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A importância do papel político do teatro

As mulheres do teatro clássico

Trabalho realizado no âmbito da disciplina de História do teatro e do Espetáculo


Autora: Catarina Raimundo
Docente: Rui Manuel Pina Coelho
2023/2024
No presente ensaio irei expor a minha pesquisa acerca da forma que as mulheres eram
retratadas no teatro clássico. Esta pesquisa centra-se nas histórias de Clitemnestra e de
Cassandra, que na minha ótica, são das mulheres mais interessantes que nos foram deixadas
pela literatura clássica. A caracterização e análise destas personagens será feita com o apoio
de Agamémnon de Ésquilo1, Coéforas de Ésquilo2 e As Troianas de Eurípedes3. Ao começar a
minha pesquisa para desenvolver este ensaio, tinha como objetivo escrever sobre teatro
feminista, de forma a que abrangesse não só o teatro atual, mas tudo o que nos trouxe até
aqui, desde a sua génese. Porém, com o avançar da pesquisa, surgiu a ideia para o presente
trabalho. Decidi optar por dirigir a minha atenção para o teatro clássico, por tratar-se da
origem do teatro que conhecemos, mas também para mostrar a evolução do papel da mulher
(se é que a evolução é assim tão notória) até ao presente. Creio que a presente proposta se
enquadra no tema do teatro político, por revisitar estes clássicos a partir de um ponto de vista
feminista.

Para melhor entender a história de Clitemnestra, e como esta se relaciona com a de


Cassandra, é necessário conhecer o mito da casa de Atreu. Este mito retrata uma história
repleta de rivalidade, traição, mas sobretudo vingança.

Atreu, pai de Menelau e Agamémnon, descobre que o seu irmão (Tiestes) mantém um
relacionamento com a sua mulher (Aérope). Para se vingar do seu irmão, Atreu mata os seus
três sobrinhos e serve-os a Tiestes, para no final da refeição revelar-lhe o que é que ele estava
a comer. Tiestes, à procura de vingança, consulta um oráculo. Este revela que, para retaliar,
terá de ter um filho com Pelópia, sua própria filha, poupada por Atreu durante o seu
massacre. Assim aconteceu e Pelópia e Tiestes tiveram um filho, Egisto.

Mais tarde, durante a época da Guerra de Troia, Ártemis na esperança de favorecer os


troianos, acalmou os ventos, para que os barcos não pudessem partir para Troia. Ártemis fez
um acordo com Agamémnon: a única forma de ela reestabelecer os ventos seria Agamémnon
sacrificar a sua filha, Ifigénia. Agamémnon aceitou, não avisando Clitemnestra, sua esposa e
mãe de Ifigénia.

Face a esta traição, Clitemnestra uniu-se a Egisto para vingarem-se de Agamémnon, visto que
Egisto queria vingar os seus irmãos, mortos pelo pai de Agamémnon posteriormente. Quando

1
A versão adotada de Agamémnon é a tradução para português de José Pedro Moreira
2
A versão adotada de Coéforas é a tradução para português de Jaa Torrano
3
A versão adotada de As Troianas é a de Jean Paul-Sartre, traduzida por Helena Cidade Moura
Agamémnon volta da guerra, é morto por Clitemnestra. Para honrar o seu pai, Orestes, mata a
sua mãe e o seu amante.

É claro que existem questões morais que nos impedem de concordar cegamente com
Clitemnestra e que é ousado considerar o assassinato de Agamémnon um ato feminista (não
só por o feminismo tratar-se de um movimento não existente na época, como também por ter
como seu objetivo a igualdade e não a supremacia feminina). No entanto, a meu ver, é
importante salientar a natureza do crime cometido por Clitemnestra: uma mulher que matou o
assassino de sua filha, em busca de justiça. Tratou-se, inegavelmente de um ato de amor por
Ifigénia. Apesar de tanto o crime de Agamémnon como o de Clitemnestra serem condenáveis,
em Agamémnon torna-se claro que o sacrifício de Ifigénia não teve as mesmas repercussões
que o assassinato do rei, quando Clitemnestra fala com o coro após matar o seu marido:

«Coro: Mulher, que perverso alimento pela terra criado ou que beberagem
provaste do fluente sal colhida para que fizesses com este sacrifício sobre ti
pesar as maldições do povo? Lançaste fora, cortaste, serás expulsa da cidade,
objecto de ódio imenso para os cidadãos.

Clitemnestra: Agora condenas-me ao exílio da cidade e votas-me ao ódio dos


cidadãos e às maldições populares, mas antes contra este homem nada fizeste,
ele que não fez caso, como se se tratasse da morte de um animal saído dos
seus lãzudos rebanhos abundantes em ovelhas, quando sacrificou a sua filha,
o mais amado fruto do meu ventre, como encantamento contra os ventos da
Trácia. Não era a ele que desta terra devias ter banido como expiação pela
poluição que causou?»

(Ésquilo, Agamémnon v. 1406-1420. Tradução de José Pedro Moreira)

Este excerto do diálogo entre o Coro e Clitemnestra é apenas um exemplo do julgamento


sofrido por parte da rainha. Ao ler Agamémnon, surge uma questão: É seguro afirmar que a
justiça, a vingança e o destino são valores apreciados por estas personagens, como podemos
observar no mito dos Atridas. Sendo assim, porque é que o castigo de Agamémnon não é
considerado justo, pelo coro, tendo em conta o que ele fez a Ifigénia?

Da Oresteia, trilogia onde se insere Agamémnon, faz parte também a peça Coéforas. Nesta
tragédia Electra e Orestes, filhos de Agamémnon e Clitemnestra, reúnem-se depois de um
afastamento, no intuito de vingar a morte de seu pai. No final de Coéforas, Orestes mata a sua
mãe, em seguida do seu amante. Após a morte de Clitemnestra, o coro diz «Veio Justiça aos
Priamidas com o tempo, pesada e justa punição» (Ésquilo, Coéforas v. 935. Tradução de Jaa
Torrano). Esta frase mostra que o ódio e a repulsa pelas ações de Clitemnestra não são mal
vistas apenas pela família, mas que se trata de um sentimento geral da população.

No diálogo que antecede a sua morte, Clitemnestra é confrontada por Orestes que defende o
seu pai a todo o custo e que está disposto a matar a sua própria mãe, não só por ter morto
Agamémnon, mas também por ter sido uma esposa infiel.

«Clitemnestra: Ai! Estás morto, querido vigor de Egisto!

Orestes: Amas o homem? Assim na mesma tumba jazerás e nem morto


não o traias nunca.

(...)

Clitemnestra: Não, mas diz também a lascívia de teu pai.

Orestes: Não acuses o lutador sentada em casa.»

(Ésquilo, Coéforas v. 894-919. Tradução de Jaa Torrano)

Este excerto, bem como todo o diálogo que antecede a morte de Clitemnestra, mostra uma
certa desautorização da mesma por parte do seu filho. Um comportamento que hoje em dia
seria completamente inaceitável. Orestes é movido pela raiva que tem em relação a sua mãe e
desrespeita-a pela sua infidelidade e ingratidão a Agamémnon.

Apesar do ódio que Orestes sente pela mãe ser, até certo ponto, justificável, não podemos
ignorar o caráter de Agamémnon. O rei, apesar da sua bravura exercida no campo de batalha,
era conhecido por ser arrogante e vaidoso. Ao regressar da guerra, Agamémnon volta para
Clitemnestra com Cassandra, sua concubina, mostrando assim a sua infidelidade. Cassandra
foi a outra vítima de Clitemnestra, motivada pelo desejo de vingança.

Cassandra é filha de Hécuba e Príamo, os reis de Troia. Como consequência da guerra,


Cassandra tornou-se concubina do rei, Agamémnon. Além da sua aparição em Agamémnon,
antes de ser morta, também podemos ver a personagem em As Troianas.

Cassandra recebeu de Apolo o dom da profecia, após o deus do Sol e da professia ficar
cativado pela princesa. No entanto, Cassandra negou os seus avanços e Apolo, não retirando
esse dom, tirou-lhe o dom da persuasão. Cassandra ficou destinada a conseguir para sempre
ver o futuro, sem que ninguém acreditasse nela. Existem outras versões que explicam a
origem do dom de Cassandra, no entanto, em Agamémnon, atribuem a origem desse dom a
Apolo «O profeta Apolo incumbiu-me dessa tarefa» (v. 1202) e aludem ao facto de ninguém
acreditar na profetisa «Nunca mais convenci ninguém de nada depois de ter errado.» (v.
1212)

A meu ver, aqui reside a complexidade e ao mesmo tempo o caráter trágico do mito da
princesa. Apesar desta habilidade de Cassandra, a falta do dom da persuasão atribui à
personagem solidão e faz com que a interpretem como louca. Cassandra é vista como louca,
principalmente em As Troianas, quando até ao saber que ela está a chegar, a sua mãe refere-se
a ela desse modo «Não há incêndio. É Cassandra, a louca.» (p. 34).

A peça As Troianas mostra a visão das mulheres de Troia perante a guerra e as suas
consequências. Retrata uma cidade destruída, onde as mulheres aguardam embarque, para
abandonarem as suas casas e tornarem-se escravas. Ao longo do enredo seguimos as histórias
de Hécuba, a rainha de Troia, Andrómaca, mulher do falecido Heitor, entre outros. Embora a
sua aparição curta, encontramos Cassandra, princesa de Troia.

Assim como em Agamémnon, n’ As Troianas Cassandra prevê a morte do rei «Vai morrer, o
grande rei, o bom rei, por minha causa!» (p. 37), de Clitemnestra «Muito tempo depois o filho
matará sua mãe e fugirá corrido pelas cadelas. Ponto final nos Átridas! Nunca mais se
falará deles» (p. 39) e até a sua própria morte «E vós, irmãos que jazeis debaixo da terra, Pai
que me deste luz, eu vou já, não me farei esperar muito.» (p. 47).

Apesar de As Troianas deixar um enorme espaço para uma leitura de um ponto de vista
feminista, quis salientar Cassandra, pois creio que é das mulheres mais fortes que poderíamos
encontrar nas três tragédias referidas neste ensaio. A história de Cassandra é inegavelmente
triste. Ao lermos As Troianas podemos sentir o ódio de Cassandra por Agamémnon e pelos
gregos. No entanto, o destino reserva-lhe morrer, injustamente, no palácio de um dos homens
responsáveis pela queda da sua cidade.

A meu ver, Cassandra é vista como um objeto, como algo que pode mudar de “dono”. Fica
claro que Cassandra pertence a Apolo, no entanto, sem mais nem menos passa a ser de
Agamémnon e estão-lhe reservados todos os direitos sobre a princesa:

«Taltíbio: Admitamos que há casamento- mas secreto.


Hécuba: Entendo. Mas sabes por acaso que ela pertence ao Sol e só a
ele, e que o deus dos cabelos de oiro exige que permaneça virgem?

Taltíbio: Precisamente! O que atrai nela o rei dos gregos é a sua


virgindade sagrada de profetisa.»

(Eurípedes, As Troianas, versão de Jean Paul-Sartre, traduzida por


Helena Cidade Moura)

Por fim, As Troianas, alude também brevemente a um outro episódio da vida de Cassandra.
No momento em que a princesa troiana procurava abrigo no templo de Atena, Ajax violou-a,
enquanto Cassandra agarrava-se à estátua da deusa «Cassandra refugiou-se no meu templo,
Ajax foi lá busca-la, trouxe-a arrastada pelos cabelos» (p. 16). Face este acontecimento,
Atena pede ajuda a Poseidon para que este a ajude a preparar um regresso tumultuoso para os
gregos.

Sintetizando, penso que posso ilustrar os assuntos abordados neste ensaio citando o herói de
Agamémnon: «Seguramente não é próprio da mulher desejar o confronto» (v. 940). Esta
frase demonstra que desde cedo as mulheres foram confrontadas com expectativas
relacionadas ao seu género. Concluo este ensaio, confessando que talvez seja ousado analisar
estas tragédias numa perspetiva feminista, sendo que nos encontramos a uma grande distância
temporal destas obras. No entanto, penso que é aí que reside o interesse desta proposta, não
só a um nível feminista, para que possamos melhor identificar as diferenças entre a mulher do
período clássico e a mulher do século XXI; mas também a um nível teatral, para que
possamos ver de que forma foram e de que forma são retratadas as mulheres das diferentes
épocas.
Bibliografia

 Ésquilo. Agamémnon. Tradução de José Pedro Moreira, 2a Edição, Artefacto.


 Ésquilo. Coéforas. Tradução de Jaa Torrano, Editora Iluminaturas
 Eurípedes, versão de Jean-Paul Sartre. As Troianas. Lisboa, Plátano Editora.

 Powell, Barry B. A Short Introduction to Classical Myth. Upper Saddle River, Nj,

Pearson, Prentice Hall, 2007.

 Pereira Vinagre, Sandra. Cassandra: A Voz de Uma Ideologia. 2013.

 Wohl, Victoria. “Tragedy and Feminism.” A Companion to Tragedy, by Rebecca

Bunshell, Blackwell Publishing, 2005.

 Foley, Helene P. “The Conception of Women in Athenian Drama.” Reflections of Women

in Antiquity, by Helene P Foley, London Routledge, 2005.

 Struck, Peter T. “Greek & Roman Mythology - Greek Tragedy.”

Www2.Classics.upenn.edu,

www2.classics.upenn.edu/myth/php/tragedy/index.php?page=atreus. (Consultado em

12/12/2023).

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