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De Sergi Belbel
CENAS
CENA 1
Mulher Jovem – Mas, de quê? Vamos lá ver, de quê? Diz-me. De que raio tenho
de me dar conta, pode saber-se?!
Mulher Jovem – Não, por favor. Se vais dizer o que já disseste antes, mais vale
que te cales.
Homem Jovem – Eu não te disse que já não tinha nada para dizer-te, ouviste?!
(volta a esbofetea-la selvaticamente)
Homem Jovem – Disse que já não temos nada para dizer. Não eu. Não tu. Disse:
nós.
(silêncio)
Homem Jovem – Não, não, massa, de noite, não, que é muito indegesta. Prefiro
uma salada dessas com muitos ingredientes e uma boa sobremesa.
Mulher Jovem – Temos alface, tomate, cenoura, milho, azeitonas, aipo, cebola.
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Homem Jovem – Não, não, nada de cebola, que depois como muita.
Mulher Jovem – Sim, porque ficas hálito terrível, e depois é um cheiro na cama
que não há quem o aguente.
Mulher Jovem – Sim! Uma salada tropical! Apetece-me muito. Mas o ananás é
de lata.
Mulher Jovem – Bom, então mãos à obra. Ui. Não sei se há algo para
sobremesa.
Mulher Jovem – Muito bem, tu comes um flan e eu como um iogurte. Está tudo
bem.
Mulher Jovem – Sim, assim acabamos mais depressa. Vamos para a cozinha?
Mulher Jovem – Vá lá, levanta-te, não podemos perder tempo com parvoíces.
Mulher Jovem – Vá lá, vamos, levanta-te, pega num copo, enquanto eu ponho a
alface de molho, vais e pedes à vizinha que o encha de azeite.
Mas que seja mesmo azeite, hum?! Não suporto as saladas com óleo de girassol
ou de milho, são insípidas.
Mulher Jovem – Vais pedir o azeite à vizinha ou não vais pedir o azeite à
vizinha?!
Mulher Jovem – Queres uma salada tropical ou não queres uma salada tropical?!
(silêncio)
Mulher Jovem – Vês?! Dás-te conta?! Vês como afinal tens algo a dizer-me?
CENA 2
9
Mulher Madura – Ao que vou ler. Sabes que me custa falar. E o que quero dizer-
te... escuta-me atentamente.
Mulher Madura – Não tem importância. Não importa quem o escreveu. Não
importa como está escrito. Não importa mais do que as palavras que diz.
Palavras que nos dizem respeito. Espero que as entendas e que entendas
porque as leio.
Que raio tentas dizer-me, se é que tens a intenção de dizer-me o que quer que
seja?!
Não me terás feito vir de tão longe e tão tarde para me dares o trabalho de ouvir
essas palermices, com essas tuas manias de palavras enroladas, frases sem
pés nem cabeça e elevados pensamentos para anormais que tentam deixar de
sê-lo?!
Deixa-te de conversas, e solta lá o que queres sem rodeios estúpidos, porque
tenho de ir esperam-me para jantar, não posso perder tempo com uma velha
chata.
Mulher Jovem – É para isso que me chamas, que me convidas com tanta
urgência, atreves-te a aborrecer-me e pedes-me que te escute?!
Para dizer o quê? Que estás completamente louca?
Mulher Madura – Não. Para dizer-te por fim o que não te disse nunca. Sei que
chegou o momento.
Mulher Jovem – Que momento?
Mulher Jovem – O asílo é ideal. É o teu lugar ideal. Vai para um asílo.
(silêncio)
Mulher Madura – Pensava que este parque era o lugar ideal para dizer-te, que
por fim tomei uma decisão a respeito da tua mania de me afastares de ti, e
deixar de ser um peso para ti e para o mundo. Sei que ainda sou jovem, mas
também estou consciente da minha doença e estou consciente que tudo me
enjoa e que minto, minto-me a mim, minto-te para matar o tempo ou para
recuperá-lo, por isso rogo-te...
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Mulher Jovem – Sim, tens razão. Este é um lugar ideal. É um parque tão
tranquilo. Tão solitário, mãe. Tão solitário.
Mulher Jovem – Adeus. E deixa de ler essas coisas. Tornar-te-ão mais louca.
CENA 3
Sala de um asílo. Um sofá.
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Pobre rapaz, já nem me recordo da sua cara, somente recordo as suas mãos
peludas como lagartas negras e o horror entre as suas pernas. Pobrezito. O
único homem da minha vida, por sorte, o único.
Nunca mais o voltei a dançar com nenhum outro homem, nunca mais... e isso
era o que gostava no tango. Desde logo, que coisa mais estranha... gostava do
tango.
(pausa)
Mulher Velha – Não tenhas medo. Acabarás por acostumar-te a este sítio.
(pausa)
Mulher Madura olha fixamente a Mulher Velha, agarra-lhe a mão e aproxima-se. Dão um beijo prolongado na
boca. De repente soua uma música calma, fora de moda. Som ligeiramente defeituoso.
Mulher Velha – Não. Não. Música de asílo, música de asílo, para velhos
chôchos. As freiras de merda gostam de música de asílo, encanta-lhes, torna-as
loucas. Não lhes entra na cabeça que eu a destesto e não sou a única. Não.
Não. Voltarei a queixar-me.
Mulher Velha – Sim, as duas juntas, melhor as duas juntas, unidas venceremos.
Mulher Madura – Isso. Até que nos ponham a música que gostamos.
(pausa)
Mulher Velha – Quem sabe nos deixarão morrer.
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Mulher Velha – Não tenhas medo. Acabarás por acostumar-te a este sítio.
(silêncio)
Mulher Madura – Ainda bem, que estás aqui.
CENA 4
Mulher Velha – Só me resta uns vinte minutos, porque fecham o asílo às nove.
Alguém me disse que estavas aqui. E eu por fim saí para te procurar.
Dez anos é muito e não mudaste nada. Oito e meia. Levo mais de cinco horas a
caminhar. Porque saí depois de almoço, e estive a dar voltas e mais voltas. Não
conheço estas ruas nem este bairro. Embora seja o centro da cidade. Disseram-
me que estavas aqui. Já sei que dormes na rua. Que as tuas mantas são jornais.
Faz dez anos que o sei e hoje por fim me decidi. Na realidade não sei porquê.
Ou se sei, não sei.
Homem Velho – Cabra, cabra, sei quem és, sei quem és.
Homem Velho – Sim, puta vestida de velha, um polícia disfarçado. Não, não,
não! Não me cortéis o cabelo, quero estar aqui não me leveis, não quero lavar-
me. Darei um peido, não me limpéis a caca, gosto da merda seca. Assim o meu
cú não tem frio. As sardinhas são minhas!
Homem Velho – O meu cuzinho não quer frio. Merda, caca, quero caca.
Homem Velho – Eh, ah. A minha irmã, irmãzinha vivía num asílo.
Homem Velho – Puf, que nojo, porcaria. Tenho sede, que salgada, que salgada.
Atira a sardinha à cara da Mulher velha.
Homem Velho – Sardinhitas salgadas para as putas velhas, tenho fome, tenho
sede.
Tira outro saco do contentor, já rasgado, saca ossos de frango, senta-se no chão rodeado de lixo.
Homem Velho – Franguinho frito, um peito e uma coxinha. Não te a vou dar puta
velha camionista.
(pausa)
Mulher Velha – Menos um quarto, nove menos um quarto. O asilo fecha às nove.
Não queres vir comigo(?!) Vou-me embora.
CENA 5
22
Homem Velho – Que horas são? Não é muito tarde, não é muito tarde? Não são
três, não são quatro?
Miúdo – Cala-te.
Miúdo – Dá-me.
Homem Velho – Ah, filho da puta, filho de puta, a tua mãe é uma puta.
Miúdo – Não homem! O meu pai não fuma. Idiota. Roubei-o a um gajo que curto,
e ele também me curte bué, assim nunca pensará que fui eu que o roubei.
Queres que te conte?
Miúdo – Ah ah. Pois o gajo a quem roubei isto, é um gajo que encontrei no metro
e me arranjou chito, e só me cobrou 12€, caralho, foda-se, que merda, e agora
acabou-se, é que tenho um amigo que acho nojento, asqueroso e fumou-me
metade, foda-se, que anormal, e o gajo do metro levou-nos para sua casa, foda-
se que casa, e aí tomámos banho porque já há dois dias que não tomávamos
banho, o meu amigo nojento e eu.
E quando tomávamos banho, vimos que o tipo se despia no quarto e no quarto
havia uma gaja nua que lhe disse: “Quem são esses miúdos?”. Ele disse-lhe que
vinhamos comprar chito e a tipa levantou-se toda nua e entrou na casa de
banho. Foda-se, tinha uma cona negra, foda-se, e o meu amigo e eu partimo-nos
a rir.
A gaja era cantora num grupo super conhecido que se chama Ódor a Sémen,
que eu e o meu amigo tinhamos ído ao concerto, na moto de uns colegas, há
quatro dias, foda-se, caralho, que estalo, que coincidência. E ela disse que
eramos muito pequenos e eu perguntei-lhe se ela era a gaja dos Ódor a Sémen,
e ela disse que sim. E perguntou quanto anos tinhamos. E eu todo nu disse-lhe
que gostava muito do grupo dela e que tinha treze, e logo entrou o gajo que tinha
um pila assim grande e a fumar uma broca disse-nos “vistam-se e basem daqui”,
e vendeu-nos o chito, só nos levou os 12€ e ficamos amigos.
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E como ainda nos sobrou 40€ dos 95€ que o meu amigo tinha roubado ao pai,
pagamos, roubei-lhe o isqueiro e saimos a mijar-nos a rir.
Foda-se e gastamos o chito numa noite, foda-se, a beber e tudo passamos a
noite numa casa abandonada muito fixe, foda-se que nóia, eu voava como se
fosse um anjinho com as bejecas e os charros. E de manhã ainda estavamos
alucinados como se estivessemos no céu, sem ruído, sem gritos nem nada de
nada, que tranquilidade. E que nojo ver o meu amigo a dormir como um imbecil.
Miúdo – Saimos da casa abandonada e fomos para uma Okupa que uns punks
nos tinham dado a morada, e abriram-nos a porta e dissemos “Ei, podemos
dormir aqui?” E eles disseram “Ok, ok, mas só uma noite, hã?”
Lá, estavam os vocalistas de Merda Social, a gaja dos Lençóis Manchados e o
baterista dos Fucking my Mother, um gajo altamente e pensámos “porra, ainda
temos 28€”, e estes gajos de certeza que nos arranjavam uma trip fixe. E deram-
nos meia trip por 20€, “é muito barato”, disseram-nos. E o meu amigo asqueroso
e eu dissemos “altamente” e compramos e ali mesmo metemos. Caralho pá que
fixe, foda-se velho que fixe, que viagem, ganda alucinação. Tudo com umas
cores e voámos e estávamos no céu e eu estava no céu como um anjo e não
pensava em nada e mijava-me a rir.
Mas não, a bejeca era de litro e tinhamos de dividi-la com o meu amigo
asqueroso e os quatro colegas, que eram os que tinham sido amigos do meu
irmão. Ou seja só mamei uns cinco goles, mas um dos coelgas tinha um charro
de erva, e entre isso e o tubo de cola que estivemos a snifar, já fazia a noite
completa.
Mas eles foram-se embora, porque eles não tinham fugido de casa e fiz-lhes
jurar pelo meu irmão que quando os meus pais telefonassem para suas casas
não diriam nada. E foram-se e eu fiquei super fixe num baloiço e sonhei com o
meu irmão.
Homem Velho – Anjinhos, anjinhos a ver os anjinhos. Que sonho. Chato, chato,
és um chato e falas como eu.
Miúdo – Não é verdade. O meu irmão não é nenhum anjinho. A minha mãe
disse-me que sim, desse-me todos os dias, durante três meses disseram-me
todos os dias. Agora esqueci-me. Porque eu digo que não, Deus não existe, o
céu é uma mentira.
Miúdo – Vem cá já, porco de merda, velho! Foda-se caralho, bêbado dum
cabrão, maricas! Foda-se este mamão não tem nada, foda-se!.. O anel!
O Miúdo, com esforço, tira o anel ao Homem Velho, cospe-lhe na cara e sai a correr.
Homem Velho – Ai, ai, ai. Filho da puta, filho de puta, filho da puta de anjinho.
CENA 6
27
Homem – Quase.
Homem – Cá chegarás.
Miúdo – Veremos.
Homem – Verás.
Homem – E tu?
Homem – Não.
Miúdo – E a mãe?!
Homem – Dorme.
Homem – Não.
Homem – Quem?
Homem – Ah.
Miúdo – Na mãe?!
Homem – Achas?!
Miúdo – Não tens olhos? Não as vês? Não as olhas quando vais pela rua?!
Homem – Às vezes.
Miúdo – Mentira.
Homem – E tu?
Miúdo – Eu sempre.
Homem – Não.
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Miúdo – Não.
Miúdo – O quê?
Homem – Amanhã...
Miúdo – Qual?
Miúdo – Porquê?
Homem – Não.
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Miúdo – O que é?
Miúdo – Deixa ver. E quem é que vai gostar mais, tu, eu ou a mamã?
Miúdo – E tu?
Miúdo – Uáu.
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Homem – Não, é melhor que amanhã a façamos ir lá fora e nos encontre os dois
dentro do carro. Verás com que cara fica.
Miúdo – Sim.
Homem – Não.
Miúdo – Porquê?
Miúdo – Tu.
Miúdo – Sai do banho, de certo não é bom, vais apanhar uma pneumonia, bah!
Homem – Não.
Miúdo – Comigo?!
Homem – Sim.
Miúdo – Altamente.
O Homem entra na banheira.
Homem – Sim.
Homem – O Quê?
Miúdo – A tua.
Homem – A minha?!
Miúdo – Porra, não vês? Que a tua é muito maior que a minha.
Homem – Lá chegarás.
Miúdo – Veremos.
Miúdo – A mãe?
Homem – A água.
Miúdo – Pai.
Homem – O que é?
Miúdo – Olha.
Homem – O quê?
Miúdo – Toca.
Homem – Porquê?
Homem – Ganhas-me?!
CENA 7
Homem – Nada.
Rapariga – Nada?!
Rapariga – E acreditou?
Homem – Não.
Homem – Nada.
Homem – Estupendo. Se posso saber, então, o que é que estamos aqui a fazer?
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Rapariga – De quê?
Homem – De apanha-lo.
Homem – O comboio.
Rapariga – Ah.
Homem – Por certo não te ficaria nada mal te lavasses mais frequentemente.
Seguramente assim teriamos poupado outro problema.
hálito tresanda, geralmente significa que tem o estômago sujo ou que está a
ponto de vomitar, se não o fez já... Pois sim, a primeira vez que tiraste as
cuecas, não podia acreditar, juro-te, perdoa-me que to diga agora, tão tarde,
depois de tantas vezes o termos feito, são coisas que só se podem dizer depois
de ter rompido a relação e já não há obrigações nem entraves nem nada que nos
una, quando te sentes livre, como eu me sinto agora, vamos lá, bom pois, na
primeira vez quase que desmaiei, que cheiro nauseabundo, recordo-me
perfeitamente, que cheiro, olhei-te disfarçadamente entre as pernas contendo a
respiração pensado que ía ver um bafo espesso e quente, fumo saindo de
dentro, de penetrante que era o fedor; mas acostumamo-nos apesar de tudo a
estas coisas. Às vezes... toma atenção... às vezes nem lavando a pila com
sabão três vezes seguidas se ía o odor, e tinha que carregar com ele, (com o
odor da tua rata), durante o resto do dia. Porque na maioria das vezes, para não
dizer todas, o fizemos ao meio do dia, recordas-te? Assim não havia forma de
esquecer-me de ti.
Agora que penso nisso, não sei como ela não se deu conta antes, não deve ter o
olfato tão apurado como o meu, é mais que evidente.... claro que, de qualquer
maneira, nos dias em que o fazía contigo procurava não tirar os boxers diante
dela ou perto dela... ía rapidamente à casa de banho com as calças do pijama e
ensaboava-me uma última vez e metia os boxers directamente na máquina de
lavar, depois de cheirá-los e conter uma inevitável gargalhada... que curioso,
quando era jovem e só tinha nas cuecas o cheiro dos meus testiculos, adorava
cheirá-las. Agora ao contrário.... puff, são coisas que não consigo entender.
Não dizes nada? Porque é que não dizes nada?
Rapariga – O sonho foi diferente, mas não tanto. Decidiamos acabar a nossa
relação, já se vê. Disseste-me que a tua mulher já sabia. Curiosamente, também
estavamos numa estação. Mas eras tu que tinhas que apanhar o comboio.
Recordo que me insultavas. Mais ou menos como acabas de fazê-lo agora. Mas
o que eu recordo melhor era o que te dizía. Dizia-te gritando, no meio do ruído e
rodeada de gente, viajantes com malas, vendedores de jornais, revisores,
maquinistas e sobretudo varredores vestidos de macacos amarelos, (havia
muitos, muitíssimos, milhares e milhares de varredores flurescentes escutando
boquiabertos as minhas palavras, diante de nós, sentados no chão da estação
com as vassouras aos pés).
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Homem – Não.
Rapariga – Seguramente.
Homem – Adeus.
Rapariga – Não tens nenhum motivo. Na realidade, ninguém deu por nada.
Ninguém sabe nada. Ninguém nos ouviu. Além do mais a ninguém interessa,
nem importa a tua desgraça.
E muito menos ainda aos varredores da estação. Fica tranquilo. Esta cona fétida
e este hálito que tresanda despedem-se de ti sem espalhafato nem histerias,
nem gritos nem ataques de nervos, nem ninguém que nos escute.
Homem – Adeus.
(silêncio)
Rapariga – Odeio-te!
CENA 8
Cozinha. Mármores.
Rapariga e Homem Maduro.
Rapariga – E já está?
Rapariga – Cozinhar.
Rapariga – A quê?
Rapariga – O quê?
Rapariga – Ontem encontrei uma amiga minha, que me disse uma mentira.
Rapariga – tira-as.
Homem Maduro – Olha-me. Presta atenção. Não te peço nada, vês?! Eu mesmo
vou buscá-lo. Podes soltá-lo, se és tão amável? Muito obrigado. Agora já podes
continuar a olhar-me.
Rapariga – Disse-me que eras o homem maduro mais interessante que já se viu.
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Rapariga – É repugnante.
Rapariga – Disse-me que eras o homem maduro mais interessante que jamais
tinha visto.
Rapariga – Bem, muito bem, como todas, estou muito contente com o meu novo
trabalho. Contentíssima e gosto de viajar, e poder estar longe desta cidade de
merda e esta viagem fez-me muito bem.
Rapariga – O peixe mais ensonso. Levo um mês sem vir ver-vos e decides fazer
o peixe mais insonso e uma triste salada, uma triste salada cheia de lagartas e
um peixe chato. Telefono-vos a mil quilómetros de distância, mil quilómetros e
digo-vos “chego amanhã e vou vê-los, vou comer, porque depois de amanhã
volto a viajar” e tu preparas com premeditação maldosa os pratos mais
adequados. Sim estou-te a ver, vejo-te perfeitamente: filha chata, visita de
médico, forçada reunião de familiar, encontro insípio, menú chato: salada e
linguado!!
Rapariga – De quê?
Rapariga – O quê?
Homem Maduro – Talvez sim. Hui. Não, não. Metia-me tudo de patas para o ar.
CENA 9
Rapaz – O que é?
Rapaz – Porquê?
Rapaz – É normal.
Rapaz – Água.
Rapaz – Teriamos de viver mais longe. Todos, mais longe. Que merda de bairro.
Toda a gente se encontra mais cedo ou mais tarde. Já não há privacidade.
Rapaz – Chateia-me
Rapaz – Olha-me. Disse-o por mim. Para fazer-me saber que ela sabe.
Rapaz – Não.
Rapaz – Da privacidade.
Rapaz – Sim.
Rapaz – Que faço? O que é… o que é que queres? O que é… o que é que
queres que faça?
Homem Maduro – Põe-no aqui. Diante da cama. Não. Aos pés. Em cima. Aqui.
Sim. Direito. Não. Mais próximo. Apoia-o em uma ou duas cadeiras. Sim, isso
sim. Assim. Perfeito.
Rapaz – E agora… o quê? O que faço? O que… o que é que tenho de fazer?
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Rapaz – É um espelho.
Homem Maduro – Vem, aproxima-te. Vá, vem aqui. Agarra-a. Assim. Com a tua
boca. Isso sim. Fá-lo bem. Devagar. Sem pressas. Quero vê-lo todo. Até ao fim.
A tua pele. Estou vivo. Devagar, devagar. Gosto tanto. Como o fazes tão
bem.Não. Não, não, não! Não olhes. Tu não olhes. Que fazes?
Homem Maduro – Depois. Depois. Continua. Sem olhar. Até ao fim. Assim, sim.
Isso. Depois faço-te eu. E tu verás. Nos verás. Assim. Assim. Isso mesmo. Só
nós. Os quatro. Os quatro, sós…sozinhos?! Que não! Sim somos… quatro! Ah.
Assim. Assim. Ah. Vocês os três… os únicos que me querem.
(silêncio)
CENA 10
Mulher – E quando abro a porta, toca o telefone e não imaginas quem era.
Mulher – Não te parece estranho que um telefone toque no preciso instante que
tiras as chaves da fechadura da porta da entrada?! Não?!
Pois a mim sim. Não sei de nenhuma vez que me tenha acontecido, é como se
as duas coisas estivessem unidas ou fossem a mesma coisa. Além do mais, tu já
sabes, não é nada frequente que telefone alguém para esta casa, não é nada
normal, é anormal, tu sabes muito melhor que eu.
Sempre pensei que a razão principal que te impulsinou a deixar-me, quero dizer,
a emancipar-te, assim como tu dizes, Verdade?!... foi o pouco que tocava o
telefone nesta casa.
Sim, sim, estou a falar a sério, sempre pensei que fosse isso. Deixa. Imagina a
cara que fiz no umbral da porta, cansada e angustiada, com os sacos de plástico
do supermercado a cortarem-me literalmente os dedos e o porta-moedas vazio
no sovaco, o porta-moedas... vazio, quando ainda faltavam dias para chegar ao
fim do mês.
Por querer correr, para que a bendita chamada não me escapasse, deixei-os de
qualquer maneira e partiram-se sete ovos.
Em suma, já estava a correr como uma louca para o hall, e numa milésima de
segundo pensei, como gostaria de ouvir uma voz agradável que me
cumprimentasse, e me ajudasse a passar agradavelmente o resto do dia, o resto
dos dias, o resto dos meus dias.
Tira uma nota da carteira do Rapaz e mete-a no decote, disfarçadamente. Mas o Rapaz já tinha entradosem que
ela desse conta.
Rapaz – E o café?
Mulher – Ah! Que susto! Sempre com essa mania, não mudarás nunca. És um
sádico, és um sádico. Porque é que nos saíste assim? Porquê? Eu não consigo
explica-lo a mim mesma.
Mulher – Ao teu pai, certo que não um encanto de homem, galante, educado e
que descanse em paz.
Rapaz – Senta-te.
Mulher – E à tua irmã ainda menos, sensível, terna, incapaz de matar nem uma
mosca.
Rapaz – Acalma-te.
Mulher – Não podes levar a vida assim, dando sustos dessa maneira,
assustando as mulheres como as assustas. Porque se me assustaste a mim, de
certo que também assustas as outras mulheres.
Mulher – Oh! As que imagino que metes na caixa de fósforos que tens em casa,
para fazeres o que cá sei.
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Mulher – Já te disse milhares de vezes que da próxima vez podes vir jantar com
alguma amiguinha, se quiseres. A mim, a companhia não me chateia, pelo
contrário.
E entre mulheres nos entendemos. Seria menos aborrecido. Porque és tão
aborrecido? Hui, o comprimido. Porque és tão aborrecido?
Mulher – De quê?
Rapaz – Não.
Rapaz – Não.
Rapaz – Duvido.
Rapaz – Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito... e nove.
Mete as notas no decote da Mulher, violentamente.
Rapaz – Sim.
Mulher – É que tenho de tomar o comprimido e já sabes que fico com um sono
terrível.
Rapaz – Adeus.
EPÍLOGO
...Soa a campaínha da porta. A Mulher levanta-se e vai até à porta silenciosamente. Olha pela mira. Sorri e abre.
Mulher – Com muito gosto, jovem, com muito gosto e não tem que devolver-me
nada.
Mulher – Espere aqui que... oh, mas... mas... oh... que é que lhe aconteceu à
cara?
Mulher – Ui, ui. Sente-se, sente-se por favor. Fez isso na escada, verdade? Caiu
pelas escadas, verdade que sim? Que desgraça. Espere um segundo, venha
comigo, sente-se aqui, acalme-se. Tranquilo, tranquilo.
Mulher – Não tenha medo. Vou curá-lo como se fosse uma mãe, melhor ainda.
Lentamente, com muita delicadeza, a Mulher passa o algodão molhado de água oxigenada pela cara do Homem
jovem.
(Silêncio)
Ele olha a Mulher e deixa-se curar por ela. Ela seca-lhe cuidadosamente as gotas de água com um algodão seco.
Ele relaxa e sorri. Ela acaricia-lhe suavemente o cabelo. Ele pega-lhe na mão em sinal de agradecimento. Ela
beija-lhe a testa. Ele beija-lhe a mão. Olham-se nos olhos.
Dois seres estranhos parecem “encontrar-se”. O ar torna-se cálido, sensual. As notas que estavam na mesa
cairam no chão.
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FIM