Você está na página 1de 4

Como escolha de análise de um projeto existencial, optei por narrar a história de Kie,

protagonista do livro Pesado, escrito por Klese Laymon, disponibilizado pela Tag Curadoria.
É válido já apontarmos de antemão o sugestivo título, tendo em vista que Kie é um menino
negro e obeso, que mora na periferia de Ohio. Ele foi criado pela vó e pela mãe; a vó
trabalhava como dona de casa na casa dos brancos e a mãe era uma importante acadêmica.

A mãe dele sempre saia para o trabalho e dizia para ele fazer um texto sobre como tinha sido
seu dia; sempre cobrou dele muito estudo: ele tinha que ler vários livros e mostrar para ela o
que leu. E, entendendo que a casa deles era pobre e não tinha tantos livros, ele passava a
maior parte do seu tempo fora da escola numa biblioteca perto de sua casa. Lá, nutria
relações, tinha amizades e viveu grande parte de sua vida permeado por essas afetações, até
ter que ir estudar numa escola num bairro de brancos, e não precisar mais ir à biblioteca,
tendo seu próprio acervo de livros em casa, que sua mãe conquistara.

Mas, sem querer dar um passo maior que a perna e adiantar toda a história, aqui já é
interessante entendermos essa exigência da mãe querendo que o filho estude muito e essa
necessidade de que ele seja letrado e se apresente de forma culta. Isso porque, ela vê a
educação como forma de libertar seu povo, e que, assim como ela, era necessário que Kie
fosse alguém culto, alguém letrado, já que foi isso que ela fez para não ter o mesmo destino
que sua mãe, que, já idosa, ainda trabalhava ouvindo asneiras de seus chefes e dos filhos
desses chefes porque não podia ser demitida. Mas, em contrapartida, Kie era contra isso: não
queria ter que se adequar para que suas opiniões fossem ouvidas, queria ocupar esse lugar à
sua maneira.

Nesse sentido, tanto no caso da mãe, quanto no caso de Kie, ambos intencionam seu desejo
para justamente aquilo que vê como faltante nas suas respectivas mães. Ambos agem segundo
o seu livre arbítrio, mas sempre atravessados pela figura da materna, respondendo aos seus
atravessamentos. Aqui, nota-se que ambos se constituem do oposto que a mãe ensina em casa
e essa relação é evidente quando, mais para o final do livro, a vó de Kie parabeniza-o por não
se curvar aos brancos e reclama desse comportamento da mãe dele, sua filha.

Mas, dando cabo a mais um período da vida dessa família, chega o momento em que Kie vai
para uma escola onde a maioria das pessoas é branca, e lá, com um amigo, Lathon, lembram
o tempo todo para si mesmos como é bom vir de onde vieram. E, sendo esse ponto de
resistência, é interessante notar como Kie sempre confrontava os seus professores quando via
alguma experiencia de racismo, quando cobravam dele algo que ele não deveria ser cobrado
ou coisas assim. Além disso, Kie e Lathon a todo momento reforçavam para si que não
deveriam se entregar, reforçavam o quanto os brancos tem valores errados: uma das
passagens conta a experiencia que uma garota chama Kie de repugnante, e ele fica indignado
como alguém pode ser tão desumano a ponto de chamar alguém disso.

A partir do comentário dessa menina, fica evidente também que esses meninos tinham uma
identidade, no sentido de serem atravessados por aquilo que eles representam na escola como
dois meninos negros destacados. E, além disso, como isso impactava no lugar que eles
escolhiam para comer durante o intervalo, o lugar que eles se sentavam durante a aula, no
assunto que eles escolhiam como apresentação de trabalho etc. Então, alguém ser repugnante
para alguém não significa exatamente que alguém é nojento ou algo assim, mas o lugar de
exclusão que essa pessoa ocupa, no sentido de o que essa menina diz, na verdade, sintetiza
aquela situação que eles passavam na escola, ocupando um lugar literalmente diferente dos
brancos.

Essa fase da época de escola também é marcada pelo fato dos seus professores de educação
física sempre relegarem ele, Kie, dos esportes que precisassem de velocidade, mesmo ele
sendo um dos melhores jogadores de basquete da turma e correndo relativamente rápido. Um
dia, ele reclama disso, se estressa com o professor e discute feio com ele; a mãe diz que
sempre avisou que seria assim, que ele tem que respeitar e não mostrar fraquezas. Ele, pelo
contrário, diz sobre o seu direito de reclamar, de mostrar que o que fazem com ele o
entristece e que devem mudar, porque não basta que só ele mude.

Mas essa história ainda tem uma reviravolta interessante que dá para demarcar bem essa
projeção que o ser humano faz de si no mundo em que habita: Kie consegue uma vaga numa
faculdade que todo mundo é branco e não tem nenhum amigo do lado. Nessa parte, ele já saiu
de casa, busca uma carreira acadêmica e, devido à falta do seu amigo e dos seus pontos de
apoio, acaba não sendo mais a mesma pessoa que era durante a época de escola. Ele começa a
se cuidar bastante, a calcular qualquer caloria que ingere e fazer exercícios desenfreadamente,
além de tirar as maiores notas da faculdade.

Então, ele emagrece, fica com o percentual de gordura baixíssimo, fala de forma
extremamente culta nos trabalhos da faculdade e se desvincula de sua família e amigos,
fazendo uma ligação de vez em quando para alguém. Aqui, ele incorpora aquilo que
criticavam nele; talvez, sem a sua rede de apoio, se viu agente transformador da sua realidade
e quis não ser mais o estranho da faculdade como era na escola. Ele parte, então, em direção a
um outro corpo, devido ao que ele passava na escola: ele se metrifica, se calcula, se desenha
e, em resumo, se constitui.

Ele, mais uma vez, é corpo daquilo que falta em si: se ele em algum momento ele queria não
precisar ser bom o tempo todo, queria ter suas fraquezas e não ouvir qualquer coisa, nesse
momento da faculdade ele era impecável e se via como responsável daquilo que ouve sobre si
e daquilo que se constitui como matéria. Se, em um primeiro momento, ele não se importava
muito com aquilo que pensavam sobre ele, não se importava se iam aceitá-lo ou não, agora
ele faz isso porque vê como forma de ter uma vida melhor. Então, ele transforma sua dieta,
suas relações, sua forma de falar e intenciona isso tudo para aquilo que deseja, que é ser bem-
sucedido e poder ajudar sua família financeiramente, tendo em vista que, apesar de sua mãe
ser influente, seu salário era muito baixo, tirando as épocas que trabalhava sem receber.

Então, já caminhando para o final, ele consegue ótimas bolsas e a possibilidade de fazer
transferências bancárias para a sua mãe, que volta e meia liga precisando de ajuda. Ele acaba
transferindo muito mais do que ela normalmente precisaria e começa a se perguntar por que
ela está precisando de tanto dinheiro. Ela esconde que estava apostando nos cassinos da
cidade, mas ele descobre a verdade.

E, já desolado com os frutos do que estava construindo, com o fato de sua mãe estar perdendo
o dinheiro que ele estava dando para ela em apostas, se vê desestimulado para continuar com
sua vida regrada em dieta e estudar. Ele não vê mais por que ser impecável, não entende mais
suas causas, porque luta pelo que luta. Não vê mais sentido em ser bem-sucedido ou sarado,
conquistou isso tudo e se sentiu esvaziado.

Como consequência, ele também começa a apostar, ganha todo o peso que perdeu e se vê
num limbo, que não consegue mais trabalhar, não consegue mais se exercitar e se sente muito
culpado por isso. Nesse universo de culpa, conversa com sua mãe sobre como entrar nesse
sistema branco esvazia o sentido de suas vidas, que esse sistema captura e retira o motivo que
eles têm de viver, e que, para se libertarem, precisam se desvincular dele e se amar.

Por fim, essa análise deixa evidente o quanto nosso corpo passa por transformações em
conformidade com as transformações do nosso ambiente exterior e como isso é indissociável:
para cada fase da vida, Kie se via de uma forma diferente e, além disso, tinha um lugar e um
corpo diferente; na primeira fase, como um menino que se via igual perante seus colegas, na
segunda fase, da escola, como um menino negro dentro de uma escola branca, na terceira, da
faculdade, como um universitário mega disciplinado e, na quarta, alguém que deveria amar
sua família. Também interessante apontar que cada transição dessa que ele passou é marcada
pela intenção de resolver o que faltou da fase anterior: se na escola ele estava nessa posição
aquém dos outros alunos, na faculdade ele era o modelo para eles, se na faculdade ele tentava
controlar suas emoções para diminuir o percentual de gordura, quando foi lidar com a sua
mãe, reconheceu que precisava de abraços e beijos e parou de se importantar tanto com o seu
espelho e com os números da balança.

Você também pode gostar