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As Forcas Do Jare Movimento e Criatividavidade
As Forcas Do Jare Movimento e Criatividavidade
As forças do jarê
Movimento e criatividade na religião de
matriz africana da Chapada Diamantina
Rio de Janeiro
2013
Gabriel Banaggia
As forças do jarê
Movimento e criatividade na religião de
matriz africana da Chapada Diamantina
________________________________________
Marcio Goldman
________________________________________
________________________________________
Miriam Rabelo
________________________________________
Carmen Opipari
________________________________________
Jérôme Souty
460 p.
A Marcio Goldman, muito mais do que somente meu orientador, por uma convivência
tão plena de ensinamentos que me deixa constantemente incapaz de eleger qual entre tantos
seria afinal o principal motivo de minha admiração por ele.
Aos demais professores que compõem minha banca, Eduardo Viveiros de Castro,
Miriam Rabelo, Carmen Opipari e Jérôme Souty, por não só aceitarem gentilmente o convite
para participar da defesa como terem sido, cada qual a seu modo, absolutamente inspiradores.
–––
A meus amigos ligados ao jarê de Lençóis, bem como àqueles que conheci
predominantemente por meio deles: Ademário, Alessandro, Alice, Almerindo, Áurea, Betão,
Bilico, Bina, Buda, Ceci, Conceição, Coquinho, Corró, Cosminho, Da Maré, Daiane, Daniel,
Daso, Delza, Delzuíta, Dezinha, Didi, Dilza, Dina, Dinha, Eva, Gelinho, Guilé, Jerônimo,
Julinda, Krisna, Leninha, Lourdes, Lúcia, Maria, Marileide, Milton, Mussum, Nalvinha,
Nêga, Nena, Neto, Norma, Téinha, Raimunda, Ró, Samara, Sandoval, Sílvio, Tuta, Valdelice,
Valdelice, Vanvan, Vâny, Wilson, Zefinha, Zuzinha. Espero que essa tese possa fazer jus ao
tanto que me ensinaram.
Aos demais amigos que fiz, e conhecidos com quem tive contato mais significativo,
em Lençóis, não necessariamente ligados ao jarê: Alcino, Alexandre, Amy, André, Aninha,
Beá, Betukka, Calil, Carminha, Célia, Clésia, Dan, Dani, Daniela, Danilo, Delmar, Dodó,
Domingas, Edson, Eládio, Evandro, Gilson, Gilvano, Gina, Hugo, Hury, Izete, Jacy, Jair,
Joana, Joana, Joana, Joaquim, Juanita, Kelly, Keu, Kim, Léo, Lisso, Luanda, Maísa, Mano,
Mara, Mariana, Natalie, Neide, Ninha, Nivalda, Olivia, Roberto, Saci, Saskia, Salvador,
Sarah, Suzy, Tabita, Tiãozinho, Túlio, Val, Vera, Vinny. Obrigado por tantos momentos.
A todas as crianças de Lençóis, essa legião de vida a quem tive o grande prazer de
ensinar e o maior ainda de com elas aprender.
–––
A Carlão, Gino, Iara, José Carlos, Marta, Samuel e Tânia, pelas acolhidas generosas e
pelas trocas intelectuais sempre estimulantes.
A Ana, André, Bia, Bruno, Cecilia, Clara, Consolação, Edgar, Julia, Lu, Marina,
Paula, Thiago, Virna, meus outros professores.
A Aline, Amanda, Bia, Bruno, Camila, Clarisse, Edgar, Eric, Felipe, Felipe, Felipe,
Guilherme, Indira, João, Karen, Kleyton, Laura, Luan, Malu, Manu, Marcelo, Marcos, Maria
Elvira, Mariana, Orly, Pedro, Raphael, Rogério, Suzane, Tainah, Wal: minha experiência no
Museu não teria sido a mesma sem vocês.
A Ana, Antonia, Chubby, Fred, Gustavo, Gustavo, Ligia, Pedro, Renato, Romulo, Sal,
Tiago, Uirá, Vitor, o pessoal que nem sempre está perto mas que está sempre por perto.
–––
A Cabeça, Carol, Débora, Henrique, Mayra, Tamara, Tati, Vargas, as amizades novas
que já nasceram antigas.
A todas as pessoas de minha família, em especial meus pais, por terem me dado apoio
incondicional, ainda que nem sempre tenha sido fácil. Se pude chegar até aqui, em grande
parte foi por causa de vocês.
A Ai, Baeta, Bob, Buiu, Clara, Cyro, Dudu, Fê, Flavia, Flavio, Galo, Gama, Guta,
Luisa, Marcello, Marília, Marins, Marta, Pric, Sassá, Serginho, Sylvia, Tarsila, Timaum:
desse ano não passa, pessoal. Obrigado por caminharem comigo.
–––
BANAGGIA, Gabriel
2013. As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da
Chapada Diamantina. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Rio de
Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Essa tese é um estudo do jarê, religião de matriz africana existente somente na Chapada
Diamantina, no centro do estado da Bahia, e que foi objeto de pouquíssimos
trabalhos antropológicos até hoje. A tese foi composta com base em doze meses contínuos de
trabalho de campo, a partir da cidade de Lençóis, considerada pelos adeptos o berço da
religião e um de seus principais polos de difusão para o restante da região. Ainda de acordo
com os adeptos, o jarê foi elaborado pelas “nagôs”, senhoras negras que, no século XIX,
vieram para a região no surto de povoamento desencadeado pela descoberta de diamantes nas
serras da Chapada.
Para compreender o jarê contemporâneo, a tese recorre não só às muitas versões da história
local como às recentes transformações pelas quais a região tem passado, com o surgimento do
Parque Nacional da Chapada Diamantina desembocando no fim do garimpo e gerando uma
economia voltada para o ecoturismo. A etnografia se concentrou em três casas de culto
aparentadas, cujos líderes tiveram de se reorganizar após o falecimento do curador que
iniciara a maior parte de seus adeptos e fora um dos maiores mestres do jarê de Lençóis. A
tese apresenta os modos como os filhos-de-santo manejam um sistema de energias de modo a
obter efeitos diversos, mobilizando criativamente as forças do jarê.
Palavras-chave
BANAGGIA, Gabriel
2013. As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da
Chapada Diamantina. Thesis for Doctor of Philosophy in Social
Anthropology. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.
This thesis is a study of jarê, an African matrix religion that only exists in the Chapada
Diamantina, located in the centre of the state of Bahia (Northeast Brazil). To this day jarê has
been the object of very few anthropological studies. The thesis was based on twelve
continuous months of fieldwork, focusing on the city of Lençóis, considered by the adepts to
be the cradle of the religion and one of its main hubs of diffusion to the rest of the region.
Also according to these adepts, jarê was developed by the nagôs, old black ladies who came
to the region in the nineteenth century during the population surge triggered by the discovery
of diamonds in the mountain ranges of the Chapada.
To understand contemporary jarê, the thesis draws on not only the many versions of local
history but also on the recent transformations that the region has been undergoing, with the
establishment of the Chapada Diamantina National Park. This has resulted in the end of
diamond prospecting and has given rise to an economy based on ecotourism. The ethnography
focused on three related cult houses, whose leaders had to reorganize themselves after the
death of the healer, one of the greatest masters of the jarê, who had initiated most of their
adepts,. The thesis presents the ways in which the sons in sainthood manage a system of
energies in order to obtain various effects, creatively mobilizing the forces of jarê.
Keywords
– Clarice Lispector
Introdução Chegar 1
Capítulo 1 Pisar
1.1 Lençóis 22
1.2 Excursos 48
1.3 Caminhos 65
1.4 Criatividades 78
1.5 Profusões 86
Capítulo 2 Dançar
2.1 Negritudes 94
Capítulo 3 Tombar
Bibliografia 362
Índice 381
Anexos
I Perfis 383
II Mapas 385
IV Cantigas 426
Introdução – Chegar
foi oferecido algumas vezes por um dos maiores amigos que fiz durante a pesquisa,
especialmente quando falava a respeito dos motivos que o levaram a não ser aprovado em
nenhum dos exames de ingresso em universidades públicas que havia prestado. Com tom de
apenas ligeira indignação, ele acrescentava: “O vestibular quer medir o conhecimento escolar,
mas não o que uma pessoa sabe”. Mesmo quando afirmam valorizar o saber oral tradicional,
escrito: codificá-lo, registrá-lo e removê-lo do local onde havia sido constituído, privando-lhe,
no processo, de parte de sua potência. Um dos objetivos dessa tese envolve encarar essas
críticas e contribuir para a alteração desse quadro, tanto se fundamentando numa apreciação
do conhecimento tradicional naquilo que ele possui de interessante quanto mobilizando seu
campo, esse trabalho acadêmico visa lidar com questões levantadas por desenvolvimentos
uma inversão que possibilite que os mecanismos do pensamento antropológico sejam afetados
por aquilo que as pessoas com quem se estuda dizem e demonstram a respeito da empreitada e
de seus pressupostos. Para tanto, faz-se necessário investir em operações de simetrização que
quem a pesquisa é realizada – compreensíveis para leitores que não dispuseram do mesmo
acesso aos ensinamentos em questão (Goldman 2008: 6-8). Trata-se, dessa forma, de diminuir
2
ativo um potencial desestabilizante que não somente incide, de maneira mais direta, sobre os
modos dominantes de pensar e definir a realidade como estabelece conexões com as forças
2011: 424).
Essa tese é também fruto de algumas das conclusões a que cheguei em minha
com base em – outros autores (Goldman 1984: 123; Brown 1986: 227; Cavalcanti 1986: 98-
99; Serra 1995: 58-59; Goldman 2005: 105-106), ali defendi que os estudos contemporâneos a
respeito das religiões de matriz africana no Brasil poderiam ser renovados por meio de uma
série de opções que incluíam, em primeiro lugar, considerar as dimensões não conspícuas da
vida mística dos membros dos terreiros e do cotidiano de uma comunidade de culto nos
momentos não necessariamente ligados aos rituais religiosos. Em segundo lugar, para abdicar
podem acarretar para a prática da pesquisa. Por último, numa escolha inextrincavelmente
tanto política quanto metodológica – e conectada à anterior –, recusar assimetrias que fariam
prática, como sugerido, estimularia a retomada de estudos que também levassem em conta
aspectos rituais e simbólicos dessas religiões, a serem descritos de forma detalhada a partir da
experiência etnográfica.
3
localizada no centro do estado da Bahia, descrita de modo mais detido adiante 1. Até aquele
momento só haviam sido realizadas duas pesquisas sobre o jarê, que serão apresentadas de
forma resumida abaixo, bem como se contava um espaço de tempo de mais de 20 anos da
realização do trabalho de campo que embasou a mais recente delas. Estudar o jarê na
religião de matriz africana que não se localiza no litoral, domínio etnográfico no qual
historicamente se concentra a maior parte das pesquisas da área no Brasil (Maxado 1998: 27).
aproximação mais íntima com o cotidiano dos adeptos da religião mesmo nos momentos em
que não estavam lidando com afazeres diretamente ligados aos cultos.
proposta cuja retomada havia sido recentemente sugerida (Serra 1995: 10, 129; Goldman
2009: 107-108 nota 3), elaborando um estudo sinóptico das religiões surgidas na diáspora
negra, possibilitado pela existência, nos dias de hoje, de uma base etnográfica e conceitual em
moldes contemporâneos mais ampla do que a que se costumava dispor há alguns anos2. Para
tanto, a proposta é encarar essas religiões sob uma perspectiva transformacional, considerando
que as diferenças existentes entre elas podem ser pensadas enquanto transformações umas das
1
Ver mapa do entorno da região estudada no anexo II.
2
Como os trabalhos de Anjos (2006), Cardoso (2004), Corrêa (1992), Halloy (2005), Iriart (1998), Johnson
(2002), Opipari (2004), Sansi (2003), Segato (1995) e Wafer (1991), além de outras menos recentes como os de
Cossard (1970; 2006), Leacock & Leacock (1972), Lima (1977) e Serra (1978). Entre as teses dos alunos que
fazem parte desse grupo de pesquisa já se encontram concluídas as de Edgar Rodrigues Barbosa Neto (2012),
Maria da Consolação Lucinda (2012) e Paula Siqueira (2012), às quais deverão se somar, além desta, as de Clara
Mariani Flaksman e Bianca Arruda.
4
outras, sugerindo que todas podem fazer parte de um contínuo heterogêneo. A opção pela
utilização do termo matriz na designação desse conjunto de religiões se reporta a uma dupla
significação: ele pode ser entendido ao mesmo tempo em seu sentido generativo – respeitando
a utilização nativa que as relaciona a uma África não necessariamente real, imaginária ou
simbólica, mas sobretudo existencial – como em seu sentido matemático – que evidencia
De todo modo, essa tese propõe ser antes de tudo uma etnografia, seu objetivo
dotado de uma relativa independência tanto do pesquisador como do objeto estudado. Para
tanto, ela busca apresentar o ponto de vista dos adeptos do jarê e, quando possível, estendê-lo
podem ser dirigidas – para nossos próprios conceitos, transformando-os criativamente. Nessa
acepção, a produção de uma etnografia depende da capacidade de ouvir o que os nativos têm a
dizer e de levar a sério suas hipóteses e proposições o máximo possível, de modo a ser
continuamente posto em movimento por elas (Goldman 2009: 118 nota 11, 130). O resultado
final desse processo é um registro textual que não é mera descrição, mas que se constitui
numa disposição (“deployment”) entremeada que procura evitar ter de acrescentar explicações
àquilo que se descreve: trata-se de uma narrativa plena de atores cujas reflexões encontram-se
prescinde de conexões com outras práticas, por mais que recuse a necessidade de recorrer a
permite a multiplicação das versões que podem ser postas em contato e se iluminar
transportando – não sem alterações – para o ritual o método da análise mitológica proposto
por Lévi-Strauss (Goldman 2009: 110-111; Banaggia 2011: 358-359; Goldman 2011: 418).
contemporaneidade e sua história, com isso querendo, mais do que comprovar continuidades
criativamente3. Por outro lado, o jarê é ocasionalmente aposto tanto a suas diferentes
envolvidas.
O jarê foi observado pioneiramente por Ronaldo de Salles Senna, pesquisador nascido
de São Paulo. Os textos de Senna (1973; 1984; 1998; 2004), baseados em pesquisas empíricas
feitas nas décadas de 1970 e 1980, falam a respeito dessa religião, caracterizada como uma
ao livro de Senna (1998), sua obra mais completa e que é também a versão publicada, com
3
Trata-se, como já se falou a respeito de outras diversidades socioambientais, não de “uma questão de
preservação, mas de perseverança”, fazendo então não constatações analíticas, mas reconhecendo os efeitos
concretos de uma luta travada permanentemente (Viveiros de Castro 2011: 9).
6
contribuições do autor ao estudo do jarê, tendo visitado mais de uma centena de casas de culto
(: 38, 76).
Segundo o autor, o jarê seguiu o mesmo movimento, tendo surgido e se consolidado nas
difundido a partir delas. Daí, se espalhou para os municípios que não possuíam diamantes,
jarês dessas áreas, prossegue ele, mais ligados ao catolicismo popular rural, enfatizaram os
rituais de cura, enquanto os realizados pela população garimpeira, de origem mais marcada
memória étnica, mais ligadas ao “vetor afro-brasileiro” da religião (: 36, 41, 49, 75, 79, 86-
87).
componentes linguísticos e relatos dos mais antigos habitantes da região, tendo ocorrido na
país (: 65, 68). A grande variabilidade das expressões religiosas da região não impede que
sejam referidas pelo mesmo nome, já que o jarê é “um rótulo sob o qual se abriga uma
época, de duas a três centenas de casas de jarê na Chapada Diamantina, distribuídas em pouco
7
mais de uma dezena de municípios (: 83). Em sua obra, Senna chama atenção para as
possíveis divisões que formam os conjuntos de espíritos mobilizados no jarê, bem como para
as maneiras como, por meio de cantigas, essas entidades são chamadas a comparecer nos
terreiros tomando os corpos dos filhos-de-santo, sendo cultuadas e por fim deixando o espaço
ritual (: 115-124).
Falando a respeito dos rituais de curas, o autor indica como eles ocorrem com base em
um embate de forças que devem ser postas em contato e movimentadas umas pelas outras,
maiores líderes do jarê, prossegue, funcionam como espécie de “para-raios”, atraindo para si
determinadas influências que em seguida serão capazes de canalizar (: 164). Senna também
trata das configurações comuns do campo religioso nas cidades da Chapada, do ponto do vista
dos adeptos do jarê, mostrando as intercessões e afastamentos que ali se processam (: 170-
174). O autor fala igualmente da “visão de mundo do jarê”, discorrendo sobre o papel dos
líderes do culto e suas ações terapêuticas e rituais, bem como a respeito da constituição das
entidades às quais os adeptos têm acesso (: 175-228). Boa parte do livro de Senna é dedicada
mesmas, bem como a um apanhado bastante amplo do andamento de uma cerimônia abstrata
para exemplificar o que costuma transcorrer durante uma ocasião ritual qualquer (: 115-158).
Como ele próprio afirma de saída, trata-se de uma pesquisa “socioantropológica” realizada
com “apoio etnográfico” (: 1), oferecendo assim um sobrevoo bastante abrangente e inédito
do jarê.
O único outro trabalho acadêmico de porte sobre o jarê é a excelente tese de doutorado
baseada em pesquisa de campo realizada no final da década de 1980. Trata-se, como será
4
A tese não foi publicada como livro, sua autora tendo escrito artigos a respeito do jarê (Rabelo 1993; Rabelo &
Alves 1997; 2009) e tendo se dirigindo a outros campos etnográficos.
8
derivadas do término efetivo do garimpo na segunda metade dos anos 1990, ainda que a
dependência da economia garimpeira do local estudado pela autora não seja do mesmo grau
daquela existente na região das Lavras Diamantinas (: 97). O trabalho de campo de Rabelo foi
emancipado deste. Ainda que trate também das Comunidades Eclesiais de Base, já então em
declínio no local, o principal tema da tese de Rabelo é o jarê de uma localidade voltada para a
produção agrícola e não para o garimpo. Tanto o jarê como aqueles agrupamentos de
conectados à realidade local, numa perspectiva etnográfica que aprofunda inúmeras das
intuições inicialmente apontadas por Senna – além de apresentar diversas outras originais – e
ideia de um mercado de bens simbólicos postuladas por determinadas análises (: 3-7, 12, 15-
vivenciam suas imagens religiosas, isto é, como elas são criadas, usadas, interpretadas e
bem como indicando de que forma o jarê apresenta um contraponto à visão da historiografia
tradicional (: 25-26). Entre outras características do catolicismo popular, que ali influencia o
jarê de forma mais pronunciada do que nas regiões diamantíferas, a autora destaca as trocas
que permeiam a relação entre santos e devotos, marcada pela proximidade daqueles que no
passado viveram como estes agora vivem (: 52-58, 147). Rabelo registra a história local
também do modo como é contada pelos habitantes de Nova Redenção, distrito voltado para a
9
grau ainda menor do que ocorre nas áreas com extração do diamante, não são vistos como
guardiões da memória africana como costuma ser o caso no candomblé (: 82-86, 111). A tese
espaço ritual de uma casa de culto e dos frequentadores dos terreiros (: 111-180).
As experiências de cura no jarê investigadas por Rabelo lhe mostraram as formas pelas
mundo cotidiano (: 189-191). Com base no processo divinatório – que em geral consiste num
(: 195). No jarê, a autora prossegue, a cura se dá por meio da aceitação dos termos de uma
relação duradoura entre o doente e um ou mais entes externos e intrusivos com quem haverá
um processo de negociação, deixando de lado a ideia de que determinadas alterações são fruto
da perturbação de estados mentais interiores (: 202-203, 222 nota 6). A cura, como explica
sua tese, se processa enfim por meio de um ingresso na narrativa do paciente, com o chefe do
oferecendo um relato sobre as incorporações nos terreiros e indicando também de que modo
modelo proposto pela tese de Senna para o culto como um todo na Chapada Diamantina. Nas
passagens que elucidam alguns dos muitos sentidos que pode receber o primeiro dos dois
10
termos que dão título à tese de Rabelo, a autora mostra como também é fundamental o caráter
de entretenimento das ocasiões cerimoniais, lembrando que no jarê não são apenas os adeptos
que se divertem: as próprias entidades têm como motivo expresso virem às casas de culto para
brincar e vadiar, tornando os eventos celebrações duplas (: 268-270). Surgem como objeto de
culto no jarê, a tese prossegue, tanto a alegria em si como a beleza, características centrais
participação ativas (: 271, 274-275). Antes de se voltar para a descrição das Comunidades
Eclesiais de Base e uma comparação entre estas e o jarê (: 303-389), a autora indica a
Senna de realizar estudos etnográficos detalhados do jarê nas duas grandes áreas da Chapada
Diamantina que ele propõe distinguir. Enquanto o estudo de Rabelo teve por base a
investigação do culto num distrito agrícola, minha etnografia se dedica aos jarês da cidade de
Lençóis5, considerada pelos adeptos e pela literatura o berço da religião e tendo sido
1990: 384; Senna 1998: 36, 78-79, 86). De modo similar, enquanto o estudo de Rabelo foi
realizado com base numa maior proximidade com as mulheres (Rabelo 1990: 168-173), meu
próprio trabalho de campo muitas vezes foi realizado junto aos homens que frequentam os
jarês, terminando numa aposta de que ambos os trabalhos possam suprir os intervalos um do
outro de maneira frutífera, ponto que será retomado ao longo dos capítulos da tese. De
5
O anexo II conta com um mapa da cidade.
11
cidade de Lençóis, sem pretender que seus dados possam ser estendidos para jarês mais rurais
como era o de Nova Redenção, a respeito dos quais ainda não há novos estudos6.
No dizer de seus adeptos, a palavra jarê pode designar tanto a religião de maneira geral
como qualquer uma de suas ocasiões rituais: diz-se tanto “gosto muito de jarê” como “o jarê
do último sábado foi ótimo”. Seu primeiro pesquisador faz recurso a algumas possíveis
ou “quase cair ao solo” ou “cortar através” (Cacciatore 1977: 158 apud Senna 1998: 69),
ambas bastante relevantes por enfatizarem aspectos do culto que serão detalhados
posteriormente. Outra alternativa aventada pelo mesmo autor é que jarê seja uma corruptela
de “njale”, nome de uma cerimônia de caçadores que habitavam regiões que hoje são Nigéria
e Benim (Yeda Pessoa de Castro, comunicação pessoal apud Senna 1998: 69 nota 36). Como
ficará claro, o recurso a essas fontes bibliográficas segue o mesmo motivo pelo qual a maior
parte das citações que surgirão ao longo do corpo da tese será feita: tanto documentos
históricos como a literatura acadêmica disponível são mobilizados antes de tudo com o
bibliográficas existentes. Dados técnicos iniciais sobre a religião e o local de estudo são
6
De todo modo, há ao menos uma outra antropóloga se dedicando ao estudo do jarê contemporâneo, a
doutoranda da Universidade de Brasília Carolina Pedreira, sob orientação da professora Rita Laura Segato, com
trabalho de campo realizado no município de Andaraí.
12
Meu trabalho de campo foi realizado durante 12 meses ininterruptos, entre maio de
2009 e maio de 2010, residindo na cidade de Lençóis, ao longo dos quais conheci uma
quinzena de casas de culto distintas, a maior parte situada na área desse município e algumas
poucas localizadas na cidade vizinha de Andaraí. A soma de todas as celebrações rituais a que
compareci encontra-se por volta de três dezenas, a maioria concentrando-se em três casas de
jarê de Lençóis nas quais a pesquisa terminou por se centrar, como será detalhado adiante.
Cada cerimônia pode transcorrer por uma quantidade variável de horas e se repartir também
ao longo de mais de um dia, sendo incomum que durem menos de 5 ou mais de 10 horas
seguidas em cada dia, bem como dificilmente acontecendo por mais de três dias consecutivos
celebração os frequentadores sensíveis à ação das entidades costumam chegar a receber até
uma dezena delas por noite, resultando em eventos nos quais é possível que aconteça até perto
de uma centena de incorporações distintas nas casas com maior número de adeptos. De todo
modo, e em muitos aspectos até de forma mais importante, foi igualmente fundamental
acompanhar os adeptos em seu cotidiano fora das ocasiões rituais, tanto nos momentos
próximos como nos mais distantes dos jarês. Muito do que pude aprender a respeito da vida
tanto no culto como fora dele se deveu a compartilhar com os lençoenses seu dia a dia
tipicamente sossegado.
um planalto extenso de altitudes médias variando entre 800 e 1.000 metros, pontuada por
igualmente um divisor de águas entre a bacia do São Francisco e os rios que se dirigem
13
diretamente para o Atlântico, estendendo-se ela própria pelas bacias dos rios Paraguaçu e
no centro do estado da Bahia, representando 7% de sua área total. De modo geral, quando
diretamente a sua porção centro-leste, área que efetivamente é somente a da chamada Serra do
três tipos de vegetação distintos, reunindo florestas de planície a leste, caatinga a oeste e
vegetação de altitude nas serras. A área das Lavras Diamantinas especificamente pode ser
marcada pelo território que se espalha por um quadrângulo cujos vértices seriam as cidades de
Lençóis, Andaraí, Palmeiras e Mucugê. É praticamente essa mesma área que marca os limites
do Parque Nacional da Chapada Diamantina, que por sua vez representa menos de 4% da área
total das serras da Chapada, e cujo processo de surgimento será descrito posteriormente
Diferentemente das demais áreas da Chapada, em geral bem mais secas, a Serra do
Sincorá recebe chuvas abundantes em determinados períodos do ano, a estação das águas
junho ou julho costuma haver uma breve seca, e o índice pluviométrico anual varia entre
1.000 e 2.200 milímetros por ano. Há considerável variação diurna de temperatura, com
endêmicas, apesar da baixa capacidade do solo de reter água. Superpõem-se na região dois
orográficas. As temperaturas médias são influenciadas pelo efeito atenuador da altitude, com
14
médias maiores no sopé da serra, a 400 metros acima do nível do mar, em torno de 23ºC, e
mais baixas, de 19ºC, acima dos 1.000 metros de altitude. As temperaturas mínimas anuais
ficam em média em torno dos 15ºC, e as máximas por volta de 32ºC. Os rios da Serra do
Sincorá mostram regime torrencial em função dos solos rochosos, arenosos e rasos,
características em grande parte também ampliadas pela atividade garimpeira (Moraes 1963:
de campo a respeito do jarê, situa-se no nordeste da Serra do Sincorá, num vale 400 metros
município, apresentados aqui de forma abreviada, passam de estimados 30 mil quando de seu
surgimento a computados 23 mil em 1872 (incluídos 1.858 escravos), passando por períodos
de oscilação e decréscimo ainda mais acentuado, com 13 mil em 1900, 8 mil em 1920, 11 mil
em 1940, 10 mil em 1950, 8 mil em 1960, 5 mil em 1970, 6 mil em 1980, 7 mil em 1990, 9
mil em 2000 até os atuais 10.368 computados em 2010. Ao longo do século XXI, pela
primeira vez desde que o dado encontra-se disponível, registra-se maioria acentuada
município atualmente. Como será visto à frente, a marcada variação na população de Lençóis
deveu-se menos às alterações de seus limites, que foram transformados ao longo do tempo em
população de Lençóis confirma a nítida maioria de negros, que compõem quase 85% dos
habitantes7 (Acauã 1847: 229; Pereira 1910: 53, 87; Moraes 1963: 26, 35, 182; Gonçalves
1984: 27-28; Funch 2007: 75; Ganem 2001: 18; Araújo, Neves & Senna 2002: 137 nota 29,
7
Somando-se as classificações de cor preta (2.123 habitantes) e parda (6.630) utilizadas pelo censo. A mesma
pesquisa indica a existência de 1.417 recenseados de cor branca, 148 amarela e 50 indígena (IBGE 2010).
15
Lençóis terá sua história descrita no corpo da tese, tanto a mais tradicionalmente
recolhida pela historiografia como aquela contada por seus habitantes até os dias de hoje. A
Folclore, de São Paulo, realizou um estudo amplo e bastante detalhado, com dados recolhidos
em repetidas viagens feitas entre os anos de 1976 e 1979 (Gonçalves 1984: 7). Existem
envolvendo sua população garimpeira, escritos por importantes autores da literatura regional e
nacional, entre eles Lindolfo Rocha, Herberto Sales, Urbano Duarte e Afrânio Peixoto, os dois
últimos tendo sido membros da Academia Brasileira de Letras. Parte da literatura acadêmica
disponível sugere sua utilização como fonte de acesso às realidades passadas com as quais o
presente da Chapada Diamantina pode ser igualmente comparado, algo que já foi inclusive
feito por outros pesquisadores (Pina 1997; Araújo, Neves & Senna 2002: 149 nota 69; Neves
2002: 36-37). Sua apreciação, contudo, ficou para além dos limites propostos pela presente
tese.
Na realização do trabalho de campo, optei por não conceder qualquer primazia aos
discursos dos líderes religiosos, procurando levar em consideração a maior gama possível de
estabelecidas com os mais variados adeptos do jarê, definidos como quaisquer pessoas que
gravitam em torno de uma casa de culto, desde os filhos-de-santo mais fervorosos aos
frequentadores menos habituais mas que ainda assim podem ser considerados como parte
desse coletivo – até porque são poucas as ocasiões nas quais os adeptos realizam distinções de
pertencimento entre si. Nenhum nome próprio foi alterado, o que não impediu que por vezes,
16
quando necessário, a identificação de pessoas específicas fosse dificultada, tema que de todo
maiúsculas pois na região são praticamente parte dos nomes próprios de algumas pessoas. Ao
longo dos capítulos, preferi manter todas as referências bibliográficas em notas de rodapé,
como comentários apostos ao texto principal, tendo igualmente realizado todas as traduções
para o português de citações em língua estrangeira. Muitas vezes, em toda a extensão da tese,
decurso do mesmo, excetuando-se as ocasiões nas quais seria difícil proceder ao seu
indicam o ano do surgimento da edição original, quando conhecida, estando entre colchetes na
que um texto puder ser encontrado gratuitamente na internet, seu endereço é indicado. Aspas
duplas foram sempre utilizadas para transcrições bibliográficas e para elocuções nativas,
ficando as aspas simples reservadas para relativização de alguma ideia ou para citações feitas
no interior de outras.
Apesar de não haver dúvidas sobre a possibilidade de definir o jarê como uma religião,
como inclusive indica o subtítulo do trabalho, optei por denominá-lo, no corpo dos capítulos,
preferencialmente por “culto”. A decisão foi feita por dois motivos principais, em certa
primeiro lugar, porque o termo culto remete imediatamente a uma das características centrais
do jarê que é sua ênfase na veneração das entidades que chegam ao espaço ritual. Em segundo
lugar, porque o termo religião é dedicado pelos adeptos do jarê especificamente a tradições
cristãs – em Lençóis, tanto à católica como às evangélicas –, fato ligado também, como
8
De um lado, Senna (1998: 35 e nota 1) indica a preferência pelo uso da definição “seita” em oposição à de
“Igreja”, enquanto Rabelo (1990: 383), apesar de usar o termo religião também com alguma frequência, lembra
que os adeptos reservam-no exclusivamente ao catolicismo.
17
afirmam, à rigidez dos preceitos destas e, sobretudo, de sua atitude exclusivista em relação a
outros pertencimentos religiosos. Não ignoro de modo algum a importância dos usos –
inclusive para sua agregação no rol de religiões de matriz africana que se desenvolveram no
Brasil, conjunto ao qual ele, como todas as demais, tem bastante a acrescentar. De toda forma,
essa utilização ficará em suspenso no corpo dos capítulos da tese, que é eminentemente
Tratando de sua estilística, essa tese foi escrita como um dispositivo que proporciona
uma jornada – ou mesmo uma peregrinação –9, comportando distintas polifonias orientadas, a
cada capítulo, por guias específicos. A narrativa de cada capítulo é guiada por um interlocutor
distinto, cuja escolha se deu menos em função de sua história pessoal ou de qualquer suposta
representatividade do que como um meio de amalgamar seus próprios estilos pessoais aos
argumentos mobilizados pela tese. O recurso a esses guias busca igualmente produzir um
efeito específico de evadir qualquer grande divisão entre individual, de um lado, e social ou
cultural, de outro, fazendo com que as falas, histórias, hipóteses e análises oferecidas
enunciação que assim não seriam senão casos particulares por vezes exigidos pelo
forças. Dessa forma, são apresentados como mediadores contínuos e não como
9
De modo a que o leitor possa, por meio dela, tornar-se ele também um viajante, e não um turista, distinção feita
em função do grau de exaustão imaginativa do turista, interessado antes de tudo em consumir diferença: “O
turismo é a apoteose e a quintessência do ‘fetichismo da mercadoria’” (Bey 1994: 8).
18
intermediários, ou seja, são mecanismos que transformam os sentidos e forças que carregam
consigo em vez de transportá-los sem que sofram qualquer alteração, daí sendo preciso
considerar sua especificidade a cada vez que são mobilizados (Latour 2005: 38-40). Um dos
corolários dessa utilização envolve admitir que o mesmo se processa com o próprio etnógrafo,
(Goldman 2011: 425). Similarmente, o privilégio do discurso indireto deveu-se tanto pela
opção de evitar o uso de gravadores e entrevistas estruturadas, como será visto, quanto como
coronelismo muito tempo reinante de modo explícito na cidade e pelo garimpo de diamantes
por meio do qual a região se constituiu e chegou a ser o que é hoje. Trata, em seguida, da
transformações pelas quais tem passado em função do novo quadro. O capítulo aponta ainda
com os quais se defrontam, indicando também o humor e a criatividade como armas em suas
lutas cotidianas – sem que com isso ambos deixem de constituir formas de arte próprias.
Igualmente, fala de forma breve sobre as participações políticas em Lençóis, tanto nos
períodos eleitorais como fora deles. O capítulo conclui com considerações sobre alguns dos
festejos locais não necessariamente ligados ao jarê, além de uma interpretação a respeito de
19
de todo o capítulo são oferecidos detalhes sobre o período inicial do trabalho de campo.
ligados a ser – e a se dizer – negro em Lençóis, chamando atenção para o surgimento de uma
comunitários e religiosos. O capítulo prossegue tratando das formas como pesquisadores são
encarados na região, bem como registrando alguns dos aprendizados que culminaram tanto na
das conexões que se estabelecem entre o jarê e outras religiões na cidade, incluindo uma
enfatizando tanto sua inventividade quanto, em certos casos, o caráter burlesco que
compartilham com outras práticas. Surge aqui mais diretamente o jarê, sendo detalhados os
espaços nos quais o culto se desenrola, a estrutura de suas cerimônias, bem como suas
fim com a descrição dos principais rituais realizados no jarê, salientando a importância das
formas de parentesco que – tanto o culto como outras práticas – encetam, passando por
considerações a respeito do papel que possuem a terra e o solo para o bom andamento das
cerimônias.
em geral conectada à percussão dos instrumentos musicais mas não limitada a ela,
em torno do jarê, de entrevistas e filmagens aos registros escritos e fotográficos, tanto os que
sempre foram feitos pelos adeptos como os realizados no trabalho de campo, frequentemente
a seu pedido. A partir daí, trata da história específica de um dos maiores mestres do jarê de
que a memória de Lençóis guarda lembrança, transcrevendo sua trajetória do modo como foi
contada por aqueles que lhe eram próximos, em sua maioria filhos-de-santo da principal casa
de culto da região, por eles mantida viva de maneira orgulhosa. O capítulo termina
apresentando trajetórias de iniciação comuns pelas quais passam os líderes do jarê, contendo
O capítulo 4 começa a partir dos desfechos da trama com a qual o anterior finaliza,
apresentando uma nova história ligada aos rumos contemporâneos das casas de culto de
pessoalmente e nas quais fui sendo também inevitavelmente enredado. Continua, em seguida,
bem como fala a respeito das distintas eficácias que possuem fala e escrita nessa religião. A
seguir, aborda as diferentes entidades que se manifestam durante os cultos, além dos
processos pelos quais os frequentadores são tomados por elas e os meios pelos quais ambos
passam a existir como composições específicas, tanto nas cerimônias como fora das mesmas.
O capítulo se encerra com um exame das diversas forças em ação no jarê, sua configuração e
os modos pelos quais são habilmente manejadas pelos líderes das casas de culto para
promover curas e iniciações, numa terapêutica complexa da qual sempre podem fazer parte
efeitos inesperados.
21
inspiradas pelo que foi aprendido junto ao jarê, tanto no mesmo campo de investigação como
em outros próximos. Sintetiza então as principais contribuições oferecidas pela tese para o
estudo das religiões de matriz africana no Brasil, bem como explicita algumas das influências
que a vivência no campo transmitiu para as formas de organização que esse texto terminou
por assumir. A título de arremate, finaliza com um último dado etnográfico que
motivo pelo qual foi igualmente deixado para depois do corpo dos capítulos. A conclusão é
seguida por um índice remissivo e quatro anexos, contendo o primeiro deles uma lista de
perfis que descreve brevemente alguns dos principais interlocutores que surgem por mais de
uma vez no corpo do texto – para ser consultada de modo a facilitar a rememoração das
histórias que apresentam –, o segundo mapas da região onde foi feito o estudo, o terceiro
fotografias às quais o texto fará referência e o quarto, por fim, uma coletânea de letras de
cantigas – da qual foram escolhidas aquelas usadas como epígrafes aos capítulos –
Capítulo 1 – Pisar
1.1 Lençóis
“Moço, se eu lhe disser, você não acredita...” Muitas das minhas conversas com Seu
Gilson começaram com ele dizendo essa frase, com um sorriso estampado no rosto, para logo
história ou de seus habitantes. Com ele pude aprender muito, especialmente nos primeiros
costumeira de alguém que havia nascido, como ele gostava sempre de frisar, 53 anos atrás,
bem como se criado naquela que era informalmente considerada a capital da região conhecida
como Chapada Diamantina. Seu Gilson trabalhava havia já muitos anos como servente no
único banco da cidade, tendo deixado de lado a atividade de garimpeiro à qual tanto seu pai
quanto seu avô haviam dedicado suas vidas inteiras. Gostava de comentar orgulhoso sobre a
estabilidade que encontrara em sua posição, sendo ele um dos funcionários mais antigos do
ficar por mais que alguns anos no exercício de suas funções. Em nossas caminhadas pela
cidade, era frequente algum conhecido se referir ao local onde ele trabalhava como o “Banco
Fui apresentado a Seu Gilson logo em meu primeiro dia na cidade, por meio de um
dos contatos feitos por telefone e correio eletrônico com pessoas que poderiam me ajudar a
me estabelecer por um tempo em Lençóis. A pessoa que nos apresentou me informou que eu
conheceria um senhor que, se fosse com a minha cara, seria como um pai para mim. Pouco
tempo depois me encontrava caminhando com Seu Gilson pelas ruas da cidade, tendo um
primeiro contato com sua geografia e com seus habitantes, bem como me acostumando à
rotina pacata dos lençoenses. Seu Gilson me ajudou a localizar algumas das outras pessoas
encontrar um local para ficar. Depois de visitar várias das pousadas da cidade, acabei optando
por ficar na única cujos donos eram naturais da Chapada, e por sinal amigos de Seu Gilson.
Ali residi durante os três primeiros meses do trabalho de campo, conhecendo pouco a pouco a
cidade é o grande amor que sentem por ela, bem como a saudade que lhes assoma caso por
um motivo qualquer precisem ausentar-se dela. “Quem bebe da água do Rio Lençóis sempre
volta”, me diziam. O rio em questão, que corta a cidade bem como a abastece de água ao
longo de todo ano (hoje em dia encanada e tratada pela companhia estadual de saneamento), e
também chamado de Rio Serrano, é visitado diariamente por grande parte da população, que
ali lava suas roupas e se refresca. Em sua margem norte localizam-se os bairros atualmente
São José, mais conhecida por seus próprios habitantes como o Sem-Teto, local de
10
Além do mapa da cidade contido no anexo II, ver fotos 1, 2 e 3 no anexo III.
24
onde me hospedei, localizada no bairro do Cajueiro, gostava de dizer que Lençóis era um
nome muito apropriado para uma cidade sossegada, como ela parecia ser na maior parte do
tempo. A tranquilidade que Dona Juanita atribuía à cidade, contudo, parecia ser tanto uma
desejo de que fosse mais profunda, como eu viria a descobrir. Depois de conhecer um pouco
melhor alguns de seus moradores, não eram poucos a me dizer que, apesar de adorarem sua
Uma das principais atividades a que se dedicam muitos lençoenses, conforme dizia
Seu Gilson, é inteirar-se da vida alheia, algo favorecido pela própria arquitetura das casas
mais antigas, com grandes portas ou janelas quase atingindo os tetos das fachadas, que
costumam ficar abertos a maior parte do dia11, excetuando-se o horário das refeições
principais. Ao andar pelas ruas da cidade, em geral bastante íngremes, já que Lençóis situa-se
num vale, é hábito dirigir o olhar para o interior das residências para cumprimentar seus
moradores bem como ficar a par de eventuais visitas e encontros que estejam acontecendo. A
sala é via de regra o primeiro cômodo, normalmente voltado para a rua, e a casa costuma
banheiro, terminando na cozinha em geral aberta para um quintal nos fundos. Se por vezes
expressam algum ressentimento por terem suas vidas em revista contínua, reclamando da falta
acontecimentos que por vezes preferiam ignorar, muitos dos habitantes de Lençóis igualmente
afirmam que preferem ter suas vidas em constante escrutínio a viver no anonimato das
grandes cidades. Na Chapada, dizem, mesmo que você viva sozinho jamais ficará
11
Ver foto 4 no anexo III.
25
As notícias de fato correm em grande velocidade pela cidade, da mesma forma como
os sons se espalham pelas serras, sua propagação facilitada pela ausência de carros e do
barulho dos grandes centros urbanos. Comentar a respeito de suas intenções na cidade, sejam
mais sobre a vida e história locais – uma das primeiras traduções que arrisquei para justificar
minha intenção de realizar uma pesquisa em Lençóis –, significa multiplicar ao menos por dez
o número de pessoas a quem se confia uma informação. Não era incomum me encontrar com
Seu Gilson à tarde e este fazer referência a uma conversa que eu tivera com outra pessoa pela
manhã do mesmo dia, mesmo que eu não houvesse feito qualquer menção ao acontecido.
Demorei um pouco a me acostumar com a abordagem bastante calorosa de pessoas que eu não
conhecia mas que já tinham ouvido falar a meu respeito por meio dos amigos que começava a
fazer. Somente mais tarde eu perceberia estar sendo habilmente testado pelos lençoenses a fim
base de sua economia, o trato com pessoas de fora, sejam da cidade, da região, do estado ou
mesmo do país, não é algo novo no cotidiano de sua população, pois há muito lida com a
ora basta mencionar que, com o passar dos anos, os nativos da cidade se acostumaram a não
esperar ver retornada a amabilidade e simpatia com que tratam aqueles que acolheram. Ao
contrário, os forasteiros que passam a morar em Lençóis são vistos como pessoas eternamente
insatisfeitas e exigentes, prontas a oferecer críticas ao passo que nem sempre dispostas a ouvi-
las. Enquadrar alguém como forasteiro leva em conta mais do que somente seu lugar de
origem ou nascimento, mas igualmente a cor de sua pele, seu modo de falar, a condição
12
Pontos aos quais retornarei posteriormente, nas seções 1.2 e ainda 1.1, mais abaixo, respectivamente.
26
econômica que aparenta, o tempo há que reside na cidade e a atividade econômica que nela
exerce. Algo que costumava irritar particularmente os muitos “gringos” que haviam se
mudado há algum tempo (ou consideravam a possibilidade de se mudar) para Lençóis era o
fato de continuarem a ser, em muitas ocasiões, considerados entre os “de fora”. Acredito que
um dos motivos para tanto reside também no fato de que entre aqueles continuamente
respeito da história e das histórias de Lençóis. Como procurei desde o início deixar claro não
figurarem entre os motivos de ter vindo morar em Lençóis nem as belezas puramente naturais
visitantes que optam por passar a morar na cidade – fui sendo associado a outro conjunto de
longo do século XVIII16. Nesse mesmo século, a descoberta de pedras preciosas na região do
13
Tema que terá maior desenvolvimento no capítulo 2, na seção 2.2.
14
A possível presença de indígenas na região será considerada no capítulo 4, na seção 4.3.
15
São citados “Fernão Dias Pais, Belchior Dias Moreira, Gabriel Soares, entre outros” (Moraes 1963: 30).
16
Incluindo o povoado de Santa Isabel do Paraguaçu, ocupando área onde à época em que escreve o cronista
distribuem-se os municípios de Lençóis, Andaraí, Palmeiras e Seabra (Moraes 1963: 32).
27
nordeste através do vale do Jequitinhonha até a região de Grão-Mogol, e daí pela Serra do
somente no início do século XIX, na área conhecida como Chapada Velha, onde
antes da publicação do monumental Viagem pelo Brasil18. Na região que viria a ser
O povoado de Lençóis, provavelmente ainda sem esse nome, começou a tomar forma
no final do século XVIII, com população esparsa advinda de locais próximos nos quais
significativas de diamantes nos rios da região, fato que atrairá para lá em muito pouco tempo
17
Desdobramentos acompanhados com interesse e celebrados à distância pela corte de Dom João V, em
Portugal, que em pouco tempo tomaria as medidas necessárias à cobrança do quinto sobre as pedras encontradas
(Moraes 1963: 30).
18
É o que se infere das muitas fontes (Pereira 1910: 71; Moraes 1963: 33, 65; Gonçalves 1984: 18; Araújo,
Neves & Senna 2002: 134 nota 12, 142-143 notas 43 e 44) que fazem referência a estes episódios.
19
Entre os anos de 1839 e 1844, pelo que se consta, fato que teve repercussões imediatas nos centros de poder do
Brasil e de diversos países da Europa (Leal 1846: 430-431; Acauã 1847: 249-250; Moraes 1963: 31).
20
É o que indicam documentos de posse de terras, inventários de arquivos públicos e depoimentos locais (Senna
1996: 18; Pina 2001: 182; R. Senna 2002: 230).
21
No caso de Lençóis esta concentração populacional inicial parece ter se dado no ano de 1844 (Senna 1996: 50)
ou 1845 (Pereira 1910: 46; Pereira 1937: 56-57).
28
Gerais pelo São Francisco, já acostumados ao trabalho com ouro e mesmo com pedras
hostes de escravos que exerceriam ocupações inúmeras22 na Chapada, somando-se aos que ali
já se encontravam23.
Há duas possíveis origens para o nome dado à cidade, ambas registradas na literatura e
contadas pelos moradores até os dias de hoje. De um lado, menciona-se o espetáculo formado
pelo conjunto de centenas de lençóis brancos que serviam como cobertura para as tendas
feitas nos acampamentos à margem do rio, quando dessa primeira corrida garimpeira. De
outro, especula-se que o nome se refira ao aspecto leitoso de determinados trechos do mesmo
curso de águas graças a seus muitos acidentes naturais ou ainda a uma de suas cachoeiras 24.
Lençóis cresceu em ambas as margens do rio com que divide seu nome, em forma de concha
tempo elevada à categoria de vila com o nome de “Commercial Villa dos Lençoes”, no ano de
185626.
Lençóis passou então a ser palco de diversos ciclos de grande produção e declínio da
cata de diamantes, bem como atravessou períodos de secas consideráveis que trouxeram fome
22
Entre elas as de vaqueiro, garimpeiro, armeiro, pedreiro, doméstico, lavoura, ferreiro (Pina 2001: 182-184).
23
O abastecimento de escravos continuou a ser feito a partir dos mesmos estados dos quais provinha o restante
dos contingentes populacionais que exploraram a Chapada Diamantina, Minas Gerais e Bahia (Pereira 1910: 69;
Pereira 1937: 46-47; Senna 1996: 18, 24, 51; Pina 2001: 197; Araújo 2002: 169).
24
Ambas as versões registradas desde bastante cedo e reafirmadas desde então (Pereira 1910: 83; Moraes 1963:
40 nota 4; Gonçalves 1984: 22; Senna 1996: 56; Araújo, Neves & Senna 2002: 134 nota 11).
25
Já com o topônimo “Lençóis” (Senna 1996: 50).
26
Após tornar-se vila (Pereira 1910: 47; Araújo, Neves & Senna 2002: 136 notas 17 e 18) o tipo de crescimento
não planejado rapidamente experimentado por Lençóis continua ao longo de sua história (Araújo, Neves &
Senna 2002: 134 nota 11; Gonçalves 1984: 23).
29
patrimônio, fazendo com que sua população variasse significativamente na segunda metade
do século XIX e ao longo de quase todo século XX27. Não obstante estes reveses, a cidade
passou a ser informalmente considerada desde cedo a “capital das Lavras Diamantinas” 28, e
serras, conjunto que se dividia conforme sua procedência entre os chamados “serranos”,
planalto central brasileiro, do sertão alto, de Caetité, Riacho de Santana, Monte Alto e outras
Cachoeira, São Félix, Feira de Santana, Santo Amaro, Nazaré das Farinhas, Salvador, aos
obtenção de posições públicas que desembocavam no domínio da terra, garantia de seu poder
econômico na região30.
27
A lavoura existente nas cidades da Chapada Diamantina jamais foi suficiente para abastecer adequadamente
sua população, que variou em número significativamente (Pereira 1910: 93, 122; Toledo 2008: 58-59). As
alterações no solo provocadas pela ação do homem também geravam enchentes que acabavam por destruir
plantações feitas próximas às margens dos rios, em solo em princípio mais fértil (Funch 2007: 27-28).
28
O título deriva da centralidade que adquire Lençóis tanto pela abundância de sua produção diamantífera como
por sua localização geográfica estratégica na Chapada, vindo a substituir Rio de Contas como principal
entreposto comercial da região (Pereira 1910: 44, 57, 75; Moraes 1963: 34; Senna 1996: 55).
29
Os primeiros eram chefiados pelo coronel Felisberto Augusto de Sá, natural de Tejuco (atual Diamantina),
enquanto os segundos pelo coronel Antônio Gomes Calmon, natural do Recôncavo (Moraes 1963: 43).
30
As duas agremiações refestelavam-se em se distinguir uma da outra, portando cores e distintivos específicos e
financiando filarmônicas próprias – a Oito de Dezembro, sob invocação de Nossa Senhora da Conceição, dos
liberais, que trajavam verde, e a Dois de Fevereiro, sob os auspícios de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos, dos
conservadores, que vestiam vermelho (Pereira 1910: 97; Moraes 1963: 43-45, 46 nota 6; Gonçalves 1984: 26;
Senna 1996: 55).
30
As gemas encontradas nas serras e leitos dos rios pelos garimpeiros, fossem eles
para lapidadores que nem sempre negociavam com os garimpeiros sem o agenciamento de um
construções das duas igrejas da cidade, nos anos 1850, bem como o lançamento das bases
Lençóis, substituindo sua capela32, além da ponte que, mais tarde reformada com arcos
romanos, faria a ligação até os dias de hoje das duas margens do rio que corta a cidade33.
Lençóis entrasse no século XX como uma cidade marcada por um tipo de opulência
nos quais havia pianos de cauda importados, nas lojas da cidade eram vendidas mercadorias
vindas da Europa e não era raro ouvir-se o francês nas ruas, idioma ensinado nas escolas
primárias municipais – bem como retórica, filosofia e caligrafia gótica. A França chega
31
O passar dos anos faz com que seja cada vez mais difícil mesmo para os capangueiros bem-sucedidos
tornarem-se verdadeiros pedristas, grupo fechado que domina um mercado específico e bem estabelecido ao qual
só passa a ser possível ingressar por herança, casamento ou, em menor grau, certas relações de parentesco e
compadrio (Senna 1996: 20, 23, 55)
32
A igreja de Senhor dos Passos recebeu uma gigantesca imagem vinda de Portugal, encomendada pelos irmãos
portugueses José e Joaquim Tojal, encaixotada de Salvador para Cachoeira, e de Cachoeira pelos rios Paraguaçu
e Santo Antônio, de balsa para o Porto, a 12km de Lençóis, e de lá para a cidade, em procissão. A igreja do
Rosário, que funciona hoje como matriz, é a maior do sertão baiano (Ganem 2001: 21-22). A dedicada a
Conceição nunca subiu além de seus ambiciosos alicerces, a construção da catedral abandonada com a queda da
produção de diamantes no fim do século XIX. Funciona hoje como teatro de arena, tendo sua base estrutural sido
elevada para o propósito (Araújo, Neves & Senna 2002: 136-137 nota 25).
33
Registra-se que seu nome seja Ponte dos Suspiros (Senna 1996: 66; Araújo, Neves & Senna 2002: 135 nota
14).
31
Paris34. Instalam-se jornais semanais editados na própria cidade, que se somam aos já
mundo, notícia que poderia representar um baque para a economia garimpeira de Lençóis, a
poucos lugares no mundo, conferiu sobrevida significativa para a prospecção na Chapada 36. O
maior expoente desse momento histórico, posteriormente conhecido como um dos principais
especialmente na cidade de Lençóis, de onde governou boa parte do sertão baiano, foi o
rumo à capital baiana para impedir que seus adversários políticos se perpetuassem no governo
34
Fatos indicados por depoimentos pessoais e documentos históricos (Moraes 1963: 38; Gonçalves 1984: 26;
Ganem 2001: 18, 80)
35
Entre os jornais editados na cidade figuraram O diamantino, O lavrista, O correio das lavras e o humorístico
O peixe, além de O sertão, mais importante e duradouro, publicado toda semana aos domingos entre 1920 e 1951
(Pereira 1910: 113, 122-123; Moraes 1963: 166-167; Ganem 2001: 90-91; Araújo, Neves & Senna 2002: 147
nota 59). As projeções itinerantes do início do século XX deram lugar à sucessão de dois cinemas permanentes
no prédio do mercado municipal, até o estabelecimento do Cine Teatro Rex em 1938, com filmes falados e em
seguida a cores, desativado apenas quando a televisão começou a predominar na segunda metade do século XX
(Ganem 2001: 73-74).
36
No mercado mundial, passam a competir com o diamante que antes só era encontrado na Chapada Diamantina
e na Índia o encontrado na região do Salobro, no sul da Bahia – área hoje localizada no município de Santa
Luzia, à época parte de Canavieiras – e o escavado nas minas da África do Sul, extraído em imensas quantidades
(Pereira 1937: 59; Moraes 1963: 37, 48-49).
32
do estado, que por sua vez ofereceria ao coronel regalias políticas para dissuadi-lo de sua
tendo se tornando ele mesmo senador e delegado da região centro-oeste da Bahia37. Contudo,
essa negociação, que recebeu o nome de Convênio dos Lençóis, não garantiu a paz duradoura,
poder, com novos episódios de luta armada e mesmo cerco à capital das Lavras38.
Prestes pelo interior da Bahia. As lideranças instituídas, temerosas dos efeitos que o
movimento tenentista poderia ter no sertão, negociaram com Horácio a criação de um pelotão
de jagunços, o Batalhão Patriótico das Lavras Diamantinas, com fardamento e material bélico
enviados pelo Ministério da Guerra. Horácio liderou a campanha sertaneja durante parte de
sua perseguição à Coluna Prestes até a fronteira com a Bolívia, retornando a Lençóis no ano
contudo, obrigou Horácio de Mattos, e com ele os demais coronéis do sertão, a se desarmar.
Horácio foi preso e levado para Salvador, tendo obtido em seguida liberdade condicional para
aguardar um julgamento que não chegou a acontecer: ele é assassinado nas ruas da capital a
combalida pelas campanhas militares de que acabara de sair. O garimpo passa por novo ciclo
pelo solo impróprio, o êxodo para as grandes cidades do país aumenta, estimulado pela
37
Já tendo conseguido indicar diversos deputados federais ligados a si (Moraes 1963: 132).
38
Os episódios nos quais Horácio sobreviveu a combates corporais e tiros praticamente à queima-roupa
consagraram-no como possuindo proteção mística, “corpo fechado”, algo que se dizia igualmente de muitos de
seus jagunços, acostumados a serem vistos levando ao peito patuás e correntes (Moraes 1963: 138, 178, 180 nota
13).
39
Sua morte é vista pelos revolucionários como decisiva na luta contra o coronelismo na Bahia (Moraes 1963:
103, 133, 166, 173-174, 176; Pang 1978: 216; Gonçalves 1984: 26).
33
torne uma cidade-fantasma, destino de que muitas outras localidades da Chapada Diamantina
davam doloroso testemunho, leva seus moradores a se organizarem com objetivo de encontrar
uma alternativa para a cidade não mergulhar na pobreza40. Almejando recuperar e conservar o
legado material construído em seus dias de glória, e vendo nessa ação o germe de um ramo de
baseado na cidade nos primeiros anos da década de 197041 – obtém junto ao Instituto do
desde então deve obrigatoriamente ter suas características inalteradas, ainda que seus
interiores possam ser, nos dias de hoje, por vezes extensamente remodelados para usos
diversos. No período posterior ao tombamento, ainda havia diversas casas com paredes de
pau-a-pique, adobe ou barro, enquanto as construções de maior porte haviam sido erguidas
com pedra e barro. Enquanto as residências dos garimpeiros eram construídas sem alicerces
maiores de dois ou três andares eram mantidos com estruturas independentes de madeira,
vedadas com taipa42. Sobrados importantes para a história local já haviam sido demolidos à
40
As impressões iniciais de quem chegou nessa época pela primeira vez a Lençóis são marcantes (Funch 2007:
16-17, 22; Gonçalves 1984: 20-21).
41
O fotógrafo e designer gráfico Steve Horman (Brito 2005: 121-122; Araújo 2002: 183). Ainda no início dos
anos 1960, o prefeito Olímpio Barbosa havia inscrito Lençóis como destino para voluntários do programa norte-
americano (Brito 2005: 117-118).
42
Todos esses tipos de construção podem ser encontrados hoje em dia na cidade, e as moradias continuam
obedecendo o mesmo estilo interno de disposição do espaço, conforme se constata comparando-as com plantas
baixas feitas à época (Gonçalves 1984: 23, 41, 48; Senna 1996: 51)
34
lugar. Outras construções haviam passado por reformas ainda no final do século XIX e início
do XX, passando a incluir elementos como a platibanda ou decorações em estilo art nouveau,
O governo da Bahia, a partir dos anos 1970, passou a participar mais ativamente na
promoção do turismo no interior do estado, enviando uma equipe técnica para municípios da
Chapada Diamantina para levantar seu potencial de atração de visitantes. O relatório então
produzido tornou-se uma peça fundamental na aquisição pelo poder público de um casarão no
Lençóis, equipando a cidade para receber mais turistas e estimulando o aumento de seu tempo
Bahia a Brasília e à região Centro-Oeste45. O início da atividade turística mais regular não foi
encarado com bons olhos por parte da elite local, que viu na chegada de uma atividade
político46.
bastante para impedir que outro atrativo da Chapada Diamantina fosse então mobilizado para
43
Como a casa do Conselho Municipal, o prédio que sediava o jornal O sertão e aquele no qual funcionava a
Loja Magnólia (Senna 1996: 51).
44
Os anos em que estas reformas ocorreram ficaram inscritos em muitas das fachadas, com grande incidência
para os anos de 1920, também havendo registros anteriores (até 1880) e posteriores (Gonçalves 1984: 23; Senna
1996: 51).
45
A equipe técnica pertencia à Coordenação de Fomento ao Turismo, ligada à Empresa de Turismo da Bahia
(Bahiatursa), entidade de economia mista (Brito 2005: 124, 126-127).
46
O Movimento de Criatividade Comunitária foi perseguido e caracterizado como esquerdista, e Steve Horman
foi acusado de ser um subversivo comunista – algo um pouco paradoxal para um membro do Peace Corps –, por
estimular o tombamento da cidade e atrair o turismo para Lençóis. A mesma elite descontente tentou sabotar a
compra do imóvel que se transformaria na Pousada de Lençóis, seus membros queixando-se ainda, depois ddo
fracasso de sua tentativa, que ela jamais se justificaria numa cidade com tão pouco movimento como aquela
(Brito 2005: 122-123, 126). É possível que essas ações fossem motivadas não só por determinado reacionarismo
mas, igualmente, por uma disputa, entre os grupos que se alternavam politicamente no poder, pelos louros do
crescimento que a inovação do turismo traria.
35
essa atividade: seu estoque de belezas naturais. As inúmeras cachoeiras, grutas, lagos
subterrâneos, rios e serras, bem como sua vegetação característica e sua fauna indômita,
sempre chamavam a atenção dos visitantes que passavam pela Chapada. Porém, estava longe
de ser óbvio para a população da região, acostumada a lutar contra esse ambiente e a
de 1980, que culminaram na criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, por decreto
federal, no ano de 198547. Essa espécie de tombamento do seu patrimônio natural foi o último
de seus encantos naturais nos anos seguintes. A cidade de Lençóis configurou-se como portal
de entrada para os visitantes da Chapada, tanto por sua localização geográfica quanto por sua
trajetória histórica, e passou a desfrutar indiretamente também dos rendimentos gerados por
região, e a cidade de Lençóis em particular, têm passado, não é o caso de imaginar nenhum
tipo de ruptura brusca trazida por um suposto advento de uma globalização cosmopolizante e
bastante cedo em sua formação Lençóis contava com a presença de inúmeros estrangeiros
entre seus visitantes e habitantes, incluindo, a título de exemplo, árabes, judeus, franceses e
47
Conhecido pelos lençoenses como Rui Americano, Roy Funch foi o terceiro voluntário do Peace Corps a ficar
baseado na cidade de Lençóis, tendo chegado em 1978 e lá morando até hoje. Antes do já mencionado Steve
Horman, tido por Estevão na região, cuja estadia deu-se entre 1970 e 1973, por ali passara também David
Blackburn, o Davi, entre 1965 e 1968. Todos conheciam o modelo dos parques nacionais dos Estados Unidos, de
preservação ambiental sem habitação humana (Brito 2005: 16, 120-123, 129-130).
48
A Chapada Diamantina foi divulgada em inúmeras reportagens de jornais, revistas especializadas e programas
televisivos, servindo mais tarde de cenário à novela televisiva Pedra sobre pedra (Brito 2005: 130).
49
Percepção que é explicitamente elaborada pelos residentes da Chapada e trabalhada na literatura (Brito 2005:
10; Banaggia 2010: 10).
36
forasteiros, em especial aqueles que eventualmente decidem se fixar na cidade e ali exercer
função da economia agora alavancada pelo turismo. Em suas caminhadas pelas serras, os
lençoenses cruzam com ruínas deixadas pelos grandes garimpos de outrora, bem como
que suas fachadas mantêm viva a memória de outros tempos. Suas ruas e praças passam a
receber novos nomes, em geral muito pouco assimilados pela população local, numa atitude
falando da Praça Aureliano Sá, preferem lembrar lutas passadas mantendo seu nome de Praça
das Nagôs (termo cuja importância será retomada adiante). Poucos saberão informar onde fica
a Rua Miguel Calmon, mas não há quem deixe de recomendar um restaurante na mesma Rua
Pátria e Almirante Barroso, no Centro Histórico, mas a vida local fervilha mesmo é nas vielas
50
Numa convergência que contribui para a experiência dos lençoenses em lidar com estrangeiros sem muito
embaraço, quando necessário (Pereira 1910: 55, 59 nota **; Senna 1996: 18; Araújo 2002: 169; O. Senna 2002:
12; Brito 2005: 15).
51
Sejam brasileiros ou estrangeiros (Moraes 1963: 43-44; Gonçalves 1984: 233; Senna 1996: 58), incluindo em
menor grau moradores mais temporários da região, como estudantes, pesquisadores, técnicos governamentais e
pessoas em busca de estilos de vida alternativos, que privilegiam tanto Lençóis como o Vale do Capão, no
município de Palmeiras (Brito 2005: 128). “Nativos da Chapada” é, literalmente, o modo como aqueles que
nasceram na região costumam se referir a si próprios, em geral quando desejam marcar alguma distinção em
relação aos “de fora”.
37
da Rua do Curral, da Rua dos Papagaios e da Rua dos Negros – que se recusam a chamar de
Se os lençoenses por vezes gostam de lembrar sua história, inscrita que se encontra no
próprio espaço arquitetônico de Lençóis, falam com mais gosto ainda a respeito de suas
histórias. Os contos e causos passados na cidade são lembrados com alegria, repetidos para as
crianças e curiosos, e por mais de uma vez pediram-me que registrasse uma história, tirasse
uma fotografia de uma ruína ou fizesse uma gravação de uma música, bem como me
mostraram certas vezes cadernos antigos, álbuns de fotos e registros em fitas cassete
guardadas sem que tivessem nem mesmo rádios que as reproduzissem. Pouco deve haver que
exerça tanto fascínio nos habitantes da cidade quanto uma história bem contada53, e se reunir
para ouvir e relatar causos é um dos passatempos prediletos dos lençoenses, como Seu Gilson,
Seu Gilson contou-me certa vez como, quando tinha ido ajudar sua mulher a limpar a
imagem de Nosso Senhor dos Passos, tivera uma estranha sensação ao passar um pano na face
da estátua, uma pesada escultura em tamanho natural mostrando a segunda estação da Via
Crúcis, com Jesus carregando a cruz onde iria ser crucificado. O grau de realidade da imagem,
Seu Gilson dizia, era ainda mais ampliado pelas longas madeixas que a adornavam – “cabelo
de gente mesmo”, havia quem afirmasse –, e a importância de Senhor dos Passos para os
garimpeiros de Lençóis, de quem era o padroeiro, era indiscutível 55, a ponto de muitos
52
Tudo indica que essas sejam práticas antigas (Pereira 1910: 113 nota **; Gonçalves 1984: 32; Ganem 2001:
125-126).
53
Há esforços que se empenharam no sentido de registrá-las de forma mais abrangente, seja do ponto de vista
em geral das poderosas famílias da cidade (Ganem 1984; 2001), seja daquelas mais ligadas ao trabalho no
garimpo propriamente dito (Brasil 2009: 16-33).
54
Ver fotos 5 e 6 no anexo III.
55
Para grande parte da população de Lençóis, não há aí nenhum grau de representação: Senhor dos Passos é
literalmente a estátua que reside em sua capela, capaz de grandes feitos por uma potência que lhe é própria
(Gonçalves 1984: 136-137). Ver foto 7 no anexo III.
38
locais que se compraziam de lembrá-los que a padroeira oficial de Lençóis era Nossa Senhora
da Conceição.
A admiração de Seu Gilson pela escultura se deve ao fato de ele também ter sido
garimpeiro durante grande parte de sua vida, enquanto seu pai e seu avô haviam-no sido
praticamente até o fim de seus dias. Seu Gilson costumava lembrar com um misto de orgulho
e pesar dos tempos do garimpo que ele ainda alcançara, bem como das histórias das pessoas
de sua família que haviam trabalhado com essa lida. Como muitos outros garimpeiros, seu
avô falecera num acidente no garimpo, atingido em cheio por uma pedra que rolou do alto da
serra, logo após ter encontrado um diamante de 30 quilates (consideráveis seis gramas), sem
ter podido usufruir de seu achado. Acidentes como estes, bem como soterramentos em
estreitas cavidades subterrâneas perfuradas sob os leitos dos rios, as chamadas grunas, e
rotina garimpeira, e ainda hoje muitos dos senhores mais velhos que sobreviveram a eventos
homens que se aventuravam nas serras, aliadas às técnicas de extração passadas de geração
de-obra esta que foi predominante no primeiro e mais importante ciclo do diamante na
realizando a atividade com autorização real nas serras arrendadas aos senhores pela Coroa, e
56
Segundo indicam as escrituras de compras de escravos pelas companhias de mineração (Pina 2001: 182).
57
Os conflitos por vezes sangrentos entre todos os envolvidos no início do processo extrativo do diamante,
fossem mineradores, fossem garimpeiros, levaram, por exemplo, à alteração do nome do Poço Rico, local de
Lençóis onde inúmeras pedras foram descobertas em pouco tempo, para Poço das Mortes (Pereira 1910: 86;
Gonçalves 1984: 19). Até hoje se menciona como os garimpeiros conheciam formas especiais de agitar suas
bateias (recipientes nos quais o cascalho é revolvido em busca dos minérios) de modo a esconder diamantes ali
39
trabalho livre, mas não assalariado, marcou o apagamento dessa distinção, unindo todos os
trabalhadores sob a mesma alcunha de “garimpeiros”, sendo um dos motivos pelo qual o tema
um diamante de valor excepcional que lhes permitiria gozar de alguns dias de esbanjamento59.
Seu Gilson me falou que ele, como praticamente todos os garimpeiros, já tivera essa sorte
algumas vezes em sua juventude, podendo ficar por uma ou outra semana sem trabalhar,
pagando bebidas aos amigos, dando presentes caros às mulheres-damas e promovendo festas
com comida da melhor qualidade. Já se sugeriu que tal atitude caracterizaria uma crença no
enriquecimento fácil derivado do achado de uma grande pedra, busca eterna que não faria
trabalho duro nas serras ao longo dos anos60. Contudo, se é verdade que a busca pelas pedras
de grande valor por vezes se encontra no horizonte do trabalho dos garimpeiros, e que quando
achados desse porte acontecem em geral acabam por financiar momentos intensificados de
consumo – raramente sem algum componente coletivo, frise-se –, essa parece estar longe de
existentes dos olhos de quem quer que fosse. O contrabando de pedras, em geral para evitar os tributos devidos,
fossem eles ao governo ou aos donos das serras, era possivelmente também uma forma dos escravos tentarem
juntar a quantia necessária à compra da alforria por meio de terceiros de sua confiança.
58
O “tempo dos antigos” é marcado como aquele do qual não se sabe muito a respeito, ainda que se trate de um
passado relativamente recente (Toledo 2001: 82-83).
59
Contemporaneamente, a agência da loteria federal na cidade adotou o nome de “Bambúrrio”. A palavra pode
igualmente ser usada como verbo – como em “um garimpeiro bamburrou recentemente”.
60
Segundo esse ponto de vista, os garimpeiros formariam uma “imensa massa humana trabalhadora e
imprevidente, ambiciosa, inquieta, nômade e aventureira, mas quase sem ideal nenhum. É a gente garimpeira,
ignorante e inculta – conquanto mais honesta, mais ousada e mais her[o]ica do que qualquer outra espécie de
trabalhador – que se embrenha pelas grupiaras, que desbrava as serras alcantiladas, que penetra nas noites
eternas das grunas profundas e perigosas, que mergulha nos poços dos rios traiçoeiros e violentos do planalto,
arriscando, a todo instante, a vida, em holocausto à sorte e que, se bamburra, desce loucamente à cidade para a
vendagem das gemas e, de possa da dinheirama que, talvez, nunca vira antes, se entrega imediatamente a todos
os tipos de ostentação e de prazeres, nas casas de jogo, nos botequins, nos cabarés; adquire nas lojas toda espécie
de mercadorias que se lhe apresentem – necessárias ou supérfluas – e, nesse diapasão, depois do esbanjamento,
dentro de poucos dias retorna ao garimpo reduzido à mesma condição de pária, entre resignado e esperançoso de
uma nova topada com a fortuna” (Moraes 1963: 42-43).
40
se configurar como a motivação diária desses trabalhadores. Investir nessa caracterização não
faz senão apresentar uma imagem literal e figurativamente empobrecedora dos garimpeiros,
forma de ver e de falar a respeito dos garimpeiros acaba traindo mais um anseio próprio aos
qualquer custo62.
Atendo-nos, contudo, a uma determinada visão garimpeira de seu trabalho, vê-se como
aventureirismo, à qual, se de fato chegaram a fazer jus no passado, definitivamente não guiava
sua labuta diária. Como Seu Gilson e outros antigos garimpeiros afirmavam, os trabalhadores
das serras estimavam sobretudo sua independência, fazendo todo possível para não terem de
trabalhar como “meia-praça”, o que significava ter um patrão ou fornecedor que lhe provia
meios de subsistência em troca do direito de receber metade do valor pelo qual fosse vendido
devidos (ao governo e ao dono da serra). Não precisar trabalhar como meia-praça conferia ao
garimpeiro autonomia para ditar seu próprio ritmo e local de trabalho, bem como lhe garantia
administrativa que priorizavam. Por mais que o trabalho se mostrasse uma constante em suas
vidas, já que muitos dos garimpeiros tinham a certeza de que praticamente nenhum achado
seria grande o bastante para não mais trabalhar pelo resto de suas vidas, tratava-se de um
61
Retornarei a este ponto no fim do capítulo, na seção 1.5.
62
Há quem tenha sugerido que a questão da exploração dessa riqueza mineral devesse efetivamente ser uma das
maiores prioridades do Estado, alavancando o país como potência industrial não importando qual seja o custo
ambiental desse processo, num marco de assumido ufanismo (Peixoto 1946: 3).
41
trabalho que lhes garantia o exercício do arbítrio de uma forma que seus ascendentes
variações volumétricas dos rios – em geral provocadas por mudanças climáticas pequenas –, à
separação dos inúmeros tipos de rochas e cascalhos, ao manejo dos instrumentos de trabalho,
eventos que podia levar um garimpeiro a interromper seu dia imediatamente era a descoberta
de índio”. Encontrar uma dessas pedras – normalmente muito achatadas e arredondas, cuja
sua frente de trabalho estava “fechada”, nenhum diamante seria encontrado naquele dia, então
Deparar-se com uma dessas pedras parecia levar uma pessoa a um estado menos
“bojado”65. Infusar ou bojar é algo que podia acontecer a um garimpeiro por motivos diversos
e de formas misteriosas, cuja principal consequência era ficar longo período de tempo sem
encontrar um único diamante sequer, mesmo trabalhando arduamente ao lado de colegas que
63
Essa outra imagem dos garimpeiros é compartilhada em especial pelas pesquisas que se basearam em trabalho
de campo de longa duração junto a estes próprios trabalhadores (Gonçalves 1984: 43, 216-219; Guanaes 2001:
59-103; Toledo 2001: 49-53, 111-112).
64
A pedra era geralmente apanhada com grande reverência pelo garimpeiro, que a guardava em casa para que
com isto sua morada ficasse protegida (“fechada”, igualmente) contra raios durante as pesadas chuvas e
tempestades que acometiam as cidades das Lavras Diamantinas (Gonçalves 1984: 133, 141, 221). Afirma-se
também que pedras como essas podem ser guardadas por sete anos e posteriormente colocadas em cozimento,
tornando-se então aptas a serem penetradas pelas entidades nas quais serão transmutadas (Senna 1998: 103).
65
Tanto infusar como bojar são verbos cujos sentidos compreendem ações ligadas a espraiamento, seja o
derramar ou espalhar do primeiro, seja o aumentar o volume de um corpo (de modo a fazer bojo) do segundo. É
possível conectá-los, por um lado, à ideia que mencionam os garimpeiros dos diamantes que se esvaem pelas
bateias cheias de água durante a lavagem do cascalho, quando não são devidamente reconhecidos; por outro, a
um efeito da aversão ao excesso que será discutida na seção 1.5.
42
garimpeiro infusado podia diminuir sua vontade de trabalhar, e eram seus amigos que
deveriam lhe ajudar e lhe fornecer meios de sobreviver e de retornar ao trabalho para que o
tempo se encarregasse de lhe mostrar uma alteração em sua sorte. Havia, entretanto, um meio
mais rápido e mais garantido de lidar com o infuso, ao qual muitos garimpeiros afirmaram já
ter recorrido: rogar pela ação mística das forças ligadas ao jarê, o culto de matriz africana
característico da região.
podiam ser diretamente acionados pelos garimpeiros. Os pedidos para uns e outros eram feitos
tanto por aqueles que procuravam deixar de estar infusados quanto por garimpeiros que
desejavam encontrar diamantes com auxílio das entidades, sabendo com isso que poderiam
pelos curadores de jarê, como também são chamados seus líderes, raramente eram descritos
adscrição do trabalhador da serra à entidade que havia lhe favorecido – bem como ao pai-de-
santo que a havia mobilizado em seu favor, caso houvesse seu intermédio. Conta-se que as
entidades podiam prever os locais onde diamantes seriam encontrados, o espaço de tempo que
seria preciso esperar pela descoberta seguinte ou ainda as técnicas de garimpagem necessárias
ao achado das pedras preciosas. Ignorar os conselhos vindos dos espíritos, ou deixar de honrar
interferência mística fora crucial para a descoberta do diamante – significava correr o risco de
A partir desse ponto de vista, o garimpo configura-se menos numa coleta do que numa
espécie de caça, pois o que se afirma é que os diamantes possuem uma vida própria, são
43
capazes de se movimentar de acordo com uma vontade particular, bem como de fornecer
indícios de sua localização por meio de fenômenos luminosos nos rios e nas serras, sons e
vozes ou mesmo aparições visuais chamadas de “livusias”66. Seu Gilson me falava a respeito
de como o diamante podia ficar um bom tempo “fervendo”, rolando no interior de poços
naturais escavados no leito dos rios, e de como também podia crescer e ficar mais velho com
o passar do tempo, ambas situações que poderiam alterar seu temperamento e comportamento,
tornando-se mais arredio ou mais incauto. Todo velho garimpeiro já ouviu e fala a respeito
dos três “D” que regem a descoberta bem-sucedida de uma pedra, indicando as primeiras
de diamante bruto, que era então vendida aos capangueiros e pedristas para ser em seguida
lapidada, seja em Lençóis, na época em que ali funcionavam casas de lapidação, seja em
grandes centros urbanos onde seria revendida, tornando-se assim um brilhante68. Até hoje não
é incomum que visitantes caminhando pela cidade sejam abordados por algum de seus
moradores que teria guardado uma ou outra pedra bruta na esperança de encontrar um bom
revendedor para ela – afinal de contas, dizem, talvez um dos muitos gringos que por lá
passam seja como os estrangeiros de antigamente, que poderiam disputar a compra dos
adornariam joias por todo o mundo vivia o garimpo de Lençóis. Desde cedo foi encontrado ali
66
Corruptela de “aleivosia”, mais um dos sinais da volição das pedras (Gonçalves 1984: 132, 220).
67
A conjunção desses três fatores (Gonçalves 1984: 132; Ganem 2001: 138) pode acontecer mesmo bem depois
do trabalho do garimpeiro ter sido realizado, como exemplifica a atitude dos moradores mais velhos da região
que ainda abrem rotineiramente a moela da galinha caipira antes de cozinhá-la, ou olham bem o chão depois de
uma chuva forte, à procura de algum diamante perdido, hábito atribuído à abundância das pedras no início da
exploração (Funch 2007: 151).
68
Segundo capangueiros e lapidários de Lençóis, o valor dos brilhantes resultantes dos diamantes encontrados
nos últimos tempos da exploração costumava variar entre US$ 500,00 (para uma pedra de meio quilate) e US$
10.000,00 (para uma pedra de dois quilates) (Funch 2007: 167).
44
“carbonato”. Inicialmente desprestigiado por não poder ser usado como ornamento, já que não
é translúcido como o diamante – o que fazia com que os primeiros garimpeiros se livrassem
dele em grandes quantidades –, a descoberta dos usos industriais do carbonado fez com que
substância capaz de cortar um diamante tradicional que não ele próprio, foi com algum deleite
na voz que me disse como era o diamante negro e impuro que era capaz de quebrar o
diamante negro que era dali exportado foi utilizado em grandes empreendimentos ao longo do
século XX ao redor do mundo, das escavações para linhas do metrô de Londres à abertura do
Canal do Panamá, passando pelo Túnel de São Gotardo na Suíça e pela principal fábrica de
automóveis da Ford nos Estados Unidos. Até hoje há garimpeiros e moradores da cidade que
recordam a importância que a produção de Lençóis teve para essas atividades industriais,
ainda que nem sempre sejam tão específicos quanto aos detalhes de seus acontecimentos70.
69
Em função, como mencionado, da descoberta de outras fontes de fornecimento (Praguer 1899: 58, 66; Moraes
1963: 37).
70
As referências na literatura são muitas, ainda que as fontes primárias para embasá-las sejam mais escassas
(Pereira 1910: 108; Peixoto 1946: 3; Moraes 1963: 38; Gonçalves 1984: 26; Mattos Jr. 1997: 16; Ganem 2001:
61, 67; Araújo, Neves & Senna 2002: 135 nota 15; Funch 2007: 16, 163).
45
encontradas nas serras se dava não só pela luminosidade que ambos podiam produzir ou
refletir, mas igualmente em função de uma das possíveis origens de certo tipo de diamantes,
similar a uma das pensadas pelos garimpeiros para as pedras de raio, tendo surgido do
fazer parte do cotidiano dos lençoenses de formas diversas, ainda que muitas vezes somente
brilhante em meio a um mar de carbonados: brincadeira que não passava pela cor das pessoas,
já que ela era tão ou mais negra que aqueles de quem gostava de dizer “não terem quilate”72.
serra e próximo aos leitos dos rios, especialmente durante os fins de semana, como tinha sido
o caso de Seu Gilson. Ele me dizia como ter sua profissão garantida durante a semana o
ajudava a pagar as contas ao fim do mês sem precisar depender da sorte do garimpo, que
entretanto lhe servira de renda suplementar quando fazia algum achado73. Com a idade,
71
Outros locais onde foram encontrados carbonados são Minas Gerais e Mato Grosso, no Brasil, bem como na
Venezuela, além de uma variante menos similar na Sibéria. A origem exclusivamente interestelar dos
carbonados é uma possibilidade sobre a qual não há consenso científico (Garai et al. 2006: L156; McCall 2009:
90), contudo é interessante notar essa aproximação mineralógica entre o que viriam a se tornar Brasil e África,
num outro tipo de reencontro tardio.
72
Essas ocasiões me faziam recordar constantemente a etimologia da palavra, que significa tanto “inquebrável” e
“inflexível”, como, mais simbolicamente, “selvagem”, “resistente”, “aquele que não pode ser domado”.
73
Há ligeira discordância quanto ao significado do termo “faiscadores”, que podia também ser usado para
designar membros de uma classe média incipiente que teve início na compra da “fazenda fina”, os diamantes de
46
igualmente, ele ponderava que realizar sua busca lavando cascalho já devidamente trabalhado
era menos penoso, posto que, diferentemente de muitos de seus amigos garimpeiros, não fazia
planos de investir numa roça nas cercanias de cidade, preferindo a vida na sede de Lençóis.
região, já que sua produção interna, principalmente de outras cidades da Chapada, sempre foi
bastante limitada, concentrando-se em povoados de acesso mais difícil mas com melhores
Andaraí, produzindo arroz, feijão, café, farinha, bananas, laranjas e outras frutas. As roças no
entorno de Lençóis costumam ser voltadas somente à produção de subsistência dos antigos
garimpeiros, muitos dos quais decidiam passar cada vez mais tempo afastados da sede do
então disponíveis como das restrições à caça e à pesca estabelecidas com a criação do Parque
Nacional, bem como com o esgotamento das próprias espécies após a intensificação da
base da alimentação diária continua similar (composta de arroz e feijão – tanto o comum
como o andu –, batata-da-serra, abóbora, aipim, chuchu, mamão verde, fruta-pão, carne-de-
menor peso, o que não exclui certa convergência com a ideia de garimpeiro ocasional (Moraes 1963: 42;
Gonçalves 1984: 28, 217; Funch 2007: 14).
74
As avaliações da importância da lavoura de subsistência para o garimpo afirmam que enquanto a roça oferece
segurança, o garimpo oferece esperança. Na área do município de Lençóis propriamente, o solo costuma ser
muito ácido e pobre em nutrientes, além de pouco profundo, apropriado para pouco mais que mandioca, abacaxi
e andu (Pereira 1937: 59; Funch 2007: 15, 78).
75
Todos estão bastante cientes da atuação do Ibama e da configuração de crime ambiental que agora constituem
determinadas atividades extrativistas no interior da área do Parque Nacional (Senna 1996: 59). Entre os animais
caçados na região no início do século XX encontravam-se “anta, veado mateiro, catingueiro, porco queixada,
caititu, onça preta e su[ç]uarana, gatos do mato, pacas, cotias, raposas, guarás” (Pereira 1937: 17) e, mais
recentemente “paca, teiú, jacaré, capivara, cotia, tatu, raposa, rato do mato [o chamado mocó]” (Gonçalves 1984:
86-89). Entre os peixes, obtidos principalmente pelos moradores da vila do Remanso, havia “traíra, piranha,
curimutá, umbá, tuiuiú, jundiá, tucunaré, apari e corro” (Gonçalves 1984: 89).
47
sol), a criação de animais domésticos tornou-se mais comum nas roças do entorno da cidade –
além de frutas, menos frequentes, como banana, maracujá, e em especial abacaxi, que não
draga teve início em 1980 quando a região é praticamente invadida por um novo tipo de
minerador empregando possantes bombas d’água para explorar as jazidas restantes nos
aluviões no pé da serra. Em seu auge, cinco anos depois, havia entre 100 e 150 dessas dragas
trabalho nas dragas atrai principalmente os homens mais jovens, por prescindir do domínio da
técnica dos garimpeiros tradicionais e possibilitar retorno mais imediato, o que no decorrer de
alguns anos deixou efeitos devastadores na paisagem local. A despeito da proibição formal da
pelo crescimento constante da indústria do turismo, agentes dos órgãos ambientais do estado e
da União efetuam batidas sistemáticas levando ao fechamento das operações com draga76.
Apesar de não ter se envolvido com os mineradores de draga, Seu Gilson continuava
seu trabalho esporádico nas serras, assim como o faziam muitos dos garimpeiros mais velhos,
utilizando as técnicas artesanais de garimpagem. Porém, até mesmo esse garimpo teve sua
proibição igualmente forçada no final do ano de 1998, consolidando o turismo como principal
76
Os dados disponíveis apontam que em 1994 ainda havia 52 dragas em operação, e que o fechamento ocorreu
em março de 1996. Apesar do nome incorreto para os motores-bomba a óleo diesel, a época do garimpo de
dragas ficou marcada dessa forma vividamente pelos lençoenses (Senna 1996: 107; Funch 2007: 14, 158).
48
lençoenses mais velhos a ideia de que, além da preservação ambiental, influenciaram também
impostos devidos sobre as muitas etapas produtivas da extração e do comércio das pedras
suas formas de trabalho e que agora em geral sobrevivem graças a aposentadorias ligadas ao
sustentando seu menor impacto sobre o meio ambiente77. Agora, contudo, precisam disputar
esse entendimento não só com o governo como com os empresários da mais recente indústria
da Chapada Diamantina.
1.2 Excursos
Lençóis como base de operações por contar com os principais hotéis, pousadas e agências de
passeios, foi primariamente o chamado ecoturismo de aventura. Aqueles que trabalham nesse
ramo afirmam que os atrativos naturais da região podem ser aproveitados de forma
mais intensivo. Essa espécie de turismo atrai principalmente jovens, tanto do Brasil como do
exterior, e mochileiros, muitos dos quais ainda compõem o principal contingente de visitantes
da cidade, interessados em realizar trilhas pelas serras, tomar banhos nas cachoeiras isoladas e
conhecer as grutas e a vegetação típica da Chapada. Surge assim a necessidade de guias para
77
Mesmo após terminada a tolerância legal com todo tipo de garimpo (Araújo 2002: 178), o diagnóstico feito
acerca de uma das cidades-fantasma produzida pelos ciclos do diamante é igualmente válido para a Lençóis dos
garimpeiros, e em seu duplo sentido: “O garimpo praticamente acabou na região, mas jamais se achará o último
diamante” (Funch 2007: 103).
49
levar os visitantes por longas caminhadas nas quais é normal pernoitar por alguns dias na
serra, seja na casa de moradores mais isolados, seja nas grutas que acomodavam os
garimpeiros, seja acampando ao ar livre. Em pouco tempo ficou claro para a população que
para a função não havia ninguém melhor que os próprios garimpeiros, que já conheciam as
trilhas e segredos dos platôs diamantinos, assim como em seguida os filhos destes.
Esse era o caso de um dos filhos de Seu Gilson, que se tornou guia esporádico e me
levou em alguns dos passeios mais simples no entorno de Lençóis. Se virtualmente todo
homem em Lençóis com idade para trabalhar era um garimpeiro antigamente, hoje em dia não
há quem não possa atuar como guia turístico nos passeios mais próximos à cidade, como subir
o Rio Serrano até os Salões de Areia e a Cachoeira da Primavera, ou caminhar até o Ribeirão
pernoites nas serras continuam a favorecer guias mais experientes e qualificados, que arriscam
o uso de um inglês utilitário e estabelecem vínculos com agências de passeio para obtenção de
transporte pelas estradas acidentadas da região, o influxo de turistas com perfil distinto
daquele dos aventureiros mais diligentes garante trabalho para muitos dos guias ocasionais.
Nos últimos anos, Lençóis viu ser ampliada sua rede de hotéis luxuosos e restaurantes
sofisticados, e chegou a ter por algum tempo três linhas aéreas diferentes operando a rota
direta Salvador-Lençóis simultaneamente, contando hoje em dia apenas com uma companhia
realizando voos semanais da capital até o aeroporto de Tanquinho, um dos distritos da cidade.
Na prática, Lençóis era a única cidade baiana fora do litoral que, no início do século XXI,
impostas a pedestres pelo desenho acidentado de seu terreno, suas ladeiras e calçamentos
irregulares, a cidade passou a ser também destino que atraía visitantes de idade mais avançada
turistas “empacotados”, aqueles que viajam comprando um pacote completo com roteiros
preestabelecidos78.
forasteiros que tinham se mudado para lá no passado investissem nessa atividade, bem como
continuou a atrair pessoas interessadas nas oportunidades que o ramo inaugurava. Em geral
dominaram boa parte do mercado turístico e das posições estratégicas dentro dele, como as de
donos de agências de passeios, pousadas e restaurantes. Ainda que também haja nativos no
comando de alguns desses negócios (e, entre esses, há mesmo alguns poucos não ligados às
desemprego é muito maior entre os lençoenses, que costumam igualmente ocupar as posições
mais mal remuneradas do setor, como garçons, faxineiras e guias de passeios próximos79. A
maior parte da população aufere assim muito pouco dos rendimentos gerados pelo turismo,
que de todo modo ainda se insinua como o único caminho a ser trilhado para o
forma, os donos das serras que cobravam para que nelas se garimpasse e os atravessadores
78
Esses fatores tornaram Lençóis uma cidade propícia também ao turismo familiar (Senna 1996: 62; R. Senna
2002: 248; Brito 2005: 17 nota 1; Funch 2007: 9).
79
Essa constatação é consensual na literatura (Senna 1996: 55; Lima & Nolasco 1997: 19; O. Senna 2002: 13). A
frase de um dos moradores a respeito dos novos patrões da cidade é plena de ironia, e tão forte quanto exata:
“[E]les hoje são empresários, querem lucro e silêncio” (Brito 2005: 129).
80
Um dos dirigentes de uma das escolas locais me disse que havia recusado a implementação de cursos
profissionalizantes na instituição em que lecionava já que o único que lhes seria oferecido era o voltado
diretamente para turismo, enquanto os outros solicitados, voltados para formação de carpinteiros, eletricistas e
técnicos de informática, fariam muito mais diferença na vida dos alunos e os colocariam em condições de
exercer uma profissão que lhes daria maior autonomia no mercado local.
51
dos diamantes equivalem hoje aos donos das agências de turismo e meios de transporte que
bambúrrio foram substituídos pelos guias que disputam os turistas que melhor pagam pelos
passeios, “caçando-os”, como dizem, do mesmo modo como faziam com as pedras preciosas.
Os surtos de crescimento e declínio dos ciclos do diamante ao longo dos anos foram
substituídos pela sazonalidade anual dos meses de férias e feriados importantes, e a cidade
continua em boa medida à mercê das flutuações econômicas do resto do mundo81. Da mesma
forma que o governo local se queixava das dificuldades de controlar a tributação devida pelo
comércio das pedras preciosas82, a prefeitura hoje faz todo o possível para regulamentar a
arrecadação devida pelo rendimento dos guias e das agências de turismo, que muitas vezes
Outra conexão entre o garimpo e o turismo, não tão óbvia e em especial mobilizada
pelos garimpeiros mais velhos, é o fato de aquelas serras terem sido, sob determinados
aspectos, desbravadas e mantidas por eles ao longo de mais de um século. Por mais que os
especialmente os do período das dragas –, esses idosos senhores lembram-se como sempre
custodiaram a Chapada contra incêndios – naturais ou não84 – e como foram somente sua
tenacidade e sua vontade de permanecer habitando a região do Sincorá que possibilitaram que
81
A crise econômica mundial que aconteceu durante o período em que realizei trabalho de campo era
frequentemente citada pelos lençoenses que trabalhavam mais ligados ao turismo como motivo para a
diminuição do fluxo de estrangeiros naqueles anos.
82
Problema registrado desde bastante cedo (Pereira 1910: 116).
83
Essa atitude pode ser compartilhada tanto pelas elites econômicas e políticas como, consequentemente, pelo
poder público, relacionando-se como o turismo da mesma forma extrativista e predatória como se relacionavam
com o garimpo (O. Senna 2002: 13).
84
Embora as características de Lençóis especificamente, com seu solo fraco e relevo montanhoso, não a
tornassem propícia à agricultura ou pecuária, muitos dos territórios nos quais hoje se encontram atrações
turísticas da Chapada Diamantina foram ocupados por gado e agricultura que promoviam grandes queimadas nas
matas da região, até a proibição definitiva desse recurso pelo Ibama em 2003 (R. Senna 2002: 249; Funch 2007:
14, 24).
52
visitação por pessoas do mundo todo: algo que talvez nunca viesse a acontecer caso Lençóis
tivesse sido abandonada em definitivo durante alguma das piores fases de escassez do
diamante, como de fato veio a ocorrer com outras povoações cujas ruínas hoje oferecem
testemunho85.
saudosismo significaria ignorar tanto sua reatualização construtiva do passado como uma de
suas formas de continuar a expressar seu sentimento de conexão profunda com a cidade. Não
só os habitantes mais antigos como praticamente todo lençoense faz questão de exibir o
orgulho de ser um nativo da Chapada. Seria exagero dizer que esse entusiasmo é somente
fruto de uma valorização recente de suas belezas naturais em função da expansão do turismo
na região, posto que a vaidade demonstrada ao marcarem o fato de serem lençoenses – mesmo
dessa indústria e beira mesmo a soberba, ainda que matizada por bom humor, quando
aqueles que demonstram um fascínio especial pelos turistas naquilo que representam de
distinto de sua realidade. Por um lado, há o caso dos que buscam, na medida de suas
possibilidades, emular a vida dos turistas que passam alguns dias na cidade, juntando dinheiro
seja para almoçar em algum dos melhores restaurantes – que costumam lhes oferecer
85
Ver fotos 7 e 8 no anexo III.
86
Há hoje, contudo, muitos incêndios provocados propositalmente por moradores da zona rural tanto a serviço
de pecuaristas como de forma a marcar sua insatisfação com a perda de seus meios de existência tradicionais,
impedidos que ficam de garimpar ou ter suas roças na área do Parque Nacional. Um membro de um órgão
ambientalista que atua na cidade me disse ter ouvido de um desses habitantes, dando-lhe a entender que não via
grande problema nas queimadas: “Essa beleza toda que dizem que tem aí, moço? Não vejo, não”. Críticos locais
consideram que ter o passado como referência constante e ver o presente como profunda lamentação impregnada
do sentido de perda, bem como viver com a ausência de perspectivas para o futuro, não são necessariamente
marcas novas na região (Senna 1996: 16-17; O. Senna 2002: 12).
53
descontos –, seja para se tornarem eles também turistas viajando para outros destinos por
alguns dias – o mais comum deles sendo Salvador durante as férias –, seja ainda demitindo-se
de seus empregos para aproveitar alguns dias de festa na própria Lençóis. Por outro, existem
as histórias daqueles que realmente não desejam mais morar na cidade e querem conhecer
uma realidade completamente distinta da sua, desejo alimentado pelas histórias que ouvem a
respeito de outros lugares, em especial do exterior, em função do contato mais intenso que
apaixona por uma nativa e se casa com ela, levando-a para seu lugar de origem e com ela
criando uma família – história que realmente chega a acontecer com uma ou outra pessoa.
Esse sonho de arrebatamento também não é novidade entre os lençoenses, sendo mote do
região88. De certo modo, essa ocorrência se repete em uma versão menor nos breves romances
raramente terem consequências mais duradouras, esses casos permitem que ambos os lados
vivenciem por alguns dias o desejo de se aproximarem das realidades um do outro. Ainda que
não se deva descartar a possibilidade de que haja relações de compra e venda de favores
meretrício – do mesmo modo como acontecia na época do garimpo. O mais comum é que
jovens, de ambos os sexos, disputem a atenção de gringos que passarão a lhes fazer
companhia enquanto os levam para passeios e restaurantes, sem compensação monetária por,
e sem garantia de que haverá, qualquer envolvimento mais íntimo – ainda que alguns se
87
Daí o receio de que, na visão de um crítico local, agora que um novo horizonte para o futuro de Lençóis se
descortina, os habitantes da cidade troquem sua atração pelo passado por uma igualmente danosa obstinação pelo
futuro (O. Senna 2002: 12-14), algo que não se entrevia na época em que na cidade também não havia grande
penetração de meios de comunicação de massa, por exemplo (Gonçalves 1984: 53).
88
Como será visto no capítulo 3, seção 3.3.
54
refiram a essa procura, sempre de maneira jocosa e somente entre amigos bastante próximos,
nos distritos e povoados da zona rural localizados fora da área do Parque Nacional, ela não se
outras atrações que não as visitas aos pontos de interesse natural, tais como incentivos ao
turismo de base comunitária ou cultural. A ação do governo municipal também faz pouco para
alterar essa situação, e a quantidade de recursos básicos recebidos que depende do número de
habitantes do município não leva em conta o número flutuante porém significativo de turistas
que por ali passam e permanecem minimamente por alguns dias. Ainda que por vezes esse
pareça ser um destino distinto daquele que prefeririam ter para si mesmos, muitos lençoenses
As oportunidades de trabalho para a maior parte dos lençoenses, mesmo ligadas à nova
economia da cidade, não são, todavia, abundantes. Ser contratado com carteira assinada
recebendo “um salário” (como se referem ao salário mínimo) é destino reservado a uma
minoria de certa forma mais bem qualificada, estando entre os empregos mais bem pagos de
Lençóis, dúbio título que disputam com as ocupações derivadas de cargos de confiança
apontados pela prefeitura. Enquanto também há aqueles contratados por um salário mensal
combinado informalmente, a relação de trabalho à qual a maior parte da população está mais
89
Trata-se, efetivamente, muito mais de uma forma de turismo romântico do que de turismo sexual (Pruitt &
LaFont 1995: 422), ainda que em Lençóis, diferentemente do contexto com base no qual o termo foi concebido,
a ideia de romance se aplique tanto aos encontros com homens quanto aos com mulheres na cidade.
90
Há quem defenda que seria possível retomar a atividade do garimpo manual em consonância com o turismo e
a manutenção sustentável das serras e rios da Chapada, aliando a essas atividades mais investimentos na
agricultura que sempre acompanhou à distância o resto da vida econômica do município (Gonçalves 1984: 22;
Senna 1996: 41, 56, 80; Seabra 1998: 215-219; O. Senna 2002: 13; R. Senna 2002: 246; Funch 2007: 13-15).
55
pode receber normalmente entre R$ 20,00 e R$ 50,00 por dia de trabalho, em geral não mais
que três dias por semana. As diárias também permitem aos donos de hotéis, pousadas,
durante meses seguidos caso seus proprietários possuam outras fontes de renda (em geral em
Salvador ou no exterior).
O alto grau de variabilidade de seus vencimentos ao longo do ano faz com que seja
preciso poupar em certos meses para que não se passe outros desprovido, algo que nem todos
os lençoenses sabem – ou estão dispostos a – fazer. Seu Gilson sempre me dizia como seu
salário de servente do banco, assim como seu ganho ocasional realizando dedetizações na
cidade, era dinheiro do trabalho suado e cotidiano, que não era feito para se esvair em festas e
bebidas como seriam os proventos do garimpo. Dona Juanita, hoje proprietária de uma
pousada – onde eu me hospedei –, comentava como foi o dinheiro ganhado lavando roupas
para um dos maiores hotéis da cidade que nunca tinha lhe faltado em épocas de dificuldade. O
dinheiro que vinha já do berço, muitos diziam, não conferia a seu possuidor a mesma
suas casas de culto como fora delas, afirmavam como precisavam ser mais lenientes quanto ao
comparecimento de seus filhos-de-santo nas cerimônias durante as épocas em que havia mais
ocupações disponíveis na cidade, raramente vai além do necessário para o sustento familiar.
Enquanto conversávamos a esse respeito, um amigo disse, sem grande preocupação, entender
56
os motivos que levavam à caracterização de preguiçosos conferida aos baianos. Sem colocar o
grau de premeditação dessas atividades em jogo, investe-se, de certa forma, nesse estilo de
(‘falta de’) receptividade e profissionalismo com os turistas, gerando uma espécie de relação
de trabalho que não se dobra ao capitalismo a qualquer preço: as pessoas preferem não abrir
devotamento absoluto aos fregueses – o que leva certos turistas e forasteiros com
empreendimentos na cidade ao inevitável comentário de que aquele “tipo de gente parece até
que não quer ganhar dinheiro”. Mais que outra coisa, impera muitas vezes uma ética do
Tão ou mais importante que o tempo dedicado ao trabalho, então, é o tempo que se
destina ao lazer. Como dissera um de meus amigos que trabalhara algum tempo em São
Paulo, ele jamais desejaria levar o tipo de vida que seus colegas de lá tinham, saindo muito
cedo e chegando muito tarde em casa, sem tempo para nada, perdendo horas no trânsito ou
com burocracia. Em nítida contraposição à “vida de paulistano”, ele me dizia, nada poderia se
igualar aos banhos de rio no fim da tarde que ele podia tomar em Lençóis, mesmo estando
empregado num dos grandes hotéis da cidade. Quando não vão tirar o dia para pescar ou
caçar, outras formas de lazer rotineiro incluem reunir-se para conversar, beber ou jogar
dominó, três dos passatempos favoritos dos lençoenses e que muitas vezes eram desfrutados
simultaneamente92.
91
Como já se escreveu sobre o tema, falando da uma Lençóis de outra época: “Nenhum trabalho, nenhuma
obrigação, nem o trabalho das mulheres em casa, exigem tudo ou quase tudo das pessoas. O trabalho não
enriquece ninguém, nem mesmo o garimpo; dá o necessário, mas também não exige demais, nem em esforço,
nem em tempo consumido. O tempo não tem pressa, passa bem devagar” (Gonçalves 1984: 57, itálico no
original).
92
Caça e pesca ali se configuram muito mais como opções de lazer do que atividades econômicas, empreendidas
hoje normalmente aos finais de semana e somente fora das áreas protegidas do Parque Nacional. Mesmo
podendo voltar por vezes de mãos abanando, a alegria desses eventos era recontada diversas vezes: “De fato,
brincar e vadiar são sinônimos, indicando a ação que se pratica pelo prazer da ação em si, pela alegria que ela
pode dar ao corpo e ao espírito do homem. [...] O tempo que podem dedicar a isto é tão ou mais importante que
aquele dedicado ao trabalho” (Gonçalves 1984: 169, itálico removido).
57
turismo, costumavam usar uma expressão específica quando falavam acerca da necessidade
de trabalhar durante quase todos os dias e por vezes por longos períodos de tempo. Tinham de
se contentar com esse destino porque, afinal de contas, “não tinham estudo”. Se é verdade que
por vezes se referiam, com essa forma de falar, a seu sentido literal, aludindo com isso à
possibilidade de obter alguns dos empregos menos mal pagos disponíveis na cidade – e em
geral eram todos bastante conscientes da quantidade de anos que cada um havia dedicado à
escola –, limitar-se a ele deixa escapar um significado mais sutil que conferem à frase.
Quando passei a ouvir a mesma expressão sendo utilizada em situações um pouco mais
inusitadas, contudo, ela foi se revelando mais rica do que à primeira vista parecia.
Mesmo as pessoas que durante mais tempo haviam estudado, chegando a terminar
quilômetros de Lençóis –, podiam dizer em determinadas ocasiões que “não tinham estudo”.
Quando uma professora que havia cursado pedagogia comentou que dois jovens franceses
podiam aproveitar a vida viajando pelo Brasil pelo fato de “terem estudo”, eu lhe disse que a
julgar pela idade deles, era bem provável que ela tivesse mais estudo que qualquer um dos
dois, ao que ela respondeu com ligeiro escárnio: “ter estudo não significa ter estudado”. Falar
sobre ter ou não ter estudo era um meio de se referir indiretamente e de modo mais amplo à
condição econômica de uma pessoa e de como ela adviria, ou justamente como não adviria,
dos anos escolares acumulados. Com o uso dessa expressão, meus amigos faziam também
certa crítica à ideia de que bastava estudar muito para ter sucesso e uma boa remuneração,
algo que a história de sua cidade tanto no passado como no presente mostrava não
93
Também não descartei de antemão a possibilidade de que a expressão surgisse ao menos em parte em função
da interlocução comigo, já que em pouco tempo pediam-me para falar mais do meu próprio trabalho como um
58
os que não concluíam os estudos, passando a trabalhar desde cedo e raramente voltando à
escola, ainda que recentemente parecesse estar crescendo o número de adultos que estudavam
O considerável fluxo de dinheiro circulando pela cidade, de todo modo, faz com que
forasteiros que para lá se mudam, por outro, tornem-se mais óbvias. Ainda que virtualmente
não exista população de rua em Lençóis, e a mendicância seja um fenômeno bastante raro e
limitado, não são incomuns os pedidos de pequenos empréstimos a pessoas cujas fontes de
renda não estão diretamente ligadas à economia da cidade, sejam moradores recentes ou
turistas que ali fiquem algum tempo e com quem o estabelecimento de uma breve amizade
dificilmente serão pagos, fato que em pouco tempo torna-se conhecido por ambas as partes,
ainda que o devedor certifique-se de mencionar sua dívida de tempos em tempos antes que a
passagem de alguns meses faça com que ela caia num esquecimento premeditado,
De modo similar, espera-se de todos aqueles que frequentam as festas nas casas de
culto de jarê que auxiliem de alguma forma, as contribuições monetárias figurando como uma
com agradecimentos e invocações de bênçãos. Faz-se necessário obter fundos com as pessoas
estudante de doutorado já tendo concluído a faculdade há um tempo considerável. Não conferi grande peso a
essa hipótese, de toda forma, já que presenciei o uso da expressão diversas vezes para falarem sobre muitas
outras pessoas e também em situações nas quais eu não estava diretamente ligado à conversa.
94
Vez ou outra, entretanto, alguém falava sobre um aluno que estudara sua vida toda nas escolas públicas de
Lençóis e com muita luta tinha passado no vestibular da Universidade Federal da Bahia para o curso de Direito,
o que me motivou a realizar uma palestra para os alunos cursando o último ano do Ensino Médio para lhes dar
detalhes a respeito de ações afirmativas existentes nas universidades da Bahia.
95
Esses empréstimos foram bastante comuns ao longo do meu trabalho de campo, especialmente pedidos por, e
feitos a, meus principais interlocutores na pesquisa. A prática, contudo, é bem mais ampla, não se restringindo
aos pesquisadores, e possivelmente possibilitada e consolidada dessa forma depois do advento do turismo em
Lençóis (Senna 1996: 38).
59
ligadas aos terreiros – aí incluídos os pesquisadores que por lá andassem – para financiar
diversos aspectos das cerimônias, fosse o pagamento de parte do transporte para os volumes
mais pesados até casas distantes, a compra de algum animal a ser utilizado numa cerimônia, a
auxílio não possa ser disponibilizado numa ocasião qualquer, mas se uma promessa é feita é
possível que perguntem, à boca pequena, se o “faz-me rir” havia sido conseguido.
estabelecidas entre os membros da religião e as demais pessoas que vão às casas de culto com
menor frequência – sejam pesquisadores, turistas, curiosos ou pessoas que desejam solicitar a
informação, uma graça, um serviço ritual, não é o dinheiro de qualquer pessoa, e tampouco o
mobilizado de qualquer forma, que entrará nesse circuito. Estabelece-se uma relação
específica que conecta o dispêndio e seu realizador à comunidade da casa de culto, por mais
interpessoais ali encetadas. Por mais que saibam precisamente o custo monetário envolvido na
realização de uma operação ritual, os membros do jarê resumem esse quadro ao não deixarem
de afirmar: “Dinheiro não conversa”. Ao mesmo tempo, por mais de uma vez contaram-me
histórias nas quais o pagamento relativo a um ritual foi integralmente devolvido a quem o
solicitara, a mando, por exemplo, de uma das entidades envolvidas no ato místico – para
descontentamento dos adeptos, como eles mesmos acrescentavam –, bem como casos nos
localização de mais diamantes para um garimpeiro, logo depois de lhes ter proporcionado um
achado confirmado.
O fato de que se comenta bem menos a respeito daqueles que fizeram fortuna com o
não gastaram de maneira extravagante tudo que ganharam. Como mencionado, a insistência
muito mais pelos grandes pedristas, donos de serra, coronéis do diamante e seus descendentes
do que um lamento a respeito do passado, posto que alguns garimpeiros que vivenciaram
momentos de fortuna ontem e hoje ao longo de suas vidas afirmam: dada a chance, muitos
deles fariam de novo exatamente tudo aquilo que fizeram, proporcionando momentos, por
Ao longo da história de Lençóis, se foi gasta maior quantidade de dinheiro com algo
que não tenha sido a companhia das mulheres-dama da cidade, é bem provável que tenha sido
prediletos dos lençoenses, que cultivam certa predileção pela aguardente de cana97. É bastante
comum que todos tenham em suas casas ao menos uma “meiota”, correspondente a meio litro
originalmente usadas para água mineral –, e que a degustem diariamente. O hábito bastante
reconhecem abater-se sobre algumas pessoas. Assim como nas épocas de declínio da
idade já mais avançada – que passam seus dias praticamente inteiros a beber, esvanecendo-se
96
Vários dos garimpeiros conhecidos que de fato fizeram fortuna mantiveram-na por terem deixado tudo para
trás e se mudado para bem longe (Ganem 2001: 71, 137). Constata-se que a atitude perdulária imputada aos
garimpeiros das serras afina-se mais com a disposição propalada pelos donos de garimpo (e seus biógrafos), ou
ao menos dificilmente parece ter sido exclusiva dos primeiros (Pereira 1910: 66; Moraes 1963: 36; Gonçalves
1984: 23; Ganem 2001: 85-87, 139).
97
Ocorrência atribuída ao caráter fronteiriço de comunidades como a garimpeira (Gonçalves 1984: 23), sendo
que em Lençóis é bem provável que aquilo que se escreveu sobre o uso de bebidas num estudo feito numa
comunidade rural de outro município da Chapada seja igualmente válido, a saber, que “quem não bebe[,] já
bebeu” (Brantes 2007: 35).
61
quaisquer economias e saúde que ainda cultivem, normalmente aglomerando-se nos, e diante
dos, armazéns nos quais podem encontrar um passante, conhecido ou não, que lhes pague
Essa costuma ser uma situação que incomoda tanto os visitantes da cidade como seus
moradores, visto que se corre o risco de não se distinguir as pessoas que de fato apresentam
um problema com a bebida daquelas que a apreciam de maneira mais comedida – até porque é
frequente todas beberem juntas sem grandes problemas. O fato de que uma pessoa possa
interessados em lidar com o problema do alcoolismo na cidade, ao tentar evitar que ele
acometa especialmente os mais jovens – ainda que seja praticamente consensual o diagnóstico
de todos os envolvidos de que sua incidência se relaciona com uma determinada falta de
perspectiva de futuro que se agravou com o crescimento da economia do turismo, mas que
pode ser igualmente resolvida tanto com a participação adequada de toda a população em seus
frutos como por meio da influência familiar. Certa vez, enquanto caminhávamos de manhã
bem cedo pela cidade, Seu Gilson e eu fomos surpreendidos por uma algazarra feita por dois
jovens bastante novos que haviam bebido consideravelmente na madrugada anterior e ainda
não tinham voltado para suas casas. Quando o avistaram, os jovens recobraram a compostura
irem para suas casas. Seu Gilson logo em seguida me disse que já tivera de conversar com a
polícia em outra ocasião para que eles não fossem presos, prometendo às autoridades que os
meninos ficariam sob seus cuidados, passando-lhes em seguida um bom sermão para que
tomassem mais jeito – e terminou o relato fazendo questão de se certificar se eu havia notado
98
Uma forma comum de se dizer, em geral de modo espirituoso, que sua situação financeira não anda muito bem
é afirmar que não se possui dinheiro nem para comprar cachaça.
62
Muitas pessoas bebem por gosto, mas aquelas que rotineiramente cometem excessos
podem fazê-lo por diferentes motivos, aí incluídos tanto a “falta de vergonha na cara” como
problemas de ordem mística, caso daqueles que “bebem forçado”. Se alguém, mesmo depois
de diversas medidas levadas a cabo por seus amigos e familiares, e mesmo depois de
empreender esforço pessoal genuíno para tanto, não consegue livrar-se do álcool, é grande a
possibilidade de que a presença de algum tipo de espírito seja responsável pelo vício.
Configura-se dessa forma um problema a ser apresentado a, e talvez resolvido por, líderes
religiosos do jarê, que podem prescrever diversas formas de tratamento para os aflitos, desde
remédios naturais, banhos e garrafadas, até rituais mais complexos a serem realizados ao
longo de diversos dias nas casas de culto – e que podem chegar a custar bastante caro –,
conforme cada caso. Todas estas medidas, que por ora não serão descritas em detalhes, irão
conectar em graus distintos os novos adeptos a seus curadores e casas de culto, consistindo
Nunca ouvi ninguém, contudo, acionar razões de ordem espiritual para justificar o uso
excessivo de drogas, problema considerado bastante grave pela maioria das pessoas da cidade.
Ao contrário, meus amigos ligados ao jarê diziam que um curador tomava especial cuidado
quando era procurado por alguém que buscasse atrelar a dependência química dessas
substâncias a qualquer razão mística, orientando-o em vez disso a procurar tratamento clínico
ou acompanhamento psicológico – mesmo porque arriscar-se a prometer a cura para algo que
poderia ser um vício pessoal ou uma “doença de médico” provavelmente não traria senão
Não foi o turismo que trouxe por completo as drogas para a cidade, mas é bem
possível que tenha sido um dos responsáveis por ampliar a presença de algumas dessas
substâncias entre os lençoenses, alguns dos quais teriam contato pela primeira vez com a
99
O tema da bebida alcoólica, em especial a cachaça, igualmente retornará sob diferentes ângulos em todos os
demais capítulos da tese, nas seções 2.1, 3.2 e 4.4.
63
heroína, por exemplo. A maior parte dos turistas que vieram morar na região em busca de
estilos de vida alternativos, contudo, preferia o uso da maconha, costume que passou a ser
compartilhado por alguns dos nativos, em especial os mais jovens. Sua utilização em si não
gera maiores inquietações para muitos dos habitantes Lençóis, e a grande demanda por guias
que acompanhem o ritmo dos usuários – desejosos de fumar a erva envoltos pelas paisagens
naturais deslumbrantes da Chapada – fez com que muitos dos nativos também passassem a
cultivar o hábito. Os lençoenses que se envolvem com esse lado do turismo preocupam-se
reprimidos pela polícia, o que faz com que ampliem o cuidado ao plantá-la e vendê-la, não
sendo, contudo, incomum ouvir falar de amigos e parentes que se encontram na cadeia, em
O mesmo não pode ser dito, todavia, sobre a percepção que impera a respeito das
como representando um grave problema, e muitas são as histórias de pessoas que já tiveram
suas vidas arruinadas pela droga – ou de jovens que há pouco tempo ingressaram no mesmo
caminho. Os pontos de tráfico se distribuem nos bairros menos próximos do centro da cidade,
de acesso ainda relativamente fácil, e onde mora a maior quantidade dos seus usuários. É
comum que as pessoas na rua comentem, ao ouvirem rojões disparados fora de épocas
festivas, que aquele é um sinal de que um carregamento de drogas acaba de ser entregue
nesses bairros. Ainda que eu não tenha sido capaz de descobrir a exatidão dessa assertiva, em
geral feita acompanhada de um riso ligeiramente nervoso, é certo que a distribuição local do
64
tráfico cria também disputas territoriais entre os chefes das bocas de fumo, que podem
cidade, mostrando-se bastante chocantes quando acontecem. É possível caminhar pelas ruas
de Lençóis a qualquer hora do dia e da noite, valendo contudo alguma precaução especial por
parte de mulheres desacompanhadas que habitem a uma distância mais considerável da sede e
que precisem se distanciar das vias iluminadas para chegarem a suas casas. Pessoas que
dificilmente serão alvo de qualquer tipo de violência, já que há certo receio de que eventos do
tipo possam prejudicar a reputação turística da cidade, o que colocaria em jogo sua fonte
quase exclusiva de renda. O único caso de que fiquei sabendo enquanto eu morava em
Lençóis havia sido protagonizado por um homem armado à faca que havia interceptado
grupos de turistas que percorriam uma trilha próxima. Conforme relataram, o assaltante
abordava todas as suas vítimas com um pedido de desculpas e justificava seu ato dizendo que
precisava de dinheiro para manter sua casa e sustentar seu vício em drogas, apertando-lhes as
Cria-se dessa forma um quadro no qual os principais alvos dos episódios de violência
assassinato que acontecera, certa noite, momentos antes de eu chegar a um dos bairros
periféricos de Lençóis, a caminho de um jarê numa casa mais afastada da cidade. Percebendo
que eu notara a comoção que se organizara no entorno, amigos que encontrei no local me
informaram que um senhor bastante idoso acabara de ser morto a tiros por alguns jovens que
haviam assaltado seu domicílio, sabendo que ali estavam guardadas suas economias –
estimadas em R$ 4.000,00, posto que ele recebera por muitos anos uma aposentadoria do
Houve uma espécie de onda de medo que se espalhou pela cidade quando a esses
eventos somaram-se o sequestro de uma menina de nove anos – filha de uma dona de pousada
na cidade, devolvida em troca de resgate –, bem como o estupro de um senhor também mais
velho residente de um povoado distante alguns quilômetros da sede do município. Por mais
que o surto tenha sido contido com ação policial, por vezes resultando em mortes dos
envolvidos, sua repercussão deixou a população temerosa tanto por sua segurança como pelos
efeitos que podia ter em sua economia, e é significativo o comentário que partiu de alguns
guias turísticos numa conversa da qual eu participava. Segundo eles, caso encontrassem com
algum desses criminosos sozinhos em meio a alguma trilha pela Chapada – posto que são
usadas por aqueles que as conhecem bem tanto para se chegar a esconderijos quanto como
rotas de fuga longe da observação– não hesitariam em lhes “passar o facão na garganta ali
mesmo”, dizendo que em seguida alegariam terem agido em legítima defesa para não irem
para a cadeia. Os guias avocam a si, de certa forma, o mesmo papel que tinham no passado os
garimpeiros que precisavam fazer justiça com as próprias mãos, considerando inclusive o
recurso a procedimentos místicos para não serem encontrados após o feito, caso isso fosse
1.3 Caminhos
bastante felizes e tranquilas, sem ignorar os obstáculos que lhes são apresentados, mas
fazendo todo possível para encontrar alternativas para lidar com eles. Possuem diversas
opções de lazer que cultivam com grande empenho e interesse, das mais rotineiras como
66
pequenos encontros para se jogar conversa fora às mais eventuais como festas e outros
eventos comemorativos. As crianças e os mais jovens mostram especial predileção por brincar
nas ruas e praticar esportes, especialmente o futebol, que mais costuma fazer sucesso, não
sendo incomum que torçam por times tanto de seu estado como para os de outros, como os do
Rio de Janeiro ou por vezes os de São Paulo. O campeonato anual entre os times locais dos
Nessa chave, entretanto, a atividade mais praticada pelos jovens lençoenses, e uma de
mensalidades dos demais alunos que porventura queiram se matricular, como turistas ou
ensino da arte e da luta ao incentivo de uma conduta moral que desestimule o consumo de
bebida alcoólica e que não oferece nenhuma tolerância ao uso de drogas por parte dos alunos.
sucedidos, que participam de eventos importantes no país e fora dele, cuja postura exemplar
de disciplina e perseverança deve ser seguida tanto no mundo do esporte como fora dele.
dela. Os capoeiristas em geral realizam uma roda pública toda semana no prédio do Mercado
exibido ou com clavas de madeira ou com facões, quando estão envolvidos somente os atletas
mais experientes. Pouco antes do término desses eventos um dos representantes da academia
costuma tomar a palavra para falar um pouco do trabalho realizado pelos professores, indicar
67
aos presentes que ali se encontram todos os alunos que quiseram participar, não tendo sido
uniformes novos para seus alunos – enfatizando que os capoeiristas são pessoas pobres e
descendentes dos garimpeiros da região –, que em geral nunca deixa de receber contribuições
As rodas de capoeira constituem uma cena muito atraente tanto para os visitantes
capoeiristas vindos de outras regiões ou batizados, nos quais os alunos receberão cordas
indicando sua passagem a um grau mais elevado, lotando o prédio do Mercado Cultural com
Esquiva de capoeira, não se centra em um estilo regional ou angola de jogo, ensinando que os
crescente de velocidade nos golpes, começando sempre com toques lentos e movimentos
bastante próximos do chão e terminando com lutas bastante velozes e acrobacias aéreas
Somente dois lutadores ocupam o centro da roda durante cada embate, os demais
com canto e palmas, respondendo às músicas puxadas por um solista localizado junto aos
atabaques, pandeiros e berimbaus. Cada dupla luta por alguns instantes e deve se despedir
amigavelmente antes que se suceda a seguinte, que deve lhes indicar com um gesto seu desejo
intercepte a entrada da dupla seguinte caso deseje travar um embate com um dos capoeiristas
que já se encontra na roda, fazendo com que determinados atletas tenham muito mais tempo
de exposição que outros – que podem, por sua vez, mostrar-se frustrados ou resignados com o
68
fato de passar ainda mais tempo sentados na roda. Os organizadores do evento, em geral os
mestres de cada academia, fazem o possível para controlar esses excessos, ainda que haja
mais leniência com os capoeiristas mais hábeis, que oferecem apresentações mais ostentosas.
indique, oferecendo sua mão para ser cumprimentado, que almeja encerrar o confronto e ceder
espaço aos próximos capoeiristas. Somente os atletas menos graduados e experientes ignoram
o fato de que essa é em geral uma manobra que pode se voltar contra ele, já que o primeiro
capoeirista pode estar apenas blefando com sua oferta de trégua e pode aproveitar a
oportunidade de ter seu adversário com a guarda baixa para lhe aplicar um golpe certeiro.
Ainda que em geral nas rodas de capoeira todos os golpes sejam desferidos sem objetivo de
que ocorra contato físico entre os lutadores – as pequenas vitórias lembrando muito mais os
poderia ter acontecido, atestando o desempenho superior de um dos atletas –, é possível que
mais comum entre capoeiristas de grande intimidade e habilidade similar, entre rivais que
batizados, entre atletas com cordas de diferentes gradações que costumam aplicar quedas
envolvidos, e após o último cumprimento coletivo ela cede lugar a uma roda de samba com os
praticantes. Inicialmente o mesmo esquema circular permanece, agora com todos levantados e
galantear. Enquanto ambos dançam e a moça costuma ignorar solenemente os cortejos do que
69
faz papel de pretendente, outro rapaz deve se intrometer e se colocar no lugar do primeiro
para dar continuidade à tentativa. O mesmo pode ser feito por outra mulher que substitua a
primeira, e as crianças são encorajadas a participar tomando o lugar de seus professores: nesse
momento ambos podem estar em pé de igualdade, até que um homem mais velho rompa o
meio do círculo e carregue o pequeno de modo cômico de volta para a beira da roda.
tanto no passado como nos dias de hoje, nutrem para com a atividade de caminhar, em suas
mais distintas faces. Enquanto os homens andam por longos trechos em seu trabalho diário, as
mulheres também se locomovem consideravelmente em seu cotidiano, seja para pescar, lavar
roupas ou buscar lenha. O mesmo pode ser pensado a respeito dos ditados, expressões e
lençoenses. É comum dizer de alguém confiável que se trata de uma pessoa que “pisa seguro”
ou possui “pé firme”, e para falar sobre a exemplaridade da conduta de uma pessoa basta dizer
que se “pisaria onde ela pisar”. Reproduzir as ações de alguém é querer “trilhar seu caminho”,
que “quem corre cansa e quem anda alcança”, e são muitas as referências que fazem para falar
de problemas na vida como obstáculos a serem transpostos num trajeto. Ao se deparar com
alguma dificuldade que poderia desanimá-lo, um amigo adorava dizer: “isso não é muro alto
que não dê para pular, nem rio fundo que não dê para atravessar”100.
100
A literatura registra de modo similar, entre outras expressões, por exemplo a que diz que “pé que não anda,
não leva topada” (Gonçalves 1984: 115), que é entendida na região como um incentivo a caminhar apesar das
adversidades.
70
A própria topografia da cidade tem nos inúmeros acidentes naturais uma marca
uma serra, Lençóis se formou e tem crescido espraiando-se por ladeiras rochosas que fazem
com que a locomoção diária por ela e seus arredores envolva quase verdadeiras escaladas. O
calçamento das ruas é no melhor dos casos feito com paralelepípedos – nos trechos em que
veículos mais pesados podem trafegar, como no que vai da entrada da cidade até a rodoviária
–, com um arranjo de pedras dos mais variados tamanhos101 – na maior parte da cidade,
incluindo o centro histórico, e dessa forma parte do conjunto tombado como patrimônio –, ou
ainda de terra batida ou mesmo do próprio afloramento da rocha – caso mais frequente na
manipulável, não sendo incomum que moradores arranquem pedras do calçamento seja para
fincar algo na terra, por exemplo um mastro da bandeira durante épocas festivas, seja para
lhes conferir outro propósito temporário, como servir de calço ou degrau. Além desse hábito,
fazem com que se deparar com um funcionário da prefeitura encarregado de consertá-lo seja
evento corriqueiro.
O cuidado ao se caminhar por Lençóis e suas cercanias envolve prestar atenção não só
ao relevo como à presença de animais perigosos que ali vicejam, fortalecendo uma sensação
de instabilidade inerente ao percorrer suas vias e trilhas. Histórias de onças na região não são
tão comuns, ainda que longe de inexistentes, avistadas em geral depois de grandes incêndios
na Chapada. Encontros com ameaças peçonhentas, contudo, constituíam relatos habituais dos
nativos, que faziam todo possível para se livrarem de escorpiões muitas vezes encontrados em
suas casas. Há também insetos cuja ação nociva é muito temida, como o potó, que aparentam
ser pequenas formigas aladas que secretam uma substância cáustica que causa dolorosas
101
Cujo nome registra-se ser “espinha de peixe” (Ganem 2001: 99) ou ainda “cabeça de nego”, como me
disseram.
71
queimaduras, ou o cavalo-do-cão, grande vespa que se alimenta de aranhas maiores que ela
paralisando-as com um veneno que causa dor muito intensa em seres humanos102. Nenhum
animal é responsável por maior número de desventuras, todavia, do que as cobras que se
movimentam pelo território. Ainda que haja muitas espécies que não possuam veneno, ali
responsáveis por diversos acidentes e óbitos. Sempre que possível, quando se deparam com
uma dessas serpentes, os habitantes da região preferem matá-la para evitar a incidência de
mais ofensas, já que elas podem ser encontradas tanto nas trilhas turísticas como nas próprias
casas dos moradores, em especial as menos próximas do centro da cidade. Sua presença é um
motivo adicional para que a atenção que dão ao chão seja redobrada cotidianamente.
Tanto o padroeiro dos garimpeiros – cujo nome Senhor dos Passos ganha aqui um
sentido adicional –, como um ofídio figuram como protagonistas de uma das muitas histórias
contadas em Lençóis. Segundo uma de suas versões, conta-se que, ainda no início do
de grande parte das terras da região, doou para a Igreja o terreno no qual foi erguida a capela
de Senhor dos Passos, solicitando, contudo, que esta fosse construída com a frente voltada
para seu casarão. Como atender a seu desejo faria com que a capela ficasse de costas para
todo o restante da cidade, acharam por bem construí-la da forma como se mantém até hoje,
voltada para o Rio Lençóis e para a maior parte da cidade. Carvalho, enfurecido, evitou até o
fim de seus dias passar diante da capela, e morreu desgostoso, deixando sua única filha,
Ricardina, como herdeira. Quando, anos mais tarde, por motivos sobre os quais há
divergências, a sepultura do falecido foi aberta, em vez de encontraram ali seus restos mortais,
102
No primeiro caso, o Paederus irritans. No segundo, diversas vespas do gênero Pepsis.
103
Provavelmente Micrurus corallinus e Bothrops leucurus, respectivamente. A distinção correta da coral-
verdadeira para suas congêneres não venenosas só é possível de distâncias bem próximas, o que faz com que as
demais sejam igualmente evitadas.
72
acobertado por membros da Igreja. Essa cobra, prossegue a história, passou então a habitar
sob a Ponte dos Suspiros, ali se ocultando e ameaçando destruir toda a cidade num rompante
de fúria, algo que é impedida de fazer somente graças às duas passagens anuais do Senhor dos
Passos em procissão pela cidade – sendo fundamental que ele pise em sua cabeça ao cruzar o
rio. Ricardina viria a falecer bastante velha e sem muita lucidez, tendo se embrenhado por
Certo dia, Seu Gilson me disse que não estava andando com sua agilidade costumeira,
pois havia ferido o pé numa trilha no final de semana. Ainda que eu mal tivesse percebido a
diminuição no ritmo de seu passo, já que ele continuava a se locomover com muito mais
velocidade que eu pelas ruas da cidade, esse foi mais um momento em que constatei a grande
preocupação dos lençoenses com o chão e o caminhar, e que se traduz também numa atenção
aos pés e aos calçados, em particular. A maior parte das pessoas da cidade anda sempre
descalça ou com sandálias de borracha105, hábitos que adquiri depois que uma criança que já
tinha alguma intimidade comigo me perguntou se afinal de contas eu havia “nascido de tênis”.
As sandálias costumam ser retiradas quando se entra na casa de alguém e deixadas junto à
porta para que não se leve terra para os cômodos no seu interior, e repousadas com sua frente
apontando para o lado de fora. Não se deve, tampouco, deixá-las em nenhuma ocasião com as
solas voltadas para cima, como eu aprendi depois de ter tentado proteger do sol o calçado de
um amigo, sob risco de fazer mal à mãe de seu proprietário. Do mesmo modo, como me
disseram algumas pessoas, não é saudável dormir com os pés voltados para a porta de saída de
104
Essa é uma síntese baseada nas versões que ouvi e nas que estão disponíveis na literatura (Ganem 2001: 21-
24, 75-78; Brasil 2009: 27-32). Do solar que pertencera à família restavam hoje apenas ruínas, que fotografei a
pedido de um dos meus amigos que muito se interessava pela história, visto que em breve seriam demolidas de
vez para dar lugar a uma nova construção. Ver foto 10 no anexo III.
105
Ainda que a maioria possua também tênis e sapatos, estes guardados para os dias de festa na cidade e aqueles
sendo usados pelos guias em seu trabalho, diferentemente dos garimpeiros que preferiam sandálias de couro
(Gonçalves 1984: 55).
73
casa, assim como é ainda pior se as mãos forem deixadas cruzadas sob o peito, já que essa é a
órgãos públicos por costumarem andar somente de carro numa cidade tão pequena como
Lençóis. O próprio hábito de caminhar é por eles valorizado como algo que ajuda a lhes dar
Ultimamente professores de educação física têm investido no grande talento que demonstram
as crianças da cidade para a corrida, aproveitando a única parte relativamente plana e com boa
piso recentemente reformado – para treinar ao longo do dia, em geral sob um sol escaldante,
resultando em sua participação em disputas até mesmo fora da região. Muitos são os
moradores que contam em torno de um século de vida, e há vários idosos que procuram
manter o hábito de caminhar pelas serras. Contaram-me certa vez a respeito de uma senhora
que, de idade já bastante avançada e sem nenhuma condição de caminhar, pôs-se um dia de pé
e insistiu em caminhar sem ajuda até o rio para lavar roupas – algo que ninguém acreditou que
seria capaz de fazer. Finda a atividade, que provavelmente exigiu todas as suas forças, deitou-
acontece rumo à feira da cidade todas as segundas, ainda que mais recentemente aconteça
uma versão menor às sextas108. Antigamente hospedada no grande galpão vazado que hoje
106
Ainda que as idades que apresentam (Ganem 2001: 33, 58, 61, 64, 76, 93) possam nem sempre corresponder a
uma contagem de anos precisa, já que é comum oferecerem datas aproximadas para seus anos de nascimento, a
valorização da longevidade é uma constante na percepção dos próprios lençoenses, atribuída também a uma
alimentação saudável e à participação contínua na vida da comunidade (Gonçalves 1984: 98, 222).
107
As considerações aqui tecidas a respeito do caminhar reaparecerão em conexão com o jarê na seção 4.4.
108
Desde que se tem registro, a feira em Lençóis acontece às segundas (Pereira 1910: 47; Moraes 1963: 156).
Disseram-me que esse dia foi escolhido para se adequar às feiras que já aconteciam em outros dias da semana
nas cidades próximas, Lençóis tendo se integrado ao circuito preexistente.
74
abriga o chamado Mercado Cultural, a feira de Lençóis foi movida para uma área
cidade se concentra cada vez mais. Se essa modificação foi vista com maus olhos por grande
parte da população, a ida à feira não deixou de ser o principal evento semanal no qual todos se
encontram, fazem compras, conversam e bebem por longas horas, quando o tempo e os
compromissos da semana assim o permitem. A feira se distribui pelo novo prédio construído
para ser o Mercado Municipal – no interior do qual há também pequenos bares explorados por
moradores – e principalmente por uma área ao ar livre ao redor dele. Ali são vendidos não só
usadas por homens e mulheres nas mais diversas ocasiões e para carregar todo tipo de objeto.
Não é comum haver preços dispostos nos produtos à venda, o que faz com que possam flutuar
anos. Tanto os preços como as pesagens das quantidades compradas podem ser barganhadas,
proprietária da pousada onde inicialmente me hospedei em suas idas semanais à feira. Dona
Juanita circulava por um bom tempo pelas diversas barracas, comprava os mesmos produtos
envolvidos não só a procura por melhores preço e qualidade dos alimentos, mas também um
investimento nas relações mantidas com as pessoas. Comprar com os amigos pode importar
tanto quanto – ou até mais que – o valor da compra em si, já que não é qualquer um que faz
semanais é se atualizar a respeito das novidades. A fofoca é uma arte bastante estimada em
primeira e mais comum delas afirmar que qualquer comentário feito sobre alguém não tem
por objetivo denegrir a pessoa. “Eu não estou falando mal de ninguém, mas dizem que...”109, é
a fórmula que antecede todo comentário que poderia soar como uma injúria. Nem toda
conversa gira em torno de fofocas, mas a predileção por repassar histórias menos usuais
ouvidas de terceiros caracteriza a atividade de “dar sotaque” ou “fazer fuxico” que, de todo
modo, é sempre ouvida com uma dose de cuidado110. Estando a própria acuidade dos fatos em
suspensão contínua – sempre se comentava como era difícil ter certeza de até que ponto um
causo esbarrava no exagero –, é também raro que os fuxicos gerem grandes desentendimentos
entre os envolvidos – até porque cortar relações com alguém bloqueia ainda mais o acesso à
opinião da pessoa em questão, o que a deixaria ainda mais livre para falar todo tipo de
inverdade111.
indireta a alguém, já que não é sempre que uma pessoa deseja assumir o ônus de ser taxada de
“sotaqueira” ou “prosa ruim”. Um amigo certa vez veio me contar uma fofoca que havia sido
feita a meu respeito, que chegara a seus ouvidos contada por outro amigo em comum. O
nossa proximidade, o outro amigo jamais teria lhe contado a fofoca se não quisesse que ela
chegasse aos meus ouvidos. Com o tempo muitas pessoas se acostumam a ser alvo de fuxicos
109
A construção efetivamente enunciada possui a forma “diz-se que” ou “diz’que”, identificada em – e seguindo
a grafia proposta pela – pesquisa realizada no município de Chapada Gaúcha, interior de Minas Gerais, que faz
limite com o estado da Bahia (Carneiro 2010: 23-24).
110
As ligações entre essa atividade e sua correspondente mística no jarê serão exploradas no capítulo 4, na seção
4.1.
111
Como já se disse uma vez em outro contexto, no candomblé “as pessoas não cortam relações. Continuam se
visitando e difamando umas às outras” (Fichte 1987: 56).
76
e comentários dos mais variados tipos – e até também a fazê-los na mesma medida –, o que
levou uma brilhante senhora, de quem falarei mais detidamente no próximo capítulo, a cunhar
um bordão repetido por muitos na cidade. Sempre que perguntavam como ela estava
passando, respondia sem titubear: “Vou bem, meu filho. Estou na paz de Deus e na língua do
povo”.
aceitável entre os lençoenses. Quando se referem à discrição que se fazia por vezes necessária
para o bom convívio, costumam usar o ditado sintético: “Olho viu, boca: pio”, cuja
sonoridade é também uma brincadeira com o nome das sacolas anteriormente mencionadas. O
fato de morarem numa cidade bastante pequena também leva algumas pessoas, especialmente
os mais jovens, a recorrerem a códigos e linguagens cifradas para falar a respeito de pessoas
que podem estar próximas o suficiente – caminhando numa praça, no banco ao lado ou ainda
numa mesa adjacente no mesmo bar – para que ouçam o que está sendo dito sem que se deem
conta de que é delas que se está falando. Essa parece uma versão da prática bastante difundida
sempre de maneira bastante indireta: “aí ela chegou lá – aquela, você sabe, né?”; “quando ele
apareceu aqui – aquele do irmão que esteve aqui esses dias, entendeu, né?”; “disseram que ela
foi sozinha até lá – lá onde a gente passou aquela vez, lembra?”. Ao fazê-lo, entretanto, via de
regra o falante procura se certificar de que seu interlocutor está seguindo as referências
indiretas que faz, ainda que a confirmação nem sempre seja assegurada e possa gerar novas
versões do que se ouviu. De todo modo, essa é uma maneira que encontram para limitar a
capacidade de proliferação das histórias por outras pessoas, já que somente de posse das
112
Os efeitos dessa forma descritiva para a escrita etnográfica serão abordados no próximo capítulo, na seção
2.2.
77
Há também, é claro e de qualquer forma, pessoas que, a depender da situação, não têm
receio de dizer o que pensam, o que não significa que estejam com isso falando qualquer coisa
que dê na telha. Um grande amigo, famoso por gostar de fofoca – não coincidentemente um
dos meus mais importantes interlocutores no trabalho de campo –, costumava dizer a respeito
do assunto: “Minha missa é de corpo presente”. Com isso, queria dizer que não hesitava em
fazer um comentário a respeito de alguém na frente da própria pessoa. Para ser mais preciso,
isso não significava tanto que ele não falasse de ninguém a não ser que a pessoa em questão
estivesse presente, mas que, fosse o caso de falar abertamente com alguém sobre algo que
essa pessoa pode não gostar (como uma crítica feita a ela), ele não teria receios de fazê-lo –
Conversar, de maneira geral, é uma prática à qual os nativos dedicam boa parte de seu
tempo livre e sua atenção. Em qualquer reunião, se permanecerem todos em silêncio por mais
que alguns segundos, gera-se visível apreensão, a quietude em último caso pode ser quebrada
com uma exortação dirigida a alguém ou ao grupo de modo geral: “Conversa, gente!”. Ao
caminhar pelas ruas da cidade espera-se que os amigos parem para conversar sempre que
possível, no mínimo oferecendo seus cumprimentos de passagem – mesmo que isso signifique
somente dar um grito rumo ao interior da casa de um conhecido quando se passa diante dela,
sem precisar esperar resposta. Quando há tempo para uma conversa mais detida, nas quais
podem contar seus causos com mais calma, os lençoenses demonstram não gostar de
sofreguidão, algo que fica patente em seu estilo de falar bastante cadenciado. Se um ouvinte
busca apressá-los, arriscando palpites sobre o desenrolar de uma história que está sendo
inusitadas e com desfechos engraçados, felizes em arrancar gargalhadas de sua plateia, por
sua vez motivada a contar novos causos enquanto houver tempo e disposição para que sejam
ouvidos.
78
1.4 Criatividades
aproximações fonéticas entre palavras distintas, seja pela entonação que dão ao falar e ao
empregar interjeições – e especialmente com expressões de duplo sentido que possuam cunho
sexual. Até um simples “vai na frente, que eu vou atrás” durante uma caminhada pode ser
interpretado como provocação amistosa, tanto mais engraçada quanto o alvo da brincadeira ou
não se dê conta dela ou, ao contrário, lhe dê importância demasiada e passe a resmungar ao
pilhéria e retruca com uma própria, dando continuidade à graça. O Iphan e o Ibama, para dar
outro exemplo, são apelidados de modo jocoso de Infame e Imbroma (ou Ibrahma)113.
Especialmente entre as pessoas mais jovens e com maior contato com os turistas, é comum
brincar trocando os nomes de determinados locais e ocupações para lhes conferir, de modo
shopping”; no lugar de passarem o fim de semana na roça, se divertem dizendo que irão “se
retirar para o sítio”; em vez de dizerem que moram na periferia da cidade, falam sobre seus
“empresários”.
Se essas são gozações feitas mais frequentemente entre amigos, há aquelas encenadas
sobretudo diante de turistas, diante dos quais há entre os nativos um pacto informal de não
gostam de criar outras histórias de vida para si, e testar quão consistentes podem fazê-las
113
Piada atribuída à antipatia da população diante da ação fiscalizadora dessas entidades (Brito 2005: 225), outra
amostra do humor que é há muito atribuído aos habitantes da região (Moraes 1963: 68 nota **; Senna 1998:
202).
79
parecer sob o escrutínio de estranhos. Assim é que podem mudar seus nomes e sobrenomes,
dizer que nasceram em outros estados ou países tendo depois se mudado para Lençóis,
são monumentais, fornecendo nomes próximos dos seus, dizendo-se originários de países nos
quais sua cor de pele não causaria estranhamento (uma moça dizia ter nascido no México mas
vindo muito nova para o Brasil e tendo sido aqui adotada, daí não ter um bom espanhol; um
rapaz costumava dizer que era descendente de italianos – mas da Calábria, o que justificava
sua pele morena). Só depois de algum tempo fui descobrir, por exemplo, quando ele me
contou, que um desses jovens ainda cursava sua graduação em pedagogia, e não a pós-
graduação a que tinha feito referência assim que fomos apresentados, depois de ter descoberto
minha escolaridade.
Uma dimensão importante desse tipo de ação realizada por jovens lençoenses seria
perdida caso eu as apresentasse aqui como uma mera forma fantasiosa e compensatória de
invenção, que seria colocada em marcha para que eles tentassem atingir um mundo fora de
seu alcance efetivo, trazido cotidianamente para suas memórias e imaginações não só pelos
meios de comunicação como pelo próprio contato com turistas de diversas partes de globo.
Em lugar disso, prefiro conferir aqui ênfase à potencialidade criativa que demonstram ao fazê-
lo, vendo nas ações de elaborar, contar e testar os limites dessas histórias a possibilidade de
vivenciar uma realidade distinta da sua, por mais que o façam de maneira parcial, artificial e
temporária, sem falsear a alegria e a diversão que elas efetivamente lhes proporcionam. Nada
garante que essa predisposição autofarsesca, além disso, não faça parte de um conjunto de
medidas de criação de uma história pessoal da qual podem passar a se orgulhar, e que ela não
seja igualmente reversível, como bem exemplifica o que se passou com um desses meus
amigos. Desde bastante novo ele havia optado por mudar informalmente seu sobrenome, já
80
que ele é negro e o compartilhava com a família tradicional de maior reputação escravocrata
na região. Essa medida foi, contudo, repensada quando outro jovem, capoeirista, com o
mesmo sobrenome que ele tinha anteriormente, tornou-se protagonista de um filme lançado
Quase todas as pessoas na cidade têm ou já tiveram algum apelido, e muitas delas
passam a ser conhecidas quase que exclusivamente por eles. Eles costumam derivar ou de
algum evento ocorrido quando se era mais novo, ou de alguma peculiaridade em sua
aparência, ou ainda de algum traço de sua personalidade. Os forasteiros que passam a habitar
na cidade também costumam recebê-los, bem como os visitantes que passam mais tempo em
Lençóis. Um dos meus preferidos foi o que conferiram à promotora pública, uma moça de
aparência asiática vinda de São Paulo e conhecida por seu temperamento invocado apesar da
baixa estatura: em pouco tempo ficou conhecida como “Tsunami”. Não demorou para que
também me dessem alguns, o principal deles e que facilitava meu reconhecimento e atribuição
a um lugar de origem distinto da Chapada foi o de “Carioca”, mas as pessoas com quem
passei a ter mais intimidade preferiam chamar-me mesmo pelo nome ou por alguma variação
afetuosa dele.
Qualquer pessoa, seja homem ou mulher, e qualquer seja sua idade, pode ser chamada
de forma indistinta de “moço”, da mesma forma como em outras partes do país se usa “cara”.
o homossexual do sexo masculino mas na prática é muito mais usado de forma jocosa entre
amigos próximos ou mesmo provocativa de pais para filhos – mas dificilmente no sentido
inverso. Pais e mães costumam chamar seus filhos pelos termos de parentesco pelos quais eles
próprios devem ser chamados, independentemente do sexo da criança. Assim, um pai pode
chamar seu filho ou filha de “pai” e uma mãe pode chamar seu filho ou filha de “mãe”, o
114
O longa-metragem Besouro, superprodução dirigida pelo publicitário João Daniel Tikhomiroff, sobre o qual
falarei um pouco mais no capítulo 3, seção 3.3.
81
mesmo se estendendo aos tios e avós, mas todo esse procedimento só costuma acontecer
quando estão se dirigindo a crianças, o que evidencia nele certo caráter pedagógico. O mesmo
acontece entre os membros de um casal assim que passam a ter filhos, o marido podendo
chamar a esposa por “pai” e esta o chamando por “mãe”, especialmente diante dos próprios
rebentos.
O falar local é colorido por uma série de interjeições usadas com grande frequência
para indicar espanto, surpresa, ironia, aborrecimento, repulsão ou menosprezo. Entre essas se
encontram muitas que remetem ao catolicismo popular, muitas vezes ditas em tom de
deboche, como “Ave, Maria...”, “Maria, valei-me...”, “Deus é mais...”, “vixe...”. Outras
usadas com os mesmos sentidos mas que não derivam do universo religioso são “qual...”, “lá,
ele...” e “ôxe”, por vezes empregadas sozinhas como resposta seca a uma pergunta
pelos forasteiros, mesmo porque elas parecem sintetizar um estilo mais circunspecto e conciso
uma cidade povoada por contingentes populacionais oriundos tanto do litoral da Bahia como
do interior de Minas Gerais. Levar a cabo uma ação apesar do cansaço, ou sendo obrigado a
tanto, é fazê-lo “a pulso”, enquanto empreender uma atividade com gosto e de maneira
115
Evidenciam um “estrato puramente emotivo da linguagem” e “diferem dos procedimentos da linguagem
referencial” por “sua configuração sonora” específica, contendo sons que podem não ser encontrados alhures na
mesma língua (Jakobson 1960: 122-124).
82
copiosa é fazê-lo “lerdo”. Esperar por muito tempo é mencionar que já se está num local “da
hora”, enquanto dar uma resposta negativa é feito em geral partindo da hipótese contrária sem
precisar completar o raciocínio. Justifica-se o não comparecimento a uma festa, por exemplo,
dizendo-se: “Se eu não fui convidado...”. De alguém que se mostra obstinado com um assunto
qualquer diz-se que está “incutido”, enquanto uma pessoa que bebeu demais fica “travada” –
locomoção. O substantivo vicário por excelência é o “trem”, e fazer algo a mando de outrem é
O comportamento dos teleguiados salta aos olhos durante os períodos eleitorais, que
pressupõe que estas – ou ao menos sua face pública – sejam menos enfatizadas após o término
das eleições, para a manutenção do bom convívio. Seria um engano pensar a partir dessa
constatação que a maior parte dos lençoenses não se interessa pelos rumos políticos que seus
representantes eleitos buscam conferir à cidade, sendo costume citarem com orgulho o fato de
já terem feito uma denúncia de impedimento que resultou na destituição do prefeito Otaviano
Alves Filho, em 1996, no último ano de seu mandato. Uma amiga disse, por exemplo, ficar
colérica – ainda que jamais o demonstrasse no momento em questão – quando supunham que
o povo da cidade poderia ser facilmente manipulável no tempo da política, e que essa atitude
era certeira para se perder uma eleição. Se nem sempre têm estômago para discutir posições
políticas e candidatos de sua preferência, ainda mais fora de anos eleitorais e com pessoas
com quem não possuam intimidade116 –, todos podem recitar os candidatos em quem votaram
116
Por vezes é só depois de muitos anos de convivência que se descobrem preferências eleitorais, já que elas
podem permanecer propositalmente fora das conversas de modo a não se tornarem motivo de conflito –
especialmente quando as posições políticas do interlocutor são desconhecidas (Goldman 2006: 127).
83
para cada um dos cargos de cada pleito, e não é incomum o hábito de, ao se lembrarem de
eventos passados, contarem o tempo de frente para trás listando seus governantes.
Mesmo fora do tempo da política, não é incomum que as pessoas façam referência a
conhecem em pessoa, ainda que por vezes só minimamente. Da mesma forma, se interessam a
respeito dos rumos das decisões estaduais e nacionais que sobre eles podem por vezes possuir
fomento à cultura e preservação do patrimônio, motivos pelos quais o governo Lula da época
Airton, conhecido como Marcão, sempre citava a demora do repasse das verbas devidas pela
nomeadas disputados pelos possíveis apoiadores da campanha, bem como verba a ser
afirmam dever ser destinado a eles – seja em função das políticas governamentais, seja como
retorno pelo voto e pelo apoio concedido nas eleições. O problema da arrecadação de
impostos agrava-se graças ao sentimento bastante difundido entre a população de que o seu
dinheiro passa pelas mãos do poder público apenas para que este retenha dele uma
qual eu me hospedara e dono de uma pequena venda no centro da cidade, me dizia ser muito
danoso o fato de o resultado das eleições ser divulgado três meses antes da posse do novo
84
prefeito, já que caso fosse eleito um partido da oposição, a administração atual ainda disporia
de muito tempo para esvaziar os cofres públicos antes de chegar a termo: “E noventa dias
roubando da manhã até a noite dá o mesmo que cento e oitenta dias normais, praticamente
meio ano roubando”, me dizia ele com seu gosto por sempre quantificar as avaliações que
fornecia.
significa dizer resignados, com a relativa escassez de investimentos públicos nos anos em que
não havia eleições. Como comentavam, a deterioração de ruas e estradas tornava-se mais
por que a nova estação rodoviária ainda não havia sido inaugurada, já que eu acompanhara o
final das obras ao longo de alguns meses e ela finalmente parecia estar completamente pronta,
ele me respondeu – depois de ter zombado da minha ingenuidade – que ainda não tínhamos
chegado no tempo da política, mas que a inauguração não passaria do ano seguinte, quando
haveria eleições. Em função desses hiatos, a ênfase reinante não recai sobre a obrigação de o
prefeito eleito governar para toda a população e ao longo de todo mandato: considera-se que
aqueles que o elegeram é que são tanto os maiores beneficiados pelas benesses da
A realização de festas e eventos de boa qualidade era, para muitos lençoenses, um dos
eventos eram igualmente ocasiões nas quais o prefeito e seus correligionários aproveitavam
para fazerem discursos e se promoverem, bem como prestarem contas diante da população a
respeito de eventuais deficiências que saltassem aos olhos. Havia uma verdadeira carreira a
ser seguida na função de apresentador de festas e eventos, ocupada sempre por homens que
tivessem uma pronúncia clara e cuja voz amplificada pela incontornável aparelhagem de som
não fosse desagradável aos ouvidos. Sua habilidade em listar patrocinadores de modo quase
85
infindável e bajular os membros do poder público antes de lhes passar a palavra só não era
superada pela irrelevância à qual grande parte da população parecia já os ter confinado,
amigos sobre os primeiros dois anos da administração do prefeito Marcão, que um deles me
disse poder ser resumida pela sigla FFF: “Faixa, festa e foguete”. Segundo eles, a ação da
prefeitura se resumia a realizar festas esporádicas para tentar, sem sucesso, distrair a atenção
alardear com comemorações a realização de inaugurações e eventos que não eram senão parte
de sua obrigação; a propagandear de modo enganoso os feitos do governo. Duas faixas, por
exemplo, foram alvo de inúmeras piadas. A primeira, erguida próximo a um dos postos de
Saúde”, enquanto se comentava que era sabido que os investimentos na área de saúde tinham
diminuído, médicos e profissionais da área demitidos, e que havia sido o próprio poder
público que se tinha arrogado a missão de se elogiar. A segunda, erguida logo no início de
uma obra que só viria a ser concluída anos mais tarde e com outra função, rezava: “O sonho
ridicularizar a tentativa de dar por pronta uma obra que mal tinha saído do papel. Os dizeres
nessa faixa forneceram por bastante tempo munição para ridicularizar a prefeitura,
mencionando ironicamente que a população não sonhava com mais saúde e educação, e que
se sua aspiração era ter banheiros públicos, o prefeito devia achar que “o sonho dos
lençoenses era mesmo uma merda”. Em novembro de 2010, Marcos Airton Alves de Araújo,
o prefeito Marcão, foi preso pela Polícia Federal na chamada Operação Carcará, deflagrada na
Bahia contra o desvio de verbas federais e fraudes em licitações. Sem saber se teria sua
para sua adversária Moema, cuja vitória significou, de todo modo, um retorno das famílias
1.5 Profusões
O cenário da vida em Lençóis foi-se descortinando ao meu redor de forma lenta, e não
foi senão depois de alguns meses morando na cidade que pude ter certeza que seria capaz de
ali desenvolver o trabalho de campo necessário. Como forma de começar a estabelecer laços e
entabular alguma rotina diária pela cidade, assim que cheguei entrei em contato com Olivia
Taylor. Conheci essa inglesa – já há 15 anos habitando em Lençóis, e uma das muitas
forasteiras que tinha decidido se mudar para a cidade – por meio de uma indicação de uma
amiga do doutorado, que tinha ouvido falar do trabalho social voltado às crianças da região
que Olivia incentivava. Dona de uma pousada localizada num bairro periférico da cidade,
Olivia começara a dar reforço escolar a algumas crianças do bairro Alto da Estrela, numa ação
que se ampliou com a compra de uma casa aos fundos de sua pousada onde passara a
Assim tiveram início as atividades da Casa Grande, nome escolhido por Olivia para o
local, e cuja inadequação, por fazer referência às antigas moradas senhoriais, ao menos de
início lhe escapava – como depois viriam a me dizer alguns amigos. Enquanto a maior parte
dos voluntários morava na casa e preparava atividades para os turnos da manhã e da tarde –
funcionamento da Casa Grande de modo a ter tempo para realização da pesquisa, dando aulas
87
somente no período da tarde e ao longo dos seis primeiros meses da minha estadia em
Lençóis. Fazê-lo me ajudou não só a manter uma rotina ao longo das primeiras semanas117
estranhamento inicial com a minha presença, permitindo que eu circulasse por uma região da
cidade à qual eu dificilmente teria acesso sem suscitar indagações – mais tarde me diriam que
à primeira vista imaginavam que eu era um médico, em função não apenas dos óculos como
As caminhadas que fazia pelo Alto da Estrela logo passaram a ser interceptadas pelas
suas famílias, muitos dos quais eu passaria a conhecer com o tempo. O fato de finalmente
haver outro brasileiro dando aulas na Casa Grande era visto por eles com certa satisfação,
ainda que alguns também se ressentissem ao ver que muitas das lições aprendidas por seus
filhos, sobrinhos e netos acabavam por afastá-los da experiência comum na qual vinham
sendo criados – já que Olivia fazia questão de incentivar o uso correto da língua e estimular
determinadas noções de higiene pessoal e cortesia que muitas vezes conflitavam com a
Alguns episódios que vivi com as crianças da Casa Grande vieram a adquirir um outro
sentido depois de uma maior convivência com seus pais e os demais habitantes da cidade.
Chamava atenção o modo como por vezes se comportavam diante de situações nas quais
experimentavam certos quadros de abundância, como podia acontecer, por exemplo, quando
era possível proporcionar merendas em dias excepcionais – já que o orçamento flutuante das
doações das quais o local dependia não permitia sua oferta cotidiana – ou mesmo brindes ou
momento de fartura havia mais do que o prazer de o fazerem longe do olhar controlador dos
117
Esse constitui um dos primeiros passos no trabalho de campo, parte necessária dos processos etnográficos de
invenção e contrainvenção (Wagner 1975: 17-20).
88
pais – que constantemente nos lembravam que, apesar de pobres, ali não havia miseráveis. Se
as ideias de fome e carência não devem ser de todo descartadas, tampouco pareciam
responsáveis pela atitude exibida pelas crianças nessas ocasiões, quando o mais comum era se
abarrotarem rapidamente dos itens disponíveis para em seguida se deleitarem com a sensação
de estarem fartos. Nas raríssimas vezes em que algum aluno dizia estar com fome, fazia-o
muito mais como quem pede um agrado, além da atenção dos voluntários, logo abandonando
o assunto, ao ser lembrado que mais tarde lancharia em sua casa, e voltando a brincar.
garimpeiros são aqui caracterizados como alternativa à interpretação dos donos das serras,
para quem os trabalhadores não teriam a competência necessária para poupar e enriquecer.
Não é que os nativos não sejam capazes de poupar: ao contrário, muitos de meus amigos
trabalhavam e juntavam dinheiro de forma lenta, durante meses ou anos a fio – ainda que seu
objetivo possa ser o de gastar em muito pouco tempo tudo que juntaram, com festas, viagens
ou períodos maiores sem trabalhar. Muitos lençoenses afirmam que serem capazes de
repentino, seja por acumulação vagarosa, faz com que possam se empenhar em suas
atividades cotidianas com a perseverança que lhes é característica118. Penso que não seria ir
longe demais dizer que, ao agirem dessa forma, os descendentes dos garimpeiros continuam a
exercitar uma aversão específica aos efeitos danosos que possuem as diversas formas de
excessos tão prezadas pelos pedristas e coronéis do passado e pelos empresários ambiciosos
118
Parece-me emblemático o que disse um garimpeiro que havia enriquecido e depois perdido praticamente tudo,
ao ser entrevistado por um dos cronistas da cidade que lhe perguntou o que faria caso encontrasse um novo
tesouro: “Respondeu sobranceiro que faria o mesmo, sem tirar nem pôr, e que não tinha arrependimento, pois,
embora passageiramente, havia proporcionado todo conforto e felicidade à família” (Ganem 2001: 139, ênfases
adicionadas).
89
caráter impressas nas pessoas criadas “tendo tudo do melhor (e mais caro) quando o bom já
presunçosas.
As festas são ocasiões privilegiadas para que se perceba o modo como o equilíbrio
comidas e bebidas. Trata-se, assim, de momentos igualmente pedagógicos, nos quais não só
têm contato com a possibilidade de se portarem com voracidade como, justamente por isso,
temores dos pais é que seus filhos sejam propensos a “dar calundu” – quando, em função de
Uma das festividades mais importantes do ano em Lençóis é o São João, celebrado no
dia 24 de junho – ainda que comemorado desde bem antes, cujos preparativos estavam em
pleno vapor assim que cheguei à cidade, no final de maio. Para a maior parte da população,
ainda que o valor religioso da festa seja grande, ele em parte empalidece diante das
bebidas típicas (especialmente o quentão, feito tanto com vinho como com cachaça),
fogueiras acesas nas ruas diante das casas – que funcionam como ponto de encontro para
enfrentar o frio que nesses meses relembra a altitude da cidade –, brincadeiras tradicionais –
quadrilhas, que acontecem à noite nos dias que antecedem o Dia de São João. Lençóis abriga
90
moradores – ainda que haja exceções, como a quadrilha composta somente por mulheres
casadas ou a reservada apenas para homens que se vestem como mulheres para dançar, cujos
membros em geral pertencem também às quadrilhas dos bairros. Os ensaios das quadrilhas
aconteciam semanas antes de suas apresentações, coordenados pelos puxadores de cada uma,
e em geral em lugares fechados ou remotos, longe dos olhos dos conjuntos rivais, já que a
maior parte se inscreve numa competição organizada pela prefeitura para premiar a melhor
apresentação, fazendo com que os passos ensaiados e sua sequência sejam segredo ciosamente
realização de uma festa em seu bairro-sede, uma quadrilha costumava ser convidada para
lembravam da ocasião na qual uma quadrilha havia sido agraciada com uma viagem para
O estardalhaço noturno causado pelos ensaios das quadrilhas chamou minha atenção,
participar de uma delas – sem saber muito, à época, sobre sua relevância considerável para os
nativos. No sábado seguinte Seu Joaquim me levou à casa de Carminha, organizadora daquela
que provavelmente era – eu descobriria mais tarde – a mais importante quadrilha da cidade,
que havia passado a se apresentar sem participar da competição de conjuntos por tê-la vencido
já por vezes demais. Seu Joaquim me apresentou e perguntou se havia alguma vaga em seu
grupo, frisando que se ela pudesse me aceitar isso consistiria um favor pessoal a ele – algo
que um lençoense não diz de forma frívola. Carminha, mais conhecida nessa época do ano
como Xuxa Preta, deixou claro, ainda que de forma gentil, que a quadrilha era uma dança
muito difícil e importante, e que não sabia se meu desempenho estaria à altura do de seu
pessoal. Ela não pareceu muito tranquilizada quando eu lhe disse que já havia participado de
91
quadrilhas em minha época de escola, mas permitiu que eu comparecesse aos primeiros
ensaios depois que sugeri que ela poderia me retirar do grupo se eu não conseguisse
acompanhar os movimentos.
Foi durante os ensaios diários dessa quadrilha que conheci muitas das pessoas que
viriam a estar entre meus melhores amigos em Lençóis. A quadrilha de Carminha, chamada
Bicho-do-Mato, ensaiava quase todas as noites ao longo de algumas semanas antes do São
mesmo bairro no qual se localizava a Casa Grande. Minhas tentativas de aproximação com os
integrantes da quadrilha, sempre bastante tímidas no início, surtiam pouco efeito, e vários
eram os indícios de que muitas das pessoas ali reunidas não tinham por mim qualquer
simpatia, para dizer o mínimo. O fato de eu ser um branco e forasteiro – em ambos os casos, o
único no grupo –, que conseguiu obter um lugar na mais disputada quadrilha local, pesava
contra mim quase tanto quanto a possibilidade de que meu desempenho em público fosse
de modo inconstante por diversos de seus participantes, até porque muitos trabalhavam ou
aumentava a cada dia, especialmente depois que Carminha anunciou que gostaria de fazer
desta uma execução particularmente memorável já que na ocasião ela completaria 25 anos à
frente da quadrilha, tendo começado como sua puxadora quando tinha apenas 17. Os
roupas uniformizadas, que só ficaram prontas minutos antes da concentração final, bem como
durante a apresentação – escritos e reescritos por Carminha muitas vezes ao longo dos dias –,
92
já que ela não tinha certeza se deveria arriscar a execução de algumas das transposições mais
passos que simulam o trabalho no garimpo – já que sem ele nada daquilo existiria hoje em
dia119.
Só mesmo no dia de nossa apresentação fui capaz de acertar todos os passos que
haviam sido ensaiados, mas igualmente fundamental foi o fato de não haver esmorecido
durante a exaustiva rotina de movimentos, que começava com uma longa caminhada por toda
a cidade, desde a academia de capoeira localizada no Alto da Estrela até o Teatro de Arena,
onde dançaram as quadrilhas. Ao final do espetáculo, que teve grande sucesso, o conjunto foi
convidado para comer e beber na casa do prefeito, e durante essa confraternização é que pela
primeira vez meus colegas perguntaram meu nome, já que até então eu era conhecido somente
por “Carioca”, assegurando-me, sem fazer questão de esconder sua surpresa, que eu havia
história de como eu ingressara na quadrilha, mas um pouco mais a respeito do motivo que
tinha me levado até Lençóis, o que me deixou mais confortável para mencionar pela primeira
morar num local mais próximo dos amigos que começava a fazer. Seu Gilson me certificou
que o mais natural seria alugar uma casa naquele bairro, dizendo-me que lá moravam também
muitos de seus parentes e que se tratava de uma vizinhança bastante amistosa. Após três
meses despedi-me da pousada na qual estivera hospedado até então e me mudei para a casa na
119
O “caminho do garimpo” consistia num passo em que os homens simulavam a subida às serras – carregando
consigo apetrechos de garimpeiros, em especial a peneira –, a lavagem do cascalho, a descoberta do diamante e o
retorno para a casa. O passo equivalente realizado em seguida pelas mulheres consistia em sua ida ao rio para
lavar roupa, repetido diversas vezes já que esqueciam o sabão, peças de roupa ou o lixo a ser recolhido.
Movimentos como esse, que faziam graça das atividades cotidianas empreendidas pela população da Chapada,
aconteceram nas apresentações de quase todas as demais quadrilhas.
93
qual permaneci pelos nove seguintes, depois de ter sido tranquilizado a respeito de Seu Gilson
sobre sua localização – já que ela ficava praticamente ao lado do principal ponto de tráfico de
drogas da cidade, o que, como era esperado, de fato não resultou em nenhum grande
incidente.
visitada pelos turistas, de parca infraestrutura – só algumas de suas ruas são calçadas,
raramente são limpas por varredores da prefeitura e a coleta de lixo só atende um ponto do
bairro –, ainda que possua saneamento básico, por mais que precário, e iluminação pública e
comércios locais e uma quadra normalmente usada pelos jovens para jogar futebol. Ao longo
do dia crianças dominam as ruas, brincando e soltando pipas, aproveitando ser aquele um dos
pontos mais altos da cidade120. Alguns de seus moradores também se referiam ao bairro como
“Alto das Estrelas”, por vezes emendando um comentário a respeito do brilho pessoal dos que
orgulhosos nativos de Lençóis. É também ali que se localiza a academia de capoeira Corda
Bamba, que foi selecionada como Ponto de Cultura e funciona como centro de reuniões
comunitárias. O Alto da Estrela é, por fim, local de moradia e ponto de encontro de diversas
das pessoas envolvidas com o jarê, cujas histórias serão apresentadas ao longo dos próximos
capítulos.
120
O nome do bairro parece derivar da serra na qual ele cresceu, chamada, de acordo com a literatura, de “Alto
da Estrela do Céu” (Pereira 1910: 55), em função de, nas primeiras horas da noite, ser ali que o sol se põe e surge
Vênus, lembrando um “brilhante engastado no topo escuro das rochas” (Moraes 1963: 122, 126 nota 2). Como
outros bairros periféricos da cidade, sofreu movimento pendular de crescimento e quase desaparição ao longo
das décadas, acompanhando a demografia de Lençóis (Senna 1996: 55). Ver fotos 11 e 12 no anexo III.
94
Capítulo 2 – Dançar
2.1 Negritudes
“Elias? Esse aí, quando morrer, o corpo vai numa caixinha de fósforos, porque na
carreta vai a língua de mais de metro...” A fama de conversador que o precedia foi só um dos
muitos motivos que levaram a minha proximidade com Elias, esse jovem lençoense que em
coincidentemente, em meu primeiro dia em Lençóis, uma sexta-feira na qual ele trajava
branco e portava dois colares de contas dessa mesma cor – algo que devia ser feito no dia da
semana dedicado a Oxalá, ele me informou. Meses depois, quando estávamos mais chegados,
ele me diria que só tinha se dignado a me responder naquele dia por ter ficado intrigado com o
rapaz tímido que parecia a toda hora “pedir desculpas só por abrir a boca”. Elias jamais se
envergonhou de ter atitudes que muitas vezes escandalizavam os estratos mais conservadores
da cidade: sempre foi um sujeito debochado, de humor por vezes sardônico, sem medo de
dizer o que pensa a quem quer que seja. Simultaneamente, Elias guarda um respeito que beira
a devoção pelas pessoas mais velhas da cidade, demonstrando pelos seus conterrâneos
Elias é um dos filhos mais novos de João da Jia, conhecido garimpeiro, falecido vítima
de um câncer, cujo apelido deriva dos filhotes de rã que costumava caçar para vender. João da
95
Jia e sua esposa Niraci tiveram ao todo quinze filhos, sendo apenas onze os que sobreviveram
à primeira infância. Seu pai desejava que os três filhos homens não se tornassem garimpeiros
como ele, tendo feito todo possível para estimular sua permanência e aplicação na escola, para
mesma carreira que tinham seu pai e seu avô, os outros dois conseguiram se formar no Ensino
Médio, um feito considerável e comemorado na realidade da cidade. Entre estes estava Elias,
que como muitos de seus irmãos e irmãs foi batizado com um nome bíblico – sua família
praticamente toda com o tempo tendo se tornado evangélica. Elias sempre foi muito próximo
de uma de suas tias, chamada Alba, que considerava como sua segunda mãe, entre outros
motivos pelo fato de ela ser a única pessoa fora seu pai que não havia se convertido e que
Quando cheguei a Lençóis, Elias contava 28 anos, e residia junto de sua companheira
no bairro do Lavrado, apesar de ter morado por quase toda vida no Alto da Estrela, onde podia
ser comumente encontrado ao longo do dia por ali continuarem a viver muitos dos membros
de sua família, bem como muitas de suas amigas e comadres. Passamos muitas tardes
acostumando com seu jeito característico. Sempre falador, inteirado das novidades e
conhecedor das histórias e ligações entre as pessoas que eu mal começava a conhecer, Elias
ironicamente gostava de comentar como “quem conversa muito dá bom dia a cavalo”. Por
vezes mencionava, algo resignado, sobre como sofria certa discriminação na cidade – que,
segundo ele, já havia deliberado e decidido a respeito de sua orientação sexual, pois, ele dizia,
desde muito novo sempre possuíra um tom de voz mais agudo e nasalado, uma risada alta e
contagiante, e jamais fizera questão de se comportar como se supõe deva ser o exemplo da
masculinidade. Apesar de morar já há alguns anos com uma amiga de longa data e a quem se
96
referia – em tom sempre mais sério do que a ocasião requeria – como sua namorada ou
esposa, justificava o fato de ainda não terem filhos exemplificando a mudança repentina – e
para pior – na vida de muitos dos seus amigos e amigas depois que tiveram filhos ainda muito
jovens e sem qualquer segurança financeira, e lembrava, fazendo sempre enrubescerem alguns
dos presentes, que a Secretaria de Saúde distribuía camisinhas gratuitamente a quem quisesse.
Quando era mais novo, Elias havia participado do Movimento Avante Lençóis, um
coletivo formado em 1995 para acompanhar e dar publicidade à denúncia popular que
(“que significa ‘para frente’”, Elias sempre emendava) nasceu com objetivo de reivindicar
circulação pelo município, incluindo a zona rural. As edições do jornal Avante geravam
grande repercussão e participação popular, suas reportagens e entrevistas sendo feitas pelos,
com e para os próprios moradores da cidade, e no dia em que eram lançadas corriam por
várias casas nas quais eram lidas avidamente pelos lençoenses. Assim como o movimento, o
periódico não era visto com a mesma simpatia pelo poder constituído, já que com o tempo
tinha se tornado foco privilegiado para manifestação das insatisfações dos moradores com as
representantes eleitos levavam em conta que o que havia acontecido com o prefeito anterior
Elias era um dos jovens que assinava artigos no jornal Avante, revisados pela
jornalista responsável que supervisionava sua edição. Recebia, pelo trabalho mensal, uma
ajuda de custo no valor de R$ 60,00, gastos quase todos com material de cuidado pessoal com
seu pai, a essa altura já bastante debilitado e acamado pela progressão de sua doença. Mesmo
assim, João da Jia não se mostrava contente com a participação do filho no movimento, já que
97
tinha ligações com pessoas por vezes criticadas pelo Avante. De qualquer modo, Elias não foi
dissuadido de continuar a escrever textos que apontavam os muitos problemas pelos quais a
cidade sem dúvida passava, mesmo sabendo que em função disso poderia vir a sofrer sérias
represálias das figuras importantes da política local. Temendo por sua segurança, a jornalista
então responsável pelo Avante decidiu, para enorme contragosto de Elias, afastá-lo do jornal,
notórios articulistas.
Algum tempo depois, contudo, os textos que havia assinado para o jornal chamariam a
atenção de alguém próximo de seu pai mas de quem Elias ainda não era tão íntimo. Carlos de
Almeida Toledo, chamado por Elias e sua família invariavelmente de Carlão, visitava Lençóis
por longos períodos desde o início do ano de 1998, sua vivência na cidade servindo
Geografia Humana pela Universidade de São Paulo121. Carlão se tornara um amigo próximo
pesquisa a respeito do trabalho nas assim caracterizadas Lavras Baianas. Quando seu pai veio
a falecer, Elias encontrou forças após um período de luto para finalmente vir a aceitar o
convite que vinham lhe fazendo Carlão e a companheira deste, Tati, para ir morar com os dois
em São Paulo e investir nos estudos, para tentar passar num vestibular e ingressar numa
faculdade – o curso de História sempre tendo exercido sobre ele algum fascínio –, de modo a
concretizar assim o sonho que seu pai nutrira em relação a ele, de que um dia se tornasse
professor.
Elias morou em São Paulo na casa de Carlão e Tati junto com três outros jovens de
Lençóis que também eram próximos do casal e haviam igualmente aceitado a mesma oferta,
ainda que em pouco tempo um deles acabasse por preferir começar a trabalhar em vez de se
121
Resultando em especial em suas excelentes dissertação de mestrado (Toledo 2001) e tese de doutorado
(Toledo 2008).
98
dedicar aos estudos. Enquanto as duas moças foram aprovadas em faculdades particulares e
realizaram seus cursos com ajuda de empréstimos e financiamentos, Elias estava decidido a
ingressar numa universidade pública – principalmente por não desejar onerar ainda mais seus
anfitriões, que já lhe proporcionavam aulas particulares para suplementar o preparo do curso
pré-vestibular que frequentava. Depois de diversas tentativas, contudo, Elias não teve êxito
em nenhum dos vestibulares em que se inscreveu ao longo de dois anos, mas pretendia
continuar tentando apesar das dificuldades do cotidiano – como a separação de Carlão e Tati –
que se impunham. A notícia da morte repentina de sua tia Alba, contudo, fez com que ele
decidisse retornar para Lençóis para estar junto de sua família. De sua experiência morando
numa metrópole Elias guarda muitas histórias, tendo frequentado alguns candomblés paulistas
e cursos sobre religiões afro-brasileiras e história do continente africano na Casa das Áfricas e
como ouvinte na Universidade de São Paulo. Repetia assim uma experiência similar que
saúde de sua companheira, tendo conhecido algumas das casas de culto da capital.
Ao retornar para Lençóis, Elias se mostrou inconsolável com o falecimento da tia que
também havia lhe criado e que era a última pessoa de sua família que ainda compartilhava de
interesses similares aos seus. Lamentando o fato de não ter podido estar com ela há bastante
tempo, bem como sua desaparição tão súbita, vítima de um ataque cardíaco fulminante
quando parecia gozar de boa saúde, Elias mergulhou em sua mágoa e passou por um período
de muitas atribulações, do qual prefere não lembrar. Quando enfim procurou retornar ao
cotidiano e seguir em frente com sua vida, encontrou nos amigos e na família o apoio
diferente daquele que levava tantos jovens lençoenses a desperdiçar seu potencial em meio às
cidade, dando diárias como garçom, ajudante de cozinha (sendo ele mesmo um ótimo
cozinheiro) ou jardineiro, Elias é mais conhecido pelos habitantes da cidade como um jovem
diletante – no sentido, principalmente, de apaixonado por aquilo que faz. Desde bem novo ele
mais antigos da cidade, tendo ao longo dos anos reunido inúmeros relatos que ocasionalmente
anota de forma pouco sistemática mas que conserva na memória de maneira tão afetiva
quanto prodigiosa. Por vezes é chamado por algum professor da rede local para proferir falas
As atividades desenvolvidas pelo Movimento Avante, do qual Elias fez parte, não se
limitaram à mobilização pela moralização da vida política da cidade. Além do jornal que
durante muito tempo foi seu carro-chefe, de início mimeografado e depois passou com
edições diagramadas com relativa regularidade122, em 1997 foi criada a rádio comunitária
Laúza – remetendo-se em especial ao sentido de “barulho” que a palavra carrega, ainda que
possibilitada pela transformação do Avante numa associação civil estruturada. A Laúza teve
seu funcionamento interrompido inúmeras vezes por órgãos governamentais que alegavam
falta de concessão adequada, obtida em definitivo no ano de 2000. Até os dias de hoje, a rádio
masculino por ter surgido e continuar a defender sua caracterização como um “movimento” –
122
O jornal Avante foi publicado a partir de 1995 ao longo de quase dez anos, com periodicidade próxima a
bimestral, totalizando 51 edições, algumas delas com tiragens de até 1.500 exemplares.
100
profissionalização das atividades que deixaram de ser feitas inteiramente por voluntários
quando foi possível remunerar de alguma forma as pessoas que a ele se dedicavam
erguida uma sede própria chamada Canto do Povo, no bairro do Tomba, construída em
mutirão por seus habitantes e garantindo a concentração das atividades, antes espalhadas pela
suspensa em 2005 por falta de maneiras de custeá-lo, além da rádio funcionam hoje no espaço
do Avante diversos cursos e oficinas de capacitação, bem como uma biblioteca comunitária e
Entre os anos de 1999 e 2001, contudo, foi tomando forma uma divergência entre
financiamento disponíveis para a instituição quanto aos rumos de sua atuação política. Alguns
ansiando, por exemplo, pleitear para ela o título de Organização da Sociedade Civil de
Avante em editais públicos e lhe abriria novas oportunidades de conexão junto ao governo –
algo que se coadunava com as propostas igualmente defendidas pelo mesmo conjunto de
pessoas de deixar de ter uma posição marcadamente crítica diante da atuação do poder
membros ligados à coordenação do Avante, ao contrário, não desejavam ter de submeter seus
comunitária representada pelos projetos à reivindicação política da qual ele tinha se originado.
conjunto de pessoas, do qual a companheira de Elias fazia parte – ainda que não numa função
pessoa jurídica distinta com base em dois projetos que, somados, deram o nome que a nova
organização possui até hoje: Grãos de Luz e Griô. De um lado, a iniciativa Grãos de Luz
artesanato, como um todo precedendo e vindo a ser encampada pela nova organização. Já o
Projeto Griô surgiu desde o começo no interior do Avante, vindo a ser capitaneado por um
casal de forasteiros que se estabelecera na cidade, Lílian Pacheco e Márcio Caires, inspirados
no nome francês “griot” dado à figura do sábio africano, que lhes foi apresentada pelo
passando a ser definido como um mediador do diálogo entre o ensino formal e o informal
ambientes nos quais mães e pais-de-santo, mestres de capoeira ou rezadeiras, por exemplo,
muitas gerações. O Grãos de Luz e Griô, mais conhecido na cidade simplesmente por
“Grãos”, passou a contar com diversas fontes de financiamento, muitas oriundas de editais
governamentais, vindo a se tornar primeiro Ponto de Cultura (um espaço de articulação das
123
Como informa a tese de doutorado dedicada ao estudo da associação daí surgida, que de outro modo silencia a
respeito de praticamente toda a história de sua constituição (Barzano 2008: 52).
102
(articulando Pontos de Cultura em âmbito nacional). No início de minha pesquisa era comum
alguns dos mães e pais da cidade deixavam seus filhos alguns dias por semana para
participarem de suas atividades regulares, e cheguei a visitá-la algumas vezes, antes de vir a
saber que o sucesso do Grãos está longe de ser uma unanimidade – por mais que o trabalho lá
Tanto Elias quanto sua companheira, bem como outros amigos que vim a fazer,
do Avante, mas com o passar do tempo e seu crescimento progressivo foram vendo
concretizados alguns dos receios que seus antigos colegas haviam esboçado para justificar sua
tornando centralizador na mesma medida em que via serem aprovadas suas participações em
editais e crescer seu orçamento, resultado direto da habilidade de Lílian, a quem muitas
pessoas se referiam como uma “projetista”. Do núcleo que a havia acompanhado na saída do
Avante, metade das pessoas abandonou a nova associação depois de algum tempo, sentindo-
se cada vez mais alijados dos processos decisórios e desgostosos com as direções que o Grãos
tomava, capitulando cada vez mais diante da lógica que domina os editais públicos de
vez mais distante, segundo a visão dessas pessoas, do ideal de transformação local com o qual
os projetos tinham sido inicialmente desenvolvidos. De acordo com uma dessas pessoas,
apesar de não ter sido afastado do Grãos por decisão da coordenação, esse conjunto foi se
âmbito nacional, segundo os habitantes da cidade em Lençóis o Grãos continua a ser apenas
124
As ações realizadas por pessoas ligadas ao jarê em conjunto com o Grãos serão alvo de menção mais detida
no início do capítulo 3, na seção 3.1.
103
mais uma entre muitas iniciativas que procuram causar algum tipo de diferença na vida dos
lençoenses, em especial daqueles que foram mais impactados pelas recentes mudanças pelas
quais a cidade continua a passar, com destaque para ações feitas com crianças. Entre essas
com homens vestidos de marinheiros e oficiais que costuma se apresentar durante as festas e
eventos populares na cidade, trazida do distrito de Igatu, na cidade de Andaraí, para Lençóis
no início do século XX pelo avô paterno de Elias, o renomado Mestre Ceciliano. Antes
formada quase que inteiramente por adultos, a versão atual da marujada de Lençóis recruta em
sua maior parte crianças e jovens para o conjunto, mantendo da formação inicial as
algo que não se procedeu, contudo, após o falecimento de João da Jia, já que por motivos
diversos nem Elias nem seus irmãos demonstravam ter o perfil ou o interesse em exercer a
função que antes fora do pai e do avô. Por ser de todo modo o mais próximo da tradição, Elias
orgulhava-se de por vezes ser lembrado como o guardião de direito da marujada pelo seu atual
líder, um capoeirista da cidade, que buscava fazer dela uma forma de trabalho social
boa convivência. Enquanto antigamente um festeiro era responsável por comprar as roupas e
instrumentos utilizados pela marujada quando se fizesse necessário, nos dias atuais os
envolvidos com ela buscavam cada vez mais o apoio da prefeitura do município para a
aquisição desses itens, guardando-os e os renovando quando não se fazia possível adquirir
novos.
125
A forma de fandango conhecida como marujada é bastante disseminada no Brasil e recebe muitos nomes,
como barca, fragata, barquinha, Nau-Caterineta, chegança de marujos. Registra-se que tenha sido trazida para a
cidade de Lençóis no ano de 1914 (Gonçalves 1984: 176-177; Senna 2002: 219). Ver fotos 13 e 14 no anexo III.
104
Seria um engano pensar que Elias não se dedicava à marujada por falta de
comprometimento ou responsabilidade, ainda que essas características por vezes lhe fossem
imputadas – em geral de forma séria por quem não o conhecia intimamente e de modo jocoso
por seus amigos próximos –, muito em função de seu gosto pela bebida. Ele se mostrava
que um esquecimento qualquer de sua parte se devia à cachaça – mesmo porque sua memória
via de regra é excelente –, fazendo notar que lapsos até mais frequentes de outras pessoas não
eram repreendidos da mesma forma. Enquanto amigos em comum comentavam com o próprio
Elias que ele parecia já estar perenemente acompanhado pelo cheiro do álcool, sua opinião
permanecia firme a respeito da importância do consumo da bebida, que para ser devidamente
compreendida deve ser acompanhada da descrição que dela fazem os nativos que a apreciam.
O hábito de consumir bebidas alcoólicas pode ser adquirido desde bastante cedo em
pequenas quantidades, normalmente misturadas a outros líquidos mais leves, dadas a crianças
e jovens, que não as consomem, contudo, durante o cotidiano. A cachaça, bebida por
excelência na região, pode também ser administrada como remédio, e muitos são os senhores
e senhoras de idade mais avançada que a bebem ao longo de toda vida sem efeitos adversos –
ainda que também seja comum que comecem a substituí-la, quando mais velhos, por bebidas
mais leves chamadas de “vinhos”, feitos com catuaba, jurubeba, gengibre ou ainda por batidas
de coco. A respeito da aguardente de cana, comenta-se: “Cachaça não faz mal, não. Se
cachaça matasse, não sobrava um vivo na Chapada”. Beber, dizem, não é problema em si, a
não ser que uma pessoa por outros motivos já esteja sem rumo na vida, quando então pode vir
O gosto pela cachaça é transmitido entre gerações, estando ela presente nas mais
diversas ocasiões, como festas, batizados, velórios, encontros informais. A expressão mais
utilizada para a ação de ingerir bebidas alcoólicas é “comer água”, enunciada sempre de modo
105
bom som, incitando os demais a lhe acompanharem. A predileção pela atividade de beber
compartilha espaço com um sentimento conexo, tão ou mais prazeroso, que é o de ver os
se acompanhar os nativos no empreendimento – o que faz com que na maior parte das casas
seja considerada indispensável ao menos uma meiota (meio litro) de cachaça para oferecer um
gole às visitas. Comer água também pode ser considerada uma forma de se alimentar tanto
auxiliando as funções motoras quando há um trabalho a ser feito126. Uma senhora certa vez
me contou como, para conseguir obter o ponto perfeito da massa e da cobertura de um bolo
sem o qual uma festa de jarê não teria início – depois de suas colegas terem falhado em
múltiplas tentativas – solicitou uma dose de cachaça, bebida que de outro modo ela
especificamente não apreciava, antes de dar início ao trabalho, no qual teve êxito.
A companheira de Elias não gostava que ele bebesse, este sendo um de seus
incômodos com a presença do mesmo nos jarês, considerando que se afastar da bebida e ter
uma postura de sobriedade e reserva seriam também modos de evitar ser alvo de mais formas
de preconceito, posto que já tinham de lidar com o já sofrido pela população negra da cidade
em geral. A ligação entre sua cor de pele e a ascendência africana que possuíam muitos dos
cidadãos de Lençóis não era um assunto por eles rotineiramente abordado, o mesmo não
podendo ser dito a respeito da conexão bastante direta que atualizavam ao falar a respeito da
escravidão a que foram submetidos seus antepassados em território nacional, bem como as
inúmeras sequelas desse processo, tema que costumam evitar ao lidarem diretamente com
turistas, mas que trazem à baila quando se encontram cercados de pessoas mais próximas.
126
Como já informava o excelente artigo a respeito do reisado da comunidade do Mulungu, num estudo
realizado no município de Boninal, na parte oeste da Chapada Diamantina (Brantes 2007: 34-35).
106
diamante deixou diversas histórias marcadas na memória dos nativos da Chapada, que
costumam ser contadas pelos mais velhos a quem decide se debruçar sobre o assunto, como
sempre foi o caso de Elias. Assim é que ele me narrou casos como o da escrava que teve seus
dentes, muito alvos e apreciados por seu senhor, todos arrancados a mando da esposa deste,
que os transformou num colar para seu uso e enviou a escrava para ser seviciada no tronco
para que deixasse de ser enxerida quando lhes servisse à mesa. Em outro caso, conta-se que
escravos que haviam conseguido tudo que lhes era necessário para obter a alforria diante de
seus proprietários, alguns anos antes da abolição, viam seus esforços serem anulados por
medidas protelatórias postas em marcha pelo juiz municipal para que continuassem por mais
tempo no cativeiro.
O fato de o garimpo também ser trabalhado por mão-de-obra escrava conferia a essa
última um caráter distinto daquele que tinha em outras partes do país, posto que o grande
valor e a alta transportabilidade dos diamantes poderiam render ao escravo meios de obter a
liberdade, desde que se utilizasse de uma rede informal de comércio que os donos dos
garimpos faziam de tudo para inibir. Essa possibilidade relativamente concreta atraiu para a
conseguir recursos para comprar a liberdade de parentes e amigos, que poderiam ser obtidos
somaram à população negra que era levada à força para a região pelo comércio interno de
escravos, que passa a ser uma atividade econômica quase tão rentável quanto o próprio
garimpo e que é intensificada na segunda metade do século XIX após o fim do tráfico
negreiro. Com a abolição houve mesmo a possibilidade de antigos escravos utilizarem suas
economias para promover ascensão econômica a seus filhos, registrando-se o caso de um filho
Justiça da Bahia. É igualmente certo, de todo modo, que a maior parte dos recém-libertos
continuou a trabalhar em condições precárias para os donos das serras, ainda que as senzalas
propriamente ditas tenham desaparecido com o passar do tempo, restando ainda hoje algumas
parcialmente jocosa no falar dos lençoenses, usada em especial para falar sobre suas
condições de trabalho, independentemente de suas ocupações. “Sou preto, mas não sou
escravo, não”, era uma réplica comum quando se julgava que uma solicitação de trabalho
adicional era excessiva (fosse ela muito laboriosa ou mal remunerada). Num tom de
brincadeira, que não empalidecia mesmo quando também transmitia ligeira melancolia, meus
amigos em funções mais ligadas à indústria do turismo na cidade costumavam dar ao verbo
“escravizar” o sentido de “trabalhar”, podendo dizer, por exemplo: “já vou embora que hoje
ainda preciso escravizar”, ou “não pude ir porque fiquei escravizando até tarde”. Com o
tempo disseram-me também que não só pela cor reconheciam as pessoas cujas famílias
haviam sido escravas no passado, mas igualmente seus sobrenomes podiam denotar essa
marca, chegando mesmo em alguns casos a ser possível saber quais eram as famílias
específicas que haviam possuído seus antepassados como escravos128. Como uma amiga
costumava dizer: “A Princesa Isabel não assinou a Lei Áurea a caneta, e sim a grafite, que em
A cor da pele é também fruto de considerações estéticas das mais variadas. Elias, por
exemplo, me dizia como tinha ficado muito contente por ter escurecido depois de ter nascido
127
Por muito tempo ignorados pela historiografia local, se não mencionados apenas de passagem, relatos como
esses e outros similares só vieram a ser registrados há pouco tempo na literatura a respeito da região, que
passaria a dar conta da presença marcante dos escravos (Moraes 1963: 38, 46 nota 7; Toledo 2001: 22-24, 82-83;
Ganem 2001: 33-37, 141; Pina 2000: 78-97; Pina 2001: 179-182, 190-192; O. Senna 2002: 11-12; Funch 2007:
49, 56-57, 65-67, 143; Toledo 2008: 94-106).
128
Como no episódio relatado no capítulo 1, seção 1.4. Já a ligação feita no jarê entre a escravidão e os exus será
abordada no capítulo 4, seção 4.3.
108
com uma cor mais clara, já que se orgulhava de sua origem e não se imaginava namorando
com uma pessoa de pele mais clara que a dele129. Pessoas de pele mais clara que a de Elias
costumam ser chamados por seus amigos de pele mais escura de “desbotados”, em especial
quando estas tentam dar a entender numa situação qualquer que não seriam negras. Nos casos
mais extremos nos quais se continua a dar a entender que uma pessoa é não branca, é costume
chamarem-na de “galega”, que seria uma pessoa bastante clara mas cujas tonalidade da pele e
demais características físicas marcam como negra. Diversas vezes presenciei pessoas,
especialmente homens jovens, em situações nas quais faziam questão de dizer e demonstrar o
quanto se orgulhavam não só de sua cor como de suas origens, exaltando características
derivadas de sua constituição física, fosse sua potência sexual ou, em outros exemplos, sua
Muitas das pessoas negras de Lençóis já foram, de toda forma, alvo de racismo,
assunto sobre o qual só falam em circunstâncias bastante específicas e com aqueles de quem
são mais próximos. Apesar de a população negra ser expressiva maioria na cidade 131, existem
também diversos brancos pobres com os quais por vezes alguma discussão pode degringolar
em injúrias raciais, especialmente entre crianças. Também não é incomum que brincadeiras
entre pessoas de pele parda e as de pele mais escura possam envolver distinções de raça às
quais as pessoas mais negras dificilmente dão muito crédito. Em sua visão, entretanto,
branca que constitui a elite da cidade – sejam eles os membros das reduzidas famílias
tradicionais antes ligadas ao diamante, sejam os forasteiros que hoje controlam grande parte
129
Ao afirmá-lo, Elias mencionou se achar por isso preconceituoso, e eu lhe disse que acreditava que havia
formas piores de preconceito.
130
Essas formas de autovalorização do homem negro também se relacionam à ética masculina do exibicionismo
que será apresentada no capítulo 3, seção 3.2.
131
Autoconstatação que, além de cotidiana, é igualmente registrada nos dados do Censo, como visto na
Introdução.
109
dos negócios turísticos de Lençóis –, como àquele vindo dos próprios turistas – sendo os
brancos oriundos do nordeste do país e em especial de Salvador considerados por eles os mais
virulentos.
da cidade como clientes, seja frequentando bares e restaurantes de maior apelo turístico, seja
realizando passeios em grupo – posto que especialmente as mulheres conhecem muito pouco
ou mesmo nada dos atrativos naturais das quais passaram indiretamente a depender (via de
regra aqueles que, para serem alcançados, dependem do aluguel de veículos para
demais clientes com empregados dos estabelecimentos que tentavam frequentar, respondendo
nessas ocasiões de forma resignada ou altiva, fazendo questão que as desculpas que acabavam
lhes oferecendo não se alongassem. Por vezes encontram, todavia, resistência por parte de
seus próprios conterrâneos, que não lhes prestam serviço da mesma forma que o fazem para
os visitantes, demorando a atender, por exemplo, uma “mesa afro”, como já ouvi sendo dito, e
dando prioridade a turistas, mesmo quando valor idêntico será pago. A propensão de alguns
particular, me foi exemplificada de outra forma por um professor da rede pública da cidade.
Ele comentou como passara a notar que jovens moças negras acostumadas a alisar os cabelos
só deixavam de querer fazê-lo na idade em que se davam conta de que penteados afro
costumavam ser muito mais atraentes para gringos em busca de um padrão de beleza
característico. Essas jovens iam assim, de certa forma, ao encontro do discurso também
presente na cidade entre os raros ativistas diretos pela valorização de uma beleza
propriamente negra, ainda que, na avaliação deste professor, por péssimos motivos.
tão sutis quanto ferinos, dizia que havia ações muito mais significativas na luta cotidiana
110
contra o racismo do que deixar ou não de alisar os cabelos, chamando minha atenção para as
muitas formas por meio das quais o preconceito que a população negra sofria era combatido.
Ela trabalhou por um tempo junto ao poder público buscando divulgar pelas escolas da região
tendo contado certa vez que nutria especial admiração, no jarê – que, de outro modo, só
frequentara com alguma regularidade quando criança –, pelo brio das entidades que
conseguiam suscitar respeito e obediência por parte dos presentes132. Na mesma chave
encontra-se o enredo escolhido pela quadrilha vencedora da parte competitiva do São João
que presenciei, e que narrava a história de um escravo que tinha obtido sua alforria, cuja
academia de capoeira, por sua vez, os professores do esporte explicavam aos seus alunos os
motivos pelos quais tinham escolhido ordenar as cordas de progressão de modo a conectá-las
com a trajetória da escravidão dos negros no Brasil133. Um de seus professores, que havia se
tornado ainda mais famoso depois de ser escolhido para protagonizar o filme Besouro,
contou-me como uma de suas maiores motivações para fazer parte do elenco era seu desejo de
mostrar a sua mãe na televisão um negro fazendo papel de capoeirista, posto que tinha ficado
132
Algo presente também numa companhia que funcionou por alguns anos na cidade chamada Grupo Teatral
Praça das Nagôs, empenhada em combater o racismo e defender o jarê contra a discriminação (Araújo 2002:
183).
133
Possibilidade aberta em função de cada academia ser livre para determinar a sequência das cores de suas
cordas. No caso da academia Corda Bamba, como me explicaram, a primeira corda era azul pois os escravos
tinham sido trazidos do mar. A segunda era marrom, representando a nova terra na qual foram obrigados a
aportar. A terceira era verde, ligada à natureza que desbravavam e na qual exerciam seu trabalho. A quarta era
amarela, indicativa da riqueza que produziram e do ouro que mineraram. A quinta era roxa, representativa da
raiva e indignação que os negros sentiam por serem escravizados. A sexta era vermelha, cor do sangue
derramado nas lutas contra a escravidão. A sétima e última era a branca, cor da liberdade por eles conquistada e
que é direito, acrescentavam, de todo ser humano. Uma aluna portuguesa, que já tinha alguma intimidade com o
professor de capoeira que me fazia essa preleção, perguntou-lhe com ar de brincadeira se eles não viam
problema em ter escolhido justamente a cor branca para a melhor corda, já que esta era a cor dos senhores de
escravos – provavelmente como réplica ao comentário igualmente jovial que ele havia feito sobre como iria
derrubá-la uma vez na roda por terem sido os portugueses os responsáveis pela escravidão no Brasil. A resposta
magnânima do professor deu a entender que se recusavam a conferir aos brancos o monopólio da cor que, ele
disse, era antes de tudo a cor da paz, acrescentando: “Além disso, eu não tenho nenhum preconceito contra gente
branca...”
111
indignado ao assistir, quando criança, a um filme de ficção que tinha a capoeira como
Meu amigo Elias gostava de comparar as atitudes das pessoas que lutavam contra o
preconceito racial com as de figuras emblemáticas desse movimento, dizendo que enquanto
próprio buscava se inspirar mais em Gandhi e Martin Luther King. Ainda que concordasse
que havia lugar para o embate mais direto do primeiro, tinha receios quanto aos perigos da
últimos135. Elias também se orgulhava de ter feito, ainda na escola, um trabalho a respeito do
abolicionista Luís Gama, e tinha profunda admiração pela história da escrava Anastácia, alvo
idioma iorubá, Elias lembrava que se tratava de uma língua, e não um dialeto, pois chamá-lo
dessa forma era também uma forma de preconceito. Quando ele me apresentou a um senhor,
pai de um dos professores da academia de capoeira, e lhe explicou o motivo de minha estada
em Lençóis, esse senhor nos disse que ficava muito feliz em ver pesquisadores interessados na
realidade das cidades do interior: isso era bom não só para nossos currículos, continuou, como
para a própria cidade, já que meu trabalho também poderia oferecer uma contribuição contra o
diziam alguns de meus amigos, de mudanças de atitude por parte deles próprios. Pouco
134
Trata-se, provavelmente, do filme de 1993 chamado Only the strong (traduzido no Brasil com o duvidoso
título Esporte sangrento), estrelado por Mark Dacascos no papel de um ex-boina-verde que serviu no Brasil onde
se tornou mestre de capoeira. Esse é o único filme produzido em Hollywood no qual a capoeira é parte integrante
do roteiro do início ao fim.
135
Quando usava a internet, Elias gostava de deixar marcada uma frase, atribuída a um buda: “Seja como o
sândalo, que perfuma o machado que o fere”.
112
politicamente correto (como, por exemplo, evitar o uso de certas formas de tratamento) se as
mesmas formas de discriminação continuassem operando – tomar algum tipo de atitude era
uma posição defendida diante da postura mais passiva e de evitação de confrontos com a qual
muitos dos nativos haviam se acostumado. Nessa chave encontravam-se algumas das ações
especialmente nas apresentações escolares feitas no Mercado Cultural no próprio dia 20.
Depois de uma introdução com leitura de poemas – atividade bastante comum em qualquer
evento público em Lençóis, nos quais via de regra há declamação de composições sobre
alunos de cada escola do município fizeram atuações diversas. Teve destaque a feita pelos
Lençóis. Cada aluno recitava um breve texto a respeito de uma personalidade histórica negra e
concluía dizendo bem alto seu nome seguido da frase por todos repetida: “Sou negro e
brasileiro”.
pessoas negras, já que sempre se marcava o fato de que era lá que as pessoas eram “pretas de
verdade”, em referência antes de tudo à tonalidade de pele marcadamente mais escura dos
seus moradores, muitos dos quais haviam com o tempo se mudado para a sede do município.
A companheira de Elias e sua família eram nativos do Remanso, comunidade que este me
contou ter surgido a partir de descendentes de quilombolas que estabeleceram seu enclave
anterior numa região próxima, por sua vez surgido, conta-se até hoje, a partir da união de uma
escrava fugida com um “índio”, ou “homem do mato”, que por lá habitava 136. Dos habitantes
136
Houve diversos quilombos, durando períodos variados, espalhados pela Chapada Diamantina, tendo ficado
mais conhecidos os que se fixaram na área que hoje é o município de Andaraí, com especial menção à ocupação
da chamada Mata dos Orobós. Os habitantes desses enclaves trabalhavam a terra, caçavam e pescavam, fazendo
parte da economia local por meio de trocas e chegando mesmo a acompanhar parte da exploração diamantífera
113
do Remanso diz-se que cultivam o hábito de casar somente entre si mesmos, sendo invariável
ouvir, quando em Lençóis se comenta a respeito da vila, o fato de que lá “são todos
parentes”137. Elias, por sua vez, e mesmo não sendo oriundo do Remanso, por vezes referia-se
implicada tanto pela cor de sua pele que, para seu desgosto, não era tão escura quanto a de sua
companheira, como pelo seu cabelo que, apesar de encaracolado, possui textura mais lisa e
lembra “cabelo de índio”138. Entre outros motivos, o fato de usá-lo com comprimento
“Odé”, entidade que no jarê é uma versão infantil de Oxóssi, orixá ligado às matas.
Esse pai-de-santo, cuja história será detalhada no próximo capítulo, havia sido
mais conhecido pelo nome de Manezinho Bumba, há muito falecido, e que não deve ser
confundido com seu xará, mais novo, que atendia por Manezinho do Remanso, líder
comunitário que também tinha conexões com o jarê. O falecimento desse último há alguns
anos e a posterior conversão de muitos dos habitantes da vila, que passaram a ser evangélicos,
diminuiu a presença do jarê no Remanso, que procura ser de todo modo estimulado por um
dos muitos filhos carnais deixados por esse último Manezinho. O Remanso também se insere
no circuito turístico no qual Lençóis agora investe, havendo ali incursões de turismo
comunitário incentivadas pelo Grãos de Luz e Griô, que também atua com o conhecimento
tradicional de seus habitantes, bem como, em maior escala, passeios de canoa pelos
(Rabelo 1990: 54; Toledo 2001: 102-103; Senna 2002: 235; Funch 2007: 83, 114; Toledo 2008: 69-70, 72-73,
76). A presença especificamente indígena na região será discutida no capítulo 4, seção 4.3.
137
Algo bastante similar ao que se diz na já mencionada comunidade do Mulungu, em Boninal, oeste da
Chapada Diamantina, afirmando-se lá que “é tudo uma família sozinha” e “todo mundo é primo” (Brantes 2007:
31).
138
O jarê já foi chamado de uma religião resultante de “sincretismo afro-ameríndio” (Senna 1998: 73), e os
habitantes da Chapada como de origem “afro-indígena” (Rabelo 1990: 372).
114
Chapada139.
nos quais os lençoenses falam a respeito de sua negritude, pode surgir nos mais diferentes
momentos, como quando alguns amigos compararam sua cor de pele à de turistas angolanos
que conheceram na cidade, ou quando, por eu ter mencionado a monarquia numa conversa a
contundente que suas famílias também tinham chegado no Brasil junto ou até antes da família
real: só que na condição de seus servidores braçais. Lençóis é também o berço de Cândido da
Fonseca Galvão, mais conhecido como Dom Obá II d’África140. A figura de Dom Obá tornou-
se, por um breve período, emblemática no restante do país ao protagonizar o enredo de uma
Lençóis dava pouca atenção à história de Dom Obá antes dela ter sido popularizada com o
139
Ver fotos 15 e 16 no anexo III.
140
Nascido, na Lençóis do século XIX, de um escravo iorubano alforriado, Dom Obá era neto do poderoso
Alafin Abiodun, último soberano a manter unido o império de Oyó, na segunda metade do século XVIII. Ele
deixa a Chapada para lutar na Guerra do Paraguai e retorna de lá com o posto de alferes, estabelecendo
residência na cidade do Rio de Janeiro, onde se torna um expoente na defesa da igualdade de direitos entre
negros e brancos – apesar de monarquista, frequentador assíduo da corte de Pedro II –, publicando artigos
abolicionistas em jornais e sendo reverenciado como um príncipe por muitos negros no país, tanto escravos
como libertos, vindo a falecer pouco depois da queda do Império. Há somente pequenas divergências na história
de Dom Obá entre a versão contada pelo livro que a tornou amplamente conhecida, baseada em pesquisa
arquivística (Silva 1997: 37-38, 120, 219-220) e aquelas oriundas da memória lençoense registrada alhures
(Ganem 2001: 39-43), a respeito da época e local de seu nascimento e o fato de ter ou não sido escravo quando
mais novo.
141
No desfile do ano de 2000 da Estação Primeira de Mangueira, cujo carnavalesco foi Alexandre Louzada.
Apesar de a escola ter ficado em 7o lugar na disputa do Grupo Especial, prejudicada por problemas técnicos com
um dos carros alegóricos, seu enredo obteve notas altas, e o samba-enredo, composto por Marcelo D’Aguiã,
Bizuca, Gilson Bermini e Valter Veneno, e interpretado por Jamelão, recebeu, por sua vez, nota máxima de
todos jurados. A homenagem da Mangueira parece ainda mais significativa por ter sido Dom Obá importante
intercessor junto ao Imperador para que fornecesse auxílio à população empobrecida que havia sido instalada nas
proximidades da Quinta da Boa Vista e do Morro dos Telégrafos, que viria a ser o Morro da Mangueira (Silva
1997: 118).
115
desfile da Mangueira que o homenageou, e como os esforços pífios surgidos a partir daí
Nenhuma ligação com suas origens africanas, contudo, era mais significativa para os
lençoenses do que aquela explicitada pela presença das “nagôs”, senhoras africanas vindas
para a cidade ainda na época da escravidão. Mesmo tudo indicando que se tratasse de uma
minoria quantitativa, já que a maior parte dos negros que foram levados e que afluíram
espontaneamente para a Chapada possivelmente era oriunda da Costa do Ouro, essas senhoras
falantes de iorubá e vindas da região do Golfo do Benim tiveram papel de destaque enquanto
feminino, comentando-se também como eram as mulheres que chefiavam as casas, sendo
invariavelmente seus nomes precedidos do honorífico “Sá”, da mesma forma que algumas de
suas mais notórias descendentes que Elias conheceu ainda em vida, como Sá Iria ou Sá
época navegável deste ponto até bem próximo de Lençóis, cujas proximidades podiam ser
também atingidas durante determinada época por uma importante ferrovia, além das trilhas e
estradas pelas quais animais de carga cortavam as serras145. A cidade de Cachoeira continua a
142
De um lado, o Grãos de Luz e Griô fez um carimbo com o qual marcava parte de sua produção e não muito
mais que isso; de outro, a prefeitura batizou um arquivo público municipal de “Arquivo Dom Obá”, que esteve
ao longo de toda a duração do meu trabalho de campo interditado por ter sido alvo de uma infestação de pombos.
143
A maior parte da população escrava da Chapada Diamantina era composta por negros já nascidos em
território nacional. A documentação disponível, por exígua que seja, permite de todo modo à literatura identificar
ao menos minimamente as origens tanto dos africanos trazidos para a região como dos antepassados dos
escravos brasileiros (Neves 1998: 262-271 apud Pina 2001: 198; Pina 2001: 185, 187; Senna 2002: 229).
144
A preferência pelo uso do etnônimo coletivizado no feminino se conecta, entre outros motivos, à
matrifocalidade das famílias (Senna 1998: 70). Em outras partes do Brasil, existem até os dias de hoje em
desfiles de blocos carnavalescos os “blocos de nagô” (Mello 1994: 34 apud Barbosa Neto 2012: 5 nota 7; Mello
2010: 79, 265).
145
As diversas formas de se chegar até a Chapada sofreram desgastes contínuos ao longo dos anos, sendo
renovadas ou abandonadas ao declínio conforme os ciclos de produção do diamante, o Paraguaçu perdendo
116
ser até hoje um referencial para os habitantes da Chapada Diamantina no que se refere à
religiosidade de matriz africana, e muitos objetos rituais considerados insubstituíveis por seus
utilizadores no jarê são ditos proceder daquela região, trazidos de lá no passado pelas
nagôs146.
Como em outras partes do país, os africanos trazidos à força para a Chapada aportaram
realidade à qual foram submetidos tanto eles como seus descendentes. Na região das Lavras,
tudo indica que tenha acontecido inicialmente processo similar àquele que teve início na
capital baiana, onde o candomblé de modelo jeje-nagô surgiu e se consolidou após ter
existentes, dando origem às casas de culto organizadas, que possibilitavam que diversas
divindades africanas distintas fossem reverenciadas num mesmo espaço ritual147. Quer tenha
se desenvolvido de modo parecido diretamente na Chapada, quer tenha sido trazido pelas
novamente, diante de outros encontros com a realidade local, vindo a originar o jarê como é
navegabilidade e a Ferrovia Central da Bahia tendo seu trajeto inicialmente planejado alterado rumo ao sul. A
conexão com Cachoeira, importante centro comercial do Recôncavo, sempre esteve no horizonte (Acauã 1847:
244; Pereira 1910: 56; Moraes 1963: 37, 195; Ganem 2001: 123; Araújo, Neves & Senna 2002: 138 nota 33;
Zorzo 2002: 64-67).
146
Já se estudou a fundo o papel da cidade de Cachoeira enquanto exportadora não só de saberes como de
objetos rituais para as cidades do sertão baiano – com menção explícita, entre outra, a Lençóis –, num
movimento contíguo ao da empreitada dos tropeiros que circulavam pelas estradas e ferrovias reais (Brazeal
2007: 21, 40, 176).
147
Não resta dúvida a respeito da importância da consideração histórica adequada desse processo, deixada de
lado na produção do final do século XX quando foi feita a crítica da suposta superioridade jeje-nagô (Bastide
1960: 67-71; Serra 1995: 32-33, 45-46; Castro 1998: 25; Senna 1998: 65, 68; Silveira 2005: 20-23; Senna 2002:
224, 234-235; Souty 2007: 234-235). O primeiro registro documental encontrado na literatura a respeito de
encontros de negros na Serra do Sincorá para a realização de batuques e danças com possível cunho religioso
data de 1856: trata-se de uma proibição nas posturas municipais do município de Santa Isabel do Paraguaçu para
impedir encontros do tipo por perturbarem a ordem pública (Pina 2001: 188).
148
Num movimento contínuo e também reverso, com a ida de habitantes nascidos no sertão para Cachoeira e
além (Brazeal 2007: 41).
117
Segundo relatos orais transmitidos por alguns dos mais antigos habitantes da cidade,
que os ouviram de seus ascendentes, as nagôs e suas primeiras descendentes realizavam suas
festas e cerimônias no interior de suas casas, “falando cortado”, ou seja, em iorubá, não sendo
entendidas por aqueles que não falavam sua língua ou, como me foi dito, de modo a que “só
entendesse quem tinha que entender”. Além dos salões nos quais aconteciam os toques e
danças, suas casas possuíam dois compartimentos distintos para o acondicionamento de seus
objetos rituais e estatuetas, sendo uma dedicada aos mais diretamente africanos e a outra aos
a entidades que deviam ser reverenciadas na parte de fora de suas casas, ainda que não a céu
aberto: os caboclos, espíritos ligados aos indígenas150. Para tanto, mandavam erguer estruturas
temporárias cobertas com folhas de árvores e palha seca, sob as quais conduziam uma parte
distinta de suas celebrações, destinada aos caboclos, e cuja liturgia era praticada em idioma
vernáculo. Diferentemente das cerimônias realizadas no interior das casas, cuja participação
era em princípio reservada somente às próprias nagôs, seus familiares diretos e convidados
especiais, o culto aos caboclos feito em português do lado de fora era aberto a qualquer pessoa
que dele quisesse participar. A hipótese aqui esboçada é a de que com o passar do tempo as
duas cerimônias distintas amalgamaram-se e deram origem ao jarê como é conhecido nos dias
149
Esses aposentos me foram descritos, por exemplo, por Elias, que visitou a casa de uma dessas senhoras,
descendente das nagôs, que há muito não mais realizava cerimônias. Ele foi chamado para auxiliá-la, junto de
diversas outras pessoas, a despachar seus objetos rituais antes de sua morte, que ela sabia ser iminente. Elias
ficou responsável, numa missão que o encheu de orgulho, pelos itens ligados a Xangô, entidade da qual é
especialmente próximo.
150
Por vezes afirma-se que a adoração dos caboclos nos terreiros das nagôs, possivelmente ocorrida no início do
século XX, se deveu à ação de um único líder religioso, chamado Alfredo Araçás, filho de escravos alforriados
provenientes de Minas Gerais. Cada comunidade de culto costuma ser capaz de indicar uma pessoa específica
responsável por essa inovação na história de sua casa (Senna 1998: 72, 77).
118
de hoje, no qual todas as entidades passaram a ser reverenciadas no mesmo espaço interno –
É comum que os habitantes de Lençóis se lembrem das nagôs durante as noites em que
há tempestades com raios, bastante temidas na Chapada, cujas serras fazem ressoar trovoadas
tão magníficas quanto assustadoras. Em ocasiões como essas, as nagôs costumavam sair de
suas casas em meio à tormenta tocando seus agogôs, instrumentos compostos por duas
campânulas de ferro percutidas por varetas metálicas, com objetivo de aplacar a insatisfação
dos orixás responsáveis por esses fenômenos climáticos, Iansã e Xangô. Conta-se que, certa
vez, uma mulher resolveu zombar da prática das nagôs, dizendo que iria tocar agogô para
afastar a tempestade que crescia. Algum tempo depois, e mesmo estando dentro de casa, a
escarnecedora foi atingida por um raio que a matou na hora, deixando contudo só metade do
seu corpo carbonizado, enquanto a outra metade permaneceu intacta. No local atingido
indício suplementar de que o evento não foi nenhuma coincidência152. Até hoje, em especial
as pessoas ligadas ao jarê mostram grande temor e reverência diante das chuvas
das cerimônias precisa aguardar a proximidade da estiagem, sob pena de se haverem com a
certa feita, Horácio enviou jagunços para acabar com o bater de tambores que rompia a noite e
conhecidas como jarês, seus jagunços foram tratados de forma tão carinhosa e afável que não
151
Daí também fazer sentido considerar o jarê, que será detalhado mais adiante nesse capítulo, na seção 2.4, uma
espécie de candomblé de caboclos.
152
Essas pedras foram apresentadas no capítulo anterior, na seção 1.1, e reaparecerão nos próximos.
119
conseguiram executar a missão para a qual tinham sido enviados. Depois de três pares de seus
homens terem retornado sem obter sucesso, o próprio coronel vai até o jarê das nagôs e, sendo
tratado da mesma forma, desiste por fim da empreitada153. Outro episódio, também contado
com bastante gosto, que ilustra a relação das nagôs com Horácio de Mattos, ocorreu num local
que até hoje continua a ser chamado pelo nome que o conecta a essas senhoras. Na Praça das
Nagôs, durante um evento público que reunia grande parte dos habitantes de Lençóis, um
rapaz negro teve a ousadia, na visão do coronel, de flertar com uma moça branca “da
sociedade”, sendo por isso chicoteado por Horácio. Em revanche, uma das nagôs ali presentes
usou um instrumento ritual para fazer com que o coronel começasse a sambar e chicoteasse a
si próprio involuntariamente154. Consta que o coronel e as nagôs chegaram por fim a uma
trégua (ou talvez aliança), segundo a qual o primeiro concordava em abandonar a perseguição
aos cultos das últimas desde que estas procurassem diminuir a visibilidade das oferendas que
As nagôs eram reconhecidas de longe por suas vestes, quase sempre de notável alvura,
em geral compridas saias e blusas com golas ornadas. Andavam, como muitas das mulheres
da cidade, com as cabeças cobertas, mas variando entre os lenços dobrados em triângulo
153
Uma história similar me foi contada por uma senhora bastante idosa, que a testemunhou quando ainda era
criança. Ela disse que os policiais que costumavam frequentar os jarês (para manutenção da ordem evitando
brigas, explicava) eram muito bem recebidos, a ponto de ter visto um deles participando diretamente da
cerimônia, ao ser tomado por uma entidade e adornado com vestimentas brancas pelas nagôs que o permitiram
dançar, exigindo dos presentes o devido respeito ao visitante, agora duplo.
154
Elias, um dos que me transmitiu essa história, me disse que ouvira o objeto, que podia ser também uma
espécie de chicote ou espanta-moscas, ser chamado de “orobô”, nome em outros lugares reservado à noz-de-cola
ou à coleira, árvore de onde provém (e na mesma região da Chapada registra-se a existência da Mata dos Orobós,
na qual no passado parece ter havido um quilombo). No candomblé, esse mesmo instrumento, feito com cauda
de bois, é a ferramenta usada por Iansã para afastar os mortos, normalmente recebendo o nome de “iruquerê”.
Ainda na chave do episódio do coronel que se açoitou, há menção a uma construção teatral realizada por
garimpeiros da região chamada “brincadeira do coronel”, na qual o ator que protagonizava o caudilho era
chicoteado de forma simulada (Senna 1998: 71; Senna 2002: 218-219).
155
Esses eventos parecem ser inversões locais, mas que mantêm o efeito esperado, do que se conta com bastante
frequência ter acontecido em casas de candomblé litorâneas, quando agentes repressivos, em geral do Estado,
veem frustrada sua intervenção ao serem tomados por entidades do culto e acabam eles próprios sofrendo a
violência que iriam exercer, sendo levados, por exemplo, a rolar no chão incontrolavelmente. A resistência pela
ternura, exemplificada pelas práticas das nagôs de Lençóis, pode ser também conectada com a disposição
subversiva de que se falará adiante nesse capítulo, na seção 2.3.
120
usados na região e os turbantes típicos de Salvador. Distinguiam-se por não ter cabelos na
cabeça, os relatos divergindo sobre a prática de serem raspados ou, como muitos afirmavam,
não chegarem nem mais a crescer. A menção aos pés permanentemente voltados para fora só
não é mais constante que a referência aos narizes achatados e lábios protuberantes, sinais
físicos que as distinguiriam dos demais negros da cidade e que legaram a seus descendentes,
homens e mulheres até hoje abertamente reconhecidos enquanto tais em Lençóis. Ainda que
seja possível que seus primeiros filhos e filhas fossem também chamados de nagôs, o
como dizem os que afirmam que nagôs propriamente já não há mais na Chapada156.
Quando contam histórias a respeito das nagôs, os habitantes mais velhos da cidade
invariavelmente comparam as celebrações por elas organizadas ao jarê que existe nos dias de
hoje, fazendo questão de marcar como este empalidece diante daquelas. No que pese a
saudade de um tempo passado e idealizado que, afirmam, não terá retorno, seus comentários
me fizeram pensar em como as nagôs deviam conceber em seus cultos seu próprio passado,
extraídas que foram de sua terra natal. Se hoje se diz que “jarê bom mesmo era jarê de nagô”,
talvez outrora as nagôs não deixassem de considerar que aquilo que faziam no novo território
para o qual tinham sido trazidas não passava de uma improvisação possível e enfraquecida
diante das práticas realizadas em África. Se não há motivo lógico para que esse raciocínio seja
interrompido nesse ponto – pois é possível que seus antepassados sentissem saudades ainda
outras –, a frase a princípio irônica segundo a qual “a nostalgia já não é mais o que era
antes”157 pode chamar atenção para uma diferença marcante entre esses sentimentos, quando
156
A expressão “jornal de nagô”, de uso raro presentemente, refere-se a boatos e informações passados
oralmente, registrando-se seu uso também em Salvador (Moraes 1963: 106 e nota *), onde sua versão mais
comum é conhecida pelo termo “correio nagô” (Risério 1981: 107; Johnson 2002: 185).
157
A frase dá título às memórias da atriz francesa Simone Signoret (1976), e parece ter sido popularizada pelo
escritor americano Peter de Vries.
121
que parece permear e conferir sabor característico às tradições de matriz africana no Brasil
quais os negros foram submetidos, exemplificando-o uma cantiga que no jarê serve a
entidades que se despedem após uma manifestação. A primeira vez que a ouvi foi interpretada
por Elias e sua companheira, numa apresentação que fizeram para alunos da cidade sobre uma
importante senhora negra que gostava de contar histórias, e que guardara atrás de sua porta
um chicote, para se lembrar dos relatos que sua mãe lhe fizera a respeito das surras que já
2.2 Pesquisas
tamanha sua dedicação a se inteirar a respeito dos causos de Lençóis e a disseminá-los entre
os que estivessem dispostos a escutá-lo. Suas amigas mais ligadas aos sistemas formais de
educação buscavam incentivá-lo nessa empreitada, fazendo notar que tanto ele como sua
histórias por terem feito cursos nesse sentido, enquanto eles tinham adquirido seu saber de
maneira orgânica, vivenciando as situações sobre as quais discorriam ou tendo escutado seus
158
O termo “nostalgia estrutural” (Herzfeld 1997: 147), parece ser perfeitamente adequado ao estilo de
reativação constante do passado como referência fundamentadora no jarê e alhures.
122
relatos cercados de circunstâncias específicas, sendo nativos da região. Elias contava, por
exemplo, como tinha durante muitos anos “recebido ensinamento” da saudosa Senhorinha,
que por sua vez o recebera de Sá Miliana, descendente de nagôs que fora filha-de-santo de Zé
Rodrigues, o líder religioso de jarê mais importante do passado de Lençóis de que ainda se
próximo das senhoras que o transmitiam, num processo demorado que podia levar horas a fio
a cada dia da semana, tempo que passava auxiliando-as em alguma tarefa doméstica, como
cortar chuchu ou mamão verde, enquanto as escutava. Ele também se lembra que, ao longo do
Com o tempo Elias se deu a missão de ouvir e registrar da melhor forma possível as
histórias que lhe contavam as pessoas mais idosas de Lençóis, que visitava com gosto e com
as quais forjou fortes laços de amizade. Passou a ter o hábito de andar com um pequeno
caderno de notas em seu mocó, no qual fazia registros pontuais se algo lhe viesse à mente
durante uma caminhada pela cidade, bem como escrevia resumos das conversas e entrevistas
que realizava com esses senhores e senhoras, porventura depois digitados e armazenados em
seu correio eletrônico. Elias não costumava recorrer ao material que acumulara ao longo dos
anos, tanto por este se encontrar bastante desorganizado como por nunca ser tão completo
quanto o registro que mantinha em sua memória. Ele tinha também suas próprias
interpretações a respeito de algumas das histórias fantásticas que escutava, elaboradas junto
de seus amigos mais próximos em encontros sempre alegres e que davam testemunho de seu
159
Como quando debatia com um amigo sobre os eventos em torno da história da serpente que habitava sob a
Ponte dos Suspiros, relatada no capítulo 1, seção 1.3.
123
De certa forma, como ele mesmo afirmava, Elias se contrapunha aos muitos
pesquisadores que, como eu, visitavam a Chapada por algum tempo com um objetivo
institucionalmente orientado e que mais cedo ou mais tarde deixariam Lençóis para dar
resultados concretos que teriam as pesquisas, mais ainda se pudessem vir a ser por eles usados
para algum papel transformador da realidade local, algo mais esperado no caso das ciências
humanas. Muitos dos pesquisadores que por lá passavam não davam nenhum tipo de retorno
para seus interlocutores depois de deixarem a cidade, fato que costumava entristecer
futuro. No tocante às pessoas que mais se envolveram com minha pesquisa, Elias me fazia
Essa necessidade tinha pouco a ver com qualquer vontade, que poderia ser inicialmente
suposta, de auferir frutos diretos resultantes do trabalho em questão (fosse prestígio, fosse
qualquer retorno financeiro), já que os envolvidos deixavam clara a convicção de que todo
tipo de trabalho – por mais estranho que ele seja – deve ser remunerado da forma que lhe seja
adequada. As notícias às quais sim desejavam ter acesso eram, de um lado, a respeito do bem-
estar do pesquisador agora distante e da data de sua próxima vinda a Lençóis, em função da
amizade cultivada e, de outro lado, confirmações sobre a utilidade e correção das informações
que lhe haviam transmitido – queriam saber se os encontros que ocorreram foram mutuamente
proveitosos160.
160
Mais de uma senhora me disse, de forma bastante explícita, que se de um lado havia o trabalho que eu estava
fazendo e que levaria de lá, de outro eu deixava lembranças e agradecimentos que ficariam com eles em Lençóis,
em operações de troca equivalentes.
124
A companheira de Elias costumava lhe dizer que ele deveria tentar ser ao menos um
pouco mais seletivo quanto às iniciativas que decidia ajudar, fossem de pesquisadores de fora
da cidade, fossem de nativos que esperavam que ele não recebesse nada em troca por seu
trabalho, às vezes nem mesmo o reconhecimento de tê-lo feito. Ambos haviam sido marcados
pelas já mencionadas experiências bastante negativas junto à associação Grãos de Luz e Griô,
que se somaram a uma decepção já nutrida por Elias em relação ao sistema educacional
vindo de Minas Gerais que ofereceu aulas de informática para Elias e alguns amigos, depois
que todos já haviam concluído o Ensino Médio, fez menção a um episódio da ditadura militar,
somente para descobrir que nenhum dos jovens jamais tinha ouvido falar a respeito da
imposição desse regime no país ao longo de toda sua trajetória estudantil 161. Elias passou a ter
grande interesse em saber mais sobre um período que havia sido suprimido de seu currículo
escolar, vendo aí, acredito, simultaneamente renovado seu gosto por mergulhar justamente
nos acontecimentos que não tinham feito parte das aulas de História que tivera – aqueles que
para ele constituíam um espécie de história menor, como os que acompanhara com
Com o tempo, e depois de suas tentativas em ser aprovado num vestibular para uma
universidade pública, Elias se desiludiu com a academia e desistiu, talvez ao menos por
enquanto, de continuar seus estudos formalmente. Ele afirmava, categórico, que o sistema
interesse no tipo de saber que ele possuía, exigindo – e dando ênfase demasiada para –
correção linguística normativa e uma capacidade de expressão escrita que ele não possuía e
não mais desejava gastar tempo tentando adquirir. Contudo, não é nenhum exagero dizer que
Elias tornou-se um intelectual não acadêmico, e por vezes anti-acadêmico, e que continua a se
161
Tampouco estudaram textos de Machado de Assis ou Castro Alves, Elias acrescentou significativamente, o
ensino da cidade dando preferência a autores locais como Afrânio Peixoto e Urbano Duarte.
125
aprimorar enquanto tal, fatos que me saltaram aos olhos de maneira crescente conforme nosso
conhecimento que ele já possuía e aquele que eu começava a delinear e que viria a resultar
nessa tese162.
as formas que ele considerava adequadas para lidar com o saber tradicional que acumulara,
Diferentemente de pessoas que consideravam que seu registro e futura publicação eram
suficientes para justificar a realização de uma pesquisa a respeito dos eventos transcorridos
em Lençóis, Elias levava sempre em conta os destinos que seu relato poderia ter, bem como
perguntava e imaginava as motivações dos senhores e senhoras que lhes haviam transmitido
causos e ensinamento, que variavam entre tê-lo feito para que ele as preservasse ou só para
passar o tempo, devendo depois cair no esquecimento. Muitas das histórias que lhe haviam
sido contadas poderiam se perder para sempre caso ele não lhes conferisse algum destino
público; ao mesmo tempo, com inúmeras delas isso já havia acontecido, e muitas vezes de
modo absolutamente premeditado: havia histórias que lhe eram contadas sob condição de não
serem repetidas, outras às quais se fazia alusão mas nunca eram inteiramente enunciadas,
outras que ele tinha certeza serem segredo absoluto. Elias lembrava-se bastante nesses
momentos também das nagôs, e de como seus cultos de certo modo se extinguiram, muito de
seu saber perecendo com elas. Não havia resposta simples nem única para esse exercício de
pensar e exercitar os limites da finitude, que por vezes chegava a ser paralisante, ainda que só
futuro outras pessoas experimentariam o mesmo tipo de alegria que ele viveu ao tomar ciência
desses eventos; ao mesmo tempo, Lençóis agora era outra e é possível que deva – ou mereça –
Elias me diria, meses após termos nos conhecido, que o motivo pelo qual não recusara
também muito pesou a intimidade que ele havia estabelecido com outra antropóloga, Marta –
que se tornara companheira de Carlão após a separação deste –, que havia feito trabalho de
campo na África e passara a visitar Lençóis com alguma frequência, lá cultivando amizades
sem ligação com qualquer pesquisa165. Elias dizia que, como ela, eu aos poucos conseguira
“fazer a cama” e firmar laços de confiança com as pessoas ligadas ao jarê, o que me permitiria
“deitar nela” e conduzir minha pesquisa de forma tranquila. Não há dúvida de que muito
desse resultado foi devido ao próprio Elias, que em algum tempo tornou-se não só meu
163
O fato de que ele tenha compartilhado algumas dessas histórias comigo, ciente de que elas poderiam vir a
fazer parte desse texto, parece indicativo de uma concessão ao primeiro desses ânimos – sendo preciso notar que
essa tese não se confunde com e nem jamais poderá substituir o destino que o próprio Elias dará ao material que
recolheu. Acredito, de qualquer maneira, que há histórias a respeito de nós mesmos que nos são tão caras que,
algo paradoxalmente, só podem ser contadas por outrem.
164
Em larga medida, a riqueza dos resultados obtidos pelo pesquisador é função da qualidade das relações
humanas estabelecidas no campo (Souty 2007: 85).
165
Marta realizou trabalho de campo em Moçambique para sua tese de doutorado em Ciências Sociais, defendida
na Universidade Estadual de Campinas (Jardim 2006). Segundo Elias, além da disposição para “fazer amigos e
cativar pessoas” que ambos demonstrávamos, e que ele disse que agora passava a considerar um traço típico dos
antropólogos, nos unia também certa fixação por genealogias, equivalente à que os historiadores demonstravam
por documentos.
166
Ver fotos 17 e 18 no anexo III.
127
Minha rotina diária passou a envolver acompanhar Elias por suas andanças e
conversas com os habitantes mais antigos da cidade, aos quais ele aos poucos me apresentava.
Havia certa afinidade eletiva entre o tipo de pesquisa que envolvia escutar por longas horas as
histórias que os mais velhos tinham para contar e seu desejo de compartilhá-las, muitas vezes
explicitada por eles ao comentarem que hoje em dia as pessoas mais novas raramente se
dispunham a ouvi-los com a necessária calma. Faziam referência com alguma saudade às
histórias de um período que muitas vezes eles tampouco tinham alcançado, causos que tinham
ouvido de seus pais e avós a respeito do “tempo dos antigos” e de uma época na qual a
oralidade tinha importância muito maior, um tempo “quando as coisas não eram escritas”.
Após esses encontros, depois de nos despedirmos dos senhores e senhoras que visitávamos,
Elias costumava repassar comigo o que havia sido dito para se certificar que eu havia
entendido tudo corretamente, comentando que eu devia também preparar a casa que alugara
para receber visitas, bem como conhecer importantes marcos na cidade aos quais as histórias
faziam referência (como o cemitério, determinados rios e lagoas, montes e cruzeiros nos quais
dificilmente teria acesso – ou pelo menos não em tão pouco tempo – já que os senhores e
senhoras com quem conversávamos se sentiam muito mais confortáveis ao falar com ele do
que em responder qualquer curiosidade que tivesse o rapaz branco vindo de fora que
conheciam há pouco tempo – o que fazia com que eu participasse bem mais como um ouvinte
interessado, porém tímido, que de início não oferecia senão poucas perguntas e comentários.
O próprio Elias viria a elogiar essa conduta, comentando em separado comigo como eu fazia
troça, de modo proposital, da afeição que começava a surgir entre os senhores e senhoras que
ele conhecia há tanto tempo e o antropólogo que lentamente ia começando a fazer parte de
128
suas vidas, de modo a estreitar nossos vínculos. Para tanto, Elias assumiu comigo uma postura
jocosa – possibilitada por nossa proximidade e bastante comum em Lençóis entre amigos do
sexo masculino e idade aproximada – segundo a qual ele rotineiramente me tratava de modo
Eram três as principais formas de caçoar que Elias usava nesse sentido: dizer que eu
não era uma pessoa “de confiança”, algo que quando afirmado de forma séria constitui grave
ofensa na região167; chamar-me pelo apelido que ele havia me conferido – “Amarelo”,
enfatizando minha compleição que denotava eu não ser negro168; dizer que ninguém deveria
se apegar a mim porque eu não estava morando de forma permanente na Chapada e mais cedo
ou mais tarde iria deixá-los. A zombaria de Elias acabava tendo efeito oposto quando, por
vezes diante da minha ausência de réplica, inevitavelmente nossos amigos lhe admoestavam e
indicavam – ou, ainda, a partir daí justamente passavam a cultivar – certa simpatia pelo alvo
da troça169. Seria então possível dizer que a atitude galhofeira de Elias teve exatamente o
efeito que ele esperava, nutrindo – e simultaneamente me fazendo perceber quando já existia
– determinada intimidade entre todos os presentes. Durante os últimos meses de minha estadia
amigos em comum e uma resposta tão jocosa quanto buliçosa do próprio, como por exemplo:
“Se você faz isso com vara verde, imagina com a seca...”
167
A questão fundamental de se ser ou não alguém “de confiança”, bem como suas repercussões no âmbito da
vida mística do jarê, receberão desenvolvimento detalhado no capítulo 4, na seção 4.2.
168
Elias achou o apelido ainda mais engraçado quando descobri e lhe mostrei que essa era a mesma forma pela
qual os inimigos do coronel Horácio de Mattos se dirigiam a ele, função de seu tom de pele “hepático” (Moraes
1963: 104, 110 nota 1).
169
Certa vez cansada pelo uso repetido que Elias fazia do epíteto que me reservara, já decorridos alguns meses
de trabalho de campo, uma senhora por quem ele tinha grande admiração, e de pele mais clara que a dele, certa
vez lhe disse: “Não chama ele mais disso, não, Elias. Ele é negro igual eu e você somos”.
129
Permanecer por tempo suficiente na Chapada era uma demanda premente das pessoas
com quem realizava minha pesquisa, bem como se fazia necessária ao menos a indicação de
quando meu trabalho acadêmico seria concluído para que pudesse retornar a Lençóis – e
trabalho de campo continuamente ao longo de doze meses também decorreu das distintas,
que movimenta consideravelmente a economia local e depende não só do clima como dos
meses em que era mais comum se tirar férias, com altas principalmente no início e final de
ano. A segunda sazonalidade está ligada ao calendário de festas públicas locais, religiosas ou
não. De forma mais diretamente ligada à pesquisa, acompanhar ao longo de um ano a rotina
dos lençoenses permitiu imiscuir-me de forma mais abonada nos eventos comuns, já que
meus amigos comentavam como no passado outros pesquisadores haviam lhes pedido, para
citar um caso, que encenassem rituais fora de suas épocas corretas, o que não podia ser feito
“Labutar com gente”, dizia-se às vezes por lá, “é uma arte”. Essa arte, do ponto de
vista de minha pesquisa, me foi sendo apresentada e transmitida, entre outros, por Elias, que
tivesse desenvolvido um método próprio para que os senhores e senhoras com quem gostava
de prosear acabassem falando a respeito dos assuntos que o antropólogo no campo procura
entender. Fazia-o de formas inclusive muito sutis, evitando perguntas diretas, falando só o
mínimo necessário, por vezes apenas esbarrando nos tópicos, deixando escorregar ideias,
temas, histórias, lembranças. O próprio Elias percebia como eu, especialmente nos primeiros
meses em Lençóis, frequentemente cometia algum deslize, algo que por vezes o frustrava um
pouco: “Afinal de contas, estuda-se tanto para isso?”, alfinetava rindo. Apesar disso, ele
130
costumava ser bastante tolerante e tentava me ensinar da melhor forma possível a falar e a
ouvir a respeito da vida dessas pessoas – até porque era também a reputação dele que estava
em jogo quando me apresentava a esses senhores e senhoras, posto que não o fazia
indiscriminadamente.
Via de regra, jamais realizei anotações diante de meus interlocutores, recorrendo por
vezes a um gravador portátil após nos despedirmos para deixar notas pessoais que
alguns meses, constituiu-se entretanto numa exceção, já que passei a ter o hábito de confirmar
com ele informações que escrevia no dia anterior – sempre confiando em sua memória
prodigiosa para os detalhes que eu acabava esquecendo –, bem como de por vezes ler para ele
trechos que eu havia escrito para obter suas impressões a respeito do andamento de minha
proposições e ouvir suas sugestões a respeito de lacunas que precisavam ser supridas. Elias
mencionava também a importância de escutar as pessoas em ocasiões nas quais ele não
estivesse presente, tanto para que eu mantivesse o hábito como para registrar versões distintas
que poderiam ser contadas em sua ausência – ou até mesmo em função dela. Nos dias que
antecediam as saídas para os muitos jarês que frequentei sem ele, Elias sempre me
aconselhava a acompanhar este ou aquele grupo de pessoas com quem imaginava me daria
Uma das preocupações que Elias costumava externar a respeito da escrita da minha
tese tinha a ver com as possíveis repercussões que haveria ao registrar e tornar públicos
170
Foi da mesma forma mínima a realização de entrevistas, feitas somente pouco antes do término do trabalho de
campo e a pedido dos próprios interlocutores, num processo descrito no capítulo 3, seção 3.3. O pouco
rendimento de entrevistas estruturadas já fora notado antes do início do trabalho, com exemplos de pesquisas na
Chapada e alhures que igualmente as desaconselhavam de forma expressa (Rabelo 1990: 103; Goldman 2006:
24; Brantes 2007: 30, 34). A genuína receptividade pela qual os habitantes do interior da Bahia são conhecidos
não significa que determinados tipos de informação serão necessariamente disponibilizados de forma rápida ou
ingênua, podendo gerar situações das quais tanto o pesquisador como seus interlocutores posteriormente farão
graça (Rabelo 1990: 153).
131
A esse respeito, costumava tecer sempre dois comentários, em primeiro lugar lembrando-me
que, por mais que eu por vezes buscasse ter uma postura conciliadora e evitar conflitos, era
impossível agradar a todos o tempo todo (“Nem Jesus conseguiu isso”, ele disse mais de uma
vez); em segundo lugar, enfatizava como eu, por ser um pesquisador com determinada
formação e de fora da cidade, estava comparativamente mais livre – do que ele, por exemplo
– para obter e transmitir certas informações. Desse modo, a maneira como essa etnografia foi
escrita leva em consideração essas ponderações, optando por transitar entre uma forma
narrativa mais direta e um discurso mais oblíquo, como o que era muitas vezes empregado por
enviesada refere-se de modo indireto a pessoas e eventos, prefere os pronomes aos nomes
próprios, e deixa que o contexto da enunciação e o conhecimento pregresso que se supõe ter o
ouvinte preencham as lacunas. Perdi a conta do número das vezes em que longas conversas
entre meus amigos transcorriam diante de mim sem que eu pudesse ter certeza (ou às vezes
sequer fazer ideia) a respeito de quem falavam, de quando e onde os episódios tinham se
passado, ou mesmo do que precisamente havia acontecido. Em parte essa dificuldade advinha,
dos sujeitos aos quais os apelidos se referiam, dos elementos para comparação aos quais
faziam menção. Contudo, tanto não fazia sentido interromper as narrativas para inquirir a
respeito dos detalhes de que eu não dispunha como, percebi progressivamente, acompanhar o
fluxo das histórias mesmo sem ter plena segurança sobre seu conteúdo podia ser prática usual
171
Apresentado no capítulo 1, seção 1.3 e expandido a seguir.
132
reservados ou, ainda mais comumente, justaporiam diversas histórias que passariam a
Assim é que procurei, ao longo da escrita da tese, reproduzir certas histórias, mesmo
as que presenciei em primeira mão, de modo parecido com aquele por meio do qual elas
poderiam ser relatadas para alguém que não as tenha vivenciado. Com isso, preferi evitar o
uso de recursos narrativos tais como pseudônimos, que em geral são empregados mais para
daqueles com quem conviveu. Se o uso dos nomes próprios de meus interlocutores abre a
possibilidade de que eles sejam prontamente identificados numa cidade pequena como
Lençóis, o mesmo poderia acontecer caso decidisse caracterizá-los de outra forma mas
quais de outro modo teria de abrir mão para salvaguardar sua privacidade, o que por vezes foi,
de todo modo, feito. Contudo, o uso dessa narrativa oblíqua simultaneamente permite que, por
um lado, mesmo leitores que desejem proceder a essas identificações só possam fazê-lo caso
se dediquem a obter o conhecimento contextual que as completa – e que segundo essa retórica
só se pode adquirir no convívio entabulado, enquanto, por outro lado, abre a possibilidade
para que aqueles de quem falo reconheçam a si mesmos e aos seus nessas linhas. Ou, para
dizê-lo de outro modo, e parafraseando as nagôs, para que só entenda quem tem que
entender172.
O trato pessoal com aqueles que vieram a ser meus amigos em Lençóis, especialmente
pouco tempo aprendi que praticamente toda pessoa que já possui idade suficiente para que
pudesse ser seu pai ou mãe pode – ou deve, a depender da situação – ser chamado por
172
Esse é também um dos motivos pelos quais esse texto assim se organiza, o jarê surgindo somente depois da
metade desse capítulo para que o leitor não só tenha acesso às demais histórias com as quais ele se combina
como saiba por quais meios elas foram adquiridas, a própria textura narrativa da tese apresentando
transformações ao longo de seu desenvolvimento.
133
“senhor” ou “senhora” e seu nome antecedido por “Seu” ou “Dona”. Essa medida de respeito
é bastante apreciada pelos cidadãos mais velhos e explicitamente exigida, ainda que de forma
branda, das crianças, às quais é ensinada desde cedo. A boa educação quase excessiva podia
ser também uma medida de distanciamento que eu posteriormente perceberia ser quase
imediatamente acionada nas primeiras interações dos nativos com pessoas brancas173, apesar
de minha tentativa de oferecer sua recíproca costumasse, Elias me diria, gerar ligeira e
positiva surpresa.
constituía muito do pouco de que eu dispunha para que minha presença fosse, pelas pessoas
que eu começava a conhecer, ao menos tolerada – não raras vezes com um pouco de
condescendência da parte deles. Era comum, especialmente nos primeiros meses do trabalho
desejo de ver, ouvir e aprender a respeito do que tinham a contar. Um episódio significativo
aconteceu quando Elias me levou na casa de uma senhora que também morava no Alto da
Estrela para que eu fosse rezado, sem me explicitar seu motivo, ainda que eu o desconfiasse.
A antiga rezadeira, que era bastante requisitada, me colocou sentado numa cadeira voltada
para a porta, aberta, sem meus óculos, que fez questão de retirar, e com os pés descalços e
bastante juntos. Ela pediu que Elias lhe pegasse três ramos de uma planta próxima – que ele
depois me diria serem de arruda e terem murchado após absorverem as influências nocivas
que me acompanhavam –, que passou diversas vezes em torno da minha cabeça e sobre os
ombros e braços, varrendo-me sempre do centro para fora enquanto pronunciava rezas em voz
bem baixa. Terminado o processo, eu lhe disse um “obrigado” que foi recebido com um riso
complacente acompanhado do comentário para meu amigo: “Vê só, Elias, ele diz ‘obrigado’
173
Como já escrito a respeito de outra parte da Chapada (Brantes 2007: 28).
134
depois de ser rezado...” Fui então instruído a jamais dizer “obrigado” após receber uma reza, o
correto sendo “Deus lhe pague”, que repeti a seguir, me desculpando. Como já me haviam
dito, a reza constituía uma obrigação para aqueles que possuem a capacidade de fazê-la, que
jamais devem receber nada em troca por elas. Assim, como eu passaria a entender
posteriormente, dizer “obrigado” enfatizava uma posição de dívida do recebedor da graça que
diversas situações não só por elas serem importantes para possibilitar a pesquisa como por se
mostrarem igualmente substância dela. Muito do que aprendi e que era transmitido mais
modos de se demonstrar o respeito devido. A partir desse ponto de vista, essa tese poderia ser
lida como fruto de um guia de etiqueta ou um manual de protocolo – para não dizer um
tratado sobre ética – que me foi passado pelos lençoenses mais velhos, especialmente aqueles
ligados ao jarê, já que há diversos procedimentos cerimoniais aos quais se deve prestar
atenção, dos constantes pedidos de bênção às posturas corporais, passando pelos ritos de
extremamente cioso com os comportamentos formais de praxe – em geral até mais do que as
pessoas mais velhas, de quem se poderia esperar tal diligência –, mas suponho que ao menos
em parte seu zelo fosse também ampliado didaticamente em função da minha presença. De
toda forma, ao acompanhá-lo eu acabava por aprender como me portar, com base não só em
seu exemplo como nas reações que a ele eram dirigidas ao me ensinar. Certa vez entreguei a
Elias um pacote de velas que trouxera de presente para o dono da casa na qual nos
encontrávamos – hábito comum quando se visita uma casa na qual se bate jarê –, para que ele
o repassasse por estar sentado mais próximo desse senhor. Quando Elias o entregou usando a
135
mão esquerda, os presentes foram rápidos em corrigir seu lapso, rindo e lhe lembrando que
toda oferenda devia ser apresentada com a mão direita, algo que talvez teriam deixado de
parte das vezes nas salas das casas, primeiro cômodo ao qual se chega ao entrar, podendo
passar para a cozinha ou o quintal na parte posterior das construções no caso de pessoas com
quem Elias possuía maior intimidade. Na sala costumam estar sempre presentes os altares
domésticos que são alvo de constantes cuidados por seus mantenedores. São em geral
toalhas, nas quais ficam dispostos inúmeros objetos, sendo mais proeminentes os quadros e
estatuetas com imagens de santos. A composição de cada altar varia enormemente de acordo
com seus donos, que podem neles manter também copos com bebidas diversas, moedas,
chaves, velas, figas, colares, anéis, instrumentos musicais, conchas, flores, perfumes,
inúmeros berloques (de pinguins de geladeira a budas orientais), pratos, bacias e quartinhas, e
pedras variadas, incluindo as de raio. Nos altares domésticos das pessoas mais ligadas ao jarê
– que costumam ser mais similares aos altares cerimoniais das casas de culto, descritos
posteriormente – é comum que haja também imagens de orixás, caboclos e pretos-velhos, bem
como pedras que simultaneamente são e pertencem a essas entidades. A senhora que havia me
rezado me mostrou certa vez em seu altar uma pedra comprida e ovalada, cor de telha, que me
disse ser o Xangô de Elias. Ela se referia à pedra com a mesma afetuosidade que reservava
para seus outros santos, indicando-me: “Olha ele ali”, “Bonito ele, não?” Passei então a
observar a presença dessas pedras nos demais altares, em geral ocultas atrás ou mesmo
debaixo de outros objetos, existências preciosas reveladas somente aos mais íntimos.
grande orgulho aos donos da casa quando alguém lhes pedia para observá-los mais de
136
perto174. Próximo às festas de fim de ano os altares recebiam a companhia dos presépios,
chamados mais comumente de lapinhas, erguidos com grande esmero no mesmo cômodo dos
primeiros e com alguns objetos em comum. Os presépios de Lençóis, contudo, eram armados
com uma gama ainda mais variada de itens, em geral remetendo à infância, em conexão com a
história do Deus Menino, que influencia alterações feitas nos presépios ao longo dos últimos e
primeiros dias do ano. As lapinhas costumam também ser adornadas com flores e plantas,
naturais ou artificiais, e dispostas sob um cenário imitando uma formação rochosa, feito com
pano ou papelão, e por vezes lembrando mesmo uma cachoeira175. A coexistência de traços
ligados a distintos referenciais religiosos era uma marca que não ficava, de todo modo, restrita
2.3 Subversões
As pessoas com quem convivi em Lençóis não tinham grande ligação com a Igreja
174
Algo que acontecia igualmente com os altares rituais das casas de jarê, e o pedido para vê-los mais
demoradamente era sempre recebido com entusiasmo. Provavelmente eu teria demorado mais a fazer essa
solicitação, imaginando que fossem, como nas casas de candomblé litorâneo, envoltos em segredo e não tão
acessíveis de antemão, não fosse pelo conselho de que os altares pareciam constituir uma excelente porta de
entrada no início da pesquisa (Rabelo 1990: 164 e comunicação pessoal).
175
A montagem das lapinhas em outro município da Chapada foi descrita de forma bastante precisa como uma
“composição eternamente inacabada feita de partes independentes e recombináveis [na qual o]bjetos cotidianos
deslocados do seu contexto utilitário são associados ao nascimento de Jesus”. A descrição, que poderia
igualmente se referir a Lençóis, prossegue: “Loção cremosa, perfumes, sabonetes, esmalte de unhas, e tudo que
exala algum cheiro é relacionado ao incenso oferecido pelos Reis Magos a Jesus. Lâmpadas, farol de carro,
velas, e tudo que ilumina mostra a chegada da luz no mundo. Os bonecos e os brinquedos simbolizam tanto a
criança nascida como os presentes que lhe são oferecidos. Os bichos de plástico, louça, barro, ou qualquer
material, remetem ao lugar que Jesus nasceu e à criação de animais (porco, galinha, boi) no cotidiano da vida
local. Os calendários e relógios são associados ao começo dos tempos, simbolizado na passagem cotidiana dos
dias e das horas. Além destes elementos[,] que podem ser combinados com outros, como conchas, pedras,
desenhos, objetos pessoais, fotografias de pessoas da família, do Papa, do padre Marcelo Rossi, cartazes de
propaganda política etc., a presença das imagens de Santos é recorrente em todas as Lapinhas” (Brantes 2007:
38-39). Ver fotos 19 e 20 no anexo III.
137
também como católicos, questão que de todo modo praticamente nunca lhes surgia no seu
cotidiano. Quando o assunto surgia numa conversa qualquer, frequentemente, e com saudade,
lembravam-se de um dos párocos que Lençóis tivera anos atrás e que mantinha com todos
uma relação de amizade, deixando os membros do jarê à vontade para conversar em seus
populares tradicionais que não faziam parte da liturgia católica, por vezes bebendo com os
habitantes da cidade e chegando mesmo a convidar um padre negro para celebrar uma missa
conga, paramentado com vestimentas africanas, como me contou Elias176. Já o pároco atual,
por sua vez, mais conservador, não era visto com grande apreço por aqueles que admiravam o
estilo mais ecumênico do primeiro. Nos dias de hoje era comum que muitos dos lençoenses
mantivessem, de toda forma, uma relação devocional bastante próxima com santos
Há uma pequena procissão feita todo oito de dezembro, dia da padroeira oficial de
Lençóis, Nossa Senhora da Conceição. Essa marcha, contudo, empalidece diante da realizada
ao final da novena de Senhor dos Passos, no dia dois de fevereiro de todo ano, mobilizando
virtualmente todos os habitantes da cidade. Seu Gilson me chamava atenção para o caráter
revelador que tinha a ordenação dos diferentes setores na caminhada, organizada e liderada
pelos membros ligados à Igreja Católica, acompanhados pelos devotos carregando os santos
homenageados, bem como por alas nas quais se dispunham filarmônicas da região,
garimpeiros ilustres, tocadores de reisado e baianas paramentadas, por fim seguidas pelo
176
Numa atitude bastante parecida com a que tinha o pároco do distrito de Nova Redenção, na cidade vizinha de
Andaraí, provavelmente na mesma época, atribuída ao reformismo católico posterior ao Concílio Vaticano II
(Rabelo 1990: 58-59, 119, 310-312).
138
Dia de Reis, trajando roupas coloridas e cantando músicas animadas de casa em casa, nas
quais podem ser recebidos com comida e bebida em troca da alegria que proporcionam. A
principal responsável pelo reisado em Lençóis, Dona Domingas, uma senhora de 68 anos e
que o comemorava desde que tinha 27, herdou essa obrigação de sua mãe, que a herdara de
sua avó. A mãe de Domingas havia feito uma promessa no nome da filha quando esta,
grávida, fora atingida por uma bala perdida numa troca de disparos entre dois homens que
discutiam por um motivo frívolo. Sua mãe pedira que ela ficasse viva para poder criar os dois
filhos que já tinha, garantindo que em troca Domingas daria continuidade à tradição de visitar
as lapinhas e organizar o reisado, o que foi feito após ela ter sobrevivido, ainda que perdendo
o filho que carregava. Para ela, manter viva essa festa é ao mesmo tempo uma honra e uma
obrigação, uma recompensa e um fardo que carrega com brio. Em uma de nossas visitas, Elias
lhe perguntou se havia alguma ligação do reisado com o jarê, levando Dona Domingas a
responder inicialmente de modo negativo, para depois mencionar o Rei de Congo como
exceção. Elias me explicou que este era um dos três reis magos, o único negro e africano, que
podia incorporar nos tocadores do reisado após as rezas que lhe precedem. Quem o recebia
incompreensível aos presentes, e que Elias suspeitava poder ser alguma forma de iorubá177.
Ao final de janeiro, o início dos dez dias da festa dedicada a Senhor dos Passos é
marcado por uma tradição trazida de Salvador e adaptada localmente, a lavagem da igreja. A
177
Ver fotos 21 e 22 no anexo III. As pessoas envolvidas com o reisado costumavam indicar as dificuldades
financeiras que tinham para manter viva sua tradição (Senna 2002: 219), reclamando também da recusa de uma
associação local em ajudá-los financeiramente, ignorando os dias de trabalho que muitos perdiam para organizar
o reisado e realizar apresentações em outras épocas do ano, como por vezes lhes solicitavam. O fato de sua
imagem também já ter sido veiculada em diversos produtos dessa associação sem que seu conjunto tivesse
recebido o crédito e a remuneração equivalentes só aumentava sua desconfiança e insatisfação com a parceria
estabelecida no passado com essa associação.
139
lençoenses por um filho-de-santo já falecido, o saudoso Fernandinho, figura que Elias muito
admirava apesar de não ter chegado a ser próximo em vida. Sua organização passou em
seguida para as mulheres de uma família local que a mantinham agora ao longo de duas
gerações, sob a liderança de Dona Vâny, buscando a cada ano que se fazia necessário a
obtenção de adereços e roupas típicas de baianas, bem como os instrumentos para a lavagem
da capela. A maior parte das baianas era composta por filhas-de-santo de jarê, acompanhadas
interior da construção178.
Outro ritual tradicional, igualmente sensível por também envolver em sua conclusão a
ocupação do espaço interno da igreja, é o da lamentação das almas. Feita ao longo de vários
dias, ela tem seu término na noite da Sexta-Feira da Paixão, dia no qual não se deve comer
jarê – distinto do responsável pela lavagem da igreja, ainda que com algumas sobreposições e
composto na maioria por mulheres – que se cobrem com lençóis ou outros panos brancos e
caminham durante algumas horas por trajetos previamente combinados entoando rezas
acompanhadas pelo som de uma ou duas matracas de madeira. As matracas são guardadas
com grande zelo ao longo de todo ano, com suas partes separadas, só sendo montadas na
época da lamentação, as cordas que unem suas partes nunca podendo ser cortadas, somente
desatadas.
178
Ver fotos 23 e 24 no anexo III.
140
sempre em número ímpar – em geral três, cinco ou sete –, fazendo com que ao final do
processo todos os cantos da cidade tenham recebido as rezas. As almas dos mortos são
simultaneamente apaziguadas e nutridas por essas rezas e pela luz das velas que são acesas e
deixadas em cada estação179, sendo as mais importantes delas as que envolvem paradas diante
túmulos de seu pai-de-santo e da mãe deste. Fazem o possível, contudo, para não se comover
no processo, tanto no cemitério como fora dele, já que os excessos emocionais atraem a
atenção das almas de modo indevido e possivelmente com consequências nefastas – mesmo
motivo pelo qual não se deve rir e se evita qualquer tipo de gracejo durante essas noites,
momentos de rara sisudez se comparados aos outros nos quais as mesmas pessoas se reúnem.
Da mesma forma, deve-se evitar ficar diante das matracas que conduzem o cortejo, espaço no
qual se concentram energias potencialmente danosas e onde é mais comum que aparições –
que devem ser prontamente ignoradas – sejam avistadas. Além das coberturas corporais que
utilizam, evitar falar os nomes dos mortos é outra medida utilizada para não provocar seu
interesse pelos vivos. Elias me disse que as almas encontravam-se especialmente inquietas na
Quaresma, período no qual não eram devidamente cultuadas em função dos terreiros estarem
assistência, que permanece no local ao final da missa. Os ecos provocados pelas matracas na
179
Motivos pelos quais o ritual também pode ser chamado de alimentação ou encomendação das almas, formas
distintas sendo preferidas em diferentes cidades da Chapada (Bandeira 1995: 205 nota *). A prática, de forma
quase idêntica, já foi descrita na literatura sobre a região, sua menção mais antiga em Lençóis remetendo à
década de 1920 (Moraes 1963: 136 e nota *; Gonçalves 1984: 139-140). Ver fotos 25 e 26 no anexo III.
180
Elias também creditava à perseguição da Igreja Católica, que fora muito mais acentuada no passado, o fato de
os terreiros encerrarem suas atividades durante a Quaresma, numa proibição que com o passar do tempo
acostumou as almas dos mortos a ficarem especialmente arredias nessa época do ano.
141
capela soavam quase tão lúgubres quanto as batidas secas que produziam no cemitério,
almas despertaram minha atenção para uma das relações específicas estabelecidas entre as
relativamente autônomos. Uma interpretação, suas variações em geral abrigadas sob o nome
de “sincretismo”, costuma dar ênfase ao surgimento de uma síntese equilibrada, uma forma
que reconhece interpenetrações e alterações pelas quais a religião em foco passa diante do
resistência como uma de subordinação, quer se refira, por exemplo, à capacidade de uma
catolicismo com objetivo de manter vivas suas práticas, quer se centre nas capitulações
sintetizar diversas – senão mesmo todas as – religiões podem ser entendidas como animadas
por um “ecletismo”, expressão máxima da primeira leitura. Outra interpretação, por fim, seria
análise, há uma forma adicional de pensá-los que ilumina uma dimensão suplementar de seus
181
Leitura que por vezes corre o risco de apresentar um quadro extremamente simplificado dos fenômenos de
contato, cujos exemplos (Prandi 2012: 90-96) esvaziam sua sofisticação.
182
O proponente dos dois últimos termos os exemplifica em especial fazendo recurso à umbanda e ao omolocô,
para o primeiro, e o candomblé litorâneo, para o segundo (Serra 1995: 14-15).
142
do primeiro, recursos não só para sua sobrevivência, mas para sua transformação183.
Antes da lavagem da igreja pelas baianas que eu acompanhei, por exemplo, surgiu um
boato que dizia que o padre considerava impedir a lavagem do interior da construção,
querendo limitar sua ação às partes externas. As baianas reunidas achavam muita graça nesse
rumor, não hesitando em dizer que se o padre esboçasse alguma reação nesse sentido lhe
dariam um banho enquanto continuariam a lavar também a parte interna da capela, como
faziam todo ano. As baianas saíram em cortejo da casa da associação dos garimpeiros e se
dirigiram à capela de Senhor dos Passos, no interior da qual um dos pais-de-santo do jarê de
ritual para fornecer água às baianas. O padre guardou certa distância do grupo, e quando a
lavagem finalmente teve início se retirou rapidamente, frustrando a possibilidade de lhe darem
um banho, para a infelicidade das baianas que comentavam como adorariam protagonizar essa
cena.
acompanhadas na lavagem tanto por outros habitantes da cidade que queriam fazer parte do
momento como das carolas que procuravam zelar pelo andamento do processo, a limpeza
propriamente dita do local – ainda que tenha sido perfeitamente efetuada – parecia ser
prioridade apenas dessas últimas. Para mim pareceu cada vez mais claro que a muitas das
baianas interessava bem mais a irrupção conjunta na capela depois de terem subido,
183
A discussão aqui apresentada deriva de maneira integral da concepção de “iconoclastia” nas religiões da
matriz africana como uma forma de “corrosão cosmológica” potencializante, como proposta por seu principal
autor (Anjos 2009: 24). Conforme explicita, não se trata de afirmar que o regime de enunciação dessas religiões
seja antes de tudo iconoclasta, mas de notar que sua iconoclastia é capaz de reverberar nos potenciais de outras –
como a católica (Anjos 2009: 21; Oro & Anjos 2009: 112). A ideia do caráter subversivo do jarê aparece
também em alguns trechos da principal etnografia existente sobre o culto (Rabelo 1990: 7, 10, 23, 296).
143
de ali realizarem uma atividade alegre e descontraída, como acabou sendo a lavagem. O pai-
de-santo concentrava-se tanto em fornecer água para a limpeza como em molhar os pés de
dias depois, durante a festa para Senhor dos Passos, encontrava-me junto dele, de uma carola
achava que o padre estava correto em não querer permitir a lavagem do interior da igreja, já
que o chão molhado, por exemplo, poderia danificar os bancos quando fossem recolocados
em seu interior, posto que as baianas cuidavam só de lavar e não de enxugar o espaço184.
Ambos comentaram com ela que já realizavam a lavagem dessa forma há muitos anos, e que o
enxugamento nunca fizera parte dessa tradição. Carminha se virou de lado e comentou
Essa guerra veria outro combate ser travado ao final do ritual de lamentação das
almas, na estação na qual as rezas são entoadas dentro da igreja. As senhoras responsáveis
pela manutenção da tradição já haviam comentado como certa vez, anos antes, o padre
fechar as portas da igreja por ter se cansado de esperá-las. As lamentadores ficaram bastante
ofendidas de terem que rezar a última estação somente do lado de fora da construção,
comentando que o padre achava que a igreja era dele, quando se sabia que a igreja era de
todos. No ano em que estive em Lençóis e pude acompanhar a última e mais importante noite
da lamentação das almas, o conjunto havia se reunido para decidir quais estações seriam
184
A literatura escrita a partir do ponto de vista da elite local sugere que “as representações pagãs” eram
toleradas pelo catolicismo por “se mostrarem imbuídas de espírito cristão” (Ganem 2001: 51). A disposição
subversiva dos adeptos do jarê, ao contrário, pode ser entendida também como um modo de resistência contra a
romanização do catolicismo que começou a ser estimulada justamente na metade do século XIX no país (Rabelo
1990: 69-70).
144
grupo disse que o padre havia comentara não ter nada a ver com as almas, dando a entender
mais uma vez que não esperaria as lamentadoras por muito tempo. O senhor, levantando os
ânimos do grupo, lembrou de modo arguto que o padre de fato não tinha nada a ver com as
almas e sim com a igreja, e que eles, por sua vez, tinham tudo a ver com as almas, e nada a
capela, indignou-se com a atitude do padre, já que ele havia deixado as lâmpadas apagadas e
provavelmente não as acenderia quando elas entrassem, dificultando a leitura que fariam das
rezas por não terem todas memorizadas. A líder do coletivo, possuidora de uma casa distante
da cidade na qual se bate jarê, exclamou em tom desafiador: “Se não tiver luz acesa a gente lê
na luz de velas!”, algo que foi dito e feito. Uma senhora posteriormente me explicou que a
leitura das rezas como também uma desconsideração com as próprias almas, que do local
receberiam escuridão em vez de luz, fazendo-me lembrar que sempre tinham em mente as
lamentação me informou que no passado havia um passo suplementar no ritual que tivera de
ser abandonado por não haver mais quem conhecesse as rezas “em língua”, que Elias me dizia
ser iorubá. Em cada estação próxima dos limites da cidade, uma única mulher se separava das
demais e se dirigia para pontos específicos no interior da mata fechada, realizando uma reza
equivalente à feita pelas demais, porém em língua. Era fundamental, continuava, que suas
ações fossem sincronizadas, para que retornasse da brenha no exato instante em que suas
Outros episódios podem ser arrolados para exemplificar a atitude de subversão que
Passos, correu o boato de que, em vez de ser tradicionalmente levada nos ombros dos
habitantes da cidade, o padre solicitaria que a imagem fosse colocada sobre um carro do corpo
terno impecável para ser um dos principais carregadores do santo, comentou que os
bombeiros não seriam necessários, já que não haveria ali nenhum incêndio, e que ele
continuaria na comissão de frente como já se acostumara a fazer desde muitos anos, o que de
fato aconteceu. Falava-se também com bastante gosto sobre as ocasiões nas quais o jarê se
imiscuía na própria liturgia católica, como podia acontecer no caso de batizados. Uma
senhora, que apesar de ser ligada ao jarê jamais foi iniciada, me contou como havia se tornado
ainda mais próxima do mais importante pai-de-santo de que se lembra a memória local
recente quando o convidou a ser padrinho de uma de suas filhas. Ela disse que à ocasião
outras pessoas lhe apresentaram objeções, dizendo-lhe que “esse povo não pode batizar”, ao
que ela respondeu, algo indignada, que não via motivo para que não pudesse. Concluiu a
história acrescentando, com um ligeiro sorriso de satisfação, que na hora exata do batizado
quem estivera presente fora não o pai-de-santo, mas a principal entidade espiritual dele, não
sendo poucos os afilhados que tinham como padrinhos guias místicos do jarê185.
cidade com as pessoas mais próximas ao jarê em parte diferiam daqueles realizados pelos
185
O batismo na igreja tendo como padrinho ou madrinha uma entidade de terreiro é o principal tema de O
compadre de Ogum, história de Jorge Amado originalmente publicada como parte do livro Os pastores da noite,
e cuja leitura Elias me recomendou enfaticamente. Os exageros narrativos em relação ao ineditismo dessa
espécie de acontecimento (Amado 1964: 38-39, 67, 86) em nada diminuem a grandeza da prosa, obra-prima do
autor no que se refere à apresentação literária do universo do candomblé de Salvador. Entre as muitas
similaridades que o batuque de Belém guarda com o jarê, inclui-se o batismo de crianças tendo por padrinhos
espíritos incorporados em adeptos, que nesse outro campo etnográfico ocorre tanto na igreja como nos terreiros
(Leacock & Leacock 1972: 84, 298). Um grande cruzeiro fincado à entrada de um terreiro de jarê em Nova
Redenção, em vez de apenas um símbolo cristão, significativamente revelou-se morada de uma entidade do jarê,
assento de um dos principais caboclos dessa casa de culto (Rabelo 1990: 159).
146
evangélicos de Lençóis, que são hoje em dia parte significativa de sua população,
altercações maiores, mesmo porque não era improvável que pessoas no interior de uma
mesma família fossem ligadas a religiões distintas, bem como que uma mesma pessoa
transitasse por diferentes igrejas e casas de culto. De fato, o mais comum era que a
convivência das pessoas só fosse impactada de forma ocasional e muitas vezes despretensiosa,
como quando lembravam, por exemplo, que o sino da igreja católica, que soava com
se forem eles próprios ligados por exemplo ao jarê – irão solicitar que não lhe sejam ofertadas
Essa postura mais ecumênica era esposada, até onde sei, de forma unânime por meus
amigos frequentadores dos jarês, que em princípio não viam problema em múltiplos
pertencimentos que outras pessoas considerariam ‘religiosos’, sem deixar de notar, contudo,
que na prática eles pareciam mais insustentáveis em função do ponto de vista dos evangélicos,
que pregavam a necessidade da conversão e da apostasia. “Entrar para a lei de crente”, que era
a forma como se referiam meus amigos do jarê a esse processo, era algo que muitos deles já
haviam feito em algum momento de suas vidas, pelas mais diversas razões, alguns de forma
mais definitiva e muitos outros de modo transitório. Bem mais do que o catolicismo
institucionalizado, a lei de crente figurava como alternativa bastante direta à presença nos
jarês, meio por vezes eficaz de se lidar com as entidades que os acompanhavam. Os que
surpreendi com a recente aproximação de uma jovem, que todos esperavam que em pouco
tempo seria iniciada no jarê, a uma igreja evangélica, Elias ponderou que essa era uma forma
dela obter mais algum tempo para pensar e simultaneamente deixar de ser aliciada pelos dois
Meus amigos costumavam dizer, falando a respeito de casos como esses, que optar, na
medida do possível, pela maior proximidade a uma casa jarê, a uma igreja evangélica, ou
ainda a qualquer outra religião, era algo que dependia da “natureza” de cada pessoa. Segundo
eles, não fazia muito sentido nenhum tipo de discurso que pregasse uma verdade absoluta
necessariamente legada para toda e qualquer pessoa de modo indiferenciado, sem levar em
conta sua natureza específica, que é o conjunto de sua história pessoal, seu temperamento, sua
vontade e as demais vontades que podem habitar sua pessoa e fazer parte dessa composição –
o exemplo mais comum sendo o das entidades místicas com as quais o jarê está acostumado a
lidar. Ir contra sua própria natureza pode acarretar sérias consequências para uma pessoa,
muitas vezes como forma de alerta para que retome o caminho que deveria seguir, em outras,
mais raras, como forma de vingança pela desobediência à sabedoria dos demais entes que
podem participar de sua composição. Uma senhora muito importante no jarê me contou como
tentou uma vez abandoná-lo e frequentar uma igreja evangélica, ficando sem conseguir
dormir durante a noite após voltar dos cultos, não sendo necessárias mais que algumas noites
em claro para que mudasse de ideia e voltasse para o jarê. Um pai-de-santo da cidade se
convertera em certa época a uma igreja evangélica, como forma de conter um de seus
espíritos que andava particularmente violento – enquanto outros na cidade comentavam que
ele pensava mesmo era em se tornar pastor para ter ganhos financeiros. Quaisquer tenham
186
Num candomblé em São Paulo registra-se um episódio similar, no qual uma filha-de-santo passa a frequentar
uma igreja evangélica e lá aprende fórmulas que a auxiliam na tentativa de não ser tomada por seu orixá quando
assim o deseja, do mesmo modo aviltando-o para que não se manifeste nela (Opipari 2004: 214-216).
148
sido seus motivos, é certo que não obteve êxito e teve de reiniciar seu trabalho no jarê
praticamente do zero, erguendo uma nova casa após, supostamente, ter-se desfeito de todos os
seus bens espirituais – punição que somente se somou a outras mais severas causadas por suas
entidades, comentava-se.
evangélicas tinha caráter jocoso, quando diziam de alguém – por vezes falando mesmo de si
próprios – já bastante ligado ao jarê que largaria aquela vida para entrar para a lei de crente,
rotineiramente pelos membros do jarê envolviam também muitos outros temas, mas nenhum
era tão frequente quanto o próprio jarê, provavelmente sendo tão comuns os comentários dos
membros de uma casa de culto em relação a outra quanto os que faziam graça dos eventos em
seu próprio terreiro. Algumas das senhoras de quem fiquei mais próximo, donas de um senso
que podiam ser simultaneamente ferinas e despretensiosas, sempre ditas num tom calmo e
muitas vezes ensimesmado, o que só aumentava sua graça. Uma delas comentou certa vez
como, por grande parte de sua vida no jarê, sua relação com seu primeiro pai-de-santo, hoje
falecido, parecia uma grande brincadeira entre duas crianças que jamais se cansavam de fazer
Crianças, por sua vez, acostumavam-se a ir aos jarês desde bem novas, junto dos
outros membros de sua família próxima, caso estes também os frequentassem, ou levados por
adolescentes, o jarê exercia um fascínio tão grande que um de seus passatempos favoritos era
o de planejar “jarês de brincadeira”, empreitadas que, por vários motivos, raras vezes se
evento (como uma feijoada ou bolos confeitados), improvisavam tambores com baldes
prometiam ficar, e se punham a bater palmas e cantar cantigas de jarê, dançando e fingindo
manifestarem as entidades que conheciam por observarem os mais velhos187. Elias foi por
algum tempo um de seus principais cúmplices – adorado pelas crianças, que o chamavam pelo
apelido de “Bilico” –, até ter tido sua atenção chamada, de forma bastante branda, por alguns
dos líderes do culto, fazendo com que a frequência dessas brincadeiras diminuísse.
que não devia ser feito de modo displicente, posto que podia ter consequências bastante reais.
jarês de brincadeira “no tempo”, ou seja, a céu aberto, o que as deixava particularmente
vulneráveis à ação das entidades. Caso uma incorporação real acabasse acontecendo,
continuavam, as crianças não teriam por perto nenhum pai-de-santo para lidar com ela, o que
poderia ter resultados imprevisíveis. Uma senhora, já com muito tempo no jarê, comentou
certa vez, falando de uma adolescente que brincava inocentemente com as demais crianças,
que quando ela finalmente recebesse um espírito – algo que ela dava por inevitável e que,
julgava, aconteceria mais cedo do que a jovem imaginava, em função de sua idade –, desejaria
jamais tê-lo recebido. Ambientes de jarê improvisados podem também irromper de forma
inesperada quando surge um motivo repentino para comemoração, como na ocasião em que a
filha de um senhor acabara de nascer e ele resolvera convidar todos os que se encontravam
diante de sua casa para comer e beber. Os jovens ali reunidos puseram-se a batucar e cantar
músicas de jarê, antes de serem repreendidos por uma das mais importantes líderes do culto
187
Ver fotos 27 e 28 no anexo III. Essas ocasiões haviam sido igualmente recorrentes e elucidativas em Nova
Redenção (Rabelo 1990: 107). Brincadeiras como essas são tema do filme Bárbara e seus amigos no país do
candomblé, de Carmen Opipari e Sylvie Timbert, de 1997, igualmente relatadas na literatura (Opipari 2004: 205-
212).
150
não.
orgulhavam bastante em vê-los querendo se aproximar ainda mais da tradição. Os mais novos
recebiam instruções específicas a respeito dos instantes em que lhes seria permitido dançar no
salão – normalmente nos intervalos em que não havia seres místicos manifestados – ou fazer
parte das cerimônias de outras maneiras, como oferecendo presentes às entidades do jarê,
trocando saudações rituais com as mesmas ou recebendo suas bênçãos – transmitidas, por
conseguiam ficar acordadas ao longo de toda a duração de um jarê, sendo igualmente levadas
para outros aposentos, ou tendo seus olhares desviados, pelos adultos que as haviam trazido,
durante a realização de sacrifícios rituais, ainda que não lhes ocultassem informações a
respeito do que se passava, acrescentando que não se preocupassem com o ocorrido. Houve
mesmo um evento a que fui, numa casa distante da cidade, na qual costumava haver
cerimônias, que começou sendo organizado como um jarê de brincadeira pelas crianças e
adolescentes, mas que acabou atraindo muitos adultos e se tornando um jarê de verdade,
contando com a presença tanto de alguns dos mais importantes líderes da religião como de
suas entidades. Essa ocasião inicialmente informal atestou a capacidade dos mais novos de
e ligeiro assombro.
188
Ver foto 29 no anexo III.
151
2.4 Jarês
Os jarês são, antes de mais nada, festas. Podem ser celebrados em qualquer ocasião
que peça uma comemoração, como um aniversário, antes de uma despedida de alguém que irá
se mudar para longe, ou pode mesmo irromper sem maior planejamento a partir de outros
festejos. Como tal, costumam ser abertos ao público em geral, alguns de seus frequentadores
tomando parte da festividade sem maiores ligações com sua face ritual, de todo modo nem
moram a uma distância maior da sede do município, numa oportunidade para socializarem,
encontrarem-se com parentes e amigos, flertarem. É comum que muitas pessoas passem a
noite inteira na área externa das casas de culto – onde muitos dos frequentadores armam
outras atividades recreativas. Nas manhãs e tardes que precedem ou nas que se seguem à
festa, amigos passeiam pelos arredores, tomam banhos de rio e de cachoeira, brincam, jogam
jogos e se preparam para o evento que acontecerá à noite ou para o retorno para suas casas no
entardecer, aproveitando seu tempo juntos num espaço de maior permissividade. Como em
aprontando com bastante esmero, trajando roupas adequadas à ocasião (vestidos ou saias e
blusas no caso das mulheres, calças compridas e camisas preferencialmente no caso dos
Os jarês costumam ser planejados para acontecer sempre aos sábados, à noite,
podendo sua duração se estender por mais dias, excetuando-se sextas-feiras, dia da semana
perigoso pois propício à atuação de entidades perniciosas, aí só sendo possível fazer jarês
189
Ver foto 30 no anexo III.
152
parte dos jarês espalha-se ao longo do ano de acordo com um calendário tradicional seguido
pelas casas de culto, ainda que possa haver festas em praticamente qualquer período, e por
motivos diversos. Pode-se considerar que o calendário litúrgico tem início com as cerimônias
de abertura dos terreiros, inativos por mais de um mês durante a Quaresma, e se encerra com
Ambas as ocasiões rituais costumam ser, de todo modo, consideradas conjuntamente, tanto
por acontecerem em espaço de tempo relativamente curto, como por gerarem grande
expectativa, a “fechada” sempre prefigurando a “aberta” que lhe sobrevirá. Uma espécie
similar de intervalo acontece entre todos os demais ciclos rituais de festas do jarê, seus
festividades.
Enquanto o primeiro ciclo de festas costuma acontecer entre fevereiro e abril, com
algumas variações anuais, e algumas cerimônias menores possam ser feitas por ocasião do
São João, o segundo principal ciclo de realização de jarês estende-se entre os meses de agosto
e outubro, em torno das celebrações para Cosme e Damião. Nesses meses, em especial nos
dois primeiros, ocorre o maior número de festas de jarê do ano, incluindo aquelas em
homenagem a Oxalá, no final de agosto. O terceiro e último grande ciclo de festas tem lugar
entre os meses de dezembro e janeiro, em geral começando com festas dedicadas a Iansã, no
que os reisados saem às ruas. No interior dos três ciclos, os jarês costumam acontecer perto de
datas comemorativas do calendário católico, não sendo totalmente incomum haver semanas e
190
Em ocasiões nas quais é preciso aproveitar um final de semana para realização de vários dias de festa, os
líderes do jarê iniciam seus trabalhos na madrugada de sábado, lembrando-se que quando chega a meia-noite já
não é mais sexta-feira. A meia-noite é, contudo, um horário especialmente propício para a convocação de
entidades perigosas, o que faz com que, por via das dúvidas e sempre que possível, se evite dar início à festa
logo nas primeiras horas da madrugada.
153
mesmo dias nos quais mais de um jarê aconteça simultaneamente – fenômeno que, me
explicaram, acontecia com mais frequência e com maior intensidade no passado recente,
hoje. Muitos se lembram com saudade de uma época, distante em torno de quarenta anos, na
qual nos meses de agosto e setembro realizavam-se num mesmo final de semana jarês em uma
meia dúzia de casas diferentes na sede da cidade, alguns de seus frequentadores circulando
entre elas por toda noite. Contemporaneamente, alguma sobreposição continuava a ocorrer,
por vezes estimulada por líderes rivais, que dela costumavam tirar proveito para testar a
lealdade dos frequentadores de suas casas. De todo modo, comentavam os adeptos mais
antigos, líderes de casas mais novas deviam esperar que os terreiros nos quais haviam sido
podendo ser considerado uma espécie de candomblé de caboclo191. Ao mesmo tempo, guarda
Bahia, distinções por vezes trazidas à tona por seus frequentadores. Em Lençóis, há casas nas
quais se comemoram jarês sem que haja rituais de iniciação, sua manutenção em geral
decorrendo de alguma promessa feita pelo dono ou dona da casa às entidades, eles mesmos
do que costuma acontecer no candomblé, a maior parte dos frequentadores dos jarês
dificilmente se limita a visitar uma única casa de culto, mesmo depois de iniciados. Nos
primeiros meses de meu trabalho de campo deparei-me com uma dificuldade que
191
Construção que é igualmente um modelo, no sentido não de um protótipo ou arquétipo mas de “uma
abstração que se reporta a correspondências inferidas comparativamente entre formas institucionais,
procedimentos e esquemas simbólicos”, indicando não a invariância dos processos e formas dos diferentes
cultos, mas a existência de “um padrão que [o]s correlaciona e que permite referi-l[o]s a uma matriz comum”
(Serra 1995: 40).
154
posteriormente perceberia ser falsa: a de eleger uma casa de jarê em particular como unidade
de análise para a pesquisa. Com o tempo e a convivência, notando a grande circulação das
mesmas pessoas entre muitas casas diferentes e sendo convidado para diversas festas, percebi
que minha etnografia poderia seguir a mesma distribuição dos frequentadores do jarê,
tomando por tema de investigação muito mais uma comunidade mística específica que se
espraia por várias casas, ainda que concentrada em torno de três delas, como se verá adiante.
ao que faziam, seja falando do culto de forma geral (“no candomblé é assim que a gente faz”),
seja no sentido de uma ocasião festiva em particular (“sábado vai ter um candomblé lá em
casa”), o uso principal do termo feito por meus amigos de Lençóis acontecia quando
práticas tinham a ver com os toques dos atabaques, as cantigas, as danças e as manifestações
das entidades. No jarê, informavam, os tambores são sempre percutidos diretamente com as
mãos e nunca com varetas, além de seus toques terem ritmos específicos, em geral
considerados mais velozes nos jarês. As cantigas são quase sempre em português, enquanto
nos candomblés a maior parte é cantada em línguas de origem africana. Nos jarês, as danças
são mais exaltadas e o samba tem preferência, enquanto nos candomblés as danças são mais
contidas, os passos possuem coreografia ritual mais cadenciada e há mais ênfase em giros.
Finalmente, consideram que nos jarês as incorporações têm início de forma mais intensa e
excluem as relações que podem estabelecer com membros destes. Ao contrário, ficam
bastante felizes quando porventura recebem em seus terreiros alguém ligado a um candomblé,
fazendo todo possível para estender a seus visitantes tanto sua cortesia habitual como a
155
– que fazem o possível para acompanhar ainda que seja difícil fazê-lo com as mais
complexas, caso estejam sendo escutadas pela primeira vez – e receberem suas entidades, algo
que deixa os membros dos jarês bastante felizes e satisfeitos. De certo modo, a própria
arquitetura dos salões do jarê é propícia a essas interações, já que a audiência fica disposta no
que eu presenciara nos candomblés que conhecera, nos quais a audiência no interior do salão
concentrava-se em assentos dispostos num único lado. Ainda que isso não impeça a
mística são ainda mais indistintos, todos se sentando juntos em qualquer momento da festa.
da região. Seu surgimento reputa-se ter acontecido nas cidades de Lençóis e de Andaraí, tendo
quilômetros da sede do município, em geral próximas a áreas nas quais no passado houve
nos últimos anos o número de casas na cidade que realizam jarês 192. Contudo, praticamente
toda a população nativa já teve algum contato com o jarê – assim como muitos dos forasteiros
192
Em diversos locais da Chapada, no passado, era bastante comum que líderes do jarê tivessem duas casas de
culto, uma na sede do município em que residiam e outra afastada, por vezes mesmo em um distrito deste (Senna
1998: 85).
156
mesmo de letras de cantigas e acontecimentos marcantes que tiverem lugar durante os cultos,
e comentando como nos dias de hoje não mais aconteciam tantos jarês nos limites da cidade.
Jarês podem ser realizados tanto em casas de culto dedicadas exclusivamente a esse
propósito, como era o caso daqueles feitos nos locais distantes da sede do município, como
nas salas das casas nas quais seus moradores habitualmente residem, na cidade. Nem toda
casa na qual se bate jarê configura um terreiro, termo normalmente reservado para sítios nos
quais há presença de um líder que realiza rituais de iniciação. Tanto num caso como no outro,
as festas costumam ser preparadas com antecedência de algumas semanas, ao longo das quais
se reúne dinheiro para comprar, ou se obtêm na forma de doações, a comida que será servida e
os objetos rituais que se farão necessários, bem como são chamados os convidados. Os
preparativos do dia da festa, assim como o desenrolar da mesma, são um esforço conjunto da
comunidade que se estrutura em torno da casa e seu chefe, seja ela composta por uma família
biológica e seus amigos, seja por uma família-de-santo. Espera-se que todos, incluindo
frequentadores eventuais que possuam alguma proximidade com os membros da casa, com
forma para a execução da festa, sendo criticados aqueles que vêm para jarês apenas para pedir
comida e bebida, servidas ao longo da noite pelos anfitriões para aqueles que participam da
festividade. Sobre essa troca de prestações, meus amigos comentavam explicitamente: “Se
uma pessoa não vem para o jarê nem para cantar, nem para tocar, nem para dançar, nem para
Os preparativos para uma festa começam cedo, é preciso fazer a comida que será
animais, trazer baldes d’água de algum rio próximo para cozinhar e para beber, realizar
procedimentos rituais que tentarão garantir o bom andamento da cerimônia. Auxiliar um pai-
de-santo em todas essas atividades, bem como as que serão feitas durante o jarê, é atribuição
157
de seus filhos-de-santo e de qualquer pessoa que deseje cair em suas graças: por vezes uma
forma de obter o custeio de seu processo de iniciação para aqueles que desejam se ligar à casa
sem possuir os meios monetários para tanto. Essas atividades costumam ser feitas com calma
e ao longo de todo o dia, havendo sempre algum tempo para descansar, jogar conversa fora,
disputar partidas de dominó, tomar banhos de rio ou cachoeira. Quando anoitece, homens e
mulheres devem, em grupos separados, lavar-se em preparação para o início do jarê, que
deverá durar durante toda a noite e se adentrar pela madrugada, constituindo sinal muito
Os chefes de casas nas quais se bate jarê que não são pais e mães-de-santo costumam
realizar suas festividades em decorrência de uma promessa a alguma entidade como forma de
pagamento por alguma graça obtida, mas também podem fazê-lo caso sejam adeptos de algum
terreiro e desejem simplesmente realizar um jarê como forma de comemoração, como por um
aniversário. Os chefes de terreiros, por sua vez, realizam jarês em homenagem aos espíritos
mobilizados em suas casas e fazem rituais de iniciação que são potencial e simultaneamente
são chamados de “ogãs” – quer sejam homens, quer sejam mulheres –, e são habituados a
auxiliá-lo de maneira mais direta em suas muitas atribuições rituais. Quando um destes passa
a ser treinado de forma um pouco menos implícita pelo curador, pode passar a ser considerado
filhos, alguns destes vindo a se tornar também curadores, é chamado de “mestre”. O termo
curador, se indubitavelmente refere-se antes de tudo à ação terapêutica desses pais e mães-de-
santo, poderia ser, numa extrapolação linguística, parcialmente ligado a uma função de
curadoria ou curatela por eles exercida, enquanto guardiões tanto de sua casa como das
entidades, pessoas e energias que por ali circulam, aproximando-se o título daquele dos
“zeladores-de-santo” do candomblé.
158
ausência de sacrifícios rituais no local, um dos traços que meu amigo Elias colocava em
destaque para justificar o fato de evitar ir a terreiros – seu pavor em ver sangue, ele mesmo
dizia, era compreensível em função de sua proximidade pessoal com Xangô, entidade que
teme e evita o contato com a morte. Esse era o mesmo motivo pelo qual ele me dizia que
jamais seria iniciado em jarê algum, a não ser que uma pessoa muito especial em quem
confiava bastante decidisse se tornar uma mãe-de-santo e utilizasse alguma alternativa ritual
ao derramamento de sangue para iniciá-lo, opção que algumas das senhoras de quem era
amigo lhe disseram ter sido acionada em suas iniciações. A “matança”, que precisa ser
empreendida nos rituais iniciáticos dos terreiros, é um assunto sobre o qual a maior parte dos
adeptos do jarê lida com desembaraço, ainda que seja um tópico evitado com aqueles com
quem não se possui intimidade: só depois de muitos meses, por exemplo, é que um senhor me
disse que seu pai fora o “dono da faca” – o principal auxiliar durante os sacrifícios – de um
dos presentes, das entidades místicas que permeiam o universo, chamadas – nem sempre de
modo completamente intercambiável – de santos, orixás, guias, encantados ou, aquela que é
sua designação mais comum, caboclos194. Seria possível mesmo pensar que, enquanto nos
candomblés litorâneos os caboclos foram sendo agregados aos demais espíritos e de algum
disso, atrofiando-se –, no jarê parece ter ocorrido o contrário: todas as entidades foram sendo,
193
Retornarei ao tema do sacrifício no jarê no capítulo 4, seção 4.5.
194
Creio nunca ter ouvido o termo “possessão” (ou “possuído”) utilizado pelos nativos da Chapada, que
inclusive me olhavam com alguma desconfiança quando eu o deixava escapar: possivelmente seu uso traía as
maneiras pelas quais membros de igrejas – sobretudo as evangélicas, mas também a católica – falavam a respeito
do fenômeno que atribuíam à ação de forças infernais e que exige algum tipo de esconjuro. Ao longo da tese,
preferi as formas “manifestação” e “incorporação”, utilizadas pelos adeptos do jarê com grande frequência, bem
como outras construções que indicam algum grau de participação mais marcado entre pessoa e entidade, como
quando se diz que alguém está “de caboclo”, “com caboclo” ou “dando caboclo”, por exemplo.
159
com o passar do tempo e ao menos parcialmente, subsumidas enquanto caboclos, algo que,
como será visto posteriormente, terá diversas consequências rituais para o jarê195. Produzir um
espaço apropriado para esses espíritos incorporarem é possivelmente o objetivo principal das
festividades, já que eles precisam estar presentes com alguma frequência no mundo terreno,
em contato com o solo, para ser reverenciados e alimentados, dançar, cantar suas cantigas,
A vida de uma casa de jarê conecta-se intimamente à de seu líder, suas histórias
definhar e vir a morrer conforme seu líder envelhece e enfraquece é a norma, da mesma forma
seu templo religioso e da realização contínua de festas em adoração às entidades. Certa vez,
falando a respeito da morte de um importante curador e o destino reservado a sua casa, Seu
“Quando a cumeeira cai...” Continuamos andando enquanto ressoava o final da frase que ele
deixara implícito: “...o resto da casa desaba”. Por mais que sejam raras as casas que
sobrevivem, em geral por meio de sucessão, ao falecimento de seus líderes, a desaparição das
que não terão continuidade não ocorre sem que seus membros compartilhem a perda e se
solidarizem diante dela, realizando um luto que pode vir a durar anos, em geral terminando
com a própria estrutura física da casa abandonada e em ruínas. Uma casa de jarê apresenta
declínio quando suas festas não são mais celebradas como de costume: a sequência esperada
completo; os presentes não demonstram a alegria que se espera diante da ocasião; a festa é
195
Movimento para o qual foi sugerida a designação de “caboclarização” dos espíritos (Senna 1998: 116).
196
Tanto as entidades do jarê como o fenômeno de sua incorporação serão mais detalhados no capítulo 4, seção
4.3.
160
Presenciei alguns jarês assim, o primeiro deles deixando para mim muito marcada a
importância das bases material e humana necessárias à realização das festas. Ao término desse
jarê, uma das entidades da dona da casa, uma senhora já de idade avançada, anunciou
amargamente que jamais voltaria a pisar no local. Junto de algumas outras, essa ocasião foi
também significativa como contraponto aos demais jarês que frequentei, fornecendo a medida
no duplo sentido tanto de seu sucesso como da exultação que deve gerar. Por mais que haja
medidas para garantir a integridade e bom andamento da festa, nada confere certeza plena de
que uma cerimônia transcorrerá inteiramente a contento, e a possibilidade de que algo saia
errado está sempre presente até nas casas mais bem estabelecidas: as incorporações podem
não ocorrer, os caboclos podem deixar mensagens indicando maus agouros, um ritual pode
não ter os efeitos desejados – tanto por razões místicas como por erros humanos. Ao longo da
noite em que transcorreu esse jarê que malogrou, houve diversos sinais que simultaneamente
assassinato que ocorrera no bairro próximo mais cedo no mesmo dia, desavenças e discussões
entre alguns dos frequentadores da casa, a danificação de um dos tambores durante a festa, a
presença de duas mulheres sabidamente em seus períodos menstruais197, a queda, por fim, de
um pedaço do revestimento do teto do salão que por pouco não atingiu um dos presentes.
Alguns desses vestígios foram bastante comentados pelos amigos que acompanhei depois de
nos despedirmos ao fim da festa, em especial o último, que mais diretamente ligava o estado
de conservação físico da casa ao vigor de seus donos e seu jarê de modo geral.
nos últimos anos, e outras atuais ainda parecem estar lentamente caminhando para a
desaparição, mas seria exagero afirmar que o jarê de Lençóis está em vias de extinção. Da
197
Tema que será retomado e melhor detalhado no capítulo 4, seção 4.5.
161
mesma forma que muitas casas acabaram, diversas outras encontraram nos anos recentes seu
início: se a maior parte das casas de jarê raramente tem sobrevida, muitas outras continuam a
nascer, e se não existem diversas remanescentes, que dão testemunho direto da longevidade
da religião, todas podem ser consideradas, de uma maneira ou de outra, ressurgentes – termo
que se refere a um rio que em certa parte de seu curso desaparece sob a rocha para mais
adiante voltar a brotar sobre o solo. A maior parte das casas de jarê de Lençóis de hoje em dia
é liderada por filhos-de-santo iniciados num mesmo terreiro, cujo curador, falecido há alguns
anos, é visto como o último grande mestre que a cidade teve nas décadas recentes – sua casa
sendo a única que se manteve de pé até o presente, a despeito dos conflitos sucessórios que a
envolveram.
Entre outros, o fato de essas casas descenderem de uma raiz comum faz com que
muitos de seus membros costumem expressar o desejo de que eles mesmos fossem –
especialmente seus líderes – mais unidos entre si, indicando que dessa forma poderiam
fortalecer o jarê de maneira geral. Os curadores e chefes das casas, por sua vez, quando
compartilham dessa ideia, costumam acrescentar que, se não há muita união entre todos os
adeptos das diferentes casas dos jarês, é também por incapacidade e impossibilidade de se
confiar nos outros líderes, o que os leva a desaconselhar ou por vezes proibir expressamente o
comentam que as rivalidades e disputas, por vezes veladas, entre os pais-de-santo são em
alguma medida inelutáveis, desejosos que são de se tornarem uns mais fortes que os outros.
Todos costumam falar a respeito da sonhada união com um tom de voz que deixa claro que se
trata de uma aspiração que permanecerá somente enquanto um ideal. Isso não significa,
contudo, que muitos dos membros de uma casa não compareçam às demais, especialmente
quando relações de amizade ou parentesco os levam a tanto. Mesmo os chefes das casas, se
evitam comparecer aos festejos dos rivais, costumam se encontrar ocasionalmente nas casas
162
que não possuem curadores mas celebram jarês, cujas cerimônias funcionam assim como
espécie de terreno neutro. Forma-se desse modo uma comunidade mística específica, cuja
algumas delas constituídas em terreiros liderados por curadores, outras somente chefiadas por
filhos-de-santo que não realizam iniciações. A maior parte delas localiza-se no município de
Lençóis; as demais, nas quais as visitas foram mais breves, situadas em Andaraí. O
desenvolvimento da pesquisa, bem como o amadurecimento das amizades que efetuava, fez
com que me dedicasse a três dessas casas em especial, nas quais se concentrou a maior parte
das festas de que participei diretamente, no total somando por volta de três dezenas de
ocasiões em que estive em festejos de jarê, celebrados ao longo de um ano. Igualmente, era
junto dos membros e frequentadores dessas casas que passava meus dias na cidade, com o
tempo vindo a saber da existência de algumas outras das quais eles preferiam – e me
ter sido o local onde reinou o mais influente curador que a região teve nas últimas décadas,
chamado Pedro de Laura, recebe o nome de Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, e está
localizada numa propriedade distante pouco menos de dez quilômetros da sede do município,
ao longo de um caminho que no passado era a via primária de acesso entre as cidades de
Lençóis e Andaraí. Hoje o Palácio está sob a responsabilidade espiritual do penúltimo filho-
de-santo iniciado por Pedro de Laura, um curador conhecido por todos por seu apelido,
quadrilha Bicho do Mato, bem como membro da mesma. Ao longo de meu trabalho de
que começava a ser erguida em local próximo ao Palácio de Ogum e na qual ele poderia
163
realizar rituais de iniciação, algo que não era possível na casa da qual tinha ficado
por meio de canalização subterrânea feita com mangueiras, implementada pelos próprios
filhos-de-santo), bem como de possuir o maior salão de jarê das redondezas. As casas de jarê
costumam ser chamadas também por associação ao nome de seu chefe ou ao de marcos
legado místico do falecido curador que ergueu o Palácio dizem-se igualmente os “filhos de
Pedro” ou “filhos da Capivara”, e são responsáveis pela maior parte das casas de jarê
A primeira festa de jarê que frequentei em meu trabalho de campo – bem como a
derradeira, como gostavam sempre de lembrar – aconteceu numa dessas casas, a Águas de
Iemanjá, liderada por uma das mais importantes filhas da Capivara, chamada Valdelice.
Valdelice era apoiada por membros de sua família carnal, em especial seu marido, apelidado
Corró, que atualmente trabalhava na guarda municipal de Lençóis, por sua vez chefiada por
se para essa “casa de temporada”, como uma amiga a caracterizou, em especial nos finais de
semana em que ali celebravam jarês. Poucos conheciam a casa Águas de Iemanjá por esse
198
Os motivos para tanto, bem como o restante da história do Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, serão
apresentados em diversos momentos ao longo do restante da tese, em especial no capítulo 3, seção 3.4.
199
Diferentemente do que costuma acontecer nos candomblés (Senna 1998: 96).
200
Ver fotos 31, 32, 33 e 34 no anexo III.
164
“casa do Baixio”, em referência à região próxima que havia sido, no passado, garimpada à
estrada que leva ao Palácio de Ogum (situando-se alguns poucos quilômetros antes desse,
partindo de Lençóis), ao longo da qual muitos desses bancos de areia, os chamados “areiões”,
qual se buscava água para usos diversos é o Córrego dos Cachorrinhos, já que ali um sistema
Baixio não realiza iniciações de nenhum tipo, sua chefe tendo preferido não se tornar uma
curadora, mesmo tendo tido oportunidade para tanto, preferindo fazer jarês centrados nas
manifestações das entidades como forma de cumprir uma promessa feita a elas201.
Por sua vez, a casa de Daso, último filho-de-santo feito por Pedro de Laura, era
conhecida tanto pela espetacularidade de seus rituais como por seu grande número de
próprio curador, cujo primeiro nome é Gildásio, conhecido por todos como Daso), essa casa
de jarê também está situada a uma caminhada considerável da sede da cidade, mas dessa vez
em direção à rodovia estadual que liga a cidade de Lençóis à estrada federal Bahia-Brasília.
Mesmo partindo da estrada, chegar ao terreiro de Daso envolve uma caminhada considerável
por uma trilha em meio à mata fechada, até atingir o Rio das Toalhas – que também nomeia
etapas dos rituais iniciáticos da casa e de onde se obtém a água usada para vários fins no
terreiro202. Muitos dos iniciados e demais frequentadores de cada uma dessas três localidades
201
Ver fotos 35, 36, 37 e 38 no anexo III.
202
Ver fotos 39, 40, 41 e 42 no anexo III.
165
aos jarês de ao menos uma das outras, bem como aos celebrados nas demais casas em que se
tocava jarê na cidade de Lençóis, em seus distritos e zona rural, às quais eu também
Como mencionado, casas de jarê podem ter tamanhos muito diferentes, indo daquelas
construídas em amplos terreiros às que só existem de maneira mais concreta durante alguns
dias ao ano, quando da transformação da sala da casa que uma pessoa habita em um espaço
dedicado à incorporação das entidades. Ao longo desse gradiente encontram-se casas que
foram erguidas em espaços afastados da cidade mas que não constituem terreiros – por não
serem chefiadas por curadores que realizem iniciações, e dessa forma não possuírem certos
aposentos com funções rituais específicas –, bem como casas que no passado eram terreiros
completos mas que hoje mantinham só algumas de suas obrigações místicas, como o caso do
um terreiro e de uma casa de jarê feita a seguir serão indicados os elementos que não se fazem
necessários conforme a casa de jarê assuma uma escala menor nesse gradiente, ressaltando-se
que ele não configura (senão, suponho, muito raramente) uma sequência de desenvolvimento:
uma pessoa dá início a uma casa de jarê com uma dessas formas específicas de acordo com os
casa de seu pai-de-santo até que deseje – e possua os meios para – dar início ao seu próprio
terreiro. Filhos-de-santo que promovam jarês em suas casas fazem-no ao mesmo tempo em
que continuam a comparecer nas festas de seus pais-de-santo, que por sua vez ocasionalmente
Antes mesmo de se chegar a um terreiro há medidas que devem ser tomadas: não se
deve falar de forma exaltada, e após a travessia do curso de água mais próximo é ideal que
qualquer conversa cesse e se permaneça em silêncio até que se preste reverência às entidades
166
da casa203. Costuma haver cordas amarradas em árvores para ajudar a atravessar os rios em
época de cheia, se o nível da água se encontra em torno dos joelhos ou até mais acima.
Ornamentos cabalísticos nas proximidades, tais como panos coloridos amarrados em torno
à mata, o visitante deve se dirigir para perto da morada dos exus – um caramanchão
principal, e com inscrições em sua parte externa –, cuja porta está sempre fechada, só sendo
acessada pelo curador e alguns ajudantes, todos do sexo masculino, em momentos específicos.
Todo visitante deve tomar o cuidado de passar por trás dessa construção, parando em seguida
junto a sua entrada e ali bater um dos pés no chão por três vezes, em saudação a esse conjunto
de entidades que também é chamado de “povo da porta”. Ato contínuo, segue até o interior do
salão no qual acontecem os jarês, coloca-se diante da porta que dá para o quarto de santo e
entidades da casa. A partir daí está livre para tornar a conversar e circular pelo terreiro. Essas
medidas são repetidas, na ordem inversa, quando se vai embora do terreiro, nenhuma delas,
contudo, precisando ser feita em casas de jarê que não iniciem filhos-de-santo, nas quais não
que possuem funções rituais nos jarês, bem como por vezes cria-se uma pequena horta para
203
Ver fotos 43, 44, 45 e 46 no anexo III. Além disso, no caso do Palácio de Ogum, os visitantes pegam um
ramo, que esteja verde, de uma árvore qualquer no caminho, depositando-o num amontoado alguns metros antes
de se cruzar o Rio Capivara, num local que marca ter havido no passado um cemitério indígena nas
proximidades, conforme contam.
204
Pude ver o interior de um caramanchão e fotografá-lo a pedido de seu curador, sob condição de não descrevê-
lo e nem reproduzir sua imagem (a não ser para meu arquivo pessoal, ele especificou), motivo pelo qual esse
espaço não será detalhado na tese.
167
gêneros alimentícios. Certa feita, depois de um evento público em Lençóis, uma visitante que
já conhecia a cidade conversava pela primeira vez com um curador sem saber da ligação dele
com o jarê – a senhora que os apresentou tendo dito à jovem que ele possuía uma roça
afastada da sede do município. Com genuíno interesse, a visitante perguntou ao homem que
acabara de conhecer se em sua roça ele fazia farinha – algo comum em muitas das pequenas
propriedades rurais situadas no entorno da cidade. O curador lhe respondeu, sem titubear e
com algum gosto: “Não faço farinha, não. Eu faço filhos-de-santo”. Roça é de fato um outro
nome para os terreiros nos quais os filhos-de-santo são iniciados, feitos, como disse o curador,
terreiro, descrito posteriormente. Entre as plantas cultivadas no espaço próximo a uma casa de
jarê costuma haver uma variedade considerável de ervas medicinais, de uso doméstico e
ritual, bem como ao menos uma árvore da qual se recolhe a seiva utilizada na defumação de
todo salão de jarê, o almíscar (que na região se pronuncia “alméscar”) 205. O espaço externo de
uma casa deve igualmente possuir um local adequado à instalação de uma fogueira, cujo papel
da Chapada) como o de fornecer brasas para alimentar o defumador e para atender aos desejos
de algumas das entidades do jarê, bem como archotes para iluminação e ignição de pólvora
durante determinados rituais. Manter a fogueira sempre acesa costuma ser atribuição dos
auxiliares do curador, conhecedores dos diversos tipos de madeira que devem ser usados em
função da forma como cada uma queima. A área externa pode conter também, por fim, locais
destinados à criação e guarda de animais, que podem porventura vir a ser parte dos sacrifícios
feitos nos rituais da casa. Terreiros ativos possuem também uma bandeira branca erguida num
poste próximo a sua entrada, e o caminho que leva até a casa de jarê – bem como o restante do
205
Provavelmente a Styrax glabratum.
168
As casas propriamente ditas são construídas de adobe ou, quando isso não é possível,
taipa. Edifícios desse tipo sobreviverem intactos à época das chuvas é considerado um sinal
de bom presságio para uma casa de jarê em seu início, e muitas delas precisam ser
reconstruídas até por inteiro até chegarem a uma configuração segura o bastante para uso.
Idealmente, uma casa de jarê possui ao menos dois cômodos separados destinados ao pernoite
e guarda dos pertences dos homens e das mulheres. Quando há mais quartos disponíveis,
costumam ser usados por núcleos familiares compostos por diversas gerações,
preferencialmente dormindo juntos avós, suas filhas e netos. O chefe da casa costuma ter
também um quarto no qual repousam ele e sua família carnal, normalmente mais próximo da
cozinha, na qual são preparadas as refeições diárias, que por sua vez dá acesso aos fundos da
casa, onde em geral há o quintal. Não é comum que em nenhum desses espaços aconteça
qualquer momento ritual durante as festividades de jarê, e nas casas localizadas na sede da
cidade nas quais cerimônias são realizadas anualmente são os cômodos de uso comum que
têm seu uso temporariamente voltado para a celebração. Espectadores de uma festa, contudo,
O maior cômodo de uma casa de jarê é, via de regra, o salão, local onde transcorre a
maior parte da festa e que também recebe o nome de “pagodô”. As paredes opostas
longitudinalmente dão acesso uma ao lado de fora da casa e a outra ao quarto de santo, com
portas que permanecem sempre abertas durante uma cerimônia de jarê. Ao lado da passagem
para o quarto de santo localiza-se a cadeira do chefe da casa, seja ele um curador ou não,
enquanto ao lado da porta voltada para o exterior do salão costumam ficar dispostos os
atabaques e seus tocadores. É comum que haja estreitos bancos de cimento, construídos junto
169
a todas as paredes, nos quais se sentam os frequentadores da casa quando não estão por
qualquer motivo em pé no restante do salão ou em trânsito por outros locais da casa. Homens
e mulheres são orientados a se sentarem em lados opostos do pagodô, estas do lado direito e
aqueles do lado esquerdo, do ponto de vista de quem adentra o salão pelo lado de fora da casa.
casa, ou dos tocadores de atabaque e da saída do pagodô, em geral conforme suas relações de
participantes em torno do salão, cuja configuração lembra mais um teatro de arena do que um
cerimônia, nunca se tendo certeza de quem será a próxima pessoa a se dirigir ao centro do
pagodô, seu proscênio. O chão do salão, por sua vez, é feito preferencialmente de terra batida
e não de concreto rígido, tanto para amenizar o impacto que sofrem as pessoas quando caem
bruscamente (ao estarem incorporadas) como por motivos rituais mencionados mais adiante.
O teto de toda a construção pode ser coberto com telhas de cerâmica ou, bem mais
comumente, chapas de fibrocimento, que não contribuem muito para sua ventilação interna,
outros retratos de entidades do jarê, como orixás e caboclos mais indígenas, bem como figuras
pessoas importantes à casa e sua história, seja de momentos rituais de festividades passadas,
privilegiadas por exemplo em um terreiro que criava grandes murais com elas. Outros objetos
podem adornar as paredes do salão, de acordo com o gosto pessoal de seu chefe, tais como
206
Por vários motivos, habituei-me a permanecer junto dos tocadores, muitos dos quais estavam entre meus
melhores amigos e que podiam circular consideravelmente entre casas de jarê distintas. Mulheres que
procuravam não protagonizar incorporações das entidades buscavam se sentar perto da saída do pagodô,
eventualmente correndo para o lado de fora da casa no intuito de evitar a manifestação, ainda que raras vezes
com sucesso: comumente acabavam sendo trazidas de volta pela ação de seus próprios espíritos.
170
casa. O teto e as janelas costumam receber bandeirolas e picotes coloridos, enquanto o chão é
coberto com pequenas folhas, como as de pitangueiras, antes do início de um jarê. Ali são
também postas velas, no meio e por vezes nos cantos do salão, podendo ser circundadas por
pipocas. Em casas nas quais não são feitos rituais de iniciação, costuma haver no interior do
terreiro, por sua vez, possui enterrado em seu centro um conjunto de objetos cuja composição
específica consiste no principal segredo da casa, zelosamente guardado pelos curadores. Esse
cerne de todo terreiro recebe o nome de “otim”207, e o ritual de plantar a roça para dar início a
uma dessas casas de culto culmina com a instalação dessa parafernália mística sob o centro do
salão. A região do otim não deve ser perturbada com movimentação cotidiana – como
afirmam os curadores: “casa de obrigação não pode ter muito piseiro” –, outro motivo que os
leva a preferir abrir seus terreiros em locais afastados da sede do município e morarem ao
Os altares domésticos presentes na maior parte das casas da região são como versões
em escala reduzida dos altares presentes nos quartos de santo, estes chamados de “pejis”,
nome que também pode ser estendido para o cômodo que os abriga208. A arrumação dos pejis
é feita de forma bastante ciosa pelos chefes das casas, que se orgulham em exibi-los aos
visitantes, solicitando-lhes apenas que antes de ingressar no quarto de santo retirem seus
calçados, algo que todos os frequentadores da casa se acostumam a fazer quando ali entram. O
número de objetos dispostos num peji sinaliza o poder místico de um curador, já que se
207
Palavra que costuma ser de conhecimento apenas dos líderes das casas de culto, em geral pouco utilizada e
para a qual não ouvi ser conferido nenhum outro sentido. O principal dicionário de termos ligados aos cultos
afro-brasileiros existente registra dois termos de origem iorubá cujos sentidos é interessante marcar: oti ou otim
= “aguardente, cachaça” e Otin = “um tipo de Oxóssi que veste azul, usa capanga e lança e vive no mato, a caçar,
sendo muito amigo de Ogun” (Cacciatore 1977: 210).
208
Com base no principal dicionário de cultos afro-brasileiros, a literatura registra na etimologia do iorubá que
dá origem à palavra peji os componentes pé = reunir ou pè = chamar, convidar e ji = dar presente (Cacciatore
1977: 220-221; Gonçalves 1984: 107).
171
afirma que para aumentar sua quantidade não basta simplesmente querer: é preciso ter
capacidade para tanto. Dispor objetos num peji é parte do duplo processo de reconhecer sua
seu – potencial de canalizar as vontades das entidades que povoam o mundo do jarê. Quanto
maior seu número e mais fortes suas presenças, maior o risco para um curador de não ser
capaz de lidar a contento com seus desejos e demandas; simultaneamente, maiores também
são as recompensas que deles será capaz de obter. No centro do peji, junto ao chão, encontra-
se a pia batismal, utilizada num dos rituais de iniciação para lavagem da cabeça dos filhos-de-
santo. O fato de todos, em princípio, passarem por uma etapa ritual no próprio quarto de santo
é mais um dos motivos que conecta os filhos-de-santo de um mesmo terreiro entre si, como
dizem: “A pia que lavou a minha cabeça é a mesma que lavou a de todos os outros”.
dos altares domésticos de pessoas ligadas ao jarê, na época das festas acrescidos de alimentos
em oferenda às entidades, tais como pipoca, arroz, feijão, amendoim, bolinhos de acarajé,
vatapá, assim como partes dos animais abatidos sacrificialmente, em especial as vísceras,
patas e cabeça. Os quartos de santo guardam também objetos que possuem uso ritual, como a
campa, velas, perfumes, talco, pó de pemba, pólvora, mel, dendê, cachaça, água trazida do
mar, facas, tesouras, colares, cruzes, vergueiros, cordões, linhas, fitas, panos, pregos,
ferramentas metálicas. As diversas estatuetas e pedras que compõem o peji idealmente não
devem nunca ser compradas pelo chefe de uma casa, devendo ser encontradas
fazer parte do altar. Do mesmo modo, há medidas de precaução que se deve tomar para se
desfazer delas – quando se quebram acidentalmente, por exemplo – que ao fim envolvem
despachá-las em água corrente ou depositá-las aos pés de algum cruzeiro. Contíguo ao quarto
de santo costuma existir uma alcova para armazenar as roupas das entidades,
172
vezes assumidas pelos próprios curadores a mando de seus espíritos), igualmente utilizada
Os últimos dois aposentos de uma casa de jarê, existentes apenas nos terreiros, são o
quarto dos búzios e o quarto de reclusão. No primeiro se encontra uma mesa larga na qual
repousam muitos objetos similares aos encontrados no peji, porém emoldurando os apetrechos
do jogo divinatório. O centro da mesa é coberto por panos coloridos e rendas, no centro dos
considerável de búzios (16 ou 17, a depender da casa) com cortes produzidos nos lados
opostos aos de suas aberturas naturais. Por sua vez, o quarto de reclusão, também chamado
de “roncó”, fica próximo ao pagodô, e é onde ficam retirados os iniciandos após a realização
de determinadas etapas rituais, devendo permanecer junto ao solo a maior parte do tempo,
diretriz aplicada pelo curador segundo a qual deviam evitar momentos de maior exaltação.
Festas de jarê podem acontecer com um número bastante variável de pessoas, desde
eventos mais reservados com suas duas dezenas de pessoas até as principais festas anuais de
uma casa (um dos líderes do Palácio de Ogum estimou em torno de 200 o número de
209
Ver fotos 47 e 48 no anexo III.
173
garantem o espaço necessário à dança dos adeptos incorporados, objetivo perene de todo jarê,
impedimento comum quando transcorrem nas salas das casas na sede de Lençóis em que
regularmente habitam. Casas amplas ou abertas demais produzem separação excessiva dos
presentes, caso por exemplo de uma casa de jarê que, por estar ainda germinando, não possuía
um pagodô devidamente construído, tendo se passado sob uma estrutura improvisada (uma
latada erguida com barrotes e revestida com chapas metálicas, lonas plásticas e cobertura
estiveram ao menos parcialmente expostos aos elementos – perigo agravado no jarê, como já
o altar principal do local ainda não ter sido devidamente estabelecido: “não tem assentado
Os responsáveis por uma casa de jarê costumam levar consigo diversos gêneros
são preparados ao longo do dia para a festa que acontecerá à noite, quando em diversos
momentos serão oferecidos aos presentes. Há uma vigilância constante para se saber quem
está comendo e o quanto, sendo sempre ideal o jarê no qual a comida sobre de modo farto e
fornecer as maiores porções para as pessoas que efetivamente farão parte da festa, ainda que
servir bem os convidados que não costumam frequentar jarês, olhando no mínimo com
desconfiança para forasteiros que vêm observar o jarê mas não aceitam comer – uma recusa
174
direta podendo mesmo consistir grave ofensa210. Ao longo do dia era comum que fossem
feitas poucas e fartas refeições, que em geral contavam com arroz, feijão, macarrão, farinha,
frango e pimenta, com a ocasional salada de vegetais. A mesma refeição era repetida no
almoço, na janta, e por vezes durante a madrugada, em algum momento do jarê, feita em
habilidades do chefe da casa escolher o melhor momento para as refeições noturnas, de modo
Sendo primariamente ocasiões festivas, praticamente todo jarê conta também com
comidas adequadas a uma comemoração, como bolos, salgadinhos, docinhos, balas, pipocas,
refrigerantes e bebidas alcoólicas (depois das cachaças, as mais comuns eram cervejas, vinhos
e licores, todas consumidas preferencialmente ao longo dos jarês). A arrumação de mesas nas
quais essas comidas ficam dispostas antes do início dos jarês propriamente é feita com
bastante esmero pelas mulheres da casa, e todos comentam sobre a beleza de sua composição,
seus enfeites, confeitos e decoração do bolo, e a fartura dos alimentos. Entre elas sempre
maneira ciosa pelos demais membros da casa, amigos e parentes, enquanto as próprias
dificilmente se gabam dela – pelo contrário211. Pelos motivos descritos, além de outros
210
A intimidade conquistada numa casa corresponde diretamente ao quanto seus membros esperam que os
visitantes comam e bebam, e se por vezes meus amigos diziam que eu não precisava ser tão tímido ao pedir para
repetir um prato ou tomar mais café, isso constituía um sinal positivo que me deixava progressivamente mais à
vontade durante as refeições.
211
Sobre os visitantes que constatam e enaltecem os dotes culinários dessas senhoras, não há descrição mais
certeira: “O reconhecimento desses méritos provoca discreto orgulho. Quando o elogio é pessoal e direto,
ocasiona uma negativa acanhada” (Gonçalves 1984: 105).
175
mais importantes curadores da região, nos quais imensas quantidades de comida eram jogadas
fora, despachadas depois de prontas nas águas do rio próximo à casa, enquanto seus
frequentadores a aguardavam com fome. Alguns dos membros da casa diziam que o curador
agira por maldade, outros afirmavam que deveria estar bêbado, outros ainda vislumbravam a
possibilidade de que ele tivesse ainda outros motivos, que desconheciam. Em caso inverso,
para dar uma lição a uma filha-de-santo que dissera que a comida havia terminado – tendo ela
própria ocultado certa quantidade sob a desculpa de que o guardara para outra pessoa –, o
mesmo curador ao descobrir a refeição escondida mandou salgá-la até ficar intragável.
Quando a filha-de-santo provou-a, veio furiosa consultar uma das entidades do curador para
descobrir quem fora o responsável pela perversidade. Tudo que obteve foi uma áspera
reprimenda...
Muitos dos pratos preparados ou servidos num jarê possuem também ligação mais
direta com sua liturgia, sua composição por vezes variando de acordo com as entidades a
serem homenageadas em casa ocasião. Acarajés e vatapás (prato feito com farinha, peixes,
camarões e temperos) – bem como abarás, no passado – costumam ser servidos nas festas da
segunda metade do ano, sejam as de Cosme e Damião, sejam as de Iansã. Nas primeiras o
prato principal é o caruru (sendo a pronúncia “cariru” mais frequente na região), iguaria a
base de quiabos. As festas dedicadas a Oxalá contam com feijoada e uma canjica de milho
branco, de nome mucunzá. Pratos de farofas de diversos tipos, chamados “fufus”, são
preparados tanto como oferenda aos espíritos como para acompanhar as refeições, muitos
deles sendo combinados com o restante da comida e, especialmente no caso das pessoas mais
velhas, apreciados sem talheres, degustados em pequenos bolinhos feitos com as mãos no
próprio prato, e oferecidos dessa forma às crianças. Comer, e dar de comer, diretamente com
as mãos são atividades que renovam e transmitem a força pessoal de alguém, em função
176
também do contato com a saliva dos comensais – substância corporal que, como será descrito
adiante, possui também um uso ritual específico212. Alguns dos filhos-de-santo mais antigos
do Palácio de Ogum se lembram com saudade de um ritual no qual uma das primeiras
enquanto equilibrava sobre a cabeça uma gamela cheia de um mingau branco, dedicado a
dançarina, devendo ser então diretamente lambido pelos adeptos da casa, instruídos em
contando como principal o receio de se ser enfeitiçado pela via alimentar, já que ingerir um
objeto que porte um feitiço é considerada uma das formas mais inescapáveis de sofrer seus
efeitos. Em menor grau, os alimentos servidos num terreiro são sempre em alguma medida
portadores da força do curador de uma casa, seu consumo podendo trazer consigo
consequências distintas. Quando sabem que algum de seus filhos-de-santo irá a uma
cerimônia num terreiro alheio, curadores lhes aconselham a saírem de casa já alimentados,
levarem sua própria comida – quando for possível e não insultuoso –, ou ainda se limitarem às
refeições oferecidas antes do início do jarê. Avisos fornecidos pelos curadores – e tanto a
respeito desse assunto como de muitos outros – são, via de regra, muito menos ditames do que
terreiro em que estávamos, disse ao curador da casa que queria comer uma uva de um belo
cacho que era parte de uma grande oferenda disposta no centro do salão, numa cerimônia
doméstica. O curador retorquiu de forma lacônica e com tom de voz irônico, perguntando-lhe
amargamente quando, mais tarde no mesmo dia, foi acometido por uma diarreia que, ele tinha
212
Tema a ser retomado no capítulo 4, seção 4.4.
177
certeza, havia sido causada pela ingestão daquela única uva, contrariando a recomendação de
seu pai-de-santo.
Após tornar-se membro definitivo do terreiro em questão, meu amigo teve de se haver
delas emulando às da Semana Santa, como a de não comer carne, outras ligadas a itens como
o coentro e outros vegetais similares que tornam o corpo do iniciado mais vulnerável à ação
de forças nocivas. Um curador pode tanto transmitir essas proscrições oralmente como
fornecê-las por escrito aos filhos-de-santo mais jovens que não possuem conhecimento dos
meandros do culto, auxiliando-os e os monitorando quando sob sua guarda, mas os deixando
de todo modo e em última medida responsáveis por observarem as próprias interdições, passo
2.5 Telurismos
A família biológica, ou carnal, como preferem dizer as pessoas ligadas ao jarê, possui
papel importante em muitos dos aspectos da vida mística de seus integrantes. Em função de
sua hereditariedade, filhos e netos podem receber de seus pais e avós desde obrigações rituais
dos anos ligadas aos membros de uma mesma família. Pode-se ter de realizar jarês em função
213
O resguardo a ser mantido possui caráter perene, as proibições podendo ser continuamente abrandadas com o
passar do tempo e o restabelecimento da força pessoal. Mantê-lo é igualmente um meio do iniciado se tornar
responsável por sua própria saúde, bem como de se dar conta de sua fragilidade, já que é sempre possível que
seja acometido por determinado mal (Rabelo 1990: 217-221).
178
mesmo assumir uma sina reservada a um parente próximo (como um irmão), como a de se
tornar um curador, de modo a livrá-lo da obrigação e aplacar os espíritos que demandam ser
sentirem em seus corpos efeitos que sejam direcionados a seus filhos, derivados seja de um
Mesmo as pessoas que não são ligadas ao jarê, e portanto não compartilham da mesma
ampliação familiar causada pela agregação dos demais membros de uma família-de-santo à
biológica, veem suas famílias tornarem-se mais extensas graças às muitas versões do
compadrio existentes na região214. De diversas formas, pais e mães aproximam outras pessoas
de seu núcleo familiar tornando-as seus compadres e comadres ao apadrinharem seus filhos.
madrinhas, por ser reservada à parteira que traz um recém-nascido ao mundo – que “pega a
criança” ao nascer, como dizem –, primeira pessoa que virá a ser considerada como uma
segunda mãe pela criança e a quem terá de se acostumar a fazer o pedido de bênção. São raras
males específicos que podem se abater sobre grávidas, bebês e crianças. Toda pessoa sabe
quem foi a parteira que lhe “levantou” e a quem deve o mesmo tipo de respeito concedido a
na igreja, seja ela católica ou evangélica, e que costuma acontecer até os três anos de idade.
Não é incomum que uma criança mais nova permaneça sem nome depois de nascer e até que
214
Há ligações históricas do compadrio também com as formas de relação entre santos e seus protegidos no
catolicismo popular (Monteiro 1974: 59-60 apud Rabelo 1990: 61-63).
179
seja efetivamente batizada na igreja, e a escolha dos padrinhos para seu filho envolve grande
consideração por parte dos pais. Em geral, o padrinho e a madrinha são escolhidos entre os
amigos próximos dos pais da criança, não havendo necessidade de que sejam um casal,
tornando-se todos compadres e comadres uns dos outros e ficando entendido que os padrinhos
passam a ser, a partir daquele momento, corresponsáveis pela criação do infante. Ao mesmo
tempo, uma terceira mulher pode ser convidada para carregar a criança no momento do
batismo, sendo ela também considerada uma madrinha, chamada de “madrinha de carrego”215.
batismo na igreja e acabarem por ser elas mesmas padrinhos ou madrinhas da criança, por
vezes em concretização a uma promessa. Similarmente, existem pessoas que passam a chamar
amigos que ainda não possuem filhos pelos termos compadre ou comadre, estabelecendo de
forma antecipada uma relação que poderá ser plenamente atualizada quando do nascimento de
uma criança.
junho seguinte um outro batismo durante o São João, normalmente chamado de batismo de
fogueira. Nele, a criança poderá receber um novo padrinho, que pulará uma das muitas
fogueiras acesas pelas ruas da cidade carregando o afilhado no colo e recitando uma reza
adequada à ocasião. Processo similar pode acontecer depois que uma criança realiza sua
crisma na igreja, havendo a crisma de fogueira. Ainda que por vezes haja repetições, nada
impede que em cada uma dessas ocasiões uma pessoa diferente seja escolhida para ser o
padrinho de uma mesma criança, seus pais adquirindo dessa forma um número cada vez maior
de compadres e comadres. A todos esses podem se somar os padrinhos de iniciação num jarê,
215
No restante do Brasil também são registradas as construções madrinha de apresentação, de representação, de
bandeja ou de jirau (Gonçalves 1984: 78).
180
Os rituais que ligam adeptos do jarê a uma casa de culto, descritos adiante em detalhe,
curador do terreiro, entre pessoas que já sejam elas mesmas iniciadas – não raro entre outros
filhos-de-santo da mesma casa. Idealmente, ao menos até que se tenha bastante idade, tempo
de iniciação e confiança em sua força pessoal, um membro de uma casa de culto deverá
sempre possuir padrinhos de obrigação, devendo realizar rituais para apontar novas pessoas
para a posição caso os seus venham a falecer – num processo muito similar ao que ocorre caso
seu pai-de-santo pereça. Como nos outros casos, também no jarê podem ser tanto a própria
pessoa como alguma de suas entidades a responsável por apadrinhar um iniciando, este vindo
cotidiano dos nativos da Chapada, e ainda mais no caso dos adeptos do jarê. Um afilhado
apadrinhamento, sendo instruído desde bem cedo a lhes pedir bênção na primeira vez que se
encontrem num dia qualquer. Se, instruindo as crianças, os adultos por vezes lhes incitam a
“tomar a bênção a” seus padrinhos, a forma mais comum de dizê-lo é com a construção “dar a
padrinhos e madrinhas, da mesma forma como se solicita a bênção dos parentes mais velhos
(em geral pais e mães, tios e tias, avôs e avós) ou de seu pai-de-santo. Dar a bênção a uma
dessas pessoas pode ser feito de forma mais breve e somente de maneira verbal (pedindo:
“Bença, tia”) ou de modo mais detido oferecendo sua mão direita estendida próximo ao nível
181
do rosto enquanto diz as mesmas palavras. O responsável por conceder a bênção une sua mão
direita à do afilhado e a oferece para que seja beijada no dorso, podendo a seguir retribuir a
abençoe”, podendo haver bastante variação na substituição de Deus por Jesus, Senhor dos
Um afilhado deve fazer tudo que estiver a seu alcance caso um de seus padrinhos lhe
padrinhos e madrinhas, por sua vez, zelam pelo bem e pela felicidade de seus afilhados,
dando-lhes conselhos, presentes e se preocupando com as obrigações que esses assumem. Nos
jarês, além de terem outras funções rituais mais explícitas, são também os padrinhos –
que esteja incorporando uma entidade, tendo preferência na execução da tarefa as madrinhas
de obrigação, mas cabendo àquelas que sejam madrinhas por outras razões responsabilidade
carnais, afins, parentes de jarê, compadres, comadres, padrinhos, madrinhas e afilhados geram
bastante difícil de acompanhar. Se, de qualquer modo, não costuma haver na prática muita
diferença nas demonstrações de polidez mais protocolares esperadas entre as pessoas segundo
espera receber deferência, ao mesmo tempo distinções mais finas podem ser acionadas – por
216
As madrinhas, e por vezes os padrinhos, de obrigação assumem assim o papel que nos candomblés litorâneos
cabe às equedes, ajudando os afilhados a, por exemplo, colocarem suas vestimentas rituais e os amparando
durante as manifestações das entidades. Nas ocasiões em que as madrinhas de uma pessoa não estejam presentes,
seus irmãos-de-santo mais próximos, demais parentes ou amigos se responsabilizam por esse acompanhamento,
de todo modo podendo também auxiliar as madrinhas nas demais vezes conquanto não mostrem estarem com
isso tomando seu lugar.
182
frequentemente, todavia, tais distinções são feitas em situações com desfechos cômicos dos
estabelecendo laços tanto entre os filhos e seus pais ou mães-de-santo como entre os irmãos-
de-santo que compõem uma casa de culto. Os adeptos afirmam que se tornar um filho-de-
santo raramente é uma escolha pessoal, do mesmo modo como a definição da casa de culto à
qual irão pertencer muitas vezes escapa ao domínio da volição217. Depois que a iniciação de
uma pessoa fica decidida, ela se dedica a juntar dinheiro para obtenção dos itens necessários à
condução dos rituais bem como para remuneração do curador responsável218. Em ambas as
tarefas, ela pode ser ajudada por amigos e parentes, bem como contar com o auxílio
esporádico das próprias entidades envolvidas no processo, por vezes acontecendo de um pai-
que recebe como pagamento pela condução do processo, ao término do mesmo. A iniciação
da cabeça” ou de “bori”, costuma acontecer durante uma festa de jarê, em geral algumas horas
após seu início e algumas horas antes de seu término. Em determinado momento, o curador
217
O processo divinatório que comumente antecede a aproximação de uma pessoa a um terreiro será descrito no
capítulo 3, seção 3.4. Já os motivos que levam um iniciado em potencial a se tornar filho-de-santo serão mais
detalhados no capítulo 4, em especial na seção 4.5.
218
Os valores de trabalhos de iniciação, bem como a composição exata de itens a serem obtidos, variam bastante
de acordo com a pessoa a ser iniciada e as orientações dadas ao curador por suas entidades. A quantia que um
iniciando precisa despender em um rito, usada pelo curador também para a compra de objetos e alimentos para o
jarê, além de sua manutenção pessoal, costuma variar entre algumas centenas até dois milhares de reais.
183
pratos, bebidas, charutos, pregos, velas, ramos de plantas, panos e fitas coloridos
(prevalecendo a combinação de cores preto, branco e vermelho, mas com muitas variantes
curador retoma o jarê com uma sequência de cantigas próprias ao trabalho em questão,
conclamando à incorporação aquele entre os seus espíritos que será responsável pela
condução do ritual – sendo mais comuns Ogum, Iansã ou um dos caboclos ligados às matas,
já que todos estes, afirmam, não temem lidar com a morte. Já manifestada, a entidade indica
que os auxiliares da casa devem trazer o iniciando, que até o momento aguardava no interior
do quarto de reclusão, para se sentar num banco no centro do salão, voltado de costas para o
peji e de frente para a saída do pagodô, e ser acompanhado por seus padrinhos. O iniciando
geral cobertas por um tecido branco e portando colares de contas e braceletes de palha
trançada, bem como vendado por um pano branco que cobre seu rosto por inteiro.
procura afetar o iniciando com objetivo de afastar espíritos danosos responsáveis por
infortúnios que sobre ele estejam se abatendo, como indicado tanto pelo processo divinatório
outro, o iniciando e as próprias entidades que o circundam e acompanham, algumas das quais
terão sua conexão com o filho-de-santo enfraquecida a ponto mesmo de dele se apartarem
219
Ver foto 49 no anexo III.
184
granular: farinhas, feijões, pipocas, milhos, saladas de folhas picotadas e talco, bem como a
luz e calor de velas. Em seguida, ele recebe substâncias mais líquidas equacionadas à força
vital: bebidas alcoólicas, mel, dendê, claras e gemas de ovos quebrados sobre sua cabeça, e o
sangue sacrificial de um galo ou galinha abatido pela entidade do curador, em geral com uma
faca dedicada especificamente a esse propósito, após o animal haver bicado três goles da
cachaça disposta para o ritual – algo feito de preferência sem que seja preciso conduzi-lo
demasiadamente a tanto. O galináceo pode ter sua cabeça cortada, suas extremidades
removidas e estufadas no próprio corpo, que é posto em contato com o corpo do iniciando e
depois depositado no centro do salão onde se acumula uma quantidade de itens rituais já
utilizados. Em algum momento próximo dessa etapa do ritual, espera-se que ao menos uma
das entidades que atormenta o iniciando se manifeste nele, sendo então repelida pelo espírito
incorporado no curador com o auxílio dos padrinhos, que ao longo de todo ritual permanecem
posicionados de pé atrás do filho-de-santo cada um com uma de suas mãos sobre os ombros
do iniciando, por meio de uma série de operações feitas com as fitas coloridas que de início
haviam cada uma tido uma de suas pontas amarrada ao redor da testa do filho-de-santo
(completando e duplicando o círculo que delimita a área ritual), bem como com o cordão de
São Francisco, instrumento essencial para todo curador, igualmente manejado próximo às
cabeças dos envolvidos no ritual, conectando-as. O corpo do iniciando fica assim preparado
objetos utilizados no ritual são reunidos e envoltos pelos panos que permaneceram no chão –
o preto constituindo a camada mais externa –, os auxiliares rituais devendo tomar cuidado
185
para que nenhum escape à coleta, sendo o conjunto todo amarrado pelas fitas e tendo fincado
em seu centro a faca utilizada para o sacrifício. O iniciando, por sua vez e já bastante
exaurido, tem o corpo circundado pelo cordão e é coberto por um novo pano branco que o
encobre da cabeça aos pés. Com pólvora, o oficiante desenha no chão, no centro do salão, um
símbolo cabalístico (cujo formato pode lembrar, por exemplo, simultaneamente uma cruz e
todos os presentes preparados para sua ignição. Assim que a marca é acesa, um auxiliar da
casa trata de levar velozmente o conjunto de objetos gastos, no qual estão concentradas as
energias nocivas manejadas no ritual, para o lado de fora do terreiro para ser despachado.
pela pólvora, os padrinhos sem hesitar conduzem o iniciando para o quarto de reclusão, onde
terá início seu resguardo. O auxiliar, retornando ao salão, é recebido com fumigação de
incenso pelo oficiante, que em seguida se retira para o peji, onde o curador voltará a si.
santo da casa de culto, e muitos dos frequentadores dos jarês, especialmente os mais
ocasionais, não realizam o ritual subsequente. Aqueles que se tornam membros mais efetivos
do segundo, pode ser necessário realizar uma nova limpeza para torná-lo outra vez propício ao
festa de jarê, normalmente após a realização de quaisquer limpezas feitas para outros
iniciandos. Da mesma forma que ocorre nestas, também são sempre realizadas pessoa a
pessoa, porém têm início com o filho-de-santo dançando no centro do salão e recebendo uma
incorporação, o iniciando é levado pelos padrinhos e demais adeptos da casa até o interior do
peji, onde o curador o aguarda, sendo colocado sentado diante da pia batismal. Não costuma
santo, ficando o restante da assistência no pagodô repetindo as cantigas rituais específicas que
cabeça do iniciando, em geral num ponto próximo ao centro da abóbada craniana, com uma
faca ou tesoura específica para a tarefa220. Ato contínuo, unge a cabeça do filho-de-santo com
acrescentar ao processo outros itens como talco. Na mesma substância aquosa são banhados
Enquanto faz isso, o curador entoa cantigas específicas tanto para as entidades que já são
próximas do seu filho-de-santo, como para aquelas cujo grau de participação ele deseja
aumentar, podendo igualmente terminar a enumeração com um apelo a todos os espíritos que
conectar ao iniciando e indicando aos demais filhos presentes os nomes de cada uma delas –
algo que os mais perceptivos costumam caracterizar como uma ação pedagógica. Algumas
das imagens são também erguidas e postas em contato direto com a cabeça do iniciando, que
ao longo de todo esse processo manifesta seus espíritos em rápida sucessão de acordo com as
cantigas anunciadas por seu pai-de-santo. Lançando saliva em sua própria mão, o curador
220
No jarê não há prática de se raspar o couro cabeludo dos iniciados, o que consiste em outro ponto de
aproximação de seu ritual com o do o candomblé dito de nação nagô de Cachoeira, para o qual a ausência da
raspagem é considerada um traço distintivo de sua liturgia em relação a outros candomblés (Brazeal 2007:
82,88).
221
Ver foto 50 no anexo III.
187
Após a última das entidades ter deixado o corpo do filho-de-santo, ele se recupera por
alguns instantes e é levado de volta para o pagodô, onde se sentará novamente num banco ao
lado do curador. Dispostos no centro do salão encontram-se alguns outros objetos rituais, o
principal deles sendo um recipiente, em geral uma bacia, no qual há um preparado cuja
composição, variável, normalmente conta com dendê, mel, bebidas alcoólicas e sumos de
determinadas plantas. Nesse instante o curador é tomado por aquele entre seus caboclos que
será o responsável pela condução da próxima parte do ritual, que envolve o sacrifício de um
animal de quatro patas, via de regra um bode ou carneiro, por vezes enfeitado com fitas,
trazido de fora até o centro do pagodô pelos auxiliares rituais sem estar amarrado e tendo
recebido, mais cedo no mesmo dia, um cuidadoso banho ministrado pelo filho-de-santo por
quem será imolado. Da mesma forma que com os galos e galinhas sacrificados no trabalho de
limpeza, considera-se um bom presságio quando os animais não esperneiam, não se debatem e
nem hesitam muito ao adentrar o salão, sendo particularmente fortunosas as ocasiões em que
o fazem de modo praticamente espontâneo, sem que seja preciso segurá-los à força. Quando o
animal entra no salão, o iniciando já se encontra novamente tomado por uma de suas
centro do salão. A entidade que preside o ritual procede ao sacrifício, derramando um pouco
do sangue no preparado líquido e erguendo o animal, com a ajuda de outros membros da casa,
sobre o iniciando, que será banhado pelo sangue remanescente na criatura, amparado por seus
então com uma pequena concha alguns goles do preparado, misturado agora com o sangue
animal (patas, rabo e cabeça), sendo esta repousada ligeiramente sobre a cabeça do próprio
188
filho-de-santo antes de ser colocada, com as outras partes, no interior do recipiente ao centro
do salão222.
Ao término do ritual, a carcaça do animal será separada para que sua carne seja
preparada e oferecida aos frequentadores do terreiro nas refeições do dia posterior. Suas
demais partes, por sua vez, servirão de alimento a algumas das entidades cultuadas na casa,
depositadas em locais específicos após a “matança”, para que ali sejam consumidas pelos
espíritos (seu apodrecimento sendo o sinal de que estão sendo devidamente apreciadas pelos
caboclos). O iniciando é levado para o quarto de resguardo e o oficiante retorna para o peji,
onde a entidade deixará o pai-de-santo. Enquanto isso, os demais membros da casa trazem
bacias com terra para o centro do salão, a essa altura bastante avermelhado pelo sangue que se
espalhou por sobre o otim, espalhando-a com as mãos até que ela absorva a substância e o
chão comece a retornar a sua coloração terrosa habitual223. De uma pessoa que concluiu o
ritual de batizado, diz-se que agora é “pronta”, ou “feita”. Ao longo do ritual, as entidades que
lhe são próximas passam por um processo de cristalização – seria talvez até mais preciso dizer
condensação ou sedimentação – em sua cabeça. Como afirmam, seus espíritos tornam-se mais
fortes, sua vinda em seus corpos mais constante e segura, suas incorporações mais frequentes.
Comparando suas experiências nos dois procedimentos iniciáticos, meus amigos diziam que,
apesar de ambos serem bastante intensos, a limpeza era mais “pesada”, exigia mais deles
corporalmente, enquanto o batizado era mais “tranquilo”, mesmo porque era a última etapa da
iniciação. Alguns comentavam também a respeito de variações dos mesmos rituais, por
exemplo aqueles feitos do lado de fora dos terreiros, em rios, quando havia indicação de que
sobre o iniciando não se deveria derramar sangue sacrificial, ou aqueles nos quais se
222
Maiores considerações a respeito do sacrifício ritual serão oferecidas no capítulo 4, seção 4.5.
223
Ver foto 51 no anexo III.
189
Na manhã seguinte aos rituais de iniciação, tanto no caso da limpeza como no batismo,
os iniciados são levados – após terem passado o restante da madrugada no quarto de reclusão
–, ainda com as roupas que trajavam durante os trabalhos, até um rio próximo ao terreiro para
mergulhados por ele sete vezes, em seguida recebendo de cada um de seus padrinhos e
madrinhas de obrigação por sete vezes o conteúdo de uma bacia cheia d’água sobre a cabeça,
bem como lhes são entregues seus colares, devidamente lavados. Retornam a partir daí para
seus resguardos, que podem durar muitos dias, alguns passados ainda no terreiro, outros após
iniciados não devendo nem mesmo ser tocados por qualquer pessoa), como evitar passar por
cercas de arame farpado, não deixar a cabeça descoberta sob o sol do meio-dia, não ter
por muitos considerada a mais difícil de não quebrar –, algumas delas devendo ser mantidas
por dias, semanas, meses, anos, ou mesmo para toda vida. As evitações prescritas no
resguardo costumam todas ter o mesmo objetivo: impedir que os filhos-de-santo tenham seus
vista a proximidade do estado de maior susceptibilidade pelo qual passaram nos trabalhos.
Algumas filhas-de-santo de mais idade, que faziam rituais para se ligarem a um novo pai-de-
santo após o falecimento do seu, comentavam como elas não estavam sujeitas às proscrições
do resguardo com a mesma intensidade dos mais jovens, que realizavam sua primeira
iniciação.
Nos casos em que uma pessoa já foi iniciada por um pai-de-santo que veio a perecer,
uma outra etapa ritual costuma ser acrescentada, em geral no início de um trabalho de
limpeza, caso ela venha a se ligar a outro terreiro, ou mesmo somente como forma de romper
190
sua conexão com o falecido, num procedimento chamado “tirar a mão do morto”. Nele, o
pólvora e o cordão de São Francisco. O curador que realiza o ritual provoca uma incorporação
auxiliares rituais remover o iniciando de seu centro somente após sua ignição completa,
sua força pessoal para enfrentar as agruras do trabalho a ser realizado, algo que igualmente
fazem nas outras ocasiões, podendo eles também manifestar alguma de suas entidades, de
Os rituais iniciáticos estão entre os considerados como alguns dos mais difíceis feitos
por um curador, sua capacidade de realizá-los a contento sendo sinal não só de sua habilidade
litúrgica como de sua força pessoal. Conheci curadores que se esmeravam em detalhes
milimétricos ao conduzir a arrumação dos itens rituais a serem usados nos trabalhos,
comumente debochando, de maneira brincalhona, das dificuldades que seus auxiliares rituais
posicionamento adequado dos objetos. Da mesma forma, são vistas como marcas de um bom
número e qualidade das entidades próprias que é capaz de mobilizar, seu pendor para lidar
com situações inesperadas e improvisar diante de circunstâncias adversas que possam surgir
no decorrer dos rituais. Só depois de passados muitos meses de trabalho de campo é que pude
começar a perceber detalhes rituais mais intrincados, muito em função dos comentários que
meus amigos faziam quando visitavam jarês que aconteciam em casas diferentes daquelas nas
quais eram iniciados. Curadores com menos habilidade, me diziam, não adaptavam o
224
Como melhor detalhado no capítulo 4, seção 4.3.
191
andamento da festa às necessidades do ritual, deixavam com que a sequência de cantigas lhes
escapasse (tendo por vezes que consultá-las em anotações em vez de puxá-las da memória ou
para controlar os objetos a contento, por exemplo acendendo a pólvora em momento errado e
trabalho por não ter um objeto à mão, causando nós em fitas e cordões. Tudo se passava como
comentarem como um bom curador não podia ser alguém “atrapalhado”. Após uma limpeza a
que assistimos, comentou-se exaustivamente como fora um absurdo a filha-de-santo não ter
incorporado uma única vez ao longo do ritual, chegando mesmo a falar e indicar objetos para
ajudar no desenrolar do trabalho. Mais escandaloso ainda fora o fato de a própria inicianda ter
assistido à matança que era realizada em seu benefício, misturando-se seu olhar no meio do
fluxo das atenções que devem ser dirigidas de maneira cautelosa pelo curador nesse
momento225. Como disse certa vez um filho-de-santo bastante antigo, em outra ocasião mas na
mesma chave, a respeito de como sua própria iniciação havia sido correta: “Eu vi a hora em
que o trabalho começou, mas não vi a hora em que terminou”. De modo parecido, um curador
não deve permitir que suas entidades se incorporem nele de forma muito intensa quando
realiza um trabalho, já que assim arrisca não ser capaz de controlar as demais forças
envolvidas no ritual, pelo próprio excesso da força pessoal mobilizada pelo pai-de-santo –
respeito dos líderes dos jarês (por vezes até dos seus próprios iniciadores), foi uma forma de
aprender mais a respeito de detalhes muitas vezes deixados propositalmente vagos no decorrer
225
Fenômeno que será descrito de forma mais extensa no capítulo 4, seção 4.2.
192
dos rituais. Como já mencionado, as pessoas ligadas ao jarê utilizam com bastante recorrência
ocultação de outras, seja por desconhecimento, seja quando se está diante de pessoas menos
próximas, ou ainda mesmo quando não se deve trair um segredo do culto. Quando se escuta a
descrição de uma sequência ritual posteriormente a sua realização, inúmeras vezes se ouve:
“Aí, ele foi lá e fez o que tinha que fazer”, que é somente uma dessas muitas formas de
dissimulação – muitas outras das quais são utilizadas, como já mencionado, ao longo do texto
da tese. Esse era o caso de outros dos rituais mais importantes de serem realizados numa casa
antes da realização de cada jarê. Apesar de não ter presenciado diretamente nenhum deles,
pelo que se comenta o primeiro é feito com uma série de sacrifícios às entidades principais
que irão proteger o terreiro, acompanhados da entoação de rezas e cantigas específicas para o
no centro do salão, constituindo o otim. Ao menos parte da composição desse conjunto era de
conhecimento dos filhos-de-santo mais antigos do jarê, já que o espaço precisava ser
periodicamente escavado para que o conjunto fosse alvo de procedimentos que renovariam a
energia ali depositada – a parte principal permanecendo sempre oculta de todos, à exceção
acompanhar à distância quando eram realizados pelos chefes dos jarês, de participação
do povo da porta, os exus e demais espíritos que habitam tanto o caramanchão como o
entorno das casas de culto, sob os auspícios dos quais toda festa é realizada. Oferendas de
velas, cachaças e pratos com farinhas são nesses casos as mais comuns, às quais são
acrescentadas partes dos animais sacrificados nas matanças rituais, quando acontecem.
193
durante a Quaresma, são bastante similares, com algumas sequências diretamente invertidas.
específicas à ocasião. O chefe da casa senta-se num banco no centro do pagodô, diante do
qual há uma bacia com um preparado similar ao utilizado no ritual de batismo, acrescido de
perfilam-se e, um a um, ajoelham-se para terem seus corpos fechados de modo a desestimular
a manifestação das entidades durante o período. O chefe da casa molha os dedos no preparado
e pinta com ele três pequenas cruzes no corpo dos membros da casa: uma em cada pulso e
apoiando-se nos quatro membros, para receber o preparado embebido no ramo que é batido
em suas costas por três vezes, bem como recebe palavras do oficiante ritual. Após o último
recebem velas acesas e se colocam de pé no salão formando uma roda e girando em sentido
anti-horário, depositando-as um de cada vez no centro do salão. Por fim, os atabaques são
O ritual de aberta, por sua vez, precede o primeiro jarê que terá lugar após a
arrumem para a festa. Na aberta, todos os presentes se sentam no chão do pagodô, ao redor de
uma vela acesa circundada por um colar adornado com um rabo de boi ou um chicote, um
copo com cachaça e uma faca cravada verticalmente no centro do salão – de certo modo
abrindo seu solo. Oferendas para as entidades podem ser dispostas tanto no meio do salão
como próximo a sua porta de saída. O entorno da vela é aspergido com a bebida e com dendê,
226
Não incidentalmente, como será visto no capítulo 4, seção 4.5, locais de grande concentração da força
pessoal, com potencial de sangramento profuso.
194
e o chefe da casa desenha um símbolo com pólvora no chão, que será em seguida aceso.
para terem seus corpos abertos e, junto dos demais frequentadores, receberem a bênção do
curador. Ao som de cantigas específicas para a ocasião, todos se ajoelham diante do chefe da
casa, que toca as costas dos presentes com uma ferramenta ritual e declara a casa aberta, em
fechada como as de aberta de um terreiro podem ter etapas abreviadas ou serem realizadas de
forma inteiramente resumida com a entoação de algumas frases específicas pronunciadas pelo
chefe da casa, quando se diz que foram procedimentos feitos somente “em palavra”, por
motivos distintos (caso o chefe da casa precise se ausentar em pouco tempo ou não haja
recursos para a realização de um jarê, por exemplo). Próximos das datas em questão, meus
seu desejo de que sempre fossem feitos jarês por inteiro nessas ocasiões.
Existe, por fim, uma grande quantidade de microrrituais realizados ao longo de uma
reverência aos espíritos, intensificados seja nas festas dedicadas a entidades específicas, seja
como homenagem às mais importantes de um curador, seja ainda para se aproximar ou render
tributo àquelas com as quais se tem uma relação mais pessoal. Nesses momentos, as entidades
manifestadas nos filhos-de-santo recebem tanto oferendas (na forma de presentes, promessas,
cantigas, adoração) como pedidos (de cura, proteção, alteração da sorte). Praticamente todas
ocasionalmente, beber, como para transmitir mensagens tanto para os demais presentes como
para o próprio carnal em que habita, e oferecer tanto conselhos como bênçãos. Similarmente,
perfumes, frutas, bebidas) podem ser oferecidos em outros momentos nos demais locais em
Muitos dos procedimentos realizados nos rituais do jarê, somados a outros percebidos
evidenciam uma série de disposições em relação ao chão e à terra que seria possível
caracterizar como parte de uma metafísica telúrica228 que – se não é de modo algum, no
universo das tradições de matriz africana no Brasil, exclusiva ao jarê – encontra na Chapada
pode ser de saída entrevisto na ação das entidades mais velhas, explicitamente ligadas à terra,
como Nanã Borocô e Abaluaê, que quando incorporam imediatamente caem prostrados ao
chão. É costume, quando se começar a cantar para esses espíritos, que todos os frequentadores
de jarê levem ao menos os dedos de uma das mãos ao chão, mantendo contato com o solo.
Quando chegam no pagodô, essas entidades se dirigem, engatinhando, até próximo dos
atabaques, despejando-se diante delas água e dendê, que misturam com a terra batida que
constitui o chão do salão, dando origem a uma lama que as próprias entidades manejam e
espalham sobre seus corpos, especialmente nas costas das mãos e braços. Esse fenômeno
amplia um que é minimamente reproduzido ao longo de todo jarê, quando a dança dos
presentes descalços no chão de terra às vezes molhado (por água ou suor) o desgasta
parcialmente, havendo cuidado para mantê-lo seco para evitar derrapagens. Assim como o
derretimento progressivo das velas – objetos eminentemente verticais que parecem se tornar
cada vez mais próximos do chão, sendo tragados por ele – transmite a ideia da permeabilidade
do solo, muitas das substâncias utilizadas e produzidas nos rituais terminam sendo vertidas
227
No capítulo 1, seção 1.3.
228
O termo é aqui proposto como uma forma de transformar o uso que um dos principais cronistas da região faz
da expressão “democracia telúrica” (Moraes 1983: 19). Por mais que minha descrição enfatize os aspectos
cosmológicos do termo, esse telurismo pode muitas vezes se conectar com uma questão literalmente fundiária,
como a que foi vivida pelos habitantes de Nova Redenção (Rabelo 1990: 129).
196
sobre a terra do pagodô e a ela assimiladas, sobretudo o sangue mas igualmente o dendê, a
aguardente, o mel, a água, o suor. A energia mobilizada nos e pelos rituais, que
solo da casa de culto e passa a fazer parte dele, sendo continuamente revolvida e
tomados por qualquer de suas entidades, por mais que as mulheres muitas vezes prefiram vir
com calçados bastante ornamentados para a festa. Ao contrário dos sapatos fechados e dos
tênis, as sandálias podem ser facilmente retiradas pelos demais filhos-de-santo quando se
comentavam como se tratava de um sinal certeiro de falsa manifestação caso uma pessoa
recusavam a dar qualquer passo caso seus pés não estivessem em contato direto com o solo231.
Certa vez, falando a respeito da grande força possuída por um curador, bem como elogiando
sua habilidade litúrgica, uma amiga exclamou simplesmente: “Ah, esse pisa no chão!”
Existem mesmo momentos, observados com bastante gosto e atenção, em que as entidades
incorporadas num jarê abandonam momentaneamente sua conexão com o solo, ou fazem com
que outras pessoas a percam. Ainda que geralmente sua coreografia seja executada quase que
manifestando seus espíritos, acrescentam a ela pequenos saltos, por vezes tirando ambos os
229
Como será melhor detalhado posteriormente, no capítulo 4, seção 4.4.
230
Ver foto 52 no anexo III.
231
Por sugestão de Elias, depois de algum tempo abandonei por completo o uso dos tênis que ainda mantinha nas
caminhadas para os jarês. Ele me disse que ficar descalço era uma forma importante de poder estar em contato
com o “abajé”, o axé da terra que é, por excelência, feminino. Quando conversávamos sobre o assunto, ele
confirmou a suspeita de que a conexão privilegiada das mulheres com a força do solo tinha ligação tanto com o
fato de possuírem vagina, por esta constituir um receptáculo com abertura voltada para o chão, como por
menstruarem. Essas considerações receberão tratamento mais detalhado nos capítulos 3 e 4, seções 3.2 e 4.5.
197
pés do chão ao mesmo tempo em que dobram os joelhos. Esses passos são recebidos pela
assistência com bastante alegria, considerados divertidos e belos. Imagino que essa avaliação
se deva também ao risco que se aceita correr, não só de cair como de abandonar o chão por
alguns instantes. De modo similar, uma saudação feita com muito gosto por determinados
caboclos envolve tirar uma pessoa do chão com um forte abraço, dobrando o próprio corpo
para trás enquanto a levanta, em geral reservada a crianças mas não limitada a elas. Os
adeptos do jarê comentam que essa é uma forma de transmitir saúde à pessoa cumprimentada,
seu próprio contato com o chão passa a depender de, e ser feito por, uma entidade. Numa
inversão dessa configuração, lembram que se deve evitar pular por cima de uma pessoa
próprio processo ritual. Em determinada ocasião, um senhor de idade avançada havia pedido
para permanecer com os pés protegidos ao longo do dia em que seu trabalho seria realizado, já
que sem os calçados ele caminhava com dificuldade, solicitação negada por seu curador, que
lhe falou explicitamente sobre a importância de pisar descalço no chão e de repousar sentido
seu corpo sobre a terra. Um amigo que auxiliara nesse ritual comentou como o pai-de-santo
lhe havia instruído a não carregar para o interior do salão os animais a serem sacrificados,
especialmente bodes a carneiros, conduzindo-os, ao contrário, com suas patas sempre tocando
o chão, tanto nessa como nas demais ocasiões rituais da casa. A maior parte das entidades
incorporadas sempre solicita que objetos a serem utilizados no ritual ou presentes que se lhes
esteja ofertando sejam erguidos do chão e entregues em suas mãos, as mesmas nunca se
232
Em outra tradição de matriz africana, das casas de religião da cidade de Pelotas, o próprio processo iniciático
pode ser chamado literalmente de “ir ao chão” (Barbosa Neto 2012: 88, 105, 224).
198
abaixando para pegar nada. Além disso, todo filho-de-santo aprende rapidamente que, ao
fazê-lo, deve antes e de modo bastante ligeiro retornar o objeto em questão para o solo por
duas vezes, para só na terceira levantada entregá-lo ao caboclo, como numa espécie de pedido
de licença à terra. A prática me deu a nítida impressão de que, ao levantar e retornar o item
por algumas vezes apenas poucos centímetros do solo e de forma breve, tudo se passa como
concentrando no artefato.
As considerações que ofereço a respeito dessa metafísica telúrica foram tecidas dando
ouvidos a uma pessoa em especial, uma das grandes sábias de Lençóis cuja apresentação
marcará o fim desse capítulo. Amplamente conhecida na cidade como Valdelice de Caxixão,
Valdelice233. Dona Valdelice se dizia, ela mesma, uma pessoa muito cismada e desbocada,
sendo tão temida quanto adorada pelos lençoenses. Autora de bordões célebres reproduzidos
com gosto pelos habitantes da cidade (alguns dos quais mencionados anteriormente), Dona
Valdelice me disse mais de uma vez, quando falava a respeito da configuração das potências
do mundo com as quais os seres precisavam se haver, que pessoa alguma devia imaginar que
era menos importante que outra, completando: “Grande mesmo, nesse mundo, só três coisas:
Deus, a morte, e a terra”. Dona Valdelice passava seus dias habitualmente sentada em dois ou
três lugares pela cidade, acompanhando a vida de seus amigos, vizinhos, e familiares,
Gostava mesmo, contudo, era de fazer longas caminhadas pelas cercanias da cidade,
233
Também me referia a ela como Valdelice do Alto da Estrela quando, geralmente em conversa com Elias, seu
bom amigo, não queria dar margem a confundi-la com Valdelice do Baixio, dona da já mencionada casa de jarê
no caminho para o Palácio de Ogum.
199
que, cortava e vendia lenha para sustentar sua família, atividade que tivera feito praticamente
sozinha e que lhe dava muito orgulho. Eu e Elias por vezes nos oferecíamos para acompanhá-
las nesses passeios, cujo número havia diminuído nos últimos tempos mas que continuavam a
lhe dar grande satisfação. Antes de empreender uma dessas saídas mais longas, rogava a Deus
e aos caboclos por um clima favorável, e nos oferecia incenso, esquentado com brasa de seu
para recolher plantas com usos variados, ensinando a Elias, que já as conhecia mais
remédios após acréscimo de alguma bebida, bem como xaropes caseiros como um que me
cobra e cortes de todo tipo, Dona Valdelice era grande amiga da tia de Elias, tendo esta
falecido nos braços da primeira. Seu conhecimento dos meandros do jarê era também sem par,
mesmo tendo deixado de frequentar o Palácio de Ogum há aproximados 30 anos, antes ainda
do falecimento do curador que o inaugurou e de quem era grande amiga e comadre, já que
havia lhe dado uma de suas filhas para batizar na igreja, episódio ao qual já aludi. A
aproximação entre os dois não deve ter sido fortuita, contudo: desde criança, dizia-se que ela
era detentora de uma força pessoal inigualável, razão pela qual, seu grande amigo e curador
lhe diria, jamais poderia ser iniciada234. Isso que não significava, contudo, que ela não
pudesse manifestar entidades e frequentar jarês, o que fazia com muito gosto, sendo inclusive
convidada para realizar tarefas rituais na casa de seu compadre, que lhe afirmava
explicitamente que o poder de sua casa crescia em função da mera presença de Dona
Valdelice nas festas: “Quem faz graça, merece graça”, afirmava ela, em mais de um sentido.
234
Retornarei a esse paradoxo aparente a seguir e também no capítulo 4, na seção 4.4.
200
Muitas das pessoas que frequentavam os jarês de hoje em dia lembram-se da época em
que Dona Valdelice ia ao Palácio de Ogum, suas entidades merecendo saudações rituais que
levavam mesmo os que hoje são os mais fortes filhos-de-santo a se portarem de forma
humilde. Dona Valdelice conhecia segredos da mata e auxiliava curadores com quem
simpatizava em suas obrigações, chegando a ser por muito tempo a única pessoa a quem o
chefe do Palácio de Ogum confiava a renovação dos três objetos sagrados, que ela chamava
provavelmente trazido de Cachoeira ainda pelas nagôs, ela dizia, era um objeto que se movia
como se possuísse vida própria, e que fazia com que ela avistasse luzes coloridas ao ser
lavado no rio próximo ao terreiro. Elias, que já ouvira muitas descrições de antigos filhos da
Capivara do item que tornava a ser enterrado a cada vez no centro do salão, o apelidara de
“aborto”, já que devia ser um pedaço de carne detentor de algum movimento próprio, dizia. O
objeto fora removido do local em definitivo pelo curador do Palácio, que dele deu cabo antes
de falecer: “Tudo tem seu fim”, afirmava, triste, porém resoluta, Dona Valdelice. Tudo tem
Em nossas caminhadas, por vezes Dona Valdelice fazia uma pausa repentina e depois
nos explicava que, naquele instante, ou naquele local em outra oportunidade numa caminhada
anterior, tinha avistado um espírito. Suas visões, que tinham lugar em sua mente, ela
explicava, eram mais frequentes quando estava próxima de algum marco no qual havia
acontecido muito sofrimento ou mesmo mortes, como uma antiga senzala na qual escravos
foram torturados, ou o Campo da Batalha, terreno no qual foram travados alguns dos
dramáticas, ela dizia, chegava a ouvir gritos, tiros e o galope de cavalos, estando ciente de que
vivenciava no presente, de maneira parcial, eventos que tinham deixado como que impressas
no território as marcas que via como espíritos – pessoas exatamente como nós, com a sutil
201
diferença de que, por poucos centímetros, seus pés nunca tocavam o chão. Junto dos espíritos
de pessoas falecidas, dizia Dona Valdelice, ela via também espíritos que eram as entidades
cultuadas no jarê, da mesma forma como as vira quando da morte da tia de Elias. Seres
trajando roupas em geral brancas ou verdes, esses outros espíritos podiam ser vistos por
pessoas com determinado dom (como era, em menor grau, o caso de Elias, ela acrescentava),
por ela possuído desde o nascimento. A forma como ela o justificava – bem como o motivo de
possuir sua considerável força pessoal – era ainda mais significativa quando lembro que nela
faz uso de um nome igualmente dado a qualquer entidade do jarê: “Sou igual a um caboclo.
compleição, reconhecida como de descendente indígena, mas sem deixar de passar por
ambos235. O grande curador, seu compadre, de todo modo já a prevenira: ela havia nascido
feita.
235
Ver fotos 53 e 54 no anexo III.
202
Capítulo 3 – Tombar
3.1 Associações
“Não chorem, meus filhos, pois eu sou a rainha da morte”. Essas estiveram entre as
últimas palavras ouvidas por aqueles que acompanharam os instantes derradeiros de um dos
chefe do terreiro nomeado Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, presenciadas tanto por
muitos de seus iniciados como por seu único filho, Sandoval, que veio a se tornar um de meus
grandes amigos em Lençóis. À época em que cheguei à cidade ele contava 33 anos, tendo sido
adotado por Pedro e criado por ele e por Dona Laura, mãe deste, desde bastante novo.
Sandoval dizia que hoje ele era uma pessoa muito diferente do jovem tímido e reservado que
fora quando mais novo, já tendo também agora alguns filhos (incluindo uma menina chamada
num dos hotéis da cidade, Sandoval dedicava grande parte de seu tempo ao legado deixado
por seu pai que, no leito de morte, pediu aos presentes que não deixassem a casa da Capivara
ruir, continuando a realizar suas principais festas anuais, dedicadas a Oxalá e a Iansã, sendo
essa última uma das mais reconhecidas entidades do curador, e autora da frase que abre esse
capítulo.
203
Diferentemente do que acontece com a maior parte dos frequentadores dos jarês, que
recebem caboclos, Sandoval jamais manifesta entidades, exceção que, de toda forma, ocorre
mais comumente com homens, em especial os mais jovens e que não passaram por nenhuma
iniciação. Esse era seu caso também porque um curador não pode fazer trabalhos de limpeza
ou batizado para seus próprios filhos carnais, modo como Sandoval sempre foi considerado
por Pedro. Sendo seu último familiar em Lençóis, Sandoval tornou-se herdeiro dos bens
materiais deixados por Pedro de Laura, que incluíam o terreno e a casa da Capivara. Assim
como os filhos-de-santo remanescentes, ele próprio reconhece que seu pai nunca deixou
apontada uma pessoa como seu sucessor espiritual para liderar o Palácio de Ogum, o pedido
para que a mantivessem viva, em funcionamento, tendo sido feito a todos conjuntamente.
Passados alguns anos, após ter ficado fechada para um período de luto e ter sido reaberta
prosseguia sua existência tendo, à época em que cheguei a Lençóis, como curador Pai
Mussum, auxiliado pela tia de Sandoval, mãe-pequena do Palácio e irmã de sua mãe
biológica. O próprio Sandoval continuava a ser um dos principais promotores das festas da
Capivara, sendo o maior responsável pela organização logística dos eventos – os três, em
geral e conjuntamente, dividindo entre si a maior parte dos custos financeiros envolvidos na
integrante havia muitos anos. Contente em poder conversar num momento de maior
descontração com meus colegas, que indagavam afinal de contas o que eu tinha vindo fazer
em Lençóis, nesse momento eu lhes disse, provavelmente pela primeira vez de maneira mais
direta, que gostaria de conhecer mais a respeito do jarê, para realização de uma pesquisa
acadêmica. Fui quase que imediatamente direcionado a Sandoval, que todos os demais
204
indicavam ser o filho do maior curador que a região teve nos últimos tempos, o renomado
quando ele disse que era o idealizador e atual presidente da Associação do jarê da cidade. De
modo a promover a união dos filhos da Capivara entre si, entre os quais houve relativa
Sandoval liderou a criação, no ano de 2005, de uma associação que congregasse tanto os
antigos frequentadores do terreiro como as novas pessoas que se aproximavam da casa, como
de momentos difíceis em sua história, em geral citando as grandes enchentes que muitas vezes
conjuntamente, bem como as épocas nas quais o diamante escasseava, resultando em diversas
muito similar mesmo em muitas das novas organizações que não são diretamente ligadas ao
trabalho, como o caso da Associação do jarê, que em seu estatuto prevê, por exemplo e entre
outras atividades, o amparo a membros adoentados. A associação mais famosa e mais antiga
ainda existente nos dias de hoje na cidade é a Sociedade União dos Mineiros (SUM), cuja
fundação data da década de 1920, dedicada no presente majoritariamente à defesa dos direitos
eventos públicos em Lençóis. Como era de se esperar, nos últimos anos vem crescendo em
236
Ver fotos 55 e 56 no anexo III.
237
Há registros de associações praticamente desde a fundação da cidade de Lençóis, bem como de sua
importância ao longo do tempo até os dias de hoje (Moraes 1963: 106; Senna 1996: 91; Ganem 2001: 19, 50;
Araújo 2002: 179; O. Senna 2002: 12).
205
dedicadas a uma atividade que desejam fundar associações, como o caso dos organizadores
atuais da marujada, bem como outros que, por motivos diversos, não veem necessidade ou
reisado local, das quadrilhas, de outras casas de culto de jarê. Muitos dos homens que
trabalham como guias na cidade consideram que as taxas de associação e participação não
Toda associação costuma ser conhecida pela figura de seu presidente, e estes estão
rotineiramente atarefados não só com a organização das associações de que fazem parte como
com a participação em inúmeras reuniões promovidas pelo poder público, às quais são
das principais razões que levou à configuração atual das associações de Lençóis tem a ver
com um dos objetivos primários dessa forma de organização, na visão de seus presidentes: a
como se organizar em uma associação é não só uma exigência governamental como também
uma forma de se fortalecer diante do poder público, apresentando-se de forma unida em torno
reunidos, um deles chegou a esboçar a ideia de que poderia ser criada mesmo uma associação
das associações de Lençóis, para que suas demandas fossem consideradas conjuntamente,
apesar de não ter obtido grande apoio para essa possível iniciativa – talvez, inclusive, por ser
o presidente de uma das associações que, pela natureza mesma de sua atividade, os demais
238
Outras organizações comunitárias anteriormente mencionadas também constituem associações devidamente
registradas, como o Movimento Avante Lençóis, atuante na capacitação dos moradores do Tomba, a Casa
Grande e a Academia de Capoeira Corda Bamba, voltadas à educação de crianças no Alto da Estrela, o Grãos de
Luz e Griô, centrada na promoção da cultura, arte e pedagogia locais, o Grupo Ambientalista de Lençóis (GAL),
promovendo a proteção e educação ecológicas, e a Filarmônica Lira Popular de Lençóis, responsável pela
manutenção da orquestra.
206
Serra, como é o nome formal da agremiação, Sandoval buscava manter unidos os adeptos da
Capivara que haviam sido reunidos por seu pai, bem como promover o jarê de maneira geral
na cidade de Lençóis e alhures, para cumprir a tarefa que Pedro de Laura deixara aos seus. Se
é verdade que a aproximação entre Sandoval e outras pessoas interessadas no jarê que vinham
para a região por qualquer período de tempo, como era o meu caso, era também uma forma de
ele buscar fortalecer o culto – que se encontrava relativamente combalido desde o falecimento
legado espiritual do Palácio de Ogum, como ele próprio viria a me dizer. Sem ser um
possuidor aparente da capacidade mística que permite entrar em contato mais direto com as
entidades do jarê, e sem ter tido desejo de se tornar um líder religioso para que viesse a
Palácio de Ogum, em particular – da melhor forma que lhe era disponível, ou seja, como
função que ocupava também por haver tido como concluir seus estudos, como afirmava com
Sandoval cuidava com bastante zelo da logística envolvida na realização das festas na
doações dos amigos da casa, fazendo uso de um conjunto de relações estabelecidas seja por já
ter trabalhado em diversos locais na cidade, seja por ser presidente de uma das associações de
Lençóis, seja ainda por meio da manutenção das conexões cultivadas em função da memória
de seu pai. Tão importante quanto essas funções era a questão do transporte dos objetos e
239
Nosso amigo em comum Elias veio a se tornar presidente da Associação ao final de meu trabalho de campo,
numa articulação promovida, entre outros, por Sandoval, já que o próprio não poderia concorrer a mais uma
reeleição, de acordo com os termos do estatuto. Após o término do mandato de Elias – que ambos consideraram
não ter sido experiência das mais afortunadas –, Sandoval retornou à presidência da Associação.
207
pessoas até a casa de jarê, provavelmente a mais distante da sede do município ainda
Normalmente o caminho até a casa de culto tinha de ser transcorrido a pé, num trajeto
inclusive intransponível para carros de passeio por se tratar de estrada bastante acidentada e
as pesadas cargas necessárias à realização dos festejos, feito por caminhonetes cuja tração era
capaz de vencer as agruras do trajeto – e no interior das quais se costumava reservar lugar
para que os filhos-de-santo mais antigos não precisassem vencer a pé um caminho que fariam
em não menos de quatro horas de caminhada caso tivessem de andar. Por sua vez, os chefes
de casas de jarê um pouco menos distantes, mas ainda longe da sede, costumavam contratar os
serviços de mototáxis ou mesmo jovens com carrinhos de mão para levarem para as festas
Sandoval contava que muito do que por vezes era feito hoje em dia se tratava de
bastante peculiar não só na cidade de Lençóis como no interior do próprio Palácio de Ogum.
turistas para conhecer o cotidiano do jarê, fazer apresentações de música e dança, eram
experiências que, se no passado talvez não fossem vistas com bons olhos, configuravam-se na
permitir uma maior aproximação de pesquisadores diversos, nos quais eu me incluía, dos
240
Os preços pagos pelos serviços costumavam ser de até R$ 5,00 para carrinhos de mão, R$ 15,00 para
motocicletas, e R$ 100,00 para caminhonetes, por viagem.
208
tradição do jarê, e verbalizando a posição de muitos dos filhos-de-santo mais antigos da casa,
costumava lembrar a Sandoval que era importante distinguir, ao menos no interior dessas
iniciativas, aquelas que poderiam acabar comprometendo a integridade do legado das casas –
via de regra por estarem mais interessadas em promover a si mesmas do que se colocar a
serviço dos próprios jarês. Os dois se lembravam de um projeto em especial, promovido por
uma organização não governamental em parceria com o Grãos de Luz e Griô, que por um
período realizou excursões de turismo comunitário que incluíam uma visita ao Palácio de
Ogum. Apesar de ter gerado alguma renda para a casa da Capivara, desentendimentos entre as
Lençóis ainda mantiveram ligações com o Grãos, outros se afastaram definitivamente, dando
razão àqueles que, por sua vez e por diversos motivos, sempre haviam mantido distância dele.
Em certa ocasião, Elias comentou comigo como sua reserva em relação ao que ele chamava
de “espetacularização” do jarê promovida por associações como o Grãos tinha muito a ver
dos próprios adeptos do culto, em especial quando insistiam no discurso do resgate cultural:
“Resgate, resgate... Falam tanto em resgate que parece até que estamos todos morrendo
Da forma como lhe era possível, contudo, Sandoval continuava a buscar meios de
fazer parte do circuito de editais de incentivo à cultura para os quais ele via associações como
o Grãos, que tinham experiência prévia com – e pessoal dedicado à – elaboração de projetos,
processo para tentar tombar o patrimônio material do Palácio de Ogum, medida tomada no
241
A seu pedido, eu e outras pessoas procurávamos nos inteirar a respeito de editais nos quais fosse possível
inscrever a associação do Palácio de Ogum, selecionando projetos que resultassem na obtenção de recursos que
lhes permitissem reformar a casa e empreender outras atividades com vistas ao desenvolvimento do jarê em
Lençóis, nenhum deles tendo contudo se concretizado durante meu trabalho de campo.
209
ano de 2007 no escritório regional que a instituição mantém na própria Lençóis. Junto de
alguns dos filhos-de-santo da casa, Sandoval havia tido a ideia de tentar tornar a casa da
ter sido tombado o conjunto arquitetônico da cidade anos antes. O processo junto ao Iphan
correu por algum tempo, tendo o Palácio de Ogum inclusive recebido visitas de técnicos
responsáveis pela elaboração de um dossiê para o órgão, até ser interrompido por não ser
considerado prioritário diante das demais demandas recebidas pela instituição até aquele
momento242. O tratamento que o processo de tombamento recebeu até então parece ecoar o
que Elias considerava funcionar para o patrimônio da própria cidade em Lençóis, segundo o
acordo com a posição econômica dos proponentes, o suposto valor cultural que os bens dos
3.2 Resiliências
não se limitava a seu preparo, já que ele frequentemente se unia aos demais homens na
242
Fato que só consegui descobrir em visita pessoal à 7a Superintendência Regional do Iphan, em Salvador, a
pedido da Associação do jarê. Também não me foi concedido acesso ao conteúdo já produzido para o dossiê do
processo, que se encontra registrado no órgão sob o número 01502/000323/2007. Os responsáveis pelo processo
recomendaram que a associação buscasse, concomitantemente, o tombamento do Palácio de Ogum em nível
estadual junto ao Ipac, órgão responsável pelo patrimônio artístico e cultural da Bahia.
243
Similarmente, havia já em 1994 menção a uma iniciativa de interesse local favorável à criação de um museu
do jarê que tampouco saiu do papel (Senna 1996: 73, 76). O tombamento do jarê acaba dificultado por uma
concepção “acrítica e limitada” a respeito do que seja um monumento, que leva a “uma paralisia dogmática”:
para essa perspectiva, o valor de monumentalidade de um marco acaba equacionado a sua suntuosidade, à
grandeza de suas proporções e ao valor material das matérias-primas utilizadas em sua construção, mais do que
aos “processos de investimento simbólico e de instituição social dos monumentos” (Serra 2005: 201-202 nota
52).
210
eminentemente masculina. Nas casas de jarê contemporâneas é comum que sejam tocados três
atabaques durante as festas, sendo possível, apesar de pouco frequente, celebrá-las também
ocasiões no passado nas quais esse número foi bastante ampliado, chegando mesmo a nove
todos de tamanhos distintos ou dois similares em altura com um terceiro mais alto ou mais
baixo que os dois demais. Raramente, mencionam-se para os atabaques os nomes “trongo”,
mais indistinta de “couros”. Já de modo mais rotineiro, referem-se aos tambores pela posição
que ocupam na harmonia, ficando um dos maiores (e mais graves) responsável pela
por volta de 30 centímetros em sua parte mais larga. Tradicionalmente, são feitos com uma
técnica que chamam de “tronco cavado”, na qual parte do tronco de uma árvore tem seu
Preferencialmente deve-se utilizar inclusive uma árvore que tenha tombado por meios
naturais, aquelas que já foram atingidas por raios resultando em peças extremamente propícias
à mobilização das forças do jarê. Quando troncos inteiros não se encontram disponíveis, os
chefes das casas recorrem aos tambores de “barrica”, cuja bomba é formada por tábuas,
vindas por vezes de muitas árvores diferentes, unidas entre si. A árvore mais comumente
utilizada para a construção dos atabaques é o chamado pau-d’arco, e o couro que os recobre
costuma ser de animais de caça, em geral caititus (mais rígido e pesado, como diziam) ou
veados (mais leve e maleável), ainda que também tenham mencionado ser possível utilizar
244
Informação similar à registrada em estudo conduzido cerca de quatro décadas atrás (Gonçalves 1984: 135-
136).
211
couro de bodes ou carneiros245. O couro é preso à parte superior da bomba por meio de um aro
de ferro que a circunda, ao redor do qual estão presos anéis ou amarras feitos com o mesmo
metal246. Desses anéis partem cordas que se entrelaçam em ziguezague por outro aro metálico
Entre esse aro inferior e a bomba, paralelamente à extensão dessa, são colocadas diversas
estacas de madeira apontando para baixo, que produzem a afinação do instrumento. Quanto
mais as estacas são empurradas para baixo, com um martelo ou ferramenta similar, mais o aro
inferior se retesa, por sua vez levando o aro superior a apertar as laterais do couro, esticando-
o. O barulho de batidas contra as estacas de madeira é rotineiro ao longo dos jarês, já que a
percussão contínua faz com que o couro abandone sua tensão ideal – que varia também de
acordo com cada tocador – diversas vezes noite adentro. Alternativamente, alguns tambores
possuem como método de afinação o uso de parafusos e tarraxas metálicas, preterido pelos
filhos-de-santo que por vezes podem nelas se cortar ao serem tomados por entidades que os
pano amarradas em seu entorno, do mesmo modo como são por vezes amarradas no torso dos
postos pelo chefe da casa, ou a seu mando, para tomar sol, tendo-se espalhado uma pequena
quantidade de azeite de dendê sobre seu couro, com objetivo de amolecê-lo e deixá-lo
propício à cerimônia. Da mesma forma, ao longo dos toques, aqueles que os percutem podem
aplicar o dendê nas próprias mãos, esfregando-as uma na outra e fazendo com que fiquem
ligeiramente dormentes, como dizem. Essas medidas contribuem para que o couro não
245
A remoção de árvores para se fazer atabaques se tornou um problema nos dias de hoje pelo maior número dos
espécimes adequados se encontrar no interior da área do Parque Nacional, constituindo crime ambiental
fiscalizado pelo Ibama, que os membros dos jarês preferem evitar. O aumento do desmatamento que rareou os
exemplares mais próximos às áreas das cidades, externas ao traçado do Parque, foi outro dos motivos que parece
ter levado à maior utilização das bombas de barrica, conforme explicou Ronaldo Senna (comunicação pessoal).
246
Ver fotos 57 e 58 no anexo III.
212
arrisque romper ao longo do toque, algo que constitui um dos piores portentos que pode
acontecer num jarê. Quando não estão sendo utilizados, os atabaques são cobertos com panos
brancos, e não devem ser removidos de suas casas senão por motivos especiais e mediante
devem ser percutidos em dias nos quais jarês não serão celebrados, chegando a haver
de algum acontecimento público (o “tambor de eventos”, como dizia Elias, algo que faria os
maioria também manejada na maior parte das vezes pelos homens, como o triângulo, o agogô
e o xequerê, também chamado de afoxé, uma grande cabaça recoberta por uma malha de
cabaças pequenas que funcionam como chocalhos são percutidos de forma mais indistinta
tanto por homens quanto por mulheres. Meus amigos disseram já ter visto ou ouvido falar de
jarês, no passado e alhures, acompanhados por maracaxás (chocalhos cujo formato lembra um
losango, conforme descreveram), ou mesmo por violas e acordeões, a presença dessas últimas
uma peculiaridade do jarê do Remanso. Todos os frequentadores dos jarês também são
encorajados a participar batendo palmas no ritmo dos toques, e acompanhando com breves
salvas de palmas o rufar dos tambores que acontece sempre que uma entidade, em geral assim
assistência demonstra ao prestigiá-la. As palmas com que se acompanha o som dos atabaques
costumam ser de um tipo específico, batidas com as mãos bem abertas e espalmadas uma
contra a outra, favorecendo a maior área de contato possível, resultando num som bem curto,
247
Ver fotos 59 e 60 no anexo III.
213
seco, mas que deve ser preferencialmente o mais intenso possível, e produzido sempre que
simplesmente de batedores de couro. Ainda que todo homem seja um tocador em potencial,
há alguns que são reconhecidamente mais aptos para a atividade, seja por dominarem os
ritmos, seja por possuírem o vigor necessário para tocar por toda madrugada, seja por terem a
experiência que os torna capazes de reconhecer os sinais a serem observados enquanto se está
sentado ao couro – dos homens que pouco tocam, por falta de habilidade com os atabaques,
diz-se que são “gagos”. Idealmente deve haver sempre mais de três batedores para que se
revezem enquanto os demais descansam, sendo comum que se permaneça junto ao tambor até
que se esteja praticamente esgotado – o calor dos salões e da própria ação fazendo com que
prefiram tocar sem camisas, que de outro modo podem ficar encharcadas pela transpiração.
Os batedores exibem uma aura característica ao tocar, não só de cansaço como de grande
casas de culto gostam de comentar a respeito dos maneirismos tanto comuns aos tocadores
(como gestos específicos, viradas de cabeça, expressões faciais) como aqueles pelos quais
distinguem uns dos outros, em especial sutilezas nos toques produzidos por cada um. Mais de
batedores estavam, naquele instante, sentados ao couro no salão ao lado somente por suas
batidas, estas sendo por vezes atribuídas ao formato de suas mãos, aos tocadores que lhes
Sandoval reconhecia não ser dos melhores batedores, como era o caso por exemplo
dos seus dois irmãos mais novos que, diferentemente dele, haviam sido criados por sua mãe
encontravam-se entre os tocadores mais requisitados dos jarês da cidade, principalmente por
214
não se cansarem facilmente e serem capazes de bater os atabaques por horas a fio, “segurando
o couro”, como se diz – especialmente nos momentos em que há entidades dançando no salão
Lembrando-se de quando era moço, um senhor considerado dos maiores batedores de Lençóis
contava como ficava depois de passar a madrugada inteira no couro: “Nunca senti tanto tempo
caminhando em mim”. Ainda que impressionassem por sua resistência à fadiga, qualidade
bastante apreciada nos grandes batedores, todos afirmavam que nenhum dos jovens de hoje se
igualava em capacidade técnica aos tocadores mais antigos. Os mais velhos se recordam
como, no passado, as muitas entidades tinham de ser reverenciadas com toques bastante
distintos, ritmos específicos que nos jarês atuais acabavam sendo pouco reproduzidos,
velocidade dos toques (como quando determinados caboclos dançavam ao som ou do couro
mais solto, rápido, avexado, ou do couro mais amarrado, mais lento, caso dos espíritos mais
velhos). A marca final de um grande batedor, que em geral acompanhava seu conhecimento
dos diversos toques, era a capacidade de estar constantemente atento ao desenrolar do jarê,
próprio enquanto tocam, podendo fechar os olhos, virar as cabeças para o lado ou para cima
ou dirigir seus olhares e ouvidos para seus companheiros de couro e para os instrumentos
desses, entretendo-se uns aos outros numa conversa musical. Os melhores entre eles, contudo,
são capazes de fazer isso sem nunca perder de vista os efeitos que os toques dos tambores têm
acenos de mão, que podem ser retransmitidos pelos outros presentes para vencer a distância
que os separa no interior salão ou superar a desatenção de um tocador – para dar início ou
215
interromper determinadas canções, indicações que podem também ser feitas pelos demais
manifestadas. Os grandes batedores sabem, contudo, que não devem corresponder a essas
orientações de maneira irrefletida, caso, por algum deslize, por exemplo, sejam feitas em meio
a uma incorporação que esteja tendo início ou fim, pois esse processo bastante árduo só é
afinco uma agonística própria entre si. Os primeiros sentem-se realizados ao provocar, com o
toque dos atabaques, incorporações nos membros dos terreiros, especialmente se um deles
afirma categoricamente que suas entidades não irão se manifestar. Para citar um caso, quando
uma filha-de-santo disse que seus caboclos estavam amarrados, um dos irmãos de Sandoval
respondeu, ato contínuo: “Caboclo amarrado, eu desamarro”, seu chiste vindo acompanhado
por duas curtas batidas no tambor. Do mesmo modo, os batedores comprazem-se em tocar de
forma veloz apenas o suficiente para que um dançarino não consiga acompanhá-lo, apesar do
músico acenar com a possibilidade. Os filhos-de-santo, por sua vez, orgulham-se quando se
mostram capazes de dançar nesses ritmos liminares, e mais ainda quando levam os tocadores
podem clamar por novos tocadores, descansados para substituir os sem vigor, ou mais
habilidosos no lugar dos inaptos. Quase invariavelmente, de todo modo, essa agonística traz
Apesar de ser uma posição eminentemente masculina, também é possível que certas
mulheres toquem os atabaques, havendo algumas que se notabilizam por sua habilidade, como
216
era o caso da filha de um grande batedor que os irmãos de Sandoval costumavam chamar de
“professora” – título que a mesma negava por dizer que não ensinava nada a ninguém. Ao
afirmá-lo, essa tocadora aproximava-se ainda mais da atitude que cultivavam os grandes
batedores, que diziam que, afinal de contas, saber tocar dependia menos de alguém que fosse
bom em ensinar do que de alguém que soubesse aprender: a compreensão menos importante
dispunham a bater couro desde saída descobriam que não deviam fazê-lo exatamente da forma
atabaques de si. Enquanto os homens os seguram entre as duas pernas, firmando-os contra o
chão inclinados ligeiramente para frente, mulheres os apoiam de maneira lateral, passando
ambas as pernas pelo mesmo lado do tambor (de modo similar ao que ocorre no estilo de
posição devia ser assumida pelas mulheres ao segurarem o couro não só por decoro como
porque de outro modo exporiam o tambor a uma região perigosa, por ser canal do fluxo
menstrual. Parece-me que, dessa forma, evita-se também colocar em contato mais direto duas
caixas de ressonância capazes de mobilizar forças distintas e que podem entrar em conflito,
Seja homem ou mulher, todo batedor deve seguir determinado protocolo litúrgico ao
lidar com os atabaques. Quando assume posição junto aos demais tocadores, uma pessoa deve
deixar o couro – ato que pode ser sempre abreviado ou realizado somente em pensamento,
opção contudo menos frequente caso se esteja no início de um jarê. A batedora mencionada
dizia como, por preferir não permanecer no atabaque durante a realização de matanças,
escusava-se antes de se levantar erguendo ligeiramente o tambor do chão por três vezes, de
248
Em dois momentos no capítulo 4, seções 4.4 e 4.5.
217
maneira similar à referida quando um filho-de-santo retira um objeto ritual do chão durante os
mais comuns enquanto se põem a tocar madrugada adentro. Os chefes das casas de culto
fazem o possível para agradar e cativar os melhores tocadores, já que deles depende em
grande medida o sucesso dos festejos do jarê. Por todas essas mesmas razões, batedores
costumam ser as pessoas que circulam mais livremente entre diversas casas de jarê, algo que
eu, por acabar tendo me tornado amigo próximo de muitos deles, em grande medida também
pude fazer.
Os atabaques são bastante atrativos para crianças que frequentam as casas de culto,
que se arriscam a tocá-los em determinadas ocasiões mesmo sabendo que serão em seguida
admoestadas pelos adultos, que por sua vez não o fazem de imediato tanto para conferir até
que ponto elas decidirão se arriscar como para lhes permitir algum treino com os
realizar experimentações musicais, sobretudo com percussão, que pode ser improvisada com
latas, garrafas e baldes. O gosto lhes acompanha na idade adulta, os homens principalmente
sendo responsáveis por animar qualquer reunião ou encontro mais festivo com alguma
batucada, tanto com instrumentos musicais propriamente ditos como com caixotes ou tampos
quando há presente algum membro da orquestra da cidade. Meus amigos mais ligados ao jarê,
249
Como visto no capítulo 2, seção 2.5.
250
De toda forma, meus amigos de Lençóis comentavam um pouco desejosos como batedores de um distrito
próximo costumavam ser pagos em dinheiro por seus serviços nos jarês, recebendo até R$ 10,00 por noite de
festa.
218
em ocasiões nas quais não era possível por qualquer motivo realizar essas cerimônias,
momento, de modo similar a repentes. Já nas festas das casas de culto, alguns dos batedores
diziam mesmo que só eram capazes de tocar os atabaques depois de haver ingerido alguma
cervejas, costuma ser essencial à atividade dos tocadores. Quando há bebida alcoólica
suficiente, pode-se beber ao longo do dia – no caminho para e em preparação ao jarê –, mas o
mais comum é que os batedores recebam do chefe da casa copos e garrafas com cachaça
enquanto estão sentados ao couro. Se ela acaba, são rápidos em solicitar sua reposição,
intercalando o acompanhamento dos toques bradando pedidos indiretos (“Ó o gole!”) que o
dono da casa muitas vezes faz questão de ignorar, quando se mostram muito insistentes. Meus
amigos comentavam explicitamente que bater os deixava “com fome”, mas que se tratava de
uma fome que não podia ser saciada por comida, apenas por bebidas: mais especificamente,
por “comer água”, que é, como dito, outra forma de se dizer “beber cachaça”. Comer água
repunha suas forças, permitindo que continuassem a tocar, sendo essa energia, penso, a partir
daí também redistribuída por meio das vibrações dos tambores para os demais presentes,
entidades, assim indiretamente nutridas pela cachaça, que em outras ocasiões também lhes
abastece251. De forma mais direta, contudo, beber cachaça é uma atividade empreendida
sendo considerada uma virtude específica e bastante valorizada, muitas vezes indicativa da
251
Os tocadores se inserem assim nessa economia de trocas energéticas, gastando sua energia tocando, fazendo
os tambores vibrarem, o que faz com que os caboclos balancem – o que por sua vez faz com que a casa como um
todo pulse. Esses temas serão retomados no capítulo 4, seção 4.4.
219
força pessoal que é constantemente manejada no jarê. Diversas vezes me indicaram como
grandes curadores, como o pai de Sandoval, podiam beber por meses a fio sem que com isso
como se jamais tivessem bebido, e permanecendo períodos de tempo ainda maiores sem
beber.
Meu convívio com Sandoval e seus irmãos, bem como com outros filhos-de-santo e
dos lençoenses costuma ser explicitada a todo momento, é igualmente verdadeiro que
são restritos ao domínio doméstico e vistos justamente como ações de covardes, daqueles que
masculinidade também com sua conduta, mas principalmente por meio de suas falas,
gabando-se constantemente de suas proezas sexuais (ainda que nem sempre dando nomes aos
envolvidos), tanto com mulheres quanto ocasionalmente com outros homens – desde que se
certificando o falante de com esses ter assumido somente a posição ativa. Mesmo casados,
supõem e esperam que a possibilidade de manter relações sexuais com outras mulheres
permaneça aberta, desde que jamais deixem de fornecer o sustento para seu lar. Entre si, os
questão por meio de piadas, jogos de palavras, e mesmo propostas para encontros na mata
(tentativas que podem mesmo, por vezes, resultar em intercurso). Nessa chave, o maior elogio
que se pode fazer a um homem é chamá-lo de “reprodutor”, título reservado não só àqueles
que exibem uma linhagem longa como aos quais se reconhece o potencial de tê-la, e em geral
reservado somente a homens de pele mais escura. De forma oposta, de um homem já casado
220
que não tem filhos ou que gera apenas descendentes do sexo feminino diz-se, à boca pequena,
Aqueles que viajam para outras cidades podem cultivar relações mais duradouras em
paralelo a sua vida matrimonial, e os que conhecem capitais e outros países, especialmente,
gabam-se de conquistar mulheres brancas que são sempre atraídas por sua cor. Por
frequentemente também serem alvo de ações violentas racialmente motivadas, alguns homens
afirmam explicitamente que devem buscar não ser (ou ao menos devem tentar não se portar
como) homossexuais, posto que assim duplicariam os motivos para serem alvo de
preconceito. Com exceção dos curadores, normalmente é um pouco menos comum encontrar
nos jarês homens que incorporem entidades, especialmente as femininas. Elias dizia que
muitos homossexuais acabavam com receio de fazer parte dos jarês para não ficarem
marcados pela pecha que carregavam os assumidos, o que o levava a ter reserva quanto a
mesmo considerava que um dos traços que diferenciava o jarê, como o candomblé, de outras
religiões era o fato de não discriminar homossexuais em seu meio. Com isso Elias me
indicava mais um motivo por meio do qual, afinal de contas, em sua visão e em muitos
Uma das capacidades mais estimadas por meus amigos do jarê era o que eu chamaria
palpável de algum modo intrínseca a determinadas pessoas, função de sua constituição, tanto
física como espiritual. Não esmorecer diante do cansaço, não dormir mesmo durante
cerimônias longas que varam a madrugada, manter-se firme em uma função mesmo estando
com fome ou com sede, todas eram formas de se cultivar e demonstrar uma das facetas da
221
força pessoal que mobiliza alguém252. A expressão mais comum utilizada para elogiar o
“jogar duro”. Pode-se jogar duro ao aguentar os passos de uma dança cansativa até o final, ao
caminhar por horas a fio sem perder o ânimo, ao cantar e bater palmas de maneira vivaz por
toda noite, ao acertar o ponto de uma receita difícil que outros errariam, ao não capitular
todo andamento das cerimônias de jarê, nas quais os batedores são instados a não parar de
dado às entidades presentes quando essas anunciam sua partida. Quase sem exceção, os
frequentadores dos jarês se dirigem aos espíritos incorporados pedindo-lhes que fiquem por
mais tempo (ou por vezes mesmo lhes compelindo a tanto), numa série de enunciações que
por vezes podem se tornar até mesmo somente protocolares, mas em geral sendo feitas com
espontaneidade e regozijo: “Ainda está cedo”, “não vai embora ainda, não”, “fica mais um
pouco”, “dança mais uma, caboclo”, “alguém tira outra cantiga”... Quanto mais a dança da
entidade é considerada bela e traz alegria para os presentes, mais se procura fazê-la ficar, os
tocadores podendo mesmo interromper com o rufar dos tambores as tentativas da própria de
se despedir adequadamente, medida sem a qual não poderá deixar o corpo do filho-de-santo.
determinado momento resumiu o que considerava ser a essência do culto: “Jarê é isso. Jarê é
entusiasmo”.
252
Não sucumbir diante do cansaço, mostrar-se firme e resoluto, é tão importante no jarê quanto no reisado,
prática na qual são qualidades necessárias para se ser respeitado enquanto pessoa forte e que merece
consideração, especialmente sendo forasteiro (Brantes 2007: 29-30).
253
A expressão parece-me também especialmente adequada para traduzir para o português, sem perder muitas de
suas nuanças, o título da principal etnografia já escrita a respeito do jarê, Play and struggle (Rabelo 1990).
222
3.3 Registros
Passados alguns meses do início do meu trabalho de campo, quando Sandoval, entre
outros, já estava mais bem inteirado a respeito do que eu me propunha a fazer e dos possíveis
frutos que teria minha estadia em Lençóis – a maior parte deles mais diretamente acadêmicos
–, ele me perguntou se seria possível realizar algum tipo de registro das histórias a respeito de
seu pai e do Palácio de Ogum que os filhos-de-santo mais antigos da Capivara estariam
dispostos a contar, já que ele temia que após o falecimento dessas pessoas – muitas outras já
tendo partido – não restaria ninguém que detivesse esse conhecimento. Depois de lhe expor
demanda, acertei com ele que tentaria realizar também gravações audiovisuais com
depoimentos dos que frequentavam a casa há mais tempo e das demais pessoas que haviam
sido importantes na vida de Pedro de Laura. Com essa solicitação, Sandoval desejava
expandir o material que já juntava há algum tempo a respeito da história de seu pai e da casa
de culto na qual ele próprio crescera, como fotografias, cadernos de anotações e documentos
diversos.
Dessa forma, nos últimos três meses do trabalho de campo, realizei conversas
gravadas com as pessoas que haviam sido mais próximas do pai de Sandoval, com objetivo de
posteriormente disponibilizar cópias desses registros para os próprios envolvidos bem como
momentos foi igualmente possibilitada por uma série de motivos: por ter me tornado próximo
de muitos dos filhos-de-santo da Capivara, por elas serem feitas a pedido de Sandoval e da
Associação, além de por contarem em sua execução com a presença quase constante de Elias,
que conhecia bastante bem os envolvidos – muitos dos quais já haviam conversado com ele
sobre esses mesmos assuntos diversas vezes. Elias também auxiliou na elaboração de um
223
roteiro para a condução dos diálogos, modificado continuamente entre uma gravação e outra
realidade que alguns dos participantes dessas conversas e várias outras pessoas da cidade já
conheciam bastante bem, Lençóis e outros locais da Chapada Diamantina já tendo sido palco
do culto que pudessem ser registradas, sempre se lembrando dos participantes que tiveram
suas imagens gravadas e que podem ser vistos bem mais novos nas obras em questão255. Os
registros audiovisuais feitos na região apresentam a realidade local e são motivo de grande
orgulho para a população, que sabe que por meio deles seu ambiente e seus modos de vida se
tornarão conhecidos até em locais muitos distantes, incluindo mesmo outros países, algo que
consideram mais do que esperado por ser uma forma de disseminar em lugares longínquos a
admiração que sentem pelo local onde moram – atraindo também mais visitantes para a
Chapada. A participação em filmes também concedeu a alguns dos nativos que neles atuaram
a possibilidade de viajar e conhecer pessoas de outros países com quem por vezes acabaram
254
Foi igualmente fundamental a participação de Danilo, um jovem operador de câmera que trabalhava na
Secretaria de Cultura – órgão também responsável pelo empréstimo de parte do equipamento utilizado – e que
também tinha relações de parentesco com alguns dos entrevistados. Ver foto 61 no anexo III.
255
Entre algumas das produções cinematográficas realizadas na região foram lançados os filmes Diamante bruto,
de Orlando Senna, em 1977; A lenda do Pai Inácio, de Pola Ribeiro, em 1987; Cascalho, de Tuna Espinheira,
em 2004; Brilhante, de Conceição Senna, em 2005; Besouro, de João Daniel Tikhomiroff, em 2009. A cidade de
Lençóis e sua história serviram de inspiração para a novela Pedra sobre pedra, em 1992, de autoria de
Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, com parte de suas cenas gravada efetivamente na
Chapada.
224
estabelecendo famílias256. Alguns dos habitantes de Lençóis possuem cópias desses filmes em
suas casas, que circulam para serem ocasionalmente assistidos pelos demais.
De forma mais corriqueira, documentários de menor porte costumam ser vez ou outra
filmados na cidade, e sua produção é encarada com desembaraço pelos habitantes. Muitos
deles são realizados por alguma instituição local, seja uma associação, empresa ou a própria
prefeitura, quando dispõem de equipamento e ilhas de edição, caso mais comum entre as que
são Ponto de Cultura257. Os próprios envolvidos com o jarê dificilmente têm acesso direto a
meios de produção audiovisual, sendo via de regra encarados somente como objeto de
às quais Elias igualmente chamava atenção, a respeito dos usos públicos que teriam as
imagens obtidas junto aos filhos-de-santo, o tipo de retorno (financeiro ou de outra espécie)
disponibilização de cópias para uso próprio), bem como o grau de decisão que teriam ou não
no processo criativo – lembrando-lhes igualmente que nada isentava de saída o trabalho que
eu mesmo fazia e que podia ser alvo das mesmas inquietações. De todo modo, o
consentimento expresso dos envolvidos nas filmagens não deixava de lado uma atitude
específica que as pessoas adotam ao saberem que estão sendo filmadas, e que não faz sentido
fazia parte dos muitos momentos em que os filhos-de-santo se deixavam fotografar pelos
256
Sendo o mais emblemático o caso da protagonista do filme Diamante bruto: tendo interpretado uma
personagem que se apaixona por um membro da elite branca que retorna à cidade após tê-la deixado na infância,
a atriz termina realizando o sonho de se casar com um europeu, como conta no documentário Brilhante.
257
Entre os exemplos recentes encontram-se Jardim de plástico, de Delmar Araújo, em 2008, e Curandeiros do
jarê, de Marcelo Abreu Góis, em 2010.
258
Aquilo que na fotografia de Pierre Verger só por vezes é possível entrever, em outras situações pode se tornar
bastante explícito (Souty 2007: 69). Qualquer seja sua intensidade, essa atitude de “profilmia” pode permitir o
desencadeamento de determinados acontecimentos no trabalho de campo, devendo igualmente ser integrada
como mais um dos dados da observação (Opipari 2004: 23-24).
225
próprios amigos ou por visitantes de suas casas – mais ainda quando pediam, eles próprios,
cerimônias do jarê, algumas casas de culto chegando a expô-las em seus próprios salões,
como já foi mencionado, a captação de imagens por visitantes é sempre uma questão
fotografarem nenhum momento da festa, outros que restringem somente alguns instantes de
grandes curadores só muito raramente permitiam que fossem tiradas fotos durante a realização
dos jarês, simultaneamente afirmando que acreditam viver hoje num mundo que permite e
possuem câmeras fotográficas digitais, apesar disso utilizadas com bastante frequência nas
ocasiões festivas de suas próprias casas, seguindo a diretriz geral segundo a qual a
possibilidade de se tirar fotografias depende antes de tudo da relação pessoal que se tem com
os membros de uma casa de culto, especialmente com sua liderança. Nos primeiros jarês aos
quais pude comparecer, fui instruído a não levar nenhum aparelho fotográfico.
ser fotografados. O aumento do convívio, com o tempo, fez com que eu pudesse retratar
praticamente qualquer ocasião pela câmera, cuja presença passou a ser, nos últimos meses do
emprestada com regularidade aos meus amigos ligados às casas de culto para que os próprios
o tempo deveu-se também tanto às utilizações que teriam no futuro como à possibilidade de
compilações das fotografias que tirava durante um jarê e entregá-las gravadas em formato
digital ao dono da casa em que haviam sido tiradas. Além disso, foi possível imprimir cópias
das melhores fotos e entregá-las aos retratados em inúmeras ocasiões após as festas259. As
visitas motivadas pela entrega das fotografias após um jarê passaram a ser rotineiras e sempre
festa, oferecidas nessas ocasiões num ambiente distinto e duplamente afastado daquele das
frequentadores que haviam sido fotografados nos jarês em geral comentavam com maior
quais, por razões diversas, não haviam se pronunciado260. As fotografias também ofereciam
situações que geravam reações das mais diversas, da alegria ao pesar, passando quase
invariavelmente pela surpresa. Observando essas fotografias, os membros dos jarês faziam
notar como seus corpos sofriam alterações visíveis quando manifestavam os espíritos, não só
no semblante como em sua própria constituição: podiam se reconhecer mais fortes e robustos,
de fotografar e entregar cópias das imagens aos filhos-de-santo não se deu sem que os
259
A impressão das cópias em papel fotográfico só foi possível graças ao trabalho de Calil Neto, fotógrafo
paulista que visitou a Chapada Diamantina com regularidade durante muitos anos antes de decidir morar em
Lençóis, onde permaneceu por 18 anos, tendo estabelecido um laboratório na cidade. Calil é igualmente o autor
de muitas das fotos que se encontram no anexo III, cultivando há algum tempo o hábito de fotografar cerimônias
de jarê com a permissão dos filhos-de-santo da região com quem já firmara amizade, tendo igualmente se
tornado membro da Associação do jarê.
260
De modo similar ao que ocorreu na pesquisa feita em Nova Redenção com os comentários oferecidos
mediante a reprodução pela pesquisadora das gravações sonoras dos rituais que havia efetivado (Rabelo 1990:
104). O hábito de compartilhar fotografias com os retratados contribui para a geração compartilhada de um saber
etnográfico (Souty 2007: 73-75, 125-126).
227
fotografados, por exemplo, foi elaborada após eu ter sido explicitamente indicado a não
entregar imagens de determinada pessoa para outra que as havia solicitado, já que em função
de desavenças passadas o objeto poderia ser utilizado para fins sinistros. Já sabedora dessa
orientação, a primeira pessoa passou além disso a evitar estar posicionada próximo à segunda
durante as festas, pedindo-me que evitasse os cliques nos momentos em que não fosse
possível manter essa distância – como pode acontecer, por exemplo, no caso de uma saudação
nos lares dos filhos-de-santo, acrescidas às por eles já possuídas, de todo modo sendo
de uma qualidade especial ligada à própria força do espírito retratado. Observar as fotografias
que podiam ser tiradas nos mais diferentes momentos, mas principalmente durante os jarês,
querendo também se certificar, em seguida, que eu havia guardado cópias para uso em meu
trabalho. Explicitamente, meus amigos contavam tanto com a prudência de não tornar
261
Prática comum no universo das religiões de matriz africana (Souty 2007: 109, 124).
262
Além das imagens que se encontram no anexo III, expus algumas das fotografias que fiz em Lençóis na 27 a
Reunião Brasileira de Antropologia, o conjunto tendo recebido o 1 o lugar no V Prêmio Pierre Verger de Ensaio
Fotográfico, na modalidade de júri dos pares.
228
uma prática à qual seu pai dera início, anotando num caderno os nomes das pessoas que
visitavam o local e as que ali realizavam algum trabalho ritual, lamentando não ter encontrado
parecido, além de se interessarem por todo tipo de registro que fosse feito em suas casas.
Alguns deles se acostumaram a revisar as cerimônias que tinham acontecido em seus terreiros
por meio principalmente das fotos e vídeos que lá eram por vezes realizados, bem como
demonstrando alguma curiosidade por livros que descreviam detalhes dos jarês de
antigamente. Alguns dos filhos-de-santo de quem fiquei mais próximo mencionaram também
que, por não terem sido alfabetizados – “não terem letra”, como dizem –, não puderam
registrar eles próprios informações preciosas em sua vivência nos cultos, lamentando
notadamente o fato de não poderem ter anotado letras de cantigas que por vezes gostariam de
ter mantido vivas. Comentários como esse serviram para alavancar a iniciativa, que já se
esboçava, de me reunir com amigos para elaborar uma pequena coletânea com letras de
cantigas de jarê.
entre os nativos da Chapada, seja nos reisados, em brincadeiras de roda, festas com sambas e
chulas, momentos de devoção a santos. Ainda que algumas das cantigas ouvidas nessas
ocasiões sejam cantadas durante os jarês, existem muitas específicas a essas festividades e que
nem sempre serão cantadas longe da realização de uma cerimônia ou por pessoas que não
possuam conexão com uma casa de culto263. Alguns dos filhos-de-santo possuíam gravações
263
Não parece ter havido entre os garimpeiros da região o hábito de cantar canções específicas de trabalho, como
os chamados “visungos” existentes no garimpo de Minas Gerais (Toledo 2001: 22-23). Um antigo garimpeiro
229
em fitas cassete feitas em jarês no passado, que guardavam com muita estima mesmo por
vezes sem possuir qualquer meio de reproduzi-las. Sandoval havia certa vez mobilizado a
gravado em ótima qualidade264. Apesar de eu ter utilizado um gravador digital para gravar o
ambiente sonoro ao longo de uma ou outra festa, com consentimento de seus frequentadores,
a elaboração da coletânea de letras das cantigas de jarê foi um trabalho conjunto realizado
durante algumas semanas junto com os filhos-de-santo. Além de Elias, outros de meus amigos
mais próximos contribuíram com as letras para uma primeira versão, que foi em seguida
impressa e levada para os chefes das casas para que conferissem sua correção e indicassem
outro modo poderia se estender ainda mais, optou-se por imaginar uma sequência de cantigas
que seria ouvida num dos festejos anuais do Palácio de Ogum, eventualmente somadas a
cantigas das cerimônias de aberta e fechada da casa, bem como o dorosã, cantiga própria da
Capivara265.
suas letras ou transmiti-las a outrem, ainda que elas não sejam cantadas displicentemente.
Mesmo fora de ocasiões rituais, as cantigas raramente são enunciadas sem que sejam
cantadas, e na íntegra, o que inclui repeti-las algumas vezes, do mesmo modo como se faz
bastante ligado ao jarê contou-me certa vez, depois de já termos nos tornado próximos, a respeito de um episódio
no qual ele e outros amigos chamaram, não intencionalmente, um encantado para uma frente de trabalho ao
cantarem cantigas de jarê de modo displicente. A entidade foi devidamente apaziguada, perdoou-os pela
indiscrição e terminou por lhes indicar que em pouco tempo encontrariam um diamante no local, o que de fato se
confirmou.
264
A iniciativa foi feita em conjunto com a fotógrafa Marisa Vianna, que se encontrava na cidade de Lençóis e
tirou fotografias no Palácio de Ogum. Para a gravação do disco ela convidou o conceituado produtor musical
Roberto Santana, responsável por discos de diversos artistas de renome. Uma cópia desse disco encontra-se ao
final do anexo IV.
265
Depois de terminada, a coletânea foi impressa e cópias foram entregues a todas as pessoas que ajudaram em
sua elaboração. Uma versão atualizada pode ser encontrada igualmente no anexo IV.
230
num jarê. Essa atividade é sempre cercada de cuidados determinados, função da hora do dia
encontra (não sendo propício cantá-las após as fechadas dos terreiros), das pessoas que estão
próximas. Não se arrisca cantar determinadas cantigas fora da ocasião ritual adequada, em
cantadas para o início de um jarê. Entoar cantigas também gera, via de regra, algum tipo de
conversa em torno das mesmas, seja sobre seu significado, seja sobre memórias que
despertam, seja sobre os efeitos que elas têm sobre outras pessoas. A discussão em torno das
cantigas suscita diversos sentimentos e emoções, já que elas podem fazer vibrar ressonâncias
nos filhos-de-santo, podendo fazer com que fiquem emocionados, recordem-se de certos
momentos, pessoas ou entidades. O ato de cantá-las por inteiro e repetidas vezes não só
auxilia didaticamente sua memorização como leva os ouvintes a acessar estados nos quais
lembranças e sensações específicas são suscitadas, motivo pelo qual as cantigas são também –
cerimônias para o encadeamento adequado das cantigas uma após a outra, processo chamado
de “tirar” ou “puxar cantigas”, que deve servir à continuidade das danças e manifestações dos
espíritos. Entretanto, os estados afetivos que os frequentadores dos jarês assumem diante das
cantigas não se devem somente à evocação de um sentimento ou vivência anterior, não têm a
ver somente com uma rememoração: as pessoas são afetadas diferencialmente pelas cantigas
por elas mobilizarem (e de certa maneira também serem) forças específicas ligadas às
entidades, energias que reverberam nos filhos-de-santo. Meus amigos comentavam as formas
231
pelas quais, quando uma cantiga específica é cantada para um caboclo, pessoas que possuam
uma conexão maior com o caboclo pressentem-na, mesmo que não a estejam ouvindo.
Contaram-me a respeito de uma jovem que nem sempre ia aos jarês, mas que invariavelmente
instante em que se cantava para a entidade que nela podia se incorporar. Falavam também a
respeito de como, caso estivessem em alguma viagem em outra cidade, costumavam ser
lembrados de datas comemorativas porque antes mesmo de olhar num calendário as cantigas
Há certas cantigas, diziam meus amigos, que exercem sobre cada um considerável
influência, podendo não ter qualquer efeito perceptível sobre outras pessoas, de acordo com o
grau de participação que músicas e filhos-de-santo compartilham. Essa proximidade pode ser
uma característica inata a uma pessoa, sendo comum que se comente como uma cantiga
similar os membros de uma mesma família carnal. Essa intimidade pode ser também
adquirida por meio da aproximação de um filho-de-santo a uma casa de culto e seus membros,
o iniciado tornando-se mais sensível à ação de cantigas ligadas ao chefe da casa e seus
padrinhos, tanto os de obrigação como os demais. Com o passar dos anos, determinadas
cantigas e pessoas podem acabar se justapondo de forma a se tornarem cada vez mais
rituais. Quando cantigas dessa sorte são entoadas, pode-se perceber como os olhares já se
voltam para o filho-de-santo em questão, sua manifestação sendo – e com isso também se
incorporar um espírito mas o início do processo demonstra-se difícil e se estende por mais
tempo do que esperado, pode-se recorrer a cantigas consideradas infalíveis para que aquela
pessoa em específico seja tomada por aquela entidade. De muitas formas distintas, pode-se
232
então dizer que as cantigas fazem parte também da composição das pessoas. Enquanto
dissesse: “Essa cantiga é a cara de fulano...”, “Essa música é todinha beltrano...”, “Essa outra
relações entre as pessoas e entre elas e suas entidades, em outro sentido é bem provável que
tenham sido também compostas, concebidas, por eles. Elias gostava de insistir comigo numa
distinção que fazia quando eu me referia de maneira geral às canções entoadas nos jarês como
“músicas”, dizendo que era mais adequado chamá-las sempre de “cantigas”, evidenciando a
que de acordo com ele seria a melhor designação para as canções cujas letras não eram em
português, algumas podendo ser em iorubá, ele arriscava. De toda forma, as similaridades
rítmicas entre algumas cantigas e alguns toques, bem como as proximidades fonéticas e
transformações pelas quais parecem ter passado267, somam-se a outro fato que permite
processo do qual o próprio jarê parece ter procedido. Por mais de uma vez, presenciei cantigas
que tiveram suas letras improvisadas no próprio momento de sua execução, mais comumente
quando quem a cantava – em geral uma entidade manifestada, mas podendo também ser um
chefe de casa de culto – queria com ela passar uma mensagem, que poderia ser mais direta ou
indireta, na forma dos já mencionados sotaques. Ainda que esse primeiro fosse o caso mais
frequente, era também possível que surgisse uma cantiga original como forma de adoração
266
Salvo em raras ocasiões nas quais se deseja transmitir uma mensagem de maneira muito clara, a
inteligibilidade ainda assim não é, de todo modo, tão importante para a execução das cantigas quanto a força
com que se canta e os efeitos que se espera obter com elas.
267
Reconhece-se particular pendor para o improviso musical nos garimpeiros ao menos já desde o início do
século XX (Moraes 1963: 126-127 nota 5), acompanhado por um gosto pelos jogos de palavras e pelas
transformações por proximidades fonéticas (Senna 1998: 120-121; 130). Igualmente, menciona-se que eventos
históricos foram amalgamados pelas chulas e cantigas de jarê, que os absorveram e transfiguraram (Senna 2002:
242).
233
casos, o cantor que puxava a nova cantiga fazia questão de caprichar em sua pronúncia de
modo a ensiná-la aos presentes, que iriam repeti-la tanto no momento em questão como
possivelmente em outros jarês que frequentassem futuramente. Ouvindo-as nos dias de hoje,
alguns filhos-de-santo cogitavam que algumas dessas cantigas tivessem surgido como
adaptações ou mesmo traduções possíveis dos antigos toques em iorubá trazidos pelas nagôs,
na mesma chave das conformações do culto que resultaram no jarê como existente hoje268.
sua estrutura de execução, nunca devem ser entoadas apenas uma única vez, devendo ser, via
de regra, cantadas três, cinco ou sete vezes, como afirmam os filhos-de-santo, na prática
sendo repetidas até o momento em que quem as puxou indique com um gesto o silenciar dos
acompanhado por mais uma única outra pessoa, para serem em seguida repetidas – ou
continuadas, no caso das músicas mais extensas – pelo restante da audiência, que pode a partir
espera-se que o chefe da casa tire as cantigas a serem reproduzidas, especialmente por ser ele
o responsável pela definição da sequência dos caboclos a serem louvados pelas músicas, que
poderá variar de acordo com cada casa e cada ocasião ritual. Outras pessoas podem também
dar início a uma cantiga, desde que elas sejam dedicadas à mesma entidade para a qual se está
comum que ela própria puxe suas cantigas antes de começar a dançar, a audiência então
entidade ou o dono da casa – ou alguém que aja a pedido deles – deve puxar as chamadas
268
Como sugerido no capítulo 2, seção 2.1.
234
cantigas de despedida269, que irão marcar a preparação para o fim de uma incorporação. Após
todos os caboclos terem se despedido, é novamente o chefe da casa ou alguém por ele
instruído que irá tirar uma cantiga de chamada, incentivando a incorporação de novas
Nem toda cantiga é aceita do mesmo modo pelos presentes, algumas podendo ser
recusadas pelas entidades ou pelos tocadores, caso não aprovem seus ritmos ou suas letras, no
caso de cantigas que considerem ofensivas ou que não sejam de seu conhecimento, quando se
pede então que outra, de seu agrado, seja tirada. Cantigas para entidades distintas jamais
interrompidas caso alguém puxe uma que não se insira na sequência em execução, processo
que de toda forma se dá sem grande comoção ou repreensão a quem houver se equivocado.
outras ainda que podem ser cantadas indistintamente para qualquer espírito. Há cantigas que
podem ser tiradas como forma de se fazer uma promessa a uma entidade, e outras para se
solicitam que se espalhem brasas no salão sobre as quais os caboclos irão dançar até que
apaguem270.
cotidiano, como preparar o alimento ou lavar roupas, ou em caminhadas longas para passar o
tempo. Especialmente nessas ocasiões, os filhos-de-santo aproveitam para conversar uns com
269
Equivalentes aos “cânticos de aunló”, como são chamados no candomblé (Bastide 1958: 39).
270
Como será descrito no capítulo 4, seção 4.3.
235
os outros a respeito delas, seus significados quando usadas como mensagens e seus efeitos
compartilhar seu conhecimento. Conhecer um grande número de cantigas, bem como suas
aplicações, e ser capaz de mobilizá-las com os efeitos desejados durante os jarês, são
pessoal, da qual de todo modo essas qualidades derivam. As cantigas também são alvo de
considerações estéticas, muitas delas sendo estimadas particularmente belas, avaliações que
também se ligam à chamada natureza de cada pessoa. A execução das cantigas em coro
também podia ser pensada como uma atividade especialmente admirável, a qualidade de sua
desempenho contínuo e, fundamentalmente, animado271. Como será visto mais adiante, uma
última fonte apontada pelos membros dos jarês da qual podem surgir cantigas novas – já que
composição pessoal, e que possivelmente abriga a maior quantidade das canções que se
perdem com o tempo por às vezes nunca chegarem a ser executadas uma segunda vez, só é
271
A apreciação da harmonia das cantigas do jarê se mostrou bastante similar à que é feita no reisado em outra
parte da Chapada Diamantina (Brantes 2007: 36). Ainda que as mulheres fossem as principais responsáveis pela
entoação das cantigas, não era incomum que os homens também participassem, por mais que, quase
ordinariamente, o timbre das vozes mais graves acabasse sendo ofuscado pelo das mais agudas. A capacidade de,
e o gosto por, acompanhar muitas das cantigas que eu com o tempo acabei demonstrando geravam bastante
admiração e satisfação por parte de alguns filhos-de-santo – de modo similar ao que ocorreu com outro
pesquisador que se dedicou aos cultos de matriz africana no interior da Bahia (Brazeal 2007: 7). As
características que eu cultivara por ter alguma formação em canto orfeônico podiam, de acordo com meus
amigos, indicar uma proximidade com as entidades das águas, das quais fazia parte a Sereia, tendo também me
rendido ocasionalmente como apelido o nome de um cantor brasileiro bastante conhecido.
236
3.4 Sonhos
Festas que no futuro serão motivo de novas lembranças continuam a ser realizadas
naquela que é a mais antiga casa de jarê ainda em funcionamento de que se tem notícia na
Chapada Diamantina, o Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, exceção entre as demais por
ter sobrevivido longamente ao falecimento de seu criador. Como mencionado, sua estrutura
longo de um caminho que liga essa cidade à de Andaraí, ao lado do Rio Capivara, que
igualmente empresta seu nome à casa de culto no dizer rotineiro de seus frequentadores.
Historicamente, a estrada ligando as duas cidades foi por um período em torno de um século a
única forma de conexão de Lençóis com o resto do estado e o litoral, tendo caído em desuso
capitais. O caminho entre Lençóis e Andaraí chegou a ser alvo de alguma manutenção na
sua proibição na metade dos anos 1990. O trecho de pouco menos de dez quilômetros da sede
do município até o Palácio de Ogum não tem grande interesse turístico, feito ao pé da serra,
com paisagem sem grandes alterações de relevo e sem vistas amplas, sendo de todo modo
potencial diamantífero do Rio Capivara foi reconhecido desde bastante cedo pelos
272
O Rio Capivara é um dos tributários do São José e alimentado pela Cachoeira da Fumaça, uma das atrações
turísticas visualmente mais impressionantes da Chapada Diamantina, segunda mais alta queda d’água do Brasil
(Funch 2007: 84, 136 nota *, 139, 142-143).
273
À exceção de algumas construções na área da Estiva, que se consolidou como distrito de Lençóis, e na
Capivara, dos demais povoamentos nos quais havia garimpo restaram apenas ruínas (Acauã 1847: 252; Pereira
1910: 51; Ganem 2001: 46; Araújo, Neves & Senna 2002: 136 nota 24, 146-147 nota 57).
237
cercado também por grandes bancos de areia, resultado direto da exploração diamantífera ao
suas escavações da área do terreiro, não tendo ali encontrado senão carvão e pedras sem valor,
além de atraírem para si uma série de infortúnios. Achando por bem não arriscarem a ira de
muitos deles tendo inclusive posteriormente se tornado iniciados da casa e encontrado sorte
garimpando em outros lugares. Em função disso, a área próxima à casa de culto encontra-se
com vegetação mais preservada se comparada a suas redondezas, os muitos pés de manga que
casa é margeado por uma cerca de arame que mais serve para demarcar seus limites do que
para impedir qualquer forma de ingresso: para tanto são empregadas outras formas de
os exus e demais espíritos que habitam tanto o caramanchão como as áreas abertas em volta
da casa de culto, aos quais se deve saudar ao adentrar o terreno. Em seguida, todos os
visitantes da Capivara são também recebidos, na escada do lado de fora da casa e de costas
para sua porta, por um dos membros da comunidade de culto, que encosta sobre suas cabeças
uma caneca com água, pronunciando palavras específicas, jogando em seguida o líquido por
entidades diante do quarto de santo, após a qual uma pessoa pode se calçar e voltar a
conversar normalmente.
muito diferente da que Pedro de Laura havia inicialmente encontrado, ao comprar o terreno de
seu antigo proprietário. Inicialmente uma casa com poucos aposentos e com cobertura de
238
palha, às ampliações que o curador fez somaram-se outras nos anos recentes, resultando numa
construção que hoje conta com mais de 20 cômodos, como gostavam de lembrar, e com
mangueiras implementada pelos próprios filhos-de-santo. Como em toda casa mais afastada
da sede do município, não há eletricidade disponível e a iluminação à noite é feita por velas e
possibilidades de obter alguma forma de geração de energia elétrica que pudesse alimentar a
casa, inspirando-se nos painéis solares que alguns hotéis de Lençóis possuíam, acabando
contudo desestimulado pelos valores elevados e pela extensa burocracia envolvida na remota
pagodô, ao lado do principal acesso à casa, encontra-se escrito, da mesma forma como deixou
quantidade dos frequentadores da Capivara nos dias de seus principais festejos, sendo muito
quando há jarês. Apesar das dificuldades e percalços desde o falecimento do mais famoso
curador lembrado em Lençóis, hoje em dia o Palácio de Ogum mantém a realização de quatro
grandes festas anuais, honrando o pedido feito por uma das entidades de Pedro de Laura antes
de sua morte. Como mencionado anteriormente, a liderança da casa ao longo de meu trabalho
de campo consistia numa espécie de delicado triunvirato, do qual faziam parte o curador então
responsável pela casa, que atende por Pai Mussum, o proprietário material do terreno e
presidente da Associação do jarê, Sandoval, bem como, por fim, sua tia materna, uma das
239
culto, já que se havia acordado que mais nenhum sacrifício, ou “corte”, como costumam
dizer, seria realizado nos limites do terreiro que pertencera a Pedro de Laura274. Por ser o
zelador místico da importante casa e uma pessoa bem quista por muitos dos habitantes da
cidade ligados ao jarê, Mussum começara a ver surgirem filhos-de-santo em potencial que
um terreiro próprio num local distante menos de um quilômetro do Palácio de Ogum, subindo
a serra.
por Pedro de Laura, no dizer de um de seus filhos-de-santo um verdadeiro “papa” daquela que
o pai de Sandoval celebrava, muitas vezes com toques ao longo de diversos dias seguidos. Se
atualmente ainda havia alguma expectativa sobre a possibilidade de um jarê se estender por
dois ou mais dias, a esperança sempre vinha acompanhada da lembrança do tempo de Pedro,
no qual por vezes se chegava mesmo a nove noites consecutivas de festas em louvor às
entidades. As cerimônias de Pedro de Laura eram consideradas tão imperdíveis que mesmo
tendo chegado a dar à luz no próprio terreiro. A memória do curador falecido ainda permeia
dorosã –, seja com a visão da cadeira na qual ele se sentava e da qual conduzia os jarês, seja
274
Por motivos que serão detalhados posteriormente nesse capítulo, na seção 3.5.
240
ainda com os primeiros raios da manhã ao invadirem o salão através dos cobogós que o
formas, por muitas das pessoas que lhe foram mais próximas em vida, narradas tanto de
maneira espontânea como fazendo parte das conversas filmadas que realizei a pedido de
extremo oeste da Chapada Diamantina, em 16 de abril de 1928, Pedro Florêncio Bastos desde
pequeno era conhecido como Pedro “de Laura”, por ser este o nome de sua mãe, que o criou
sozinha depois de terem se mudado para Lençóis. Alguns de seus filhos-de-santo disseram
que desde muito novo Pedro já exibia sinais de que nascera com um dom especial que o
qualificava sobremaneira para se tornar um curador, uma capacidade pessoal que além de
tudo foi ampliada não só pelo passar do tempo como pela trajetória que acabou trilhando.
Longe de configurar uma opção pessoal, contudo, afirma-se que Pedro, mesmo reconhecendo
seu potencial, jamais desejou se tornar um pai-de-santo. Poucos sabem como se deu
efetivamente sua iniciação – se é que ela se fez –, sendo por vezes mencionado o nome de
uma possível mãe-de-santo, Maria dos Mabaços, do povoado de Santa Luzia das Gamelas, no
município de Andaraí, para a qual Pedro poderia ter sido levado para ser curado de uma
É ponto pacífico entre aqueles que o conheceram que o aprendizado de Pedro de Laura
Bumba – avô materno da companheira de Elias. Líder e fundador da atual Vila do Remanso,
da sede do município, Manezinho Bumba havia sido iniciado por Zé Rodrigues, curador de
Lençóis considerado o maior mestre do jarê que já existiu na Chapada Diamantina, numa
linhagem da qual Pedro de Laura de certo modo passou a fazer parte ao frequentar a casa do
241
Remanso ainda muito jovem275. Passados alguns anos, contam as descendentes de Manezinho
Bumba, durante uma viagem para a cidade de Andaraí, este cometeu o erro de se deitar com
uma mulher, algo que sua sina de curador o impedia de fazer mesmo com a própria esposa.
Durante a viagem de volta, metade de seu corpo ficou marcada por terríveis chagas cutâneas,
que se alastraram da mesma forma pela metade equivalente do burro de carga em que vinha
montado. Passados pouco mais de 20 dias do ocorrido, ambos vieram a falecer. Após ser
cumprido o período de luto, a viúva de Manezinho Bumba passou o comando da casa para
Pedro de Laura, que sempre se destacara enquanto um de seus frequentadores. Ainda muito
jovem, Pedro fez seus primeiros filhos-de-santo no Remanso, alguns dos quais conheci
morando na cidade de Lençóis. Uma das provas marcantes de que Pedro se tornaria um pai-
de-santo de grande renome, atestando o desenvolvimento da força pessoal com a qual havia
sido agraciado ao nascer, foi dada sete anos após a morte de Manezinho Bumba, quando
curador276. Os parentes carnais de Manezinho Bumba foram convocados para atestar sua
última aparição e confirmar que de fato se tratava do falecido, que se apresentou diante deles
como se ainda estivesse vivo, excetuando-se o fato de seus pés não tocarem o chão277. A
aparição ocorreu junto ao cruzeiro do lado de fora do terreiro, explicaram aos presentes, já
que Manezinho Bumba não mais poderia adentrar o salão de sua casa por terem sido ali
realizados trabalhos para entidades da esquerda, uma linha com a qual ele próprio não lidava
em vida.
consultas em sua residência na cidade de Lençóis, além de sessões que alguns dos seus filhos-
275
Provavelmente desde os 14 anos, disseram alguns de seus filhos-de-santo, outros arriscando a idade de 17.
276
Cuja pronúncia na região pode ser também “serrum”. O ritual em si será mais detalhado no capítulo 4, seção
4.5.
277
Característica comumente associada à morte e aos mortos no jarê (Senna 1998: 227).
242
de-santo caracterizavam como de “mesa branca”. No mesmo local ele jogava búzios – técnica
que para ser adquirida necessitou da realização de uma penosa obrigação ao longo de dias
recluso, diz-se que com os olhos vendados, sem comer, beber ou dormir – que podiam indicar
a uma pessoa a necessidade de realizar algum trabalho mais elaborado, ou ainda prescrevia
remédios naturais feitos com ervas medicinais em misturas específicas. Ao mesmo tempo,
Pedro continuava a exercer o ofício de pedreiro que havia aprendido do mestre Miguel
Ângelo Guerreiro, vindo com o tempo a se tornar mestre-de-obras e, por sua grande destreza,
delicados. Com o tempo, Pedro de Laura passaria adiante a técnica que havia aprendido e
refinado, sendo responsável pelo ensinamento de alguns dos melhores pedreiros até hoje em
atividade na cidade. Muitos entre aqueles com quem trabalhava viriam a se tornar também
seus filhos-de-santo, e o considerável número de pessoas que reunia em torno de si, aliado ao
encerramento das atividades na casa do Remanso, fizeram com que Pedro procurasse um
terreno para fundar uma casa de culto, dessa vez observando seus procedimentos de abertura
desde o início, plantando sua própria roça. A possibilidade de comprar o terreno próximo ao
Rio Capivara, no qual hoje se encontra sua casa, o Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra,
surgiu com o falecimento do antigo proprietário do local, Arão, ainda próximo do ano de
Ao longo das décadas seguintes, os inúmeros filhos-de-santo feitos por Pedro de Laura
comporiam em torno dele uma extensa família mística. Imaginando que seria possível criar
um quadro genealógico de seus iniciados, me reuni com Sandoval, sua tia e outros filhos-de-
santo da Capivara, apenas para descobrir que se tratava de uma tarefa inglória, pois descobri
278
Apesar de ser difícil precisar uma data exata, um de seus filhos-de-santo possuidor de ótima memória afirma
que Pedro já realizava jarês na Capivara no ano de 1955. Os que arriscam a antiguidade ainda maior da casa
mencionam o ano de 1949 para o falecimento de Arão – que alguns dizem também poder ter sido um curador,
tendo erguido no local uma casa de apenas um cômodo na qual trabalhava – e o início do reinado de Pedro de
Laura.
243
então que todas as pessoas para quem um curador havia realizado alguma forma de ritual
podiam ser consideradas filhos-de-santo dele, totalizando mais de 200, conforme estimaram.
Disseram-me que muitos dos habitantes de Lençóis já haviam recorrido a Pedro para
realização de trabalhos iniciáticos, ainda que provavelmente nem todos que o fizeram
desejariam ser identificados, motivo que levou a confidenciarem alguns nomes sob a condição
de que não fossem registrados publicamente. Praticamente todos os líderes das casas de culto
curador chamado Zeca do Barbosa, do município de Itaetê, no leste da Chapada, que se tornou
também pai-de-santo de alguns dos filhos de Pedro após o falecimento deste. Muitos dos
filhos carnais de pessoas iniciadas por Pedro de Laura foram acostumados a lhe chamar de
avô, instruídas por seus pais, amalgamando e ampliando a família que ele cultivava com base
país, alguns tendo sido iniciados quando de passagem por Lençóis, outros ainda em suas
próprias cidades. Pedro era capaz de mobilizar determinadas entidades para produzir efeitos
por vezes a distâncias de milhares de quilômetros, em geral por meio de fotos daqueles que se
beneficiariam dos trabalhos rituais, uma das muitas capacidades pelas quais seus filhos o
Seus filhos-de-santo contam que Pedro de Laura tinha uma voz aguda, com a qual
puxava as cantigas na condução dos jarês, e que sobressaía ainda mais quando dava alguma
gargalhada. Elias, que compartilhava de um tom de voz parecido e da similar “gaitada”, como
são chamadas as risadas com esse estilo estridente em falsete, me disse que se lembra bem do
modo como Pedro ria, algo que ocorria com grande frequência em função de seu bom humor
e propensão a travessuras279. Mais ainda do que sua voz, os iniciados da Capivara se lembram
279
A gaitada é igualmente uma característica distintiva dos raros homossexuais assumidos da cidade, parte
também de uma postura de altivez e ousadia que cultivam para combater o preconceito de que inevitavelmente
são vítimas.
244
da grande aptidão que Pedro exibia para a dança, especialmente quando manifestava uma de
suas entidades femininas, provocando a inveja das filhas-de-santo e a admiração dos homens,
conforme estes me diziam, embevecidos: “Parecia uma mulher mesmo dançando”. As pessoas
mais próximas a Pedro comentaram, com a mesma sobriedade com a qual ele parece ter
sempre lidado com o assunto, a respeito de sua preferência por se deitar com homens, ainda
que alguns afirmassem que não era impossível que também tivesse dormido com mulheres.
De qualquer forma, mantinha uma postura reservada que transmitia a suas filhas-de-santo a
segurança de que não se aproximaria delas sexualmente, receio que paira sobre praticamente
qualquer curador do sexo masculino, mesmo que seja casado280. Por ser homem, de todo
modo, a ele estava garantida a qualidade necessária para lidar satisfatoriamente com aspectos
rituais com os quais as mulheres não devem se haver, como sacrifícios e a alimentação do
povo da porta. O fato de jamais ter se casado era igualmente festejado por suas filhas-de-
santo, que diziam que curadores com esposas podiam se tornar sobremaneira sujeitos a elas e
a sua família carnal, enquanto Pedro era constantemente dependente de suas filhas-de-santo,
que assim amenizavam, com uma liberdade maior, a obrigação de servir a seu pai – algo que
de toda forma costumavam fazer com gosto. De todo jeito, Pedro de Laura acabou por deixar
um herdeiro material, ao “pegar para criar”, ou seja, adotar informalmente o filho biológico de
Sandoval foi criado por Pedro, assim como por Dona Laura, que passou a considerar
como avó, desde muito novo, não tendo senão ouvido falar a respeito de muitas das maiores
façanhas protagonizadas por seu pai no passado, em seus tempos áureos de curador. Os mais
antigos filhos-de-santo da Capivara, conjunto que incluía muitos daqueles que Pedro iniciara
ainda no Remanso e que o acompanharam na nova casa, sempre falam a respeito das proezas
280
O assunto será aprofundado no capítulo 4, seção 4.1.
281
Ver foto 62 no anexo III.
245
de que só o criador do Palácio de Ogum era capaz. Tais feitos iam muito além dos rituais
terapêuticos que se espera que todo curador realize, ainda que sua habilidade para lidar com
quando uma doença deveria ser tratada não por meios tradicionais mas por especialistas
Iansã, ele atravessava a fogueira do terreiro sem se queimar. Conta-se como a entidade
incorporada, trajando sua roupa cerimonial, repetia o feito ano após ano na festa em sua
homenagem, para a qual era acesa uma fogueira com lenha de murici, madeira escolhida
especificamente por produzir chamas muito ardentes. No ritual, Iansã chegava ao requinte de
deixar cair sua coroa em meio às brasas, abaixar-se calmamente para pegá-la e colocá-la de
novo na cabeça antes de sair do fogo, sem que um fio de cabelo sequer de Pedro de Laura
comenta-se como, nas raras épocas de cheia torrencial do Rio Capivara (que pode subir mais
filhos até a margem mais próxima e os atravessava, conduzindo-os pelas mãos dois a dois,
caminhando como se flutuasse sobre as águas, já que de outro modo o rio caudaloso não
trabalhos no Poção do Capivara, parte mais funda do rio na qual eram feitos alguns rituais,
Pedro era capaz de prender a respiração por um tempo inacreditável, bem como, ao realizar
matanças submersas, concentrar o sangue do animal sacrificado numa cuia e erguê-la para a
282
O tema da cura será abordado de forma mais detida no capítulo 4, seção 4.5.
246
de Laura foi direcionado para impedir ou dificultar movimentações, fossem de corpos, fossem
fugitivo que buscara refúgio na Capivara por ter um assassino em seu encalço. Pedindo
proteção a Pedro, este disse que não se preocupasse, permanecesse sentado imóvel junto dos
instruiria. Pouco tempo depois um jagunço chegou ao Palácio de Ogum, pediu desculpas por
interromper a festa e acrescentou que lamentaria muito ter que derramar sangue na casa do
pai-de-santo, caso encontrasse ali o homem que procurava. As pessoas que testemunharam o
ocorrido contaram que o evento transcorreu no amplo pagodô da casa, e que o tempo todo o
homem marcado para morrer estava plenamente à vista do mercenário e era seu conhecido,
sendo impossível que não o tivesse reconhecido – não fosse pela ação mística de Pedro de
Laura. O matador se despediu dizendo que continuaria sua busca, enquanto sua vítima
permaneceu até o final do jarê e perguntou ao curador o que deveria fazer para escapar de seu
pronunciar novo conjunto de palavras e não se deter na volta, não olhar para trás e não se
dirigir a ninguém que encontrasse no caminho, confundindo assim o homem que ainda
deveria estar em seu encalço pela trilha. Os filhos da Capivara disseram que o homem
perseguido chegou são e salvo na cidade e tomou o primeiro ônibus saindo da Chapada, para
Pedro também era capaz de proteger ou penitenciar os iniciados com ações parecidas.
Um de seus filhos-de-santo mais antigos me contou como, certo dia, antes de ir para o jarê,
logo após acordar se assustara ao se deparar com uma cobra no interior de sua casa, que em
seguida conseguiu matar. Chegando no Palácio de Ogum mais tarde, foi recebido por Pedro
que lhe disse que o havia protegido a noite toda. O iniciado não tinha comentado com
247
ninguém a respeito do animal e fora um dos primeiros a chegar na Capivara, creditando à ação
de seu curador o fato de não ter sido ofendido pela cobra que provavelmente tivera muitas
oportunidades para fazê-lo enquanto dormia. Outro de seus filhos-de-santo, famoso tocador de
atabaque, narrou um episódio no qual estava fazendo troça de Pedro, de quem era bem
próximo, imitando-o. Para lhe dar uma lição, e sabendo do gosto do batedor por caçadas, o
curador lhe disse que dali para frente o iniciado só mataria mais quatro cotias, e a partir daí
nunca alvejaria mais nenhuma. Após abater o número de animais que o curador mencionara,
No mesmo registro, Pedro de Laura era capaz de produzir outras formas de ocultação
para a defesa de sua casa e punição de desafetos. Seus filhos-de-santo lembram-se de uma
ocasião na qual uma turma de habitantes do Remanso, que incluía o líder comunitário que
sucedeu Manezinho Bumba e que também celebrava jarês, veio visitar a Capivara com o
intuito de causar alvoroço e interromper o bom andamento do festejo. Pedro não se deixou
abalar e recebeu os hóspedes com toda honraria, oferecendo-lhes comida e bebida farta,
conjunto pôs-se a cantar animadamente ao longo do dia, mas se viram acometidos por um
cansaço extremo e repentino ao cair da noite, caindo num sono profundo que não foi quebrado
nem pelo toque incessante dos atabaques madrugada adentro. Quando acordaram, na manhã
seguinte, estavam desorientados e levaram algum tempo até entender que a festa já havia
transcorrido sem que tivessem tido chance de frustrá-la. Outros casos como esse poderiam ser
até mais comuns se não fossem as medidas preventivas que Pedro tomava e que faziam com
que pessoas se perdessem na brenha a caminho do Palácio de Ogum caso estivessem mal-
intencionadas – da mesma forma como uma família perdeu o rumo do cemitério ao levar o
corpo de um de seus membros, que havia se desentendido com Pedro, para ser enterrado, indo
248
parar no meio da mata. Era como se os desorientados estivessem pisando “em outro mundo”,
havia outra explicação possível senão o efeito das forças mobilizadas pelo curador para que
pessoas que conheciam tão bem determinados trajetos – e que além de tudo eram caminhos
Todos os filhos-de-santo reconheciam que Pedro de Laura era não apenas um curador
de capacidade ímpar como uma pessoa absolutamente intempestiva, podendo ser tão
atemorizante quanto obsequioso. Exigia dos frequentadores de sua casa obediência obstinada,
sob risco de atraírem para si consequências sinistras, em geral em seus próprios corpos, de
inchaços a doenças, que só passavam quando o agravo era desculpado. O símbolo máximo de
autoridade no auge de sua época de supremacia na Capivara era o chicote ritual de tiras de
couro que carregava consigo, chamado Sete-Perna, que muitos filhos-de-santo descobriam
não ser meramente simbólico. O próprio Pedro podia ser alvo do açoite, como num ritual no
qual uma de suas entidades entregava o objeto aos filhos-de-santo para que golpeassem o
corpo do curador, com as costas nuas. Um de seus filhos-de-santo mais antigos, que o
acompanhou vindo do Remanso, ao narrar essa história, disse que os iniciados que na ocasião
não o golpeavam com a devida força – como era o caso de muitas das filhas-de-santo, com
pena do curador – acabavam eles mesmos sendo exemplados, por desobedecerem à entidade.
Sabendo disso, esse senhor disse ter caprichado quando chegou sua vez de manejar o
instrumento, mesmo porque ele próprio já sentira na pele o efeito do Sete-Perna e essa seria
sua oportunidade de ir à forra. Desferidos os golpes, recebidos pela entidade com aprovação,
o filho-de-santo constatou com surpresa que, diferentemente do que acontecera no caso dele,
Não foi somente uma única pessoa que se indispôs com Pedro de Laura que acabou
tendo um destino funesto, como atestam histórias conhecidas ou mesmo presenciadas por
249
muitos dos habitantes da cidade. Por motivos que só é possível supor, um rapaz certa vez
resolveu aplicar publicamente no curador uma surra com vara verde, no meio da rua,
deixando sua camisa ensanguentada. Ao ser acudido por suas filhas-de-santo e levado para
sua residência para se limpar e fazer curativos, ele lhes instruiu a não lavarem a camisa branca
que vestia. Não se sabe se ele realizou algum procedimento com o objeto, mas o que todos
notaram é que dentro de algum tempo o rapaz que o atacara começou a emagrecer de forma
alarmante e sem motivo aparente, definhando progressivamente até morrer. No dia do enterro
desse seu agressor, diz-se que Pedro saiu caminhando pelas ruas de Lençóis vestindo a mesma
camisa, ainda manchada com sangue, agora seco. Em outra ocasião, um jovem decidiu ignorar
os avisos que lhe tinham sido dados e comeu o alimento que compunha um despacho feito por
Pedro deixado próximo ao cemitério, vindo a perecer após ter evacuado areia por dias a fio.
acabaria tendo consequências trágicas para o próprio Pedro de Laura. Uma das frequentadoras
da Capivara, após ter sido duramente exemplada por ele com o Sete-Perna, veio a falecer
alguns dias depois, alguns dizem que em decorrência dos ferimentos. Ela era irmã de uma
líder de jarê que possuía sua casa de culto em Lençóis, e que jurou vingança contra Pedro.
Para tanto, mancomunou com uma colega de Pedro, uma das muitas mulheres que no passado
haviam sido damas-da-roda para os garimpeiros da cidade e com quem o curador costumava
pai-de-santo para esfregar sua vulva na cabeça dele. Em seguida, deu-lhe de comer um peixe
lambuzado com o mesmo sangue menstrual, fazendo com que a substância, provavelmente a
mais danosa que existe para um curador283, não só entrasse em contato direto com sua cabeça,
local de maior concentração da força pessoal, como fosse por ele ingerida, método
283
Como será visto no capítulo 4, na seção 4.5.
250
após o evento e, mesmo depois de ter se recuperado, desse dia em diante nunca mais foi o
mesmo: continuou a ser um curador de grande renome, mas ficaram para trás os dias em que
realizava muitas das façanhas pelas quais até hoje é lembrado. Sua comadre, mencionada no
capítulo anterior, Dona Valdelice do Alto da Estrela, comentou que essa história não teve um
desfecho satisfatório para nenhuma das partes envolvidas: as demais pessoas da família da
falecida foram morrendo uma a uma, e a casa de jarê que mantinham em Lençóis interrompeu
Seu Gilson comentou certa vez como figuras de grande força e magnetismo pessoais,
como era o caso de Pedro de Laura, atraíam em torno de si diversos simpatizantes, muitos
deles levando em conta o fato de por meio dessa proximidade obterem defesa contra
que hoje Sandoval liderava, Seu Gilson acrescentou –, já que a fama do grande curador de
Lençóis lhes garantia também algum acesso às instâncias do poder constituído. Uma de suas
filhas-de-santo mais antigas, temendo ser presa por ferir gravemente outra iniciada da casa ao
revidar agressões físicas que sofrera no próprio Palácio de Ogum, contou como Pedro havia
lhe tranquilizado dizendo que falaria pessoalmente com o delegado e esclareceria que havia se
tratado de legítima defesa, e que se alguém teria de dormir na cadeia seria ele por ter
permitido que a briga acontecesse em sua propriedade. Após ter me contado que finalmente
ninguém foi encarcerado, a senhora acrescentou que a proteção de Pedro, quando ele o
desejava, podia se estender mesmo a pessoas que haviam derramado sangue e buscavam
refúgio das forças da lei: se alguém era abrigado na Capivara, caso se tratasse de um de seus
filhos-de-santo mais estimados, os policiais, como sabiam o que era melhor para eles, nunca
ousavam ir até lá para procurá-lo – até porque, ainda que decidissem fazê-lo, tampouco
encontrariam o caminho.
251
ser mesmo, como visto, entre os próprios filhos-de-santo, por vezes ao imaginarem ser
possível obter o favoritismo do curador. Em função disso, e com o passar dos anos, Pedro de
indistinto, aos membros de um conjunto variado de pessoas mais próximas de si para auxiliá-
lo nas atribuições rituais. Não coincidentemente, todos os atuais líderes de jarê da cidade de
Lençóis faziam parte desse coletivo mais restrito, ainda que fosse consenso que nenhum deles,
mobilização de filhos-de-santo que Pedro de Laura exibiu durante seu reinado no Palácio de
Ogum. Durante as conversas com os frequentadores da Capivara que eram mais próximos do
curador, muitos enfatizavam sua amizade com Pedro de modo ainda mais marcado do que sua
relação de parentesco ritual, por mais que essa também se mostrasse das mais constitutivas e
que ele fosse considerado um pai, em muitos sentidos, insubstituível. Vários deles
parecia ser testemunho menos de qualquer suposta tentativa de autopromoção dos iniciados
Uma das tradições que continua a ser mantida no Palácio de Ogum é a realização da
fogueira de Odé – nome do caboclo que é uma versão infantil do orixá Oxóssi –, que acontece
em dezembro no dia em que se comemora a festa para Iansã. Os membros da casa de culto
284
Ver fotos 63 e 64 no anexo III. Certa vez comentei com Elias a respeito duas formas distintas de carisma, uma
cujo portador é considerado uma pessoa excepcional em si, outra cujo portador é considerado excepcional por
sua capacidade de fazer seus seguidores se sentirem pessoas especiais. Elias concordou com o fato de que,
embora Pedro fosse sem dúvida portador de ambos os tipos de carisma, fica na memória de muitas de suas
filhas-de-santo a confiança que depositava nelas, o modo como fazia com que se sentissem especiais, únicas,
bem como seu grande apreço por elas. Muitas das filhas-de-santo mencionam como seus trabalhos de iniciação
foram singulares, como ele lhes abria precedentes que não concedia às demais, como só elas eram escolhidas
para realização de certas tarefas rituais etc.
252
derrubam uma árvore jovem, alta e preferencialmente de tronco fino, numa área externa mas
próxima ao terreno da casa de culto, e amarram em seus galhos diversos presentes, incluindo
brinquedos, perfumes, sabonetes, frutas, biscoitos, balas, chocolates e outros doces. Depois,
voltam a erguê-la, fincando-a no chão e amparando-a com pedaços de madeira lenhosa que à
noite serão conflagrados para dar origem à fogueira. Os frequentadores da casa aguardam
ansiosos que o tronco da árvore seja consumido para que ela caia e tenha início uma corrida
desenfreada para se obter o maior número de presentes possível, da qual crianças e jovens
árvore assume ao tombar encerram em si presságios para a existência futura da casa: cair em
sentido oposto ao terreno é indicativo de que o ano vindouro trará acontecimentos favoráveis
à Capivara e aos seus; cair voltada para a construção é sinal de que haverá tribulações e
adversidades no caminho da catedral do jarê. No final do ano de 1997, a árvore erguida para a
fogueira de Odé tombou apontando exatamente a entrada do terreiro, precisamente aos pés da
Pedro não viveria para ver a fogueira de Odé seguinte, algo de que ele próprio tinha
certeza, como os filhos-de-santo da Capivara foram se dando conta. Como me disseram, eles
momento de sua morte, tomando medidas para que o pior não aconteça a sua casa. Antes de
morrer, Pedro de Laura removeu grande parte dos objetos assentados em seu peji e os
despachou no Poção do Capivara, tendo ocultado ainda outros para que não pudessem ser
utilizados por pessoas que não possuíssem a capacidade necessária. Muito do que ele deixou
disponível, segundo Elias, ficou na forma de versões menos potentes dos instrumentos que o
curador e suas entidades manejavam, como “ilusão”, nas palavras de meu amigo. Se é
285
Ver fotos 65 e 66 no anexo III.
253
sem sua presença, por outro lado constitui também uma forma de não transmitir essas
potências gratuitamente, impedindo que sejam legadas a alguém que não possa – ou não deva
– recebê-las: é preciso empenho para se erguer uma casa de culto, e é ao longo da própria
necessário ao cuidado das forças envolvidas no processo – como ele próprio havia feito ao vir
do Remanso para a Capivara. Com suas últimas ações, Pedro de Laura apresentava a seus
No fim da vida, Pedro se encontrava acometido por graves problemas de coluna que o
tinha de dançar de maneira mais cuidadosa, mas ainda muito bela, com auxílio dos filhos-de-
santo. Seu estado de saúde, porém, se agravou em definitivo ao lutar contra um câncer que
terminaria por vencê-lo. Pedro foi tratado em cidades da própria Chapada, recusando-se a ir
para Salvador mesmo diante da insistência de todos que lhe eram próximos – aí incluídos
alguns de seus próprios espíritos que, quando nele se manifestavam, rogavam aos filhos-de-
santo que acompanhassem o curador para locais nos quais poderia receber cuidados médicos
mais intensos. Apesar de não faltarem voluntários para a tarefa, como disseram, foi o próprio
Pedro de Laura que não aceitou ser transportado para muito longe da região na qual nascera,
crescera e se criara; na qual preferia também morrer. Alguns dias antes de seu falecimento,
mandou reunir as pessoas de quem era mais chegado para transmitir algumas últimas
mensagens, quando foi enunciada a frase escolhida para dar início a este capítulo, contendo a
mensagem de Iansã. Ainda que estivesse mais próximo de determinadas pessoas em seus
últimos anos de vida, chegando mesmo a treinar de forma mais direta alguns curadores em
potencial, Pedro não apontou uma pessoa em específico para assumir a condução do Palácio
de Ogum, ponto que, por diferentes motivos, todos os presentes naquele momento frisam ter
254
ficado claro. Aos ali reunidos ele pediu, de toda forma, para que não deixassem sua casa cair
após sua morte. E é isso que os filhos da Capivara têm procurado fazer até então.
A morte de Pedro de Laura esteve longe de significar o fim de sua presença nas vidas
daqueles de quem era próximo, e o curador continuava a habitar não somente suas lembranças
como seus sonhos. O próprio Sandoval – que, por não incorporar os espíritos, só tinha contato
mais pessoal com as entidades da Capivara por meio de visões e sensações enquanto dormia –
me disse que havia reencontrado o pai num sonho algum tempo após a morte deste, num
momento em que ele apontava para o filho, destacando-o entre um conjunto de pessoas.
Sandoval afirmou que entendeu o sonho que teve como uma mensagem de seu pai para que
ele se colocasse à frente do Palácio de Ogum e liderasse a realização de seus festejos, motivo
pelo qual ele passou a lutar contra a própria timidez e procurar ser um expoente na defesa do
jarê como um todo – e da casa de Pedro em particular. Vários dos filhos-de-santo de Pedro de
Laura já sonharam em alguma ocasião com o curador após seu falecimento, algo que passou a
ocorrer com menos frequência, disseram, com aqueles que haviam buscado para si um novo
morto de suas cabeças. Mais de uma filha-de-santo contou como, antes de se iniciar em outro
terreiro, teve um último sonho no qual Pedro se despedia dela e fornecia um sinal que era
interpretado como indicação e aprovação a respeito da nova casa à qual ela deveria se
conectar.
Os sonhos dos filhos-de-santo com Pedro de Laura são bastante variados, mas
praticamente todos acabam gerando repercussões bem diretas em seu cotidiano. Além de
que o curador os encontra para lhes ensinar novas cantigas que serão então reproduzidas nas
específicos, cobrar dívidas pendentes que aquele que sonha procura quitar imediatamente, ou
255
para realizar ele próprio algum tipo de ação. Uma senhora contou como, muitos anos após o
falecimento de Pedro, ele a visitou durante o sono, num período de sua vida pelo qual ela
passava por uma grande aflição – cuja causa escapava a todos os profissionais de saúde que
consultava –, oferecendo-lhe um preparo medicinal num copo de formato idêntico ao que ela
sabia existir na Capivara, fazendo com que ficasse curada de uma vez por todas da
enfermidade que a assolava. Assim como fizeram vários dos filhos-de-santo da casa ao narrar
fora o próprio Pedro de Laura que ela havia encontrado em seu sonho, chegando à hipótese de
que fora afinal visitada por uma das entidades do curador, sob a feição deste. Afinal, alguns
sustentavam, enquanto a matéria apodrece e tem seu fim definitivo, as entidades ligadas a
mais antigos e corajosos entre os adeptos da Capivara escolhiam não realizar iniciações em
outros terreiros, tanto estes como os que se sujeitavam a novos rituais mantinham em comum
ao Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, especialmente por meio das duas entidades que lhe
emprestavam nome.
3.5 Propagações
uma pergunta sem resposta”. Conversávamos a respeito do papel do segredo no culto e sobre
a existência de informações que não podiam ser divulgadas, tanto aquelas que deviam ser
mantidas ocultas em função de um pedido explícito de seu detentor como as que, se fossem
parte do patrimônio de uma casa de culto e de seu chefe, é sua “ciência”, como dizem
frequentemente. A manutenção da ciência do jarê nas mãos somente daqueles que estão aptos
a utilizá-la é condição para a felicidade das cerimônias, princípio que acaba entrando em
conflito com a prática de treinar possíveis novos curadores, à qual todo pai-de-santo tem de
maneira explícita, os curadores afirmam que nunca ensinam nada a quem quer que seja,
hábil batedora que dizia não ser professora dos irmãos de Sandoval, está longe de se limitar
aos jarês, tendo-me chamado atenção ao ouvir uma história contada por uma filha-de-santo a
Quando era jovem, ela narrou aos presentes, separara alguns dias para deixar sua roça
e visitar uma senhora conhecida como competente tecedora, com o intuito de aprender a
técnica. Passara horas a fio sem dizer nada, só observando-a atentamente manejar a agulha e o
fio, até que a senhora lhe perguntou se estava ali para aprender a tecer. A jovem lhe disse que
sim, mas que resolvera não pedir para que lhe ensinasse e nem oferecera dinheiro algum à
senhora, pois sabia que se fizesse qualquer das duas coisas sua demanda seria negada. A outra
assentiu e continuou a tecer, e a aprendiz concluiu sua história dizendo com orgulho que tinha
aprendido os movimentos até em menos tempo do que imaginara, não sendo contudo capaz de
dar alguns pontos só com os dedos – como as mais habilidosas eram capazes de fazer – tendo
por isso de recorrer à agulha – objeto que, por sinal, viera pedir emprestado à dona da casa em
que nos encontrávamos, em função da sua ter acabado de quebrar. Em outro episódio, quando
por sua falta de conhecimento das tradições, acrescentando que ela não passaria o saber que
257
tinha adquirido para ninguém. Eu e Elias encontramos uma forma de sugerir a Dona Valdelice
que ele próprio já havia aprendido muito com ela, algo que ela negou peremptoriamente,
dizendo que não tinha ensinado nada a esse respeito nem às próprias filhas, quanto mais a
Elias. Ato contínuo, pôs-se a caminhar e cantar cantigas de jarê como muitas das que já lhe
havia transmitido, entremeando-as com comentários a respeito das plantas medicinais que
Ainda que seja uma possibilidade, recusar-se a assumir a posição de ensinador nem
esotérico por sua própria ocultação286. Rejeitar explicitamente a transmissão do saber é antes
de tudo um meio de limitar sua aquisição por transferência explícita, similarmente ao que
ocorre quando um curador assume a liderança de uma casa de culto que era de outra pessoa:
não é algo que possa, ou deva, acontecer sem que haja trabalho envolvido, sem que o próprio
interessado despenda parte de sua energia pessoal na empreitada. Além disso, evitar a posição
de instrutor é uma maneira de ensinar outra lição valiosa: a de que a ciência do jarê encerra
(nos dois sentidos, tanto de assimilado como de encerrado; compreendido) para que não
produza efeitos perniciosos, cuja acumulação por si só já pode suscitar287. Nesse sentido,
como será visto a seguir, não há aprendizado inocente, até porque não existe acúmulo sem
286
Em última instância o segredo seria assim, sugerem alguns, um mero dispositivo de dissimulação de relações
de poder esvaziado e ressignificado em face de transformações históricas, como evidencia a preferência pelo
termo “secretismo”, um recurso entre outros mobilizado pela busca e manutenção de prestígio (Jamin 1977: 124-
127; Johnson 2002: 187-188).
287
Alguns dos frequentadores menos habituais das cerimônias, ao se depararem com minha curiosidade a
respeito do culto, quando passaram a ter maior intimidade comigo me perguntaram se eu pretendia dar início a
uma casa de jarê quando voltasse ao Rio de Janeiro – algo que os adeptos de maior conhecimento consideravam,
ao contrário, absolutamente impensável. Uns e outros, de toda forma, concordavam a respeito das possibilidades
que meu trabalho tinha de registrar e passar adiante ao menos parte do saber envolvido na ciência do jarê.
258
uma correspondente escassez288. Dessa forma, por fim, limitar a aquisição do conhecimento é
uma forma de protegê-los, de blindar a ciência do jarê daqueles que não estariam prontos para
mobilizá-la, inclusive por não terem “precisão” para tanto, termo que os filhos-de-santo usam
com frequência, provavelmente tendo em mente suas duas acepções: tanto, por um lado,
ocasiões afastadas da concretização das cerimônias, estes tentando, em geral sem sucesso,
presenciaram, enquanto aqueles frisam o quanto tiveram de batalhar, de forma árdua e com
muita perseverança, para conquistar o conhecimento que haviam obtido. Um curador, por
exemplo, gostava de fazer troça com seus iniciados, dizendo-lhes que muitos deles já haviam
acompanhado a realização dos mesmos procedimentos inúmeras vezes, e que àquela altura já
deveriam ter aprendido tudo que havia para ser ensinado. Os mais perspicazes e que
retrucavam com igual irreverência diziam saber que havia sempre alguma alteração que
suplementava as ações rituais, fosse uma palavra a ser dita no momento de colher uma erva,
acréscimos ou supressões que contribuíam para a realização apropriada dos rituais290. Assim,
não só suas formas de transmissão, mas a própria substância da ciência do jarê envolve
288
Como visto no capítulo 1, seção 1.5. Os corolários dessa constatação para a força pessoal dos envolvidos
serão descritos no capítulo 4, seção 4.4. Não há motivo para não estranhar a noção de que seria possível realizar
uma transmissão de conhecimento sem que a fonte do qual ele se origina sofra com isso algum esvaziamento
(Goldman 2005: 108).
289
Pierre Verger comentara sobre as limitações das formas de ensino didáticas no aprendizado para se tornar
adivinho, que mesmo após a iniciação é feito muito mais por observação (Souty 2007: 47).
290
Já se notou a aproximação, feita em grande parte da obra de Roger Bastide, entre as curvas e torções
adicionais do barroco e as do candomblé, especialmente quando o primeiro é pensado, inspirando-se em
Deleuze, não só como um conjunto de traços estilísticos mas como uma operação do olhar e do pensamento,
ancorada em movimentos permanentes de diferenciação (Peixoto 2011: 395-397).
259
específicas cuja aquisição diferencia os pais-de-santo dos iniciados, e cuja maestria distingue
frisando também a importância da proximidade pessoal com os mais antigos para que, ao
longo do cotidiano e com o tempo, estes lhes passassem as histórias e orientações que
alternativos podia ser adquirido de fontes diversas, incluindo mesmo livros e revistas que os
curadores liam de maneira bastante seletiva, dando muito mais atenção a descrições e
ter o hábito de fazer suas próprias anotações em cadernos destinados ao propósito de registrar
vivências e resultados obtidos em seus rituais e nos de outrem, guardados com muito zelo.
de forma parcelar e pô-las à prova, a confirmação de sua validade para eles sendo ratificada
pela obtenção de efeitos específicos291. De todo modo, a maior fonte tanto de obtenção e
O próprio Pedro de Laura, segundo seus filhos-de-santo, gostava de enfatizar que ele
mesmo pouco sabia, o conhecimento que mobilizava nas cerimônias de jarê sendo predicado
dos espíritos que era capaz de mobilizar. Ele afirmava que os iniciados deviam prestar sempre
muita atenção ao que seus caboclos faziam e diziam quando nele incorporados, já que assim
poderiam lhe transmitir informações e mensagens deixadas por eles – e mesmo aprenderem
291
No candomblé esse processo tentativo pode receber o nome de “catar folha”, em referência, entre outras, à
ação de reunir pacientemente determinadas ervas – e saberes – ao longo do tempo, com auxílio da experiência, e
em função dos sucessos e malogros acumulados com a prática (Goldman 2005: 107-109; 2006: 24; 2011: 423-
424).
260
eles próprios algo do que esses seres grandiosos estivessem dispostos a lhes legar. Mussum,
que se tornara um dos responsáveis pela condução dos jarês na Capivara, costumava comentar
como as entidades que recebera de família – de sua mãe e de sua avó – haviam lhe transmitido
saberes que ambas cultivaram em vida, por terem sido grandes parteiras e conhecedoras de
diversas ervas e seus usos medicinais, tendo vivido numa época em que os preparos da
medicina eram ainda menos disponíveis na região. As entidades que acompanham uma pessoa
canais de comunicação com os iniciados, seja nos sonhos, como já mencionado, seja no
próprio terreiro por meio de simulacros visuais que tomam a forma de pessoas, as chamadas
“sombras”, e que nem todos os presentes têm capacidade de enxergar, seja ainda somente por
suas vozes, escutadas pelos curadores durante a condução de rituais específicos para que
Por motivos diversos, muito da ciência do jarê existe sob a forma de segredos que,
de silêncios que não se dão todos pelos mesmos motivos, e que tampouco é possível controlar
perfeitamente mas que se pode manejar de modo a ser pressentida – de modo parecido com o
que se pode fazer num texto a respeito dela292. Os processos de treinamento e iniciação de um
encontram-se repletos de exemplos das diferentes formas dessa sigética, como os pais-de-
santo que falavam a respeito dela davam a entender. Há silêncios que são mantidos para que
292
Esse trecho é inspirado no procedimento promovido por uma passagem a respeito do tema da extravagância
que evoca em sua narrativa um estilo desconcertante que se assemelha ao objeto de que fala, passagem que
igualmente encerra a mais brilhante resposta que conheço contra quaisquer acusações de ‘exotização’ que se
poderia dirigir à antropologia (Serra 1995: 175-180). O termo heideggeriano “sigética”, por sua vez, foi
apropriado dos usos que lhe deu o mesmo autor em contexto distinto, sendo aqui utilizado no mesmo espírito
comparativo por ele proposto (Serra 2008; Serra 2009: 84-85 nota 65). O tema aqui, de todo modo, é o do
mistério, que possui em si uma dimensão sacramental (Bateson 1972: 36-37), face esta que pode ser redobrada
nas religiões de matriz africana (Banaggia 2008: 8-9). Nelas, existe um silêncio voluntário e pleno de sentido que
abre o caminho a outras formas de comunicação, sobre as quais já se escreveu de modo formidável (Souty 2007:
48, 385-401).
261
determinadas informações não sejam transmitidas a pessoas que dela farão mau uso, e
abundam histórias sobre relações conflituosas entre pais e filhos-de-santo quando estes
desejam se tornar mais poderosos que aqueles, em geral resultando no infortúnio dos iniciados
– mas nem sempre. A respeito desse processo, quando comentava sobre o que transmitia para
um filho-de-santo que desejava se tornar curador, um pai-de-santo certa vez me disse: “Você
pode ensinar a ele dez pulos, mas o pulo número 11 você não pode ensinar, que ele vai querer
ser mais sábio que você e vai querer talvez até lhe derrubar”. Manter a posse exclusiva de
razões que envolviam uma segunda forma de segredo no jarê, que recobre de silêncio
determinadas informações cujo ato mesmo de enunciação acarreta efeitos nefastos para os
envolvidos. Como disse um curador, usando uma expressão que me pareceu particularmente
da gravidade”. Somados a esses, há ainda o silêncio que decorre do segredo que não há como
ser expresso, cuja natureza mesma o torna possível somente de ser experimentado: o inefável.
continuidade geral de grandes casas de culto na região, e por mais que seu número absoluto
tenha diminuído nos últimos anos, conforme avaliam os filhos-de-santo, o jarê continua vivo,
e novos templos têm sido erguidos, como em certa medida sempre se fez, em função da
importância de um curador plantar sua própria roça e dar início a sua própria casa,
Parece ser invariável a constatação de que todo curador jamais desejou para si tornar-se um
chefe de uma casa de culto, ou ao menos que nunca imaginou que sua vida tomaria esse rumo.
262
Quando falam sobre a função, é comum que as pessoas se refiram a ela em termos de uma
necessidade – similar à que faz com que um alguém seja iniciado numa casa de culto, mas
ainda mais premente: diz-se que todo curador o é por precisar cumprir uma “sina”, uma
“obrigação”, uma “sentença”, lidar com um “peso” – seja seu, seja em lugar de alguém
próximo, como um membro de sua família que por algum motivo não possa assumir essa
Antes de se tornar capaz de plantar sua roça, abrir seu próprio terreiro, um curador em
potencial precisará passar por alguma forma de preparo específica à assunção da posição.
Alguns líderes do culto disseram que, já no momento em que foram feitos seus trabalhos
de iniciação ser o iniciado detentor da qualidade que o habilitaria a se tornar ele próprio um
iniciador, acrescentando procedimentos rituais que abririam seus caminhos para tanto. Nesse
momento, uma pessoa pode se manifestar de forma mais contundente caso efetivamente
deseje não se tornar um chefe de terreiro, como uma filha-de-santo contou ter acontecido com
ela ao receber nova iniciação após o falecimento de Pedro de Laura. No ritual em que se
ligava a uma outra casa, a mãe-de-santo que retirava a mão do morto de sua cabeça – ela
sendo também filha da Capivara –, manifestando uma de suas entidades, disse-lhe ter
reconhecido sua força pessoal e oferecido a possibilidade de que ela se tornasse também uma
realizando jarês em sua casa de culto sem que ali fossem feitas iniciações. O preparo para se
tornar um curador pode também envolver a harmonização com espíritos de quem o iniciado
não era próximo anteriormente, que podem proceder tanto de pessoas que lhe são íntimas, em
geral membros de sua família carnal, como, mais raramente, de determinados locais, como
263
grandes árvores em porções específicas da mata, ou ainda lagos ou grutas. De modo parecido,
a empreitada para se tornar um curador pode requerer o achado ou aquisição de itens místicos
– tais como as já mencionadas pedras de raio, estatuetas dos santos, vestimentas e objetos
Aqueles que se tornam curadores também enfatizam o rigor de seus resguardos após
seu trabalho de iniciação, mantidos com muito mais diligência e por muito mais tempo do que
o que se espera dos demais filhos-de-santo. O zelo assim demonstrado será um sinal da
postura idêntica que o curador irá cultivar por toda vida ao se tornar um “guardião do segredo
dos orixás”, como me disse certa vez um deles ao explicar o que significava o título de pai-de-
santo. Muitos potenciais curadores podem até nunca vir a formar suas próprias casas,
ogãs, os auxiliares rituais, de uma casa – nos terreiros de seus pais-de-santo, possivelmente
dando suas obrigações por cumpridas após a morte do líder da casa de culto. Pode acontecer,
entretanto, de um curador decidir tornar-se chefe de uma casa de culto ainda em vida daquele
que o iniciou, preferencialmente contando com sua bênção. De acordo com pais-de-santo que
seguiram esse caminho, no ritual de se plantar a roça para a criação de um novo terreiro há
caramanchão, que nunca podem ser efetuados pelo próprio dono da casa, já que cabem ao pai-
de-santo que lhe iniciou ou, na falta dele, a algum curador mais antigo, provavelmente a quem
irá se solicitar primeiramente a realização do ritual de tirar a mão do morto de sua cabeça,
sendo esse o caso. Estabelecido o terreiro, o novo curador dará início a suas atividades,
podendo contar com a visita de seu pai-de-santo em sua casa recém-inaugurada e continuando
a frequentar o terreiro onde foi iniciado, caso permaneçam em bons termos. Após passar a
oficiar ele mesmo iniciações e ter seus filhos-de-santo, o novo curador será prova de que seu
264
pai-de-santo passa a fazer jus ao título de mestre do jarê, ambos dando prosseguimento à
Uma das experiências que pode servir como demonstrativo da necessidade de que uma
pessoa deve ser iniciada num terreiro é ainda mais significativa para aqueles que se tornarão
histórias dos períodos em que ficaram loucos, alguns levados à força, amarrados com cordas,
até as casas de culto nas quais seriam simultaneamente tratados e iniciados, livrando-se a
partir daí dos ataques de insanidade. A loucura que assola os membros do jarê antes de serem
identificada por “entendidos” – que é como se chama qualquer pessoa que tenha algum
conhecimento da ciência do jarê – como um sintoma que só poderá ser tratado por um
curador. Essas crises podem ser desencadeadas tanto por acontecimentos seculares, como uma
doença física ou uma desilusão amorosa, quanto por eventos místicos, quando em geral não se
consegue atribuir nenhuma outra causa possível que não a ação direta das entidades
espirituais, que de toda forma também podem figurar como copartícipes nos primeiros casos.
Quaisquer que sejam seus motivos, a loucura tratada no jarê assume formas ligadas a
incluir rompantes de fúria que terminam com objetos quebrados ou pessoas feridas, ou a um
atividade e pode eventualmente se isolar da convivência com seus pares, indo para locais
ermos e preferindo ficar e por vezes dormir em matas ou grutas afastadas da cidade293.
293
O assunto é bastante delicado e, como outros, só começou a ser discutido comigo de forma mais aberta após
muitos meses de convivência com os adeptos. Além das muitas histórias e depoimentos que acabei por escutar,
houve uma única vez em que presenciei um desses ataques, quando cruzei certa noite por um jovem do Remanso
– cujas falas e ações indicavam estar seguindo os passos do pai, um líder comunitário já falecido – esbravejando
sozinho na rua contra uma das associações da cidade por ter se aproveitado dos remanescentes de quilombolas
sem lhes proporcionar o retorno adequado.
265
Tanto num caso como no outro, parte do tratamento junto a um curador envolvia
métodos de domesticação dos envolvidos, fosse das entidades do aflito, do próprio louco, ou
ainda do conjunto desses. Enquanto as primeiras tornam-se alvo de ações rituais por parte do
pai-de-santo, feitas em sua maioria no interior do peji, o segundo passará a residir no próprio
terreiro e será gradativamente amansado pela realização de tarefas manuais, como carregar
água, catar e cortar lenha, varrer a propriedade. O futuro iniciado passará a ser alimentado
pelo curador e entre eles se estabelecerá uma conexão que virá a ser fortalecida quando for
possível realizar seu trabalho iniciático. Ao final dessa etapa, o filho-de-santo se encontra
definitivamente curado e volta a sua vida cotidiana, retornando ao trabalho e ao convívio com
seus amigos e parentes, sendo agora também membro de uma família conectada
espiritualmente. Para aqueles que um dia se tornarão eles próprios curadores, o duplo acesso –
já que ela se trata tanto de um ataque repentino como de uma via de aproximação – que essa
das entidades. Torna-se louco aquele que de algum modo já é mais suscetível às influências
ações desses seres faz daquele que experimenta o enlouquecimento ainda mais apto a
A maior parte dos chefes das casas de culto da atualidade em Lençóis é composta por
membros das últimas gerações de filhos-de-santo iniciados por Pedro de Laura. Apesar de
o pedido feito por seu pai-de-santo de manter viva sua casa, o fato de Pedro não ter apontado
294
É bastante disseminada a ideia de que um enfeitiçado adquire o potencial de manipular as energias que o
enfeitiçaram, tornando-se capaz de se tornar um desenfeitiçador, bem como um xamã se torne capaz de produzir
uma cura por já ter ficado ele próprio sob ação da doença (Lévi-Strauss 1949: 195). De modo geral, nas religiões
de matriz africana, a iniciação é um ritual que contém o princípio de sua própria repetição e que se completa
propriamente nessa (Souty 2007: 362). A respeito dos curadores do jarê de quem não se tem certeza se passaram
por um período de loucura similar, como era o caso de Pedro de Laura, comenta-se o mesmo que se falava de
Dona Valdelice, sua comadre: era possível que já tivesse nascido feito. Esses temas serão elaborados no capítulo
4, seção 4.4.
266
um sucessor direto – bem como de não ter deixado membros de sua família não mística com
experiência e conhecimento da ciência do jarê – fez com que o Palácio de Ogum passasse por
obrigatório de luto no qual na casa não deve ser feita nenhuma atividade, o conjunto dos
Esse curador possuía a fama de ter sido “pai-de-santo do Corinthians”, por já ter diversas
vezes atuado como consultor espiritual do time paulista, constando inclusive ao longo de
muitos anos na folha de pagamento da equipe, registrado com outra função295. Os filhos-de-
santo contam que o período em que ele atuou como pai-de-santo na Capivara mostrou-se
muito conturbado, gerando desavenças e tendo consequências graves até hoje para algumas
das pessoas para as quais ele realizou trabalhos rituais, fatos que levaram Sandoval e os
Palácio de Ogum se tornaria uma casa de culto na qual haveria apenas a celebração dos
festejos de jarê solicitados por Pedro e não seria local de realização de mais nenhum novo
De todo modo, restava a questão crucial de quem seria o curador responsável pela
manutenção das obrigações espirituais devidas na casa, necessárias à realização das festas
anuais que honrariam o pedido de Pedro de Laura, bem como pela condução das mesmas. As
295
A primeira visita do futuro pai-de-santo ao estádio do time parece ter ocorrido ainda em 1976, tendo sido
contratado de 1982 a 2000 e depois convocado esporadicamente com o passar do tempo até bem recentemente.
Ao longo dos anos, após ter estabelecido um terreiro de candomblé em São Paulo, esse pai-de-santo continuou a
visitar Lençóis, sua cidade natal, continuamente. Alguns daqueles que o mencionaram ou entrevistaram
costumaram notar certa coincidência entre seus afastamentos do time e alguns dos piores resultados obtidos pelo
futebol do Corinthians (Placar 2000: 62; Bellos 2003: 173-175; Terra 2007; Couto 2009: D3).
296
Em função dos desentendimentos ainda presentes entre esse curador e meus amigos ligados à Capivara, ainda
que ele tivesse estado por alguns períodos em Lençóis durante a realização do meu trabalho de campo, não tive
contato com ele e tampouco compareci aos poucos jarês que ele oficiou na casa de um filho-de-santo que mora
no entorno da sede do município.
267
atenções se voltaram para os dois últimos filhos-de-santo que Pedro havia iniciado e que de
certo modo começara a treinar para o desempenho da função, José Henrique, conhecido por
todos como Mussum, e Gildásio, apelidado Daso. Inicialmente, Mussum pareceu a Sandoval a
melhor opção, tanto por ele ter sido apontado por Pedro ainda em vida como responsável pela
realização dos rituais para o povo da porta – ligados ao caramanchão, do qual Mussum
detinha a chave –, como por ter sido iniciado algum tempo antes de Daso, de quem Mussum
fora inclusive padrinho de obrigação, ainda que ambos tivessem aproximadamente a mesma
idade.
atualidade, se tornaram líderes de suas próprias casas de culto. Quando cheguei em Lençóis,
contudo, muitos deles haviam deixado de prestigiar os eventos no Palácio de Ogum, alguns
por estarem agora já muito idosos e não poderem empreender a longa caminhada até o local,
mas outros em função de um evento que contribuiria para estabelecer a configuração recente
da liderança da casa. Anos atrás, numa noite fatídica, conforme rezam as muitas versões da
história que me foi contada, a incorporação de uma das pessoas presentes na festa parecia não
ter tido término adequado, e seus parentes e amigos mostraram-se muito preocupados com a
situação que poderia ter um desfecho sinistro, caso o indivíduo desacordado não voltasse a si.
Ainda que posteriormente a pessoa afetada tenha voltado a si, os presentes trocaram entre si
mais do que só olhares desconfiados e farpas: insinuou-se que podia ter havido um feitiço
envolvido, feito com a conivência ou mesmo pelo próprio curador que agora respondia pela
Capivara. Os filhos-de-santo se mostraram divididos, e tanto Sandoval como sua tia materna,
– que, apesar de compartilhar o nome com a comadre de Pedro, não se trata da mesma pessoa
– e Dinha, mãe biológica de Sandoval e que tinha encontrado os meios de criar seus dois
268
irmãos mais novos após deixá-lo com o chefe do Palácio de Ogum. Não vendo outro meio de
terminar com o impasse, que se tornava cada vez mais acalorado, Sandoval arrogou a si a
tempo, a casas de culto próprias. Daso continuou a realizar jarês em seu domicílio,
razão pela ação de suas entidades, conforme dizem, retomou praticamente do zero sua
trajetória de pai-de-santo, estabelecendo sua casa de culto junto ao Rio das Toalhas,
mencionada no capítulo anterior. Valdelice, por sua vez, fez jarês na já referida casa de culto
no Baixio, onde não há iniciações, contando com a presença de sua família, amigos e muitos
dos filhos-de-santo da Capivara com quem ainda mantinha boas relações, como a mãe
Valdelice como os da curadora que se tornou mãe-de-santo de ambas, num terreiro num dos
cidade e ao qual eu pude comparecer. Elias comentou comigo como achava uma pena ter
acontecido a separação de parte importante dos filhos da Capivara, motivada pela ação
indireta – tanto ele como outras pessoas concordavam – do mal-intencionado curador que ali
reinara temporariamente, que de certa forma podia ter arquitetado a desavença ao ser afastado
do Palácio – ou ao menos se comprazia em dizer que o fizera, como relatavam aqueles que o
triunvirato, do qual faziam parte Mussum enquanto curador e condutor dos festejos, Sandoval
269
Palácio de Ogum, e sua tia materna, irmã de Dinha, sobre quem falarei de maneira mais detida
no próximo capítulo. Depois de já termos nos tornado amigos, Sandoval me diria como ele
havia agora amadurecido e de certa forma lamentava o rumo que os mais importantes e ativos
gostaria de poder reuni-los novamente na casa de seu pai. Todas essas pessoas continuavam a
eventos que tiveram lugar após a morte de Pedro de Laura. Além disso, havia ocasiões nas
quais todos compareciam a um mesmo jarê, como os que eram celebrados numa casa
considerada neutra por ser comandada por alguém que não fosse filho da Capivara e por isso
não estando diretamente envolvido com sua política interna. Nesses eventos, por mais que as
pessoas preferissem manter alguma distância entre si, quando eram tomadas por suas
entidades podiam cumprimentar de forma muito respeitosa ou até efusiva uns aos outros,
mostrando deferência e matando saudades já que, como me diria uma delas, “caboclo não tem
má querência”, ou seja, não toma para si ressentimentos que aqueles que os incorporam
Sandoval sempre estimulou minha ida a outras casas de jarê além do Palácio de Ogum,
mesmo aquelas que eram chefiadas por pessoas que não haviam sido feitas na Capivara, para
que meu trabalho a respeito do jarê, ele dizia, pudesse ser o mais abrangente possível. Como
me disse, ele tinha também certeza de que quanto mais festas de jarê comandadas por pessoas
diferentes eu conhecesse, mais eu poderia confirmar sua avaliação de que nenhum local se
igualava à casa de seu pai, que de fato merecia ser mantida em funcionamento e
297
Ver fotos 67 e 68 no anexo III.
270
Procurando desenvolver uma veia mais diplomática, Sandoval algumas vezes me acompanhou
a jarês realizados nas casas de pessoas de quem ele havia se distanciado, valendo-se das
tornavam minha presença nos festejos praticamente obrigatória. Após um desses eventos,
Elias quis se certificar de que eu percebera que Sandoval buscava ao menos retomar contato
com aquelas pessoas por meio das relações que haviam estabelecido comigo. Foi ficando
claro que nenhum dos envolvidos ignorava as motivações dos demais, e os chefes das outras
casas por vezes me utilizavam para indiretamente enviar recados para Sandoval, querendo se
assegurar de que ele sabia que nunca seria destratado enquanto os visitasse – diferentemente
do que ele próprio havia feito com eles no passado, era o complemento nunca dito mas
à Capivara era praticamente inexistente, pairava de modo constante nas falas desses filhos-de-
santo a mais ínfima das brechas. Ainda que sem dúvida fossem sentimentos que devessem ser
levados em conta, não se tratava apenas de uma questão de orgulho ferido ou de altivez:
quanto maior e mais significativa é uma mágoa, quanto mais longo o tempo durante o qual se
é afetado por ela, mais magnânima torna-se a pessoa que um dia decide perdoá-la.
no episódio, algo bastante comum nas desavenças pessoais entre filhos-de-santo, já tendo sido
mencionadas algumas das formas pelas quais determinados sortilégios podem ser postos em
prática. No jarê, feitiços se encontram entre as ações possíveis de serem efetivadas à distância,
em geral por meio de algum objeto preparado especificamente para transportar influências
perniciosas a seus destinatários, tanto por contato direto como por semelhança. No primeiro
a ação feiticeira encontra seu alvo viajando por meio de fotos que exibam a pessoa a ser
271
enfeitiçada ou pelo nome da vítima escrito num pedaço de papel e sujeito a procedimentos
específicos. Entre as formas de se combater a ação dos feitiços figuram métodos que dialogam
com o mesmo repertório envolvido em sua criação, mas que objetivam impedir a chegada da
ação feiticeira ou, ainda, desviá-la de seu curso original, podendo mesmo ser redirecionada
para o próprio feiticeiro ou para quem quer que tenha encomendado sua realização. Objetos
sob os quais recai a suspeita de serem transmissores de feitiços podem ser lavados, varridos,
deslocados de formas ritualmente prescritas para que não tenham o efeito desejado. O uso de
envolvendo tanto propensão a discutir como capacidade de se chocar contra algo, colidir. As
casas de culto em si são espaços que contam com proteção contra os efeitos adversos
propriedade para defender não só seus frequentadores ocasionais como seus habitantes
É possível realizar também no jarê uma distinção entre feitiçaria e bruxaria, de acordo
com o grau de intencionalidade das ações realizadas, ainda que ela não altere as formas de
nocivas para os que deles são alvo – o chamado “olhado” –, é ainda mais comum a menção à
298
Ver fotos 69 e 70 no anexo III.
299
Diferentemente, contudo, do que ocorre entre no contexto etnográfico onde a distinção foi proposta (Evans-
Pritchard 1937: 33-34, 230), no jarê não há separação clara entre feiticeiros e bruxos senão pelas ações que
empregam, tampouco havendo uma substância-bruxaria específica com existência material no corpo dos bruxos,
como será visto a seguir.
272
ação direta, sem que uma pessoa se dê conta, das entidades que a circundam. Os filhos-de-
santo explicavam como os espíritos ligados a um iniciado, quando se trata de alguém que
possui grande força pessoal – caso que não é limitado aos curadores –, podem ser propensos a
tomar providências contra pessoas que se coloquem no caminho de seu protegido, quer
estejam mancomunando diretamente contra ele, quer estejam simplesmente ignorando seus
pedidos ou recomendações. Por mais que um curador possa ter uma índole calma, brincalhona
ou apaziguadora, estilo que varia bastante dependendo do caráter pessoal de cada um, ainda
assim nunca é boa ideia desobedecer a uma de suas orientações, sob pena de se encontrar
vítima da ação de seus caboclos – algo que pode acontecer independentemente da vontade do
pai-de-santo, ou mesmo contra ela. Por vezes é a própria capacidade energética de uma pessoa
que acaba por protegê-la contra possíveis ataques feiticeiros e desemboca num contra-ataque
na chave da bruxaria, tudo podendo se passar sem o conhecimento da potencial vítima inicial.
quer ocorram com eles próprios, quer com pessoas de quem sejam próximos, tornando-se
cada vez mais aptos a controlar os rompantes aos quais de outro modo as entidades estariam
predispostas.
dos motivos que leva à existência, na cidade de Lençóis, de uma impressão algo generalizada,
tanto entre as pessoas menos ligadas ao jarê como entre muitos dos entendidos, de que todo
curador atua, ao menos parcialmente, também com o intuito de produzir efeitos perniciosos
para outrem. A maior parte dos curadores nega a pecha de feiticeiro, ainda que, quando falem
mais abertamente sobre o tema, dificilmente neguem o potencial para tanto, já que o
capazes de empreender ações feiticeiras ou de ao menos fazer deles focos para sua
ninguém, sujeitos a essas ações, inclusive as oriundas de suas próprias entidades, que os
motivam constantemente a atuar de modo caridoso e realizar somente ações rituais que
tenham efeitos benéficos para os envolvidos, sob risco de eles próprios sofrerem a ira dos
Por fim, há também feitiços que são disparados entre os mais entendidos, mesmo
curadores e até de pai para filho-de-santo, e que funcionam como testes, provações para se
diversas histórias a respeito de feitiços enviados contra Pedro de Laura – em geral oriundos de
pessoas que lhe eram bastante próximas e com quem ele mantinha relações de amizade
aparente, como rege a etiqueta do jarê, acrescentam –, sem jamais deixar de lado o potencial
destrutivo que essas ações poderiam ter. Os curadores, dizem os filhos-de-santo, estavam
acostumados a ficar sempre “um experimentando o outro”, como “cobra engolindo cobra”:
levando feitiços pessoalmente ou enviando-os por outros meios para os terreiros uns dos
afirmavam que essa era uma forma de se cimentar relações de confiança, já que, ao serem
incapacidade de se causar efeitos danosos aos terreiros que visitavam, continuando a ser bem-
Pedro de Laura era envolto por inúmeras histórias que atestavam sua capacidade de
lidar com as tentativas de outros iniciados de sabotá-lo, algumas vindas de filhos-de-santo que
ele mesmo havia batizado no culto. Diante dos frequentadores de uma festa, o líder da
Capivara dava indicações a seus iniciados para que encontrassem objetos que haviam sido
trazidos por terceiros para prejudicar o andamento de uma cerimônia, podendo ele mesmo por
responsáveis pela tentativa de derrubá-lo em sua própria casa, sem que isso gerasse qualquer
impedimento para que continuassem a frequentar o terreiro. Em outros momentos, longe dos
dias de festejo, suas entidades podiam avisá-lo de feitiços encaminhados pelas matas em
direção ao Palácio de Ogum, normalmente por meio de espíritos que viajavam na forma de
animais, como pássaros, peixes ou varas de caititus, e que Pedro redirecionava para que
carregassem seus efeitos para outros locais – em geral de volta aos que os haviam enviado.
Por vezes mesmo, como me contou um de seus filhos-de-santo, Pedro agia no sentido de
interceptar um feitiço em pleno envio, mandando ele próprio um preparado equivalente para
que o efeito de ambos fosse neutralizado, uma espécie de “antimíssil”, nas palavras do
iniciado, normalmente encaminhado pelas águas dos rios que inevitavelmente conectavam
distintas casas de jarê. A genialidade de Pedro de Laura, que o tornava alvo de inveja por
parte de muitos, foi somente uma das qualidades que fez dele um dos maiores mestres do jarê
que a Chapada Diamantina já viu, e ainda que alguns de seus filhos-de-santo cogitem a
possibilidade de que venha a nascer outro que possa superá-lo, muitos dos que o conheceram
Capítulo 4 – Levantar
4.1 Tramas
“Não tem cantiga mais certa que essa, no jarê”. Quando disse essas palavras, logo após
terminar de cantar, Áurea tinha a voz embargada e os olhos ligeiramente marejados. Tanto a
música quanto a letra haviam-lhe suscitado emoções que em geral preferia deixar dormentes,
mesmo sabedora de que não era possível ignorar a inevitabilidade de grande parte de seu
destino junto ao culto. Mais de uma vez, ela disse, pensara em desistir e jogar tudo para o alto,
acrescentando que ninguém sabia ao certo o tamanho do sofrimento que pessoas com essa
sina tinham de suportar. Na ocasião, estávamos sentados no chão, diante da casa de uma das
comadres de Elias, conversando sobre cantigas de jarê, até então de forma bastante
descontraída. Áurea comentou que houve uma época em que tentou abandonar o culto e
chegou mesmo a ir umas poucas vezes a uma igreja evangélica, não conseguindo, contudo,
pregar os olhos depois de voltar do local. As noites que passava em claro aumentavam a
certeza de que em larga medida não havia alternativa: sua vida, toda ela, era e permaneceria
inextrincavelmente ligada às realidades do jarê. Áurea não se deixou abater, finda a breve
confidência aos presentes: em pouco tempo se recompôs e emendou em outras cantigas, com
sua alegria costumeira, não permitindo que a resignação de que era testemunha lhe impedisse
Conheci Maria Áurea na primeira reunião da Associação do jarê para a qual fui
convidado por Sandoval, seu sobrinho. Passado algum tempo tomei para mim o hábito de
chamá-la de Tia Áurea, a exemplo do que fazem tanto Elias como várias outras pessoas da
cidade, especialmente as que haviam conhecido o pequeno restaurante ao qual ela se dedicara
durante alguns anos e que levava esse mesmo nome. Renomada cozinheira, Áurea trabalhava
vereadora na cidade, na época em que a posição ainda não era remunerada. Áurea era
igualmente uma das grandes parteiras que a região conhecia, já tendo perdido a conta do
número de crianças que ajudara a trazer ao mundo e das quais por consequência era madrinha:
não menos que uma centena, estimava-se. O acúmulo de seus feitos era ainda mais
impressionante em função de sua pouca idade, já que Áurea tinha pouco mais de 50 anos à
época em que fui para a Chapada. De todo modo, sua maior fama era sem sombra de dúvida a
de ser, nos dias atuais, se não a maior, uma das principais responsáveis pela manutenção do
Desde criança Áurea gostava de frequentar os muitos jarês da cidade, mesmo contra a
vontade de sua família. Ela se lembra com gosto da época em que, nos meses festivos, uma
pessoa podia pular de casa em casa, numa mesma noite, indo a diversas celebrações e tendo
contato com inúmeras pessoas e entidades distintas. Áurea conta como esperava todos em sua
casa irem dormir antes de sair de fininho para varar a madrugada, tendo por vezes de pular
muros protegidos com cacos de vidro para não ser percebida. Ela sabia que na manhã seguinte
acabaria sendo castigada pelos pais caso descobrissem por onde havia andado, algo que
inevitavelmente acabava acontecendo. As surras que tomava ainda assim não a dissuadiam,
seu fascínio pelo jarê mostrando-se duradouro. Áurea se recorda nitidamente da primeira vez
em que foi até o Palácio de Ogum, quando não tinha nem dez anos, levada por Dona
estavam com água acima da cintura de um adulto, o que fez com que ela tivesse de ser
carregada nas costas enquanto o transpunham. Algum tempo depois, quando já contava 12
anos, Áurea foi tomada por uma entidade durante uma pescaria à qual fora acompanhando
uma senhora. Ela não possui nenhuma lembrança do que se passou a partir daí, senão após ter
Por terem lhe contado posteriormente, Áurea ficou sabendo que tivera de ser trazida amarrada
com cordas para ser tratada por Pedro de Laura, que algum tempo depois viria a se tornar seu
pai-de-santo.
A partir daí o jarê se constituiu numa parte significativa da vida de Áurea, que chegou
a ser ogã do chefe da Capivara antes de ele ter decidido extinguir o posto para evitar
desentendimentos entre seus filhos-de-santo, como já indicado. De todo modo, Áurea sempre
fez parte de um núcleo de iniciados que Pedro de Laura mantinha bem próximo de si, uma
geração mais jovem que faria todo possível para levar adiante o legado do Palácio de Ogum
após o falecimento de seu criador. Entre outros, desse conjunto também participavam Dinha –
irmã carnal de Áurea e mãe de Sandoval –, Valdelice do Baixio – que não se deve confundir
com a comadre de Pedro, que deixara de frequentar a Capivara –, Mussum e Daso – esses
últimos ambos tendo se tornado curadores, cada um a seu tempo. Em função dos
pessoas ligadas a esse núcleo; contudo, ainda que tanto Sandoval como Mussum fossem
figuras centrais para a continuidade do jarê da Capivara, o nome considerado por todos como
absolutamente indispensável à realização das cerimônias era o de Áurea. Mesmo não sendo
uma mãe-de-santo, destino que – ela sempre lembrava – fazia de tudo para evitar, os
frequentadores do Palácio jamais se cansavam de fazer notar como, sem ela, não se poderia
realizar um jarê na Capivara, até porque Áurea era a indiscutível possuidora tanto da maior
278
ciência como da maior força pessoal entre aqueles que agora estavam à frente da casa300. Por
todos esses motivos foi ainda mais preocupante quando, ao final da primeira cerimônia a que
pelo curador presente na casa, o que no caso em questão ocorreu quando Mussum foi
chamado e soou a campa da Capivara ao lado da cabeça de Áurea, junto ao chão. Ela ficou
visivelmente abatida e se retirou para tentar descansar como faziam os demais, pois a
madrugada fora longa e cansativa com a realização do jarê para Oxalá, que contara com um
ritual de reverência no qual a entidade de Áurea desempenhara papel central. Todos traziam à
mente o episódio quando, ao longo dos meses seguintes, os caboclos manifestados em Áurea
mostraram-se, de novas formas, vacilantes: suas incorporações – que antes eram seguras e
precisas – demoravam mais do que o comum para acontecer, seus passos de dança estavam
própria afirmou. Áurea informou aos frequentadores mais recentes da Capivara algo que os
mais antigos já sabiam: quando seu ritual de iniciação fora realizado, muitos anos atrás, não
houvera dinheiro bastante para a aquisição de um animal de quatro patas, em geral necessário
procedendo a algumas alterações litúrgicas. À época, Pedro lhe avisara que aquela solução
provisória não deveria durar mais do que sete anos, sendo então necessária a realização de um
sacrifício adequado, que não chegou a ser feito. Desde então, “foram muitos sete anos”, disse
Áurea, afirmando que parecia ter chegado a hora de realizar um trabalho de reforço para
firmar suas entidades de uma vez por todas. O que levantava uma questão crítica: quem seria
o responsável a fazê-lo?
300
Ver fotos 71 e 72 no anexo III.
279
inúmeras das pessoas ligadas ao jarê de Lençóis, ainda que a escolha em última instância
recaísse sobre ela própria, aconselhada também por suas entidades, como frisava. De modo a
número de possibilidades antes de tomar sua decisão, ao longo de algumas semanas Áurea
teve longas conversas com amigos e parentes, reunindo alternativas. Uma delas seria realizar
seu reforço com um curador que possuísse um terreiro em outro município, para com isso não
correr o risco de se indispor com ninguém de Lençóis. Contrários a essa opção pesavam o fato
de ser mais difícil encontrar à distância um pai-de-santo confiável e capaz de realizar o ritual
de maneira adequada, bem como o valor cobrado que poderia ser alto demais por não haver
qualquer relação prévia com o novo iniciador. A opção de ter o trabalho feito na própria
cidade, por sua vez, envolvia escolher entre um dos poucos curadores em atividade (lista
ainda mais reduzida em função de algumas indisposições que não valia a pena reativar), bem
decidir o local da cerimônia. Sandoval cogitou com sua tia a possibilidade de abrirem uma
exceção a respeito da deliberação de não mais realizar rituais com sacrifício no Palácio de
Ogum, não sem deixar de mencionar que sabia que outras pessoas tentariam considerar o
evento um precedente, e caberia a eles serem firmes para não repeti-lo. Com isso, Sandoval se
unia aos filhos-de-santo que consideravam ser o próprio Mussum a pessoa mais indicada para
a tarefa, conjunto que polarizava com aqueles iniciados por Daso em seu terreiro no Rio das
Toalhas. Na visão desses últimos, que acabou prevalecendo, a habilidade ritual de seu pai-de-
santo, bem como o fato de sua casa de jarê já estar mais bem estabelecida, eram fatores
decisivos para dirimir a dúvida de Áurea. Ela acabou optando por tomar a decisão por meio de
uma votação da qual participariam os seus afilhados, medida que Elias comentou comigo ser
Com o passar do tempo, foi ficando cada vez mais claro que estava envolvido, na
de Ogum, já que ela era hoje em muitos aspectos sua figura central. O curador que oficiasse o
ritual de Áurea passaria a contar com uma boa dose da deferência prescrita na relação entre
filho e pai-de-santo, bem como se tornaria conectado misticamente a uma pessoa não só
detentora de grande força pessoal como pivô de mobilização de outras. A decisão de Áurea
poderia ter uma gama de resultados distintos, desde a chancela de um novo curador para o
enquanto tal, nenhum dos extremos tendo contudo se concretizado, não sendo o trono da
Capivara ocupado por vivente algum. Os detalhes sobre a execução da obrigação de Áurea –
que é outra forma de se falar a respeito do trabalho ritual que deveria fazer, como já
deixaria de ser filha-de-santo de Pedro de Laura e se seria preciso tirar a mão do morto de sua
cabeça301. Após o reforço ter sido feito, com procedimentos rituais que em muito se
aproximavam de uma nova iniciação302, com algumas adaptações feitas para a ocasião, a
própria Áurea indicava que continuava a ser filha-de-santo de Sete-Serra, o mais bravio dos
caboclos de Pedro, mas que agora era também, simultaneamente, filha-de-santo do Eru de
Daso, entidade que também podia demonstrar renomada selvageria303. O fato de Daso ter sido
o último iniciado da Capivara também foi fundamental para que, na realização do trabalho,
mesmo sem tê-la presenciado em pessoa. Conforme ambos disseram, as próprias entidades
que no passado haviam participado do ritual foram capazes de transmitir para o curador o
301
Ritual já descrito no capítulo 2, seção 2.5, e que será retomado abaixo, na seção 4.3.
302
Episódios como esse de reforço da iniciação podem ser considerados característicos dos candomblés de rito
angola, aí empregados durante a própria iniciação ou mesmo também, a exemplo do caso aqui relatado, após esta
(Serra 1978: 337).
303
Ver foto 73 no anexo III.
281
conhecimento da disposição dos objetos, das cantigas e sequências litúrgicas que permitiram
O reforço de Áurea foi um episódio marcante que se inscreveu em, e ao mesmo tempo
constituiu um, cenário específico para o desenvolvimento contemporâneo das casas de jarê de
Lençóis, de certa forma dando continuidade às tramas – principalmente, mas não só, no
dos mais importantes filhos-de-santo da Capivara, em torno do qual essa pesquisa acabou se
concentrando, continuava a ter no legado de seu pai-de-santo grande parte das motivações que
os levavam, nos dias de hoje, a se aproximar ou se afastar daquele que fora seu primeiro
terreiro e onde tinham se tornado irmãos-de-santo. Na trajetória dessa família, o instante que
pude acompanhar de perto exibia de forma bastante evidente as cisões e reaproximações que
pareciam ser parte constitutiva da história do jarê, os esforços para manter a tão desejada – e
da vida. De um modo ou de outro, esses filhos-de-santo estavam hoje ligados a casas de culto
próprias e possuíam suas avaliações pessoais a respeito das melhores formas de se conduzir as
que lhes eram proporcionadas. Ao mesmo tempo, todos compartilhavam histórias num
mesmo local que, diferentemente do que costuma acontecer na maior parte dos casos, não
havia desaparecido por completo após o falecimento de seu criador. Membros das novas
gerações começavam agora também a conhecer o jarê e a ser iniciados em seus segredos,
jovens que estariam conectados por laços de outras dimensões, proporções distintas, que lhes
304
“Trama” em minha opinião é a melhor forma de traduzir para o português a “network” proposta pela Actor-
Network-Theory, que não por acaso é definida por seu principal autor no capítulo que dedica à análise da própria
produção textual científica. Um bom registro acadêmico, para essa visão, é aquele que “delineia uma trama”
(“traces a network”). Nesse sentido, vale marcar, uma trama não se confunde com aquilo que é descrito, trata-se
mais especificamente de um indicador de qualidade, um conceito utilizado para “conferir quanta energia,
movimento e especificidade” um registro – entremeado, portanto – é capaz de apresentar (Latour 2005: 128-
131). Até mais do que “enredo”, a ideia de trama chama atenção também para o ambiente do romance policial:
cheio de detalhes aos quais o leitor deve prestar atenção, cativante de modo a despertar sua curiosidade e
tentativamente surpreendente por suas reviravoltas.
282
conexões e afastamentos.
de Lençóis suscitadas pelo trabalho de reforço empreendido para Áurea precisou ser tão
abreviado quanto se mostrou um tema delicado para todos os envolvidos, e minha principal
ações (como abrir suas próprias casas, aproximar-se ou afastar-se de certas pessoas, ser ou
não ser iniciado por alguém, tornar-se ou não um curador) com o objetivo único de produzir
os efeitos que acabaram tendo lugar, como se todas as suas motivações derivassem de juízos
mecânicos. Ao mesmo tempo, ignorar que determinadas pessoas terminam por ser brilhantes
ingenuidade como esvaziaria o mérito dos lances mais hábeis e não permitiria a adequada
apreensão dos riscos que foram tomados em cada decisão. Como será visto adiante305, o jarê
ensina que uma certa medida de ousadia é necessária para se produzir os efeitos mais
quando muito a comiseração alheia, por sua vez a ambição desmesurada acaba por acarretar a
ruína daquele que vai longe demais. As irreduções306 almejadas para a elaboração desse relato
não derivam unicamente nem de haver encontrado uma situação de particular instabilidade
de campo que tem seu início e seu término em meio a histórias que o ultrapassam em ambos
305
Nesse mesmo capítulo, seção 4.2.
306
Mais do que se postular a irredutibilidade de determinados fenômenos, o princípio de irredução ao qual faço
referência pode ser melhor definido como uma alternativa ao recurso à transcendência, sugerindo “um recuo
frente a essa pretensão de saber e de julgar”: o princípio de irredução é assim duplo, já que pode recusar o
automatismo tanto das redutibilidades ligeiras como das impossibilidades de comparação, das tentativas de
reduzir dois termos à incomensurabilidade (Stengers 1993: 26-27; Serra 1995: 85; Latour 2005: 107, 137).
283
os sentidos. Mais que isso, elas são tanto fruto de uma opção analítica e textual como uma
sensação mais incontornável e mais desestabilizante compartilhada por todos que assistem a
uma festa de jarê: a de que nada está garantido. A todo momento existe apreensão, já que as
manifestações podem não se processar a contento e uma entidade nova pode surgir a qualquer
instante, um objeto ritual pode faltar e outro pode ter de ser acrescentado, uma cantiga ou
sequência litúrgica pode ser esquecida ou suprimida enquanto outras podem ser improvisadas
e criadas na hora.
O trabalho de reforço feito para Áurea teve alguns efeitos praticamente imediatos,
observáveis já no segundo dia do grande jarê celebrado na ocasião no terreiro de Daso, que
contou com diversos participantes e a realização de várias iniciações. Os caboclos que ela
manifestava agora pisavam com muito mais segurança e propriedade, tinham vitalidade
renovada, lembrando a todos dos belos movimentos que faziam quando Áurea era bastante
jovem, como os que haviam ficado registrados no filme Diamante Bruto, como me disse
Elias, no qual bem moça ela pode ser vista dançando durante as cenas em que foi registrada a
realização de um jarê em Lençóis. Suas entidades deixaram também algumas mensagens para
os presentes e para a própria Áurea, dizendo que agora sua carnal não iria tolerar ser posta
para trás na Capivara, dando a entender que ela deveria a partir de então ser considerada,
ainda mais indiscutivelmente do que antes, a verdadeira chefe da casa. De fato, no ritual que
aconteceu alguns meses depois para a aberta do Palácio de Ogum – ao qual Daso, com seus
filhos-de-santo, compareceu, algo que há muito não fazia –, um Ogum tomou Áurea durante o
momento ritual inicial e anunciou que nos anos seguintes poderiam convocar sua Iansã para
realizar aquela etapa tão fundamental. Houve quem suspeitasse que quem falava no momento
era uma das entidades do próprio Pedro de Laura, enquanto outros imaginavam que era um
dos caboclos da própria Áurea, já que até então ninguém jamais tinha sido capaz de receber
284
diretamente num jarê um dos espíritos deixados pelo próprio Pedro – um feito considerável
pessoas ligadas à Capivara, bastante maior que a primeira, na qual eu fora apresentado a
Áurea. Apesar de ser inegável a existência de alguma tensão entre Mussum e Daso,
provavelmente amplificada ainda mais nos filhos-de-santo de cada um deles cujo vínculo
inclui em alguma medida tomar para si as posições daqueles que os iniciaram, o encontro
transcorreu de forma tranquila e desembaraçada. Mussum comentou que assim como Daso era
bem-vindo na Capivara e em sua própria casa, ele sabia que se quisesse visitar o outro pai-de-
santo seria igualmente bem recebido, lembrando que ambos se conheciam desde que eram
crianças – “de bater baba na rua”, acrescentou, usando uma expressão que na região significa
participar de um jogo informal de futebol mas cujo duplo sentido não deixou de provocar uma
das típicas gaitadas de Elias. Da nova chapa eleita na ocasião, de que Elias se tornou
presidente, faziam parte pessoas ligadas a praticamente todas as casas de jarê de Lençóis, com
destacada participação de jovens que começavam a se interessar cada vez mais pelo culto.
Uma das jovens encerrou a reunião com um pronunciamento, lembrando aos presentes que
eram todos filhos e netos da Capivara, e como tal deviam fazer o possível para que o jarê
continuasse a existir – e talvez voltasse a florescer como outrora – tanto em sua cidade como
seu trabalho de reforço havia acarretado, bem como uma mudança de comportamento que ela
esperava que se processasse em função dessa alteração. Elias havia mencionado, certa feita, a
307
Tema bastante disseminado nas religiões de matriz africana, dom e iniciação parecem não ser nem
exatamente uma oposição, nem esgotar sozinhos o tema das qualidades que podem fazer parte da composição de
uma pessoa em sua trajetória mística (Goldman 2012: 277-279).
285
respeito das entidades místicas do candomblé sobre as quais ele havia aprendido em Salvador,
no caso especificamente sobre Oxumarê, dizendo que se tratava de um espírito que passava
seis meses ao ano sendo do sexo masculino e seis meses do feminino. Áurea, que possui uma
forte ligação com Oxum, entidade que no jarê também pode ser chamada de Oxumarê, disse
que por vezes ela se sentia dessa forma, já que ao menos durante metade do ano não queria
saber de homem algum em sua cama. Logo em seguida, emendou dizendo que a partir de
agora jamais voltaria a ser subjugada por homem algum, pois agora ela estava se tornando
uma líder do jarê. Áurea é mãe de duas filhas de seu primeiro casamento, mas como deu a
entender ela tinha em mente seu companheiro atual, que estava em detenção em Salvador e
deveria visitar Lençóis durante a Semana Santa em liberdade temporária. A atitude de Áurea
especialmente prezada no caso dos curadores, de seus afazeres rituais na casa de culto e sua
for casado, deve manter afastadas de seu terreiro quaisquer questões e influências domésticas,
prevenindo igualmente seus filhos-de-santo de que não deviam mantê-las nessas ocasiões. A
segunda disposição, mais informal, tem a ver especificamente com a liberdade prezada pelas
mulheres casadas de frequentarem jarês se assim o desejarem, algo que nem sempre é visto
homens, que como visto costumam compor a maioria dos quadros de liderança das casas de
308
Remeto aqui, por exemplo, ao episódio já descrito protagonizado pelo líder do Remanso cujo terreiro foi
herdado por Pedro de Laura, envolvendo as consequências de ter abandonado sua abstinência, narrado no
capítulo 3, seção 3.4.
286
culto. A comunicação entre essas duas energias dava a praticamente todos os curadores a
pecha de terem – ou desejarem ter – diversos parceiros sexuais, mesmo quando casados. Em
função desse pendor, cabia ao próprio curador frear seus impulsos mais libidinosos e canalizá-
los para as funções litúrgicas que exercia, aumentando assim sua força pessoal que acabaria
por ser mobilizada nas cerimônias de jarê. Também em função desse atributo, os curadores
adversidades de natureza não só conjugal como também puramente sexual, curando homens e,
menos frequentemente, mulheres que lhes procuravam com dificuldades de manter relações
métodos. Por esses motivos, não era incomum surgirem boatos a respeito da consumação de
relações sexuais entre curadores e seus filhos ou filhas-de-santo, muitas vezes espalhados não
só por pessoas não ligadas ao jarê como mesmo no próprio seio de uma casa de culto,
encarados por seus membros com bastante lástima e seriedade309. Fossem somente rumores ou
mesmo eventos concretos, cônjuges ciosos procuravam impedir sua profusão das mais
diversas formas, muitas vezes tentando proibir seus companheiros de frequentar os jarês,
mulheres que iam aos jarês diziam que se tivessem de escolher entre permanecer ou casadas
ou no culto, se separariam num piscar de olhos. Se nem sempre podem exercer funções de
309
Histórias desse tipo são recorrentes nos meios das religiões de matriz africana, de certo modo ligadas a uma
simbologia erótica que não necessariamente reflete uma licenciosidade por suposto aí presente (Serra 1978: 183).
310
Certa vez, durante uma reunião informal dos filhos-de-santo de uma casa de culto com seu curador, o tema foi
abertamente discutido para que se encontrassem formas de ao menos limitar o surgimento de boatos envolvendo
os membros daquela comunidade mística. Um dos principais pontos acordados, arguta sugestão do marido de
uma das filhas-de-santo da casa e também iniciado do local, foi o de que se evitasse a presença de filhas-de-santo
sozinhas com o curador no terreiro, algo até então feito de forma corriqueira para que ajudassem nas tarefas
semanais como cozinhar ou varrer o terreno. Apesar de ter plena confiança tanto na esposa como em seu
curador, disse o iniciado, o fato de haver sempre mais de uma filha-de-santo no local inibiria a geração de
fuxicos por pessoas mal intencionadas.
287
caramanchão só podem ser realizadas por homens, as mulheres costumam ter de todo modo
papel central no desenrolar das cerimônias, ocupando o posto de ogãs nas casas de culto e
sendo de modo geral valorizadas muito mais que os homens durante as incorporações de suas
entidades. Existem também mulheres que se tornam curadoras, fazendo uso de arranjos
específicos que permitem que auxiliares litúrgicos lidem em seu nome com o povo da porta,
elas próprias continuando responsáveis por todas as demais operações que um curador do
feminina era não só prezada como estimulada, ao mesmo tempo função e fundamento da
serem ou não casadas. No presente, o exercício de ocupações pagas por grande parte da
população feminina de Lençóis tornava-se cada vez mais comum, absorvidas pela economia
turística para trabalhos que os homens em geral não realizavam – como cozinhar, limpar e
possuíam fonte de renda própria, como exemplificado anteriormente – por mais que também
seus serviços aos trabalhadores da cidade. Entre esses serviços podiam estar incluídos os
sexuais, como Elias gostava sempre de lembrar por considerar que as senhoras que outrora
haviam sido mulheres-damas invariavelmente figuravam entre aquelas que – como todas
que intriga e fuxico eram em alguma medida inevitáveis ao culto – havendo mesmo quem os
311
Entre os fatores que podem ter influenciado a incompletude da ascensão feminina à liderança no jarê pode-se
elencar a não ocorrência em Lençóis do mesmo êxodo que teve lugar em diversas outras cidades da Chapada
entre as décadas de 1950 e 1980 para grandes centros urbanos do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro e
posteriormente Brasília. De todo modo, a expressão presente por exemplo na comunidade do Mulungu, no
município de Boninal, também na Chapada Diamantina, segundo a qual “mulher casada é mulher governada”
(Brantes 2007: 28, grifo suprimido), se adequaria perfeitamente à realidade dos jarês de Lençóis.
288
considerasse integralmente necessários. Os membros das casas de culto que menos tinham
medo de dizer abertamente aquilo que pensavam – os chamados “baforentos”, por gostarem
conhecidos e que seriam comentados por anos a fio, a serem lembrados fosse como
discórdia e da inimizade. Dessas tramas não faziam parte somente as pessoas, como
igualmente suas entidades, algumas das quais obtinham fama de serem especialmente
“sotaqueiras”, propensas aos sotaques, que são mensagens normalmente cifradas dadas na
forma de cantigas ou avisos aos presentes, a ausentes ou mesmo ao próprio carnal que as
manifesta. Não se segue necessariamente que os caboclos de uma pessoa que possua fama de
fazer “resenhas”, disseminar relatos dos acontecimentos com ou sem intenções malfazejas,
acontecendo o contrário. Mais uma vez, de qualquer forma, os melhores entre os curadores
costumam ser considerados aqueles que dominam sobremaneira a arte do fuxico, capacidade
compartilhada por seus espíritos, e que podem se ver envoltos durante a realização de jarê em
disputas de sotaque, nas quais trocam cantigas com uma entidade manifestada de maneira
crescente até que alguém se dê por vencido – em geral o desafiante. De todo modo, fazer
fuxicos e intrigas de qualquer tipo não é uma atividade a que alguém se dedique
Quanto mais importante uma pessoa é, maior a chance de ela se tornar alvo de fofocas,
algo de que Áurea tinha plena consciência e pelo quê não se deixava abalar. Ao contrário, de
certa maneira, tornar-se alvo de suposições por parte de outrem servia apenas para tornar
patente o fato de que ela era uma pessoa invejável – e como tal devia logicamente se importar
com esse sentimento somente na medida em que era preciso se proteger contra alguns de seus
312
A expressão que o resume de maneira sintética não deixa dúvidas sobre o canal de seus efeitos: “a língua fala,
o corpo paga” (Gonçalves 1984: 114).
289
efeitos possíveis, alguns dos quais podiam acontecer mesmo à revelia daqueles que lhe
invejavam. Depois de ter feito seu trabalho de reforço, Áurea descansava ainda mais segura
por contar com o amparo de suas entidades revitalizadas, especialmente daquela que era sua
entidade mais bela e cobiçada, cujas cores principais a adornar suas roupas eram o amarelo e
o dourado. Apesar de ser bastante morena e possuir compridos cabelos escuros, Áurea fora
apelidada desde nova de “Loira”, forma pela qual tanto Pedro de Laura como a comadre dele,
Dona Valdelice, a chamavam – ocasionalmente até hoje, no caso da última. Certa vez,
enquanto conversávamos, acompanhados por Elias, diante do hospital onde Áurea trabalhava,
sentados de frente para o Rio Lençóis, com suas águas cúpreas reluzindo ao sol, eu lhe disse
que achava seu nome especialmente bonito e apropriado já que ele próprio remetia ao ouro.
Áurea sorriu e me respondeu, sua voz terna: “Eu sei, meu filho. Eu sei...”
4.2 Confidências
As pessoas ligadas ao jarê, em especial, costumam tomar bastante cuidado com aquilo
que dizem, não só por preferirem evitar a fama de faladores como por terem aguda noção das
para a liturgia como para o manejo de determinadas entidades e energias que podem ser
forma deliberada como não intencionalmente. Um curador mencionou certa vez como era
praticamente tão significativo que, ao se aproximar de sua morte e finalmente falecer, uma
pessoa parasse de se mexer como perdesse sua voz. A voz de alguém, ele deu a entender a
seguir, ao mesmo tempo conectava uma pessoa a seus espíritos como era fruto dessa própria
290
ligação, sendo um dos meios por excelência de colocá-los em marcha. O cotidiano de uma
pessoa é cercado de fórmulas e enunciações que a conectam às entidades que lhe são
próximas, em geral rogando sua proteção contra males e perigos ou mobilizando-as para que
concedam suas bênçãos àqueles que lhe são caros. Impressionou-me o fato de que mesmo as
conversas mais informais, nas quais os envolvidos encontravam-se em uma postura de escuta
estarem atentos aos assuntos mencionados por todos. Essa capacidade de atenção difusa, para
mim ainda mais abstrusa antes de me acostumar ao sotaque e ao estilo do falar local 313, não
paralelas são sempre ouvidos e devidamente respondidos por aqueles a quem o tópico
concerne. Além disso, é quase com o mesmo tipo de postura corporal e tom de voz que se
discutem trivialidades e assuntos bastante graves, e garantias e promessas feitas são sempre
desinteressado – sem que haja muito contato dos olhos, em momentos descontraídos ou
Uma das fórmulas que passei a entender como um meio de se resguardar contra a ação
indesejada de forças místicas, geralmente empregada por pessoas que em sua trajetória
haviam tido contato bem próximo com entidades do jarê e depois dele se afastado
parcialmente, envolvia afirmar em alto e bom som que não se acreditava naquele tipo de
coisa. Afirmações dessa espécie – mais de descrédito do que de descrença, como será visto a
seguir – costumavam ser empregadas logo após se haver descrito uma situação
313
Já caracterizado como “um falar com ritmo próprio, rápido, frases curtas, bem marcadas, com razoável
variedade de inflexões” (Gonçalves 1984: 111).
291
relatar um evento especialmente marcante que poderia conectar o falante às potências místicas
às quais se referia, pois o próprio ato de narrá-lo poderia significar o reconhecimento de sua
grandeza. Descrever essa medida como uma forma de proteção é de saída uma forma algo
desleal de encará-la, não por se tratar de uma interpretação falsa, mas por se tratar, ainda que
obliquamente, de uma maneira de privá-la de parte de sua eficácia. Dito de outro modo,
enfatizar o objetivo defensivo que a afirmação possui pode acabar por inverter seu efeito
esperado, colocando o falante justamente à mercê de forças com as quais ele não deseja se
haver de modo algum. Um amigo frequentemente comentava comigo que jamais diria às
senhoras com quem conversava que ele próprio não acreditava, por exemplo, em lobisomens e
outras figuras míticas que lhe diziam ter visto com os próprios olhos, e me aconselhava a
fazer o mesmo: “Iriam desatar em choro, além de acharem que eu as considero mentirosas”,
ele dizia. Se recorro agora a expediente semelhante – e aqui sim o empreendo de modo
análogo ao de meus amigos quando oferecem afirmações de descrédito –, o faço pois ele me
permite lidar de maneira frutífera com outra questão, a da falta de sentido da investigação
jarê com seu já mencionado ideal de suficiência parte da plenitude das formas de
extrair a si mesmo da ação das forças abundantes no mundo. Tampouco se trata, na maior
parte dos casos, de um contraste absoluto entre extremos, como se bastasse uma única
comprovação ou desilusão para que uma pessoa se tornasse plenamente crédula ou cética –
como aconteceria no primeiro paradigma. Ou, como me disse certa vez um senhor que
frequentava um dos terreiros a que passei a ir com maior frequência, e que Elias me diria ser
314
Um curador de Nova Redenção disse explicitamente: “O mundo é uma despensa, tudo que você procurar
dentro dele, você encontra” (Rabelo 1990: 139).
292
um dos últimos descendentes reconhecidos das nagôs de outrora: “Já vi muita coisa que me
faria duvidar, e muita coisa mais que me faz acreditar”. Nesse jogo que não precisa ser de
soma zero, torna-se muito mais contundente o acúmulo da experiência – e dos experimentos –
para se formar a si mesmo e ao mundo em que se habita, do que a eliminação das supostas
contradições e incongruências às quais se estaria submetido. Como outro senhor fez questão
que eu entendesse bem claramente, para existirem, os próprios entes que constituem o mundo
precisam da devida atenção, interesse e reverência, num processo que nada tem de meramente
simbólico. Além disso, não se trata de meramente existirem ou não existirem, mas de se
existir com mais ou menos intensidade, num gradiente que vai das forças mais potentes e
Em maior ou menor grau, o jarê pode ser visto como um dispositivo de orientação de
vivos os entes do mundo – cujos graus de existência são continuamente variáveis –, incluídos
nesse conjunto, ainda que possivelmente longe de serem sua parte mais fundamental, as
pessoas que frequentam uma casa. Desse ponto de vista, os membros dos terreiros
funcionariam antes de tudo como espécies de rebites, por sua capacidade de redirecionar,
certos entes do mundo, como aconteceu, por exemplo, no trabalho de reforço de Áurea e seus
caboclos. Em várias outras situações ficou claro como a mera ação de direcionar a atenção
para uma entidade determinada poderia ser o bastante para fortalecê-la ou esmorecê-la, por
315
A concepção africana da pessoa aproxima-se assim mais da filosofia medieval do que da kantiana, para a qual
não há intermediários possíveis: existe toda “uma escala de graus do Ser. Existe-se mais ou menos” (Bastide
1953: 371).
316
Nesse sentido, a crença sendo concebida como um dos principais elementos que fazem parte da composição
das mônadas abertas de que fala Gabriel Tarde (1895: 67, 90-91, 93), o mesmo valendo para o desejo.
293
vezes com consequências terríveis para os envolvidos317. É por esse motivo que um iniciando
precisa, por exemplo, permanecer com os olhos cobertos durante seu trabalho de limpeza, ou
que não se deve chorar na presença de um espírito ligado a mortos, como é o caso de muitos
exus no jarê. Em mais uma de suas pérolas, Dona Valdelice disse certa vez a Elias – quando
este buscava bajulá-la elogiando seu vasto conhecimento da ciência do jarê a ponto de deixá-
la irritada – que “só quem sabe tudo é Deus e os orixás”, e acrescentou, mais serena: “A gente
só escolhe é em quem confiar”. Por meio de sua máxima, ela revelava com muita propriedade
que no jarê a crença não passa do grau máximo da confiança, essa sim verdadeiramente
fundamental. Perguntar se alguém acredita ou não no jarê ou em uma de suas entidades pode
ser algo sem sentido ou mesmo ofensivo: a boa pergunta equivalente envolveria a questão do
quanto uma pessoa confia ou não no culto e em seus participantes, tanto humanos como
espirituais.
Como mencionado anteriormente, ser ou não ser “de confiança” é um dos principais
comentários que se pode fazer a respeito do valor de uma pessoa, e amigos próximos
costumam, em meio a brincadeiras, dizer uns dos outros que não são de confiança, afirmação
que de outro modo poderia constituir ofensa grave. “Ficar dando confiança” a quem não se
deve é uma maneira infalível de atrair para si infortúnios, assim como o é escolher deixar de
quem confiar significa bem mais do que acreditar ou não no conhecimento ou na palavra de
uma pessoa, mas igualmente cultivar sua amizade e valorizar a capacidade daquele a quem se
confere crédito de, por sua vez, confiar em outros que também lhe queiram bem – aí incluídas
todas as entidades que circundam e podem habitar os envolvidos. As pessoas ligadas ao jarê
317
Daí não me parecer exato afirmar que predomina um sentimento de vergonha derivado do significado
marginal que as incorporações rituais teriam em função da “condição marginal do culto na sociedade mais
ampla” (Rabelo 1990: 265-266). Ainda que se sentir acanhado por ter para si direcionados muitos olhares
também possa ser um motivo para fazê-lo (Rabelo 1990: 229), é também provável que alguns dos adeptos
cubram seus rostos ao começarem a ser tomados por suas entidades para tentarem não ser afetados pelas
atenções dos presentes.
294
depositam sua confiança não como se confia num banco, esperando retorno, mas como se
confia a alguém a chave de sua casa, como se confidencia a alguém um segredo: esperando
que o depositário tenha em mente seu bem, não importe o que aconteça, e sabendo que confiar
em alguém é igualmente uma maneira de se tornar confiável para aquela pessoa. A expressão
inúmeros dos efeitos desejados no jarê, tanto durante seus rituais como em seu cotidiano. Diz-
se, por exemplo, que tomar um remédio natural prescrito por um curador de nada adiantará se
a pessoa não tiver fé tanto nas ervas selecionadas como naquele que as preparou e em suas
certa vez a líder das baianas de Lençóis: “Respeitar, eu respeito todo mundo. Agora, botar fé,
Se a questão de ter de escolher em quem confiar e em quem não confiar pode ser
considerada um ponto pacífico entre os frequentadores do jarê, o mesmo não pode ser dito a
respeito da decisão de a quem e quando vale a pena desobedecer, deixar de confiar por mais
momentaneamente que seja – ainda que para tanto uma pessoa vá confiar antes de tudo em si
mesma ou em suas entidades. Ousadia só não é o termo mais adequado para falar da qualidade
que possuem aqueles que arriscam desobedecer às orientações que recebem por ser
homens jovens e pela qual são quase invariavelmente criticados ou mesmo punidos. Há, de
todo modo, uma aproximação possível entre algo dessa atitude e o destemor tão prezado pelos
grandes nomes do jarê, a coragem, audácia ou intrepidez necessárias àqueles que desejam
testar os limites do que é possível realizar. Saber quando desobedecer às orientações de seu
ignorar os avisos de cautela de uma entidade, é algo que distingue os iniciados que obtêm os
destemido varia não só de acordo com a personalidade e a força pessoal de cada um, mas
dentro do culto como na vida de forma geral. A dimensão dos riscos que se corre ao abusar da
sorte, de todo jeito, costuma ser proporcional à grandeza dos resultados ímpares que se pode
obter, sejam eles os esperados, sejam eles imprevistos, já que nada garante que um arrojo seja
necessariamente bem-sucedido.
A habilidade para realização de adaptações rituais costuma ser auxiliada por outra
saber, uma ótima memória318. No jarê, esse atributo costuma ser considerado ao mesmo
uma pessoa, como era o caso de Áurea, apesar da relativa pouca idade. Os maiores detentores
da ciência do jarê encontram-se entre aqueles que possuem memorizados não só eventos
específicos do passado como uma vasta quantidade de cantigas, sequências rituais e nomes e
efeitos de plantas, que são capazes de mobilizar quando as condições se mostram adequadas.
A memória pode ela também ser treinada e aprimorada, atividade a que os curadores
maneira cada vez mais confiável, se assim o desejar. Um pai-de-santo mencionou certa vez
como considerava a mente algo muito parecido com um computador, instrumento que ele
próprio jamais tinha utilizado, por reconhecer no aparelho a capacidade não só de processar
318
Em diversas ocasiões os lençoenses chamavam atenção para a prodigiosa memória de alguns dos mais antigos
habitantes da cidade, em especial as senhoras centenárias que haviam diretamente vivenciado ou ouvido relatos
em primeira mão sobre toda a história da região (Ganem 2001: 21, 76). Na novela Pedra sobre pedra, inspirada
na realidade de Lençóis, essas senhoras forem representadas pela figura de Dona Quirina, que se lembrava
vivamente do passado apesar de ela mesma já possuir 120 anos de idade.
296
possibilitar acesso rápido às mesmas319. De certo modo, seria possível dizer que do ponto de
vista do jarê as pessoas que possuem uma memória invejável são consideradas as mais
nessa avaliação do que a disposição para fornecer comentários sobre elas – inclusive porque
deixar de fazê-lo pode contar em geral como sinal de que àquela inteligência se alia uma
grande sabedoria320.
Mesmo algumas das pessoas que detêm as melhores memórias também podem sem
sendo muito comum que os líderes das casas de culto possuam cadernos guardados de
maneira bastante ciosa nos quais detalham parte de seu conhecimento tradicional. O acesso a
esses cadernos costuma ser bastante restrito, confiado apenas às pessoas mais próximas do
chefe de uma casa, e a autorização para que sejam realizadas cópias dos mesmos são ainda
mais raras. Os cadernos costumam conter listas de visitantes da casa, datas de realização de
cadernos ou outros aparatos escritos para se recordar, por exemplo, da letra de uma cantiga
que só é cantada em determinadas ocasiões menos comuns, já que seu conteúdo funciona
muito mais como um auxílio mnemônico do que como uma forma de se adquirir um
conhecimento que previamente não se possuía. De todo modo, mais de uma vez os filhos-de-
santo indicaram que o simples fato de se ter acesso ao que havia escrito em cadernos como
319
Outro curador, de Nova Redenção, disse: “Nunca tive estudo nenhum. Meu único estudo foi minha ideia, a
memória que Jesus me deu em meu pensamento” (Rabelo 1990: 117, cf. tmb. 132).
320
A aproximação direta entre memória e inteligência já fora feita para as tradições religiosas iorubá (Verger &
Anthony 1996: 174 apud Souty 2007: 267).
297
esses, bem como em livros, nunca era suficiente para que alguém se tornasse um curador de
verdade.
4.3 Caboclos
Um dos motivos adicionais que contribuía para Áurea se emocionar com a cantiga
transcrita no início desse capítulo era o fato de ela ser dedicada a Santa Bárbara, que é outro
nome dado a Iansã, aquela que era sua entidade mais famosa, batizada em sua cabeça por
Pedro de Laura. Iansã, inclusive, é provavelmente o espírito que recebe a maior gama de
candomblé são consideradas distintas. Conversando com Áurea certa vez, Elias lhe perguntou
qual era, afinal de contas, a entidade principal dela, se Iansã, Oyá, Oxum ou Oxumarê, já que
no jarê cantigas que se referem a esses quatro nomes (além de Santa Bárbara, nome em geral
considerado o maior sinônimo de Iansã) são evocadas em momentos rituais nos quais só se
deve reverenciar uma única entidade por vez. Áurea respondeu que a confusão de meu amigo
era justificável, tanto por no jarê esses nomes efetivamente tratarem de um mesmo espírito
como por sua entidade de frente ser uma variação específica chamada Iansã Tempo. Áurea,
como muitos outros filhos-de-santo, tinha grande orgulho de suas entidades, especialmente,
em seu caso, da Santa Bárbara que lhe acompanhava havia tanto tempo e que já conquistara
grande reconhecimento por parte dos frequentadores do jarê, a ponto de se tornar uma
presença obrigatória em praticamente qualquer celebração nas casas de culto. Áurea era
propensa a falar com os amigos sobre suas entidades, e podia se mostrar genuinamente
aborrecida caso fosse feita alguma comparação desfavorável entre sua Iansã e qualquer outro
298
espírito, como quando alguém comentou que ela era muito enigmática: “Falem o que
quiserem de mim, mas não falem mal dos meus caboclos”, afirmava.
mobilizadas no culto que poderiam ser descritas por meio de três diferentes eixos, utilizando
em todos os casos metáforas ópticas, especialmente adequadas não só por fazerem referência
a domínios contínuos como por serem parte de uma das formas explicitamente utilizadas pelas
pessoas que lidam com elas para diferenciá-las ou as aproximar umas das outras321. O
primeiro eixo, de especiação das entidades, poderia ser imaginado como uma escala cromática
reconhecer entidades que se manifestam nas casas de culto em função das cores das roupas
que empregam e que são aceitas pelos caboclos – como amarelo ou vermelho para Iansã, azul
escuro para Ogum, verde para Sultão das Matas –, bem como graças aos objetos e adereços
que empunham e sobre os quais exercem sua influência, em geral da mesma cor de suas
proximidades que podem existir entre entidades distintas, exemplificada pela vizinhança e
passagem gradativa de cores lado a lado umas das outras: diferentes tons de verde indicam
caboclos ligados às matas, mais próximos entre si do que das entidades pertencentes às águas,
por exemplo, que vestem matizes de azul. Por mais que a escala de tonalidades funcione nesse
momento antes de tudo como um instrumento retórico (por exemplo, apesar de poderem vestir
o mesmo tom de azul, Ogum e as entidades das águas não são considerados próximos), muitas
vezes ela pode corresponder de maneira bastante direta às conexões entre espíritos distintos,
321
Essas distinções são igualmente realizadas, com algumas flutuações específicas a cada caso, nas demais
religiões de matriz africana. Não é nenhum exagero conectar esse sistema a uma determinada ontologia
cromática que parte de um monismo energético de base (Goldman 2005: 116), por sua vez apenas “a resultante
de uma multiplicidade intensiva de linhas de força e vetores” (Goldman 2012: 277-278). Um curador de Nova
Redenção assim o exemplificou: “Um pai tem dez, doze filhos. Eles não podem ser todos exatamente iguais uns
aos outros, certo? Bem, é assim com os encantados...” (Rabelo 1990: 129). A discussão a seguir poderá ser mais
proveitosamente acompanhada junto do gráfico presente na próxima página.
299
igualmente entrevistas pela posição relativa que ocupam nas sequências de incorporações
Especiação
– Densidade +
Singularização
Generalização
Exemplo de área
de existência
pouco intensiva,
em baixa saturação
mesmas, já que praticamente todas podem, num extremo, existir enquanto forças muito
ecológicos (rios, matas, serras) ou ocupações (mineração, pecuária) – ou, no outro extremo,
mostrarem-se instanciações singulares que cada pessoa pode manifestar. A maior parte das
interações dos membros dos jarês com as entidades se dá quando elas existem dessa forma,
algo de sua voz, maneirismos, estilo de dança. Os espíritos em sua face mais geral costumam
ser lembrados quando são homenageados em festas específicas ou quando são invocados para
conceder bênçãos a alguém322. Ainda que, por exemplo, muitas pessoas possam comparecer a
uma festa para assistir à manifestação de uma das entidades de Áurea, um jarê dedicado a
322
Nos jarês de nagô de antigamente, usava-se a palavra “calundu” para designar a entidade abrangente, o
“encantado genérico”, sendo a origem quimbunda do termo apontada como mais uma evidência do fundamento
banto do jarê (Senna 1998: 71 nota 42).
300
numa tela, esse eixo poderia ser entendido como um de densidade ou nitidez da imagem, no
qual a seção superior seria preenchida por um contínuo espraiado – representando a divindade
em toda abrangência de sua alçada – enquanto a inferior seria ocupada por pontos cada vez
mais esparsos – indicando cada uma das entidades incorporada num adepto específico e
intensidade da existência da entidade, sem ignorar o fato de que um espírito que exista de
maneira mais intensa que outros em geral acaba tornando-se também mais diferenciado que os
demais a ele semelhantes. Quanto mais uma entidade é mencionada e reverenciada, quanto
mais rituais são feitos por ela e em homenagem a ela, há quanto mais tempo ela costuma
visitar rotineiramente um mesmo terreiro, maior será sua força pessoal e de modo mais
determinante ela existirá em meio aos adeptos do jarê. Inversamente, espíritos que passam a
ser ignorados, que deixam de ser devidamente alimentados e honrados com os procedimentos
suprimidas da sequência litúrgica habitual, acabam vendo diminuída sua relevância para o
dois eixos anteriores, esse terceiro poderia ser assemelhado ao grau de saturação das cores de
uma imagem, tornando determinadas porções mais vívidas ou mais pálidas conforme a
entidades, caboclos, orixás, santos – de modo indiferenciado para falar a respeito de uma
gama de seres místicos em suas variadas formas de existência não significa que não realizem
323
A respeito desse fenômeno, no universo do candomblé já se ouviu a adequada expressão “orixá em vias de
extinção” (Patricia de Aquino, comunicação pessoal apud Latour 1984: 21 e nota 4).
301
provavelmente de maneira ainda mais importante, essa indiferenciação potencial aponta para
uma das características mais fundamentais do sistema, que é sua capacidade transformacional.
Mais do que servir ao estabelecimento da identidade de uma entidade, esses eixos permitem
pensar tanto seus cruzamentos como as movimentações que, entre outras, a própria atividade
da questão não tanto de descobrir a identidade de uma entidade mas de saber com quais ela se
que ela será, novamente, nem tanto reconhecida como configurada, sendo mesmo possível
específico numa pessoa, pelos mais diferentes motivos. Por sua vez, se as atualizações
movimento propulsionado por suas versões mais abrangentes, inversamente é a densidade das
Finalmente, é no curso dos acontecimentos tanto rituais como cotidianos que a potência das
habitando os corpos dos iniciados, costuma-se conviver com as entidades de maneiras mais
auditivas, que podem ter lugar tanto durante sonhos como em vigília324. A capacidade de se
manifestarem dessas maneiras também é acompanhada pelas faculdades de ver e ouvir, ainda
que muitas vezes não simultaneamente: ainda que não componham sua totalidade, estão longe
de ser exceção tanto as vezes em que uma pessoa ouve uma voz que atribui a uma entidade
324
O nome dado às aparições puramente visuais das entidades, aleivosia, na região é por vezes pronunciado
igualmente “livusia” (O. Senna 2002: 12).
302
sem ter visto sua imagem, como aquelas nas quais alguém vê uma figura de aparência humana
(em geral na mata) e se dirige a ela verbalmente sem obter qualquer resposta de volta. De todo
modo, como mencionado, as entidades que circundam uma pessoa costumam estar
constantemente atentas àquilo que se passa em seu redor, sendo propensas a agir sem que seja
necessário instá-las a tanto. Como uma filha-de-santo certa vez afirmou enfaticamente: “Diz-
se que santo não é cego e, além disso, tem ouvido!” Os espíritos podem deixar também outras
formas de rastros, como borrões luminosos em vídeos e fotografias, alguns dos quais podem
ser distinguidos apenas pelos maiores entendidos do jarê, como os grandes curadores. Espera-
se que todo curador tenha conhecimento e seja capaz de reconhecer um grande número de
se mesmo que os maiores entre os curadores terminam por ser capazes de lidar de maneira
muito direta literalmente com todos os espíritos do jarê, sua alçada abrangendo idealmente
A incorporação das entidades pelos iniciados nas cerimônias de jarê, num processo
que será mais bem detalhado adiante, costuma acontecer de acordo com sequências
podendo de todo modo sofrer alterações repentinas, feitas sempre que possível com orientação
do líder responsável pela festa325. Quando uma entidade se manifesta num iniciado, fica
daquela mesma entidade: quando Áurea incorpora sua Iansã, espera-se que outras pessoas
presentes recebam também suas próprias Iansãs e dancem todas juntas no pagodô. Caso
aconteça de uma pessoa ser tomada por outro espírito que não seja uma Iansã, por exemplo
325
No candomblé essa ordenação da sequência de incorporações recebe o nome de “xirê”. No jarê, entretanto,
não existe jamais nada parecido com o “adarrum” do candomblé, o toque que estimula a vinda, num mesmo
momento, de inúmeras divindades distintas (Bastide 1958: 36).
303
por ora a pessoa na qual se encontra e aguardar o momento posterior no qual outras similares
a ela serão veneradas. Esses eventos são relativamente esparsos, quando muito limitando-se a
uma ou duas entre as dezenas de incorporações que acontecem ao longo de uma cerimônia de
manifestações que acontecem fora da ordem esperada são também percebidas como comuns
tanto pelas entidades serem consideradas seres caprichosos quanto em função das
Áurea, acompanham de modo geral o ordenamento dos caboclos reverenciados nas festas na
Capivara, habitualmente seguido pelas outras casas de jarê de Lençóis. De todo modo, sempre
que é feita uma festa em homenagem a um espírito específico ele costuma preceder todos os
chamado de “caboclos de frente”, seres aos quais a designação “orixá” costuma também ser
aplicada com maior frequência. Os caboclos de frente são liderados por Ogum, entidade
combativa que veste tons próximos do azul escuro e que é também renomada por sua
capacidade de oficiar trabalhos rituais. Após a despedida de Ogum as atenções se voltam para
Oxum ou Oxumarê, esta última considerada por alguns uma versão masculina da mesma
entidade. Iansã costuma vestir tons de amarelo ou vermelho, é uma das entidades femininas
por excelência do jarê, possui domínio sobre a morte e os mortos e – assim como Xangô,
entidade que lhe sucede na sequência – sobre os raios, trovões e tempestades de maneira
geral. Da mesma forma que ela, Xangô, que traja exclusivamente o vermelho, é também um
orixá ligado à vaidade, tendo ele, contudo, especial aversão à morte e aos mortos, ao contrário
da primeira. Elias certa vez sintetizou uma hipótese transformacional esboçada por algumas
304
outras pessoas ligadas ao culto, segundo a qual alguns entre os orixás existentes nos cultos de
matriz africana em seu princípio foram, durante a formação do jarê, transpostos para os outros
Oxalá aparecem, por vezes ligeiramente modificadas, na sequência ritual dos jarês, próximos
não dos demais espíritos de frente, aqui descritos, mas dos demais caboclos separados nos
das entidades pertencentes à “aldeia d’água”, numa fase cujo início é marcado por cantigas
d’água é “puxada”, chega ao salão, pela ação de Marinheiro, entidade que veste diferentes
tons de azul e mais ligada às águas salgadas dos mares. Em ordem, ele costuma ser sucedido
por Mãe d’Água, Sereia e Janaína327 – essa última uma versão infantil da entidade Iemanjá –,
todas trajando, além dos tons de azul característicos de toda entidade da aldeia d’água,
variações de rosa e amarelo claro. Essas entidades femininas são consideradas ligadas às
águas doces dos rios e das lagoas, suas instanciações muitas vezes habitando marcos
a mais famosa delas a Lagoa Encantada, formada pela junção dos rios Utinga e Santo
Antônio328. Os espíritos ligados à aldeia d’água são quase invariavelmente vistos como
bastante calmos e dóceis, em comparação tanto com os orixás de frente que lhes precederam
quanto com os caboclos que imediatamente lhes sucedem na sequência e aos quais costumam
ser postos em oposição. Sua forma de dançar pode ser igualmente descrita pelos iniciados
326
Esse processo de transposição das entidades, que recebe alhures o nome de “caboclarização” (Senna 1998:
116), é um dos motivos que leva todos os espíritos a poderem ser chamados indistintamente de caboclos. Por sua
vez, os conjuntos de entidades também podem ser considerados determinados espaços, “sítios” nos quais o
“território sagrado” pode ser repartido (Senna 1998: 115).
327
Para a qual se registra também o nome de Inapiucina (Senna 1998: 133).
328
Menção que também é feita na literatura regional (Pereira 1910: 57; Moraes 1963: 136-137, 139 nota 2).
305
como tendo passos mais suaves que os demais espíritos incorporados, ainda que a diferença
A chegada dos caboclos da “força da mata” marca uma das etapas mais movimentadas
do jarê, não somente por contar com as entidades consideradas mais bravias e selvagens do
culto como por ser também próximo a ela que se costuma haver a interrupção do fluxo de
da mata, todos em geral vestindo tons de verde, costumam ser liderados por Sultão das Matas,
ao qual se seguem incorporações das entidades Eru, Gentio, Índio (também chamado de
Tupinambá) e Oxóssi – ou sua versão infantil, de nome Odé. As entidades que compõem a
força da mata costumam ser de algum modo associadas à população indígena que deve ter no
passado habitado a, ou viajado pela, Chapada, fossem espíritos de indígenas que faleceram ou
se encantaram, fossem espíritos cultuados pelos próprios. Elias me lembrava que os caboclos
da força da mata eram os “donos da terra”, que ele gostava de chamar de “caboclos da Terra
de Vera Cruz”, e como tal seriam para sempre dignos de homenagem por parte daqueles que
agora habitavam um território que por direito seria de outrem, num compromisso estabelecido
bravos e teimosos, e tanto sua fala como sua dança são ditos “avexados”, ligeiros, exercendo
em suas incorporações um movimento veloz que é inibido no mundo que agora habitam,
chamado Aruanda330, associado às matas e a árvores específicas que lhes servem de morada.
329
Há registros sobre a ocupação, mais duradoura ou mais transitória, de diferentes etnias indígenas no território
que é hoje denominado de Chapada Diamantina, incluindo maracás, paiaiás, paiaiazes, maracanasus, cariris,
tapuias. Às línguas faladas por esses dois últimos – igualmente mencionados em algumas cantigas de jarê –
atribuem-se termos e nomes muito usados na região, como orobó, assuruá, jequié, cincurá, catulé, mucugê, entre
outros (Pereira 1910: 69 nota **; Pereira 1937: 42-43; Tavares 1959: 17-20; Siqueira 1978: 37-43, 111; Bandeira
1995: 13, 15; Araújo, Neves & Senna 2002: 148 nota 64). Um curador do Remanso, povoado de remanescentes
de quilombolas, evidenciava em sua comunidade a defesa de um ideal de vida considerado indígena, afirmando
que as agruras que grande parte da população nacional vivia haviam começado com a expulsão dos povos
ameríndios de suas terras. De acordo com sua visão, constitutiva em algum grau de todos os jarês, quando forem
vitoriosos na luta espiritual que agora travam, os caboclos obterão como consequência o retorno das populações
indígenas às terras que são suas por direito (Senna 1998: 97-98).
330
No anexo IV, na seção destinada a cantigas oferecidas indistintamente a qualquer caboclo, ver a que começa
com “E olha a palha do coqueiro”.
306
reconhecidas mais por sua ocupação que por qualquer cor específica de vestimenta, muitas
dançar sem camisas. Os espíritos dessa linhagem encontram-se entre aqueles que os iniciados
consideram mais prováveis de terem sido pessoas determinadas que viveram entre seus
ordem em que costumam chegar nos salões durante as festas, estão Mineiro, Tomba-Morro,
Preto Velho, Jericó e Vaqueiro. Jericó, em particular, contam tanto os adeptos como as letras
das cantigas em sua homenagem, foi um escravo que trabalhava tomando conta de gado e
tinha especial predileção pela luz da lua, até ter sido cegado por seu proprietário por um grave
deslize que teria cometido. As melodias de suas cantigas são tão lúgubres quanto belas,
para Vaqueiro, entidade que incorporada costuma fazer questão de simular uma vaquejada,
usando uma tira de pano no lugar do laço e lutando contra um dos presentes que se dispõe a
A última linhagem que comparece a uma festa de jarê é a do “povo velho”, que
costuma se vestir com roupas brancas e realizar um ritual específico junto aos tambores.
Liderada por Oxalá ou por Baluaê, a chegada dessas entidades é precedida por cantigas
específicas cuja execução é acompanhada pelo gesto ritual, empreendido por todos os
presentes, de levar uma das mãos ao chão, mantendo-a ali durante alguns instantes, seguindo a
iniciativa do chefe da casa. Entre os membros do povo velho costumam estar também Nanã e
Nagô, entidades femininas ligadas à lama, substância que elas recriam num dos confins do
salão por meio da fricção constante e cadenciada de uma quantidade considerável de azeite de
dendê, derramado pelo dono da casa, no chão de terra batida do salão. Como mencionado
imediatamente ao chão e se locomover com muito custo, apenas engatinhando, bem como não
serem capazes senão de balbuciar suas cantigas, em geral reconhecidas mais por sua melodia
Todo jarê costuma ser encerrado com incorporações a uma entidade que parece ser,
contudo, o oposto das demais do povo velho, por sua jovialidade e vivacidade. Trata-se de
Cosme e Damião – dupla à qual se refere também em conjunto sem o artigo ou somente pelo
nome do primeiro –, uma das mais importantes entidades do jarê, motivo pelo qual a maior
parte das festas costuma acontecer no mês de setembro, no qual é comemorado o dia em
homenagem a esses santos gêmeos, de acordo com o calendário católico. Muitas festas
dedicadas a Cosme são realizadas em Lençóis, algumas delas podendo mesmo acabar
resultando em pequenos jarês caso a entidade decida incorporar em algum dos presentes.
Quando se manifesta, em um ou mais de um dos iniciados num jarê, Cosme Damião assume
comportamento infantil, com voz aguda e cometendo erros, especialmente trocas fonéticas, ao
falar, de uma maneira que lembra o processo de aquisição da língua pelo qual passam as
crianças. Ele se mostra dono de um senso de humor incomparável, estando sempre disposto a
valor irrisório) dos frequentadores da casa que ainda se encontram acordados após muitas
entregar qualquer tipo de objeto sempre em múltiplos de dois, número-chave para Cosme, a
todo momento lembrado em suas cantigas. Cosme Damião também se compraz em entregar
balas, sempre duas a duas, a todos aqueles que se encontram no local lhe prestigiando, dando
especial atenção às crianças – e mais ainda no caso de gêmeos – que faz questão de tirar do
chão, abraçar e abençoar. Cosme em geral finaliza sua participação, e com ela o jarê como um
limparem, com mel ou dendê. Se alguém não deseja sujar suas mãos e suas roupas, pode
308
tentar evadir-se da entidade, o que por vezes gera perseguições cômicas. Voltarei à
Além das entidades mencionadas, existe um outro grande conjunto de espíritos ditos
no salão de uma casa de culto – composto pelos exus. No dia da realização de um jarê, na
prática os exus são as primeiras entidades a serem reverenciadas, com obrigações rituais e
cantigas feitas no entorno das propriedades e junto ao caramanchão, executadas somente por
homens, quase sempre acompanhados de perto pelo curador da casa. Apesar de também ser
possível reconhecer exus específicos que se anunciam quando se manifestam de algum modo
num adepto – como Zé Pelintra, Tranca-Rua, Pomba-Gira –, a maior parte desses espíritos
existe e atua acoplada aos caboclos, às entidades “da direita”. Assim, os exus são chamados
igualmente de “escravos” e “mensageiros” das demais entidades, por serem responsáveis pela
realização de tarefas, envio de recados e colocação em movimento de forma geral das forças
envolvidas no jarê. Apesar de não terem roupas de tons específicos, por dificilmente se
incorporarem nos adeptos, as cores preto e vermelho são a eles associadas, sendo escolhidas
para adornar suas moradas e utilizadas nos trabalhos rituais que eles facilitam. Suas oferendas
são geralmente deixadas em encruzilhadas, cruzamentos dos caminhos, sendo toda forma de
passagem tema sobre o qual exercem sua influência. Daso, o curador que acabou sendo o
respeito dos exus, comentando com seus filhos-de-santo como eram poucos os capazes de ver
que sempre que um caboclo chegava no salão para se manifestar numa pessoa, o exu que lhe
trouxera ficava do lado de fora aguardando o término da incorporação para levar o outro
espírito de volta à morada de onde viera. Aconteceu certa vez do Zé Pelintra de Daso se
manifestar após um ritual e reclamar da importância excessiva que parecia estar sendo
concedida ao Eru do curador, que acabara de deixá-los, lembrando aos presentes que sem a
309
ação do exu o caboclo não teria como chegar ao pagodô. Os exus são volúveis por excelência,
capazes tanto de unir como de separar, explicava Daso, ambas as ações referindo-se não
bem como realizar ou ter a si direcionados pedidos e promessas. As festas de jarê são
durante as incorporações, não sendo incomum ver um dos frequentadores da casa chamando
vezes aproveitam a ocasião para deixar os mais diversos recados para seus próprios aparelhos,
termo por vezes usado para se referir às pessoas que as incorporam, de orientações dietéticas a
espíritos são, via de regra, encarados com grande seriedade, da mesma forma como se confia
no empenho e no resultado vindouro das promessas feitas pelos caboclos – diferentemente das
promessas feitas por “carne podre”, como ocasionalmente são chamados os seres humanos em
contraste com os espirituais. Há quem arrisque a ira das entidades ao adiar a execução de
promessa assumida com termos vagos, seja ainda em sua própria força pessoal. Mesmo os
mais audaciosos não duvidam da possibilidade de que venham a ser castigados pelas
entidades, por mais que a punição possa vir muito tempo depois do que se imaginaria.
Até mais do que a realização dos trabalhos rituais que podem acontecer nas cerimônias
de jarê, os principais motivos que trazem as entidades aos salões estão ligados às diferentes
formas de serem reverenciados pelos frequentadores das casas de culto. Como constantemente
331
A respeito de seu papel nas religiões de matriz africana, fala-se do “princípio dinâmico” atribuído a essas
entidades e pelo qual são responsáveis, agindo enquanto “centro[s] de comunicação” aos quais se atribui o
equilíbrio dos elementos do cosmos (Elbein dos Santos 1975: 169-170, 180).
310
lembram os adeptos, os jarês são festas em homenagem aos espíritos, que se manifestam nos
iniciados para que possam ser devidamente adorados e presenteados, bem como para terem
oportunidade de dançar e conferir bênçãos àqueles que presenciam suas vindas. As chegadas
das entidades são sempre acompanhadas por saudações, em geral tanto palmas como abraços
No abraço em si o espírito manifestado estende sua mão para alguém que a recebe e,
mantendo o aperto, ambos aproximam-se enquanto erguem as mãos unidas entre seus corpos
até um pouco acima da cabeça. Ato contínuo, soltam-se as mãos que são passadas por cima
para a direita e depois para a esquerda. Certas vezes a saudação ritual pode ser incrementada
quando a entidade se ajoelha antes de estender a mão para uma pessoa, que a levanta quando
aceita o gesto; noutras vezes é a pessoa que pode se ajoelhar antes de ser cumprimentada:
ambos os gestos são denotações de respeito, ainda mais marcados e demorados quando
muitas das entidades fazem questão de serem reverenciadas com fumigação de incenso ou
ainda com fogos de artifício – dificilmente ausentes nos jarês e usados igualmente no início de
toda cerimônia –, além dos diversos objetos que lhes são eventualmente prometidos e
entregados.
Ao falar das manifestações das entidades durante os jarês, procurei manter recorrente
fenômeno, as pessoas que vão aos jarês são não exatamente ambíguas, mas ambivalentes:
enfatizam por vezes a ação da pessoa que incorpora, manifesta um espírito, noutras a da
entidade que se incorpora, se manifesta nos corpos dos adeptos. Da composição da qual
332
Ver foto 74 no anexo III.
311
participam, em diferentes graus, seres humanos e espirituais, diz-se que se trata de alguém que
se encontra “atuado”, uma pessoa cujas ações são motivadas por vontades múltiplas
da pessoa, um somatório de forças que indicará se ela será ou não alguém suscetível à maior
ação das entidades, se carregará ou não consigo a sina de poder ser tomado por elas durante os
jarês. Enquanto as mulheres, de maneira geral, nascem mais recorrentemente com uma
natureza cuja configuração lhes torna mais aptas a receberem as entidades, há alguns homens
que compartilham destino semelhante, entre os quais estão os mais capazes para se tornarem
curadores. A maior parte dos homens, de todo modo, costuma ser, por sua natureza, infensa às
perguntar sobre os motivos dessa ausência, alguns sugerindo – não sem alguma apreensão –
ser possível que existam pessoas que simplesmente não têm entidades. Há outras hipóteses
para a ausência das incorporações, como me disse, por exemplo, certa vez uma senhora, me
tranquilizando a respeito do fato de eu não sentir nada “de diferente” durante os toques, pois
havia pessoas cujos caboclos podiam estar por demais ocupados batalhando espiritualmente
pelo bem de seu carnal para nele se manifestarem. A natureza pessoal não é, contudo,
imutável, podendo ser em alguma medida modulada de acordo com o passar do tempo:
pessoas que jamais incorporaram entidades podem passar a fazê-lo, pelos mais diferentes
motivos – passar a frequentar mais cerimônias de jarê, herdar entidades deixadas por seus
Incorporar uma entidade durante um jarê é uma forma de prestar deferência à casa de
culto onde acontece a festa. Enquanto pessoas mais jovens ou com menos tempo de iniciação
costumam ter mais dificuldades em tentar conter as manifestações dos próprios caboclos,
312
sendo até por isso desencorajadas por seus pais-de-santo a frequentarem celebrações em
outras casas de culto, as mais antigas e com maior força pessoal são capazes de desestimular a
incorporação de suas entidades quando assim o desejam. Nos momentos em que não há
espíritos manifestados no salão, sempre marcados por alguma apreensão, entoam-se cantigas
olhares e dirigem suas atenções àqueles entre eles que sabidamente costumam incorporar o
caboclo em questão, estimulando-o a vir. Há muitas outras maneiras de induzir a chegada das
entidades, seja recorrendo a cantigas específicas caras a algum dos presentes, seja pelo uso de
objetos rituais – como a campa –, seja ainda pela ação de caboclos já incorporados se
dirigindo a outros adeptos – cumprimentando-os com abraços, apertos de mão ou pela união
de suas cabeças. O início da incorporação de uma entidade numa pessoa é assinalado por
outras ocorrendo com brevíssimos intervalos entre si. As primeiras costumam acontecer com
maior ênfase no caso das mulheres, as segundas nas incorporações que ocorrem em homens,
via de regra marcadas por uma maior sobriedade. Normalmente, em poucos instantes a
incorporação se concretiza, tendo por resultado a chegada da entidade que se coloca de pé,
quase sempre com os olhos fechados (total ou parcialmente), e se dirige aos tambores por cujo
rufar de boas-vindas é atraída. Caso o iniciado atuado esteja trajando peças de vestuário ou
ornamentos que impeçam a movimentação considerada adequada pela entidade, os itens serão
removidos pelos adeptos que se encontrarem perto dela, o mesmo tratamento sendo
dispensado a quaisquer objetos que se julgue poderem machucar a pessoa. Desse modo, são
removidos calçados, relógios, anéis e por vezes brincos e pulseiras, ocasionalmente com
indicações da entidade mas sem que ela própria jamais os remova. Somente os colares de
contas costumam ser mantidos, por vezes também resultando em seu rompimento no decorrer
contra uma ação perniciosa malograda enviada contra o adepto. A maior parte das entidades,
ao chegar, procede a um ou mais cumprimentos rituais aos presentes (em geral com a
fórmula: “Deus lhes pague, a caridade de vocês!”), bem como, no caso de algumas das mais
cabeça.
desgastante é receber uma entidade, algo também evidenciado pelas muitas tentativas feitas de
impedir sua vinda, sendo raro o jarê em que não aconteçam ao menos algumas. Para não
pessoas que podem tentar literalmente sair correndo do salão no momento em que começam a
pressentir a chegada de suas entidades, por mais que as fugas quase inevitavelmente acabem
por se demonstrar inúteis: diversas vezes as pessoas são tomadas e, cambaleantes, trazidas de
volta ao salão por suas próprias entidades. Algumas crianças que frequentam os terreiros se
animam diante da possibilidade de, no futuro, virem a ser elas também tomadas por caboclos
– sentimento por cuja demonstração são admoestadas pelos adultos, que lhes afirmam
peremptoriamente que o jarê não é algo com que se deva brincar e que a aflição inerente às
incorporações é algo que faz com que não sejam desejadas. Uma minoria entre as crianças
desde cedo se ressente de ver os adultos, especialmente seus familiares, atuados, desejando
jamais ter de passar pelo mesmo destino. Esse foi o caso de uma das comadres de Elias
quando era jovem, como ela nos contou, tendo chegado a comentar em voz alta, na época, que
nunca viria a compartilhar da sina de sua mãe, chegando a desafiar os adeptos do jarê a fazê-
la dançar e ser tomada pelas entidades. Como estes predisseram, continuou ela, a jovem
pagaria caro pela provocação, e alguns anos depois seus caboclos começaram a se manifestar,
fazendo com que hoje ela tivesse se tornado, assim como sua mãe, uma filha-de-santo,
314
frequentando alguns dos jarês de Lençóis com grande assiduidade – “e com muito gosto”,
completou faceira.
Quando incorporam suas entidades, os frequentadores dos jarês passam por uma
semblante e tom de voz – por vezes acompanhada por uma de dicção. Caso falem sobre seus
carnais, enquanto incorporados, os caboclos se dirigem a eles usando a terceira pessoa, já que
não estão falando de si mesmos. Ao dançarem e realizarem rituais nos pagodôs, os adeptos
atuados exibem uma vitalidade impressionante, que muitas vezes se esvai quase
completamente quando são deixados por suas entidades, ocasião a partir da qual costumam
precisar ser amparados pelos presentes, que os dirigem a um local para se sentar e recuperar
as forças. O momento no qual um espírito deixa seu aparelho, que ocorre em meio a canções
de despedida para a entidade em questão, costuma ser igualmente acompanhado por uma série
de arroubos, mais curta em sua totalidade do que os que ocorrem em sua chegada, e
terminando num longo suspiro acompanhado pela abertura dos olhos do adepto. Nos terreiros,
cabeça a seu colo ou a sua mão, ou ainda no decorrer de um abraço ritual. Por sua vez, no
caso das despedidas de visitantes que tenham sido iniciados por outra pessoa, ocorre o mesmo
que se processa em casas de culto sem curadores: alguns dos presentes – em geral incluindo
adepto encontra-se sempre num estado de estupefação, seu olhar perdido avaliando o local
onde se encontra, sem dúvida distinto daquele no qual estava quando foi tomado por sua
entidade e do qual sua última recordação sente falta, como será visto adiante. A despedida das
entidades do líder de uma casa de culto em seu próprio templo ocorre de maneira ligeiramente
diversa, já que ele se dirige, incorporado, para o quarto de santo, onde será acudido por um ou
315
mais de seus auxiliares rituais e onde por vezes trocará de vestimenta. No caso de uma
incorporação por um exu, em vez de se dirigir para o quarto de santo a entidade levará o
curador na direção oposta, para o lado de fora do pagodô. Em ambos os casos, deixa-se o
salão passando pelos portais andando sempre de costas, sua atenção continuamente voltada
Ainda mais do que ocorre durante as chegadas, nem todas as despedidas dos caboclos
se processam plenamente a contento. Por vezes pode acontecer, por exemplo, de caboclos não
desejarem ir embora, expressando com gestos e palavras sua vontade de continuarem sendo
venerados no salão para além do período que o líder da casa julga adequado. Pode ser o caso
de um capricho da entidade, pode ser que ela deseje punir seu aparelho por alguma
impropriedade cometida, para tanto forçando-o a hospedá-la por tanto tempo que quando
finalmente deixá-lo este se encontrará a ponto de desmaiar. Assim como quando os tocadores
tentando lhe matar de tanto dançar. Os casos mais dramáticos são os similares ao
exemplificado por Áurea, no qual ela ficou desacordada após o último caboclo da noite tê-la
deixado, e que vi acontecer com ao menos uma outra pessoa, além de terem me contado sobre
episódios com outros adeptos. Em ocasiões como essas, nas quais a pessoa precisa ser
levantada, os envolvidos por vezes se perguntam o que exatamente terá acontecido para que a
pessoa não volte a si: enquanto uns defendem que se trata de uma espécie de atraso no retorno
do adepto em si, outros cogitam a possibilidade de que uma outra entidade tenha tomado o
lugar da primeira com intuitos nada louváveis. De todo modo, finda uma incorporação, o
filho-de-santo não guarda recordação do que se passou enquanto estava habitado pela
entidade.
316
Não ter qualquer lembrança ou memória daquilo que aconteceu durante a manifestação
de uma de suas entidades é exatamente a forma como os frequentadores dos jarês falam
acerca dos momentos em que passam atuados. Quando uma pessoa volta a si, após a
despedida de um espírito, sua expressão facial e os comentários que faz indicam o quão
atônita e perplexa ela se encontra, também em função de ter passado, sem ter memória do
processo, de uma posição de participante espectador, sentada junto aos demais frequentadores
efeitos sobre aqueles a quem são dirigidos, de certa forma penetrando os iniciados e os
passam a ocupar o proscênio de uma festa de jarê, o centro do salão da casa onde a cerimônia
respeito das pessoas quando não estão manifestando suas entidades, não é possível ter
controle de suas ações, que passam ao domínio do espírito que naquele instante lhe habita.
Ainda que alguns iniciados deem a entender que uma pessoa ao incorporar um caboclo passa
a não ter consciência de nada do que acontece a partir da chegada do espírito, há quem prefira
enfatizar somente o fato de não se ter controle e lembrança a respeito das ações então
tomadas, cogitando, numa fina distinção, a possibilidade de que de maneira bastante tênue o
próprias entidades dele se acercam continuamente mesmo quando não está atuado.
Por mais que todos concordem que as entidades, com a possível exceção dos exus, não
guardam mágoas com os seres humanos, elas podem ser por vezes mobilizadas em função de
disputas pessoais, e é comum que se diga que filhos-de-santo que costumam incorporar as
mesmas entidades – especialmente caso se trate de seu caboclo mais importante – tendem a
333
Ao longo de uma cerimônia, os adeptos do jarê se movimentam entre locais de observação e se alternam na
experimentação de perspectivas subjetivantes e objetivantes, participantes diretos no centro do salão tornam-se
espectadores rotineiros sentados nos bancos em seu entorno e vice-versa (Rabelo 1990: 272).
317
não se dar muito bem. Como os espíritos fazem o possível para proteger os seus, inimizades
podem acabar tomando a forma de disputas entre os santos, especialmente pelo fato de no jarê
acontecer tanto no âmbito de uma altercação entre caboclos quanto como maneira de
de pisotear brasas ardentes, chamado nas letras das cantigas e pelos próprios caboclos de
“pisar no ouro”. Quando deseja realizá-lo, um caboclo puxa uma das cantigas específicas
ligadas ao ritual, sendo em geral acompanhado pelos presentes a não ser que o chefe da casa
sinalize contrariamente. Uma pessoa é instada a se dirigir à fogueira que deve permanecer
acesa do lado de fora da casa em todo jarê, recolher com uma pá alguns punhados de brasas
vermelhas – tomando cuidado, me disseram, para não carregar com elas muitas cinzas, que
fazem acumular ainda mais calor no conjunto – e depositá-las no centro do salão. Em seguida,
o caboclo que deu início ao ritual e os demais iniciados que estiverem incorporados, todos
descalços como de costume, pisoteiam o apanhado velozmente até que não reste nenhuma
brasa acesa. Depois que as entidades se despedem, seus pés não ficam com marca alguma e os
adeptos não sentem dor, a não ser que um deles estivesse apenas representando sua
incorporação ou que o ritual tenha sido motivado com desejo de causar mal a um dos
envolvidos, caso no qual o caboclo que o desencadeou não protege seu carnal das
queimaduras. Além desse ritual de disputa, que presenciei diversas vezes, os filhos-de-santo
mais antigos mencionaram outro, o de “comer bolas de fogo”, que envolvia a ingestão de
alguma espécie de bolinho – possivelmente um acarajé – que devia ser apanhado pelas
entidades diretamente com as mãos do interior de um tacho com azeite de dendê fervente.
que, e circunstâncias nas quais, elas acontecem. Diversas vezes, durante a chegada dos
318
podendo ser estimuladas ou suprimidas pelas ações dos presentes, em geral do líder da casa,
adeptos mais antigos buscam controlar as incorporações parciais, que em geral acometem as
pessoas mais jovens ou com pouco tempo de iniciação, já que se considera que seus caboclos
principalmente, no de não trabalhados, não lapidados, como são chamados os diamantes que
ainda não foram transformados em brilhantes334. Quando deseja estabilizar uma incorporação,
um curador costuma abraçar ou levar sua mão à cabeça do iniciado manifestado, que é
orientado pelos demais até seu pai-de-santo para que não se dirija erroneamente para outras
pessoas – caso no qual se diz com graça que se trata de um caboclo “extraviado”. Quando
alguém deseja por qualquer motivo interromper uma incorporação em vias de se concretizar,
pode tentar fazê-lo oferecendo a si próprio para receber a entidade, capaz de ser transmitida
por meio de contato corporal, seja com um aperto de mão firme, um abraço ou mesmo com a
aproximação e o toque das cabeças dos envolvidos. O processo pode ser iniciado pela própria
pessoa, aos primeiros sinais da manifestação da entidade, expediente ao qual Elias, por
exemplo, recorria frequentemente, sendo amparado por uma de suas madrinhas que
quais alguém pode manifestar uma entidade que não seja sua, algo que também pode
acontecer mesmo sem a presença do adepto que ela costuma habitar, por vontade da própria
entidade. Em ambos os casos, o espírito manifestado pode ser reconhecido por uma forma
característica de dançar ou mesmo por meio de uma afirmação verbal própria comunicando
aos presentes, muitas vezes de modo críptico, de quem se trata. Os muitos momentos de
334
Como já se sugeriu anteriormente (Goldman 2009: 127).
319
contato entre os iniciados, que evidenciam uma considerável permeabilidade dos corpos dos
frequentadores dos jarês à ação das entidades, nem sempre têm como desfecho a transferência
direta de uma entidade de uma pessoa para outra. Até mais frequentemente, pode acontecer de
a proximidade servir de estímulo para que ambos terminem incorporando suas versões da
entidade cultuada no momento, forma pela qual é possível também despertar numa pessoa que
jamais tenha dançado determinada entidade sua primeira incorporação da mesma, como foi o
caso quando a cobiçada Iansã de Áurea provocou uma manifestação em uma de suas
com Áurea sua vontade de um dia, se possível, poder receber uma entidade tão gloriosa
quanto a que acompanhava sua madrinha. O elogio a sensibilizou, e ela disse à afilhada que
não descartava a possibilidade, tendo ficado sugerido que Áurea era capaz de exercer
influência sobre a ação de sua entidade, e que poderia tentar convencê-la a transitar se assim o
desejasse – indicando com isso também que a jovem seria uma candidata a, no futuro, receber
o espírito como herança. A terceira possibilidade de transferência, na qual não ocorre nem
uma passagem direta, nem uma incorporação simultânea, envolve uma transmissão
energética, por meio da qual um iniciado deixa de, no momento, receber sua entidade e a
pessoa que o auxilia passa a receber a sua própria, ou seja, aquela que já está habituada a se
A grande permeabilidade dos corpos dos adeptos, da qual a ação das entidades toma
proveito para que elas se multipliquem nas casas de culto, é mais um dos motivos que leva à
admirável quantidade de incorporações que costuma ter lugar durante os jarês. Não é
incomum que, ao longo de uma única noite, uma mesma pessoa manifeste quase uma dezena
de entidades distintas, especialmente no caso das mulheres e dos líderes das casas. Um bom
amigo comentou certa vez como, ao constatar a propensão de uma antiga filha-de-santo a
receber com relativa facilidade uma vasta quantidade de entidades, decidira somar quantas
320
incorporações ela protagonizaria numa festa particularmente prolífera: sem esconder um tom
de voz ligeiramente jocoso, disse-me que foram não menos de 18. Em outra ocasião, Áurea
fez menção de começar a fazer troça da facilidade com que essa senhora incorporava os
espíritos, já que bastava um olhar do pai-de-santo para que ela fosse tomada por suas
entidades. Áurea, contudo, rapidamente se censurou, lembrando que da última vez que, ao
passar por ela na rua, a caminho de um jarê ao qual essa senhora nem compareceu, caçoara
dessa sua inclinação, terminou sendo tomada pelas entidades da mesma a noite toda, numa
vingança poética que, ela disse, ao mesmo tempo a forçava a reconhecer a realidade daquelas
incorporações e não voltar a fazer troça da senhora. Episódio similar ocorreu quando conheci,
na cidade de Andaraí, uma das mais antigas filhas-de-santo de Pedro de Laura, que por anos
ficou responsável por cuidar da manutenção cotidiana do Palácio de Ogum. Muitos dos
adeptos ali presentes que a visitavam queriam ouvir suas histórias e anotar letras de cantigas,
e ninguém estranhou muito quando a anciã foi subitamente tomada por uma de suas entidades
ao ouvir músicas de jarê que haviam sido gravadas pelos presentes. Enquanto em outra
senhora ficara muitos anos sem receber suas entidades; e, como Áurea lembrou por fim,
cerimônias de fechada num terreiro ficavam especialmente suscetíveis à ação dos espíritos.
O jarê oferece um modelo de relação entre seres humanos e suas entidades que
prioriza menos o entendimento dessas últimas como partes constitutivas dos primeiros, como
se costumou entender para o candomblé, do que sua concepção enquanto dons espirituais,
dádivas que possuem, entretanto, a capacidade de agir sobre seus detentores tanto quanto
podem ser por eles mobilizados335. Só muito raramente costuma-se fazer menção aos adeptos
335
Apontando assim para um entendimento da sociedade concebida como a possessão – em português talvez
seria possível dizer mesmo “tenência” – recíproca, sob formas extremamente variadas, de todos por cada um,
321
apondo-lhes o nome de uma de suas entidades: dificilmente se ouve alguém falar de Áurea de
Iansã, enquanto às vezes é possível distinguir claramente quando se trata da Iansã de Áurea,
mesmo que ela se manifeste em outra pessoa. Não se diz recorrentemente que as pessoas
“são” das entidades, mas que elas as “têm”, que elas são capazes de recebê-las. As
incorporações no jarê parecem evidenciar menos a existência contínua das entidades nos
corpos dos adeptos – que seriam ativadas quase como um revés da pessoa durante as
manifestações –, do que seus devires nos humanos, que funcionam justamente como
com as quais está habituado, sejam as de outrem que se coloquem em seu caminho – por meio
da ação dos toques, das cantigas, dos rituais336. Além desses, há outro facilitador igualmente
importante para que um iniciado se torne apto a receber as entidades em seu corpo, ao qual já
se aludiu, a saber, as vestimentas que utiliza numa festa e as que lhe são oferecidas no curso
das incorporações.
também se conecta à relativa transmissibilidade das entidades. Ainda que existam conjuntos
pertencentes a determinadas pessoas e suas entidades, feitos muitas vezes com grande esmero
e consistindo num dos maiores presentes que alguém pode oferecer a um adepto, não há jarê
que aconteça sem a presença de determinadas peças de vestuário que podem ser usadas por
como no caso das mônadas que se interpenetram reciprocamente (Tarde 1895: 79-81, 112, 115). Preferindo
traduzir o francês “avoir” por “haver” chega-se, por consequência, à substituição da ideia de existência pela de
“havência”, “a potência do evento, a preensibilidade do que ocorre” (Viveiros de Castro 2005: 11), indicando um
conjunto muito mais rico do que aquele que o verbo “ser” delimita (Latour 2005: 217). A opção é feita inclusive
em detrimento do verbo “ter”, que “conserva o aspecto tranquilizante e sólido de uma posse”, já que o haver
“envolve a ideia de eclosão, de evasão e de flexibilidade” (Santoro 2005: 543-544 apud Vargas 2007: 43).
336
Trata-se, antes de tudo, de uma questão de ênfase: no jarê, as incorporações evidenciam as formas de
convivência, coabitação e povoamento das entidades com os seres humanos, que podem, como que por
antiguidade, desembocar na composição das pessoas quando estas cultivam o hábito de recebê-las e mesmo
transmiti-las entre si. Em outro campo etnográfico, a inspiradora composição entre pessoas e espíritos por vezes
evidencia também relações como as de captura como um modo integral de constituição de seres (Siqueira 2012:
31, 34, 67, 111, 181).
322
torsos e outros itens. Diversas são as pessoas que podem comparecer aos jarês com calças
compridas, curtas ou vestidos inteiriços, até mesmo para desencorajar a ação dos próprios
esses adeptos acabam recebendo entidades, estas se recusam a começar a dançar até estarem
vestidas minimamente a contento, o que costuma incluir saias no caso das mulheres e das
masculinas. Os demais presentes ficam responsáveis por lidar com as demandas da entidade
ou de negociar com ela e convencê-la a dançar com o vestuário disponível, quando este não se
mostra plenamente satisfatório. Entre os iniciados, existem aqueles que preferem permanecer
com turbantes, seus caboclos interrompendo os passos de dança caso sua cabeça venha a ficar
A maior parte dos iniciados usa um único traje ao longo de uma festa de jarê, seja um
conjunto mais simples ou uma roupa específica preparada para ser usada no culto, também
raramente havendo orientação para que os presentes se vistam com cores relacionadas às
assim se trata de uma sugestão que, como afirmam, não traz repercussões se não puder ser
seguida. No jarê não é comum a utilização de uma ampla gama de adereços distintos de
acordo com cada entidade, bem como o estilo das vestimentas costuma variar bastante pouco,
ficando a ênfase mais nas suas cores do que necessariamente em seu formato ou em objetos
que as complementem, ainda que haja exceções. De toda forma, as roupas e ornamentos
usados durante uma incorporação também podem ser fruto de, e servir de estímulo a,
uma das mais importantes entidades de Pedro de Laura, que visitava o pagodô em duas
versões distintas. Sempre que chegava ao salão, para cobrir a cabeça o espírito exigia ou seu
penacho, ou seu chapéu de couro: enquanto o primeiro indicava uma postura apaziguadora e
acabrunhavam por recearem ser exemplados ao menor deslize. Áurea se recorda que, quando
vinha realizar um trabalho ritual, Sete-Serra – que fora responsável pela iniciação dela e de
Conforme comentam os iniciados, as roupas e ornamentos não são apenas formas que
transformações e carregam algo da força pessoal de seu proprietário e de seus espíritos. Até
por isso, as roupas de um curador, que podem mesmo chegar a muitas dezenas, são
cuidadosamente descosturadas durante o sirrum, o ritual funerário feito após sua morte, no
qual seus pertences são destruídos e despachados. Ainda que essa medida tenha sido
parcialmente tomada com muitos dos bens de Pedro de Laura, seus filhos-de-santo acabaram
guardando muitas de suas roupas no Palácio de Ogum, mantidas até hoje num grande baú e
especial, são, em certa medida, não só formas de intensificar sua proximidade com seus
processo de incorporá-los. Como me contaram certa vez, depois que determinado pai-de-santo
decidiu abandonar sua sina e realizar, ainda em vida, seu próprio sirrum, desfazendo-se de
suas vestimentas rituais, uma das consequências menos graves que resultou do processo foi
ele ter – mesmo após ter retornado ao jarê – perdido contato absolutamente com uma de suas
324
entidades, que jamais veio a nele se manifestar novamente337. Em outro caso, um jovem e
ambicioso curador de Lençóis, que teve acesso às vestes cerimoniais de um grande pai-de-
resultado foi não só um castigo pela atitude desmedidamente audaciosa do jovem: tratou-se de
um efeito bastante direto da desproporção entre sua força pessoal e aquela pertencente ao
curador falecido, de certo modo presente em – ou acessível por meio de – seus indumentos.
4.4 Forças
Espirituoso como de costume, Daso, o curador que acabou responsável pelo trabalho
de reforço de Áurea, comentou certa vez como nele só duas coisas não prestavam: a cabeça e
os pés. Igualmente vivaz, Áurea respondeu de bate-pronto: “Então não presta é nada”,
arrancando risos de todos os presentes. Ainda mais que a agilidade dos seres humanos para
realizar os movimentos no jarê, chamada sua “pisada”, a das entidades recebia especial
atenção por parte dos adeptos, que dedicam diversas cantigas para falar a respeito da
diante das dificuldades, manter o equilíbrio e dançar de forma bela338. Seja realizando os
salão após os trabalhos rituais, todas ações feitas sempre com os pés descalços, as pisadas dos
337
Num episódio com o qual é possível estabelecer uma conexão, um dos caboclos de uma adepta do jarê em
Nova Redenção fez com que ela ateasse fogo a todas as suas roupas – provavelmente as não rituais – por ela se
teimar a reverenciar suas entidades (Rabelo 1990: 175). Também no candomblé se reconhece a ligação entre
uma pessoa e suas roupas rituais, bem como os efeitos que danos a estas podem causar à primeira, já que “as
roupas de uma pessoa, destruídas durante o rito, podem levá-la à morte: em verdade, destruir as vestes é já, de
certo modo, matar” (Serra 1978: 344).
338
Ver, por exemplo, algumas das cantigas dedicadas a Jurema, Mineiro, Nanã, Odé, Ogum, São Sebastião, Sete-
Serra, Sultão das Matas e Xangô, bem como as destinadas a qualquer caboclo, no anexo IV.
325
Capivara me contaram que, quando tomaram coragem para perguntar a uma das entidades de
Pedro de Laura a respeito dos seus passos de dança característicos, ela lhes disse que eles, que
antes haviam reparado no “olho da falsidade” de Sete-Serra, agora haviam se dado conta do
“pé da manobra” de Xangô. De modo geral, sempre que se manifestam nos salões, os
caboclos se mantêm num estado de agitação contínuo, caminhando de um lado para o outro
ou, no mínimo, cambaleando ligeiramente, quando não estão dançando. Entre as muitas
enfermidades trazidas para serem tratadas pelas entidades, como será visto adiante, recebem
especial destaque as formas de impedimento à locomoção, seja por inchaços nos pés e pernas,
problemas nas articulações dos membros inferiores, recorrência de tombos e quedas339. Pude
assistir, por exemplo, a um processo de cura de uma menina que mal conseguia caminhar e
teve de ser trazida carregada num carrinho de mão até o terreiro no qual realizaria seu
trabalho. Afirmava-se que “a entrevada” já tinha buscado diversas formas de tratamento sem
sucesso – seus pais eram pessoas com situação econômica acima da média para a região,
limpeza, no dia seguinte a jovem já andava sem precisar de nenhum apoio, e chegou mesmo a
nadar no rio em que a cerimônia foi concluída, para alegria de todos. A notícia de sua cura,
Já se comentou como as entidades podem fazer os adeptos caírem, sendo todo tombo
espíritos são capazes de fazer com que as pessoas se percam em trajetos que lhes são de outro
modo bastante familiares, quando se diz que ficam “fora do mapa”. As metáforas ligadas à
localização parecem extremamente apropriadas para a vivência com as entidades, que estão
339
O mesmo se passava em Nova Redenção, sendo recorrentes os tratamentos de problemas de mobilidade nos
adeptos (Rabelo 1990: 119).
326
elas também em movimento constante: chegam, dançam, se vão; de um lado, habitam suas
moradas num mundo ao menos parcialmente distinto do dos seres humanos, de outro, passam
outros temas, esses costumavam ser recorrentes nas longas caminhadas empreendidas
jarês. Muitos dos filhos-de-santo se lembram de como no passado chegavam a caminhar por
três dias consecutivos para ir a jarês em outros municípios, em jornadas praticamente tão
memoráveis quanto as próprias festas às quais compareciam. Elias foi quem primeiro me
antigos para os jarês, já que durante as caminhadas de ida e volta pelas trilhas aconteciam
peripatéticos, tanto para mim quanto para os demais jovens presentes, que aproveitavam o
trajeto para fazer perguntas e tirar dúvidas com os mais velhos a respeito dos segredos do jarê.
Estes, por sua vez, preenchiam as caminhadas com ensinamentos dos mais diversos, de nomes
e usos de plantas medicinais e rituais a cantigas cujo som se perdia pelas serras,
invariavelmente passando por histórias e rumores tanto sobre o passado como sobre o
presente.
dos temas mais caros ao jarê é justamente o do movimento341. De forma mais generalizada,
inúmeros dos fenômenos que podem ser conectados ao cotidiano dos adeptos do jarê
340
Daí também a riqueza e a beleza da noção de “povoamento” explorada em outro domínio etnográfico de
modo a dar conta das múltiplas composições que formam pessoas (Siqueira 2012: 92-95, 108-111).
341
O próprio tempo pode ser considerado como uma medida de distâncias geográficas, sua passagem sendo
aproximada a um deslocamento espacial. Nas movimentações que ocorrem no – e que são trabalhadas pelo – jarê
é igualmente importante a dos corpos nos espaços das casas de culto, sem que o conjunto se limite a essas:
movem-se as entidades, as narrativas, os olhares (Rabelo 1990: 129, 280-281, 302 nota 7).
327
temperatura, ações das entidades, ora locomoções propriamente ditas, mudanças de local de
moradia, passos de dança. O ritual de plantar a roça para dar início a um terreiro também pode
ser chamado de “assentar seu movimento”, conferindo-lhe uma paragem específica em torno
da qual o movimento passará então a acontecer: ele deixa de ser itinerante para se tornar
diretriz segundo a qual um curador deve evitar ao máximo se mudar após ter estabelecido sua
casa de culto não deve ser confundida com um elogio à imobilidade, muito pelo contrário: em
transformar e operar transformações. Ou, como afirmava Seu Gilson numa versão bastante
característica do ditado popular: “Pedra que muda não cria limo”. Os movimentos
característicos à natureza de cada pessoa podem então atraí-las para a casa de culto, onde
claras as aproximações que se pode estabelecer entre o culto e outras das produções
decorrentes da desterritorialização que sofreram. Como certa vez me disse Mussum, quando
por terem um mesmo enraizamento, sendo a África, além de tudo, o local “onde nasceu todo
movimento”.
Outro modo de falar a respeito desses movimentos, ainda mais recorrente no jarê,
envolve pensá-los a partir daquilo que os suscita, que os motiva, posto que resultam da ação
de forças, sendo esse o tema sobre o qual os adeptos do culto provavelmente se debruçam
candomblé recebe o nome de “axé”, palavra esta que ouvi poucas vezes em Lençóis, em
contextos distintos da vivência do culto, empregada para desejar boa sorte e vigor físico aos
328
contrário, força é possivelmente um dos termos mais utilizados para se falar a respeito de
inúmeras realidades, sendo simultaneamente um elemento constitutivo dos seres – sejam eles
gestos, frases e cantigas – e uma de suas propriedades, responsável por dar origem (ou
término) a movimentos e transformações. A força é uma virtude que, por mais que se possa
anunciar possuir ou não, se reconhece por meio de seus efeitos, tanto em ato como pelos já
concretizados, que deixam rastros. Ser capaz de manifestar um grande número de espíritos,
realizar procedimentos rituais com sucesso, não ser afetado por feitiços, todos são indícios de
que se possui força em quantidade considerável. Há, dessa forma, uma relação proporcional e
recíproca entre, por um lado, a intensidade das forças que constituem um ser e, por outro, sua
capacidade de colocá-las em ação para obter determinados efeitos. Quanto mais forte é um
curador, por exemplo, maior sua capacidade de realizar iniciações; reciprocamente, quanto
mais trabalhos rituais realiza, maior se torna sua força pessoal. O mesmo pode ocorrer com
objetos: quanto mais força existe numa pedra de raio, maior é sua capacidade de agir sobre o
Assim, vê-se como, em determinada medida, para o jarê todos os seres são resultado
parte de seres que, eles próprios, são também forças. O mundo natural, segundo os adeptos do
culto, é constituído por excelência de seres criados pelas entidades, pelos caboclos, sendo as
plantas, animais e objetos ao mesmo tempo formados por essas forças e repositórios delas:
são simultaneamente frutos e veículos da ação dos espíritos. Os homens também são parte do
mundo natural, bem como suas criações, ainda que estas muitas vezes se encontrem num grau
de pertencimento mais afastado da ação originária dos caboclos, em geral possuindo menos
força do que os objetos criados diretamente pelas entidades. Do ponto de vista dos seres
329
humanos, de toda forma, nem toda criação do mundo natural encontra-se devidamente pronta
para ser utilizada, podendo – ou devendo –, portanto, ser concluída, ou melhor: aprontada342.
É o que ocorre com as pessoas iniciadas no jarê, das quais se diz também após o processo
ritual que foram “feitas”, passando então a ser capazes de ver harmonizarem-se as forças que
as constituem, podendo estas ser mobilizadas para a produção de efeitos visando ao bem dos
iniciados. Sob mais de um aspecto, a iniciação no jarê é uma maneira de aproximar os seres
humanos dos caboclos, também por serem estes últimos duplamente responsáveis por sua
composição, por meio de uma transformação que passa a ser necessária conforme se
constatem na vida de uma pessoa sinais específicos. A aproximação é feita justamente com
evidência de sua realização, posto que os adeptos afirmam de maneira bastante generalizada
que obras realmente bem acabadas são aquelas que melhor ocultam sua artificialidade 343. Ou,
como afirma um dos ditados preferidos de Elias: “Cabo bem botado, parece que foi nascido”.
Ainda que qualquer pessoa possa, teoricamente, vir a ser iniciada no jarê, este não é
um destino reservado a toda pessoa, pelos mais diferentes motivos, conforme dizem. Entre
eles figuram tanto um afastamento muito amplo das entidades – que, como visto, leva os
adeptos a conjecturarem se é possível que, no extremo, existam pessoas que não tenham
caboclos – como uma proximidade já de saída muito excessiva. Desvenda-se assim a aparente
contradição de uma pessoa já ter, como era o caso de Dona Valdelice, nascido feita: o
trabalho minucioso que sua grande força pessoal incontestavelmente denotava não poderia ser
feito por curador algum pois ele já havia sido empreendido antes mesmo dela nascer – e
342
Como diz a expressão local: “a cabaça é obra que Deus fez, mas é o homem que termina, que ele é que faz o
furo” (Gonçalves 1984: 114).
343
Daí também as aproximações possíveis com o estilo barroco, mencionadas no capítulo 3, seção 3.5, cujos
rebuscamento da forma e torções adicionais evidenciam sempre um trabalho copioso resultando em formas belas
que subvertem o despojamento do modernismo arquitetônico e seu caráter ascético (Peixoto 2011: 387-388).
330
diretamente por uma entidade. Como será visto adiante, arriscar fazer um trabalho ritual para
alguém que já nasceu feito significa afirmar que se possui uma força superior à de quem
realizou o primeiro trabalho; no caso, significa dizer que um humano pode ser mais forte do
que uma entidade: pior ainda, significa desejar medir forças com ela. Não que se descobrir
mais forte que um espírito seja, de modo ao menos hipotético, necessariamente uma
impossibilidade, porém poucos são aqueles que demonstram a audácia que tal processo requer
– mesmo por serem graves as sequelas conhecidas ou preditas para os que venham a tentar.
De toda forma, não só nas situações de embate, fica claro que, ao menos sob certo prisma, os
seres que habitam o mundo, especialmente os humanos e as entidades, podem ser pensados
menos como entes distintos com relações ligando-os entre si do que como resultantes, ou seja,
somas de forças que atuam também como forças e sobre forças344. No sistema de forças do
jarê, diferentes combinações de vetores podem existir ora como motivadores, ora como
receptores das ações, como ocorre, por exemplo, com os iniciados que simultaneamente
controlar as forças envolvidas nos rituais do jarê, sabendo quando devem ser contidas e
quando devem ser impulsionadas – ou, ainda, quando devem ser deixadas em paz, já que nem
todo fluxo deve ser canalizado para se transformar em energia, como me fizeram
compreender. Idealmente, de qualquer forma, um curador deve fazer todo o possível para
concentrar em torno de sua casa o maior número de forças de que for capaz, tanto de modo
mais direto por meio das iniciações como por relações como as de amizade ou compadrio,
como visto. Como mencionado, mais do que um modo de acúmulo propriamente, trata-se de
um processo de convergência de forças seguido por sua redistribuição constante, já que elas
344
Como já se escreveu, num registro similar: “O aspecto propriamente artesanal, ou artístico, dessas religiões
consiste em saber usar essas forças para fazer e desfazer formas, como, por exemplo, casas, corpos e, no limite, a
própria vida. [...] [O] trabalho ritual é uma ação sobre a ação dos inúmeros seres sobrenaturais que povoam o
mundo e que são como cristalizações do axé” (Barbosa Neto 2012: 265-266, grifo no original).
331
forças de que se fala no jarê demonstram certa propriedade ‘gravitacional’, passando a atrair
sempre mais forças. A realização do trabalho de reforço de Áurea, por exemplo, serviu de
estímulo para que muitas outras pessoas se iniciassem no mesmo dia, um motivo que elas
próprias gostavam de frisar, gerando um evento que, por sua vez, concentrava mais pessoas,
comentou, considerava a vinda dos novos adeptos tanto um reconhecimento da força de sua
casa e da qualidade de seus trabalhos como a pedra fundamental que estimularia ainda mais
crescimento, previsão que se mostrou acertada, ao menos imediatamente. Ter força, enfim, é
necessário para manejar forças: a roça precisa ser plantada, as entidades alimentadas, os
filhos-de-santo tornados prontos, para que essas forças possam ser devidamente postas em
são eminentemente transmissíveis, sendo um dos principais motivos da vinda dos caboclos às
casas de culto propagá-las na direção dos presentes. O rodopiar das saias usadas pelas
entidades evidencia a distribuição das forças concentradas e postas em suspensão nos salões,
por vezes na forma de diversas substâncias viscosas ou nubíferas que são ofertadas aos
caboclos e por eles espalhadas. Além do mel e do dendê já mencionados, ligados a Cosme e
alfazema), fumaça de incenso, de charutos e dos fogos de artifício, talcos, picotes de papel
os presentes, seja de maneira indireta, com suas danças, seja de forma bastante direta,
oferecendo-os ou espalhando-os nos frequentadores de uma festa, muitas vezes um por um.
De certo modo, também a luz das velas que são acesas para alimentar as entidades, inclusive
no salão, se comporta similarmente, preenchendo espaços e conectando aqueles que são por
332
sacrificial, que corporifica por excelência a força do jarê e que será alvo de considerações
mais detidas adiante – provavelmente a mais importante para o bom andamento de uma festa
é o álcool, que funciona não só para dar energia aos batedores, como mencionado
anteriormente, mas igualmente pode ser solicitado por algumas das entidades ao se
manifestarem.
da parte dos líderes das casas, já que é sabido que existem muitas pessoas que frequentam os
jarês com o intuito de se embebedarem, algo que, dizem os adeptos, foge aos objetivos da
festa. De todo modo, aqueles que fingem incorporarem entidades acabam sendo castigados
por suas ações, já que podem ser posteriormente cobrados por seus próprios espíritos ou pelos
alcoólicas ritualmente não ficam ébrios, o que possibilita outra forma de punição – da qual
Pedro de Laura era bastante afeito, como já mencionado – quando um curador orienta seus
bebida, levando-o a passar mal e demonstrando assim seu embuste. Quando se encontram
cantigas específicas, sem sofrer seus efeitos inebriantes345. Um motivo adicional que
conecta-se ao seu efeito inibidor para as incorporações, possivelmente outro motivo pelo qual
modo, a capacidade que uma pessoa demonstra em consumir bebida alcoólica em quantidade
345
Apesar de usarem o nome jurema, no jarê não há utilização da bebida feita com a raiz da acácia dessa espécie
e que igualmente empresta seu nome a diversos cultos no Nordeste (Brandão & Rios 2004: 180; Assunção 2010:
112-122).
333
grande força pessoal, sendo a tendência ao alcoolismo, inversamente, um dos principais males
tratados no jarê346.
Fora o sangue, existem dois outros fluidos corporais bastante significativos para a
por enxugar o suor das entidades incorporadas é uma honra que costuma caber aos afilhados
das mesmas, que carregam panos destinados à tarefa mas que por vezes são preteridos pelas
entidades em favor das saias dos adeptos próximos. O contato dos frequentadores da casa com
modo farto durante os abraços rituais, é considerado por muitos uma das maneiras de se
aproximar da força dos espíritos, cuja evidenciação na forma do suor atesta novamente o
papel da saliva, por sua vez, é exercido em rituais alimentares de transmissão de força, como
vestido de uma filha-de-santo347. Quando possível, antes de uma festa, os iniciados mais
antigos da Capivara gostam de fazer suas refeições de forma vagarosa, comendo dos pratos
diretamente com as mãos, sem usar talheres, e compartilhando seu alimento com as crianças
quando lhes dão de comer. A prática, dizem os mais antigos, não só proporciona um sabor
distinto à comida como favorece a saúde daqueles que recebem o alimento de suas mãos. A
saliva, por fim, como visto anteriormente, também é utilizada pelo curador ao final de uma
das etapas do ritual de batizado, sendo depositada em sua própria mão e levada à cabeça do
346
Como detalhado adiante, na seção 4.5.
347
Como visto no capítulo 2, seção 2.4.
334
iniciando, selando simbolicamente, com sua viscosidade característica, a abertura feita para as
Além das muitas substâncias, como visto, envolvidas nos processos de redistribuição
energética numa cerimônia de jarê, há também inúmeras formas de realizá-los por meio de
operações rituais que envolvem as cantigas, os gestos e a fala. Oferecer uma música a um
caboclo ou acompanhá-lo enquanto ele puxa uma cantiga, seja com a voz, seja somente com
das cabeças; saudá-las e ser por elas saudado; dirigir-lhes pedidos e promessas e escutar
avisos e compromissos: todas são maneiras de participar das transferências de força que têm
lugar nas casas de culto durante os jarês. Até a simples participação nas festas é um meio de
se imiscuir nos fluxos energéticos em questão, como evidenciava, por exemplo, um senhor ao
dizer que, mesmo sem nunca ter passado por um trabalho de iniciação propriamente dito, se
considerava filho-de-santo da Capivara como os demais, por ter frequentado a casa desde
muito jovem e ter reverenciado os espíritos da casa como faziam todos os outros. Esse senhor
comentou também como, certa vez, decidiu pisar ele mesmo sobre as brasas, como faziam os
adeptos manifestando suas entidades, ainda que ele próprio jamais recebesse caboclo algum.
Pedro de Laura, provavelmente incorporando um de seus santos, pegou-o pelo braço e, sem
soltá-lo, conduziu-o no pisoteio das brasas, sem que a ação resultasse em queimaduras para o
adepto. Contaram-me muitos casos também nos quais uma pessoa acabava recebendo e
zelando por entidades em nome de outras pessoas, quando estas não se demonstravam capazes
descobrirem que Áurea teria seu trabalho realizado no terreiro de Daso, resolveram, como
mencionado, “pongar” no evento, pegando carona em sua iniciativa, pois sabiam que, desse
348
A transmissão de energia por meio desse procedimento é bastante comum no candomblé. Em outro episódio
narrado numa das mais notáveis etnografias já escritas a respeito do candomblé, vê-se como um conjunto de
entidades infantis busca justamente reanimar uma pessoa desacordada ao lambuzá-la com saliva (Serra 1978:
112, 259-264).
335
modo, poderiam aproveitar parte da força de Áurea na realização de suas próprias iniciações,
disseram explicitamente349.
Depois que se transmite parte de sua força, especialmente no caso dos seres humanos,
é possível que existam sequelas mais ou menos duradouras, tanto na forma de doenças ou
alterações no apetite – resultando em geral em sua falta. Em larga medida, a força pessoal de
alguém se equaciona a sua energia vital, e quanto mais ela é mobilizada e dela se exige,
maiores as chances de a pessoa responsável por seu manejo ficar debilitada, ainda que
dificilmente de modo permanente. Quando uma pessoa cai desacordada por ação de suas
entidades, como foi o caso por exemplo com Áurea, ela precisa ser literalmente reanimada, já
que se encontra, por mais transitório que seja o período, momentaneamente despojada de
grande parte de sua força vital, daquilo que a põe em movimento, que a anima. Nos casos em
que falam a respeito de grandes e definitivas transferências de força entre pessoas, como pode
raramente ocorrer quando um curador mais idoso confia seu legado espiritual diretamente a
um sucessor, como me contaram em determinado caso ocorrido fora de Lençóis, aquele que
abdica de sua força pessoal pode terminar falecendo, enquanto seu receptor terá vigor
renovado, por mais que possa ter de início dificuldade em lidar com sua nova força e em se
tornar capaz de manejá-la a contento, processo tão demorado quanto esperado. De todo modo,
as forças postas em marcha no jarê possuem também uma propriedade entrópica, podendo
acontecer de sua potência ser diminuída com o passar do tempo – especialmente se não for
rotineiramente colocada em movimento, das formas descritas. A ação de manter sua força
pessoal, e a de sua casa de culto, tanto em constante agitação, circulação, como em contínua
349
Como mencionado, o episódio guarda semelhanças com outros do candomblé angola; também nesses, a seu
modo, objetiva-se uma concentração de tensão que será transformada em ampliação de um poder, passível então
de ser mobilizado pelos presentes – redistribuído, no caso do jarê (Serra 1978: 301-302, 308-312, 341-345). Há
igualmente uma ligação expressa entre o poder selvagem e não domesticado dos caboclos e a localização das
casas de culto longe das sedes dos distritos e municípios, que não pode ser reduzida a sua função – de toda forma
relevante – de afastamento dos poderes constituídos (Rabelo 1990: 156).
336
Ainda que por vezes os adeptos do jarê também falem a respeito de forças
distinguindo-as entre dois tipos opostos, comentam essa distinção usando igualmente as ideias
de “lados” ou “partes” opostas, chamadas seja de esquerda e direita, seja – com frequência um
pouco menor – de lado branco e lado negro do jarê. Enquanto o lado direito é o das entidades
configura o domínio dos exus, entidades que, diferentemente das primeiras, dificilmente são
consideradas caboclos ou santos, como aquelas podem ser chamadas de forma praticamente
a todo tipo de movimentação, inclusive à colocação dos caboclos em marcha para visitarem as
casas de jarê e trabalharem. De forma geral, os adeptos do jarê tanto reconhecem como
cristianismo, oferecendo como provas, por exemplo, as diversas benesses e curas feitas pelos
caboclos mas possibilitadas pelos exus. Por mais que existam também pessoas que afirmem
que trabalham apenas com um dos lados das potências envolvidas no jarê, grande parte dos
iniciados reputa ser impossível o manejo de uma parcela das entidades sem que se esteja ao
menos minimamente sujeito à ação das da outra metade. Ao falar sobre a simplificação que
esquerda, um jovem curador me explicou: “A rua é uma só, mas são duas mãos, é de mão
dupla. Há dois sentidos, mas a energia que faz o bem e a que faz o mal, elas são uma só”350.
Desse modo, mais precisamente, o que parece estar em jogo nas operações que
competem a um pai-de-santo é a orientação do sentido dessa força, sendo que quando ela é
350
Ver igualmente, no início do anexo IV, a letra de uma das cantigas usadas na abertura de qualquer cerimônia
de jarê, conclamando Baluaê.
337
encaminhada para um lado, ela é literalmente transportada, levada a deixar sua posição atual
na qual se produzirá necessariamente uma espécie de vácuo. Mais do que lados, para as forças
do jarê esquerda e direita seriam assim antes de tudo sentidos, sendo possível entendê-los
enquanto orientados seja para o esvaziamento, seja para a plenitude. Todo processo de
transferência, entretanto, envolve passagens, gerando tanto espaços mais esvaziados como
caso dos humanos, doenças, cabendo ao curador o restabelecimento de uma situação menos
deficitária, por mais que todo equilíbrio atingido seja inevitavelmente provisório. Como
voltará a ser visto adiante, uma das principais formas de se corrigir essas insuficiências
da força faz com que ela tenda a fluir dos locais onde é mais abundante para onde é mais
escassa, nesse caso, via de regra, do curador para seus filhos-de-santo, mas igualmente das
entidades de maneira geral para os seres humanos. Ainda assim, não é o caso de se descartar
por completo a existência de uma força efetivamente negativa, uma ‘antiforça’ – no sentido
que possui o termo ‘antimatéria’ – responsável não por esvaziamentos mas pela verdadeira
aniquilação da energia. Essa antiforça, contudo, parece ser domínio exclusivo de entidades
muito perigosas e com as quais pouco diálogo é possível, a exemplo das sombras de mortos,
a compreensão dos motivos que desaconselham a realização de trabalhos rituais para pessoas
351
Pouca negociação parece ser possível com estes espíritos, que também podem ser responsáveis por
adoecimentos (Rabelo 1990: 205). Este parece ser um dos principais pontos de distinção entre os jarês e outros
cultos das zonas mais rurais aparentados a eles, já que os curadores dos primeiros, afirma-se de modo categórico,
“não trabalha[m] com mortos” (Senna 1998: 79, 184). Num outro campo etnográfico de matriz africana, as casas
de religião da cidade de Pelotas, pode-se usar a expressão “axé de miséria” ou o termo “inxé” para se referir ao
simétrico inverso do axé, que guarda claras semelhanças com a antiforça aqui exposta (Barbosa Neto 2012: 95-
98, 106, 226 nota 200, 274).
338
que, como Dona Valdelice, já nasceram feitas. Os rituais que um curador empreende são
realizados partindo da pressuposição de que ele irá corrigir uma deficiência energética por
meio da abundância de sua força pessoal, aí incluídas as potências de suas entidades, e para
tanto ele realiza medidas litúrgicas que irão auxiliá-lo em sua tarefa de transferir seu excesso
costumeiros mas se depare com uma pessoa que, ao contrário do esperado, apresente ainda
mais força do que ele, os resultados podem ser desastrosos: estabelece-se uma espécie de
ocorre com a maior parte dos iniciandos, como será detalhado mais adiante, nesses casos a
aflição que pode levar uma pessoa a procurar – ou ser levada para – um curador deriva não de
uma debilidade mas de uma superabundância energética, que é justamente uma das principais
santo, sob determinado ponto de vista podem ser pensadas enquanto forças em estado
concentrado, capazes de participar no cotidiano dos seres humanos, entre várias outras
formas, por meio de manifestações em seus corpos. Com o passar do tempo, com o cultivo do
hábito de recebê-las nas casas de culto, com o surgimento da intimidade entre adeptos e seus
espíritos, as forças – que as entidades simultaneamente são e têm – vão sendo como que
352
Ao final da bela etnografia a respeito da feitiçaria na região do Bocage ocidental francês (Favret-Saada 1977:
250-281) há uma série de esquemas que em tudo lembram as trocas de força aqui mencionadas. A ação dos
curadores voltada para a eliminação das insuficiências energéticas no jarê é semelhante à dos desenfeitiçadores
que buscam restituir a sorte e a saúde de seus clientes. Enquanto no jarê as formas de combate contra a feitiçaria
também podem envolver procedimentos parecidos, uma diferença significativa se dá pela existência de
determinadas entidades enquanto geradoras dos desequilíbrios nas forças pessoais.
353
Uma adepta, por exemplo, informa, de modo aparentemente despretensioso, como todas as pessoas que
tentaram realizar algum tipo de cura em benefício dela acabaram mortas pouco tempo depois (Rabelo 1990: 178-
179). Em Lençóis, mais de uma vez ouvi falar de casos similares ou idênticos.
354
Como visto no capítulo 3, seção 3.5.
339
decantadas nos corpos dos iniciados, condensadas neles: os caboclos que os filhos-de-santo
manifestam são como ‘precipitados’ pessoais dos espíritos-força mais abrangentes. Como foi
dito, também mais entes do mundo, como os outros animais, as plantas e determinados
objetos, a exemplo de pedras específicas, existem enquanto produtos de certa ‘destilação’ das
forças abrangentes com as quais os humanos travam contato, assumindo muitas vezes
saliva, o sangue, o dendê, o mel, comidas como o vatapá e o caruru, o talco, o pó de pemba, as
cinzas, a pólvora, o enxofre dos foguetes, o incenso, e mesmo o hálito – da palavra, das
cantigas e do arfar que evidencia o esforço em perseverar contra o cansaço355. Todas essas
formas que as forças do jarê podem adquirir para serem postas em circulação e transmitidas
são capazes de serem espalhadas nos presentes, seja melando-os ou lambuzando-os, seja
cujas partículas não ficam em suspensão – como as farinhas, milhos e feijões – são reservadas
à alimentação das entidades não incorporadas e também aos rituais de iniciação, tornando os
corpos dos adeptos abertos, mais porosos às transferências, até que sejam fechados e
355
Já se fez notar como nas trocas envolvidas na iniciação a energia mística é transmitida também pela voz, pelo
hálito e pela saliva (Souty 2007: 455).
356
Em resposta a um comentário que fiz sobre a adequação de termos oriundos da mecânica dos fluidos para a
consideração dessas forças de aspecto hidráulico presentes nas religiões de matriz africana, Martin Holbraad
(comunicação pessoal) sugeriu que os pós – como o de pemba – figuram como uma espécie de substância
particularmente propícia às transferências por serem, de certo modo, sólidos que se comportam como líquidos,
podendo, por exemplo, se espalhar ou serem condensados.
340
4.5 Vidas
Não foi uma única vez que Áurea comentou que jamais desejaria para si a sina de se
tornar curadora e ter de realizar iniciações. Por mais que seja possível tomar determinadas
predisposto por sua natureza pessoal, em última instância a vontade das entidades costuma ser
soberana, ou pelo menos tende a cobrar um preço bastante caro para ser continuamente
por ceder ao chamado dos espíritos e se tornar pais e mães-de-santo, zelando, entre outros
temas, pela saúde daqueles que frequentam suas casas de culto. Por mais que as curas não
sejam o principal motivo das festas de jarê da cidade, ao contrário do que acontece nas regiões
da Chapada mais distantes dos centros populacionais, voltadas à produção agrícola357, elas
também se encontram presentes, especialmente nos terreiros que realizam iniciações enquanto
principais mobilizadores da adscrição a uma casa. Seus estados de saúde configuram tema
público, sendo habitual quando se encontram cotidianamente pelas ruas da cidade perguntar a
Muitas das curas para enfermidades as mais diversas são realizadas por meio de chás,
xaropes caseiros, infusões e garrafadas, preparados que podem ser prescritos para banhos ou
dos curadores, ainda que seja comum que o possuam: também rezadeiras, benzedeiras e
outros entendidos podem ser capazes de recomendá-los e prepará-los, e muitas das pessoas
mais antigas da cidade possuem memorizadas inúmeras receitas ou indicações de usos das
357
Como indica a bibliografia disponível sobre os cultos realizados nesses locais (Rabelo 1990: 1, 212-215, 277;
Senna 1998: 36, 41, 49).
341
ervas encontradas na região358. Uma característica fundamental das curas realizadas com
ajuda de ervas medicinais operadas pelos líderes do jarê, contudo, costumava escapar àqueles
que se dedicavam a catalogar seus nomes e usos, como faziam, por exemplo, ambientalistas
respeito de muitas das utilizações tradicionais das plantas – algumas das quais fazem parte da
ciência do jarê e que, até mesmo por isso, não devem ser divulgadas de maneira indistinta –,
realização da cura com as ervas. Menos do que o fato um pouco mais banal, porém
igualmente concreto, de que era preciso, ao menos em parte, acreditar na potência dos
adeptos, fui perceber muito tempo depois, tinha a ver com a forma específica de confiança
As ervas utilizadas nas curas realizadas nos jarês passam a ser, desse modo, elas
também veículos das forças a serem mobilizadas pelos pais-de-santo na direção de seus filhos,
sendo que sempre se comenta como os males tratados pelos curadores diferem das
enfermidades que devem ser tratadas pela medicina. Enquanto algumas são mais facilmente
distinguíveis de acordo com seus sintomas – já que nenhum líder de casa de culto deve
afirmar, nisso os adeptos são categóricos, que pode curar, a título de exemplo, um tumor –,
existem outras doenças cujas causas devem ser atacadas com ação ritual, cuja aparência nem
sempre o indica. Para tanto, um curador recorre a uma revista, nome do já mencionado
processo divinatório que irá revelar se aflições como certas formas de loucura ou de
alcoolismo – para ficar nos exemplos mais recorrentes, seguidos dos problemas de locomoção
358
Muitas já foram compiladas, por vezes de maneira bastante minuciosa, em estudos sobre as tradições
populares de Lençóis (Gonçalves 1984: 74-76, 145-167; Senna 1996: 25).
359
Como mencionado acima na seção 4.2.
342
– possuem origem mística360. Uma revista pode mesmo indicar que o mal em questão não
possui nenhum componente espiritual, o curador comunicando então ao enfermo que este
deve se tratar com profissionais da medicina. É mesmo possível que se detecte uma doença
que possua um misto de componentes espirituais e não espirituais, cabendo então ao pai-de-
santo uma parcela da cura, seja por sua ação direta, seja em rituais que mobilizem as
entidades envolvidas de modo a auxiliar a cura a ser feita por médicos – por exemplo abrindo
animais sacrificados costumam ser do mesmo sexo do iniciando, e se evita escolher, nos
alguns dos filhos-de-santo da Capivara, era preciso que um único animal de quatro patas fosse
sacrificado para mais de uma pessoa durante uma iniciação, num procedimento que contava
com adaptações rituais para não comprometer sua integridade. Também podem ser feitos
sacrifícios rituais para alimentação dos espíritos e como forma de homenagem aos caboclos,
normalmente o líder da casa, ou feita por um dos auxiliares rituais do local sob orientação
direta de uma entidade manifestada. É comum que existam certos caboclos que sempre se
360
Como aludido no capítulo 3, seção 3.4.
361
Como no caso em que pediram a alguém que levasse velas para um curador para que este rezasse pelo sucesso
de uma operação médica (Rabelo 1990: 189). Em um dos municípios vizinhos, chamado Wagner, para onde
ocasionalmente podem ser levados doentes mais graves por contar com infraestrutura médica de maior
qualidade, especialmente quando comparada à de Lençóis, por vezes ocorre também o inverso, com médicos
que, após realizar anamneses e exames clínicos, terminam por informar a alguns pacientes que seus males
necessitam ser tratados por especialistas de cultos tradicionais, como o jarê (Senna 1998: 211-216 e
comunicação pessoal).
343
encarreguem dos sacrifícios, sendo os mais frequentes Ogum e, em menor grau, Eru.
de quem o ato será feito desde antes do dia de realização da cerimônia: os iniciandos ficam
responsáveis por adquirir os animais e cuidar deles até o momento do trabalho, o que inclui,
no caso dos bodes e carneiros, banhá-los no rio e aprontá-los para o ritual, por vezes
adornando-os com fitas. Mais de uma vez me pediram que tirasse fotografias dos iniciandos
com os caprinos que seriam sacrificados em seus trabalhos, os animais sendo tratados com
muito carinho e consideração, como membros da casa de culto de quem gostariam de guardar
recordações por saberem que em breve não mais estariam com eles.
dos animais, que revelam sua disposição – ou indisposição – em ceder suas vidas pelos
adeptos por meio de seu comportamento nos dias que antecedem ao ritual, bem como durante
a realização do mesmo. Animais bravios, que tentem fugir à captura, que emitam muitos sons
por mais que dificilmente venham a adiá-lo ou a evitar o destino que lhes é reservado – ainda
que haja histórias que testemunhem a exceção. Seres que, por outro lado, indiquem com seu
comportamento que aceitam a sina de darem sua vida por outrem, sendo o exemplo
prototípico o do animal que se dirige espontaneamente para o local onde será abatido – via de
regra o centro do pagodô –, de forma dócil e como que resignada, dão prova da felicidade da
iniciação, sendo encarados com grande consideração e reverência pelos adeptos 362. Contaram-
me certa vez que um carneiro foi poupado por tempo considerável por demonstrar essa
natureza entendida como abnegada, tendo por fim como destino tornar-se oferenda num
sacrifício votivo feito numa grande festa dedicada a Iansã na Capivara. No momento da
362
A atitude de reverência diante dos animais que se entende abrirem mão de suas próprias vidas é um tema
recorrente não só em outras religiões de matriz africana como em diversas tradições ao redor do mundo que
empregam atos sacrificiais (Serra 2009: 225).
344
matança propriamente dita, em algumas casas as crianças presentes são levadas para outros
aposentos para que não presenciem o corte do animal – e para que se diminua o risco de que
sejam, de múltiplas formas, afetadas pelo processo e pelas forças nele mobilizadas. Os filhos-
de-santo falam sobre a importância da firmeza que deve ter o sacrificador ao segurar o animal,
tomando-o pelas patas, no caso das aves, ou pela cabeça e chifres, no caso dos caprinos, sem
que suas mãos se cruzem diante do crânio da criatura. O corte principal deve ser fundo e
certeiro, de modo a diminuir o sofrimento do animal enquanto seu sangue se esvai sobre o
principais substâncias responsáveis pela transmissão da força que o jarê mobiliza, sendo
também sua forma concreta por excelência, justamente por ser, por definição, o fluido vital
simultaneamente é e carrega consigo as forças que o curador coloca em marcha para realizar
curas, para conectar ou separar pessoas e espíritos. Comenta-se como é fundamental que, após
o ritual de iniciação, os novos membros da casa de culto durmam ainda uma noite com seus
corpos e vestimentas marcados pelo sangue coagulado proveniente das oferendas, sendo
removido na manhã seguinte com os banhos que encerram os trabalhos. O sangue residual que
é derramado no centro dos salões de jarê ao final dos rituais iniciáticos é espalhado e coberto
com terra, até que faça parte, literalmente, da força que se encontra depositada sob o chão do
local, sendo derramado durante a matança numa bacia específica e misturado com alguma
bebida, em geral cachaça, e mel364. O preparado, que é imediatamente oferecido aos presentes
363
Como visto no capítulo 2, na seção 2.5.
364
Há também registro do uso de cravo, canela, vinho e pimenta da costa na mistura (Gonçalves 1984: 135).
345
em pequenos copos para que bebam alguns goles – sendo alertados de que devem fazê-lo com
reverência –, recebe o nome de “sangue real”. Vê-se como o sangue sacrificial que idealmente
precisa ser vertido nos rituais sintetiza muitas das modulações que as forças podem adquirir
sápida.
Inversamente, o sangue pode ser também uma substância utilizada com grande
propriedade em procedimentos místicos que tenham fins contrários à vida, como no caso do
sangue resultante de atos de violência365. De qualquer forma, a situação mais comum em que
o sangue figura como uma espécie de força oposta à das entidades reverenciadas nas festas
pode ser percebida no tabu da presença de mulheres menstruadas nas cerimônias. Os adeptos
comentam como mulheres que estejam em seus períodos devem evitar frequentar as festas de
jarê, já que a mera proximidade dos caboclos com alguém que possa menstruar por vezes é o
bastante para drená-los de sua energia, fazendo com que aqueles que os incorporam tombem
ao chão desacordados – tendo sido inclusive essa uma das suposições aventadas ao final da
festa em que Áurea caiu pela primeira vez e que foi um sinal agudo de seu enfraquecimento.
Numa ocasião em que, após ter passado por seu trabalho de reforço, Áurea comandava o
início de uma cerimônia na Capivara, sua Iansã se manifestou e solicitou que qualquer mulher
acompanhar a festa à distância. A entidade acrescentou que ela própria não tinha problema em
se encontrar naquele momento no pagodô, mas que outros espíritos provavelmente não seriam
capazes de fazê-lo – indicando tanto seu vigor renovado como a capacidade de Iansã,
especificamente, de lidar com forças ligadas à morte. Com o tempo, passei a saber que muitas
jovens, desejosas de não perder nenhum jarê, alteravam a frequência de ingestão de pílulas
365
Como exemplificado pelo evento da vingança de Pedro de Laura contra seu agressor, relatado no capítulo 3,
seção 3.4.
346
anticoncepcionais de modo a fazer com que seus períodos não coincidissem com as datas das
festas, prática que era, de todo jeito, vista pelos mais cautelosos com boa dose de reprovação.
Não é incomum que por vezes se diga de mulheres menstruadas, com algum
eufemismo por se considerar um tema delicado, que se encontram “doentes”, ou ainda que
estão de “corpo sujo”. Essa última designação também se aplica a quaisquer pessoas que
tenham feito sexo recentemente, devendo passar pelos banhos propiciatórios anteriores à festa
para que seu estado não seja nocivo às entidades. Em comum com o primeiro caso, no
segundo os corpos dos adeptos passam a ser considerados “abertos”, especialmente sujeitos às
vaginal. Como afirmam os adeptos, mesmo quando não menstruadas as mulheres possuem
canal pelo qual há, de modo intermitente, passagem de sangue. O sangue menstrual é
conexão com a morte – ou, para dizer mais precisamente, com uma não vida – qualificando-o
para agir enquanto uma força contrária de considerável intensidade, duplamente abortiva366.
Por compartilhar com esse sangue uma mesma via de passagem, a urina feminina, ao
que tange a sua aplicação contra feitiços, como me explicaram. Elias foi a única pessoa que
me sugeriu um nome para essa força oposta à dos caboclos, chamando-a de “abajé”, termo
que se estende igualmente à mulher que se encontre em seu período menstrual. Conforme ele
me disse, essa força eminentemente feminina é capaz de derrubar as entidades nos salões de
366
Conta-se que a bala responsável por matar Horácio de Mattos, o último grande coronel do sertão baiano –
cuja história foi resumida no capítulo 1, seção 1.1 – foi levada a uma mãe-de-santo de candomblé, em Salvador,
para que a deixasse em contato com sua vagina e a tornasse capaz de penetrar os encantamentos que protegiam o
coronel (Moraes 1963: 178), e que lhe teriam sido concedidos por uma de suas tias, ligada ao jarê, conforme me
disseram em Lençóis.
347
jarê justamente por seu excesso, de modo ao menos parcialmente similar ao processo de
Conclusão – Voltar
Afinal, o que pode uma tese? Seria esperar demais que um texto na prática escrito por
uma única pessoa fosse capaz de sequer se aproximar dos avanços científicos produzidos nos
grandes laboratórios por equipes compostas por hostes de profissionais orientados para se
ambas atitudes que aqui procurei evitar, entre outros motivos também porque, em mais de um
sentido, seria possível dizer que esse trabalho não possui um único autor. Assim, se acredito
ter aqui realizado alguma contribuição ao estudo não só do jarê como das demais religiões de
matriz africana, ela terá sido fruto da tentativa de transmitir inovações, conceitos e
experimentações que só podem existir hoje graças aos conjuntos de pessoas que, ao longo do
despeito das violências brutais às quais foram submetidos. Se o jarê pode, desse modo, ser
pensado como um laboratório ímpar, a equipe que nele atua e ali realiza seus experimentos e
descobertas é composta antes de tudo por seus próprios adeptos, um coletivo que também
conta com sábios, inventores e polímatas, e a cujas elaborações as desse trabalho procuram
fazer jus.
É desse modo que eu destacaria, do capítulo 1, uma versão original da história e das
histórias que envolvem a cidade de Lençóis, propondo também a consideração de uma visão
367
De qualquer modo é precisamente assim que caminha o saber científico, e querer que um texto seja muito
mais do que uma módica contribuição a determinado estado da ciência frequentemente significa acabar por se
contentar com registros ainda mais gerais e supérfluos do que as descrições singulares que podem ser capazes de
colaborar para inovações no conhecimento (Latour 2005: 123, 140, 148-149, 152, 155).
349
inconsequentes mas como senhores de si e provedores de suas famílias, mestres de uma arte
que afigura menos uma coleta do que uma caça e uma negociação. Contra a visão de que o
universal e exibindo uma aversão específica aos efeitos danosos que possuem as diversas
potencialidades criativas.
jarê, indicando diferentes modulações para a nostalgia estrutural que parece caracterizar as
tradições de matriz africana – lembrando que, se as saudades que se sente podem ser outras
o método de pesquisa foi alterado pela vivência no campo, da qual derivaram igualmente
certas opções narrativas oblíquas em função das lições sobre como conversar, o que dizer e
quando calar, parte de um aprendizado a respeito das formas de polidez e deferência que
levam essa tese a parecer menos um código normativo do que ora um manual de protocolo,
ora um guia de etiqueta, ora ainda um tratado de ética. Do mesmo capítulo, singularizo uma
especial o catolicismo, bem como a existência de uma incerteza incontornável que leva a
atentar para as condições de felicidade das cerimônias, com o termo referindo-se tanto a
alegria como a sucesso. Do mesmo capítulo destaco ainda a vitalidade que o jarê de Lençóis
demonstra e elabora, bem como sua ressurgência, termo que também se refere a um rio que se
350
esconde sob a terra e adiante volta a nascer – terra que é, igualmente, o principal tema do que
encetado, além da descrição da logística envolvida na realização das cerimônias e os usos que
recebem as bebidas alcoólicas, que agem como muito mais do que inebriantes, sendo
resiliência serve para conectar o não esmorecimento ritual a práticas de resistência que
conectam pessoas a determinadas cantigas, bem como a ação dos curadores voltada para a
conhecimento, da qual inevitavelmente faz parte uma sigética sacramental, uma economia de
formas de existência: o recurso à postulação da descrença que é feito somente quando alguém
deseja afastar a si mesmo da ação das forças abundantes no mundo. Aponto igualmente as
que é seu grau máximo, para lidar com as entidades do jarê, para as quais são apontadas
pessoas e entidades, que se associam em composições que remetem muito mais a uma
química do que a uma mecânica de manifestações, das quais fazem parte um conjunto de
motivos, nas vestimentas cerimoniais. O peripatetismo dos adeptos aparece como pista para
segundo a qual todo ente pode existir e funcionar simultaneamente como repositórios e
veículos energéticos: podem ser encarados como resultantes, compostos de forças que agem
como forças e sobre forças. Esses feixes de forças continuamente moduladas que constituem a
matéria-prima do jarê são postos em movimento no ritual visando a uma terapêutica que
coloca em questão vida e morte, assunto que será retomado ao final da conclusão.
Provavelmente se terá percebido que, em relação a sua narrativa, essa etnografia foi
concebida para ser não um retrato direto dos acontecimentos no campo, mas estruturada de
apresentado após já se ter garantido acesso às histórias com as quais ele se combina, bem
como já se ter descortinado as maneiras pelas quais fui sendo aproximado desse universo. De
certo modo, a forma da tese se assemelha a uma andança, que para os habitantes de Lençóis
costuma ser muito mais do que um evento de deslocamento espacial, já que se configura
igualmente numa ocasião didática e possui caráter cosmológico: como procurei evidenciar
pelos títulos dos capítulos, uma tese que fala sobre o jarê é inevitavelmente uma tese que
caminha pelo jarê, que o percorre e por meio da qual ele próprio pode passar a caminhar mais
longe, literalmente viajando além dos limites da Chapada Diamantina. Caminhar significa
também traçar caminhos e mapeá-los, a tese sendo assim também uma cartografia de recusa
de atalhos. Numa comparação mineralógica com os distintos tipos de garimpo, trata-se menos
352
de uma investigação genética – que procura se aprofundar em origens para exaurir veios – do
que uma prospecção aluviônica – que acompanha as movimentações fluidas das pedras pelos
rios e serras.
jarê, uma construção da qual fazem parte elementos a princípio díspares mas que acabam
momentos, as diferentes seções do texto remetem umas às outras, os argumentos podendo ser
olhar efetuado pelo leitor. Procurei aqui emular a inventividade dos líderes religiosos que
potencializam os objetos aos quais fazem recurso por meio de procedimentos de afastamento
e aproximação, tanto espacial quanto conceitual. Por esse motivo, ao longo do texto busquei
para que o leitor pudesse estar preparado e fosse capaz de remeter a elas quando
reaparecessem num momento posterior do argumento. Sempre que possível, e sem prejuízo da
também algumas conexões e variações que o jarê apresenta com outras religiões de matriz
As pessoas escolhidas como guias para orientar cada capítulo não o foram por
contrário, até, cada uma delas demonstra em sua trajetória deslocamentos específicos por
meio dos quais oferecem determinados pontos de vista ligeiramente deslizados dos que na
própria região seriam considerados mais generalizáveis. Seu Gilson trabalhou mais como um
faiscador do que como um garimpeiro em tempo integral, conciliando a cata das pedras com
um emprego na cidade e não frequentando jarês com a mesma frequência que seu pai antes
dele. Elias é um jovem que se dirige para o passado de Lençóis, recolhendo e contando
353
fazê-lo. Sandoval é o filho de um dos maiores expoentes do jarê que já existiu em toda a
Chapada Diamantina, tendo de lidar da melhor maneira possível com o legado material e
espiritual de seu pai, ainda que, diferentemente dele, ele próprio não incorpore as entidades e
tenha recorrido a uma associação para tentar manter unidos os filhos-de-santo do Palácio de
Ogum. Áurea, por fim, é considerada a principal responsável pela continuidade das
cerimônias da Capivara, indispensável para a realização dos jarês nessa casa e convidada de
honra em outras, por mais que ela própria não seja – nem tampouco deseje se tornar – uma
mãe-de-santo propriamente.
Não há dúvida de que fui obrigado a deixar de lado uma série de aspectos que
surgiram na pesquisa e que podem ser retomados de modo mais detalhado em investigações
futuras. O Movimento Avante conta com uma rica história e atuação junto a uma parte da
cidade à qual eu pouco pude me dedicar, o bairro do Tomba, principalmente por ser
considerada, muitas vezes de modo apenas jocoso, como rival à área do Alto da Estrela. A
Lençóis e com muitas conexões diretas com a cidade, sendo de interesse pesquisar não
somente seu turismo de base comunitária, sua organização em torno de algumas famílias
tradicionais e sua luta por titulação como o jarê que parece estar ressurgindo nos últimos anos
após um hiato. Além desse, o estudo de outros jarês não só dos distritos pertencentes ao
áreas agrícolas da região, que devem ter passado por alterações distintas às dos locais que se
354
culto como pelos processos recentes que têm posto em marcha, como as tentativas de
Dentre os aspectos da tese que não se conectam diretamente e apenas com os jarês,
pelo culto enquanto uma das muitas versões das religiões de matriz africana que tomaram
forma após a diáspora. Assim como as demais, o jarê se afigura um caso privilegiado para o
modo podem nele continuar atuando de modos específicos. Assim é que o jarê apresenta
certas variações para temas como as linhas de força que percorrem e separam os potenciais
masculino e feminino, a distinção gradativa entre adeptos que são ou não tomados pelas
iniciado quando incorporado por um espírito, a vida dos objetos utilizados no culto, a relação
do jarê com outras religiões, a ligação das práticas com o solo e a terra, as formas de
realização dos sacrifícios, bem como as intercessões e passagens tanto entre vivos e mortos
como entre humanos e caboclos que serão retomadas abaixo uma última vez. Espero que essa
conceitos368 quanto contribuir para a elaboração do conclamado novo quadro sinóptico das
religiões de matriz africana, já que algo como as “Ritológicas” ainda está para ser escrito369.
368
Estendendo-os com “imaginação social”, tarefa para a qual faz-se necessário tanto “perceber como são postos
para funcionar no seu contexto indígena” como indicar “como poderiam funcionar num contexto exógeno”
(Strathern 1996: 521 apud Goldman 2009: 119).
369
Musicalmente, talvez se inspirando para sua organização e composição não tanto nas formas da música
clássica que guiaram as Mitológicas de Lévi-Strauss (1964: 33-38) mas sim na música eletrônica.
355
A morte é um tema que no jarê costuma receber muito menos elaboração do que a vida
e os vivos. Até por isso, não seria exato considerar a morte como o contrário da vida, já que
não passa de parte de seu término, do mesmo modo como o nascimento é seu começo, esse
sim possivelmente oposto ao fim que a morte pode denotar370. Costuma-se, inclusive,
comentar que no jarê “tem jeito para tudo, menos para a morte”, considerada o momento
derradeiro da existência para os seres humanos – ou ao menos para a maior parte deles. A
morte, que é ocasionalmente ligada ao mar – “porque o mar é infinito”, explicam371 –, carrega
consigo uma grande medida de inevitabilidade, ao mesmo tempo em que suscita um conjunto
de conjecturas a respeito do que pode acontecer a uma pessoa depois de seu falecimento.
Enquanto alguns dos adeptos consideram que as almas de todos os seres humanos podem
viver eternamente num outro domínio da existência, a maior parte deles afirma de modo
categórico que para os humanos não há nada depois da morte, motivo pelo qual não há razão
para se ter medo do cemitério, como me disse Áurea – acrescentando que o mesmo não podia
ser dito a respeito da igreja, esse sim um local atemorizante. Como mencionado
anteriormente, é aí que ocorre o ritual de lamentação das almas372, por meio do qual os
espíritos dos mortos são apaziguados. Vê-se assim que, se a alma de uma pessoa não constitui
sua essência, que sobreviveria intacta após a morte, ela é um resquício possível que pode
370
É o que igualmente se depreende do fato de que os curadores, se podem por vezes invocar e talvez mesmo
receber espíritos dos mortos, jamais o fazem durante as cerimônias de jarê, culto cuja “religiosidade está voltada
pra o mundo dos vivos” (Gonçalves 1984: 131, 134).
371
A associação entre o mar e a morte parece ser recorrente nos candomblés angola e em outras religiões de
matriz africana, em tudo lembrando, por exemplo, a “Kalunga” do palo cubano, inclusive no modo como falam a
respeito dela, equacionada como mar: trata-se de um plano de imanência do qual sujeitos e objetos emergem ao
sabor das flutuações, das marés (Ochoa 2004: 42-53; 2007: 482). O termo foi escolhido para fazer parte do nome
de uma obra que reúne imagens produzidas ao longo de três séculos a respeito dos negros no Brasil (Moura
2000: 15).
372
Descrito no capítulo 2, seção 2.3.
356
habitar no mundo por algum tempo, e que não é necessariamente deixado por toda pessoa ao
falecer, ou “desencarnar”, como também se diz. Na linguagem mais usada no âmbito do jarê,
trata-se da “sombra”, que aqui pode ser definida como um amálgama da pessoa que se foi
Uma pessoa após morrer pode ou não deixar no mundo dos vivos uma parcela de si à
qual os viventes poderão ter acesso caso possuam a capacidade de lidar com esses seres, em
geral chamada de “mediunidade”, que pode ser desenvolvida também nas cerimônias de jarê e
cuja posse costuma ser indicativa da sina de se tornar um líder de casa de culto. Além de
pessoas que falecem em acidentes naturais ou tragédias – o que costuma ser o caso das
deixar para trás sua sombra, de algum modo sobrevivendo, parcialmente, a sua morte. Nem
toda pessoa, então, irá necessariamente continuar a existir no além, local onde os espíritos dos
mortos, por vezes chamados de “eguns”, habitam e de onde podem ocasionalmente partir para
vir visitar os viventes, com resultados diversos. Os adeptos comentam que não é
recomendável conceder muita atenção aos mortos, já que eles podem se nutrir desses fluxos
de intencionalidades que são capazes, eles também, de veicular energia, gerando deficiências
que podem ocasionar males a serem curados no jarê. Em função disso, os líderes das casas
pressintam ou detectem, a fim de que não corram o risco de fortalecer um espírito de morto e
As entidades que são próximas de uma pessoa, e de certo modo também podem passar
373
Acrescentando uma definição alternativa à oferecida anteriormente, no capítulo 3, seção 3.5.
357
Laura eram unânimes em afirmar que, por mais que “a matéria” houvesse lhes deixado, os
caboclos dele jamais iriam morrer, motivo pelo qual muitos adeptos, em especial os mais
antigos frequentadores da Capivara, afirmavam não ver necessidade de recorrer a outro pai-
de-santo. Ao contrário dos humanos, eles diziam, os santos não morrem, por mais que possam
com o tempo desaparecer caso deixem de ser cultuados, como mencionado anteriormente. A
possibilidade de não morrerem é uma das características que distingue essas entidades da
maior parte dos humanos, à exceção daqueles que haviam deixado o mundo dos vivos sem
por não terem tido de enfrentar a morte, sofrem uma transformação peculiar e passam a ter
uma constituição que os aproxima das entidades cultuadas no jarê, muitas das quais podem ser
desaparecendo nas serras ou matas, e cujos corpos jamais são encontrados, indicam um
fenômeno que pode ser pensado como inverso ao do já nascer feito: trata-se de pessoas que
não serão desfeitas pela morte374. Tanto essas como as pessoas que figuram entre os grandes
nomes do jarê exibem também uma característica que mostra o cromatismo entre seres
força pessoal – tanto aqueles que já nasceram feitos como os que ao longo da vida se tornaram
prontos de forma muito intensa são particularmente propensos a se tornarem eles próprios
entidades a serem cultuadas – do mesmo modo como no passado pode ter acontecido tanto
com nativos do continente africano como com indígenas em território nacional, conforme
conjecturam alguns adeptos375. Assim como os guiavam em vida, após abandonarem sua
374
No candomblé, crianças que são reclamadas para morrer antes mesmo de nascer, ditas abiku, têm sua
existência na terra condicionada a uma negociação com as entidades, não devendo por isso ser iniciadas: como aí
iniciação replica uma morte, às quais essas crianças são cotidianamente extraídas, não suportariam sofrer uma
permeabilização ainda maior a seus efeitos (Augras 1994: 77-78 apud Barbosa Neto 2012: 28 nota 20). Apesar
do termo não ser utilizado no jarê, o episódio que será narrado abaixo consistiria um exemplo bastante próximo a
esse fenômeno, cujo desenrolar dramático se processou inteiramente diante dos viventes.
375
Menos do que divindades absolutas, muitas entidades podem assim ter se originado de seres humanos
extraordinários (Senna 1998: 205).
358
existência material essas pessoas podem continuar a prestar auxílio aos adeptos do jarê, de
modo possivelmente não limitado à ação das entidades que deixam para trás e que podem
continuar a existir.
curadores, aos quais deve ser direcionado o ritual funerário já mencionado chamado de
sirrum, em geral feito alguns anos após seu falecimento, passado um período de luto. O
sirrum costuma ser oficiado por outro pai-de-santo, muitas vezes resultando na desativação
completa da casa de culto do primeiro. Conforme os adeptos contam, nessas cerimônias não
há toques dos tambores, que permanecem cobertos com panos brancos, sendo a destruição ou
dissolução dos bens do falecido a principal atividade do ritual. Muitos dos pertences pessoais
e objetos rituais do morto são quebrados no salão da casa de culto, o couro dos atabaques é
da casa conter as lágrimas, ainda que devam tentar fazê-lo, sendo igualmente instruídos pelo
oficiante a não dar grande atenção a quaisquer visões que possam ter durante o ritual, em
geral do próprio falecido. Conta-se que o morto se manifesta também por meio do assento que
costumava ocupar em vida, no qual ninguém mais se senta, podendo o objeto se agitar
sozinho. Ao final do ritual, os objetos desfeitos são despachados nas águas, despejados no rio
mais próximo para que possam seguir seu caminho e levar consigo grande parte da influência
que o curador era capaz de exercer em vida. Os filhos-de-santo da Capivara dizem que não
realizaram um sirrum para Pedro de Laura, optando ao contrário por manter intacta uma
parcela considerável de seus bens pessoais, especialmente suas roupas, até hoje guardadas de
continua a proteger sua antiga casa, mantendo-a paradoxalmente viva e de certa forma
congelada, já que é sua presença que impede a realização de novas iniciações no Palácio de
Ogum.
359
O fato de que nem toda dissolução da pessoa precisa ser necessariamente completa é
mais um dos exemplos que aponta para uma continuidade possível entre vivos e mortos,
humanos e entidades, podendo ser estas também responsáveis pela realização de passagens,
atualizando conexões bastante diretas com o domínio dos mortos376. Esse foi o caso de uma
criança recém-nascida, filha de uma mulher que deu à luz no próprio terreiro da Capivara na
época de Pedro de Laura. Uma entidade, Odé, manifestou-se no curador e veio saudar a
pequenina, perguntando à mãe da criança, em tom de aparente brincadeira, se ela não lhe
palavras – como frisou a senhora que me contou essa história –, a mãe disse sim à entidade,
que ficara fascinada com a beleza da recém-nascida. Pouco tempo depois a criança deixou de
se mover, abandonando os viventes, e não ficou dúvida entre os que acompanharam a situação
que ela fora levada pela entidade. Ela descansaria a partir daí na “Cidade de Pé-Junto”, que é
como Dona Valdelice, comadre de Pedro, com grande propriedade se refere ao cemitério, bela
morada na qual todos os vivos repousarão um dia, como ela diz. Os pés juntos de que fala
Dona Valdelice não se referem apenas ao modo como os mortos são depositados em seus
caixões, mas chamam atenção igualmente para a principal característica de quem não está
mais vivo, a saber a imobilidade dos pés que não mais sobem e descem as serras, não mais
Todo jarê termina com uma homenagem a Cosme Damião, entidade da gemelaridade e
em cujo mês de setembro costuma se concentrar o maior número de cerimônias das mais
diversas casas de culto de Lençóis. Enquanto conversava um dia com Elias a respeito dos
motivos que levam à centralidade de Cosme para o jarê, ele me presenteou com um mito que
376
A essas transformações se dedica o belo epílogo com que se conclui a magnífica tese de Barbosa Neto (2012:
361-363).
377
Recorde-se aqui o episódio da senhora que recuperou sua mobilidade e fez seu habitual trajeto até o rio para
lavar roupas antes de falecer, conforme visto no capítulo 1, seção 1.3.
360
ouvira de uma das senhoras de quem tomara ensinamento, traçando sua origem às nagôs da
cidade. Ao narrar esse mito, Elias aproximou Cosme dos Ibêji, orixá duplo africano ligado
igualmente aos gêmeos. Segundo o mito, muito tempo atrás havia num reino africano um par
de irmãos absolutamente idênticos, já por isso considerados muito especiais. Certo dia,
durante uma celebração às entidades, a Morte chegou ao reino dizendo que iria levar consigo
todos os seus habitantes, assim que o couro dos atabaques parasse de soar. Diante da sina
nefasta, os irmãos tiveram uma ideia e decidiram se revezar nos atabaques, de modo que um
duração da festa. Como eram idênticos e trocavam de lugar quando a Morte estava distraída,
ela não foi capaz de distingui-los e imaginou que se tratava de uma mesma pessoa tocando
reino sem levar nenhum de seus habitantes. Os gêmeos foram saudados como heróis, tendo
De certo modo, todo jarê realizado até os dias de hoje pode ser pensado como uma
reatualização desse embate, e desse ardil. Como os gêmeos do mito, os tocadores de atabaque
são responsáveis por manter a festa sempre em curso, instando, junto dos demais presentes, os
esgotamento a que todos estão inevitavelmente sujeitos. Bater jarês é uma forma de fazer com
que a vida, em sua plenitude, prossiga, e até por isso as cerimônias são voltadas para a cura e
a reabilitação dos adeptos, para a mobilização das entidades e das forças que compõem e são
compostas por ambos, para o afastamento progressivo dos mortos e suas influências
perturbadoras. Bater jarês é sobretudo um meio de manter viva uma festa sem fim, uma festa
que não pode acabar sem que se corra o risco de seu término significar também o término da
vida como a conhecemos. De todo modo, uma festa é – e precisa ser – também uma ocasião
feliz, animada, muito embora as circunstâncias nem sempre favoreçam a alegria. Mesmo
361
diante de uma série de obstáculos, e convivendo com a possibilidade de que o jarê venha a
desaparecer caso seu empenho não se renove, seus adeptos optam por uma existência plena de
vivacidade. Dão testemunho, assim, não só durante as cerimônias como fora delas, das
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Índice remissivo
garimpo 25, 27, 30, 38-48, 50-52, 59-60, pseudônimos 15-16, 132
92, 97, 106, 236-237, 351-352 quadrilha 89-92, 110, 203
Gilson, Seu 22-25, 37-39, 44-49, 55, 61, reisado 138
250, 352 relações sexuais no jarê 285-286
Grãos de Luz e Griô 101-103, 124, 208 religião 16-17
Horácio de Mattos 31-32, 118-119 Remanso 112-114, 240-241, 353
humor 45, 57, 78, 128 resistência 214, 220-221
incorporação 7, 9, 158, 191, 301-302, 309- rituais 9, 129, 133-134, 157, 193-196, 251-
321, 326, 331-332 252, 280, 283, 317
independência feminina 286-287 roupas 151, 312, 321-324, 358
indígenas 112-113, 201, 305, 357 sacrifício 158, 167, 184, 187-188, 278,
iniciação 342-344
de adeptos 62, 156-157, 171-172, 176- saliva 175-176, 333-334, 339
177, 180, 182-191, 278-279, 329 Sandoval 202-204, 206-210, 213, 222, 238,
de curadores 157, 167, 192, 240, 261- 244, 254, 267-270, 276, 279, 353
262-264 sangue 188, 216, 249-250, 339, 344-347
jarê 5-11, 42, 110, 115-120, 132, 151-162, São João 89-90
255, 282, 354, 360-361 segredo 125, 191-192, 255-256, 260-261,
de brincadeira 148-150 263
e religiões cristãs 146-148 Senhor dos Passos 30, 37-38, 71, 137, 145
lamentação das almas 139-140, 143-144 sexualidade 80, 220, 244
lavagem da igreja 138-139, 142-143 Sincorá, Serra do 13-14, 27, 47, 51-52
Lençóis 6, 10, 14, 23-37, 43, 70, 155, 162, sonhos 254-255, 301
236 subversividade 8, 141-145
loucura 264-265, 338 suficiência, ética da 39-40, 55-56, 88-89
marujada 103 terra, importância no jarê 159, 170, 188,
masculinidade 95, 219 195-198, 306-307
memória 6, 9, 99, 104, 122, 130, 191, 230, terreiros 156-157, 166-167
235, 295-296, 316 tombamento
mito 354 de Lençóis 33
morte 73, 140, 189-190, 202, 248-250, do jarê 208-209, 354
252, 293, 337, 345-347, 355-360 trabalho 50, 54-55, 83
movimento 7, 245-246, 258-259, 292-293, de campo 12, 15, 92, 127-130, 351
301, 318, 325-327, 330-331, 335-336 ética do 40-42, 55-56
musicalidade 217-218 trama 4, 281
Mussum 162-163, 238-239, 267, 279, 284 transformação 3-5, 207, 300-301, 352, 354
nagôs 6, 115-120, 125 transmissão de conhecimento 125-126,
natureza pessoal 147, 230, 235, 311 256-260
objetos rituais 183-185, 191, 194-195, 283, transporte 49-50, 59
331, 339, 358 até os jarês 206-207
ogã 157, 251, 263, 277 turismo 17-18, 25, 34-35, 46-54, 63-64,
parentesco 80-81, 177-182, 243, 279 78-79, 107, 113-114, 129
pedra de raio 41, 118, 328, 339 união 161-162, 267-268, 281
Pedro de Laura 113, 161-162, 202-203, Valdelice do Alto da Estrela, Dona 198-
239-255, 259-260, 265-266, 273-274, 201, 276, 293
356-358 Valdelice do Baixio 163-164, 267-268
pesquisadores 26, 58-59, 99, 122-127, 207 violência 64-65, 250
política 82-86
383
Anexo I – Perfis
Nesse anexo encontram-se breves perfis das pessoas mencionadas com maior
regularidade ao longo da tese para referência durante a leitura. Ainda que estas sem dúvida
façam parte do conjunto dos principais interlocutores com quem a pesquisa foi desenvolvida,
certamente não o esgotam. A totalidade dos nomes pode ser conferida na seção de
Agradecimentos no início do texto.
Daso Apelido pelo qual é conhecido Gildásio, último filho-de-santo feito por Pedro
de Laura e curador do terreiro Pai Gil de Ogum, junto ao Rio das Toalhas.
Dinha Mãe biológica de Sandoval e irmã de Áurea, realizou um jarê em sua casa
localizada nos arredores da sede de Lençóis.
Gilson Ex-garimpeiro e contínuo do único banco da cidade de Lençóis, seu pai foi um
dos sacrificadores rituais do Palácio de Ogum.
Joaquim Dono da Pousada Violeiro, possui igualmente uma pequena venda no Centro
de Lençóis. Marido de Dona Juanita.
384
Pedro Maior curador de que tem notícia a memória recente de Lençóis e um dos
de Laura grandes mestres do jarê da Chapada Diamantina. Pai adotivo de Sandoval e
compadre de Valdelice do Alto da Estrela.
Sandoval Filho biológico de Dinha e sobrinho de Áurea, adotado por Pedro de Laura.
Presidente recorrente da Associação do jarê e promotor das festas na Capivara.
Anexo II – Mapas
378
Reproduzido de http://pousadaribeirao.blogspot.com.br/. A fonte indicada no local onde a imagem foi
encontrada foi contatada e indicou que a imagem é de autoria desconhecida.
386
379
Fonte do mapa: Google Earth.
387
3. A cidade de Lençóis. Para se chegar ao Palácio de Ogum saindo da cidade toma-se a trilha
marcada com a direção “Ribeirão de Baixo”, na parte esquerda do mapa380.
380
Fonte do mapa: Guia Lençóis (http://www.guialencois.com.br/arquivo/pdf/mapa_lencois.pdf), reproduzido
com autorização.
388
Associação do jarê
Fotos 62, 63, 64.
Calil Neto
Fotos 2, 3, 4, 8, 9, 13, 14, 15, 16, 29, 30, 31, 32, 34, 35, 39, 40, 42, 45, 47, 55, 59, 60,
65, 66, 67, 68, 74.
Gabriel Banaggia
Fotos 1, 7, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 33, 36, 37, 38, 41,
43, 44, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 56, 57, 58, 61, 69, 70, 71, 72, 73.
Tiãozinho
Fotos 5, 6.
389
2. Anoitecer em Lençóis.
390
4. Exemplos das fachadas das construções de Lençóis. As portas e janelas de muitas das
edificações de menor porte seguem o mesmo estilo.
391
18. Elias ajeita objetos de uma oferenda ritual para ser fotografada.
398
21. Reisado de Lençóis antes do início de uma procissão, com Dona Domingas ao centro.
23. Dona Vâny, ao centro, na preparação da saída das baianas para lavagem da igreja.
25. Sob chuva, lamentadoras de almas rezam a última estação antes de entrar na igreja.
26. Dentro da igreja, lamentadoras lideram a entoação das últimas rezas às almas.
402
29. União das cabeças protagonizada por uma adepta incorporada, no centro, e uma jovem.
30. Repasto que costuma anteceder as festas de jarê na principal casa de culto de Lençóis.
404
31. Fachada do Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, onde reinou Pedro de Laura.
35. Para se chegar às casas de culto deve-se tomar trilhas similares a essa saindo de Lençóis.
Só uma pequena parte, contudo, encontra-se conservada como a retratada.
37. O antropólogo retratado com Valdelice, Corró e uma de suas filhas, Daiane.
41. Daso com alguns dos frequentadores de seu terreiro, incluindo seus filhos-de-santo.
45. Mussum orienta um aprendiz no preparo das oferendas na entrada do Palácio de Ogum.
50. Dois conjuntos de colares após terem sido lavados pertencentes a iniciandos.
414
51. Adeptos espalham terra no centro do salão, mesclando o sangue sacrificial ao chão.
52. Caboclos prostrados ao pé dos atabaques dando origem a uma lama ritual.
415
53. Dona Valdelice, em um passeio nas cercanias de Lençóis para recolher ervas.
55. Sandoval posa junto de crianças ligadas ao Palácio de Ogum antes de uma festa.
57. Um dos atabaques do Palácio de Ogum feito com a técnica do tronco cavado.
60. Outros instrumentos usados no jarê: o xequerê em primeiro plano e o agogô ao fundo
419
61. Gravação de entrevista nas proximidades do Palácio de Ogum, no Poção do Rio Capivara.
62. À esquerda, Pedro de Laura com seu filho, Sandoval, ainda criança.
420
64. Cerimônia na Capivara em foto na qual podem ser vistos muitos dos principais líderes do
jarê da contemporaneidade.
421
66. Momento da queda da árvore consumida pela fogueira e corrida para pegar os presentes.
422
67. Alguns dos frequentadores e iniciados da Capivara, hoje também ligados a casas diversas.
69. Fitas em árvores e moradas das entidades protegem as mesmas e estas ao terreiro.
70. Detalhe de árvore que serve de morada a um Exu no terreiro Pai Gil de Ogum.
424
71. Maria Áurea, uma das mais importantes filhas-de-santo do Palácio de Ogum.
72. A Iansã, também chamada de Santa Bárbara, de Maria Áurea dança no salão da Capivara.
425
73. Árvore onde mora um Eru, localizada na mata nas proximidades de um terreiro.
74. Adepta se abaixa em deferência antes de saudar a Iansã de Áurea, que retribui o gesto.
426
Anexo IV – Cantigas
Esse anexo reúne letras de diversas cantigas de jarê da forma como me foram cantadas
pelos filhos-de-santo de Lençóis para serem registradas. A maior parte delas provém do
Palácio de Ogum e seus iniciados, tendo sido compiladas e disponibilizadas por escrito em
cópias para os amigos que me auxiliaram mais diretamente na empreitada. Uma coletânea
como essa dificilmente pode ser completa, em especial por três motivos. Em primeiro lugar,
porque existem algumas cantigas que são envoltas em segredo, as quais me pediram
especificamente que não divulgasse. Em segundo lugar, porque o repertório das cantigas é
muito extenso e é difícil até para os filhos-de-santo de melhor memória lembrar todas elas
quando não se está numa cerimônia de jarê. Em terceiro lugar, porque muitas cantigas
desaparecem com o tempo enquanto outras são criadas e improvisadas, fazendo com que o
repertório esteja em fluxo constante.
A ordem das cantigas aqui registrada procurou seguir, grosso modo, a sequência das
entidades que seriam cultuadas durante uma festa para Iansã no Palácio de Ogum. De todo
modo, estão presentes também cantigas elaboradas em outros terreiros e, especialmente nas
últimas partes do anexo, outras executadas para fins diversos então indicados. Ao final
encontra-se uma cópia do disco gravado pelos membros da Associação do jarê mencionado no
capítulo 3.
Exu
Vem cá Exu, vem me dizer Exu, Exu, Exu vai pro caminho
O que é que tem aqui Exu das sete encruzilhadas
Vem cá Exu, vem me dizer Exu vence por mim
O que é que tem ao redor do peji
Cachorro late na rua
Exu da meia-noite Galo canta no muro
Exu da encruzilhada Ô, salve, Exu
Exu da meia-noite Exu Tranca-Rua
Exu da encruzilhada
Fala o povo de umbanda
Sem Exu não se faz nada
427
Só queima a pólvora
Pra quem sabe queimar
Meu ponto é seguro
Meu pai é Oxalá
Povo de umbanda
Olha os filhos seus
Defuma os seus filhos
Nas horas de Deus
428
Chegou Índio da mata dos cangojis Eru turrou na mata, o povo se assustou
Cheguei agora eu vi as penas sacudir Aê, Eru, Eru da mata eu sou
Chegou Índio da mata da juremeira
Eu sou um caboclo Eru, Eru, ô Eru é caboclo bravo
Que só ando é nas carreira Eru não conhece gente
Eru só conhece mato
Ó Índio ê, ó Índio á
Chegou da mata bruta Caboclo Eru, no Brasil ele é guerreiro
Com todos seus orixás Caboclo Eru, no Brasil ele é guerreiro
Ele é malcriado, pra quem bole com ele
Caboclo da mata o que é que come Ele é malcriado, pra quem bole com ele
Folha verde de guiné
Se não achar a folha verde O samba de Eru é pesado
Come a folha que tiver É pesado, é pesado
Sultão da Mata não tem roupa Sou Gentio, sou Gentio, sou Gentio
Sultão da Mata só anda é nu Eu sou Gentio minha mãe vim vadiar
Sultão da Mata não tem panela Eu sou Gentio
Sultão da Mata só come é cru Acompanhado de Alemanha, mamãe
Sou Gentio, sou Gentio, vim vadiar
Sultão ê, meu pai
Sultão veio vadiar Eu vim aqui hoje
Sultão da boca da mata Vim matar minha cegueira
Ele é o rei dos orixás Eu sou caboclo bravo
Sou Gentio de capoeira
Sultão da Mata matou um passo de pena
Sultão da Mata matou um passo de pena No fundo do mar
Ê, ê, ê, lá na aldeia da jurema Tem uma fonte bela
Ê, ê, ê, lá na aldeia da jurema Aonde o rei Gentio
Bebe água nela
Na minha aldeia tem cobra preta
Na minha aldeia tem jaracuçu Gentio, meu irmão
Eu botei o meu joelho no chão Camarada meu
Dei um grito bem alto na chegada de Sai da tua aldeia
Sultão E vem brincar mais eu
Eu sou um caboclo de opinião
Na minha aldeia tem cobra preta Eu sou Gentio guerreiro
Na minha aldeia tem jaracuçu De bom coração
Ajoelhei, botei meu ouvido no chão
Dei um grito e um assovio na chegada de
Sultão Jurema
Ô Mineiro, ô, Mineiro
Ô Mineiro da lavra sou eu
Ô Mineiro, ô, Mineiro
Ô Mineiro da lavra chegou eu
440
Oxóssi Jericó
Eu venho de beira-mar
Eu venho jogar meus búzios Nanã
Eu venho de beira-mar
Nagô trabalha é no seguro Ô Nanã borocô, quem tremer, cai, cai
Quem tremer, cai, cai
Quem tremer, cai, cai
Oxalá
Ô Nanã no-ê
Oxalá, Oxalá, Oxalá Ô Nanã no-á
Ele é de Oiá Ô Nanã no-ê
Oxum já veio do mar
Oxalá, tintin Ela traz consigo
Oxalá meu alamim Três pedras de ouro
Para repartir, ô
Oxalá, meu pai Com seus filhos todos
Tem pena de mim, tenha dó Ô Nanã ê
A volta do mundo é grande Nanã ê
Os poderes de Deus, o seu é maior Nanã ê totô
Nanã ê totô
Nanã ê totô
Baluaê
Nanã quando despede
Perdoa Baluaê, com todos os orixás Despede com alegria
Perdoa Baluaê Adeus santo terreiro
Pelo amor de Nossa Senhora Adeus até um dia
O galo já cantou Ô é de um a um
Eu não sei que horas são É de dois a dois
Vamos fazer a matança Ô Cosme Damião
Para são Cosme Damião Ele é Dois Dois
Cosme Damião
Vem comer seu cariru
É de todo ano
Fazer cariru pra tu
Vinte e sete de setembro
Cosme Damião e Deú
Até os peixe das água
Comeu o seu caruru
Ô Cosme Damião
Eu já comi seu vatapá
Quero que me dê
O salão pra vadiar
449
Disco com cantigas de jarê gravado pelos membros da Associação dos Filhos-de-Santo do
Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, reproduzido com sua autorização.