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Leituras quando menina

Com 11 anos, assisti A Família Addams. Enxergava neles um pouco da minha família:
pessoas quietas, antissociais e sarcásticas. Nenhum de nós era adepto de esportes ou qualquer
atividade corporal. Meus pais, aliás, trabalhavam muito. Raramente nos divertiamos juntos,
na maioria do tempo era cada um no seu canto. Dessa forma, quando criança, eu dependia de
atividades seguras e caseiras, em geral solitárias. Dependia, então, da minha imaginação.
Meu pai, que tinha sido professor de desenho, me incentivava a fazê-los. Antes de aprender a
ler, pedia para ele me contar uma história diferente antes de dormir. Eram minhas formas de
diversão.
Apesar da familiaridade com atividades solitárias e mentais, tive dificuldade para
aprender a ler e escrever. Por vários anos, tive problemas com a escrita: grafia, vírgula,
acentuação, e precisei de reforço escolar. Visitas semanais à biblioteca eram obrigatórias, mas
raramente lia todos os livros que retirava e meus pais nunca os liam comigo. Nesse período,
tudo que li foi a série Querido Diário Otário, que trocava com amigas.
No final do Fundamental, peguei Harry Potter na biblioteca da escola para
impressionar um menino de quem gostava. Acho que ele nem notou, mas já não importava,
pois o próprio Harry se tornou mais importante. Nessa época, a leitura passou a ser um
refúgio frente aos desentendimentos entre colegas e na família.
Na adolescência, aprofundou-se a impressão de que eu era, de fato, uma Wandinha
Addams. Enquanto os outros eram um dia de sol, cheio de diversão fora de casa, eu era um
dia de chuva, sombrio e caseiro. Meus colegas começaram a ter vidas sociais ativas e eu me
retraí para o mundo ficcional, onde fantasiava grandes aventuras e romances. Não eram obras
intelectuais ou reflexivas, mas direcionadas às meninas da minha idade: Jogos Vorazes, A
Culpa É das Estrelas, Os Garotos Corvos. Pelos adultos, no entanto, e em comparação aos
meus colegas, que nada liam, fui classificada como inteligente e madura. Isso me afastou
ainda mais deles, pois se eu já era quieta, agora também era identificada como “culta”, e não
como alguém que curtiria uma festa ou uma paquera.
De fato, foi nessa fase que comecei a ter um bom desempenho escolar e minha escrita
melhorou drasticamente. Passei a ir além dos livros de fantasia e das exigências da escola.
Talvez por influência da minha mãe, comecei a ler blogs feministas que despertaram meu
interesse pela experiência feminina e sua relação com a minha solidão – não me considerava
bonita ou feminina como as outras meninas que conseguiam agradar os meninos.
Já no Colégio Técnico da Unicamp, havia uma atividade estudantil muito ativa e tive
professores que incentivaram o pensamento crítico, o que foi especialmente significativo em
um momento de ascensão da extrema direita no país. Isso me levou a leituras que, em vez de
servirem de refúgio, exprimissem a forma como me sentia. Assim, comecei a ler Clarice
Lispector, Lygia Fagundes Telles, Virginia Woolf e Elena Ferrante.
O interesse pela expressão literária da experiência feminina ultrapassou a mera
identificação para se tornar objeto de estudo. Iniciei uma pesquisa de iniciação científica
sobre literatura para meninas adolescentes, como aquela que eu consumia, interessada em
entender os mecanismos de representação que ressoam entre as jovens. Não prossegui com a
ideia, mas, por indicação da orientadora, li Lésbia, de Maria Benedita Bormann, autora do
final do século XIX. A obra narra o drama de uma escritora que alcança sucesso, mas que,
mesmo assim, se sente fracassada por não ter conquistado o que era esperado das mulheres,
como casamento e filhos. O romance me lembrou "O Caso de Ruth", conto de Júlia Lopes de
Almeida, lançado pouco depois de Lésbia. Ele também narra um suícidio, dessa vez de uma
protagonista que é abusada pelo padrasto e julgada ‘indecente’ pelo noivo. Nos dois casos,
aborda-se o sofrimento de mulheres dentro de um sistema patriarcal.
O fato é que sempre leio um bom livro, passo dias pensando em como as palavras
entraram em mim e me deixaram atordoada. O treino precoce nas atividades mentais, junto à
timidez e ao estranhamento da adolescência, me levaram ao hábito de, silenciosamente, tentar
compreender os mecanismos das obras que foram marcantes para mim. Enquanto escrevia
esse texto, constatei que não vejo a literatura como refúgio, tampouco apenas como objeto de
trabalho e crítica. A literatura revelou-se como significadora de experiências.
O perigo mais evidente dessa descoberta é o de me ater apenas às minhas
experiências, ignorando a de outros. Mas a própria reescrita desta trajetória demonstra o valor
de ultrapassar a própria visão e permitir a de outros – as sugestões do professor e dos colegas
enriqueceram o texto com outras perspectivas. A reescrita de um texto em várias tentativas é
algo que só apareceu em minha vida agora, na graduação em Letras. Onde estava isso na
educação básica?
A revisão minuciosa de um texto me era tão incomum que, aos 14 anos, ao receber o
primeiro retorno de uma dissertação, fiquei tão frustrada que a rasguei em mil pedaços. A
correção ainda é vista como uma crítica maldosa e não como uma forma de melhorar o texto.
A questão é complexa e envolve todos os ciclos escolares, da alfabetização ao Ensino Médio,
mas o profissional de Letras só consegue atuar com adolescentes. Porém, assim como não é
tarde para mim, não será tarde para aplicar essa prática no Ensino Médio. Esses estudantes
estão próximos não apenas dos vestibulares, mas da vida adulta e profissional, o que exige
diversas práticas de letramento.
É essencial, então, que eles se reconheçam como participantes dessas práticas. Se
precisarem reescrever inúmeras vezes um texto, não é apenas por uma exigência escolar, mas
porque todos temos um contato contínuo com a escrita e a leitura. O relato das experiências
com a palavra escrita seria um pretexto para que possam, também, descobrir a presença dela
em suas vidas, com uma importância maior do que imaginam. Pode ser o início de uma
relação mais saudável com os textos em geral. (Rafaela Daroz Mondelli)

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