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ADVERTENCIA
1. As contradições da urbanização capitalista
1.1. Introdução: as rupturas da nova sociologia francesa
1.2. A contradição geral da urbanização capitalista: formulação da tese
1.3. A urbanização como forma de socialização das forças produtivas
1.4. As relações de produção capitalista se contradizem com o movimento de
socialização
ADVERTÊNCIA:
A cidade capitalista está em crise. Subemprego, pobreza, carência de habitações e
equipamentos públicos, poluição, opressão em todos os aspectos da vida cotidiana; aí
estão os frutos amargos e universais da corrida pelo lucro capitalista e do autoritarismo
do Estado e dos monopólios.
Por todas as partes se desenvolvem lutas populares contra os efeitos dessa crise urbana
e, as vezes, contra suas mesmas raízes. A rejeição à exploração indireta na cidade pode
coincidir com a rejeição direta na empresa. No horizonte dessa convergência se
encontra a mudança democrática, a destruição do poder econômico e político e dos
feudos financeiros e industriais; a marcha ao socialismo.
É nessa conjuntura histórica que em numerosos países a análise do fenômeno urbano
tem conhecido uma profunda renovação. Em todos os casos uma mesma inquietação:
compreender para lutar melhor. Frequentemente um mesmo procedimento: tratar de
utilizar os mesmos instrumentos analíticos do materialismo histórico para combater as
ideologias oficiais , ir além das aparências, articular teoria e prática. Na França,
particularmente, numerosos pesquisadores se comprometeram nessa tarefa e já
produziram certos resultados.
A pequena obra que aqui apresentamos se constitui numa tentativa de construir uma
contribuição e submeter ao debate um conjunto de proposições teóricas sobre a
urbanização capitalista, elaboradas a partir da experiência europeia e principalmente
francesa. Seu caráter, um pouco didático, provém da sua origem, que foi um curso
desenvolvido no Centro de Estudos Econômicos e Demográficos do Colégio do
México, entre janeiro e fevereiro de 1978.
[...] agradecimentos aos profissionais e pesquisadores envolvidos na tradução da obra e
explicação sobre o caráter coletivo desta produção. [...]
Um último esclarecimento em relação ao modo de emprego do que aqui se apresenta.
Nossa tarefa, hoje, no plano teórico, consiste em desenvolver o marxismo, isto é, em
utilizar como método de investigação da reprodução do concreto-pensado. Nesse
esforço, cada parte da realidade que se tem conhecimento, na qual existe uma prática. É
por isso que grande parte do desenvolvimento teórico que vamos expor é
profundamente marcada pela experiência local dos países do centro imperialista:
França. Isso está correto, na minha visão, porque nossa responsabilidade pessoal é
vencermos em nosso próprio meio, mas também sua limitação, que só pode ser superada
mediante um debate crítico internacional, particularmente levando em conta a
experiência de países capitalista dependentes, e precisamente, um aspecto da luta
contra todos os imperialismos culturais não é também a crítica irrestrita do trabalho
daqueles camaradas que lutam e falam nas metrópoles?
1. As contradições da urbanização capitalista
1.1. Introdução: as rupturas da nova sociologia urbana francesa
Ao final dos anos 60, como o início da nova sociologia urbana Francesa, surge uma
nova questão, um duplo questionamento. Em primeiro lugar, a preocupação de
considerar a cidade como um produto, resultado de um processo de produção e não
apenas como objeto de consumo material e simbólico.
De fato, até então, a sociologia urbana acadêmica, tinha apenas como objeto de estudo,
o comportamento e as atitudes dos habitantes do meio urbano. A divisão do trabalho
entre disciplinas era simples. À economia política se reservava a análise do
comportamento racional dos agentes urbanos; estudava, pois, a escolha da localização
das empresas e os equilíbrios globais entre os diferentes mercados. À sociologia cabia,
portanto, o estudos dos resíduos inexplicáveis pelo postulado da racionalidade
econômica: os fatores culturais, simbólicos e sociais do comportamento das famílias no
meio urbano.
Sobre esta base a sociologia urbana acadêmica se convertia em uma psicossociologia
das necessidades humanas, em um contexto dado de condições urbanas que poderiam
mais ou menos satisfazê-las. Ou seja, em uma psicologia ecológica: o estudo do
equilíbrio entre o homem da cidade (urbano) e seu meio ambiente.
Este posicionamento teórico é duplamente coerente; por um lado, com os postulados da
economia política marginalista e, por outro, com as demandas administrativas nascidas
do desenvolvimento do planejamento urbano na França na década mencionada.
Efetivamente, a economia marginalista é, em seu fundo ideológico, um estudo da
distribuição do produto social tal como se efetua no mercado, na circulação. Para isso,
deixa de lado tudo o que concerne às relações sociais de produção e as forças
produtivas. Se limita a descobrir apenas as combinações dos fatores de produção,
considerados, por definição, como homogêneos no espaço formal dos preços. Além
disso, no que diz respeito ao consumo, descarta o estudo das suas práticas concretas e se
contenta anunciando a existência de funções de utilidade. A sociologia acadêmica se
apodera deste objeto e se desenvolve no campo fixado pelo marginalismo. Mesmo
quando se dedica a criticar as abstrações e o formalismo dos economistas acadêmicos,
aceita julgar o papel que confiam: estudas os resíduos, ou seja, o subjetivo.
A esta primeira submissão, se acrescenta uma segunda: a submissão às demandas do
Estado. A partir do final da década de 1950-60, se desenvolve na França um
instrumento de planejamento urbano e de programação de certos investimentos
públicos: as normas de equipamento que definem as necessidades em termos de espaço,
de aulas escolares, de espaços verdes, de superfície de comércio por habitante. Para
estabelecer essas normas, se recorre aos sociólogos urbanos. A pesquisa de opinião
substitui vantajosamente a democracia.
Por todas essas razões a sociologia urbana dessa época de converte em uma sociologia
dos consumos urbanos. Dalí surge uma primeira ruptura efetuada por uma nova
corrente de pesquisadores que tratam de utilizar o materialismo histórico como
método de trabalho; tratam de partir da produção, de estudar a cidade como o
resultado de processos de urbanização capitalista e não de considerá-la como uma
realidade já posta. Ao fazê-lo, é toda a construção acadêmica da economia espacial e da
sociologia urbana no corte economia/sociologia e pesquisa/política que se questiona.
Um segundo “questionamento” acompanha ao primeiro, e se refere ao papel do
Estado. Para as disciplinas acadêmicas, o Estado está sempre fora do campo de análise.
“Intervém”, como se diz, de fora sobre o fenômeno estudado: constitui uma “variável
independente”. Esta concepção teórica é perfeitamente coerente com a ideologia prática
do planejamento em geral e da urbana em particular. Por outro lado, o núcleo ideológico
comum aos discursos habituais sobre o planejamento urbano é simples, e aparentemente
internacional. Primeiro: a urbanização espontânea é anárquica, governada unicamente
pelos interesses privados. Assim, essa anarquia gera males econômicos e sociais.
Segundo: por conseguinte, o Estado, o poder público, guardião do interesse geral, deve
intervir para fazer com que este se imponha aos interesses particulares. Deve garantir
uma ordem urbana mais justa e mais racional, corrigindo os aspectos negativos da
urbanização espontânea. Terceiro: portanto, o plano urbanístico, por uma parte, e os
serviços públicos, por outra, vão a ser os instrumentos desta intervenção racional do
Estado. Os de direita dirão que o planejamento urbano realiza o interesse geral, os de
uma certa esquerda poderão dizer que o Estado não pode realiza-los, porque os
interesses particulares vencem e que não existe verdadeiramente planejamento. Em
qualquer uma dessas versões, a tese central é a mesma: o Estado é assimilado como um
sujeito, um sujeito racional que persegue uma meta, o interesse geral e o planejamento é
definido como uma estratégia, um conjunto de ações racionais ajustados a essa meta.
O segundo “questionamento”, a segunda ruptura epistemológica – para falar como
Althusser- da sociologia urbana marxista na França se refere precisamente a este ponto:
o Estado não é um sujeito dotado de vontade, é um conjunto de aparatos que realizam,
por um processo [cego], por um processo sem sujeito, o interesse geral da classe
dominante. Hoje na França, essa classe dominante é a oligarquia financeira, fração de
classe dominante no capitalismo monopolista de Estado.
Essa concepção do Estado como Estado de classe é extremamente simples em sua
formulação teórica, mas provoca múltiplos “questionamentos” no trabalho de
investigação/pesquisa. Veremos mais adiante. Em particular, a política urbana, que não
pode se reduzir a uma atividade de planejamento, se converte em um momento de um
processo social complexo, o das lutas de classes onde estão incluídos, em particular, os
movimentos sociais urbanos.
Antes de abordar de forma mais concreta os diferentes aspectos desta urbanização e
desta política urbana capitalista, gostaria de apresentar os principais resultados teóricos
que obtivemos.
Esta exposição das contradições da urbanização será um pouco abstrata. Não será
abstrata pela forma teórica em que se apresenta, já que a boa teoria é concreta, reproduz
o [concreto-pensado]. Será abstrata porque só pudemos teorizar um pouco a nossa
realidade nacional, sobre a qual falarei pouco, pois a França está distante.
Para começar vou formular de maneira geral a tese fundamental que logo desenvolverei.
A cidade constitui uma forma de socialização capitalista das forças produtivas. Ela
mesma é o resultado da divisão social do trabalho e é uma forma desenvolvida de
cooperação entre unidades de produção. Em outras palavras, para o capital o valor de
uso da cidade reside no fato de que é uma força produtiva, porque concentra as
condições gerais da produção capitalista. Estas condições gerais são, por sua vez,
condições de produção e circulação do capital, e da produção da força de trabalho. São
também, o resultado do sistema espacial dos processos de produção, de circulação, de
consumo; processos que contam com suportes físicos, ou seja, objetos materiais
incorporados ao solo (os imobiliários).
Este sistema espacial constitui um valor de uso específico, diferenciado do valor de uso
de cada uma de suas partes consideradas separadamente; é um valor de uso complexo
que nasce do sistema espacial, da articulação no espaço de valores de uso elementais.
Chamarei esses valores de uso complexo de efeitos úteis de aglomeração.
Em resumo, como sistema especializado de elementos, a cidade é uma forma de
socialização capitalista das forças produtivas. É o primeiro elemento da tese, o primeiro
termo da contradição.
Efetivamente há contradição, posto que cada um dos elementos do sistema que constitui
a cidade é um processo autónomo, o qual tem como base um objeto imobiliário que é
produto e que circula de modo independente aos outros. Alguns destes elementos são
comodities produzidas pelo capital, [tendo como objetivo] o lucro. Outros elementos em
mudança, que o capital não produzirá, serão [fornecidos] como valores de uso, não
comodities, graças a desvalorização do capital público.
Porque os meios de produção são privados, porque as relações de produção são
capitalistas, os valores de uso [complexos urbanos] estão formados por um processo
cego, sem sujeito, ou seja, o movimento de busca do ganho privado de cada polo
autônomo de acumulação. Portanto, a urbanização capitalista é, antes de tudo, uma
multiplicidade de processos privados de apropriação do espaço. E cada um deles é
determinado por suas próprias regras de valorização de cada capital particular, de cada
fração de capital. Em consequência, a própria reprodução dessas condições gerais,
urbanas, da produção capitalista se transforma em um problema. Não se pode garantir.
Daí a contradição entre o movimento de socialização capitalista das forças produtivas e
as próprias relações de produção do espaço capitalista. Esta contradição é a
fundamental, expressa no espaço, desse modo de produção pois vai produzir
historicamente, formas sempre novas de socialização: a estatal e monopolista da
formação dos valores de uso urbano. Porém, ao mesmo tempo, vai reproduzir limites
sempre novos a esta socialização das forças produtivas. Estes limites se expressam nas
lutas de classes, assim como nas crises urbanas das metrópoles capitalistas.
Creio que tudo que acabo de dizer de forma rápida, resumida e muito genérica, pode
construir uma problemática de base. Veremos adiante que consequências concretas terá
na prática da pesquisa.
1
Ver O Capital, livro 1, capítulo sobre o maquinismo.
Do que se trata? Sabemos que uma parte do capital social não produz valor nem mais
valia. Na própria produção uma parte crescente do capital é capital constante, não
produz valor, porém é indispensável à produção. Além disso, uma parte do capital social
está permanentemente comprometida na circulação de mercadorias e do dinheiro. Todos
estes elementos, capital produtivo constante, capital mercadoria, capital dinheiro, são
indispensáveis para a reprodução, porém são estéreis do ponto de vista da produção de
mais-valia. Eles pesam sobre a taxa geral de lucro e, no entanto, exigem sua parcela de
mais-valia.
A corrida à mais-valia relativa agravará constantemente o problema. Toda revolução nas
forças produtivas implica um salto na composição orgânica do capital produtivo e
reforça a tendência de queda na taxa geral de lucro. É assim que, em cada estágio da
divisão capitalista do trabalho, dentro da unidade de produção, surgem novas formas de
cooperação espacial entre as unidades de produção.
Serei breve, hoje, ao me referir à terceira forma que adquirem os limites capitalistas no
que diz respeito à formação de valores de uso urbanos: a renda do solo, voltaremos
posteriormente a tocar neste tema com mais detalhe.
Destaco apenas um ponto que considero extremamente importante. Se você tem o
hábito de pensar que a renda da terra molda o espaço e a cidade, e constitui a origem da
segregação urbana. Em outras palavras, que a propriedade privada da terra é a origem de
todos os males da cidade capitalista. Parecer-me que esta ideia está errada. Porque?
Porque a renda da terra é apenas reflexo. Se existe renda fundiária, é porque há
diferenciação no espaço das condições em termos de valorização do capital. Se
atualmente existe renda da terra, é porque há o uso capitalista dos excedentes de espaço
e localização. Esses superlucros, que vão se estabelecer em forma de renda, têm
precisamente, como origem, o fato de os efeitos úteis da aglomeração não serem
reproduzíveis – e que o acesso a eles é monopolizado pela propriedade da terra. Mas o
conteúdo econômico dessa propriedade fundiária, no capitalismo, é o lucro excedente
do capital. E o excedente tem justamente como fundamento a apropriação privada,
parcelada, do espaço e a ausência de controle social sobre a formação de valores de uso
urbano. Em outras palavras, a renda fundiária devolve ao capital seu próprio
movimento, de seu desenvolvimento desigual. Ela impõe a cada capital particular as leis
do capital como um todo. Depois, quando eu falar mais cuidadosamente sobre as rendas
da terra, teremos de qualificar essa declaração qie acabei de fazer. No entanto, me
parece essencial do ponto de vista teórico: a propriedade da terra tende a ser
transformada pelo capitalismo, integrada ao modo de produção dominante. O lucro
domina o aluguel e não o reverso.
No entanto, as rendas fundiárias capitalistas vão se transformar em um mecanismo e
alocação espacial de atividades: refletindo a exploração privada dos valores de uso
urbano, dificultarão, por sua vez, a formação destes.
Pode-se ver que deixei de lado neste capítulo vários problemas essenciais. Por que
precisamos de equipamentos de consumo coletivo e porque o capitalismo que precisa
deles não os produz? O que as rendas do solo produzem e que contradições elas criam?
Além disso abordamos o problema do papel do Estado de uma forma muito limitada.
Mas eu vou retomar esses problemas nos próximos capítulos.