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ATAS
CABECEIRAS DE BASTO
9 | ABRIL | 2016
Desenho hidráulico de uma an ga abadia
de matriz benedi na.
Notas preliminares acerca do Mosteiro de Refojos de Basto
I SEMINÁRIO INTERNACIONAL
de água potável até à descarga inal dos eluentes domésicos e pluviais, são os abaixo descritos em síntese. Não
pudemos conirmar a sua exaidão, pelos moivos supracitados e devido à ausência de sondagens arqueológicas,
que aqui se solicitam172.
172 Os trabalhos de prospecção decorreram nos dias 2 e 3 de Junho de 2015 e iveram o apoio técnico da ARQª INÊS GONÇALVES e do DR. ADELINO
MAGALHÃES. Foram também de muita uilidade as informações orais prestadas por JOÃO MARTINS e DRA. FÁTIMA OLIVEIRA. A Câmara Municipal
de Cabeceiras de Basto garaniu os meios para esta pesquisa e a cedência de material cartográico e fotográico. Bem hajam, todos, pela empenhada
ajuda, relexão coleiva e generosa parilha de saberes!
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ele à cozinha e sacrisia a água”. Apesar das várias diligências efetuadas, não conseguimos esclarecer nem situar
a designada “cerca da recochina”, quer como microtopónimo quer como antropónimo; julgamos que icava do
lado oriental do mosteiro.
– outro, na “cerca da eira”, que abastecia o “chafariz do claustro” e o “tanque do terreiro” (atual Praça da
República), desinado aos transeuntes. Este olho estava à “altura de trinta palmos” do ediício conventual, pelo
que o transporte da água se fazia por “aquedutos de pedra”, assentes num muro e ligados por poços de queda (o
texto emprega o termo “pias”), distanciados “dez palmos” entre si, a im de vencer o desnível do terreno. Os poços
funcionavam também como caixas de decantação, onde se acumulavam os sedimentos da escorrência, devidos à
erosão, além de permiirem a dissipação de energia da corrente. A água fresca proveniente da “cerca da eira” al-
cançava o mosteiro pela portaria e dirigia-se para o claustro, de onde era reparida pelos principais pontos de con-
sumo quoidiano na área residencial. Acerca do síio exato desta aniga captação, há referências algo explícitas,
que estão ainda em curso de pesquisa, e que apontam para uma zona a ocidente do complexo abacial, na Ribeira.
Para as outras aividades e necessidades comunitárias de água de menor padrão de potabilidade, mas
que exigiam um potencial hídrico maior – irrigação da horta, acionamento de noras e moinhos, saneamento das
latrinas, etc. –, os monges uilizavam o caudal de um regato, localmente conhecido pela ribeira de Penoutas, já
existente ou escavado para o efeito. A ‘água levada’ circula ao ar livre, num canal que bordeja o cenóbio pelos
lados sul e oriente, saisfazendo vários misteres de suporte à vida e à economia conventuais.
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De acordo com o “Estado” de 1728, a água da “cerca da eira” que chegava ao claustro era reparida “para
o chafariz” (hoje, desaparecido), e “do claustro vai dar ao esguiche do refeitório e daqui vai para a cozinha”
nova. Perante esta descrição, o lavabo do refeitório dos monges173 e a cozinha eram abastecidos diretamente
e sob pressão pelo chafariz do claustro ou, mais provavelmente, a parir de um tanque de distribuição da água
fresca, instalado no interior de uma parede do claustro, com um ramal para o chafariz e outro para o refeitório e
cozinha, igualmente em regime de pressão (Fig. 3).
Como se sabe, o escoamento sob pressão gravíica assegurava as condições hidrotécnicas entre os referidos
chafariz do claustro ou a caixa distribuidora de água e os vários ramais de alimentação de água doce. Nestes
termos, ica-nos a dúvida se a “cozinha nova” era ou poderia ser alimentada pelos dois aquíferos acima nomeados
– o da “cerca da recochina” e o da “cerca da eira” –, porquanto as noícias dos “Estados” de 1728 e de 1731, ao
referirem-se à captação da “cerca da recochina”, uilizam as palavras “se pode levar” e “capaz de trazer” água,
respeivamente.
Através do “Estado” de 1786, sabemos que houve alterações na rede de fornecimento hídrico ao mosteiro.
A água passou a vir da “fonte do terreiro” para a cozinha dos monges e também para a cozinha da boica. Estas
canalizações eram efetuadas em tubos de chumbo, conforme esclarece aquele relatório.
Segundo referem alguns “Estados” trienais, o volume diário de água potável, fornecido à comunidade religiosa,
era de “tanta abundância” que dispensou a existência de cisternas ou reservatórios para o seu armazenamento
de emergência.
173 O atual lavabo do refeitório, que se desinava ao ritual de limpeza das mãos antes das refeições colecivas, já é referido no “Estado” de 1629. Este
costume higiénico (lavaio manuum) manteve-se até ao Concílio Vaicano II, que o suprimiu.
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Por este moivo, a nova cozinha, mais espaçosa, com forno e uma chaminé alta, está “fundada sobre um arco
de pedraria”, fora do alinhamento geral da construção, o que era muito vantajoso, sobretudo, devido à ocorrên-
cia frequente de incêndios174.
As primiivas latrinas, concebidas segundo as melhores regras higiossanitárias de então, localizavam-se na
coniguidade do “dormitório velho”, e inham acesso direto pelos respeivos corredores do sobrado da clausura.
Os dejetos (fezes e urina) caíam no citado ribeiro, cujo luxo de montante promovia a sua dissolução175.
Importa referir, igualmente, que devido às condições hídricas do solo, sobretudo na área fronteira ao alçado
nascente do mosteiro, houve necessidade de executar obras de drenagem, a im de diminuir a progressiva
humidade das paredes por ascensão capilar, bem como impedir eventuais processos de subsidência. Para o efeito,
foram executadas obras de regularização e de afastamento do ribeiro, tanto quanto foi possível, como mostra
a sua forma e traçado atual, e abertas diversas valas e canos de enxugo, para desviar as águas de precipitação
acumuladas no amplo espaço claustral, que atravessam o refeitório dos monges, a sacrisia e a antessacrisia176.
Considerações inais
Este trabalho preliminar, referente ao anigo abastecimento de água ao Mosteiro de São Miguel de Refojos,
em Cabeceiras de Basto, não tem a pretensão de oferecer conclusões deiniivas, embora tenha sido elaborado
com o máximo rigor. Com efeito, ele foi muito diicultado e condicionado pela inexistência ou indigência de
memórias documentais e de dados arqueológicos, sobretudo, quanto à ideniicação das primiivas infra-
estruturas hídricas que garaniam a salubridade do mosteiro. Elas auxiliavam, não só o entendimento genérico
das obras hidráulicas desta secular insituição benediina, mas também o da sua própria fábrica e espacialidade
arquitetónica medieval, na qual se integravam ou ariculavam e eram coetâneas.
O saber hidrotécnico adquirido, misturado com alguma experiência de campo, permiiu-nos tecer breves
considerações e sustentar alguns juízos e hipóteses, abertos para aplicação ou quesionamento futuros que os
validem ou corrijam, por demonstração factual segura.
Tal circunstância reclama o prosseguimento mais aturado e interdisciplinar das nossas pesquisas acerca
da sua conceção e verdade hidráulicas, objeivando a merecida visibilidade, reconhecimento e salvaguarda
exemplar deste património histórico-cultural comum.
174 Com a construção do dormitório novo e da respeiva “necessaria”, ediicados entre 1638 e 1662, mercê da ampliação do mosteiro para o lado norte,
demoliram-se as anigas seninas inodoras. Ver os “Estados” de 1638 e 1662.
175 Consulte-se, por exemplo, JOSÉ MANUEL DE MASCARENHAS, MARIA HELENA ABECASIS e VIRGOLINO FERREIRA JORGE (edits.), Hidráulica Monásica
Medieval e Moderna, Fundação Oriente, Lisboa, 1996.
176 A este propósito, vejam-se os “Estados” referentes aos triénios de 1764, 1780, 1783, 1789, 1801 e 1807.
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