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APRESENTAÇÃO

“Sou como o corifeu medieval que percorre as aldeias e vai embora. É necessário que quando eu
partir, o palco não fique vazio. ’’Assim falou Franco Basaglia quando esteve conosco, em Julho de
1979. O palco não ficou vazio. Imediatamente organizou-se nova cena onde apareceram novos
atores. Hiram Firmino, que já havia então acompanhado a via-crucis de Maria pelos hospitais
psiquiátricos e achava-se sensibilizado pelo drama de Maria, também torna-se um dos atores deste
novo processo. Jornalista consciente do seu papel e sensível, passa a contar a via crucis de tantas
Marias e Josés, na série de reportagens “NOS PORÕES DA LOUCURA”. Penetra nos hospitais,
descreve o visto, penetra nos homens internados, escreve sua perplexidade, sua angústia e seu
medo. Seu relato comove a cidade.
Com a maestria de um cirurgião, Hiram disseca a opressão, a miséria e a tortura que o hospício
esconde atrás de seus muros. O internamento não tem a intenção de recuperar, mas de esconder a
degradação a que o louco é submetido nos quase 150 anos da instituição psiquiátrica.
Sem ser sensacionalista, Hiram fala dos porões da loucura de Minas Gerais, mas eles difundem-
se pelo Brasil inteiro. Basaglia chamava esses porões, esses hospícios de campos de concentração,
e o que acontece neles, de crimes em tempo de paz. Basaglia deixou o palco definitivamente, em
setembro de 1980.
Frente à reportagem/depoimento de Hiram Firmino, cabe-nos duas questões: qual a parcela de
responsabilidade que temos frente à situação em que nós, da sociedade, técnicos e autoridades
legalizamos? Qual é o caminho a ser seguido para recolocar nestes homens a dimensão do humano
que destruímos neles?
As denúncias feitas por Hiram Firmino inserem-se dentro de um amplo movimento mundial que
busca a conscientização social e exige a urgente humanização da psiquiatria. Hiram,
responsavelmente, fez o seu papel. Agora resta que os políticos, os membros da Igreja, os responsáveis
pelos Direitos Humanos, técnicos em saúde mental e toda a sociedade cumpram o seu...
Antonio Soares Simone
Associação Mineira de Saúde Mental
PREFÁCIO

Tudo começou em janeiro de 1978, com “A Via Crucis de Maria”. A estória real de uma
professora primária, de 37 anos, tida como esquizofrênica incurável pela medicina. Mais conhecida
como “a louca de Governador Valadares” que, de uma maneira circunstancial, acabou indo morar
conosco. Foi quando passei a ter acesso aos mais famosos psiquiatras, neurologistas, psicólogos e
parapsicólogos da época, que combatiam veemente o modelo clássico de que a esquizofrenia não tinha
cura, e pregavam terapias próprias, capazes de resolver o problema. Frequentei, enfim, com Maria,
os divãs e as clínicas particulares mais badaladas de Minas e São Paulo.
Isto significou um ano de peregrinação, experiência e comprovação sobre como é o tratamento
médico comumente dado aos doentes mentais no Brasil.
No princípio, todos os médicos mostraram-se humanos, sensibilizados e interessados na
recuperação de Maria, o que lhes daria bastante renome também. Afinal — foi o que combinei com
cada um deles — eles recuperariam Maria e eu mostraria isso ao jornal. Um acordo bom pra Maria
e providencial para os médicos, que teriam uma divulgação grátis dos seus tratamentos pró-
humanização da psiquiatria.
Ilusão pura.
Todos eles, sem exceção, esqueceram-se da minha condição de repórter no caso, à medida em que
decorriam os seus tratamentos. Começavam bem, decaíam depois. Ou seja, passaram a tratar Maria
não mais como um caso especial, que a imprensa acompanhava. E sim apenas como mais uma das
milhares de doentes mentais assistidas, via INAMPS, no país.
Inacreditável.
O primeiro abandonou o caso, confessando sua incompetência, depois de mistificá-la ao máximo.
O segundo drogou Maria até transformá-la num verdadeiro robô. Os dois seguintes a trancaram
furtivamente em uma cela, uma espécie de “quartinho-forte”, impregnando-a de remédios. Maria saiu
dali inchada, parecendo um bicho. O penúltimo apresentou uma solução temporária, depois se omitiu,
embruteceu-se como os demais. Pior: devolveu Maria cadavérica. E o último, além das drogas,
aplicou-lhe todos os eletrochoques que julgou necessários. Quando Maria voltou à casa de seus pais,
no interior — tido como curada tanto pela psiquiatria clássica, como pela antipsiquiatria e pelo
parapsicólogo — ela respondeu a todos, de uma só vez. Maria matou-se lúcida, sem sofrimento,
consciente e segura do que fazia. “Libertou-se” — segundo as pessoas que, como nós, acompanharam
o seu calvário.
A “Via Crucis de Maria”, como ficou sendo chamada a série de reportagens que retratou o seu
caso, foi mostrada, em capítulos, no Caderno Feminino do Estado de Minas, do dia 10 de junho a 15
de agosto de 1979. A partir disso, os médicos envolvidos no caso começaram a se movimentar, talvez
pela consciência pesada, ou pela observação, mais à distância, dos seus próprios atos. Eu não havia
revelado, nas reportagens, os nomes verdadeiros tanto deles como de suas respectivas clinicas,
temeroso de não poder passar do primeiro capítulo. Mas, pela própria descrição dos seus
“tratamentos”, os médicos foram identificados um a um, no meio científico. E reagiram. Uns para se
redimir. Outros, para recuperar o prestigio perdido.
Um deles aboliu o uso do eletrochoque em sua clínica. Outro, os seus “quartinhos-forte”, e por ai
afora. Teve um que ainda escreveu para o jornal tentando justificar a morte de Maria. Resultado:
acabou acusando os colegas e revelando outras mazelas do metièr psiquiátrico. O rebuliço aumentou
e propagou-se, em cadeia.
A clínica que aboliu o eletrochoque, após 20 anos de uso ininterruptos, ainda provou publicamente
que este método era “criminoso”, além de anti-terapêutico. O retorno de público nesta clínica foi
sintomático, em proporção geométrica.
Teve início, então, a fase da competição médica. Uma outra clínica envolvida, visando também a
sua humanização e a volta dos clientes, adotou e divulgou a prática da terapia ocupacional (como se
isso fosse uma novidade!) para os doentes que ali se internassem. Mas, a bola de neve estourou mesmo
quando os psiquiatras Halley Bessa e Francisco Paes Barreto, representando a velha e a nova geração
médica em Minas, resolveram colocar a boca no trombone.
Os “podres” dos hospitais psiquiátricos públicos passaram a sair para fora. A imprensa de Belo
Horizonte registrou tudo, a população acompanhou e o mais importante: manifestou-se também.
Afinal, revelações estarrecedoras, até então do conhecimento privado dos médicos e das instituições,
caíram de uma só vez no conhecimento público. E mais: Franco Basaglia, o psiquiatra italiano que
havia feito uma revolução no hospital psiquiátrico que dirigia, em Gorizia, e passara a ser o mentor
de um movimento mundial pró-humanização dos hospícios, ainda veio a Belo Horizonte, nesta época,
para engrossar o movimento.
Horrorizado com o que viu e não acreditava existir mais no Brasil, Basaglia comparou o Hospital
“Galba Velloso”, de Belo Horizonte, onde é feita a triagem de todos os doentes mentais do Estado,
via INAMPS, a uma “cadeia pública”. Chamou os médicos psiquiatras e enfermeiros do
estabelecimento de “carrascos” e os seus diretores de “carcereiros”. Quanto ao manicômio de
Barbacena, Basaglia classificou-o como “um campo de concentração nazista”.
Foram dois meses ininterruptos de denúncia psiquiátrica na imprensa mineira. E mais uma nova
ilusão com a classe médica. Afinal, a discussão, do jeito que estava sendo levada, não chegaria a
lugar nenhum. Na verdade, os médicos (e as instituições) falavam uns dos outros, a maioria se
criticando ostensivamente. Um ciúme danado. Coisa de princípios, escolas e ideologias diferentes. A
classe médica — percebi o óbvio — não era unida. E mais: os psiquiatras trabalhavam nas próprias
instituições denunciadas, não podiam falar abertamente. Perderiam o emprego. E seriam punidos
todos eles, como aconteceu a alguns, pelo Conselho Regional de Medicina e pela Fundação Hospitalar
de Minas Gerais (FHEMIG), o órgão que controla todos os hospícios públicos do Estado. O negócio,
então, era ver a situação pessoalmente, sem esses filtros e injunções.
Foi quando aconteceu uma providencial entrevista com o secretário de Saúde do Estado, Eduardo
Levindo Coelho, permitindo-nos o livre acesso aos hospitais psiquiátricos. Parece mentira, mas a
entrevista foi marcada por engano. Meu editor, Rogério Peres — a quem eu devo e agradeço o titulo
deste livro — havia pautado uma matéria sobre doenças de chagas, com um especialista membro da
Academia Mineira de Medicina. Quando me dei conta disso, já havia marcado, para o dia seguinte,
uma entrevista com o secretário de Saúde.
— Vai ser até bom — ainda comentei no jornal — aproveito a oportunidade e pergunto a ele qual
a sua opinião a respeito dessa onda toda, sobre a humanização da psiquiatria.
Fomos ao seu gabinete, eu e Jane (a fotógrafa Jane Faria, minha colega de jornal que,
infelizmente, por motivos particulares, não quis participar deste livro). Nós não conhecíamos o sr.
secretário de Saúde. E de prevenção, já até tínhamos uma manchete prontinha na cabeça:

“SECRETÁRIO NÃO PERMITE IMPRENSA NOS HOSPÍCIOS''.

Qual nada!
O secretário nos surpreendeu. Deu-nos uma entrevista maravilhosa sobre a Doença de Chagas.
Ficamos abobalhados mesmo com a sua pessoa, sua coragem e franqueza. Ele, é claro, à medida em
que percebia essa nova admiração, mais ficava também à vontade. Foi quando lhe perguntamos sobre
os hospícios mineiros.
Ele não se alterou.
Pelo menos, procurou aparentar isso. Ainda mostrou-se bem informado sobre o andamento das
denúncias psiquiátricas. Confessou, inclusive, ser um companheiro ideológico do Basaglia. E se disse
solidário com os psiquiatras Halley Bessa e Paes Barreto que, já aquela altura, pagavam um alto
preço por terem dito a verdade.
Foi o bastante.
— Quer dizer que, se nós quiséssemos ir amanhã à Barbacena, por exemplo, o senhor permitiria
isso, secretário? — perguntamos.
Ele respondeu:
— E por que não?
— Verdade mesmo?, insistimos.
Ele ficou meio ofendido com a nossa descrença. Explicamos que isso, no meio oficial, era muito
raro acontecer. Ele então completou:
— Os nossos hospícios psiquiátricos estão à disposição dos jornais, dos rádios e da televisão.
Vocês podem entrar em qualquer um deles, até em Barbacena, e registrarem tudo o que virem.
Fazendo isso, inclusive, vocês ainda me ajudarão, pois somente sensibilizando a esfera federal, é que
poderemos conseguir alguma coisa.
Ainda frisou:
— O ideal seria que esses hospícios já nem existissem mais.
Voltamos ao jornal, ainda impressionados com o secretário de Saúde. Mas, por precaução,
seguramos a notícia da sua “abertura dos hospícios”. A gente, é claro, temia por uma reviravolta,
uma repensada qualquer sobre a sua decisão. Resultado: publicamos somente a parte em que ele falou
sobre a Doença de Chagas. E no dia seguinte, bem cedinho, fomos direto a Barbacena. Depois, aos
demais hospícios.
Somente ao término dessa checagem é que publicamos a entrevista do secretário, permitindo então
a livre investigação da imprensa.
Isso era uma quinta-feira, dia 13 de setembro. No domingo seguinte, o jornal anunciou a série
“Nos Porões da Loucura". Na terça-feira, as reportagens começaram a sair. Uma realidade que
documentamos há dois anos e que, infelizmente, persiste até hoje, por mais inacreditável que possa
parecer.
CAPÍTULO I
O TERRÍVEL GALBA

UM JARDIM florido na frente. Uma sequência de pátios ensolarados, tipo alçapões de cimento,
ao fundo. Muros acinzentados de até cinco metros de altura. Nenhuma área verde no interior,
nenhuma sombra, um banco para se assentar. Sequer uma peteca, uma bola, um cigarro para fumar.
Apenas uma única salinha, de praxiterapia. Enfermarias escuras e fétidas. Homens e mulheres
transmutando seus problemas, piorando da doença. Neuroses, psicoses e ausência de amor reunidas
em dormitórios comuns. Nenhum médico nos ambulatórios, nas enfermarias ou nos pátios. Apenas os
atendentes. Uma esperança, enfim, muito remota de se livrar do itinerário público da loucura. Um
itinerário que começa aqui, no Hospital Galba Velloso, e termina quase fatalmente em Barbacena,
depois de um estágio pelo Raul Soares e pelas clínicas particulares que em nada contribuem para a
humanização da psiquiatria.
Na quinta-feira, o secretário de Saúde do Estado de Minas Gerais, Eduardo Levindo Coelho,
afirmou que os hospícios do governo — pela primeira vez na história do Brasil — estavam à disposição
da imprensa. Observou apenas que deveríamos procurar o superintendente da Fundação Hospitalar do
Estado de Minas Gerais (FHEMIG), Archimedes Theodoro, que marcaria dia e hora. Na sexta-feira, o
superintendente nos recebeu, dizendo que não estava a par da liberação do secretário. Ligou para ele,
confirmou a notícia e marcou para o início da próxima semana a nossa ida ao Hospital Galba Velloso,
em Belo Horizonte, onde tudo começa.
Às nove horas de segunda-feira, conforme o combinado, chegamos ao hospital, que fica na
Gameleira, logo depois da Fundação Ezequiel Dias. Um adro ajardinado, amplo estacionamento e
muitas árvores. Uma beleza de lugar, externamente. Bauínias, manacás e hibiscus de todas as
tonalidades. Muita “coroa-de-cristo” florida. Ao fundo, o complexo da Universidade Católica de Minas
Gerais.
Entramos pela portaria mais frequentada, a do Posto de Urgências Clínicas do INAMPS (Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), por onde são obrigados a passar todos os
doentes mentais dos 722 municípios mineiros. Os alcoólatras também, para efeito de triagem
psiquiátrica aos demais hospitais públicos e particulares. Uma saleta diminuta, sombria e sem
ventilação. Apenas três funcionários atrás de um balcão, protegidos por grades. Alguns bancos de
madeira. Muita gente nervosa, desesperada, esperando ser atendida:
— A sala do diretor é lá do outro lado — informou um funcionário.
Passamos por um corredor comprido, também todo à base de grades, onde funciona a parte
burocrática do hospital, e fomos até a outra entrada. Uma recepção mais arejada, menos agressiva,
onde são atendidos outros tipos de convênios médico-sociais, excetuando-se o INAMPS.
Na parede, um crucifixo e um telefone. Junto ao balcão, uma mulher chorando, querendo saber
notícias do marido, internado ali há vários dias:
— Agora, só segunda-feira que vem, minha senhora. O médico só volta aqui na outra semana
— respondeu a recepcionista, voltando-se logo para nós, de cara fechada:
— O que é que vocês querem aqui? Falar com quem?
— Com o dr. Inácio. Ele deve estar nos esperando. Somos do jornal Estado de Minas.
Enquanto ela foi lá dentro, ficamos olhando as diversas placas dispostas no hall de entrada. Uma
delas, em bronze, faz alusão ao “Hospital Neuro-Psiquiátrico Galba Velloso”, inaugurado em 25 de
janeiro de 1961, pelo governador José Francisco Bias Fortes e pelo secretário de Saúde Austregésilo
Ribeiro de Mendonça. Construído pelo Departamento de Engenharia Sanitária, sob responsabilidade
do engenheiro Arduíno Commici Filho. Uma outra placa fala dos feitos conseguidos na administração
Jorge Paprocki, no período 1963- 1968: “Open-door integral. Abolição dos quartos-fortes. Centro de
Estudos. Ambulatório. Praxiterapia. Dinâmicas de grupo. Comunidade terapêutica. Pesquisas com
psicotrópicos. Departamento de psicologia. Pós-graduação em psiquiatria”.
O diretor do hospital nos recebeu, estranhando nossa presença ali. Falou que não sabia de nada.
Pedimos, então, que confirmasse a autorização do secretário de Saúde. Ele o fez, enquanto tomávamos
um cafezinho. Mas se disse sem condições de ser entrevistado naquele dia. Pediu que voltássemos na
manhã seguinte, quando estaria mais preparado para dar as informações necessárias, inclusive aquelas
contidas nos relatórios internos, secretíssimos. Aceitamos, na condição de conhecer o hospital
imediatamente. Ele apresentou-nos seu imediato administrativo, o psiquiatra Álvaro Salles, que dirigiu
nossa visita quase sem dar uma só palavra.

“ZERO! NOTA ZERO


PRA TUDO ISSO AQUI”

Começamos pelos quatro “consultórios” sombrios, anexos à portaria, onde os pacientes são
examinados em tempo recorde. Depois, pelo “Posto de Sedação”, onde são sumariamente drogados
para internamentos. Tudo escuro. Sem ar, sem verde. Uma mesinha de metal, muita seringa, ampolas
de injeção. Um corredor comprido e, logo à direita, a “Ala dos Neuróticos”, a primeira enfermaria.
Um dormitório, espécie de copa-e-sala acoplada a um quartinho de remédios e um pátio horrível.
Quinze pacientes homens caídos pelo chão, encostados nos muros, andando a esmo, no mesmo lugar.
Um ambiente pequeno, desolado. Nem um banco para se assentar.
De volta ao corredor, fomos à “Ala dos Psicóticos”. O dr. Álvaro disse que se tratava de uma
enfermaria de pacientes agudos. E que, portanto, deveríamos tomar todo cuidado possível.
O mesmo ritual de tocar a campainha, esperar uma atendente olhar pela janelinha e abrir a porta.
Entramos e, num instante, umas duas dezenas de homens, de todas as idades e modos, começaram a
caminhar em nossa direção. Os menos drogados vieram rapidamente. Os outros, em câmara lenta.
Nada de terror. A maioria deles queria simplesmente apertar as nossas mãos, se identificar como
“fulano”, “beltrano” e “ciclano”. Ao perceberem que éramos repórteres, e não médicos, começaram a
dizer, mais descontraídos:
— Zero! Zero! Nota zero vezes zero pra tudo isso aqui.
O dr. Álvaro ficou de longe, só observando.
— Por favor — continuaram — ajudem a gente. Aqui tem briga toda hora e não vem ninguém para
separar a gente. O mais fraco é arrebentado.
Outro:
— Somos nós que lavamos tudo aqui. Um lava o outro. As privadas, os quartos, tudo.
E outro:
— O médico de plantão não aparece aqui. Quando vem, não conversa com ninguém. Ele diz que
não conversa com gente doida.
— Assistência social não resolve problema social — gritou um outro paciente, mais atrás.
E seguiram-se as apresentações, os apertos de mãos. José Maria de Faria Alvim, um rapaz bem
aparentado, 20 anos, logo tomou a frente:
— Eu tive uma impregnação muscular e me trouxeram para cá. Melhorei no caminho do hospital,
mas ninguém quis me ouvir. Disseram que eu ia passar só três dias aqui para observação. Mas vem cá,
procês verem uma coisa.
Puxando-nos pelo braço nos levou até o dormitório, onde vários pacientes afirmavam já ter perdido
a conta do tempo que estavam ali, esperando alta, remoção ou qualquer comunicação com seus
familiares. Depois, ele nos levou para conhecer o pátio, sob o olhar distante e fixo do psiquiatra-
administrador do hospital.
Passamos, primeiro, pelo banheiro ou ao que se supõe seja isso. Latrinas fétidas, canos sem
chuveiros. Nenhum sabão, sabonete, uma toalha sequer. A mesma escuridão. Um rapaz, de nome
Valdir, tossindo num canto, de cócoras. Levantou e disse, automaticamente:
— O senhor é médico? Tô com bronquite, quero remédio!
Fomos ao pátio. Uma área imensa de cimento e fezes por todos os lados. Um sol forte. Homens
ociosos pelo chão. Sequer uma árvore, uma sombra, um esporte ou distração qualquer. Muito menos
um médico, uma enfermeira, alguém de branco. Apenas reclamações:
— Pede pra eles arrumarem uma peteca prá gente! Qualquer coisa pro tempo passar mais depressa:
Outro paciente:
— Aqui, tirando os atendentes, que são legais, porque vivem o que nós vivemos, todo mundo é
mau. Não tem ninguém pra conversar com a gente. Só doido.
E outro:
— Eles nos proíbem tudo.

“NÃO NOS DÃO SORO.


SÓ REMÉDIO DE GENTE LOUCA”

Fomos à “Ala dos Alcoólatras”. Cinquenta e dois homens para três atendentes somente. O mesmo
visual, em câmara lenta. Figuras deprimentes em termos de saúde e cuidados médicos, em se
considerando o vício. Banheiros imundos, paredes quebradas, outras em reboco. Um pátio e uma
graminha feia, mal cuidada, também usada como sanitário. Os mesmos pedidos, nenhuma agressão:
— Eu me chamo Brás Ferreira. Sou casado, tenho quatro filhos. Sou eletricista. Escreve no seu
jornal que a gente entra aqui e não tem mais comunicação alguma com a família. O pessoal de casa
telefona pra cá e eles não nos dão recado. Daqui também não se pode comunicar com os parentes.
Outro:
— Aqui não pode entrar frutas, legumes e nem verduras pra melhorar a comida. É proibido até
fumar.
E outro:
— Eu quero um rádio pra distrair, pra ouvir um joguinho de futebol.
Abner José Pereira Filho, 22 anos, sintecador, falou da sua 47.a internação ali:
— Eu mesmo me interno aqui, todas as vezes, pra curtir a cachaça. Só que eles não me
desintoxicam. Não me dão soro. Só remédio de louco: Diempax, Diazepan e Neozine. Em jejum.
O eletricista Sérgio Castro Pitangueira, 28 anos, casado e pai de quatro filhos:
— Minha família deve estar apavorada. Eles não sabem que estou aqui. E eu vou ser removido não
sei pra onde, sem direito a escolha. Aqui, a clínica particular que tiver maior “peixada” com a direção
do hospital acaba levando a gente.
Outro paciente completou:
— Isso aqui é uma verdadeira cadeia. É o mesmo que o Depósito de Presos [cadeia pública de Belo
Horizonte]. A gente tem de ficar andando pra lá e prá cá o dia todo, neste cimento quente. A única
diferença é que aqui nós temos cama.
Também nesta enfermaria, não vimos a presença de nenhum médico, psiquiatra ou psicólogo. Mas,
a caminho da “Ala Mista”, ao lado da cozinha do hospital, passamos pela sala dos médicos planto-
nistas. Dois deles estavam lendo revistas. Um outro assistia televisão, tranquilamente.

TOMANDO REMÉDIO
EM JEJUM

Chegamos à parte masculina, onde são atendidos outros tipos de convênios, como das polícias
Militar e Civil, Cooperativa dos Rodoviários etc. Uma média de 40 a 50 pacientes, a maioria da polícia
mesmo. Segundo a direção do hospital, “pacientes difíceis, sempre reivindicantes e autoritários, que
julgam ser os donos do lugar”. Um corredor sombrio e frio como os demais. No pátio, um campo de
futebol de salão, as traves quebradas. A mesma desolação, aqui e ali uns pobres coitados com as
cabeças entre as pernas, ou olhando pro céu, bobamente. Indivíduos que permanecem ali, segundo
dados oficiais, por um mês ou pouco além disso.
— Tira um retrato meu? Sou soldado da Polícia Militar de Minas Gerais. Sebastião Fernandes da
Cunha, 49 anos, três filhos, às suas ordens.
Outro soldado:
— Eles obrigam a gente a tomar remédios em jejum. A gente tem de engolir os comprimidos com
água, antes do café. Às oito e meia isso, pensa bem?! A gente de barriga vazia, morrendo de fome.
Um outro paciente, bastante lúcido, trouxe-nos um papel dobrado, entregando amedrontado. Era
uma cópia quase apagada da “Oração de Nossa Senhora de Monte Serrat”:
— Publica isso no jornal. Quem sabe eles melhoram não somente essa enfermaria, mas todo esse
inferno aqui.
Passamos à parte feminina da enfermaria mista, a mais terrível de todas. Corredores fétidos e
escuros, sem qualquer ventilação. Mais de 30 mulheres andando seminuas pra lá e pra cá, como um
exército de zumbis, de tão drogadas. Mesmo assim, o característico aperto de mãos. E os pedidos:
— O senhor é meu médico?
— E o teste que eu fiz? Acho que me saí bem, não saí, doutor?
— Aqui é tão ruim.
— Tira um retrato meu?
Dona Oliveira, uma velhinha surda, de 75 anos, está quietinha, quase imperceptível no chão. Está
toda machucada, com hematomas pelo corpo. Havia sido mordida pelas colegas.
Uma atendente explica que as pacientes estão todas reunidas ali porque o pátio, que não acrescenta
nada, está em reformas. Os dormitórios, onde várias outras estão deitadas ou perdidas em seus mundos,
são deprimentes. Como os banheiros, todo o lugar é fétido e desesperador. Nenhum médico à vista.
A próxima enfermaria visitada foi a “Ala das Mulheres Neuróticas e Epilépticas”. Vinte e duas
pacientes, jovens e adultas, que para ali foram levadas por problemas de medo, depressão e ansiedade.
Quartos frios, sombrios e também sem ventilação. As pacientes são proibidas de irem ao pátio, que
também não difere dos demais. Uma espécie de alçapão de cimento.
Uma menina ainda, bem vestida e bonita, chorava:
— Quando meu pai chegar, eu vou falar pra ele que não sou louca. Por que me trouxeram para cá?
O quê que eu estou fazendo aqui, no meio dessa gente?
Lúcia, de 23 anos, residente no bairro São Paulo, dizia:
— Anotem meu telefone, por favor. É 441-3907. Telefonem para minha família, pelo amor de
Deus! Eu já até ajoelhei aos pés da supervisora, não adiantou nada. Ela é fria como isso aqui. Não
deixa a gente se comunicar com a família. E eu também não sou louca — observou.
Auxiliadora, 29 anos, três filhos, natural de Neves, explicou a sua nudez:
— Estou descalça e sem vestido porque nem roupa minha família pode trazer. Como é que eles
vão saber que eu estou aqui, minha Nossa Senhora?

“SOU PRIMO-IRMÃO DO
SECRETÁRIO DE JUSTIÇA”

Na enfermaria seguinte, que atende aos segurados do FUN- RURAL (entidade que assiste aos
trabalhadores do campo), uma ligeira diferença. Na entrada, um atendente tocava violão e cantava,
amenizando bastante o ambiente. Mas parou, logo que nos viu entrar. Ali o chão é limpo e tem uma
televisão. Mas só ali. No pátio, o quadro deprimente se repete. São 15 homens psicóticos e epilépticos
caídos pelo chão, ociosos. Um deles casado, 30 anos, pai de três filhos e natural de Caratinga, logo se
identificou:
— Meu nome é Valdir Soares Moreira. Estou aqui já faz 20 dias, desnecessariamente. Sou primo-
irmão do secretário de Justiça do Estado de Minas Gerais, Dênio Moreira. Podem consultar minha
ficha procês verem. Eu quero apenas que vocês digam para ele me tirar daqui. Meu pai esteve aqui,
mas não acreditou em mim. Eu lhe disse que posso tranquilamente tomar os remédios em casa, sem
problemas, mas ele não aceitou. Ainda me pediu que ficasse mais duas semanas aqui. Que bobagem,
né? Aqui eles me dão cinco comprimidos de Haldol pela manhã, e um Amplictil à noite. Mas por que
eu tenho que ficar preso aqui? Eu tenho responsabilidade, sou maior de idade, tenho consciência do
meu problema. Jamais deixaria de tomar remédio em casa. Só quero estar com minha família, minha
mulher, meus filhos.
Valdir é quem capina a horta, zela também pelo pátio da enfermaria. Ainda é responsável pela
faxina e pelo banho diário de seus colegas. É também o mentor dos trabalhos ali desenvolvidos. Como
não tinha regador, ele furou com prego uma lata, por onde sai a água, tipo chuveiro:
— A gente aqui tem de improvisar. Falta tudo e tudo é contra a gente. Eu, por exemplo, plantei
feijão, mas os ratos comeram tudo. Vamos ver, agora, o que vai dar.
Seu colega-assistente é o interno Pedro Carlos de Azevedo, de 58 anos, natural de Poço Fundo,
interior do Estado. Ele confirmou a situação e fez um pedido:
— Nós estamos precisando de sementes de milho comum. De quiabo também. Mas, sem adubo
para desenvolver as plantas, não vai ter jeito, não. Os ratos comem tudo, ainda no brotinho.

CORTINAS COM
CÂNHAMO INDIANO

As enfermarias “9” e “10”, no segundo andar do hospital, foram as últimas que visitamos. Com
capacidade para 26 pacientes, elas são do tipo misto, separadas em duas alas. Ali podem hospedar-se
pacientes do INAMPS, de vários outros convênios e mesmo particulares, desde que suas famílias
concordem com um acréscimo de Cr$ 400,00 no preço das diárias. O chão é de taco, todo encerado. A
sala de estar tem cadeiras de vime e cortinas de cânhamo indiano, mais televisão, geladeira e fogões a
gás. Tudo isso à disposição dos pacientes, que ficam em apartamentos limpos e arejados.
Eles apenas reclamam do serviço de enfermagem, que fica no centro das duas alas, distante das
extremidades, dificultando o bom atendimento. E os funcionários reclamam do grande movimento de
entrada e saída de acompanhantes, que os impede de exercer um “perfeito controle” dos seus pertences.
Retornando ao gabinete do diretor do hospital, que já havia ido embora, passamos pela “Sala dos
Eletrochoques”, que o dr. Álvaro garantiu ser muito pouco utilizada:
— A rotatividade aqui é muito grande. Não há tempo para a gente eletrochocar os pacientes.
Despedimo-nos do psiquiatra e fomos embora. No dia seguinte, de volta ao “Galba Velloso”,
fizemos a entrevista com o diretor. E tivemos acesso aos “relatórios internos”. Foi quando descobrimos
a razão de os pacientes chamarem aquele hospital de “terrível”.
CAPÍTULO II
A LIBERDADE, A QUALQUER PREÇO
HOSPITAL Psiquiátrico Galba Velloso, as 72 horas definitivas. Homens e mulheres, todas as
idades. As angústias, os problemas sociais. Isso não interessa. A norma oficial é de que cada doente
mental do Estado fique ali durante três dias. Para controle, medicação e avaliação. Mas nada disso
acontece. Faltam médicos, enfermeiras. Falta tudo. Falta coração, psicologia, espaço e claridade.
Contato humano. As pessoas apenas ficam drogadas, agrupadas feito bicho, em enfermarias diminutas
— por medida de economia, desumanidade - até serem removidas para as clínicas particulares, ou
retornarem. Mas, que acham disso os médicos que trabalham no Galba? As enfermeiras, os
psiquiatras? E o diretor do Hospital? A Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais? E, afinal,
por que o Galba é tão terrível? Os internos buscam, incessantemente, a liberdade! Seguem-se as
respostas.

À hora combinada, o diretor do hospital nos recebeu cordialmente, em seu gabinete. Na noite
anterior, nós o havíamos visto na televisão, explicando — com rara habilidade - por que uma jovem
entrou ali com problemas psicológicos e saiu depois, mais traumatizada, com a boca e os dentes
quebrados. Inácio Campos Bicalho, 53 anos, há um ano e meio na direção. Médico clínico e
gastrenterologista, em vez de psiquiatra, como supúnhamos ele fosse.
Já ocupou vários cargos públicos de chefia. Foi diretor do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil de
Belo Horizonte durante cinco anos. É o atual chefe do Serviço de Clínica Médica do INAMPS- Sagrada
Família. Responsável pela implantação do também terrível Serviços de Urgências Clínicas (SUC) do
Hospital Santa Mônica, de onde saiu por não concordar com os rumos que o serviço estava tomando:
— Quando montei aquele sistema de urgências clínicas foi para atender somente a uma média de
20 pacientes por dia. Quando esse número cresceu para 200, tornando inteiramente desumano o trata-
mento, o atendimento, não tive outra opção. Pedi demissão.
E quanto ao Galba Velloso, sua posição ali? Ele começou por explicar a estrutura administrativa:
— Este hospital pertence à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, com a finalidade de
atender aos convênios com diversas entidades denominadas assistencialistas.
Um único hospital atende a todo tipo de pacientes, com exceção dos não-pagantes e dos indigentes.
Ou seja, apenas um hospital para atender a 10% de toda a população do Estado. Percentagem essa que,
segundo cálculos da Organização Mundial da Saúde, sofre de perturbações mentais, necessitando de
um tratamento adequado. Mais ainda. É neste hospital que são atendidos e triados os pacientes do
INAMPS, através de um plantão de urgências psiquiátricas.
Uma portaria irrisória, com apenas três funcionários para atender a todos os segurados do Instituto
em um raio que compreende 722 municípios mineiros. Daí, a qualidade do serviço, quase que
diariamente estampado no noticiário policial da cidade. São 80% de segurados do INAMPS, contra
20% de outros convênios. Incluindo os particulares que, desde que se disponham a complementar Cr$
400,00 na diária, recebem um tratamento inteiramente diferenciado, mais humano.
Mas o diretor insiste em separar as funções do hospital. Diz que o Hospital Galba Velloso é uma
coisa, o Plantão de Urgências Clínicas (PUC-INAMPS) outra. Mas não tem como negar que todo o
pessoal técnico-administrativo, o corpo médico do PUC-INAMPS é o mesmo que o do Hospital Galba
Velloso. Inclusive as chefias, que ele mesmo exerce.
Quanto à área física do hospital, como um todo, ridícula em termos de acomodação, ele apenas
confirmou o que um outro funcionário nos confidenciou. Que o hospital foi planejado da forma mais
econômica possível, para conter o maior número de pacientes, na menor área possível. Disse-nos ele:
— A nossa área total (compreendendo basicamente os jardins externos e a sucessão dos pátios, ao
fundo) é de 20 mil metros quadrados, para uma área construída (as enfermarias e dormitórios) de 9 mil
metros quadrados.
Ou seja, 340 homens e mulheres, de todas as idades, as procedências mais diversas, pessoas
carentes de afeto, angustiadas, deprimentes e ansiosas, acondicionadas ao máximo possível.

O GALBA VELLOSO
EM NÚMEROS

Em agosto, por exemplo, a famosa triagem do Hospital, que compreende “controle, medicação e
avaliação do paciente” em apenas 72 horas — o período-padrão de permanência compulsória —
registrou os seguintes números: 675 novas internações para um total de 1.435 reinternações e 1.311
remoções, o que prova a ineficácia do tratamento dado aos pacientes. Eles não se curam. Ou voltam
para o hospital, ou ficam fazendo uma via crucis altamente rentável nas clínicas particulares, até
chegarem a Barbacena. E não se trata apenas de um problema afeto aos segurados do INAMPS, como
se imagina. Segundo o dr. Inácio, varia entre 60 a 70% o número de reinternações dos pacientes de
outros convênios. O mesmo acontece com os particulares. E pior ainda. O número de “altas
melhoradas”, conforme a terminologia médica do hospital, foi de 674 contra 2.569 internações e
remoções, naquele mesmo mês.
Por que ocorre um resultado terapêutico tão desastroso assim? Além da falta de espaço, de áreas
verdes e acomodações específicas para cada tipo de problema, falta um bom serviço médico neste
hospital? O diretor responde, discordando. Diz que somente no PUC- INAMPS existe 25 médicos
contratados. Vinte e dois psiquiatras, um neurologista, um cardiologista e um anestesiologista.
Médicos que, em grupo de quatro, fazem plantão de 24 horas por semana. Mais três psicólogos, sete
enfermeiras, três auxiliares de enfermagem, três assistentes sociais e 11 atendentes. Estes últimos,
segundo os pacientes, seus “únicos e assíduos consulentes”.
Já no Hospital propriamente dito, como o diretor faz questão de diferenciar, existem os seguintes
funcionários na folha de pagamento: 20 médicos psiquiatras, dois clínicos, dois anestesiologistas, um
psicólogo, oito enfermeiras, quatro auxiliares de enfermagem e 103 atendentes e sete plantonistas 24
horas por dia. Uma média geral de 35 pacientes por médico.

“MOMENTO HISTÓRICO”

Qual a causa principal de tantos internamentos?


O diretor do hospital responde:
— Problema social mesmo. Miséria, fome e desespero pela sobrevivência.
— E quanto ao alcoolismo?
— Problema social também. Como inexiste um serviço ambulatorial distribuído em todo o Estado,
como deveria ocorrer, os doentes chegam até a se apresentar voluntariamente aqui. Quero dizer, ao
mesmo tempo que o hospital amedronta alguns, para outros ele é uma solução, atrai. O indivíduo tem
problemas sociais, não tem meios de resolvê-los, então entra em desespero e acaba chegando aqui.
Segundo os atendentes, são vários os casos de pais de família que se apresentam para um choque
ou uma injeção que os tire da realidade por algum tempo. Para esquecerem-se de seus problemas. Ou
indivíduos que já chegam ali inteiramente dopados ou embriagados, sem perspectiva alguma de vida.
— E qual a tendência disso?
O dr. Inácio responde:
— Ué? Dentro do momento histórico da assistência psiquiátrica brasileira, em que os custos
hospitalares se elevam, e o custeio não acompanha os mesmos índices, a tendência é tal quadro
perdurar indefinidamente.
— A seu ver, qual seria então o tipo de tratamento mais adequado, já que o senhor disse ser ele
indispensável na falta de um controle ambulatorial pelo interior do Estado?
— Seria transferir este hospital, como os demais, para uma área mais suburbana, mais rural. Uma
área mais ampla, com bastante área verde, principalmente sem essa configuração de prisão. Um
sistema de liberdade relativa seria fundamental na recuperação dos pacientes.
— Por que não existe terapia ocupacional em todas as enfermarias aqui, para acabar com a
ociosidade tão prejudicial aos pacientes?
Respondeu o diretor:
— Acho muito pouco oportuno sua implantação no hospital. A nossa clientela, em 80% dos casos,
é do INAMPS. São pacientes que pertencem ao Instituto, que ficam somente três dias aqui.
— E após esse período, o que acontece com os pacientes?
— Não sei. Falta-nos um controle do egresso. Depois que o doente é triado para as clínicas
psiquiátricas particulares nós não sabemos mais dele. Nós já cumprimos a nossa parte. Cessa, então,
nossa responsabilidade. O problema passa a ser do INAMPS.
— Isto é, 35 pacientes cuidados por um único médico. O senhor acha humano isso?
— Depende da finalidade. Como se trata de um tratamento intermediário, é aceitável esse número,
sim. Afinal, o psiquiatra do hospital não tem responsabilidade definitiva pelo paciente.
— E quanto ao agrupamento desumano dos pacientes nas enfermarias?
— É o tal momento histórico do qual já te falei — respondeu o diretor.
— Nenhuma área verde, um banco para se assentar nos pátios?
— É uma falha nossa, realmente. Mas já estamos providenciando isso.
— Falta muito mais aos pacientes. Entretenimento, comunicação com suas famílias e outras
necessidades básicas, não falta?
— Realmente.
— E por quê?
— Porque este hospital é deficitário. E a tendência é ocorrer o mesmo com todos eles. Nós não
temos uma dotação orçamentária fixa. O nosso faturamento, em julho, por exemplo, foi de apenas Cr$
2,4 milhões de cruzeiros.

“DOCUMENTOS INTERNOS”

Para fornecer tais dados, o diretor teve de lançar mão de uma pasta, onde havia várias
“comunicações internas”. Pedimos para vê-las, ele negou. Lembramos-lhe que o próprio secretário de
Saúde do Estado havia-nos dado carta branca para revelarmos exatamente o que ocorre nos hospitais
psiquiátricos do governo. Isso, com a finalidade de sensibilizar a Presidência da República para o
problema, resolvendo-o de vez.
O dr. Inácio não aceitou.
Disse-nos que fora autorizado somente a dar entrevista, não a fornecer qualquer documento.
Pedimos, então, que ele telefonasse diretamente ao secretário. Este estava viajando. Ele, então, ligou
para o superintendente da FHEMIG. Estava viajando também. Tentamos o subsecretário de Saúde,
nada adiantou. Ele alegou que não tinha autoridade para decidir nada.
Somente no dia seguinte conseguimos conversar com o superintendente. Mas ele negou, também.
Disse que não ficava bem o jornal retratar, na íntegra, tais documentos ao público. Lembramos a ele
também, que a Secretaria não gostaria de nada ocultado. Ele, então, permitiu finalmente que tivéssemos
acesso aos relatórios.
Fizemos isso à noite, na própria residência do diretor do Hospital Galba Velloso, que nos recebeu
com a mesma cordialidade. O primeiro documento, datado do dia três de abril de 1978, referia-se a um
relatório apresentado à direção do hospital. E estava assinado pelos médicos Álvaro Ângelo Salles,
Rodrigo Leme Dias, Marcelo Ribeiro Vaz, Anastácio D’Avelar Abreu Neto, José César de Moraes e
José Mário Cordeiro. Eles solicitavam a contratação de mais sete psiquiatras e uma melhor
racionalização do serviço. Diziam eles:

“Sr. diretor. Entendemos que o tratamento psiquiátrico não se restringe aos psicofármacos, mas
que o remédio é o médico em si (...) a assistência dada aos segurados é de baixa qualidade, devido ao
número excessivo de pacientes. Não podemos nem atender aos seus familiares, na portaria.”

Um segundo relatório fala das “condições e necessidades do hospital”, assinado e remetido à


direção pela chefe do Setor de Enfermagem, Corina Bastos Crespo, no dia 5 de abril de 1978:

“(...) os atendentes do HGV são de l.° grau [grau de escolaridade, equivalente aos cursos primário
e ginasial] até os de 2.° grau [científico], contratados após passarem pelo Serviço de Seleção. São
elementos que não possuem informação ou conhecimento algum do que seja um hospital psiquiátrico,
seus pacientes, muito menos algo sobre enfermagem. Alguns passaram do serviço de limpeza para a
enfermagem, após teste psicotécnico. Outros, que não se adaptaram em alguns hospitais da FHEMIG,
por indisciplina ou por qualquer outro motivo, foram colocados em disponibilidade e, então, enviados
para este hospital. Muitos vêm trabalhar à noite, porque já têm outro emprego durante o dia. Vêm
trabalhar já cansados e sem condição alguma de executar bem suas tarefas.”
A chefe do Setor de Enfermagem do Hospital Galba Velloso continua sua apreciação:
“(...) é de norma que o atendente cumpra o horário diário durante uma semana, para se entrosar
com o serviço. Nem isso, às vezes, podemos exigir, porque eles trabalham em outro lugar e não podem
vir aqui diariamente. Temos que aceitá-los como são, na falta de funcionários masculinos. Sua
orientação é feita em serviço, pela supervisora, que não pode dar-lhes a devida e completa atenção,
por ter a seu cargo três unidades, com uma média de 120 pacientes necessitados de vigilância contínua.
O número de funcionários deste hospital não é o ideal. O trabalho de cada um sofre também o desgaste
das horas extras trabalhadas para compensar as férias e as licenças dos colegas.”
E concluiu:
“(...) Um dos problemas de maior gravidade é a grande incidência de intercorrências clínicas
(pneumonia, cardiologia, neurologia etc.), os pacientes tendo de ser removidos. Temos casos de
pacientes internados diretamente na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) e, dentro de uma ou duas
horas, removidos para o SUC (Serviço de Urgências Clínicas), em estado grave. Às vezes, até em
coma. Mais fatos criam dificuldades, porque os pacientes, para serem transportados exigem, às vezes,
mais de um funcionário das já carentes unidades. O transporte para o SUC também traz problemas,
porque o funcionário acompanhante, mesmo sendo atendido com relativa rapidez, fica por muito tempo
esperando a ambulância, que irá transportá-lo a um outro hospital ou trazê-lo de volta. Uma espera
que, em média, ultrapassa duas a três horas.”

“UM MÉDICO PARA


300 PACIENTES”

O terceiro relatório, encaminhado à Superintendência da FHEMIG, no dia 17 de abril de 1978,


revela a impressão pessoal que o dr. Inácio teve do hospital, um mês após ter assumido a sua direção:
“(...) número insuficiente de psiquiatras plantonistas, médicos clínicos, enfermeiros, atendentes,
serviço social e setor de psicologia. Dada a curta permanência aqui e ao estado agudo dos mesmos, a
assistência prestada não é de boa qualidade, com os conseqüentes e desagradáveis incidentes
noticiados. Este hospital possui, em 20 horas/dia, apenas um médico plantonista, que atende a todos
os problemas de ordem médica, seja de natureza clínica ou psiquiátrica, a todos os pacientes. De 280
a 300 por dia.”
E conclui sua observação:
“(...) possui este hospital apenas um médico clínico para todas as enfermarias, trabalhando na parte
da manhã. Os enfermeiros não têm substitutos. Não existe terapia ocupacional. A nosso ver, indis-
pensável, pois o paciente hoje permanece ocioso nas enfermarias. A praxiterapia propiciaria melhora
na sua recuperação, liberando-o da ansiedade e aumentando o relacionamento com o médico. Não
existe relacionamento com o médico. Não existe serviço social aqui. Nem psicologia, aplicação de
testes, terapia de grupo, elucidação diagnóstica ou psicoterapia.”
Um último relatório feito pela Comissão de Sindicância da FHEMIG data do dia 27 de abril de
1978. Foi assinado pela enfermeira Corina Bastos Crespo e pelos psiquiatras Álvaro Ângelo Salles e
Rubens de Paulo Ribeiro. Diz o documento:
“Ausência de treinamento em todos os funcionários do hospital. Os atendentes são desviados de
suas funções para o transporte de alimentos. Dificilmente conseguiremos conter as evasões de pacien-
tes, uma vez que a própria condição psiquiátrica os leva a buscarem a liberdade, a qualquer preço. Os
muros do hospital têm quatro metros de altura. Os basculantes são do tipo pequeno, soldados de forma
que sua abertura seja de apenas cinco centímetros. A solução seria aumentar a altura dos muros, de
quatro para cinco metros. E a substituição dos basculantes por grades.”
Falou-se também da burocracia do hospital:
“(...) uma paciente fugiu às 9 horas da manhã e somente às 16 horas a portaria foi avisada disso.”
E sugeriram a implantação de terapia ocupacional, para melhorar o tratamento. Mas observaram,
no pé do relatório:
“Não seria completo, o nosso trabalho, se não alertássemos para o ônus financeiro que nossas
sugestões trariam aos cofres da FHEMIG.”
Lembraram, mais uma vez, a necessidade de novas contratações de médicos e funcionários, de
modificações e novas instalações no hospital. Mas tornaram a observar:
“(...) isso poderia acarretar ônus financeiro que talvez tomassem os nossos convênios ainda mais
deficitários.”
Ao fim da entrevista, o diretor do Hospital Galba Velloso mostrou-nos uma cópia do requerimento
que fez ao seu gerente-administrativo, logo após a primeira visita que fizemos ali:
“(...) recomendo providências no sentido de se construir bancos de alvenaria nos pátios do HGV
que não os possuam. Ainda solicito seja estudado o plantio de árvores nos mesmos, no sentido de
humanizar o ambiente.”
E acompanhou-nos até a porta, ainda cordial. Eu, então, lhe disse:
— Dr. Inácio, gostaria que não houvesse atrito algum, de ordem pessoal, quando da publicação das
reportagens.
Ele me interrompeu:
— Eu sei da tarefa de vocês. Sei que faço parte de um sistema, de uma estrutura. E é dessa estrutura
que vocês vão falar. Portanto...
No dia seguinte, fomos ao Instituto Raul Soares, onde são internados e tratados os loucos pobres e
sem Instituto de toda Minas Gerais.
CAPÍTULO III
A APARÊNCIA EXTERNA DO INFERNO
A PRIMEIRA VISÃO, uma surpresa. O Instituto Raul Soares é um bosque maravilhoso. Um hospital,
jamais um hospício, cercado de flores por todos os lados. O segundo estágio público da loucura é uma
imensa área verde. Equivalente a cinco quarteirões. Espatódias, flamboyants e boungaivilles floridos.
Holofotes. Um monumento de mármore, homenagem ao centenário do ex-governador de Minas. Único
refúgio, além de Barbacena, de todos os loucos pobres do Estado. Os mendigos e os bêbados sem
Instituto, nome ou endereço. O diretor do hospital é a favor da humanização da psiquiatria. Confessa
até orgulho pessoal pelo hospital que dirige. Fala do comércio particular da loucura. Denuncia tudo,
corajosamente. E impressiona os repórteres, como se vê a seguir.

O dr. Archimedes, superintendente da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG),


telefonou-nos no dia anterior, marcando a entrevista:
— Tudo OK! Vocês podem procurar o Navantino, no Raul Soares, às nove em ponto.
— Navantino?
— É. Ele é o diretor do Instituto. Já falei que vocês vão procurá-lo amanhã, neste horário.

UM LUGAR MARAVILHOSO,
VISTO POR FORA

Cheguei no Instituto antes de Jane. De imediato, maravilhei-me com o que vi. Logo pertinho da
Praça de Santa Efigênia, depois do Cine Alvorada, ao lado da Superintendência Municipal de
Transportes. Uma imensa e escondida área verde. Parece um bosque. Mangueiras enormes, espatódias
e flamboyants de uns 20 metros de altura, mais ou menos. Bougaivilles de todas as cores, com galhos
até o chão, de tanta flor. Bancos construídos exatamente debaixo das árvores mais encopadas, mais
frondosas. Muita sombra. Um ambiente bucólico. Vários funcionários varrendo as folhas. Estradinhas
de paralelepípedos, com mão e contra-mão. Farto estacionamento. Um lago bonito, no centro do
jardim. E um monumento de mármore alusivo ao centenário do ex-governador Raul Soares. Assinalado
em baixo, sob a luz do holofote: “Aureliano Chaves, Governador de Minas. Dario de Faria Tavares,
Secretário de Saúde”.
Assim é o Raul Soares por fora. Uma construção de 1922, tipo asilar. Um hospício de pintura nova,
inaugurado no dia 7 de setembro — data da Independência do Brasil — pelo então governador Arthur
Bernardes. E pelo secretário de Interior e Justiça da época, Afonso Pena Júnior.
Era cedo ainda. Fui por um corredor, desci uma escada e cheguei ao Centro de Estudos “Galba
Velloso”, onde se reúnem os psiquiatras-residentes. Não havia ninguém. Na parede, um cartaz
anunciando a realização do III Congresso Mineiro de Psiquiatria em novembro próximo, em Belo
Horizonte. A ilustração é uma mulher caída, prostrada, no chão. Uma paciente psiquiátrica. Foto feita
no próprio hospital. E dois artigos chamando a atenção para a Declaração Universal dos Direitos
Humanos: o 5.°, “Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano e
degradante.” E o 9.°, “Ninguém será arbitrariamente preso ou detido, ou asilado.”
Do outro lado, uma frase de Baságlia - psiquiatra italiano que conseguiu a aprovação de uma lei
antimanicômio em seu país e que lidera uma campanha mundial pela humanização da psiquiatria: “Não
penso, como Laing, que a loucura é uma viagem. A loucura é sofrimento, é angústia. E como tal eu a
combato. Não para devolver a saúde, mas para defender a vida.”
Surge um médico-residente, jovem ainda. Eu lhe pergunto:
— Eles dão choque aqui?
— ECT?
— Pode ser.
— Ah! ... muito pouco. Eu estou aqui há três anos e vi muito poucas vezes. Acho que só de vez em
quando.

“TENHO ORGULHO
DESTE HOSPITAL”

Jane chega. O diretor também. Fomos imediatamente à sua sala.


Enquanto tomamos um cafezinho, ele acende um cigarro e se identifica. Não é um psiquiatra, um
psicólogo, como também supúnhamos ser. É um neurologista:
— Sou uma espécie de diretor crônico disso aqui. Trabalho aqui desde 1947. Já fui diretor no Galba
Velloso durante dois anos e meio. Mas estou de volta aqui, desde 1974.
— Quer dizer que o senhor conhece isso aqui a fundo, não?
— Se conheço! Isso aqui já foi muito ruim, se bem que não me lembre das atrocidades que, dizem,
ocorriam aqui. Pelo menos, no meu tempo, eu não vi nada disso. Este hospital melhorou muito. Hoje
eu tenho até orgulho dele. Eu sou sobrinho do Raul Soares, vocês sabiam?
— Nem podíamos imaginar.
— Pois é.
— Mas, como é o espaço aqui? Qual a área do hospital? - perguntei.
— Uns 50 mil metros quadrados. O equivalente a cinco quarteirões.
— Quase o Parque Municipal! E a área construída (as enfermarias, os pátios, onde ficam os
doentes)?
— Uns sete mil metros quadrados.
— A capacidade?
— 374 leitos. Seis enfermarias de homens e mulheres. Mais uma de alta.
— E o corpo médico?
Ele abriu uma pasta, fez umas consultas, e respondeu:
— 18 psiquiatras residentes, 15 não-residentes, quatro psicólogos, cinco médicos clínicos, dois
dentistas, um oftalmologista, um cardiologista e um eletroencefalografísta. Cinco enfermeiras
formadas, duas anestesistas, duas assistentes sociais e 80 atendentes.
— Qual a finalidade deste hospital, dr. Navantino?
— Atender a todo paciente indigente do Estado. Os pacientes agudos, que não têm INAMPS.
— De todo o Estado?
— Mais do que isso. Até da Bahia, da Amazônia.
— Vem doente da Amazônia para se internar aqui?
— Vocês nem imaginam! Isso aqui é um inferno. Aqui vem gente doida de todo o País. Não sei o
que acontece. Ou se eles gostam do tratamento que recebem aqui. Mas a polícia dos outros Estados
põe os seus doidos nos ônibus e os despacha para cá. Todo mundo, essa é a verdade, quer vir para este
hospital.
— E como eles chegam aqui?
— Ih! De todo jeito. Ou são seus próprios parentes ou os vizinhos que os trazem. A rádiopatrulha,
os destacamentos policiais de cada região. Aqui, a toda hora chega uma ambulância do interior ou uma
camionete fretada pelas prefeituras. A maioria só tem o trabalho de deixar o indivíduo na portaria e
vai embora, sem dizer nada. A gente não sabe nem a procedência dos doentes.
— Nós ouvimos falar que aqui existe um “ônibus-fantasma” que vai passando perto das favelas e
deixando os pacientes ali inteiramente drogados, para serem recolhidos depois pelos moradores. Isso
é verdade?
— De jeito nenhum. Aqui nós fazemos a ficha completa do paciente. Localizamos sua família, seu
endereço e mandamos uma ambulância especial deixá-lo em casa. Inclusive, isso nos dá um trabalho
danado. Temos que ir, às vezes, em cidades muito distantes. Temos casos, também, de colocar o
paciente dentro do ônibus, quando ele está em condições de viajar sozinho. Não sei dessa estória de
“ônibus-fantasma”, não.
— E aquelas pessoas que são trazidas pra cá pelas radiopatrulhas? Os mendigos e os bêbados, as
pessoas anônimas que são apanhadas pela polícia nas ruas?
— Agimos do mesmo jeito.

UM HOSPÍCIO
SEM DIFICULDADES

— E quanto às dificuldades do hospital?


— Dificuldades?
O diretor acende um segundo cigarro.
— É ... as dificuldades.
Ele faz uma pausa e responde:
— Não as vejo.
— Nem financeiras?
— Nem financeiras.
— Digamos que, se o senhor quiser modificar algo aqui, no sentido de humanizar o hospital, o
senhor teria as condições necessárias?
— Acho que sim.
— Espera aí, dr. Navantino. Nós não sabemos o que o Dr. Archimedes lhe falou, mas a
recomendação do secretário de Saúde é justamente a de serem denunciados todos os problemas dos
hospitais psiquiátricos do Estado, como este. O senhor pode falar o que quiser. É justamente para
mudar o que está errado, ruim para os doentes aqui.
— Eu não estou escondendo nada, não!
— OK.
— Mas nada mesmo! — confirmou.
— Quantos doentes estão aqui, hoje?
— Entre homens e mulheres, 386 pacientes.
— Só adultos?
— Aqui só se interna paciente adulto.
— E a média de permanência deles aqui?
— Uns 15 dias, mais ou menos.
— 15 dias? Mas nas clínicas, nos hospitais particulares isso não acontece!?
— Ali é outra estória. Existem outro interesses. A média de permanência nessas clínicas, em geral,
é de 60 dias.
— O senhor está dizendo que, de fato, existe uma guerra entre as clínicas psiquiátricas particulares
para obterem o maior número de pacientes e, consequentemente, maiores lucros? Nós ficamos sabendo
que a direção do Galba Velloso (onde se faz a triagem dos doentes segurados do INAMPS) sofre uma
série de pressões deste tipo. O senhor, que já foi diretor lá, confirma isso?
— Claro que sim. As clínicas particulares sustentam-se à custa dos loucos do INAMPS. E vivem
reclamando mais doentes.
ESPERANDO VAGA
EM BARBACENA

— Como se processa o internamento aqui?


O diretor acendeu o seu terceiro cigarro:
— Pra vocês terem uma idéia, em julho passado, nos chegaram aqui 556 pacientes. Nós admitimos
apenas 324, o que não acontece nas clínicas particulares. O único problema que tivemos foi durante a
greve do pessoal de enfermagem e dos atendentes.
— O que aconteceu?
— Ué? Eu tive que mandar os loucos para Barbacena. Fiquei praticamente sozinho aqui.
— E hoje?
— Hoje o hospital está lotado. Há uns 40 esperando vagas em Barbacena.
— E as reinternações? Em que índice elas ocorrem aqui?
O diretor folheou um relatório, que acabara de ser entregue pela secretária. Respondeu:
— Uma média de 55%.
— Por que tudo isso? O senhor não disse que a permanência aqui era de 15 dias somente? Então o
tratamento não é bom?
— Aí nós voltamos ao problema da procedência e da questão sócio-econômica dos nossos
pacientes. Como já falei, a maioria das famílias deixa o doente aqui e vai embora, sem nos falar nada.
O indivíduo é simplesmente jogado na calçada, e pronto. Isso acontece a toda hora.
— Mas, por que essa pessoa, depois da alta, volta pra cá em mais da metade dos casos? Ela não é
liberada com prescrição médica, tudo direitinho?
— Vocês não sabem de nada mesmo. Tem família, que chega a esconder o remédio do doente de
propósito, só pra ver se se livra dele. Com isso, ele fica louco de novo e a família o interna novamente.
Se houvesse maior compreensão por parte das famílias, e existissem ambulatórios em todo o Estado,
realmente não haveria tanta reinternação assim. A política de substituir o confinamento asilar pelo
tratamento ambulatorial é a meta do secretário, e nossa também. Não temos aí o caso dos tuberculosos?
Depois que se conseguiu conscientizar a população de que era desnecessário, do ponto de vista médico,
tratar o tuberculoso em sanatórios, estes hoje acham-se inteiramente ociosos. Descobriu-se que não era
mais ideal agrupar centenas de pessoas com a mesma doença no mesmo lugar. O mesmo pode ser feito
com os doentes mentais. Hoje, aqui, nós já atendemos a uma média de 70 pacientes. São pessoas, ou
seus familiares, que apenas vêm aqui para apanhar os medicamentos. Ou os próprios doentes, que têm
de se submeter a uma avaliação médica, de tempo em tempo.
— OK! Acho que agora nós já podemos conhecer o hospital, o senhor não acha? A gente continua
conversando, no caminho.
— Claro! — respondeu-nos o diretor.
A essa altura, o dr. Navantino já havia-nos impressionado o suficiente. Principalmente por suas
idéias, pelo orgulho confesso pelo hospital que dirigia. Mais ainda, ao contrário do diretor do Hospital
Galba Velloso, ele mesmo fez questão de nos acompanhar.
Nós fomos, então, conhecer o tão famoso “Raul Soares” de Belo Horizonte.
CAPÍTULO IV
A VÉSPERA DO INFERNO
O INSTITUTO Raul Soares foi mostrado por fora. Entrevistou-se o diretor, que confessou ter orgulho
da instituição. Agora é mostrado o hospício que ele encerra. O “orgulho” do Estado. Suas
enfermarias. Os corredores sombrios e os pátios. Os doentes. Homens, mulheres e um rapaz, de 16
anos apenas. Como no Galba, nenhum tratamento. Terapia alguma. Só drogas, confinamento e
eletrochoques. Reinternação de 55% dos casos. Pobres, pobres e pobres. Marginalizados e
desesperançados pelo próprio diretor, em seus comentários. Indivíduos que não querem luxo e
riqueza. Querem um psiquiatra, um psicólogo. “Um cigarrinho pra passar o tempo.” Apenas um pito,
como na beira do rio. Ou do inferno que já experimentam ali, antes de chegar a Barbacena.

Ventava muito neste dia. O Raul Soares parecia uma geladeira. E por dentro vimos logo que ele
não era nada do que o diretor levara-nos a imaginar.
Fomos, primeiramente, a uma enfermaria masculina, com 40 pacientes agudos, segundo a
terminologia médica. “UNIDADE N.° 2” — dizia a placa, na entrada. O dr. Navantino bateu na porta,
trancada por dentro. Bateu de novo, desta vez mais forte. Acendeu um cigarro. A atendente abriu.
Visualizamos um corredor comprido, escuro, com várias portas laterais. Estava na hora da faxina.
Fomos passando, um a um, pelos
dormitórios. Um ou outro paciente deitado. Outros lavando o chão ou a própria cama. E outros com a
cabeça entre os braços. Ao chegarmos ao pátio, o diretor do hospital fez logo uma observação:
— Estão vendo? Não falei? As clínicas particulares não têm uma área dessa, como nós temos!
Uma área cimentada, desolada e feia. Nenhum banco, apenas uma árvore. Um galpão velho e uma
série de latrinas fétidas, quebrando a paisagem. Um campo de futebol de salão sem bola, nem nada.
Alguns homens encostados nos muros, caídos na escada. Ou aos grupos, se olhando, gesticulando. A
maioria veio logo ao nosso encontro, andando como se fossem robôs. Estavam todos de uniforme
limpo:
— Essa vida é passagem — disse-nos o primeiro, apertando nossas mãos.
O segundo fez o mesmo:
— Me desculpe, doutor. O senhor tem cigarros?
— Tenho não. Eu não fumo — respondi.
O terceiro, rapaz ainda:
— Ô, doutor. Olha eu aqui. Tô com a cabeça embaralhada. Não quero ficar aqui, não. Posso ir
embora pra casa?
Eles continuaram acercando-se de nós, fazendo sempre questão dos cumprimentos:
— Tudo bem?
— Tudo bem.
— Tem cigarro?
— Não tenho.
— Êi, amigo! — um outro bateu nas minhas costas. — Tem cigarro? Não agüento mais de vontade
de fumar um cigarrinho.
— Mas eu não fumo.
Ele insistiu:
— Então compra pra mim?! Eu não sei das minhas coisas. Aqui eles somem com tudo da gente.
— Compro sim. Pode pedir para aquele moço ali — apontei o funcionário que nos observava, na
escada.
Ele foi lá, mas o funcionário negou, no caminho mesmo:
— Não! Não pode, não!
O dr. Navantino não disse nada. Saímos sem ter visto médico algum.

“MULHER É ASSIM MESMO


GOSTAM DE SE EXIBIR”

Fomos à 4.a UNIDADE.


Cinqüenta mulheres nuas e descalças, enroladas em cobertores vagabundos, disputando as frestas
de sol. Umas nos dormitórios, junto às janelas. Outras no corredor, andando pra lá e pra cá, tremendo
de frio. A maioria no pátio, debaixo de uma velha mangueira. Ventava muito. E elas ajuntavam, uma
a uma, todas as folhas que caíam da árvore. E improvisavam como algumas já haviam conseguido,
colchões de folhas sobre o cimento gelado e duro.
Um detalhe: Quase todas as pacientes nos cumprimentaram e pediram cigarro, um “pito pra
espantar a tristeza”. E também levantaram, em câmara lenta, em nossa direção. Jane começou a
fotografar. O dr. Navantino se inquietou. Achou que não deveríamos fazer aquilo. Lembramos-lhe que
aquilo partia de uma autorização do próprio secretário da Saúde. Ele permitiu. Mas comentou, visivel-
mente incomodado com a nudez das pacientes:
— Vocês não se impressionem, não. Mulher é assim mesmo, viu? Não sei por que, mas elas gostam
de se exibir. É horrível isso, não é?
— É mesmo — respondi.
Ele comentou:
— Não sei como essas funcionárias suportam isso. Essas mulheres [as pacientes] vivem chateando
a gente, querendo pôr a mão, encostar na gente.
Na mesma hora em que o dr. Navantino dizia isso, nós vimos uma atendente rindo a valer, abraçada
a duas internas, sem dentes e descabeladas.
Uma outra paciente nos abordou:
— Bom dia, doutor! O senhor vai levar eu?
— Eu não sou doutor.
— Mas eu respeito muito doutor...
— Sei, filha, mas o doutor é ele — apontei para o dr. Navantino, que já deixava o pátio.

“O DOIDO COMPLETO,
SEGUNDO O DIRETOR”

Fomos à 6.a UNIDADE, onde também não vimos nenhum dos 33 psiquiatras do hospital. Uma
enfermaria com 40 homens, um pátio imenso. Apenas os muros diferentes: pintados de azul.
Uma surpresa: Um homem forte, de bigode e barba feita, levantou-se rapidamente do chão e
caminhou em nossa direção, determinado. O dr. Navantino falou que ele era um “doido completo”.
Não deu tempo. O homem se aproximou:
— Bom dia! Vocês vão bem? Meu nome é José Márcio Franco da Silva. Sou pedreiro, tenho 35
anos, minha família mora no Riacho das Pedras. Eu estou precisando de areia, uns dois sacos de
cimento e tijolos tipo “baiano”. Ah! Pede também pra eles nos arrumarem umas telhas. Tenho que
fechar logo o galpão — disse, pedindo que fôssemos até lá, no galpão, verificar o estado de
conservação da construção.
Ele estava com razão. E ainda justificou assim sua preocupação:
— Estão vendo o perigo disso aqui? Além do perigo de uma telha daquelas cair na cabeça de um
de nós aqui, tem o problema daquele vão lá em cima. Outro dia, um rapaz subiu lá e, por pouco, não
caiu. Se acontecesse isso, ele tinha morrido. Não é de hoje que eu estou pedindo material para trabalhar.
Chegou um outro paciente:
— Tô com fome. Com vontade de fumar.
Apontei a Jane para ele, mas já era tarde. Ela já havia distribuído todos os seus cigarros. Ele
completou:
— Eu tenho dinheiro. Eles guardam ele. Não compram cigarro pra gente.
Ainda ali, na saída, um outro paciente nos abordou de maneira diferente. Apenas acenou a mão
direita e disse:
— Felicidade pra nós!

“NÃO QUERO FICAR AQUI.


EU NÃO SOU LOUCA!”

Foi a vez da 8.a UNIDADE. Trinta e cinco internas, nenhuma enfermeira, nenhum psicólogo.
Descemos uma escada, passamos por um corredor escuro e fétido. Um dormitório horrível. Camas
velhas, quebradas. Alguns pratos de comida no chão. Mais uma escadinha e o pátio. “Um campo de
nudismo”, segundo o diretor. Só que em condições mais miseráveis que as anteriores.
A mesma desolação. Uma sucessão de árvores frondosas, mas do outro lado do muro.
No meio das mulheres, uma moça chorava sem parar. Maria Aparecida de Oliveira, 20 anos, de
Guaxupé. Disse que estava indo apanhar o ônibus na Estação Rodoviária para São Paulo, quando tudo
aconteceu:
— Tive um traumatismo no pescoço, sei lá o que me aconteceu. Só sei que comecei a passar mal
e, de repente, eu me vi aqui. Falei com eles que eu não era louca, mas eles nem quiseram ouvir. Me
deram uma injeção, me vestiram esse uniforme horroroso e me jogaram aqui. Eu não quero ficar aqui,
não. Eu não sou louca. Quero ir para um lugar mais limpo. Aqui cheira mal. Eu morro de fome, mas
não como essa comida. Nem coragem de dormir nessas camas fedidas eu tenho. Que lugar nojento,
meu Deus! Essas... eu quero sair daqui. Não sou louca, não. Não sou...
Continuou chorando, sob o olhar silencioso das outras mulheres. O diretor do hospital mais atrás.

“ISTO AQUI É
O FIM DO MUNDO”

Passamos pela enfermaria mista. Foram quase 26 homens pedindo “um cigarrinho” ao mesmo
tempo. Uns até tinham as mãos trêmulas, tamanha a ansiedade:
— Imagina o que é ficar um dia só sem fumar?! — um deles argumentou — o senhor fica louco,
não fica? Pois é. Aqui a gente não fuma nunca. Eles não deixam. Não dão cigarro.
Na saída, um velhinho esticou-nos a mão, mostrando um pedaço de jornal enrolado, como se
pedisse pra colocar fumo dentro.
A 5.a UNIDADE, de mulheres, foi a próxima. O mesmo visual da 8.a. Nenhum médico, nenhuma
terapia ou tratamento. Tudo escuro. Um galpão desmoronando ao fundo, 26 mulheres espalhadas, feito
bicho, pelo pátio. Uma delas logo se acercou do dr. Navantino e, olhando o maço de cigarros que ele
trazia visivelmente no bolso da camisa, lhe pediu:
— Me dá um cigarro, doutor?
— Eu não fumo — ele respondeu.
Uma outra chegou perto da gente:
— Tô com fome.
— Você vai almoçar daqui a um pouquinho — disse uma atendente.
A paciente observou:
— Mas eu tô com fome agora. Dá comida pra mim?
E vieram outras:
— Quer casar comigo?
— Veio buscar eu?
— Tô toda machucada. Essas loucas aqui judiam muito da gente.
— Me dá um cigarro.
— Eu quero ir pra casa. Lá ninguém bate na gente.
— Isto aqui é o fim do mundo. Se é?! Aqui, ou a gente morre de rir, ou morre de tanto chorar.
— Tenho meus filhos pra criar.
Nesta enfermaria, também observamos um lance bonito. Como se fizesse cafuné, uma atendente
enrolava os cabelos de uma paciente, no meio do pátio, esquecida da vida.

“PARECIAM ZUMBIS
VARRENDO O CHÃO”

A 3.a UNIDADE, a última que visitamos. A mais terrível. (Antes, no caminho, o dr. Navantino nos
mostrou uma área verde, enorme, inaproveitada, nos fundos do hospital.) Passamos por uma espécie
de ante-sala, depois uma portinhola. Finalmente por um corredor, tipo curral, que dá acesso ao pátio.
Um pátio sujo e sem árvores, como os demais. Ninguém de branco. Quarenta homens completamente
drogados. Rostos tristes, acabrunhados, pelos cantos. Olhando pro céu, pras paredes, pra lugar nenhum.
Eles quase não notaram a nossa presença. O dr. Navantino também passou entre eles, despercebido.
Pareciam zumbis. Andando, varrendo o chão. Um galpão também aos pedaços. E, entre eles, um
menino de 16 anos.
— E então, estão satisfeitos? — perguntou-nos o diretor, que afirmara, antes, que não se internava
menor naquele hospital.
— Tem mais alguma coisa pra gente ver?
— Tem não — respondeu, aliviado.
A nossa visita havia terminado. Mas, antes de irmos a Barbacena, recebi um telefonema de uma
funcionária do Raul Soares, que se dizia revoltada com tudo aquilo. Disse que a recepção do Navantino
fora toda ela programada, de modo que não aparecessem as falhas mais gritantes do hospital.
Disse ela:
— Vocês não viram nada. Eles até lavaram os pacientes e colocaram roupa limpa neles, antes de
vocês chegarem.

★★★

ENFRENTANDO O ELETROCONVULSOR

Nossa visita ao Raul Soares não havia terminado ainda. Jane voltou ali, no dia seguinte, para
fotografar a aplicação dos eletrochoques, conforme fora combinado pelo diretor. Mas não lhe foi per-
mitido. Ela foi até a FHEMIG falar com o superintendente. Ele também não permitiu. A alegação,
oposta à recomendação do secretário da Saúde, era de que se tratava de um problema ético. Segundo
o dr. Archimedes Theodoro, isto feria a ética médica.
No dia seguinte, bem cedo — já que os pacientes são eletrocutados em jejum — fui ver de perto
se realmente era ético ou não aplicar tais tratamentos. Cheguei antes das sete horas e logo me
identifiquei. Por sorte, dirigi-me exatamente ao funcionário que aplicava os eletrochoques. Mesmo
assim, fiquei temeroso. Enquanto ele foi apanhar o material de rotina, fiquei no hall do hospital. Uma
funcionária, que me observava já há algum tempo, perguntou-me, de cara fechada:
— Você vai falar com alguém?
— Com o rapaz aí. Eu só me esqueci do nome dele. Mas eu já fui atendido, obrigado.
Ela continuou me olhando por algum tempo. Até parecia que eu estava fazendo alguma coisa
errada.
Quando, finalmente, o rapaz apontou no final do corredor, fui encontrar-me com ele, sem que essa
funcionária percebesse. Entramos na UNIDADE N.° 2. Ele foi explicando:
— Aqui nós aplicamos o ECT dia sim, dia não, exceto aos feriados.
— Mas, por quê?
— Você sabe como é, né? Os médicos também são filhos de Deus, têm o direito de dar uma viajada,
não é?
— E vocês aplicam ECT em todos os pacientes?
— Não. Em uns 15 pacientes homens e numas 10 mulheres, em média.
Chegamos no primeiro quarto, onde estavam três pacientes deitados. O aplicador do ECT, agora
acompanhado de um outro colega, continuou explicando o processo. Enquanto abria a caixinha de
madeira, à vista dos pacientes:
— Isso aqui é um eletroconvulsor (um aparelho com marcador de voltagem e duas tomadas, ligadas
a dois fios). E isso aqui se chama “ambu”, somente usado para emergências. Se o paciente tem uma
parada respiratória após o choque, como é comum acontecer, acompanhada de parada cardíaca, aí
temos de lançar mão deste aparelho (uma espécie de máscara nasal e bucal, de sucção).
O funcionário continuou explicando:
— O coração parou mais de 60 segundos, a gente então lança mão dele. Já isso aqui é um pedaço
de látex, uma espécie de borracha grossa, que é colocada na boca do paciente. Senão, ele quebra os
dentes, quando o eletroconvulsor for ligado.
— De quantos volts, e por quanto tempo, é a descarga elétrica?
— Bem, isso depende. Nos homens, geralmente nós aplicamos 120 volts. Nas mulheres, temos que
aumentar a dosagem um pouco. Eu, por exemplo, aplico uns 130 volts. A mulher é muito mais resis-
tente que o homem.

“ÉTICA MÉDICA”

Teve início a sessão.


O primeiro foi um rapaz ainda, de uns 25 anos, que acompanha a nossa conversa com os olhos
arregalados. O ajudante do aplicador de ECT subiu — literalmente — em cima dele e colocou uma
perna em cima de cada braço, assentando-se sobre sua barriga, imobilizando-o completamente. Passou
um algodão molhado nas duas frontes do paciente, segundo ele, para aumentar o contato e passar maior
carga elétrica. Colocou o látex na boca do rapaz e segurou, firme e com as duas mãos, o seu queixo. O
rapaz ficou olhando pra cima, sob o olhar passivo, alheio, dos outros dois pacientes.
O aplicador chegou por trás. Colocou as duas tomadas, de uma só vez, na sua cabeça.
O rapaz deu um grito. E começou a pular sem parar, na cama. O corpo entrou todo em convulsão.
Os olhos pulavam tanto, pareciam que iam saltar das órbitas. Começou a babar e gemer, enquanto
continuava se contorcendo todo, violentamente.
O funcionário segurou seu queixo, por algum tempo. Depois, virou-o de costas, ainda em
convulsão. Uma secreção branca, espécie de gosma, começou a sair pela boca e pelas narinas, de modo
a não asfixiá-lo. E passou para a outra cama. Subiu em cima do outro paciente, molhando sua testa na
mesma região, mecanicamente.
— Quero não...
Ele não disse nada.
O paciente insistiu, quase sussurrando:
— Quero não.
A entrevista continuou:
— Você deve estar impressionado, não está? — disse-me o aplicador. — A primeira vez é assim
mesmo, depois você se acostuma.
Eu perguntei:
— Mas vocês não podiam fazer isso, pelo menos, longe da vista do outro? Olha como esse homem
está! Ele está morrendo de medo!
— Tem problema, não. O cabra já vem pra cá meio lerdo. Antes de chegar aqui, ele já passou no
psiquiatra que prescreveu o ECT. Já foi devidamente examinado e medicado para isso. E tem mais:
depois que toma o choque, o paciente não se lembra mais de nada. Nem se doeu.
E aplicou o segundo eletrochoque, enquanto o primeiro paciente ainda tremia todo na cama. A
mesma cena, terrível. Só me recordo da última explicação dada pelo aplicador:
— Você tem de compreender. Se a gente não aplica o ECT, o indivíduo fica aqui um tempão. Com
o eletrochoque, isso não acontece. Ele vai embora logo. Esse aqui, por exemplo [referindo-se ao
próximo] já é a quinta vez que vem aqui. Mas ele vai receber alta logo, logo. O hospital ia até implantar
terapia de grupo aqui, mas teve de desistir da idéia. Isso fica muito caro. E esse é um hospital de
indigentes. Um hospital que não dá lucro.
Fez uma pausa. E continuou sua tarefa.
CAPÍTULO V
BARBACENA: A FACE POLÍTICA DA LOUCURA

POR QUE BARBACENA é uma prisão? Uma mente, uma medida econômica, não um coração? Uma
prisão perpétua, campo de concentração? Um hospício, jamais um hospital, uma casa de saúde? Ou
“Centro Psiquiátrico”, como o governo quer rotular? Qual a razão das grades, dos eletrochoques,
das celas e dos altos muros acinzentados? A luta obstinada dos pacientes pela liberdade, pelo
suicídio? Por que a população brasileira não gosta nem de ouvir falar dali? Trata-se realmente de
uma viagem sem retomo? Uma peregrinação ao principal celeiro de cadáveres das nossas faculdades
de medicina? E por que uma realidade tão desumana como esta perdura até os dias de hoje, se
Barbacena é justamente uma terra de políticos influentes? É o que respondemos hoje, antes de
percorrermos os seus pátios, as suas enfermarias. O lugar, a vida que ali não é vida. É apenas uma
passagem. Sofrida e dolorida. Real.

Chegamos em Barbacena, pela manhã. Mas erramos o endereço. Fomos parar no Manicômio
Judiciário, no alto da cidade. De lá pudemos avistar, mais abaixo, o tão famoso Hospital-Colônia. O
último estágio público da loucura em Minas.
Descemos e tornamos a errar o caminho. Entramos pelos fundos do hospital. Uma entrada pobre,
vários montulhos de lixo e falta de capina. O primeiro “Bom-dia”, o primeiro aceno amigo. Alguns
doentes, vestidos de azul descorado, pelo chão. Pavilhões velhos, acinzentados, enfileirados. Vidros e
basculantes quebrados. Um pontilhão, uma “farmácia” e o necrotério. Uma espécie de cidadezinha do
interior. Mais outros pavilhões, um calçamento de pedra e, finalmente, o prédio da administração.
Eram umas 11 horas quando chegamos no gabinete do diretor. Ele não estava. Demos uma volta e
ele chegou. Esperamos uns 15 minutos na recepção, quando a secretária nos fez entrar.
As primeiras palavras do psiquiatra José Theobaldo Tollendal, diretor do hospital, foram de uma
frieza contagiante:
— Mais jornalistas? O que é que vocês querem aqui? Vocês não se cansam disso, não? Eu não
tenho muito tempo, não!
— Mas, dr. Tollendal... quem nos mandou aqui foi o dr. Archimedes, superintendente da FHEMIG,
atendendo a determinação do próprio secretário da Saúde. Foi ele quem nos mandou procurá-lo...
Ele interrompeu, irritado:
— Foi o secretário?! É, eles me avisaram, sim. Mas eu já não estou agüentando mais isso aqui.
Eles ficam lá, de Belo Horizonte, só mandando gente aqui. Não agüento mais jornalista. Outro dia foi
a televisão. O que vocês querem? Mais uma reportagem? Não vejo originalidade alguma nisso. Aqui
já foram feitas várias reportagens, nenhuma adiantou.
Ele apanhou uma pasta de recortes de vários jornais e revistas, inclusive de O Cruzeiro, nos seus
áureos tempos. E apontou:
— Olhem aí!? Tudo que tinha de ser mostrado, já foi feito, sem resultado.
— Mas, dr. Tollendal — tentei explicar — o nosso objetivo aqui não é fazer sensacionalismo pura
e simplesmente, não. Nós nem viríamos aqui para isso. Queremos mostrar a situação, apontando as
falhas e as causas, no sentido delas serem reparadas. Esta, inclusive, foi a recomendação do secretário.
Ele disse-nos que a única maneira de sensibilizar o Governo federal seria essa. Pôr pra fora, e não
esconder, a realidade.
Ele amenizou um pouco sua irritação e se dispôs a nos atender. Embora frisando que não tinha
muito tempo:
— Vamos lá. Sou diretor daqui há 10 anos. Sou psiquiatra, formado em 1945. Entrei aqui aos 22
anos, e estou até hoje. Aqui chega doente de todo o Estado. A maioria, 90% dos casos, vem de Belo
Horizonte, do Raul Soares. O restante vem direto daqui da região mesmo. Vêm direto dos 72
municípios que contém a Zona da Mata, por uma questão de economia. Até eles irem pro Raul Soares
e terem, depois, de ser despachados... estamos com 1.360 leitos, atualmente: 717 mulheres, 640
homens e 38 crianças.
— E qual o tratamento que essas pessoas recebem aqui?
— Dois tipos. Em se tratando daqueles que nos chegam do Raul Soares, apenas continuidade
normal do tratamento recebido lá em Belo Horizonte. Aos outros, damos os primeiros cuidados em
ambulatórios, para triagem posterior. Eles ficam em tratamento intensivo até 60 dias no máximo.
Depois são transferidos aos setores correspondentes. A verdade é que não temos nenhum tipo de
tratamento aqui, nem terapia ocupacional. Trata-se de aproveitamento empírico tão-somente.
— E a alimentação?
— À base do padrão do povo brasileiro mesmo. Aqui não temos nenhuma nutricionista. Os doentes
não cabem todos, de uma só vez, nos refeitórios. Entram uns 100 primeiro, depois outros 100, até todos
comerem. O serviço de cozinha é feito por oito funcionárias somente. Oito funcionárias para preparar
comida para 1.360 doentes. A gente também não tem como pagar, em dia, os nossos fornecedores. Às
vezes eles ficam até três meses sem receber. Para o hospital-colônia propriamente dito, que fica a
quatro quilômetros daqui, a comida tem de ser levada de carreta, de caminhão. Isso todo dia, de manhã
e à tarde, já imaginaram o drama?
— Quantas refeições?
— Três mil por dia. Gastamos uma média de seis mil dúzias de ovos por mês. Só de frango, uns
2.500 quilos por mês. De carne, 2.800 quilos. Mais 20 mil litros de leite e 108 mil pães todo mês. Outro
dia veio um repórter aqui, que depois meteu o pau na nossa comida. Ele disse que não viu os pacientes
comerem nada disso. É que ele não sabe que trituramos tudo primeiro, e depois misturamos no arroz e
no feijão. Daí a impressão de que não damos carne aos doentes. O fato é que não podemos dar talheres
a eles, tipo faca e garfo.
— Por quê?
— Eles os usariam para outro fim. Se matariam!
— Se matariam?
— É. Outro motivo, é que a maioria dos nossos doentes já não tem mais dentes para mastigar.

UM MÉDICO APENAS
PARA 200 DOENTES

— E o corpo médico do hospital?


— Corpo médico? — ele riu — aqui, cada pavilhão com 200 doentes, tem somente dois
funcionários para olhá-los. Assim mesmo, sem qualquer qualificação médica. São apenas umas moças,
umas heroínas. Não temos nenhum médico de plantão aqui. Somente seis psiquiatras para atender a
1.360 doentes, em constante rotatividade. Um entra-e-sai de 120 doentes por mês. Na verdade, só
temos uma enfermeira formada, mais uma meia dúzia de atendentes.
— Aqui também não há médico clínico?
O diretor fez outra cara de ironia. E continuou falando, já bem mais descontraído:
— Temos só seis deles para tratar de todos os casos de doença aqui. Tuberculose, doença de
Chagas, verminose etc. Pior é o nosso quadro de psiquiatras. Enquanto o Ministério da Saúde
determina uma taxa mínima de um psiquiatra para cada 20 doentes agudos nas clínicas particulares, e
um psiquiatra para cada 60 doentes crônicos, se tratados pelo INAMPS, aqui temos só um médico para
cada grupo de 200 doentes.
— Isso é verdade?
— Pra vocês verem. Até a Faculdade de Medicina aqui de Barbacena (que pertence à Fundação
Presidente Antônio Carlos, criada exclusivamente para assistir aos doentes mentais) só participa do
atendimento com oito alunos-estagiários, que nós chamamos de bolsistas. Assim mesmo, só aparece
um deles aqui, por semana. São acadêmicos que recebem uma bolsa de Cr$ 3.400,00 por mês. Se não
fosse por isso, eles nem viriam.
E passou a falar do corpo médico não-diplomado do hospital, o pessoal leigo:
— Estes sim. Eles são atualmente 180 funcionários, regidos pela CLT, e dão oito horas de serviço
diário. Como já disse, para cada um dos nossos 16 pavilhões, ou seja, para cada 200 loucos, nós temos
duas moças para tomar conta. É isso que vocês deveriam mostrar ao público. Quem merece placa de
bronze não é o nosso governador, o nosso secretário de Saúde, e sim essas moças. Meninas ainda, de
17-18 anos, que passam a noite inteira, sozinhas, com essa quantidade de doentes. Lavando-os,
limpando suas “necessidades”, pondo comida na boca, fazendo tudo.
— E elas não correm perigo?
— Perigo de quê? O louco sabe quem gosta dele. Sabe quem é seu amigo.
Continuou falando:
— É impressionante a quantidade de mulher que se candidata para trabalhar nisso aqui. Uma média
de 150 candidatas para cada 10 vagas somente. E olha que, há uns 10 anos atrás, aqui só entrava gente
com bilhetinho de político. Mas, graças a Deus, isso mudou. Nos nossos testes de seleção, que
examinam mais a condição psicológica que intelectual do candidato, só passa mulher. No último teste
que fizemos, passaram 18 mulheres contra dois homens apenas. Pensem bem, candidatar-se para
ganhar salário-mínimo, para passar dia e noite com loucos. Uma para cada 100 deles.
— E como é a estrutura física do hospital?
O dr. Tollendal fez uma pausa. Passou as mãos nos bigodes. E respondeu:
— Para vocês terem uma idéia, os nossos pavilhões mais modernos datam de 1940. Este hospital
foi construído em 1903, dentro daquela concepção psiquiátrica reinante no início do século. Muros
altos, grossos, pátios no meio, tipo senzala, onde os doentes ficam confinados. É isso que vocês vão
ver aqui. Ao contrário das enfermarias, nós temos uma área verde de oito milhões de metros quadrados.
Só que os doentes não podem utilizá-la. Eles não podem passear por aí. Eles não têm quem os
acompanhe, para qualquer emergência. E a gente não pode deixá-los sozinhos.

“DE REPENTE, O DOENTE


CAI MORTO, DE CHAGAS”

— E a assistência?
— Assistência? Que assistência? — o diretor do hospício faz uma cara de espanto. — Aqui não
tem nem um aparelho de abreugrafia. Pra fazer exame, temos de colocar os pacientes (1.360 internos)
em um ônibus e levá-los ao posto de saúde da Secretaria de Saúde, que fica no centro da cidade. E
quantas vezes nós fizemos isso para, quando chegarmos lá, depararmos com o posto fechado? A gente,
então, tinha de colocar os pacientes todos dentro do ônibus, novamente, e voltar com eles pro hospital,
sem exame algum.
— E por que vocês não pedem um aparelho desses ao secretário de Saúde?
— Ah!? e vocês pensam que eu já não fiz isso? Eu estou é cansado de tanto pedir. Já faz 10 anos
que estamos tentando isso. E quando sabemos que, em Belo Horizonte, existem dois aparelhos
simplesmente encostados, sem nenhuma utilização.
— Então, como é que vocês se arranjam aqui?
— Com muita dificuldade, conseguimos vacinar os doentes contra a varíola. Isso mesmo, só de
vez em quando. Já tivemos casos, e eles foram vários, de contaminação geral em quase todo o hospital.
Uma vez, por falta de exame, descobrimos um pavilhão de 200 pacientes todos tuberculosos. A doença
já tinha contaminado todos eles.
— Mas...
— Aqui não se faz pesquisa alguma. A gente nem sabe de que os doentes morreram. Às vezes, tem
um paciente conversando com você e, de repente, ele cai pra trás, morto. A gente vai ver, ele estava
com doença de Chagas. Isso é muito comum aqui.
— E por que a Secretaria de Saúde não lhe dá condições de implantar um serviço de prevenção
médica, aqui?
O dr. Tollendal, desta vez, fez uma careta. Foi como se houvéssemos perguntado-lhe o óbvio:
— Falta de uma visão maior. Eles só pensam em economia, economia. Não vêem nunca o aspecto
humano do problema.
— E qual o reflexo prático disso?
— A começar pela ausência total de uma medicina preventiva e curativa, aqui. Em um hospital
como esse, onde falta até um simples aparelho de abreugrafia, é claro que a infecção hospitalar torna-
se muito grande. O indivíduo entra aqui com problemas mentais, embora muitos já venham pra cá com
outras doenças, e acaba sendo contaminado pela própria situação que vocês vão ver, dentro em pouco.
E isso sem falar na falta que faz o contato humano. Sem ter com quem conversar, a ansiedade deles
aumenta em progressão geométrica. Frustrados, por não haver essa correspondência, que é natural no
ser humano, isso faz com que apareçam neles uma série de outras doenças, como úlceras nervosas,
todas causadas por um mecanismo psicossomático.
Continuou explicando:
— É o caso dos nossos pacientes paralíticos. Nós temos 72 deles aleijados, cegos, surdos, mudos,
pessoas que necessitam do dobro de atenção e cuidados médicos. Resultado: estas pessoas, que têm de
ser removidas daqui pra ali, que têm de receber comida e remédio na boca, também só contam com
duas funcionárias para olhar por elas. É por isso que esses pacientes passam o dia inteiro jogados nas
camas ou pelos pátios, entre moscas e ratazanas.
— Mas... não há meios de modificar essa situação?
— Soluções existem, é claro! Mas quem está interessado nelas? A gente tinha de dobrar a folha de
pagamento dos funcionários, dobrar o número de médicos, de enfermeiras. Aproveitar, enfim, essa
imensa área verde que temos ociosa. São oito milhões de metros quadrados, gravem isso. Mas, vejam
bem. Há três anos, nós pensamos em reformar dois dos nossos pavilhões aqui. Mas não o fizemos.
Sabem em quanto ficaria isso, naquela época? Em 6 milhões de cruzeiros. E para reformarmos todos
os nossos 16 pavilhões, hoje?

“UM HOSPITAL POLÍTICO


E NÃO TERAPÊUTICO”

Esta foi a última pergunta que fizemos ao diretor do hospício:


— Por que Barbacena?
Ele pensou um pouco, antes de responder:
— Vocês são muito novos ainda. Isso aqui é terra de políticos. Este hospital foi criado em
Barbacena por questões meramente políticas. Jamais foi considerado o aspecto médico-terapêutico
desta cidade que, a meu ver, deveria ter sido a última a ser escolhida no País para este fim. Ao invés
de construírem este hospital lá em Muriaé, em Carangola, numa região mais quente, eles preferiram
aqui, por meros interesses pessoais. A preocupação não foi com a saúde de ninguém, e sim fazer disso
aqui uma fonte de empregos, de votos para os senhores políticos da região. Basicamente, é isso.
— O senhor quer dizer...
— Quero dizer que, aqui em Barbacena, durante os meses de inverno, a temperatura cai a zero
grau, permanecendo assim durante vários dias. Pensem bem o que isto significa para os nossos
doentes? Pessoas que têm um vestuário pobre, apenas uma roupinha de brim, um cobertorzinho por
cima do corpo?
— O que acontece?
— Aumenta o obituário, imediatamente. Como os nossos doentes são basicamente gente pobre,
miserável, que já vem pra cá desnutrida e com todo tipo de doença, com o frio, a sua própria introversão
aumenta também. E agrava o seu estado físico-psicológico. Por isso é que os óbitos aumentam tanto,
nesse período. Antigamente, quando havia mais internos neste hospital, chegava a morrer perto de 100
pacientes no inverno. Atualmente, morre em média 15 a 16 pacientes somente. Agora, mesmo fora do
inverno, quando isso aqui fica completamente lotado, o número de óbitos também aumenta, na mesma
proporção.
— E isso tende a continuar assim?
— Ué? — respondeu o diretor, mostrando-nos novamente a sua pasta de recortes. — Só se vocês
mudarem a estrutura política-social do País. Deem uma folheada nisso aí. Vocês vão ver quantas
reportagens já foram feitas aqui, quantos deputados se promoveram, ganharam votos defendendo os
doentes, dizendo-se comovidos com a situação. Eles só conseguiram os votos. Não resolveram nada.
— Mas o senhor deve estar acompanhando a reação da classe médica, principalmente dos
psiquiatras, em Belo Horizonte, não está?
— Claro que estou. Acho até bonito eles se preocuparem com a situação, estarem tentando
humanizar a psiquiatria. Acho válida a posição do secretário de Saúde. Mas eu não me iludo. Vocês
não podem esquecer que o Brasil é um país administrado por crises. A hora que passar essa fase de
denúncias, esse vendaval, eles esquecerão disso tudo. E tudo continuará como está.
— O senhor não tem esperança alguma?
— Se eu não tivesse, não estaria mais aqui.
A entrevista havia terminado.
O dr. Tollendal nos acompanhou até a saída do seu gabinete, apresentando-nos uma de suas
“heroínas”. Celina, 25 anos, casada e mãe de dois filhos, moradora em Barbacena. Disse ele:
— Celina, eles são de Belo Horizonte. Você pode mostrar tudo para eles, está bem?
Nós fomos, finalmente, conhecer o mais famoso hospício do País.
CAPÍTULO VI
CONHECENDO O INFERNO DE PESSOAS VIVAS
HOJE nós começamos a percorrer o “Centro Psiquiátrico” de Barbacena como o governo insiste em
rotular. Os primeiros de seus 16 pavilhões. Suas enfermarias, seus pátios. Onde não encontramos os
loucos terríveis que supúnhamos encontrar. Seres humanos como nós. Pessoas que, fora das crises,
vivem lúcidas o tempo todo. Sabem quem são, o que fazem ali. O que os espera, no fim de mais alguns
dias, alguns anos. Pessoas que pedem para ser fotografadas, pedem a publicação de seus nomes.
Insistem em voltar à sociedade, à família, ao afeto, à liberdade. Nem todas, porém; as alienadas de
tão drogadas, de tantos choques, tanta prisão, as crianças que não conseguem nem se locomover. Mas
a maioria, uma grande maioria que insiste em ter esperança. A esperança de serem tratadas como
seres humanos que ainda são. Ainda dá tempo.

Estava na hora do almoço. O primeiro pavilhão que Celina, a atendente, nos levou para conhecer
foi o pavilhão “Crispim Jacques”. Onde ficam os pacientes crônicos. Os mais antigos, indigentes, que
nunca receberam uma visita sequer. Ficam ali até a morte.
Atravessamos novamente o pontilhão e fomos por uma estradinha de terra. Chegamos lá, o mesmo
ritual. Celina bateu na porta grossa, verde, de madeira:
— Abre! Sou eu!
Uma outra atendente abriu. A gente se deparou com um campo de concentração, como havia-nos
advertido. Duzentos e sessenta homens reunidos em um pátio de apenas 300 metros quadrados.
Dividido em uma parte aberta, cercada por muros intransponíveis. E outra, um galpão escuro, fétido.
Umas mesas compridas de pedra, eles almoçando. Todos os 260 pacientes nus e sujos. Muitos ma-
chucados, sangrando, com feridas pelas pernas, pelos braços. Uma comida de aparência horrível.
Esbranquiçada, servida em pratos de lata. Apenas colheres. A maioria comendo com as mãos mesmo,
de toda maneira. Obedecendo às atendentes, como se fossem meninos.
Os menos alienados percebem nossa presença. Cumprimentam-nos, afetuosamente. Mas apenas
pegam em nossas mãos. Não dizem uma só palavra. Não conseguem. Apenas sorriem, fazem caretas,
gestos e mímicas. Andam pra lá e pra cá, como bonecos animados, sem opinião. A maioria é de cor
preta. Todas as idades. Meninos, rapazes e homens velhos, de cabelos totalmente brancos. Apenas
alguns são diferentes. Fazem questão de abraços.
Foi quando percebemos, no meio deles, a figura de um rapaz vestido. Sem a cabeça raspada, para
evitar a propagação de piolhos, como os demais. Ele nos olhou assim meio envergonhado, mas sem
desviar o olhar. Fui ao seu encontro:
— Peraí — disse-lhe, pra seu espanto — eu te conheço de algum lugar, de Belo Horizonte. Como
é que você se chama?
— João Batista — ele respondeu.
— João Batista ...
Aquilo não me disse nada. Mas eu tinha certeza de conhecê-lo de algum lugar. Do Maleta, da
faculdade, das farras, não me recordava de onde.
— Mas o que você está fazendo num lugar desse?
— Bebida, sô ... eu não sei o que acontece comigo. Eu tento parar de beber, mas não consigo. Já é
a quinta vez que me internam aqui.
— Quem?
— A minha família. Eles não acreditam mais em mim. E me colocam aqui pra nunca mais saberem
de mim. Daqui a gente só sai morto. Olha esse pessoal aí, procê ver. Eles só estão esperando a morte.
Conversamos mais um pouco. Pedi para uma atendente me arrumar umas folhas de papel e uma
caneta emprestada. E passei para ele:
— Faz o seguinte, João. Você vai ter que me ajudar, pois ainda tenho de rodar todo o hospital.
Escreva aí tudo o que quiser. Depois a gente volta, para apanhar o papel, tá legal?
Ele quase chorou de felicidade.
Nós fomos conhecer, então, o dormitório do pavilhão. Antes, passamos por uma outra área. A área
das privadas. As paredes todas sujas de fezes, na falta de giz e tinta para pintar, se expressar. Muita
urina empoçada, gente no chão, entre moscas. Homens de até 70 anos, meninos de apenas 12 anos.
Uma escadinha, mais uma porta grossa de madeira. O mesmo ritual, o primeiro lance das celas,
antes do dormitório propriamente dito. Um rapaz lá dentro, deitado. O prato de comida do lado de fora
das grades.
Perguntei à atendente:
— Por que ele está preso?
— Ladrão de ovo.
— Ladrão de ovo?
— É. Ele rouba comida dos outros. Por isso vai ficar aí, bonzinho, até prometer que não vai mais
fazer isso.
— Tudo bem? — perguntamos pra ele.
Ele olhou pra gente. E sorriu.
Passamos por outras celas, pelo dormitório fétido. E chegamos à “farmácia” do pavilhão. As
mesmas atendentes que ajudavam no refeitório estavam agora preparando a próxima dose de remédios
pros pacientes. Prateleiras e mais prateleiras de Haldol, Neozine, Amplictil e Akineton. Remédio pra
verme, pra diarréia, e vitaminas.
— Eles tomam esses remédios todos os dias?
— Três vezes ao dia. Às 8, 14 e 18 horas.
— E por que as celas?
— Acontece que, pra maioria deles, os remédios já não fazem mais efeito. Eles estão aqui já há
bastante tempo.

CRIANÇAS NO BERÇO
ESPERANDO A MORTE

Fomos conhecer a enfermaria “Austregésilo R. de Mendonça”, que fica ao lado da cozinha.


Caminhamos um pouco. Visualizamos os oito mil metros quadrados que compõem a área total do
hospício. E entramos depois, no pavilhão, em reformas. Duas pacientes vieram beijar nossas mãos.
Acharam que fôssemos médicos. Uma outra pediu pra Jane tirar um retrato seu.
Nada diferente até o final do corredor. A mesma escuridão, falta de ventilação, um cheiro acre no
ar. Conhecemos a sala de lobotomia, onde se realizam operações no cérebro dos pacientes, para contê-
los. Celina explicou:
— Isso aí tá meio parado. Pelo que sei somente três pacientes foram operados aqui, até hoje. Eram
pacientes muito agressivos, irrecuperáveis.
— Não fazem mais operações, não?
— Está faltando médico.
Saímos dali. E fomos à enfermaria de crianças. A parte de psiquiatria infantil. No caminho,
cruzamos por uma senhora idosa, que se dizia a mais antiga do hospício, vivendo em regime de semi-
internato. Ela gritava, ao mesmo tempo que caçoava da gente:
— Cuidado com os ratos, hein? Aqui tem cada ratazana deste tamanho! — e ficou conversando
com Jane, contou sua vida.
Subimos por uma escada de pedra. Ao lado, uma velha olhava- nos assentada, tendo um gato de
companhia. Entramos na primeira sala, o quadro mais doloroso até então. Uma sequência de caminhas
de madeira, tipo berço, com crianças dentro. Crianças débeis mentais e aleijadas. Crianças de dois,
três, quatro, cinco e até seis anos de idade. A maioria com as pernas e os braços bastante crescidos,
pro lado de fora, por não terem outro espaço. Uma coisa muito triste, difícil de se acreditar.
— Elas ficam nessas caminhas a vida inteira?
A única funcionária da enfermaria, para olhar por todas aquelas crianças, respondeu:
— A gente põe as caminhas todo dia lá fora, pra elas tomarem um solzinho.
— Mas essas crianças não têm famílias, parentes?
— A gente nem sabe quem são, como chamam, de onde vêm - respondeu a atendente.
— Mas elas não crescem? Não saem daqui?
— Crescem sim. Mas só vão até os 18, 19, 20 anos. Não passam disso.
— E o que acontece com elas?
— Ué? Elas morrem.

“TIRA EU DAQUI, DOTÔ


PELO AMOR DE DEUS”

Deixamos a sala e fomos ao pátio, onde estavam as crianças não- aleijadas, entre moscas e fezes.
Um esgoto aberto, muito fedor, cimento e nada mais. Nenhum brinquedo, qualquer distração. Somente
pneus velhos. Um menino, babando, parecia estar desacordado. Um outro bebendo uma água imunda,
no tanque. Apenas isso.
Celina perguntou se gostaríamos de conhecer a enfermaria dos pensionistas, já que havíamos visto
uma de indigentes. Levou-nos, então, ao Pavilhão “Galba Velloso”, só de mulheres, pacientes agudas.
Passamos pela sala de visitas, toda arrumadinha, com televisão, onde os pacientes são mostrados
aos seus familiares de banho tomado e arrumadinhos para a ocasião. Depois de uma outra porta, passa-
mos pelas celas, uma situação totalmente inversa. Três mulheres presas entre urina e fezes. Uma
gritava, duas choravam, desesperadas:
— Tira eu daqui, dotô — dizia a primeira. — Pelo amor de Deus!
A outra, entre lágrimas que desciam pelo rosto, o pescoço, o
corpo afora:
— Um cigarro, por favor! Só um cigarrinho ...
Fomos ao pátio.
A mesma desolação, um galpão aos pedaços. As mulheres, algumas nuas, deitadas pelo chão. A
maioria vestida, sentada num banco de cimento. Nenhuma agressividade, nenhum horror. Apenas
alguns lances de pudor, de vergonha. E uma lucidez impressionante em quase todas elas,
surpreendente:
— Eu me chamo Josefina — disse a primeira. — Procura o “seu” Francisco lá em Belo Horizonte,
pra mim? Ele é meu irmão. Tra
balha na Feira dos Produtores. É só chegar lá e perguntar pelo seu Francisco, que todos o conhecem.
Fala pra ele me tirar daqui. Aqui, tudo é ruim.
Chega Hildinha. E nos diz:
— Há seis anos que estou penando aqui, ao lado dessas coitadas. Você acha que eu sou louca?
Outra, que, segundo suas colegas, repete uma mesma frase desde 1966, quando foi internada ali:
— Eu vou embora hoje.
Mais familiarizadas conosco, as pacientes improvisaram uma roda em torno. Conversaram
descontraidamente. Rimos muito. Afinal, todas queriam falar ao mesmo tempo e isso gerou uma
confusão muito engraçada.
— Meu nome é Isabel de Lima. Sou de Coronel Fabriciano. Faz um ano e um mês, exatamente,
que minha família me abandonou aqui. Eles nunca mais voltaram aqui, nem pra me visitar. Escreve
isso no seu jornal, faz favor!
Foi a vez de Maria Jacinta, de apenas 18 anos:
— Eu moro no Bairro das Indústrias, na Rua Domita, número 348, lá na Cidade Industrial. Sou eu
que dou banho nos doentes e lavo tudo isso aqui.
Todas balançaram a cabeça, confirmando. Eu perguntei:
— E o que você acha daqui?
Ela olhou para a funcionária da enfermaria lá atrás, e sussurrou no meu ouvido:
— Eu não acho nada. Aqui, basta a gente acender um cigarro, emprestar o fósforo para outra colega,
que eles põem a gente na cela. Você saiu do normal, não obedeceu as ordens, é prisão nocê.
Josefa Gomes da Silva, 55 anos, desquitada e mãe de três filhos, natural de São Paulo também quis
falar. Segundo suas colegas, ela é a única paciente daquela enfermaria que não ficou na cela até hoje,
devido ao seu bom comportamento.
Ela diz tranquila, o olhar firme:
— Você está vendo a nossa situação, não está? Veja o meu caso, por exemplo. Eu estou aqui há
um ano e sete meses, mas isto não significa que eu estou imprestável. Eu sirvo ainda para trabalhar
fora, fazer qualquer coisa útil, não sirvo?
— E você? - perguntei a uma moça que me olhava atentamente. — Por que você veio parar aqui?
— Maconha — ela respondeu.
— Só por isso?
— Só.
— E o que você acha daqui?
Ela buscou uma espécie de diário, retirou duas folhas escritas e me entregou. Estava preocupada
com a funcionária da enfermaria, que continuava olhando pra frente. Guardei logo os papéis, para lê-
los depois.
Estava escrito:
“Aqui, a injustiça prevalece contra a justiça. Eu estou neste lugar desprezível há dois anos e três
meses. Acho, ou melhor, tenho certeza absoluta, que aqui, quem passa só pra conhecer e também quem
é internado, já pagou seus pecados como eu. Imaginem vocês, um lugar onde se pensa que o diabo
deixou seu rabo perdido. Um lugar onde se tem 0% de bom e 100% de ruim. Um lugar onde as almas
se contraem, se curvam, se esquivam, mas são sempre atormentadas pela injustiça.”
Continuava ela, em seu diário:
“Pense nos rostos transfigurados pela dor, marginalizados pelo sofrimento. Onde os seres supremos
são incapazes de mostrar-se como são. Usam máscaras que deformam, máscaras de cinismo, de tirania,
cheios de medo de perderem o lugar de tiranos. E que, às vezes, gostam de enganar-nos com máscaras
de compreensão, bondade, caridade. Mas olhem bem no fundo dessas pessoas. Sabe o que encontrarás?
Hipocrisia fedendo, autodestruição e todos os males do mundo. Imaginaram? Pensem bem se isso não
revolta a gente! E não cura. Eu acho que Deus não abençoou este mísero lugar.”
Uma outra paciente também nos entregou um de seus escritos. Foi quando ficamos sabendo da
vida espiritual, como única opção, que elas levam ali. Isto, antes de conhecermos o Hospital-Colônia
de Barbacena propriamente dito, quatro quilômetros adiante.
CAPÍTULO VII
“VOCÊ GOSTA DE DEUS? NÓS SOMOS DEUS”

CRIANÇAS pelo chão, entre moscas. Nenhum brinquedo, um psiquiatra qualquer. Pessoas aleijadas,
arrastando-se pelo chão, feito bicho. Agrupadas para não serem pisoteadas na hora da comida.
Esperando a maca, a liberdade somente possível através da morte. Completando a realidade do
“Centro Psiquiátrico de Barbacena”. O hospício que continua quatro quilômetros mais abaixo. O
famoso “Hospital-Colônia”. Um asilo medieval, de pedra e barras de ferro. Úmido, frio e indesejável.
Celas e eletrochoques, todas as torturas médicas. Nenhuma assistência ou calor humano. Como em
um campo de concentração. Farrapos humanos, homens e mulheres pelos pátios. Pedindo um “dotô”,
um violão, um cigarrinho. Seres humanos rotulados de loucos. Loucos que sabem seus nomes,
endereços e sentimentos. Gente que implora socorro, dizem- se Deus para comover quem acredita
n’Ele. Vivendo, agora, mais uma vez, a esperança oficial. A esperança de serem ouvidos pelas
autoridades. Pelo governo, em seu desespero.
Após conhecer os três tipos principais de enfermarias do Centro Psiquiátrico — para indigentes,
pensionistas e crianças — ainda fomos ao “Pavilhão dos Aleijados”, antes de descer, quatro quilôme-
tros abaixo, ao Hospital-Colônia propriamente dito. Cruzamos uma salinha bonitinha de visitas, o chão
encerado recentemente. Um corredor, e chegamos aos “loucos aleijados”, no pátio. O quadro mais
deprimente. Quase 50 homens, 25 mulheres, algumas crianças, vários velhos. Uns cegos, outros
surdos, a maioria dessa gente, paralítica. Gente suja, mal vestida e nua. Arrastando-se pelo chão, na
falta de pernas, de muletas, de companhia. Promiscuidade, horror visual. Apenas o sol forte e os muros
altos, desenhados somente à altura dos braços. Gente de todo tipo, mendigando nada mais que a morte,
um cigarrinho.
— Por que eles ficam aqui, nesse lugar?
Celina responde:
— Porque eles têm de ficar isolados.
— Isolados?
— Pra evitar que os outros doentes, os não aleijados, os atropelem na hora da comida. Se a gente
não fizer isso, um pisa em cima do outro, acabam se matando.
Celina continua falando, um deles cai lá no meio do pátio, com a cabeça no cimento. Nenhum
alarde ou aflição. Apenas com um simples olhar, um vai avisando o outro. Em questão de minutos,
aparecem quatro doentes não-aleijados. Eles colocam o homem semimorto num pano, tipo maca, e o
levam dali.
— Ele vai pra onde?
— Pra enfermaria.
O cortejo prossegue, ninguém se toca. Foi como se não tivesse acontecido nada.

O HOSPITAL-COLÔNIA,
UM INFERNO HUMANO

Ainda ficamos um pouco ali. Depois fomos tomar uma coca-cola no bar local.
Estava escrito na parede, em letras garrafais:
“Atenção funcionários! O funcionário desta cantina é nosso paciente e não quero que abusem da
sua condição de interno para lhe pedir fiado como muitos vêm fazendo. Acertem os seus débitos, pois
os punirei severamente se isto tornar a acontecer. Barbacena, 23 de outubro de 1979. Assinado: José
Manoel de Rosa Lucinda — gerente-administrativo.”
Passamos, ainda, por uma área desolada, com várias crianças paraplégicas caídas pelo chão, uma
dormindo ao lado de um cachorro, com moscas por todo o corpo. Umas tentando segurar um pneu
velho, uma bola; duas atendentes tomando conta.
Despedimo-nos de Celina:
— Como é que ele se chama mesmo?
— Manoel. Ele é quem toma conta do hospital-colônia. Ele já está sabendo de tudo. Vocês vão por
aquela estrada ali, uns quatro quilômetros mais ou menos, que logo avistarão o hospital. Ele está
esperando vocês.
Eram umas três horas da tarde quando avistamos o famoso Hospital-Colônia de Barbacena. Uma
construção contínua, de 1903, tipo castelo medieval com suas masmorras no alto de um morro, perto
do trevo da rodovia que vai para São João Del Rey, na saída da cidade. Velho, com obras inacabadas
em várias frentes. E silencioso, sem uma viva alma do lado de fora.
Não soubemos, pois, por onde entrar. Demos a volta, circulando o hospital, de carro. Logo viríamos
a saber, havíamos entrado pelos fundos. Como dois doentes, que também chegavam naquele instante.
Dois homens de meia-idade, conversando normalmente. Eles tiraram a roupa, como já soubessem do
ritual. E entraram debaixo de dois chuveiros imensos. Depois ficaram ali, nus, esperando pelos
respectivos uniformes, com os números e a destinação de praxe.
Continuamos a percorrer o lugar. Tudo sombrio. Gente lavando roupa, limpando o chão. Até que
deparamos com o administrador do hospital, que vinha determinado ao nosso encontro:
— Boa tarde! Nós somos do Estado de Minas. O dr. Tollendal deve ter avisado, não?
Ele não mexeu um só músculo do rosto.
Eu falei:
— Parece que nós erramos a entrada, né? Entramos pelo fundo ...
— O que vocês querem ver? — ele interrompeu, friamente.
— Ué? O hospital.
Não houve maiores conversas. O administrador levou-nos ao pavilhão “Afonso Pena”, onde havia
257 mulheres internadas. Passamos pelo dormitório. Depois por um corredor escuro e úmido, onde
várias mulheres gritavam, com as mãos pro lado de fora das grades:
— Tira nóis daqui, dotô! Tira nóis daqui!
Somente uma mulher não gritava. Ela dizia baixinho, com as mãos postas, em forma de oração:
— Aqui eles dão choque na gente dia sim, dia não. Ajuda a gente! ... eu não quero morrer aqui,
não.
Andamos mais um pouco, elas gritando cada vez mais, desesperadas. Antes de ser aberto o portão
de ferro que dava acesso ao pátio, o administrador nos avisou:
— Tomem cuidado, hein? Principalmente você — disse, olhando para mim — aqui só tem
pacientes agudas.
E abriu o portão.
Aquele contingente de 257 mulheres lembrando o mesmo campo de concentração que havíamos
visto lá em cima, no Centro Psiquiátrico. A mesma promiscuidade, a desumanidade em todas as suas
formas possíveis e imaginárias. Seres humanos agrupados como gado, em currais.
Mas nenhum horror, nenhuma agressão. Apenas um levantar em massa e esperançoso de mulheres
magras. Mulheres nuas e descabeladas, vindo em nossa direção. Como zumbis, de tão drogadas, desnu-
tridas, abandonadas:
— Pega na minha mão, pega, doutor!
— Não deixa ninguém me bater, não?
— O senhor tem cigarro para me dar?
— E essa camisa bonita? Dá ela pra mim?
“VOCÊ GOSTA DE DEUS?
EU SOU DEUS”

O administrador ficou de longe, observando-nos. Duas pacientes, jovens ainda, mas sem dentes,
pediram permissão para nos acompanhar na visita pelo pátio. Nós fomos andando. Os mesmos pedidos
de liberdade, de cigarros, de eliminação dos castigos, dos eletrochoques. Apenas dois pedidos
diferentes em toda estada ali. Uma paciente, chorando:
— Dente doendo.
— Não tem remédio?
— Tem não. Aqui só arranca.
E uma outra, de uns 13 anos mais ou menos, que chegou perto de Jane, perguntando-lhe:
— Você gosta de Deus?
Jane respondeu:
— Gosto.
A paciente completou:
— Eu sou Deus.
A gente engoliu um seco. Demos mais uma volta e fomos embora. Na saída, os últimos apelos:
— Vão com Deus!
— Reza prá gente!
O pavilhão “Arthur Bernardes” foi o próximo. Quase 200 pacientes agudos, segundo nova
advertência do administrador. Antes do pátio, passamos por uma ante-sala. Alguns pacientes, em filas,
estavam sendo consultados. Tentamos assistir à consulta, não pudemos. A psiquiatra, de nome Sônia,
não permitiu. E ainda ficou furiosa com a tentativa:
— Mas nós estamos aqui com ordem do secretário de Saúde. Queremos ver como é a consulta
aqui. O que tem isso demais? Ou será que existe algo que não podemos ver?
Não adiantou nada. A psiquiatra se alterou mais ainda e parou de preencher a ficha de um paciente,
um pobre coitado. Disse que aquilo era contra a ética médica. Tive vontade de lhe perguntar se tudo
aquilo, a própria estrutura do hospital-colônia, o seu próprio trabalho, não era contra a ética médica
também. Mas fomos embora.
Passamos pelo dormitório, onde um homem se postou para a máquina fotográfica, dizendo ser o
presidente da República. E alcançamos o pátio, a extensão da tragédia. Quase 200 homens, de 15 a 70
anos, nas mesmas condições. Ou nenhuma. Um galpão, aos pedaços, onde não podem sequer se
proteger da chuva. E o mesmo levantar lento, em nossa direção. Foi a primeira vez que tivemos medo.
Os mais ágeis acercaram-se logo de nós. E o administrador já havia-nos alertado do “sério risco” que
corríamos ali.
Mas nada aconteceu.
Eles queriam apenas nos cumprimentar. O primeiro a se aproximar — tinha dentes — falou
baixinho:
— Ô, “seu” doutor. Eu quero uma escova de dentes e uma pasta. Eu já pedi para aquele outro
doutor ali - disse, apontando um atendente — mas acho que ele está me embrulhando.
Os outros chegaram apertando nossas mãos, dizendo nome completo, endereço e necessidades,
pedindo socorro:
— Eu quero um violão barato. Eu toco sentindo mesmo. Tocava lá fora, por que não posso tocar
aqui? Um violão barato. Não precisa ser caro, não. Um violãozinho à-toa.
Outro, mais idoso:
— Quero ir embora. Sou pai de família, tenho mulher e filhos para cuidar. Eu escrevi uma carta
pra minha mulher, mas não sei se eles aqui puseram no correio. Será que puseram?
Mais um:
— A comida aqui é desgraçada. Vem com barata e tudo.
Despediram-se da gente, na mesma esperança. Sob o mesmo olhar vigilante e silencioso do
administrador, que em seguida levou-nos ao pavilhão “Noraldino Lima”. Uma visão continuada.
Várias mulheres, seres humanos berrando nas celas, entre fezes e urina. A maioria dizendo-se sã,
pedindo médico, uma providência qualquer. No pátio, 150 mulheres de todas as idades e procedências,
esperando a morte chegar:
— Quer casar comigo?
— Eu quero cantar. Posso?
— A minha regra ainda não veio.
— Faz 20 anos que eu estou sofrendo sozinha e calada, neste lugar.
— Ô doutor. Não faz isso comigo não. Tira eu daqui?
E Suely Aparecida Resende, natural de Oliveira, 24 anos, levada para aquele hospício aos 10 anos
de idade, por ser uma “menina muito namoradeira”, cantou para a gente ouvir. Para o administrador
também ouvir:

“Ô seu Manuel, tenha compaixão


Tira nóis todos desta prisão
Estamos todos de azulão
Lavando o pátio de pé no chão
E mais atrás vem a sobremesa
banana podre em cima da mesa
E mais atrás vêm os funcionários
que são os (...) mais ordinários.”

E mais. O respeito que ela tem pela atendente Marly, que também nos observava:

“A dona Marly é uma rosa enfeitada


é uma flor que se enfeita a Suely
a dona Marly é um anjo querida
que também, que também,
meus parabéns.”

DE VOLTA, AO PRIMEIRO INFERNO

Deixamos o recinto rapidamente.


Já eram 16h30min e a administração iria fechar logo. Na saída, ainda vimos a chegada da comida.
Latões de feijão e arroz sendo levados por duas funcionárias. E ainda ouvimos o gritar, muito longe,
dos internos.
De volta ao Centro Psiquiátrico, passamos pelo pavilhão “Crispim Jacques”, de indigentes, onde
João Batista nos esperava, conforme o combinado. Havia escrito tudo o que queria (essa carta encerrará
esta série de reportagens).
Ele quase chorou, outra vez:
— Eu quero que todo mundo leia isso aí. Pelo amor de Deus, gente?! Vocês juram que vão mostrar
isso pra todo mundo saber o que estão fazendo comigo?
— Claro — respondemos.
Ele ficou lá, com seus 260 colegas, detrás dos muros, onde jamais viu um médico, uma visita
sequer.
Faltavam 10 minutos para as cinco.
Corremos ao gabinete do diretor do hospital, que havia nos prometido permissão para que
folheássemos uma pasta de recortes, onde ele tinha toda a história do hospício. Ele não estava, era
muita coisa para anotar e a sua secretária não quis ficar mais um pouquinho. Imploramos tanto, que
ela resolveu telefonar para o diretor, que naquela hora estava em sua clínica particular, no centro de
Barbacena. Ele respondeu-nos mal, parece que arrependido da entrevista concedida antes. Imploramos
novamente à secretária, para ela ficar mais um pouco, o necessário apenas para as anotações mais
importantes. Ela não arredou pé. E o dr. Tollendal ainda ficou mais nervoso.
— Mas o senhor não havia nos prometido dar acesso a tudo? — observamos.
Ele chegou quase aos palavrões. Àquela altura já era outra pessoa, completamente diferente da que
entrevistamos horas antes. Mas, com muito custo, permitiu. A sua secretária, porém, disse que não
ficaria ali nem mais um minuto, que estava na hora de ir-se embora. Novo contato com o diretor do
hospício, o mesmo atendimento. Mas, finalmente, uma solução. Ele permitiu que fôssemos até o centro
de Barbacena “xerocar” os documentos mais importantes, na condição de deixá-los depois na portaria.
Foi o que fizemos.
Já viajando, de volta a Belo Horizonte, folheando os documentos, pudemos então compreender por
que uma realidade como aquela permanece até os dias de hoje. E por que a comida servida ali tem de
ser triturada, antes de servida aos doentes, que, se realmente tivessem às mãos facas e garfos não
pensariam duas vezes. Com toda certeza, se matariam em massa para, somente assim, fugir daquele
inferno.

★★★
O DELÍRIO DE UMA LOUCA

(Escrito pela paciente Therezinha Campos, pavilhão “Galba Velloso”, Barbacena, julho de 1979.)

“A minha mãe
O amor é justamente a aceitação. A distância jamais será separação, pois, para nós, que amamos
realmente, não existe tempo, nem espaço. E este amor de longos anos não poderá ser derrubado pelas
mãos da ingratidão. Uma força maior nos separou fisicamente, mas fracassou na alma, porque não te
esqueço um só minuto, pois te amo demais; se em determinados momentos não choro, é porque minhas
lágrimas são bem pequenas para o tamanho da dor que sinto.
O amor é abstrato, caminha invisivelmente dentro da gente, abstrato como a hora e o lugar onde
nossos espíritos se encontram. Estou falando de um amor que supera tudo, mãe. Sinto este amor em
todos os meus poros, os movimentos do cotidiano. Para mim, isto é sinal de procura, pois ninguém
perde tempo tentando provar aquilo que sabe que não existe. Não somente saí de você, mas também
entrei em você. Mas no momento, para mim, não é fácil ficar à espera de uma palavra ou manifestação
sua, sabendo que tenho alma sensível.
O amor maternal faz-nos ver que todos os demais sentimentos são enganadores. Somente uma mãe
sabe o que quer dizer amar! E você é muito importante para mim! Passei agora a viver mais aquilo que
está dentro de mim, o que antes vivia no exterior, pois as palavras que relatei acima não devem ficar
só nos seus olhos, devem mergulhar dentro de si... ser raciocínio e emoção, pegar carona nos olhos e
partir para o coração. Palavras sim, mas palavras de amor sincero!
Em mim sempre retrato um pouco de você, que me deu vida e guiou-me para o bem (jamais esqueci
suas palavras e conselhos), que antes não reconhecia que a paz não se encontra fora, neste mundo cão,
sim no lar, no seio da família e diante do maior amor do mundo: você!
Enquanto, pensando em ti, meu coração lhe afaga, sofro porque tateei o amor com descrença, o
amanhã será o ontem dentro do meu ser, e o ontem e o hoje não terão diferença: será sofrer, será viver
pelo simples fato de viver. E como fomos preparados para dupla destinação, assim como vida física e
vida espiritual, e esta última é que realizará meu destino eterno, é só o que aguardo para mim, devido
às circunstâncias atuais.
Se a máquina da vida que tenho dentro de mim explodisse, assim trazendo meu fim na terra, queria
que momentos antes, pela última vez, você, Mãe, me desse um longo beijo com carinho.”
CAPÍTULO VIII

A ÚLTIMA ESPERANÇA DOS DOENTES MENTAIS

DEPOIS da denúncia, a esperança de milhares: homens, mulheres e crianças. A possibilidade de as


autoridades assumirem o problema da assistência psiquiátrica, que inexiste no Brasil. Resolvendo-o,
antes que morram mais 60 mil pessoas em Barbacena. Como nos campos de concentração. Pessoas
que não receberam tratamento algum Apenas foram escondidas da sociedade, pelo próprio Estado.
Como mostra a reportagem, a pasta de recortes do diretor do Hospício. As fotos, as evidências. A
esperança que os deputados façam algo além de apenas ganhar votos. Algo interior, mais real. A
esperança de o governo atual não se omitir como os anteriores. Não repetir os mesmos erros, as
mesmas promessas, nenhuma prática, que leve àquela gente a sua tão propagada abertura. Reformule
tudo. Humanize os hospitais psiquiátricos, as clínicas particulares. Anistiando aqueles que não têm
direito algum, por serem considerados loucos. Pessoas que ainda falam, pensam e cantam. Sabem que
País é este. A sua língua, seu idioma. E que sentem dor, como todo ser vivo do planeta. Esperançosas,
neste seu sofrimento.

A história do hospício de Barbacena também é cruel. De 1903, data da sua fundação, até 1923, ele
tinha três médicos e um padre para assistir a seus hóspedes. Em média, 150 pessoas internadas por
ano. Hoje, mais de meio século depois, com uma superlotação de 1.350 internos, existe apenas um
funcionário leigo para cada 100 deles. Daí, se naquela época os doentes morriam ali de diarréia, gripe
e pneumonia, muitos com anemia profunda; hoje eles não morrem apenas com doença de Chagas, com
tuberculose: morrem principalmente com doenças psicossomáticas. Morrem de úlcera nervosa, que
aparece imediatamente após o internamento, nos moldes em que ele é feito e perpetuado em todos
estes anos. Segundo depoimento do diretor do hospício — o psiquiatra Theobaldo Tollendal — elas
sofrem de um mal terrível: o abandono médico, social e político.
Uma revelação recente, pois até 1960 tudo que acontecia no hospício de Barbacena ficava restrito
a seus muros cinzentos. Um segredo compartilhado apenas pelo corpo administrativo do hospital. Seus
médicos, enfermeiros e guardas. Ninguém, do lado de fora, sabia ou podia imaginar o que acontecia
ali. Isto porque a ética médica impedia, como tenta fazê-lo até hoje, qualquer investigação ou
constatação por parte de pessoas leigas — principalmente porque se trata de instituição psiquiátrica.
Para a medicina institucionalizada, os doentes mentais são pessoas irresponsáveis. Pessoas que pra-
ticam atos diferentes, vivem de modo diverso da normalidade, somente compreendidos pelos médicos
especialistas.
Mas veio esta onda de renovação e humanização da psiquiatria, e o hospício de Barbacena foi
finalmente revelado à população do País pela televisão e pelos jornais. O mesmo campo de
concentração documentado agora. Semelhante aos campos de concentração nazistas, onde se
exterminavam os judeus. Um inferno que se mantém a portas fechadas. Um hospital onde as pessoas,
consideradas loucas, recebem apenas um passaporte para a morte ao invés de tratamento. O escândalo,
na época, foi total. A exemplo de hoje, o governo permitiu a entrada da imprensa, o que causou
repercussão inesperada junto à opinião pública brasileira. Ao invés de se conscientizar daquela
realidade próxima e desumana, e exigir das autoridades uma solução imediata, a população brasileira
se viu chocada. Por incrível que pareça, vários setores importantes da sociedade manifestaram-se
contrários à continuidade das reportagens. A sociedade, em vez de se preocupar com o sofrimento dos
doentes mentais naquele hospício, como de resto com a situação de todos os internos psiquiátricos no
País, passou a se preocupar consigo mesma, com seu egoísmo, suas depressões passageiras, não com
a depressão eterna dos doentes. A situação chegou ao ponto de o próprio jornal Cidade de Barbacena
publicar, no dia 23 de abril de 1961, o seguinte editorial:
“O governo permitiu a divulgação de fatos e coisas ligados à vida e à condição de alienados,
atentando, assim, frontalmente contra a dignidade dos seres humanos, por revelar detalhes que somente
a ciência conhecia, explorando essa mesma condição para estarrecer a opinião pública com as atitudes
próprias desses infelizes. Se há doentes despidos, esse número foi aumentado pelos exibicionistas (os
doentes) que, com satisfação, tiraram o uniforme. Se há os que fazem suas necessidades fisiológicas
em presença dos companheiros de infortúnio, esse fato foi fotografado e filmado. Se entre eles há
aberrações sexuais, estas foram documentadas e, se não publicadas, não se sabe o porquê.”
Disse mais o jornal Cidade de Barbacena, em seu editorial:
“Enfim, todas essas situações foram constatadas por uma equipe masculina de gente de imprensa,
ávida por aproveitar a ocasião. E, por incrível que pareça, os repórteres devassaram a intimidade do
Departamento Feminino, onde há cerca de 3.000 dementes, portanto, 3.000 mulheres solteiras, casadas,
viúvas e anciãs. Que dizer de tudo isso? Que pensarão os responsáveis, pessoas da família desses e
dessas infelizes, acerca de tão revoltante atentado à inviolabilidade e ao pudor? Que dizer de uma
devassa dessas, se fosse levado a efeito em uma casa de saúde particular com a aquiescência de seu
diretor? Fato grave, dos mais graves e injustificáveis de que se tem conhecimento” — finalizou o
editorial.

JÂNIO QUADROS:
A PRIMEIRA PROMESSA

A história cruel de Barbacena (e da própria sociedade brasileira) não pára aí. Em maio de 1961,
dizendo-se sensibilizado com a situação, que ele também confessou não acreditar que fosse real, o
presidente da República Jânio Quadros determinou ao Ministério da Saúde toda a ajuda necessária ao
Governo de Minas, no sentido de melhorar os serviços daquele hospício. Disse, literalmente, o Chefe
do governo brasileiro através de memorando oficial:
“O hospital é o Estado. Estou certo de que somente a absoluta ausência de recursos explica o baixo,
o calamitoso nível de assistência dada aos internos.”
Foi esta a primeira esperança pública. O primeiro engano. Dez anos depois, em 1971, surgiu uma
outra esperança. Os deputados mineiros denunciaram, na Assembléia Legislativa, o comércio de
cadáveres entre o Hospício de Barbacena e as faculdades de medicina de todo o País. Uma revelação
macabra, que revoltou (com reservas) muita gente. Os parlamentares saíram resolutos em defesa dos
doentes mentais, principalmente o deputado João Navarro, que estranhou o decréscimo no número de
óbitos do hospício tão logo foram feitas as denúncias. Ele — que hoje é presidente da Assembléia
Legislativa — avistou-se com o secretário de Saúde do Estado, Fernando Velloso, que também
anunciou uma nova esperança aos loucos. Cancelou todos os convênios “macabros” existentes. E criou
um outro, onde os cadáveres dos loucos teriam de ser trocados por medicamentos, alimentos e roupas
para os internos (vivos) de Barbacena.

RONDON PACHECO:
UM OUTRO ENGANO

A 15 de julho daquele mesmo ano, chegou ao diretor do hospício, o seguinte telegrama:


“Dr. José Teobaldo Tollendal. Tenho satisfação comunicar vossa senhoria Assembléia Legislativa
de Minas Gerais intuito contribuir plano saúde governador Rondon Pacheco se fará representar visita
hospital colônia essa cidade mesmo tempo se obter sugestões composta deputado João Navarro,
Nelson Lombardi, Haroldo Lopes da Costa, Mário Hugo Ladeira, Ivo Morais, Pinheiro Chagas dia 17
esperando deputados obterem informações sobre deficiências hospital a serem atendidas. Governador
do Estado, secretário deputado Ronaldo Canedo.”
Três dias depois da visita dos deputados a Barbacena, o Correio Mineiro publicou a seguinte nota:
“Acredito na boa intenção do dr. João Navarro, que denunciou na Assembléia Legislativa a
existência de comércio de cadáveres no Hospital-Colônia de Barbacena. Se a tal visita feita pelo grupo
de deputados ao HC surtiu o efeito desejado, pelo menos reduzirá o estado de penúria em que vivem
os três mil doentes ali internados. Entretanto, segundo alguns funcionários do próprio hospital, cujos
nomes não desejam que se revele, para evitar punições, tudo continuará como antes. A não ser que se
penetre mais profundamente na questão.”
Dias depois, o mesmo jornal publicava esta notícia, sob o título “Andrada contesta João Navarro”:
“Afirmando que a venda de cadáveres para as faculdades de medicina do País constituiu ato legal
e que contribui para o avanço das nossas ciências médicas, o deputado José Bonifácio Tamm de
Andrada — líder do Governo na Câmara Federal, na Administração Geisel — contestou o
requerimento do deputado João Navarro, que solicitava a suspensão de venda do Hospital-Colónia de
Barbacena.” Disse mais:
“Enquanto isso, a opinião da cidade continua descrente dos resultados da visita dos deputados ao
Hospital-Colônia, pois é voz corrente que há muita coisa ainda desconhecida do povo, naquele
hospício.”
Neste mesmo dia, o Correio Mineiro publicou mais esta nota, sob o título “Deputado-médico
sugere renovação do Hospital- Colônia”. Ei-la:
“Para o dr. Haroldo Lopes da Costa, do grupo de deputados que veio ver o Hospital-Colónia, há
necessidade de uma reformulação total no staff que comanda o serviço do HC, não retirando aqueles
que já existem, mas injetando uma média de 50 a 80 novos funcionários especializados, técnicos em
lavanderia, em padaria, em medicina preventiva. Assim o hospital poderá contar, realmente, com uma
equipe de rapazes, de jovens que poderão injetar um pouco de motivação, um pouco de calor humano.
Haverá, assim, um serviço técnico-médico mais eficiente.”
E no dia 22 de agosto, em “Notas Políticas”:
“O deputado João Navarro obteve do Secretário de Saúde a rescisão do convênio assinado entre o
Hospital-Colônia de Barbacena e as faculdades de medicina do País, pelo qual era permitida a venda
de cadáveres ao preço de Cr$ 200,00 cada um. Segundo aquele deputado barbacenense, por
convocação do secretário de Saúde do Estado, a comissão de sindicância que esteve em Barbacena vai
comparecer ao seu gabinete, a fim de fornecer sugestões sobre a modalidade de novos convênios. O
deputado tomou uma providência que, a nosso ver, poderá contribuir bastante para o levantamento da
verdade sobre o Hospital-Colônia. Ele solicitou informações sobre o índice de mortes naquele
estabelecimento, nos meses de maio, junho e julho.”

A ESPERANÇA, NO
GOVERNO FIGUEIREDO
A crueldade do hospício permaneceu inalterável. De lá pra cá, quase nada aconteceu. Apenas
algumas denúncias soltas, sem expressão. O que parece comprovar, infelizmente, as declarações do
psiquiatra José Theobaldo Tollendal, publicadas pelo Estado de Minas, no dia 22 deste mês. Disse-nos
o diretor do hospício, logo no início da sua entrevista:
— Foi o secretário!... eles ficam lá, de Belo Horizonte, só mandando gente aqui. O quê que
vocês querem? Mais uma reportagem? Eu não vejo originalidade alguma nisso. Aqui já foram feitas
milhares de reportagens, nenhuma adiantou:
E, mais à frente:
— Quantos deputados ganharam voto subindo na tribuna, dizendo-se comovidos com a situação
dos nossos pacientes? Só ganharam voto. Não resolveram nada.
Sobre o movimento pela humanização da psiquiatria, deflagrado na Itália:
— Acho até bonito eles se preocuparem com a situação, quererem isso. Acho válida a posição
do nosso secretário da Saúde. Mas eu não me iludo. Vocês não podem esquecer de que o Brasil é um
país administrado por crises. A hora que passar essa fase de denúncia, esse vendaval, eles esquecerão
disso tudo. E tudo continuará como está.
Finalmente, sobre a humanização, mesmo que remota, no atual governo do presidente João Baptista
de Figueiredo, disse o diretor do hospício:
— Se eu não tivesse esperança, eu não estaria aqui.
CAPITULO IX

O HISTÓRICO CRUEL DE 60 MIL PESSOAS

A ASSISTÊNCIA aos doentes mentais em Minas Gerais foi criada pela Lei n.° 290, de 16 de agosto
de 1900, regulamentada pelo Decreto n.° 1.579, de 21 de fevereiro de 1903. O projeto de lei e sua
regulamentação foram de autoria do médico Joaquim Dutra. Seu trabalho, segundo o Estado de Minas
de setembro de 1931, “recrutava idéias novas e obedecia a um plano modelado em aquisições
contemporâneas da ciência psiquiátrica”.
Ao dr. Dutra também se atribui a indicação de Barbacena como sede da atual assistência
psiquiátrica do governo mineiro. Ele foi o seu primeiro diretor e o único que lá residiu, embora o
hospital “não atendesse à expectativa de seu inspirador e principal propugnador, que protestara contra
o aspecto elementar de sua organização” (hoje, o diretor do hospital mora na cidade, onde tem uma
clínica psiquiátrica particular). Segundo noticiou, na época, o jornal Cidade de Barbacena, a instalação
e inauguração das dependências se deu a 12 de outubro de 1903. Teve até missa no local, com o cônego
José Boelaerts benzendo todos os compartimentos e dependências do sanatório.
Os primeiros tempos da psiquiatria em Minas, antes do aparecimento das leis, foram marcados
pelo “fio místico, infalível à tradição de todos os Estados brasileiros, pois o primeiro esboço de hospi-
talização se liga a um passado conventual na lendária Ouro Preto”. Dizia mais o Estado de Minas, na
época: “Os doentes mentais, fora disto, pagavam o tributo de uma liberdade ao desamparo ou de uma
escravidão desumana, nas cadeias públicas dos nossos interiores, mesmo nas nossas melhores
cidades”.

MORRIAM DE DIARRÉIA;
HOJE, DE ABANDONO

A Lei n.° 290 autorizava o governo a aproveitar um prédio estadual para instalação do sanatório.
No entanto, isso não ocorreu porque o Estado adquiriu as dependências do Sanatório de Barbacena,
fundado em 1870, sob a direção dos médicos Ramos e José Rodrigues Caldas. O sanatório, que vinha
de ser fechado por má situação financeira, possuía boas acomodações, era quase luxuoso. Vasilhames,
talheres e toda a roupa eram fabricados do melhor material, tendo monograma “SB” bordado ou
gravado nos objetos de metal. Sua localização, no alto do Morro da Caveira — também conhecido por
Caveira de Cima —, faz crer que, de acordo com um registro histórico estava situado em terras da
antiga Fazenda da Caveira, que pertencera ao português Joaquim Silvério dos Reis, traidor da causa
da Inconfidência Mineira. Nessas dependências hoje funcionam a secretaria e o departamento feminino
do Centro Psiquiátrico de Barbacena.
Durante o período do sanatório, por comodidade de transporte e para evitar o contágio da
tuberculose, foi criada uma estação ferroviária na encosta do morro. Lá eram desembarcados todos os
doentes. A esse respeito corre a versão de que, por não haver vagas suficientes no sanatório ou mesmo
por descaso, muitas vezes os doentes eram deixados na plataforma, no momento da partida do trem.
Ali ficavam abandonados, até que um enfermeiro os recolhesse aos pavilhões. A Estação do Sanatório
ainda hoje está em funcionamento e tem o nome de “Bias Fortes”.
O hospital se limitava às instalações do antigo sanatório, no Morro da Caveira, até que, entre 1918
e 1922, foi construída a Colônia, onde os doentes passaram a desenvolver a agricultura, além de outras
atividades a que já se entregavam anteriormente. O setor inicial, no Morro da Caveira, era designado
por Asilo Central ou Hospital Central de Alienados. Já o novo setor era conhecido como Asilo-Colônia.
Com a contínua ampliação de suas dependências e do quadro de funcionários, para um número
sempre maior de doentes internados, a partir da década de 30 o hospital passou a contar com os serviços
da Congregação das Irmãs Vicentinas, que lá residiam. A diarréia, na época, era responsável pela maior
parte dos óbitos, sobretudo entre indigentes, e essa incidência foi pesquisada pelo médico Otávio de
Magalhães, de Belo Horizonte. Segundo informação do médico José Bonifácio Lafayete de Andrada,
o estudo de Magalhães foi publicado em uma revista médica.

A MORTE DOS NOSSOS


LOUCOS, EM NÚMEROS

Em 1936, com a aposentadoria de Dutra, assumiu a direção o médico José Cezarini, que no ano
seguinte elaborou novo regulamento, atendendo às proporções de crescimento do então denominado
Hospital-Colônia de Barbacena. Outros médicos que ocuparam a direção foram José Jorge Teixeira,
José Concesso Filho, Omar de Araújo Lima, Oswaldo Fortini e Geraldo Xavier Pereira de Souza,
alguns deles em mais de uma gestão, conforme as oscilações políticas.
Em duas ocasiões recentes o hospital foi objeto do noticiário da imprensa. A primeira em 1961,
quando o fato repercutiu na Assembléia Legislativa e na Associação Médica de Minas Gerais. Em
1971, novamente o hospital ganhou o noticiário, sempre devido ao mau estado de suas instalações, ao
alto índice de mortalidade, e ainda em função dos convênios para fornecimento de cadáveres às
faculdades de medicina.
Numa rápida verificação dos livros de registro de internações, os pensionistas homens e mulheres,
internados de 1903 (data da fundação) a 1969, somam 6.139 pacientes. Entre os indigentes, de 1907 a
1967, somam-se 24.034 mulheres internadas. E de 1903 até 1966, aproximadamente 27.775 homens
foram internados como indigentes, isto é, ficaram amontoados ali até a morte.
A partir de 1968, o hospital deixou de pertencer diretamente ao Estado, através da Secretaria de
Saúde, passando a integrar o conjunto de centros psiquiátricos da Fundação Educacional de Assistência
Psiquiátrica (FEAP). Desde então, sua história e os dados referentes aos doentes mentais podem ser
encontrados nos arquivos da FEAP, em Belo Horizonte. Hoje, a Fundação Hospitalar do Estado de
Minas Gerais (FHEMIG) administra os hospitais psiquiátricos públicos, sob a chefia do médico
Archimedes Theodoro.
CAPITULO X
A CARTA DE UM LOUCO QUE DESEJA PAZ

NO DIA 10 de setembro de 1979, o presidente João Baptista Figueiredo disse, em Brasília: “Reitero
minha fé no papel livre, responsável, crítico e veraz da imprensa. Acredito numa sociedade
democrática. Uma não existe sem a outra.” No dia 20, na inauguração da sucursal do Estado de
Minas em Brasília, o governador Francelino Pereira disse: “Infelizes são os governantes que não
contam com uma imprensa livre, combativa e honesta para fiscalizar seus atos, para mantê-los
informados sobre as consequências de suas decisões, para lhes transmitir os anseios e aspirações
da coletividade.” No dia 23, o Estado de Minas publicou o editorial do jornalista Geraldo Teixeira
da Costa: “Coitado do país que não cuida dos velhos, das crianças e dos doentes. Pode até ser rico
país, mas nunca terá o respeito da História. ” Hoje nós publicamos o que disse João Batista da Silva,
29 anos, cidadão brasileiro, um dos 1.360 internos do Hospital-Colónia de Barbacena que espera
não ter o mesmo destino que já tiveram 60 mil outras pessoas consideradas loucas, naquele inferno.

RECORDANDO O PAVILHÃO

A atendente abriu a porta. 260 homens reunidos em um pátio de apenas 300 metros quadrados.
Todos nus e sujos. Muitos machucados, com feridas pelas pernas e braços. Uma comida de aparência
horrível. Esbranquiçada, servida em pratos de lata. Apenas colheres. Comendo com as mãos, de toda
maneira. Obedecendo as atendentes, como se fossem meninos levados. No meio deles, uma surpresa:
a figura de um rapaz vestido. Sem a cabeça raspada, como os demais, para evitar piolhos. Ele nos olha
assim meio envergonhado. A gente se aproxima dele:
— Como é que você se chama?
— João Batista — ele respondeu.
Conversamos um pouco. Depois, a seguinte combinação:
— Faz o seguinte, João. Você vai ter que nos ajudar, pois ainda temos que rodar tudo isso aí.
Pedimos uma caneta para uma atendente, mais umas folhas de papel. E dissemos para ele escrever
ali tudo que quisesse.
Depois, já à noitinha, de volta da reportagem, passamos onde ele estava. João Batista quase chorou.

(Pavilhão “Crispim Jacques” — Barbacena, 30 de agosto de 1979)

Eis o que ele nos entregou escrito:


“Barbacena, 30 de Agosto de 1979
Nome: João Batista da Silva
Data de nascimento: 20/10/50
Natural: de Barbacena, 28 anos, casado
Endereço: Rua Expedicionário José Leite Furtado — Bairro Caminho Novo, número 214.
Pai: João Augusto da Silva
Mãe: Adelina Augusta da Silva

“Tenho 10 irmãos, sete homens e três mulheres. O último irmão, Ronaldo José da Silva, de 33
anos, morreu no ano passado debaixo de um trator em Ouro Branco. Sou casado com uma garota de
São Paulo. Namoramos pouco tempo, gostava dela, mas não amor. Depois ficamos conhecendo
melhor, não pude mais evitar, não quis fugir, porque não sou covarde. Não deu certo, nossos gênios
não combinavam. Ela muito nova, não sabia o que queria, nem mesmo se me amava.
Eu sempre fui triste, calado, gostava mais de falar com pensamentos. (Obs.: gosto de roupa toda
preta, ou toda branca, ou toda marrom. Gosto de todo esporte. Gostaria de praticar natação, sou bom
goleiro, já fui amador no Vila do Carmo, no Olimpic, no América. Pratico halterofilismo, gostaria de
ser repórter. Não perco o “Jornal das Sete”, “Jornal Nacional” e o “Globo Repórter”.)
Sou católico, mas sempre vou à Igreja quando está vazia. Sou pintor de letras. Adoro crianças, sou
almoxarife de ferramentas, gosto muito de conversar com pessoas idosas e com alguém mais entendido
do que eu. Alguém que possa me ajudar, me dar a mão e me tirar daqui. Porque sempre ajudei ao
próximo, nunca neguei o que sou. Gosto de fazendas, de plantar, toco gaita. A primeira música que
aprendi foi “O Silêncio”. Toco valsas, boleros e tangos.
Já fui preso cinco vezes por causa de bebida. Já fui jogado aqui no Hospital-Colônia cinco vezes.
Estou cansado de sofrer, eu quero sair daqui. Me ajudem, porque chega, vocês precisam me ajudar o
mais depressa possível. Não é possível levar uma vida assim. NÃO SOU DOIDO, NÃO SOU
DOENTE, NÃO ROUBEI, NÃO MATEI, vivo pecando porque bebo. Não mereço ficar aqui. Sou
HOMEM porque não sou VALENTE, sou corajoso porque enfrento um lugar destes, como vocês
viram, aonde matam sem saber que mataram, porque são uns pobres coitados, doentes mentais.
Doenças de todo o tipo. E tem doidos. MAS TODO O HOMEM que não dar valor à vida, ao próximo
e a si mesmo, orgulhoso, que gosta só de comer bem, quando não pode, DEVE-E-PRECISA PASSAR
POR AQUI. Assim ele aprende a dar valor ao próximo e a si mesmo. Eu nunca e jamais serei assim.
Gosto de saber como quando eu era criança, gostaria de voltar à infância, que quando meu pai tinha
abandonado a família por causa de outra e foi para Belo Horizonte, eu tinha sete anos. Comecei a
trabalhar de engraxate, trabalhei em armazém, mercadinho, oficinas de fábricas de máquinas agrícolas,
de portas de ferro, basculantes, ganhando nem meio salário para ajudar em casa.
“Pai, você, foi meu herói, meu bandido. Hoje mais, muito mais que um amigo.” Adoro meus PAIS.
Gente, eu sou reservista de primeira categoria, da Escola Preparatória de Cadetes do Ar de
Barbacena. Perdi meus documentos uma vez em Belo Horizonte. Não tive tempo de procurar ou medo
de ficar em Belo Horizonte. Não procurei nas rádios, vim embora. Tirei segunda via, estou em perfeita
saúde. Tenho 1,69 m de altura, peso 70 quilos.
IRAN! Ajude-me a sair daqui, se você mora sozinho, você vai ter um bom amigo, até irmão. Sei
cozinhar, já fui garçom. Se for possível, venha até aqui por estes fins de semana. É simples resolver.
Eu o ajudo com minha fé, com minha vontade, minha palavra.”
Ainda enumerou seus parentes com as suas respectivas funções:

Minha família:
Pai: João Augusto da Silva — cambista
Mãe: Adelina Augusta da Silva — doméstica
Rosely: doméstica
Reinaldo: vendedor de máquinas agrícolas, mecânico
Luiz Gonzaga: motorista
João Batista: pintor, letras, artesanato
José Maria: rádiotelegrafista
Domingos Sávio: representante

Desenhou um “DEUS” enorme e continuou:


“Meus caros amigos. Neste momento, estou sentindo as LÁGRIMAS descerem, sabem por que,
porque sou humano, tenho coração, estou machucado de tanto sofrimento, de dores, de vontade de
viver lá fora, de trabalhar, de andar pelas florestas, pelos campos, de praticar esportes, de viver, correr
como em criança, de viver, de conhecer gente nova, de ouvir música, de estudar, de VENCER e
principalmente de SER EU.”
“Se conversarem com minha família, eles dizem que não presto, que sou vagabundo, que não
trabalho, isto tudo porque são todos remediados, eles não vêm me visitar, nem querem ver a minha
cara. A única que me preza é minha mãe, mesmo assim, ela é dominada pelos outros. Eu amo demais
minha mãe, mas ela fica chateada comigo, porque eu bebia, mas não há de ser nada. Deus olha para
baixo, hei de vencer e dar um mar de rosas para minha mãe, porque mãe é sempre mãe. E também
pagar o mal que meus irmãos estão fazendo com o bem.”
“Mais uma vez eu vos peço, ajudem-me, tirem-me daqui, porque minha família não quer mais me
tirar. Porque é covardia, é desumano só de sonhar em me colocar aqui. Gostaria de encontrar uma
garota que me desse valor, que me amasse simplesmente ou uma mulher honesta, porque meu sonho
é ter minha casinha branca com um velho piano e solar “O Silêncio” e outras, e um belo filho.”
“AMIGO IRAN! Já passei fome, já senti sede, já dormi no meio das pedras, no meio do mato,
junto com minha mãe e meus irmãos quando criança, mas isto não é simplesmente nada, porque a vida
é assim mesmo, é cheia de trancos e barrancos.”
“Espero que esta leal e despretensiosa carta seja bem acolhida por vocês, porque eu preciso de
gente como vocês, porque eu preciso. Amigos seus são meus amigos. Olhe, tenho muito mais para
contar a vocês. Aqui passo a colocar um ponto final, desejando-lhes boa sorte e saúde para que possa
enfrentar o dia-a-dia. Do seu amigo, João Batista da Silva.”
Escreveu, maior ainda, no final da carta:

PAZ
Ninguém será submetido à tortura nem a
tratamento ou castigo cruel, desumano e
degradante.
(Art. 5.° da Declaração Universal dos Direitos Humanos)
O frio de Barbacena é mais um fator de transformação dos
pacientes em peças anatômicas das faculdades de medicina
mineiras.
Aqui dentro, a loucura; lá fora, a razão. Os muros e todas as
barreiras físicas funcionam para isolar o hospital psiquiátrico.
As técnicas utilizadas — algemas, pegemas, remédios e lobotomia
— visam o controle do comportamento do grupo e não a sua cura.
Nas mãos e nos punhos, a marca do tratamento.
Bonecas com algemas, fabricadas no pavilhão das pacientes
crônicas; a reprodução da própria tragédia.
As celas, um mecanismo de repressão, mortificação e punição aos
que infringem as normas.
I
A falta de roupas não permite ao internado nenhum resguardo de
sua intimidade.
As fossas a céu aberto tornam público um ato mínimo. E os
internados incapazes de qualquer resguardo pessoal.
Para os que nada têm, um fio de cabelo pode ser a procura de
posse, até mesmo da identidade destruída.
Abandono e moscas — a psiquiatria infantil também ocultada
pelos muros dos hospícios.
A falta de esperança faz o doente tombar e preparar-se para a
morte.
Não há morte isolada, mas a morte por ondas, para certas classes
convocadas.
(João Cabral de Melo Neto)
Sem tanto que diferentes, elas se assemelham.
(Guimarães Rosa)
Nesse hospital, que é uma instituição fechada, não há qualquer
possibilidade de se manter uma área para o eu, uma área de
privacidade e auto-isolamento. O eu é violado e devassado a todo
momento.
V\
Algunias vezes — e elas têm.sido raras — o jornalismo e pola sua função diária de festemunho da
história, pa cançar sua expressão máxima, através da denúncia cont arbitrariedades sofridas pel^ ser
humano. É neste com que se insere “Nos porões án loucura”, umr série de n tagens realizadas por
Hiramjfirmino para O Estado d nas, que lhe valeu o Prêmio Esso de 1980. Impression dados sobre os
maus tratos a que são submetidos os nos do Hospício de Barbaccna (MG), provocaram en discussão a
respeito da urge nte necessidade de huma ção da psiquiatria. O reportem — hoje responsável por r
denúncias no jornal minei») — cumpriu seu papel /c social.
CODECRI

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