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Filosofia e Fundamentos Terapêuticos das

Clínicas Estância

1
Índice

Introdução..............................................................................................................3
1. Eu..............................................................................................................12
2. Aceitação do Eu........................................................................................20
3. Édipo.........................................................................................................27
4. Eu e os Outros...........................................................................................34
5. Aceitação do Corpo...................................................................................43
6. Sexualidade...............................................................................................52
7. Repressão..................................................................................................60
8. Medo.........................................................................................................67
9. Realidade..................................................................................................76
10. Prazer.......................................................................................................84
11. Fugas........................................................................................................92
12. Culpa......................................................................................................102
13. Dor..........................................................................................................109
14. CAP (Centro de Atenção
Permanente) ..................................................116
15. Disciplina...............................................................................................123
16. Recuperação – Resiliência.....................................................................131
17. Terapia....................................................................................................138
18. Liberdade e Responsabilidade................................................................156
19. Objetivos................................................................................................163
20. Projeto de Vida.......................................................................................169
Bibliografia, referências e apêndice..................................................................185

2
Introdução

“Para ser é preciso ter


coragem de se conhecer!”

Saudações!

Em nome das Clínicas Estância, saudamos todos que se dedicam às pesquisas e


atividades com o intuito de oferecer saúde e qualidade de vida aos que necessitam. A fim de
contribuirmos com esse processo, em que se somam os esforços de diferentes vertentes da
Clínica Terapêutica, no tocante à saúde mental, nos apresentamos trazendo um pouco de
nossa história, filosofia e fundamentos terapêuticos. Em nossas instituições, seja através de
nossos funcionários, colaboradores, amigos e membros desta equipe que ao longo dos anos
vêm crescendo, seja pela experiência e aprendizados que adquirimos com cada paciente que
necessitou de nossos serviços, nos mantemos em evolução, enriquecendo e tornando possível
nossa própria existência como Centros de Reabilitação Psicossocial Humanistas, onde nossa
essência prima pelo respeito à individualidade de cada paciente como pessoa e a
especificidade do seu caso, o potencial de cada um desenvolver consciência, compreender as
causas da origem de seus males e encontrar suas forças interiores para reverter a situação que
lhe aflige.
Assim, entendemos que viver é aceitar os desafios que a vida impõe. É necessário
sairmos das zonas de conforto, das “gaiolas em que nos encerramos", pois na medida em que
fugimos dos desafios, estamos deixando de realmente viver, nos entregando às nossas
mitomanias, as quais construímos, vivendo irrealidades que prejudicam nossa qualidade de
vida. Todos nós somos iguais nos aspectos em que crescemos em meio ao uso público da
palavra, às quais imprimem em nossa psique o pacto e a revelação em nossa relação com o
mundo1, assim, como na democracia todos somos iguais perante a lei, também somos iguais
pelo compartilhamento da palavra. A psicanálise nos permite pensar dialeticamente a
aproximação entre as experiências contingentes das patologias, com seus sintomas, inibições e
limitações, juntamente com as generalizações das experiências de opressão, segregação e
1
Dunker, Christian. Lacan e a democracia. Ed. Boitempo. Rio de Janeiro Rj. 2022.
3
tantos outros sofrimentos que se estabelecem socialmente, perante a doença e a cura.
Enquanto sujeitos, somos iguais na condição de pacientes de nossas próprias angústias!
No campo da saúde mental, acreditamos que é fundamental o apoio da medicina
farmacológica para o suporte no controle de nossas doenças, mas não aceitamos o
“comprimido” como milagre para a resolução dos problemas. Ele pode ser parte do
tratamento, mas o jogo pertence ao indivíduo que não pode afirmar sua impotência como
justificativa de sua vitimização e de seus medos: são necessárias a vontade e a coragem de
superar os desafios! Este conceito, de despertar a consciência dos mecanismos de defesa do
próprio ego, das fugas propiciadas pelas zonas de conforto, assumindo o compromisso com a
própria vida e a amorosidade por si mesmo, é uma chave fundamental em nossas propostas de
tratamento.
As Clínicas Estância, que até o momento são formadas pela Estância Morro
Grande, situada em Ibiúna SP, a Estância Resiliência situada em Planaltina DF, Estância
Gradiva, situada em Penha SC e a Estância Bela Vista situada em são José de Ribamar MA,
e todas elas possuem, desde sua origem com a primeira estância de tratamento, a Morro
Grande em Ibiúna, o histórico de propor algo novo, que busca considerar as questões trazidas
pelo movimentos antimanicomiais, ao mesmo tempo que propõe um modelo mais
humanizado de tratamento, em que reconhecemos a necessidade de um breve período de
internação em um ambiente preparado e acolhedor, em que o tempo deverá estar vinculado à
necessidade específica, à partir da história de vida de cada paciente.
Oferecendo serviços de qualidade aos que necessitem de uma intervenção terapêutica,
com tratamento ambulatorial e/ou internação, apresentamos uma metodologia que chamamos
de multimodal, onde formamos uma equipe multidisciplinar com psiquiatras, psicólogos,
médicos clínicos, enfermeiros, professores de arte terapia, musicoterapia, dança, expressão
corporal e educação física, juntamente com um grupo de cuidadores, envolvendo os
responsáveis pela hotelaria e administração, em uma sintonia de trabalho onde todos atuam
em função do bem estar e reabilitação de cada um de nossos pacientes.
Em nossa filosofia acreditamos, portanto, que cada indivíduo possui força suficiente
para promover suas mudanças rumo à qualidade de vida e felicidade. Consideramos cada
pessoa como um ser único em sua subjetividade e suas escolhas, respeitando as diferenças de
cada indivíduo, jamais estigmatizando nossos pacientes a partir de suas enfermidades.
Valorizamos as aptidões pessoais, sua inteligência emocional, a qual inclui autocontrole,
zelo, resiliência e a capacidade de automotivação. Oferecendo tratamentos especializados em

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diferentes transtornos, incluindo toxicomanias e comportamentos, percebemos a necessidade e
o despreparo que a sociedade se encontra para resolver estas questões. Nós propomos uma
variedade de atividades terapêuticas, onde utilizamos psicoterapia individual e em grupo,
palestras psicoeducativas, terapia ocupacional, grupos operativos, meditação, saídas de
ressocialização sempre monitoradas pela nossa equipe, juntamente com uma alimentação
adequada, saborosa e bem-preparada, além de horas adequadas de sono e repouso. Essa
diversidade em nossas atividades terapêuticas busca, de diferentes maneiras, auxiliar na
reestruturação holística do Eu que está fragmentado.
Cultivamos, tanto no espaço físico, quanto em nossa convivência cotidiana, um
ambiente acolhedor, fraterno e familiar, que afaste a imagem dos modelos de tratamento
psiquiátricos tradicionais, sem, entretanto, perder a estrutura hospitalar necessária para um
tratamento de qualidade.
A combinação de toda esta metodologia se relaciona com a proposta de reflexões e
atividades terapêuticas aos nossos pacientes em um ciclo de 20 temas que fundamentam
nossa filosofia de trabalho. Idealizados, implantados e experimentados ao longo dos anos pelo
nosso diretor Juan Manuel Urbinati, eles foram concebidos a partir do destaque que cada
um desses temas representam nos processos tradicionais da clínica psiquiátrica, juntamente
com a própria experiência empírica adquirida com os pacientes durante anos e da tradição
humanista da Psicologia, da Filosofia e da Cultura.
Os temas se inter-relacionam e se complementam, formando um fio condutor que
acompanha e auxilia o processo terapêutico, são eles: Eu, Aceitação do eu, Édipo, Eu e os
outros, Aceitação do corpo, Sexualidade, Repressão, Medo, Realidade, Prazer, Fugas, Culpa,
Dor, CAP (Centro de Atenção Permanente), Disciplina, Recuperação/ Resiliência, Terapia,
Liberdade e Responsabilidade, Objetivos e Projetos de vida. Eles são trabalhados através de
palestras, psicoterapia grupal, dinâmicas, recreação, arte e musicoterapia, passeios temáticos,
festas etc. com o intuito de subsidiar e fortalecer a autoanálise necessária por parte do
paciente para encontrar e entender as causas de sua enfermidade. Didaticamente utilizamos
uma semana nos concentrando no tema enquanto eixo temático do tratamento, permitindo
uma reflexão mais profunda e relacionando o tópico com aspectos que auxiliarão o
tratamento, ampliando e ressignificando a autoestima, o afeto por si mesmo e a busca da
qualidade de vida e saúde. Abordaremos posteriormente cada um dos temas, justificando sua
escolha e aprofundando seus conceitos.

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Esta nossa proposta de tratamento também ancora-se na transdisciplinaridade, ou
seja, no aproveitamento da combinação de diferentes fontes de conhecimento, o que
denominamos de multimodal, para a formatação de um conhecimento que ampara-se no
desenvolvimento da cultura humanista, a qual cientificamente utiliza-se das descobertas e
avanços da medicina, da farmacologia e psiquiatria, ao mesmo tempo em que mantém as
relações pragmáticas dessas descobertas sob as dúvidas da reflexão filosófica e de uma visão
holística do ser humano em sua relação com a vida. A dúvida e os questionamento mantém-se
na elaboração do tratamento para reabilitação de cada paciente: quais as melhores estratégias
para a sua reintegração consigo mesmo e a sociedade? A proposta lhe permite uma
reeducação de si mesmo na busca de sua saúde? A combinação de uma determinada linha
terapêutica lhe acresce em sua condição humana de liberdade e responsabilidade? Vejamos
um pouco mais dessa concepção que propomos em nossos tratamentos e as bases de nossa
metodologia multimodal.
A nossa proposta de tratamento incorpora em si a contribuição de diferentes conceitos
terapêuticos. Desde a Antiguidade até a Contemporaneidade, acompanhamos a evolução das
bases do conhecimento e da academia clínica, marcadamente da psicologia pela escola
freudiana, estabelecendo um conceito de ser humano que está sempre em construção,
inacabado e, portanto, em potência! Essa ideia de um ser potencial explicita nossa
concepção: cada um possui a força necessária para sair da sua situação de crise, cada um
possui seu histórico pessoal e sua individualidade, cada um deve se perceber além de sua
própria doença, não incorporando estigmas e rótulos.
Cabe ao nosso tratamento primeiramente desenvolver a conscientização do paciente
sobre a doença que lhe aflige, para sequencialmente serem propostas estratégias para ajudá-lo
a reunir suas próprias forças para controlar e superar essa doença. Que perceba que pode, que
compreenda que sua própria vontade é um fator determinante em seu processo de cura, pois,
junto à sua corajosa decisão de melhorar, deve estar a importância de se amar, de “querer o
melhor para si”. Como já afirmamos, dentre nossos conceitos fundamentais está a
necessidade de começarmos a identificar nossos mecanismos de defesa, começarmos a
perceber as armadilhas, muitas vezes gaiolas douradas em que nos instalamos, nossas zonas
de conforto, as quais, mesmo inconscientemente, construímos para nós mesmos. O
fortalecimento das capacidades de resiliência são também eixos do tratamento, novamente,
para que a reabilitação do paciente seja construída à partir de si mesmo, de sua realidade e

6
histórico de vida e, à partir de então, reconquistar sua autonomia e seu convívio com a
sociedade de maneira sadia e equilibrada.
Em nossos processos de tratamentos valorizamos muito a história de vida de cada
paciente, a isto, somamos um conceito que chamamos de DNA Emocional. Ele representa
que o indivíduo “não nasceu quando nasceu”, pois mesmo antes do seu nascimento já possuía
uma trajetória que está contida em seu processo ancestral, através de gerações, seja na cultura
e nos corpos dos seus antepassados, que refletem-se nele mesmo, seja pelas características
únicas de seu nascimento, pois mesmo tendo nascido em uma família numerosa ou como filho
unigênito, surge ao mundo em um contexto que lhe confere uma condição particular de
relações. As próprias expectativas dos seus pais sobre seu nascimento e as cargas afetivas que
lhe depositaram, a realidade imanente ao tempo e ambiente em que surgiu, as necessidades
para a sobrevivência, as ideologias a que esteve sujeito etc., oferecem um conjunto de
singularidades que lhe conferem sua carga psicofísica individual, como a de um conjunto de
DNA, que lhe concederá um lugar único na existência humana.
A partir destes conceitos, em que todo ser humano está inacabado, em potência, livre
para compor sua realidade a partir de seus atos, com a retomada de sua história de vida no
tratamento (seu DNA Emocional), formamos nossa estratégia terapêutica, com vistas à
reintegração psicofísica de cada paciente juntamente com seu processo de reabilitação
social.
Ao relembrarmos daquele antigo conceito, sem autor definido, o qual diz que “o
homem para se realizar deve plantar uma árvore, escrever um livro e fazer um filho”,
entendemos que pode ser sintetizado na necessidade da atitude de gratidão do ser humano
para se ver completo perante a realidade e a vida. Plantar uma árvore evoca o
reconhecimento de nosso uso da natureza e o gesto de devolução daquilo que usamos.
Escrever um livro, simboliza a nossa contribuição à cultura que nos formou, que nos ofereceu
a percepção do mundo, pela construção significativa da linguagem, onde nossa expressão
mostra-se única e virá a somar-se ao conjunto do desenvolvimento humano. E, fazer um filho,
aparece como a expressão concreta de nossa continuidade, daquilo que somos e gostaríamos
que (o melhor do que há em nós) continue. Esse ditado expressa a atitude de gratidão pela
oportunidade de viver e contribuir com a expansão da vida, princípios que fundamentam
nossa filosofia humanista e simbolicamente estão presentes em nossos métodos de tratamento.
Poderíamos citar ainda inúmeras outras contribuições que influenciam a filosofia de
nossas Estâncias Clínicas, buscamos nossos fundamentos na Ciência, na Cultura e na

7
Filosofia, nos abrindo também a propostas transdisciplinares de conhecimento e
permanecendo sempre pérvios às novas descobertas.
Outra questão fundamental neste primeiro momento, é tratar das internações, visto
que nossa instituição oferece serviços de internações breves, a partir da especificidade de cada
caso. De acordo com a legislação vigente, a Lei 10.216, de 20012 define três modalidades de
internação psiquiátrica:
a) internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
b) internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a
pedido de terceiro;
c) internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
Estabelecemos justamente em nossas propostas de tratamento, os princípios dos
Direitos Humanos e, ao refletirmos sobre a internação involuntária e compulsória,
compreendemos a delicadeza e as implicações destas questões 3. Ao falarmos sobre
internação, devemos lembrar justamente que significa a separação da pessoa de seu ambiente
natural de convívio, para que possa ser devidamente cuidada. Que possa ter tempo e lugar
para realizar sua introspecção, sua autoanálise, buscar o espelho de si mesma para poder se
reconhecer e reequilibrar seu self, sendo também necessária em alguns casos, para
interromper situações que favorecem sua dependência e compulsão.
As justificativas de uma internação involuntária estão na perda da capacidade de
autonomia do indivíduo, decorrente de seus distúrbios, os quais o impedem de compreender e
entender o caráter de seu estado. Casos com quadros de transtornos psicóticos graves,
depressões profundas que apresentam risco de suicídios, ou ainda transtornos em casos de
compulsão e obsessão, como os transtornos alimentares, a dependência química e as
síndromes de abstinência, justificam internações em que o próprio indivíduo não possui forças
ou consciência suficiente para validar sua autonomia sobre a própria condição.
A mesma lei também possui regras específicas para a internação involuntária 4. É
previsto inclusive que o médico, entretanto, decide nos casos em que não há família no
momento ou se o risco da não internação é extremo e pode colocar em risco de vida o próprio
paciente e/ou outras pessoas da sociedade. Nesse último caso a alta pode ser recusada,
conforme o artigo 46º do Código de Ética Médico:

2
Lei 10.216/2001, Ministério da Justiça; Fonte: Associação Brasileira de Psiquiatria; Cartilha Direito à Saúde Mental, do
Ministério Público Federal e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão; Governo do Estado de São Paulo.
3
Veja-se o apêndice quanto às especificidades de cada modalidade de internação e suas bases legais.
4
Veja-se também no apêndice as regras específicas para a modalidade de internação involuntária.
8
“É vedado ao médico: efetuar qualquer procedimento médico sem o
esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável
legal, salvo em iminente perigo de vida”.
Também é essa mesma lei que dispôs sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Tal
abordagem demonstra a comorbidade existente entre o uso de drogas e os transtornos mentais.
A Lei de 2001 buscou transformar as práticas antimanicomiais e garantiu não só aos
portadores de transtornos mentais, mas também aos usuários de álcool e outras drogas a
universalidade de acesso e direito a assistência, valorizando a territorialização do
atendimento, edificando redes assistenciais com vistas à reinserção social e ressocialização
dos usuários. Embora, em tese, tal lei trate exclusivamente de transtornos mentais, hoje este
diploma é utilizado na justificativa das internações pela total ausência de um programa, de
uma política e de uma legislação específica para drogo dependentes5.

As leis já citadas (Lei Federal nº 10.216/2001, Decreto Federal nº 24.559/1934 e


Decreto-lei 891 de 1938) são hoje o único amparo legal à internação compulsória utilizada
nas peças e decisões jurisprudenciais, embora existam controvérsias em se considerar a
dependência de drogas como um transtorno mental característico, o que ainda mantém tanto
as internações involuntárias, quanto os procedimentos terapêuticos em aberto e sujeitos a
estudos e propostas. O nosso tratamento procura, portanto, acompanhar, bem como produzir
resultados em consenso, tanto clínica quanto judicialmente, no conjunto mais adequado de
soluções aos pacientes que requerem nossos cuidados.
Afinal, as Clínicas Estância nascem como uma contestação aos extremos dos
movimentos favoráveis e contrários às necessidades de internações, sobretudo as
compulsórias e involuntárias, pois, ao mesmo tempo que compreendemos a necessidade das
reformulações propostas pelos movimentos antimanicomiais de desinstitucionalização e
desospitalização dos que sofrem de distúrbios mentais e comportamentais, representados por
ilustres psiquiatras e psicólogos como a doutora Nise da Silveira, o Psiquiatria Social Luiz
Cerqueira e seu combate à “indústria da loucura”, Franco Basaglia, Maxwell Jones, entre
tantos outros que contribuíram para a conquista de tratamentos mais humanizados. Porém,
entendemos que em alguns casos as internações mostram-se necessárias por um curto
período, onde um hospital com infraestrutura para atender as necessidades de cuidado e uma
equipe preparada e voltada para a terapêutica, oferecem um auxílio muito maior ao paciente

5
Em apêndice também destacamos o caso que estabeleceu o princípio da jurisprudência.
9
que se encontra geralmente em uma situação que tanto por sua autonomia, quanto pelos
esforços de seus familiares, que sofrem e adoecem junto, não conseguem estabelecer para si
mesmos, qualidade de vida.
Em nossas clínicas, o paciente deve procurar aderir ao tratamento e não apenas
cumprir um determinado número de dias, pois a questão está justamente em resgatar seu
processo histórico para que possamos avaliar o que o levou à situação de crise. O tempo não é
pré-determinado genericamente, mas estabelecido a partir da necessidade de cada caso.
Entendemos, portanto, a necessidade de um tratamento diferenciado para cada paciente. O
contexto de convivência na própria clínica fornece um conjunto de situações de troca, da
necessidade de disciplina que permite a reeducação necessária ao posterior convívio social.
Novamente, o nosso ambiente terapêutico procura favorecer a conscientização do paciente de
sua doença, e ao mesmo tempo, a identificação de si mesmo e das próprias forças que possui
para controlar ou vencer o que está adoecido, por que se ama e vai procurar o melhor para si.
Em seu curto período de internação, procuramos estimular seu autoconhecimento e seu afeto
por si mesmo. Acreditamos nesse potencial humano, o qual através de suas próprias
capacidades pode aprender a se cuidar e atingir o que de melhor consiga para si mesmo. Se a
pessoa adquire consciência de suas dificuldades e limitações, mas também de sua capacidade
de resiliência, de controlar-se, tomar seus medicamentos, por exemplo, poderá com sua
própria autonomia reinserir-se positivamente na sociedade.
A multiplicidade dos casos e as variações legais sobre os diferentes tipos de internação
que atendemos, levam-nos a buscarmos sempre a excelência dos serviços que prestamos em
nossas Clínicas Estância, concernente às condições dos diferentes indivíduos aos quais nos
defrontamos e assumimos legal e clinicamente: a responsabilidade de cuidarmos dessas
pessoas, considerando justamente que sua autonomia psiquiátrica momentaneamente está
prejudicada e a nós cabe fornecer a qualidade e os esforços para a sua reabilitação psicofísica
e social, e jamais olvidemos de que todo procedimento terapêutico contém em sua essência
os conceitos de dignidade e liberdade da vontade humana, respeitando seus direitos de
cidadania. Ao afirmarmos que propomos um método humanista de tratamento, portanto,
levamos em consideração a complexidade e a individualidade que representa cada ser humano
que nos recorre, bem como a especificidade de sua situação, porém, à todos, compartilhamos
da esperança de que nos esforços de todos estão as chaves para a reintegração do paciente na
sociedade de forma positiva e participativa.

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Eu

“Conhece-te a ti mesmo”
(do grego: “Gnôthi seautón” e do latim: “Nosce te ipsum”)6

Iniciando os temas que constituem nossos tópicos de tratamento, as reflexões sobre o


eu, representam em si o início do próprio processo terapêutico. Assim como a máxima
socrática, conhece-te a ti mesmo, retirada do portal do oráculo de Delfos, simbolicamente
marca a transição de todo um período do pensamento, inaugurando a filosofia antropológica,
levando os atenienses, instigados por filósofos como Sócrates no século V a. C. a
questionarem-se: Quem somos nós? E, com isto, balançar os alicerces da mitologia e da
autoimagem dos gregos, levando-os a realizarem uma profunda autorreflexão. Da mesma
maneira, a filosofia das Clínicas Estância pauta-se por auxiliar nesse processo de
consciência, de autoconhecimento, propiciando aos indivíduos refletirem e a
redimensionarem a si mesmos, a realidade e sua qualidade de vida, fortalecendo seu auto
propósito em ser mais na busca de sua plenitude. Fundamentando nossa máxima: “para ser é
preciso ter a coragem de se conhecer!”, entendemos que a vida é desafio constante e na
medida que fugimos dos desafios, e de nós mesmos, estamos escolhendo deixar de viver.
Consideramos, portanto, de primordial importância iniciarmos os estudos e os
tratamentos pautados sobre os diferentes aspectos que constituem o eu (ego), partindo desta
retomada interior para a jornada em busca de nosso equilíbrio e felicidade.
Conceituando o eu, esta “instância psíquica” do sujeito, dentro de uma perspectiva
psicanalítica freudiana (Freud destaca a relação da constituição do eu enquanto esta
instância entre o id e a alteridade – o superego7) em que o sujeito é o processo (instância)
6
Máxima socrática, inscrição no portal do oráculo de Delfos
7
Sigmund Freud – 1856-1939, onde desde 1895 em: Projeto para uma psicologia científica, em 1914 - Narcisismo: uma
introdução, aprofundando-se em suas considerações chega até Psicologia das massas e análise do eu, em 1920-1923 e O
Ego e o Id e outros trabalhos, 1923-1925, onde aborda as instâncias id, superego e ego.
11
resultante dos confrontos entre suas pulsões de vida (seus desejos de realização) e os limites
(repressões, os interditos e normas) dados pela realidade. Vejamos um pouco deste processo
de formação.
Desde o início da formação do ser humano, segundo o clássico manual de Langman
sobre embriologia, quando o espermatozoide ingressa no gameta feminino, os núcleos
masculino e feminino entram em contato íntimo e replicam seu DNA. Esta nova célula
chamada zigoto possui uma identidade genética própria, diferente das que se uniram, dadas
por seus progenitores. Fundindo o DNA, formando uma nova estrutura e padrão, o motor do
desenvolvimento embrionário então inicia uma nova vida. Este novo ser vivo, já um embrião,
se divide em células que se multiplicam até formarem um indivíduo completo e estruturado.
Desde o zigoto, já se estabelece um programa de vida individual, possuindo polaridade e
assimetria (o que o diferencia de qualquer outra célula) e, a partir da região em que o
espermatozoide alcança o óvulo, produz-se uma liberação de íons de cálcio que se difundem
como uma onda, até a área oposta. Esta região do óvulo em fecundação será o dorso do
embrião, perpendicular a ele, estabelece-se o eixo cabeça-extremidade. Vemos que desde o
início, a vida de um indivíduo configura-se ao nascimento de um universo...de um big-
bang! Desde seu processo celular vemos uma expansão contínua, formando seu corpo que,
se não for interrompido ou atrapalhado por circunstâncias externas, cumpre a programação
estabelecida pela vida, passando por cada um de seus estágios evolutivos, até sua morte
natural.
Nos primeiros dias a partir da fecundação, o zigoto inicia seu desenvolvimento
segundo a forma corporal dada por seus eixos (a relação de assimetria, oferece sempre ao
indivíduo uma forma única) e as células vão gerando órgãos e tecidos, concomitantemente ao
desenvolvimento do sistema cerebral que conjuntamente ao seu corpo, forma sua identidade.
Ainda em processo formativo, o corpo estabelece uma identificação íntima, pessoal entre
corpo e mente. Entre a identidade biológica e a pessoa que resulta desta união, continua a
fusão de um eu que se mantém em expansão, indeterminado e que nunca se completa
definitivamente.
Com a união dos pais, o indivíduo recebe não apenas sua carga genética, mas o
histórico de suas origens, da sua cultura, de suas cargas emocionais e do contexto em que foi
gerado. Seu nascimento reflete não apenas a união dos gametas, mas da união do encontro
dessas duas pessoas, e a realidade desta união é parte da identidade que está se formando no

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indivíduo. Os diferentes contextos e influências que o indivíduo recebe serão fundamentais
neste processo de formação.
A questão: “quem sou eu?” é realmente umas das mais difíceis. A psique humana,
talvez mais do que as reações de um ego que se equilibra e se desequilibra nos confrontos
entre o id e o superego, pode ser considerada por toda a toda profundidade que ela abrange em
uma perspectiva ontológica8, isto é, do que é inerente, intrínseco do sujeito, aquilo que ele é
independente de fatores externos, pertence ao campo da metafísica9. Porém, no campo da
realidade do ser, onde pensamos justamente a influência dessa realidade em constante
mudança no desenvolvimento do ente (ser) que também está em transformação, é
fundamental uma análise mais profunda desse processo para refletirmos sobre como
acolhermos e aceitarmos sem estigmatização cada paciente que nos chega e requer nossos
cuidados.
Desde o nascimento, o ser vai experimentando a realidade, colhendo impressões,
descobrindo o próprio corpo e o mundo ao redor. Como a semente de uma flor que brota de
dentro para fora, onde o que está fora se relaciona e influencia no que está dentro da semente.
Investigar o mundo é uma experiência humana básica para nossa adaptação à vida. As
sensações de prazer às quais buscamos repetir e as de negação e desprazer às quais buscamos
evitar são fundamentais em nosso processo de formação da identidade. O eu que desde a
união das células surgiu e explodiu em expansão segue um programa energético que, além
de seu crescimento fisiológico, o qual obedece a programação de infância, juventude,
maturidade e velhice, também possui um processo de expansão da consciência que quer
compreender, experimentar, atingir e invadir tudo! Como o Big-bang em expansão, busca
ocupar toda a realidade, impulsionado por um instinto vital de sobrevivência e reprodução,
onde continuamente procura romper seus limites e transcender a realidade imposta.
A consciência humana, capacidade de saber que sabe (homo sapiens sapiens), possui a
sensação de self (onde identificamos a consciência reflexiva, que é o conhecimento sobre si
próprio e a capacidade de ter consciência de si, a interpessoalidade dos relacionamentos
humanos, através dos quais o indivíduo recebe informações sobre si e a capacidade do ser
humano de agir através de si mesmo), onde existe a presença de um observador que pensa a
própria consciência, essa presença que pensa é o eu (que oferece a sensação de si mesmo). O
cogito ergo sun (penso, logo existo) de Descartes, nos amplia essa reflexão:

8
(do grego ontós, “ser” e logia, estudo ou lógica)
9
(à busca da realidade fundamental de algo, de sua essência ou substância)
13
“Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada
indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer
em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem.
E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de
que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é
justamente o que é denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens; e,
assim sendo, de que a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem
alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por
caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o
espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos
maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito
devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que
aqueles que correm e dele se afastam.”10

Ele considera a capacidade humana de pensar, de refletir 11, como a que identifica que
a realidade é dada pela consciência, pela nossa particular situação existencial de estar no
mundo, em um tempo e espaço em que podemos estar cientes da realidade ao nosso redor, de
nossas próprias interferências e transformações. Porém, junto a esta condição de consciência,
a psicologia nos ensinou que possuímos também um inconsciente que nos influencia e
determina.
Freud afirmou que a maior parte de nossas vidas psíquicas é dominada pelo
inconsciente, o exemplo de um iceberg reflete essa ideia, onde a consciência é apenas a ponta
que aparece sobre o pré-consciente, isto é, os fatos psíquicos latentes (que se ocultam) mas
suscetíveis de se tornarem conscientes e, este, ligado ao inconsciente, formando a figuração
espacial do aparelho psíquico. O aspecto mais profundo da psique humana é, portanto, o
inconsciente. Boa parte de nossos desejos, nossos atos falhos, lembranças, medos, sonhos, são
expressões dele. Quando nossa consciência deseja renegar essas ideias e lembranças, é em
nosso inconsciente que ocorre a censura e o recalque, mantendo esses conteúdos reprimidos,
ocultos da consciência, porém, influenciando todo o estado emocional da pessoa. É
justamente no inconsciente que surgem as angústias, as neuroses, os distúrbios que, sob as
tensões, afloram na consciência como dando vazão ao que estava “contido”.
Segundo a teoria freudiana, o aparelho psíquico estaria estruturado em três instâncias:
id, superego e ego.

10
DESCARTES, R. Discurso do Método. Martins Fontes. São Paulo, 2021. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/363690/mod_resource/content/1/DESCARTES_Discurso_do_m
%C3%A9todo_Completo.pdf> . Acesso em: 09.nov.2021.
11
Refletir, do latim reflectere, que significa voltar atrás. Repensar.
14
O id é a instância mais antiga do inconsciente e da psique de um indivíduo, presente
desde o nascimento, nele predominam os impulsos corporais e os desejos inconscientes,
regido pelo princípio de prazer, ligado à libido, empurra os indivíduos a buscar o que lhe
traz satisfação e a negar o que lhe traz insatisfação. É o id que caracteriza a identidade, aquilo
com que nos identificamos, nos apaixonamos, que estava guardado dentro de nós, mas que
aflora em nossos gostos e impulsos. Os desejos humanos, estimulados pelo id, desconhecem
os limites da realidade e formam-se como pulsões dentro do indivíduo que lhe caracterizam a
conduta e o pensamento, estes refreados pelos limites da realidade.
O superego, é outra instância do consciente, formada no processo de socialização,
onde os princípios de realidade se interpõem aos desejos. Constituído principalmente na
interação com os pais, com os limites, com os “nãos” que recebe, o indivíduo vai formando
um conjunto de regras de conduta que entram em confronto com o id. Ele se expressa em
nossa consciência moral, nossa ética pessoal, exteriorizando-se em um eu ideal (ego ideal),
onde busca-se atingir e equilibrar uma projeção aceitável de comportamentos compreendidos
como corretos. O superego também representa os limites próprios da realidade circunstancial,
onde estamos limitados pela tecnologia a que temos acesso, pelo nível de conhecimentos que
dispomos e aos quais estamos submetidos. Pois bem, imagine um belo dia de sol em que sinta
vontade de chupar um sorvete e que, enquanto caminha pela rua, vem ao seu encontro uma
criança de seis anos chupando o seu sorvete preferido. Você deseja aquele sorvete e sabe que
consegue tomar o sorvete daquela criança, porém, seus preceitos morais, sua ética,
normalmente deverão (ou deveriam) impedir essa atitude.
Outrossim, também é importante refletir sobre os limites e as condições estabelecidas
pelo contexto onde estamos inseridos, nossa consciência evolui sua percepção e auto
percepção no decorrer de suas fases de infância, juventude, maturidade e velhice, envolvido
pelas características próprias destas fases, como também está limitada ao conhecimento que
possui, porém, a expansão da consciência incorpora também os conhecimentos acumulados
pela humanidade, e no processo em que a ciência, a filosofia, a arte e as tecnologias evoluem,
o ser humano também se transforma na medida em que transforma a natureza. Os limites se
expandem. O conhecimento liberta, na medida em que permite compreensão, sensibilidade e
ações que antes estavam condicionadas a um determinado impedimento físico ou paradigma,
liberta dos limites estabelecidos pela ignorância. Com suas invenções, o homem pôde se
lançar aos oceanos após a invenção da bússola, hoje chegou até a lua. Os instrumentos de

15
comunicação interligam o mundo. Neste aspecto, o superego representa limites, os quais
foram superados, demonstrando a inventividade do eu para a superação.
O eu (ego), é a instância consciente e pré-consciente (potencialmente consciente) do
aparelho psíquico. Ele interage com as necessidades da realidade ao mesmo tempo que sofre
as pressões da realidade interna e inconsciente (id e superego), precisando resolver
continuamente entre seus desejos internos (impulsos) e o seu senso moral (formado pelas
regras e normas sociais). Os conflitos que o ego (consciência) não consegue resolver
começam a serem então, censurados e recalcados no inconsciente, porém sempre
influenciando o indivíduo. A castração de um desejo, por exemplo, está diretamente ligada ao
sentimento de impotência de realização. Aquele “eu” em explosão, que pretende abranger
tudo, vê-se frustrado em suas escolhas e em sua busca de equilíbrio. Porém, quando o
indivíduo em seu questionamento sobre os limites, discorda da validade de suas regras e se
irrompe, se rebela contra a injustiça, vê-se potencializado: como demonstram todos os
movimentos revolucionários e, para destacar um bom exemplo, o da contracultura nos anos 60
e 70, quando são questionadas e exigidas reformulações de leis injustas, da quebra de
racismos, de ser proibido proibir, de se posicionar contra ditaduras e resistir, de lutar pelos
direitos humanos e acreditar numa utopia possível.
Freud também nos oferece fator determinante, a influência das pulsões sexuais na
identidade dos indivíduos, quando nos fornece o papel da libido na psique, porém vejamos
aqui as próprias palavras dele a respeito:
“Libido é expressão extraída da teoria das emoções. Damos esse nome à energia,
considerada como uma magnitude quantitativa (embora na realidade não seja
presentemente mensurável), daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode
ser abrangido sob a palavra ‘amor’. O núcleo do que queremos significar por amor
consiste naturalmente (e é isso que comumente é chamado de amor e que os poetas
cantam) no amor sexual, com a união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso
— que, em qualquer caso, tem sua parte no nome ‘amor’ —, por um lado, o amor-
próprio, e, por outro, o amor pelos pais e pelos filhos, a amizade e o amor pela
humanidade em geral, bem como a devoção a objetos concretos e a ideias abstratas.
Nossa justificativa reside no fato de que a pesquisa psicanalítica nos ensinou que
todas essas tendências constituem expressão dos mesmos impulsos instintuais; nas
relações entre os sexos, esses impulsos forçam seu caminho no sentido da união
sexual, mas, em outras circunstâncias, são desviados desse objetivo ou impedidos de
atingi-lo, embora sempre conservem o bastante de sua natureza original para manter
reconhecível sua identidade (como em características tais como o anseio de
proximidade e o auto sacrifícios).

16
Somos de opinião, pois, que a linguagem efetuou uma unificação inteiramente
justificável ao criar a palavra ‘amor’ com seus numerosos usos, e que não podemos
fazer nada melhor senão tomá-la também como base de nossas discussões e
exposições científicas. Por chegar a essa decisão, a psicanálise desencadeou uma
tormenta de indignação, como se fosse culpada de um ato de ultrajante inovação.
Contudo, não fez nada de original em tomar o amor nesse sentido ‘mais amplo’. Em
sua origem, função e relação com o amor sexual, o ‘Eros’ do filósofo Platão
coincide exatamente com a força amorosa, a libido da psicanálise, tal como foi
pormenorizadamente demonstrado por Nachman Sohn (1915) e Pfister (1921), e,
quando o apóstolo Paulo, em sua famosa Epístola aos Coríntios, louva o amor
sobretudo o mais, certamente o entende no mesmo sentido ‘mais amplo’. Mas isso
apenas demonstra que os homens nem sempre levam a sério seus grandes
pensadores, mesmo quando mais professam admirá-los. A psicanálise, portanto, dá a
esses instintos amorosos o nome de instintos sexuais, a posteriori em razão de sua
origem.”12

A libido, enquanto busca de realização do que amo, do que desejo, pulsão do centro
emocional, também está sujeita à análise por aquele eu que pensa. Este eu que observa as
emoções e que pode buscar compreendê-las, direcioná-las, potencializá-las para seu
fortalecimento e bem-estar, para sua condição de expansão e plenitude, sua condição de
transcendência.
Leonardo Boff, em seu livro “Tempo de transcendência, o ser humano como um
projeto infinito”, nos apresenta esta condição de nossa existencialidade:

“Somos seres inacabados, os quais nos moldamos perante a realidade que estamos
circunscritos, através de nossa liberdade...Somos seres de imanência, ao estarmos
condicionados a um contexto, um corpo, a uma realidade, mas também somos seres
de transcendência, pois nossos pensamentos habitam as estrelas, nossos desejos nos
impulsionam a viver e a buscar sempre mais. Ousamos romper os limites a que
estamos submetidos, somos seres de potencialidade permanente, seres utópicos que
sonham para além daquilo que é dado. Nada pode enquadrar-nos em definitivo:
nenhum sistema político ou econômico, por mais severo que seja, consegue
delimitar-nos e convencer-nos: não há outro caminho a seguir. O ser humano é
criativo, pensa alternativas e se rebela, levanta-se e protesta, funda outras ordens,
outros direitos difusos, ligados à vida. Mesmo nos piores cárceres e escravidões se
cantavam hinos à liberdade. O ser humano é um projeto infinito...” 13

12
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. Disponível em: <https://docplayer.com.br/57192-
Psicologia-das-massas-e-a-analise-do-eu.html>. Acesso em: 09.nov.2021
17
Este eu (ego) individual que marca nossa personalidade, sempre permanecendo e ao
mesmo tempo mudando (dialeticamente), em fluxo, sob as tensões, indeterminado, também
pode ser percebido de maneira poética, como faz João Guimarães Rosa, um dos maiores
escritores brasileiros, em sua obra Grande Sertão: Veredas, quando nos diz através de seu
personagem Riobaldo:

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso
que me alegra de montão.” 14
Nossa filosofia, nas Estâncias Clínicas possui sua fundamentação humanista,
alinhada a essas prerrogativas: o ser humano é um projeto infinito! O seu eu, sua
individualidade, sua identidade, seus sonhos e sua vida, estão em potencialidade
permanente e a sua evolução em direção à felicidade e equilíbrio estão intimamente ligadas
à sua coragem em se conhecer! Entendemos que é essencial o indivíduo enxergar suas
dimensões, aceitar sua condição de imanência inevitável, seu superego físico, seu
cotidiano, seu corpo, sua história pessoal, mas ao mesmo tempo, perceber-se aberto,
transcendente. Que perceba que é capaz de domesticar passo a passo os demônios que
afligem sua psique, ser resiliente e utilizar as dificuldades canalizando suas energias para
retomar o leme e seguir adiante.
Como nos lembra Antônio Machado, poeta espanhol: “caminhante não há caminho, o
caminho se faz ao caminhar”, fazemos do cotidiano as bases deste caminho, e, da frase
atribuída a Albert Einstein: “viver é como andar de bicicleta. É preciso estar em constante
movimento para manter o equilíbrio”, utilizamos da dinâmica dos dias, do movimento entre o
ser e a realidade, para alcançarmos juntos o equilíbrio possível. Neste equilíbrio, aprender a
pedalar pela vida. Encerrando este tópico, retornemos ao João Guimarães Rosa quando
também nos lembra que nos detemos, preocupados demais com origem e fim de tudo, quando
o mais importante se dispõe durante a travessia, assim, que nesta jornada de descoberta e
expansão individual, na companhia de tudo, o eu de cada paciente, possa desempenhar para si
mesmo, o papel de um bom guia.

13
BOFF, L. Tempo de Transcendência: o ser humano como um projeto infinito. 3. ed. Rio de. Janeiro: Sextante,
2000.
14
ROSA, J.G. Grande Sertão: Veredas. Ed. Nova Fronteira. (Cidade),(ano).p39.
18
Aceitação do eu

“O ser humano só conhece o mundo dentro de si


se toma consciência de si mesmo dentro do mundo”
Johann Wolfgang von Goethe

Em nossas considerações sobre o eu, percebemos que, sob as tensões entre o id e o


superego, não permanecemos sempre os mesmos. Estamos uns dias mais entusiasmados e
alegres, outros dias nos sentimos angustiados, tristes, aflitos. Sofremos diversas alterações de
humor e variações em nossos estados emocionais e comportamentais por inúmeras questões.
Porém, não somos apenas os estados emocionais que apresentamos no momento, não estamos
puramente à deriva, à mercê dos acontecimentos e das emoções. Conhecer a nós mesmos e
aceitar nossa singularidade, é partir da compreensão de que somos uma síntese da integração
de características hereditárias e adquiridas, inatas e aprendidas, que possuímos um processo
histórico, que nos compõe elementos do estado de natureza e da cultura, que somos
protagonistas de nossas histórias pessoais e que possuímos um papel ativo em nossa realidade
interior e exterior. Também é essencial percebermos a influência que os outros exercem sobre
nós e as expectativas que construímos em relação aos grupos sociais que nos rodeiam, pois, os
fatores externos (superego) são fundamentais na construção de nossa autoimagem (self),
aceitar a si mesmo é aceitar a realidade.
Os fatos sociais que marcam o contexto de nosso nascimento e crescimento, as
condições materiais de nossa existência, sejam de pobreza ou riqueza, de cuidados excessivos
ou carência, não anulam o fato de que é necessário aceitarmos a realidade em que estamos
inseridos e aceitarmos a nós mesmos nesta realidade. Jean Paul Sartre, quando afirma que “o

19
homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”15 fortalece a condição da
liberdade humana de escolher e de ser livre. A importância da aceitação de si mesmo e de sua
circunstância real no mundo, é a condição fundamental para que se possa dar os primeiros
passos em direção à mudança, à superação que se almeja em sua própria vida. Sem a
aceitação de sua realidade, o ser humano se perde em suas próprias fantasias, em si mesmo e
no mundo que criou para si.
Em seu cotidiano o indivíduo, dependendo do seu estado emocional, se julga melhor
ou pior. Quando estamos bem, nos achamos os melhores e quando estamos mal, os piores do
mundo, mas a visão correta sobre nós mesmos demanda a análise de nosso processo histórico
juntamente com o que é circunstancial no momento presente. É fundamental uma reflexão em
como lidamos com os limites a que estamos sujeitos e em como lidamos com a realidade a
que estamos submetidos: se nos causam frustrações ou se as encaramos como desafios que
nos impulsionam para realizações. O ego que se estabelece entre as tensões do id e do
superego, vê-se continuamente afetado por sentimentos, sensações e emoções. Procurando se
equilibrar, resolver estas tensões de variadas formas, entre elas, tentando fugir e esconder da
própria consciência a realidade que lhe oprime. Ao renegar a si mesmo e sua realidade, o
indivíduo estabelece a gênese de inúmeras perturbações.
Ao retomarmos nossa história vemos que nossos próprios nomes nos foram dados,
parte que já nos influencia e nos afeta diretamente: posso gostar ou não do nome escolhido.
Nasci em determinada família, onde recebi uma determinada carga de afetividade. Nasci com
um determinado corpo, o qual posso gostar ou não. O que justamente destaca este tema, é se
aceito minha realidade: meu corpo, meu sexo, minha família, minha história, meu eu.
Ao examinarmos a nossa realidade e nos depararmos com nossas capacidades e nossos
limites, podemos decidir em vez de renegarmos nossos problemas e construirmos fugas,
procurarmos encarar esses limites e buscar superá-los. Desenvolver nossos potenciais, nossas
capacidades será o grande desafio. Buscar encontrar e desenvolver os potenciais, as
qualidades que nos ajudarão a superar os limites, é um aspecto fundamental do processo
terapêutico. Vejam-se exemplos históricos de pessoas que mesmo em uma situação de
cárcere, como podemos retomar as figuras de Nelson Mandela, e Mahatma Gandhi, que
aceitaram a realidade ao qual estavam submetidos e utilizaram aquela condição para
fortalecerem a afirmação do seu eu, consolidando a congruência do seu self 16, reforçando e
afirmando para si mesmos suas capacidades de resiliência e superação: “Quando eu estiver
15
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo. Coleção Os Pensadores. Ed Nova Cultural. (ano), p.6.
16
BERTRAND, Y. Teorias contemporâneas da educação. Lisboa: Instituto Piaget. 1991. p 39 e 40.
20
contigo no fim do dia, poderás ver as minhas cicatrizes, e então saberás que eu me feri e
também me curei.” Como diz poeticamente Rabindranath Tagore.
Carl Rogers (1902 – 1987), conhecido pelo método de psicoterapia chamada de terapia
não diretiva, onde num relacionamento em que o indivíduo estabelecendo confiança em seu
terapeuta, enfatiza a reflexão sobre sua vida interior, suas sensações, sentimentos e utiliza seu
potencial criativo para enfrentar suas dificuldades, também aponta que na formação da
personalidade sofremos congruências e incongruências em relação ao nosso self. Como
congruências, podemos entender as relações de conformidade entre o que desejamos, como
nos percebemos, como sentimos e como somos recebidos e aceitos pelos outros. E, estas
sensações constroem em nossa visão de nós mesmos um estado positivo, que nos leva a uma
posição de ajustamento, comodidade e aceitação da realidade, sem ansiedades e frustrações.
Mas as incongruências, onde o nosso estado interior não é aceito ou harmonioso com a
realidade, nos leva a um estado de desconfiança e ansiedade, enrijecemos, fugimos e nos
posicionamos defensivamente. Ou seja, como lidamos com a visão que os outros estabelecem
sobre nós com a visão que possuímos sobre nós mesmos e a correspondência com a realidade.
As duas são importantes para a formação de nossa personalidade, pois os outros
(superego) representam os parâmetros a que estamos sujeitos para pertencermos aos quesitos
exigidos pela “normalidade” das regras sociais. As incongruências nos apontam a realidade e
as discrepâncias de nossos comportamentos juntos aos outros. Encararmos a realidade,
independente da congruência ou não que ela representa ao nosso self, ou seja, mesmo
causando frustração em nossa autoimagem, é uma condição fundamental percebê-las para
estabelecermos os passos em direção ao nosso eu real e encararmos os desafios da
convivência e das possíveis resoluções das incongruências que sentimos.
A necessidade de se sentir amado, condição universal do ser humano, nos esforços de
receber este amor a qualquer preço, pode formar comportamentos que não são saudáveis. Na
necessidade de agradar o mundo a qualquer preço para receber afetos, pode firmar uma
personalidade que, carente em sua autoestima, deforma sua realidade interior. O ser assume
uma máscara para ser aceito, mas que é incongruente com seus sentimentos e com seu
organismo. É incongruente com seu id, com aquilo que realmente se identifica. Esta condição
de se submeter às condições adversas à própria vontade, na busca de apenas receber
aprovação dos outros é determinante para o acúmulo de frustrações. A personalidade do ser
constrói-se com o desenvolvimento de sua consciência moral, que está além do seu senso
moral, isto é, porque corresponde às escolhas realizadas pela sua consciência, e não apenas a

21
incorporação conveniente e automática das normas. É a consciência moral, estendendo-se às
atitudes que o indivíduo estabelece perante a realidade que forma o seu caráter, ou seja, gera
através de sua autonomia, determinado comportamento ético. Nossas escolhas e atitudes
refletem nossa consciência moral, nossa ética pessoal. Eis a base das reflexões deste tema:
como aceitamos o nosso eu? Como enxergamos nosso comportamento?
A ética aqui compreendida e refletida em seu sentido originário, de ethos, referente às
“normas da casa”17 onde o indivíduo pela compreensão de determinada norma ou princípio, à
obedece de maneira autônoma, pela consciência de que está praticando atitudes que o
conduzem à sua felicidade.
Certa vez conheci um intelectual poliglota que me falou a respeito de como chegou a
aprender sete idiomas. Disse que órfão, passou a infância em um orfanato que possuía uma
ordem extremamente rígida, onde precisava manter o completo silêncio, inclusive enquanto
transitava em grupo, pela cidade entre o orfanato e a escola. Contou o tempo que gastava
entre as caminhadas e decidiu aprender um número de palavras de outra língua enquanto
cumpria os trajetos. Da mesma forma, entendemos em nossa filosofia que apesar dos limites
que a realidade impõe, o ser pode sempre utilizar seu potencial para expandir e superar estes
limites.
A decisão de usar sua realidade, diga-se sufocante, em benefício de si mesmo,
geraram-se instrumentos que o beneficiaram em sua vida. A aceitação da realidade e a ética
pessoal como princípio regulador da vontade, é a prática que nos leva às virtudes: “circulum
et calamus fecerum me” (o que fazemos do que as circunstâncias fazem de nós). Aristóteles
em seu livro Ética a Nicômaco, nos diz que a virtude pode ser adquirida, sendo na realidade
resultado de um hábito:
“A virtude é uma disposição adquirida voluntariamente, consistindo, em relação à
nós, em uma medida, definida pela razão conforme a conduta de um homem que age
refletidamente. Ela consiste na medida justa entre dois extremos, um pelo excesso,
outro pela falta 18”

Por isso o comportamento ético é fundamental na análise do processo terapêutico, pois


nosso comportamento em relação aos outros e às situações, reflete nossa postura em relação a
nós mesmos. Os valores que alimentamos internamente sobre nós mesmos e que externamos
em atitudes de resposta às demandas da realidade e aos outros. Quando aceitamos nossos
defeitos, podemos nos cuidar. Como cuidaríamos de outra pessoa em suas dificuldades: “Eu

17
Do grego ethike, de ethikós: que diz respeito aos costumes
18
Ethica Nikomacheia, tratado de ética de Aristóteles na qual ensina ao seu filho Nicômaco a ética,
comportamento adequado, onde, se ele demonstrar prudência (phronesis) em suas decisões, poderá alcançar a
felicidade (eudamonia).
22
tenho que me amar e cuidar de meu problema, como cuidaria de quem amo, apesar de seus
problemas”! Porém, para aprender a se amar, o indivíduo deve buscar a aceitação de si
mesmo, pois, “na medida em que não me aceito, eu não sou eu, vou estar escondendo o
eu real que sou”.

A belíssima canção de Flaira Ferro, “Me curar de mim”, traduz muito bem a ideia de
nos aceitarmos, juntamente com a importância de reconhecermos nossos defeitos:

Sou a maldade em Esse de um metro Sou mesquinha,


crise e sessenta grão de areia
Tendo que Devo a ele estar Boba e
reconhecer atenta preconceituosa
As fraquezas de Não posso mudar o
um lado outro Sou carente,
Que nem todo amostrada
mundo vê Eu quero me curar Dou sorrisos, sou
Fiz em mim uma de mim corrupta
faxina e Quero me curar de Malandra,
Encontrei no meu mim fofoqueira
umbigo Quero me curar de Moralista,
O meu próprio mim (refrão) interesseira
inimigo
Que adoece na Vou pequena e E dói, dói, dói me
rotina pianinho expor assim
Fazer minhas Dói, dói, dói,
Eu quero me curar orações despir-se assim
de mim Eu me rendo da
Quero me curar de vaidade Mas se eu não tiver
mim Que destrói as coragem
Quero me curar de relações Pra enfrentar os
mim (refrão) meus defeitos
Pra me encher do De que forma, de
O ser humano é que importa que jeito
esquisito Preciso me Eu vou me curar
Armadilha de si esvaziar de mim?
mesmo Minhas feras
Fala de amor encarar Se é que essa cura
bonito Me reconhecer há de existir
E aponta o erro hipócrita Não sei. só sei que
alheio a busco em mim
Sou má, sou Só sei que a busco
Vim ao mundo em mentirosa
um só corpo Vaidosa e invejosa

23
A aceitação de quem somos também se torna difícil porque nos comparamos aos
outros e ao que acreditamos que esperam de nós. Nossa preocupação em corresponder às
exigências geram as incongruências em nosso self, o que nos leva à confusão e à negação de
nós mesmos. É necessário que se realize uma imersão em si mesmo, como um ato de amor.
Imersão com a coragem de, portanto, reconhecer as fraquezas, os limites, as condições. Trazer
para o eu consciente, a realidade. Aceitá-la para poder transformá-la. Reconhecer os defeitos,
mas também as qualidades positivas que se possui para controlá-los e superá-los.
Compreendermos que devemos desenvolver nossas capacidades, nossos valores pessoais para
que não nos identifiquemos com nossos problemas, sejam eles a dependência química, os
distúrbios e transtornos, mas que nos vejamos além dessas nossas dificuldades. É quando
se aceita e se encara a realidade, sem desculpas e fugas que realmente se inicia o
processo terapêutico.

Em nossa filosofia e dentro de todo o processo terapêutico de sua internação,


preservamos e reforçamos a importância do sigilo profissional entre paciente e terapeuta, pois
na delicadeza de respeitar a história do paciente e na confiança de que sua intimidade será
preservada, o clima de confiança e de aceitação é o que faz com que o indivíduo permita
receber ajuda para os processos de imersão em si mesmo. Com apoio, se aceite dentro de sua
realidade e possa estabelecer sua jornada em busca da sua superação.
Aceitar o eu é perceber-se holisticamente. Historicamente. Fisiologicamente. Ser
realista consigo mesmo, porém, não se definir apenas em suas dificuldades e limites, mas
descobrir em sua condição humana o potencial de transcender os desafios de sua realidade. É
fundamental assumirmos também nossa realidade interior e estabelecermos nossa auto
proposição em afirmarmos que nossa parte sadia pode curar nossa parte doente! Devemos
encarar o processo de que aquele eu, que em sua explosão quer abarcar o universo, invadir
tudo, deverá reconhecer que possuirá limites, que a sociedade e a realidade, lhes reivindicarão
condições. Este muro que chamamos de superego, entrando em conflito com aquela força
energética que chamamos de id, situa o nosso eu (ego) nesta zona de confronto, onde os
limites trarão frustrações, mágoas, mas enfatizamos que poderão ser vistos e encarados como
desafios, como possibilidades de superação.
A nossa filosofia procura ajudar neste processo, auxiliando nossos pacientes a
adotarem a postura do guerreiro que enxerga os conflitos, procura encarar a sua realidade
acreditando em seus potenciais, aprendendo a respeitar determinados limites e estabelecer um

24
processo terapêutico acreditando, portanto, que ninguém é definido por suas doenças e
dificuldades, mas que sua potencialidade para “ser mais” está sempre aberta a uma
possibilidade de maior qualidade de vida e felicidade.

25
Édipo

“A ideia de que profanarás o leito de tua mãe te aflige;


mas tem havido quem tal faça em sonhos...
O único meio de conseguir a tranquilidade de espírito
consiste em não dar importância a tais temores.”
Édipo Rei - Sófocles

Quando falamos em relações parentais e na influência que exercem na formação do


indivíduo, dentro da área de saúde mental, surge imediatamente a figura de Édipo,
representando um dos eixos estruturais das problemáticas da teoria e da clínica psicanalítica.
Freud estabelece o Complexo de Édipo considerando a influência fundamental que o
pai e a mãe exercem na formação da personalidade do indivíduo. Em seu livro A
interpretação dos sonhos, de 1899, já apresenta o Complexo de Édipo como um fenômeno
universal, o qual todo ser humano está sujeito. Em seu texto específico sobre o tema
escrito em 1924: “A dissolução do complexo de Édipo”, ele afirma a importância do papel do
outro (superego) na constituição da personalidade, ao estabelecer o período em que o
indivíduo concebe a diferenciação entre os sexos e o seu posicionamento frente à angústia da
castração, isto é, ver seus impulsos serem reprimidos pelos pais.
Essa trilogia, pai mãe e filho, onde o filho busca a atenção e o amor da mãe, e o pai,
fica ciumento desta atitude ao ver a mãe espontaneamente dar-lhe todo amor, sendo atenciosa
e superprotetora com a criança. Esta situação forma um complexo de relações que irão
influenciar profundamente a identidade e a afetividade do sujeito, fundamentalmente entre
seus três a cinco anos, durante o período de sua fase fálica, como poderemos refletir durante
este tópico.
Na literatura, de onde Freud encontra os elementos para sua teorização sobre a
influência dos pais na constituição do sujeito, além do Édipo Rei de Sófocles, também faz
referência a Hamlet, de Shakespeare, e aos “Irmãos Karamazov” de Dostoievski, onde aborda
as questões do parricídio e a figura totêmica do pai. Édipo, enquanto símbolo universal,
aparece em diferentes povos, culturas e tradições.
Na própria tradição grega, ao retomarmos a titanomaquia, deixada por Hesíodo (que,
junto com Homero, forma as principais referências do mundo mítico), na sua obra Teogonia
(do grego théos, “deus”, e gónos, “origem”) apresenta a formação do mundo para os gregos

26
(cosmogonia). Vemos na história contada, a sucessão estabelecida desde Urano (o céu
estrelado) ao ter filhos com Gaia (a Terra) e, impedi-los de nascerem por medo de usurparem
seu poder, até que Gaia esconde do pai o nascimento de Cronos, que cresce escondido e
aparece então para castrar o pai, que se separa e se distancia da Terra, deixando a supremacia
para Cronos. Este então passa a ter filhos com a irmã, Reia Sílvia, os quais são os deuses que,
novamente, despertam o medo do pai em ser substituído que passa a devorar os filhos que
nascem. É recorrente a situação, pois, Reia Sílvia também sente pena de ver seus filhos
impedidos de nascerem e esconde Zeus da crueldade do pai. Ele também cresce em segredo
até que retorna e toma o lugar do pai, libertando seus irmãos e estabelecendo uma nova
sucessão da ordem (cosmos). Desde o início, de um caos forma-se uma ordem. De relações
conflituosas entre filho e pai surge uma nova forma, um novo universo, um novo eu.
A fim de podermos refletir com mais fundamentação sobre o complexo de Édipo,
vamos aprofundar mais seus conceitos, retomando seus reflexos a partir da História e de suas
projeções na cultura. Freud entrou em contato com a peça de Sófocles (496 – 406 a.C.), a qual
vinha sendo apresentada em Viena e, entre 1880 e 1890 alcançou grande sucesso. Encontrou
nela a representação de um complexo que considerou universal a todas as pessoas:
especificamente em seu período fálico (3 a 5 anos), momento em que se estrutura a
personalidade da criança, ela começa a se sentir atraída pelo genitor do sexo oposto,
relacionando-o como objeto de desejos do id, ao mesmo tempo que percebe-se como parte
do mundo e não o centro do mundo, onde os pais possuem uma relação afetiva própria, em
que ela não está inclusa. Inicia-se então uma disputa com o progenitor do sexo oposto pela
atenção e satisfação da libido infantil.
Os sentimentos de ciúme do filho e do pai, pela figura da mãe, estabelecem o núcleo
da relação que formará a postura do indivíduo, em retenção ou prospecção, frente aos outros
conflitos que surgirão em sua vida. No caso da menina, também ocorre o fenômeno de
disputar a figura do pai com a mãe. Carl Gustav Jung, propôs o chamado Complexo de
Electra, para especificar a questão feminina, porém Freud recusou a proposta ao analisar o
mito grego que fundamentou a tese de Jung, referindo-se ao fenômeno edipiano como
Complexo de Édipo Feminino.
Este período fálico (após a fase oral e a fase anal), em que a criança descobre as
extensões e prazeres do corpo, ao mesmo tempo que encontra o prazer fálico, percebe que se
levanta um conjunto de limites que são lhe apresentados (o superego), onde enciumado, lhe
são apresentadas (e impostas) as normas a que deverá submeter-se (o que geram frustrações,
castrações de seu desejo). A triangulação desta relação será fundamental na formação da

27
personalidade infantil, vide que as atitudes e mecanismos de defesa construídos para a
resolução de sua situação específica sedimentarão modelos de comportamentos que poderão
ser a origem de muitos conflitos e enfermidades.
Entendida pela psicanálise como uma fase fundamental na formação da identidade
infantil, a criança confusa em perceber a disputa com o pai pela atenção da mãe, ao mesmo
tempo que incorpora a proibição do incesto, deseja e necessita o amor, se identifica com o
progenitor do sexo oposto e recebe sua influência na composição da própria personalidade.
Freud aponta a importância de um pai amoroso, ou outra figura masculina, que deve realizar
um corte no complexo, auxiliando, no caso do menino, a formar sua identidade masculina, ao
internalizar a figura paterna como exemplo para a formação de um tipo ideal (figura
totêmica19) que aparece aos olhos do filho, capaz de conquistar seus desejos.
Porém, hoje em dia, vemos as transformações pelas quais ocorrem os papéis paternos e
maternos no núcleo familiar, onde os paradigmas se alteraram frente às mudanças das
relações parentais, ao aumento da separação dos casais, e, a presença de outros cônjuges,
modificando a influência desses papéis. Também é fundamental considerarmos a realidade
dos fatos sociais a que estamos sujeitos: hoje em dia, com o pai e mãe trabalhando, se relega
desde muito cedo os cuidados da criança às creches, aos avós, e, diria ainda, desregradamente
à influência da televisão, internet e videogames. Obviamente, os valores da cultura de massa
e do consumismo sobrepondo-se aos valores familiares estão modificando a estruturação da
personalidade das novas gerações: os intermitentes estímulos dos desejos, a construção de
inúmeros fetiches e da sexualização precoce, entre tantas outras questões da atualidade,
oferecem parâmetros normativos em desacordo com a própria ética.
Muitas vezes também vemos a figura da mãe assumir os dois papéis nos casos de
separação conjugal, ou, representar um papel paternalista na instituição das regras, e o pai,
mais sensível e afetuoso, representar à criança um papel maternal. Mesmo assim, é possível
que esta troca de papéis, ocorrida de maneira harmoniosa, influencie de maneira equilibrada
na formação identitária. Importante reiterar a importância que esta fase estabelece nos
comportamentos e na identidade sexual do indivíduo, pois, enquanto estrutura maneiras de
conquistar a atenção da mãe, no caso dos meninos, e do pai, no caso das meninas, percebe-se
a introjeção dos comportamentos exemplares: as meninas começam a vestir roupas, brincar
com as maquiagens, da mãe. Os meninos a disputarem conscientemente os carinhos da mãe
confrontando a figura do pai. Também podemos perceber a importância deste momento na

19
Veja-se em Totem e Tabu, sobretudo no capítulo quatro: O Retorno do Totemismo na Infância, onde Freud
aborda a figuração totêmica do pai pela criança.

28
influência da opção da identidade sexual do indivíduo, por exemplo, quando na identificação
com o progenitor do sexo oposto, ou outras composições de influências externas, se
fortalecem as características de comportamentos homossexuais. Diferente da maneira como os
adultos entendem os conceitos de atração e desejo, as crianças associam o outro como
provedor da satisfação e do amor que necessitam e, em sua realidade, as relações morais
(éticas) que construirá em sua personalidade será profundamente influenciada pelos
condicionamentos que formará justamente neste período, enquanto encontra maneiras de
cumprir seus desejos ou se frustra na impossibilidade de realizá-los.
Também podemos refletir sobre as disfunções apresentadas pela influência
desarmoniosa durante este período: quando a criança percebe que a figura do pai, projetada
pela mãe, desestimula o filho a internalizá-la, seja pelas falas da mãe a respeito do pai, seja
pela percepção da criança. Ou ainda na ausência do pai, o menino passa a se basear e
relacionar os afetos sobretudo na figura da mãe. Essa influência o marcará em suas futuras
escolhas amorosas, de maneiras positivas e negativas em suas projeções. Na menina, a
carência do pai ausente, e as substituições que se apresentarão, também marcarão sua
identidade e atitudes nas futuras relações afetivas.
O campo que marca o território afetivo do indivíduo precisa ser fundamentalmente
considerado pois irá influenciar decisivamente no comportamento que ele assumirá para
garantir e preservar os seus afetos, mesmo que para isto tenha que se construir desafetos com
outros que queiram invadir este espaço. Nas relações parentais, e na predominante influência
que exercem no campo emocional do indivíduo, é necessária uma reflexão profunda sobre
como se constrói essa confusa ideia entre amor, proteção e luta, eliminar o oponente, mas ao
mesmo tempo também amá-lo. A insegurança que surge neste processo, reflete-se em
inúmeras atitudes de ciúme e necessidades de posse, para garantir a satisfação de amor. A
maneira como lidará com as “concorrências” futuras na luta pela obtenção do seu desejo: se
negociará, se fugirá, se enfrentará a adversidade, se aceitará a frustração, se deverá entender
que a sujeição, a necessidade de renegar o que se ama, é a melhor atitude, entre tantas outras
situações, podem ser compreendidas melhor ao serem relacionadas, psicanaliticamente, com o
Complexo de Édipo.
A fim de retomarmos algumas características essenciais desse mito grego, descrito
dramaturgicamente por Sófocles, no séc. V a. C., vamos relembrá-lo resumidamente para
alguns apontamentos (Fig. 1):

Laio, rei da cidade de Tebas e casado com Jocasta, foi advertido pelo oráculo que
não deveria gerar filhos, pois se desobedecesse ao aviso divino, seria morto pelo

29
próprio filho e muitas outras desgraças se seguiriam. Mesmo assim, desconsiderando
a previsão, teve um filho com Jocasta. Porém, logo ao nascer da criança, com medo
da profecia, amarrou-a pelos tornozelos e ordenou a um servo que a criança fosse
levada dali e morta. O responsável pela tarefa, compadecido e sem coragem, não
matou a criança, deixando-a com um pastor.

Édipo é levado e entregue ao rei de Corinto, Polibos, que o criou como seu próprio
filho. Ao crescer, ao ouvir rumores de que não era digno de seus pais, procura o
oráculo de Delfos onde recebe um desígnio terrível: matar o pai e se casar com a
própria mãe! Para evitar a tragédia foge de Corinto em direção à Tebas, onde
encontra no caminho o rei Laio, o qual desconhecia e o mata, involuntariamente,
cumprindo parte da profecia.

Continuando sua jornada, também encontra a Esfinge, um monstro que atormentava


a população de Tebas, lançando enigmas e devorando quem não os decifrasse. Ao
apresentar o famoso enigma a Édipo, em que pergunta qual criatura que pela manhã
possui quatro pés, ao meio-dia possui dois e ao entardecer possui três. Respondendo
ao enigma, de que era o homem, o qual gatinha enquanto criança, caminha enquanto
adulto e necessita de uma bengala para se apoiar na velhice, derrota e mata a
Esfinge.

Declarado herói pelo povo de Tebas, casa-se com a viúva de Laio, Jocasta,
tornando-se rei e cumprindo o restante da profecia.

Ao surgimento de uma nova praga, ao consultar o oráculo, este informa que a peste
não findará até que o assassino de Laio seja castigado. Ao longo das investigações,
descobre a verdade sobre seu destino. Inconformado com a descoberta, Édipo
arranca os próprios olhos (simbolizando: para que enxergar se não podemos alterar
os desígnios?), Jocasta enforca-se e Édipo parte em exílio para a cidade de Colona 20.

A história de Édipo reflete simbolicamente eixos que estruturam as reflexões de Freud


e da qual, juntamente ao seu processo de autoanálise, estabeleceu relações entre sua infância
e a lembrança de um sonho onde se envolviam sua babá, sua mãe e um roubo, formou as
concepções do Complexo de Édipo enquanto fenômeno universal.
Todos nós, simbolicamente, também fomos potencialmente como Édipo. No período
fálico, quando descobrimos os prazeres dados pelos órgãos genitais, a sexualidade ainda não
está completa e a exploração do prazer através deles se dá sempre de uma maneira narcísica.
Ao buscarmos objetos que estimulem este prazer, transferimos aos papéis que os pais nos
representam (até então para criança a fonte de prazer e satisfação dos desejos), onde a
imaginação e a fantasia cumprem a função de formar sua realidade interior. Vemos na história
de Édipo, já em princípio, o aviso do oráculo que a tragédia irá ocorrer. Destino inevitável.
Algo ao qual todos estamos sujeitos, uma condição humana universal. Os pais, por sua vez,
avisados pela profecia também sabem que a criança irá “transformar a vida do casal”, o pai
20
Síntese elaborada livremente a partir da tradução do grego feita por Mário da Gama Kury, Tragédias Gregas,
A Trilogia Tebana, da editora Zahar.

30
“sabe” que deverá dividir os carinhos da mãe com o filho, mas após o nascimento da criança
quer livrar-se desta condição, pois entende inconscientemente, como podemos encontrar
vastamente na cultura, que o filho pode representar o roubo de seu poder. A mãe, no texto
original, é quem entrega o próprio filho ao servo que deverá matá-lo, simbolizando que
também percebe que deverá realizar um corte nos desejos do filho.
Neste ponto podemos refletir sobre a maneira que os pais realizam este corte.
Recomendando que este seja feito por uma figura masculina, no caso dos meninos, de forma
que este entenda que não é a morte do desejo que se espera dele, mas o fim do desejo
incestuoso que, para a ética social, é repudiado, assim como o desejo da morte do rival, no
caso o parricídio. Aspecto fundamental se pensarmos nos sentimentos que os filhos
estabelecerão aos pais durante este processo.
Após a fase fálica, a criança, segundo Freud, entra em sua fase de latência, onde apesar
de manter seu desenvolvimento sexual, é educado a dirigir sua atenção às outras pessoas e
situações. Tendo já incorporado valores em seu superego e criado barreiras morais contra o
incesto, na fase de florescência onde as fantasias edipianas emergem e são recalcadas, onde há
a transferência dos desejos a outras pessoas, também ocorrem os confrontos com a autoridade
paternal. Na história de Édipo, quando este é separado de seus pais verdadeiros e cresce
inconsciente de sua realidade, podemos relacioná-lo com este momento de latência, quando
transferimos nossa atenção aos outros interesses além do núcleo familiar e voltamos nossos
prazeres às descobertas e conquistas, sejam elas escolares, amizades e premiações. Porém,
com o espocar da puberdade, em que os hormônios trazem um reavivamento da sexualidade,
são retomados pelos indivíduos as características edipianas, que por si, gerarão um conjunto
de processos emocionais aos quais, por introjeção ou projeção, influenciarão sua sexualidade,
e personalidade, por toda a vida.
Como podemos perceber, no processo terapêutico, o histórico da relação familiar é um
dos aspectos fundamentais do tratamento. Tanto filhos, quanto os pais precisam rever em sua
história as características positivas e negativas que marcaram esta relação. Entendendo,
portanto, que os estigmas e expectativas dos pais afetam profundamente a personalidade dos
indivíduos. Em nossas Clínicas Estância, enfatizamos a importância desse tratamento
conjunto: pacientes e seus familiares. Vale aqui relembrar do poema “Vossos filhos não são
vossos filhos”, de Gibran Khalil Gibran, o qual expressa conceitos essenciais a esse respeito:

"Vossos filhos não são vossos filhos.


São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.

31
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós,
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa,
Ama também o arco que permanece estável"21

Podemos também, ao retomar a história de Édipo, refletirmos sobre sua inconsciência


do processo em que está inserido e relacionar a psicanálise com o oráculo que o avisa sobre
seu destino. Assim como o psicanalista que ouve a história pessoal de seu paciente e percebe
as relações entre sua situação e os complexos a que está sujeito, na terapêutica que buscamos
estabelecer em nossas Clínicas Estância, o psicólogo retoma juntamente com o paciente, os
aspectos de sua história pessoal. Édipo é um dos tópicos fundamentais em nossos tratamentos
pois, quando o indivíduo não reflete e aceita sua história pessoal, suas pulsões sexuais são
desarmoniosas às congruências de seu self, isolando-as de seu nível consciente e gerando
transtornos em seus comportamentos e sua personalidade.
O auxílio psicanalítico é uma ferramenta necessária para que, ao contrário da tragédia
de Édipo em que ao final decide tirar seus próprios olhos quando descobre a verdade, se possa
reverter este fim trágico e proporcionar aos nossos pacientes a possibilidade de um projeto de
vida em que vislumbre a felicidade, ao tornar aceitável a história de suas relações parentais e
suas influências na sua individualidade, ajudando-o a encontrar outras perspectivas para sua
condição e, em conjunto, estabelecermos estratégias para a superação de suas dificuldades.

Eu e os outros
21
GIBRAN, Khalil. O profeta. Lumensana Publicações Eletrônicas. Rio de Janeiro, 1975. Disponível em
<https://docplayer.com.br/6345815-Gibran-khalil-gibran-o-profeta.html> . Acesso em 09.nov.21

32
Viver é conviver.
Carlos Drummond de Andrade

“Age de modo a considerar a humanidade,


seja na tua pessoa, seja na pessoa de qualquer outro,
sempre também como fim e nunca: como simples meio”
Fundamentação da Metafísica dos Costumes
Immanuel Kant

Em nossa sequência de tratamento, iniciamos nossa proposta através de uma reflexão


sobre o eu, afirmando a importância do autoconhecimento, da consciência de nossa condição
existencial de desejo e expansão, da busca de equilíbrio sob as tensões entre o id e o superego.
Nossa condição humana de transcender, de buscar ser mais em nossa busca de plenitude.
Passamos então a focar o tema sobre a aceitação do eu, onde pensamos a importância do
indivíduo aceitar sua realidade, aceitar sua história, sua condição de base: as
individualidades que lhe caracterizam. A fim de aprofundarmos esta questão, da influência
dos outros sobre o indivíduo, abordarmos o Complexo de Édipo, onde inferimos sobre a
primazia que o papel dos pais exerce na formação da personalidade e afetividade de todo ser
humano. Neste tópico, pretendemos ampliar nossas reflexões sobre as relações do indivíduo
com os outros, reforçar o papel da dialética que o outro representa para a constituição de
nossos pensamentos, chamar a atenção para a situação de troca contínua que realizamos com
outras pessoas nos beneficiando mutuamente, focamos também, sobre a necessidade de
aceitarmos o outro como ele é, independente de nossas expectativas e suposições. Revermos
as cargas emocionais que depositamos nos outros e as que sentimos depositarem em nós,
sobre a importância de procurarmos um núcleo dentro de nós no qual nos sentimos bem e nos
identificamos com nós mesmos. Juntamente com a análise interior, é importante ampliarmos a
nossa visão sobre a contribuição positiva que recebemos da humanidade. É fundamental
revermos nossa visão sobre nossas relações interpessoais para podermos desenvolver novas
atitudes, com a intenção de alcançarmos uma convivência harmoniosa e consequentemente
uma vida mais feliz.
Como dizia o educador Paulo Freire: para que haja um eu, deve haver um tu. A
compreensão da distinção entre o eu e o outro, justamente a dialética, ou o reconhecimento da
alteridade e da identidade distinta do outro, é uma habilidade fundamental no exercício da
convivência saudável. Saber se inter-relacionar é reconhecer os valores de nós mesmos e os
valores distintos do outro. As situações de troca sempre são positivas quando percebemos

33
nossa individualidade e ao mesmo tempo a individualidade do outro, onde reconhecemos a
singularidade deste relacionamento e respeitamos as diferenças como forma de
enriquecimento individual. Fortalecermos nosso ser ao mesmo tempo em que aprendemos a
reconhecer e fortalecer o ser do outro, estimula condições para um relacionamento
interpessoal mais amplo e verdadeiro. Reconhecer ainda todos os outros que constituem parte
do nosso ser é perceber-se na teia de relações da qual o mundo e a humanidade, com toda sua
história e cultura, são formados. Uma reflexão mais profunda nos revela que nosso eu (ego), é
nascido e formado dentro de um determinado contexto, em uma família, imanente a uma
cultura, em um tempo.
No caso do Brasil, e da identidade brasileira, nos encontramos em um processo de
miscigenação onde possuímos sobretudo matrizes étnicas indígenas, negras e ibéricas,
misturadas num caldeamento onde se forma uma nação mestiça, “na carne e no espírito”,
como diria Darcy Ribeiro em seu livro O Povo Brasileiro. Reconhecer a identidade do povo a
que pertencemos é também parte de se auto conhecer, pois significa reconhecer as heranças de
nossos antepassados, genéticas e culturais, as diversas facetas da nossa própria identidade.
Temos, inclusive, já na concepção política da democracia grega na antiguidade, o conceito de
id e pólis (pólis = cidade-estado). Sobretudo em Atenas no século V, quando nasce a
democracia e são exaltados os papéis do cidadão, era fundamental a relação social, a
participação através da fala nas assembleias (entenda-se aqui que eram considerados cidadãos
apenas os homens, maiores de 18 anos, nascidos em Atenas e livres) que se estabeleciam as
relações de Poder, a Política, onde o indivíduo que não se interessava, que não participava dos
assuntos públicos, era considerado um “idi-ota”, ou seja, era considerado um alienado por só
preocupar-se consigo mesmo. Neste sentido, Aristóteles afirma: O homem é um animal
político. Somos todos interdependentes.
É através do bom senso em relação aos outros que construímos e conquistamos, ao
longo da História, o reconhecimento dos direitos básicos da pessoa humana, e, desde 1948
ratificados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Através dela estabelecemos um
código de ética mundial que nos permite formarmos parâmetros para nossos
comportamentos e relacionamentos na sociedade. Reconhecer a humanidade do outro, suas
necessidades básicas, seus direitos, nos aspectos civis e individuais, são critérios
imprescindíveis para a convivência na atualidade, consequentemente está ligado ao nosso
equilíbrio psicofísico e social, bases da filosofia humanista de nossas Clínicas Estância.
Viver é conviver, diz a frase de Carlos Drummond de Andrade, um grande poeta
brasileiro. Reconhecer a contribuição da sociedade na formação de quem somos e poder

34
conviver na sociedade, contribuindo com ela através de nossa singularidade, são realmente
aspectos fundamentais para o equilíbrio de nós mesmos. Em nosso processo de crescimento,
de expansão, vamos alargando nossa visão sobre a realidade e, ao mesmo tempo, ampliando
nosso relacionamento com as pessoas que a compõem. Sociologicamente, entendemos que o
indivíduo em seu processo de crescimento passa pelos contatos primários, de familiares, e
segue expandindo suas relações com parentes e amigos, influenciado pelos contatos
secundários, juntamente com a cultura, formando sua visão de mundo. Considerando toda
influência externa ao indivíduo, numa leitura cultural e filosófica, estabelecemos o que
chamamos de consciência ingênua, ou seja, o aspecto da consciência que apenas recebe,
incorpora e assimila como verdade as informações que lhe chegam, sem estabelecer um senso
crítico sobre estas informações. É a consciência ingênua que forma o senso comum,
geralmente acrítico e manipulável pelas diferentes ideologias e interesses. A tomada de
consciência, ou melhor, o despertar da consciência crítica é crucial no processo de formação
e maturidade da personalidade do indivíduo, pois lhe permite rever sua visão sobre o mundo
e as pessoas, desconstruindo as crenças equivocadas, formadas pela consciência ingênua.
Entendermos a importância do papel da relação de troca entre as pessoas para a constituição
de nossa personalidade, faz parte da autoanálise necessária para a desconstrução de tabus, de
dogmas e mitos que incorporamos em nossa formação e permanecem em nossa “consciência
ingênua”, os quais nublam nossa visão da realidade e a maneira como nos relacionamos com
as pessoas que participam de nossa vida. São fundamentais os questionamentos: “Como eu
vejo o outro? Como quero ser percebido? O que espero do outro?”
Lev Vygotsky, bielo-russo nascido em 1896, desenvolveu teorias sobre o
desenvolvimento humano que influenciaram profundamente a pedagogia: de que os
indivíduos nascem com condições intelectuais elementares e, através da cultura e das relações
que estabelece com os outros, desenvolve funções psicológicas superiores que lhe permitem o
controle consciente do comportamento, ao mesmo tempo em que desenvolve sua consciência,
a qual sempre é mediada pelos outros, pois são eles que indicam, determinam e atribuem
significados à realidade que é repassada e apreendida pelo indivíduo.
Enquanto crescemos incorporamos crenças, ideologias próprias das culturas em que
estamos inseridos: não contamos estrelas por medo de nos crescerem verrugas, aguardamos a
vinda do Papai Noel e sua premiação ao nosso bom comportamento, jamais passamos por
debaixo das escadas, ainda reproduzimos às crianças canções infantis onde atiramos pedras
em gatos! Da mesma forma, incorporamos outros hábitos da cultura em que crescemos e que
podemos considerar verdadeiros vícios, como algum preconceito que nosso ambiente familiar

35
cultive e o qual reproduzimos como algo natural, pois foi a educação que recebemos. Esta
mesma postura da consciência, nos permitiu aprendermos a falar, copiar os gestos, os
comportamentos, ajudando a nos adaptarmos ao nosso meio. Postura própria do
desenvolvimento do ser humano enquanto cresce. Porém, a consciência ingênua, acrítica,
emocional, socialmente falando é o aspecto que ao ser manipulada ideologicamente gera o
senso comum, a opinião geral, a massa. Sedenta de estímulos torna-se refém dos interesses do
Poder, das propagandas de consumo, carentes de segurança as pessoas tornam-se peça do
controle político e, etnocêntrica (fechada apenas em seus próprios valores e do seu grupo),
mantém-se preconceituosa, machista, racista. Quantos transtornos construímos e arrastamos
durante a vida, carregando ressentimentos e opiniões que apenas alimentam mágoas, orgulhos
e tristezas? Quantas vezes nos distanciamos de quem amamos por insistir em manter apenas
as lembranças que nos ofenderam? Acumulados, recalcados no inconsciente, produzem
ressentimentos que nos impedem de tentar perdoar, rever, reconciliar. A psicanálise nos
ajuda a reconsiderarmos a importância dos afetos, dos relacionamentos e das influências
culturais que recebemos para nos tornarmos o que somos hoje, vale refletirmos que é possível
modificarmos muitos comportamentos que já cristalizamos, e ajudarmos na resolução de
muitos transtornos que adquirimos, a partir da coragem de nos submetermos ao exame de
nossa própria consciência crítica, de encararmos nossas angústias, perdoar nossas mágoas e,
assim, buscar nosso caminho.
Fortalecendo nossa compreensão sobre a importância dos aspectos terapêuticos de
nossa relação com o outro, entre outras contribuições, a Gestalt terapia, desenvolvida
inicialmente pelo alemão Friederich Perls (1893 – 1970), fornece dicas fundamentais para
uma releitura de nossas percepções e deduções da realidade. Quando pensamos sobre algo,
sentimos a realidade do que pensamos como se fosse sua totalidade definitiva, completamos
a forma do que nos é apresentado através de nosso pensamento, com nossas próprias
referências. Somos nós que estabelecemos a relação para o fechamento do que consideramos
real. A utilização em nossas propostas de tratamento, de diferentes ferramentas terapêuticas,
envolvendo a psicoterapia individual e de grupo, a psicoterapia familiar, palestras
psicoeducativas, terapia ocupacional, terapia psico-corporal, arteterapia, meditação, grupos
operativos, associados entre si, permitem por parte dos pacientes a reconsideração, a revisão
de concepções que cristalizam como verdades em suas percepções, favorecendo o
descondicionamento de comportamentos e posturas que mantém com os outros,
fundamentados pela visão (forma) deturpada que construíram de si mesmos, das pessoas e das
coisas. Afinal, será que a nossa perspectiva sobre o que relacionamos entre nós e os outros

36
está correta? Até que ponto as justificativas que construímos culpando os outros pelos nossos
problemas são válidas? O ressentimento (manter, insistir em “re-sentir”, isto é, voltar a
sentir novamente) caracteriza um dos eixos fundamentais na terapêutica, pois justamente
aponta a dor que se insiste em manter, na qual o indivíduo estabeleceu uma postura de raiva
e mágoa, por expectativas que foram frustradas pelo outro, assumindo uma vitimização,
transferindo culpas, anulando-se e envolvendo-se em auto piedade. Onde costumo me colocar
na relação com o outro?
A psicologia comportamentalista, ou o behaviorismo (do inglês behaviour, “conduta”,
ou seja, estudo do comportamento), do qual podemos oferecer como exemplo o psicólogo
Burrhur Skinner, demonstra os aspectos mecânicos, do comportamento humano ao identificar
e demonstrar relações de estímulo e resposta a que nos condicionamos. Assim constituímos o
movimento de reflexo apreendido. Estabelecemos respostas condicionadas onde
automatizamos práticas diárias, funcionais, desobrigando-nos de necessariamente pensar para
executá-las, e, por muitas vezes passamos a repeti-las inconscientemente durante toda a vida.
Uma visão puramente tecnicista entende que se deve simplesmente induzir as pessoas a
outros condicionamentos que sejam aceitos socialmente e, assim, inibir comportamentos que
sejam considerados prejudiciais ao indivíduo e estranhos ao grupo. Veja-se no clássico filme
de Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, de 1971, onde se propõe um método (behaviorista) de
tratamento de um indivíduo muito violento, mostrando-lhe contínuas cenas de violência, ao
mesmo tempo que se administrava drogas que lhe causavam desconforto. A tentativa era de se
recondicionar o indivíduo, com uma outra “programação”. Assim como no filme não se
atingiu o resultado esperado, pois o indivíduo reincidiu ao comportamento violento, na
recuperação de pacientes a tentativa de reprogramação de seus hábitos sem que ele realmente
queira mudar esses hábitos, sem propor uma autorreflexão de sua realidade, está
provavelmente fadada a falhar.
Em nossa filosofia de tratamento, entendemos a importância da psicologia
comportamentalista e da reconstrução de hábitos saudáveis, conjuntamente acreditamos
também que apenas a soma de diferentes instrumentos terapêuticos com a consciência crítica
do próprio paciente, unindo seu desejo e coragem de rever sua percepção do mundo e dos
outros (psicanálise), de aprender a aceitar a realidade, é que lhe permitirá construir uma auto
proposição sólida para conquistar qualidade de vida e reabilitação. Assim acreditamos que as
bases para uma verdadeira mudança de comportamento abrigam a valorização da
conscientização, da identidade e da liberdade como instrumentos para se buscar o próprio
bem-estar.

37
Juntamente com a aceitação do nosso eu, de nossa realidade, de encontrarmos um
núcleo sadio dentro de nós, onde identificamos a congruência com nosso self, é necessária a
compreensão de que os outros, através da contínua relação de troca que estabelecemos, é
parte fundamental dessa própria realidade e de nós mesmos. Somos singulares e coletivos. O
ego não é o resultado apenas de reflexões solitárias e nem está determinado, pois ele está entre
as tensões do id (o que nos oferece prazer e com o qual nos identificamos) e o superego
(construído pelo mundo e os outros e ao qual também estamos submetidos), assim, o
isolamento, a fuga, o refúgio nas drogas, no álcool, apenas esconde as questões que
precisamos resolver e permanecerão dentro de nós. Não há como fugir definitivamente da
própria consciência. O poeta está correto: viver é conviver! E vida é desafio. Foi através do
enfrentamento das dificuldades que a humanidade evoluiu, resolvendo os problemas que a
afligia: doenças, guerras, desconfortos. A permanência em zonas de conforto (as gaiolas em
que nos encerramos) nos mantém vivendo irrealidades que construímos para justificarmos
nossas comodidades e a nossa postura junto aos demais.
A necessidade que sentimos em sermos aceitos pelos grupos sociais a que pertencemos
é inegável. A necessidade da sensação de pertencimento às tribos que nos identificamos é
parte da condição de nos sentirmos seguros em relação a nós mesmos: a música que ouço e
gosto, quando compartilhada no grupo reafirma meus valores. A afirmação do grupo fortalece
os significados que damos às nossas vidas.
Eu sou o que sou graças aos outros que me influenciaram, a sociedade é o que é pela
contribuição histórica de todos que a compuseram durante todo nosso processo. Não apenas
dos nomes célebres que permaneceram, mas de todos que no anonimato humilde contribuíram
com sua existência para a formação do que hoje consideramos ser essa humanidade. Desde
seu alvorecer, ela permaneceu e sobrevive porque nos juntamos com nossas diferentes
habilidades para sobrevivermos: uns desenvolveram medicina, outros a agricultura, outros, as
artes.... contudo, sempre através da interdependência de todos. Construímos normas, regras,
leis para a convivência, sob as justificativas da segurança, da liberdade, igualdade,
fraternidade... os princípios morais que sustentam a ética, à qual as leis estão submetidas, e a
elas as quais nós estamos submetidos, porém acompanhado dos direitos de pertencimento, de
cidadania, os quais afirmam que podemos participar, intervir e modificá-las quando injustas.
A convivência ética se inicia pelo reconhecimento das normas e da contribuição de
todos com o que sou e de minha participação dentro dos grupos sociais a que pertenço.
Quando nos percebemos afirmando algo de nós mesmos, sempre estamos afirmando algo
perante aos outros! Quando afirmamos em nossas Estâncias Clínicas que a saúde do indivíduo

38
envolve seus aspectos psicofísicos e sociais, estamos afirmando que parte de estar saudável é
procurar estabelecermos uma convivência saudável. Esta ideia também nos leva a entender
que não estamos prontos e determinados: estamos em construção, nossas relações pessoais e
sociais podem ser modificadas. Nós, junto à humanidade, estamos em contínuo processo, e o
tempo nos mostra que sempre algo permanece enquanto estamos também em transformação.
O mestre de Aristóteles, o célebre Platão, em seu livro O banquete, fortalece nossa reflexão:

“(...) assim como de criança o homem se diz o mesmo até se tornar velho; este na
verdade, apesar de jamais ter em si as mesmas coisas diz, todavia, que é o mesmo,
embora sempre se renovando e perdendo alguma coisa, nos cabelos, nas carnes, nos
ossos, no sangue e em todo o corpo. E não é que é só no corpo, mas também na alma
os modos, os costumes, as opiniões, desejos, prazeres, aflições, temores, cada um
desses afetos jamais permanece o mesmo em cada um de nós, mas uns nascem,
outros morrem. Mas ainda mais estranho do que isso é que até as ciências não é só
que umas nascem e outras morrem para nós, e jamais somos os mesmos nas
ciências, mas ainda cada uma delas sofre a mesma contingência. O que, com efeito,
se chama exercitar é como se de nós estivesse saindo a ciência; esquecimento é
escape de ciência, e o exercício, introduzindo uma nova lembrança em lugar da que
está saindo, salva a ciência, de modo a parecer ela ser a mesma. É desse modo que
tudo o que é mortal se conserva, E não pelo fato de absolutamente ser sempre o
mesmo, como o que é divino, mas pelo fato de deixar o que parte e envelhece um
outro ser novo, tal qual ele mesmo era. É por esse meio, Sócrates, que o mortal
participa da imortalidade, no corpo como em tudo mais o imortal, porém é de outro
modo. Não te admires, portanto de que o seu próprio rebento, todo ser por natureza o
aprecie: é em virtude da imortalidade que a todo ser esse zelo e esse amor
acompanham.” 22

Nós estamos em mudança, ao mesmo tempo que algo permanece. Podemos mudar
nossa visão sobre os outros, aceitar sua influência, sem o medo de que precisemos mudar a
essência de nossa própria personalidade. Reconhecer e exercitar o valor da contribuição
positiva do outro e de nossa mudança enquanto crescemos, também demanda retirar dos
outros a totalidade da responsabilidade da origem e da continuidade de nossos problemas, os
quais muitas vezes transferimos aos que podemos: nossas mães e pais, os amigos, os
esponsais afetivos... sempre de maneira a renegar nossa responsabilidade de assumir nossas
dificuldades e a nossa própria vida. Aceitar o outro também não significa que precisamos nos

22
PLATÃO. O Banquete. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000048.pdf>.
Acesso em: 09.nov.2021

39
identificar, nem reproduzir o seu comportamento: não é porque aceitamos os comportamentos
e as diferenças que precisamos incorporá-los. Ao mesmo tempo, não há a necessidade de
anular as ideias dos outros para manter as nossas, “a minha verdade é minha, enquanto aceito
que a do outro possui o direito de também permanecer para ele”.
É fundamental o reconhecimento positivo da contribuição que a sociedade nos
oferece: se usamos celulares e computadores, roupas e móveis, se possuímos uma variedade
de alimentos, se podemos ouvir músicas tão diversas, assim como nos embevecer com a Arte
de todas as épocas, é porque a sociedade, enquanto resultado dos esforços da convivência de
toda a humanidade permite. O “inferno são os outros” que Jean Paul Sartre afirma pela
convivência expor nossas fraquezas e estarmos sujeitos a aprovação social, também pode ser
interpretado sob o ângulo do qual precisamos reconhecer que somos responsáveis pelos
nossos atos, e que precisamos considerar também o que causamos aos outros com nossas
atitudes.
Nossos familiares, com toda carga de dificuldades que possamos ter herdado deles,
representam o núcleo destas relações com a sociedade, as bases da condição real de nossa
existência e devemos sim, buscar não alimentar ressentimentos e reconhecer os aspectos
positivos de sua contínua contribuição para nossas vidas. Afetados de maneira negativa,
muitas vezes sentindo-nos magoados, acabamos por condicionar em nossas consciências
apenas o lado negativo dessas influências. Esquecemos de reconsiderar que o outro não
necessariamente precisava afirmar nossas expectativas. Que em sua singularidade e em sua
própria existência, possui outros interesses, outros desejos, outros problemas. Vimos em
nosso tópico sobre o Complexo de Édipo, a importância que os pais exercem sobre a
personalidade do indivíduo, neste momento vale ressaltar o papel de reconhecermos essas
influências, porém, revermos com maturidade e bom senso a nossa existência pessoal.
Perceber nossa condição de liberdade e responsabilidade pela própria vida, ao mesmo tempo
que reconhecemos a alteridade e os mesmos direitos nos outros.
Realmente parece difícil considerarmos a contribuição positiva que constantemente
recebemos, pois ela já nos aparece como “natural”: a luz acende, o lixo é recolhido e o
mercado oferece os produtos. Se pago por isso já me parece natural que receba. Mas milhares
de pessoas participaram para que essas simples coisas acontecessem, a sociedade mantém-se
com a contribuição contínua de todos. Estamos interligados e, uma postura de agradecimento
seria muito mais adequada. Existimos pela decisão de um encontro amoroso de nossos pais,
estamos vivos e vivemos pelas trocas realizadas entre a humanidade a que pertencemos.
Reconhecer esta condição de interdependência é estar também mais participativo com a vida,

40
não apenas ressentidos, mas compreendendo e aceitando que se as injustiças pessoais, sociais
e ambientais, nós mesmos humanos as criamos, assim também podemos nos envolver com o
objetivo de solucioná-las.
O isolamento, enquanto fuga, que muitas vezes construímos para evitar as tensões que
existem na convivência, também poderá desenvolver outros problemas, psicofísicos e sociais,
os quais irão dificultar mais ainda nossa qualidade de vida. Ouvir o outro (sua tese) e
contrapor ao nosso pensamento (antítese) para se chegar a uma síntese é justamente o eixo do
pensamento filosófico, a dialética, que nos permite evoluir em nossos conceitos. Quando não
aceitamos os outros, não nos sentimos aceitos também. Construímos e fortalecemos a nossa
inadequação na sociedade quando mantemos apenas uma visão negativa sobre ela, sobre as
pessoas que constituem nossa família e as que estão ao nosso redor. Aceitar os outros como
gostaríamos de sermos aceitos é um dos princípios fundamentais para uma melhor
convivência e, consequentemente, uma vida muito mais saudável, com muito mais alegria,
qualidade e satisfação. Em nossas Clínicas Estância, a convivência constantemente é
estimulada, pois ela é essencialmente terapêutica: festas temáticas, saídas supervisionadas,
reuniões, esportes, jogos, recreações etc. Entendemos que juntamente com o atendimento
individual dos pacientes são fundamentais as saídas de ressocialização, onde o indivíduo
procura rever suas relações interpessoais, rever para si a importância desses momentos de
contato, de felicidade compartilhada, exercícios de convivência saudável que resgatam os
sentimentos de que todos somos importantes e fazemos parte desta rede de trocas que forma a
própria humanidade.

41
Aceitação do corpo

“O meu corpo é um jardim,


minha vontade o seu jardineiro”
William Shakespeare

Ao falarmos sobre os seres humanos, entendemos que imediatamente nos remetemos a


um conjunto psicofísico, portanto, sua totalidade habita uma constituição física: seu corpo!
Entre todos os aspectos que abordamos sobre o ser humano em nossas propostas terapêuticas,
percebemos cada indivíduo em sua singularidade, com suas particularidades psíquicas,
corporais e sociais. Ao retomarmos toda a tradição médica e científica na busca de
encontrarmos instrumentos para auxiliarmos cada paciente individualmente em suas
necessidades, sempre nos deparamos com o fato de que é fundamental ao falarmos de saúde,
considerarmos que lidamos com a ideia de mente e corpo saudáveis e integrados. Ou seja,
precisamos considerar sempre o indivíduo de maneira holística. A saúde só pode ser
entendida de maneira completa através do equilíbrio entre seu conjunto psicofísico e suas
relações sociais.
A aceitação do corpo por parte do indivíduo, a maneira que estabelece sua percepção
e como se sente sobre si mesmo, é um eixo fundamental em nossa terapêutica. Também
consideramos essencial a valorização da importância que o corpo representa enquanto o
excelente instrumento que possuímos para vivermos, algo muito além de nossas expectativas
estéticas e da nossa necessidade de aceitação social! A reeducação dos cuidados com o corpo,
a reconsideração do quanto devemos preservá-lo e desenvolvermos carinho com ele, que tanto
nos representa, é próprio da consciência saudável que pretendemos alcançar em nossos
tratamentos, uma consciência que procura aceitar a realidade e os limites do corpo que possui,
ao mesmo tempo, que encontra nele as principais ferramentas para a transcendência, para o
próprio equilíbrio e bem-estar.
Procurando expandir nossas reflexões, vamos considerar neste primeiro momento, o
que entendemos por corpo. O corpo é nosso instrumento essencial. Nossa condição de base. O
que nos permite comunicarmos com tudo que está em volta de nós, com o mundo exterior.

42
Através dos nossos sentidos (tato, olfato, audição, paladar e visão), que sentimos, que somos
afetados pela realidade (aliás, aqui podemos lembrar da estética, que vem do grego aisthésis,
e que significa capacidade de sentir23). Pelo corpo que recebemos as sensações,
experienciamos, experimentamos a vida. Nossos sentimentos, nossos afetos (aqui
diretamente ligado ao significado do que nos afeta, do mundo exterior ao interior) estão,
portanto, ligados à nossa sensibilidade. O corpo é que sente, filtra e transmite a realidade à
nossa consciência. Pelos sentidos recebemos as informações por uma velocidade
extraordinária: cerca de 300 Km por segundo 24! Uma sensação da ponta dos dedos levada ao
cérebro é quase que instantânea, onde então, já possuímos reações imediatas aos estímulos. A
estes estímulos que recebemos, associados como positivos ou negativos, vamos construindo
uma memória. Conjuntamente, uma memória corporal. Nossos reflexos, nossas posturas,
nossas reações. Um cheiro nos remete a uma lembrança. Uma música também nos transporta
às recordações e nos emociona. Da mesma maneira, experiências negativas, traumáticas,
geram memórias na psique e no corpo.
A formação da psique estruturou-se justamente através das sensações que recebeu. As
experiências positivas e negativas que tivemos estabelecem, portanto, através das sensações,
sua marca na psique. Quando temos uma experiência positiva, que nos trouxe sensações
positivas, a memória corporal nos convida a buscarmos novamente aquela sensação de prazer.
Da mesma forma, uma experiência negativa estabelece estímulos que levam nossa
consciência a renegar que se repita aquela determinada sensação. A dor, considerada um dos
sinais vitais do ser humano, é fundamental no conjunto destas reflexões sobre o corpo, a tanto,
destacamos um tópico especialmente para abordá-la, assim como o medo e suas implicações
psíquicas e fisiológicas.
Nosso corpo estabelece filtros e posturas corporais de reação às sensações a que se
dispõe ou espera se dispor (por antecipação). Os estímulos que recebemos em nossos sentidos,
pelo olhar, e as fantásticas formas que a visão reserva; seja através da fala, da música, de
todos os sons; seja pelos aromas, inebriantes e tão diversos; pelo toque, o abraço, a intimidade
sexual; seja pelos prazeres do paladar, de sorver os sabores dos alimentos, de podermos
aproveitar a pluralidade culinária de tantos povos, de poder também participar na criação da
cultura, o ser humano em sua relação com o mundo, sente em seu eu interior esses prazeres.

23
A educação estética é, portanto, a educação dos sentidos, da nossa capacidade de aproveitar, compreender pela
sensibilidade, da fruição artística.
24
A velocidade do impulso nervoso varia conforme a espessura das fibras nervosas e sua função: as sensações de
pressão e tato passam por fibras de 8 micrômetros, a uma velocidade de 50 metros por segundo. A dor e a
temperatura viajam por fibras de apenas 3 micrômetros, a 15 metros por segundo (N.A.)

43
Da mesma forma quando estamos em uma situação difícil, quantas vezes sentimos tremular as
mãos, gaguejarmos, fechamos nossos olhos pelo medo de ver algo que nos aterroriza,
justamente por que é o emocional que se transmite no nosso corpo. Somos uma unidade
psicofísica. O corpo fala25, e sua linguagem pode ser percebida e analisada, pelos outros e por
nós mesmos.
Sendo o corpo o viés de recepção de estímulos e sensações desde a infância, desde o
nascimento, ele já influencia diretamente na formação da personalidade do indivíduo: os
carinhos que recebe, o acolhimento, ou ao contrário, os maus tratos e a carência de afetos
afetarão o que Wilhelm Reich26, chama de caráter. Apesar de seus atritos com a sociedade de
psicanálise, deixou preciosos fundamentos para uma reflexão mais profunda sobre a mente e o
corpo, inclusive suas teorias sobre a formação das “couraças” musculares, onde aborda os
fenômenos ligados às relações entre soma e psiquismo (psicossomáticos). Estes estudos são
preciosos para pensarmos as maneiras como o indivíduo passa a se manifestar no mundo,
pois, tratam de como o caráter, em sua defesa contra as repressões, constrói couraças
musculares, enrijecimentos musculares, que moldam o comportamento corporal e sua relação
com o psiquismo, “travando” suas relações bioenergéticas27. A insegurança, vergonha,
timidez, baixa autoestima, entre outras posturas comportamentais, são acompanhadas por
sintomas psicossomáticos no corpo. A internalização (psíquica) de uma moral repressora, de
frustrações emocionais, estende-se, portanto, fisiologicamente ao próprio corpo que pode
desenvolver sintomas que se apresentam, segundo Reich, em sete anéis: ocular, oral, cervical,
torácico, diafragmático, abdominal e pélvico. Cada um destes centros, quando encouraçados,
geram referentes distúrbios nas regiões corporais e suas funções, contraindo, endurecendo,
tornando o indivíduo propenso a várias doenças e distúrbios. Esses conceitos nos ajudam a
repensar como nos posicionamos no mundo, como condicionamos nossos corpos e como
somos condicionados pelos afetos que recebemos e as emoções que geramos. Como
adoecemos, como nos travamos e travamos nossos corpos. Quando renegamos nossos corpos,
renegamos a nós mesmos. Quando desprezamos a riqueza que ele representa em nossa relação
com o mundo, muitas vezes sob a obsessão de algo que não aceitamos nele, nos entregamos a
uma baixa autoestima que afetará diretamente nossa qualidade de vida.

25
Inclusive é o nome do livro de Pierre Weill e Roland Tompakow que aborda a linguagem silenciosa da
comunicação não verbal.
26
1897 – 1957. Médico, psicanalista e cientista natural austríaco, colaborador de Freud que se dedicou aos
processos orgânicos e energéticos do corpo.
27
Ver também: Lowen, Alexander. Bioenergética. Ed. Summus, São Paulo, 1975.

44
A construção da autoimagem (self) é fundamental na constituição da personalidade
do indivíduo. O ambiente social e a família, por vezes também preocupada com o ideal do
“corpo perfeito”, reproduz esta expectativa nos filhos. Corpo, saúde e beleza estão atreladas à
relação entre o indivíduo e seu corpo. A saúde integral só é possível com a aceitação do
corpo, enquanto aceitação de si mesmo. Porém, os outros nos influenciam a construir a nossa
autoimagem, confirmando ou não a visão que construímos de nós mesmos, cabe buscarmos
desenvolver o potencial do que nossa realidade nos oferece.
A aceitação do nosso corpo por nós, frente aos padrões estéticos da sociedade, é uma
problemática que fomenta diferentes questões: desde os distúrbios psíquicos, até a construção
de hábitos e sacrifícios que desencadeiam doenças físicas, levando mesmo a óbitos. A
preocupação do nosso corpo é cumprir a expectativa do (olhar) do outro e dos padrões
estéticos idealizados pela cultura de massa estão ligados à necessidade de pertencimento, de
sermos aceitos e aprovados socialmente. Esse apelo é tão forte que podem gerar transtornos
psiquiátricos, como os Transtornos Dismórficos Corporais – TDCs, que envolvem o foco
obsessivo de um defeito que a pessoa considera ter na própria aparência, tanto quanto as
obsessões e compulsões que desenvolve em resposta ao pretenso problema. Crônico, pode
durar a vida inteira, despertando e alimentando vários outros transtornos, psíquicos e sociais
que se desencadeiam como, a anorexia, a bulimia, a vigorexia e a plasticomania. Estes
transtornos são acolhidos e tratados sempre de uma maneira individual e particular,
respeitando a especificidade de cada paciente, em nossas Clínicas Estância.
Para enriquecermos nossa reflexão, e pontuar alguns aspectos específicos, vamos
retomar alguns conceitos históricos e filosóficos sobre o corpo. Intrínseco ao desenvolvimento
antropológico do ser humano, que molda o corpo à sua cultura específica, identificamos a
relação entre o corpo e a psique28. Encontramos desde a Antiguidade, na tradição helênica,
por exemplo, a idealização do corpo. As esculturas que preservamos por milhares de anos
nos contam sobre um culto ao corpo no qual a sociedade o valorizava como exemplo de
saúde, capacidade atlética e fertilidade. A moral sobre o corpo não era austera e as normas de
conduta pediam principalmente para se evitar os excessos. As ideias estabelecidas desde a
Academia platônica e O Liceu de Aristóteles: Mens sana in corpore sano, formaram bases da
educação grega. Os aspectos estéticos, físicos e intelectuais estavam ligados à busca de
perfeição, assim, a beleza corporal também refletia atributos da alma. Na tradição acadêmica
e cultural, advindos principalmente das influências da filosofia platônica, que coloca uma
oposição entre corpo e alma, são estruturais no ser humano e na sociedade ocidental. Platão
28
Vale ressaltar o conceito de psique que advém do grego e significa mente ou espírito, o não material.

45
(em seu livro A República) estabelecia uma divisão que identificava três diferentes aspectos
da alma manifestos no (corpo do) ser humano e também na (no corpo da) sociedade:

● Logística: reflexão, lógica, pensante, cabeça – correspondentes aos que devem

governar e, ao qual podemos associar como o símbolo o ouro e a águia29.

● Timocrática: coragem, força, irascibilidade, vigilância, paixões, coração

associando como símbolo a prata e o leão.

● Epitimética: desejos, apetites, irracionalidades, instintos de sobrevivência e

reprodução, baixo ventre, associando como símbolo o bronze e o touro.


Seguindo esse conceito, coube sempre à mente, o controle sobre as emoções e os
instintos: cabeça, coração e baixo ventre. Correlata relação social aos que pensam e
governam, os que lutam e os que trabalham. Posteriormente, tornou-se também a base da
sociedade medieval: os que oram, os que lutam e os que trabalham. Fundamentado por Sto.
Agostinho em seu livro A Cidade de Deus. Sendo que a cabeça da sociedade pertencia ao
clero que conjuntamente coroava os reis, com os quais a defesa pertencia à nobreza, e o
trabalho aos servos campesinos. Com o advento do cristianismo já no mundo romano,
incorporaram-se também, as tradições e dogmas religiosos: valorizar os prazeres do corpo
passou a significar negar os valores da alma. O próprio conceito de pecado (que advém de
pécus, ou seja, passo defeituoso, que atrapalha a alma em seu retorno ao mundo perfeito e
ideal) está constantemente associado aos prazeres corporais: o pecado da gula, da luxúria, da
raiva etc. “O corpo torna-se fonte de pecado”.
A questão religiosa e moral associou-se e dominou as considerações sobre o corpo.
Assim, a negação dele, em louvação aos valores da alma, estabeleceu no Ocidente, um
pensamento dicotômico que, para dizer pouco, dificulta ainda hoje, uma devida fruição de
suas capacidades. A associação das questões da culpa aos prazeres do corpo é recorrente na
cultura e na sociedade. A Idade Média é marcada pela negação não só do corpo, como pela
repressão às produções culturais que exaltavam as expressões corporais, seja através da
pintura, escultura, literatura, dança ou o teatro. A vergonha da nudez, que remonta à Adão e
Eva, é realçada e externada como orientação moral a toda sociedade. Um ótimo exemplo
destas questões pode ser lido no romance de Humberto Eco: O Nome da Rosa, também
retratado no cinema pelo diretor Jean-Jacques Annaud, em 1986. Os sentidos, as sensações e
os prazeres corporais passam a serem renegados e vistos como corruptores da alma.
29
Aproveitando aqui a proposta de Pierre Weil à utilização dos animais águia, leão e touro como símbolos dos
diferentes centros motores do humano: intelectual, emocional e instintivo.

46
Apenas com o advento do humanismo no renascimento mudam-se as concepções
sobre o corpo na sociedade ocidental. Reiniciou-se as investigações médicas e científicas.
Novamente a arte pode expressá-lo. Podemos perceber esta questão através da valorização do
nu nas esculturas e pinturas, resgatando os valores da Antiguidade e a valorização do corpo
enquanto fonte de criação e prazer. Através da literatura, Shakespeare por exemplo, resgata as
emoções e sentimentos que ampliam a percepção das sensações de ser humano, juntamente
com outros autores que passam a exaltar o amor conjugal, romântico e erótico. A mulher e a
questão do seu corpo são revistas. Brota-se a Monalisa ...Os padrões de beleza femininos,
expressos em todas as versões esculpidas ou pintadas da Vênus, e os padrões de beleza
masculinos, representados por exemplo, nas proporções expressas por Michelangelo,
demonstram o corpo como expressão de admiração. Da Vinci, estudioso de anatomia 30
apresenta conjuntamente a perfeição das proporções na criação do corpo humano, como
podemos perceber em sua versão do Homem Vitruviano. Apesar da censura eclesiástica
permanecer, inclusive perseguindo os artistas e contratando “il braghetones” como Daniele
Ricciarelli, que cobria a nudez das pinturas.
Estes padrões acompanham também, até a atualidade, o desenvolvimento de toda a
moda corporal e dos vestuários que utilizam os referenciais métricos dos corpos esculpidos e
pintados. Porém, a dualidade entre corpo e alma mantém-se e são reafirmados por René
Descartes, na modernidade: o corpo passa a ser visto como a máquina perfeita. Também na
modernidade, com a revolução industrial, o corpo torna-se instrumento do setor produtivo ao
mesmo tempo que consumidor destes produtos. A cultura passa a modelar em série os corpos,
através da produção e das ideologias. A ciência e a medicina permitiram também novas
possibilidades para o bem-estar físico e a expectativa de vida. Já na contemporaneidade, no
século XIX, Darwin com a teoria da evolução e Freud, com as releituras sobre a sexualidade e
o inconsciente, entre outros, revolucionam a visão dos homens sobre si mesmos e seus corpos.
Os ideais de beleza31 construídos e afirmados como referências em todas as épocas, e
agora mais expressivos e contundentes pelos novos meios de comunicação, representaram ao
mesmo tempo signos de coação, ressentimento e repressão, geradores de inúmeros distúrbios,
étnicos, sociais e individuais. O cinema, a tv e agora a internet, influenciam e manipulam a
consciência ingênua da população aos seus interesses de mercado. Aqui gostaria de ressaltar
como exemplo, o fato de que o corpo da mulher, retratado historicamente na cultura
patriarcal, foi sempre determinado pelo olhar do homem sobre a mulher. Inclusive quando a
30
É conhecida sua ousadia e a de Michelangelo em dissecar corpos para seus estudos de anatomia, numa época
em que ainda era proibido pela Igreja.
31
Recordemos que o ideal, já no conceito platônico, refere-se a uma busca de perfeição.

47
descreve literariamente. A questão de o corpo feminino ser historicamente explorado como
objeto de desejo, e associado como um dos bens do seu marido, é um assunto que merece sua
devida reflexão. As lutas dos movimentos feministas levantaram e revolucionaram muitos
dogmas, tabus e preconceitos sobre estas questões, porém é ainda mais massiva a sujeição que
a mídia impõe às mulheres aos padrões estéticos e aos desejos do olhar masculino. Esses
temas são fundamentais para a compreensão da negação e dificuldade de aceitação por nós, de
nossos corpos. A moral, a culpa, os padrões, as exigências sociais, que percebemos na
História, marcam profundamente nossa percepção e sentimentos de nós mesmos. Estas
reflexões são debatidas e aprofundadas, principalmente à luz dos Direitos Humanos, em
nossas clínicas de tratamento. Aliás, o respeito à identidade, à identidade corporal e de
gênero, atentando-nos sempre às escolhas individuais, também são princípios de nossa
terapêutica.
Temos na Filosofia, exemplo de vários pensadores que refletem sobre o ser humano e
sua relação com o corpo. Inclusive, propondo reverem-se alguns conceitos medievais e
sugerindo uma nova ótica sobre eles, para aproveitarmos devidamente a riqueza de
sensações que o corpo nos permite, de forma a assim favorecer o equilíbrio entre o nosso
conjunto psicofísico. Vamos rever o que o filósofo Michel de Montaigne, nascido em 1533 e
autor de Os ensaios, entre outros, nos avisa já no século XV, sobre a importância de revermos
hábitos e tradições de repressões, que mais nos dificulta uma vida feliz e saudável, do que nos
auxilia na conquista de uma plenitude espiritual. Entre elas, a negação de nosso corpo:
(...) “E de nossas doenças a mais selvagem é desprezar nosso ser. Quem quiser
afastar sua alma para livrá-la do contágio, que o faça corajosamente, se puder,
quando o corpo se portar mal. Se não, ao contrário, que ela o assista e o favoreça, e
não se recuse a participar de seus prazeres naturais, e neles se delicie como que de
um jeito conjugal, trazendo, se for mais sábia, a moderação, ao temer que, por
exagero, esses prazeres se confundam com o desprazer. A intemperança é a peste do
prazer, e a temperança não é seu flagelo: é seu tempero.” 32

Assim como Epicuro nos ensina a apreciar as frutas quando estão maduras e a saber
aproveitar os prazeres com temperança, Montaigne também nos adverte de que a negação do
corpo é a negação da própria natureza humana. O corpo é o nosso riquíssimo instrumento de
fruição e criação!
Na atualidade, a tradição psicanalítica conta com o apoio da neurociência e dos
avanços da tecnologia médica para compreender e tratar transtornos e doenças que abrangem
diferentes aspectos psicofísicos do indivíduo. A dor é entendida atualmente como uma

32
MONTAIGNE, M. Os Ensaios. Disponível em:
<https://farofafilosofica.wordpress.com/2018/01/01/montaigne-os-ensaios-livro-em-pdf-para-download/>.
Acesso em: 09.nov.2021.

48
experiência sensitiva e emocional, ou seja, todo sofrimento também possui um aspecto
subjetivo, em que o padecente é quem pode mensurar a sua dor. As dores afetivas da auto
rejeição, transferidas para comportamentos de vergonha, baixa autoestima, obsessões e
compulsões por correção, são sofrimentos que podem acompanhar o sujeito por toda a vida.
Neste aspecto terapêutico, Carl Rogers, psicólogo norte americano, nascido em
Illinois em 1902 e falecido em 1987, reconhecido pela sua perspectiva humanista, reforça a
importância de acompanhar o paciente a buscar a “ser o que se é”, no sentido de que é
fundamental o papel do terapeuta ou facilitador, para acompanhar o processo que o próprio
indivíduo estabelece para si na construção de uma vida saudável, ajudando-o a reconhecer as
incongruências entre sua própria visão e da visão social (dos outros) em relação a si mesmo.
A empatia e autenticidade por parte do terapeuta são importantes ferramentas nesse processo.
A aceitação do corpo é parte de também aceitar ser o que se é!
Outro que podemos citar para fortalecer estas reflexões é Abraham Harold Maslow
(1908 – 1970), também norte americano e psicólogo, o qual oferece contribuições para o
entendimento das interações sociais e técnicas para a resolução de conflitos, ao destacar que a
resolução de um conjunto de necessidades são fundamentais para a satisfação e o bem-estar
humano. Assim, oferece uma hierarquia dessas necessidades que evoluem das questões
fisiológicas, que envolvem um corpo saudável, em condições adequadas de sono e
alimentação, para sequencialmente serem consideradas as necessidades de segurança, de amor
e relacionamentos, as necessidades de estima e as necessidades de realização pessoal.
Também acreditamos nisto, buscamos considerar em nossos processos de tratamento essas
diferentes vertentes, teóricas e práticas, para nos auxiliarem a oferecer uma atenção particular
a cada caso, e, em todos eles, buscarmos caminhos para fortalecermos a relação harmoniosa
entre o indivíduo e seu corpo.
Propomos um tratamento integral, com a reeducação dos cuidados com o corpo, ao
mesmo tempo em que o paciente assuma uma postura mais madura da compreensão de estar
no mundo. Entendemos que a autoaceitação também está sujeita às comparações, valores e
padrões sociais, e que a ciência, a nutrição, os insumos e as tecnologias corretivas são
importantes instrumentos de melhoria, mas também sabemos, que as obsessões e compulsões
precisam ser tratadas a título de refletirem outras questões, internas, que impedem o indivíduo
de alcançar um equilíbrio saudável com a possível aceitação de si mesmo.
Somente revalorizando seu corpo, desenvolvendo o potencial de todos os seus sentidos
sensoriais, reeducando a própria sensibilidade e, enfim, cuidando e amando o corpo como o
grande instrumento que a vida oferece, se pode usufruir de uma vida mais prazerosa (dentro

49
de limites e com moderação), de modo que o bem-estar e o equilíbrio psicofísico e social
estejam integrados. Em nossas Clínicas Estância, avaliamos os componentes biológicos,
psicológicos e sociais de cada paciente, assim como em nossas atividades terapêuticas,
oferecemos palestras psicoeducativas, associadas com a terapia ocupacional, a terapia psico-
corporal, o recondicionamento físico, a meditação, o ambiente seguro e saudável, juntamente
com a alimentação balanceada, como ferramentas em nossos tratamentos. Novamente,
propomos um tratamento holístico, com respeito absoluto pelo ser humano, sua história
pessoal e seu potencial para reequilibrar a si mesmo, ao mesmo tempo em que busca a
reconciliação amorosa com seu próprio corpo.

50
Sexualidade

(...) todos os que olham desdenhosamente para a psicanálise,


de uma posição de superioridade,
deveriam ter em mente como a sexualidade
ampliada da psicanálise
se aproxima do Eros do divino Platão.33
Sigmund Freud

Este tópico pertence às bases de toda tradição psicanalítica, é um tema essencial,


complexo e controverso, culturalmente revestido de diferentes signos em toda a história da
humanidade, pois a sexualidade reflete a sociedade e as instituições construídas para a sua
própria reprodução e preservação, ou seja, ela está refletida também na moral, nos costumes,
nas tradições, nas religiões, etc., e assim, através da relação entre sociedade e indivíduo,
influencia profundamente a personalidade de cada um de nós e nossa saúde mental.
Em um primeiro momento convém estabelecermos a diferenciação entre o sexo
enquanto função biológica, fisiológica e reprodutora, identificado com a genitália e ao
instinto sexual, presente em toda a natureza, onde sua poderosa força movimenta as cadeias
reprodutivas existentes e a preservação das espécies; e a sexualidade, como a construção
cultural que estabelece signos ao sexo, ao corpo, à libido, às fantasias, ao prazer e às suas
pulsões, sendo própria do ser humano, de sua personalidade e de sua relação com o mundo e
a vida.
Desta forma, a sexualidade nos indivíduos adquire, por sua capacidade de consciência
conjuntamente com a influência social, aspectos afetivos e morais, valores e hábitos,
engendra-se na cultura, torna-se assim complexa pois acompanha todo o crescimento e
desenvolvimento humano, como já destacamos em nossos tópicos Édipo e Prazer, onde nos
detemos sobre a importância das fases ligadas ao despertar da sexualidade.
É evidente sua relação com o equilíbrio e saúde mental, a este respeito, vejamos o que
diz a Organização Mundial da Saúde (OMS) corroborando sua importância:
“A sexualidade faz parte da personalidade de cada um, é uma necessidade básica e
um aspecto do ser humano que não pode ser separado de outros aspectos da vida.
Sexualidade não é sinônimo de coito (relação sexual) e não se limita à ocorrência ou não de
orgasmo. Sexualidade é muito mais que isso, é a energia que motiva a encontrar o amor,
contato e intimidade e se expressa na forma de sentir, nos movimentos das pessoas, e como
33
Prefácio à quarta edição de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. 1920.

51
estas tocam e são tocadas. A sexualidade influencia pensamentos, sentimentos, ações e
interações e, portanto, a saúde física e mental. Se saúde é um direito humano fundamental, a
saúde sexual também deveria ser considerada um direito humano básico.”34
A sexualidade humana incorpora, como dissemos, além do instinto de preservação e
da necessidade fisiológica, aspectos psíquicos e afetivos, culturais e sociais. Por
consequência, é fundamental abordar considerações de cunho terapêutico, bem como resgatar
implicações que a sexualidade traz individualmente e trouxe historicamente às questões de
sua saúde mental. Desta maneira, propomos uma reflexão antropológica, humanista e
científica sobre algumas das questões que a envolvem, e suas inúmeras influências sobre a
qualidade de vida das pessoas e de variados aspectos em seu comportamento, visto que ela
está ligada diretamente aos relacionamentos e à convivência.
É fundamental abordarmos nestas reflexões as relações interpessoais, as questões entre
amor e sexo. Existe a pulsão da busca pelo ato sexual, que pode ser inclusive ocasional, na
procura de prazer e satisfação pessoal, mas também existe a busca de parceiros, aos quais se
estabelecem vínculos amorosos, trocas de carinhos que vão além do desejo momentâneo, que
assumem o exercício e o cultivo dos cuidados entre si, justamente, de sua relação amorosa, da
arte de gestar, juntos, a convivência.
Ao amor podemos salientar inúmeras qualidades em que identificamos valores
essenciais para uma vida equilibrada e feliz. Valores estes que extrapolam a relação entre
“dar e receber”, tão comuns à economia financeira de valores. A premissa da troca justa não
garante sua funcionalidade. Não é possível exigir por via da obrigação ou justiça, a troca de
amor verdadeira. Dentro de nós, a insegurança emocional nos leva a de qualquer forma tentar
garantir o fluxo desta troca: ofereço carinho e quero carinho. Essa economia afetiva em
medida que é frustrada abala a estrutura de toda a psique. A possessividade reflete justamente
a pobreza de amor e a insegurança afetiva. Sentir-se amado é a preciosidade de se sentir
seguro, de acreditar pelo coração que se é querido e protegido pelo sentimento de outra
pessoa, formando um laço que nos mantém ligados à própria pulsão de vida!
Essa segurança, em poder amar e sentir-se amado, elimina por si, uma multidão de
medos que vemos cristalizados em inúmeros transtornos em nosso cotidiano terapêutico. Os
afetos amorosos, mesmo aqueles que trocamos no dia a dia, através de um cumprimento, um
abraço, brincadeiras que a segurança da amizade permite, auxiliam no equilíbrio da luta entre
segurança-insegurança. Imaginem a importância desta relação afetiva entre pessoas

34
Publicado pela Organização Mundial da Saúde em 2015, sob o título Original sexual health, human rights and
the law.

52
referenciais em nossa vida: filhos, cônjuges, pais, amigos! Essa estabilidade afetiva é um
tesouro em meio às angústias, próprias das incertezas as quais todos nós estamos sujeitos.
Esses elos permitem a comunicação espontânea, a preciosa confiança no outro para que
possamos conviver, entregar e receber, com menos desconfiança, o amor.
O capital afetivo, resultado mediano destas nossas relações, seja pela disposição de
nossas carências e bloqueios emocionais, seja pela abundante blandície cordial que tenhamos
recebido, será determinante para o nosso caráter e personalidade. Se, pela falta, nos moldamos
à carência, pedantismo e sujeição; pelo excesso, ao mimo e à exigência birrenta de que o
mundo possui a obrigação de cumprir todos os nossos desejos. Como manejamos este capital
afetivo é essencial ao equilíbrio mental: como realizamos a troca afetiva, entre nós e os
outros, nós e o mundo, nós e a vida.
Rita Lee, famosa cantora brasileira, em sua canção Amor e sexo35 traz em suas
estrofes:
“Sexo vem dos outros
E vai embora
Amor vem de nós
E demora
Amor é cristão
Sexo é pagão
Amor é latifúndio
Sexo é invasão
Amor é divino
Sexo é animal
Amor é bossa nova
Sexo é carnaval”
Será mesmo que existe esta dualidade entre sexo e amor? Ou será que justamente a
visão social que estabelece essa oposição entre o “amor ser cristão e divino” e o “sexo ser
pagão e pecaminoso” atrapalha a nossa percepção da importância da sexualidade em nossas
vidas? Discorremos neste aspecto em nosso tópico sobre o Prazer.
Para ilustrar esta questão, peço que imaginem uma senhora, carinhosa e calmamente
mexendo em um tacho, preparando um doce, para seus entes queridos. Essa imagem figura
perfeitamente a ideia de fazer amor. Ali ela está fazendo amor, pois há prazer no ato e na
intenção do ato: proporcionar alimento e o aprazer do doce aos seus queridos filhos e netos.
Ela, enquanto cozinha, antecipadamente, saboreia a alegria e o prazer de proporcionar
felicidade.
Porém, vamos continuar nossas reflexões em uma figuração científica: enquanto no
ato sexual boa parte da “química” do orgasmo se dá no sistema nervoso central, os sistemas

35
Compositores: Arnaldo Jabor / Rita Carvalho / Rita Lee Jones Carvalho / Rita Lee Jones De Carvalho / Roberto
Zenobio Affonso De Carvalho.

53
límbico, hipotalâmico e neocórtex, os quais são os responsáveis pela explosão de sensações
no corpo durante o sexo: motivação, estímulo, consumação e saciedade, nos remete a perceber
os deleites pessoais em que apenas o indivíduo sente. Esses sistemas responsáveis pelas
sensações de prazer sexual podem ser relacionadas também às questões do vício, pois, todas
as sensações de prazer dadas pela dopamina, fica registrada no cérebro e no sistema de
recompensa, identificando e associando-o a uma percepção subjetiva de desejo, estabelecendo
uma motivação para que a sensação se repita.
O sistema de recompensa cerebral ou circuito do prazer que começa na área
tegumentar ventral, localizada na região cinzenta do tronco cerebral, cria impulsos elétricos
nessa região a partir da lembrança e de gatilhos de recompensa que nos levam à sua
recorrência. Esses estímulos atingem o núcleo accumbens e posteriormente o córtex pré-
frontal, região responsável justamente pelo nosso comportamento emocional.
A maneira como são realizadas e as consequências desta pulsão pela satisfação do
desejo, nos ajuda a formularmos a questão: buscamos apenas sexo, ou também necessitamos
de amor?
Em nossa epígrafe, citamos Freud: “...a sexualidade ampliada da psicanálise se
aproxima do Eros do divino Platão”, ou seja, é preciso rever e a dualidade construída
socialmente entre sexo e amor. Retomando o exemplo da carinhosa senhora cozinhando seu
doce para seus amores, ainda explanando de maneira científica, podemos afirmar que também
está na natureza humana e em seu metabolismo, a capacidade e necessidade de cuidar e ser
cuidado. A ocitocina é liberada durante a relação sexual, tanto nos homens quanto nas
mulheres. Ela é um hormônio considerado fundamental para a criação de laços sociais, visto
que é liberada também em situações específicas, como durante o parto e na amamentação.
Ocorre também com sua liberação no organismo, o aumento de hormônios anabolizantes,
como a testosterona e relaxamento muscular, diminuindo sintomas de fibromialgia e
hipertensão arterial. Durante o orgasmo feminino, a ocitocina promove contrações uterinas.
Nos homens, ocorre contrações dos ductos seminais e favorece a ejaculação.
Ela está essencialmente relacionada ao prazer, porém, a ocitocina também é liberada
em situações em que promovemos felicidade no outro! Assim como o ato de preparar um
doce para os seus netos, fazer sexo compartilhando da alegria de promover felicidade ao
outro, de trocar cuidados, torna-se um prazeroso e saudável ato de amor. A afetuosidade, a
identificação com o outro, a confiança na troca de carícias, as fantasias e o acolhimento
compõem elementos essenciais para os cônjuges e para o equilíbrio da saúde mental de cada
um. Precisamos sim de amor e, para que o tenhamos, é preciso doar amor.

54
Mas considerando que a relação entre sexo e amor é doce, mas apimentada, imagine-
se a complexidade para se entender que apesar da fidelidade de amor entre um casal, as
pulsões nos levam a sentirmos atração por outra pessoa?
Continuemos nossas reflexões relembrando que a sexualidade pertence ao eixo
fundamental na tradição psicanalítica, principalmente a partir do momento em que Sigismund
Schlomo Freud escreveu em 1905 seu livro Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Com
esta obra, ela assume um papel fundamental para a compreensão do ser humano e de sua
personalidade. Ao escutar seus pacientes, Freud começa a construir a psicanálise a partir do
que estes pacientes falavam sobre eles próprios, diferenciando a sexualidade humana do
instinto sexual e associando-a principalmente às questões da libido e das pulsões.
A libido, enquanto a energia que está na base, sustenta e direciona as pulsões sexuais,
não está ligada apenas aos órgãos sexuais, mas a todo o corpo, pode ser direcionada às
pessoas, objetos e a atividades intelectuais, perfazendo uma enorme gama da própria vida
humana, visto que está presente desde a infância, externando-se durante toda a vida, através
das pulsões.
As pulsões, diferente do instinto sexual ligado ao biológico, não estão localizadas nem
no corpo e nem no psiquismo, mas na fronteira entre os dois, na instância chamada de Id. Em
nosso primeiro tópico o Eu, já nos detemos sobre a formação do aparelho psíquico e as
instâncias do Id, Superego e Ego, desenvolvidos por Freud. Agora, enfatizamos que as
pulsões do id estão presentes constantemente exercendo uma pressão no psiquismo.
Enfrentando resistências e tabus, Freud afirma que a sexualidade humana está presente em
todo o crescimento da criança, está em todas as relações que ela estabelece entre o seu corpo e
o mundo. Sendo esse corpo seu universo sexual, através dos sentidos, a criança descobre o
mundo e estes contatos são prazerosos ou não; assim, esta relação com o corpo e suas
experiências formam sua sexualidade espontaneamente enquanto cresce. Ela passa então a
internalizar essas experiências, criando significados para elas, formando seu psiquismo.
A sexualidade influencia o indivíduo desde a infância e projeta-se no sujeito adulto,
seja pelas opções de seus objetos de desejo, seja em seu comportamento, nas suas relações
interpessoais, ou ainda, pelos transtornos que possa adquirir em seu processo pessoal, como
os distúrbios e disfunções sexuais que pontuaremos adiante. Os estudos sobre a sexualidade
representam uma das maiores contribuições para o conhecimento sobre o ser humano,
tornando-se instrumento para a identificação e resolução de inúmeros sofrimentos psíquicos e
afetivos, pois junto à sexualidade, somam-se a questão do inconsciente, do recalque, da moral,
da culpa e da cultura, atualmente, a “Orientação Sexual” é um tema transversal que deve ser

55
abordado como forma de compreender além de seu próprio conceito, todos os outros que se
relacionam com ele: sexo, afetividade, gênero, métodos contraceptivos, aborto, gravidez na
adolescência, doenças sexualmente transmissíveis, etc.
Representando o conjunto do pensamento de sua época, Freud tornou-se o sintetizador
do assunto naquele contexto histórico e suas ideias foram completadas e ampliadas pela
academia clínica, qualquer segmento onde os estudos da psicanálise caminhem na atualidade,
mesmo que varie as considerações sobre a qualidade na forma em que influencia o ser
humano, todos reconhecem sua importância como fator fundamental no processo terapêutico.
Enquanto se desenvolve como ser humano, o ser se constrói, forma seu psiquismo
influenciado pela sua sexualidade e conjuntamente, desde a tenra infância, pelos valores
sociais e pela cultura. Inclusive, estabelecemos um tópico específico para refletirmos sobre a
formação da sexualidade infantil e as influências dos pais, quando tratamos do Complexo de
Édipo. Aqui podemos retomar a afirmação de que enquanto o indivíduo identifica, organiza,
recalca, forma sua identidade, opta e seleciona seus objetos de desejo: gesta em si sua
sexualidade, constrói sua dimensão erótica. Enquanto cresce, amadurece e se desenvolve
durante toda a vida. Ela lhe influencia ao mesmo tempo em que o ser se defronta com regras,
proibições, significados, papéis, condições que se interpõem aos seus desejos, às suas pulsões.
As contingências ditas filogenéticas, culturais e ontogenéticas, nos mostram que para
se pensar os comportamentos e a sexualidade, precisamos considerar também a história
evolutiva da espécie humana, os aprendizados construídos e a cultura formada para sua
preservação. Elas revelam as relações de poder e subjugação, ao mesmo tempo que de
cuidado e afetividade entre os indivíduos, a formação dos núcleos familiares, a moral dos
grupos sociais e a ética em que onde o indivíduo cresce, ou seja, as regras dos fatos sociais às
quais esteve sujeito, e aos quais, quando em desajuste às regras, sofre a coação de inúmeros
tormentos.
Os papéis reservados socialmente aos homens e mulheres, oferecem um fator
extremamente controverso na discussão da sexualidade, afinal, apesar do discurso recorrer a
natureza no substrato de suas justificativas (instintivo, reprodutivo etc.) ele é sobretudo
cultural e está ancorado na perspectiva do patriarcado. A representação do macho
conquistador que detém o poder fálico, e da mulher decente como sendo a pudica, passiva e
submissa, com a responsabilidade da preservação de sua honra e da reprodução, ainda são
ideários recorrentes em nossa sociedade. Quantas angústias e sofrimentos a exigência destes
papéis causam! Repressão moral, vergonha, culpa, tabus, dogmas e preconceitos dificultam a
compreensão da importância que a sexualidade tem na construção de uma vida saudável.

56
Vejam-se os desdobramentos nos sentidos e valores relacionados à sexualidade,
quando analisamos os conceitos de maternidade e da paternidade, são concernentes: ser mãe e
ser pai, porém, quando pensamos sobre os sentidos de matrimônio e patrimônio,
percebemos que matrimônio está relacionado ao casamento, mas patrimônio está relacionado
aos bens materiais! Apenas isto já nos leva a percebermos os distintos papéis e significados
construídos a partir das relações conjugais e do papel comumente reservado ao homem, deste,
ao poder e sistematicamente à manutenção deste poder, o patriarcado.
As características culturais, envolvidas nos signos étnicos dos grupos sociais,
constroem a moral e as regras (éticas) para a sexualidade. O desejo e o prazer, sobretudo o
prazer sexual, é um elemento fundamental da própria estrutura social e remonta ao passado da
humanidade como um todo. Ao abordarmos o tópico sobre a Aceitação do corpo, nos
detemos sobre a relação que a humanidade ocidental estabeleceu em seu processo histórico
sobre o corpo, retomamos os ideais gregos e suas regras comportamentais menos rígidas,
substituídas sequencialmente pela moral religiosa da Idade Média, onde a repressão e o
pecado incorporam-se às questões sexuais. Aqui nos trópicos, apesar da miscigenação com
povos que viviam uma sexualidade muito menos repressiva, a moral puritana do colonizador
prevaleceu e favoreceu o surgimento de inúmeros transtornos pelo desencontro entre os
desejos e a negação do corpo, em função da salvação da alma.
Estas reflexões são de suma importância para a sexualidade e a terapêutica, visto que a
cultura e a tradição se interpõem diretamente na vivência cotidiana dos indivíduos coagindo-
os aos seus papéis dentro de padrões preestabelecidos, ao mesmo tempo que o corpo e suas
relações com o outro, representa para o sujeito, o reduto da sua própria individualidade e de
sua identidade, além de serem instrumentos de fruição e prazer. Fundamentalmente por isso,
em nossas propostas de tratamento, assumimos uma postura humanista, respeitando as
histórias de vida de cada paciente e oferecendo sempre um atendimento particular a cada caso.
Mesmo com o advento das revoluções comportamentais ocorridas ao longo dos
séculos, trazidas por exemplo, pelos movimentos de contracultura, sejam do feminismo ou do
amor livre nos anos 60, que juntamente ao crescimento de uma moral menos rígida nas
sociedades atuais, onde a família tradicional assume outras formas e os direitos humanos
legitimam a identidade de grupos antes marginalizados sexualmente, encontramos fatores
sociais que indicam a etiologia de vários sofrimentos. A busca de satisfação sexual, quando
frustrada, traz em si um grande sentimento de impotência, de castração do seu potencial. A
insegurança, a frustração e o ódio advindos da castração de suas pulsões faz com que muitas
vezes o sujeito descarregue estes sentimentos gerando doenças.

57
Michel Foucault, em seu livro História da sexualidade, Vontade de saber. No capítulo
1, Nós, vitorianos diz:

(...)”Explicam-nos que, se a repressão foi, desde a época clássica, o modo


fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade, só se pode liberar a um
preço considerável: seria necessário nada menos que uma transgressão das leis,
uma suspensão das interdições, uma irrupção da palavra, uma restituição do prazer
ao real, e toda uma nova economia dos mecanismos do poder;”

A sexualidade está, portanto, entranhada na própria estrutura econômica, política,


jurídica e social. Há um discurso e um silêncio sobre a sexualidade na sociedade, existem
inúmeros instrumentos de coação e repressão aos que se desviam dos seus padrões e suas
regras. É fundamental falar sobre a sexualidade para romper os tabus. Os valores estabelecidos
socialmente sobre a sexualidade se refletem sempre de uma maneira ou de outra nos
indivíduos. Novamente o nosso lema de que para ser é preciso coragem para se conhecer,
explicita algo que é fundamental para se tratar de inúmeros casos que tanto prejudicam a
qualidade de vida das pessoas: a coragem de verdadeiramente se conhecer, se questionar e
enfrentar a realidade do que lhe aflige em sua interação com a sociedade.
O manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos mentais 5ª edição, ou DSM-5,
organizado pela Associação americana de Psiquiatria, apresenta as classificações que
atualmente são utilizadas para o diagnóstico de transtornos, ampliando a visão sobre as
questões ligadas à sexualidade, incorporando nesta última edição, três capítulos que tratam
especificamente das disfunções sexuais, disforias de gênero e os transtornos parafílicos. A fim
de fundamentar nossa reflexão sobre a especificidade dos casos que nos defrontamos e tratamos
em nossas Clínicas Estância cotidianamente, vamos abordar aqui, mesmo que brevemente,
sobre estes estudos e classificações relacionadas às disfunções sexuais (fig. 2).

58
Este quadro apresenta o conjunto de disfunções sexuais ligadas às perturbações que
impedem o indivíduo de responder sexualmente de maneira satisfatória ou experimentar o
prazer sexual. Estas características são fundamentais para a referência das análises clínicas e
terapia, onde o indivíduo pode apresentar inclusive mais de uma disfunção. Estas disfunções,
quando identificadas pela Clínica, podem ser debatidas e tratadas, inclusive de maneira
multimodal, a cada caso, levando em consideração todo o histórico de vida do indivíduo e as
formas de tratamento que mais se aplicam especificamente à situação do paciente.

Sobre os aspectos dos transtornos parafílicos, o DSM-5, apresenta o seguinte quadro


de referências que identificam comportamentos sexuais atípicos que para alcançarem
satisfação, podem gerar sofrimentos e prejuízos na qualidade de vida, a si mesmo e a outras
pessoas (Fig. 3):

O termo parafilia advém do grego para (ao lado) e filia (de afinidade), no caso, as
parafilias são conceituadas pelas afinidades de interesse intenso e persistente atípico da

59
sexualidade. Nem todas as parafilias, enquanto comportamentos e desejos sexuais atípicos,
devem ser considerados transtornos. São vistos como transtornos parafílicos, as parafilias
que geram angústias, obsessões e compulsões as quais prejudicam a qualidade de vida dos
indivíduos e oferecem riscos a outras pessoas, como o transtorno pedofílico por exemplo,
onde a recorrência e a intensidade das entregas aos impulsos sexuais e fantasias levam a
pessoa a causar terríveis males a crianças! Destacando-se dos comportamentos sexuais não
normativos, os quais necessariamente não devem ser considerados patológicos, os transtornos
parafílicos formam uma gama ampla de questões onde, portanto, um conjunto de medidas de
tratamento são necessárias para atenuar e tratar suas etiologias e consequências.

Finalmente, o DSM-5 apresenta o quadro de disforias de gênero, onde as questões do


papel público do indivíduo (inclusive social e judicial) e a incompatibilidade em sua
identificação com sua realidade interna quanto à sexualidade, lhe causam sofrimentos
cognitivos, afetivos e sociais. (Fig. 4)

As disforias de gênero referem-se aos sofrimentos afetivo-cognitivos que a pessoa sente pela
incompatibilidade do gênero que vive internamente e o qual é designado socialmente.
Atualmente no Brasil, desde o projeto de lei 5002/2013, propõe a Ementa que dispõe sobre o
direito à identidade gênero e altera o art. 58 da Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973. O
projeto denominado ``Lei João W. Nery, Lei de Identidade de Gênero. Este PL, vem de
encontro aos anseios e angústias de inúmeros brasileiros que vivem em seu cotidiano as dores
das incompatibilidades normativas envolvendo as questões de gênero que assumem. Histórica
e socialmente, estigmas negativos se incorporam aos indivíduos e abrangem desde a moral, a

60
religião, a normatividade social, a cultura e a política. Incontáveis são os exemplos de
sofrimentos que nos defrontamos pela necessidade do amadurecimento dessas questões na
sociedade. As polêmicas mantêm-se ainda hoje, verificamos recentemente as controvérsias
sobre as questões sobre a educação sexual nas escolas, o que demonstra como já dissemos que
os tabus e preconceitos precisam realmente serem debatidos e revistos, é preciso falar da
sexualidade sim, à luz dos Direitos Humanos e da legislação, e não estar apenas aos critérios
dos posicionamentos ideológicos, políticos e religiosos.
Enfim, a sexualidade é um assunto amplo e complexo, como afirmamos no início. Por
influenciar profundamente uma gama tão grande de aspectos na vida dos seres humanos,
necessariamente precisa ser considerada no processo terapêutico. Nossos tratamentos pautam-
se pelo profundo respeito às diferenças e opções/ condições sexuais, nos voltando às
necessidades de equilíbrio e compreensão aos desdobramentos sobre a saúde psicofísica e
social. Buscamos junto aos nossos pacientes, despertar a consciência dos seus direitos na
busca da qualidade em sua vida sexual, onde o afeto pode participar, onde a vontade de ter um
filho pode participar ou não, em que perceba a expectativa do conjunto das regras sociais e
seus valores, mas que entenda sua sexualidade como uma característica de si mesmo, de sua
relação com o corpo e da prazerosa condição de estar no mundo e, de maneira saudável, poder
viver a vida.

61
Repressão

“A teoria da repressão é a pedra angular


sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise”
Sigmund Freud

A repressão aparece como tema em nossos tópicos de tratamento, com o objetivo de


refletirmos sobre como lidamos com as questões que exercem proibições, controle e
penalizações aos nossos desejos e expectativas, para que possamos repensar as consequências
do que incorporamos aos nossos comportamentos e em nossa personalidade, através de
mecanismos de defesa que o ego constrói na tentativa de resolver as tensões.
Reprimir, carrega no conjunto de significados trazidos pelos dicionários, os sentidos
de conter, deter, travar, coibir ou castigar (re-pressão = pressão contrária). Vinda do latim
repressione, que estabelece por função conter, represar, revela em sua significação, o sentido
daquilo que não nos permite avançar, o que nos contém, o que impede o nosso id (desejo)
de se realizar. Assim, como afirma Freud em seu livro A História do movimento psicanalítico:
a teoria da repressão (verdrängung, em alemão) é a pedra angular sobre a qual repousa
toda a estrutura da psicanálise, ou seja, é das relações que cada ser humano estabelece com a
realidade (superego: normas, regras, limites) que ele constrói a própria personalidade.
Propomos em nossos tratamentos a análise das repressões e também buscamos revê-las sob
outra ótica, a de percebermos quando ela foi e ainda pode ser necessária e benigna.
Compreendermos o seu papel além do que recalcamos ou sentimos em nossa vontade

62
imediata ao ser contrariada e frustrada, entendermos os limites como parte fundamental no
processo de crescimento.
Entendermos também que, às vezes, reprimir certos impulsos é necessário: como
conter o desejo de tomar a primeira dose, por exemplo, na condição da pessoa se reconhecer
como alcoólatra. Quando o motivo que reprime o desejo é justo, aprender a conter os
impulsos é benigno, porém, as consequências afetivas e comportamentais devem sempre
serem refletidas e analisadas pelo próprio indivíduo, a fim de que compreenda a
especificidade e a historicidade de si mesmo.
A sociedade se organiza sobre regras, normas que balizam o convívio social,
necessárias ou contingentes aos grupos que a ela se envolvem. Nos sentimos muitas vezes
reprimidos por leis, normas e regras, justas ou injustas, que existiam desde antes de nascermos
e variam de acordo com o contexto e a família.

Desde a infância fomos submetidos ao conjunto de normas dos nossos grupos sociais,
os limites de nossa condição existencial e história de vida; a ética correspondente às leis
morais em que se baseiam nossas famílias e os nossos grupos sociais, os conceitos de certo e
errado que incorporamos enquanto crescemos. Nos foi apresentado um determinado senso
moral estabelecido em nosso meio. Nós nos desenvolvemos, aceitando-o ou rejeitando-o,
formando individualmente uma consciência moral. Ela é quem nos fornece o fio condutor
pelo qual decidimos agir, pelo qual justificamos a nós mesmos nossas decisões e como
assumimos as consequências delas.
Quando falamos sobre a sexualidade (um assunto fundamental, a qual dedicamos todo
um capítulo em nossos tópicos de tratamento), a questão da repressão formada pelas regras de
uma determinada moral estabelecida causa profundos desconfortos e transtornos aos
(Fig. 5)

Pulsão de Sexualidade,
vida, relação entre o
prazer, o corpo e
reprodução, a mente que
instinto, libido influencia a
personalidade

63
Afetos, Signos sociais,
moralidade, campo
emocional, necessidade de
segurança, padrões
(namoro, amizade,
indivíduos. É, portanto, fundamental identificarmos e refletirmos sobre os diferentes aspectos
que envolvem a sexualidade e o conjunto psicossocial que a acompanha. Como já afirmamos
em nosso capítulo anterior, os estudos sobre a sexualidade representam uma das maiores
contribuições para o conhecimento sobre o ser humano, tornando-se instrumento para a
identificação e resolução de inúmeros sofrimentos psíquicos e afetivos, pois junto à
sexualidade, somam-se a questão do inconsciente, do recalque, da moral, da culpa e da
cultura. É essencial lembrarmos que ela já é primeiramente estabelecida junto à estrutura
básica da vida, como parte da pulsão de vida, da reprodução e da libido. Sua influência
acompanha o crescimento e o desenvolvimento da personalidade do indivíduo durante toda a
sua vida e estará relacionada, para ser aceita ou reprimida, pelos valores e signos sociais que
a determinam. Assim, a personalidade do indivíduo se estabelece entre sua pulsão de vida (as
pressões de seu id) e as normas e repressão do superego formadas pela sua relação social.
Como já discorremos a respeito, a sexualidade é um eixo fundamental na psicanálise, pois
justamente a pulsão de vida e os princípios de prazer, se veem limitados e reprimidos por
muitas das regras sociais a qual o sujeito se vê submetido.
Finalmente, o terceiro conjunto de nosso ideograma apresenta o campo dos afetos. Em
uma relação, pode haver sexo, mas não necessariamente amor e carinho. Pode haver amor,
mas por vezes são reprimidas e proibidas as fantasias e desejos do imaginário erótico pelas
regras morais. Paralelamente, a exacerbação do sexo e do corpo como produtos de consumo,
insuflam a pornografia e o empobrecimento da dimensão erótica, imaginativa e saudável.
Juntamente a esses valores promovidos pela indústria e comportamentos de massa, temos a
promoção dos descompromissos afetivos que escarnecem muitas vezes o papel da ternura, da
intimidade e seus laços. A questão da fidelidade conjugal e os medos da traição também
permeiam todas as relações humanas e a sexualidade, são fatos sociais, simbolicamente
estruturados e os quais assumem um papel essencial na organização da sociedade que,
inclusive, a formaliza juridicamente na condição civil dos cidadãos: solteiro, amasiado,
namorando, casado, divorciado, etc., são representações instituídas e legalizadas de
relacionamentos, previstas ainda para a ordenação das heranças e direitos. Os componentes
éticos, como o respeito e a responsabilidade, são de fato essenciais para a integridade desse
equilíbrio social e para a confirmação da expectativa de segurança nos relacionamentos
interpessoais: as exigências formalizadas dos compromissos afetivos.
Acreditamos, portanto, seguindo a proposta de nosso ideograma, que é necessário
identificar os diferentes aspectos de nossa sexualidade para que, individualmente em nossa
particularidade, busquemos o melhor equilíbrio possível entre o que pulsa em nossa

64
intimidade, e se expressa em nossa sexualidade, e o que o outro (e a sociedade) nos exige,
encarando a relação que objetivamente exista entre suas dimensões, ao mesmo tempo em que
precisamos buscar equilibrá-los de maneira saudável com a particularidade de nosso campo
afetivo.
As repressões, os limites, não devem ser vistos apenas sob o aspecto negativo de nos
impedir de seguirmos com o que quisermos, mas também de nos mostrar que normas voltadas
à organização coletiva precisam ser respeitadas e, sob esta perspectiva, identificarmos de que
maneira a pura entrega aos nossos desejos, aos nossos impulsos, à desobediência das normas
sociais, o descaso aos sentimentos alheios, oferece um sentimento de onipotência, de nos
sentirmos superiores aos outros e de podermos afirmar nosso narcisismo. Desenvolver nossa
consciência moral favorece nosso crescimento pessoal na medida em que estabelecemos
valores e princípios para nós mesmos, reconhecendo os direitos e sentimentos alheios,
favorecendo nossas habilidades de empatia e sensibilidade. É ela que forma a base de nosso
caráter, o qual orienta nossos comportamentos e parâmetros em relação aos outros e a
sociedade.
Diante das repressões que nos defrontamos, nossa consciência moral nos leva a
assumirmos diferentes posturas éticas, vejamos sinteticamente o que nos diz a respeito deste
assunto, as teorias de Lawrence Kohlberg36 sobre a evolução do comportamento moral:

⮚ Nível 1 (Pré-Convencional)

Estabelecendo como orientações:

❖ Punição/obediência – Como evitar a punição

❖ Auto interesse – O que se ganha com a regra?

❖ Postura ética - Isonomia, sob a qual nos vemos isolados do sentido das regras

e normas e apenas as evitamos ou as seguimos sob condição de medo e vantagem.

⮚ Nível 2 (Convencional)

A convivência, os acordos interpessoais orientam o comportamento. A pessoa busca


respeitar as normas sociais e a moralidade estabelecida, porém considerando primeiro a sua
situação pessoal perante o grupo social.
36
Psicólogo Norte Americano nascido em Nova York (1927 a 1987), desenvolveu, entre outras, a teoria do
desenvolvimento moral.

65
❖ Postura ética – Heteronomia, quando nos adaptamos às regras que nos são

apresentadas e procuramos segui-las pela conformidade social e prestígio.

⮚ Nível 3 (Pós-convencional)

Quando a pessoa é orientada pela consciência e bom senso, incorpora em si os


princípios da lei, das normas e regras e procura por si mesmo segui-las. Quando estabelece
para si princípios éticos universais (Declaração dos Direitos Humanos, como exemplo
fundamental), bem como a empatia pela situação do outro, estruturam a personalidade e
regem os comportamentos.

❖ Postura ética - Autonomia, quando nos percebemos livres e responsáveis em

nossas ações ao incorporarmos as regras que socialmente nós mesmos criamos.

A autonomia, em seus sentidos mais amplos, é o que almejamos em cada paciente.


Uma postura ética consciente, orientada por princípios morais que estarão além dos
comportamentos ego centrados. As reflexões sobre comportamento moral são fundamentais
para a ressignificação da maneira como o indivíduo reagirá às regras sociais e, as quais, em
muitos casos foram percebidas pelo indivíduo apenas como repressões. A educação e a
reeducação terapêutica buscam construir através da compreensão, a importância de se
respeitar livremente as regras que favorecem os direitos sociais. Não se exclui aqui as
posturas de contraposição, de indignação às repressões injustas e às quais o indivíduo se
insurge, porém, se resguarda na terapêutica a questão de se estimular o bom senso, do
autocuidado e da atenção que é necessária ser dada aos pacientes com obsessões de justiça,
aos ferimentos do ego e aos ressentimentos. É fundamental revermos o que reprimimos em
nosso inconsciente e que afeta nossa qualidade de vida no plano consciente. A paz interior é o
caminho e o objetivo sempre, entendemos que a reinserção social saudável e produtiva só
será possível ao indivíduo que despertar o amor por si mesmo e aceitar os limites que lhe
sejam necessários. Refletir e recanalizar a energia da repressão para o próprio bem-estar é
parte fundamental em nossos tratamentos.

Vamos retomar os aspectos do que reprimimos em nosso inconsciente, como traumas,


frustrações, medos, etc., e repensarmos a função do ego enquanto instância mediadora, das
tensões que sofremos. O ego, que possui suas raízes no inconsciente onde permanecem as
repressões, enquanto se constrói e estrutura formando nossa personalidade, estabelece

66
mecanismos de defesa, tanto para os impulsos, quando impróprios do id, quanto para conter
o que queremos afastar do plano consciente. Os mecanismos de defesa do ego são processos
inconscientes, estruturados e estabelecidos na personalidade, os quais permitem que a mente
encontre alguma forma de solução para conflitos, ansiedades, frustrações e ressentimentos que
não encontram solução no nível da consciência. Assim, os perigos das repressões recalcadas
estão justamente em quando são tão bem-sucedidas que não são percebidas no plano
consciente e a linha de comportamento adotada é entendida como se fosse estabelecida pela
livre escolha.
O ego estabelece mecanismos de defesa e, os principais descritos pela psicologia são a
repressão, a negação, a anulação, a racionalização, a identificação, o isolamento, a formação
reativa, a projeção, a compensação, a idealização, a regressão e a sublimação. A nosologia37
de cada indivíduo revela o conjunto de patologias que advém de seu processo repressivo. Em
nosso tema: fugas iremos refletir justamente sobre as especificidades desses diferentes
mecanismos de defesa desenvolvidos pelo ego e suas consequências na saúde mental dos
indivíduos.
Neste momento, vamos nos concentrar justamente em uma das defesas mais comuns, e
que constrói ou alimenta outros mecanismos, a repressão, que se forma e se estrutura em
nosso inconsciente como o recalque. Este seria justamente aquilo que mantemos afastado do
consciente, esquecido, pois queremos evitar que prejudique os sentimentos e a auto imagem
que construímos ou desejamos para nós mesmos. Ele pode ser primário quando foi construído
no inconsciente e equivale a uma segunda negação no consciente, e secundário, quando foi
construído no próprio nível consciente, e o que se recalca, tem como objetivo inicial, evitar
algum mal ou desconforto ao nível da consciência: vergonha, raiva, medo, etc. Porém, o ponto
fundamental é que apesar de o que se reprime estar contido, disfarçado, escondido da
consciência, ele permanece estabelecendo uma tensão, influenciando a psique. Neste
sentido, a angústia, por exemplo, revela o que os mecanismos de defesa do ego reprimiram
dentro do indivíduo, mas que estão afetando sua paz e qualidade de vida. O que foi reprimido
no inconsciente pelas defesas do ego e já se estruturou na personalidade do indivíduo,
cristalizando comportamentos inconscientes, eis a chave para que se possa rever o que precisa
ser analisado e sanado pela terapêutica: “a pedra angular no qual repousa a própria estrutura
da psicanálise”.

37
Nosologia é a disciplina médica cujo objetivo é realizar uma descrição completa da doença para diferenciá-las
e classificá-las.

67
“(...) temos razões para supor uma repressão primordial, uma primeira fase da
repressão que consiste em que, ao representante psíquico da pulsão (...), se negue a
admissão na consciência. Assim, se estabelece uma fixação; a partir desse
momento, o representante em questão persiste imutável e a pulsão continua ligada a
ele.” (Freud, em A repressão).

Em nossas Estâncias de tratamento, esta análise por parte do paciente junto a um


profissional de referência, através do resgate de sua história de vida, são as bases para
especificar o seu caso particular e ser proposto o seu processo terapêutico específico dentro de
nosso Sistema Multimodal (multidisciplinar).
A tensão dada pelo que foi reprimido por nós mesmos, ou foi reprimido em nós pela
sociedade, estabelece um conflito interno que não nos permite sermos o que poderíamos! Não
conseguimos desenvolver nosso verdadeiro potencial. O que recalcamos inconscientemente a
partir das repressões, leva-nos a assumirmos uma roupagem externa que não condiz com a
pulsão da nossa realidade interior (não encontramos congruência entre o nosso self e a
realidade). As angústias da perda do objeto, da castração, da consciência moral e a angústia
diante da morte, revelam as tensões afetivas construídas entre o inconsciente e o consciente.
Estas tensões, podem se desdobrar em inúmeros problemas ao não conseguirmos solucioná-
las e construirmos fugas como soluções, ou ainda, buscarmos descarregá-las de maneira
inadequada. Veja-se simplesmente a violência desencadeada no trânsito, ou ainda a irritação
acumulada no trabalho e transferida aos familiares, a evolução do stress nas sociedades
contemporâneas e o aumento alarmante dos quadros depressivos, os quais ilustram a
importância de refletirmos estas questões.
Faz parte das diferentes formas de repressão social, as exigências ideológicas contidas
nos padrões de comportamento, nas expectativas da estética e do consumo, na inadequação
ideológica, religiosa, sexual, política, etc., que vivenciamos em nossos grupos e na sociedade
como um todo. Em nosso tema sobre a aceitação do corpo, também abordamos sobre as
influências específicas destas repressões e o desenvolvimento de distúrbios, como a obesidade
e a anorexia por exemplo, onde identificamos claramente a introjeção do que foi recalcado e
como afetam profundamente a qualidade de vida das pessoas. Também elaboramos reflexões
que envolvem as repressões no tema sobre a sexualidade para percebermos o quanto ela
ainda gera sofrimentos por possuir tantas questões não resolvidas e que, por estarem
ancoradas nas normas, dogmas e tabus, justamente por não permitirem um diálogo ao seu
respeito, cristalizam concepções e comportamentos que, muitas vezes, levam as pessoas à
procura de soluções para suas angústias. Apesar das repressões formarem-se de maneira
externa, social (superego), sua introjeção e recalque é sempre individual, ou seja, cada

68
indivíduo forma a partir de suas catexias38 e estrutura suas consequências de maneira
particular, além de móbil, ou seja, possa ser identificada a partir de seu desdobramento nas
angústias, nas fobias, nas somatizações, etc., o que permite pela terapêutica, a identificação
dos diagnósticos e a elaboração de propostas de tratamento.
Podemos perceber a influência do que está recalcado também, através de pequenas
compensações, ou válvulas de escape, que estabelecemos para driblar a ansiedade e o medo,
os quais muitas vezes acabam por gerarem outros grandes problemas, como os vícios, sejam
de alcoolismo ou outras drogas por exemplo, que anestesiam a angústia a qual, em verdade
esconde o que foi recalcado e deve ser devidamente considerada e analisada, pois o sintoma
revela a causa daquilo que essencialmente foi reprimido e se desenvolveu, muitas vezes, em
diferentes transtornos.
Desconsiderar os limites aos quais precisamos nos adaptar no processo social, é a
condição para perdermos o senso moral a que deveríamos estar submetidos. Esta postura é a
base, como já dissemos, para nos sentirmos onipotentes e despreocupados com a condição do
outro. Viver apenas a conveniência do que desejamos, ou ignorarmos as tensões resultantes do
que aponta nossa própria consciência moral, fugindo da realidade. Posturas que apenas
aumentam nossos problemas, muitas vezes nublando a realidade, estabelecendo uma zona de
conforto, vergonha ou culpa, em que nos refugiamos (fugas) e que limitam nosso potencial
para sermos realmente felizes e saudáveis.
Seja pela sociedade, ou pela família, as repressões que nos frustraram, portanto, levam
o indivíduo a conflitos internos, a desejar fugir ou quebrar os limites a que está submetido ou
que recalcou. As mágoas e as necessidades de afirmação, acumuladas afetivamente de
maneira negativa no inconsciente, atrapalham o autoconhecimento, o autoconceito, a
autoestima e a auto proposição. É fundamental para o processo terapêutico que estas catexias,
mágoas e ressentimentos sejam revistos e analisados, pois formam a base para que se alcance
a clareza sobre suas consequências na realidade, pesquisando e tratando a partir das possíveis
causas que as geraram.
Para ser, é preciso ter a coragem de se conhecer. Novamente voltamos ao nosso lema.
É necessário ter coragem para se curar. Portanto, em nossas propostas terapêuticas,
juntamente com a psicanálise que permitirá ao paciente revisitar seu histórico de vida e rever
as repressões a que foi submetido. Procuramos auxiliar o paciente a reavaliar quais na
verdade eram benignas e necessárias ao seu processo de adaptação (superego) social e as que

38
Concentração de energias mentais (pulsões), conteúdos de memória, sequência de pensamentos ou
encadeamento de atos. (N.A.)

69
realmente foram negativas prejudicando sua personalidade. Para isso, como já dissemos,
utilizamos de diversos instrumentos e técnicas em nossa metodologia multimodal neste
precioso processo de perceber em si mesmo o potencial para transformar o que cristalizou e
ao que se condicionou no plano consciente, formando sua linha de comportamento, induzido
pelos próprios mecanismos de defesa, se ressentindo, limitando, viciando, auto sabotando,
incapacitando-se para o próprio desenvolvimento, nosso auxílio vem para ajudá-lo a canalizar
suas energias para a libertação das algemas visíveis ou invisíveis que construiu para si.
Ao mesmo tempo, neste processo de ressignificação, aprender a aceitar, como os
demais, os limites e repressões que foram e são positivas e próprias da realidade. A identificar
o que realmente causa os conflitos internos, esperamos que o paciente consiga entender que
em muitas situações na vida nos veremos frustrados, porém, assim como aquele rio que ao ser
represado pode ver suas forças serem canalizadas de maneira benéfica, nós também
poderemos com resiliência, suportarmos as repressões, controlá-las e canalizá-las, de maneira
sadia, como dínamos que gerarão e sustentarão as energias das quais todos necessitamos para
conquistarmos o nosso bem estar e felicidade.

70
O medo

“Façamos da interrupção um caminho novo.


Da queda um passo de dança, do medo uma escada,
do sonho uma ponte, da procura um encontro!”
Fernando Sabino

Em nossa abordagem sobre o medo, eleito um dos temas fundamentais em nossas


pesquisas e tratamentos, entendemos que ele constitui um estado emocional no indivíduo o
qual, apesar de ser uma “emoção universal” e inerente à natureza de todos os seres humanos,
sendo parte do conjunto funcional neurológico e possuir funções positivas de alerta e cuidados
aos perigos, em seu aspecto negativo, o medo é o condicionante da estruturação e
cristalização de sentimentos que apavoram, paralisam, angustiam, gerando ansiedade e
atrapalhando a qualidade de vida, criando limitações ao potencial para “ser mais” em sua
busca de plenitude e bem estar.
Diferente da natureza dos animais, e do determinismo instintivo que os limita e os
condiciona em sua sobrevivência ao real, o ser humano por sua vez, pensa, raciocina, imagina
e reage de maneira individual ao que lhe aflige, aos seus medos. Desta maneira, o medo que
pertence ao conjunto de emoções naturais, inclusive entre os animais superiores, como
podemos perceber em um coelho ou em um cão e observarmos suas reações aos perigos:
preparação para a fuga e/ou estado de alerta para o ataque, no ser humano, com as construções
mentais, racionais ou puramente imaginativas, de reação ao medo, se formam
condicionamentos de “luta-e-fuga”, construídos e associados pelo imaginário, que podem se
cristalizar de maneira nociva e limitante.

71
O sistema nervoso simpático que, por sua vez, gera no corpo a liberação de
substâncias químicas como a adrenalina e a noradrenalina, fabricadas pelas glândulas
suprarrenais e usadas como mensageiras de desconforto e perigo, fornecem sintomas de
ativação fisiológica estabelecendo desde palpitações, dificuldades em respirar, tonturas,
sudoreses, sensações de calor e frio ou tremores. Desencadeiam essas reações químicas no
corpo em diferentes situações, por lembranças ou antecipação da realidade (ansiedade)
gerando o medo, o qual o indivíduo preestabeleceu condicionamentos, muitas vezes
inconscientes, frente às diferentes situações onde é despertado. A ativação constante destes
mecanismos fisiológicos, sua associação inconsciente a repetitivas atitudes de resposta,
gatilhos forjados pelo imaginário que subjugam a razão, subvertem os papeis naturais de
preservação, às falsidades e ao domínio do medo: angústia, ansiedade, depressão, fugas...
A identificação originária dos medos de um indivíduo, geradores de ansiedade,
temores, fobias, distúrbios paranoicos e esquizofrenias, é a condição diagnóstica básica para o
auxílio em suas superações. Quais são esses medos? O que eles escondem? Por que realmente
os têm? O que desencadeiam?
Em seu sentido etimológico, a palavra medo vem do latim metu, causador de
cuidados, vocábulo que está na raiz de palavras como médico, remédio, remediar,
irremediável39 . Temos no desenvolvimento humano, desde a tenra infância, a construção dos
limites dados à criança, geralmente oferecidos pelos pais, onde o superego, “os princípios de
realidade”, os quais devem fornecer aos indivíduos as devidas precauções aos perigos e a sua
incorporação às normas. Porém, aos olhos do desejo e “do princípio de prazer” são limitantes,
impositivos, muitas vezes frustrantes e geram sentimento de impotência (perante aquilo que
queremos) e da sensação de morte, pela não realização do que almejamos, sonhamos, levando
a uma sensação de frustração, formando à partir destas emoções, uma mitologia da
impotência, pois, ainda infantis, não compreendemos que os limites dados pelos pais e pela
realidade possuem a intenção de educar-nos e não de apenas negar nossos desejos.
À medida em que cresce, o ser vai ampliando esta mitologia da impotência, ao renegar
os elementos necessários da realidade em função das ideias de onipotência infantil e dos
impulsos de vida que lhe determinam. Ao desconhecer, não compreender, ou não aceitar, a
importância dos limites e regras que lhe são dadas, o ser associa a impotência pela não
realização de seus desejos à morte. Incorporando e gerando fobias, estabelecendo uma
memória corporal sobre determinadas situações que se apresentam ou se repetem, os medos
nos paralisam, ou geram condutas contra fóbicas que nos levam aos desequilíbrios e
39
SILVA, D. De Onde Vêm as Palavras. São Paulo: A Girafa, 2004

72
transtornos. A incapacidade que possuímos de prever o futuro, limite natural de todos, nos
coloca em uma posição de apreensão ao que realizaremos ou não. Os fatos concretos se
deparam com os nossos desejos e percebemos que entre o que desejo – o querer, e a realidade
desta conquista, existe um processo ao qual devemos ou deveríamos nos submeter, contudo o
medo impede, recorrendo a uma memória corporal, paralisando e nos submetendo ao seu
controle.
Imaginemos uma situação em que o indivíduo busque sua profissão: em que ele deseje
(impulso de vida) esta realização. Ele deverá submeter-se, por exemplo, a um curso, a uma
faculdade. Nesta, terá que passar por um vestibular, exames...todo um processo e, aqui
começam os medos: - Será que consigo? O indivíduo revive seus fracassos, e projeta sua
impotência no futuro incerto. As “pequenas mortes”, simbolizadas pelo que não realizou,
retornam e fortalecem seu medo. A ignorância do futuro, somada com a memória de suas
perdas, o angústia e paralisa. A insegurança em vencer seus limites, dadas as dificuldades e
processos do real, algo natural da condição humana, não pode ser determinado pelo medo. É
necessário tentar, para romper os limites, é preciso ousar primeiro lutar contra o medo.
Seja em uma outra situação, como o enamoramento, onde o outro, sua individualidade
e sentimentos nos geram incertezas, expectativas e ansiedade (será que gostará de mim?
Como conquistar a pessoa desejada?). Essa situação normal de insegurança, se dominada
pelos temores, pode bloquear o indivíduo de ao menos tentar! Os medos das rejeições nos
acompanham durante toda a vida e marcam nossas emoções.
Faz parte da vida humana o jogo entre o emocional e o racional, onde carregamos
também o passado pelas experiências vividas e o qual nos influencia em nossas decisões
atuais. A vida, palco de constantes situações imprevisíveis, nos convida aos desafios, às
incertezas, onde somos os protagonistas de nossa existência e as realizações dependem
principalmente de nossas atuações. As diferentes situações, os diferentes desafios nos
angustiam naturalmente.
A vida nos exige superação constante do medo, que está onipresente em nossos dias.
Se nos refugiamos em zonas de conforto evitando enfrentamentos, esperando de algo, alguém
(protetores) que cuidem e resolvam nossos problemas, obviamente estaremos alimentando
nossos medos e nos refugiando em uma mentira, formando uma “mitologia do medo” onde
construímos diferentes estratégias para não encararmos a realidade de nossos temores. Muitas
vezes nos fazemos vítimas das situações, onde projetamos as tensões e os problemas em tudo
e em todos para justificar nossas dificuldades, ou ainda nos impomos uma autossabotagem
de maneira a evitar os problemas e estabelecemos uma guerra contra nós mesmos quando

73
passamos a alimentar continuamente o medo, desenvolvendo doenças específicas, neuroses,
paranoias e chegando mesmo a esquizofrenias.
Também podemos criar mecanismos contra fóbicos com os quais estabelecemos
rituais de “proteção”, como as consultas aos horóscopos, os amuletos, as manias e
desenvolvermos, inclusive, os chamados TOCs (Transtorno Obsessivo Compulsivo), onde
temos a ansiedade que nos leva a criar manias, onde nos apegamos a algo que forneça a ideia
de alguma proteção.
Os casos de pacientes que são reféns do medo, e o conjunto de psicopatologias
relacionadas a ele são diversas. Em nossas Clínicas Estância, propomos justamente como
parte do tratamento, a reflexão sobre como não seremos livres enquanto nos mantivermos
apenas cúmplices do medo. É preciso resgatar o histórico de vida, conhecer os mecanismos
gerados pelo paciente para sobreviver ao medo, aprender a controlá-lo se não for possível
superá-lo, mas chamar a atenção para o “efeito placebo” que construiu, onde se refugie das
fobias sem o esforço de lutar contra elas.
Entendemos que o ser humano é uma “unidade psicofísica” em que o emocional e o
racional refletem-se no corpo e, o corpo e sua memória, geram dispositivos automáticos que
se desenvolvem em resposta buscando uma solução ao mal-estar, formando sua homeostasia.
Em relação ao medo, os reflexos aos estímulos dados pelo ambiente, o corpo libera
substâncias que o levam a um estado de alerta e preparação para a sobrevivência,
constituindo assim, o substrato dos padrões neurais que formam os sentimentos de emoção.
Assim, nos “viciamos” em associar a solução dos perigos, estimulados pelos medos, aos
remédios, às drogas, ao álcool, aos TOCs, às indiferenças, ao isolamento, ao protecionismo
dos outros de maneira a evitar o esforço de construirmos a coragem necessária para
identificarmos e enfrentarmos as verdadeiras causas desses problemas.
Holisticamente falando, isto é, percebendo o ser como uma unidade psicofísica,
buscando a totalidade e a harmonia de seu corpo e de suas emoções, sabemos que a solução
real para o medo em seu aspecto doentio, de onde geramos desequilíbrio e gatilhos de
negociação para suportá-lo, os quais nos levam continuamente a fugirmos, é a construção, a
partir da identificação de sua causa até sua superação ou controle dela, pela autorreflexão
dada pela coragem de conhecer a si mesmo! Auxiliamos o paciente a estabelecer um
caminho, um processo de fortalecimento da consciência sobre os mecanismos de fuga
inconscientes ou já socialmente institucionalizados onde os medos são utilizados para controle
e coerção.

74
Lembramos sim dos aspectos positivos do medo, quando ele nos fornece cautela aos
perigos, quando ele nos lembra do valor daquilo que podemos perder, oferece força à
superação dos problemas e, principalmente quando nos remete à nossa mortalidade, nos
trazendo humildade, fortalecendo nossa fé e o nosso respeito à vida. O poeta Bráulio Bessa
em sua poesia sobre o medo40 nos traz importantes reflexões:
Que o medo de chorar Que o medo da derrota E que o medo do toque
não lhe impeça de sorrir. não lhe impeça de lutar. não lhe impeça de abraçar.
Que o medo de não chegar E que o medo do mal Que o medo dos tropeços
não lhe impeça de seguir. não lhe impeça de amar. não lhe impeça de correr.
Que o medo de falhar Que o medo de cair Que o medo de errar
não lhe faça desistir. não lhe impeça de voar. não lhe impeça de aprender.
Que o medo do que é real Que o medo das feridas E que o medo da vida
não lhe impeça de sonhar. não lhe impeça de curar. não lhe impeça de viver.
O medo pode ser bom Se há medo da maldade, de um medo pra existir.
serve pra nos alertar, é sinal para amar. Uma estranha dependência
tem função de proteger, Se há medo do silêncio, complicada de sentir.
mas pode nos ensinar é sinal para falar. A coragem de levantar-se
que às vezes até o medo Se o silêncio insistir, vem do medo de cair.
vem pra nos encorajar… é sinal para cantar. Use sempre a coragem
Repare, Se há medo do escuro, para se fortalecer.
Se há medo de perder, é sinal para iluminar. E quando o medo surgir
é sinal para cuidar. Se há medo de um erro, não precisa se esconder.
Se há medo de desistir, é sinal para caprichar. Faça que seu próprio medo
é sinal para tentar. Se há medo, meu amigo, tenha medo de você.
Se há medo de ir embora, é sinal para enfrentar.
é sinal para ficar. Toda coragem precisa

40
Bráulio Bessa. Poesia que transforma. Ed, Sextante. Rio de Janeiro, 2018.

75
Ao abordarmos o tema do medo, certamente estamos entrando em um dos assuntos
mais complexos que acompanha toda a trajetória humana, presente em todos os lugares do
planeta e ao mesmo tempo subjetivo a cada indivíduo. Em cada época e lugar podemos
elencar listas de medos institucionalizados: os medos do desconhecido, do diferente, das
calamidades, da fome, da impotência frente a brutalidade das guerras, das doenças, da
solidão, do exílio e da exclusão, de sermos ridicularizados, da perda dos amores, da perda da
honra, da morte, dos confrontos necessários, de assumirmos a realidade externa ou interna,
de Deus, do diabo, das repreensões, do sucesso, do fracasso, do começo e do fim das
coisas...enfim, sobre seus diferentes aspectos, construções, projeções e desdobramentos, o
medo acompanha a humanidade pois é uma de suas emoções básicas. Importante sinalizador
de perigo e desconforto, presente em todos, torna-se um instrumento ideológico de poder e
dominação.
Histórica e socialmente vivemos também sua institucionalização e utilização em
todos os aspectos da cultura: mítica, religiosa, artística, política, filosófica e científica.
Podemos retomar a importância do medo dado às narrativas míticas de diferentes sociedades
onde explicitamente encontramos monstros e demônios, encarnando o mal e disseminando
terrores, representando a rebeldia, a amoralidade, os abusos, os poderes desenfreados e os
castigos dados às desobediências dos mortais. Porém, os medos também estão presentes
implicitamente na valorização da coragem dos heróis, em sua busca por justiça quando
temem pelos outros, na prudência e respeito às leis sociais e divinas. Tomando a mitologia
grega como exemplo, vemos que desde o surgimento do cosmos 41, mesmo a enormidade,
poder e terror dos titãs são submetidos a uma ordenação, uma hierarquia e uma acomodação
(obrigatória) às leis de uma ordem, em que se teme e se respeita. Ou ainda, o papel dos
heróis, deuses e semideuses, que também estão submetidos à vigilância aos preceitos, aos
perigos e a desafios para estimular sua jornada 42e provar sua coragem vencendo os medos.
Ele é onipresente na formação de todos os indivíduos.
Porém, antes de refletirmos sobre a coragem de enfrentarmos nossos medos, vamos
retomar os aspectos de manipulação e coerção social em sua utilização ideológica para o
controle das pessoas.
No processo de instituição do cristianismo no Ocidente e da formação do mundo
medieval, onde o cotidiano de um mundo inexplicável racionalmente era substituído por
obrigações de crença e submissão, de medo e devoção frente a um mundo sobrenatural,

41
cosmos = ordem, a cosmogonia descrita por Hesíodo na Teogonia, da qual tudo se origina do caos
42
veja-se a Jornada do Herói, do livro O Poder do Mito, de Joseph Campbell

76
intermediado e submetido ao fórum religioso, claramente percebemos o medo como
instrumento de ordenação social durante todo o período da alta idade média até sua
diluição e manutenção ainda hoje, no mundo atual. Com o advento da modernidade, dos
passos da racionalidade e da parcial quebra de antigos paradigmas e dogmas, substituídos
gradativamente pela capacidade humana de contornar os limites naturais e desenvolver
técnicas e métodos de conhecer e controlar a natureza, os medos apenas modificam-se e
reestruturam-se à cultura e contexto. Ainda utilizados para a ordenação pública e a
manutenção do poder dos governantes, onde, entre outros, podemos destacar as orientações
dadas por Maquiavel, em O Príncipe, no capítulo XVII, (Da crueldade e da piedade; se é
melhor ser amado que temido, ou antes temido que amado) e, na qual conclui que o
governante deve se fazer amado e temido, sendo o temor mais útil que o amor, mantendo o
cuidado para não ser odiado43. Assim, também claramente o medo é racionalmente instituído
como instrumento de controle social.
Ademais, no desenvolvimento da modernidade, entre as revoluções de cunho cultural
e /ou político, como a Reforma Protestante, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial,
apesar das diferentes “paisagens do medo”44, sua institucionalização, reformas e adaptações,
permanece sempre como pano de fundo e instrumento. Afinal, qual país sem um exército?
Por que tantas armas? O medo nos torna inseguros e agressivos. Não à toa Alfred Nobel
deixou o prêmio dedicado à paz, após criar a dinamite e ver sua descoberta acabar
estimulando uma indústria bélica bilionária, ou mesmo, os indícios da relação entre a
depressão e o suicídio de Santos Dumont após constatar o uso do avião para fins militares.
Perceber que instrumentalizamos o medo e sua utilização para gerar sofrimento aos outros
nos leva à culpa, pois é contra a nossa consciência e os sentimentos sadios de buscarmos e
gerarmos felicidade.
O medo social, que é alimentado, manipulado e instrumentalizado pela busca de
lucro e poder, não pretende oferecer respostas e soluções aos temores de sua população.
Oferece ilusões de escolha, ilusões de saída (fuga) que em geral apenas servem aos
interesses econômicos. A indústria cultural e a cultura de massa instituem modelos que, ao
não usarmos suas modas, sapatos, seus cortes de cabelos e carros, sentimos perante os
grupos sociais que frequentamos a inadequação e a vergonha. O medo de fracassarmos e da
necessidade de pertencimento, são instrumentos poderosos!

43
MAQUIAVEL. O Príncipe. Mem Martins, Publicações Europa-América. 1976.
44
Como discorre Yi-fu Tuan em seu livro “Paisagens do Medo” sobre os diferentes contextos históricos e
culturais do medo.

77
George Orwell, em seu livro 198445, nos trouxe a projeção, pela ficção, de uma
sociedade altamente controlada e vigiada pelo “big brother” mantinha toda a ordem social
através do medo, Michel Foucault em Vigiar e punir e Microfísica do poder, também reflete
sobre o controle hierárquico, a docilização dos corpos, o medo do encarceramento e sua
instrumentalização pela sociedade e o Estado. Teorias mais que fundamentadas pelos
horrores que a humanidade viveu, buscando como exemplo as ditaduras, em suas diferentes
roupagens ideológicas, que possuem como base o controle da população pela coerção e o
medo.
Atualmente, esses mecanismos cada vez mais desenvolvidos pela psicologia de
massa, propagandas e marketings, já refinados em suas técnicas, instrumentalizam a
sociedade de consumo para manipular os indivíduos através de punições e prêmios, medo e
esperança, alegria e tristeza, sob a promessa da felicidade. Os diferentes desejos de prêmios,
assim como os diferentes medos de castigo, são estudados e utilizados. A internet, bem
como os canais televisivos e todo o restante da cultura de massa é largamente utilizada para
a divulgação da violência e a propagação de diferentes medos. As redes sociais e a invasão
da privacidade, geram medos pela exposição íntima. As vendas dos bens de segurança são
revestidas das ofertas de paz e tranquilidade. As ilusões de escolha na busca da felicidade
permanecem sob as ofertas dos interesses das grandes corporações e das instituições
políticas, religiosas e culturais. Os sentimentos são iludidos e as emoções manipuladas,
como nas apostas de loteria: não percebemos que estamos perdendo o pequeno valor
apostado, mas estamos crentes nos milhões prometidos com o jogo e, a esperança, que por si
é qualidade humana da força da virtude e da resignação, passa a ser um narcótico da
realidade e fonte de lucro. A felicidade, identificada com o bem verdadeiro 46, é subvertida e
vendida como uma satisfação momentânea, onde sua áurea de ser conquistada é substituída
pela possibilidade de ser comprada.
O ser e suas esperanças, o ser e sua felicidade, são subvertidos (e pervertidos) pelo
ter e sua possibilidade de compra. O medo de não possuir algo é associado com o medo
de não ser alguém, novamente, os sentimentos de impotência perante as expectativas que
a sociedade (o outro) projeta em relação ao indivíduo, o qual se culpa e se deprecia perante
as exigências paradoxais de uma sociedade de consumo. Os padrões e a utilização do medo
para a coerção social e o constrangimento levam também o indivíduo a esconder o que lhe

45
ORWELL, G. 1984. Brasiliense. São Paulo, 1992.
46
Lembrando que a felicidade representa objetivo da ética e da virtude, segundo o próprio Aristóteles em seu livro Ética a
Nicômaco.

78
causa medo, a criar falsidades, a inventar outra explicação, a mudar o foco de seus medos
reais, construir e recorrer às mitologias do medo. Preocupado com a aceitação dos outros,
com os preconceitos, por vezes muda-se para outra cidade, para poder ser, assumir sua
realidade interior e fugir das críticas. Ainda assim, aqueles mesmos medos lhe acompanham
e poderão fazê-lo fugir sempre, justamente pela impossibilidade de fugir de si mesmo.
Enfim, são inúmeros os aspectos do medo e sua influência nos indivíduos.
Vastamente estudado dentro da psicologia, e um dos temas destacados em nossos
tratamentos, recebe uma atenção especial por parte de nossos profissionais aos nossos
pacientes. Uma das frases que marcam a filosofia da Estância Morro Grande é: para ser, é
preciso ter a coragem de se conhecer! O acompanhamento e a reflexão sobre o medo,
enquanto gerador de desequilíbrio e doença, para fins de sua percepção, entendimento e
superação estão presentes no cotidiano da convivência e em nossa terapêutica: seja nos
acompanhamentos psicanalíticos, nos diferentes grupos de integração, seja através arte, da
música, da filosofia, nas excursões, nas atividades culturais e nos programas de
ressocialização. Todas as atividades propostas representam ferramentas de tratamento para a
aceitação, compreensão e superação dos limites impostos pelos medos, pelas dores físicas e
emocionais. É parte de nossas terapias, esse acolhimento do ser, do reconhecimento da
individualidade do seu medo, do apoio e auxílio à superação de seu sofrimento, buscando o
fortalecimento da coragem de cada um em sua jornada de autoconhecimento, de perceber-
se como um ser singular, único, inacabado, com um potencial para ser sempre mais e,
acima de tudo, o protagonista na conquista de sua própria felicidade. Propomos enfim, se
reconhecer os medos e os limites como desafios a serem superados, ao paciente identificar-
se em sua condição humana de estar em uma realidade em que os medos existem, são
necessários e úteis, porém, ao mesmo tempo que é necessário buscar a coragem, que o
impele a ser mais, redimensionando suas capacidades e libertando-se de seus medos,
retomando sua responsabilidade na conquista diária de uma vida feliz.

79
Realidade

“Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante”.
George Orwell

A palavra realidade vem do latim realitas, o prefixo res, significa coisa, o que é real,
o qual está diretamente ligado inicialmente ao que é concreto, ao que pode ser constatado
consensualmente de diferentes formas. No campo da linguagem estabelecemos a noção de
juízos de fato e juízos de valor, justamente como forma de procurarmos dar um significado
objetivo à realidade, pois sua percepção sempre passa pela subjetividade do sujeito. O que
ela representa para um, segundo seu juízo de valor, não representa para o outro: o que é
belo, o que é bom, etc., são, portanto, dados pela singularidade da consciência de cada um
que observa a realidade. Porém, os fatos, a realidade fenomênica, não pode ser deturpada
em função de nossas vontades, dos nossos desejos, ela precisa ser aceita e encarada como
realmente é, para que então terapeuticamente, seja possível construir o caminho da mudança
em direção onde se quer chegar.
Enquanto tópico em nossos tratamentos, a realidade é vista e revista de maneira a
proporcionar aos pacientes a reavaliação de sua própria noção de realidade, a
reconsideração de seus juízos de valor, propondo a da reflexão daquilo que cristalizou em
si e do que condicionou a estabelecer como real. Procuramos fortalecer a consciência e a
coragem de que encontrando e encarando a própria realidade a pessoa poderá construir
estratégias e conquistar a superação ou o controle das dificuldades que lhe afligem.
A psicanálise, neste aspecto, inaugurou com a identificação do inconsciente, uma
nova forma de saber, pois estabelece um novo plano de realidade, a psíquica. O plano do
inconsciente torna-se ele mesmo um objeto de conhecimento, que inclusive requer uma
abordagem diferenciada da que é dada pela filosofia, a cultura e a ciência. Na tradição da
escola psicanalítica, essa percepção sobre a existência de uma realidade psíquica (dada pelo
inconsciente) e uma realidade objetiva/ concreta, estabelece, como já dissemos em outros
temas, as bases do aparelho psíquico humano (Freud destaca a relação da constituição do eu
enquanto esta instância entre o id e a alteridade – o superego47) em que o sujeito é o

47
Já destacamos no tema Eu: Sigmund Freud – 1856-1939, onde desde 1895 em: Projeto para uma psicologia
científica, em 1914 - Narcisismo: uma introdução, aprofundando-se em suas considerações chega até Psicologia das
massas e análise do eu, em 1920-1923 e O Ego e o Id e outros trabalhos, 1923-1925, onde aborda as instâncias id,
superego e ego.

80
processo (instância) resultante dos confrontos entre suas pulsões de vida (seus desejos de
realização) e os limites ( regras, normas) dados pela realidade.
Ao resgatarmos o histórico de vida dos pacientes, revendo o que chamamos de DNA
Emocional, onde consideramos que o indivíduo não surgiu simplesmente quando nasceu,
pois também carrega em sua carga psicofísica individual, o contexto de seu nascimento, a
ancestralidade biológica e cultural de seus antepassados, pertencendo e herdando em si um
longo processo de formação. Nesta condição histórica e existencial única identificamos as
características de sua personalidade. O sujeito, através de sua autoanálise, revê justamente o
que foi por ele acreditado, ou seja, aquilo que foi creditado (dado por crédito) em sua
consciência, como real. É fundamental a reflexão em como lidamos com os limites a que
estamos sujeitos e em como lidamos com a realidade concreta: se a deturpam para poder
aceitá-la, se apenas a evitamos sem encará-la, se nos habituamos a nos revoltarmos e nos
amarguramos perante as frustrações. É fundamental percebermos as diferentes fugas
(mecanismos de defesa do ego) que nos fazem enxergar a realidade apenas como queremos.
Entendemos que em nossos processos de tratamento devemos auxiliar o paciente a encontrar
inicialmente uma postura de neutralidade para poder receber as cargas da realidade como
ela é, aceitando os próprios limites, aceitando suas condições, buscando enxergar as
frustrações e limites como desafios a serem superados e canalizando suas forças para
alcançar seus objetivos.
O ego que se estabelece entre as tensões do id e do superego, vê-se continuamente
afetado por sentimentos, sensações e emoções. Procura se equilibrar, resolver estas tensões
de variadas formas, entre elas, tentando fugir e esconder da própria consciência a realidade
que lhe oprime (tratamos especificamente sobre o assunto no tema Fugas). Ao renegar a si
mesmo e sua realidade, o indivíduo estabelece a gênese de inúmeras perturbações. A tarefa
de se resgatar a memória e refletir sobre a concepção da própria realidade estruturada na
psique, não é simples, pois não é fácil levar o indivíduo a reconhecer que ele pode evitar a
realidade, mentir e enganar a todos, porém, intimamente apenas enganará a si mesmo a
partir de um distúrbio em que o leve a oscilar sua percepção. Ajudá-lo a perceber que
independente de sua opinião, existem situações concretas que estão estabelecidas e cabe a
ele aceitá-las. A autoanálise é uma tarefa que requer coragem e persistência, pois se faz
necessário que o sujeito reveja não só os próprios mecanismos de defesa do seu ego, seu
histórico pessoal e sua estrutura psíquica e emocional, para que então consiga ver a realidade
além de sua subjetividade.

81
O trabalho psicanalítico de acolher, ouvir, mediar e propor reflexões deve sempre
considerar o que é dito e o que não é dito, pois é o processo inconsciente que fundamenta o
ego, o qual seleciona o que será elevado à consciência e o que não será permitido,
recorrendo inclusive à autossabotagem no próprio processo terapêutico.
Nâzim Hitmek Ran, grande poeta e dramaturgo turco48, escreveu um gracioso
poema que traduz de maneira singela a questão de não enxergarmos nossa própria realidade
em função de nossos desejos: El gigante de ojos azules49

Un gigante de ojos azules


Amaba a una mujer pequeña Um gigante de olhos azuis
Cuyo sueño era una casita Amou uma mulherzinha
Pequeña, como para ella, Cujo sonho era uma casinha
Que tuviera al frente al jardín Pequena como para ela
con temblorosas madreselvas. Que tinha a frente para o jardim
com madressilvas trêmulas.
El gigante amaba en gigante,
Su mano, a grandes obras hecha,
O gigante amava em gigante
Mal podía construir los muros Sua mão, para grandes obras feitas,
Ni usar el timbre de la puerta Mal poderia construir as paredes
De una casita con jardín Nem usar a campainha
con temblorosas madreselvas. De uma pequena casa com um jardim
com madressilvas trêmulas.
El gigante de ojos azules
Amaba a esa mujer pequeña O gigante de olhos azuis
Que pronto se cansó, mimosa, Amou aquela mulherzinha
De tan desmesurada empresa Que logo cansou, mimosa,
Que no concluía en un jardín De uma empresa tão desordenada
con temblorosas madreselvas. Que não terminou em um jardim
com madressilvas trêmulas.
Adiós, ojos azules, dijo.
Y, con graciosa voltereta, Adeus, olhos azuis, ela disse.
Del brazo de un enano rico E, com uma cambalhota graciosa
Penetró en la casa pequeña Do braço de um anão rico
Que tenía al frente un jardín Ela entrou na pequena casa
con temblorosas madreselvas. Que tinha um jardim na frente
com madressilvas trêmulas.
El gigante comprende ahora
O gigante entende agora
Que amores de tanta grandeza
Esse amor de tamanha grandeza
No caben ni siquiera muertos
Não se encaixam nem mortos
En esas casas de muñeca Naquelas casas de bonecas
Que al frente tienen un jardín Que na frente tem um jardim
con temblorosas madreselvas com madressilvas trêmulas.

48
(1901 – 1963) Poeta turco, nascido na Salónica, Império Otomano, no seio da atual Grécia.
49
Antología Poética. Ed. Quetzal

82
Convém lembrarmos que a personalidade de um indivíduo é complexa, ela é o
resultado tanto das construções conscientes, quanto das pulsões inconscientes. Assim como “o
gigante de olhos azuis”, muitas vezes não aceitamos nossas próprias proporções dentro da
realidade. O self advém de um processo, marcado pelo histórico de vida individual, começa a
se formar já nos primeiros anos de vida e passa a sofrer alterações com a convivência e
experiências que teve. As características da personalidade são únicas, próprias de cada sujeito.
Porém, a escola psicanalítica identifica três estruturas de personalidade às quais nossas
características estão sujeitas: neurose, psicose e perversão. Estas estruturas de personalidade
apontam as características às quais nossa personalidade se relaciona, revelando os sintomas e
transtornos próprios de sua particularidade, vamos revê-las sinteticamente para auxiliar a
fundamentar nossas reflexões.
A personalidade neurótica é formada por um conjunto de características que se
desdobram em ansiedade e culpa. Apesar da pessoa geralmente manter os pensamentos sobre
a realidade coesos, a maneira cotidiana como lida com ela pode estabelecer uma vida que
permanece sob tensões que atrapalham profundamente sua qualidade por não conseguir
resolver de maneira satisfatória suas pulsões. Vê a necessidade de cumprir as exigências da
realidade, mas sente-se culpada por não conseguir, assim como culpa-se pelos conflitos de sua
própria realidade intrapsíquica. Transtornos com quadros depressivos, de humor ou ansiedade,
portanto, revelam características de uma estrutura de personalidade neurótica, a qual pode ser
estabelecida como fóbica, histérica e obsessiva.
A personalidade psicótica possui as características de desconsiderar a realidade, de dar
preferência sempre ao seu próprio prazer e ao que é melhor para si, de forma que tende a
ignorar as regras, as normas, as exigências do superego. Procurando sempre eximir-se da
culpa, não sofre com a ansiedade, antes busca viver o que considera melhor para si,
independente das demandas que estejam sob sua responsabilidade. Podemos pensar sobre os
transtornos que advém dessa estrutura: negações, fugas da realidade que podem desenvolver
sintomas graves como desvios de caráter, sociopatia e esquizofrenia. Nos esforços de moldar
a realidade aos seus interesses, colocando-se sempre em primeiro lugar, a personalidade
psicótica pode formar características profundamente ego centradas, egoísticas. Em busca de
seu prazer pessoal, pode não se importar com o que causa às pessoas ao seu redor.
A personalidade perversa, enfim, é aquela que mesmo reconhecendo os limites e
regras, tende a transgredi-las em virtude do próprio prazer e benefício. Sendo impulsiva e
manipuladora, busca sair, quebrar o padrão e as exigências. Manifestando-se principalmente
através das perversões sociais e sexuais. Podemos encontrar os distúrbios referentes a essas

83
necessidades nas parafilias, como a pedofilia, masoquismo, sadismo e exibicionismo, por
exemplo.
Convém também aludirmos brevemente aos transtornos que não se enquadravam
satisfatoriamente nas neuroses e nem nas psicoses e que passou a ser chamado de Borderline:
estados limites ou fronteiriços. Eles apresentam quadros de esquizotimia, esquizoidia, pré-
psicose, personalidade hebefrênica, psicoses marginais, paranoia sensitiva, certas
personalidades perversas, personalidade psicopática, falso self e neurose de caráter. Apontam
o que é classificado dentro da psicanálise em alguns segmentos teóricos (existem diferentes
posturas sobre o tema: para os lacanianos, por exemplo, ele não representaria uma estrutura de
personalidade em si) como borderline, no CID-10 (1983) em F60.3, encontra-se “Transtorno
de Personalidade Emocionalmente instável subdividido em “Impulsivo” e “Borderline”. No
DSM-IV (1996) em F60.31(301.83) temos a caracterização de “Perturbação Estado-Limite de
Personalidade” com a descrição:
“Padrão global de instabilidade no relacionamento interpessoal, autoimagem e
afetos, e impulsividade marcada, com o início da idade adulta e presente em uma
variedade de contextos. (...)”

O termo foi desenvolvido por Eisenstein, Otto Kenberg, Jean Bergeret, entre outros.
Mauro Hegenberg50 em seu livro Borderline, discorre uma visão psicanalítica apresentando as
seguintes características: angústia de separação; dilema com a identidade (dificuldade de
constituir sua subjetividade), clivagem (divisão em bom e mau), questão do narcisismo
(visualiza suas próprias necessidades), agressividade, impulsividade e suicídio. Também
expressa que a conduta destes pacientes é bastante impulsiva e/ou autodestrutiva (gastos
exagerados, sexo, abuso de drogas, direção perigosa, distúrbios alimentares, condutas auto
lesivas, etc.), distorcem a compreensão das regras morais e hábitos culturais, apresenta
instabilidade marcante, sentimentos crônicos de vazio e de se sentir só. Raiva intensa e
inapropriada e dificuldade de controlar esta raiva. Também podem apresentar quadros de
depressão e ansiedade, (a primeira não está relacionada à culpa, mas a um sentimento de
profunda solidão e rejeição) ou ainda, ideias deliróides de autorreferência.
O humor destes pacientes apresenta flutuações abruptas que vão de uma melancolia
profunda a uma grande expansão, ficando facilmente irados, não suportam a frustração e
tendem a dissociá-la e a projetarem suas questões internas a outras pessoas, sobretudo ao seu
psicanalista de referência (o que nos leva a pensar a delicadeza e as dificuldade no
tratamento). A inteligência nestes pacientes não é comprometida já que eles discutem os mais

50
HEGENBERG, M.. Borderline. Casa do Psicólogo. São Paulo, 2000

84
variados assuntos com facilidade, mas apesar disso apresentam uma certa dificuldade em
apreender de forma precisa a realidade. Hegenberg utiliza a imagem de Humpt Dumpt, o
homem ovo, em cima do muro, que aparece no livro Alice através do espelho, de Lewis
Carrol: alguém frágil, que pode despencar e se quebrar a qualquer momento, mas permanece
cheio de si, impenetrável em seu orgulho e autoimagem.
Possuem muitos problemas referentes a sua identidade, pois, muitas vezes os
comportamentos autodestrutivos são também uma tentativa de conquistar uma identidade
ainda que provisória, como a do drogado (que se justifica e se auto estigmatiza), do valentão,
do rebelde, da promíscua, etc.
Em nossas Clínicas Estância, respeitamos a condição de cada paciente, sem
estigmatizá-lo, damos ênfase ao acolhimento, ao cuidado consigo mesmo e com o próximo, e,
ao mesmo tempo estimulamos o potencial individual que possui para se curar, para
estabelecer o seu consenso sobre a realidade concreta em conjunto com a sociedade,
reconhecendo sua condição e os valores do outro (princípio e reconhecimento da alteridade)
para que se consiga ampliar e superar suas perspectivas ego centradas.
A sociedade através do processo histórico estabeleceu coletivamente as bases sociais
do juízo de valor (o que é bom, ruim, correto, bonito etc.) de caráter normativo. Ele foi
formado através da moral e da ética sociais, estabelecendo coletivamente os conceitos e
valores, formando as bases da realidade social, que por sua vez é apreendida de forma
subjetiva pelo sujeito. Justamente porque a apreensão e concepção da realidade é individual,
apesar de ser construída coletivamente, cabe sempre à reflexão pessoal o que se precisa
identificar, aceitar e modificar em sua relação com a vida e os outros.
Os fatos sociais que marcam o contexto de nosso nascimento e crescimento, as
condições materiais de nossa existência, por mais difíceis que sejam, não anulam o fato de
que é necessário aceitarmos a realidade em que estamos inseridos e aceitarmos a nós
mesmos nesta realidade. A importância da aceitação de si mesmo e de sua circunstância real
no mundo, é a condição fundamental para que se possa dar os primeiros passos em direção à
mudança, à superação que se almeja na própria vida. Sem a aceitação da realidade, o ser
humano vive apenas da realidade que criou para si mesmo, suas mitomanias.
Consequentemente, sofrerá e irá impor sofrimento aos outros, estabelecendo inúmeras
dificuldades em seu cotidiano, prejudicando sua qualidade de vida e desenvolvendo
transtornos em sua personalidade.
Como dissemos, a sociedade se organiza sobre regras, normas, que regulam o convívio
social. Nos sentimos muitas vezes reprimidos por essas leis e regras, justas ou injustas, que

85
existiam desde antes de nascermos e variam sua influência à partir da perspectiva única de
cada um. Desde a infância fomos submetidos ao conjunto de normas dos nossos grupos
sociais, os limites de nossas condições e história de vida, o nosso arranjo existencial. Nos foi
apresentado, como já dissemos, um determinado senso moral estabelecido em nosso meio.
Nós nos desenvolvemos, aceitando-o ou rejeitando-o, formando individualmente uma
consciência moral. Ela é quem nos fornece o fio condutor pelo qual decidimos agir, pelo
qual justificamos a nós mesmos nossas decisões e como assumimos suas consequências.
No texto Projeto para uma psicologia científica, (1895), Freud aponta que aparelho
psíquico é um aparelho de memória, ou seja, ele registra traços de experiências que lhe
servirão de guia para suas ações futuras. Como vimos também, a estrutura da personalidade
oferece tendências, isto é, ao nos identificarmos com uma personalidade neurótica, psicótica,
perversa, borderline, podemos reconhecer em nós mesmos as características do que está
adoecido em nós, seja por um trauma, pela não aceitação de uma frustração, pela obsessão a
um desejo, pelos apegos, pelas culpas, etc. A psicanálise é uma das ferramentas essenciais
neste processo de reconhecimento de si mesmo. Ao justificarmos a necessidade de pequenos
períodos de internação, mesmo que às vezes involuntárias ou compulsórias, pela perda da
capacidade de autonomia do indivíduo devido ao seu estado de crise acreditamos, contudo, no
potencial do ser humano em se recuperar, recuperar o controle sobre si mesmo e a própria
vida. O fortalecimento de sua consciência moral, a retomada do seu afeto por si mesmo e
pelas pessoas ao redor, juntamente com a determinação pessoal em aderir a um
tratamento, são chaves para que abra as portas de sua autorrealização, de sua reintegração
psicofísica e das possibilidades de sua ressocialização positiva e produtiva na sociedade.
“Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante”, afirma o escritor
George Orwell, sobretudo em seu livro 1984, onde descreve uma distopia futura (o livro foi
escrito em 1936) em que apresenta a ficção de uma sociedade vigiada por câmeras e
controlada pelo Big Brother. Neste enredo as pessoas simplesmente aderiram ingenuamente
ao que era manipulado e oferecido pelo sistema. O protagonista da história começa a
questionar aquela realidade opressora e a buscar saídas para sua condição apesar da aparente
impossibilidade de existirem. Encarar a realidade só é possível mediante uma atitude de
coragem. Coragem de se autoconhecer, de se auto aceitar, de conviver com as dores, as
perdas, as frustrações, os limites. Ao refletir e retomar sua própria postura diante da realidade
de maneira consciente, com o desejo de melhorar, abrem-se as portas para se iniciar o
processo terapêutico. Seja o de sanar a mente, o corpo, o social.

86
Aprender a conviver, com resiliência e consciência, implica o esforço pessoal na busca
de superação, que apenas a própria pessoa pode fazer em seu benefício. Nosso lema “para ser
é preciso ter a coragem de se conhecer” nos move a construirmos em nós mesmos valores de
resiliência e ousadia, a suportar e ousar reconhecer a realidade tal qual ela é, de maneira
neutra, sem a deturpá-la. Entendermos que às vezes queremos que ela seja de uma
determinada maneira, mas ela não é. Que existem limites concretos e o quanto mais os
encaramos sem dissimulações e fugas, mais teremos chance de reconhecê-los e, mediante o
trabalho íntimo e as atitudes, poder enfim superá-los. Em nossa terapêutica, enfim, ao
revermos juntos a história de vida do paciente, propomos justamente que ele a acolha, a aceite
e desenvolva carinho por ela e por si mesmo, pois como nos diz Fernando Pessoa através de
seu heterônimo Alberto Caeiro:

(...) Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...


Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...51

Somos do tamanho de nossa visão sobre a realidade, cabe a nós ampliarmos nossa
perspectiva, mas como afirma em outra poesia52, com calma e sem pressa:

“Não tenho pressa. Pressa de quê?


Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.”

Será sempre com os pés bem ancorados na realidade que alcançaremos a realização
dos sonhos que parecem mais distantes e caminhando por ela que teremos o equilíbrio
necessário para encontrarmos a almejada felicidade.

51
"O Guardador de Rebanhos - Poema VII"
52
"Poemas Inconjuntos"

87
Prazer

“Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos prazeres
dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como creem certos
ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas
ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da
alma.”
Epicuro53

O tema Prazer é destacado em nosso processo de tratamento justamente por pertencer


à base da própria estrutura psíquica do ser humano, estando ligado diretamente à instância do
Id. Ele, como já abordamos em outros temas, é a instância mais antiga do inconsciente e da
psique de um indivíduo, presente desde o nascimento. Nele predominam os impulsos
corporais e os desejos inconscientes, regidos pelo princípio de prazer, ligado à libido, o qual
empurra os indivíduos a buscar o que lhes traz satisfação e a negar o que lhes traz
insatisfação. É o id que caracteriza a identidade, com o que nos identificamos, nos
apaixonamos, que permanece guardado dentro de nós, mas que aflora em nossos gostos e
impulsos, justamente, em tudo o que nos traz prazer. Os desejos humanos, estimulados pelo
id, desconsideram os limites da realidade e formam-se como pulsões dentro dos indivíduos,
caracterizando suas condutas e pensamentos, refreados pelos limites dados pelo seu superego
(a realidade).
Vivemos numa permanente frequência pendular: satisfação e insatisfação. Porém,
cabe percebermos que a noção que possuímos sobre o prazer, surge a partir da sensação do
desprazer, da insatisfação, que nos impele a buscá-lo. A condição humana, que é a de desejo e
amplitude constante, leva-nos à procura de satisfação. Quando atingimos um prazer, sentimos
imediatamente a vontade de repeti-lo, isto até acontece fisiologicamente em nossos processos
hormonais e biológicos: sentimos fome, comemos nos satisfazendo, todavia logo voltamos a
sentir fome. A palavra satisfação possui em seu radical a palavra satis, que advém do latim,
significando cheio, completo, suficiente (daí a locução quantum satis, utilizado inclusive em
receitas médicas para designar o quanto basta). Ao encontrarmos satisfação em apenas uma
determinada ideia, obsessivos com a satisfação trazida por apenas uma situação,
comportamento ou substância, já revelamos um desequilíbrio, pois encerramos naquele

53
Nascido em Samos (341 a. C.), fundador do Epicurismo, uma escola filosófica ligada à busca da felicidade.
Vivenciou sua filosofia na escola que criou: O Jardim, em Atenas, onde lecionou até a morte (270 a. C), cercado
pelos amigos e discípulos.

88
determinado prazer tudo o que nos motiva e perdemos o foco sobre o restante dos vários
aspectos que compõem nossas vidas.

A busca da satisfação nos acompanha cotidianamente. Ao frio, por exemplo, foram


desenvolvidos vestuários e calçados de todos os tipos que até então imaginamos, oferecem o
conforto e a segurança às intempéries, mas também outros tipos de prazer, o estético ou ainda
o sentimento de congruência que o vestuário nos traz junto aos grupos sociais que
pertencemos ou pretendemos pertencer, o status. Da mesma forma, ao nos alimentarmos
também estabelecemos historicamente um conjunto enorme de requintes, que nos fornecem
prazeres que estão muito além do suprir nossas necessidades fisiológicas. As promessas de
felicidade através da oferta de prazer são amplas.
Quando nos ligamos apenas ao que é superficial e momentâneo, perdemos a
substância, a essência do que realmente representa aquele determinado prazer. Se nos
agarramos a comer apenas as sobremesas, assim como apenas ao status que os bens materiais
oferecem, nos perdemos nos desejos contínuos de novos prazeres, no consumo desenfreado
dos estímulos, desconsiderando a sua própria função original, como o de se alimentar nutrindo
saudavelmente nosso corpo e sentir-se bem com um vestuário que agrade primeiramente a nós
mesmos, por exemplo.
Entendemos que o bem-estar é um estado de prazer sustentável. A tranquilidade da
mente, a ausência de dores, o entendimento sobre as emoções, aproveitar tudo com
moderação, cultivar as amizades, são fontes de prazeres sustentáveis! As considerações, a
valoração que concedemos aos prazeres é subjetiva, assim, pertence aos critérios da
individualidade a sua qualificação e sua quantificação. Porém, como dissemos, a obsessão e
a compulsão a um determinado prazer, em detrimento do conjunto de prazeres e necessidades
que a vida oferece, obviamente desencadeará desequilíbrios em diferentes setores no
cotidiano. Estabelecemos em nossas terapias, reflexões e diferentes atividades que propõe
justamente a revisão de nossos conceitos de prazer e felicidade, afinal, quais os prazeres que
buscamos para que nos vejamos satisfeitos? Epicuro nos recorda que é fundamental
estabelecermos prazeres (hábitos) que nos mantenham felizes ao longo de toda a vida:

“Não é ao jovem que se deve considerar feliz e invejável, mas ao ancião que viveu
uma bela vida, o jovem na flor da juventude é instável e é arrastado em todas as
direções pela circunstância; pelo contrário, o velho ancorou na velhice como em
um porto seguro e os bens que antes esperou cheio de ansiedade e de dúvida os
possui agora cingidos com firme e agradecida lembrança.”

89
Necessidades e satisfação, carências e desejos, medo e segurança. Quando o
movimento entre esses polos opostos não procura um estado de equilíbrio sustentável
permitindo uma variação mínima entre ambos, estamos construindo um estado doentio. As
compulsões-obsessões sobre um determinado prazer, leva-nos a procurarmos excessos que
nunca nos satisfazem, a repetição de prazeres inconsequentes de curta duração, os chamados
prazeres imediatos, princípio dos vícios comportamentais e da recorrência a diferentes
substâncias.
Na medida em que a pessoa começa compulsivamente a buscar a sensação de um
prazer imediato, estabelecendo uma ação que se repete, resultante de um processo cerebral,
(psicologicamente, uma determinada pulsão do id), constrói uma monotonia de
comportamento onde o vício se configura, pois percebe-se que a obsessão e compulsão na
busca daquele determinado prazer, faz com que todo foco da vida da pessoa volte-se ao que a
vicia. O tempo ocupado na busca desta satisfação é mensurado pelo detrimento da sua
qualidade de vida, do seu interesse em outros segmentos, gerando, como dissemos, profundos
desequilíbrios, psicológicos, físicos e sociais.
Quando revemos o sistema de recompensa do cérebro, justamente a via
mesolímbica, responsável pelo sistema de recompensa, motivação, medo, entre outras funções
dos processos cognitivos, é uma das vias ligadas ao neurotransmissor dopamina. Se inicia na
área tegmental ventral do mesencéfalo formando conexão com o sistema límbico através do
núcleo accumbens, a amígdala cerebelosa e o hipocampo, e também com o córtex pré-frontal
medial. A sensação de prazer dada pela dopamina fica registrada no cérebro e o sistema de
recompensa, identificando e associando-o a uma percepção subjetiva de determinado prazer,
estabelece uma motivação para que a sensação se repita. Ou seja, nesta região cerebral
responsável pelos mecanismos básicos de sobrevivência e reprodução, ativam-se os vícios e
quanto mais se repetem, mais difícil fica se livrar deles pela associação consolidada como
recompensa pelo processo cognitivo. Por isso, é fundamental reconhecer o papel do prazer
para nossa terapêutica. Aqui iremos identificar essa sensação de prazer, dada por uma
substância ou por um comportamento, identificando-o como um prazer imediato, ou seja, o
que é sentido e associado pelo indivíduo a um dado momento. Vamos reforçar estas reflexões
à luz da psicanálise. Em muitas ocasiões, inclusive, os prazeres imediatos cumprem um papel
anestésico perante a nossa incapacidade de enfrentarmos uma realidade que se apresenta
perturbadora:
“Para o ego do prazer, o mundo externo está divido numa parte que é agradável,
que ele incorporou a si mesmo, e num remanescente que lhe é estranho. Isolou uma

90
parte de seu próprio eu, que projeta no mundo externo e sente como hostil. Após
esse arranjo, as duas polaridades coincidem mais uma vez: o sujeito do ego
coincide com o prazer, e o mundo externo com o desprazer (com o que
anteriormente era indiferente)54”

Fugir do momento atual que nos cobra um compromisso, implica em atingir um estado
de irrealidade prazerosa através do “autoengano”, vivendo estados de onipotência e fuga, em
que nos autossabotamos, sejam por prazeres físicos (álcool, drogas, sexo, medicamentos) ou
estados de mitomanias. Conjuntamente, o contexto social em que vivemos é de uma realidade
líquida, como afirma Zigmunt Bauman, em que os valores se a transformam a todo momento
e o ser humano vê-se perdido diante de novas exigências:
“A nossa é, como resultado, uma versão individualizada e privatizada da
modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso
caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos55”

As frustrações e as responsabilidades podem mostrar-se fardos pesados quando não


estabelecemos limites aos nossos desejos, construindo a partir disso, muitas angústias.
Convém lembrarmos também, que a entrega irrefletida do indivíduo aos prazeres
momentâneos, vê-se amparada na própria estrutura do aparelho psíquico que possui a
inclinação para a fuga da dor56. Esta percepção dada por Freud, nos auxilia em nossas clínicas
de tratamento a estabelecermos procedimentos de reflexão aos nossos pacientes em que o
amor-próprio (e pelos outros), a resiliência e a disciplina são elementos fundamentais para o
processo de reconquista do controle sobre a própria vida, que a fuga da dor nunca é o
caminho, assim como o prazer da anestesia também não resolverá a causa dos problemas.
A identificação por parte do paciente da realidade de sua dependência em relação a
um assunto, comportamento ou substância, está nos primeiros passos do tratamento. É
fundamental que reflita sobre sua autopercepção, que reinicie a análise de seu histórico de
vida e compreenda-se além dos problemas que lhe são particulares e pontuais. É
imprescindível que perceba que ele não é a doença, ou o viciado, mas um indivíduo que está
em desequilíbrio com o próprio ser.
Outro aspecto que é importante ser reconsiderado, é a negação da importância do
prazer para o equilíbrio do indivíduo, as castrações do prazer. Novamente, Epicuro lá da
Antiguidade nos recomenda:
“Não deve supor-se antinatural que a alma ressoe com os gritos da carne. A voz da
carne diz: não se deve sofrer a fome, a sede e o frio. E é difícil para a alma opor-se;
antes, é perigoso para ela não escutar a prescrição da natureza, em virtude da sua
exigência inata de bastar-se a si própria.”
54
FREUD, S. As pulsões e seus destinos. Triebe und Triebschicksale, 1915.
55
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida, 1999.
56
Veremos as características das fugas que adotamos como mecanismos de defesa do ego em nosso próximo
tema.

91
Reconhecemos que os prazeres são necessários. Porém, questionamos quais realmente
necessitamos para nos vermos satisfeitos. Por isso, entendemos que a moral, a religião e os
costumes, devem ser refletidos e, à luz da história de vida de cada um, revistos em
psicanálise, para que se compreendam as suas influências no indivíduo e sejam ferramentas
no tratamento para o seu bem-estar psicofísico.
Seja desde o prazer da aceitação de seu próprio corpo, quanto o sexual, aos quais
dedicamos temas específicos em nossos tratamentos, entendemos que é fundamental a
reflexão sobre o papel da sensibilidade aos prazeres. Alexander Lowen57 em seus
apontamentos sobre a integralidade do ser, em seu aspecto holístico, psicofísico e social,
ilustra muito bem, nestes apontamentos as questões ligadas a negação dos afetos:
“Como adultos, nós temos muitas inibições quanto a chorar. Nós sentimos que é
uma expressão de fraqueza, ou feminilidade ou infantilidade. A pessoa que tem
medo de chorar está com medo do prazer. Isto porque a pessoa que tem medo de
chorar se mantém conjuntamente rígida para não chorar; ou seja, a pessoa rígida está
tão com medo do prazer quanto está com medo de chorar. Em uma situação de
prazer ela vai ficar ansiosa. (…) Sua ansiedade nada mais é do que o conflito entre
seu desejo de se soltar e seu medo de se soltar. Este conflito surgirá sempre que o
prazer é forte o suficiente para ameaçar a sua rigidez. Desde que a rigidez se
desenvolve como um meio para bloquear as sensações dolorosas, a liberação de
rigidez ou a restauração da mobilidade natural do corpo vai trazer essas sensações
dolorosas à tona. Em algum lugar em seu inconsciente o indivíduo neurótico está
ciente de que o prazer pode evocar os fantasmas reprimidos do passado. Pode ser
que tal situação seja responsável pelo ditado:
- Não há prazer sem dor.”

Esta dor pode estar na necessidade de coragem para se conhecer, nos esforços, na
dedicação ao tratamento, na disciplina, em se autopropor ficar melhor, viver melhor,
buscando um bem-estar estável. Aqui temos um aspecto essencial: não devemos, portanto,
renegar os prazeres, assim como também é preciso reconhecer a força do processo de
recompensa gerado pelo cérebro, para podermos encontrar para o paciente algo (foco) em que
possa reforçar estímulos de novos prazeres. Que utilize mais a área ligada ao córtex pré-
frontal, onde regulamos os estímulos com a reflexão e possa estabelecer para si novos
prazeres estáveis, promotores de felicidade duradoura, muito além dos prazeres imediatos.
Se elegêssemos uma lista do que realmente importa para nossa felicidade, poderíamos
destacar tempo, amor, dinheiro, autoestima, bens, etc., peças importantes para que nossa vida
se mostre completa, além do que, não podemos considerar apenas o que nos falta, mas
também aquilo que já possuímos, que parecem garantidos e não damos sua devida atenção e
deixamos de os aproveitar devidamente. A retomada da valoração dos prazeres simples,

57
Psicanalista, nascido em New York, (1910 – 1988), um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da
psicoterapia mente-corporal, conhecida como análise bioenergética.
O corpo em terapia: a Abordagem Bioenergética. São Paulo: Summus, 1977.

92
principalmente depois dos reveses que sofremos, das rasteiras que a vida nos dá e mudam-se
as perspectivas, nos abrem a revermos o que realmente importa: os prazeres do bem-estar, da
convivência, da saúde psicofísica e social.
Em nossas Clínicas Estância, os cuidados nos detalhes de pequenas felicidades são
considerados. Desde se aproveitar a natureza, a luz do sol, caminhar, as oportunidades para se
sorrir em diferentes atividades e dinâmicas, comer comida de verdade, boa, saborosa e bem-
feita, abraçar, brincar, jogar, fazer amizades, formar empatia, aprender que se pode aprender a
cantar, dançar, respirar fundo, dormir bem, ler, conversar sobre o que leu, assistir filmes,
refletir junto, filosofar, aprender a celebrar em conjunto...
A nossa reeducação em reaprender a aproveitar os prazeres envolve, por exemplo,
perceber que comer é fonte de descobertas, quando nossa sensibilidade percebe que não se
trata apenas de nutrir o corpo de maneira utilitária e regrada ou se empanturrar o estômago
das comidas mais calorosas, mas de uma experiência que pode se ampliar em diferentes
prazeres, ao cultivarmos seus segredos, cozinharmos para alguém, quebrarmos as rotinas dos
hábitos alimentares, procurarmos outros temperos, apreciar diferentes sabores, comermos
de maneira tranquila, etc. O filme dinamarquês A festa de Babette, lançado em 1989, retrata
com primor os poderes dos prazeres à mesa: um vilarejo extremamente moralista, onde uma
áspera repressão conduz os comportamentos, vemos as pessoas se abrirem e relaxarem diante
do banquete que lhes foi preparado. Lembrando também que os alimentos possuem nutrientes
capazes de aumentar a produção de quatro neurotransmissores: dopamina, serotonina,
endorfina e ocitocina!
Durante a refeição, é importante fazer dessa hora um momento feliz e de paz.
Procuramos oferecer um ambiente agradável para que o paciente se mantenha presente,
saboreando o alimento, que procure sempre que possível, realizar a refeição acompanhado.
Da mesma forma, ao propormos em nossos processos de tratamento a arte terapia ou a
musicoterapia, entendemos que é justamente a reeducação das sensibilidades que poderão
permitir ao indivíduo usufruir de sensações prazerosas que antes não se atentava. O que se
sente ao escutar música, por exemplo, provoca no cérebro a liberação de dopamina, o
neurotransmissor que serve para avaliar ou recompensar prazeres específicos, associados à
alimentação ou às drogas, por exemplo.
Lembremos, mesmo que sucintamente, as ações destes neurotransmissores: a
Dopamina é o neurotransmissor principal na regulação dos processos motivacionais, o que
nos faz agir para alcançar nossos objetivos. A Serotonina é o neurotransmissor conhecido
também por ser responsável por promover sensação de prazer e bem-estar. A ausência de

93
serotonina no cérebro pode causar desconfortos e até mesmo a depressão. Por isso, vários
antidepressivos auxiliam na captação de serotonina. A Endorfina é liberada no organismo
diante das situações de dificuldades, como dor e estresse, com a função de atenuá-las. A
endorfina funciona como um tipo de analgésico. Ocitocina é conhecida por ser responsável
por promover sensação de confiança, auxiliando a criação de laços nos relacionamentos de
modo geral. Inclusive, é produzida nas relações de amizade, de abraços, as mulheres
produzem uma quantidade maior de ocitocina quando se juntam e se apoiam, o que é
essencial no parto. Também é produzida na amamentação (relação mãe e bebê) e no orgasmo.
A falta destes neurotransmissores provoca diversas alterações em nosso cérebro,
favorecendo desde pequenas mudanças comportamentais até quadros clínicos mais graves,
como a depressão (associada a baixos níveis de produção ou de captação da serotonina, por
exemplo). Um rebaixamento da dopamina leva à desmotivação e à tendência a adiar tarefas e
compromissos, o que podemos chamar de procrastinação. Juntamente com todos os processos
de tratamento psicológico, a atenção a estas questões fisiológicas também são fundamentais
no auxílio ao equilíbrio do paciente. Substituir fontes de prazeres imediatos por prazeres
estáveis, envolve um conjunto de processos, de novos estímulos, como dissemos, de
reeducação.
Em nossa mente estão os mecanismos que nós mesmos utilizamos (muitas vezes
inconscientemente) para condicionar nossas posturas perante as insatisfações ou frustrações e
a obsessão aos prazeres. Apenas nos rendermos aos prazeres que permitem fugas de tudo o
que nos causam desprazeres, assim como no outro extremo apenas renegarmos o que nos traz
satisfação, ambos, não permitem o equilíbrio ao ser. A reeducação que propomos, entende que
a disciplina não é contrariar nossas vontades, e sim reprogramar nosso conceito de prazer.
Como dissemos, as pequenas conquistas do dia a dia podem ser estados de prazer para quem
tem consciência de um triunfo a médio ou longo prazo. Redimensionar nossa sensibilidade à
beleza é a chave para aprendermos a apreciar e a cultivar novos prazeres. Como nos
recomenda de maneira tão bonita a música O que é, o que é? composta por Luiz Gonzaga do
Nascimento Júnior, o Gonzaguinha:
Eu fico com a pureza da resposta das crianças
É a vida, é bonita e é bonita
Viver e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser um eterno aprendiz
Ah meu Deus!
Eu sei, eu sei que a vida devia ser
Bem melhor e será, mas isso não impede que eu repita
É bonita, é bonita e é bonita.

94
E a vida, e a vida o que é?
Diga lá, meu irmão
Ela é a batida de um coração
Ela é uma doce ilusão, ê ô!
Mas e a vida
Ela é maravilha ou é sofrimento? Ela é alegria ou lamento?
O que é? O que é?
Meu irmão há quem fale
Que a vida da gente é um nada no mundo
É uma gota, é um tempo que nem dá um segundo
Há quem fale que é um divino mistério profundo
É o sopro do criador numa atitude repleta de amor
Você diz que é luta e prazer
Ele diz que a vida é viver
Ela diz que melhor é morrer
Pois amada não é e o verbo é sofrer
Eu só sei que confio na moça
E na moça eu ponho a força da fé
Somos nós que fazemos a vida
Como der, ou puder, ou quiser
Sempre desejada por mais que esteja errada
Ninguém quer a morte, só saúde e sorte
E a pergunta roda e a cabeça agita
Eu fico com a pureza da resposta das crianças
É a vida, é bonita e é bonita
Viver e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser um eterno aprendiz
Ah meu Deus eu sei, eu sei
Que a vida devia ser bem melhor e será
Mas isso não impede que eu repita
É bonita, é bonita e é bonita

O foco não deve estar apenas nas dificuldades, nos esforços investidos para se
alcançar os objetivos. O esforço é o investimento necessário para se atingir a liberdade de se
viver muitos outros prazeres. Tudo que vivenciamos tem um custo físico e emocional, o
equilíbrio entre ambos é o que vai nos beneficiar pelos nossos investimentos. Desenvolver
nossas capacidades ao máximo, é saber aproveitar toda e qualquer oportunidade de
crescimento, percebendo que a vida oferece uma miríade de prazeres estáveis possíveis e
depende de nós o seu usufruto, afinal a vida é muito bonita e prazerosa.

95
Fugas

“...o sistema nervoso tem a mais decidida inclinação para a fuga da dor58”

Sigmund Freud

Como já dissemos anteriormente, o indivíduo procura continuamente a satisfação, e


os prazeres, são os princípios que lhe rege nesta busca. Neste tema, iremos enfatizar os
cuidados especiais que devemos ter com alguns dos prazeres imediatos aos quais nos
entregamos, pois, muitas vezes eles representam na verdade uma possibilidade de fuga dos
compromissos, responsabilidades e desafios que a realidade apresenta. Ao nos percebermos
oprimidos, inseguros, por estas exigências, ao invés de analisarmos as dificuldades e
criarmos estratégias para dar a volta por cima, veremos que muitas vezes nos entregamos às
buscas de prazeres que anestesiem estas angústias. Nossa reflexão durante este tópico de
tratamento nos levará a revermos inclusive os mecanismos de defesa que nosso próprio
inconsciente construiu para preservar nosso ego, ademais, iremos também destacar
sucintamente a contribuição da teoria das pulsões para as propostas de nossa terapêutica.
Quando começamos a identificar os nossos mecanismos de defesa, começamos a
perceber as armadilhas, muitas vezes gaiolas em que nos encerramos, as quais, mesmo
inconscientemente, construímos para nós mesmos, nos condicionando a agir através de
gatilhos que nos levam sempre a posturas e comportamentos em que procuramos evitar o
que nos incomoda, castra, frustra, oprime etc. A epígrafe deste capítulo destaca exatamente
o que pretendemos que se reflita: sobre as fugas enquanto mecanismos de defesa do ego
para evitar o desprazer. Acreditamos, dentro de uma psicologia humanista centrada no
paciente que, muito além dos distúrbios e transtornos que apresente, sua história de vida,
sendo singular, é a que pode revelar as causas de seu desequilíbrio, ou ainda, é através dela
que entendemos as necessidades que estabeleceu para si mesmo, com seus vícios. Freud, já
nas primeiras linhas de seu texto Projeto para uma Psicologia Científica, aponta:
“Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso tomado pelos
eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer, ou seja,
acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em
movimento por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que seu
resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação
do desprazer ou com uma produção de prazer”59.
58
“Projeto para uma psicologia científica” (FREUD, 1895 [1950]. O qual se trata de um rascunho que Freud
escreveu durante uma viagem de trem, após um encontro com Fliess, que acabou por não ser publicado,
enquanto Freud vivia.
59
Idem: Projeto para uma psicologia científica. Pag.17

96
Portanto, compreendermos que somos regidos pela busca de satisfação e que
também possuímos mecanismos fisiológicos que reforçam a procura da repetição dos
prazeres que experimentamos, nos permite identificarmos e entendermos melhor a adoção de
comportamentos viciosos. Comportamentos estes que refletem os transtornos que afetam
diretamente a qualidade de vida das pessoas, como por exemplo, no que diz respeito às
diferentes fugas comportamentais, muitas vezes reforçada pelo uso de substâncias, para
evitar os desafios próprios da realidade, que apenas anestesiam e afastam essas exigências
da consciência. Contudo, em nossas propostas terapêuticas entendemos que são justamente
os constantes desafios da vida que nos impulsionam a viver assumindo a própria vida de
maneira autônoma, porém, sem fugir das responsabilidades.
As fugas desses desafios, para serem melhor compreendidas, entram diretamente em
relação com uma característica fundamental no ser humano, em seu cotidiano e dentro de si:
ele se vê tomado por duas pulsões, a de vida (Eros) e a de morte (Tânatos). Teoria na qual
Freud estabelece os conceitos de pulsão (Trieb), princípio fundamental na psicologia. Uma
frase dele que é bastante significativa a respeito diz: “A teoria das pulsões é, por assim
dizer, a nossa mitologia. As pulsões são seres míticos, grandiosos na sua indeterminação.”
Por conseguinte, antes de analisarmos os papéis e mecanismos de defesa do ego e a
fuga na construção da personalidade do indivíduo, vamos então rever primeiramente, de
maneira sucinta, os conceitos das pulsões de vida e de morte para compreendermos as
ambivalências no comportamento humano. Em sua “indeterminação” existencial: não
encontra fim para os seus desejos e constrói mitos para fundamentar e justificar suas pulsões
aos prazeres! Lembremos que Eros, a pulsão de vida, está associada aos desejos, ao que nos
impele às realizações, à criação, as relações de amorosidade, cooperação, aos princípios
conjuntivos, que agregam as substâncias vivas em unidades cada vez maiores, com o fim de
justamente favorecer e criar mais vida. Amalgamada a ela, temos a pulsão de morte
(Tânatos), que é disjuntivo e procura um repouso dos esforços da vida, destruir o que foi
criado, dar seu fim, voltar ao inorgânico. Segundo Freud, o “objetivo da vida é a morte, e
remontando ao passado: o inanimado já existia antes do vivo”60, assim, ele revela que além
do princípio de prazer que nos movimenta, também existe essa pulsão de morte que revela
justamente uma ambivalência existente nos comportamentos e ações humanas, pois
paradoxalmente encontramos em nossos atos a busca pela vida e a entrega à morte: tensão e
repouso, amor e ódio. Tânatos se mostra estar em conjunto a Eros quando percebemos que

60
Além do princípio de prazer. (1920) In: Escritos sobre Psicologia do Inconsciente, vol. II. (Luiz Alberto
Hanns, trad.). Rio de Janeiro: Imago, 2006.

97
para que algo novo possa existir, algo também precisa morrer, que vida e morte são
antagônicas, mas também são complementares, são faces de uma mesma pulsão. “Viver é
morrer”, enquanto estamos vivos.... estamos morrendo e, ao nos aproximarmos da morte,
nos apegamos à vida.
Sobre os conceitos de pulsão, também cabe destacarmos que a representação
mental causada pelas experiências prazerosas no corpo, desde a infância, fica registrada
nos traços da mente como uma marca e realizarão uma pressão, gerando estímulos no
próprio corpo, para que ela (a mente) procure repetir aquela determinada sensação que ficou
impressa. Lembrando ainda, que não necessariamente precisa ser o objeto inicial que causou
aquele determinado prazer, mas o símbolo que elegemos mentalmente para associarmos à
sensação que obtivemos, ou seja, podemos insistir em um prazer imediato, registrado como
um momento de satisfação, como por exemplo, nas situações que diferentes vícios oferecem
e, iludidos, recorremos sempre às mesmas fontes de prazeres e buscamos sua repetição, sem
nos atentarmos às consequências destas escolhas (o processo de recompensa que
descrevemos em nosso tema Prazer). E, como dissemos, em nosso processo terapêutico,
procuramos estimular, incentivar as descobertas e práticas de prazeres estáveis que podemos
adquirir mediante o bom senso, a educação da sensibilidade e a busca de equilíbrio.
Sem considerarmos a força das pulsões de Éros e Tânatos, não conseguimos resolver
nossos conflitos, dar fim a algo que nos traga satisfação, mesmo que seja momentânea e
prejudicial, pois não identificamos em nós mesmos os paradoxos que às vezes nos
encontramos, não conseguimos entender ou aceitar que, para viver mais, é preciso deixar
morrer aquela fonte de satisfação que nos viciou. Em manifestações de síndromes maníaco-
depressivas, seja nas mudanças de humor, nos distúrbios cognitivos e psicológicos, nas
disfunções vegetativas e psicomotoras ou nas características psicóticas, a depressão
unipolar revela causas da busca de drogas pelos pacientes para, na realidade, tentarem se
anestesiar, fugir.
Vamos retomar os aspectos daquilo que reprimimos em nosso inconsciente como
traumas, frustrações, medos etc., e repensarmos a função do ego enquanto instância
mediadora, das tensões que sofremos. O ego, que possui suas raízes no inconsciente onde
permanecem as repressões, enquanto se constrói, estabelece mecanismos de defesa, tanto
para impulsos, quando impróprios, do id quanto para conter o que queremos afastar do plano
consciente.
Os mecanismos de defesa do ego são processos subconscientes, estruturados e
estabelecidos na personalidade, os quais permitem que a mente encontre alguma forma de

98
solução para conflitos, ansiedades, frustrações e ressentimentos que não encontram solução
no nível da consciência, assim a instância do ego estabelece mecanismos de defesa a fim de
evitar o desprazer. Tanto Sigmund Freud, quanto sua filha Anna Freud, (principalmente em
seu livro: O ego e os mecanismos de defesa - de 1936), deixaram contribuições
fundamentais para que possamos compreendê-los.
Sigmund Freud, principalmente em seus livros: Interpretação dos Sonhos (1900),
Gradiva de Jensen (1907) e Além do Princípio do Prazer (1920), nos oferece conceitos que
são essenciais para a clínica ao destacar os sonhos como fenômenos psíquicos onde
realizamos desejos, as fantasias surgem como expressões psíquicas das pulsões e os
devaneios como relaxamentos das censuras e tensões, válvulas que servem de escape e, ao
mesmo tempo conciliação, entre o inconsciente e o consciente. Em nosso tema Repressão,
tratamos mais especificamente de suas abordagens sobre repressão e recalque. Lembremos
também de seus apontamentos descritos à partir do caso Dora (1905), sobre:

● A somatização, em que se evidenciam, por exemplo, nos casos de neurose

histérica quando comportamentos involuntários expressam-se no corpo,


dando vazão ao que foi recalcado;

● A identificação, quando no exemplo do caso Dora, identifica-se seu pai como

objeto desejante, porém, negado pelo consciente e ao qual se construiu


inconscientemente, ao preço da anulação dos próprios impulsos,
comportamentos que procuravam afastar este desejo da consciência;

● A atuação, quando se estabelece um comportamento a fim de não se pensar, e

nem mesmo verbalizar, o que o consciente pretende evitar, mantendo


inclusive preservadas as autoimagens narcísicas e onipotentes do indivíduo.

Na obra de Sigmund Freud também encontramos, os mecanismos de defesa da:

● Regressão, (em Memória e Esquecimento de1915), onde demonstra que o

sujeito retorna a agir assumindo comportamentos que eram próprios do


passado (mesmo da infância) e que ficaram latentes até serem resgatados
como soluções às tensões da realidade atual.

99
● Inversão contra o eu, (em O instinto e suas vicitudes de 1915), quando o

sujeito inverte seu papel na responsabilidade do próprio desejo e a Reversão,


quando a pessoa se sente culpada e sente, inclusive, nojo de si mesma.

● Inibição (destacada em “Inibições, Sintomas e Ansiedade” de 1926)

apresenta como controle do Id, a histeria como inibições motoras, os


mecanismos narcísicos e a neurose obsessivo compulsiva como inibições
psíquicas.

● Deslocamento (Caso do Pequeno Hans (1909) e Defesas contra o medo da

Castração - Fobia) que pode ser identificado quando o indivíduo, de maneira


similar à projeção, evita o que realmente incomoda sua psique, canalizando e
descarregando suas energias e frustrações para outro foco ou objeto.

● Inibições do afeto ou Isolamento afetivo, quando o distanciamento, físico/

mental é o comportamento encontrado pelo ego para evitar os choques e as


necessidades que a realidade exerce sobre a psique.

● Negação, quando simplesmente o indivíduo se recusa a aceitar a ideia de

algo que lhe cause mal no plano consciente negando para si até mesmo os
próprios pensamentos a respeito do assunto (denegação), estabelecendo
geralmente mentiras, muitas vezes que se contradizem com a realidade.

● Sublimação, quando se canaliza os impulsos inaceitáveis e as frustrações

para ações e comportamentos socialmente aceitáveis e bem-vistos, ao


construir maneiras aceitáveis para as pulsões subjacentes ao que é reprimido.
Anna Freud, entende as Operações Defensivas do Ego, como sintomas que podem
ser analisadas ao estarem manifestas como resistência (reforço da repressão), transferência
e a defesa contra os afetos, como maneiras de resolução do inconsciente ao que lhe oprime,
estabelecendo fenômenos de defesa permanente, estruturados pela psique. Ela apresenta
nove tipos de mecanismos de defesa do ego, alguns reforçados a partir dos apontamentos de
seu pai:
1. Regressão é um retorno a um nível de desenvolvimento anterior ou a um modo de
expressão mais simples ou mais infantil. É um modo de aliviar a ansiedade escapando da
realidade através de comportamentos que, em épocas anteriores, reduziram a ansiedade.

100
2. Repressão, cuja essência consiste em afastar uma determinada coisa do consciente,
mantendo-a à distância (no inconsciente), a qual, como dissemos, abordamos mais
profundamente em um tema específico em nossos tópicos de tratamento.
3. Formação Reativa, quando se formam forças psíquicas opostas a fim de
suprimirem efetivamente um desprazer. Para essa supressão elas costumam construir
barreiras mentais contrárias ao verdadeiro sentimento sexual, como por exemplo, a
repugnância, a vergonha e a moralidade. Um machista escondendo suas preferências
homossexuais, por exemplo. Não só a ideia original é reprimida, mas qualquer vergonha ou
auto reprovação que poderiam surgir ao admitir tais pensamentos em si próprios também são
excluídos
4. Isolamento, quando um sentimento fica separado ou desligado do acontecimento
original, permitindo ao ego desligar-se da tensão afetiva causada pela realidade
5. Anulação, semelhante à proposta de seu pai sobre a negação, estabelece como
mecanismo de defesa a anulação daquilo que representa um impulso que não possa ser
aceito pelo ego.
6. Projeção, atribuir a uma outra pessoa, animal ou objeto as qualidades, sentimentos
ou intenções que se originam em si próprio. A pessoa pode, então, lidar com sentimentos
reais, mas sem admitir ou estar consciente do fato de que a ideia ou comportamento temido é
dela mesma. Sempre que caracterizamos algo de fora de nós como sendo mau, pervertido,
imoral e assim por diante, sem reconhecermos que essas características podem também ser
verdadeiras para nós, é provável que estejamos projetando, quando algo do outro nos
incomoda muito é porque provavelmente também possuímos em nós as características que
recusamos.
7. Introjeção, relacionada à identificação, está ligada ao fato de o indivíduo
identificar exemplos externos e referências, e incorporar como seus, desconsiderando suas
próprias pulsões, procura resolver alguma dificuldade emocional, ao tomar para a própria
personalidade certas características de outras pessoas.
8. Inversão contra o eu, à semelhança do que é apontado por seu pai, especifica o
sintoma que apresenta o pensamento ou o afeto que deveriam ser dirigidos para o exterior e
que são invertidos contra si próprio. Assim o sujeito sente-se culpado, dirigindo contra si a
responsabilidade. Podemos identificar estes padrões de comportamento em sujeitos
masoquistas e depressivos.

101
9. Reversão, representa o processo pelo qual o objetivo de uma pulsão se transforma
em seu contrário na passagem da atividade a passividade. A identificação com o agressor e a
renúncia altruísta, foram os dois mecanismos de defesa não descritos por seu pai.
Também consideramos a contribuição de outros autores da clínica psicanalítica a fim
de compreendermos melhor os diferentes casos que nos acorrem. Podemos citar entre eles
Melanie Klein e Donnald Winnicot.
Na obra de Melanie Klein (1937 -1963), a qual se dedicou principalmente aos
estudos sobre o relacionamento humano nas etapas iniciais da vida e foi uma das precursoras
do tratamento psicanalítico de crianças pequenas, em 1946 descreveu um tipo particular de
identificação que julgava estabelecer o protótipo de uma relação agressiva 61.
Identificação projetiva: através de um mecanismo inconsciente, aspectos,
sentimentos e desejos de uma pessoa, e por ela rejeitados, são projetados para o interior de
um objeto (não necessariamente animado) para o lesar, o possuir ou o controlar.
Introjeção e projeção / cisão do Objeto: medos Persecutórios decorrentes dos
Impulsos sádico-orais do bebê: Cisões de Objetos, Idealização, Negação da Realidade
Interna e Externa, Abafamento das Emoções
Mecanismo esquizo-paranóide: posições esquizo-paranóide e depressiva do sujeito.
O termo "posição``foi preferido por Klein em relação a "estágio" porque ele enfatiza o efeito
do ponto de vista da criança sobre suas relações de objeto. A posição paranoide - esquizoide
e a posição depressiva ocorrem na primeira e segunda metade, respectivamente, do primeiro
ano de vida. Elas também podem ocorrer em diversos momentos na vida como constelações
defensivas e estão envolvidas em conflitos relacionados a todos os níveis psicossexuais.
Posição depressiva: na posição depressiva, a libido predomina sobre a agressão, o
bebê reconhece que sua mãe tanto gratifica como frustra e ele se torna ciente de sua própria
agressão voltada em direção a ela.
Teoria do superego: o superego kleiniano funciona como o superego freudiano
clássico. Ele coloca valor sobre o comportamento e ele pune ou proíbe o comportamento que
ele considera ser errado ou mau. Melanie Klein sustentou que o desenvolvimento do
superego começa durante a posição depressiva; a pressão de superego excessiva causa
regressão para a posição esquizo-paranoide.
Estágios iniciais do complexo de Édipo: Os estágios iniciais do complexo de Édipo
começam durante a posição depressiva. Klein supôs um conhecimento inato dos genitais de

61
Notas sobre alguns Mecanismos Esquizoides (1946)

102
ambos os sexos, com fantasias orais e genitais influentes desde o nascimento em diante. O
desejo por dependência oral da mãe é deslocado para o pai. Ansiar pelo seio bom torna-se
um desejo pelo pênis do pai. O seio mau é também deslocado para o pênis mau.
Reparação: normalmente, os mecanismos de reparação, aumentados pela testagem
de realidade, aceitação de ambivalência, gratidão e luto, capacitam a criança a resolver o
período depressivo. A reparação, o antecedente da sublimação, é um esforço saudável para
reduzir culpa em relação a ter atacado o objeto bom tentando reparar o dano, expressando
amor e gratidão e assim, preservando-o.
Fixação: muitos tipos de psicopatologia severa são atribuídos à fixação em uma das
duas posições kleinianas. A fixação na posição esquizo-paranóide conduz a alguns
transtornos psicóticos. Os transtornos psicóticos em geral negam a realidade, usam projeção
extensamente e engajam-se em dissociação. Por exemplo, o escape para um objeto interno
idealizado conduz a estados exaltados autistas; dissociação generalizada e reintrojeção de
objetos fragmentados múltiplos conduz a estados de confusão.
Defesas maníacas: síndromes hipomaníacas e maníacas são promovidas por um
predomínio de defesas maníacas, incluindo onipotência, identificação com o superego,
introjeção, o triunfo maníaco e idealização maníaca. A onipotência resulta da identificação
com um objeto bom idealizado e negação do resto da realidade. A identificação com um
superego sádico permite que objetos externos sejam tratados com desprezo. A introjeção é
manifestada como fome de objeto, com negação de perigo para e dos objetos;
O triunfo maníaco é manifestado por um senso de ter conquistado o mundo; e a
idealização maníaca é manifestada por fantasias de fusão com Deus.
Na obra de Donnald Winnicot os Mecanismos de Defesa podem ser destacados nas
questões relacionadas ao Verdadeiro e Falso Self, Potência – Onipotência, Criatividade,
Pedidos de Socorro do Ego e Concernimento.
Verdadeiro e Falso Self, a cisão do self
Winnicott desenvolve o conceito de verdadeiro e falso self tomando como partida a
ideia de Freud de self constituído por um núcleo central que é controlado pelos instintos e
uma outra parte voltada para o exterior e relacionada com o mundo. Para isso ele parte do
pressuposto que considera a cisão entre verdadeiro e falso self como um estado essencial
inerente a todo ser humano saudável. O que vai determinar a cisão entre verdadeiro e falso
self como um aspecto da saúde ou não é a relação que o indivíduo mantém entre o mundo
subjetivo e a realidade.
Falso Self – Mecanismo de Defesa

103
As esquizofrenias (e patologias borderline) formam-se no estágio de dependência
absoluta, no qual o bebê vive totalmente fusionado (a quem cuida dele, mãe ou substituto) e
sofre as falhas ambientais de forma também absoluta, tendo de formar um falso self cindido
para lidar com elas, quando ultrapassam o limite de suportabilidade.
Então, esse falso self, na função de escudo protetor, mantém o self verdadeiro
resguardado do perigo, isolando-o tanto do ambiente perigoso quanto dos impulsos
instintivos (ainda não apropriados), que se tornam ameaçadores quando não podem ser
satisfeitos pelo ambiente num tempo adequado. Por outro lado, o falso self – tornado a ponte
de ligação com o mundo, quando sobrecarregado, sofre decomposições (já que é tão somente
uma casca exterior, formada por mimetizações ambientais). Quando o falso self falha, o self
verdadeiro é obrigado a expor as suas cisões e fragmentações originárias no confronto com
as demandas ambientais, aí sem mediações. Então, o psíquico é praticamente invadido pelo
mundo, o assim chamado surto esquizofrênico.
Nessa concepção, o estado borderline designa a esquizofrenia latente, nos períodos
em que o falso self funciona a contento, propiciando um escudo protetor ao self verdadeiro e
algum tipo de adaptação ambiental possível.
Na Patologia o Falso Self é:

● Usado e tratado como real – o indivíduo nutre sentimentos de irrealidade e

futilidade.

● Construído na submissão – os impulsos instintivos cedem a função de

autopreservação usado como escudo na função defensiva de proteção do self


verdadeiro – dissociação entre a mente e o psicossoma (splitting).

● A patologia típica Falso Sélfica é o Transtorno Borderline de Personalidade

Cada um destes mecanismos representa, portanto, uma maneira de se lidar ou fugir


da realidade, já que obrigatoriamente ela, nos impele a aceitarmos e nos ajustarmos,
construindo posturas e justificativas para satisfazer o que é negado aos nossos verdadeiros
desejos, fugindo ou esquivando daquilo que realmente sentimos internamente. Procuramos,
muitas vezes de maneira obsessiva através de atitudes e comportamentos, também reparar o
que internamente percebemos que contraria nosso self. Através da identificação e análise dos
próprios mecanismos de defesa em nossos processos de tratamento, entendemos que os
pacientes podem realizar uma autorreflexão ao verem-se muitas vezes prejudicados pelos

104
próprios gatilhos a que estão condicionados, construídos e ativados em suas reações de luta
e fuga.
Despertar destas fugas passageiras, destas ilusões e condicionamentos, dos vícios
comportamentais aos quais nos adaptamos, às zonas de conforto (jaulas douradas em que
nos encerramos), são possibilidades de libertação das mentiras que contamos a nós mesmos
e aos outros, nos abrindo a uma vida muito mais ampla e rica, onde o tempo pode ser mais
bem aproveitado, nos permitindo viver a realidade, com mais integridade, os olhos abertos e
os pés no chão. Entendendo que a vida é desafio, como já dissemos, na medida em que
fugimos destes desafios, estamos vivendo irrealidades, ilusões. O compromisso com a vida
desperta a vontade de controle da doença, a necessidade de irmos em busca de nossos
projetos e não dos pequenos prazeres que nos apegamos para vivermos os mitos que criamos
para nós mesmos. Despertar a vontade de querer viver é um dos eixos essenciais em nossas
Clínicas de Tratamento e buscamos oferecer justamente ferramentas que ajudem o paciente a
reconhecer e enfrentar as fugas que os desviam durante o processo de superação de suas
próprias dificuldades.

105
Culpa

"... o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda
da felicidade pela intensificação do sentimento de culpa."62
Sigmund Freud

Enquanto vivemos, estabelecemos tensões entre nosso ego e superego, os quais,


segundo Freud63, desencadeiam o sentimento de culpa. O reconhecimento pela consciência
do indivíduo de suas ações, ou mesmo intenções e desejos, ao qual a sua própria moral
desaprova, estabelecem um conflito em seu self, isto é, sua autoimagem, estabelecendo uma
emoção de auto rejeição. As cobranças que nós mesmos nos estabelecemos ou que são
formadas por exigências que a sociedade nos impõe, e as quais não conseguimos cumpri-las,
despertando um sentimento de impotência e frustração, também são fontes da culpa e
geradores de diferentes transtornos na saúde mental.
Os choques entre o que esperamos de nós mesmos perante a realidade, e que
acreditamos que os outros esperam de nós, juntamente com o medo de sermos descobertos
em nossos erros, despertam uma ansiedade ao qual, procurando nos remediar, nos voltamos
contra nós mesmos. Nós nos culpamos. O mito de Clítia (o girassol), nos lembra que muitas
vezes incorporamos a culpa por circunstâncias que estavam além de nossa capacidade de
resolvê-las, nos entregamos a autocomiseração e a sentimentos auto destrutivos sem

62
Freud em “O mal-estar na civilização”.
63
“O mal-estar na civilização” (1929/1974) Freud, S. (1974). (J. Salomão, Trad.). In S. Freud, Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 75-171). Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1930)

106
percebermos que eles, em si mesmos, não nos ajudarão a consertar o que nos aflige, mas
apenas nos prendem em emoções penosas, arraigados ao passado:
“Clítia é o nome de uma ninfa aquática que se apaixonou por Apolo e este não a
correspondeu. Ela sentou-se no chão frio e ficou a olhar para o sol, desde que ele se erguia
no nascente até se esconder no poente, dia após dia. Amaldiçoava a si e ao seu infortúnio,
culpabilizando-se pelo sentimento não correspondido. Assim permaneceu e no seu curso
diário via apenas suas próprias dores e infortúnios. Conta-se que seus pés se enraizaram, e
ela se transformou numa flor, que se move constantemente em seu caule, de maneira a estar
sempre voltada para o sol em seu curso diário, conservando assim a lembrança do
sentimento que dedicava a Apolo.
A culpa revela-se uma questão essencial a ser tratada no processo terapêutico
justamente por prender o indivíduo dentro de um circuito de auto repreensão na qual não
se movimenta no sentido de resolver aquilo que lhe angustia, não permitindo se perdoar
para seguir em frente. Embora, o sentimento de preocupação também possa ser visto de
uma forma positiva ao apontar que formamos uma inquietação moral, um sentimento de
arrependimento, e que não estamos encerrados em nosso egocentrismo. O que entendemos
em nossa filosofia de tratamento é que quando canalizamos este aspecto positivo da culpa,
podemos refazer o caminho que escolhemos e erramos através de atitudes de reparação,
mobilizando forças que nos auxiliarão a superar esses erros. O que nos cabe, portanto, são
atitudes que possam reparar nossas intenções e atos passados, aceitar a realidade e trocar
a culpa por responsabilidade. Entendemos que, assim como diz uma frase: “eu tenho que
me perdoar, pois preciso de mim mesmo para sobreviver”, propomos junto à necessidade de
aprender a perdoar-se, a tarefa de que encarar a realidade e de assumir o comprometimento
de se corrigir e estabelecer atitudes reparadoras, é mais digno e eficiente que se culpar.
Outro aspecto que devemos destacar em nossas reflexões é a de reconsiderarmos a
severidade moral a qual cristalizamos nossa consciência e a qual nos obrigamos a
responder. A sociedade e a moral a qual está atrelada, estabelece o fio condutor em que
construímos nossa ética particular a partir dos valores coletivos, nossas referências às
expectativas de comportamento, nossa consciência moral. Com a mesma severidade com a
qual julgamos o mundo e os outros, julgamos (e condenamos) a nós mesmos. Ao
enfatizarmos em nossos temas anteriores a aceitação do eu e a aceitação do outro,
juntamente com a realidade e as fugas, se justifica justamente pela necessidade de
repensarmos adequadamente nossa postura perante a nós mesmos e ao que nos envolve e
afeta. Revermos de maneira sensata, com o bom senso, a nossa moralidade e as normas a

107
que estamos submetidos, pede que aceitemos estas condições, ao mesmo tempo, que
desconsideremos muitas cargas às quais nos impusemos e às quais não conseguimos
carregar. Em nossa epígrafe destacamos: "... o preço que pagamos por nosso avanço em
termos de civilização é uma perda da felicidade pela intensificação do sentimento de
culpa."64 A sociedade estabelece normas e sanções, recursos punitivos ou de coação às
regras: em casa, na escola, no sistema criminal, etc.: os limites físicos e morais. Cabe à
capacidade crítica de cada um determinar quais são boas e quais não necessitamos
incorporar por não cumprirmos suas exigências. Nossas ações assumem repercussões na
sociedade e, ao causarmos danos aos outros, é natural que nos culpemos. Não é à toa que
Alfred Nobel estabeleceu o prêmio dedicado à paz, após criar a dinamite e ver sua
descoberta acabar estimulando uma indústria bélica bilionária, ou mesmo os indícios da
relação entre a depressão e o suicídio de Santos Dumont após constatar o uso do avião para
fins militares. Perceber que instrumentalizamos o medo para gerar sofrimento aos outros nos
leva à culpa, pois é contra a nossa consciência e os sentimentos sadios de buscarmos e
gerarmos felicidade.
A culpa gera ansiedade e medo. Ao nos compararmos aos outros e nos vermos em
uma situação em que nos envergonhamos ou nos sentimos raivosos por não
correspondermos às próprias expectativas, também nos culpamos. A ansiedade pelas
frustrações juntamente com o medo, nos prostra em atitudes sádicas com nós mesmos. A
culpa acusa e condena: merecemos sofrer! Nos entregamos a um autoflagelo moral onde,
muitas vezes, entendemos que apenas a nossa entrega ao sofrimento é a maneira de nos
aceitarmos novamente, principalmente quando desapontamos a nós mesmos por nossas
compulsões e vícios. Sejam eles de característica alimentar, sexual, emocional,
comportamental etc., causam grande aflição ao reconhecermos as suas consequências para
nós mesmos e aos que estão ao nosso redor.
Nas depressões reativas que ocorrem em resposta a separações importantes e
perdas, (por exemplo morte, separação conjugal, desapontamento romântico etc.) a culpa
pode ser manifestada por sintomas de ansiedade, como insônia, inquietação e
hiperatividade do sistema nervoso autônomo. Por exemplo, em pessoas predispostas a
distúrbios de humor, em adversidades, a separação e a perda podem causar depressão
clínica, lembrando que o risco de suicídio é a complicação mais séria nestes pacientes, e, a
depressão não conhecida ou não tratada, nestes casos, geram altos índices de suicídio.

64
Idem. Freud em “O mal-estar na civilização”.

108
Reforçando que, com o vício em substâncias como o álcool ou outras drogas, potencializam-
se esses riscos.
Em manifestações de síndromes maníaco-depressivas, seja nas mudanças de humor,
nos distúrbios cognitivos e psicológicos, nas disfunções vegetativas e psicomotoras ou nas
características psicóticas, a depressão unipolar revela causas da busca de drogas pelos
pacientes para, na realidade, tentarem se anestesiar e/ou fugir. Por exemplo, um paciente
com característica maníaca pode procurar cocaína para aumentar o excitamento emocional, o
que provavelmente o levará a compulsão e, ciclicamente, à própria culpabilização pelo uso
da substância.
Nos mecanismos de defesa do ego: Inversão contra o eu e Reversão, tanto Freud,
quanto sua filha Anna Freud, apontam as características do sujeito que apresenta
pensamentos ou os afetos que deveriam ser dirigidos para o exterior e que são invertidos
contra o próprio sujeito. Assim, ele utiliza o mecanismo de sentir-se culpado, dirigindo
contra si mesmo a responsabilidade que muitas vezes lhe cabe, e muitas vezes que não lhe
diz respeito.
Estas emoções podem surgir em diferentes situações, por exemplo quando nos
frustramos ao nos percebermos impotentes quando não atingimos objetivos e realizamos
nossos desejos, quando nos cobramos exigindo demais de nós mesmos e nos comparamos
aos outros, quando não admitimos os fracassos sem levarmos em conta que também podem
ser o resultado de circunstâncias externas, mas que então assumimos e atribuímos apenas à
nossa incapacidade. Essa dor resultante da autocobrança, onde depreciamos a nós mesmos
em função do que não realizamos, se não for ressignificada, reelaborada e tratada, pode
representar uma grande dificuldade e gerar terríveis sofrimentos emocionais a um indivíduo,
principalmente quando ele as incorpora e, justamente, as transforma em culpa. Quando
cometemos um erro, ou fracassamos, é preciso entendermos que devemos procurar superar a
situação, apesar de geralmente não ser uma tarefa simples.
Também precisamos destacar os traços de personalidades psicopáticas, aos quais
identificamos a ausência de remorso e culpa, juntamente com o egocentrismo e o
narcisismo, a insensibilidade e desfaçatez em relação aos outros. Nestes casos, em que se
somam distúrbios mentais e se caracterizam como uma psicose, formando um transtorno de
personalidade antissocial, comumente chamados de psicopatas e sociopatas. Três fatores são
atribuídos para a sua formação: disfunções cerebrais/biológicas ou traumas neurológicos,
predisposição genética e traumas na infância como ser vítima de abuso emocional, sexual,
físico, sofrer negligências, violências, etc. Estas características, nos casos leves, oferecem

109
indícios para a terapia destes traços de personalidade, os quais apresentam desvios de
caráter, insensibilidade, frieza diante dos erros, alta capacidade de manipulação e atitudes
sádicas. Podemos perceber as dificuldades no tratamento destes indivíduos, principalmente
quando assumem uma personalidade clinicamente perversa, ou seja, desconsideram os
valores morais em função de seus próprios interesses. Ao refletirmos a partir destes casos,
entendemos o quanto a culpa pode mostrar-se benéfica, ao despertar através do remorso, a
necessidade de outra postura perante a si mesmo e da reparação dos males causados aos
outros: o sentimento de remorso ao causarmos mal indica uma empatia ao sofrimento alheio,
um ponto de partida essencial para tentarmos reparar o que causamos.
Em “O mal-estar na civilização”, Freud destaca o quanto a sociedade, nos esforços
humanos de construir a civilização, procurou controlar a agressividade humana. Essa
agressividade, quando é direcionada contra a sociedade que estabelece os limites e as leis, ao
não se adaptar e encontrar uma resolução para as condições impostas, volta-se contra o
próprio indivíduo que, portanto, reforça a severidade quanto aos seus ideais de moralidade e
do cumprimento destas imposições. Essa autoexigência, que está no cerne das tensões entre
o ego e o superego, alimenta a culpa e a necessidade de autopunição. Este sentimento surge,
como já dissemos, quando a pessoa reconhece que fez, ou teve a intenção de fazer, algo que
considera mau. Neste aspecto, podemos retomar o que Freud demonstrou que estaria no
início do sentimento de culpa: a necessidade de pertencimento e aceitação, ou “o medo da
perda de amor”. O superego tornando-se vigilante ao medo do desamparo, volta-se contra o
ego, despertando o sentimento de culpa e necessidade de punição ao que pode ser descoberto
e reprimido pela sociedade, lembrando que o superego é uma autoridade interna e que vigia
tanto as ações, quanto as intenções dos indivíduos.
Assim, o “masoquismo moral”, que Freud apresenta65 e que associa inclusive à
masturbação infantil, revela que a autopunição, já que é construída pelo próprio superego,
também encontra neste ato um prazer: o do reconhecimento da própria culpa e da
necessidade de punição. Nesse sentido, a civilização domina e estabelece as tendências
agressivas do homem contra si mesmo através do sentimento de culpa, pois é ele que
possibilita a organização social à custa da renúncia às suas satisfações mais imediatas e
intensas. Vejamos brevemente as consequências que, as regras morais e jurídicas,
desencadeiam no indivíduo
A civilização, que estabeleceu ao longo de seu tempo os valores morais e a ética,
também formou um consentimento de seus indivíduos sobre as punições aos desvios, delitos
65
O problema econômico do masoquismo (1924-1974).

110
e crimes às suas leis. As pessoas, participantes do pacto social, formam referências às quais
a moral individual está sujeita. Lacan em Introdução teórica às funções da psicanálise em
criminologia (1950/1998), ressalta que existe a verdade policial em função do fato e do ato
do criminoso, e existe a verdade antropológica, à qual o sujeito estava inserido formando
parte de sua verdade subjetiva. Seu histórico de vida e seu contexto são partes que não
podem ser negadas de sua versão da verdade em relação a um crime e aos seus erros.
Estabelecemos estruturas que punem os desvios: errou tem que pagar! Separa-se o
indivíduo da sociedade, como uma justiça punitiva, mas não são elaboradas estruturas
reparadoras! Em nossos processos de tratamento, além da ênfase ao reconhecimento da
doença e dos vícios em seu histórico de vida, destacamos a necessidade do paciente
transformar as culpas em atitudes de reparação aos males que causou aos outros e a si
mesmo, pois, de outro modo, deixar a pessoa apenas encarcerada ao próprio remorso é
condena-la a uma prisão terrível dentro de si mesma.
Ressaltamos a importância sobre o histórico de vida do paciente em seu processo
terapêutico, pois apenas deste resgate se pode chegar às causas de sua doença. O seu
consentimento aos valores morais que o formou são partes fundamentais sobre sua visão a
respeito da própria doença. A análise desta autoafirmação permite que se reflita melhor
sobre as culpas que incorporou e às quais se sujeita. Lacan traz juntamente com a
importância do papel do ambiente e das engrenagens psíquicas e simbólicas nas ações do
indivíduo, a questão de que o sujeito busca, mesmo através de sua autopunição, de seu
masoquismo moral, a redenção por seus erros. Separar a verdade do ato, da verdade
subjetiva do sujeito, é uma das ferramentas utilizadas em nossas Estâncias Clínicas para que
o paciente possa reconsiderar a própria visão sobre sua condição e as influências dos outros
em relação a ele e estabelecer atitudes de reparação a estes erros, após sua devida reflexão.
São os caminhos que acreditamos necessários para se romper o ciclo paralisante da culpa e
reconquistar o auto perdão.
Assumir a responsabilidade sobre algo, está primeiramente relacionado a rever as
culpas que incorporamos e questionar as culpas às quais nos sujeitamos. A
responsabilidade, segundo Lacan, necessita da revisão dos indivíduos sobre esses
sentimentos, para compreenderem o quanto aceitam suas dificuldades em função da culpa
que estabelecem a si mesmos e de receberem uma punição ao que consideram digno de
culpabilidade. Entendemos então que não se encontra a paz fugindo dos erros, nem
introjetando em si a punição dada pela sociedade, mas encarando-os e reconhecendo-os, mas

111
revendo com coragem os próprios atos e sentimentos, assumindo uma postura de redenção e
então, como dissemos, construir atitudes de reparação.
Vale ressaltarmos a importância de revermos também nestes aspectos, a presença da
culpa em grande parte da construção moral da sociedade em sua história. Em diferentes
religiões, seja na Bíblia, no Torá ou no Alcorão, ela está presente e fornece bases para a
organização social e para o seu controle. Pierre Bordieu fornece a noção de habitus, onde
explica os mecanismos dos quais nos utilizamos para formar nossa visão de mundo, através
dos contatos sociais, e de onde retiramos os costumes, identidade, língua e sentimentos
comuns. A incorporação destes valores é parte fundamental da personalidade de um
indivíduo e de seu próprio reconhecimento junto aos seus grupos. Não corresponder a esses
valores gera a culpa de não reconhecer a si mesmo, enquanto integrante de seu meio, de
estar fora da tribo. Entendemos que é preciso nestes casos, estabelecer com coragem a
revisão destes valores na particularidade de nosso histórico de vida: a culpa que nos
infringimos pela inadequação ao que é a regra, ou ao que está na “moda”. Seja por uma
questão de identidade de gênero, de beleza, de status, de competência etc.
As reflexões sobre as culpas revelam-se, portanto, as bases de muitos tratamentos:
quando sentimos que cometemos um erro irreparável, precisamos nos questionar: será que
devemos carregar essa culpa para sempre? Quando erramos sem querer, levados pelas
circunstâncias que não controlamos, por que insistimos em nos culparmos? Ou ainda,
quando nunca assumimos a culpa, mas culpamos os outros, lhes transferindo sempre a
responsabilidade dos erros e problemas, não deveríamos assumir sim nestes casos nossa
parcela de culpa e utilizar o sentimento de remorso para o arrependimento de nossos erros?
A culpa, apenas por ela mesma, rouba a realidade de viver! Vemos recorrentemente,
em nossos casos, apenas para ilustrar como um exemplo hipotético, as pessoas que
frustradas em um relacionamento amoroso, projetam e mantêm as culpas desta frustração
nos outros e em si mesma. Passam anos remoendo este sentimento, impedindo-se de viver e
presas ao ideal que criaram: torturam-se pela culpa matrimonial (muitas vezes mentais) que
lhe impedem de entregarem-se a novos relacionamentos. Culpam-se por sentirem que estão
enganando os cônjuges, por não terem resolvido situações do passado, por insistirem em
acreditar e se prenderem às nostalgias do que aconteceria “se” fosse ou tivessem feito
diferente. É preciso assumir a realidade para poder seguir em frente!
Enfim, entendemos em nossa filosofia, que atitudes de reparação, quando são
assumidas de maneira voluntária e consciente pelo paciente, lhe possibilita desenredar-se
das amarras da culpa que os estagnou. É fundamental neste processo que se entenda que não

112
se deve cometer os mesmos erros, para não recair nos mesmos gatilhos que o enredou
anteriormente. Parar de se lamentar eternamente e tomar estas atitudes é o que procuramos
estimular. Revermos o quanto acreditamos que os sofrimentos morais aos quais nos
prostrarmos nos purificam como um martírio, o quanto teimamos acreditar que temos que
pagar... sofrendo...e, inclusive, não aceitando possibilidades de salvação. É uma postura
conveniente na verdade, que nos mantém em uma zona de conforto porque nos auto
enganamos afirmando que “merecemos e não podemos fazer nada”. Quanto mais nos
agarrarmos às culpas por elas mesmas, mais justificamos nossa estagnação. Elas devem sim
constar nos mapas que apontam os rumos de nossas trajetórias, mas não serem as âncoras
que impedem de singrarmos as rotas que desejamos para uma vida feliz.

A dor

“O essencial para a nossa felicidade é a nossa condição íntima:


e desta somos nós os amos.
Se não podemos negar a dor, devemos então procurar entendê-la,
para melhor lidarmos com ela.”
Epicuro

A dor representa um dos aspectos da condição humana, sendo reconhecida inclusive


como o 5º sinal vital66, e os cuidados aos sofrimentos que desencadeia, tanto nos aspectos
físicos quanto emocionais e sociais, são fundamentais para a qualidade de vida de qualquer
indivíduo. Da mesma forma que o medo, a dor não se restringe a um aspecto fisiológico, da
sensação em si, mas também dos componentes psicológicos ou reativos em relação à
sensação dolorosa e ao desconforto. Veremos que em seus diferentes aspectos, físicos e
emocionais, ela oferece sofrimentos que estão sujeitos à interpretação e mensuração que o
padecente lhe atribui. Seja desde os pequenos cortes e contusões, até as grandes dores às
quais o corpo e a alma estão submetidos, o ser humano em seu conjunto psicofísico, sente e
reage de maneira individual ao que lhe aflige. Como e o quanto lhe afeta depende
subjetivamente dos aspectos emocionais e interpretativos que ele concederá à “sua dor”.
Porém, a todos ela nos lembra: estou aqui e tu és mortal. Nos atormenta, requerendo nossa
atenção: terás que me atender, estás aqui imanente comigo.

66
juntamente com os outros quatro sinais que são constituídos pela temperatura, pulso, respiração e pressão
arterial

113
A dor é a cereja do bolo do medo: ela aponta o fato de possuirmos limites, revela
as impotências, frustra e angústia. O ser humano em seu impulso de vida, na busca de
realização e plenitude, vê na dor sempre um castigo, uma punição, uma frustração e, em sua
extensão, o aviso da existência de sua mortalidade e de sua impotência frente a ela. Diante
da grande dor que a morte representa, convivemos no cotidiano com as doses paulatinas de
morte que a dor nos impõe: os limites a que estamos submetidos e que nos frustram, os
cuidados que precisamos manter para evitar os sofrimentos! Porém, ao mesmo tempo, a dor
é um sinal vital que nos educa e que também nos estimula a viver. Ela revela nossas
fraquezas e ensina sobre a força e a resiliência necessárias para sua superação. Ela indica os
diagnósticos de suas causas, exige aceitação e ações específicas do paciente para sua cura, às
vezes inclusive, pela necessidade da aceitação de sua inevitabilidade e dos tratamentos
paliativos existentes para suportá-la e poder conviver da melhor forma com ela.
O controlo da dor, a busca de bem-estar, é um direito do paciente e o objeto dos
diferentes agentes de saúde. Mas o que é entendido como dor? Qual sua etiologia?
A IASP67 Em 1994, estabeleceu a dor como: “Experiência sensitiva e emocional
desagradável associada ou descrita em termos de lesão tecidual”. Aqui já temos a
fundamentação da dor, que é descrita sendo sensitiva e emocional. Entende-se que da
sensação, criamos uma percepção da dor. É esta percepção (subjetiva, reativa, emocional)
do padecente que lhe permite mensurar seu sofrimento sob aquela dor. Neste aspecto, já
podemos perceber a importância da psicologia, da enfermagem, da medicina e das terapias
multidisciplinares que, enquanto cuidadoras das dores, sendo elas físicas e emocionais,
devem prestar a atenção não apenas na medicação clínica e farmacológica da doença, mas
no conjunto da terapia, ou seja, na busca da saúde e do bem-estar do enfermo, considerando
sempre seus aspectos biológicos, psicológicos e sociais.
Podemos ainda, mesmo que brevemente, sistematizar as dores nociceptivas, as quais
estão ligadas a lesão tissular, a ativação livre dos nervos periféricos, a condução e ao
processamento sináptico da dor. As neuropáticas, onde é afetado o sistema somato
sensitivo, resultante de lesões ou doenças (atividades ectópicas) no sistema nervoso.
Também as mistas (nociceptivas e neuropáticas) e as psicogênicas, atribuídas aos fatores
psicológicos. Em dores agudas (de curta duração: minutos, horas ou dias) e as dores crônicas
(de longa duração: acima de meses, permanecendo por anos ou até a vida inteira).
Compreendendo que a dor abrange toda a dimensão biopsicossocial do indivíduo,
entendemos que seus cuidados também abrangem tanto a alimentação, o sono e as
67
Associação Internacional para o Estudo da Dor

114
medicações necessárias para o alívio e solução dos seus males físicos, quanto aos
acompanhamentos e práticas terapêuticas de reflexão, entendimento e superação dos seus
males emocionais e psíquicos para promovermos sua reabilitação social, abrangendo
holisticamente, as diferentes dimensões a serem tratadas. Podemos facilmente perceber o
quanto uma dor aguda, como as de cabeça, atormentam e atrapalham nossa vida e o quanto
as dores crônicas podem oferecer inúmeros exemplos de consequências: como os
sofrimentos de um câncer, ou o fato de ser portador de HIV, ou ainda as dores sem causa
aparente (como os sintomas da doença de Fabry) que podem adquirir uma dimensão
emocional e social tão terrível ou pior que a própria dor fisiológica, ao atrapalhar a
qualidade de vida, impossibilitando o simples cotidiano, os sonhos e a perspectiva de
felicidade.
Quando voltamos nossa atenção às dores físicas e emocionais que mais se
evidenciam, que atrapalham os convívios sociais, que bloqueiam as iniciativas, que
traumatizam, que deixam sua marca na psique do indivíduo e prejudicam seu bem-estar
cotidiano, atrapalhando sua qualidade de vida, temos em destaque o que mais necessita ser
cuidado, ser tratado. É a dor do indivíduo, que fornece os diagnósticos e as condições do
planejamento terapêutico.
Perante nossa luta diária, onde nos defrontamos com várias dificuldades em busca
da realização, a dor nos atrapalha e, assim como temos as dores físicas que dificultam nosso
dia a dia, conjuntamente temos dores emocionais. Se as dores físicas já impõem tantos
limites ao bem-estar, o que dizer das dores emocionais?
Elas surgem quando nos frustramos ao nos percebermos impotentes, quando nos
cobramos exigindo demais de nós mesmos, quando não admitimos o fracasso que também
pode ser o resultado de circunstâncias externas, mas que assumimos e atribuímos apenas à
nossa incapacidade (tratamos deste assunto no tema Culpa). Pelos medos da dor, muitas
vezes percebemos, como o ser se refugia em outras dores para vencer esses medos! O que o
ser humano pensa, imagina, cria, a partir da dor ou para evitá-la, é entrelaçado por seus
medos, por suas culpas, pelos seus sentimentos de fracasso e de impotência.
Sob este aspecto, podemos ensaiar uma reflexão que perpassa toda a existência
humana, está presente em toda a História da sociedade e, ao mesmo tempo, na história
pessoal de cada indivíduo. Podemos pensar sobre as automutilações, que apontam uma dor
emocional ainda pior que as dores físicas. Podemos refletir sobre a construção
psicossomática de dores e patologias, as quais geramos em nossos próprios corpos, como a
Síndrome da Fibromialgia (SFM). A “couraça muscular do caráter” como explica Wilhelm

115
Reich, que sob as tensões e o estresse, o corpo contrai e enrijece a musculatura até deixá-la
dolorida. Os transtornos psicológicos, a hipocondria, o ingresso às depressões por diferentes
sofrimentos, onde o conjunto emocional e o inconsciente (psicogênese) revelam as angústias
que procuramos esconder de nossa consciência. Podemos buscar compreender desde o
apego que concedemos às pequenas dores, por falta de coragem de encarar as grandes dores
emocionais que guardamos, vivendo magoados ou aflitos. Podemos perceber o quanto os
traumas impedem que simples momentos de felicidade sejam percebidos e vividos.
A dor está também ligada às idades: as que são características da infância, da
juventude, da maturidade e da velhice (aqui poderíamos destacar os cuidados especiais em
cada período, tanto psicológica quanto fisiologicamente). Ela deriva quanto aos aspectos
ambientais e culturais, onde somos afetados pelo meio-ambiente a que estamos submetidos
(características das regiões onde habitamos: frio, calor, barulho, agitação, etc.). À cultura
que muitas vezes nos obriga a suportar sofrimentos pelas exigências dos papéis sociais, das
cobranças que sentimos do outro, das coações emocionais que nos oprimem, exigindo o
nosso enquadramento nos modelos sociais e em suas expectativas. Quando não nos é
possível, nem desejável este enquadramento, quantos castigos recebemos: separação,
isolamento, marginalidade, rejeição...
Porém, a fim de enriquecermos nossas reflexões, vejamos também, aspectos
positivos da dor. Muitas vezes nos impomos dores: como nas exigências de um tratamento
ou de um treinamento, para provarmos a nós mesmos que podemos suportar e superar os
limites. A dor pode nos impelir a nos fortalecermos. O alerta da dor, sinal vital, convoca-nos
para cuidarmos da vida, seu incentivo à superação após um acidente, onde nos submetemos
a sofrimentos e a processos dolorosos para o seu tratamento e galgamos, dia a dia sua
superação, fortalece nosso autoconceito, nossa autodeterminação.
A dor nos educa: temos que escovar os dentes... senão sofremos as terríveis dores das
cáries e paramos no dentista (ícone da dor, principalmente antigamente, onde a tecnologia
ainda não era suficiente e a visita a ele era muito mais desconfortável que atualmente...), não
podemos comer o que queremos pois senão lá vem o colesterol, a diabete, o descontrole da
pressão arterial e as gorduras, estas geradoras de tantas dores, e não apenas físicas... a dor se
afigura a uma coisa boa, ao nos advertir e educar, mas pode abrir margem aos mitos e, assim
como com o medo e a culpa, construirmos toda uma mitologia da dor. Entendemos e
ressignificamos subjetivamente nossas dores, podemos procurar justificar nossos
sofrimentos, nos apegarmos a eles por vezes acreditando que o merecemos de tal forma que

116
não percebemos o quanto estamos prejudicando nossa qualidade de vida e nosso potencial
para a felicidade.
Utilizamos a dor muitas vezes também como uma moeda de troca. Muitas vezes
estamos sofrendo por medo, para pagar os pecados e expiar a dor, os sacrifícios68 que
revelam um culto à dor. Desde a própria vida escolar (aqui podemos retomar historicamente
os modelos rígidos que herdamos de muitas tradições culturais, até suas reminiscências na
atualidade) onde temos que ficar ali sentados por horas, submetendo-nos a um esforço de
suportar desconfortos, ao invés de sairmos para brincar. Está implícito um paradigma: é
preciso sofrer para aprender. Estudar torna-se um sacrifício em compensação às possíveis
exigências de dores futuras: a inadequação ao mundo da cultura e do trabalho. Aliás o
trabalho69 que deveria estar associado à realização das potências humanas, geralmente está
associado ao sacrifício.
A partir do sacrifício justificamos a dor como sustentáculo para suportarmos a
negação dos desejos dos prazeres imediatos. Sob esta ótica, ao pouparmos gastos, nos
percebemos como mártires estóicos, a dor se nos afigura como uma conquista em si: sem a
dor não se aprende, não se conquista, nem se valoriza nada, nos dizem os ditados.
Construímos uma exaltação da dor e dos sacrifícios. E, aqui, cabem mais reflexões.
Acreditamos que ao nos ofertarmos em sacrifício, este ato nos purifica! Veja-se a força
disto.
Rememoremos desde as ofertas religiosas, em todas as culturas ancestrais em que se
imolavam desde humanos, jovens e crianças a um deus que em verdade representava o medo
dele nos causar dor! Trocávamos a dor de ofertar nossos semelhantes pelo medo de uma dor
maior, de catástrofes e castigos. Aliás, o símbolo do cordeiro que redime os pecados, é a
figuração da grande representação de Jesus Cristo, desde os momentos que antecedem a
crucificação chamados de a paixão, lembrando que a palavra paixão vem do grego pathós,
que significa sofrer. De onde surgem os termos como patologia, por exemplo. É necessário
revermos como interpretamos e incorporamos essas lições. O melhor de nós, foi morto e
morreu por nós. Seu exemplo redime, nosso mártir leva às últimas consequências sua
compaixão (sofrer junto). Mas nós, por que e pelo que nos martirizamos? Em troca do que
nos colocamos em sacrifício? Pelo que escolhemos sofrer? O que os outros cobram de nós e
o que nós mesmos cobramos de nós?

68
Do latim sacro facere, ofício sagrado.
69
Palavra que advém do latim tripaliare, faz referência a um instrumento de tortura medieval.

117
Convém dissociarmos a dor dos medos e sacrifícios e associá-la como um
investimento em troca da felicidade. Ao investirmos nosso tempo estudando, entendermos
que estamos trocando o prazer de um tempo fútil pelo investimento útil na conquista de uma
felicidade maior. Entender que podemos poupar gastos inúteis, pela consciência de não nos
onerarmos e nos entregarmos aos caprichos dos desejos imediatos, ou seja, pelo
investimento na felicidade de uma vida equilibrada. O pequeno prazer que não teremos, pelo
grande prazer de uma conquista. Não precisamos associar as dores apenas como obrigações
sagradas a fim de assim criarmos motivos para continuarmos sofrendo. Podemos associá-la
à liberdade de escolha em investirmos nosso tempo, nossos esforços na busca de um bem
maior, de uma felicidade estável. A imagem do herói que suporta a dor para poder se
realizar, pode ser revista e substituída pela imagem daquele herói que busca e faz da sua
jornada, um caminho de felicidade. Vejamos o que nos aconselha Epicuro (341-270 a.C.),
através dos fragmentos que possuímos, em sua Carta sobre a felicidade (a Meneceu),
falando sobre a Ética:

IV - Ética
Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos que é o
primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda a escolha ou recusa e
chegamos a ele valorizando todo bem com critério do efeito que nos produz.
Nem a posse das riquezas nem a abundância das coisas nem a obtenção de cargos
ou o poder produzem a felicidade e a bem-aventurança; produzem-na a ausência
de dores, a moderação nos afetos e a disposição de espírito que se mantenha nos
limites impostos pela natureza. A ausência de perturbação e de dor são prazeres
estáveis; por seu turno, o gozo e a alegria são prazeres de movimento, pela sua
vivacidade.
Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos
prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como creem
certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos
compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e
de perturbações da alma...

Epicuro foi um filósofo grego que aos 32 anos adquiriu uma casa com um grande
jardim nos arredores de Atenas e nela criou uma escola filosófica com um grupo de pessoas
ligadas por um laço estreito de amizade. Conviviam. Eram conhecidos como os do jardim,
entre eles havia mulheres e escravos, algo impensável na época, e todos os epicuristas
procuravam viver e conviver buscando a paz e a felicidade. Epicuro acentua a importância
do corpo como princípio fundamental da existência humana, o corpo como a “realidade que
somos”, seu bem-estar é o estado de prazer, natural do ser humano. Estar bem com nós
mesmos, é nosso direito e dever existencial!

Ele nos lembra que o bem-estar corporal, a convivência estabelecendo laços de


amizade no cotidiano e a atitude racional de aceitar o bem-estar, sem culpas e sacrifícios,

118
nos fornece os passos para nunca deixarmos de buscar a felicidade, mesmo enquanto
tivermos que conviver com as dores inevitáveis.
Ferramenta essencial no processo terapêutico, estes ensinamentos são fundamentais
para que a equipe cuidadora possa entender a importância de se fortalecer a atitude
propositiva do padecente frente ao seu sofrimento, de incentivá-lo sempre a buscar sua
própria saúde, compreendida em seus aspectos fisiológicos, emocionais, psicológicos e
sociais. Holisticamente falando, que a terapia deve auxiliar o paciente a reconsiderar seu
sofrimento sem fugas e projeções sádicas aos que o acompanham e tanto se compadecem.
Que devem reconhecer as dores que causam aos entes queridos, não para se entregarem às
culpas e a vitimização, mas para que na atitude de amarem a si mesmos e aos outros,
reforcem os motivos de seus esforços na conquista da própria saúde, pois é de sua paz e de
sua felicidade que tanto depende a felicidade e a paz daqueles que os amam. É neste sentido
que valorizamos os ensinamentos de amar os outros como a nós mesmos, pois, cultivando na
vida uma ecologia de bem-estar, estamos realmente praticando a compaixão e contribuindo
no alívio das dores do mundo.

119
Centro de Atenção Permanente - CAP

“O ego cria, autocraticamente, um novo mundo externo e interno, e não pode


haver dúvida quanto a dois fatos: que esse novo mundo é construído de acordo
com os impulsos desejosos do id e que o motivo dessa dissociação do mundo
externo é alguma frustração muito séria de um desejo, por parte da realidade(...)
(...) Com referência à gênese dos delírios, inúmeras análises nos ensinaram que o
delírio se encontra aplicado como um remendo no lugar em que originalmente
uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo.”
Sigmund Freud70

O termo CAP, Centro de Atenção Permanente, utilizado em nossas Clínicas Estância


como um de nossos tópicos de tratamento, se refere sobre as necessidades que alguns
indivíduos desenvolvem de constantemente serem o centro das atenções: buscam a atenção
dos outros, ao mesmo tempo que se escondem atrás da imagem que construíram para si
mesmos (falso self). Possuem um autoconceito desproporcional, onde o ego superestimado
lhes fornece uma visão idealizada e narcisista de si mesmos, em que se sentem sempre
poderosos e superiores aos outros, porém, em uma análise mais profunda, revelam-se
geralmente carentes, inseguros e com um vazio social que precisam preencher: a imagem
que constroem para si mesmos e apresentam aos outros seria na verdade “um remendo para
cobrir a fenda” que existe entre o seu ego e o mundo externo, como nos aponta Freud.
Os processos do funcionamento mental e dos distúrbios, revelam-se pela
personalidade e a tensão emocional, a ansiedade e o medo, os quais marcam profundamente
a psique. A necessidade de segurança emocional, que é dada através da confirmação, da
70
Do livro Neurose e Psicose (1923).

120
aprovação (promoção, estímulos) por parte dos outros e da realidade para a satisfação do
ego é, portanto, uma das principais chaves para pensarmos as características dos pacientes
chamados por nós de CAPs - Centros de Atenção Permanente.
Esses pacientes necessitam que todos os cerquem de afetos e admiração por
considerar que a valorização social lhes traz poder, prestígio e superioridade e isto esconde
seu medo, insegurança e solidão. Diante das mais variadas situações junto aos outros,
sentem sempre a necessidade de se sobressaírem, agindo de maneira contra fóbica a
esconderem sua insegurança. Seja em uma partida esportiva, seja em um simples karaokê ou
mesmo em conversas cotidianas, é premente a necessidade de se destacarem e serem vistos
como os melhores ou especiais. A infância, e toda a formação da personalidade (seu
histórico de vida), nos ajuda a compreender, diagnosticar e prognosticar os sofrimentos que
hoje os pacientes nos apresentam. Em nossas palestras costumamos lembrar que a criança
quando cai e recebe demasiado e carinhoso consolo, se joga de novo, chamando atenção
para receber novamente carinho. O sucesso de um esmoler estará em quanto atingir a
compaixão do outro, assim, quanto maior for demonstrado o sofrimento que passa, maior
poderá ser a esmola. Tanto o choro, quanto o riso de um bebê, podem ser expressões
emocionais, quanto estratégias para se cativar e conseguir o que se quer. O
comportamento reflete a carência, todas as moções dos pacientes, as histriônicas,
dependentes, mesmo as agressivas e hostis, devem ser utilizadas para fins de análise.
Esses comportamentos também oferecem indícios para o desenvolvimento de
transtornos que trazem grandes tribulações para o próprio indivíduo e para suas relações
com os outros, pois, justamente à medida que estes hábitos (vícios) se tornam crônicos, a
pessoa não percebe que junto a eles se somatizam outros problemas de relacionamentos,
podendo-se desenvolverem justamente em Transtornos de Personalidade, os quais
relacionamos principalmente aos Transtornos de Personalidade Histriônica (TPH),
Borderline, Narcisista, Antissocial e Dependente. Como se pode perceber, estes
comportamentos advêm de um conjunto de dificuldades na autopercepção e é propriamente
a partir de suas sintomatologias que identificamos traços diagnósticos de outros distúrbios.
Podemos identificar esses traços: geralmente não reconhecendo e criticando as
qualidades dos demais de maneira que se sobressaiam e se sobreponham sempre, criando e
manipulando a realidade a seu favor, não admitindo os próprios erros e transferindo a culpa
aos outros; a sede pelo poder e aceitação, o orgulho e a vaidade, traços de perversão (não
podemos confundir estes traços com a estrutura de personalidade perversa propriamente
dita), certamente acarretam problemas no cotidiano. Cabe ainda destacar os delírios de

121
grandeza (dizer ser mais importante, mais rico, mais famoso, amigo de poderosos etc.)
como um subtipo de Transtornos Delirantes Persistente (TDP), muitas vezes associados à
esquizofrenia, à fase maníaca do Transtorno Bipolar e aos abusos de substâncias. Essas
características pertencem ao conjunto de mecanismos que, durante a formação de nossa
personalidade, os criamos para resolvermos os problemas com os quais nos defrontamos e,
como uma faca de dois gumes, quando nos habituamos a eles indiscriminadamente, nos
vemos presos a estes comportamentos e suas consequências.
Destas técnicas, incorporadas à nossa personalidade, muitas se configuraram
justamente como mecanismos de defesa do nosso ego, e como já descrevemos em nossos
tópicos, quando começamos a identificá-los, passamos a perceber as armadilhas em que nos
encerramos, as quais mesmo inconscientemente, construímos para nós mesmos, nos
condicionando a agir sempre de maneira a evitarmos a realidade do que nos incomoda,
frustra ou oprime, por isso, a coragem para encarar estes comportamentos é essencial em
nossa proposta terapêutica. Vamos analisar mais profundamente as características do CAP,
para podermos atender melhor esses pacientes que nos chegam, para tanto vamos refletir
sobre o Transtorno de Personalidade Histriônica (TPH).
O significado da palavra histriônico vem de histérico, que é aquele que se comporta
de maneira exagerada, buscando ser o centro das atenções. Um dos adjetivos para a palavra
é histrião, que é um termo dos antigos romanos para os comediantes que representavam
farsas populares da época, sendo adotado na atualidade como adjetivo de pessoas farsistas.
Caracterizado por um padrão de emocionalidade excessiva e necessidade de chamar
atenção para si mesmo, incluindo a procura de aprovação ao seu comportamento, mesmo
que seja inapropriado. Mostram-se geralmente entendidos dos mais variados assuntos, são
dramáticos, mostram-se sempre animados, sedutores, flertadores, buscam apresentar uma
imagem sintonizada com a que propõe a mídia, de pessoa bem-sucedida.
Esse tema é importante na atualidade porque podemos refletir sobre as necessidades
artificiais que são estimuladas constantemente pelas mídias sociais hoje em dia (Facebook,
Instagram, como exemplos) aos indivíduos para se projetarem vinculados sempre ao sucesso
e à necessidade do reconhecimento dos outros sobre si. O quanto nesta atual sociedade, de
realidade conectada e virtual, à medida que estas características se tornam uma exigência
social, nos levam a construirmos mitomanias, a negarmos a realidade imanente e a nos
refugiarmos apenas na imagem que construímos para nós mesmos e que pretendemos, a todo
custo, mostrar aos outros? Eis aqui uma questão que pode nos ajudar a compreender
inúmeros casos com os quais nos defrontamos em nossas clínicas.

122
Entre outras características destes indivíduos, já que são altamente influenciáveis
pelo afeto dos outros e seu senso de autodireção seguir sempre a necessidade de chamarem a
atenção para si, são geralmente egocêntricas, autoindulgentes, com comportamentos
persistentes e manipulativos para atingirem sempre seus próprios interesses.
As questões de gênero, dos papéis e expectativas sociais relacionadas aos homens e
mulheres também influenciam neste tipo de transtorno, já que aos homens a imagem de
sucesso tende a exigir masculinidade, habilidades físicas, poder financeiro etc.; e das
mulheres, das quais a tendência social é se esperar a feminilidade, sensualidade e
acolhimento afetivo, podemos entender o quanto as pessoas mimetizam e se esforçam para
assumirem comportamentos que se ajustem a estas expectativas.
Indivíduos com Transtorno de Personalidade Histriônica usam sua aparência física,
agindo de forma inadequadamente sedutora ou provocadora, para chamar a atenção dos
outros. Eles são muitas vezes dramáticos, mostram-se entusiastas com os assuntos de
interesse do seu grupo, paqueradores, gostam de encantar novos conhecidos, não apenas
com interesses românticos, mas em muitos contextos, por exemplo no trabalho, na escola, na
igreja ou em qualquer lugar em que se formem suas relações interpessoais, necessitam
sempre se fazerem queridos e admirados. Eles procuram impressionar os outros inclusive
com sua aparência e, assim, muitas vezes ficam preocupados se a forma como aparecem aos
outros está vinculada à moda e ao status.
Em relação ao comportamento interpessoal, a expressão da emoção pode ser
superficial (desligada e ligada muito rapidamente) e exagerada. Alcançar intimidade
emocional ou sexual pode ser difícil. Os pacientes podem, muitas vezes sem ter ciência
disso, desempenharem um papel no qual se escondem atrás dele como o de vítima, ou ao
contrário, de destemido (ou como diríamos melhor: machão) para conseguirem o que
realmente querem e esconderem o que realmente são. Eles podem tentar controlar seus
parceiros usando sedução ou manipulações emocionais e, com o tempo, tornarem-se muito
dependentes do parceiro. Eles tendem a confiar especialmente em figuras de autoridade que,
pensam, podem ser capazes de resolver todos os seus problemas. Frequentemente acham que
os relacionamentos são mais próximos do que realmente são.
Fazem questão de expressar suas opiniões, mesmo que não possuam muitas bases
para sustentá-las e, ao mesmo tempo, são facilmente influenciados por outros e pelas
tendências momentâneas. Anseiam por novidades e tendem a se aborrecer facilmente.
Assim, podem trocar de emprego e amigos com frequência. A gratificação ser adiada é
muito frustrante para eles, então suas ações são muitas vezes motivadas pela obtenção de

123
satisfação imediata, o que nos leva a pensar sobre os riscos da associação de prazer com o
álcool e outras drogas71. Considerando as múltiplas etiologias relacionadas, os Transtornos
de Personalidade Borderline, Narcisista, Antissocial e Dependente ocorrem muitas vezes de
forma concomitante ao de Personalidade Histriônica, o que nos leva justamente a também
focá-los neste tópico de tratamento, assim como as questões dos delírios, sobretudo os de
grandeza.
Os indivíduos com o Transtorno de Personalidade Narcisista72 também buscam
constantemente atenção, querem sentir-se sempre admirados ou enaltecidos, possuem
orgulho excessivo com as conquistas, falta relativa de demonstração das emoções e desdém
pelas sensibilidades dos outros. Possuem um senso exagerado de auto importância e falta de
empatia, esperam serem reconhecidos como superiores, mesmo sem conquistas que
garantam isso, costumam fantasiar muito sobre o sucesso, poder, brilho, beleza ou o
companheiro perfeito. Procuram monopolizar as conversas e menosprezar as pessoas as
quais elas percebem como inferiores, esperar favores especiais e o cumprimento
inquestionável de suas expectativas. Apresentam uma incapacidade ou falta de vontade para
reconhecer as necessidades e sentimentos dos outros, possuem inveja dos e acreditam que os
outros os invejam, comportam-se de maneira arrogante, parecendo vaidosos, pretensiosos e
pouco assertivos, insistem em ter o melhor de tudo.
Freud postula que um ser humano tem originalmente um narcisismo primário, o qual,
em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua escolha objetal (o objeto da
libido, do prazer), diz que o encanto de uma criança reside em grande medida em seu
narcisismo, seu autocontentamento e inacessibilidade. O desenvolvimento do ego consiste
justamente em um afastamento do narcisismo primário, esse afastamento é ocasionado pelo
deslocamento da libido em direção a um ideal do ego imposta de fora, sendo a satisfação
provocada pela realização desse ideal, no transtorno de personalidade narcisista, a fonte
de prazer permanece e circunda sempre em torno da própria pessoa.
O mito de Narciso

Narciso era um jovem de singular beleza, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa


Liríope.
No dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias vaticinou que Narciso teria vida
longa desde que jamais contemplasse a própria figura.

71
Esses apontamentos e os que se seguem sobre as características dos Transtornos de Personalidade foram
feitos baseados no MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS DSM-5®,
5ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2014.
72

124
Indiferente aos sentimentos alheios, Narciso desprezou o amor da ninfa – e seu
egoísmo provocou o castigo dos deuses. Ao observar o reflexo de seu rosto nas águas de
uma fonte, apaixonou-se pela própria imagem e ficou a contemplá-la até consumir-se. A
flor conhecida pelo nome de Narciso nasceu, então, no lugar onde morrera.
Na psiquiatria e particularmente na psicanálise, o
termo narcisismo designa a condição mórbida do indivíduo
que tem interesse exagerado por si mesmo e pelo próprio
corpo.

O Transtorno da Personalidade Borderline distingue-se


por auto destrutividade, ataques de raiva nos relacionamentos
íntimos e sentimentos crônicos de vazio profundo e solidão. Estas
pessoas buscam a atenção dos cuidadores, por medo de abandono. A
relação com intolerância a ficar só e a necessidade de ter outras
pessoas ao redor, levam a esforços desesperados para evitar o
abandono e podem incluir ações impulsivas como automutilação ou
comportamentos suicidas, entretanto, o indivíduo reage com Fig.
sentimentos de vazio emocional, fúria e exigências sobre os outros. 6
Ideias ou ilusões paranoides também podem estar presentes nos
transtornos da personalidade borderline e esquizotípica.
No Transtorno de Personalidade Dependente, os comportamentos de dependência
e submissão formam-se com o intuito de conseguir cuidado e derivam de uma autopercepção
de não ser capaz de funcionar adequadamente sem a ajuda de outros, são mais ansiosos e
inibidos e podem ir a extremos para conseguir cuidado e apoio de outros, a ponto até de
voluntariar-se para tarefas desagradáveis caso esse comportamento possa proporcionar a
atenção de que precisam. Estão dispostos a se submeter ao que os outros desejam, mesmo
que as demandas não sejam razoáveis. Sua necessidade de manter um vínculo importante
resultará frequentemente em relacionamentos desequilibrados ou distorcidos. Essas pessoas
podem fazer sacrifícios extraordinários ou tolerar abuso verbal, físico ou sexual. Pessoas
com esse transtorno podem sentirem-se desconfortáveis ou desamparadas quando sós devido
aos temores exagerados de não serem capazes de cuidar de si mesmas. Vão se “grudar” a
outros apenas para evitar a solidão, mesmo sem ter interesse ou envolvimento com o que
está acontecendo.
O Transtorno de Personalidade Antissocial também apresenta algumas
características do CAP. Podem ter autoconceito inflado e arrogante, serem excessivamente
opiniáticos, autoconfiantes ou convencidos. Podem exibir um charme desinibido e

125
superficial, serem muito volúveis e verbalmente fluentes (p. ex., usar termos técnicos ou
jargão que podem impressionar uma pessoa que desconhece o assunto).
Estes transtornos de comportamento, os quais podem se manifestar
concomitantemente, podem nos ajudar a formular diagnósticos e acompanhamentos
individuais, segundo a singularidade de cada caso. Nosso papel é justamente compreender e
auxiliar nossos pacientes a estabelecerem seu equilíbrio possível, a reverem e
reconsiderarem seus mecanismos de defesa e valores. Perceberem que a necessidade de se
sentirem sempre em evidência, de estarem associados apenas aos melhores, escondem uma
profunda insegurança, ilusão e carência. As mídias instrumentalizadas pela psicologia de
massa bombardeiam a consciência ingênua desde a infância com promessas de felicidade
através de infinitos produtos e da competitividade, ancorada na moral meritocrática, justifica
e premia os comportamentos egocêntricos e individualistas. Apresentam-nos artistas,
jogadores de futebol, milionários, endeusados e representantes da felicidade e do sucesso
que todos devem alcançar...
É necessária uma reflexão profunda para compreendermos que a felicidade e o
sucesso estão dentro de nós, ligados à satisfação de talvez possuir uma família unida,
amigos, o carinho de um amor verdadeiro e o acolhimento de sermos aceitos como somos.
Realmente, não necessitamos que todos batam palmas. Nas ficções, os artistas representam
papéis em que, como protagonistas, todo o enredo gira em torno deles, mas na vida real, não
se atinge a felicidade e a plenitude assim. Na realidade, por trás das câmeras, resta apenas o
humano, igual a todos nós. Como dissemos, a palavra histriônico vem de histrião, ou seja,
falseador. Ao tentarmos passar constantemente uma imagem de sucesso, estamos enganando
principalmente a nós mesmos. Entendemos que é preciso coragem para se conhecer e parar
de se enganar, para rever o que pode oferecer segurança afetiva de maneira saudável.
Cada um de nós possui uma singularidade, características próprias e uma maneira
pessoal de ser realmente feliz. Falseamos aos outros e a nós mesmos tentando acompanhar
todas as modas, gostar daquilo que as propagandas ordenam que é de bom gosto, estar por
dentro de todas as novidades da tecnologia e da cultura. Evidentemente às vezes podemos
nos destacar, nossa estrela brilhar mais, porém, não cotidianamente. No dia a dia nossa
felicidade profunda está dentro de nossos corações, nos permitindo viver com autenticidade,
apreciando também o brilho de outras pessoas.
A noite nos mostra a amplidão do universo, onde milhões de estrelas brilham. Há
espaço para todas. Algumas que nos parecem tão grandes e são apenas planetas de nosso
sistema em que seu brilho são apenas reflexos do sol, porém outras, que nos aparecem

126
pequenas e singelas, são na verdade galáxias com o brilho de milhões de estrelas. A
astrofísica ensina que todos somos feitos da matéria das estrelas. Naturalmente, todos já
nascemos para brilhar. Devemos amar e aceitar nosso verdadeiro brilho pessoal, essa é a
tarefa que empreendemos com cada paciente em nossas Clínicas Estâncias.
Disciplina

“A disciplina é a mãe do sucesso”


Ésquilo73

A disciplina aparece em nossos tópicos de tratamento como um conceito


fundamental a ser compreendido e praticado para o sucesso do processo terapêutico. A
palavra disciplina, originária do latim, significa “instrução, conhecimento, matéria a ser
ensinada”. Deriva de discipulus, “aluno, aquele que aprende”, do verbo discere, “aprender”.
Ou seja, sem ela não há ordem, nem organização, não há como aprendermos algo. Muitas
vezes se confunde disciplina com repressão, quando focamos apenas em seu aspecto
negativo ou de obrigatoriedade, mas isso é um grande equívoco, pois apenas através dela
podemos organizar nossas dificuldades e limites, cumprir as exigências da realidade e traçar
as metas para alcançarmos a autonomia e a realização do que desejamos: a disciplina é uma
virtude de liberdade e não de escravidão.
Sujeitar-se conscientemente a uma norma é aprender a criar para si uma
autodisciplina. A postura de nos mantermos constantes no cumprimento das regras que
compreendemos como necessárias, bem como o descondicionamento dos comportamentos
viciosos, são ferramentas de libertação. Cada um de nossos tópicos de tratamento procuram
justamente auxiliar o paciente a fortalecer sua disciplina na busca da superação de suas
dificuldades. Nossa convicção com o que queremos e atitude de comprometimento no
que diz respeito ao seguimento de um plano ou agenda, exige consciência e vontade. A
disciplina, sobretudo no que concerne o paciente a aderir ao tratamento proposto, deve ser
resultado de uma decisão refletida, e sua intenção estar aliada a algo que conscientemente se
quer ou precisa realizar.
Para se criar uma disciplina junto a essa convicção e atitude de comprometimento,
também é preciso que sejam reforçadas e repetidas através do cotidiano terapêutico tanto

73
Dramaturgo Ateniense -525 - -456 a.C. Ésquilo citado em Dōdōnē - Volume 19, Partes 2-3 - Página 173.

127
moções disciplinares (de agendas, horários e regras a serem seguidas), quanto às motivações
da própria psique, pois, “...o sistema nervoso tem a mais decidida inclinação para a fuga da
dor74”. Ou seja, nossa mente deseja tranquilidade e possui a tendência para abandonar o que
lhe traz alguma tensão ou causa desprazer, por isso desistimos tanto e acabamos por nos
desviar de rotinas importantes. É mais fácil acordar todos os dias e não arrumar a cama, do
que levantar, lembrar de arrumar a cama e assim começar a atividade cotidiana. Essa tomada
de decisão consciente é a incorporação da disciplina.
Muitas de nossas atividades diárias são hábitos (ou práticas inconscientes) pois o
nosso cérebro tem a tendência de criar maneiras para se livrar do esforço de “ter que pensar”
e entra em “modo automático”75 Como já dissemos, compreendemos que somos regidos
pela busca de satisfação e que também possuímos mecanismos fisiológicos que reforçam a
procura da repetição dos prazeres que experimentamos, isso nos permite identificarmos e
entendermos melhor a adoção de comportamentos viciosos tanto quanto a educação de
hábitos saudáveis. Quando se trata de disciplina o nosso próprio cérebro inconsciente pode
trabalhar sabotando nossos esforços, pois ele quer descansar, ficar quietinho sem
obrigações, em sua zona de conforto, é o querer algo (objeto de desejo, pulsão de vida) que
motiva a sair dela. Aprender, prazer e disciplina precisam estar interligados na busca da
realização de qualquer objetivo.
Os hábitos são conjuntos de instruções, que nosso cérebro coloca em ação sempre
que precisa desempenhar alguma atividade. Quando escovamos os dentes, por exemplo,
pegamos a escova, colocamos a pasta e escovamos de maneira automática. Praticamente não
pensamos em como vamos escovar, não pensamos em como apertar o tubo de pasta e nem
nos movimentos. Acontecem neste simples processo centenas de micro ações das quais não
temos consciência, o cérebro simplesmente começa a “ler as instruções armazenadas” e faz
acontecer, economizando a energia de ter que pensar. Nos reeducarmos para simplesmente
melhorar a escovação diária passa pelo reconhecimento dos vícios, a compreensão de
maneiras adequadas de fazê-lo e a disciplina é a ferramenta para formar e manter novos
comportamentos habituais mais saudáveis. É o nosso desejo (possuir um belo sorriso e
melhorar a autoestima, por exemplo) que nos motivará a incorporar essa disciplina. Da
mesma forma: O que eu quero? Por que eu quero? Devem ser questões a serem refletidas

74
“Projeto para uma psicologia científica” (FREUD, 1895 [1950]. O qual se trata de um rascunho que Freud
escreveu durante uma viagem de trem, após um encontro com Fliess, que acabou por não ser publicado,
enquanto Freud vivia.
75
Conhecido desde 1929, quando Hans Berger, inventou o eletroencefalograma e estabeleceu a sigla DMN
(default mode network, em português, “rede do modo padrão”).

128
junto aos pacientes para que estes possam aderir realmente à terapia, elas auxiliarão na
significação do desejo, a motivação do processo terapêutico.
Também é importante encontrarmos um jeito de extrair prazer enquanto cumprimos
as exigências de uma determinada disciplina (se é pra ser alimentação saudável, que seja
também saborosa) já que a repetição será necessária até que a ação se torne habitual. Assim,
a inserção de hábitos saudáveis se associará a prazeres estáveis, os quais poderão se
sedimentar mais facilmente junto ao nosso cotidiano.
Por exemplo, se estabeleço que desejo aprender um novo idioma, este desejo é o que me
motiva, é o que me faz sonhar com as alegrias que poderá me trazer. Se eu me
autodisciplinar a aprender uma, duas ou dez palavras por dia, posso projetar o quanto
aprenderei em um ano. Resta pensar na forma de estabelecer a disciplina de aprendizado da
maneira mais agradável e prazerosa possível, por exemplo, decorar as palavras enquanto
espero o ônibus, utilizando um livro ou aplicativo, entrando em chats etc. Ou se
pensássemos sobre caminhar, ou correr, para fins de saúde física. Além das regras de
horário, é importante planejar o prazer de fazer essa caminhada: de preferência junto a um
nascer ou pôr do sol, na praia, mas se não for possível, com um fone de ouvido, apreciando
as músicas preferidas, na esteira de casa, já está bom. Ou seja, sistematizá-la da maneira
mais agradável para si mesmo, irá favorecer a aderência à disciplina.
Essa visão proativa anima os esforços de se estabelecer. Criar um procedimento
eficaz e prazeroso são passos para podermos inserir novas programações em nosso cérebro e
formular conscientemente novas disciplinas de comportamento.
Em nosso caso, especialíssimo, pois traz a questão da disciplina em uma clínica de
tratamento, com a proposta de reabilitação social, fundamentada em princípios humanistas,
as questões são mais delicadas e profundas, carecendo de um cuidado constantemente
refletido e sempre à luz da Ciência e dos Direitos Humanos.
Primeiramente na pré-disposição de nossos profissionais, em todos os setores,
estando à serviço terapêutico, em suas distintas funções. Entendemos que é no aprendizado
do cuidado de si que, necessariamente, se cuidará dos outros. Esta filosofia consolida uma
relação de cuidado estendida primeiramente aos profissionais e colaboradores, da parte da
instituição, de forma que também se sintam acolhidos e cuidados 76, para que este conceito de
cuidado seja nosso discurso e efetivamente o grande objetivo de nossa disciplina: o bem-
estar e a recuperação de nossos pacientes.

76
O respeito e os diferentes estímulos e treinamentos que procuramos oferecer, assim como as diferentes
reuniões e CQCs, entre todos os setores, em nossas Estâncias Clínicas, atestam isso.

129
Assim, é sob o cuidado terapêutico que estabelecemos nossas ações disciplinares
quanto às normas, horários e agendas. É sob esta idoneidade profissional que procuramos
prestar nossos serviços. A nossa proposta humanista pode ser mais bem compreendida em
nosso tópico Terapia, onde expressamos especificamente sobre nossos princípios,
fundamentos e filosofia. Buscamos considerar as questões trazidas pelo movimentos
antimanicomiais, ao mesmo tempo que propomos um modelo mais humanizado de
tratamento, em que reconhecemos a necessidade de um breve período de internação em um
ambiente preparado e acolhedor, em que o tempo deverá estar vinculado à sua necessidade
específica de cada paciente, à partir da sua história de vida, respeitando sempre sua condição
humana.
Juntamente a esses princípios, nossa proposta disciplinar procura desenvolver a
conscientização do paciente sobre a doença que lhe aflige, para sequencialmente se
construir terapeuticamente estratégias para ajudá-lo a possuir forças para controlar essa
doença. Que perceba que pode, que compreenda que sua própria vontade é um fator
determinante em seu processo de cura, pois, junto à sua corajosa decisão de melhorar, deve
estar a importância de se amar, de “querer o melhor para si”. Esta é parte da essência de
nossa proposta terapêutica: uma disciplina que não está submetida a uma ordenação religiosa
ou confessionária, nem tampouco punitiva ou espartana, no sentido estrito, mas sim à
consciência e bom senso, à liberdade e responsabilidade de aprender a cuidar de si
respeitando os outros e o meio em que vive.
Mas observemos um código de conduta militar77:
"Art. 9º. A disciplina militar é o exato cumprimento dos deveres do militar
estadual, traduzindo-se na rigorosa observância e o acatamento integral das leis,
regulamentos, normas e ordens por parte de todos e de cada um dos integrantes da
Corporação Militar".
Ele fornece um exemplo de disciplina que aparentemente é apenas rígida e de caráter
inflexível, onde se exige a rigorosa observância e acatamento integral das leis, porém diz-
se, no mesmo regulamento que a disciplina se obtém:
“pela convicção da missão a cumprir e mantém-se pelo prestígio que nasce dos
princípios de justiça empregados, do respeito pelos direitos de todos, do
cumprimento exato dos deveres, do saber, da correção de proceder e da estima
recíproca”.

Poderíamos utilizar como exemplo um estatuto de comportamento religioso, ou de


decoro político. As normas precisam ser estabelecidas e seguidas para o funcionamento de

77
Código Disciplinar da Polícia Militar do Ceará e do Corpo de Bombeiros do Estado do Ceará (Lei do Estado
do Ceará n0 13.407, de 21 de novembro de 2003).

130
qualquer instituição, mesmo a família, como exemplo, mas é apenas a convicção de seus
integrantes nos princípios de justiça e no respeito pelos direitos de todos que é possível a
disciplina realmente existir. Ela impõe-se por uma aceitação e uma coação de ordem moral,
isto é, a disciplina não se alcança através da prática de meios violentos ou repressivos,
porque estes geram somente o medo e obediência cega. Quando o paciente compreende e
aceita quanto ao que dele se espera, ele aceita melhor ajustar-se e ser disciplinado. Nos leva
a entender que deve haver um forte empenhamento, clareza e justiça da parte de quem tem
de instruir para que não surjam dúvidas em quem deve cumprir. O rigor excessivo na
aplicação da justiça provoca a indisciplina, tanto como uma muito permissiva.
A disciplina exige bom senso, moderação, cautela, rigor e amizade. Sabemos através da
experiência que adquirimos em nossas clínicas que um bom cuidador, enfermeiro, terapeuta,
deve ter em mente e na prática esses valores, para alcançarem um trato de excelência em sua
relação com os pacientes.
É importante reiterar também que a disciplina em nossas clínicas deve possuir um
caráter humanista, no tocante a considerar as lutas e conquistas dos movimentos
antimanicomiais, caminhando junto aos novos paradigmas da saúde mental, atentos para não
recairmos apenas em seu aspecto negativo, como Michel Foucault, cita em seu livro Vigiar e
punir78:
“A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A
disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma
palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma
capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita”.

Nossa intenção disciplinar não pode ser jamais a simples docilização dos corpos,
onde esperamos a obediência automática às regras que propomos, próprias de uma visão em
que os objetivos são a exclusão da personalidade na padronização dos comportamentos e a
submissão incondicional do paciente ao terapeuta, como novamente Foucault nos avisa79:

“Isolamento, interrogatório particular ou público, tratamentos - punições como a


ducha, pregações morais, encorajamentos ou repreensões, disciplina rigorosa,
trabalho obrigatório, recompensa, relações de vassalagem, de posse, de
domesticidade e às vezes de servidão entre doente e médico – tudo isto tinha por
função fazer do personagem do médico o “mestre da loucura”, aquele que a faz
se manifestar em sua verdade quando ela se esconde, quando permanece
soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e absorve depois de a ter
sabiamente desencadeado”.

78
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, p127, 1994.
79
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 14ª ed., Rio de Janeiro: Graal, p122, 1979.

131
Nossa tarefa é realmente muito mais complexa, mas não ingrata. Assim como os pais
que ao educarem seus filhos gastam mais tempo explicando as obrigações de forma que eles
compreendam o motivo das regras e internalizem esse conhecimento como o melhor para si
mesmos, de maneira que a incorporem em seus hábitos, construindo assim sua
autodisciplina, em nossas clínicas nossas moções disciplinares também são voltadas para a
educação e autonomia, as quais são mais trabalhosas, mas estão em acordo com nossa
proposta humanista.
Novamente, a disciplina deve ser uma virtude de liberdade e não de escravidão.
Estabelecemos um serviço de cuidado e educação. A terapia advém do grego
therapeia (do verbo therapeúo) que significa prestar cuidados médicos, tratamento e a
educação do latim ex-ducere, que significa saber se conduzir, ambos traduzem “o fio do
prumo” de nossa filosofia e de nossas práticas que envolvem principalmente a psicanálise e
a reeducação dos hábitos. Platão pensava que "a essência de toda a verdadeira educação
ou paideia é a que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o
ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento" 80. Em nossa “paideia” nas
Estâncias Clínicas, nosso conceito é similar, pois procuramos auxiliar sua reabilitação social
de forma integral, enlaçando as potencialidades mentais e físicas em um caráter bem
formado, de tal maneira que possa ter suas virtudes desenvolvidas e ser uma pessoa e um
cidadão melhor.
No Brasil, atualmente a Educação possui como referência a BNCC (Base Nacional
Comum Curricular), ela traz o processo educacional focado nas habilidades e competências
do educando:
“Mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas,
cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas
da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.”81

É interessante percebermos como a educação na atualidade valoriza os aspectos


psicofísicos e sociais dos educandos, estabelecendo em seus eixos o Projeto de Vida, as
Disciplina Eletivas e as Competências Socioemocionais, como podemos identificar
diretamente em suas competências gerais, sobretudo nos itens 8,9 e 1082:

8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional,


compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e
as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.
80
JAEGER, W. Paidéia, a Formação do Homem Grego. Martins Fontes, 1995, p. 147
81
BNCC. Educação é a base. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Pg. 09.
82
Idem.

132
9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação,
fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos
humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de
grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem
preconceitos de qualquer natureza.
10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade,
flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em
princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.

Nossa proposta terapêutica está justamente alinhada a estes eixos, entre eles
destacamos como exemplo, o do ensino em arte. Ana Mae Tavares Bastos Barbosa 83 é uma
das principais referências no Brasil para o ensino da Arte nas escolas, tendo sido a primeira
brasileira com doutorado em Arte-educação, defendido em 1977, na Universidade de
Boston, pelo departamento de Educação Humanística (Humanistic Education). Seus
conceitos são estruturados da seguinte forma:

Este tripé (Fig. 7) está associado às seis


dimensões do ensino de Arte, o qual
sucintamente resumimos em:

● Apreciar – Estesia e fruição;

● Contextualizar - reflexão e crítica;

● Praticar – criação e expressão.

Podemos relacioná-lo justamente aos conceitos humanistas e à disciplina que


pretendemos desenvolver junto aos nossos pacientes. Estes três momentos do aprendizado
ocorrem simultaneamente e não podem estar dissociados para alcançarmos um aprendizado
significativo. Em nossas Clínicas Estância, da mesma forma, nossas palestras educativas
através de nossos tópicos de tratamento, também contemplam os processos de sentir, refletir
e praticar, sejam na terapia ocupacional, nas atividades grupais, nas recreações, no Rio
aberto, nas saídas de ressocialização, nos Psicodramas etc., todas estas atividades
contemplam em si, estes mesmos valores, para que não estejam desprovidas de significado e
intenção terapêuticas.
Durante muitos anos, o ensino de Arte se resumiu a tarefas pouco criativas e
marcadamente repetitivas, também possuímos o conhecimento de disciplinas rígidas e

83
Nascida no Rio de Janeiro, em 17 de julho de 1936) é uma educadora brasileira, pioneira em arte-
educação por sua sistematização da Proposta Triangular.

133
dogmáticas nas propostas terapêuticas de muitas clínicas, sobretudo de reabilitação.
Acreditamos que a disciplina que estimulamos a praticar deve oferecer instrumentos para
que o paciente se eduque com ela, mas não se “engesse” nela.
Enfim, compreendemos que é sempre através de sua consciência que o paciente pode
rever e modificar sua condição, desenvolver habilidades de controle e superação de suas
dificuldades conquistando sua autorrealização. A autodisciplina reflexiva e consciente é
essencial para que consiga atingir seus objetivos, é o que permitirá o cumprimento das
responsabilidades e compromissos que garantirão o sucesso do seu tratamento. A partir da
sua própria anuência, o paciente, educando-se em sua disciplina, construirá as ferramentas
para provocar mudança e então criar hábitos saudáveis. Ela será um instrumento para a
conquista de sua autonomia, o que lhe permitirá seguir com perseverança o seu auto
propósito de superação, apesar das circunstâncias adversas que possam surgir. É na prática
diária que um músico ou atleta alcança sua excelência, é com a mesma disciplina que o
indivíduo se torna mestre de si mesmo.

134
Recuperação e Resiliência

“Quando eu estiver contigo no fim do dia, poderás ver as


minhas cicatrizes, e então saberás que eu me feri e
também me curei.”
Rabindranath Tagore

A palavra resiliência origina-se do latim, resiliens (particípio passado de resilire,


“ricochetear, pular de volta”, de re, “para trás”, mais salire, “pular”), ou resílio, (re + salio,
que significa "ser elástico"). Surgiu no cenário científico moderno dentro dos termos da
Física e da Engenharia: a resiliência de um material é a energia de deformação máxima que
ele é capaz de armazenar sem sofrer deformações permanentes. Isto é, a resiliência refere-se
à capacidade de um material absorver energia sem sofrer deformação plástica ou
permanente, sua predisposição para se recuperar de algum impacto sofrido e voltar ao que se
era antes da colisão. Podemos pensar numa bola que é pressionada, ou na corda de um
violino que é tensionada e depois retorna ao seu estado normal. Diferente da resistência, ela
está ligada ao conceito físico da elasticidade. Uma ideia simultânea de resistência e
superação. A resiliência então, aparece em nossos tópicos e práticas de tratamento
associados à capacidade humana de recuperação, ou seja, de ser capaz de recuperar o seu
eu original, anterior ao problema que lhe tirou do caminho de felicidade planejado, da
pulsão de vida que movia a criança em direção ao adulto que desejava ser.
O termo vem sendo vastamente estudado e utilizado no campo da psicologia e
terapia. Já no período do final da Segunda Guerra Mundial, Anna Freud, René Spitz ,
Norman Garmezy, assim como Emmy Werner com 700 crianças do Havaí na década de 50,
foram pioneiros na pesquisa sobre o assunto trabalhando justamente com crianças que
viveram situações traumáticas, em alto risco de vida e vulnerabilidade. O destaque de
algumas dessas crianças resilientes “vulneráveis, porém invencíveis84 trouxeram as bases
das reflexões sobre o conceito atual de resiliência: Como elas conseguiram suportar e
reverter de maneira positiva as dificuldades que viveram?

84
Referência ao livro de Werner e Smith: Vulnerable but invencible: A longitudinal study of resilient children
and youth, com o prefácio de Norman Garmezy.

135
Vamos retomar a figura de Boris Cyrulnik85 como uma referência para nossas
reflexões. De família judia, passou parte de sua infância nos campos de concentração na
Alemanha, no período da 2ª Guerra Mundial e foi o único sobrevivente de sua família. Após
a guerra vagou por abrigos e acabou indo morar em uma fazenda de beneficências, onde foi
analfabeto até a adolescência. Felizmente, alguns vizinhos desse novo ciclo de vida lhe
proporcionaram a possibilidade de educar-se e crescer superando seu passado. Apesar das
adversidades, conseguiu ingressar na universidade, cursou a faculdade de medicina e se
formou médico neuropsiquiatra e psicanalista. Possui vários artigos e livros (como exemplos
podemos citar: Nutrir os afetos, Corra a vida te chama, Os patinhos feios, Os alimentos
afetivos o amor que nos cura, Falar de amor à beira do abismo, Auto biografia de um
espantalho, entre outros traduzidos para o português) em que oferece grandes contribuições
para a compreensão e aplicação dos conceitos de resiliência.
Aponta a importância do outro e do suporte afetivo no processo do desenvolvimento
de habilidades de resiliência. Explica, por exemplo, o que aconteceu durante a guerra no
Líbano: Beirute foi uma cidade cruelmente bombardeada, com muitas mortes e meses de
guerra, apesar disso, os estudos de campo mostraram que as crianças tinham muito menos
casos de síndrome pós-traumática do que a cidade de Trípoli. A própria situação de Beirute
fez aumentar a solidariedade e o contato familiar, enquanto em Trípoli as crianças estavam
sofrendo muito mais com o abandono emocional e fraternal. Percebeu que o suporte afetivo
fazia diferença na recuperação pós-traumática.
Também surpreendente é o seu estudo controverso sobre as crianças com problemas
de abuso sexual na família, no qual verificou-se que os traumas não vêm apenas do fato do
abuso em si, mas da falta de afeto, confiança e clareza na atmosfera da família, em que a
criança se vê sozinha e muitas vezes desacreditada. Mesmo diante de um sofrimento muito
sério, a psique, será tão flexível que, com ingredientes certos de contato humano, empatia e
otimismo poderão trazer à tona os comportamentos resilientes e facilitar o processo de
recuperação. Daqui podemos entender porque a resiliência, além de ser um de nossos
tópicos de tratamento, em nossas Clínicas Estâncias, desde a atmosfera de acolhimento, de
aceitação e pertencimento, juntamente com o cultivo de um ambiente afetivo positivo,
formam conceitos e práticas fundamentais em nossa proposta de tratamento. O Boris
Cyrulnik diz que na infância, não é possível afirmar que uma criança é mais resiliente que
outra, mas podemos dizer que quando no ambiente de uma criança lhe são oferecidos
85
Nasceu em Bordeaux - França, a 26 de Julho 1937. É considerado um dos mais importantes pesquisadores
sobre a resiliência.

136
segurança e clareza afetiva, esta criança tem mais probabilidade de desenvolver um processo
de resiliência.
Da mesma forma, entendemos que é preciso fortalecer as condições internas do
paciente. Favorecê-lo a sentir-se em um ambiente seguro, para que tenha mais facilidade
para falar, se expressar e fortalecer seu processo de recuperação. Reforçamos a identidade
sadia da pessoa, que é muito mais ampla e está além de sua condição e passado de
dificuldade, de maneira a não recalcar o trauma sofrido, mas de fortalecer sua coragem em
aceitar sua própria história de vida e se refazer a partir dela: “Quando eu estiver contigo no
fim do dia, poderás ver as minhas cicatrizes, e então saberás que eu me feri e também me
curei”, como diz Rabindranath Tagore. Assim como as experiências de Boris Cyrulnik,
acreditamos que nossos pacientes podem fortalecer sua personalidade de maneira positiva,
superar os traumatismos que sofreu e elaborar sua resiliência, sua capacidade de
recuperação.
Sobre os conceitos de resiliência vemos que hoje formam-se correntes de pesquisa,
como a norte-americana, a europeia e a latino-americana. Variam seus apontamentos em
relação ao papel do indivíduo ou do meio. Nós buscamos sintetizar estes conceitos e
compreendemos que o indivíduo em seu “impulso de vida”, “é capaz de mudar de olhar”
sobre as dificuldades que experimentou, mas, por trás da pessoa resiliente, existe sempre
uma outra pessoa (ou instituição) que oferece um apoio afetivo e cognitivo e lhe ajuda.
Finalmente, Boris Cyrulnik também toca no assunto de que alguém de fora do
trauma precisa ser esse apoio. Alguém que acolhe e entende o paciente em questão, pois
numa família traumatizada, todos são afetados e não conseguirão fornecer a neutralidade
necessária para o tratamento. Em nossas Clínicas Estância, o nosso Coping, ou seja, o
conjunto das estratégias que utilizamos para as pessoas adaptarem-se, ressignificarem e
superarem as circunstâncias adversas ou estressantes, reconsidera e aplica, estes mesmos
conceitos.
Quando refletimos sobre o eu, o ego enquanto instância entre o id e o superego, em
que a consciência não “é a única dona da casa”, costumamos utilizar como metáfora em
nossas palestras, imaginarmos um imóvel que é nosso, mas foi ocupado por outros
“moradores” e nossa consciência deve reocupá-lo. Aquele espaço interno que foi tomado de
nós, seja por um trauma, seja por vícios, deve ser reconquistado. A recuperação deve estar
ligada à reconquista de nós mesmos, à reconquista da autoimagem (self) que desejamos. No
Dicionário de Psicologia da APA (VANDERBOS, 2010), o trauma é definido como:

137
Evento no qual uma pessoa testemunha ou vivencia uma ameaça a sua própria vida
ou segurança física ou a de outros e experimenta medo, terror ou impotência. O
evento também pode causar dissociação, confusão e a perda da sensação de
segurança. Eventos traumáticos desafiam a visão de mundo de um indivíduo como
um lugar justo, seguro e previsível. Traumas causados por comportamento humano
(p. ex., estupro, assalto, acidentes tóxicos) comumente têm mais impacto psicológico
do que aqueles causados pela natureza (p. ex., terremotos) (p. 992).

Já o trauma psíquico é uma “experiência que inflige dano à psique, frequentemente


de natureza duradoura. Exemplos são: estupro e abuso de criança" (VANDERBOS, 2010,
p. 993)86. Diante de histórias de vida, geralmente carregadas de eventos traumáticos,
propomos em nossos processos de tratamentos essa recuperação do ser antes do trauma, do
que lhe tirou do caminho da felicidade e da qualidade de vida. Os exemplos sobre resiliência
muitas vezes utilizam da imagem de uma mola, que sofre uma tensão e depois volta o seu
estado original. Tendo em vista que no campo humano ninguém retorna igual após um
trauma, pois sempre ficam cicatrizes no psiquismo, (retomando novamente nossa epígrafe:
poderás ver as minhas cicatrizes, e então saberás que eu me feri e também me curei.)
procuramos auxiliar nossos pacientes a superar seus traumas sem, no entanto, recalcá-los,
oferecendo um suporte afetivo justamente para que reelaborem sua capacidade de
resiliência.
A partir do conceito de resiliência como uma capacidade humana universal, evolutiva
e ativa de superar as adversidades da vida, e muitas vezes, por essas mesmas adversidades
poder ser fortalecida, consideremos eventos na história social e poderíamos destacar
inúmeros exemplos que podem ser utilizados como metáforas para os casos particulares. A
perseguição e a tentativa de extermínio em massa dos judeus, pelos nazistas é um destes
exemplos. Uma guerra sem fronteiras havia sido declarada pela Alemanha de Hitler, o fato
colocava os judeus numa situação extremamente difícil. Eles não possuíam um Estado,
tampouco forças de combate treinadas. Eram uma minoria civil desarmada, espalhada em
todos os países da Europa. Hoje, temos provas e testemunhos de que houve centenas de atos
de resistência judaica aos nazistas, devemos reconsiderar a definição do que deve ser
compreendido como “resistência” a um poder opressor: por momentos sermos capazes de
suportar as tensões que sofremos, enquanto não possamos modificá-las: aprendermos a
aceitar e entender os limites impostos, utilizarmos das ferramentas da disciplina para
sobrevivermos e nos fortalecermos, para então superá-los.
Também podemos utilizar os exemplos da própria Alemanha em se recuperar após a
derrota na segunda guerra mundial e hoje ser um dos países mais desenvolvidos da Europa,
86
VANDERBOS, G. R. (Org.). Dicionário de psicologia da APA. Tradução: BUENO, D.; VERONESE, M. A.
V.; MONTEIRO, M. C. / Revisão Técnica: NUNES, M. L. T.; FRIZZO, G. B. Porto Alegre: Artmed, 2010.

138
ou ainda, a capacidade dos japoneses de se refazerem após guerras, terremotos e tsunamis:
podemos recordar aqui por exemplo, a devastação nuclear em Nagasaki e Hiroshima, em
Agosto de 1945, que determinou a rendição incondicional do imperador Hirohito. Três
meses depois, o governo japonês criou um plano para reconstruir 119 cidades destruídas pela
guerra. Menos de duas décadas depois, o país já despontava como uma das potências
econômicas mundiais e depois atingiu o posto de segunda maior economia do planeta (posto

que perdeu em 2010 para a China). A capacidade japonesa de superar suas tragédias nos

lembra da importância de sabermos fazer da crise uma oportunidade, novamente, os


componentes da disciplina, como a honra (em cumprir com as obrigações), o respeito ao
próximo e ao coletivo, são passados de geração a geração e mostram-se valores
imprescindíveis para a construção da resiliência.
Finalmente, vamos tomar os exemplos dos povos nativos americanos, sejam os do
Norte, do Centro ou do Sul. Todos viram suas culturas e identidades massacradas,
genocídios e saqueamentos de suas riquezas. A dívida histórica para com essas populações é
imensurável e, mesmo diante das brutalidades seculares que sofreram, da imposição de uma
cultura exógena e da desqualificação de sua própria identidade, ainda hoje permanecem,
mesmo que reduzidas, mantendo as características de suas etnias. Ainda resistem, lutando
para manterem o que são. Darcy Ribeiro87 nos fala sobre a mestiçagem que se fez no Brasil e
ela ser o sinônimo de sua força: na referência de suas matrizes étnica indígena, portuguesa e
africana, incorporadas (e não renegadas) ao que é ser brasileiro, está a chave de sua
superação e das suas desigualdades: ser aceito e entendido como uma grande nação mestiça,
uma identidade que se assenta na diversidade, com um passado que precisa ser revisto e suas
injustiças corrigidas por nós mesmos.
Assim como a situação e predisposição dos povos aos traumas que sofreram, sejam
os judeus ou alemães, japoneses ou americanos, refletem valores diferentes de resiliência, de
maneiras de resistir e superar as adversidades, no campo individual, na história de vida de
cada um, esses mesmos valores podem ser ferramentas de superação e elaboração de uma
postura resiliente. Em nossa própria experiência, à partir das dificuldades que enfrentamos
em nossas instituições por exemplo, com os cuidados e a quarentena exigidos pela pandemia
do corona vírus (o COVID-19, em 2020), estabelecemos um conjunto de protocolos de

87
Antropólogo, (1922-1997) é autor de uma das obras importantes para se compreender a formação étnica e
cultural do povo brasileiro, veja-se o ensaio histórico-antropológico O Povo Brasileiro – A formação e o
sentido do Brasil, editado em 1995.

139
segurança para a continuidade do atendimento, e conjuntamente, uma atitude de aprendizado
entre pacientes e trabalhadores da saúde, ou seja, de disciplina e atitude de superação, de
resiliência frente as dificuldades da realidade que experimentamos. Aprendemos que sempre
podemos sair mais fortes destas experiências.
A ferida na alma, o que nos foi tirado, aquilo que foi machucado dentro de nós, não
permitirá jamais que sejamos os mesmos de antes do ocorrido, mas podemos canalizar estas
dores, ressignificar o afeto e o olhar sobre o que sofremos. A disciplina sempre será uma
ferramenta fundamental neste processo, assim como a manutenção dos objetivos e dos
projetos de vida (todos eles são tratados especificamente aqui em nossos tópicos). Falamos
de “resiliência ambiental” para descrever a capacidade de um ecossistema, uma população
ou uma espécie, de encontrar um funcionamento normal após uma ruptura profunda ou uma
destruição parcial. Utilizando desses ensinamentos juntamente com a mudança de hábitos,
tanto para a saúde do corpo quanto da mente, podemos estabelecer uma nova maneira de
lidar (coping) com as situações de infortúnio, lembrando que o suporte emocional dado
pelos outros e a nossa própria predisposição de ajudar também são, portanto, partes
essenciais deste processo.
Retomemos novamente o conceito de recuperação. A palavra advém do latim
recuperatĭo, ōnis, que significa “recobro”. Como dissemos, está ligado a reconquistar de
volta algo que foi roubado por alguém, uma circunstância externa ou por nós mesmos
através de atitudes desajustadas. O período de recuperação, durante a jornada escolar, nos
remete a um castigo por não atingirmos as metas esperadas de nós, e vivíamos o pavor ao
final do ano, correndo atrás do atraso, para evitá-la. Mas legalmente ela representava um
direito de o aluno recuperar o que era a ele destinado, mesmo que sob a coação dos pais. É
este mesmo direito que um paciente possui na saúde mental: recuperar sua saúde após um
adoecimento, reconquistar sua qualidade de vida. Ao reconquistamos o bem-estar, estamos
“reocupando” um espaço que já nos pertencia anteriormente dentro de nós. Este espaço não
pode ser dado pelos outros, precisa ser retomado pelo próprio indivíduo. Em nossa liberdade
de escolha é preciso optarmos pela melhora, é preciso considerar o que nos é dado (como
tratamento ou possibilidade) e elaborando nossa resiliência, buscar a cura de nossa ferida.
O período de recuperação, estabelecido em nossas propostas de internação, é justamente a
possibilidade de se estabelecer um momento privilegiado onde podemos auxiliar nossos
pacientes a se fortalecerem, poderem se reabilitar perante a vida que escolherem, perante a
superação e a felicidade que pretendem alcançar. Essa capacidade que acreditamos que o
indivíduo possui, somada com o apoio que procuramos oferecer para fortalecer sua

140
autoconfiança, busca retomar o equilíbrio dele com ele mesmo, o seu meio e a realidade
como um todo. Nossa definição básica de resiliência e recuperação, traz esse pressuposto do
aprendizado pela aceitação, adaptação e superação frente às situações de sofrimento, trauma
e desajustes pelas quais a pessoa passou. De lidarem e ressignificarem estas questões de
forma que os agentes estressores deixem de desencaminhá-los em sua busca por qualidade
de vida.
Como proclama a famosa frase atribuída a Nietzsche: “o que não nos mata nos
fortalece”, acreditamos sim que um infortúnio pode nos fortalecer, mas desde que
procuremos nos fazer resilientes. Esta reeducação terapêutica, portanto, procura construir
através da compreensão, a importância da consciência na aderência ao tratamento, de se
estimular o bom senso, o autocuidado. Da devida atenção que é necessária ser dada, aos
ferimentos da alma e aos ressentimentos, é fundamental revermos o que reprimimos em
nosso inconsciente e que afeta nossa qualidade de vida no plano consciente. A paz interior é
o caminho e o objetivo sempre. Entendemos que a reinserção social saudável e produtiva só
será possível ao indivíduo que despertar o amor por si mesmo, aceitando sua história de vida
e procurando fazer dela os alicerces para uma reabilitação plena, que lhe permita seguir com
autonomia e felicidade sua jornada.

141
Terapia

“O terapeuta assim, age como um facilitador e um


espelho para os sentimentos e pensamentos do cliente,
que passa a tomar mais consciência e contato com seu
material vivencial, percebendo aspectos de sua
personalidade e de seus comportamentos que lhe
escapavam anteriormente.”88
Carl Rogers

O ser humano sempre buscou uma forma de atenuar e resolver seus sofrimentos. Nos
registros mais antigos encontrados da pré-história pela paleontologia, identificamos seus
esforços em resolver o que afligia seu corpo e sua alma. Independente do sistema que
encontrou, adotou e praticou ao longo dos anos, ele construiu justamente uma forma de
terapia. A palavra terapia advém do grego therapeia (do verbo therapeúo) que significa
prestar cuidados médicos, tratamento. Na tradição médica, as terapias são, portanto,
ferramentas utilizadas visando a promoção e/ou recuperação da saúde física e mental de
enfermos.
Em nosso caso, preocupados fundamentalmente com a saúde mental, na terapêutica
que adotamos em nossas Clínicas Estância, oferecemos um tratamento humanista, ou seja,
que procura respeitar a condição, a história e o potencial de cada indivíduo em seus aspectos
psicofísico e social, a fim de oferecermos à cada especificidade do caso os tratamentos mais
adequados. Em nossa filosofia respeitamos essa singularidade, procurando os acolher e
auxiliá-los no sofrimento que cada um traz, nos colocando primeiramente em uma posição
de humildade e empatia, onde a igualdade de nossa condição humana nos reflete: terapeutas
e pacientes.
Encontramos os conceitos de terapia associados tanto aos medicamentos ministrados,
quanto às indicações de técnicas e comportamentos que auxiliarão no processo do
tratamento (repouso, alimentação, higiene etc.) com o fim de atenuar e curar aquilo que
atormenta o indivíduo em seu bem-estar. Estas pesquisas adquiriram com o tempo

88
ROGERS, C. Terapia Centrada no Cliente. Ediual - Editora da Universidade Autónoma de Lisboa. 2003.

142
características especializadas ao utilizarem diferentes métodos apoiados tanto na medicina
tradicional quanto nas chamadas medicinas complementares e holísticas (Fisioterapia,
Hidroterapia, Musicoterapia, Cromoterapia, Aromaterapia, meditação, Terapia Ocupacional
etc.).
Já a palavra terapêutica que advém do grego therapeutiké, está ligada às artes, às
ciências de se escolher as terapias mais adequadas a uma enfermidade, assim como
dissemos, formamos nossa terapêutica baseada em conceitos humanistas e holísticos, à qual
denominamos de Multimodal, procurando atender de maneira integral as necessidades de
nossos pacientes para sua reabilitação à sociedade.
A fim de abordarmos de uma maneira ampla os diferentes conceitos de terapia e
pontuarmos os que adotamos em nossas clínicas, iremos dividir este tópico em duas partes.
A primeira para refletirmos sobre o processo histórico e filosófico relacionados aos
métodos que surgiram das concepções, estudos, pesquisas e trocas culturais na busca pela
saúde, a fim de compreendermos que ela não está ligada apenas às enfermidades do corpo
ou da mente, mas à integridade psicofísica e social de cada indivíduo. Como já citamos em
nosso tópico sobre a dor, a IASP89 em 1994, estabeleceu a dor como: “Experiência sensitiva
e emocional desagradável associada ou descrita em termos de lesão tecidual”. Deste
conceito já temos a fundamentação da dor, descrita sendo sensitiva e emocional. Em nossa
proposta terapêutica, entendemos que a associação da dor ou sofrimento, sobretudo em
nosso campo que trabalha voltado à saúde mental, deve conceber a saúde como um estado
de completo bem-estar físico, mental e social, e não, simplesmente, a ausência de doenças
ou enfermidades.
O conceito de saúde, como um direito à cidadania, também foi expresso na Constituição
Brasileira de 1988, abordando o conceito de saúde na perspectiva política, econômica e
social. Veremos, portanto, um pouco deste processo histórico da Terapia em sua relação
humanista com a dor, física, psicoafetiva e social.
A segunda parte focaremos na nossa terapêutica, adotada e utilizada em nossas
Clínicas Estância, explicando os fundamentos de nossas metodologias e práticas,
justificando nossa afirmação de apresentarmos uma proposta terapêutica holística e
humanista.

89
Associação Internacional para o Estudo da Dor

143
Primeira parte

Terapia: uma breve reflexão sobre sua história

Hipócrates de Kos (Fig. 8 - 460-370 a.C.), comumente chamado


de pai da medicina (apesar desta já existir anteriormente em escolas
que as estudava de maneira desvinculada de preceitos mágicos 90),
marca simbolicamente a tradição médica ao postular sobre o poder de
cura da própria natureza (physis) sobre o enfermo. Ele dizia, inclusive,
que o homem sofria influências climáticas, alimentares, sociais e
afetivas que influenciavam seu bem-estar. Sugeria a relação entre a personalidade humana e
a contração de doenças. Conceituava que o organismo tinha poderes de se curar e que a
doença só poderia se manifestar quando o corpo estivesse em desarmonia com ele mesmo ou
com o ambiente (plano psicofísico). Podemos perceber que Hipócrates possuía uma visão
holística em suas propostas de tratamento, pois expressava que era necessário cuidar da
relação entre espírito (psique), ambiente e corpo em conjunto para se promover a saúde. No
texto a seguir destacamos a importância que dava à psique em relação às doenças:
“É preciso que os homens saibam que nossos prazeres, nossas alegrias, risos e
brincadeiras não provêm de coisa alguma senão dali (isto é, do cérebro), assim como
os sofrimentos, as aflições, os dissabores e os prantos. E, sobretudo, através dele,
pensamos, compreendemos, vemos, ouvimos e reconhecemos o que é feio e o que é
belo, o que é ruim e o que é bom, o que é agradável e o que é desagradável, tanto
distinguindo as coisas conforme o costume, quanto sentindo-as conforme o que for
conveniente – e distinguindo dessa forma os prazeres dos desprazeres; de acordo
com a ocasião, as mesmas coisas não nos agradam sempre. É também através dele
que enlouquecemos e deliramos, e nos vêm os terrores, os medos, alguns durante a
noite, outros durante o dia, e as insônias, os erros inoportunos, as preocupações
inconvenientes, a ignorância do estabelecido, a falta de costume e a inexperiência.” 91

90
E estes estudos coletivos, que remontam a Inhotep, nascido a cerca de 2600 a.C. no Egito, hieróglifos já
descrevem noções básicas de anatomia e a utilização de medicamentos, nos fazem pensar sobre a contribuição
que as trocas culturais tiveram para a realização da fusão de conhecimentos de modo que, então na escola de
kós, da qual a família de Hipócrates pertencia, forma-se o chamado Corpus hipoccraticum, o qual representa
um conjunto de tratados que influenciou toda a história da medicina.
91
Do tratado A doença Sagrada. (N.A)

144
Porém, com o passar dos séculos, os médicos observaram que os métodos
hipocráticos não eram tão eficientes em casos urgentes de um processo agudo ou uma
doença crônica, desenvolveram-se novas correntes de pensamento para uma medicina mais
rápida em seus resultados. O cume destas correntes pode ser demarcado com o filósofo e
médico Cláudio Galeno (Fig. 9 - em latim Claudius Galenus, de
aproximadamente 129 – 217 d.C.) que estabeleceu estudos mais profundos
de anatomia, juntamente com a utilização de medicamentos que
eliminassem a doença de uma maneira mais prática: se havia febre,
aplicava-se um antitérmico, para a dor, um analgésico. Processos cirúrgicos
foram aprimorados e realizados regularmente, apoiados na concepção de
que o mais importante era retirar a doença e livrar o paciente do sofrimento. Essa linha
marca profundamente o segmento da medicina Ocidental como sabemos, estabelecendo
divisões entre as questões relacionadas unicamente ao corpo e as doenças de cunho mental.
Durante a Idade Média a medicina evoluiu pouco devido ao pensamento teocêntrico
e, inclusive, as doenças mentais passaram a ser comumente associadas à
influência do demônio, ou como sinais de bruxaria. Realmente, foi com
92
a influência do médico persa Avicena (Fig. 10) em seu tratado
alQanun (O cânone da medicina, escrito em torno de 1020) que foram
retomados os estudos de Galeno. A Escola de Medicina da
Universidade de Bolonha, que inicia aulas com professores catedráticos
desde cerca de 1170, estabelece aulas de anatomia e vemos surgirem diversos avanços,
sobretudo após a retomada por Mondino Dei Liuzzi (1270 -1326) dos modelos da escola de
Alexandria na dissecação de cadáveres, lentamente uma nova configuração nas concepções
de saúde e tratamento se estabeleciam.
Com o florescer do Renascimento, tanto a filosofia, quanto a literatura e as artes
promoveram grandes mudanças. Com a contribuição da imprensa de Gutenberg, a qual foi
fundamental para a expansão dos textos médicos, vimos desenvolverem-se estudos cada vez
mais especializados, fornecendo nova enciclopédia no registro de tratamentos para
diferentes áreas terapêuticas. As novas concepções sobre o ser humano, considerando-o uma
máquina orgânica de causas e efeitos ganharam forças. Os desenhos de Leonardo da Vinci
(Fig. 11 e 12) e Michelangelo sobre anatomia, realizados também a partir da dissecação de
cadáveres e utilizados nos estudos de medicina, expressam a importância dada a estas novas

92
Chamado Ibn Sina - Abu Ali Huceine ibne Abdala ibne Sina, latinizado passou a ser conhecido como
Avicena

145
pesquisas. Ao mesmo tempo, na literatura podemos perceber através das obras de Cervantes
e Shakespeare a apresentação de indivíduos que naturalmente
possuem contradições em sua realidade interna e em suas
emoções: paixão, orgulho, amargura, inveja, amor erótico, humor,
etc., os quais fornecem uma visão mais ampla da condição humana.
Filósofos como Erasmo de Roterdã em seu Elogio da Loucura
(1509), Thomas Morus com Utopia (1516), Étiene de La Boétie
com o Discurso da Servidão Voluntária ( 1563), Michel de
Montaigne através de Ensaios (1580), entre outros, também
refletem a relação existente entre corpo e psique, onde o equilíbrio entre ambos não é
alcançado simplesmente através de uma obediência cega às regras sociais e dogmas
religiosos: eram necessárias a coragem e a análise para se conhecer,
além de apontarem que são necessárias as condições básicas de
sobrevivência e liberdade para se estabelecer dignamente a saúde
humana. Estava em processo o renascimento do humanismo. O ser
humano então passa a ser pensado de uma maneira complexa, inclusive,
em potência de ser mais e melhor. Seu domínio sobre a natureza e sua
busca de métodos que assegurem este conhecimento vão se ampliar
ainda mais na Idade Moderna com os Empiristas (John Locke, David Hume, etc.) e
Racionalistas (Blaise Pascal, René Descartes, Baruch Espinosa, etc.) que estabelecem esta
rede de conhecimentos através das enciclopédias que se avolumam nas universidades.
Porém, na prática e na política, esses caminhos se mostraram muito mais lentos e tortuosos.

146
No campo da saúde mental as
instituições dedicadas ao tratamento
demoraram-se a evoluir, como nos
contam os inúmeros registros: o primeiro
hospital psiquiátrico no Ocidente é
considerado o de Bethlem, em Londres,
fundado inicialmente como priorado das
irmãs da Estrela de Belém e, a partir de
1330 começa a ser considerado um
Cena do Bethlem Royal Hospital, feita por hospital. Por volta de 1377 passa a
William Hogarth. admitir doentes mentais (ou que assim

Fig. 13 eram considerados na época, mesmo


pessoas que possuíam apenas déficit
cognitivo ou epilepsia), em 1557 passa para a responsabilidade da cidade de Londres. São
hoje, assustadoras as histórias das técnicas e das condições desses pacientes. Durante o
século XVIII as pessoas podiam, mediante ingressos, visitar os pacientes como diversão,
cutucá-los com varas longas dentro de suas jaulas e rirem do “espetáculo”.
Para a mudança deste cenário, é fundamental citarmos a influência deixada
por Philippe Pinel93 :
“Foi pioneiro no tratamento de doentes mentais e um dos precursores da
psiquiatria moderna. Formado em medicina pela Universidade de Tolouse
(França), dirigiu os hospitais de Bicêtre e Salpêtrière. Na sua Biografia
consta que se interessou por essa área depois que um amigo tomado de
loucura, fugiu para uma floresta, tendo sido devorado por lobos. Da
observação dos seus próprios pacientes, em 1801, publicou seu Tratado
Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental, em que defende a doença
mental Grupo 1 - Aposentadoria como resultado de uma exposição
excessiva a situações de estresse e, também, a danos hereditários
capazes de provocar alterações patológicas no cérebro.
Com base nisso, Pinel baniu tratamentos antigos, tais como sangrias,
vômitos induzidos, purgações e ventosas, substituindo-as por tratamento
digno e respeitoso, que inclui terapias ocupacionais. Dentro dessa linha,
foi um dos primeiros a libertar os pacientes dos manicômios e das
correntes, propiciando-lhes liberdade de momentos por si só terapêutica.
Consideradas avançadas para a época, as teorias de Pinel nem sempre
foram aceitas integralmente. Mesmo depois da publicação de seus
estudos, era comum encontrar instituições que tratavam os loucos como
criminosos ou endemoniados. E que não dispensavam os tratamentos
físicos. Nestes tratamentos buscava-se dar um "choque" no paciente,
fazer com que passasse por uma sensação intensa, que o tirasse de seu
estado de alienação. Eram frequentes, além das práticas descritas, os
isolamentos em quartos escuros, banhos de água fria, uso de aparelhos

93
Philippe Pinel (1745-1826) um dos maiores nomes do início da psiquiatria.

147
que faziam com que o paciente rodopiasse em macas ou durante horas
até que perdesse a consciência.
Pinel assim foi pioneiro em separar pacientes dos criminosos e colocá-los
sob cuidados médicos.”94

O século XIX foi a época de maior florescimento da teoria da chamada terapêutica


da loucura. Ele começa com o Traité Médico-Philosophique de Pinel (uma proposta
verdadeiramente revolucionária da teórica e terapêutica). Pinel e Esquirol 95 apresentam uma
nova concepção sobre a natureza e a causa da loucura. Quanto à natureza, ela é,
essencialmente, um desarranjo duradouro do discurso e dos atos, que não se ajusta à
realidade circunstante, mas corresponde a ideias erradas sobre os eventos físicos ou sociais.
Assim, a causa da loucura já não deve ser buscada em alguma presumida lesão estrutural ou
funcional do encéfalo, mas na experiência do real. Essa experiência é entendida em dois
sentidos: como processo de elaboração de ideias, a partir da percepção sensorial, e como
exposição aos impactos afetivos da vida cotidiana.
Com Pinel, a psiquiatria passa a ser, de um lado, a correção de hábitos, através da
correção das ideias; de outro, a reeducação afetiva. São estas as funções do Tratamento
Moral, que é, com todas as letras, um método de modificação do comportamento. (uma
terapia cognitivo-comportamental). Pinel propôs o tratamento "moral" que consistia em usar
de amabilidade, firmeza, atenção às necessidades psicológicas e físicas, ou seja, uma relação
justamente mais humanitária entre o paciente e aqueles que o cuidam; diversões sadias e
interação com outros indivíduos.
O que era revolucionário naquele tempo, era a noção que a doença mental podia ser
causada pelas experiências da história de vida dos pacientes, tratadas num ambiente físico
e social adequados (conceitos que também fundamentam nossas Estâncias Clínicas) e que
as lesões cerebrais não eram uma consequência natural e inevitável das doenças mentais.
Nas palavras do próprio Pinel:
"- Eu, então, descobri que a loucura era curável, em muitos casos, por meio do
tratamento e a atenção exclusiva à mente, e, quando a coação era indispensável,
esta poderia ser aplicada eficazmente sem indignidade corporal"96.

94
Retirada do site: http://www.saude.sp.gov.br. Fonte: D.O.E 11/01/2003.
95
Jean-Étienne Dominique Esquirol ( 1772 — 1840). Discípulo de Pinel.
96
A apresentação das "Memoirs of Madness" em 11 de dezembro de 1794 é considerado o marco inicial da
moderna psiquiatria.

148
Estas ideias se tornaram a marca da psiquiatria do século 18. Nos Estados Unidos
elas foram introduzidas por Benjamin Rush (1745-1813) considerado o pai da psiquiatria
americana e cuja efígie está eternizada no selo da Associação Psiquiátrica Americana.
As ciências naturais influenciaram grandemente o pensamento psiquiátrico da época,
especialmente os trabalhos de Charles Darwin e Louis Pasteur. As obras
destes e vários outros autores constituem o início da Era Moderna da
medicina. A maioria dos psiquiatras da segunda metade do século XIX
passou a procurar uma causa orgânica para as doenças psíquicas e
esclarecer relações histológicas objetivas entre elas. A partir destes
conhecimentos surgem duas correntes teóricas divergentes na escola
alemã, representadas por dois grandes nomes da psiquiatria: Emil
Kraepelin (fig. 14) e Sigmund Freud (fig. 15).
Kraepelin (1856-1926) estudava a psiquiatria "pesada" (psicoses e asilos) enquanto
Freud (1856-1939) estudou a psiquiatria "ligeira" (neuroses e consultórios). Kraepelin fez
prevalecer os dados da observação clínica sobre os anatomopatológicos. Com Freud, a
biografia individual ganha importância e os fatores psicológicos adquiridos tem papel
predominante na elaboração e valorização da doença.
Com a introdução dos medicamentos psiquiátricos e o uso de exames laboratoriais na
relação entre o psiquiatra e o paciente, permitiu-se
diagnósticos e prognósticos mais específicos para as
causas físicas dos sofrimentos. Conjuntamente, a terapia
psicanalítica passou a ser estruturada em sua própria linha
acadêmica. A psicanálise, enquanto psicoterapia
reeducadora, revia um território secular da medicina, visto Sigmund Schlomo Freud

que todos os seus recursos terapêuticos pouco serviam para reeducar ideias e hábitos e para
coibir vícios afetivos e passionais.
Na época de Freud, as doenças mentais não tinham ainda o nome psicose. Esse nome
já tinha sido criado, mas se tornou comum a partir de seus tratados. Há aqui então, duas
linhas muito importantes, que marcam o pensamento da especialidade: a linha da psiquiatria
e a linha da psicanálise. Freud começa com seus trabalhos, uma nova orientação, uma nova
visão, com novos dados, e a psiquiatria começa a receber o influxo de ciências psicológicas.
Em nossas Clínicas Estância buscamos propor uma terapêutica justamente com a
convergência destas duas linhas.

149
No Brasil, em 1830 a Sociedade de medicina do Rio
de Janeiro97 estabelece diagnósticos sobre os “loucos” da
cidade, os quais passam a serem considerados doentes
mentais e merecedores de um espaço próprio para reclusão e
tratamento. Em 1852 é inaugurado o Hospício de Pedro II,
mas os anos que se seguem são realizadas denúncias sobre a superlotação dada pela
internação indiscriminada de pacientes curáveis, incuráveis, indigentes e afetados
mentalmente. Em 1882, a Lei nº 3.141, de 20 de outubro, dispõe sobre a execução do ensino
de Psiquiatria no Brasil. Em 1883 aprovado no primeiro concurso público para a
especialidade, Teixeira Brandão assume a Cátedra de Psiquiatria da Universidade do Brasil.
Podemos destacar também outros marcos importantes da história da doença mental no
Brasil:
1890 O Decreto nº 206, de 15 de fevereiro, cria a Assistência Médica e Legal aos
Alienados e determina a criação das Colônias de São Bento e Conde de Mesquita, destinadas
a pacientes do sexo masculino, tranquilos e incuráveis.
1898 Inaugurado, em São Paulo, o Hospital do Juqueri, sob a direção de Francisco
Franco da Rocha.
1903 Criada a Lei de Assistência aos Alienados, primeira legislação brasileira
específica sobre alienados e alienação mental.
1907 Criada, no Rio de Janeiro, a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e
Medicina Legal.
1911 O Decreto nº 8.834, de 11 de julho, cria a Colônia de Alienadas do Engenho de
Dentro, destinada a mulheres.
1925 O psiquiatra alagoano Osório César, pioneiro na utilização das artes plásticas
como método terapêutico, assume a direção do Hospital do Juqueri.
1941 O Decreto-Lei nº 3.171, de 2 de abril, cria o Serviço Nacional das Doenças
Mentais, com seus órgãos centrais: Centro Psiquiátrico Nacional, Colônia Juliano Moreira e
Manicômio Judiciário.
1946 A psiquiatra alagoana Nise da Silveira inaugura a Seção de Terapêutica
Ocupacional e Reabilitação (STOR) no Centro Psiquiátrico Nacional, localizado no bairro
de Engenho de Dentro. Em 1952 é inaugurado por Nise da Silveira o Museu de Imagens do

97
Fig. 16 - Sede da antiga Academia Imperial de Medicina, Campo de Santana, Rio de Janeiro, entre 1861 e
1874. In: CARNEIRO, Glauco. Um compromisso com a esperança: história da Sociedade Brasileira de
Pediatria, 1910/2000. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2000.

150
Inconsciente (MII), unidade do Centro Psiquiátrico Nacional e em 1956 Nise da Silveira,
com um grupo de amigos, funda a Casa das Palmeiras, que funciona em regime de externato.
1956 Projeto de Lei de 10 de julho cria o Departamento Nacional de Saúde Mental.
1968 Oswaldo Santos e Wilson Simplício transformam a seção Olavo Rocha, do
Centro Psiquiátrico Pedro II em Comunidade Terapêutica, modelo que seria experimentado
por Eustáchio Portela, no Instituto Philippe Pinel.
1978 Criado o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), um grupo
de profissionais de saúde que começa a pensar em alternativas para a visão
hospitalocêntrica.
1987 Realizada, no Rio de Janeiro, a I Conferência Nacional de Saúde Mental
(CNSM), na qual é lançado o lema “Por Uma Sociedade Sem Manicômios”.
1992 Portaria nº 224 do Ministério da Saúde regulamenta e normaliza os Núcleos de
Atenção Psicossocial (NAPS) e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
1994 Realizado, em Santos, o III Encontro de Entidades de Usuários e Familiares
(EEUF), um marco da consolidação da Reforma Psiquiátrica no Brasil, que conta com a
efetiva participação de entidades da sociedade civil.
2001 Sancionada a Lei nº 10.216, de 6 de abril, que trata dos direitos dos usuários
dos serviços de Saúde Mental e retira o manicômio do centro de tratamento.
2001 Realizada, em Brasília, a III Conferência Nacional de Saúde Mental, com o
tema “Cuidar sim, excluir não. Efetivando a Reforma Psiquiátrica com Acesso, Qualidade,
Humanização e Controle Social”.
2006 Marco na consolidação da Rede de Atenção de Serviço Psicossocial do Brasil:
primeira vez em que há maior investimento em ações comunitárias do que em Hospitais
Psiquiátricos.
2007 Realizado em Brasília o I Seminário Nacional do Programa de Volta Para Casa,
no qual foi divulgada carta aberta convocando à aceleração da desinstitucionalização de
pacientes longamente internados em todo o País.
2007 Decreto nº 6.112, de 22 de maio, institui a Política Nacional sobre o Álcool
(PNA) e a Portaria GM/MS nº 2.759, de 25 de outubro, estabelece diretrizes gerais para a
Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas e cria o respectivo
Comitê Gestor.
2009 Reconhecimento, pela OMS, do modelo de atenção à saúde mental brasileiro, e
convite ao Brasil para participar, em um grupo de 10 países, de um esforço internacional
para diminuição da lacuna de tratamento em saúde mental no mundo.

151
2009 Lançado, por meio da Portaria GM/MS nº 1.190, de 4 de junho, o Plano
Emergencial de Ampliação ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD
2009-2010), priorizando expandir estratégias de tratamento e prevenção.
2010 Fechamento do Hospital Alberto Maia (Camaragibe-PE), um dos últimos
macro hospitais psiquiátricos do País. O Decreto nº 7.179, de 20 de maio, dispõe sobre o
Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas. Neste mesmo ano é realizada,
em Brasília, a IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial, com o tema “Saúde
Mental direito e compromisso de todos: consolidar avanços e enfrentar desafios” .98
Podemos perceber o conjunto de esforços e estudos que se somam às linhas da
clínica psicoterapêutica, em que cada vez mais valorizam-se a necessidade do respeito à
dignidade e do conjunto integral da vivência humana, seja em seus aspectos psicofísicos e
sociais, integrados e em harmonia, para o restabelecimento do que hoje consideramos uma
vida saudável. Em nosso campo de atuação específico que é o da saúde mental, já
abordamos em nossos outros tópicos de tratamento o desabrochar e o desenvolvimento das
diferentes propostas que se somam à clínica psicanalista estabelecida conjuntamente à
freudiana. Destas, iremos destacar adiante as que adquiriram características que
incorporamos à nossa linha terapêutica, a qual também classificamos como humanista.

Segunda parte
A terapêutica das Clínicas Estância: uma proposta humanista

Aproveitamos, portanto, a contribuição de toda esta gama de conceitos


desenvolvidos ao longo da história humana e somamos esta contribuição para nossa
terapêutica, sobretudo embasada a partir da Academia Clínica, dentro de uma perspectiva
humanista.
Para destacarmos algumas de nossas referências, podemos citar Carl Rogers99, o
qual reforça a importância de acompanhar o paciente a buscar a “ser o que se é”, ou seja, a
compreensão sobre o seu self para se desenvolver sua potencialidade natural. O papel do
terapeuta ou facilitador (counsellor), é essencial ao acompanhar o processo em que o próprio
indivíduo estabelece para si na construção de uma vida saudável, ajudando-o a reconhecer as
incongruências entre sua própria visão e a visão social (dos outros) em relação a si mesmo.
98
Retirada do site: http://www.ccs.saude.gov.br / Memória da Loucura.
99
Carl Ransom Rogers, psicólogo norte americano, nascido em Illinois em 1902 e falecido em 1987.

152
A aceitação de sua realidade, de sua sexualidade, de seu corpo, é parte de também aceitar ser
o que se é, como enfatizamos em nossas palestras psicoeducativas. Vejamos a bela definição
que Carl Rogers expõe sobre esse papel na introdução de seu livro Terapia centrada no
Cliente100:
(...) Este livro fala das experiências altamente pessoais de cada um de nós. Fala
de um cliente no meu gabinete, que se senta em frente da secretária, lutando por
ser ele mesmo, embora mentalmente receoso de sê-lo – tentando encarar a sua
experiência como ela é, querendo ser essa experiência, e, todavia, extremamente
assustado com essa perspectiva. O livro fala de mim, tal como ali me sento com
aquele cliente, na sua frente, participando nessa luta tão profunda e
sensitivamente quanto me for possível. Fala de mim enquanto procuro apreender
a sua experiência e o significado, o gosto, o sabor que ela tem para ele. Fala de
mim, quando lamento a minha falibilidade de homem para compreender aquele
cliente e os eventuais fracassos em ver objetos na teia intrincada e delicada do
crescimento que se está a processar. Fala de mim, na medida em que me alegro
com o privilégio de ser o parteiro de uma nova personalidade – quando sinto
respeito perante a emergência de um self, de uma pessoa, quando vejo um
processo de nascimento, no qual tive um papel importante e facilitador.
Fala do cliente e de mim, quando consideramos, maravilhados, as forças
poderosas e ordenadas que estão patentes em todas estas experiências, forças que
parecem profundamente enraizadas no universo como um todo. O livro fala,
segundo creio, da vida, enquanto a vida se revela vividamente assim mesmo no
processo terapêutico – com o seu poder cego e a sua tremenda capacidade de
destruição, mas, contrabalançando, com a sua confiança no amadurecimento, se
for dada a oportunidade para esse amadurecimento.”
101
Erich Fromm , nos contribui de maneira fundamental com suas teorias sobre a
importância do meio em que o indivíduo cresce na formação de sua personalidade,
enfatizando a questão de sermos seres interpessoais, de incorporarmos a reprodução dos
valores sociais filtrados por nossa célula familiar. Neste sentido, nos casos de transtornos
comportamentais e de adicção, destacamos a importância da família se reeducar e participar
no processo de recuperação, justamente pela necessidade de reverem os estigmas que
muitas vezes reproduzem e reforçam em nossos pacientes. Assim, para se falar em saúde
mental, deve-se levar em consideração a saúde da própria sociedade e seus valores como um
todo.

100
Ele adota o termo cliente ao invés de paciente (N.A.)
101
Erich Seligmann Fromm (1900 – 1980) psicanalista, sociólogo e filósofo alemão.

153
Somamos a estes, os conceitos de Abraham Maslow102, o qual oferece importantes
contribuições ao destacar que a resolução de um conjunto de necessidades são
fundamentais para a satisfação e o bem-estar humano. Assim, propõe uma hierarquia (fig.
17) dessas necessidades que evoluem das questões fisiológicas, as quais envolvem desde um
corpo saudável, em condições adequadas de sono e alimentação, para sequencialmente
serem consideradas as necessidades de Segurança, de Amor e Relacionamentos, as
necessidades de Estima e as necessidades de Realização Pessoal.
Outros que podemos destacar como referência fundamental em nossa metodologia
terapêutica é Enrique Pichon Riviere103 principalmente no tocante em como organizamos
os nossos trabalhos em grupo, fundamentados em suas teorias relacionadas aos Grupos
Operativos, e também de Maxwell Jones104, à partir dos seus conceitos de Comunidades
Terapêuticas, onde propõe a substituição dos antigos conjuntos de tratamentos
psiquiátricos, como normas rígidas e
eletrochoques, por psicodramas,
discussões sociais, filmes e palestras
socioeducativas. Tanto Pichon
Riviere quanto Maxwell,
contribuem em nossos tratamentos
no sentido de que estabelecemos
que é fundamental os pacientes
também assumirem
responsabilidades e participarem
ativamente do tratamento, desde a organização nas atividades internas (atividades
terapêuticas, laborais, organizações de grupos, sistemas administrativos) quanto da sua
interação e participação na organização de atividades externas (compras, cabeleireiros e
passeios – culturais, recreativos, de contato com a natureza, etc.), estabelecendo no ambiente
terapêutico possibilidades de participação e interação, os quais favorecem um processo
contínuo de reinserção e reeducação para sua reabilitação social.
Estas diferentes escolas e tendências terapêuticas formam referências em nosso
Método Multimodal, ao mesmo tempo em que nos baseamos nos pressupostos da clínica

102
Abraham Harold Maslow (1908 – 1970), também norte americano e psicólogo.
103
Psiquiatra, nascido na Suíça em 1907 e falecido na Argentina, em 1977, autor referencial dos Grupos
Operativos.
104
Psiquiatra nascido em 1907 na África do Sul, radicado nos Estados Unidos, e falecido em 1990, considerado
o criador do conceito de comunidade terapêutica.

154
psicanalítica, como já dissemos, sobretudo a freudiana, que percebe o eu (ego), esta
“instância psíquica” do sujeito(Freud destaca a relação da constituição do eu enquanto esta
instância entre o id e a alteridade – o superego105) onde o sujeito é o processo (instância,
portanto inacabado e passível de modificar-se) resultante dos confrontos entre suas pulsões
de vida (seus desejos de realização) e os limites (repressões, os interditos e normas) dados
pela realidade. Este ego individual que marca nossa personalidade, sempre permanece e ao
mesmo tempo muda, em fluxo, sob as tensões, indeterminado e em potência, livre sob uma
condição de imanência, aquilo que é, e a sua possibilidade de transcendência, em potência,
em sua possibilidade de ser mais.
Assim, formamos as concepções sobre nossos pacientes, auxiliando-os a aceitarem-
se e conscientizarem-se de sua enfermidade, porém, a não se identificarem à partir da sua
doença (auto estigmatização), mas sim desse potencial que cada um carrega para conquistar
sua saúde e reabilitação.
O esquema (fig. 18) proposto por Pierre Weil em seu livro: A arte de viver em
paz106, recomendado pela assembleia Geral da Unesco em 1992 como um novo método
holístico de educação para a paz, onde
se entende que o indivíduo integral é
mais que a soma de suas partes,
sintetizado na imagem ao lado,
corresponde também ao nosso conceito
de ser humano e seu potencial para se
conscientizar, compreender e
transcender suas dificuldades, aprender
a se cuidar, a cuidar dos outros e do
planeta, em uma ecologia de troca
positiva perante a vida, pressupostos
básicos da filosofia humanista atual.
Acreditamos, portanto, que através de sua consciência pode rever e modificar sua
condição, desenvolver habilidades de controle e superação de suas dificuldades

105
Sigmund Freud, onde aborda e estabelece as bases do aparelho psíquico humano através das instâncias id,
superego e ego, as quais veremos detalhadamente em nosso capítulo: Eu. (N.A.)
106
A Arte de Viver em PAZ. Por uma nova consciência e educação. Pierre Weil (1924 -2008). Psicólogo e
educador francês. Presidente da Fundação Cidade da Paz e da Universidade Holística Internacional de Brasília
UNIPAZ.

155
conquistando sua autorrealização: nossa terapêutica pretende oferecer ferramentas para que
conquiste justamente sua autonomia nesta busca.
Acreditamos e propomos em nossa terapêutica, portanto, que é essencial uma
retomada da visão holística sobre o ser humano. A saúde mental e a saúde física são dois
elementos da vida estreitamente entrelaçados e profundamente interdependentes. Os avanços
na neurociência e na medicina do comportamento já mostraram que, como muitas doenças
físicas, as perturbações mentais e comportamentais, incluindo as questões de adicção,
resultam de uma complexa interação de fatores biológicos, psicológicos e sociais.
Jean Paul Sartre proclama no Século XX a necessidade urgente do resgate do
humanismo, com o pressuposto de que o ser humano é livre, deve ser responsável por seus
atos e precisa assumir sua própria vida. Conjuntamente às manifestações da cultura, surgem
linhas dentro da própria clínica psicanalítica que se denominam de psicologia humanista e
incorporamos estes princípios justamente como bases para construção de nossa terapêutica.
Em nossa filosofia também acreditamos que cada indivíduo possui potencial e forças
suficientes para promover suas mudanças rumo à qualidade de vida integral e à felicidade.
Consideramos cada pessoa como um ser único em sua subjetividade e suas escolhas,
respeitando as diferenças e jamais estigmatizando nossos pacientes a partir de suas
enfermidades ou dificuldades. Valorizamos as aptidões pessoais e sua inteligência
emocional, estimulando habilidades de autocontrole, de zelo, de resiliência, de autoestima,
autoconceito e de automotivação. Habilidades que prezamos como essenciais em seu
processo de reabilitação e ressocialização.
Entendemos que cada um que chega para a terapia, aos nossos cuidados, está com
medo, confuso, em crise e, nossa postura e função, não é a de julgar e reforçar os estigmas
que já carrega consigo, mas de fortalecer o seu potencial para superar aquilo que lhe aflige e
atrapalha sua qualidade de vida. O convidamos a uma introspecção, a se internar dentro
dele mesmo, para conhecer-se e, fundamentalmente, descobrir a causa do porquê ele está
passando mal. Procuramos oferecer desde um ambiente em que se sinta protegido e bem
cuidado, em que possa se desligar das tensões a que estava submetido e que, através de
nossas diferentes propostas terapêuticas, encontre a sua força interior para enfrentar, superar
ou controlar suas enfermidades, no corpo e na alma.
Em nossa experiência, percebemos que dada uma determinada situação em que se
apresenta o paciente, ele pode assumir uma atitude positiva progressista, demonstrando à
sua maneira que busca melhorias para si, aderindo ao tratamento. Há aquele que apresenta
uma atitude neutra, em que não demonstra interesse por nada que possa ajudá-lo. Também

156
encontramos o que representa uma atitude imitativa, que acompanha os outros nas
atividades e propostas, mas não estabelece para si uma reflexão profunda. Os que
estabelecem uma atitude reativa, sempre contrária ao que lhe é oferecido, sempre
insatisfeito. Finalmente destacamos a atitude do sabotador, que muitas vezes não apenas
para si, mas para todos os outros ao redor, busca sabotar qualquer processo terapêutico!
Esses caminhos da reação do paciente ao tratamento, gerados por um determinado
conflito interno, nos leva sempre a buscarmos a causa dessas reações e não apenas em qual
patologia se enquadra, segundo o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais, ou DSM-5. Fundamentalmente com o apoio da psicanálise, através de sua história
de vida, entendemos que o essencial está nesta busca fundamental da causa que despertou e
gerou determinado transtorno.
Muitas vezes, recebemos pacientes que possuem seu mal-estar ligado ao fato de se
cobrarem demais, ou se sentirem incapazes perante aquilo que a sociedade exige. Muitos
procuram fugas, para compensarem a dor, ou refugiam-se em pequenos prazeres para
anestesiar-se das cobranças sociais, outros assumem uma postura de rebeldia contra as
regras, transferindo as culpas aos outros, estabelecendo vínculos afetivos doentes,
adoecendo-se conjuntamente. Em seu processo de introspecção, propomos que reflitam
sobre como cada um alimenta sua própria dor. Perceberem o quanto culparem a si mesmos,
o mundo e os outros, fixam-se em estados emocionais de raiva, mágoas, ressentimentos, que
os impedem de serem felizes... Ao revermos sua condição humana e seu histórico de vida, a
singularidade única de seu caso e situação, encontramos os diagnósticos do que poderemos
tratar para, então, ajudá-los a acreditarem que podem melhorar, que possuem forças para
isto e que podem retomar as rédeas e os melhores rumos que decidirem para si mesmos.
Nós propomos uma variedade de atividades terapêuticas, onde utilizamos
psicoterapia individual e em grupo, palestras psicoeducativas, terapia ocupacional, grupos
operativos, meditação, saídas de ressocialização (sempre monitoradas pela nossa equipe)
com o intuito de compor os diferentes aspectos do que hoje se entende como uma vida
saudável. Tudo em nossas Clínicas Estância é preparado como terapia para a reabilitação
plena de nossos pacientes.
O acolhimento e a qualidade de sua estadia são partes fundamentais do tratamento.
Ao iniciar o acompanhamento em nossas Estâncias Clínicas, é atendido por um profissional
que levará em conta uma anamnese do seu caso, analisando questões como seus laços com a
família e sociedade; o seu histórico de internações e/ou tratamentos anteriores; o seu suporte
social; como administra os aspectos cotidianos da vida. Entendemos que é necessário

157
sempre estabelecermos um ponto de partida particularizado do caso, fundamentalmente, a
partir de sua história pessoal, conhecer as causas do comportamento do paciente para
avaliarmos suas condições de receptividade e aderência ao tratamento específico que iremos
oferecer.
Assim, o acolhimento dentro de um ambiente agradável, descaracterizado dos
modelos de hospitais tradicionais, onde se sinta bem, é uma estratégia fundamental em
nossa terapêutica, pois esta atenção desde o momento de acolhimento é essencial nas
impressões que permitirão a empatia do paciente com o ambiente em que se dará o
tratamento, a facilitação de sua aderência às propostas terapêuticas durante toda sua
permanência, até os prognósticos, objetivos e projetos de vida que os ajudamos a
desenvolver em sua saída.
O permanecer em nossas Clínicas Estância, é o principal eixo para o tratamento: a
Estância é um lugar para se permanecer bem. A maneira como se sente em nosso
ambiente, é a chave para podermos estabelecer o processo terapêutico. Assim, desde o
acordar, com alongamentos e atividades físicas, até o café da manhã, em conjunto com os
outros, faz parte desse processo. As vivências, são terapias em grupo, as comissões, as
festas temáticas, as recreações onde trabalhamos com o lúdico (o brincar) e os jogos (o
jogar: cooperação e competição, enquanto elementos da vida e seus desafios), as aulas de
dança, o canto coral, as oficinas de arte, estão sempre procurando descondicionar o sujeito
para que se solte, e se liberte das amarras que ele mesmo construiu para si e dos muros em
que se confinou. Aliás, a desconstrução da auto-estigmatização pela doença, seja pelo
próprio paciente quanto pela família, são bastante trabalhados pela equipe de forma a
favorecer o potencial humano que todos carregamos para vivermos bem e felizes, assim
como a importância de nos amarmos para tornar isso possível.
Quando diagnosticamos um temor, ou uma inadequação social, por exemplo, ao
ajudar o paciente a recuperar esta memória, procuramos contribuir para que a pessoa tome
consciência da verdadeira razão que estimula o seu medo ou o seu sentimento de
inadequação. A partir deste conhecimento, são elaboradas ações em atividades variadas para
que a lembrança seja superada e, de fato, sejam trabalhadas as reações e os comportamentos
nocivos do paciente em sua vida.
Entendemos que as falhas de comportamentos devem ser solucionadas pela raiz da
questão. Assim, o paciente realmente pode ser curado do problema, que não irá se repetir ou
se manifestar na forma de outro sintoma. Para isso, procuramos ajudá-lo a capturar o que

158
está “escondido” no seu inconsciente, por isso nosso lema é: para ser é preciso que tenha
coragem para se conhecer!
Além da terapia individual que oferecemos com os psicólogos de referência,
particularmente para a psicanálise de cada paciente, as terapias de grupo são bastante
variadas para auxiliarem esse processo terapêutico. Além da Reunião dos Sentimentos,
também realizamos Psicodramas interligados às propostas de Maxwell Jones e o Rio
Aberto, técnica de Adela Prados, onde criamos um momento em que se facilite ao paciente
entrar em contato com suas emoções, dores, angústias e externá-las, trazê-las à própria
consciência, para que então, seja possível trabalhá-las terapeuticamente.
Quando utilizamos os Grupos Operacionais, contando com a participação dos
pacientes nas necessidades cotidianas, também estamos nos fundamentando nas propostas de
Enrique Pichon Riviere, em que a participação (participar da ação necessária) é indissolúvel
de participar da vida e da conquista da autonomia. Sob estes conceitos estão também
nossas saídas de ressocialização, onde, além dos encontros com os familiares, também são
realizados passeios lúdicos e culturais, em que se reaprende a aproveitar a vida sem
necessariamente estar vinculada a bebidas alcoólicas, drogas e outras associações doentias.
Enfim, podemos afirmar que enquanto permanecem conosco, procuramos tornar tudo uma
vivência terapêutica para nossos pacientes, ou talvez ainda mais, reaprender que na vida
tudo realmente pode ser visto como uma terapia.
A psicanálise que pode ser considerada a mais intensa e complexa linha terapêutica
tem como objetivo ir a fundo na solução de problemas de comportamento, e sua
metodologia pode ser eficiente em trazer à tona desejos reprimidos e encontrar a razão de
medos e crenças. Então, somamos a ela outras ferramentas (nossa metodologia multimodal)
que complementam sua eficácia ao atenderem outros aspectos da vida: a relação com a
sociedade e suas expectativas, com o trabalho e a necessidade produtiva, com o equilíbrio e
o controle dos vícios, por exemplo.
Para tanto, a combinação de toda nossa metodologia se relaciona com a proposta de
palestras, e reflexões aos nossos pacientes em um ciclo de 20 temas que fundamentam
nossa filosofia de trabalho. Idealizados, implantados e experimentados ao longo dos anos,
eles foram concebidos a partir do destaque que cada um desses temas representa nos
processos tradicionais da clínica psiquiátrica, juntamente com a própria experiência
empírica adquirida com os pacientes durante anos. Foram elaborados, portanto, a partir da
tradição humanista da Psicologia, da Filosofia e da Cultura.

159
Os temas se inter-relacionam e se complementam, formando um fio condutor que
acompanha e auxilia o processo terapêutico, são eles: Eu, Aceitação do eu, Édipo, Eu e os
outros, Aceitação do corpo, Sexualidade, Repressão, Medo, Realidade, Prazer, Fugas, Culpa,
Dor, CAP (Centro de Atenção Permanente), Disciplina, Recuperação/ Resiliência, Terapia,
Liberdade e Responsabilidade, Objetivos e Projetos de vida. Eles são trabalhados, além de
palestras diárias, em psicoterapia grupal, dinâmicas, recreações, arte e musicoterapia,
passeios temáticos, festas etc. com o intuito de subsidiar e fortalecer a autoanálise
necessária por parte do paciente para encontrar e entender as causas de sua enfermidade.
Didaticamente utilizamos uma semana nos concentrando no tema enquanto eixo do
tratamento, permitindo uma reflexão mais profunda e relacionando o tópico com aspectos
que auxiliarão na terapia, ampliando e ressignificando o autoconceito, o afeto por si
mesmo, os objetivos, a busca pela qualidade de vida e saúde.
Formatamos, enfim, um conhecimento que se ampara no aproveitamento de
diferentes ferramentas terapêuticas, as quais nos permitem cientificamente utilizarmos das
descobertas e avanços da medicina, da farmacologia e da psiquiatria. Ao mesmo tempo,
mantemos as relações dessas descobertas sob a psicanálise, a reflexão filosófica, uma visão
humanista e uma medicina holística à qual somam-se diferentes vertentes de tratamento.
Resumidamente podemos dizer que, já que a psicanálise é o estudo do inconsciente, o papel
de nossa terapêutica é, portanto, cuidar, oferecer o suporte e ferramentas, auxiliando o
paciente para que encontre, dentro do próprio ser, as respostas que precisa para curar seus
medos e angústias, as “feridas de sua alma”, para juntos realizarmos sua reabilitação
psicossocial, através de uma terapia humanista, de excelência e efetiva.

160
Liberdade e responsabilidade

“É o que posso expressar ao dizer que o homem está condenado a ser livre.
Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez
que foi lançado no mundo, é responsável por tudo que faz.
(...) o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”107
Jean Paul Sartre

A liberdade é uma condição humana. Nenhum outro ser na natureza possui a


condição de ser livre, de desafiar os próprios instintos, de possuir consciência da própria
existência, de possuir livre-arbítrio. A palavra liberdade vem do latim libertas e,
responsabilidade, do latim responsus, particípio passado de respondere. Ou seja, junto com
a liberdade vem a responsabilidade, a necessidade de respondermos pelos atos que
escolhemos.
Este tema, enquanto tópico de tratamento em nossas Estâncias Clínicas, vem
consolidar a base de nossa visão sobre nossos pacientes. Ao afirmarmos que propomos uma
terapia humanista, também estamos dizendo que entendemos o ser humano como um
processo, ainda inacabado e que vai se construindo mediante sua liberdade. Que possui
limites, mas que também pode encontrar sempre uma maneira de transpô-los, de resolvê-los.
Esse potencial que possui para ir além, romper com as amarras que lhe cerca, com as
condições que lhe escravizam, está em sua própria essência, em sua pulsão de vida. Ao
mesmo tempo, entendemos que não se pode ver inteiramente livre da própria consciência, da
responsabilidade e consequências das escolhas.
Compreendemos que, fundamentalmente na Terapia, é necessária a coragem para se
realizar a autoanálise sobre a responsabilidade das consequências do uso que todos fazemos
(e fizemos) de nossa liberdade. Cremos que é necessário então assumirmos a direção, deixar
de nos vermos como espectadores da nossa própria vida e tornamo-nos agentes de
transformação do nosso próprio destino, do nosso eu. Quando assumimos nossa capacidade
de liberdade, juntamente passamos a perceber que junto com nossas escolhas, vem suas
consequências, que podem ser boas ou ruins. Os resultados das escolhas negativas, como o
alcoolismo e a adicção, ou comer demais e de maneira inconsequente, trarão consequências

107
Sartre, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. Coleção Os Pensadores, pág, 6. Ed. Nova cultural.

161
para o resto da vida. Este tema vem propor uma reflexão sobre a responsabilidade de nos
atermos ao uso que fazemos da consciência de nossa liberdade para usufruirmos, agora e
futuramente, de mais qualidade de vida.
Porém, vamos refletir melhor sobre o conceito de liberdade e responsabilidade. Uma
frase de Cecília Meireles108, retirada de seu livro Romanceiro da Inconfidência, também nos
traz um conceito profundo que podemos utilizar para ampliar nossa compreensão:
"Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta,
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda.”

Dentro de nós, sabemos a liberdade que queremos possuir, entendemos o que ela
significa, mesmo que não consigamos explicar aos outros o que ela nos representa.
Contudo, podemos afirmar que ela alimenta o sonho íntimo de cada um e que somente a
partir de escolhas onde exercitamos livremente o arbítrio, podemos ser felizes.
Podemos afirmar também que, ao contrário do que muitos possam pensar, fazer uso
consciente da liberdade não significa fazer o que se quer, o que momentaneamente possa
nos trazer prazer e alegria, mas sim o que é preciso para vivermos mais felizes em nosso dia-
a-dia. E, se o resultado de nossas escolhas nos levou a um erro, aceitar que todo mundo
erra. O importante é reconhecermos os erros, sempre que pudermos corrigirmos suas
consequências e não ficarmos repetindo esses mesmos erros, criando e recriando nossas
próprias algemas e prisões.
Quantas vezes estamos em um trabalho ou numa relação que não nos satisfaz, mas
adiamos tomar uma decisão que nos libertará? Quantas vezes alimentamos comportamentos
viciosos que nos mantêm em um pesadelo? Como já explanamos em nosso tópico de
tratamento Fugas, quando começamos a identificar nossos mecanismos de defesa109,
começamos a perceber as armadilhas que construímos e as gaiolas em que nos encerramos,
as quais construímos para nós mesmos, nos condicionando a agir através de gatilhos com os
quais evitamos o que nos frustra ou oprime, mas nos mantém reféns de comportamentos
que não conseguimos evitar, ou seja, como maneiras de resolução do inconsciente ao que lhe
oprime, este estabelece fenômenos de defesa permanente, estruturados pela psique: os
nossos próprios mecanismos de defesa nos escravizam. É necessária a coragem de conhecer
e se fazer libertar dos vícios a que se submeteu. Superar situações de opressão que nos retém

108
(1901 – 1964) grande poeta que, em seu livro Romanceiro da Inconfidência, trata das lutas pela liberdade no
Brasil, inclusive as dos escravos, mas sobretudo quanto à liberdade política, representada pela inconfidência
mineira.
109
Os quais descrevemos sinteticamente no tema “Fugas”.

162
amarrados a um passado de fracassos e frustrações é fazer o verdadeiro uso de nosso direito
à liberdade.
Quando não se consegue viver com qualidade de vida, quando não se consegue
mudar o rumo da própria vida, por um vício, qualquer que seja, nos sentimos como escravos.
Quando para fazer qualquer coisa dependemos da autorização dos outros, nos sentimos
como escravos, pois não podemos fazer uso de nossas escolhas e de nossa liberdade. Quando
alguma coisa, ou mesmo uma força interior, nos obriga a um comportamento sabidamente
insano, ou seja, não encontramos forças para agir com bom senso, então, também nos
fazemos escravos de nós mesmos. Quando para superar uma timidez ou fugir das opressões
precisamos beber, ou para apagar as mágoas, usamos de alguma química, também nos
tornamos escravos, pois a nossa aparente paz dependerá deste uso. Nós nos fizemos
dependentes e é preciso reconquistarmos nosso direito à liberdade.
O acesso às drogas ilegais está facilitado tanto quanto o acesso ao álcool ou
medicamentos, porém, o problema não é a legalidade e sim o nosso poder de escolha.
Quantos adictos nós vemos nas ruas? Eles tiveram o momento da escolha, hoje se fazem
escravos. Não conseguem dizer não, a força que os impulsiona a usar é maior do que o seu
são juízo para mudar de vida. Consequência de quem achou que usava o sagrado direito da
liberdade escolhendo um prazer imediato para acalmar suas angústias e hoje só procuram
conseguir, de qualquer forma, dinheiro para escravizar-se mais e mais. Parafraseando o
nosso famoso grito às margens do Ipiranga, “independência ou a morte”, a dependência
neste caso, é a morte. A pessoa dependente não vive sua vida, estando sempre submetida às
obsessões e compulsões, não viverá plenamente a vida que é o maior dom que recebeu, a sua
existência não terá sentido.
No trabalho que realizamos nas Estâncias Clínicas, diariamente acolhemos jovens
que num momento, querendo fazer uso de sua liberdade, optaram por exemplo, sem perceber
por uma vida de trilha muito estreita que os levou a adicção, uma bitola de mão única, sem
outras alternativas, e olhando para o passado veem que nada sustentável foi construído, que
só viviam aquela inesgotável sequência de momentos de prazeres fortes e breves. A luta pra
sair dessa escravatura não é fácil, mas é possível. Sempre há a oportunidade de um
recomeço, de optar pela superação, de fazer uso do direito à liberdade e escolher um novo
caminho, o da construção de uma vida digna. Resgatar a confiança em nossas capacidades,
aproveitar quaisquer circunstâncias para atingir as verdadeiras metas almejadas e um dia
poder ver os sonhos concretizados. Acreditamos que é sempre possível reconquistar os

163
rumos para podermos marcar positivamente a nossa história e a das pessoas que nos
circundam, vivermos em liberdade e não em dependência.
Os conceitos de dependência vão muito além dos problemas com álcool e outras
drogas. Está também ligada de maneira ampla às diversas dependências afetivas, psíquicas e
comportamentais. Filhos que se veem muito dependentes dos pais (tratamos especificamente
deste assunto em nosso tema Édipo), relacionamentos conjugais doentios em que os
parceiros não conseguem estabelecer uma convivência sadia ou ainda pessoas que não
conseguem aceitar o fim destes relacionamentos. Conhecemos pacientes exauridos por
concordarem com todas as situações impostas pelos outros, por medo de contrariá-los e
perdê-lo, como nos casos de transtornos de personalidade dependente (como também
abordamos em nosso tema CAP), os comportamentos de dependência e submissão formam-
se com o intuito de conseguir cuidado e derivam de uma autopercepção de não serem
capazes de realizar nada sem a ajuda de outros. São ansiosos e inibidos e podem ir a
extremos para conseguir cuidado e apoio. Estão predispostos a se submeterem ao que os
outros desejam, mesmo que isso lhes traga sofrimento. Essa necessidade frequentemente
resulta em relacionamentos desequilibrados e distorcidos. Essas pessoas podem fazer
sacrifícios extraordinários ou muitas vezes chegarem a tolerar abuso verbal, físico ou sexual
com medo de perderem os vínculos afetivos. Podem sentirem-se desconfortáveis ou
desamparadas quando sós devido aos temores exagerados de não serem capazes de cuidar de
si mesmas. Possuirão dificuldade em tomar suas próprias decisões e em prosseguirem com
projetos pessoais sem que recebam o apoio das pessoas que dependem emocionalmente.
Martha Medeiros, (1961) é uma escritora, jornalista, cronista e poeta, em seu livro Cartas
extraviadas e outros poemas, nos traz uma bela reflexão sobre a liberdade e os
relacionamentos:
Carta Extraviada 3
“Não é da minha natureza esperar que me deem liberdade, não espero pelo pouco
que há de essencial na vida.
Sendo liberdade uma delas, eu mesmo me concedo.
Ser livre não me ensinou a amar direito, se por direito entende-se este amor
preestabelecido, mas me ensinou as sutilezas do sentimento, que, afinal, é o que
caracteriza e o torna pessoal e irreproduzível.
Te amo muito, até quando não percebo.
O amor que sinto pode parecer estranho, e é por isso que o reconheço como
amor, pois não há amor universal: não, caríssima.
Não há um amor internacional, assim como são proclamados os cidadãos do
mundo.
Cada cidadão, um coração, e em cada um deles, códigos delicados.
Se não é este amor que queres, não queres amor, queres romance, este sim,
divulgadíssimo.
Te amo muito, e não sinto medo.

164
Bela e cega, busca em mim o que poderias encontrar em qualquer canto, em todo
corpo, homens e mulheres ao alcance de teus lábios e dedos, romance: conhecido
o enredo, é fácil desempenhá-lo.
E se casam os românticos, e fazem filhos e fazem cedo.
O amor que sinto poderia gerar casamento, pequenos acertos, distribuição de
tarefas, mas eu gosto tanto, inteiro, que não quero me ocupar de outra coisa que
não seja de você, de mim, do nosso segredo.
Te amo muito, e pouco penso.
Esta carta não chegará, como não chegarão ao seu entendimento estas palavras
risíveis, estes conceitos que aos outros soariam como desculpa de aventureiro ou
até mesmo plágio, já que não há originalidade na ideia, muito difundida, porém
bastante censurada.
Serei eu o romântico, o ingênuo?
Serei o que quiseres em teu pensamento, tampouco me entendo, mas sinto-me livre
para dizer: te amo muito, sem rendimento, aceso, amor sem formato, altura ou
peso, amor sem conceito, aceitação,
impassível de julgamento, aberto, incorreto, amor que nem sabe se é este o nome
direito, amor, mas que seja amor.
Te amo muito, e subscrevo-me.”

A questão está justamente em que as expectativas afetivas podem não serem


atendidas, as pessoas podem não estar disponíveis ou interessadas em nossa maneira e
exigências de amar. O reforço terapêutico para a autonomia e autoestima são fundamentais
nestes casos, pois essa dependência pode ser um terrível mal para o equilíbrio pessoal.
Os conceitos de liberdade e responsabilidade também atingem a questão da não
aceitação às regras de convivência, a não compreensão de que “nossa liberdade termina
onde começa a do outro”. É indispensável a aceitação de que muitas regras a que
precisamos nos submeter são necessárias. Em nossas palestras, entre outros exemplos,
utilizamos as do trânsito: são necessárias, pois de outra maneira seria se não tivéssemos as
normas de velocidade, do sentido de mão ida-vinda, de estacionamento etc.? Formaria nas
vias um caos intransitável. Estas regulamentações ajudam-nos a transitar com segurança e
liberdade! Da mesma forma, o respeito às regras de convivência é essencial para a vida em
coletividade.
Para aprofundarmos ainda mais nossa reflexão sobre liberdade e responsabilidade,
vamos retomar a questão ética. Nós, humanos, não vivemos sozinhos. Há uma infinidade de
relações que estabelecemos o tempo todo – com a nossa família, com os nossos vizinhos,
com os nossos amigos, com colegas de escola e trabalho etc. Ao mesmo tempo todos nós
somos singulares: temos vontades, pensamentos e modos de expressão diferentes de todos
ao nosso redor. Para possibilitar a vida em comum, ou seja, a vida ao lado das outras
pessoas, e para garantir que todas elas possam agir em liberdade que, ao longo dos anos,
construiu-se a noção de ética e das regras.

165
A palavra “ética” vem do grego éthikos que significa modos de ser, e ethos, que
significa regras da casa. A ética pode ser entendida como a reflexão sobre o comportamento
moral. Ela analisa os fatos morais a partir das noções de bem e mal, de justo e de injusto, e
pretende elaborar princípios de vida para orientar as ações das pessoas. Quando falamos que
alguém é responsável ou tem responsabilidade sobre alguma coisa, significa que essa pessoa
tem condições de pensar e responder sobre seus atos. E uma pessoa que tem condições de
pensar sobre seus atos, tanto os do passado quanto os do presente, pode escolher por si
mesma a forma como irá agir no futuro, formar as bases de sua moral, do seu caráter. Por
isso, dizemos que as questões do vício se opõem às virtudes da liberdade (virtude, que deriva
do latim virtus, e significa força ou qualidade essencial) e da ética, que segundo Aristóteles,
possui como objetivo final o bem, para si mesmo e aos outros. Os vícios minam nossa
vitalidade para a vida, em virtude de podermos escolher. Nos Direitos Humanos, base ética
de nossas propostas de tratamento, vemos refletidos o conjunto de valores que atendem as
necessidades de liberdade individuais e coletivas. Sem eles não é possível sermos realmente
humanos em nossa virtude e potencialidade. Se há fatores objetivos que limitam a liberdade
humana, como as leis, as normas, a situação social, é possível que, pela ação através da
liberdade, esses limites sejam expandidos e reformulados.
O “cogito ergo sum” (penso, logo existo) de René Descartes, ou seja, essa nossa
capacidade de pensar a realidade, de refletir (do latim reflectere, que significa voltar atrás e
pensar melhor) sobre as próprias crenças e condicionamentos é o que permite sermos livres
ao nos possibilitar rever a realidade e poder escolher outra, menos opressora, limitante e
mais feliz. É necessária a vontade e a coragem de tentar. Essa nossa inteligência, que tanto
nos permitiu evoluir, também nos permite enxergar além do momento em que estamos e
superá-lo. Nos permite utilizar da liberdade para enfrentar o que nos aflige, para fazer
escolhas saudáveis e nos tornarmos nosso próprio instrumento na busca da felicidade. Ser
livre, portanto, significa escolher aquilo que se quer, porém, esta escolha deve possuir o
objetivo do bem-estar, da busca da nossa felicidade e a dos outros, sendo esta escolha
principalmente de nossa responsabilidade. Justamente por isso é de suma importância o
paciente escolher, por sua própria vontade, aderir ao tratamento.
Assumirmos a responsabilidade pelos próprios sentimentos, ações e comportamentos
é estabelecer para si mesmo um posicionamento de honestidade perante a vida e os outros:
nossas escolhas terão sempre consequências, e, ao fazermos ou deixarmos de fazer algo
através delas, devemos sempre assumir que nós estamos fazendo uso de nossa liberdade, e
os rumos que a vida tomar sempre estará ligada às decisões que escolhemos. Esta postura

166
perante nós mesmos, nos retira da “plateia” (como já dissemos), de uma postura de
espectadores sobre a própria vida, onde ficamos apenas nos lamuriando, nos vitimizando,
praguejando e transferindo aos outros a culpa de nossos problemas.
Devemos lembrar também que a condição humana é a de conflito interno, entre os
desejos e a realidade (id e superego). Os desejos inconscientes trazem à consciência do
sujeito a responsabilidade de fazer escolhas, esta responsabilidade torna-se difícil e gera
angústia justamente porque não termina simplesmente ao escolhermos o que queremos, mas
nas dificuldades para sua realização, nas exigências da realidade, nas implicações que
trazem aos outros que também fazem partes de nossa vida, em suma, nas responsabilidades
das quais nascem os conflitos.
É preciso sempre considerar que muitas vezes precisamos renunciar a nossos desejos
para atender as exigências e expectativas dos outros, seja pelas obrigações, pela nossa
necessidade de participação, de interação, de amor com os filhos, os cônjuges, os amigos, o
trabalho, etc. Faz-se necessária a reflexão sobre essas relações, o equilíbrio, ou pelo menos a
busca dele, para nos sentirmos felizes em nossa jornada juntamente com eles. É preciso
aprender a tolerar, a ceder, a aceitar os outros e a realidade tal como ela se apresenta. É
preciso aprender a ser resiliente, a suportar, a sofrer e se frustrar nessas relações, porque
muitas vezes são inevitáveis e estas dificuldades fazem parte da vida de qualquer ser
humano.
Como já dissemos, é fundamental não abandonar as exigências externas, mas, ao
mesmo tempo é essencial voltar-se às exigências internas, voltar-se pra dentro de si e
observar os próprios sentimentos e opiniões em relação ao que pede o mundo externo: será
que precisamos mesmo acompanhar todas as modas, alcançar o topo do status, cumprir todas
as obrigações que os outros e a sociedade impõe? Fazer bom uso da liberdade é aprender a
escolher por si, educando justamente o bom senso e a autonomia. Aceitar que ao fazermos
algumas escolhas estamos também abrindo mão de outras e que isto pode causar um mal-
estar, como dissemos, uma angústia. Ela não pode ser ignorada pois é sintomática e
representa a condição de ser humano e livre. Ter coragem de entender esta angústia e
procurar uma maneira de resolvê-la ou viver melhor apesar dela, está, portanto, na essência
da condição humana e na terapêutica que propomos.
Quanto mais conhecermos os determinismos que nos cercam e os
condicionamentos aos quais nos submetemos, maior será o nosso poder de ação
transformador sobre eles. Foi assim em toda a história, na transformação das injustiças
sociais pela luta consciente aos que a elas se impuseram e nas mudanças dos

167
comportamentos pessoais. Está na virtude humana a capacidade de mudar, a si mesmo, e a
realidade que lhe cerca. Assim, o indivíduo que possui dificuldades, transtornos e vícios,
pode, ao reconhecê-los, também assumir uma postura positiva para sua felicidade, ao
escolher combatê-los. Ao passo que refletimos sobre nossos limites e a nossa realidade, e
percebemos o quanto e como somos afetados, resta-nos justamente a decisão de que postura
iremos tomar. Não nos faltam exemplos no decorrer da história: as lutas contra a
escravatura, as lutas feministas, o pacifismo, as marchas pela ampliação aos direitos e pela
dignidade. Elas podem nos inspirar. Também podemos, na singularidade de nossos
problemas, aprendermos a lutarmos pela conquista de nossa dignidade e autonomia, para de
fato, aprendermos a sermos livres e responsáveis.
Objetivos

“O sucesso nasce do querer, da determinação e persistência em se chegar a um


objetivo. Mesmo não atingindo o alvo, quem busca e vence obstáculos, no mínimo
fará coisas admiráveis.”110
José de Alencar

Os objetivos são elementos fundamentais no processo terapêutico. Em sua


etimologia a palavra nos traz o sentido de atingir um determinado objeto (do latim:
obiectum), significa de maneira ampla o que se pretende alcançar quando se realiza uma
ação, ou ainda, um propósito, uma meta, um destino. É importante que todo ser humano
tenha anseios, vontades, propósitos e, por isso, crie metas e objetivos para materializar seus
desejos. Um objetivo é, portanto, o que move o indivíduo a tomar a decisão de correr atrás
de suas aspirações. Objetivo também é sinônimo de alvo, como ponto de mira ou como algo
concreto, um fim a se atingir e, assim, podem ser considerados ainda valores e
finalidades ligadas a expectativas futuras.
Quando a palavra objetivo é usada como adjetivo, ela significa a capacidade de
se concentrar no objetivo (objetividade) ou matéria em questão. Estabelecer um objetivo é,
portanto, essencial para aquele que pretende superar seus limites e dificuldades, seguir além.

110
José Martiniano de Alencar (01 /05/1829 a 12/12/ 1877). Foi um jornalista, político, advogado, orador,
crítico, cronista, polemista, romancista e dramaturgo brasileiro. Autor entre outros de Cinco Minutos, A
Viuvinha, O Guarani em (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).

168
Em nosso processo terapêutico, entendemos que ajudar o paciente a estabelecer um objetivo
para si é fundamental como ferramenta de motivação para a sua recuperação e reabilitação.
Definir um objetivo é o primeiro passo para se construir um projeto de vida (um
tópico específico de nosso tratamento). O ser humano sonha, imagina e deseja algo. Quando
encontra o seu objeto de desejo e procura estabelecer na realidade um processo para atingi-
lo, precisa elaborá-lo reflexivamente e construir uma estratégia para alcançá-lo. Assim, ao
desejar ser por exemplo um engenheiro, precisará considerar a realidade e as exigências que
são requeridas para sua realização: preparação, dedicação, estudo, tempo, dinheiro,
habilidades etc. Considerar o passo-a-passo de uma meta e fortalecer em nossos pacientes a
coragem, a resiliência e a motivação para sua jornada são parte de nossos objetivos
enquanto Clínicas de reabilitação. Acreditamos que justamente no processo terapêutico ao
estabelecer para si um objetivo e encarando a própria realidade, a pessoa poderá construir
estratégias para conquistar a superação ou o controle das dificuldades que lhe afligem.
Sendo assim, o primeiro passo para que se faça um diagnóstico de si mesmo, e entenda o
estado atual em que se encontra e o estado que pretende estar com o passar do tempo, é
justamente o “Conhece-te a ti mesmo” (do grego: “Gnõthi seauton”, e do latim: “Nosce te
ipsum”)111. Antes de traçarmos nossos objetivos, é fundamental iniciarmos a arte de nos
conhecermos: nossas emoções, nossos limites, nossos medos, nossos valores e habilidades,
nossa história de vida, o que move nossos espíritos: nossas intenções e sonhos.
A prática da arte zen, seja ela a do arranjo floral, a da jardinagem, a do bushidô
(espada), ou do tiro com arco, fala da intenção sem intenção. Apesar de parecer
contraditório, as questões que apresentamos neste tópico de tratamento são muito parecidas:
o que pretendemos atingir? O alvo? Quais as nossas metas? Nossos esforços e resultados
servirão apenas para exibicionismo, para cumprir as expectativas dos outros? Ao chegar à
meta almejada, entendemos que ela representará apenas um estágio de outras metas a serem
alcançadas?
“Quando estiramos a corda ao máximo”, disse-nos o mestre, “o arco abarca o
universo, e por isso é importante saber curvá-lo adequadamente, na medida do
que pretendemos atingir”. Assim como o jiu-jitsu que é muito utilizado nas lutas
de campeonato contra os adversários mais terríveis, significando literalmente arte
gentil, e o seu símbolo é o da água que sempre cede, mas jamais é vencida. Não
foi por outro motivo que Lao-Tsé112 disse que a vida autêntica se parece com a

111
Máxima socrática, inscrição no portal do oráculo de Delfos
112
Chinês que viveu no século VI a.C. Considerado o “pai” do taoísmo, foi contemporâneo de Confúcio. É
autor docélebre Tao-teching, que contém a essência do seu pensamento, todo ele voltado para a bipolaridade
cósmica, e cuja tradução aproximada é o livro que conduz à divindade.

169
água, que a tudo se adapta porque a tudo se submete. Isso significa que o espírito
está onipresente, porque não está preso em nenhum lugar. Podemos compará-lo
à água que enche um tanque, mas que em qualquer momento está em condições de
extravasá-lo. Pode usar sua inesgotável energia porque está livre, e abrir-se para
todas as coisas porque está vazio.”113

Juntamente com os objetivos que elegemos é fundamental a reflexão do "porquê" e


como buscá-los. O que realmente nos move? Em que curso colocaremos nosso espírito? Ou
numa linguagem terapêutica, em que mobilizaremos as forças de nossa psiquê? Caso
contrário, como dissemos, podemos viver uma vida baseada nos valores e objetivos alheios,
o que fatalmente nos levará à infelicidade. Os valores pessoais são o nosso Norte, o que
direciona a nossa vida e nos impulsiona, o que pode nos trazer prazeres estáveis, uma
felicidade profunda e verdadeira. Reconhecer os nossos próprios valores e criar um objetivo
nos torna mais seguros sobre quem somos, o que queremos e o que realmente tem
importância para nós.
Seguidamente, no direcionamento que damos aos objetivos, é preciso estabelecer
nossa meta, ou seja, quando e como pretendemos atingi-los. Objetivo sem meta ainda é um
sonho, e para ela estabelecemos um planejamento pessoal (descrevemos seu processo no
tópico: Projeto de vida). Como desejamos nos ver no futuro? O objetivo é o que nos move e
o que nos motiva diariamente. Por isso, é essencial que estejamos preparados para traçar
nossas metas e realizar ações no sentido de concretizá-las.
Existem muitas maneiras de estabelecer metas. Por exemplo, pode-se começar com
objetivos mais simples, os quais se consegue mais facilmente alcançar e depois ir
aumentando a complexidade do que se deseja. Há quem já comece com objetivos mais
ousados e difíceis, porém, para que dê certo, é preciso resiliência, organização e disciplina.
Quem se propõe a fazer algo é preciso estar compenetrado e focado no caminho que
pretende percorrer. Quem não tem por hábito se planejar e acaba vivendo a vida sem
programação, pode ter dificuldade de iniciar um plano de ação. As consequências de quem
não tem objetivos ou planos para o futuro é como viver “apagando incêndios”, limitados
pela situação presente. Quem se organiza constrói com cuidado e precaução. Apesar de
ninguém "prever" o futuro, pois imprevistos acontecem, é importante ser flexível e
reorganizar as etapas do processo mediante as dificuldades.
Perceber que se não estabelecermos nossas metas, alguém (pais, cônjuges, colegas,
chefes, etc.) procurará fazer isto por nós. Desta forma, podemos acabar vivendo apenas os

113
HERRIGELL, E. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. Ed Pensamento

170
sonhos alheios, fazendo coisas que não são importantes para nós, ou pior, que não queremos.
E assim, pouco a pouco, a nossa vida pode perder o significado. No entanto, se quisermos
realmente viver uma vida de verdade, podemos escolher sermos os autores principais de
nossas vidas, protagonistas de nossa história e começarmos a viver o que sonhamos,
assumindo a nossa liberdade desde que juntamente aceitemos a responsabilidade sobre ela.
Assumir responsabilidade significa cuidar de nossos próprios sentimentos, metas e
necessidades, ao invés, de esperar que os outros cuidem e façam as coisas por nós. Assim, a
pessoa responsável por sua vida, assume as consequências de seus comportamentos,
pensamentos e emoções. Apesar de considerar o outro e a realidade, busca sempre sua
autonomia.
Todavia, após conhecer e refletir sobre o que motiva o indivíduo ao formular um
objetivo e então se pensar no processo da meta a ser alcançada, a autonomia e as reais
aspirações pessoais, precisamos perceber que realmente não alcançaremos êxitos sozinhos,
que precisaremos considerar os outros neste processo. Não para definirem o caminho, mas
para acompanharem, auxiliarem e, para essa jornada é requerida a arte da convivência!
A caminhada é feita no dia a dia, no tempo e no intercâmbio constante entre as
pessoas e a realidade. Apesar do objetivo ser algo concreto, ele estará em transformação, e
como dissemos, assim como a água, precisará aprender a adaptar-se à realidade. Cada um
em seu momento, em seu processo histórico, precisa se readequar às necessidades às quais
se defronta.
Citando como exemplo a própria experiência pessoal deste que vos escreve, em ser
um psicólogo, desde a descoberta desta vontade, desta vocação, até a dedicação em um
curso, passando para a atuação e o trabalho atual, realizado ao longo dos anos na formação
de nossas Estâncias Clínicas, onde a psicologia que estudei e reformulei na prática de
inúmeros casos, precisou ser reconsiderada: a luta antimanicomial, a qual defendi
radicalmente, precisou ser revista. Compreendi que a realidade do atendimento e cuidado
com a saúde mental da sociedade possui falhas em que apenas uma internação de qualidade,
mantendo os princípios humanistas, seria capaz de ajudar os diversos pacientes a que temos
prestado serviço ao longo destes anos. Precisei me adequar às condições e necessidades.
Precisamos nos adaptar à realidade, mas sem perder nossos princípios.
Vamos pensar na situação de um casal que sonha com um filho. Muitas vezes
pensam apenas naquela bela criança pequena, no bebê. Mas precisam considerar que aquele
ser é livre, que crescerá, se tornará adolescente, possuirá suas próprias angústias e desejos.
Não será jamais aquela criança desejada. Será preciso aceitar sua realidade e transformações,

171
mais ainda, nos submeter a essas transformações, nos adaptarmos às suas exigências. É
preciso aprender a negociar conosco mesmo e entendermos que não perderemos, mas
aceitando que nossos objetivos que antes possuíam uma face, vão se modificando ao longo
de sua realização, ao longo de nossa própria transformação.
Nossa realização pessoal, a busca de nossa plenitude, não está ligada apenas a
alcançarmos este ou aquele objetivo, mas veremos que nossos triunfos estarão mais
relacionados com a capacidade de nos adequarmos com equilíbrio e satisfação à realização
que nos foi possível alcançar mediante nossos esforços e intenções do que o fim em si
mesmo.
A música: We are the Champion, da banda Queen, composta por Freddie Mercury,
tema de inúmeras formaturas (momento clássico da realização de objetivos) traz um aspecto
belíssimo que vem corroborar o que temos apresentado neste tópico, vejamos este trecho:
“I've paid my dues/ Time after time/ I've done my sentence/ But committed no
crime/ And bad mistakes/ I've made a few/ I've had my share of sand kicked in my
face/ But I've come through/ And we mean to go on and on and on and on/ We are
the champions, my friends/And we'll keep on fighting till the end/ We are the
champions/ We are the championsq No time for losers/ 'Cause we are the
champions of the world(...)”

“Eu paguei minhas dívidas/ De novo e de novo/Eu cumpri minha sentença/


Mas não cometi nenhum crime/ E erros/ Eu cometi alguns/ Eu tive minha porção
de areia atirada sobre o meu rosto/ Mas eu sobrevivi/ E nós pretendemos
continuar e continuar e continuar/ Nós somos os campeões, meus amigos/ E nós
continuaremos lutando até o fim/ Nós somos os campeões/ Nós somos os
campeões/ Os perdedores não têm vez/Pois nós somos os campeões do mundo(...)

Nós já somos os campeões quando nos propomos a enfrentar as adversidades.


Persistir no objetivo é manter um caminho, viver o momento presente com um propósito é
possuir em si mesmo a motivação para continuar, para resistir e superar. Em nosso primeiro
tópico: Eu, citamos Antônio Machado, poeta espanhol: “caminhante não há caminho, o
caminho se faz ao caminhar”. Em relação ao objetivo, apesar de ser algo concreto, deve ser
readequado conforme o contexto e às mudanças do próprio indivíduo e da realidade. A esta
condição dialética entre o ser e o vir a ser, que é própria do ser humano e que é própria da
vida, pensamos em acordo com a frase atribuída a Albert Einstein: “viver é como andar de
bicicleta. É preciso estar em constante movimento para manter o equilíbrio”. Entre o ser e o
objeto a ser alcançado, está o tempo. É preciso constantemente aprender a amadurecer o
objetivo. Em sua solidez ele também é variável. É preciso sermos revolucionários no sentido
de transformar a realidade e a nós mesmos nela, ao mesmo tempo procurando
permanecermos íntegros com nós mesmos, isto é, com nossos valores e princípios

172
Para refletirmos ainda mais profundamente sobre os objetivos, além de primeiro
buscarmos conhecermos a nós mesmos, nossos desejos e o que os motiva. Além de
considerarmos o tempo, a realidade e suas demandas, para estabelecermos uma estratégia e
uma meta. Além de incluirmos os outros em nossos planos e aprendermos a aceitar as
transformações do mundo e de nós mesmos, nos equilibrando, apesar das adversidades e
frustrações, é fundamental pensarmos sobre a felicidade.

173
.
A felicidade é esse ingrediente instável, raro, delicado, etéreo e essencial, sem o qual
sabemos, a vida não possui cor nem vitalidade. A etimologia da palavra felicidade vem do
latim felicĭtas,ātis, qualidade ou estado de estar feliz, satisfeito. Feliz, por sua vez, vem de
felix, que possui relação com permanecer em “estado de fertilidade”. Estar fértil de mais vida,
é mais do que um momento de alegria. A felicidade não é contínua, mas em suas oscilações é
o que alimenta nossa “pulsão de vida”114 . Torna nossa vida fértil, possível de vir a ser,
enquanto sempre permanecemos na condição de seres desejantes, carentes. Assim,
fundamentalmente devemos lembrar de nos perguntarmos: estamos felizes enquanto
buscamos nossos objetivos?
Caso não estejamos, é o sinal de que precisamos para revê-los.
Afirmamos que uma felicidade estável está ligada justamente ao equilíbrio e à
amorosidade que conseguimos desenvolver em nós, com os outros e com o mundo.
Holisticamente na inter-relação de trocas que continuamente estabelecemos com a vida, a
integração com nosso self só é possível mediante esta atitude de coragem e boa vontade. O
auto propósito de ser feliz requer que algumas vezes neguemos a satisfação de momentos de
deleite e diversão para investirmos neste objetivo de uma felicidade estável, que não é apenas
um objetivo futuro, mas que está no presente e permanece nos alimentando durante os dias.
Essa preservação, este equilíbrio em nossa entrega aos prazeres, reserva em si a esperança de
sermos ainda mais felizes com o que nossos atos trarão, a esperança proativa na superação
das dificuldades é o estado de fertilidade que desejamos em nossos pacientes. Abertos ao
crescimento, ao seu potencial de ser mais.
Enfim, o objetivo é o que se busca atingir, mas afinal, o “máximo” que podemos
atingir é a autonomia e a felicidade enquanto buscamos. Enquanto seres inacabados, mas ao
mesmo tempo de um potencial imensurável, nos construímos dia a dia mediante nossas
escolhas nos confrontos com a realidade. Enquanto perseguimos nossos objetivos, a satisfação
já estará na alegria que sentiremos ao amarmos mais a nós mesmos por isso, estará presente
ao constatarmos que sentimos orgulho quando nos olhamos no espelho, estará na paz que
gozaremos ao deitarmos e podermos descansar, com a consciência tranquila, de que estamos
fazendo o melhor que podemos.

114
Já tratamos das “ pulsões de vida e pulsões de morte” propostas por Freud, sobretudo em nosso tema Prazer.

174
Projeto de vida

“O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa,
Ama também o arco que permanece estável".115
Gibran Khalil Gibran

A palavra projeto advém do termo em latim “projectum” que significa algo lançado à
frente. O que projetamos assemelha-se ao disparar de uma flecha, um projétil que lançamos
para atingir um alvo. Neste sentido, o projeto de vida auxilia na orientação que a pessoa
oferece a si mesma. É também um instrumento para que se conheça melhor, descubra seus
potenciais e os caminhos mais promissores para a felicidade, ou seja, sua realização integral
na busca por liberdade e plenitude. Lembrando que a realização não estará associada a um
estado final, estacionário, mas na abertura de novos redimensionamentos e de novas
superações.
Primeiramente, entre seus aspectos fundamentais, está a importância dos pacientes
refletirem sobre seus desejos, os quais se traduzem em seus sonhos: sejam eles profissionais,
afetivos, sociais, etc. Ao reverem seus sonhos juntamente com seu histórico de vida, seus
limites e potenciais, propomos que, com coragem, tomem a própria vida para si e se percebam
capazes de transformá-la e conquistar, a partir da realidade, um futuro positivo. Aproveitando
o tempo/espaço privilegiado do tratamento para encontrarem sua motivação íntima e
fortalecerem sua determinação, para que, ao saírem da condição de internação, crise,
depressão ou dependência química em que momentaneamente se encontrem, estabeleçam para
si próprios, o caminho a seguir. Assim como no texto da epígrafe, de Khalil Gibran,
aproveitamos também a metáfora do arco e flecha para aludirmos sobre o paciente e as metas
que estabelece para si mesmo: ele é o arco, é a flecha e é o alvo:
“O que nos surpreende na prática do tiro com arco, e na de outras artes que se
cultivam no Japão (e provavelmente também em outros países do Extremo Oriente)
é que não tem como objetivo nem resultados práticos, nem o aprimoramento do
prazer estético, mas exercitar a consciência, com a finalidade de fazê-la atingir a
realidade última. A meta do arqueiro não é apenas atingir o alvo; a espada não é
empunhada para derrotar o adversário; o dançarino não dança unicamente com a
finalidade de executar movimentos harmoniosos. O que eles pretendem, antes de
tudo, é harmonizar o consciente com o inconsciente. (...) A Doutrina Magna do
tiro com arco nos diz outra coisa. Segundo ela, desde os seus primórdios, trata-se

115
Do livro “O profeta”.

175
de uma questão de vida e morte, na medida em que é uma luta do arqueiro consigo
mesmo. Essa forma de luta não é uma medíocre contra facção, mas sim o que
inspira e sustenta toda a luta contra o mundo exterior (...).”116

O paciente vivencia através dos outros tópicos em seu tratamento, reflexões sobre
quem é, sobre seus medos, dores, complexos. O tratamento prevê também que revisite seu
histórico de vida, sua relação com os outros, reveja a própria realidade, seus mecanismos de
fuga, sua postura diante das dificuldades e da importância de estabelecer objetivos concretos e
sustentáveis. Portanto, o que estabelecer como alvo a ser atingido em seu projeto de vida, é
uma extensão de si mesmo. Da mesma forma, a força, a envergadura do arco e a mira,
também só podem ser realizadas por ele. O projétil será sua intenção, seus desejos, seus
sonhos. Ou seja, o desafio e o trabalho pertencem ao paciente. Sem a clareza de seus desejos
e sonhos, e nem a convicção da possibilidade de realização deles, não conjugará em si mesmo
as forças para forjar a disciplina necessária em esforços cotidianos, para a construção de um
futuro no qual se vejam, portanto, melhores e realizados.
A equipe terapêutica deve procurar sempre estabelecer uma relação positiva com os
pacientes neste aspecto, acompanhando e incentivando seus esforços, desfazendo a
autoimagem negativa com a qual possam se estigmatizar, fortalecendo sua convicção na
capacidade de realização no auto propósito que estabeleceram, oferecendo ferramentas que
apoiem a organização de agendas e cronogramas, instrumentos de organização, os quais são
essenciais na elaboração de um projeto de vida. Também podem oferecer atividades que
inspirem e ofereçam exemplos para a jornada a ser conquistada.
Independentemente de como nos encontramos no momento presente, podemos ampliar
a nossa consciência sobre a vida, estabelecendo um projeto integrador e libertador que, ao
decidirmos trilhá-lo, nos testará, nos apresentará novos conhecimentos, experiências e
vivências. Outra questão essencial é explicarmos ao paciente que a recompensa não está
apenas na realização dos seus planos, mas está justamente no processo, nas conquistas diárias:
mantendo-se em seus próprios projetos, o paciente se vê integrado na vida que deseja para si
mesmo.
A auto proposição deve estar vinculada à autoestima, na consciência da importância
de se amar e buscar o melhor para si mesmo, de rever seus prazeres imediatos e substituí-los
por outros, sustentáveis e saudáveis, os quais deverão propiciar qualidade de vida integral, em
seus diferentes aspectos, sejam psíquicos, afetivos, familiares e profissionais. Valores que
proporcionem sempre satisfação em viver!

116
Eugen Herrigell . A arte cavalheiresca do arqueiro zen. Ed. Pensamento. (Pag. 08. Introdução por Diasetz T.
Suzuki)

176
A descoberta da necessidade de refletirem sobre seus desejos, valorizarem seus
sonhos e os projetarem, estabelecendo cronogramas que nortearão suas ações, propiciará
vivenciarem justamente a experiência da construção, inicialmente com o apoio clínico e
terapêutico, além do inestimável respaldo familiar, para sequencialmente conquistarem passo-
a-passo a sua autonomia. Entendemos que o valor de uma conquista está ligada aos esforços
de alcançá-la e afirmamos que, sem a disciplina (a qual já abordamos anteriormente em
nossos tópicos), nenhuma conquista é possível. O estímulo da conscienciosidade é parte
fundamental de nossa terapêutica: o indivíduo consciencioso é caracterizado como eficiente,
organizado, autônomo, disciplinado, não impulsivo e orientado para seus objetivos.
O projeto de vida também é, portanto, parte de nossos tópicos de tratamento
justamente porque permite uma análise fundamental sobre “quem somos” e “quem
gostaríamos de ser” no futuro. Uma reflexão que aborda a questão do ser e vir a ser,
envolvendo a nós, os outros, nossos sonhos e estratégias para realizá-los. Ele está
indissociavelmente ligado, como dissemos, a um processo de descoberta de potencialidades,
de desejos, de limites e de autoconhecimentos. Esse processo será muito mais enriquecedor ao
estarmos atentos a ele, conscientes de seu valor e o desenvolvermos intencionalmente,
considerando sua influência em nós mesmos, na família e no mundo, afinal: “Sonho que se
sonha só é só um sonho que se sonha só; mas sonho que se sonha junto é realidade...” 117 Não
há realização plena de um indivíduo sem que ele considere os outros que fazem parte de sua
vida.
Veremos que não podemos estabelecer um projeto de vida sozinhos, sem incluirmos
devidamente nele nossa relação com a família e os outros. Ao mesmo tempo, é necessária
uma reflexão do que acumulamos e recalcamos a partir das expectativas da família e das
exigências que a sociedade deposita em nós. Ao alimentarmos sonhos que cumprirão apenas
os desejos de nossos familiares, ou de nossos cônjuges, muitas vezes nos frustramos. Ao nos
preocuparmos em atingir e cumprir todas as exigências dos status e da moda, com certeza
também iremos nos frustrar. Propomos inicialmente a coragem de nos auto conhecer, de
revermos nossos valores, e, a partir daí, reconsiderarmos adequadamente o papel da sociedade
em nossas vidas, pois, nossa plenitude também não se estabelecerá ao renegarmos os outros
ao nosso redor e o mundo em que vivemos. É preciso viver a vida que se pretende mudar.
Quanto mais avançarmos em conhecimentos, valores, habilidades e práticas
libertadoras, mais nos ajudaremos a mudar aquilo que desejamos, porém, sem estabelecermos
fugas, renegando nossa própria realidade e história.
117
Letra da música Prelúdio, de Raul Seixas.

177
Poder e querer transformar os sonhos em um projeto de vida, dependerá, portanto, de
autoconhecimento, planejamento e persistência. Ele pode ser alterado à medida que a pessoa
amadurece e revê seus desejos, que reconsidera seus valores e as dificuldades do caminho,
afinal, trata-se de um projeto. Ele requer que cada pessoa, no seu percurso pessoal, trace um
planejamento para atingir seus objetivos, estabelecendo roteiros e metas intencionais. Esse
planejamento pode prever ações para curto, médio e longo prazo, incluindo em sua
configuração, o que diz respeito aos estudos, relacionamentos, trabalho, como também o que
concerne às escolhas de estilo de vida saudável, sustentável, ético e produtivo.
As grandes execuções do mundo em que vivemos, com certeza foram primeiramente
sonhadas por seus executores. No entanto, os sonhos só ganham força quando saem dos
desejos e da imaginação para o papel, para um plano, por isso é imprescindível que se prepare
um cronograma, uma agenda, passo a passo, para se analisar que grau de importância os
objetivos traçados realmente têm em nossa vida. Conjuntamente, podem ser estabelecidos
pequenos planos, com metas simples e objetivas, nas quais se busque resolver questões que o
impeçam de prosseguir, como por exemplo, dores que se causou aos outros e que despertam
culpas, comportamentos mecânicos inadequados, posturas negativas no cotidiano etc. Estas
medidas, que podem ser estabelecidas em uma agenda, são fundamentais na estrutura da base
que permitirá uma construção sólida para seus planos. Fazendo isso, os sonhos poderão ser
transformados em objetivos (concretização de desejos) e eles é que darão forças para agir e
persistir levando dos motivos para a ação, sedimentando a construção positiva de si mesmo,
oferecendo, a cada conquista, a motivação para prosseguir.
A grande diferença dos sonhadores de sucesso é a forma como transformam esses
sonhos em objetivos, metas de vida e persistiram em sua realização. Inicialmente, tiveram
coragem e iniciativa para agir, sequencialmente, a determinação na atitude e decisão para tirar
do papel o objeto do sonho, estabelecendo estratégias e transformando-as em ação. Após a
conscientização da importância dos sonhos e de seu papel na construção do projeto de vida, os
valores que reforçamos são os ligados consequentemente à determinação. Ela significa
obstinação, tenacidade, perseverança, persistência. Consideramos que aqueles que possuem
estas características, perseguem seus objetivos sem desistir diante das dificuldades, deixando
claro obstante que “perseverar” não significa insistir no erro caso se tenha estabelecido uma
estratégia equivocada para sua realização, mas também exige sim, ser capaz de suportar, de
usar habilidades de resiliência para não se render e entregar a luta.
Conta-se que o orador grego Demóstenes, nascido em Atenas em 384 a.C., possuía
uma saúde muito frágil e possuía uma característica que dificultava suas aspirações em se

178
tornar uma figura pública: era gago! Conta-se que na primeira vez que discursou na tribuna,
saiu de lá ao som de gargalhadas e vaias. Mas ele tinha o sonho de ser um orador notável. Ele
perseguiu este sonho e cultivou seu potencial, estabeleceu uma disciplina rígida e dedicou-se
muito para superar suas dificuldades. Conta-se que ele costumava colocar pedrinhas na boca e
uma faca entre seus dentes para impedi-lo de gaguejar em seus treinamentos, que ao praticar
na praia, gritava ao som da arrebentação das ondas para fortalecer seus pulmões.
Sua persistência valeu a pena, ele realizou seu sonho: tornou-se o maior orador do
mundo antigo. “Demóstenes, cujo talento, recebido pela natureza e desenvolvido com o
exercício, foi usado na oratória, chegou a exceder em energia e veemência todos os que
competiram com ele na tribuna e no foro”. (Plutarco).
Uma das fórmulas mais eficazes para iniciar um sonho e persistir nele é a motivação
que elegemos:
“Ela é aquilo que leva alguém a despender energia numa direção específica com
um propósito específico. Motivar-se significa usar o sistema emocional para
catalisar todo esse processo e mantê-lo em andamento, os elementos da motivação
são comuns a todos nós: coragem, confiança, otimismo, tenacidade, entusiasmo e
resistência. É a confiança que nos permite crer que temos a capacidade de executar
e realizar um sonho, é o otimismo que nos dá a esperança de que o desfecho será
uma solução positiva, é a tenacidade que nos mantém concentrados no sonho, é o
entusiasmo que nos permite ter prazer na realização de um planejamento e é a
resistência que nos permite começar tudo de novo. Cada um desses elementos é
sustentado pelas quatro fontes de motivação e eles devem ser cultivados para
funcionar em plena forma, pois só assim a motivação será suficiente para que o
sonho seja realizado com sucesso”118.

Devemos nos questionar em cada caso o que realmente motiva e/ou motivaria nossos
pacientes? O que os levariam a estabelecerem para si a disciplina de criarem um cronograma e
o segui-lo? Como despertar o esforço consciente proativo para batalharem por si mesmos?
São perguntas que devem ser mantidas pela equipe terapêutica ao avaliarem a melhor maneira
de acompanhar e auxiliar individualmente seus projetos de vida. Dinâmicas em grupo 119 são
muito importantes para recebermos do coletivo, o apoio, o fortalecimento e reconhecimento
de nossos planos. Ademais, os grupos operativos, as comissões, devem envolver os pacientes
justamente em atividades de responsabilidade e interação.
Não importa em que fase se esteja, assumir o comando da própria vida está entre os
objetivos de todo o tratamento, pois, entre as maiores de todas as competências de um ser
humano está o cuidar de si mesmo e estabelecer um auto propósito. É importante entendermos
que construir um projeto de vida é como traçar uma rota do caminho a ser percorrido, partindo
de onde se está – quem se é hoje – para onde se quer chegar – quem se quer ser amanhã.

118
À partir do Livro: Inteligência Emocional. (Pg.75 a 77), de Hendrie Weisinger.
119
Veja-se algumas propostas de atividades e dinâmicas no fim do capítulo.

179
Uma das estratégias que estabelecemos em nossas palestras psicoeducativas é
provocarmos nossos pacientes a se questionarem:
como se veem no futuro? Sua realização estaria em
ser bem-sucedido profissionalmente, ou rodeado de
familiares, por exemplo? Se fosse realizado um
monumento, uma estátua em sua homenagem, como
ela seria? Lembramos também que um monumento
deve ser construído à partir do alicerce, de suas
Estátua do Pelé, construída em Três
corações MG, sua cidade natal. bases. Assim, quais seriam os tijolos que formariam

Fig. 19 as bases
de nosso
monumento? Qual seria a imagem que gostaria de
ver retratada? Com quais valores pretende
construir essa auto imagem?
Pode-se criar uma agenda da semana,
anotando tarefas objetivas e propostas diárias
para, a partir disso, estimular a organização do
tempo buscando equilibrar o cotidiano,
mantendo-se nesta construção e reconstrução de si mesmo.

Propostas diárias Segunda Terça Quarta Quinta Sexta Sábado Domingo

(Estabeleça uma pontuação


para o seu desempenho de
0 a 10 por exemplo)

Acordar cedo

Fazer exercícios

Estudar

O que propor?

Ao nos projetarmos no futuro, estabelecemos a idealização de como gostaríamos de


estar, do que gostaríamos de atingir para nos realizarmos. Percebemos, portanto, que aquilo

180
que sonhamos afeta diretamente nosso empenho e o direcionamento que damos às nossas
ações. Ao refletirmos sobre os sonhos, cabe também separarmos o que sonhamos
profissionalmente, o que sonhamos para os nossos relacionamentos, nossa família, para a
sociedade e, enfim, os nossos sonhos íntimos, os quais sonhamos para nosso deleite pessoal.
Assim, podemos considerar os diferentes aspectos de nossos desejos e sonhos que influenciam
nossa busca por plenitude. César Souza, em seu livro “Você é do tamanho de seus sonhos”,
propõe uma tipologia dos sonhos e uma atividade muito útil para refletirmos onde estamos
em sua realização120. Ao adaptarmos esta estratégia para as questões dos projetos de vida de
nossos pacientes, também podemos estabelecer ferramentas interessantes para a terapia
Enfim, o projeto de vida sempre carrega em si as aspirações íntimas das pessoas. Seja
a recuperação do equilíbrio no controle de um vício, de um transtorno, seja no
restabelecimento de relacionamentos fragilizados, na aceitação de perdas ou na superação de
frustrações: ele deve oferecer um suporte para se desejar viver melhor. Deve resgatar no
paciente sua capacidade de sonhar, de prosseguir, de estabelecer uma jornada de realização
para si mesmo, apesar de muitas vezes parecer difícil e trabalhosa. Ele é uma condição
essencial para se resgatar a esperança, mas não associada com o esperar: que tudo se
resolva, que um dia as coisas melhorarão por si mesmas, mas sim com o verbo esperançar,
que está ligado a acreditar que é possível, mesmo que as chances apontem caminhos
tortuosos. Esperançar é torcer e, ao mesmo tempo, fazer o melhor para se conseguir alcançar o
que se almeja, lembrar e acreditar que enquanto estamos vivos ainda estamos no páreo e a
coragem de nos entregarmos ao bom combate, nossa principal arma, está em nossas mãos.
Para finalizar este que é o último de nossos tópicos de tratamento e que também
reflete o primeiro de nossos desejos, de vermos nossos pacientes saírem com suas esperanças
renovadas e trilhando sua busca por felicidade e plenitude, encerramos com a letra da bela
canção de Marie Gabriella:
Cores
Eu gosto desse amarelo que vêm me Eu gosto daquilo que vêm
acordar Eu gosto daquilo que vai
Eu gosto do azul turquesa das águas do Não têm como irmos além
mar Se não aprendermos a voltar atrás
Eu gosto de tudo aquilo que é belo e E assim eu vou indo e vindo
profundo Tirando o que não convêm
Dos grandes mistérios contidos no mundo Vivendo e descobrindo o que é que me faz
Eu gosto de ver o mundo girar bem
Eu gosto das emoções que vêm das Vou cantando para sempre amém
profundezas
Trazendo esperanças de rara beleza Eu gosto deste azul que paira no ar
Abrindo o caminho pra gente passar Eu gosto de ficar olhando a nuvem passar

120
Veja-se tabela da atividade em anexo.

181
Para lembrar que na vida tudo passa
Esse tal de amor está ai e é de graça Eu gosto de confiar e de ser aprendiz
Basta querer para receber E ver o desfecho da história ter final feliz
É o maior tesouro que o mundo já viu Eu sou feliz porque eu mereço
Vale mais do que ouro mas é um desafio Levanto as mãos para o céu e agradeço
Querer de verdade, querer pra valer Obrigada, amém.

182
Estágios do sonho:
Onde está e que nota (de 01 a 05) atribuiria para si mesmo no estágio em que se
Tipos de encontra?

Sonho Pensando e Começando Avançando Realizando


Planejando
Possui um roteiro, Iniciou atitudes em Mantém a Seus sonhos
uma agenda, um direção ao motivação e a contemplam sua
cronograma? objetivo? persistência para busca de felicidade
seguir? e plenitude?

Afetivo
No campo sentimental
e dos relacionamentos
amorosos?

Familiar
O que deseja para
seus familiares e de
que maneira gostaria
de ajuda-los?

Profissional
De que maneira se vê
em seu aspecto
produtivo?

Brasil e Mundo
Volta-se para as
questões humanas e
ambientais e como
poderia contribuir
com a coletividade?

Pessoais/
Íntimos
Quais os sonhos de
realização pessoal,
sendo desde bens
materiais, quanto
realizações pessoais
como cantar, pintar,

183
falar outra língua,
viajar ou tocar algum
instrumento?

Bibliografia, referências e apêndice

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ZIMERMAN, David. Fundamentos Psicanalíticos: teoria, técnica e clínica: uma abordagem


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Apêndice

Referência 7 página 6

Vejamos o que se entende a respeito:

Na internação voluntária a pessoa que solicita voluntariamente a própria internação, ou


então que a consente voluntariamente. Assim formaliza-se e deve-se assinar, no momento da
admissão, uma declaração de que se optou por esse regime de tratamento. O término da
internação se dá por solicitação escrita do paciente ou por determinação do médico
responsável. Uma internação voluntária pode, contudo, se transformar em involuntária e o
paciente, então, não poderá sair do estabelecimento sem a prévia autorização.

Na internação involuntária, ela ocorre sem o consentimento do paciente e a pedido de


terceiros, onde geralmente os familiares solicitam a internação do paciente, mas é possível
que o pedido venha de outras fontes. O pedido tem que ser feito por escrito e aceito pelo
médico psiquiatra. A lei determina que, nesses casos, os responsáveis técnicos do
estabelecimento de saúde têm prazo de 72 horas para informar ao Ministério Público do
Estado sobre a internação e os motivos dela. O objetivo é evitar a possibilidade desse tipo de
internação ser utilizado para o cárcere privado, por exemplo, sob interesses de exploração da

187
sua condição, alegando necessidades de internação do paciente sem que, de fato, ela seja
necessária.

Na internação compulsória, não é necessária a autorização familiar. A internação


compulsória é sempre determinada pelo juiz competente, depois de pedido formal, feito por
um médico, atestando que a pessoa não tem domínio sobre a própria condição psicológica e
física. O juiz deverá sempre levar em conta o laudo médico especializado, as condições de
segurança e tratamento do estabelecimento, quanto aos recursos e à salvaguarda do paciente,
dos demais internados e funcionários.

Referência 8, página 6

E são assim determinadas:

“Art. 8º – A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico


devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina– CRM do Estado onde se localize
o estabelecimento.

§ 1o – A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser


comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no
qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva
alta.

§ 2o – O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou


responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.”

A pessoa que é vista como responsável e que possui o direito de propor a internação
voluntária do paciente também é expressa pela lei brasileira que é clara ao dizer quem assume
tal papel, no artigo 1.775 do Novo Código Civil:

“O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do


outro, quando interdito.

§ 1º – Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai ou a mãe; na falta destes,


o descendente que se demonstrar mais apto.

188
§ 2º – Entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais remotos.

§ 3º – Na falta das pessoas mencionadas neste artigo, compete ao juiz a escolha do curador.”

Referência 9, pagina 7

Processo: APL 267465720118260053 SP 0026746-57.2011.8.26.0053

APELAÇÃO CÍVEL AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER

- Internação compulsória de dependente químico e em álcool em clínica especializada às


expensas da Municipalidade. Autora que promoveu ação contra a Municipalidade e seu filho.
Sentença que indeferiu liminarmente a inicial, por ilegitimidade ativa da autora - O fato de a
autora ser genitora de dependente químico e alcoólatra, confere-lhe legitimidade para postular
a internação do filho em Juízo, pois ainda que o mesmo seja maior e não tenha sido declarado
incapaz judicialmente, é fato notório que pessoas dependentes de drogas e de álcool não tem
discernimento para se internarem voluntariamente em clínica especializada para tratamento.
Inteligência dos arts. 3º e 6º da Lei Federal nº 10.216/2001 e art. 11 do Decreto Federal nº
24.559/1934. O bem jurídico que se visa tutelar é a saúde, a integridade física e mental, e a
própria vida assegurado a todo cidadão decorrente do dever do Estado em sentido genérico, e
consagrado constitucionalmente como direito fundamental da dignidade da pessoa humana
(inciso III do art. 1º da CF) Legitimidade da autora, ora genitora, reconhecida. Precedentes -
Sentença de extinção do feito afastada - Recurso da autora provido para o fim de afastar o
indeferimento da petição inicial, com o retorno do feito à origem para prosseguimento.

189
Figuras

Fig. 1, pág. 32
Disponível em: https://filosofojr.files.wordpress.com/2008/09/edipo-esfinge.jpg

Fig. 2, pág, 59
Disponível em: https://www.ibh.com.br/simposio-api/palestras/Transtornos-
Sexuais_Paula-Prata_IBH-Outubro-2014.pdf

Fig. 3, pág. 60
Disponível em: https://www.ibh.com.br/simposio-api/palestras/Transtornos-
Sexuais_Paula-Prata_IBH-Outubro-2014.pdf

Fig. 4, pág. 61
Disponível em: https://www.ibh.com.br/simposio-api/palestras/Transtornos-
Sexuais_Paula-Prata_IBH-Outubro-2014.pdf

190
Fig. 5, pág 64 ???

Fig. 6, pág 131


Por Caravaggio - The Yorck Project (2002) 10.000 Meisterwerke der Malerei
(DVD-ROM), distributed by DIRECTMEDIA Publishing GmbH. ISBN:
3936122202., Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?
curid=148809

Fig. 7, pág. 141


Disponível em: https://revistacontemporartes.com.br/2018/12/14/ensino-de-
artes-a-abordagem-triagular-de-ana-mae-barbosa/

Fig. 8, pág. 152


Por Unidentified engraver - 1881 Young Persons&#039; Cyclopedia of Persons
and PlacesUpload by RedWolf 05:45, Jan 10, 2005 (UTC), Domínio público,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=164808

Fig. 9, pág. 152


Por Pierre-Roch Vigneron - [1] [2] [3] [4], Domínio público,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4672199

Fig. 10, pág. 153


Por Desconhecido -
http://umma.ua/uploads/article/2012/02/23/11/ac1ece6b5b3eb78b6316f4a3f049
8ac1b61f22f6.jpg, CC0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?
curid=18653590

Fig. 11, pág. 153

191
Por Leonardo da Vinci - Leonardo Da Vinci - Photo from www.lucnix.be. 2007-
09-08 (photograph). Domínio público,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2738140

Fig. 12, pág. 153


Disponível em: http://danielhercos.com.br/historiamedicina3.htm

Fig. 13, pág. 154


Disponível em:
https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/bethlem-royal-
hospital-os-horrores-do-hospicio-mais-macabro-da-era-vitoriana.phtml

Fig. 14, pág. 156


Disponível em: Por C. Schulz (studio) - flipped version of File:E. Kraepelin.jpg,
Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=10337594

Fig. 15, pág. 157


Reprodução domínio público, disponível em:
https://super.abril.com.br/historia/sigmund-freud/

Fig. 16, pág. 157


Disponível em: http://www.ccs.saude.gov.br / Memória da Loucura.

Fig. 17, pág. 162


Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hierarquia_de_necessidades_de_Maslow#/media/
Ficheiro:Hierarquia_das_necessidades_de_Maslow.svg

Fig. 18, pág. 163

192
Disponível em: https://www.researchgate.net/figure/Figura-7-Esquema-de-
representacao-da-visao-holistica-envolvendo-a-dimensao-interior-
e_fig5_326654931

193

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