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/ certos grupos a romper as amarras do atraso e do
ajudar a
primi-
> ANTROPOLOGIA E HISTóRIA tivismo ? Por que ent ã o n ão « civilizar » , e n ão «
cristiani
tal como já haviam realizado os gregos e os romanos zar » ,
\ * r & diante
dos « bá rbaros » ?
Desejo ainda observar que a id éia de progresso
est
fundamente relacionada à de determinismo e ambas se á pro-
zam numa dimensão temporal, numa história. reali-
nismo, temos a doutrina segundo a qual as No determi -
for ças que movem
2. História da Antropologia realmente a sociedade estão fora da consciência e do
do sistema enquanto tal. Tais for ças, assim controle
, atuam de modo
subjacente, como uma espécie
(' ) nismo, como uma doutrina surgida no cená . O determi
de mão oculta
rio social das
-
ci ências no século XlX , tem uma sé rie
de causas, mas creio
a ) O Evolucionismo n ão ser ocioso mencionar que este é um s
éculo
mam concepções mais modernas ( e mais cient onde se for
íficas ) de so-
-
ciedade. De fato, a noção de sociedade corrente
XIX ( e também no nosso século ) , até pelo menosno século
h
gência do pensamento sociológico
francês, com Durkheim e
a emer -
A terceira id éia mestra do evolucionismo é a de que as seus discí pulos, é a de sociedade como uma associa
‘1
seja, a velha id éia dos empiristas ingleses
çã o. Ou
sociedades se desenvolvem de modo linear, irreversivelmente, , de acordo com
com eventos podendo ser tomados como causas e outros como a qual a sociedade estava fundada num
consequ ê ncias. Junto com essa id éia de desenvolvimento li- v í duos na dire çã o da cria ção de uma
movimento de indi
mutualidade, de regras
-
near, temos a noção de progresso e a de determinação. Assim, íi» que os pudessem unir entre si, fazendo
os sistemas evolvem do mais simples para o mais complexo trégua sobre suas
diferen ças e, sobretudo, construindo uma ponte
e contratual
0$ do mais indiferente para o mais diferenciado, numa escala
;
sobre seus interesses divergentes. Visto deste
modo, o siste-
irreversível. De uma formação em que nem se podiam dis- ma se oferecia à análise não como uma totalidade, mas
tinguir os parentes dos afins ( caso da promiscuidade primi- uma realidade dada em parcelas. como
tiva de Morgan ) , para uma sociedade onde tudo estava di- Pois bem , foram as doutrinas evolucionistas
ferenciado e o indivíduo se contava como sendo o próprio meiro trataram de apresentar a sociedade
quem pn .
como uma totalida-
-
centro do sistema. Chamava aten ção dos evolucionistas o fato de, como universalidade. Tais doutrinas foram
de que, em sociedades tribais, o indivíduo obviamente não ambiente do sé culo XIX ( como sã o ainda hoje em
chocantes no
existia enquanto centro do sistema moral, político ou reli-
gioso. Daí a famosa expressã o vitoriana « custom is king !»
culos ) , porque conceituavam a sociedade como
feita
muitos cí r
de forças
-
que estavam aqu é m ou além dos indiv
para exprimir a razão social nestes universos. Por outro lado, í duos. Ou seja, demons-
travam com clareza que o sistema social é
a idéia de progresso e de determinação ajudavam a pro- realmente um
sistema, uma totalidade, tendo forças, motiva
mover o chamado processo civilizatório de muitas sociedades ordem que não podia ser explicada pela unidade
ções e uma
indiv í duo,
95
96
AA - £
realidades que constantemente atuam junto ao mundo da
consciê ncia e ali sã o socialmente (
= coletivamente ) elabo-
rados, ganhando por isso mesmo um peso e uma autonomia
ate£ ent ão tomado como centro e motivo do sistema . Noto
; -
específicas. Assim , dentro de um esquema evolucionista,
5%ue os primeiros determinismos a fazer sucesso no mundo
• de-
aqueles para as
voltados ca -
restriçõ es de terminista e abrangente, como explicar diferenças entre so-
ocidental foram
á tico ou geogr á fico. Aqui , todo o sistema ficava ciedades submetidas ao mesmo jogo de fatores climáticos e
ráter clim
ças exteriores , mas era obrigado a reagir geográficos ? Como singularizar sistemas formados pelas mes
submetido a for
mas «raças» ; ou submetidos aos mesmos ditames coloniais,
-
todo, a despeito de suas diferen ças individuais
f

como um
todos interessados apenas na exploração econ ómica da socie
internas. Em seguida, fez grande sucessoo, sobretudo por suas
determinismo ra-
-
capacidades de legitimações políticas, dade dominada ? Quando buscam exprimir e explicar defini
-
cista ( de tão grande sucesso no Brasil, como já vimos ante- tivamente as diferenças entre os homens, os determinismos
riormente) . No racismo, sobretudo em sua variante gen éticao, acabam criando uma unidade que aprisiona o espí rito.
unilinear e historicista, a unidade de estudo n ão é mais
indivíduo, mas a raça : indivíduo biol ógico, tomado como um s
ti
Chegamos, assim, ao nosso quarto e últiitio fator carac
terístico do evolucionismo na antropologia. Trata-se do modo-
tipo historicamente acabado ( como uma espécie no seu sen- il tí pico pelo qual essas doutrinas enquadram as diferen ças
tido tipol ógico) que tem dentro de si mesmo um dado po- entre os homens. Nós já vimos que, no evolucionismo e em
tencial cultural e social do qual n ão pode evadir-se. Final- toda a variedade de historicismo mais abrangente, as dife
mente temos o determinismo historicista de cunho econ ómi- renças são sempre reduzidas a momentos históricos especí
-
co, inaugurado pela assimilação de uma forma especial de ficos. Deste modo, a sociedade que não conheço, que per-
-
marxismo e também pelo mesmo modo de absorver a obra cebo como estranha a mim e aos meus que, no entanto, é
.
de Freud Nestes dois casos, as unidades anal í ticas sã o, res- minha contemporâ nea, fica reduzida nesta forma de pensa-
pectivamente, classes sociais ( definidas por seus antagonis-
mos e diferencia ções no meio do processo produtivo) e as ,! mento a uma etapa pela qual minha sociedade já passou .
forças inconscientes, sempre em conflito com as unidades
Ou seja : o modo típico de pensar as diferenças na posição
expressivas da ordem ( o superego) e o ego ( como que per- evolucionista é pela redu ção da diferen ça espacial, dada pela
dido e sem lugar num esquema de tend ê ncias claramente contemporaneidade de formas sociais diferenciadas, dentro de
i,
1

dualistas) . uma unidade temporal postulada, posto que inexistente ou


De qualquer modo —e eu não tenho a intenção de rever
aqui todas essas variantes teórico-doutrin á rias, —
o deter-
J, conjectural.
Por meio desta lógica, usa-se o velho modo de apre-
minismo situa sempre as forças motrizes básicas: a primei - sentar o que é novo e o que é estranho, como se ele fosse
ra é a visão da sociedade humana como submetida a forças velho e conhecido, e, por meio disto, dar conta de outros
que ela pode ter criado, mas que ela não pode controlar e universos sociais como se eles fossem parte e parcela do
que atuam, definitivamente, sobre ela ; e a segunda é que a nosso próprio passado. Todas as formas sociais, políticas,
unidade de estudo n ão é mais o indiví duo tomado como herói económicas, religiosas, jurídicas e morais desconhecidas, fo
ou covarde, mas raças, classes, ou mesmo unidades muito ram reduzidas ao eixo do tempo, situado no nosso sistema-
mais complexas como o inconsciente ou a pró pria noção de classificatório, como a grande máquina capaz de eliminar
sociedade e de cultura como totalidades abrangentes. A van- as diferenças e de, por isso mesmo, reduzir o estranho
tagem e o apelo de tal formula ção jaz nas suas possibili- ao familiar. Na medida em que situo diferen ças num eixo
dades de totalizar a realidade humana ao longo de uns pou- temporal exclusivo, que é medido pelo suposto
— mento de minha própria sociedade, eu transformo diferen-
isso desenvolvi
cos fatores causativos ( ou determinantes) gerais
quando um só fator nã o é tomado como dominante. Mas ças em etapas do meu próprio desenvolvimento. E, -
deste
sua fraqueza fica situada precisamente nesta lógica unili-
near, quando tende a perder de vista o m últiplo jogo de 98
97
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1

ir - is
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il
pensar e conceber o
pjodo, anulo todas as possibilidades de Ele postula que tal forma de casamento nada mais
« outro »
como um igual. pressa do que um tempo preté rito relacionado às origens -
ex
Num esquema, isso ficará ainda mais claro : da exogamia ( casar fora do grupo de parentesco ) porque
como de fato disse McLennan, a exogamia, obrigando o ca
-
sarnento com estranhos, conduziria ao rapto da noiva. E isso - j-j
«Outras » sociedades por sua vez, seria causado por um outro fator histórico'
igualmente postulado pelo teorista, o infanticídio primitivo
.
Como os homens matavam as meninas, a consequência deste
Sociedade do A fato era o casamento por captura, o nascimento da exogamia
Observador
-
e a poliginia ( um homem poder casar se com vá rias mu
lheres simultaneamente) . O modo de demonstrar o argumen-
-
Tempo Final X’
to era pela citação de vá rios costumes relativos ao casamen -
to, sem nenhuma preocupaçã o com o estudo destas formas
Y* matrimoniais em termos ido sistema do qual ele faz parte
( cf . McLennan , 1970 ) . Mas, eu devo continuar observando, a
72 forma do argumento sempre aproxima o costume primitivo
( isto é, original e antigo no tempo ) , com as formas conhe-
R’ cidas socialmente, até alcan çar o terreno familiar dos costu-
mes gregos e romanos, quando eles se dissolvem na familia-
ridade plenamente histórica do mundo cultural do pr óprio
Tempo Inicial S’ observador. O mesmo poderia ser dito relativamente à inter-
pretação de formas de fam ília e parentesco, quando o obser-

As duas coordenadas do sistema desenhado acima reve-


!•
vador — —
utilizando a mesma lógica - toma o presente e o
explica pelo passado, usando a famosa noção de «sobrevivên-
lam tudo o que foi visto acima, permitindo « ver » a trans- cia » cultural, termo largamente associado a todas as expla-
formação lógica pela qual o diferente vira familiar. A coor- na ções evolucionistas. A id éia de sobrevivência é a cristali-
— ou a coordenada da contemporaneidade za ção perfeita do modo particular de reduzir a diferen ça ao


denada espacial
exprime o « outro» em sua realidade concreta presente,
isto é, em toda a sua plenitude e na força do seu estranha-
mento. Mas a coordenada vertical exprime um eixo tempo-
eixo do tempo, pois qualquer costume que eu não posso com
preender numa sociedade para mim desconhecida, digamos,
uma terminologia de parentesco, ou uma instituição educa-
-
ral postulado, eixo que se inicia num « tempo inicial » e ter- cional como um ritual de iniciaçã o, eu posso dizer que tal
mina na sociedade do observador. Essa disposição temporal costume é uma sobreviv ência de alguma forma social do pas-
permite efetuar o rebatimento das sociedades desconhecidas sado e, logo que eu falo em passado, eu torno tudo nova-
no plano temporal e assim transformar o estranhamento con- mente tranquilo, pois com essa concepção de um tempo abran-
_
ereto numa familiaridade postulada, situada no eixo de um gente e hierarquizado eu exorcizo a diferen ça que faz pensar
tempo dado como conhecido. Deste modo, se a sociedade «x » em alternativas e escolhas. E refletir sobre escolhas e alter-
tem um sistema de casamento onde o noivo é obrigado pelo nativas que grupos humanos podem realizar para sua pro
du ção e reprodu ção conduz inapelavelmente a uma relati-
-
costume a raptar a noiva, o observador n ão se permite
especular sobre esse fato como um dado presente, um traç o viza ção indesejá vel dos meus próprios valores. Deste modo,
daquela sociedade desconhecida explicá vel em termos das re- enquanto eu posso rebater a diferen ça social colocada pela
l &ções daquele sistema matrimonial com outras instituições.
> presen ça do « outro» num sistema histórico postulado do qual

99 100

Haiti.
>
•M

sempre uma espé cie de resí duo , algo que sobra e


como que escapar das malhas implacáveis e consegue
ras do tempo. Ora, é precisamente esse resíduo transformad
que form,
o-
minha sociedade representa o está gio final, tudo pode ser um dos alvos mais importantes dos etnólogos desta
tradi ção
a
hierarquicamente, sob a moldura formid á vel da do-
ordenado pois é a sobrevivência que permitirá relacionar
o presente
minação da nossa sociedade. Mas quando eu , abandonando com o passado, explicando um pelo outro. Deste modo ‘
0 eSquema
evolucionista, posso perceber as diferen ças enquan- instituição ou costume que «sobra » ou sobrevive ao tempo , a
to diferen , a sí ntese ter á que mudar. Ela nã o poderá mais
ças é um apêndice que indica o passado no meio do presente

parte
dimensã
conduz
o ——
ser realizada como veremosconcep
em
gen
torno
é
pela
tica
via
de uma
exclusiva ,
determinada
mais claramente no final desta
com
do
ção do tempo como uma
um caminho ú nico, que
progresso
— às formas
As nostálgicas carruagens de qualquer grande cidade
uma sobrevivê ncia de um tempo antigo, em que somente
andava em carros puxados por cavalos ; os mitos
sobras de um tempo de reis e princesas, onde se ignorava
seriam
se
seriam
.

sociais de nossa pr ópria sociedade. Ao contrá rio, quando


a ciência e a t écnica ; e as festas populares seriam sobre
assim procedo permito a abertura do esquema para
possibilidades de realiza çã o das relações humanas, introdu -
outras
vivências de um tempo antigo, «guardadas » por algum grupo -
especial, que as comemora porque é o « costume» . Poder
zindo uma outra curvatura no meu modo de compreender o -
se-ia
«outro », tudo isso conduzindo a uma « antropologia da histó-
pensar, igualmente, em muitos outros tra ços de comporta
ria ». Em outras palavras, quando posso buscar entender um mento, nos quais essa teoria da sobrevivência seria aplicada. -
costume desconhecido sem necessariamente submetê-lo ao [! Pois bem, a reação funcionalista a esta doutrina foi no
eixo de uma temporalidade postulada pela minha sociedade, sentido de revelar que nada numa sociedade podia ocorrer
eu me permito alcan çar a lógica social daquele costume como l -í ao acaso, como uma sobra ou sobrevivência de um tempo
uma outra alternativa social. Isso me leva ao respeito pela fi pretérito. Como uma dobra esquecida do tempo, algo
inventividade humana, a humildade pela relativização do meu sem
um papel. Deste modo, o que os funcionalistas primeiro su
modo de ordenar uma mesma dimensã o da realidade humana geriram foi a possibilidade de estudar a sociedade
-
e a um desenvolvimento histórico que formou aquele costume como um
sistema coerentemente integrado de relações sociais. Se car
observado que pode ser muito diferente do meu. ruagens foram usadas antigamente e são usadas hoje -
em
Essa perspectiva, poré m, que será mais desenvolvida
quando falarmos de uma «antropologia da história », foi ini-
.
dia isso n ão ocorre porque elas são tra ços que sobraram dos
bons tempos antigos, mas um modo moderno de recriar hoje
ciada com o chamado «funcionalismo » inventado por Mali- esse passado. As carroças a cavalo têm, pois, uma funçã o
nowski e ganhou forma com o « estruturalismo» de Claude ( um papel ) a cumprir e esse papel é o de
-
Lé vi Strauss. lembrar ou si
nalizar para o passado. Se descobrirmos por que buscamos -
recriar o passado com carruagens a cavalo e n ão com

^
b]) O Funcionalismo
Não sei o que o termo
mente do leitor e
«funcionalismo » pode despertar na
espero que, mesmo que ele evoque uma
traço qualquer, descobriremos algo importante na nossaoutro
ção de passado como um tempo associado a uma vida
no-
urbana
romântica, tranquila, idealizada , feita de um tempo vagaroso,
á rea negativa, possa ser paciente para acompanhar comigo ritmado pelas patas de um cavalo meigo e de um cocheiro
algumas apreciações relativas ao funcionalismo que julgo im- atencioso. Claro está que nada disso corresponde à verdade
portantes. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a palavra do mundo do século XVIII ou XIX , um mundo urbano
asso-
«funcionalismo » tem um sentido básico, associado à obra de berbado pela pobreza desamparada e pelos milhares de ladrões
Malinowski e de Radcliffe-Brown, que pode ser entendido tão vivamente descritos por gente como Swift e Dickens.
como uma rea ção positiva às teorias evolucionistas, sobre- Escolhemos então a carruagem porque ela nos remete, por
tudo ao conceito abrangente de « sobreviv ê ncia ». Na orienta - contraste, a uma faceta do mundo urbano, onde a velocidade
Ção evolucionista , onde os costumes só fazem sentido quando
estão relacionados verticalmente num eixo temporal, existe 102

-. 10!
r
tornou -se perturbadora. Esse é, provavelmente, diria um fun -
-:f3
V' :- .
,
cionalista o significado social da carruagem no mundo mo- ?>•
derno. Um sentido bá sico do termo « funcionalismo» , pois tem ou institui çã o tem que ser compreendido nos termos do sis
a ver com funcionalidade no sentido de que nada num sis- tema do qual prov é m , é algo positivo e até mesmo revolu -- y

cion á rio, relativamente à posi çã o anterior do evolucionismo,


tema ocorre ao acaso ou está definitivamente errado ou des-
a ver tudo em termos de sobreviv ê ncias hist ó ricas. Mas
locado. Tal modo de ver instituições e costumes foi caracte- estou igualmente convencido de que a deriva çã o doutrin á ria
rístico dos antrop ólogos evolucionistas, que consideravam segundo a qual tudo é necessá rio e a sociedade est á em equi-
certos traços de comportamento como irracionais ou erra- l í brio é um abuso da posi ção anterior, pois se trata real -
dos, dado que a interpreta çã o destes tra ços remetia ao pas-
sado. Para que isso fique ainda mais claro, basta lembrar mente de uma proposi ção substantiva relativamente à socie-
a discussão ao longo da noção de feudalismo na ciência dade e ao seu funcionamento e creio que essa proposi ção
social brasileira durante os anos 50 e in ício dos anos 60. é uma generaliza ção injustificada de uma possibilidade con-
Aqui també m utilizou-se uma noção implí cita de «sobrevi- creta e historicamente dada. Em outras palavras, a declara -
vência », quando a orienta ção do debate era no sentido de çã o de que tudo numa sociedade tem um sentido n ã o auto-
mostrar como a organização da produ ção e da vida social riza a teoria de que tudo está em equilíbrio. De fato, posso
nos latif ú ndios brasileiros, sobretudo no Nordeste, tinham facilmente imaginar institui ções sociais cujo papel é precisa-
um caráter feudal e eram « restos » de um passado portugu ês mente desequilibrar a sociedade. Uma destas instituições é
que importava destruir e libertar. O que ninguém conjectu- certamente o conjunto de sistemas educacionais e científicos
rava na é poca era a pergunta funcional do « por que » de que, pela sua opera çã o, est ão sempre criticando as for ças
tais tra ços feudais, mas no sentido de seu papel social com sociais tradicionais, cristalizadas. Por outro lado, a propo-
relação às á reas mais avan çadas de nossa economia. Quando sição de que tudo numa sociedade está em . equil íbrio não
isso foi observado, causou surpresa em certos cí rculos desco- é, como já disse, uma postura teó rica diante dos fatos so-
brir como a nossa « economia feudal » podia estar tão bem ciais , mas uma declara ção substantiva, relativa à natureza
situada junto à nossa «economia capitalista». E isso con- do sistema social. E aqui, novamente, temos que distinguir
duziu à visão cada vez mais corrente de que temos no caso sistemas sociais preocupados com seu equilí brio e sua fun -
brasileiro uma economia com vá rias peculiaridades, sendo cionalidade interna , sociedades que temem o conflito e o di-
uma delas a combinação de relações pessoais e moralidade senso e por isso mesmo muitas vezes se armam de um
contidas na patronagem ( confundidos sistematicamente com aparato repressivo ; e sociedades cuja din â mica se realiza pre-
um modo de produ ção feudal ) , e um sistema monetá rio extre- cisamente pelo conflito. Isso certamente ajuda a perceber o
mamente avançado de tipo moderno ( cf . para uma visão «funcionalismo » como uma atitude diante do social e como
global , mas obviamente resumida do debate, Topalov , 1978 ) . 1 uma atitude que precisa ser demarcada epistemologicamente
Creio que tal sentido da atitude despertada pelo fun antes de ser usada tanto como uma panacéia para todos os
cionalismo é muito diferente de uma doutrina ( ou ideolo-
- males teó ricos da antropologia social ou de ser condenada
gia ) derivada dela que postula um equil íbrio entre todas como uma doutrina social reacion á ria.
as O fato é que, como estamos vendo, é a partir do desen -
partes ou esferas de um sistema social. De fato, estou con
-
vencido —
e espero que o leitor também de que a postura
definidora do sistema social como algo que ( a ) não tem
— volvimento do funcionalismo que se pode realizar uma ver-
dadeira revolu ção, criando-se um novo centro de referê ncia
restos, pois ali tudo desempenha um papel ; ( b ) onde tudo que é sempre a sociedade estudada pelo investigador. Deste
tem um sentido, ainda que esse sentido n ão seja facilmente modo, o ponto focal n ã o é mais a Europa e seus costumes,
localizá vel ; e ( c ) que o sentido de um costume, há bito social centro acabado de todas as racionalidades, mas a pr ó pria
tribo, segmento ou cultura em an á lise que deve ser o seu
. . próprio centro. O plano comparativo do funcionalismo n ão
.1 també m
Veja a tese de Moacir Palmeira, Latifundium et Capitalisme
1973 Paris
é mais a sociedade do observador, situada na mais alta esca -
103
104
Kr .i.
la civilizatória, estando fundado na observa çã o de cada sis-
1
A sí ntese a partir do funcionalismo de Malinowski teria que
tema como dotado de racionalidade pró pria , um fato dif í cil ser buscada num outro plano. Nã o poderia mais realizar
de ser aceito pelos evolucionistas que somente podem encon- no plano da hist ó ria determinada pelo progresso, mas -se
trar sentido social quando situam os costumes numa cadeia a posiçã o relativizada que permite cada vez mais com
historicamente dada . Aqui , a sociedade do observador tem estudar
outras sociedades sem os prismas dogm áticos de teorias que
que entrar n ã o como um modelo acabado, para onde todas jamais permitem sua pr ópria relativiza ção. Realmente a par
devem tender , mas como um outro dado sobre a sociedade ,
tir do funcionalismo de. Malinowski at é o estruturalismo -
humana e as rela ções sociais poss í veis entre os seres huma- de
Lé vi-Strauss e Louis Dumont, t ^ do deverá estar
nos. Conforme disse Malinowski , com sua inimitá vel clareza : submetido
à crítica. Neste movimento, nu^a o postulado clássico das
« Estamos hoje muito longe da afirma çã o feita há muitos origens sociais e hist ó ricas do conhecimento sociol ógico
foi
anos por uma célebre autoridade que, ao responder uma levado tão a sério. Assim, é o pr óprio sintetizador do mo
pergunta sobre as maneiras e os costumes dos nativos, vimento estruturalista quem diz na abertura da mais formi -
afirmou : ‘Nenhum costume, maneiras horrí veis !’ Bem d ável an á lise de sistemas simbólicos jamais realizada 11a dis -
diversa é a posi çã o do etn ólogo moderno que, armado ciplina, exceto talvez pela monumental proeza -
evolucionista
com seus quadros de termos de parentesco, gr áficos ge- de Sir James Frazer no Ramo Dourado ( 1890 ) , « 0 meu livro
nealógicos, mapas, planos e diagramas, prova a existên- é um mito da mitologia ». Claude Lévi-Strauss, como se
cia de uma vasta organiza ção nativa , demonstra a cons- t ;-
observa, nã o se poupa como investigador. Ele é 0 primeiro
tituição da tribo, do cl ã e da fam í lia e apresenta-nos a relativizar 0 seu próprio esquema na sua aná lise dos mitos,
um nativo sujeito a um código de comportamento de colocando-se, corajosamente, nela ( cf . Lé vi-Strauss, 1964 : 20 ) .
boas maneiras tã o rigoroso que, em compara çã o, a vida
nas cortes de Versalhes e do Escoriai parece bastante
.
informal » ( cf Malinowski, 1976 : 27 ) .
A comparação, na perspectiva funcionalista, n ã o é algo
que vai somente numa direção, situando sempre os « nativos »
como cobaias e inocentes, como sã o de fato os machados e
canoas dos museus, neutros em sua situação de objetos des-
locados sendo vistos por um visitante que jamais cortou uma
á rvore ou remou . Mas algo que dialeticamente faz sobre si
mesmo uma volta completa, envolvendo a reflexão sobre a
sociedade e os costumes do observador. A partir da revolu -
ção funcionalista, a compara ção deixou de ser uma vitrine
de museu , através da qual 0 observador « civilizado » via e
classificava todos os primitivos, para transformar-se num
espelho, onde o primeiro rosto a ser visto é 0 seu próprio.
Foi gra ças a esta perspectiva que a antropologia pôde
contribuir para a enorme renovação dentro das ciê ncias so-
ciais, renova çã o apresentada sobretudo a partir da demarche
que aproximou o observador do nativo e assim permitiu um ,

conhecimento muito mais aprofundado das diversas l ógicas


que certamente são imperativas em cada sociedade humana.

105

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