entre pacientes eutímicos em comparação a
controles foram de modo significativo mais elevadas, ainda que com pequena
magnitude (Dargél et al., 2014), o que sugere que possa haver um
componente inflamatório em pacientes bipolares que não estão agudamente
doentes. Esses resultados metanalíticos reforçam evidências que mostram que
a ativação da resposta inflamatória persiste após a remissão (Mullington et
al., 2009), o que, por sua vez, sugere a PCR como um marcador potencial de
traço em TB (Dargél et al., 2014). Contudo, é importante ter em mente que
muitos estudos incluídos nessa análise de subgrupo utilizaram critérios
diferentes para caracterizar as diversas fases de humor do TB, o que fez
surgir a noção de que alguns pacientes bipolares categorizados como
eutímicos apresentavam sintomas residuais (subsindrômicos), os quais
também poderiam influenciar os níveis de PCR (Dargél et al., 2014). A carga
de episódios agudos parece contribuir para a mortalidade causada por DCV
entre indivíduos com TB (Fiedorowicz et al., 2009). Evidências convincentes
mostram que a PCR é um previsor independente de DCV (Emerging Risk
Factors Collaboration et al., 2010), principal causa de mortalidade em
pacientes com TB (Kupfer, 2005). A medição dos níveis de PCR está
associada a outros parâmetros geralmente utilizados na prática clínica, como
pressão sanguínea, circunferência da cintura e níveis de lipídeos e de glicose,
podendo ser um biomarcador útil em pacientes bipolares em risco de DCV,
bem como em indivíduos que, salvo isto, são saudáveis, mas sofrem de TB.
Eixo Hipotalâmico-Hipofisário-Suprarrenal
O eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal (HHS) é o principal sistema
implicado na resposta a estresse físico ou psicológico (Teixeira et al., 2013). -
Diversos parâmetros de função HHS, como níveis de cortisol, teste de
supressão com dexametasona (DST) e a combinação de
dexametasona/hormônio liberador de corticotrofina (DEX/CRH), estiveram
relacionados à gravidade dos sintomas de humor. Em depressão, por
exemplo, os níveis séricos de cortisol medidos após 1 mg noturno de DST
estiveram relacionados à gravidade da doença e, acredita-se, discriminaram a
gravidade da depressão (Maes et al., 1986). Estudos demonstraram aumento
na atividade do eixo HHS e nos níveis basais de cortisol durante episódios
depressivos ou maníacos em pacientes bipolares (Maes et al., 1986; Schmider
et al., 1995; Watson et al., 2004), e também propensão a aumento de níveis
de cortisol em reposta ao teste DEX/CRH durante eutimia (Maes et al., 1986;
Watson et al., 2004). Medições da função HHS, que reflete a gravidade de
um estado específico de doença, podem ser supostos biomarcadores de
progressão da doença no TB.
Biomarcadores inflamatórios
Estabilizadores de humor convencionais parecem infrarregular a produção de
RNAm pró-inflamatório e expressão genética de proteínas (Harman et al.,
2014).
Visto que rotas inflamatórias parecem estar envolvidas na progressão da
doença no TB, terapias adjuntas para modular a resposta inflamatória podem
mostrar-se como outra estratégia terapêutica relevante para intervenções mais
precisas no TB. De acordo com essa visão, um estudo randomizado, duplo-
cego e controlado com placebo relatou efeitos antidepressivos substanciais
após o tratamento adjunto com celecoxibe (inibidor da ciclo-oxigenase-2) em
pacientes bipolares durante episódios depressivos ou mistos (Nery et al.,
2008), bem como os efeitos benéficos da aspirina como tratamento adjunto
no TB (Savitz et al., 2012). Curiosamente, alterações na cascada de
metabolismo do ácido araquidônico foram encontradas no cérebro post-
mortem de pacientes bipolares (Rao et al., 2010).
Perturbações na resposta inflamatória, no entanto, podem ser proeminentes
apenas em um subconjunto de indivíduos com TB. Recentemente, um estudo
avaliou o efeito de um antagonista de TNF- α (infliximabe) em pacientes com
depressão resistente a tratamento. O infliximabe foi superior ao placebo no
alívio dos sintomas depressivos apenas em indivíduos que exibiam
inflamação elevada (hsCRP>5 mg/L) basal. Esse resultado preliminar
respalda a ideia de que medições dos níveis de PCR podem ser úteis para
estratificar pacientes bipolares que respondem a tratamento imunológico ou
anti-inflamatório específico, o que sugere que a PCR pode ser um marcador
em potencial para intensificar o tratamento correspondente em TB.
Até o momento, vários biomarcadores que exibem informações potenciais
sobre resposta ao tratamento se sobrepõem aos marcadores prognósticos que
podem prever risco ou progressão da doença. Ademais, abordagens
terapêuticas não farmacológicas, como psicoterapia e comportamento
saudável, podem modular biomarcadores periféricos de neuroprogressão,
incluindo neurotrofinas, inflamação e marcadores oxidativos (ver Fig. 10.1)
(Conus et al., 2008; Brietzke et al., 2011).
Joana Bücker
Marcia Kauer-Sant’Anna
Lakshmi N. Yatham
Anusha Baskaran
Benjamin I. Goldstein
Roger McIntyre
INTRODUÇÃO
O transtorno bipolar (TB) é um quadro prevalente e vitalício associado a
índices elevados de falta de recuperação e disfunção interepisódica (Judd et
al., 1996). Um relato recente da Global Alliance for Chronic Diseases
identifica o TB como uma das principais causas de incapacidade entre todos
os transtornos mentais, neurológicos e por uso de substância (Collins et al.,
2011). Além dos sintomas de humor que definem a doença, pacientes com
TB sofrem, com maior frequência, de condições médicas, sendo que as
comorbidades médicas mais comuns são doença endócrina/metabólica (23%)
e doença vascular (21%) (Maina et al., 2013). Estudos sobre mortalidade
indicam que indivíduos com TB apresentam mortalidade excessiva e
prematura decorrente de diversas causas, sendo que o índice mais elevado de
mortalidade prematura se deve à doença cardiovascular (DCV) (Taylor e
MacQueen, 2006). Um terço dos pacientes com TB também satisfaz os
critérios para síndrome metabólica, um grupo de fatores de risco associados
ao desenvolvimento de doença cardíaca, AVC e diabetes tipo II (Fagiolini et
al., 2005). Além disso, condições médicas gerais estão associadas a atraso no
tratamento de pacientes com o transtorno (Maina et al., 2013).
CARACTERIZAÇÃO CLÍNICA DO
TRANSTORNO BIPOLAR E COMORBIDADE
MÉDICA
Tem sido relatado que diversas características clínicas do TB estão associadas
à frequência de comorbidade médica. Magalhães e colaboradores (2012)
relataram associação entre variáveis que refletem cronicidade da doença e
carga com condições médicas comórbidas em pacientes inscritos do
Programa de Intensificação Sistemática de Tratamento do Transtorno Bipolar
(STEP-BD, Systematic Treatment Enhancement Program for Bipolar
Disorder). Características como apresentar mais de 10 episódios de humor
anteriores, início durante a infância, tabagismo, comorbidade ao longo da
vida com ansiedade e transtornos por uso de substância foram
independentemente associadas com a comorbidade médica (Magalhães et al.,
2012). Fortes associações entre variáveis relacionadas à cronicidade da
doença e à carga médica no TB apoiam modelos multidimensionais que
incorporam morbidade médica como uma característica fundamental do TB.
A comorbidade médica também foi associada a apresentações mais
complexas de doença e maior gravidade dos sintomas de humor no TB.
Kemp e colaboradores (2013) demonstraram que a carga de doenças médicas
comórbidas parece estar associada a um agravamento do curso da doença na
população bipolar. Pacientes com carga médica elevada estiveram mais
propensos a se apresentar durante um episódio depressivo maior, satisfazer os
critérios para transtorno obsessivo-compulsivo e experimentar maior
quantidade de episódios de humor durante a vida. Eles também apresentaram
maior probabilidade de receber receita médica com maior quantidade de
medicamentos psicotrópicos (Kemp et al., 2013). Contudo, há uma
incongruência no que se refere à função que as condições médicas
comórbidas exercem na moderação ou previsão da resposta ao tratamento.
Alguns autores descobriram associações significativas entre a quantidade
absoluta de doenças médicas comórbidas e os resultados mais desfavoráveis
do TB (Beyer et al., 2005; McIntyre et al., 2006), enquanto outros não
identificaram essas relações (Pirraglia et al., 2009). Thompson e
colaboradores (2006), ao estudarem pacientes com TB tipo I ou transtorno
esquizoafetivo, encontraram a presença de maior quantidade de
comorbidades médicas basais associadas a episódios depressivos de maior
gravidade e maior duração. Além disso, no referido estudo, pacientes com
maior carga médica basal melhoraram mais lentamente durante o curso do
tratamento. Portanto, a comorbidade médica no TB pode não apenas
representar uma consequência da doença, mas também constituir um
epifenômeno do processo patológico subjacente, além de acelerar a
progressão da doença.
O MODELO DE ESTADIAMENTO DO
TRANSTORNO BIPOLAR E COMORBIDADE
MÉDICA
O modelo de estadiamento do TB propõe que, em alguns casos, a doença
pode avançar em estágios sucessivos. Inicialmente, indivíduos em risco de
serem diagnosticados com TB apresentam um período de latência
assintomático, seguido de perto por um conjunto de sintomas precoces,
frequentemente não específicos, chamado de estágio prodrômico. Na maioria
dos casos, o primeiro episódio de TB costuma ser de natureza depressiva,
com uma transição gradativa para hipo/mania (Berk et al., 2007). O curso do
TB, então, costuma se agravar com o decorrer do tempo, tanto em termos de
aumento da gravidade quanto da frequência dos episódios de humor (Kessing
et al., 2004). Essas mudanças na apresentação clínica que ocorrem ao longo
do tempo foram conceitualizadas como neuroprogressão (Grande et al.,
2012).
Conforme o TB avança, comorbidades físicas, juntamente com sintomas
residuais, costumam se agravar, resultando em maior sobrecarga de saúde
física e em baixa qualidade de vida (Young e Grunze, 2013). O acúmulo da
carga médica no TB foi descrito anteriormente como somatoprogressão
(Goldstein et al., 2009a). Além disso, o início precoce do TB tem sido
correlacionado a um início precoce de condições médicas comórbidas como
doença cardíaca isquêmica, AVC, hipertensão e diabetes, em comparação
com a população em geral (Kilbourne et al., 2004). Pacientes que
desenvolvem TB durante a infância ou adolescência são aqueles que esperam
mais tempo até a obtenção do diagnóstico correto (Berk et al., 2007). Entre o
momento do início do sintoma (ou sintomas) de TB e o diagnóstico correto
podem transcorrer de 10 a 12 anos, causando um atraso significativo do início
do tratamento (Berk et al., 2007; Macneil, 2012). Os problemas que ocorrem
devido ao atraso de diagnóstico e à falta de tratamento em tempo incluem
aumento da morbidade, aumento da gravidade da depressão, redução na
qualidade de vida e maior probabilidade de suicídio (Howes e Falkenberg,
2011; Taylor et al., 2011).
Em um estudo nacional de coorte de grande amostragem, demonstrou-se
que a associação entre TB e mortalidade decorrente de doenças crônicas -
(doença cardíaca isquêmica, diabetes, doença pulmonar obstrutiva crônica ou
câncer) é menor entre indivíduos com diagnóstico anterior dessas condições
do que entre indivíduos sem um diagnóstico anterior (Crump et al., 2013). -
Portanto, o índice de mortalidade decorrente de doença crônica entre pessoas-
com diagnóstico médico realizado mais cedo chegou mais próximo ao índice
de mortalidade da população em geral, o que sugere que uma oferta eficaz de
assistência médica primária pode efetivamente reduzir a mortalidade
prematura entre indivíduos com TB (Crump et al., 2103).
LIGAÇÕES TEÓRICAS ENTRE
COMORBIDADES MÉDICAS E PROGRESSÃO
DA DOENÇA NO TRANSTORNO BIPOLAR
Vários modelos surgiram como paradigmas úteis para proporcionar uma
explicação para a progressão da doença no TB. Um desses modelos envolve o
conceito de carga alostática. Segundo o modelo de carga alostática, o estresse
crônico desempenha um papel importante em como se envelhece e na
trajetória da doença (Grande et al., 2012). O estresse crônico aciona
mecanismos no corpo que geralmente são ativados com a finalidade de lidar
com o estresse, mas a ativação repetida desses sistemas compensatórios deixa
o corpo fisicamente desgastado, cedendo à carga alostática (Grande et al.,
2012). A fisiopatologia por trás do TB pode promover o desenvolvimento de
uma variedade de condições médicas que ocorrem em comorbidade com o
transtorno (Soreca et al., 2009).
Embora o conceito de carga alostática forneça uma estrutura para nossa
compreensão, vários mediadores foram postulados como ligações teóricas
entre comorbidades médicas e progressão da doença no TB. Entre eles estão
perturbações no eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal (HHS), disfunção
mitocondrial, estresse oxidativo e inflamação (Fries et al., 2012; Grande et
al., 2012; Lopresti e Drummond, 2013). O TB e muitas das comorbidades
médicas observadas no TB compartilham essas rotas biológicas desreguladas,
conforme será abordado nas seções seguintes. É evidente que o TB se
caracteriza por disfunção no eixo HHS, incluindo aumento no nível de
cortisol basal, ausência de supressão dos níveis de cortisol por dexametasona,
bem como respostas anormais do sistema HHS a diversos estressores físicos e
psicológicos. O estresse subjacente ao tônus noradrenérgico elevado e à
ativação do eixo HHS resulta em hipercortisolemia (Fitzgerald, 2009).
O TB é acompanhado também por alterações na cadeia de transporte de
elétrons (CTE) mitocondrial . Evidências convergentes demonstram de forma
consistente a infrarregulação de diversos genes relacionados à CTE
mitocondrial em pacientes bipolares (Andreazza e Young, 2013), o que leva a
maiores níveis de espécies oxidativas reativas (Budni et al., 2013). O estresse
oxidativo, ao contrário, pode inibir complexas CTEs mitocondriais, levando à
redução na produção de trifosfato de adenosina (ATP) e à disfunção celular.
Além disso, o estresse oxidativo é um mediador do processo inflamatório
(Budni et al., 2013). Evidências disponíveis indicam que TB e inflamação
estão associados por meio de polimorfismos genéticos compartilhados e
expressão de genes, além de níveis de citocina durante intervalos
sintomáticos (i.e., mania e depressão) e assintomáticos (Goldstein et al.,
2009a). Uma metanálise recente de 30 estudos relatou concentrações elevadas
de interleucina (IL)-4, IL-6, IL-10, receptor de IL-2 solúvel (sIL-2R), sIL-6R,
fator de necrose tumoral alfa (TNF- α), receptor-1 de TNF solúvel (sTNFR1)
e antagonista de receptor de IL-1 em pacientes em comparação a controles
saudáveis (Modabbernia et al., 2013). Além disso, IL-1 β e IL-6 mostraram
propensão a apresentar valores mais elevados em pacientes bipolares.
Somado a isso, sugeriu-se que inflamação pode estar associada a déficits
cognitivos que são observados no TB (Berk et al., 2011).
DIABETES
Epidemiologia
Pacientes bipolares apresentam risco até três vezes maior de desenvolver
diabetes melito tipo 2 (DMT2) em comparação com a população geral
(Calkin et al., 2013). Esse é um fator importante que contribui para o elevado
risco de mortalidade devido à DCV, principal causa de morte em pacientes
bipolares. Em uma análise de estudos epidemiológicos, a prevalência de
DMT2 em pacientes com TB foi relatada em 8 a 17% (Newcomer, 2006). O
primeiro estudo prospectivo de coorte compatibilizada com controle com
base na população de âmbito nacional com duração de 10 anos mostrou
maiores riscos de início de tratamento farmacológico com antidiabéticos e
anti-hiperlipidêmicos entre pacientes com TB e esquizofrenia (Bai et al.,
2013). Pacientes com TB e DMT2 apresentam um curso mais grave da
doença e são mais refratários a tratamento. Ademais, o controle de sua
diabetes é pior em comparação com diabéticos sem TB.
Correlatos clínicos
Pacientes com TB e DMT2 sofrem de sintomas psiquiátricos mais graves,
incluindo um curso mais crônico, com aumento rápido da ciclagem, maior
quantidade de admissões hospitalares psiquiátricas e maior mortalidade
(expectativa de vida 30% menor) (Ruzickova et al., 2003; Colton et al.,
2006). Esses pacientes também têm baixa qualidade de vida e de
funcionamento em geral se comparados a seus congêneres sem diabetes.
Vários fatores possivelmente desempenham um papel subjacente que
contribui para a prevalência de DMT2 no TB. Pode haver uma fisiopatologia
compartilhada que une TB e diabetes, incluindo o eixo HHS e disfunção
mitocondrial, ligações genéticas comuns e interações epigenéticas (Calkin et
al., 2013). Fatores de estilo de vida, fenomenologia de sintomas de TB e
efeitos adversos de farmacoterapia também podem constituir fatores de
contribuição (Calkin et al., 2013).
O estresse por trás da elevação do tônus noradrenérgico e da ativação do
eixo HHS que leva à hipercortisolemia no TB também pode acarretar redução
na secreção de insulina e aumento da gliconeogênese, resultando em
hiperglicemia com progressão para diabetes (Fitzgerald, 2009). Isso, por sua
vez, promove o depósito de gordura corporal e também a formação de placas
ateroscleróticas nas artérias coronárias (Brindley e Rolland, 1989),
contribuindo para obesidade abdominal e DCV, respectivamente.
Disfunção mitocondrial foi implicada na patogênese tanto do TB quanto
do diabetes (Kato e Kato, 2000). Pacientes com TB apresentam redução de
pH, de fosfocreatina e de ATP no cérebro, características típicas de
metabolismo aeróbio reduzido. Pacientes bipolares também apresentam
níveis mais elevados de lactato no cérebro, o que indica um aumento no
metabolismo anaeróbio. De forma semelhante, pacientes com diabetes
apresentam redução na capacidade mitocondrial muscular para produzir ATP
(Szendroedi et al., 2007). Pacientes bipolares e pacientes diabéticos também
compartilham deleções, mutações e polimorfismos de DNA mitocondrial
(Kato, 2006). Anormalidades da glicose em pacientes com TB precisam ser
triadas e tratadas. A metformina parece oferecer a melhor proporção de risco
e benefício, e os inibidores da dipeptidil peptidase-4 e agonistas e análogos
de peptídeo-1 tipo glucagon também parecem promissores, embora não
tenham sido investigados especificamente em populações com transtorno do
humor (Calkin et al., 2013). Os médicos devem estar atentos ao aumento do
risco de DMT2 em pacientes bipolares. É recomendável prevenção adequada,
triagem, detecção e tratamento.
OBESIDADE
Epidemiologia
Estudos clínicos e epidemiológicos revelam que mais da metade dos
pacientes bipolares tem sobrepeso ou está obesa, um achado que parece ser
independente do tratamento com medicamentos psicotrópicos que causam
ganho de peso (Kemp et al., 2010). Embora sobrepeso e obesidade sejam
altamente prevalentes entre adultos com TB e tenham sido associados à
gravidade da doença, a prevalência de sobrepeso e obesidade entre jovens
com TB pode ser pouco superior à prevalência na população geral (Goldstein
et al., 2008). Além disso, assim como em adultos, o sobrepeso e a obesidade
entre jovens com TB podem estar associados ao aumento da carga
psiquiátrica.
Correlatos clínicos
A obesidade no TB parece estar associada a maior gravidade dos sintomas
psiquiátricos e progressão da doença. Estudos retrospectivos revelaram que
pacientes bipolares obesos relatam um aumento da frequência de episódios
maníacos e depressivos em comparação a pacientes não obesos, além de
correlações positivas entre índice de massa corporal (IMC) e marcadores da
gravidade da doença (Fagiolini et al., 2004). De modo semelhante, resultados
menos favoráveis de tratamento são mais comuns em pacientes bipolares com
obesidade generalizada (Fagiolini et al., 2002). Os pacientes bipolares obesos
não apenas experimentam um aumento na quantidade de episódios
depressivos e maníacos durante a vida, como também sofrem recaídas mais
rapidamente após a estabilização, sobretudo de episódios depressivos
(Fagiolini et al., 2003). Estudos prospectivos também mostram que pacientes
bipolares obesos têm períodos eutímicos mais breves, recaídas depressivas
mais frequentes, e que o ganho de peso clinicamente significativo está
associado a prejuízo funcional (Bond et al., 2010). Em um estudo
longitudinal com duração de três anos, mostrou-se que a obesidade prediz de
forma independente o acúmulo de condições médicas em adultos com TB
(Goldstein et al., 2013). Portanto, o tratamento de obesidade pode ter o
potencial de mitigar a carga psiquiátrica e médica do TB.
Ademais, a neuropatologia do TB é exacerbada no caso de IMC elevado.
O IMC elevado no TB está associado a um volume cerebral menor nas
regiões de vulnerabilidade conhecida no transtorno (Bond et al., 2011). Bond
e colaboradores (2013) relataram que pacientes com IMC mais elevado
durante a recuperação de seu primeiro episódio maníaco apresentam reduções
tanto na substância cinzenta quanto na substância branca nas regiões
geradoras e reguladoras de emoções no cérebro. Esses resultados sugerem um
possível mecanismo neurobiológico para explicar a associação bem validada
entre a obesidade e o curso da gravidade da doença no TB.
Pacientes bipolares obesos também demonstram uma resposta mais fraca
ao tratamento com lítio (Fagiolini et al., 2003). Calkin e colaboradores (2009)
encontraram uma correlação inversa entre IMC e resposta ao lítio, o padrão
consagrado do tratamento para TB. Sujeitos que atingem remissão total dos
sintomas com lítio mostraram um IMC significativamente mais baixo (na
faixa saudável) em comparação com indivíduos na faixa de obesidade que
não tiveram resposta clínica ao lítio (Calkin et al., 2009). Kemp e
colaboradores (2010) relataram que, para cada aumento de uma unidade no
IMC, a probabilidade de resposta a qualquer tratamento de TB diminuía em
7,5%, e a probabilidade de remissão diminuía em 7,3%. Portanto, pacientes
bipolares com obesidade comórbida podem sofrer de refratariedade ao
tratamento.
Muitas hipóteses diferentes foram usadas para explicar a associação entre
obesidade e TB. TB e obesidade compartilham características
fenomenológicas fundamentais, como alimentação excessiva, atividade física
reduzida, perturbação do sono e impulsividade, que afetam de forma adversa
o equilíbrio entre o consumo e o gasto de energia (McElroy e Keck, 2010).
Contudo, TB e obesida de também compartilham anormalidades
neurobiológicas, como disfunção no eixo HHS, desequilíbrio do sistema de
neurotransmissores e disfunção do fator neurotrófico derivado do cérebro
(McElroy e Keck, 2012).
Anormalidades nas redes metabólicas inflamatórias sugerem que
inflamação, conforme observada no TB, também é comum em distúrbios
metabólicos como obesidade. Por exemplo, mulheres com TB armazenam
maior proporção de gordura em regiões viscerais ou abdominais do que os
controles obesos (Fleet-Michaliszyn et al., 2008). A gordura visceral é
metabolicamente ativa e secreta citocinas pró-inflamatórias e outros reagentes
de fase aguda que foram correlacionados ao aumento da gravidade de
sintomas depressivos (McIntyre et al., 2007).
DOENÇA CARDIOVASCULAR
Epidemiologia
Da carga desproporcional de condições médicas encaradas por pacientes
bipolares, a DCV se destaca tanto pelo prejuízo no funcionamento quanto
pela mortalidade prematura. Goldstein e colaboradores (2009b) relataram que
a média de idade de sujeitos bipolares com DCV e hipertensão foi de 14 e 13
anos mais jovem, respectivamente, do que controles com DCV e hipertensão.
Pessoas com TB morrem de DCV aproximadamente 10 anos antes do que a
população em geral (Westman et al., 2013). Em um estudo de coorte com
base na população da Suécia, Westman e colaboradores (2013) relataram que
um terço (38%) de todas as mortes de pessoas com TB decorreu de DCV, e
quase metade (44%), de outras doenças somáticas. O excesso de mortalidade
tanto de DCV quanto de outras doenças somáticas foi mais elevado do que
suicídio e outras causas externas (Westman et al., 2013). A proporção de
índices de mortalidade no caso de doença cerebrovascular, doença cardíaca
coronariana e infarto agudo do miocárdio foi o dobro em indivíduos com TB
em comparação à população em geral.
Correlatos clínicos
Demonstrou-se que a cronicidade dos sintomas de TB contribui para a
vasculopatia de forma dose-dependente. Por exemplo, mostrou-se que
pacientes com mais sintomas maníacos/hipomaníacos apresentam função
endotelial mais pobre (Fiedorowicz et al., 2012). Exposição a medicamentos
antipsicóticos de primeira geração também foi associada a rigidez arterial,
maior aumento da pressão e pressão sanguínea elevada (Fiedorowicz et al.,
2012). Métodos de fenotipagem vascular podem oferecer um meio promissor
para elucidar os mecanismos que unem transtornos do humor à doença
vascular. Justificam-se mais pesquisas para estudar se as DCVs afetam a
progressão da doença no TB.
A taxa de excesso de DCV no TB se deve ao agrupamento de fatores de
risco tanto tradicionais (p. ex., obesidade) quanto emergentes (p. ex.,
inflamação). Um relato recente da Rede Brasileira de Pesquisa em TB
demonstrou que variáveis como padrão de uso de medicamentos, transtorno
por uso de álcool e atividade física estiveram associadas a fatores de risco
cardiovascular selecionados. Além disso, entre as diversas rotas biológicas
que foram implicadas na patologia de DCV, estresse oxidativo e inflamação
têm relatos mais frequentes (Stoner et al., 2013).
Alguns especialistas sugeriram que processos fisiopatológicos
compartilhados podem ligar o TB à DCV. Esses fatores conceitualmente
intrínsecos ao processo de doença proposto em TB podem, teoricamente,
levar a aumento do risco cardiovascular (Murray et al., 2009). Ligações
potenciais incluem níveis séricos de epinefrina, redução da variabilidade da
frequência cardíaca, metabolismo de lipídeos e inflamação.
O metabolismo de lipídeos pode ser uma área de pesquisa particularmente
importante para a ligação entre TB e DCV. Indivíduos com TB apresentam
níveis de colesterol mais baixos e de triglicerídeos mais elevados, os quais
podem influenciar o curso da doença (Fiedorowicz et al., 2010). Pacientes
com TB e baixos níveis de colesterol têm uma carga mais elevada de
sintomas maníacos, o que sugere uma possível relação entre baixo colesterol
e morbidade maníaca sem um maior risco esperado de doença vascular
(Fiedorowicz et al., 2010). Baixos níveis de colesterol e de triglicerídeos
também foram associados a um índice mais elevado de tentativas de suicídio
em indivíduos com TB (Vuksan-Cusa et al., 2009).
Em contraposição, triglicerídeos elevados e síndrome metabólica podem
predispor indivíduos à doença vascular.
O TB caracteriza-se por uma resposta inflamatória desregulada e
superativa. A proteína C reativa, um marcador inflamatório circulante, foi
anteriormente ligada à doença cardíaca coronariana (Lowe, 2005). Trabalhos
recentes demonstram níveis elevados da proteína C reativa em pacientes
bipolares agudos e não agudos, mas não em pacientes com depressão grave
(Lowe, 2005; Huang e Lin, 2007). Além disso, revelou-se que indivíduos
com TB que não têm doença vascular apresentam atividade pró-apoptótica
sérica elevada, talvez desencadeada por um estado pró-inflamatório
exagerado, o qual pode levar à disfunção endotelial e à doença vascular
(Politi et al., 2008).
O aumento da mortalidade cardiovascular em pessoas com TB clama por
esforços renovados a fim de prevenir e tratar doenças somáticas nesse grupo
de pacientes (Gomes et al., 2013). Seria fundamental assegurar que
indivíduos com TB recebam a mesma assistência de qualidade para DCV que
pacientes sem TB.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não está evidente o motivo pelo qual condições médicas comórbidas estão
associadas a um curso mais grave da doença no TB. É possível que diversas
condições comórbidas como obesidade representem uma variação mais grave
do TB. É também plausível afirmar que condições físicas comórbidas possam
exercer um efeito tóxico sobre o cérebro, prejudicando a cognição e, por fim,
conduzindo a um agravamento no curso da doença. Técnicas de
neuroimagem também podem ajudar a explicar por que condições médicas no
TB aceleram e/ou agravam a progressão da doença.
Pacientes com TB sofrem de condições médicas com maior frequência,
mais comumente doença endócrina/metabólica (p. ex., DMT2, obesidade) e
DCV. Estudos sobre mortalidade também indicam que indivíduos com TB
apresentam mortalidade excessiva e prematura. A comorbidade médica pode
representar um aspecto fundamental do TB, em vez de um evento incidental
ou um efeito colateral de tratamento devido a fortes associações entre
variáveis relacionadas à cronicidade da doença e à carga médica no
transtorno. Ademais, comorbidade médica no TB pode não apenas
representar uma consequência da doença, mas também pode ser um
epifenômeno do processo patológico subjacente, além de acelerar a
progressão da doença.
A fisiopatologia subjacente ao TB pode promover o desenvolvimento de
uma variedade de condições médicas que ocorrem comórbidas ao transtorno.
Vários mediadores foram postulados como ligações teóricas entre
comorbidades médicas e progressão do TB. Entre eles, perturbações do eixo
HHS, disfunção mitocondrial, estresse oxidativo e inflamação. Esses
mediadores também fornecem uma ligação com a teoria de carga alostática
em TB e o “desgaste” resultante do corpo. Juntos, esses achados evidenciam
a importância de abordar o TB tanto de uma perspectiva científica quanto
clínica como um transtorno sistêmico, com manifestações físicas e
psiquiátricas.
REFERÊNCIAS
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USO INDEVIDO DE
SUBSTÂNCIAS NO
ESTADIAMENTO DO
TRANSTORNO BIPOLAR
Romain Icick
Frank Bellivier
INTRODUÇÃO
A associação entre o uso indevido de substâncias e o transtorno bipolar (TB)
há muito tempo foi identificada como uma das principais fontes de carga
tanto para pacientes quanto para clínicos, e dados obtidos nos últimos 20 anos
destacam a preocupante extensão dessa associação. Desse modo, o uso
indevido de substâncias passou a fazer parte dos fatores envolvidos na
progressão da doença bipolar, conforme descrito por modelos de
estadiamento recentemente estabelecidos por diversos autores (ver Scott et
al., 2013). Contudo, acreditamos que há vários motivos para o
aprofundamento da questão e propomos, neste capítulo, uma implicação
muito mais ampla do uso indevido de substâncias no modelo de estadiamento
descrito neste livro. Para dar sustentação a esse ponto de vista, primeiramente
reuniremos evidências epidemiológicas, clínicas e biológicas que conectam
os transtornos por uso de substâncias (TUSs) aos modelos de estadiamento do
TB atuais. Em segundo lugar, descreveremos brevemente como a própria
definição de TUSs pode ser utilizada para ampliar sua implicação nos
modelos de estadiamento tendo em conta as mudanças recentes nos critérios
do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM). Contudo,
várias limitações ainda impedem a integração total dos TUSs como um fator
modelador no estadiamento do TB, conforme abordamos em nossa seção
final.
Ao longo deste capítulo, usaremos de forma indistinta as expressões “uso
indevido de substâncias” ou “TUSs” para nos referirmos a abuso ou
dependência de substâncias.
TRANSTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIAS
DEVEM SER INCLUÍDOS NA DEFINIÇÃO DE
ESTADIAMENTO
Dados de diferentes áreas de pesquisa indicam claramente que os TUSs têm
um papel potencial em vários níveis na carga alostática envolvida na
progressão da doença bipolar (Kapczinski et al., 2008).
Neuroimagens
Os TUSs também foram associados a alterações na estrutura do cérebro em
várias áreas fundamentais envolvidas na memória, na tomada de decisão e no
sistema límbico. A alteração da substância branca (SB) encefálica
responsável pela conectividade entre áreas pode ser ainda mais pronunciada.
A perda de volume da SB foi associada a uso indevido de cocaína (Moreno-
López et al., 2012), álcool (Monnig et al., 2013) e ecstasy (De Win et al.,
2008).
No que se refere a alterações na substância cinzenta (SC), estudos de
controle de caso demonstraram redução no volume hipocampal em sujeitos
com transtorno por uso de ecstasy (Den Hollander et al., 2012) e cocaína
(Moreno-López et al., 2012), e doenças relacionadas ao uso de álcool
(Durazzo et al., 2011). Mais especificamente, um maior volume da SC no
circuito de recompensa pode prever recaída/abstinência de dependência de
álcool (Cardenas et al., 2011). Entretanto, a redução na espessura cortical tem
sido correlacionada à condição de consumo de álcool tanto atual quanto
durante a vida (Cardenas et al., 2011) entre indivíduos que abusam dessa
substância. No caso de maconha, uma redução do volume global da SC foi
sugerida em adolescentes bipolares com transtornos por uso de Cannabis
(Jarvis et al., 2008), enquanto o canabidiol, quando administrado em
separado, pode ter efeitos neuroprotetores (Demirakca et al., 2011). Por fim,
o tabagismo durante a vida, ao se levar em consideração sujeitos com idade a
partir de 64 anos, foi associado a efeitos heterogêneos sobre o volume
estriatal (Das et al., 2012) e, portanto, justifica uma investigação mais
aprofundada.
Aparentemente, medicamentos e drogas do tipo psicoestimulante
apresentam, de modo geral, efeitos tóxicos disseminados sobre a SC e a SB,
enquanto o álcool prejudica a estrutura da SC. O efeito da maconha e do
tabaco parece depender da idade. Observa-se que essas alterações nas
estruturas cerebrais estão em conformidade com os resultados mais
funcionais de estudos neuropsicológicos.
Anormalidades neuropsicológicas
Durante as duas últimas décadas, houve uma mudança de paradigmas no
conceito de adição de uma sequência inicial de “intoxicação/abstinência” a
prejuízo consideravelmente duradouro, envolvendo a alteração da tomada de
decisão subjacente a déficit na atenção e memória (Hyman, 2005; Heyman,
2013). Perturbações semelhantes foram descritas entre pacientes bipolares
eutímicos (Bellivier, 2012), e pode-se esperar efeitos aditivos no caso de -
dependência e uso de substâncias concomitantes, com relação a alguma
especificidade descrita mais adiante. Além disso, evidências preliminares
mostraram que pacientes bipolares com TUSs parecem ter um desempenho
pior do que pacientes com TB sem TUSs em diversas tarefas de atenção e
aprendizado no caso de dependência de álcool comórbida (Levy et al., 2008).
Observa-se que as funções executivas como tomada de decisão parecem
predizer recaída da dependência de estimulantes, sejam os pacientes bipolares
ou não (Nejtek et al., 2013), o que sugere mecanismos semelhantes (De
Wilde et al., 2013; Wang et al., 2013).
No que se refere a perfis dimensionais, a impulsividade costuma estar
associada a TUSs entre pacientes bipolares, e com gravidade, de modo geral,
mais elevada nesses pacientes (Etain et al., 2013).
Destaca-se que a maioria desses estudos sobre biomarcadores utilizou uma
elaboração transversal, a qual impede que se concluam efeitos causais
formais dessas substâncias sobre a estrutura cerebral. Essa ligação causal
ainda é respaldada pelo fato de que sujeitos em remissão com TUSs
apresentam tendência a exibir níveis intermediários de alteração entre
usuários ativos e controles.
Ambiental
Modelos de estadiamento atuais destacam o impacto da doença bipolar na
vida ambiental e social do indivíduo, especialmente nos estágios finais. Esse
impacto pode ser dividido em consequências iniciais, como a lentidão da
realização acadêmica devido a episódios depressivos ou maníacos precoces, e
consequências posteriores, como divórcio ou separação devido à repetição de
episódios, ou mesmo disfunção cognitiva no caso de estágios finais. Essas
consequências favorecem o isolamento do indivíduo e podem aumentar a
sintomatologia da doença bipolar. Os TUSs sabidamente propiciam essas
alterações ambientais, dependendo de sua condição legal, devido ao prejuízo
na capacidade de tomar decisões (Volkow et al., 2011), bem como ao
aumento de danos a outros (Witt et al., 2013). Eles devem, portanto, ser
considerados mais amplamente para estadiamento nesse domínio.
A partir dessa limitada e seletiva análise, parece evidente que se justifique
um maior envolvimento dos TUSs nos critérios utilizados para o
estadiamento do TB, o qual pode se beneficiar de um endosso muito mais
amplo dos critérios ligados ao uso indevido de substâncias. Várias alterações
fisiopatológicas possivelmente úteis no estadiamento do TB podem ser
obtidas a partir desses resultados, sendo que existem duas rotas principais:
uma delas envolve o BDNF, a cognição, a repetição de episódios e a perda
neuronal, enquanto a outra envolve o eixo HHS, a desregulação emocional e
o trauma precoce. Estados inflamatórios, anormalidades na SB e repetição de
episódios de humor maiores provavelmente integram ambas as rotas,
igualmente.
Apesar dessas evidências, a fenomenologia dos TUSs é complexa e
justifica a integração de uma descrição mais detalhada nos modelos de
estadiamento.
COMO INCORPORAR OS TRANSTORNOS POR
USO DE SUBSTÂNCIAS NOS MODELOS DE
ESTADIAMENTO DO TRANSTORNO
BIPOLAR?
Critérios do DSM-5
O uso indevido de substâncias há muito tempo é chamado de abuso e
dependência, apesar de variações históricas das classificações existentes. Em
suma, o diagnóstico de abuso depende sobretudo das consequências negativas
isoladas, mas relativamente graves, do uso de drogas por um indivíduo,
enquanto o diagnóstico de dependência, ao contrário, refere-se ao padrão fixo
de uso que leva à recaída e ao agravamento de problemas em diferentes áreas
do funcionamento do indivíduo, ambos refletindo a perda de controle do uso
da substância (Goodman, 1990). Considerando a ausência de especificidade
associada ao diagnóstico de abuso, bem como a gravidade relativamente
elevada sugerida pelo diagnóstico de dependência, pesquisadores validaram
uma classificação semidimensional atualmente denominada “Transtornos
relacionados a substâncias e transtornos aditivos” na recente quinta edição do
DSM (American Psychiatric Association, 2013). Essas mudanças resultaram
em uma faixa contínua com três níveis de gravidade. Tal padrão de
classificação apresenta semelhanças intrigantes com os modelos de
estadiamento, embora não sugira a progressão de um agrupamento de
sintomas para outro na duração da doença.
ESPECIFICADORES PARA O USO INDEVIDO
DE SUBSTÂNCIAS A SEREM APLICADOS NAS
DEFINIÇÕES DE ESTADIAMENTO
Uso de polissubstâncias
O uso e o uso indevido de polissubstâncias é a regra, e não a exceção, no caso
de TUSs, sendo que o TB pode desempenhar uma função catalisadora na
multiplicação do uso de substâncias por um determinado indivíduo. Esses
padrões devem ser especificados separadamente se utilizados em um modelo
de estadiamento do TB, já que constituem uma grande fonte de instabilidade
clínica e ambiental (Hoblyn et al., 2009; Icick e Bellivier, 2013), embora
correlatos de uso de polissubstâncias no TB ainda não tenham sido avaliados
especificamente, de acordo com nossa pesquisa.
Dimensões transnosográficas
Conforme já mencionado, os TUSs estão fortemente associados a dimensões
como impulsividade entre pacientes bipolares, a ponto de poderem mediar de
modo parcial seu impacto sobre o curso da doença bipolar (Icick e Bellivier,
2013). Esse fato pode justificar especificadores complementares, além dos
TUSs, considerando que a expectativa de que indivíduos com níveis mais
elevados de impulsividade apresentem um curso mais grave de doença
bipolar, incluindo TUSs comórbidos e comportamento suicida (Etain et al.,
2013).
De modo geral, acreditamos que esses especificadores mínimos devam ser
utilizados para avaliar a importância do uso de substâncias em cada indivíduo
com TB para que seja relevante para o estadiamento da doença. Contudo,
apesar das evidências reunidas até o momento e do aprimoramento dos
padrões dos TUSs proposto pelas definições do DSM-5, várias limitações
impedem a criação de modelos de estadiamento do TB com um maior
envolvimento dos TUSs.
BARREIRAS CONTRA UMA DEFINIÇÃO
OPERACIONAL DE ESTADIAMENTO QUE
INCLUIRIA OS TRANSTORNOS POR USO DE
SUBSTÂNCIAS COMO UM FATOR ESSENCIAL
A fenomenologia dos transtornos aditivos implica instabilidade pessoal e
ambiental, o que pode influenciar os resultados e os sintomas do TB com o
acréscimo do impacto sobre a busca por tratamento e adesão, todos com
variabilidade de um sujeito para outro e no mesmo sujeito. Portanto,
explicaremos resumidamente como essa complexidade ainda se opõe à
operacionalização de estadiamento, com maior implicação dos TUSs.
O uso de substâncias em si já é um fenômeno complexo, heterogêneo, que
varia conforme o tempo. Uma observação mais atenta ao uso de maconha
fornece um bom exemplo de tal complexidade.
Janusz K. Rybakowski
ESTADIAMENTO DO TRANSTORNO BIPOLAR
Em uma proporção significativa de pacientes com transtorno bipolar (TB), o
curso da doença pode ser descrito em termos de estadiamento. O modelo de
estadiamento do transtorno psiquiátrico admite uma progressão a partir da
condição prodrômica (em risco) até condições mais graves e refratárias ao
tratamento. Uma proposta inicial de estadiamento para diversas doenças
psiquiátricas foi elaborada por Fava e Kellner (1993) há 20 anos. Quatro
modelos de estadiamento foram propostos para o TB. O primeiro conceito de
Robert Post (1992) se baseia no fenômeno de kindling e neurossensitização e
pressupõe a contribuição de estressores para o desencadeamento do primeiro
episódio da doença, com mudanças subsequentes persistentes na atividade de
neurônios, maior vulnerabilidade a recaídas e pior resposta ao tratamento. O
modelo de Michael Berk (2009) foi concebido em paralelo a algoritmos
terapêuticos. O modelo de Berk classifica os estágios da doença com base em
características clínicas, prognóstico e resposta ao tratamento. Ele identifica os
estágios da doença em indivíduos de alto risco, destaca a necessidade de
intervenção precoce e é proposto como um especificador de curso para o TB.
O modelo de Flávio Kapczinski (2009a) se baseia na avaliação de pacientes
durante o período interepisódio conforme seu funcionamento e cognição.
Nesse modelo, o possível uso de biomarcadores no futuro também é
destacado. Por fim, o conceito de Anne Duffy (2010) deve ser mencionado.
Ele se baseia na pesquisa da prole em alto risco de indivíduos bipolares e
descreve o desenvolvimento precoce da doença como estágios sucessivos –
transtornos não do humor, transtornos do humor menores e episódios agudos
da doença com início na infância – na tentativa de estabelecer uma distinção
entre os subtipos do transtorno dependendo da resposta dos pais ao
tratamento profilático com lítio.
Na seção inicial do presente ensaio, os componentes clínicos,
neurobiológicos e neurocognitivos do estadiamento no TB serão abordados.
Atenção especial será dada ao mecanismo de alostase e resiliência no
contexto de modelos de estadiamento. Posto que o estadiamento do TB está
intimamente relacionado ao tratamento, o efeito do estadiamento sobre a
eficácia de vários métodos de tratamento será discutido. Na seção final, será
demonstrado que um tratamento bem-sucedido e a profilaxia com lítio podem
influenciar favoravelmente a progressão da doença, dificultando o avanço do
transtorno para os estágios finais.
COMPONENTES CLÍNICOS DE
ESTADIAMENTO
Sintomas clínicos compõem a principal característica da classificação em
estadiamento. Em sua análise de estadiamento do TB, Cosci e Fava (2013)
indicam uma relativa ausência de evidências que defendam a definição de um
estágio 0 (em risco) para o TB. Segundo eles, o estágio 1 inclui sintomas
leves ou não específicos de transtorno do humor, característicos da fase
prodrômica (p. ex., aumento da autoconfiança, energia e humor eufórico,
oscilações de humor), ou ciclotimia. No estágio 2, a manifestação aguda de
transtorno depressivo maior e mania/hipomania estão presentes. No estágio 3,
sintomas residuais da fase ocorrem com prejuízo acentuado na cognição e no
funcionamento apesar do tratamento com estabilizador do humor. Durante o
estágio 4, episódios agudos surgem apesar do tratamento com estabilizador
do humor.
Outros conceitos clínicos do estadiamento do TB colocam mais ênfase no
período inicial ou prodrômico do desenvolvimento do transtorno. Kapczinski
e colaboradores (2009a) propuseram uma fase latente antes do estágio 1,
incluindo pacientes com carga familiar de TB (risco ultraelevado) e
temperamento hipertímico ou ciclotímico, bem como com ansiedade ou
sintomas depressivos ou hipomaníacos subsindrômicos. De modo
semelhante, Duffy e colaboradores (2010) indicam excesso de ansiedade e
transtornos do sono na prole de pacientes com TB, bem como uso de
substâncias psicoativas no período anterior à apresentação clínica evidente de
sintomas do humor. No modelo de Kapczinski e colaboradores (2009a), o
estadiamento se baseia na avaliação clínica e funcional durante os períodos
interepisódios. Portanto, no estágio 1, o paciente apresenta eutimia bem-
estabelecida e ausência de sintomatologia psiquiátrica evidente no
interepisódio; no estágio 2, a sintomatologia está presente entre os episódios;
no estágio 3, o paciente apresenta um padrão clinicamente relevante de
deterioração cognitiva e funcional; e, no estágio 4, o paciente é incapaz de
viver de forma autônoma.
A duração da doença e o número de episódios são dois aspectos
importantes do estadiamento no transtorno do humor recorrente. Postulou-se
que cada episódio afetivo subsequente pode exercer um efeito deletério sobre
o funcionamento do cérebro em termos de alterações neuroanatômicas e
cognitivas. Essa questão foi levantada pela primeira vez há 20 anos
(Altshuler, 1993), e uma análise de correlatos de progressão da doença nos
transtornos afetivos recorrentes foi realizada recentemente por Post e
colaboradores (2012). Magalhães e colaboradores (2012) analisaram 3.345
pacientes bipolares que participaram do Programa de Intensificação
Sistemática de Tratamento do Transtorno Bipolar (STEP-BD, Systematic
Treatment Enhancement Program for Bipolar Disorder) e mostraram que
pacientes com vários episódios anteriores apresentavam resultados
prospectivos e transversais consistentemente mais desfavoráveis: o
funcionamento e a qualidade de vida eram piores, a deficiência era mais
comum e os sintomas eram mais crônicos e graves. Gutierrez-Rojas e
colaboradores (2011) relataram que a quantidade de episódios maníacos
anteriores esteve associada à incapacidade de trabalho e à deficiência
familiar, enquanto a quantidade de episódios depressivos anteriores esteve
associada à deficiência no domínio social. Recentemente, Reinares e
colaboradores (2013), ao identificarem dois subtipos de pacientes bipolares
com resultados “bons” e “desfavoráveis”, mostraram que a densidade do
episódio e o nível de sintomas depressivos residuais surgiram como os
preditores clínicos mais significativos do subtipo determinado.
Visto que aproximadamente 50% dos pacientes bipolares têm seu primeiro
episódio classificado como transtorno depressivo maior (TDM), um caso
especial relacionado ao estadiamento é o fenômeno da conversão de unipolar
para bipolar. A dinâmica dessa conversão atinge cerca de 1,5% dos pacientes
ao ano diagnosticados seja com primeiro episódio de depressão, seja com
depressão recorrente (Angst et al., 2005b). Em um estudo recente realizado
em nosso grupo, o índice de conversão de TDM para TB em 122 pacientes
acompanhados durante 30 anos foi de 1,8% ao ano, e a conversão ocorreu em
um terço dos pacientes hospitalizados pela primeira vez devido a um episódio
depressivo, sendo que o tempo médio até a conversão foi de nove anos
(Dudek et al., 2013). Este último número pode ser semelhante ao período de
atraso no diagnóstico de TB encontrado em alguns estudos epidemiológicos
(Baethge et al., 2003). Episódios depressivos que antecedem o primeiro
episódio (hipo)maníaco durante o curso do TB devem, provavelmente, ser
incluídos no estágio 1.
Outra questão é o efeito de bipolaridade sublimiar que ocorre em pacientes
diagnosticados com TDM, o qual pode ser detectado por novas ferramentas
para hipomania, como o Questionário de Transtorno do Humor (MDQ, Mood
Disorder Questionnaire) (Hirshfeld et al., 2000) e a Lista de Verificação de -
Hipomania-32 (HCL-32, Hypomania Checklist-32) (Angst et al., 2005a). O
estudo polonês TRES-DEP, que incluiu 1.051 indivíduos com TDM,
demonstrou que pacientes com características de bipolaridade (37,5%
segundo a HCL-32 e 20% segundo o MDQ) apresentavam mais história
familiar de depressão, TB, alcoolismo e suicídio, um curso mais grave da
doença (início precoce da doença, mais episódios depressivos, mais
hospitalizações psiquiátricas e mais resistência ao tratamento com
antidepressivos), além de pior funcionamento social (p. ex., frequentemente
uma quantidade menor de casados) (Rybakowski et al., 2012). Portanto, o
curso da doença em pacientes com TDM com bipolaridade sublimiar é
semelhante ao curso da doença em pacientes com TB, o que pode ter
implicações terapêuticas (p. ex., necessidade de uso mais frequente de
estabilizadores do humor).
COMPONENTES NEUROBIOLÓGICOS DE
ESTADIAMENTO: ALOSTASE E RESILIÊNCIA
Elementos neurobiológicos de estadiamento estão intimamente relacionados
ao conceito de “alostase”, usado pela primeira vez por Sterling e Eyer (1988)
e ampliado por McEwen e Stellar (1993), criando uma nova perspectiva para
a pesquisa sobre o estresse e suas consequências. Segundo esse conceito,
sistemas alostáticos (adaptativos) são colocados em ação em resposta a
mudanças ambientais desestabilizadoras e fatores patogênicos. O custo
acumulativo desses processos é denominado “carga alostática” (CA). Como
alostase é o processo usado para alcançar estabilidade ante perturbações
ambientais, resiliência é a capacidade de um organismo de suportar ameaças
à estabilidade no ambiente (Karatoreos e McEwen, 2013).
O conceito de CA pode explicar a vulnerabilidade ao estresse e o prejuízo
cognitivo em pacientes bipolares (Vieta et al., 2013). Mediadores
bioquímicos da CA incluem glucocorticoides, fatores neurotróficos, sistema
imune inflamatório e estresse oxidativo. A CA aumenta progressivamente
conforme episódios de humor ocorrem ao longo do tempo, e seus mediadores
bioquímicos podem se comportar de forma diferente em estágios
subsequentes da doença. Em consequência da CA, podem ocorrer também
alterações anatômicas e funcionais no cérebro, refletidas em estudos com
neuroimagens. Contudo, é possível que alguns fatores conectados à
resiliência possam influenciar esses mediadores bioquímicos e,
consequentemente, exercer um efeito sobre os processos de estadiamento.
Esses fatores podem incluir vulnerabilidade tanto herdada quanto adquirida e
também intervenções terapêuticas, tanto psicológicas quanto farmacológicas.
O eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal (HHS), conectado à resposta
ao estresse e à regulação de glucocorticoides, desempenha um papel
importante nos processos de CA e estadiamento. Revelou-se que um aumento
da resposta de cortisol, a fuga da supressão por dexametasona ou a resposta à
combinação dexametasona/hormônio liberador de corticotrofina (DEX/CRH)
podem ter uma relação com o aumento da quantidade de episódios anteriores
(Rybakowski e Twardowska, 1999; Kunzel et al., 2003; Hennings et al.,
2009).
Kapczinski e colaboradores (2009b) propuseram a noção de que outros
marcadores bioquímicos podem ser relevantes na caracterização de
estadiamento. Eles sugerem que o fator neurotrófico derivado do cérebro
(BDNF), as citocinas e os elementos do sistema antioxidante podem
funcionar como marcadores. No estágio inicial da doença bipolar, observam-
se mudanças dependentes de estado do BDNF (redução durante episódio
agudo, aumento após o tratamento), aumento de citocinas, tais como a
interleucina(IL)-6 e IL-10, e o fator de necrose tumoral alfa (TNF- α), bem
como aumento dos níveis de 3-nitrotirosina. No estágio final, são detectados
redução do BDNF, aumento das citocinas inflamatórias (IL-6 e TNF- α),
aumento de 3-nitrotirosina, além de atividade de glutationa redutase (GR) e
glutationa- S -transferase (GST) (Andreazza et al., 2009; Kauer-Sant’Anna et
al., 2009). Nessa mesma linha, nosso grupo sugeriu que a matriz
metaloproteinase-9 (MMP-9), uma enzima envolvida em uma série de
condições patológicas como a doença cardiovascular, o câncer e transtornos
neuropsiquiátricos, poderia ser um outro marcador em potencial do
estadiamento. Em nosso primeiro estudo de MMP-9 sérica em doenças -
psiquiátricas, descobrimos que pacientes mais jovens com depressão (idade
até 45 anos), tanto durante um episódio agudo quanto em remissão após
depressão, apresentaram níveis significativamente elevados de MMP-9 em
comparação a indivíduos com um episódio agudo e remissão após mania e
sujeitos de controle (Rybakowski et al., 2013a).
Correlatos neuroanatômicos do estadiamento bipolar incluem os índices de
redução no volume de várias estruturas cerebrais, como o córtex pré-frontal,
o cingulado anterior e o hipocampo, com maior quantidade de episódios de
humor e/ou maior duração da doença (Harrison e Eastwood, 2001; Farrow et
al., 2005; Blumberg et al., 2006). Reduções no volume da substância branca
em pacientes bipolares também foram relatadas como uma função da
quantidade de hospitalizações anteriores (Moore et al., 2001). Em contraste
com essas descobertas, uma série de estudos mostrou aumento no volume das
amígdalas em pacientes bipolares, o que foi correlacionado a idade e maior
quantidade de hospitalizações devido à mania (Altshuler et al., 2000; Usher et
al., 2010).
COMPONENTES COGNITIVOS DO
ESTADIAMENTO
Em sua metanálise, Robinson e colaboradores (2006) revelaram que
pacientes bipolares eutímicos apresentam um prejuízo importante nos
aspectos de função executiva e memória verbal. Contudo, não concluíram se
uma maior disfunção cognitiva estava relacionada a maior quantidade de
episódios ou a aumento da duração da doença. Além disso, uma série de
estudos realizados com pacientes bipolares durante o estado eutímico
demonstrou uma correlação entre déficits neuropsicológicos existentes e
maior quantidade de episódios afetivos e curso mais grave da doença. As
primeiras sugestões a esse respeito foram feitas por Altshuler (1993) há 20
anos, ao afirmar que episódios afetivos recorrentes podem causar lesões no
sistema nervoso central, resultando em declínio cognitivo. Vários anos mais
tarde, demonstrou-se que a pontuação no funcionamento executivo de
pacientes bipolares estava negativamente correlacionada com a quantidade de
episódios de mania e depressão (Zubieta et al., 2001). McQueen e
colaboradores (2001) demonstram que um prejuízo no paradigma visual de
mascaramento em pacientes bipolares esteve associado à carga anterior da
doença, em particular à quantidade anterior de episódios de depressão. Em
outro estudo, prejuízos no aprendizado e memória verbais foram
correlacionados à quantidade de episódios maníacos (Cavanagh et al., 2002).
Clark e colaboradores (2002) observaram que um déficit na atenção
sustentada esteve relacionado à progressão da doença bipolar. Martinez-Aran
e colaboradores (2004) também forneceram evidências de prejuízo
neuropsicológico em pacientes bipolares eutímicos no domínio de memória
verbal de disfunções executivas. Prejuízo na memória verbal foi relacionado
a maior duração da doença, a uma quantidade mais elevada de episódios
maníacos e a sintomas psicóticos anteriores. Mais recentemente, foi
demonstrado que a inteligência verbal é o preditor mais significativo do
subtipo de pacientes bipolares que apresentam resultados bons ou
desfavoráveis (Reinares et al., 2013).
Além de causar déficits neuropsicológicos, episódios afetivos recorrentes
na doença bipolar constituem um fator de risco para demência subsequente.
Ao utilizarem o registro de caso dinamarquês, Kessing e Andersen (2004)
descobriram que o índice de demência tendia a aumentar em 6% a cada
episódio que levava à admissão no caso de pacientes com TB. Quando havia
uma história de quatro episódios de depressão anteriores, unipolares ou
bipolares, ao longo da vida, ela foi associada à duplicação do risco de
diagnóstico de demência. Em estudos norte-americanos, incluindo
principalmente pacientes com TDM, revelou-se que mesmo a ocorrência de
apenas dois episódios de depressão anteriores aumentava o risco de demência
(Dotson et al., 2010; Saczynski et al., 2010).
EFEITO DO ESTADIAMENTO SOBRE A
EFICÁCIA DO TRATAMENTO
Uma consequência significativa dos modelos de estadiamento é a
possibilidade de fazer um tratamento específico conforme o estágio da
doença. O modelo de estadiamento destaca a necessidade de intervenção
psicoterapêutica ou farmacológica desde cedo e define o primeiro episódio da
doença como o alvo crítico para intervenção. Esse seria um meio potencial de
prevenção contra as consequências clínicas, neurobiológicas e cognitivas da
doença.
No que se refere a intervenções psicoterapêuticas, Scott e colaboradores
(2006) relataram que pacientes bipolares com menos de 12 episódios
anteriores obtiveram melhor resposta à terapia cognitivo-comportamental em
comparação a pacientes com 12 ou mais episódios. Em uma avaliação recente
de psicoeducação familiar na doença bipolar, Reinares e colaboradores
(2010) demonstraram que pacientes nos primeiros estágios se beneficiam da
psicoeducação do cuidador e alcançam períodos mais extensos até a
recorrência. Ao mesmo tempo, não foram encontrados benefícios
significativos a partir da psicoeducação familiar em pacientes em estágios
avançados.
Em uma análise de estudos com olanzapina, Berk e colaboradores (2011)
mostraram que os índices de resposta para mania foram significativamente
mais elevados em pacientes que tiveram uma quantidade menor de episódios
(52-69% e 10-50%), no caso de 1 a 5 e acima de cinco episódios anteriores,
respectivamente. Nos estudos com depressão, os índices de resposta também
foram mais elevados para o grupo com 1 a 5 episódios. Índices de resposta
em estudos de manutenção foram de 29 a 59% e 11 a 40% no caso de 1 a 5 e
acima de cinco episódios anteriores, respectivamente, e a chance de recaída
para episódios de mania ou depressão foi reduzida em 40 a 60% para aqueles
que sofreram 1 a 5 episódios ou 6 a 10 episódios, em comparação ao grupo
com mais de 10 episódios, respectivamente.
Diversos estudos demonstraram que a eficácia do lítio pode ser conectada
à quantidade de episódios anteriores. Swann e colaboradores (1999)
encontraram um efeito ínfimo do lítio sobre mania aguda em pacientes que
tiveram mais de 10 episódios anteriores. Franchini e colaboradores (1999)
demonstraram que iniciar a terapia com lítio nos primeiros 10 anos da doença
bipolar prevê melhores resultados preventivos do que o início posterior da
profilaxia. Todavia, Ketter e colaboradores (2006) apontaram que pacientes
bipolares em estágio inicial tiveram um índice significativamente mais baixo
de recaída/recorrência de episódios maníacos/mistos com olanzapina em
comparação ao lítio.
Um curso de ciclagem rápida de TB foi considerado o tipo mais grave de
trajetória, e geralmente ocorre nos estágios finais da doença. Vários estudos
indicaram resultados significativamente piores de monoterapia com
estabilizadores do humor, tais como o lítio (Dunner e Fieve, 1974; Abu-Saleh
e Coppen, 1986), a carbamazepina (McKeon et al., 1992) e o valproato
(Calabrese et al., 2005) em pacientes bipolares com ciclagem rápida.
TRATAMENTO COM LÍTIO E EXCELENTES
RESPONDEDORES AO LÍTIO
Em 2013, comemoramos o 50º aniversário da primeira publicação sobre o
efeito profilático do lítio no transtorno afetivo (Hartigan, 1963). De 1970 a
1973, os resultados de oito estudos controlados que pesquisaram a eficácia do
lítio na profilaxia foram publicados. A maioria desses estudos empregou um
método de comparação do curso da doença entre sujeitos nos quais o lítio foi
descontinuado e substituído por placebo e sujeitos que continuaram a receber
lítio (elaboração de descontinuação). As análises mostraram que o percentual
de pacientes nos quais a recorrência de depressão ou mania ocorreu foi
significativamente mais baixo entre os que receberam lítio (em média 30%)
do que entre os que receberam placebo (em média 70%) (Schou e Thompsen,
1976). Contudo, no final dos anos de 1990, os resultados desses estudos
foram criticados por sua metodologia (Moncrieff, 1997).
A eficácia profilática do lítio foi confirmada em duas metanálises
realizadas na primeira década do século XXI. Geddes e colaboradores (2004)
estudaram cinco experimentos randomizados envolvendo 770 pacientes e
mostraram que o lítio foi mais eficaz que o placebo na prevenção de todas as
recaídas, com um risco relativo (RR) de 0,65, ligeiramente melhor contra
recorrências maníacas (RR=0,62) do que contra recorrências depressivas
(RR=0,72). Nivoli e colaboradores (2010) realizaram uma pesquisa
sistemática de longo prazo com a participação de 1.561 pacientes bipolares
com pelo menos seis meses de acompanhamento, dos quais 534 foram
randomizados para lítio. Eles concluíram que, embora estudos anteriores
tivessem sugerido eficácia do lítio tanto contra mania quanto contra
depressão, os estudos mais recentes mostram maior evidência da eficácia da
profilaxia de lítio contra recaídas maníacas. Atualmente, o lítio ainda é visto
como a base fundamental da terapia em longo prazo do TB (Rybakowski,
2011).
Em 1999, o psiquiatra canadense Paul Grof (1999) introduziu a expressão
“excelentes respondedores ao lítio” para designar pacientes que podem ter
suas vidas drasticamente modificadas por meio da monoterapia com lítio, que
preveniria por completo a ocorrência de novos episódios. Tentamos, dois
anos mais tarde, comparar pacientes bipolares que começaram a profilaxia
com lítio nas duas décadas subsequentes (os anos de 1970 e 1980). Nos anos
de 1970, 60 pacientes bipolares começaram a profilaxia com lítio e, nos anos
de 1980, 49 pacientes. Todos eles receberam o fármaco ao longo de um
período de 10 anos. Os pacientes que não experimentaram episódios afetivos
durante 10 anos ou mais (excelentes respondedores ao lítio) constituíram
35% do grupo de pacientes dos anos de 1970 e 27% do grupo dos anos de
1980. De modo geral, esses números representam aproximadamente um terço
dos pacientes bipolares tratados com lítio (Rybakowski et al., 2001). Em uma
publicação recente, Grof (2010) concluiu que a melhor resposta ao lítio está
associada a um perfil clínico de curso episódico, remissão total, história
familiar de bipolaridade e baixa comorbidade psiquiátrica. Isso poderia ser
entendido como a forma “clássica” dos TBs, cujas características são
semelhantes às descritas por Emil Kraepelin (1899) como manisch-
depressives Irresein. Essas características também são compatíveis com a
descrição de pacientes em estágio I segundo Kapczinski e colaboradores
(2009a).
Uma metanálise dos fatores clínicos associados à eficácia do lítio foi
realizada por Kleindienst e colaboradores (2005). Eles investigaram 42
preditores clínicos potenciais de eficácia profilática do lítio com base nos
resultados de 43 estudos. Foram encontrados dois fatores conectados com o
melhor efeito do lítio, a saber: início tardio da doença e padrão episódico de
sequências de mania-depressão. Em contrapartida, três fatores que podem
enfraquecer o efeito profilático do lítio também foram identificados:
quantidade elevada de hospitalizações anteriores, ciclagem contínua e padrão
episódico de sequência depressão-mania. Isso pode corresponder a outros
estudos que mostram que o lítio é mais eficaz nos primeiros estágios da
doença e em casos de menor gravidade do transtorno. Assim, pacientes nos
primeiros estágios da doença teriam uma probabilidade mais elevada de
serem excelentes respondedores ao lítio.
Recentemente, realizamos um estudo experimental para esboçar um perfil
específico de personalidade para a melhor resposta ao lítio. Em 71 pacientes
tratados com carbonato de lítio durante 5 a 37 anos (média de 18 anos), uma
avaliação dos perfis afetivos temperamentais foi realizada utilizando-se o
Autoquestionário da Escala de Temperamento de Mênfis, Pisa, Paris e San
Diego (TEMPS-A, Temperament Scale of the Memphis, Pisa, Paris, and San
Diego-Autoquestionnaire) (Akiskal et al., 2005), enquanto traços
esquizotípicos foram avaliados por meio do Inventário de Sentimentos e
Experiências de Oxford-Liverpool (O-LIFE, Oxford-Liverpool Inventory of
Feelings and Experiences) (Mason e Claridge, 2006). A pontuação obtida
nessas escalas foi correlacionada com a avaliação da eficácia profilática do
lítio utilizando a escala Alda (Grof et al., 2002). A resposta ao lítio
correlacionou-se de forma positiva com a pontuação do temperamento
hipertímico e de forma negativa com as pontuações dos temperamentos
ansioso, ciclotímico e depressivo (Rybakowski et al., 2013b). Uma correlação
negativa considerável da eficácia do lítio com uma desorganização cognitiva
também foi demonstrada (Dembinska-Krajewska et al., 2012). Uma
dimensão de desorganização cognitiva está altamente associada a
psicoticismo, aumentando o risco de esquizofrenia e de TB com sintomas
psicóticos (Schurhoff et al., 2005).
EFEITO DO TRATAMENTO BEM-SUCEDIDO
COM LÍTIO SOBRE O PROCESSO DE
ESTADIAMENTO
A terapia bem-sucedida com lítio pode influenciar de modo favorável os
componentes clínicos, neurobiológicos e neurocognitivos do estadiamento.
Esse efeito é particularmente evidente no grupo de excelentes respondedores
ao lítio. Devido a uma prevenção completa de recorrências afetivas em
excelentes respondedores ao lítio, o progresso da doença é impedido. Uma
redução significativa nas recorrências em respondedores parciais ao lítio
também pode resultar na desaceleração do processo de estadiamento.
Contudo, também é possível que os excelentes respondedores ao lítio, mesmo
antes do tratamento, constituam um subgrupo de TB com curso clínico e
resultados mais favoráveis. De qualquer forma, as características clínicas dos
excelentes respondedores ao lítio, incluindo menos comorbidade e período
interepisódio livre de sintomas, colocariam esses indivíduos como pacientes
em estágio inicial.
O efeito do lítio sobre os componentes neurobiológicos do estadiamento
pode ocorrer principalmente devido a sua ação neurotrófica e neuroprotetora,
bem como à promoção de resiliência. Recentemente, Gray e McEwen (2013)
sugeriram que o lítio melhora os sintomas clínicos ao bloquear as alterações
induzidas por estresse e ao facilitar a plasticidade neural. Os processos
neurobiológicos mais importantes nesse caso são a estimulação do BDNF e a
inibição de glicogênio sintase quinase-3 β (GSK-3 β) (Quiroz et al., 2010).
Em estudos genéticos moleculares, uma associação entre a eficácia do lítio e
o polimorfismo de genes BDNF e GSK-3 β foi encontrada (Benedetti et al.,
2005; Rybakowski et al., 2005). Em nosso próprio estudo, também
observamos uma associação entre a eficácia do lítio e o polimorfismo do
gene do receptor de glucocorticoides (NR3C1) envolvido na regulação do
estresse (Szczepankiewicz et al., 2011).
Em uma proposta de marcadores bioquímicos de estadiamento, uma
redução no BDNF sérico foi postulada como marcador de estágio final de TB
(Kauer-Sant’Anna et al., 2009). Em nosso estudo, descobrimos que
excelentes respondedores ao lítio com TB de longo prazo, com uma média de
21 anos de tratamento com lítio, apresentam níveis séricos normais de BDNF
(Rybakowski e Suwalska, 2010). Demonstramos também que a remissão
sustentada em pacientes bipolares, alcançada, em sua maior parte, por uma
manutenção com o uso de lítio, leva o estado inflamatório de citocinas a um
nível semelhante ao de sujeitos de controle saudáveis (Remlinger-Molenda et
al., 2012). Um estudo recente mostrou que o lítio pode exercer um efeito
favorável sobre os parâmetros de estresse oxidativo (Khairova et al., 2012).
Um efeito neuroprotetor do lítio também foi demonstrado por estudos com
neuroimagem por meio de um aumento no volume da substância cinzenta
cerebral nos pacientes bipolares tratados com lítio. Esse efeito não foi
demonstrado com outro fármaco estabilizador do humor. Observou-se maior
densidade da substância cinzenta cortical nos pacientes com TB tratados com
lítio, especialmente no córtex pré-frontal dorsolateral e na região do
cingulado anterior (Monkul et al., 2007). Além disso, um estudo recente
(Moore et al., 2009) demonstrou aumento no volume total da substância
cinzenta no córtex pré-frontal após quatro semanas de tratamento entre
respondedores ao lítio. Demonstrou-se também um aumento bilateral no
volume hipocampal após a administração de lítio tanto breve (até oito
semanas) quanto prolongada (2-4 anos) em pacientes com TB (Yucel et al.,
2007, 2008). Nessa mesma linha, o volume hipocampal total nos pacientes
bipolares tratados com lítio foi significativamente maior em comparação com
o volume da mesma região tanto em pacientes bipolares não medicados
quanto em sujeitos de controle saudáveis (Bearden et al., 2008). Contudo,
ainda há controvérsia a respeito desse tópico, visto que um estudo recente de
Hajek e colaboradores (2013) mostrou que o aumento do volume hipocampal
em pacientes bipolares foi independente da resposta ao lítio em longo prazo.
Uma comparação entre o efeito do lítio e do valproato em 22 pacientes
bipolares mostrou que o lítio causou um aumento no volume da substância
cinzenta associado a uma resposta clínica positiva, enquanto pacientes
tratados com valproato não apresentaram esse efeito (Lyoo et al., 2010). Um
estudo com imagens de ressonância magnética transversal da estrutura do
cérebro de 74 pacientes bipolares em remissão que receberam tratamento
profilático de longa duração com lítio, valproato, carbamazepina ou
antipsicóticos mostrou que o volume da substância cinzenta no giro
cingulado anterior subgenual, no giro direito e pós-central, no complexo
hipocampo/amígdala e na ínsula esquerda era maior em pacientes em
tratamento com lítio em comparação a todos os outros tratamentos (Germana
et al., 2010).
A intensificação do aprendizado e da memória decorrente do uso de lítio-
em experimentos com animais foi comprovada em diversos estudos
(Yazlowitskaya et al., 2006; Nocjar et al., 2007; Zhang et al., 2012).
Contudo, um grau de prejuízo cognitivo em pacientes tratados com lítio foi
demonstrado (Senturk et al., 2007; Mora et al., 2013). Os estudos realizados
por nosso grupo de pesquisa mostraram que a preservação, ou até mesmo a
melhora, das funções cognitivas pode estar associada à qualidade da
profilaxia com lítio. Isso é observado, em grande medida, em excelentes
respondedores ao lítio, os quais, mesmo após um tratamento prolongado com
lítio, apresentam funções cognitivas normais quando comparados a controle
saudáveis equivalentes (Rybakowski et al., Rybakowski e Suwalska, 2010).
Vários mecanismos podem ser responsáveis por um efeito favorável do
lítio sobre as funções cognitivas em excelentes respondedores ao lítio. Um
possível mecanismo pode estar conectado a algumas propriedades antivirais
do lítio. Dickerson e colaboradores (2004) demonstraram que a infecção pelo
vírus herpes simples pode estar associada a déficits cognitivos no TB,
enquanto, em nosso estudo, a administração prolongada de lítio foi associada
à atenuação, ou remissão, da infecção por herpes (Rybakowski e Amsterdam,
1991).
Em relação ao efeito do lítio sobre as funções cognitivas, há a
possibilidade de que ele possa apresentar um efeito preventivo contra
demência em pacientes com TB. Nunes e colaboradores (2007) descobriram
em seu grupo de 114 pacientes bipolares que aqueles que recebiam terapia
prolongada de lítio apresentavam uma redução na prevalência de doença de
Alzheimer em comparação a pacientes que não haviam recebido lítio
recentemente. No estudo epidemiológico dinamarquês de Kessing e
colaboradores (2010), um total de 4.856 pacientes com diagnóstico de
episódio maníaco ou misto ou de TB em seu primeiro contato psiquiátrico foi
examinado no decorrer do período do estudo (1995-2005). Entre esses
pacientes, 50,4% foram expostos ao lítio, 36,7% a anticonvulsivantes, 88,1%
a antidepressivos e 80,3% a antipsicóticos. Um total de 216 pacientes recebeu
diagnóstico de demência durante o acompanhamento (103,6/10 mil
pessoas/ano). A análise revelou que o tratamento continuado com lítio foi
associado a um índice reduzido de demência em pacientes com TB, em
oposição ao tratamento continuado com anticonvulsivantes, antidepressivos
ou antipsicóticos.
Em resumo, uma grande quantidade de dados obtidos a partir de estudos
clínicos e neurobiológicos e, especialmente, a partir da experiência com os
denominados respondedores excelentes de lítio sugere que o tratamento e a
profilaxia bem-sucedidos com lítio podem influenciar favoravelmente o
processo de estadiamento do TB, dificultando o avanço da doença, o que
pode refletir nos domínios de condição clínica, nos marcadores
neurobiológicos e no funcionamento cognitivo.
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ESTADIAMENTO E
INTERVENÇÃO PRECOCE NO
TRANSTORNO BIPOLAR
Vicent Balanzá-Martínez
María Lacruz
Rafael Tabarés-Seisdedos
INTRODUÇÃO
Em psiquiatria, o principal foco da intervenção precoce encontra-se voltado
para a esquizofrenia, sendo que esse tipo de abordagem para o transtorno
bipolar (TB) ainda não recebeu atenção comparável (Berk et al., 2014). Na
virada do milênio, o primeiro episódio de mania era visto como “uma
prioridade negligenciada para intervenção precoce” (Conus e McGorry,
2002). Contudo, o TB está associado a um agravamento progressivo no
decorrer do tempo, bem como a índices elevados de morbidade e
mortalidade, o que evidentemente representa uma lógica persuasiva para se
investir em detecção e desenvolvimento de estratégias de intervenção (Berk
et al., 2009).
De modo a atingir esse objetivo, a primeira medida fundamental a ser
tomada é o diagnóstico precoce e preciso de TB. Essa tarefa provou ser
particularmente complexa na prática clínica devido à baixa especificidade das
características prodrômicas. Além disso, pacientes com TB são, com
frequência, erroneamente diagnosticados com esquizofrenia, transtornos da
personalidade ou transtorno depressivo maior (TDM). Motivos para o
diagnóstico equivocado incluem o fato de que o episódio índice geralmente
ser depressivo e as comorbidades, frequentes. Além disso, episódios
maníacos frequentemente são atípicos durante a adolescência e início da
idade adulta, com índices elevados de episódios mistos e sintomas psicóticos.
Em consequência, a duração média da lacuna entre o início dos sintomas e o
começo do tratamento adequado pode chegar a uma década (Post et al.,
2003). Tanto o atraso no diagnóstico quanto a introdução de estabilizadores
do humor apresentam uma ampla gama de consequências negativas,
incluindo aumento nos índices de suicídio, comorbidades e hospitalizações,
além de pior funcionamento psicossocial e resposta terapêutica. Ademais, o
uso de medicamentos não eficazes, especificamente monoterapia
antidepressiva, pode estar associado à ciclagem rápida e à alternância para
mania (Berk et al., 2007).
A CAMINHO DE UM DIAGNÓSTICO PRECOCE
DO TRANSTORNO BIPOLAR
A identificação dos pródromos bipolares e dos sujeitos que correm alto risco
de desenvolver TB pode claramente deslocar o enfoque para a prevenção
nesse transtorno. A descrição das características prodrômicas clínicas e
neurocognitivas constitui uma área de pesquisa ativa nos estudos do TB. O
pródromo é um período de perturbação que representa um desvio do
comportamento anterior de uma pessoa prévio ao desenvolvimento de
manifestações floridas de um transtorno (Conus et al., 2006). Há cada vez
mais evidências de que os sintomas podem anteceder o início do TB em
meses ou até mesmo anos. O pródromo bipolar consiste em: (i) formas
sublimiares ou atenuadas de mania e sintomas de depressão totalmente
manifestos; (ii) traços de personalidade, como ciclotimia; e (iii) uma ampla
gama de sintomas comuns a vários transtornos mentais, como perturbações
do sono, ansiedade, irritabilidade ou hiperatividade (Skjelstad et al., 2010;
Howes et al., 2011). O pródromo inicial do TB se caracteriza pela
desregulação do humor e da energia, enquanto sintomas de mania e depressão
parecem aumentar quando o início total do TB se aproxima (Skjelstad et al.,
2010). Obviamente, a especificidade desses sintomas prodrômicos é baixa e,
em comparação à esquizofrenia, o pródromo no TB é mais pleomorfo e não
específico. Dados recentes sugerem que déficits neurocognitivos também
podem anteceder o primeiro episódio de mania (Ratheesh et al., 2013).
Sujeitos em alto risco de TB podem apresentar deficiências disseminadas nos
amplos domínios de memória verbal e função executiva, embora em menor
grau do que os pacientes (Balanzá-Martínez et al., 2008; Olvet et al., 2013).
Além disso, o desenvolvimento de critérios “em risco” de primeiro
episódio de mania/TB atraiu interesse semelhante de pesquisa. O grupo
Melbourne propôs recentemente um conjunto de critérios “em risco de
bipolaridade” (BAR, bipolar at-risk), incluindo faixa etária de pico para o
primeiro episódio de TB (15-25 anos de idade), risco genético (ter um parente
de primeiro grau com TB tipo I [TBI]), bem como apresentar mania
sublimiar, características ciclotímicas ou sintomas depressivos (Bechdolf et
al., 2012). De modo semelhante, agrupamentos de fatores de risco foram
sugeridos por outros grupos (Leopold et al., 2012). Estudos prospectivos em
larga escala se justificam para estabelecer a validade, especificidade e
sensibilidade desses critérios. Embora constitua um desafio, o aprimoramento
dos pródromos clínicos e neurocognitivos/condição de risco elevado de TB
pode orientar o desenvolvimento de estratégias de intervenção precoce.
ESTRATÉGIAS ESPECÍFICAS DE
INTERVENÇÃO PRECOCE NO TRANSTORNO
BIPOLAR
A intervenção precoce pode propiciar uma “janela de oportunidade” para a
elaboração de intervenções farmacológicas e psicossociais desde cedo que
possam impedir ou, pelo menos, reduzir parte da morbidade associada a
episódios repetidos e cronicidade (Macneil et al., 2012). Um dos objetivos
dos modelos de estadiamento é contribuir para a seleção de tratamento e para
a assistência individualizada. Tratamentos específicos devem ser aplicados na
medida adequada para as necessidades clínicas e terapêuticas dos sujeitos em
cada estágio do transtorno. Os primeiros estágios tendem a apresentar um
prognóstico mais bem-sucedido e a exigir tratamentos mais simples.
Ademais, a resposta ao tratamento costuma ser melhor no início do curso da
doença. Portanto, monoterapia com estabilizadores do humor pode ser a
primeira opção no início do curso, enquanto uma combinação de estratégias
pode ser necessária mais tarde, especialmente em casos mais refratários (Berk
et al., 2014).
Nas seções a seguir, as estratégias específicas de intervenção precoce são
apresentadas conforme (i) sua natureza farmacológica ou psicossocial e (ii)
sua aplicação em sujeitos sob alto risco ou no estágio inicial/primeiro
episódio de TB.
María Reinares
Francesc Colom
INTRODUÇÃO
Ao contrário da noção original de que pacientes bipolares alcançam
recuperação total entre episódios, atualmente é evidente que sintomatologia
sublimiar e clínica persistente (Judd et al., 2002, 2003), déficits cognitivos
(Martinez-Aran et al., 2004) e prejuízo funcional (Rosa et al., 2010) são
características comuns ao curso da doença, presentes em um grande
percentual dos pacientes, mesmo quando eles recebem tratamento adequado.
Está claro, com base nos anos perdidos devido à mortalidade prematura e nos
anos vividos com a deficiência, que o transtorno bipolar (TB) é uma das
condições que causam carga global mais elevada (Murray et al., 2012).
Embora seja evidente que o tratamento farmacológico de longo prazo é
fundamental para o manejo da doença e que intervenções psicossociais
adjuntas também cumprem um papel positivo, conforme destacado por
estudos baseados em evidências (para uma análise, ver Geddes e Miklowitz,
2013), muitos pacientes não recebem um diagnóstico precoce e/ou tratamento
adequado. Contudo, mesmo entre aqueles que recebem diagnóstico e
tratamento a tempo, a adesão costuma ser uma questão importante a ser
tratada no TB (Berk et al., 2010). Como consequência do atraso no início do
tratamento, pode haver um risco maior de adaptação social mais pobre,
hospitalizações, suicídio, comorbidades, complicações legais, além de
prejuízo global da capacidade de encarar tarefas de desenvolvimento em
pacientes bipolares (Conus et al., 2006).
Embora o curso do transtorno não seja uniforme e haja uma grande
heterogeneidade entre pacientes, dados sugerem que o TB tem o potencial de
ser uma doença progressivamente deteriorante caso não seja tratada
adequadamente. Essa visão se baseia nos achados decorrentes de processos
de sensibilização induzidos por estresse, por estimulantes e por episódios;
disfunção cognitiva, resposta fraca a medicamentos, comorbidades médicas e
correlatos neurológicos referentes à quantidade de episódios ou à duração da
doença (Post et al., 2012). O risco de recorrência parece aumentar a cada
novo episódio afetivo (Kessing et al., 2004). Além disso, estudos recentes
mostram que, quanto maior a quantidade de recaídas, especialmente
episódios maníacos, maiores são os déficits na cognição (López-Jaramillo et
al., 2010; Elshahawi et al., 2011). Embora estudos longitudinais tenham
mostrado uma progressão estável ou um ligeiro agravamento do prejuízo
cognitivo no decorrer do tempo (Mora et al., 2012; Torrent et al., 2012), o
fato de que os déficits cognitivos são mais elevados no TB parece
inquestionável e tem valor prognóstico significativo sobre resultados
funcionais (Depp et al., 2012). A prevenção de episódios de humor
interromperia – ou pelo menos desaceleraria – o ciclo de carga alostática e
neuroprogressão, o qual complica o curso da doença ao contribuir para
prejuízo cognitivo e patologias comórbidas (Vieta et al., 2012). Conforme
sugeriram McGorry e colaboradores (2007), um transtorno que é
potencialmente grave e que pode progredir caso permaneça sem tratamento é
provavelmente mais adequado para modelos de estadiamento. O tratamento
precoce deveria aumentar a chance de cura ou pelo menos reduzir a
mortalidade e a deficiência. Portanto, o diagnóstico e o tratamento precoces
são vitais para limitar esses processos e melhorar o prognóstico da doença.
A introdução do tratamento farmacológico adequado – considerando o uso
de medicamentos com menos efeitos colaterais neurocognitivos e atentando
às possíveis propriedades neuroprotetoras de agentes existentes (Dias et al.,
2012) – e de intervenções psicológicas adjuntas é crucial para reduzir o risco
de recorrências. As vantagens das abordagens psicossociais adjuntas
consistem em sua contribuição para aspectos não alcançados por
medicamentos e que são igualmente fundamentais para a prevenção de
recaídas, como detectar os primeiros sinais de recaída, evitar o uso de
substâncias, intensificar a adesão à medicação, promover um estilo de vida
saudável (incluindo hábitos e regularidade), melhorar a cognição e as
habilidades sociais, trabalhar as atitudes e a comunicação em família e
melhorar o manejo de estresse. Essas abordagens também podem contribuir
para a redução do prejuízo funcional, o qual tende a persistir mesmo após a
recuperação sindrômica (Tohen et al., 2000; Rosa et al., 2011). Contudo, a
resposta a qualquer tratamento pode ser mais ou menos bem-sucedida
dependendo do estágio da doença.
MODELOS DE ESTADIAMENTO NO
TRANSTORNO BIPOLAR
O modelo de estadiamento no TB sugere uma progressão a partir de um
pródromo até apresentações mais graves e refratárias (Kapczinski et al.,
2009a). Modelos de estadiamento podem ajudar a esclarecer os mecanismos
por trás da progressão do transtorno, além de auxiliar no planejamento do
tratamento e em seu prognóstico. O estadiamento difere da prática
diagnóstica convencional no sentido de que não apenas define a extensão da
progressão de um transtorno em determinado momento, mas também a fase
em que o indivíduo se situa no continuum do curso da doença (Cosci e Fava,
2013). A disponibilização de tratamento adequado ao estágio modificaria o
risco de progressão da doença. Há, no entanto, uma necessidade de deixar
claro o momento ideal para o início de cada tipo de tratamento, bem como o
uso de intervenções específicas para cada estágio, em comparação a
tratamentos específicos para cada transtorno (Scott et al., 2013). O momento
das alterações neurobiológicas sugere que o período ideal para intervenções
neuroprotetoras ocorre durante a fase prodrômica, ou nos primeiros estágios
da doença (Salvadore et al., 2008). Nos estágios finais, a ênfase seria em
tratamentos de reabilitação.
O conhecimento dos determinantes do resultado e prognóstico é essencial
para a classificação em estágios e para a otimização do tratamento
individualizado. Na tentativa de identificar grupos empíricos de pacientes
bipolares com resultados funcionais em comum, Reinares e colaboradores
(2013) utilizaram uma análise de classe latente. Duas classes foram
identificadas para representar o resultado funcional “bom” e o resultado
funcional “pobre”. A vantagem dessa classificação é que as classes foram
derivadas diretamente a partir de dados, em vez de serem definidas a priori,
com base em pressupostos teóricos, além de levarem em consideração as
diversas dimensões da doença. Compatível com a bibliografia anterior,
diversas variáveis clínicas e cognitivas foram relacionadas individualmente
ao resultado funcional. Contudo, apenas a densidade de episódios (quantidade
de episódios dividida pelos anos de duração da doença), o nível de sintomas
depressivos residuais, a inteligência verbal estimada e o controle inibitório
apresentaram distinção significativa entre as classes prognósticas. Os
resultados sugerem que a variabilidade no resultado funcional é derivada da
verdadeira heterogeneidade dentro da população de pacientes, a qual pode ser
capturada pelo menos por duas dimensões que representam gravidade clínica
e disfunção cognitiva. Em um estudo de acompanhamento com duração de
um ano, pacientes com vários episódios apresentaram pior funcionamento
psicossocial do que pacientes em seu primeiro episódio; sintomas depressivos
subsindrômicos nos parâmetros iniciais também foram associados à fraca
recuperação funcional (Rosa et al., 2012).
Propostas teóricas de modelos de estadiamento, incluindo diferentes
dimensões da doença, como correlatos biológicos, foram sugeridas (Fries et
al., 2012), incorporando uma avaliação longitudinal de cognição,
funcionamento psicossocial e variáveis clínicas, em conjunto com
biomarcadores e dados de neuroimagens, para orientar tanto prognóstico
quanto estratégias terapêuticas eficazes (Berk et al., 2007; Kapczinski et al.,
2009a). Berk e colaboradores (2007) sugeriram que o transtorno inicia com
um período de risco, assintomático, em que uma gama de fatores de risco
pode estar em operação (estágio 0). O indivíduo começa a exibir sintomas
leves ou não específicos de transtorno do humor (estágio 1a), podendo
progredir para a manifestação da gama de padrões prodrômicos (estágio 1b).
Esses padrões podem culminar em um primeiro episódio limiar da doença
(estágio 2), o qual pode ser proveniente de qualquer uma das duas
polaridades, mas costuma ser depressivo. Esse episódio pode ser seguido por
uma primeira recaída, seja ela sublimiar (estágio 3a) ou limiar (estágio 3b),
seguida por um padrão subsequente de remissão e recorrências (estágio 3c).
Enquanto alguns indivíduos podem apresentar recuperação sindrômica ou
sintomática, outros podem apresentar um curso sem remissões ou refratário
ao tratamento (estágio 4). Tratamentos farmacológicos e psicoterapêuticos
relevantes a cada estágio da doença diferem consideravelmente. Ao contrário
das primeiras fases, nas quais o enfoque seria intervenção precoce e
estratégias neuroprotetoras, nos estágios finais a ênfase seria maior em
tratamentos reabilitadores, os quais lidam com as deficiências associadas à
doença. O modelo proposto por Kapczinski e colaboradores (2009a) sugere
uma progressão de um período em risco até apresentações mais graves e
refratárias produzidas pela exposição cumulativa a episódios agudos, abuso
de substâncias, estresse de vida e vulnerabilidade herdada. O modelo inclui
uma fase latente seguida de quatro estágios: sintomas de humor e ansiedade e
aumento do risco de desenvolvimento de TB limiar (fase latente), períodos
bem-estabelecidos de eutimia e ausência de morbidade psiquiátrica manifesta
entre episódios, sem prejuízo cognitivo (estágio I); pacientes com ciclagem
rápida ou comorbidades atuais do eixo I ou II, prejuízo transitório (estágio
II); pacientes com um padrão clinicamente relevante de deterioração
cognitiva e do funcionamento (estágio III); e pacientes com prejuízo
cognitivo e funcional, incapazes de viver de modo autônomo (estágio IV).
Algumas fases estão relacionadas a imagens cerebrais, que evidenciam
alterações, e a biomarcadores específicos. Os autores também fizeram
sugestões terapêuticas e prognósticas associadas ao estágio da doença.
Enquanto, nos primeiros estágios, a monoterapia com estabilizador do humor
ou um tratamento combinado podem ser suficientes, regimes completos ou
medidas paliativas seriam necessários em estágios avançados. A Tabela 17.1
mostra as possíveis intervenções sugeridas para cada estágio por Berk e
colaboradores (2007) e por Kapczinski e colaboradores (2009a). Esses
modelos identificam o primeiro episódio da doença como um alvo crítico
para intervenção precoce, criando a oportunidade de prevenir algumas de
suas consequências neuroanatômicas, neuropsicológicas, clínicas e funcionais
(Kapczinski et al., 2009b). Essas propostas representam uma contribuição
importante no contexto de uma abordagem individualizada baseada em
necessidades, embora precisem ser mais bem operacionalizadas e validadas
por pesquisa empírica (Vieta et al., 2010).
TABELA 17.1
Possíveis intervenções baseadas nos modelos clínicos de estadiamento
Berk e colaboradores (2007)
Possível intervenção
Estágio
clínico
Psicoeducação familiar
Terapia cognitivo-comportamental
Flávio Kapczinski
Eduard Vieta
Pedro V. S. Magalhães
Michael Berk
ESTADIAMENTO NA PSIQUIATRIA E NO
TRANSTORNO BIPOLAR
A iniciativa de Albert Broders de classificar tumores numericamente com o
objetivo de indicar o prognóstico deles foi um passo fundamental em direção
à ampla adoção de estadiamento na medicina desde os anos de 1920
(Wright, 2012). A grande quantidade de sistemas disponíveis em áreas tão
diversas como oncologia e reumatologia, neurologia e nefrologia, confirma a
utilidade do princípio. Um sistema de estadiamento é uma ferramenta
heurística que visa acrescentar importância prognóstica aos diagnósticos
clínicos. Ao fazê-lo, o clínico se vale de informações capazes de ajudar na
seleção de estratégias específicas para cada estágio para o tratamento.
Podemos recordar as descrições iniciais de Kraepelin em relação à
progressão da doença no transtorno bipolar (TB). Ele percebeu que os
episódios tendiam a recorrer em intervalos menores conforme os pacientes
eram acompanhados a longo prazo. Ao fazê-lo, é possível que Kraepelin
tenha sido influenciado pelos autores alemães que o antecederam. Em 1861,
Griesinger afirmou que “geralmente ocorre, que com pacientes sobre os quais
a insanidade recai, [...] os ataques, no transcorrer do tempo, tornam-se mais
prolongados e mais graves [...] os intervalos de lucidez mais breves e, a cada
novo ataque, o prognóstico se torna mais desfavorável”. Neumann (1859)
chegou a usar a expressão estadiamento (Stadien) para descrever a
hiperestesia psíquica como um estágio prodrômico (Vorlauferstadium) de
uma doença mental grave. Kahlbaum também usou a expressão “estágio” ao
mencionar que não existe uma forma da doença, mas sim estágios (Stadien)
de um único e mesmo processo de doença.
Contudo, o estadiamento prognóstico tem ganho terreno na psiquiatria nos
últimos 10 anos, especialmente a sua potencial utilidade (McGorry et al.,
2006). Depois das propostas originais de estadiamento para transtornos
psicóticos elaboradas por Fava e Kellner (1993), o estadiamento foi adaptado
e refinado por McGorry e colaboradores. Poucos sistemas foram sugeridos
especificamente para pessoas com outros transtornos, como o TB.
Atualmente, há evidências consistentes de que, pelo menos para uma parcela
significativa das pessoas com essa doença, o curso clínico e o resultado não
são tão benignos como descritos inicialmente (Goodwin e Jamison, 2007). As
evidências até o momento indicam diferenças relevantes entre estágios
iniciais e finais de TBs quanto a curso clínico da doença, neurobiologia,
patologia sistêmica e resposta ao tratamento. Todos esses fatores sugerem
que estadiamento é uma adição viável à assistência clínica no TB.
McGorry e colaboradores foram os primeiros a discutir de forma
abrangente as implicações e os benefícios do estadiamento (McGorry et al.,
2006; McGorry, 2007). Em uma série de artigos, eles argumentam que o
estadiamento oferece o potencial de melhorar a prática diagnóstica ao
fortalecer a capacidade do clínico de selecionar tratamentos adequados ao
estágio da doença do paciente. O estadiamento clínico, conforme eles
abordam em sua formulação inicial, é útil em qualquer doença com tendência
à progressão ou que pode progredir, o que confere a esse aspecto um valor
potencial para diversos transtornos psiquiátricos. Os autores sugerem duas
premissas fundamentais para o estadiamento clínico. A primeira afirma que
os estágios iniciais têm resposta ao tratamento e prognóstico melhores do que
os estágios finais. A segunda defende que o tratamento precoce é mais eficaz,
e que tratamentos mais simples e menos tóxicos podem bastar no início,
enquanto tratamentos que oferecem maior risco costumam ser necessários
mais tarde, como o emprego da clozapina, por exemplo. Portanto, o principal
argumento em defesa do estadiamento é seu potencial de unir pesquisa e
prática clínica e permitir melhores modelos de doença com capacidade de
intervenção desde cedo, visando reduzir o risco de progressão da doença.
Na estrutura sugerida por McGorry, o TB apresenta tendência à
progressão, ou, ao menos, alguns pacientes devem progredir para um estado
receptivo ao estadiamento. Há um debate já antigo que questiona se o TB é
uma doença progressiva de modo geral (Goodwin e Jamison, 2007). Mesmo
que as evidências sobre a duração do ciclo não sejam conclusivas no
momento (Baldessarini et al., 2012), a possibilidade de que uma proporção
substancial de pacientes apresente um curso progressivo torna o estadiamento
relevante. Além disso, a duração de ciclo é apenas um aspecto da progressão,
e não necessariamente pertinente à seleção de tratamento. A resposta ao
tratamento pode ser diferente de um estágio para outro, e a fenomenologia
pode apresentar uma evolução sutil. Diferenças na biologia da doença e
consequente resistência ao tratamento, por exemplo, podem sugerir
estratégias diferentes específicas de cada estágio. Um exemplo que ganha
destaque especial é a farmacoterapia de pacientes ambulatoriais com TBs,
que tende a ser complexa, enquanto não respondedores são propensos a
serem expostos a uma quantidade maior de medicamentos (Post et al., 2010).
Deve-se explicitar também que o objetivo maior do estadiamento é
intensificar a utilidade clínica das intervenções, e não descrever a história
natural da doença. Portanto, o fato de que nem todos os pacientes apresentam
uma progressão bem-definida de um estágio para outro não deve constituir
uma dificuldade intransponível para um modelo específico.
No TB, os dois sistemas de estadiamento mais relevantes foram propostos
por Berk (Berk et al., 2007a, b) e por Kapczinski (Kapczinski et al., 2009). O
sistema de Berk é derivado diretamente da formulação de McGorry para
psicose (McGorry et al., 2006). Ele propõe um modelo que se inicia com
estados de risco e avança para sublimiar, limiar, recaídas múltiplas até doença
persistente e sem remissão. Ele é construído, fundamentalmente, a partir da
recorrência de episódios. No modelo de Kapczinski, o ponto de partida
também é um estado de risco, mas avança para ausência de prejuízo durante a
eutimia, passa por prejuízo acentuado, até chegar à incapacidade de viver de
forma autônoma. Portanto, trata-se de um modelo fundamentado no
funcionamento durante a eutimia (Tab. 18.1). Os modelos convergem para a
relevância de apresentar um estágio “em risco”, e deve haver uma
sobreposição substancial entre os dois sistemas. Algumas de suas premissas,
no entanto, diferem entre si e, pelo o que se sabe, seus méritos relativos em
termos de utilidade e validade ainda não foram formalmente testados. Os
dados disponíveis, conforme abordagem a seguir, baseiam-se em um dos dois
sistemas.
TABELA 18.1
Estágios da doença segundo os modelos de Berk e de Kapczinski
Estágio Berk Kapczinski
0 Risco aumentado de Em risco, história familiar positiva,
transtorno do humor sintomas de humor ou ansiedade
1b Características prodrômicas
(risco ultraelevado)
3c Recaídas múltiplas
TABELA 18.2
Biomarcadores nos estágios iniciais e finais do transtorno bipolar
Marcador Estágio Estágio
inicial final