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Guarulhos, SP
2016
PATRICIA MARIZ DA CRUZ
Guarulhos, SP
2016
Cruz, Patricia Mariz da
O luto amoroso: uma leitura de Paisagem com dromedário, de Carola Saavedra / Patricia
Mariz da Cruz. Guarulhos, 2016.
87f.
Título em inglês: The loving grief: a reding of Landscape with dromedary, from
Carola Saavedra
1. Estudos Literários. 2. Luto. 3. Amor.I. Paloma Vidal. II. O luto amoroso: uma
leitura de Paisagem com dromedário, de Carola Saavedra.
PATRICIA MARIZ DA CRUZ
O LUTO AMOROSO: uma leitura de Paisagem com dromedário, de Carola Saavedra.
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós Graduação em
Letras da Universidade Federal de
São Paulo como requisito parcial
pra obtenção do título de Mestre
em Letras.
Área de concentração: Estudos
Literários
Orientadora: Paloma Vidal
____________________________________________________________
Professora Doutora Paloma Vidal
Orientadora
____________________________________________________________
Professor Doutor Markus Volker Lasch
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Titular
____________________________________________________________
Professora Doutora Adriana Kanzepolsky
Universidade de São Paulo (USP)
Titular
____________________________________________________________
Professora Doutora Francine Fernandes Weiss Ricieri
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Suplente
Para Célia e Lourdes (in memoriam),
aquem eu devo tudo o que sou
e meu amor pelas letras.
AGRADECIMENTOS:
À minha mãe Célia, maior incentivadora dos meus estudos e da minha profissão,
sempre me apoiando e me motivando a seguir em frente, mesmo com todas as dificuldades,
sendo a minha maior inspiração de vida e de profissional.
Ao meu marido Rodrigo, pela compreensão, paciência e incentivo desde o início dessa
caminhada, mesmo quando o mestrado era uma possibilidade.
À minha madrinha Leonice e aos amigos de sempre Douglas, Shantala, Thaís, Juliana
e Diana que sempre me ajudam e incentivam, mostrando-se presentes, apesar de morarem em
um outro estado.
el amor es posible
llévame
(Alejandra Pizarnik)
RESUMO
Ao mesmo tempo em que realiza seu trabalho de luto, Érika reflete sobre os conceitos
da arte contemporânea e, ao fim da narrativa, descobrimos que as gravações se tornaram uma
instalação. É nessa transformação que o destinatário não passa a ser somente Alex e, sim, os
espectadores, e nós, leitores, entramos em contato com a reflexão da arte relacional, em que
tudo pode ser arte, dependendo da interpretação do espectador.
Published in 2010, Landscape with dromedary is writer Carola Saavedra‟s third novel.
In 22 recordings addressed to Alex, her object of love, the narrator and character Erika
recounts her love exile on an island not named, only described, shortly after the death of the
other vertex of a triangular love relationship, the young Karen. In contact with this landscape,
appropriated by the narrator, she writes. The need to share with Alex the sensations and
emotions caused by this landscapemakes Érika compose her recordings, with the belief that
sound is the most effective to reach the other the way we want.In these recordings, which
make up a mourning journal, the narrator enters her intimacy, seeking to define the real places
of her relationship with Alex and Karen.
At the same time, she carries out her work of mourning, Erika reflects on the
concepts of contemporary art and, at the end of the narrative, we find out that the recordings
have become an installation. Through this transformation the recipient is no longer only
Alex,but also the viewers and we, the readers, come into contact with the reflection of
relational art, in which everything can be art, depending on the interpretation of the viewer.
This work seeks to analyze the main themes present in the Saavedra‟s novel:
landscape, love, mourning, intimacy, addressing and art, approached by the narrator‟s
fragmentary discursive elaboration during her loving mourning work, to recall and make
Karen present. Theorists like Roland Barthes, Julia Kristeva, Anne Cauquelin, Jacques
Derrida, Zygmund Bauman, Nicolas Bourriaud and Michel Foucault assist us in the
understanding of these issues, as well as the psychoanalytic perspective, through the light of
Sigmund Freud.
INTRODUÇÃO
1
O primeiro romance de Saavedra possui dois narradores. Na primeira parte temos Laura, que toda terça vai ao
consultório de seu psicanalista, Otávio, por quem se sente atraída e a todo custo tenta lhe chamar atenção, e um
outro narrador que conta a história de Javier, um latino-americano que está fazendo seu doutorado na Alemanha
e se envolve com Ulrike, uma jovem norueguesa que mora com algumas colegas, dentre elas, Camilla, uma
brasileira, com quem ele mal se relaciona, tendo pouco contato. Em sua consulta com Otávio, Laura, em uma
tentativa de causar ciúmes nele, conta que está namorando com Javier, que há pouco tempo veio para o Brasil.
Na segunda parte do romance, a voz do narrador muda e é Camilla quem conta a sua história. Ela , toda terça
quando ficava no apartamento de Ulrike sozinha com Javier, envolvia-se com ele. Camilla, ao voltar para o
Brasil, hospeda-se na casa de Laura, sua amiga de infância, a quem ela não conhece mais. Laura demonstra
querer muito mais do que uma amizade, pois se sente atraída pela narradora e quer ser correspondida. Porém,
para Camilla, Laura é uma estranha.
2
O segundo romance de Saavedra conta a história de Marcos, um homem recém-separado que não consegue
entender as mulheres à sua volta. Ele não tem um bom relacionamento com sua ex-mulher e sua filha,
considerando as duas como estranhas. Em seu novo apartamento, ele começa a receber cartas de amor de uma
mulher que apenas se identifica como A. As cartas também não têm destinatário; apenas são endereçadas a “Meu
querido”. Marcos, indevidamente, começa a ler essas cartas destinadas a outro e, ao longo da narrativa, sente-se
próximo dessa mulher, pois mesmo sem conhecê-la pessoalmente, acredita que ambos se entendem, são
próximos: ao contrário das mulheres acerca dele, ela não é uma estranha, ela o entende, assim como ele a
compreende também. A última carta faz com que ele procure o suposto destinatário, o antigo morador. Mas, ao
entregá-las a ele, este afirma que as cartas não lhe pertencem, não são dele e Marcos fica sem ter nenhuma pista
sobre quem seria essa mulher, desconhecida pessoalmente, mas a quem ele conhece a sua intimidade e, por isso,
sente-se próximo dela. Assim como em Toda Terça, a narrativa alterna os narradores: ora é a voz de A. presente
nas cartas, ora é um narrador, não totalmente onisciente, que fala sobre Marcos.
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No mais recente romance de Saavedra, a história é dividida em duas partes. No primeiro momento, conhecemos
a história do narrador, um escritor não identificado, que se envolve com Nina, na faculdade. Ele é abandonado
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caminhos que ele oferece: o leitor pode interpretá-lo sob diversos aspectos e são essas
possíveis interpretações que me inquietaram. A narrativa também repensa a literatura,
questiona-a enquanto comunicação. A minha monografia não dava conta de analisar o
romance como eu queria, explorando todas as possibilidades.
por ela, que viaja para Londres com outro homem e apenas deixa quatorze diários como lembrança para ele.
Após alguns anos, ela volta e os dois retomam o seu relacionamento. Alternando a história dos antepassados de
Nina com a criação de um romance, não sabemos se Nina é uma personagem ou a mulher com quem ele se
envolveu. No segundo momento, o narrador fala sobre seu relacionamento ruim com seu pai que, após vinte anos
sem contato, reencontra na casa onde ele passou a sua infância e guarda recordações ruins. O pai, já muito
doente, deixa como herança quatorze diários, em que conta, detalhadamente, sua intimidade durante quatorze
anos. Novamente, nós, leitores, não sabemos se o pai do narrador é ou não um personagem, pois, durante seu
momento de criação do livro, o narrador diz que o seu romance conta a história de um pai com o filho. Assim, o
romance termina com possibilidades abertas ao leitor: quem é o personagem da história do narrador? Todos,
Nina e o pai, são personagens?
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contemporâneaque, de acordo com Alex, tudo pode ser considerado arte, bastando apenas o
nosso olhar assim considerar. Dessa forma, mesmo sem saber sobre a real motivação das
gravações, podemos afirmar que ele foi produzido pensando em uma maneira de atingir o
outro, seja este Alex ou o leitor/ ouvinte.
É por meio dessas gravações que trabalharei, nesta pesquisa, algumas temáticas
presentes na narrativa,como, por exemplo, a experiência do luto, a questão da culpa e a
relação do romance com a conceituação de arte contemporânea. Para isso, usarei como
metodologia, de acordo com Mario Klarer (2004), as perspectivas interpretativista e
comparativista, já que analisarei a narrativa, os personagens e as temáticas, sob a luz da
psicanálise, através de Sigmund Freud, e da teoria literária, com teóricos como, por exemplo,
Jacques Rancière, Roland Barthes, Julia Kristeva, César Aira, Jacques Derrida, entre outros.
É através da descrição da ilha que o leitor tem o seu primeiro contato com o livro, ela
é a “porta de entrada” do romance. Mais do que sinônimo de natureza, a paisagem é definida
como comunicação, pois,ao se relacionar aos sentimentos e emoções do homem, ela é o meio
de expressar a sua subjetividade e é através dessa paisagem que a narradora encontra
motivação para começar as suas gravações: é o desejo de transmitir ao outro, todas as suas
sensações da ilha e compartilhar isso com ele através do som, por acreditar que cada lugar
tem um som específico. A narradora se apropria da paisagem e, a partir dela, faz o seu
trabalho de luto.
individual, e que essa escrita também pode servir como um instrumento para superar a
melancolia do luto, imortalizando o ser ausente. Desse modo, a escrita do diário de luto é
onde expomos a nossa intimidade, os nossos sentimentos e questionamentos. É, então, uma
escrita íntima e marcada pela impossibilidade de comunicação, devido à dificuldade em
nomear aquilo que se sente.
Essa escrita íntima também se revela como uma terapia. O diário de Érika é produzido
em um momento de crise e termina quando tal momento se ameniza. É através das gravações
que a narradora realiza seu trabalho de luto.É também nesse capítulo que, via Freud, vemos
que o estado de Érika não é somente devido à tal experiência e, sim, à sua culpa por ter
abandonado Karen quando a jovem descobriu que tinha câncer.
A importância do som fica mais evidente quando ficamos sabendo que tudo que lemos
está sendo dito por um gravador numa instalação. Antes disso, já havíamos entrado em
contato com os conceitos de arte relacional por meio das falas de Alex. Para ele, tudo pode ser
considerado arte, o que vai ao encontro das teorizações de Nicolas Bourriaud. As gravações,
ao se revelarem como parte de uma instalação, abrem outras possibilidades para o leitor: não
sabemos se desde o início foram concebidas assim por Érika ou se a narradora realmente quis,
primeiramente, endereçá-las a Alex e, depois as transformou em arte. O que sabemos
realmente é que houve uma falha, algo foi perdido para leitor e ele, assim, compartilha a
mesma sensação de Érika: mesmo ouvindo as gravações, como um voyeur, ele perdeu algo
muito importante. É a partir dessa perda que refletiremos sobre a literatura enquanto
comunicação.
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1. ENTRANDO NA PAISAGEM
“Estou no extremo sul da ilha. Se eu nadasse numa linha reta, imagino que
em algum momento chegaria ao Antártico. Terras austrais. De qualquer
forma, o extremo sul não significa muita coisa, quando o extremo norte fica
a pouco mais de duas horas de carro. Poucas horas de carro, e pronto,
terminou a ilha. O mar, em compensação, parece inesgotável. Assustador. O
mar aqui é um mar que ainda não foi domesticado. Nunca lhe foi imposto
limite algum” (SAAVEDRA, 2010, p.9).
Essa descrição da ilha é o primeiro contato que o leitor tem com a narrativa e com a
história de Érika. É também por meio dessa paisagem que a narradora encontra a sua
motivação para falar, compondo as suas gravações. Ela deseja transmitir a Alex toda a sua
experiência na ilha, gravando os sons dessa paisagem, para que ele compartilhe o que ela
sente, mesmo não estando presente. A ilha serve como motivação para a narradora começar
com as suas gravações: é sempre por meio da necessidade de descrever essa paisagem para
Alex, o seu destinatário, que Érika começa a falar.
“No início da trilha apenas um casal, ingleses, imagino, eles me olharam com
piedade por me verem sozinha, as pessoas não costumam andar sozinhas por
aí. Não é de bom-tom, diria Karen. Lembra que a gente costumava pegar no
pé dela por causa dessa frase, não é de bom-tom. A verdade é que quase nada
é de bom-tom, não é de bom-tom subir montanhas sozinha, não é de bom-tom
ir embora sem se despedir, não é de bom-tom morrer sem avisar, essas coisas.
Nesse trecho, vemos que a narradora começa a sua gravação falando da sua
experiência na ilha, de seu cotidiano e da trilha que ela fez. Semelhante a uma experiência
analítica – questão que abordaremos no próximo capítulo -, para Érika, falar sobre a
paisagem, descrevê-la, falar sobre o que ela faz na ilha pode servir como um desvio, já que ela
não quer começar as suas gravações falando sobre a sua experiência de luto. Torna-se
necessário tentar falar somente sobre o que ela vê e faz. Gravar os sons da ilha pode ajudar
começar a falar sobre Karen e a sua morte, já que Érika não consegue evitar falar desse
assunto. A paisagem da ilha serve, então, como uma motivação para compartilhar com Alex
sobre sua visita a esse local, mas, principalmente, para falar sobre a morte de Karen, fazendo
seu trabalho de luto.
Ainda para Érika, os sons dessa paisagem podem servir como um objeto de arte. Isso
porque, para ela, os sons são elementos que particularizam um lugar; cada cidade, cada bairro
tem sons que o particularizam. A narradora diz a Alex que fará dos sons da ilha um diário e
que ele se transformará, possivelmente, em uma instalação. Conforme veremos no último
capítulo deste trabalho, tal desejo se realiza. Desse modo, o objetivo dela não seria somente
compartilhar a sua experiência nessa ilha com Alex e, sim, com os espectadores de sua
instalação. A descrição da ilha, juntamente com os seus sons, serviria, então, como um meio
de atingir o outro e é isto que a narradora procura problematizar. No romance, a paisagem é o
meio para se chegar ao outro e é a motivação para falar.
Além da voz da narradora, a paisagem é descrita por uma outra voz, semelhante a uma
didascália, que é transcrita em itálico. Ela fornece outras informações sobre o lugar e os
ruídos que interrompem as gravações. Esses ruídos são provocados por vários fatores, como o
barulho dos passos de pessoas, das ondas do mar, da música ou da televisão e também a das
emoções de Érika: “Silêncio. O barulho das ondas batendo no rochedo torna-se cada vez
mais alto. Voz muito baixa, inaudível. Pausa. A voz continua, agora num tom mais alto.”
(SAAVEDRA, 2010, p.10). São barulhos que interrompem a gravação da narradora e que
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“Não há nada mais desesperador do que estar numa ilha no meio do nada,
tipo a ilha de Páscoa, não sei. O umbigo do mundo. Eu sei, isto aqui não é a
ilha de Páscoa. Mas é como se fosse. Costumo acordar no meio da noite, por
causa dos pesadelos (...) O vento oeste, as poucas praias de areia fina, que o
vento trouxe do Saara, a lava dos vulcões e suas diferentes texturas. Há
inclusive um tapete de lava, a última erupção, que cai diretamente no mar.
Você caminha por ali e sente a temperatura elevada do solo.”(SAAVEDRA,
2010, p.42- 112).
A referência aos ventos do oeste, que são advindos do Saara, também se relaciona com
a presença de um animal característico da ilha onde Érika está. Os dromedários são animais
característicos dessa paisagem e, em sua origem, são animais que vieram da África, onde
desempenhavam o papel do cavalo. Esses animais também se referem imageticamente à
viagem, ao percurso de longas distâncias, assim como Érika fez. Desse modo, a importância
do animal dentro do romance não se deve somente a fazer parte do título ou a compor a
paisagem dessa ilha:o dromedário também se refere à própria narradora, que viaja, percorre
uma longa distância para realizar suas gravações e o seu trabalho de luto.
Além dos dromedários, a ilha também tem um vulcão compondo a paisagem local,
conforme descreve a narradora: “Mas durante o dia estou bem, me sinto disposta, saio, faço
minhas caminhadas, a paisagem aqui é quase sempre a mesma, a terra deserta, os vulcões, os
turistas, os dromedários. E há o mar, por todos os lados” (SAAVEDRA, 2010, p.109). Tais
elementos tornam-se interessantes para os turistas. Tanto o vulcão como os dromedários são
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considerados como as atrações de um lugar turístico, onde as pessoas não fincam raízes e que
ainda resistem em um lugar afastado, destacado do resto do mundo.
O vulcão e os dromedários, além de compor essa paisagem local, são elementos que
ajudam a explicar a origem da ilha, a sua fundação, e também auxiliam a pensar na sua
localização. Os animais e os ventos do Saara demonstram que a ilha é próxima do continente
africano, já que os dromedários vieram da África. Além disso, Érika também afirma que a ilha
é jovem e que se originou a partir das constantes erupções do vulcão: “Dizem que a ilha
inteira surgiu de uma série de erupções bastante recentes. É uma ilha jovem, a maior parte
está submersa.” (SAAVEDRA, 2010, p.112).
Por ser um local turístico, a ilha apresenta uma mistura de vários idiomas que se
confundem com a língua nativa. Ainda que os turistas se esforcem em falar a língua local, a
mistura continua, pois eles não conseguirão dominar o idioma como um falante nativo. Essa
mistura, para ela, explicita um ruído na comunicação, uma falha irredutível:
“Hoje vim pela primeira vez para o trecho da orla onde os turistas desfilam.
Curioso isso, as pessoas saem de férias, viajam, gastam tempo, dinheiro, e
escolhem um lugar onde possam comer as mesmas coisas de sempre, falar as
mesmas coisas de sempre, ouvir o mesmo idioma. De novo, apenas uma
paisagem de cartão-postal. Às vezes, nem mesmo a paisagem. Mas talvez
essa seja a única possibilidade. A comunicação é sempre impossível. Por
mais que a gente se esforce e condene com fervor os preconceitos e domine o
idioma, por mais que a gente chegue sorridente e coma sem perguntar o que
tem no prato, e sorria com satisfação, e se cubra com os mesmos panos, e
limite os gestos minunciosamente. Por mais que a gente tente se adaptar e ser
igual, a gente nunca vai ser igual, sempre haverá algo que nos delata, um
gesto, um olhar” (SAAVEDRA, 2010, p.15).
Dessa forma, é a estranheza à cultura que causa a falha. Entretanto, é essa mesma
estranheza que faz o viajante explorar melhor o lugar, procurando detalhes, já que ele o olha
com maior curiosidade. Em Paisagens urbanas (2003/2012), Nelson Brissac Peixoto afirma:
Peixoto, o nativo não consegue comunicar a paisagem, descrevendo-a somente, pois ele não
percebe a simbologia existente nos elementos que a compõem4.
É isso que acontece com Érika. A paisagem da ilha onde ela se encontra se mescla
com suas emoções; ela não somente a descreve, mas a comunica para o seu interlocutor, ainda
que sua experiência não seja totalmente possível de ser transmitida. A ilha é caracterizada por
Érika como um local predominantemente turístico, um não-lugar, ou seja, um lugar
transitório, de passagem, em que há a presença de muitos turistas, de diversas nacionalidades,
e, consequentemente, de diversos idiomas. Esses turistas não permanecem por muito tempo
naquele lugar; eles ficam um pouco mais de uma semana, apenas com a finalidade de visitar
turisticamente o local, e vão embora. Dessa forma, essa ilha é um lugar de deslocamento,
onde não se fica por muito tempo, apenas o necessário para explorar a paisagem turística e
seguir adiante.
Assim, a ilha pode ser considerada, antes, como um “entre-lugar”, poisé, para Érika, o
lugar onde ela realiza seu trabalho de luto, quer dizer, um lugar “entre” o antes e o depois do
luto. Ao mesmo tempo em que é um lugar turístico, de passagem, onde as pessoas
permanecem por pouco tempo, é, para Érika, um lugar onde ela vai ficar, estabelecer-se,
mesmo que temporariamente, para poder realizar esse trabalho.
A narradora se apropria dessa paisagem para poder falar. Ela deseja compartilhar com
Alex – e também com os espectadores de sua instalação –, por meio do som, do que ela vê, de
como a ilha é. Após realizar seu trabalho de luto, ela sai dessa ilha. Como uma “estrangeira
residente”, Érika, então, é quem estabelece esse “entre-lugar” da ilha: ela não deixa de ser
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No primeiro romance de Saavedra, Toda terça, essa mesma questão que envolve a paisagem acontece. Javier,
um dos narradores, é um estudante latino-americano que vai para Frankfurt concluir seu doutorado. A paisagem
se mistura com as suas emoções, adquirindo um valor simbólico.
5
Tal conceito é abordado poeticamente por Tamara Kamenszain no livro O gueto (2012).
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turista, ainda que, com o tempo, estabeleça seus hábitos dentro da ilha, sobretudo a partir do
momento que ela se envolve com os habitantes do local, Pilar e dr. Adrian, mas, ainda assim,
ela não finca raízes no lugar, apenas se apropria dele para fazer suas gravações e superar seu
momento crítico, partindo depois.
Vemos, então, que Érika vive dois tipos distintos de experiência na ilha: a individual e
a coletiva, já que ela é turista, assim como a maioria das pessoas que se encontra na ilha, mas,
ao buscar na paisagem a motivação para falar sobre a morte de Karen, ela também expõe uma
experiência individual, uma experiência muito subjetiva. A paisagem se constitui, desse
modo, como um lugar hibrido, pois pode se constituir como um não-lugar, por ser turístico;
um lugar, para os habitantes da ilha e, para a narradora, um “entre-lugar”, já que, para ela, a
ilha se encontra entre esses dois tipos.
Como vimos, a narradora Érika se apropria da paisagem para falar sobre sua vivência
de luto. É por meio do desejo de compartilhar a sua experiência na ilha, sobre o que vê, que
ela encontra a motivação para começar a gravar. A paisagem, então, pode ser compreendida
como uma forma de comunicação: é através dela que Érika fala de sua intimidade e realiza
seu trabalho de luto.
A paisagem é um conceito que faz parte da geografia humana e deve ser pensada como
um meio de comunicação. A discussão baseia-se não na definição do conceito de paisagem,
mas na sua atuação perante à cultura e à sociedade. Ao contrário do conceito de lugar, que é
pensado de modo estático, ela é pensada como um conceito móvel, pois o “posicionar-se”
perante o mundo muda conforme a experiência humana. Essa posição também se relaciona
com as emoções vividas pelo indivíduo e, por isso, sofre mudanças. Desse modo, a paisagem
muda de acordo com a subjetividade humana. Com isso, podemos afirmar que sea visão da
paisagem muda conforme a experiência do indivíduo, ela pode, então, ser definida através de
diversas possibilidades, não se fechando somente em uma, conforme afirma Cauquelin:
“(...) a paisagem parece traduzir para nós uma relação estreita e privilegiada
com o mundo, representa como uma harmonia preestabelecida,
inquestionável, impossível de se criticar sem cometer sacrilégio. Onde
estariam, pois, sem ela, nossos aprendizados das proporções do mundo e o de
nossos próprios limites, pequenez e grandeza, a compreensão das coisas e a
de nossos sentimentos?” (CAUQUELIN, 2000/2007, p.28).
Nesse sentido, podemos pensar que a “paisagem”, no título, não se refere somente à
natureza da ilha e, sim, ao posicionamento da narradora, às suas emoções, à composição de
um diário íntimo que possui seu trabalho de luto. A identidade de Érika muda devido à
experiência que ela possuiu e devido ao contato com essa paisagem. Podemos pensar também,
conforme abordamos anteriormente, que o dromedário no título refere-se à viagem realizada
por ela, necessária para que ela se afastasse de si mesma, podendo se observar, com distância.
encontro daquele discutido por Lopes, no sentido de que o conceito “paisagem” não se
relaciona somente à representação da natureza. Para ele, a paisagem não pode se limitar ao
espaço das relações sociais. Ela é também uma construção retórica. Desse modo,
compreendemos que os conceitos de Lopes, Cauquelin e Cosgrove são semelhantes ao
pensarem a paisagem como comunicação.
Assim, paisagem pode ser pensada como um artifício linguístico utilizado pelo
homem. Como também afirmaCauquelin,ela é utilizada como um meio de persuasão, de
convencimento pela linguagem, assim como acontece com a personagem. Ao se apropriar da
paisagem da ilha, ela busca o convencimento de seu interlocutor e, até mesmo, o seu próprio,
em relação à história que ela conta.
Érika afirma que sente a necessidade de gravar para que Alex compartilhe a mesma
visão que ela tem sobre a paisagem. Ao mandar um postal, o compartilhamento dessa visão
não acontece, porque além de ser uma imagem “morta”, por ser de um cartão-postal, ele não
conseguiria sentir diretamente a paisagem, sem mediador. A opção pelo som acontece porque
Érika não quer ser mediadora dessa paisagem, ela deseja transmiti-la a Alex, como se ele
estivesse presente. A narradora, então, desapareceria e ele veria a paisagem diretamente,
através de seus sons. Seguindo Cauquelin, esse movimento de Érika, em Paisagem com
dromedário, faz com que a sua interioridade e a de Alex, isto é, a subjetividade, misture-se
com a exterioridade. É uma estratégia da narradora: ela busca a perfeição da comunicação da
paisagem ao não ser mediadora dela para Alex, com o objetivo de alcançá-lo melhor, fazendo
com que ele compartilhe a experiência dela na ilha:
nessa paisagem é Érika. A necessidade que a narradora tem em atingi-lo é devido ao fato de
se sentir incompreendida e o causador dessa incompreensão é Alex.
Ainda segundo Cauquelin, a paisagem convence porque a imagem não pode mentir,
enquanto as palavras podem: “A visualização de um lugar, qualquer composição feita pelo
artista, atribui aquilo que é representado um valor de verdade (...). As palavras podem mentir,
a imagem, por seu lado, parece fixar o que existe” (2000/2007, p.93) e, por isso, a paisagem
não precisa de legitimização. Ela basta em si mesma, ela é verdadeira porque apresenta a
transparência naquilo que apresenta, na natureza mostrada por ela:
“Por sua vez, a paisagem não tem a mínima necessidade de legitimização. Ela
parece se bastar a si mesma, em sua perfeição „natural‟. Tudo se passa como
se estabelecesse uma transparência entre a „natureza‟ e nós, sem
intermediário. A paisagem seria transparente àquilo que apresenta. Teríamos,
graças à paisagem, um olhar „verdadeiro‟ sobre as propriedades da natureza,
que aliás, com o conhecimento científico, por exemplo, deveríamos penar por
muito tempo para perceber e conceituar” (idem, p.121).
O mesmo acontece com o corpo, que transmite as emoções. Por isso, ele é considerado
verdadeiro, incapaz de mentir. Ambos, imagem e corpo não mentem, não mascaram a
verdade, enquanto as palavras podem fazer isso e, dessa forma, não são tão persuasivas.
Embora utilize o gravador e não as imagens, Érika busca o convencimento unindo esses dois
artifícios: a emoção transmitida por seu corpo e os sons da ilha. De acordo com a própria
narradora, a opção do som aconteceu por ser uma estratégia de transmitir melhor as emoções.
Isso é o que acontece em Paisagem com dromedário: a narradora quer convencer seu
interlocutor de que seu trabalho de luto é real, que ela sente verdadeiramente isso. Nesse
sentido, questão a ser trabalhada no capítulo 4, ela pode ser pensada como uma
manipuladorae ela o faz utilizando a paisagem.
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Há paisagens que são consideradas simbólicas, devido ao valor subjetivo que tem para
o homem, mas que também tem seu significado construído culturalmente. Paisagens como
estas têm seu significado reproduzido por meio de gerações, que fazem com que seu valor
seja perpetuado. Segundo Cosgrove (2004):
Essas paisagens, assim como a ilha, possuem um valor social e outro subjetivo, de
acordo com as experiências coletivas e individuais, respectivamente. O homem vive nesses
espaços heterogêneos, onde se encontra simultaneamente em dois tipos de realidade: aquela
exterior, que corresponde ao coletivo, ao “viver em sociedade”,e outra interior, que
corresponde à subjetividade, à intimidade do indivíduo. Isso é chamado por Michel Foucault,
em “Outros espaços” (1984), de heterotopia. Para ele, o homem contemporâneo vê o espaço
como posicionamento e, por isso, tem-se a heterogeneidade, em que um espaço pode ter
vários significados, além daquele que foi construído socialmente.
No romance, o espaço se torna fundamental para que ela tenha a motivação para fazer
suas gravações, realizando seu trabalho de luto. Por isso, a ilha pode ser conisderada como
uma paisagem heterogênea, porque seu valor varia de acordo com a experiência individual. A
ilha, como vimos anteriormente, é definida a partir de diversas possibilidades.
Para a personagem, a ilha é também um local de isolamento, já que ela deseja se exilar
para vivenciar a experiência de luto, seu estado de crise, esquecendo-se momentaneamente do
mundo exterior. Esse esquecimento acontece porque Karen não se encontra presente nesse
mundo e, por isso, não há interesse no que acontece externamente. O tempo se suspende:
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“Acho que essa mensagem foi a da semana passada, já nem sei. Os dias aqui
parecem ao mesmo tempo longos e curtos demais. Tenho a impressão de que
os dias são cheios de acontecimentos, tantos que eu quase não sou capaz de
compreendê-los. Se entrelaçam formando um emaranhado impossível de se
desfazer. E ao mesmo tempo, quando penso nestas últimas semanas, não me
lembro de nada, ou de quase nada. Como se tudo se transformasse e perdesse
o seu contorno inicial. Quanto tempo faz que Karen morreu? Alguns dias,
algumas semanas? Ou serão meses, anos? Quando nos falamos da última
vez? Terá sido hoje de manhã, ou será que já faz mais de um ano que a gente
não se fala? Não sei, mas hoje fiquei com saudade” (SAAVEDRA, 2010, p.
104).
Em suas primeiras gravações, Érika ainda se encontra muito abalada com a morte da
jovem. O mundo externo não é interessante. É somente o seu interior, suas reminiscências,
suas sensações que lhe interessam, porque é nele que Karen se encontra. Ela também
demonstra algum desinteresse em relação a seus pinceis. Somente interessa falar sobre a
jovem e a sua morte, tentar aliviar a sua dor e a sua culpa. Assim, compreendemos que as suas
gravações podem corresponder a uma terapia:
“Nunca mais procurei os meus pincéis, nem o restante do material. Cada vez
tenho menos vontade de retomar qualquer um dos meus trabalhos, os que
ficaram pela metade. Não tenho vontade de pensar em soluções brilhantes
para uma exposição, nem mesmo em forma de completar aquilo que você já
iniciou, um projeto teu (...) Realmente, quando comecei as gravações para
você, imaginei que poderia usá-las para uma instalação, um trabalho, e tudo
o que eu te dizia estava permeado pela ideia de expô-lo, de transformar esta
história numa obra de arte. (...) Mas, agora, essa ideia me parece tão sem
sentido. É que o que eu te digo, com o tempo, o que gravo passa a ter um
valor pessoal, um valor só meu, e que não interessa a mais ninguém”
(SAAVEDRA, 2010, p.134).
A narradora de Paisagem com dromedário não se interessa por tudo aquilo que antes
fazia parte de seu mundo e também pelo que acontece externamente. Como foi dito, de acordo
com Freud, essa falta de interesse na exterioridade é natural e faz parte de um estágio da
experiência do luto, que é definido por ele como:
26
Assim, o luto é compreendido como uma vivência em que o mundo tornou-se vazio, já
que em nada lembra o ser amado ausente. É esse vazioque é o mote de suas gravações. É
necessário, para ela, falar sobre esse vazio, tentar compreendê-lo, defini-lo, já que nem ela
mesma sabe dar nome a ele. Freud também afirma que o luto é um processo composto por
etapas e que é superado de forma gradual, culminando em uma libertação. Essa libertação,
para Érika, acontece a partir da experiência do cemitério, em que a narradora chora a morte de
Karen e a enterra:
“Comecei a me sentir mal, pedi licença e fui caminhar um pouco, mas não
consegui ir muito longe, sentei num túmulo qualquer. Eu sentei num
daqueles túmulos e comecei a chorar. E agora posso te dizer, por mais
estranho que pareça, só então chorei a morte de Karen. (pausa). Havia em
mim, ainda há, uma espécie de revolta. Raiva por Karen ter feito isso com a
gente, por ela ter ido embora assim, de uma forma tão idiota. Havia em mim
uma série de sentimentos inesperados. E era algo de um mau gosto terrível,
tudo ali, eu, aquele cemitério, aquelas flores, aqueles túmulos.”
(SAAVEDRA, 2010, p.98).
A cena do cemitério pode ser pensada como a libertação de Érika, como o fim de seu
trabalho de luto. Ele é realizado ali, onde ela chora por seus mortos. Desse modo, também
podemos considerar, de acordo com os pressupostos de Foucault, que o cemitério é uma
heterotopia de crise. Tanto a experiência coletiva quanto a individual dão tal significado a
esse lugar: é o local onde enterramos pessoas queridas, vivemos uma experiência de dor e de
rememoração. É nessa localização que a narradora de Paisagem com dromedário, de fato,
vive tal experiência, ao chorar por seus mortos, ao chorar por Karen. Para Érika, o cemitério é
um lugar onde os mortos morrem outra vez; é necessário chorar a sua morte, para assim,
enterrá-los de fato.
O cemitério também é uma das únicas heterotopias, ainda de acordo com Foucault,
que resiste na contemporaneidade. Para ele, as heterotopias não são rígidas e assim como as
paisagens, mudam com o tempo e com a sociedade vigente. A cena do cemitério na narrativa
de Saavedra mostra que o lugar ainda resiste ao tempo, mantendo sua simbologia preservada.
Nele, as experiências coletiva e individual se misturam: ainda que se chore a morte de uma
pessoa, o cemitério se constitui como o local dos mortos, da reminiscência – como no caso da
27
cunhada de Pilar6 - e da dor, onde o trabalho de luto pode ser realizado e concluído, como no
caso de Érika. Desde esse dia, a jovem já não é mais a temática central das gravações: Érika
descreve seu dia e seus sentimentos em relação ao dr. Adrian. É como se a partir da
experiência no cemitério, a artista se recuperasse da morte de Karen:
“Desde que começou a sair com o dr. Adrian, você parece outra pessoa. É
mesmo?, eu perguntei sorrindo. Ela insistiu, outra pessoa, mais corada, mais
sorridente, um brilho nos olhos. E até as roupas agora estão mais leves, mais
coloridas. Vi que comprou roupas novas. Já era tempo. Foi o que ela disse.
Eu ri. Talvez Pilar tenha razão e eu pareça mesmo outra
pessoa”(SAAVEDRA, 2010, p.128).
O relacionamento com dr. Adrian faz com que ela fale mais dele e não mais de Karen.
O mundo externo volta às gravações e a ilha, agora, é descrita como um lugar onde ela vive.
A paisagem se incorpora aos acontecimentos do cotidiano, aos acontecimentos banais da
rotina.A figura do dr. Adrian se estabelece como um elo com a ilha, é através dele que ela tem
contato com essa paisagem turística e também do cotidiano, já que ele é morador da ilha. A
paisagem que Érika tem contato é aquela que possui raízes, que já não é fragmentada.
Entretanto, quando ele lhe pede em casamento, que significa realmente fincar raízes naquele
espaço, ela termina seu relacionamento com ele e sai da ilha.
6
A cunhada de Pilar é Carmen, uma mulher que vai ao cemitério todos os dias levar flores e rememorar seu
marido falecido. Ela decora o túmulo dele como se fosse fazer uma visita a ele: “Carmen é uma dessas mulheres
a quem a vida envelheceu precocemente. Talvez o sofrimento, o orgulho, como costuma dizer Pilar. Mas
Carmen não me pareceu estar sofrendo. (...)Carmen logo começou a falar, me falou do falecido, vem que eu
quero te mostrar o túmulo, ela o havia decorado especialmente por causa da minha visita. O túmulo era mais ou
menos o que eu imaginava. Fotografias do morto usando terno e gravata, fotos do casamento deles, ela vestida de
noiva, uma noiva bastante simples” (SAAVEDRA, 2010, p.95)
28
2. DIÁRIO DO LUTO
A necessidade de ser sincera de Érika faz com que ela adentre em sua intimidade. As
suas gravações podem, dessa maneira, ser pensadas como um diário, em que é necessário
ultrapassar a fronteira entre público e privado, tentando comunicar algo que é muito íntimo. A
necessidade de falar sobre a sua experiência de luto faz com que Érika ultrapasse essas
fronteiras, já que ela fala sobre sua intimidade, ainda que esteja buscando um trabalho de arte.
7
“(…) O privado segue no campo do público, já que se há um „direito à privacidade‟, tem que ser um direito
reconhecido publicamente”. (tradução nossa)
29
daquilo que ele representa na vida pública. A experiência do luto se relacionaria à esfera
íntima, uma vez que é uma vivência particular, mas que parece impossível de compartilhar
com o outro.
A intimidade estaria então ligada à impossibilidade, ao que não pode ser comunicável,
como acontece com a narradora de Paisagem com dromedário. Ao não conseguir nomear
aquilo que origina seu sentimento de perda - “Eu perdi alguma coisa, Alex. Ainda não sei o
que é, mas sei que perdi. Um lugar. Uma possibilidade. Talvez. Tenho perdido tantas coisas
nos últimos tempos.” (SAAVEDRA, 2010, p. 151) -, Érika revela uma impossibilidade de
comunicação, em que a linguagem não consegue dar conta de nomear aquilo que se sente.
Segundo Aira, é um movimento contrário ao da privacidade, já que desta, como também para
o público, a linguagem consegue dar conta:
Dessa forma, a intimidade pertence ao que é secreto e, por isso, não pode ser
representada ou descrita por palavras, demonstrando, então, uma impossibilidade
comunicativa. Ela também é considerada como algo que está diretamente ligada à verdade do
indivíduo, ao seu interior, no secreto de sua consciência. Aira descreve a intimidade como “es
algo asi como el laboratório de la verdad” (AIRA, 2008, p. 10)9.
Essas distinções entre as esferas da vida humana podem ser exemplificadas por meio
de algumas situações. Em Paisagem com dromedário, a narradora desempenha o papel de
artista em sua vida pública, enquanto na privada é companheira de Alex e vive a experiência
da morte de Karen, situações que podem ser comuns a todos os homens, mas o leitor penetra
na esfera íntima da vida de Érika quando a narradora assume ter a necessidade de falar para
Alex sobre Karen; sobre a ausência que a morte da jovem provocou em sua vida e sobre o
papel que ela desempenhava na relação dos dois:
8
“Se o máximo de articulação da linguagem está no público, o mínimo se refugia na intimidade. Os íntimos se
entendem com „meias palavras‟. Essa economia carrega a busca utópica, ou pelo menos desejante, da impossível
comunicação consigo mesmo, porque a privacidade culmina em nós apenas. Utopia do comunicável, que iria do
segredo ao secreto, evitando a divulgação sem inclinar-se aos mandatos de exibicionismo e da curiosidade”.
9
“é algo assim como o laboratório da verdade.”
30
“(...) por algum motivo que eu mesma não compreendia, e ainda não
compreendo, eu não conseguia te ver, ouvir a tua voz, eu não conseguiria
mais te alcançar, agora que não temos mais a Karen. Mas a necessidade
continuava. E eu havia trazido este aparelhinho pensando em ouvir música
durante a viagem de avião, apenas isso, acaso, sem sentido, não havia
intenção atrás disso. Eu tinha o aparelho, e de certa forma queria estar perto
de você, poder te mostrar a ilha, os lugares, sem ter que te mostrar realmente
a ilha, sem ter que tirar fotos, te mandar postais. Nem sei ao certo por quê.
Talvez eu tenha inventado tudo isso apenas para te falar de Karen, talvez eu
precisasse te falar dela e não soubesse como.” (SAAVEDRA, 2010, p. 108).
Tal relato demonstra que há uma urgência de sinceridade de Érika para com Alex. Há
uma espécie de confissão endereçada a ele, em que há a necessidade imediata de falar de
Karen, do que ela significou e significa para a narradora e para a relação com Alex. Para a
artista, a jovem é considerada como o fio que sustentava a relação dos dois. A partir da
experiência do luto, ela revela que falta algo, porém não sabe o que esse “algo” é. A sensação
de vazio e de perda é constante nela e tal revelação pertence a sua intimidade, aquilo que está
ligado à constituição de seu ser, à sua percepção e relação com o mundo e que, no entanto, ela
tem muita dificuldade de definir.
A narradora demonstra a necessidade de ser sincera com Alex e escolhe para isso as
gravações para demonstrar como realmente é, se expor, expor sua intimidade:
O diário produzido a partir das gravações de Érika também procura alcançar o seu
destinatário, Alex. Assim, essas gravações são pensadas para atingir o outro, o que também é
uma característica pertencente ao gênero do diário, já que ao escrevê-lo, não escrevemos
somente para nós mesmos e, sim, para o outro, aquele que vai ler. Desse modo, a escrita do
diário pode ser entendida como direcionada para uma outra pessoa, para um leitor,
constituindo-se, assim, como um paradoxo – que pode ser explicado devido à heterogeneidade
desse tipo de gênero -, já que o diário faz com que haja a exposição da intimidade, mas a sua
escrita é direcionada a um interlocutor. Como diz Aira:
31
“La paradoja de los diários íntimos se despliega en el rebote del que hablé.
Se los escribe para uno mismo, para articular lo informe, pero esa
articulación misma ya transporta el esbozo de un interlocutor. Se los escribe
para que loleaotro, por el momento, sea uno mismo. La articulación del
linguaje en el Diario Intimo tiene como fondo de contraste, y se da para
hacer contraste com él, un balbuceo amorfo de pensamiento secreto”
(AIRA, 2008, p. 10)10.
“(...) o diário está voltado para o futuro. Fazer o balanço de hoje significa se
preparar para agir amanhã (...).
10
“O paradoxo dos diários íntimos se desenrola no rebote de que falei. Eles são escritos para nós mesmos, para
articular informe, mas essa articulação mesma já transporta o esboço de um interlocutor. São escritos para que o
outro o leia, ainda que esse outro, no momento, seja ele mesmo. A articulação da linguagem no Diário Íntimo
tem como fundo de contraste, e se dá para fazer um contraste com ele, um balbucio amorfo de pensamento
secreto”.
32
grava quando sente que é necessário e não faz disso um hábito diário, rotineiro: “Esqueci
completamente de te contar. Logo algo tão importante. Outro dia, deve fazer uma semana,
talvez mais, já não me lembro” (SAAVEDRA, 2010, p.111).
Alex, o que será de nós, agora que Karen não existe mais?”
(SAAVEDRA, 2010, p.63-65).
modo descontínuo, por meio de uma elaboração discursiva fragmentária, que não a salva
dessas incertezas e da dor da ausência de Karen.
Assim, manter um diáriopode servir como uma terapia e, após a superação desse
momento de crise, ele pode ter um fim, que não precisa ser anunciado: “um diário regular
termina, dessa maneira, sem dizer nada. Muitas vezes, começa a rarear, se dissolve”. Dessa
forma, Érika inicia o fim de seu diário quando já não repete mais a importância de se lembrar
de Karen, ao relatar os seus momentos banais de seu cotidiano e, principalmente, quando sai
de seu exílio na ilha: “Estou indo embora, Alex. (...) Mas, como te dizia, fiz a minha mala, me
despedi de Pilar. Ruído. Interrupção.” (SAAVEDRA, 2010, p. 166-167). Esse momento de
terminar o diário não acontece bruscamente, o diário começa a se dissipar, sem dizer nada e
termina do mesmo modo como começou: sem avisar ao leitor. O diário é, então, abandonado.
A experiência vivenciada por Érika faz com que ela faça de suas gravações uma
espécie de diário de luto. Isso porque a narradora penetra em sua intimidade, de modo
fragmentário, expondo seus questionamentos e sentimentos durante essa fase de sua vida. A
ausência provocada pela morte da jovem faz com que a narradora precise falar dessa vivência
e ela o faz mesmo sabendo da impossibilidade de comunicação, uma vez que o sofrimento
parece incomunicável e a pessoa para quem ela gostaria de comunicá-lo é justamente aquela
já não está mais presente para escutá-lo. Ainda sim, a personagem procura falar sobre essa
experiência, dando um significado ao luto:
34
“Sabe, tem momentos em que as palavras não servem para nada. Quando
alguém morre, não há nada a dizer. Por isso mesmo, a gente pode dizer
qualquer coisa, porque o que importa é a pessoa viva ali do teu lado, te
abraçando, passando a mão na tua cabeça” (SAAVEDRA, 2010, p. 99).
Em seu diário, Barthes tenta definir o significado do luto, dar um sentido que
corresponda, de modo preciso, ao que ele sente com a morte de sua mãe. Para ele, apesar de
ser uma experiência coletiva, o significado do luto é subjetivo, isto é, ao mesmo tempo em
que todos os homens passam por tal vivência, sendo, portanto, coletiva, o modo como cada
um sente e lida com isso é particular: “O indescritível do meu luto vem do fato de que eu não
o histerizo: mal-estar contínuo, muito particular” (BARTHES, 1977/2011, p.81, grifos do
autor). É uma experiência solitária.
Essa tentativa de definição também é observada no discurso de Érika. Para ela, a morte
“não significa nada. Ou significa o que a gente quiser” (SAAVEDRA, 2010, p. 25), revelando
que o “nada” poderia se relacionar ao vazio, à ausência deixada pelo morto. Podemos ver que
há uma semelhança no discurso de ambos, já que a personagem afirma que a morte pode ter o
significado que “a gente quiser”. Dessa forma, o significado da morte pode admitir qualquer
definição, já que ele é construído por meio da vivência do luto. É através dessa experiência
individual que se constrói o significado da morte e que possui uma definição muito particular
a cada indivíduo.
Em Diário do luto, Barthes também escreve sobre o vazio deixado pelo morto; essa
ausência provoca uma dor que, para ele, pode ser comparada a uma ferida. Essa ferida não
cicatriza, ainda que ele tenha uma vida social ativa, relacionando-se com outras pessoas,
escrevendo, ou seja, continuando com sua rotina, a morte de sua mãe é uma experiência que
mudou completamente a sua vida, que não voltará ao que era antes:
“Meu espanto – e, por assim dizer, minha inquietude (meu mal-estar) vem do
fato de que, na verdade, não é uma falta (não posso descrever isso como uma
falta, minha vida não está desorganizada), mas uma ferida, algo que dói no
coração do amor.” (BARTHES, 1977/2011, p. 63).
35
Ainda em Diário de luto, Barthes afirma que o discurso de morte é sobre aquele que
está ausente, mas, ao mesmo tempo, é também sobre o sentimento e a dor provocados pela
ausência dele. O discurso do luto não trata somente daquela voz que fala e, sim, daquele que
se encontra ausente, mas, sobretudo, da inquietação que essa ausência provoca. Em Paisagem
com dromedário, pode-se verificar a afirmativa de Barthes: a narrativa é sobre Karen; os
questionamentos, projeções e reminiscências da narradora Érika são a respeito da jovem, mas,
ao mesmo tempo, ela aparece sempre ligada à experiência da narradora, e de sua relação com
Alex:
“É como se, junto com ela, qualquer possibilidade nossa tivesse morrido
também. Como era antes, Alex? Como fazíamos? Como vivíamos nós dois
sem Karen? Como vivemos, todos esses anos, toda a vida? Como acordamos,
comemos, dormimos, como convivemos com a imprescindível presença um
do outro? Como a nossa constância? Como pudemos viver tanto tempo, como
pudemos acordar todos os dias e continuar andando como se não
soubéssemos? Como pudemos sair ilesos por tantos anos? Desde sempre.
Tento me lembrar, mas não consigo. É como se antes nós não existíssemos.
Quem éramos nós, Alex, antes de Karen?” (SAAVEDRA, 2010, p. 65).
O discurso do luto é solitário e também uma vivência que muda a relação do indivíduo
consigo mesmo e com o mundo. Essa experiência faz com que os interesses pessoais mudem.
Isso porque, segundo o pensamento barthesiano, diante do luto, o indivíduo muda sua relação
com ele mesmo e também com o que acontece externamente. O que antes era interessante,
não é mais. Em seu diário, Barthes descreve que o luto de sua mãe mudou sua relação com a
escrita. Com a sua doença e a possibilidade iminente de sua morte, ele concentra as suas
atenções aos seus cuidados e se esquece de viver, centrando-se somente em seu estado. A
escritura passa, assim, a ter um outro lugar em sua vida, assumida conscientemente a partir da
sua morte:
“Ideia – assombrosa, mas não desoladora – de que ela não foi „tudo‟ para
mim. Senão, eu não teria escrito uma obra. Desde que eu cuidava dela há seis
meses, efetivamente ela era „tudo‟ para mim, e esqueci completamente que
havia escrito. Eu estava perdidamente por conta dela. Antes, ela se fazia
transparente para que eu pudesse escrever” (BARTHES, 1977/2011, p. 16).
Barthes assume, então, que sua mãe não representou “tudo” na sua vida. Ela também
dividiu “espaço” com o ato de escrever. E, agora, ele utiliza disso para ser um instrumento de
expurgar sua dor, torná-la presente, além de relatar seus novos pontos de vista sobre a vida, já
que a morte de sua mãe mudou o modo de ver e de se relacionar com o mundo. A escrita gera
um incomodo em Barthes, pois, ao mesmo tempo, que ela alivia a dor de seu luto, ela também
prova que mesmo diante da ausência de sua mãe, esta não era “tudo” para ele: ele ainda
continua com sua vida e com a vontade de viver. A morte de sua mãe mudou apenas seu
36
relacionamento com o mundo, seja este interno ou externo: o que antes tinha importância,
agora já não tem mais; a morte não representa a libertação para cumprir seus desejos e, sim,
uma prisão de seu ser; ele está preso à lembrança dela, à tentativa de dentro da ausência,
torná-la presente. Assim, observa-se que há a mudança de prioridades:
“Os desejos que tive antes de sua morte (durante a sua doença) agora não
podem mais ser realizados, pois isso significaria que é sua morte que me
permite realizá-los – que sua morte poderia ser, em certo sentido, libertadora
com relação a meus desejos. Mas sua morte mudou-me, já não desejo o que
desejava.
A narradora não se identifica mais com a arte que fazia antes da morte de Karen, ela
não consegue mais reconhecer que tenha sido de sua autoria, pois acredita que tudo o que foi
feito, mesmo após ter começado a trabalhar sozinha, ainda é um desdobramento de Alex, ou
seja, a narradora acredita que a arte produzida anteriormente, apesar de ter a sua assinatura,
não era realmente dela, já que ela não se identifica com o que foi feito, apenas reconhece a
identidade de Alex. Érika acredita que a arte deva ter um significado pessoal, possuir a
identidade do artista, sendo possível ele se reconhecer nela e, talvez, seja por esse motivo, que
ela se desinteressa pela sua própria arte e seus pincéis: a narradora busca a sua própria arte,
algo que realmente tenha a sua identidade a partir dessa experiência que mudou seu
relacionamento com o mundo.
se encontra mais no mundo externo. O único lugar onde ele pode se encontrar, então, é na
subjetividade, no mundo das lembranças, em que o ser ausente se encontra presente.
Essa imagem ficcional, construída pelo amante que rememora. pode ser exemplificada
por meio do irmão falecido de Pilar, empregada de Bruno e Vanessa. Na cena do cemitério, a
narradora encontra uma imagem muito diferente da que soube por ela, uma imagem que não
corresponde à realidade do morto quando estava em vida:
“Foi sempre um ótimo pai. Irmão exemplar, não foi, Pilar? Pilar concordou,
sim exemplar. Trabalhador. Em quase vinte anos, nunca faltou ao trabalho.
Nunca, repetia Pilar. E assim continuaram as duas, Carmen tecendo uma série
interminável de loas ao morto e Pilar concordando. A mesma Pilar que
poucos dias antes havia me dito que a cunhada se recusara a recebê-lo
durante anos, anos de ódio. E agora aquilo. O homem mais maravilhoso da
face da Terra. Será que é sempre assim, a pessoa morre e, à medida que o
tempo vai passando, a gente vai esquecendo as coisas ruins e só lembrando
das boas? Será que depois de alguns anos a gente acaba endeusando a pessoa,
como se ela nunca houvesse existido, pessoa concreta, mas apenas imagem. E
imagem a gente mesmo cria, e faz dela o que bem entender. Será que com o
tempo o morto vai ficando cada vez mais irreal, mais espectro, e somos
obrigados a criar-lhe novas carnes, para que ele não desapareça?”
(SAAVEDRA, 2010, p.96).
Vemos que Érika questiona essas duas imagens, a real e a construída pela cunhada de
Pilar. O morto é cultuado, esquecendo-se de todos os momentos ruins vividos com ele. Dessa
forma, a imagem dele não corresponde à realidade: é uma imagem baseada em memórias
selecionadas de acordo com a conveniência da cunhada de Pilar e, por isso, o morto é irreal;
38
ele, ao ser rememorado não revive, porque essa imagem não é ele, é uma ficção produzida
pela memória de sua mulher.
Segundo Tzvetan Todorov (2000), a memória é uma seleção, em que alguns fatos
serão suprimidos e outros podem ser criados, conforme a conveniência daquele que
rememora. Desse modo, ao longo das gravações, a imagem de Karen e dos outros
personagens são construídas por Érika, mas o leitor não tem informações suficientes e
confiáveis para saber se as reminiscências da personagem aconteceram realmente da forma
em que são narradas. As memórias que compõem as gravações provavelmente não são
narradas do mesmo modo que aconteceram; elas sofrem modificações ou, até mesmo,
criações por Érika, variando com a conveniência da narradora.
Com isso, Érika não ressuscita Karen: as gravações são ficcionais e, desse modo,
relacionam-se à vida, uma vez que são construções produzidas por alguém que está vivo.
Conforme será abordado no capítulo 4, no último parágrafo da narrativa, as gravações se
revelam como parte de uma instalação. Érika, então, procura realizar um objeto de arte por
meio de sua experiência de luto, não buscando somente presentificar Karen, mas à procura
também de um sentido para a sua vida. Ainda segundo Derrida, o discurso de luto não pode
ser atrelado à morte, pois é um discurso produzido em vida e que pode ser relacionado à
autobiografia e localizado entre a ficção e a verdade:
“Este ser ‘en nosotros’, el ser ‘en nosotros’ del otro, enacongojada memoria,
no puede ser ni la llamada resurreción del otro en si mismo (el outro esta
muerto y nada puede salvarlo de esa muerte, ni nadie puede salvarnos a
nosotros de ella). (...)El discurso y la escritura funeraria no siguen a la
muerte, trabajan sobre la vida en lo que llamamos autobiografia. El tiene
lugar entre la ficcion y la verdad”(DERRIDA, 1998, p.22) 11.
11
“Este ser „em nós‟, o ser „em nós‟ do outro, na memória do luto, não pode ser nem a chamada ressureição do
outro em si mesmo (o outro está morto e nada pode salvá-lo dessa morte, nem ninguém pode nos salvar dela).
(...) O discurso e a escrita funerária não seguem a morte, trabalham sobre a vida no que chamamos de
autobiografia. Ela tem lugar entre a ficção e a verdade”.
39
Dessa maneira, para Érika, todas as fotografias, roupas e outras marcas fazem com que
os mortos queiram se fazer presente. Por mais que a morte cause a ausência e o sentimento de
vazio, o morto nunca ficará no passado, no tempo estático e do esquecimento, porque além de
deixar os seus rastros, evidenciando que esteve ali, que esteve presente, ainda há as
lembranças daqueles que conviveram com ele, que o imortalizam. Isso acontece, de acordo
com Derrida, pelo fato de o outro habitar em mim. O ser amado, ao morrer, deixa as suas
memórias, a comprovação de sua existência com o amante, assim como acontece com Karen e
Érika. Essas memórias, no entanto, vão ser trabalhadas, interpretadas e selecionadas, como
dizia Todorov, tornando o discurso do luto uma narrativa ficcional.
A morte faz com que haja a preocupação de não deixar que o ser ausente seja
esquecido. Suas marcas e rastros ajudam a imortalizá-lo, porém, estes são vestígios que
possuem um tempo limitado de duração, isto é, o morto somente será lembrado por aqueles
que conviveram com ele e dividiram momentos, que se transformaram em memórias. Não há
garantias de que as gerações futuras perpetuarão as suas memórias. O ser ausente precisa ser
imortalizado em um tempo sem limitações, em que ele exista em um futuro. O diário,
conforme já abordamos no início deste capítulo, é uma escrita pensada para um futuro e é o
gênero utilizado pela narradora para falar sobre sua experiência de luto e de suas
rememorações com Karen.
Lejeune descreve o diário como uma memória de papel, onde escrevemos sobre nossas
memórias ao passo que criamos outras, isto é, ficcionalizamos as lembranças: “construir para
40
Para Blanchot, por ser uma escrita pensada para o futuro, para uma posterior leitura, o
gênero diário tem como característica a preservação do dia e da memória. Dessa forma, a
escrita do diário pode ser entendida como um meio de salvação, pois combate o
esquecimento: escrevemos para nos lembrar, tanto de nós, como também dos outros:
A escrita do diário permite, então, que as próximas gerações tenham contato com as
rememorações daquele que está ausente e também com os que estarão ausentes nesse futuro.
Com isso, a escrita pode ser compreendida como um meio de imortalização, que salva do
esquecimento.
Assim, o diário se relaciona com os três tempos, passado, presente e futuro: é uma
escrita produzida no presente - pois é datada - que se remete também a fatos passadosporque
escrevemos sobre nossas memórias, mas que é pensado para uma posterior leitura, para um
tempo futuro: “o diário não apenas estabelece uma continuidade entre o hoje e o ontem, mas,
pouco a pouco, com a vida inteira” (LEJEUNE, 2008, p.302).
Compreendemos então que Érika, ao optar pelo gênero diário, busca compor uma
“memória de papel”, imortalizando as suas rememorações, ainda que estas sejam
ficcionalizadas, não correspondendo fidedignamente à realidade. A opção por esse gênero
também imortaliza Karen, pois deixa vestígios de que ela realmente existiu, além de toda a
41
sua história com Alex. Com isso, entendemos que ao rememorar Karen, a narradora de
Paisagem com dromedário não busca presentificá-la e, sim, imortalizá-la. Se não é possível
tornar presente aquele que está ausente, pois ele está morto, pertencendo somente ao passado,
é possível não deixar que ele seja esquecido e, ao compor um diário, Érika procura deixar
vestígios da existência da jovem para o futuro.
Como vimos, em Paisagem com dromedário, a narradora Érika não somente grava
para superar a dor dessa experiência, ela também imortaliza Karen com as suas
rememorações. Há no discurso de Érika um remorso por ter abandonado a jovem assim que
ela descobriu que tinha câncer:
“Quando Karen morreu, ninguém me ligou para avisar. Somente uma semana
depois, aquela tua mensagem. Caso você ainda não saiba, o tom distante da
tua voz. Eu sei, depois você me disse, você não estava com raiva de mm,
apenas precisava de um tempo para pensar. Mas talvez eu me sentisse
culpada mesmo assim” (SAAVEDRA, 2010, p.28).
Gravar, para Érika, então, possui também a função de tentar se libertar da culpa que
sente por ter abandonado Karen. Conforme abordaremos no último capítulo, as suas
gravações buscam fazer um objeto de arte, mas também se trata de convencer a si mesma e ao
seu interlocutor de que ela não tem culpa no abandono da jovem. Em diversos momentos,
pode-se observar esse remorso presente no discurso e nas rememorações de Érika. A
narradora busca, dessa forma, também falar para expurgar sua dor e seu remorso. É por isso
que essas gravações podem ser pensadas como uma terapia.
Toda essa necessidade de expor sua intimidade e seu compromisso de falar a verdade
podem ser aproximadas de uma experiência analítica. O gravador - assim como o leitor,
questão que abordaremos no próximo capítulo - serve como o analista: é com ele que a
narradora fala, se expõe, ajudando-a a organizar o seu pensamento. Também observamos que
o comportamento de Érika é semelhante ao do paciente na experiência analítica: seu discurso
é fragmentário e nas suas primeiras gravações há uma resistência para falar do que lhe aflige;
ela fala sobre outros temas que nada estão relacionados com o motivo real de seu estado
emocional como a paisagem e a arte. Após algum tempo com o gravador, ela já se sente
segura para falar sobre seus verdadeiros sentimentos e, de fato, ser sincera conforme ela
desejava anteriormente.
42
Em seu primeiro romance, Toda terça, Saavedra escreve sobre a narradora Laura, que
está em uma situação semelhante à de Érika. Ela se consulta com seu psicanalista Otávio toda
terça-feira, desenvolvendo uma relação de ódio e amor, natural à experiência analítica, pois se
trata de uma relação de transferência, onde o psicanalista se torna o objeto amoroso da
paciente. Laura também mente para ele, assim como a narradora de Paisagem com
dromedário. Ambas tentam manipular o seu interlocutor, através de mentiras. Laura faz isso
conscientemente, em uma espécie de jogo para atrair a atenção de Otávio, enquanto Érika
busca mascarar tanto para si, quanto para o seu interlocutor, a culpa que sente em relação à
Karen.
O ato de falar de Érika faz com que os seus conteúdos psíquicos emerjam à
consciência. De acordo com Freud, em “Construções em análise” (1937/1993),o conteúdo
recalcado emerge, ainda que sofra uma resistência de início, conforme observamos nas
primeiras gravações de Érika. Sua culpa e sua dor estavam inconscientes e emergem à
consciência devido ao ato de fala. Assim, o narrar se constitui como uma terapia, pois é por
meio dele que Érika assume conscientemente sua dor e sua culpa pelo abandono de Karen.
Essa necessidade de Érika de falar sobre sua dor e culpa pode ser descrita,seguindo
Lejeune, como uma maneira de sair da crise vivida, ou seja, um modo encontrado pela
personagem de se superar a vivência do luto e do remorso. A escrita do diário em um
momento de crise já é uma maneira de tentar superar essa experiência, relacionando-se a um
posterior fim. Assim, a personagem pode procurar na escrita de seu diário, a superação para o
momento de crise:
Parafraseando Maurice Blanchot, Sergio Cueto (2008) afirma que a razão de manter
um diário íntimo é para se salvar e essa salvação pode acontecer em três sentidos:
Podemos ver que, para Érika, a escrita desse diário também pode ser um meio
encontrado, por ela, para se livrar da culpa pelo abandono de Karen:
“(...) Ninguém sabe que eu a abandonei quando ela estava morrendo, porque
essa é a verdade que eu tanto evitei pronunciar, não é? Quando Karen
anunciou a doença, eu fui embora, e nunca mais a procurei, nunca mais
respondi aos seus telefonemas, às suas mensagens” (SAAVEDRA, 2010,
p.144).
12
“Em primeiro lugar é um meio de salvação da nulidade da vida cotidiana, cuja vaidade se transforma, ao ser
escrita, em algo realizado; em segundo lugar, constitui-se como um meio de salvação da impossibilidade de
escrever, da mesma escrita enquanto resulta em inseparável e até indiscernível dessa impossibilidade,
precisamente na medida em que, no diário e para ele, a escrita se converte na facilidade da escrita, na pequena
chance de escrever tudo; finalmente, em terceiro lugar, é um meio de se salvar, de voltar ao mundo, ao tempo,
aos feitos e às coisas do cotidiano, livrando-se do irreal, da ausência de tempo, da fantasia e da impessoalidade
anônima da exigência literária, que exige que o escritor se perca em si mesmo no deserto da escrita”.
44
ao papel desempenhado por Karen na sua relação com Alex e também pelo seu abandono
quando a jovem descobriu o câncer.
Essa autocrítica feita por Érika pode ser pensada como a exposição de seu sentimento
de culpa. Durante a fala da narradora, é perceptível que a culpa se dá pelo abandono e não
pelo modo como ela e Alex a tratavam na relação amorosa. O abandono de Karen pela
personagem pode ter sido motivado pelo fato de Érika ter sido abandonada primeiro, com a
chegada da jovem. Ao assumi-la, a atenção dada por Alex foi dividida com Karen e, dessa
maneira, a narradora não conseguia mais se ver como o seu único objeto de amor:
“Você me disse, estou saindo com uma aluna. Bonita e suave, foram os
adjetivos que você usou. Eu não dei muita bola, não era a primeira vez que
você saía com uma aluna. Karen é especial, você disse, como se lesse meus
pensamentos. Especial como, eu perguntei. Você vai ver, foi a tua resposta,
em seguida você sorriu e me deu um beijo. Eu achei que havia algo estranho,
mas depois esqueci, não pensei mais no assunto. Até o dia em que cheguei no
teu ateliê e ela estava lá, sentada na beira da cama (...). Ela me viu e se
levantou. Parecia nervosa, assustada. Eu não me aproximei, cumprimentei-a à
distância, sorri” (SAAVEDRA, 2010, p. 53).
Logo, o sentimento de Érika para com Karen é conflituoso. De acordo com Freud, esse
sentimento “é a expressão do conflito de ambivalência” (FREUD, 1917[1915]/ 2010, p.160).
A ambivalênciaé constituída por sentimentos opostos, como amor e ódio, e é resultado da
primitiva ambivalência dos sentimentos do bebê em relação à sua mãe. Nessa fase, é ela quem
satisfaz as suas necessidades primitivas: a alimentação e o prazer sensual pelo seio que o
amamenta. Quando o bebê não obtém essa satisfação, ele nutre o ódio por ela. Segundo
afirma Lívia Moreira Santiago (2014), a partir de Freud:
“A criança ainda não sabe que o objeto contra o qual ela nutre ambos
sentimentos é o mesmo. A partir do momento em que essa compreensão se
dá, ela se vê compelida a reparar os danos que pode ter causado ao objeto
amado. O sentimento de culpa surge nesse panorama, onde acontecem as
primeiras atividades mentais reconhecidas como pensamento imaginativo e
na construção da fantasia que acompanha os sentimentos e vivências do
bebê” (MOREIRA, 2014, p.109).
“(...) depois que o ódio foi satisfeito por meio da agressão, o amor se
manifestou no arrependimento pelo ato, instituiu o supereu 13 por meio da
identificação com o pai, conferiu-lhe o poder do pai, como numa punição
pelo ato agressivo cometido contra ele, e criou as restrições que deveriam
impedir uma repetição do ato. E visto que a tendência agressiva em relação
ao pai se repetiu nas gerações seguintes, o sentimento da culpa continuou
existindo e se reforçou de novo por meio de cada agressão reprimida e
transferida ao supereu. Agora, acredito, compreendemos duas coisas com
inteira clareza: a participação do amor na origem da consciência moral e a
fatídica inevitabilidade do sentimento de culpa” (FREUD, 1914/2010, p.160).
“(...) quando uma ferida acidental me ameaça (uma ideia de ciúme, por
exemplo), eu a recupero na magnificência e na abstração do sentimento
apaixonado; deixo de desejar aquilo que, estando ausente, não pode mais me
ferir. Entretanto, imediatamente, sofro ao ver o outro (que amo) assim
diminuído, reduzido e como excluído do sentimento que ele suscitou. Me
sinto culpado e me reprovo de abandoná-lo. Uma reviravolta se opera:
procuro desanulá-la, me obrigo a sofrer novamente” (1977/1981, p.23).
“(...) Karen tinha essa coisa infantil. Isso despertava em mim uma ternura tão
grande, e ao mesmo tempo um desejo de machucá-la. Como acontece
normalmente com as coisas frágeis. A gente quer cuidar, mas, ao mesmo
tempo, sente um desejo muito grande de ver aquele objeto tão fino, tão
delicado cair e se despedaçar. Como se ele carregasse em si, o tempo todo,
essa atração, essa possibilidade. Talvez algo instintivo. Penso agora, a gente
sente isso desde criança, o desejo de construir, passamos horas e horas
concentrados montando aquelas pecinhas só para ver que, no final, das
pecinhas surgiu um castelo, ou um cavalo, ou um foguete. E olhamos
maravilhados para aquilo. Mas, por outro, temos esse mesmo prazer em
destruir depois o castelo, o cavalo, o mesmo olhar maravilhado ao ver que
aquilo que antes existia, agora não existe mais”(SAAVEDRA, 2010, p.50).
“(...) a consciência moral é uma função que, entre outras, lhe atribuímos, e
que tem de vigiar e julgar os atos e as intenções do eu; ela exerce uma
atividade censora. O sentimento de culpa, o rigor do supereu, é portanto, a
mesma coisa que a severidade da consciência moral, é a percepção reservada
ao eu de ser vigiado dessa maneira, a avaliação da tensão entre suas
aspirações e as exigências do supereu (...)” (FREUD, 1914/2010, p.167).
Desse modo, Érika, ao abandonar Karen doente, sente prazer, mas com a posterior
morte da jovem, tem o sentimento de culpa. Socialmente, foi errado abandonar a jovem em tal
estado, revelando, assim, um conflito entre o desejo do supereu - de se desligar da jovem que
já iria morrer – e a sua consciência moral – que censurou o seu ato. A consequência desse
conflito é o sentimento de culpa.
Esse sentimento de culpa provoca uma angústia na narradora. Ela afirma que a morte
de Karen fez com que ela sentisse a perda de algo importante: “Eu perdi algo. E não me refiro
à morte de Karen” (SAAVEDRA, 2010, p. 101). Essa perda provoca um mal-estar, um
incômodo, uma angústia; Érika não sabe dizer o que esse “algo” significa, ele somente
provoca um vazio.
47
O sentimento de culpa por ter abandonado a jovem não é admitido nas primeiras
gravações da narradora. Somente após a cena do cemitério, em que ela realmente chora a
morte de Karen, é que Érika admite seu remorso e sua culpa. Essa verdade, tão relutada pela
narradora em admitir, é uma consequência de seu estado melancólico. Para Freud, a
melancolia é descrita como um estado patológico, em que o doente capta a verdade de forma
mais aguda que os outros, uma vez que há um enorme empobrecimento de seu próprio ego. É
possível, então, identificar o estado melancólico de Érika quando ela realiza uma autocrítica,
avaliando o que Karen representava para seu relacionamento com Alex:
“Eu sei o que você está pensando. Você está pensando, e eu, eu não te
defendi? Quem foi que esteve sempre ao teu lado? E você tem razão em
pensar isso. Sim, você me defendeu, sempre. Mas eu faço a mesma pergunta,
você me defendeu de quê, Alex? Do que a gente tinha medo? O que era
aquilo que nos ameaçava? Seríamos nós mesmos? Agora pensando, você me
defendia do mundo, você nos defendia do mundo, e Karen nos defendia de
nós mesmos, ou nos defendia um do outro. Karen, sem saber, nos defendia
um do outro. Ou será que ela sabia? Tenho muito medo de como vai ser, a
gente sem Karen. Tento me lembrar mas não consigo, como era antes? Antes
que ela aparecesse. Como eram os nossos dias, as nossas dúvidas, os nosso
problemas? Como era a nossa vida? Sabe que eu não me lembro, não
consigo me lembrar. Talvez não estivéssemos tão próximos. Seria isso?
Provavelmente não. Sempre estivemos próximos. Mas o que havia antes de
Karen? Eu não consigo me lembrar. E tenho medo do que vai ser, como vai
ser quando a gente se vir novamente? O que eu vou te dizer, será que a gente
vai se abraçar, será que vamos nos abraçar e chorar, pela morte de Karen,
por alguma coisa que perdemos? O que foi isso que perdemos, Alex? Este
tempo todo aqui procuro respostas para essas perguntas, e ao mesmo tempo
tenho medo de encontrá-las. Você entende? Será que você será capaz de me
perdoar?”(SAAVEDRA, 2010, p.136- 137)
A verdade é sentida e dita de modo muito mais agudo pelo melancólico, que expõe
seus sentimentos e questionamentos, mas que, ainda sim, é marcado por uma impossibilidade
de expressar de modo satisfatório aquilo que se sente. A angústia dessa impossibilidade está
muito presente nas gravações de Érika, que precisa encontrar uma nova relação com o mundo,
a partir da perda de Karen.
Quando Érika revela que perdeu algo, e não somente a presença de Karen, ela
demonstra um estado melancólico, atrelado ao seu sentimento de culpa em relação ao
abandono da jovem. Mas esse “algo” demonstra que a perda ocorrida não aconteceu somente
em relação à morte de Karen. Esse mal-estar da narradora, o “algo” perdido junto com a
morte de Karen, pode ser compreendido também como a consciência de uma impossibilidade
amorosa para ela e Alex: Karen é, então, entendida como o elo que possibilitava o
relacionamento entre ambos. Logo, com a morte da jovem, Érika questiona a possibilidade de
um relacionamento amoroso com Alex, conforme veremos a seguir.
48
49
3. ESCRITA E AMOR
Érika se sente culpada pelo abandono de Karen. Com a notícia da doença da jovem, a
narradora se desligou dela: não atendeu suas ligações, não respondeu as suas mensagens e só
soube de sua morte através de Alex. Esse desligamento de Érika para com Karen reflete o que
as relações atuais buscam. O indivíduo, seja em qualquer esfera de sua vida, ao não ter as suas
satisfações atendidas, procura se desligar do outro. Segundo Zygmund Bauman (2009), as
relações amorosas contemporâneas não buscam mais o clichê romântico “felizes para
sempre”, pois isso pressupõe a eternidade, mas também a possibilidade de infelicidade
permanente. A contemporaneidade procura a conectividade nas relações amorosas, e quando
não há felicidade, desconectar-se do outro é a saída mais fácil. Dessa forma, a busca do
homem é pela felicidade, e estar ao lado de alguém, infeliz, não é mais atrativo.
Ainda segundo Bauman, em Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos
(2009), o compromisso a longo prazo, duradouro, eterno é evitado. A eternidade pressupõe
infelicidade. As relações, assim como vemos nas redes sociais, por exemplo, são permeadas
pelo “conectar” e “desconectar”. O homem contemporâneo não quer um “relacionamento”,
pois este significa algo permanente, duradouro;ele quer a “conectividade” com os outros, já
que ela é descartável, ou seja, a partir do momento em que suas satisfações não são atendidas
do modo como ele deseja, ele se desconecta, buscando outros indivíduos para se conectar:
Outros personagens também são abandonados pela narradora, como dr. Adrian e Pilar.
Ambos são deixados por Érika quando ela decide sair da ilha. Não observamos nenhum
sentimento de culpa dela em tal ato, pois ela considera que é uma ida sem volta. É uma saída
definitiva, sem arrependimentos: “Estou indo embora, Alex. (pausa. Passosde Érika) E pela
primeira vez esta ida não significa uma volta” (SAAVEDRA, 2010, p.166). Ao terminar seu
trabalho de luto, a narradora se desconecta dos personagens e da ilha, abandonando-os,
deixando-os para trás, assim como faz com Lola, sua cachorrinha de estimação que ela
encontrou na ilha.
mesmo tempo, ele quer o contrário, uma relação com laços frouxos, pois a partir do momento
que o outro não traz mais satisfação, pode-se desconectar dele:
“Será que os habitantes de nosso líquido mundo moderno não são exatamente
como os de Leônia, preocupados com uma coisa e falando de outra? Eles
garantem que seu desejo, paixão, objetivo ou sonho é „relacionar-se‟. Mas
será que na verdade não estão preocupados principalmente em evitar que suas
relações acabem congeladas e coaguladas? Estão mesmo procurando
relacionamentos duradouros, como dizem, ou seu maior desejo é que eles
sejam leves e frouxos, de tal modo que, como as riquezas de Richard Baxter,
que „cairiam sobre os ombros como manto leve‟, possam „ser postos de lado
a qualquer momento‟?” (BAUMAN, 2009, p.11).
Dessa forma, os laços que unem o ser amado e o amante são frágeis, pois podem se
romper a qualquer momento. Torna-se difícil se ligar ao outro, os elos são frouxos. Por isso,
Érika acredita que, em todos os relacionamentos, é necessário um terceiro elemento que ajude
a conectar, unir os outros dois. É essa terceira pessoa que auxiliará na não efemeridade das
relações, fortalecendo esses laços, ainda que sejam frágeis.
“Karen havia tirado uma série de fotos de nós dois no banco. Nós dois
abraçados, beijos, carinhos. Depois você disse, vem, Karen, não fuja, sem
você não tem graça, Érika e eu fazemos questão da tua presença na foto (...).
Lembro do teu sorriso. Eu sentia ciúme, afinal por que você estava lhe dando
tanta importância? Tive raiva de Karen. E, ao mesmo tempo, não podia
deixar de concordar. Sem ela não tinha graça. É, eu também desejava a
presença de Karen. E havia realmente algo de especial naquele brilho, os
seus olhos. Eu sei o que você sentia, e isso, estranhamente, nos aproximava”
(SAAVEDRA, 2010, p.52).
A jovem é considerada tanto por Érika quanto por Alex como o elo que possibilita a
relação de ambos. É através dela que eles se unem, que há um interesse. Karen é necessária
para a relação deles e, por mais que a narradora sinta ciúme de sua presença, ela admite que
sem a jovem “não há graça”. O papel de Karen, segundo as palavras de Vanessa, seria
52
somente para gostar de Alex e Érika e ela era necessária porque, somente através dela, que
ambos se olhavam:
“Lembro que uma vez você me disse, Karen é muito mais do que parece ser.
Não lembro muito bem o contexto, mas lembro bem dessa tua frase. (...)
Outro dia, conversando com a Vanessa, ela me disse algo muito parecido
com aquela tua frase, ela disse: você e Alex nunca levaram a sério os
sentimentos de Karen (...) ela estava lá apenas com a incumbência de gostar
de vocês, esse era o seu papel. E o que há de mau nisso, eu perguntei meio
chateada, sei lá, achei o comentário dela tão sem propósito. Ela disse, vocês
simplesmente não a viam, não olhavam para ela, era como se ela não existisse
e vocês apenas se olhassem num espelho, ou olhassem um ao outro num
espelho. Sabe quando a pessoa está fora do seu campo de visão e você só
consegue vê-la através de um espelho, e ela a você. Pois é, Karen era isso, um
espelho onde vocês dois se viam” (SAAVEDRA, 2010, p.85-86).
Para Vanessa, Alex e Érika não amavam ninguém, precisavam apenas de Karen para
se sentirem amados. A afirmação da personagem pode ser confirmada já no fim da narrativa,
quando Érika decide abandonar dr. Adrian. Ao receber uma aliança dele, com a inscrição
“Você está inscrita em mim”, a narradora não se sentiu desse modo. Pelo contrário. Ela afirma
que não se sente inscrita em ninguém, em lugar nenhum, confirmando a fala de Vanessa, de
que ela não amava ninguém, somente a si mesma:
“Ao mesmo tempo, isso que estava inscrito nele não era eu. Talvez fosse esse
o motivo do meu choro. E eu percebi o quanto eu queria estar inscrita,
preexistente em algum lugar, esperando apenas que compreendessem a minha
verdadeira forma. Mas eu não estava, Alex, eu não estava inscrita em lugar
nenhum” (SAAVEDRA, 2010, p.140).
Já esse encantamento de Vanessa por Alex é o que faz com que sua relação com Bruno
seja possível. Agora, é o artista que é necessário nessa relação. Alex é o elo que possibilita a
relação de Vanessa e Bruno e este sabe disso. Bruno, então, admite que para se relacionar com
Vanessa é necessário amar Alex, assim como acontece com a relação entre a dona da galeria e
a narradora. Esse elo é evidenciado também em uma conversa entre Vanessa e Érika:
“Perguntei por que ela continuava casada com Bruno. Ela me olhou,
surpresa com a pergunta, me respondeu, porque eu o amo, simples assim. Eu
sorri incrédula, disse também pela primeira vez, pensei que o teu grande
amor fosse o Alex (...). Ela me olhou condescendente, me explicou, Darling,
uma coisa não exclui a outra (...). E Bruno sabe, eu perguntei (...). Claro que
sabe, Vanessa respondeu. E ele não se importa? Ela disse que não, que ele
sabia que Alex era necessário. Alex é necessário para que eu me sinta mal,
para que eu possa permanecer ao lado de Bruno. Por amor?, eu perguntei,
incrédula, sim, ela disse, por amor” (SAAVEDRA, 2010, p. 122-123).
54
Pilar, por sua vez, é a terceira pessoa no relacionamento entre Érika e dr. Adrian. É a
empregada que constrói um passado para a narradora e também para ele, pois é através dela
que Érika fica sabendo sobre o que trouxe o dr. Adrian à ilha. Não sabemos se esse passado
do dr. Adrian é real, pois Pilar, assim como fez com Érika, pode ter criado fatos e motivos
para a permanência dele na ilha. É por meio do abandono do ser amado, isto é, da desilusão
amorosa, construída por Pilar, que o passado de ambos se une, constituindo-se como um fato
marcante em comum.
É por meio desse passado, construído por Pilar para justificar sua ida à ilha, que Érika
assume uma espécie de personagem para dr. Adrian. Ela continua a história feita pela
empregada e refaz a sua vida: ela não é mais uma artista e, sim, uma professora, vivendo uma
vida, aparentemente, separada de Alex e da arte, tendo uma vida comum, como qualquer
pessoa e não como um artista: “Sabe, Alex, eu não quero mais que a vida seja algo especial.
Eu quero que a vida seja apenas o que ela é” (SAAVEDRA, 2010, p. 134). Assim, Pilar, ao
construir um passado para os dois, estabelece-se como necessária para que a relação entre
Érika e dr. Adrian aconteça. Ela é o elo entre eles, pois une os dois através de uma
justificativa em comum: o abandono do ser amado. É por meio da empregada que a narradora
pode ter uma vida comum, sem precisar ver a arte no cotidiano, como um artista e,
principalmente, sem estar vinculada a Alex, tendo um vínculo com dr. Adrian.
Klinger também afirma que os romances de Saavedra têm em comum o fato de que
expõem uma outra relação triangular: todas as histórias são confissões endereçadas a alguém,
mas não sabemos se elas realmente chegam até seu destinatário. No final das contas, é para o
55
leitor que elas são endereçadas. O leitor se transforma, então, em alguém que escuta ou lê
indevidamente o que é destinado a outro e é assim que uma outra relação triangular se
desenvolve: a do artista - público (leitor) - destinatário. É nessa leitura/ escuta indevida do que
é destinado ao outro que o leitor assume o lugar do interlocutor, fundamental nos romances de
Saavedra, como veremos no próximo capítulo.
“Era necessário que Karen não dissesse nada, apenas ficasse ali, imóvel,
testemunha das nossas palavras, dos nossos gestos. E eu sabia naquele
momento que nunca, nunca havíamos estado tão perto um do outro. Eu e
você. Ali, a presença de Karen possibilitava isso, essa aproximação sempre
tão desejada e tão temida” (SAAVEDRA, 2010, p.68).
Assim o estado amoroso é definido por Freud como a necessidade que o eu tem em
investir no objeto e acontece na fase mais elevada de desenvolvimento sexual do indivíduo. O
56
A jovem também nutria uma grande admiração por Alex: “ela olhava com devoção
para você, a honra de pisar naquele lugar sagrado que era teu atelier” (SAAVEDRA, 2010,
p.54). Ela nutre por Alex e Érika, a mesma fascinação que tem por sua mãe. Eles ocupam a
posição de pais da jovem. Ela também tinha um comportamento infantil diante deles,
semelhante ao de uma filha com os pais:
“Karen disse, faz tempo que eu não me divirto tanto, eu me sinto tão bem, tão
leve, queria poder ficar com vocês o resto da vida, ela sorriu para nós, os seus
olhos brilhavam. É raro isso, alguém olhar para você e os olhos desse alguém
brilharem. Acho que é uma capacidade que a gente perde com o fim da
infância. Mas Karen não, Karen tinha essa coisa infantil” (SAAVEDRA,
2010, p.50)
Érika, entretanto, escolhe seus objetos amorosos de acordo com o modelo narcísico,
isto é, idealiza o ser amado conforme ela mesma. Ela é o próprio ideal. Assim, ao longo da
narrativa, observa-se uma ambivalência de sentimentos relacionada à Karen, que é
materializada na relação sexual ocorrida entre elas e Alex, constituindo-se como um sadismo,
considerado por Freud como uma perversão:
“Eu acariciava com força os lábios de Karen, talvez tentasse evitar que ela
dissesse alguma coisa, ou que eu dissesse alguma coisa que não deveria dizer,
talvez a estivesse machucando, mas o pensamento não chegou sequer a tomar
forma (...). O corpo de Karen era um corpo contraditório, ao mesmo tempo
que pedia para ser tocado com delicadeza, exigia no desejo do outro uma
determinação inabalável, e até certa brutalidade. Era justamente essa
contradição que te atraía, Alex. Que nos atraía” (SAAVEDRA, 2010, p.69).
57
“Basta que, num lampejo, eu veja o outro sob a forma de um objeto inerte,
como empalhado, para que eu transfira meu desejo, desse objeto anulado
para o meu próprio desejo; é meu desejo que desejo, e o ser amado nada
mais é que seu agente” (BARTHES, 1977/1981, p.23).
O ser amado é, para Barthes, a transferência do meu desejo e, por isso, temos a
impressão de que o conhecemos bem, de verdade: “O outro é meu bem e meu saber: só eu o
conheço, faço com que ele exista na sua verdade. Ninguém além de mim o conhece”
(BARTHES, 1977/1981, p.197). Esse conhecimento acontece pois o ser amado é um reflexo
de mim, de tudo o que desejo. Ele é a idealização do meu desejo e, por isso, é descrito pelo
enamorado como tudo, que, mesmo sendo uma palavra vazia, representa a perfeição,
mediante a pobreza da linguagem em comunicar o que se sente. O ser amado, ao representar o
tudo, é inclassificável, inominável.
Apesar disso, para Barthes, o outro é um ser impenetrável. Por mais que ele seja um
reflexo do desejo do enamorado, este sabe que não o conhece totalmente. O enamorado,
então, encontra uma contradição: ele quer acreditar que conhece verdadeiramente o ser
amado, mas sabe que, na realidade, ele ainda é um desconhecido e indecifrável. Nós,
enquanto enamorados, somos ignorantes em relação ao outro:
Voltando a Freud, ele acredita que essa dependência em relação ao outro ocorre
também na linguagem. A identificação com o ser amado ocorre quando eu incorporo a palavra
dele, havendo, assim, uma união. Desse modo, “eu posso receber palavras do outro, assimilá-
las, repetir, reproduzir, tornando-me igual a ele” (FREUD, 1914/2010, p.47). Assim, a
identificação com o outro ocorre por meio da incorporação das palavras dele; é preciso ser
igual para que haja a união; é necessário que haja uma perda na identidade pessoal para que o
relacionamento amoroso aconteça e quando isso ocorre, representa a satisfação na escolha
narcísica do amante. O discurso amoroso busca, então, a identificação.
59
No romance de Saavedra podemos identificar essa união dos amantes, descrita por
Freud e Barthes. Antes da existência de Karen na relação, Érika e Alex trabalhavam juntos, é
como se eles fossem indissociáveis. Somente a partir da presença da jovem, fazendo com que
o relacionamento se tornasse triangular, eles se dissociaram. Ela ganhou maior independência
em relação a Alex. É também através dela que a narradora reconhece isso, havendo um auto-
conhecimento:
Para a narradora, o seu relacionamento com Alex, antes da chegada de Karen, era
caracterizada por não haver uma separação dos nomes nos trabalhos artísticos de ambos; não
havia individualidade, os dois eram somente um, e Alex representava a perfeição por ser
reconhecido como um grande artista. Era por essa perfeição que ele era amado, exercendo
fascínio em Érika. Em outra passagem, ela afirma ter o conhecimento que sem ele e sem a
jovem, ela seria outra pessoa: “Nem Karen existiria se não fosse você. Ela teria passado por
mim sem que eu a notasse. Sabe o que mais me assusta, Alex? A certeza de que sem você eu
seria outra pessoa” (SAAVEDRA, 2010, p.157). Assim, podemos ver que é a partir da
presença de seus objetos amorosos, Alex e Karen, que Érika adquire o auto-conhecimento,
descobrindo quem ela realmente é.
60
Como falar sobre amor? Como comunicá-lo ao outro? É possível traduzir em palavras
o que sentimos e, dessa maneira, atingir o outro, fazê-lo entender aquilo que desejamos? O
discurso amoroso se relaciona ao que não pode ser comunicável, devido ao fato de que a
linguagem não pode dar conta de nomear aquilo que se sente. A narradora Érika não consegue
dar nome ao que sente para Alex em diversos momentos: “Acho que é isso. Isso que eu
construí não é real. Alex, sinto que estou perdendo alguma coisa. Mas eu ainda não sei o que
é”. (SAAVEDRA, 2010, p.150). Isso acontece não somente por seu estado melancólico,
devido ao seu trabalho de luto, como vimos antes, mas também pelo fato de que ela quer falar
de amor. Conforme Kristeva, a idealização amorosa, sendo inerente ao amor, faz com que a
experiência amorosa esteja atrelada ao vazio e à impossibilidade, que também se manifesta na
linguagem:
A gravação de Érika para Alex é formada por uma linguagem amorosa, sempre se
referindo à relação vivida por eles e também por Karen. Ao indagar sobre o futuro da relação
61
com a morte de Karen, além de tentar dar um significado ao lugar ocupado pela jovem, a
narradora usa da verdade – exteriorizada por meio da necessidade de ser sincera com Alex – e
também expõe seus pensamentos mais íntimos. Apesar dessa sinceridade, para Érika, há algo
sempre faltando, há algo que nem mesmo a língua consegue dar conta e é esse tipo de
linguagem, incompleta, obscura e dolorosa, que é a linguagem amorosa. Nada é dito de modo
completo.
Érika grava seu diário íntimo sobre seus sentimentos e emoções e sobre como estes
estão relacionados principalmente a Alex e Karen. A linguagem amorosa se centra no eu
porque fala dos sentimentos daquele que ama, somente tem a sua voz e se resume na ausência
do ser amado, assim como acontece com a narradora de Paisagem com dromedário, que fala
de sua intimidade, de seu remorso pelo abandono e também da ausência de Karen. A
interpretação do sentido amoroso está sempre de modo obscuro porque se localiza naquilo que
não é dito, mas, ainda sim, encontra-se presente: “(...) mas é no invisível que entra em jogo o
culto do poder ou da submissão, é num transporte silencioso entre os dois espaços amorosos
que se efetua a subjulgação própria à política amorosa” (KRISTEVA, 1988, p.386).
É por meio dessa linguagem obscura, incompleta, que não consegue dar conta da
complexidade do discurso amoroso, que, ainda assim, a narradora Érika expõe a sua
intimidade. A sinceridade referida por Barthes é a procurada pela personagem de Paisagem
com dromedário. Sua vida íntima é exposta em um diário, em que ela busca se expor como é.
É somente a partir do diário que a narradora encontra o meio mais sincero para tentar elaborar
seu discurso amoroso.
62
14
BARTHES, Roland. “No se consigue nunca hablar de lo que se ama”. In: El sussurro del linguaje. Barcelona:
Paidós, 1987.
15
“Esta dialética do amor extremo e da paixão difícil é igual como a que conhece o bebê – ainda criança, privada
da linguagem adulta”.
16
“A escrita não sabe ou não precisa saber nada de si, e escreve justamente na medida em que ignora a si
mesma”.
63
É para o outro que se escreve e é dele também que se escreve e, mesmo assim, é um
discurso solitário. O diário é da narradora, é sobre a sua relação amorosa com Karen e Alex. É
sobre eles que ela fala e é para o artista que ela grava, para tentar alcançá-lo, mas, ao mesmo
tempo, é fechado em si mesmo e solitário. Para Barthes “o discurso amoroso é hoje em dia de
uma extrema solidão. Este discurso talvez seja falado por milhares de pessoas (quem sabe?),
mas não é sustentado por ninguém” (BARTHES, 1977/1981, p.1). É uma fala sobre o outro,
que não possui voz. No romance de Saavedra, percebe-se que Alex não possui voz, tratando-
se de um monólogo da narradora que, por diversas vezes, imagina o que seu destinatário
poderia falar ou pensar naquele momento:
“Eu sei o que você está pensando. Você está pensando, e eu, eu não te
defendi? Quem foi que esteve sempre ao teu lado? E você tem razão em
pensar isso. Sim, você me defendeu, sempre. Mas eu faço a mesma pergunta,
você me defendeu de quê, Alex? Do que a gente tinha medo? O que era
aquilo que nos ameaçava? Seríamos nós mesmos? (SAAVEDRA, 2010,
p.137).
Para Barthes, o discurso amoroso só possui a única voz, a do enamorado, que fala
sobre si mesmo diante daquele que se ama, mas que não possui voz. Logo, o discurso
amoroso é descrito como “o lugar de alguém que fala de si mesmo, apaixonadamente, diante
do outro (o objeto amado) que não fala” (BARTHES, 1977/1981, p.1). A voz do eu é, então, a
única voz dentro desse discurso, compreendendo-se como uma fala sem resposta, mas que,
ainda sim, quer essa resposta afirmativa: “O discurso amoroso caracteriza-se então por essa
fala sem resposta. Uma fala que não para, que não deixa de querer uma resposta afirmativa,
que é um acúmulo de repetições de vários sujeitos” (PINO, 2011, p.217).
A repetição seria, para Barthes, a palavra-frase “eu te amo”, que não se configura
como uma comunicação e, sim, uma expressão, repetida pelos sujeitos. Essa palavra-frase não
significa nada se não estiver dentro do contexto do discurso amoroso. “Eu te amo” é uma
palavra-frase que só tem sentido imediato:
Percebe-se que o discurso amoroso possui somente a voz do enamorado, mas é sobre
seus sentimentos diante da figura do outro, do ser amado. Este é fundamental para esse
discurso, pois é diante dele que se fala. Em Paisagem com dromedário, Alex e Karen, são
centrais no discurso da narradora Érika. Desse modo, mesmo se tratando de um monólogo e
sobre seus sentimentos, as suas gravações são sobre seus objetos de amor. É para eles e sobre
eles que ela grava seu diário íntimo.
As gravações da narradora são motivadas pelo sentimento de culpa que ela sente por
ter abandonado Karen na descoberta de sua doença. A narradora não procurou ter contato com
a jovem: não respondia as suas mensagens, não ligava para saber de seu estado e somente
soube de sua morte por Alex, a quem ela também abandona ao ir para a ilha. Com ele, Érika
também faz o mesmo que fez com Karen. No desenrolar do romance, a narradora se envolve
com outros personagens que vivem no local. Inicialmente, seu contato com o mundo exterior
é através da empregada Pilar. Após seu trabalho de luto ser realizado, ela cria um animal de
estimação, a cachorrinha Lola e, por meio dela, conhece e se relaciona com o dr. Adrian, o
veterinário. Ao fim da narrativa, Érika abandona os três, pois resolve sair da ilha e, para ela,
essa saída não tem retorno: é uma ida sem volta.
65
Para Barthes, esse abandono é “uma manchinha na pele da relação, sintoma da morte
certa: pela primeira vez faço mal a quem amo, sem querer é claro, mas sem medesesperar”
(BARTHES, 1977/1981, p.106). Ao abandoná-los, Érika faz mal aos seus objetos de amor e
carrega a culpa por isso. O abandono, ainda de acordo com Barthes, é comparado à morte da
relação: uma vez que o enamorado é abandonado, a relação morre, já não volta ser ao que era
anteriormente. A própria relação quando começa já é um término, pois o enamorado começa a
perder o ser amado a partir do momento que inicia a sua relação. O amor é, então, associado à
morte, por Barthes, pois uma vez que se ama, perde-se o ser amado e “perder” significa a
morte do sentimento e também do objeto.
Vemos, então, que o lugar ocupado pela narradora é o do ser amado, aquele que
segundo Barthes, é o que parte. É ele quem se movimenta e é isso que acontece com Érika: a
ilha é o lugar de sua movimentação. É lá que ela vai para realizar seu trabalho de luto e após
ele estar completo, ela vai embora. Com isso, podemos entender que, apesar de, no seu
discurso, a personagem se colocar no lugar daquela que é abandonada a partir da morte de
Karen, a narradora ocupa outro lugar: a do ser amado que abandona, é ela quem parte.
Essa ausência de Érika na morte de Karen faz com que ela se sinta culpada e faça de
suas gravações um meio de tentar se livrar dessa culpa. Apesar de a narradora afirmar que
optou pelo som devido à sua eficácia em atingir o outro – que analisaremos mais
profundamente no capítulo 4 –,também podemos considerar que o som convence melhor do
que as palavras, isto é, a linguagem corporal é mais eficiente do que a linguagem escrita.
diz” (BARTHES, 1977/1981, p.90). Assim, apesar de a narradora ocupar o lugar do ser
amado, podemos considerar que ela também realiza um discurso amoroso, pois utiliza da
chantagem para convencer seu destinatário, Alex, e também a si mesma, em uma tentativa de
acabar com seu sentimento de culpa pelo abandono de Karen. Para ela, o gravador é eficiente,
pois ele é o melhor instrumento para convencer. Isso porque as palavras podem mascarar, mas
o corpo, ou seja, a sua voz não mente: “Posso modelar à vontade a minha linguagem, não a
minha voz” (BARTHES, 1977/1981, p.90).
Barthes também acredita que o choro é uma forma de chantagem. As lágrimas são
signos e, por isso, possuem um significado, ajudando no convencimento da mensagem que o
enamorado quer transmitir:
Érika, também por meio das didascálias,faz isso. A narradora busca o convencimento
pelas suas emoções, pelo seu corpo, tentando convencer o seu interlocutor e a si mesma de
sua verdade, de seu sofrimento pela morte de Karen, quando, na verdade, ela também se culpa
pelo abandono da jovem: “Naquela hora, Alex, eu me senti tão idiota. Como é possível que eu
tenha percebido tão pouco? (Érika chora. Érika chora por um longo tempo)” (SAAVEDRA,
2010, p.122). O choro da narradora, assim como suas outras emoções, transcritas pelas
didascálias, podem ser pensadas como uma forma de convencimento da verdade de seu
discurso, como veremos no próximo capítulo.
O discurso de Érika é uma chantagem que sufoca o outro, pois na sua voz há um
“terror”, conforme afirma Barthes. A narradora tenta manipular seu interlocutor por meio de
uma chantagem, que tenta convencer por meio da voz. Ela se faz de vítima, põe a culpa na
morte de Karen. E, nessa manipulação, a narradora exerce um poder, um domínio sobre Alex:
“não há nenhuma benevolência na escritura, o que há é um terror: ela sufoca o outro, que
longe de perceber nela o dom, lê uma afirmação de domínio, de poder, de gozo, de solidão”
(BARTHES, 1977/1981, p.69).
67
Ela também faz o mesmo com dr. Adrian. Ao admitir que vai deixá-lo porque vai
embora da ilha, ela afirma que quem abandona primeiro é ele, e não ela, que é quem está de
partida:
“De repente, pareceu-me que acabara de perdê-lo, ali mesmo. Algumas vezes
já havia sentido isso, mas nunca com tanta clareza, o momento em que você
perde alguém. Em que alguém desiste, te abandona, vai embora. É questão de
um segundo. Uma mudança muito sutil no olhar. Às vezes nem a própria
pessoa sabe que acabou de te abandonar, ou de abandonar um desejo, uma
ideia. Mas, ali, eu soube exatamente o instante em que o doutor me
abandonou” (SAAVEDRA, 2010, p.160).
4. ARTE E ALTERIDADE
Como vimos nos capítulos anterioes, a narradora Érika, ao chegar na ilha, opta por
produzir um diário, através de um gravador, no qual descreve a paisagem para o seu
interlocutor, Alex. A opção pelo som seria devidoà sua eficácia em ser compreendida como se
deseja. Ao explicar para o seu destinatário sobre as suas motivações ao fazer tal escolha, a
personagem acrescenta que acredita na individualidade do som. Para ela, o som também é
único em cada lugar, isto é, cada cidade tem um som específico e é isso que torna cada lugar
único. É essa especificidade que ela também deseja transmitir a ele: “Na realidade, queria
falar sobre sons. Te explicar por que, em vez de atender os teus telefonemas, eu me decidi por
este gravador (...). Talvez cada cidade tenha mesmo os seus próprios sons(...)” (SAAVEDRA,
2010, p.11).
“Acabo de ter uma ideia. (a voz torna-se ansiosa) Vou de cidade em cidade
gravando os sons, sempre na mesma hora do dia, duas da tarde, por exemplo.
Duas da tarde em Nova York, duas da tarde em Berlim, duas da tarde em
Buenos Aires. Na exposição, crio para cada cidade uma sala totalmente
escura, o visitante entra tateando, lá dentro apenas o som. O que você acha?”
(SAAVEDRA, 2010, p.12)
Depois, Érika resolve fazer seu trabalho com os sons da ilha. Nesse “diário de sons”,
no qual a narradora queria deixar impressa a sonoridade do lugar, ela registraria a
especificidade da ilha, a particularidade sonora existente que faz cada local ser único. Dessa
forma, o idioma e a sua musicalidade, os barulhos dos veículos e dos cachorros vagando se
tornam os componentes desse som específico, único, que cada lugar possui.
“Ouviu? Fecha os olhos e ouve, percebe? Percebe que há nesse som algo
específico, que só poderia existir aqui. Um momento irrecuperável (...). E de
uma forma imaginária seja possível fazer uma reconstituição de todos os
ruídos que passaram por ela, feito uma sinfonia. Então cada lugar teria a sua
própria sinfonia, sua própria partitura”. (SAAVEDRA, 2010, p.12).
alguém, de uma voz: “Barulho de vento e de ondas batendo num rochedo. Pequenas pedras
caindo na água. Interrupção. Voz” (SAAVEDRA, 2010, p.9). Assim, sabemos da existência
de Vanessa e Bruno, pois as vozes deles aparecem na narrativa também através das
didascálias: “Som de batidas na porta. Uma voz feminina, aguda e melodiosa, em tom
indagativo: Érika, darling, você está aí? (...) Ruído de passos se aproximando. Voz masculina
em falsete: Érika, Darling, trouxemos um doggy bag para você” (idem, p.57). Logo em
seguida, a narradora dá nome a essas vozes, apresentando Vanessa e Bruno ao leitor.
Já Pilar aparece na narrativa por meio da rádio. Ela é descrita pela narradora como a
empregada que escuta um programa de rádio toda manhã, enquanto trabalha. A amizade entre
as duas começa devido a esse programa, já que, no início, Érika não gostava dele, mas depois
se interessou por ele, através de Pilar. Podemos, então, afirmar que som se estabelece como
um elo entre elas; foi ele quem possibilitou a aproximação de ambas:
Já com Alex, o som se relaciona diretamente, pois é para ele que a narradora se dirige
enquanto grava. Sua voz também é reproduzida por Érika, já que ela assiste uma entrevista
dele e a grava em suas gravações. Nela, ele fala sobre a conceituação da arte contemporânea,
questão que abordaremos posteriormente neste capítulo. A voz de Alex também é reproduzida
em uma gravação da secretária eletrônica, que é escutada por Érika:
“Voz quase inaudível: Érika, estou há tempos tentando falar com você, o que
está acontecendo? Você está bem? (...) Beijo. Barulho de telefone sendo
desligado. Voz de Érika muito baixa: Eu também te amo, Alex, eu também te
amo. Silêncio” (SAAVEDRA, 2010, p.106).
Outra voz que é escutada pela narradora em sua secretária eletrônica é a de Karen, que,
para Érika, é o rastro de sua existência. Assim, podemos entender Karen como a personagem
que mais explicitamente se relaciona com as duas temáticas presentes na narrativa: o som e a
morte. É devido à sua morte que as gravações acontecem e se transformam em um objeto de
arte. É através dela que som e morte se relacionam:
“Quando Karen morreu, ninguém me ligou para avisar. Somente uma semana
depois, aquela tua mensagem. (...)Caso você ainda não saiba. E eu fiquei
vivendo assim, uma semana com Karen viva quando na verdade ela já estava
morta. Ninguém me avisou. E afinal, agora penso, que diferença faria? Se
70
Com isso, compreendemos que esse diário composto pelas gravações de Érika é útil,
pois ajuda na imortalização de suas memórias, sendo uma reação contra o esquecimento que o
tempo pode trazer.Para ela, o som não é somente específico de cada lugar, eleé uma forma de
recuperar um instante irrecuperável, semelhante à memória, que, não obstante, as gravações
poderiam ajudar a fixar. As gravações poderiam, assim, servir como um guia para quando as
memórias começarem a desaparecer:
Apesar de sua eficiência, o sompode não alcançar o outro com perfeição. Essa questão
é também observada pela narradora em um teste que ela fala, reproduzido pela didascália:
O som não é perfeito, pois pode apresentar ruídos, que prejudicam essa comunicação.
A comunicação com o outro, então, nunca será perfeita, mas o ato da narradora demonstra o
interesse em testar o melhor instrumento, aquele que apresenta menos falhas.
Outra imperfeição do som se relaciona com o esquecimento daquele que fala. Essa
falha é também identificada pela personagem, que esquece o que estava dizendo
anteriormente. Ao gravar podemos esquecer o que dizemos anteriormente ou o que
pretendemos dizer, fazendo com que haja uma dificuldade em recuperar o que foi esquecido,
dificuldade esta, muito menos presente na escrita, que permite que voltemos e recuperemos
nossa intenção de comunicação:
“(...) o ruim de falar em vez de escrever é isso, a gente fala e logo em seguida
esquece o que disse, então o que a gente diz é sempre novo, desconectado de
qualquer lógica anterior, de qualquer contexto. É como se escrevêssemos
com uma das mãos, e com a outra fôssemos imediatamente apagando o
escrito (...)Um quadro em permanente escrita e esquecimento”
(SAAVEDRA, 2010, p.12).
O discurso falado é, para Érika, momentâneo, pois tem valor no momento em que o
falamos. Ele está sujeito ao esquecimento e, por isso, é também fragmentado, pois nem
sempre terá conexão com o que foi dito anteriormente. Seu discurso, portanto, é fragmentado
em vários sentidos:não somente devido ao seu discurso de luto e de amor, que buscam
exprimir o que não pode ser dito.A sua elaboração discursiva fragmentária é também por
causa do seu discurso que é falado e não escrito, dificultando a recuperação daquilo foi dito
ou que se pretende dizer.
72
Com isso, elas fazem com que o discurso do narrador não seja o único, fornecendo
uma outra perspectiva para o leitor, além daquela fornecida pela narradora. A voz de Érika
mistura-se com essa outra voz. Com elas, o leitor também tem acesso à descrição da
paisagem. Do mesmo modo presente no discurso fragmentário de Érika, não há nenhuma
informação sobre o local ou sobre o tempo, apenas pequenas características do local e do
momento em que a artista começa com suas gravações: “Barulho de passos, de sapatos
pesados na terra, o ressoar de pequenas pedras. Vento. Respiração ofegante” (SAAVEDRA,
2010, p. 27).
personagem afirma que o silêncio não pode ser compreendido como a ausência de som, já
que ele é cheio de significados e, dessa forma, ele deve ser pensado também como um
barulho, pois há a presença de algo que não é dito, mas que tem significado:
“(...) Ficamos rindo por muito tempo, era contagiante, mas não havia alegria
naquilo, apenas algo que nos inquietava.
Sabe que o silêncio não existe? Grande descoberta, você dirá, sarcástico. Mas
não importa. O que importa é que o silêncio não existe e, ainda que eu fique
aqui e não diga nada, há sempre algo acontecendo e fazendo barulho.
Ininterruptamente. Por isso, o silêncio, ou o não silêncio ou o quase silêncio,
como você preferir chamá-lo, nunca é igual. Agora, por exemplo, ainda que
eu não diga nada e mantenha o gravador funcionando, há sempre algo que
ficará gravado. E sempre algo diferente. A primeira vez que pensei nisso, ou
li sobre isso, já não sei, a primeira vez, lembro que a ideia me pareceu
assustadora, estar sempre ouvindo alguma coisa, nunca poder descansar”
(SAAVEDRA, 2010, p.36-37).
Nesse trecho, apesar de estarem em silêncio, apenas rindo, há algo que inquieta Érika,
Alex e Karen. É esse “algo”, indefinido e inomeável, como já trabalhamos anteriormente, que
a narradora acredita ter perdido e que precisa procurar. Érika acredita que a todo momento
estamos escutando algo. Logo, ainda que não haja barulhos ou conversas, não há a ausência
de som, pois, para cada situação, o silêncio possui um significado, não dito, mas presente.
Para Alex, o silêncio não é sinônimo de nada, porque aquilo não é dito é também um relato e,
por isso, possui significado para aquele contexto:
“O que você cala é também um relato, automaticamente. Nem que seja pelo
cuidado de não pronunciá-lo. Onde você cala, surge um vão, um vazio (...)
esse vazio não é sinônimo de nada, o vazio existe, já que é suplantado por
uma imagem que surge a partir dos seus contornos” (SAAVEDRA, 2010,
p.155-156).
É também por meio das didascálias, que o destinatário das gravações passa a não ser
somente Alex. Isso porque nós, leitores, também nos imaginamos dentro da paisagem
vivenciada por Érika. Elas nos fornecem outras informações e descrições, auxiliam-nos a
pensar imageticamente essa ilha. Com isso, nós nos inserimos nessa paisagem, assim como
com as gravações, nós nos colocamos no lugar de Alex. Não somente ele é o destinatário de
tais gravações, já que nós também imaginamos os ruídos e a voz da narradora.
Essa outra voz presente na narrativa é aquela que inicia e termina o romance. Como
vimos no capítulo 1, é por meio dela que nós leitores somos apresentados à história de Érika e
à descrição da paisagem da ilha, onde a narradora se isola, e é também no último parágrafo do
74
romance que as didascálias revelam outra importância sua: as gravações são um trabalho de
arte, uma instalação:
“Ruído. Interrupção.
A sala é grande, espaçosa. Uma janela, uma porta fechada. A sala está
vazia, quase na penumbra. Há apenas uma mesa de madeira e sobre ela um
gravador. No canto esquerdo do gravador, pisca uma luz amarela que
ilumina tenuamente o cômodo. Ouve-se uma voz que diz: Como te dizia, fiz a
minha mala, me despedi de Pilar. Ruído. Interrupção” (SAAVEDRA, 2010,
p.167).
A revelação, pelas didascálias, desse objeto de arte faz com que o leitor, transformado
também em um interlocutor, perceba que, de fato, houve uma falha na comunicação.
Conforme Klinger afirma no já citado “Carola Saavedra: da (im)possibilidade de alcançar o
outro”, ele não “pode juntar os cabos soltos”. Ele tem a sensação que deixou algo passar e até
mesmo foi manipulado por Érika, já que ela, desde o início da narrativa, afirmava sobre a
possibilidade de fazer uma instalação com as gravações, mas só no final isso é revelado.
Com o desenrolar do romance, ela faz seu trabalho de luto, assume seu sentimento de
culpa e se relaciona com os outros personagens da ilha para, então, sair dela. O sentimento do
leitor com esse último parágrafo é de que no desenvolvimento da história algo foi perdido,
assim como a narradora afirma em algumas gravações. Ela tem o mesmo sentimento. O
último parágrafo, então, fornece uma informação ao leitor, que se sente manipulado por Érika
e perdido, por não saber se, de fato, as gravações chegam até Alex e se elas foram realmente
pensadas para ele ou foram pensadas como um objeto de arte. De fato, houve um ruído nessa
comunicação e, dessa forma, a narradora reafirma que há uma impossibilidade em atingir o
outro, de que sempre perderemos algo devido a esse ruído na comunicação, que, por melhor
que seja o instrumento, nenhum deles pode comunicar ao outro com perfeição.
Conforme Klinger afirma, Paisagem com dromedário, assim como seus outros
romances, evidencia a falha da literatura quando considerada como comunicação – questão
que trabalharemos no próximo tópico - e é assim que as didascálias mostram sua importância
dentro da narrativa: elas evidenciam tal falha de comunicação da literatura.
4.3Endereçamentos possíveis
O destinatário das gravações não é muito claro em Paisagem com dromedário. Apesar
de endereçá-las a Alex, no último parágrafo do romance, as gravações se revelam como uma
instalação. É por meio dessa revelação que outra possibilidade de interlocutor se desvela: a do
espectador da instalação. As gravações de Érika possuem, então, múltiplas possibilidades de
destinatários: Alex, o espectador, além do leitor, já que, por diversas vezes ao longo da
narrativa, nós, leitores, assumimos o papel do destinatário. Ainda em “Carola Saavedra: da
(im)possibilidade de atingir o outro”, Klinger afirma que o leitor se transforma em um
interlocutor, porque ouve ou lê o que se destina a outra pessoa. De um modo geral, todos os
romances de Saavedra possuem essa característica: o destinatário não é determinado, é
esquivo, mas, ainda sim, as narrativas se dirigem a alguém.
Essa nova possibilidade de endereçamento faz com que o romance apresente uma
outra relação triangular, também já descrita por Klinger e exposta no capítulo anterior: artista-
público-destinatário, revelada concretamente em Paisagem comdromedário somente quando
as gravações se explicitam como uma instalação. O romance, então,problematiza a relação do
leitor/espectador com a literatura e com a arte. Ele aparece como o outro: no fundo, é para ele
que Érika conta a sua experiência; é ele o elemento necessário para que a comunicação
aconteça. A problematização maior é sobre a comunicação, se ela realmente acontece. O leitor
é compreendido como o terceiro elemento fundamental para a comunicação; a narradora
busca atingi-lo, compartilhar a sua experiência com ele. Mas, como vimos antes, há uma falha
na comunicação.
76
Todos os romances da autora repensam a literatura como comunicação. Para ela, ainda
que o leitor se transforme em um voyeur, por escutar ou ler uma confissão que não lhe é
destinada, ele deixa escapar algo, aproximando-se do mesmo sentimento de Érika. Ele teria
todas as informações possíveis, porém, não consegue conectar todas as informações e algo lhe
escapa – geralmente, esse algo é evidenciado no fim da narrativa. Assim, a literatura enquanto
comunicação revela uma falha, um ruído, segundo Klinger (2013):
“„A escrita é cheia de mal-entendidos, como a fala‟, comenta „A.‟ numa das
cartas em Flores Azuis. E é assim que talvez possa se pensar a recepção
artística: alguém ouve ou lê algo que não lhe é destinado. O leitor, aquele
terceiro que lê algo que não lhe é destinado, em teoria poderia reparar essa
falha na comunicação, porque ele tem alguma informação a mais que os
destinatários, porque ele pode juntar os cabos soltos. Mas não é assim que
funciona nos romances de Carola, talvez porque no fundo, a literatura é ela
mesma a evidência de uma falha na comunicação” (p.76).
17
O artigo é uma das entradas do (In)dicionário, livro coletivo, ainda no prelo, que discute conceitos
fundamentais da teoria artística e literária contemporânea, como “Endereçamento”, “Comunidade”, etc.
Participam do projeto, entre outros, Célia Pedrosa, Florência Garramuño, Rafael Gutierrez, Ariadne Costa, Joca
Wolff, Diana Klinger, Mario Cámara e Paloma Vidal.
77
No caso de Paisagem com dromedário, essa sedução do leitor acontece devido a duas
questões: por causa da experiência individual do narrador e que, no entanto, é uma
experiência universal, ou seja, quando Érika fala sobre sua vivência do luto e de seu
sentimento de culpa, a sua experiência particularpode ser compartilhada por nós, leitores. Há
uma identificação com a sua vivência que nos faz assumir o papel do interlocutor.
A nossa identificação com a experiência de Érika faz com que assumamos o lugar do
interlocutor. Segundo o artigo sobre “Endereçamento”, a linguagem propõe formas vazias,
pois os pronomes, como o eu e o tu, podem se referir a qualquer pessoa e são indeterminados
e, é dessa maneira, que nós, leitores, assumimos o papel do interlocutor:
“A linguagem de algum modo propõe „formas vazias‟ das quais cada locutor
em exercício de discurso se apropria e as quais refere à sua pessoa, definindo-
se ao mesmo tempo a si mesmo como eue a um parceiro como tu. Isto é, os
pronomes são formas „vazias‟, que podem ser ocupados por qualquer um,
mas em cada situação de enunciação ganham um referente único. Poderíamos
dizer que a poesia produz uma situação específica em que essas formas são
preenchidas e, ao mesmo tempo, permanecem vazias, numa espécie de
„indeterminação determinada‟” (grifo do autor, p.6).
Citando Célia Pedrosa, o artigo afirma que o endereçamento é uma característica que
coloca em crise a lógica da copresença e da identidade na comunicação linguística: há o apelo
ao outro, porém esse outro, o interlocutor, não está presente, nem é determinado. Ele pode ser
qualquer um. O endereçamento proporciona uma desestabilização na identidade daquela
pessoa que escreve e para quem ela escreve: “(...) o endereçamento pode servir para pensar a
relação com a alteridade de um modo que desestabiliza padrões identitários associados”
(p.13).
Assim, Paisagem com dromedário pode ser compreendido como um romance apoiado
na figura do outro, um romance endereçado. Érikademonstra que suas gravações, ao mesmo
tempo que, como vimos, visam atingir o outro, que pode ser Alex, o espectador da instalação
e, até mesmo, o leitor: esse “outro não é definido”. As formas vazias que compõem a
narrativa, o eu e o tu, permitem que o leitor também se torne o interlocutor das gravações de
Érika e evidenciam uma falha de comunicação, um ruído que não permite que esse outro seja
evidenciado com clareza. Conforme Klinger afirma, a confissão de Érika, através de suas
gravações, é uma estratégia para atingir e afetar esse outro.
Ainda para Klinger: “há um ruído na comunicação entre a fala e a escuta, ou entre a
escrita e a leitura. Nesse processo, destinatário e autor vão perdendo as suas feições,
transformando-se em anônimos” (2013, p.76). Essa falha na comunicação, conforme
78
Assim como Saavedra faz em seus romances, Rancière acredita que a interpretação é
construída por meio do espectador. Suas observações são acerca do teatro, porém, podemos
trazê-las para nossa análise. Na construção da interpretação, não há certo nem errado: tudo é
possível, mas o importante é que o espectador fique em atividade:
“Você me dizia que tudo era arte, qualquer coisa que você quisesse, arte, que
a arte dependia não do objeto, mas do nosso olhar (...). Lembro que comentei,
então basta estar no museu para que seja arte, e você me disse, basta, se você
quiser depender do museu, mas se você for além dele, basta que você olhe
para o objeto ou acontecimento e o insira num contexto artístico. Arte não é
objeto, é contexto, e o contexto quem decide é você” (SAAVEDRA, 2010, p.
13).
A sua opção pelo som pode ser compreendida como um recorte feito pela narradora:
ela escolheu o som para melhor atingir seu interlocutor, pois ele também capta o silêncio, que
possui significado.
Desse modo, Érika faz um recorte ao usar apenas o seu gravador para gravar os sons
das paisagens e compor seu diário. Essa delimitação utilizada por ela é uma escolha que
determina seu olhar subjetivo: é o olhar que ela tem sobre a paisagem, a partir de seu luto, que
a motiva o compor o seu diário. Ela se insere nessa paisagem e, por isso, é impossível manter
a objetividade. O uso de tal recorte, entretanto, não exclui que há algo mais do que ela grava e
é isso que Alex afirma em seu discurso quando fala sobre o silêncio. É nessa suposta
“ausência de som”, nesse vazio, que se constrói o significado, para além até do que ela tinha
previsto.
las18. Assim, pode-se perceber que o romance também aborda a sua própria existência
enquanto problematização, já que ao seu término, as gravações se transformam em uma
instalação. A presença e a importância da arte para a narrativa pode ser exemplificada pelo
seu próprio título, que é mais comum para um quadro de arte do que para um romance.
Assim, a narrativa de Saavedra também busca a definição de um conceito de arte nos tempos
atuais, em que se tenta alcançar a figura do outro, ligando-se a ele, para então começar a
problematizar as relações humanas.
A arte é feita com atividades e objetos do cotidiano. A arte, conforme Alex afirma,
pode ser tudo, somente depende do olhar daquele que vê. Assim, Paisagem com dromedário
expõe duas questões: Érika faz um objeto artístico ao falar sobre sua experiência e seu
remorso, em relação e por meio de sua intimidade e, ao mesmo tempo, a narradora tem a
preocupação com o endereçamento. Seu objeto de arte feito a partir de seu diário não se
encerra em si: é aberto para que haja interação com o seu espectador. Ainda de acordo com
Bourriaud, a arte é permeada por essa troca, pela transitividade que ocorre entre o espectador
e o mundo, por meio do objeto:
18
Em Estética Relacional (1998/2009), Bourriaud afirma que a arte relacional é “uma arte que toma como
horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço
simbólico autônomo e privado (...) o artista deve assumir os modelos simbólicos que expõe: toda representação
(mas a arte contemporânea cria modelos, e não propriamente representações; ela se insere no tecido social sem
propriamente se inspirar nele)” (grifos do autor, p.19 e 24-25)
82
“(...) a arte representa uma atividade de troca que não pode ser regulada por
nenhuma moeda, nenhuma „substância comum‟: ela é distribuição de sentido
em estado selvagem – um troca cuja forma é determinada pela forma do
próprio objeto, e não pelas determinações que lhe são exteriores (...) o que ele
produz, em primeiro lugar, são relações entre as pessoas e o mundo por
intermédio dos objetos estéticos” (BOURRIAUD, 1998/2009, p.59).
ouvir tudo o que é dito. Dessa maneira, Paisagem com dromedário pensa a arte diante das
diversas possibilidades de atingir esse outro indefinido. É nessa tentativa de (re)estabelecer a
comunicação com ele, de afetá-lo que o romance também se problematiza enquanto arte: é
ainda possível atingir o outro do modo como desejamos?
“Isso me faz pensar que talvez ele, o leitor – o espectador – seja o terceiro
necessário para que a relação exista, para que a comunicação aconteça.
Talvez a arte sempre pressuponha uma relação triangular: artista-público-
destinatário (...). Parece possível pensar que nessas relações triangulares se
espelha a relação entre literatura e leitor” (KLINGER, 2013 p.76).
Ao pensarmos a literatura como comunicação, ela pode ter como destinatário qualquer
pessoa, mesmo sendo direcionada a alguém. Conforme Silviano Santiago afirma em “Singular
e anônimo”, o destinatário é anônimo, o nome dele pode ser assumido por qualquer pessoa e é
dessa maneira que o leitor assume o lugar do interlocutor nas gravações de Érika. Assumir
esse lugar somente acontece quando, de acordo com as palavras de Silviano, o leitor permita
“que a linguagem exista como ela é – uma travessia para o outro” (SANTIAGO, 2002, p.70).
***
A minha travessia por Paisagem com dromedário pode ser definida em uma palavra:
possibilidade. No início desta caminhada, eu precisava explorar as várias possibilidades
abertas pelo romance. Porém, ao analisá-lo neste trabalho, elas não se encerraram, pelo
contrário, expandiram-se. Ao compreendermos que a interpretação da arte e da literatura
depende da leitura subjetiva do leitor, infinitos caminhos se abrem e estes jamais podem ser
encerrados. O romance de Saavedra mostra muito bem isso ao refletir sobre o conceito de arte
que pode ser aplicado à literatura: não há uma interpretação correta e fechada em si mesma,
ela é aberta a diversas possibilidades, dependendo da nossa leitura. As gravações servem para
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qualquer pessoa, mesmo sendo destinadas a Alex: o último parágrafo nos mostra que, embora
ele seja o destinatário, ao se tornarem um objeto de arte, elas também são destinadas a nós.
Assim, Paisagem com dromedário reflete sobre a literatura enquanto comunicação: ainda que
seja falha, ela é uma travessia para o outro.
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