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Leia o relato abaixo:

Fabiana, que se identifica como negra, tem 25 anos e está concluindo o curso de
pedagogia em uma universidade federal, nasceu e ainda mora na periferia de uma cidade
da região metropolitana do Recife. Hoje, a leitura e a escrita fazem parte de seu cotidiano:
lê textos e faz trabalhos para as disciplinas do curso e, como bolsista de iniciação
científica, precisa ler textos teóricos, coletar dados em arquivos e preparar textos para
apresentação de trabalhos em eventos acadêmicos. Nessa atividade, também utiliza com
frequência o computador. Além disso, nas horas de lazer, gosta de ler revistas e histórias
em quadrinhos. Embora de maneira mais esporádica, também lê romances. Em suas
práticas de leitura, mesmo quando se trata de ler para o lazer, compreende melhor o que
está escrito quando lê me voz alta. Para escrever, que considera uma prática difícil, segue
em geral o ritmo da fala, esquecendo-se das vírgulas e dos pontos. Percebe-se, portanto,
a presença de certa tensão – como é comum aos “novos leitores” – em sua relação com a
cultura escrita.
Como se deu, em sua trajetória familiar e de vida, a construção de sua relação com
a leitura e a escrita? [...] Sua mãe, que a criou praticamente sozinha, é empregada
doméstica, tem 55 anos e só frequentou a escola em um único período (uma aula para
adultos) durante dois meses, quando tinha 18 anos. Na infância, nunca foi à escola,
impedida por seu pai que, mesmo com uma escolaridade até o “admissão”, leitor de
jornais e livros e dando aulas em sua própria casa, [...] no interior do Estado, não queria
que as filhas mulheres aprendessem a ler a escrever - poderiam usar a habilidade para se
comunicar com os namorados. Sua mãe, por outro lado, não lia nem escrevia. Hoje, com
muito esforço e dificuldade, D. Maria José consegue, às vezes, escrever seu próprio nome
– considera-se analfabeta. Não queria o mesmo “destino natural” para Fabiana e,
obsessivamente, sempre disse que quando tivesse um filho ia colocá-lo na escola para que
ele tivesse um futuro melhor. Fabiana cresceu ouvindo de sua mãe que um dia ela faria
faculdade e, depois da faculdade prosseguiria; sabia que ainda existiam outras
modalidades de estudo – embora não soubesse nomeá-las: já tinha ouvido falar em
pessoas que foram estudar no exterior.
Fabiana teve vários percalços em sua trajetória de escolarização. Com o esforço
de sua mãe, que muitas vezes conseguia bolsa de estudos ou “pagava com sacrifício” as
escolas, frequentou diversas pequenas instituições particulares (a exceção foi a frequência
a uma escola confessional, de maior porte, onde foi alfabetizada e teve uma única
experiência em escola pública estadual que considera traumática: a falta de organização
escola, a ausência de professores a fez fazer novamente a mesma série quando voltou à
rede particular. Nos dois últimos anos do 2º grau, um dos filhos dos ex-patrões de sua
mãe, reconhecendo a potencialidade da menina e “querendo ajudar”, matriculou-a em
uma escola particular de grande porte e de reconhecida qualidade, principalmente para
aprovar no vestibular. Recorda-se do sofrimento que marcou seu ingresso nessa escola:
havia sido sempre considerada uma boa aluna nas etapas anteriores de escolarização nas
pequenas escolas particulares que havia frequentado. Dessa vez, no entanto, passava o
dia na escola, estudava muito, mas não conseguia acompanhar a turma. No 3º ano, fez
cursinho ao mesmo tempo em que cursava o ensino regular, mas não passou no vestibular
da Federal para o curso de Jornalismo. No ano seguinte, depois de conversar com o
professor de história e dos sócios do cursinho, com quem tinha uma relação mais próxima,
conseguiu permanecer na escola pagando uma taxa mínima. Dessa vez, passou no
vestibular para Jornalismo na Universidade Católica. Chegou a frequentar o curso durante
dois meses, mas não pôde continuar, em razão da mensalidade. Na terceira vez em que
tentou o vestibular, não fez cursinho, mas foi incentivada pelo mesmo professor a ver
outras opções de curso e procurar novamente a federal. Dessa vez, optou por um curso
menos concorrido – pedagogia – e, finalmente, ingressou no ensino superior.
Como se situa sua formação como leitora em sua história de vida? Fabiana lembra-
se, com bastante nitidez, de sua mãe pedindo, da cozinha, que lesse em voz alta as tarefas
da escola – até os 7 anos, morou com sua mãe na casa dos patrões. Talvez por isso, ainda
hoje prefira ler me voz alta: a prática da mãe a fez tornar a oralidade a principal mediação
que a leva a se apropriar da escrita. Nesse ambiente, lembra-se de ter sempre visto muitos
livros. Depois, em sua própria casa, onde morou o restante da infância, lembra-se da
presença de poucos materiais de leitura. Até pelo menos o final da 4ª série, sua mãe
também olhava, todos os dias, seu caderno, observando se estava limpo e se a letra estava
“bonita”. Como o “mestre ignorante”, podia não entender o significado exato daquilo que
a filha aprendia, mas sabia que cumpria um papel importante. [...].
Fabiana se lembra também que, quando tinha aproximadamente 12 anos, um
amigo da família trabalhava em uma biblioteca da prefeitura no distrito em que morava,
facilitando o empréstimo de livros do acervo e também emprestando livros de sua própria
coleção, em geral de clássicos da literatura brasileira. Lembra-se ainda que, quando
estudava no cursinho, auxiliava algumas amigas, que não eram boas alunas, nas
disciplinas em que tinha facilidade. Em troca, ganhava livros (romances e paradidáticos).
Em toda a sua trajetória, atribui à escola apena sum papel indireto em sua
formação como leitora. Apesar de ter lido muitos paradidáticos, recomendados pelos
professores, não situa na escola a principal instância formadora do hábito de ler. Na sua
experiência de escolarização ler e prazer pareciam distintos.
Tendo lido a trajetória de letramentos de Fabiana, responda:
Quais elementos da história de Fabiana que você considera que poderiam ter
colaborado para o fracasso ou a exclusão escolar e para um menor envolvimento
com os letramentos valorizados (como o letramento acadêmico ou a leitura de
clássicos da literatura)?
Quais os elementos que você considera favoráveis para o sucesso de Fabiana, que,
embora num percurso improvável, continuou progredindo na escola e nos
letramentos?
Qual(ais) você acha que foi(foram) o(s) fator(es) preponderante(s) para o sucesso
final e a não desistência de Fabiana? Você conhece outros casos assim? Comente.
Em que você acha que as escolas (as universidades também) poderiam mudar no
sentido de facilitar a vivência prazerosa da leitura e do acesso aos conhecimentos

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