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Gabriel Banaggia

As forças do jarê
Movimento e criatividade na religião de
matriz africana da Chapada Diamantina

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como requisito parcial à obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social.

Orientador: Marcio Goldman

Rio de Janeiro

2013
Gabriel Banaggia

As forças do jarê
Movimento e criatividade na religião de
matriz africana da Chapada Diamantina

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como requisito parcial à obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social.

________________________________________

Marcio Goldman

________________________________________

Eduardo Viveiros de Castro

________________________________________

Miriam Rabelo

________________________________________

Carmen Opipari

________________________________________

Jérôme Souty

Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 2013.


BANAGGIA, Gabriel

As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz


africana da Chapada Diamantina / Gabriel Banaggia. – Rio de Janeiro:
UFRJ/MN, 2013.

460 p.

Orientador: Marcio Goldman

Tese (Doutorado em Antropologia Social) – UFRJ, Museu


Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2013.

1. Religiões afro-brasileiras. 2. Antropologia. 3. Jarê. 4. Chapada


Diamantina. I. Goldman, Marcio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Museu Nacional. III. Título.
Para Helder, Lúcia e Priscilla.
AGRADECIMENTOS

A Marcio Goldman, muito mais do que somente meu orientador, por uma convivência
tão plena de ensinamentos que me deixa constantemente incapaz de eleger qual entre tantos
seria afinal o principal motivo de minha admiração por ele.

Aos demais professores que compõem minha banca, Eduardo Viveiros de Castro,
Miriam Rabelo, Carmen Opipari e Jérôme Souty, por não só aceitarem gentilmente o convite
para participar da defesa como terem sido, cada qual a seu modo, absolutamente inspiradores.

Aos outros docentes e aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Museu Nacional e dependências, na secretaria, administração,
copiadora, restaurante e, acima de tudo, biblioteca.

À Capes e à Faperj, por proporcionarem minimamente as condições materiais


necessárias à execução de um doutorado.

A Paula Siqueira, pela revisão meticulosa e pelas sugestões valiosas. A Priscilla


Banaggia e Geórgia Nunes, pela paciência para fazer o gráfico. A Calil Neto pela autorização
para uso das fotos e a Roberto Sapucaia e Branco Pires, dos mapas. A Antonia Walford pela
revisão do resumo em inglês.

–––

A meus amigos ligados ao jarê de Lençóis, bem como àqueles que conheci
predominantemente por meio deles: Ademário, Alessandro, Alice, Almerindo, Áurea, Betão,
Bilico, Bina, Buda, Ceci, Conceição, Coquinho, Corró, Cosminho, Da Maré, Daiane, Daniel,
Daso, Delza, Delzuíta, Dezinha, Didi, Dilza, Dina, Dinha, Eva, Gelinho, Guilé, Jerônimo,
Julinda, Krisna, Leninha, Lourdes, Lúcia, Maria, Marileide, Milton, Mussum, Nalvinha,
Nêga, Nena, Neto, Norma, Téinha, Raimunda, Ró, Samara, Sandoval, Sílvio, Tuta, Valdelice,
Valdelice, Vanvan, Vâny, Wilson, Zefinha, Zuzinha. Espero que essa tese possa fazer jus ao
tanto que me ensinaram.

Aos demais amigos que fiz, e conhecidos com quem tive contato mais significativo,
em Lençóis, não necessariamente ligados ao jarê: Alcino, Alexandre, Amy, André, Aninha,
Beá, Betukka, Calil, Carminha, Célia, Clésia, Dan, Dani, Daniela, Danilo, Delmar, Dodó,
Domingas, Edson, Eládio, Evandro, Gilson, Gilvano, Gina, Hugo, Hury, Izete, Jacy, Jair,
Joana, Joana, Joana, Joaquim, Juanita, Kelly, Keu, Kim, Léo, Lisso, Luanda, Maísa, Mano,
Mara, Mariana, Natalie, Neide, Ninha, Nivalda, Olivia, Roberto, Saci, Saskia, Salvador,
Sarah, Suzy, Tabita, Tiãozinho, Túlio, Val, Vera, Vinny. Obrigado por tantos momentos.

A todas as crianças de Lençóis, essa legião de vida a quem tive o grande prazer de
ensinar e o maior ainda de com elas aprender.
–––

A Carlão, Gino, Iara, José Carlos, Marta, Samuel e Tânia, pelas acolhidas generosas e
pelas trocas intelectuais sempre estimulantes.

A Ana, André, Bia, Bruno, Cecilia, Clara, Consolação, Edgar, Julia, Lu, Marina,
Paula, Thiago, Virna, meus outros professores.

A Aline, Amanda, Bia, Bruno, Camila, Clarisse, Edgar, Eric, Felipe, Felipe, Felipe,
Guilherme, Indira, João, Karen, Kleyton, Laura, Luan, Malu, Manu, Marcelo, Marcos, Maria
Elvira, Mariana, Orly, Pedro, Raphael, Rogério, Suzane, Tainah, Wal: minha experiência no
Museu não teria sido a mesma sem vocês.

A Ana, Antonia, Chubby, Fred, Gustavo, Gustavo, Ligia, Pedro, Renato, Romulo, Sal,
Tiago, Uirá, Vitor, o pessoal que nem sempre está perto mas que está sempre por perto.

–––

A Cabeça, Carol, Débora, Henrique, Mayra, Tamara, Tati, Vargas, as amizades novas
que já nasceram antigas.

A todas as pessoas de minha família, em especial meus pais, por terem me dado apoio
incondicional, ainda que nem sempre tenha sido fácil. Se pude chegar até aqui, em grande
parte foi por causa de vocês.

A Ai, Baeta, Bob, Buiu, Clara, Cyro, Dudu, Fê, Flavia, Flavio, Galo, Gama, Guta,
Luisa, Marcello, Marília, Marins, Marta, Pric, Sassá, Serginho, Sylvia, Tarsila, Timaum:
desse ano não passa, pessoal. Obrigado por caminharem comigo.

–––

A Leonardo, por fazer da minha vida, outra.


Resumo

BANAGGIA, Gabriel
2013. As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da
Chapada Diamantina. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Rio de
Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Essa tese é um estudo do jarê, religião de matriz africana existente somente na Chapada
Diamantina, no centro do estado da Bahia, e que foi objeto de pouquíssimos
trabalhos antropológicos até hoje. A tese foi composta com base em doze meses contínuos de
trabalho de campo, a partir da cidade de Lençóis, considerada pelos adeptos o berço da
religião e um de seus principais polos de difusão para o restante da região. Ainda de acordo
com os adeptos, o jarê foi elaborado pelas “nagôs”, senhoras negras que, no século XIX,
vieram para a região no surto de povoamento desencadeado pela descoberta de diamantes nas
serras da Chapada.

Para compreender o jarê contemporâneo, a tese recorre não só às muitas versões da história
local como às recentes transformações pelas quais a região tem passado, com o surgimento do
Parque Nacional da Chapada Diamantina desembocando no fim do garimpo e gerando uma
economia voltada para o ecoturismo. A etnografia se concentrou em três casas de culto
aparentadas, cujos líderes tiveram de se reorganizar após o falecimento do curador que
iniciara a maior parte de seus adeptos e fora um dos maiores mestres do jarê de Lençóis. A
tese apresenta os modos como os filhos-de-santo manejam um sistema de energias de modo a
obter efeitos diversos, mobilizando criativamente as forças do jarê.

Palavras-chave

Religiões afro-brasileiras; antropologia; jarê; Chapada Diamantina.


Abstract

BANAGGIA, Gabriel
2013. As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da
Chapada Diamantina. Thesis for Doctor of Philosophy in Social
Anthropology. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.

This thesis is a study of jarê, an African matrix religion that only exists in the Chapada
Diamantina, located in the centre of the state of Bahia (Northeast Brazil). To this day jarê has
been the object of very few anthropological studies. The thesis was based on twelve
continuous months of fieldwork, focusing on the city of Lençóis, considered by the adepts to
be the cradle of the religion and one of its main hubs of diffusion to the rest of the region.
Also according to these adepts, jarê was developed by the nagôs, old black ladies who came
to the region in the nineteenth century during the population surge triggered by the discovery
of diamonds in the mountain ranges of the Chapada.

To understand contemporary jarê, the thesis draws on not only the many versions of local
history but also on the recent transformations that the region has been undergoing, with the
establishment of the Chapada Diamantina National Park. This has resulted in the end of
diamond prospecting and has given rise to an economy based on ecotourism. The ethnography
focused on three related cult houses, whose leaders had to reorganize themselves after the
death of the healer, one of the greatest masters of the jarê, who had initiated most of their
adepts,. The thesis presents the ways in which the sons in sainthood manage a system of
energies in order to obtain various effects, creatively mobilizing the forces of jarê.

Keywords

Afro-brazilian religions; anthropology; jarê; Chapada Diamantina.


“Mas se me viesse de noite uma mulher. Se ela segurasse no colo o
filho. E dissesse: cure meu filho. Eu diria: como é que se faz? Ela
responderia: cure meu filho. Eu diria: também não sei. Ela
responderia: cure meu filho. Então – então porque não sei fazer nada e
porque não me lembro de nada e porque é de noite – então estendo a
mão e salvo uma criança. Porque é de noite, porque estou sozinha na
noite de outra pessoa, porque este silêncio é muito grande para mim,
porque tenho duas mãos para sacrificar a melhor delas e porque não
tenho escolha.”

– Clarice Lispector

A legião estrangeira (1964: 98)


SUMÁRIO

Introdução Chegar 1

Capítulo 1 Pisar

1.1 Lençóis 22

1.2 Excursos 48

1.3 Caminhos 65

1.4 Criatividades 78

1.5 Profusões 86

Capítulo 2 Dançar

2.1 Negritudes 94

2.2 Pesquisas 121

2.3 Subversões 137

2.4 Jarês 151

2.5 Telurismos 177

Capítulo 3 Tombar

3.1 Associações 202

3.2 Resiliências 209

3.3 Registros 222

3.4 Sonhos 236

3.5 Propagações 255


Capítulo 4 Levantar

4.1 Tramas 275

4.2 Confidências 289

4.3 Caboclos 297

4.4 Forças 324

4.5 Vidas 340

Conclusão Voltar 348

Bibliografia 362

Índice 381

Anexos

I Perfis 383

II Mapas 385

III Fotografias 388

IV Cantigas 426
Introdução – Chegar

“A academia não valoriza o tipo de conhecimento que eu tenho”. Esse diagnóstico me

foi oferecido algumas vezes por um dos maiores amigos que fiz durante a pesquisa,

especialmente quando falava a respeito dos motivos que o levaram a não ser aprovado em

nenhum dos exames de ingresso em universidades públicas que havia prestado. Com tom de

apenas ligeira indignação, ele acrescentava: “O vestibular quer medir o conhecimento escolar,

mas não o que uma pessoa sabe”. Mesmo quando afirmam valorizar o saber oral tradicional,

ele concluía, as universidades se interessam antes de tudo em transformá-lo em conhecimento

escrito: codificá-lo, registrá-lo e removê-lo do local onde havia sido constituído, privando-lhe,

no processo, de parte de sua potência. Um dos objetivos dessa tese envolve encarar essas

críticas e contribuir para a alteração desse quadro, tanto se fundamentando numa apreciação

do conhecimento tradicional naquilo que ele possui de interessante quanto mobilizando seu

potencial transformativo para a antropologia e para além dela.

Dito de outro modo, e motivado igualmente por eventos transcorridos no trabalho de

campo, esse trabalho acadêmico visa lidar com questões levantadas por desenvolvimentos

contemporâneos da antropologia. Assim, a partir da ideia de reversibilidade, procura operar

uma inversão que possibilite que os mecanismos do pensamento antropológico sejam afetados

por aquilo que as pessoas com quem se estuda dizem e demonstram a respeito da empreitada e

de seus pressupostos. Para tanto, faz-se necessário investir em operações de simetrização que

tornem as experiências vivenciadas no campo – aí incluídos os pontos de vista daqueles com

quem a pesquisa é realizada – compreensíveis para leitores que não dispuseram do mesmo

acesso aos ensinamentos em questão (Goldman 2008: 6-8). Trata-se, dessa forma, de diminuir
2

assimetrias que em princípio dificultariam a comunicação dos saberes envolvidos, tornando

ativo um potencial desestabilizante que não somente incide, de maneira mais direta, sobre os

modos dominantes de pensar e definir a realidade como estabelece conexões com as forças

minoritárias incontornavelmente aí existentes, fazendo-as ressoar (Goldman 2009: 117, 132;

2011: 424).

Essa tese é também fruto de algumas das conclusões a que cheguei em minha

dissertação de mestrado (Banaggia 2008: 193-207), essencialmente bibliográfica. Junto de – e

com base em – outros autores (Goldman 1984: 123; Brown 1986: 227; Cavalcanti 1986: 98-

99; Serra 1995: 58-59; Goldman 2005: 105-106), ali defendi que os estudos contemporâneos a

respeito das religiões de matriz africana no Brasil poderiam ser renovados por meio de uma

série de opções que incluíam, em primeiro lugar, considerar as dimensões não conspícuas da

vida mística dos membros dos terreiros e do cotidiano de uma comunidade de culto nos

momentos não necessariamente ligados aos rituais religiosos. Em segundo lugar, para abdicar

de uma proxêmica do distanciamento que supostamente seria condição da objetividade

científica, apostar na configuração de uma antropologia que derivasse ao menos parcialmente

do reconhecimento das reflexividades nativas específicas e das transformações que elas

podem acarretar para a prática da pesquisa. Por último, numa escolha inextrincavelmente

tanto política quanto metodológica – e conectada à anterior –, recusar assimetrias que fariam

sobressair os códigos de comunicação do etnógrafo em detrimento dos nativos. Colocá-las em

prática, como sugerido, estimularia a retomada de estudos que também levassem em conta

aspectos rituais e simbólicos dessas religiões, a serem descritos de forma detalhada a partir da

experiência etnográfica.
3

Leituras realizadas num curso do doutorado abriram a possibilidade de estudar o jarê,

a religião de matriz africana da Chapada Diamantina, área serrana de clima semiárido

localizada no centro do estado da Bahia, descrita de modo mais detido adiante 1. Até aquele

momento só haviam sido realizadas duas pesquisas sobre o jarê, que serão apresentadas de

forma resumida abaixo, bem como se contava um espaço de tempo de mais de 20 anos da

realização do trabalho de campo que embasou a mais recente delas. Estudar o jarê na

contemporaneidade configurava também uma aposta de aprofundar a descrição de uma

religião de matriz africana que não se localiza no litoral, domínio etnográfico no qual

historicamente se concentra a maior parte das pesquisas da área no Brasil (Maxado 1998: 27).

A realização do trabalho de campo numa cidade pequena acabou facilitando uma

aproximação mais íntima com o cotidiano dos adeptos da religião mesmo nos momentos em

que não estavam lidando com afazeres diretamente ligados aos cultos.

Simultaneamente, essa tese existe enquanto parte de um projeto elaborado por um

conjunto de pesquisadores interessado em voltar a considerar a iniciativa de Roger Bastide

(1960) de construir um quadro comparativo das religiões de matriz africana no Brasil,

proposta cuja retomada havia sido recentemente sugerida (Serra 1995: 10, 129; Goldman

2009: 107-108 nota 3), elaborando um estudo sinóptico das religiões surgidas na diáspora

negra, possibilitado pela existência, nos dias de hoje, de uma base etnográfica e conceitual em

moldes contemporâneos mais ampla do que a que se costumava dispor há alguns anos2. Para

tanto, a proposta é encarar essas religiões sob uma perspectiva transformacional, considerando

que as diferenças existentes entre elas podem ser pensadas enquanto transformações umas das

1
Ver mapa do entorno da região estudada no anexo II.
2
Como os trabalhos de Anjos (2006), Cardoso (2004), Corrêa (1992), Halloy (2005), Iriart (1998), Johnson
(2002), Opipari (2004), Sansi (2003), Segato (1995) e Wafer (1991), além de outras menos recentes como os de
Cossard (1970; 2006), Leacock & Leacock (1972), Lima (1977) e Serra (1978). Entre as teses dos alunos que
fazem parte desse grupo de pesquisa já se encontram concluídas as de Edgar Rodrigues Barbosa Neto (2012),
Maria da Consolação Lucinda (2012) e Paula Siqueira (2012), às quais deverão se somar, além desta, as de Clara
Mariani Flaksman e Bianca Arruda.
4

outras, sugerindo que todas podem fazer parte de um contínuo heterogêneo. A opção pela

utilização do termo matriz na designação desse conjunto de religiões se reporta a uma dupla

significação: ele pode ser entendido ao mesmo tempo em seu sentido generativo – respeitando

a utilização nativa que as relaciona a uma África não necessariamente real, imaginária ou

simbólica, mas sobretudo existencial – como em seu sentido matemático – que evidencia

arranjos e transformações entre elas (Goldman 2011: 427 nota 2).

De todo modo, essa tese propõe ser antes de tudo uma etnografia, seu objetivo

principal sendo o de produzir um sistema de referência fundado na experiência etnográfica e

dotado de uma relativa independência tanto do pesquisador como do objeto estudado. Para

tanto, ela busca apresentar o ponto de vista dos adeptos do jarê e, quando possível, estendê-lo

de modo a incluir na descrição as formas como suas perspectivas também se dirigem – ou

podem ser dirigidas – para nossos próprios conceitos, transformando-os criativamente. Nessa

acepção, a produção de uma etnografia depende da capacidade de ouvir o que os nativos têm a

dizer e de levar a sério suas hipóteses e proposições o máximo possível, de modo a ser

continuamente posto em movimento por elas (Goldman 2009: 118 nota 11, 130). O resultado

final desse processo é um registro textual que não é mera descrição, mas que se constitui

numa disposição (“deployment”) entremeada que procura evitar ter de acrescentar explicações

àquilo que se descreve: trata-se de uma narrativa plena de atores cujas reflexões encontram-se

nela integralmente apresentadas (Latour 2005: 128, 136-137, 144).

Segundo a perspectiva transformacional proposta, todavia, uma etnografia tampouco

prescinde de conexões com outras práticas, por mais que recuse a necessidade de recorrer a

teorias de ordem superior para a disposição da inteligibilidade presente no próprio plano

etnográfico. Ao contrário, ela propõe que o aprofundamento da perspectiva etnográfica

permite a multiplicação das versões que podem ser postas em contato e se iluminar

mutuamente, cada atualização sendo encarada como uma transformação de outras,


5

transportando – não sem alterações – para o ritual o método da análise mitológica proposto

por Lévi-Strauss (Goldman 2009: 110-111; Banaggia 2011: 358-359; Goldman 2011: 418).

Assim, por um lado, procuro apresentar ou estabelecer conexões entre o jarê da

contemporaneidade e sua história, com isso querendo, mais do que comprovar continuidades

ou sobrevivências, destacar as formas pelas quais os próprios adeptos as produzem contínua e

criativamente3. Por outro lado, o jarê é ocasionalmente aposto tanto a suas diferentes

modalidades como a outras religiões de matriz africana no Brasil, seus pontos de

convergência e de divergência sendo mobilizados para a compreensão recíproca das práticas

envolvidas.

O jarê foi observado pioneiramente por Ronaldo de Salles Senna, pesquisador nascido

na Chapada Diamantina e que inaugurou na academia a investigação desse culto,

especialmente com sua dissertação de mestrado, defendida na Universidade Federal da Bahia,

e subsequente tese de doutorado, retomando o trabalho anterior, apresentada na Universidade

de São Paulo. Os textos de Senna (1973; 1984; 1998; 2004), baseados em pesquisas empíricas

feitas nas décadas de 1970 e 1980, falam a respeito dessa religião, caracterizada como uma

variante de “candomblé de caboclos”, e suas ligações com a geografia física e humana da

Chapada Diamantina. As referências a seguir, até nova indicação bibliográfica, reportam-se

ao livro de Senna (1998), sua obra mais completa e que é também a versão publicada, com

pequenos acréscimos, de sua tese de doutorado, na qual se encontram as principais

3
Trata-se, como já se falou a respeito de outras diversidades socioambientais, não de “uma questão de
preservação, mas de perseverança”, fazendo então não constatações analíticas, mas reconhecendo os efeitos
concretos de uma luta travada permanentemente (Viveiros de Castro 2011: 9).
6

contribuições do autor ao estudo do jarê, tendo visitado mais de uma centena de casas de culto

(: 38, 76).

Senna distingue na Chapada Diamantina a existência de duas áreas conforme a

dependência da economia garimpeira, chamando-as de “Região das Lavras”, originada da

corrida para obtenção de pedras preciosas, e “Zona Agrícola”, de povoamento posterior –

especialmente no que diz respeito à formação de suas cidades –, surgida da necessidade de

abastecer a primeira com gêneros alimentícios em função de seu adensamento populacional.

Segundo o autor, o jarê seguiu o mesmo movimento, tendo surgido e se consolidado nas

cidades diamantíferas de Lençóis e Andaraí – ou ao menos, de forma mais comprovada, se

difundido a partir delas. Daí, se espalhou para os municípios que não possuíam diamantes,

passando, no processo, por alterações que geraram desdobramentos no estilo do culto. Os

jarês dessas áreas, prossegue ele, mais ligados ao catolicismo popular rural, enfatizaram os

rituais de cura, enquanto os realizados pela população garimpeira, de origem mais marcada

pela escravidão, priorizaram as práticas de adoração a entidades e de preservação de uma

memória étnica, mais ligadas ao “vetor afro-brasileiro” da religião (: 36, 41, 49, 75, 79, 86-

87).

O jarê, defende Senna, deve ter surgido da sobreposição de elementos nagô a um

substrato religioso de fundamento banto, no século XIX, conforme indicam determinados

componentes linguísticos e relatos dos mais antigos habitantes da região, tendo ocorrido na

Chapada Diamantina um processo muito similar ao que gerou os candomblés no restante do

país (: 65, 68). A grande variabilidade das expressões religiosas da região não impede que

sejam referidas pelo mesmo nome, já que o jarê é “um rótulo sob o qual se abriga uma

quantidade indefinida, porque desdobrável, de crenças, cultos e rituais que se expandem e se

retraem ao sabor das necessidades e conveniências” (: 66). O autor estima a existência, à

época, de duas a três centenas de casas de jarê na Chapada Diamantina, distribuídas em pouco
7

mais de uma dezena de municípios (: 83). Em sua obra, Senna chama atenção para as

possíveis divisões que formam os conjuntos de espíritos mobilizados no jarê, bem como para

as maneiras como, por meio de cantigas, essas entidades são chamadas a comparecer nos

terreiros tomando os corpos dos filhos-de-santo, sendo cultuadas e por fim deixando o espaço

ritual (: 115-124).

Falando a respeito dos rituais de curas, o autor indica como eles ocorrem com base em

um embate de forças que devem ser postas em contato e movimentadas umas pelas outras,

como já ocorre de modo incipiente durante a consulta divinatória (: 118, 160-161). Os

maiores líderes do jarê, prossegue, funcionam como espécie de “para-raios”, atraindo para si

determinadas influências que em seguida serão capazes de canalizar (: 164). Senna também

trata das configurações comuns do campo religioso nas cidades da Chapada, do ponto do vista

dos adeptos do jarê, mostrando as intercessões e afastamentos que ali se processam (: 170-

174). O autor fala igualmente da “visão de mundo do jarê”, discorrendo sobre o papel dos

líderes do culto e suas ações terapêuticas e rituais, bem como a respeito da constituição das

entidades às quais os adeptos têm acesso (: 175-228). Boa parte do livro de Senna é dedicada

à transcrição de cantigas do jarê e interpretação das possíveis origens e significados das

mesmas, bem como a um apanhado bastante amplo do andamento de uma cerimônia abstrata

para exemplificar o que costuma transcorrer durante uma ocasião ritual qualquer (: 115-158).

Como ele próprio afirma de saída, trata-se de uma pesquisa “socioantropológica” realizada

com “apoio etnográfico” (: 1), oferecendo assim um sobrevoo bastante abrangente e inédito

do jarê.

O único outro trabalho acadêmico de porte sobre o jarê é a excelente tese de doutorado

de Miriam Rabelo (1990)4 – à qual as próximas indicações de página farão referência –,

baseada em pesquisa de campo realizada no final da década de 1980. Trata-se, como será

4
A tese não foi publicada como livro, sua autora tendo escrito artigos a respeito do jarê (Rabelo 1993; Rabelo &
Alves 1997; 2009) e tendo se dirigindo a outros campos etnográficos.
8

visto, de uma investigação anterior a importantes transformações na região, em grande parte

derivadas do término efetivo do garimpo na segunda metade dos anos 1990, ainda que a

dependência da economia garimpeira do local estudado pela autora não seja do mesmo grau

daquela existente na região das Lavras Diamantinas (: 97). O trabalho de campo de Rabelo foi

realizado em Nova Redenção, à época um distrito do município de Andaraí e hoje

emancipado deste. Ainda que trate também das Comunidades Eclesiais de Base, já então em

declínio no local, o principal tema da tese de Rabelo é o jarê de uma localidade voltada para a

produção agrícola e não para o garimpo. Tanto o jarê como aqueles agrupamentos de

inspiração católica, de todo modo, são apresentados não só comparativamente como

conectados à realidade local, numa perspectiva etnográfica que aprofunda inúmeras das

intuições inicialmente apontadas por Senna – além de apresentar diversas outras originais – e

explicitamente pondo em xeque, em favor da ênfase na práxis religiosa em contextos de

interação, tanto a necessidade de congruência direta entre religião e comportamento como a

ideia de um mercado de bens simbólicos postuladas por determinadas análises (: 3-7, 12, 15-

19). O objetivo da tese de Rabelo é o de entender de que modo os coletivos em questão

vivenciam suas imagens religiosas, isto é, como elas são criadas, usadas, interpretadas e

reformadas em seu cotidiano (: 15).

O texto fornece de saída uma história da formação religiosa do Nordeste brasileiro,

apresentando a constituição do sincretismo e da religiosidade popular presentes na região,

bem como indicando de que forma o jarê apresenta um contraponto à visão da historiografia

tradicional (: 25-26). Entre outras características do catolicismo popular, que ali influencia o

jarê de forma mais pronunciada do que nas regiões diamantíferas, a autora destaca as trocas

que permeiam a relação entre santos e devotos, marcada pela proximidade daqueles que no

passado viveram como estes agora vivem (: 52-58, 147). Rabelo registra a história local

também do modo como é contada pelos habitantes de Nova Redenção, distrito voltado para a
9

produção de mamona substituindo a anterior cana-de-açúcar, e cujos líderes religiosos, em

grau ainda menor do que ocorre nas áreas com extração do diamante, não são vistos como

guardiões da memória africana como costuma ser o caso no candomblé (: 82-86, 111). A tese

conta com detalhadas narrativas e descrições a respeito da vida de alguns pais-de-santo, do

espaço ritual de uma casa de culto e dos frequentadores dos terreiros (: 111-180).

As experiências de cura no jarê investigadas por Rabelo lhe mostraram as formas pelas

quais na vivência do doente figuram proeminentemente as sensações de incerteza e

complexidade na busca de um tratamento, suscitando dúvida e perplexidade em relação ao

mundo cotidiano (: 189-191). Com base no processo divinatório – que em geral consiste num

jogo de búzios –, a trajetória recente do enfermo é passada em revista, o líder religioso

conduzindo a geração de uma narrativa compartilhada que escapa a conexões causais

monocórdicas, contrariando os modelos universais e despersonalizados da medicina científica

(: 195). No jarê, a autora prossegue, a cura se dá por meio da aceitação dos termos de uma

relação duradoura entre o doente e um ou mais entes externos e intrusivos com quem haverá

um processo de negociação, deixando de lado a ideia de que determinadas alterações são fruto

da perturbação de estados mentais interiores (: 202-203, 222 nota 6). A cura, como explica

sua tese, se processa enfim por meio de um ingresso na narrativa do paciente, com o chefe do

terreiro ganhando acesso a – e reconduzindo – uma cadeia de eventos e sentimentos que

configuram a experiência subjetiva do sofredor, processando o redirecionamento do

argumento principal da história que ambos (re)construíram juntos (: 209-215).

No texto, o final da descrição a respeito do jarê focaliza seu ritual (: 224-261),

oferecendo um relato sobre as incorporações nos terreiros e indicando também de que modo

os eventos observados em Nova Redenção (: 229-230) se aproximam ou se diferenciam do

modelo proposto pela tese de Senna para o culto como um todo na Chapada Diamantina. Nas

passagens que elucidam alguns dos muitos sentidos que pode receber o primeiro dos dois
10

termos que dão título à tese de Rabelo, a autora mostra como também é fundamental o caráter

de entretenimento das ocasiões cerimoniais, lembrando que no jarê não são apenas os adeptos

que se divertem: as próprias entidades têm como motivo expresso virem às casas de culto para

brincar e vadiar, tornando os eventos celebrações duplas (: 268-270). Surgem como objeto de

culto no jarê, a tese prossegue, tanto a alegria em si como a beleza, características centrais

para a apreciação das cerimônias, ambas conectando fortemente no ritual observação e

participação ativas (: 271, 274-275). Antes de se voltar para a descrição das Comunidades

Eclesiais de Base e uma comparação entre estas e o jarê (: 303-389), a autora indica a

importância, para a compreensão do ritual no jarê, de não se limitar nem às análises de

cosmologias subjacentes à ação, nem às correspondências simbólicas entre sistemas de

significação e sistemas sociológicos, dando ênfase ao desempenho ritual e ao caráter dialógico

que os próprios participantes lhe concedem (: 289-291, 300).

Essa tese busca se inserir na continuidade do processo de investigação do jarê

representado pela de Rabelo, dando prosseguimento à proposta inicial contida no panorama de

Senna de realizar estudos etnográficos detalhados do jarê nas duas grandes áreas da Chapada

Diamantina que ele propõe distinguir. Enquanto o estudo de Rabelo teve por base a

investigação do culto num distrito agrícola, minha etnografia se dedica aos jarês da cidade de

Lençóis5, considerada pelos adeptos e pela literatura o berço da religião e tendo sido

historicamente o principal foco de exploração e comércio do diamante na região (Rabelo

1990: 384; Senna 1998: 36, 78-79, 86). De modo similar, enquanto o estudo de Rabelo foi

realizado com base numa maior proximidade com as mulheres (Rabelo 1990: 168-173), meu

próprio trabalho de campo muitas vezes foi realizado junto aos homens que frequentam os

jarês, terminando numa aposta de que ambos os trabalhos possam suprir os intervalos um do

outro de maneira frutífera, ponto que será retomado ao longo dos capítulos da tese. De

5
O anexo II conta com um mapa da cidade.
11

qualquer forma, o presente trabalho apresenta o jarê encontrado contemporaneamente na

cidade de Lençóis, sem pretender que seus dados possam ser estendidos para jarês mais rurais

como era o de Nova Redenção, a respeito dos quais ainda não há novos estudos6.

No dizer de seus adeptos, a palavra jarê pode designar tanto a religião de maneira geral

como qualquer uma de suas ocasiões rituais: diz-se tanto “gosto muito de jarê” como “o jarê

do último sábado foi ótimo”. Seu primeiro pesquisador faz recurso a algumas possíveis

etimologias registradas para a palavra “jaré”, de origem provavelmente iorubá, significando

ou “quase cair ao solo” ou “cortar através” (Cacciatore 1977: 158 apud Senna 1998: 69),

ambas bastante relevantes por enfatizarem aspectos do culto que serão detalhados

posteriormente. Outra alternativa aventada pelo mesmo autor é que jarê seja uma corruptela

de “njale”, nome de uma cerimônia de caçadores que habitavam regiões que hoje são Nigéria

e Benim (Yeda Pessoa de Castro, comunicação pessoal apud Senna 1998: 69 nota 36). Como

ficará claro, o recurso a essas fontes bibliográficas segue o mesmo motivo pelo qual a maior

parte das citações que surgirão ao longo do corpo da tese será feita: tanto documentos

históricos como a literatura acadêmica disponível são mobilizados antes de tudo com o

objetivo de desencadear efeitos etnográficos (Strathern 1999: 241) específicos ao

acompanharem o argumento, sem que exista o intuito de exaurir as contribuições

bibliográficas existentes. Dados técnicos iniciais sobre a religião e o local de estudo são

reservados a essa introdução.

6
De todo modo, há ao menos uma outra antropóloga se dedicando ao estudo do jarê contemporâneo, a
doutoranda da Universidade de Brasília Carolina Pedreira, sob orientação da professora Rita Laura Segato, com
trabalho de campo realizado no município de Andaraí.
12

Meu trabalho de campo foi realizado durante 12 meses ininterruptos, entre maio de

2009 e maio de 2010, residindo na cidade de Lençóis, ao longo dos quais conheci uma

quinzena de casas de culto distintas, a maior parte situada na área desse município e algumas

poucas localizadas na cidade vizinha de Andaraí. A soma de todas as celebrações rituais a que

compareci encontra-se por volta de três dezenas, a maioria concentrando-se em três casas de

jarê de Lençóis nas quais a pesquisa terminou por se centrar, como será detalhado adiante.

Cada cerimônia pode transcorrer por uma quantidade variável de horas e se repartir também

ao longo de mais de um dia, sendo incomum que durem menos de 5 ou mais de 10 horas

seguidas em cada dia, bem como dificilmente acontecendo por mais de três dias consecutivos

na contemporaneidade, em geral circunscritos a um ou dois efetivamente. Ao longo de cada

celebração os frequentadores sensíveis à ação das entidades costumam chegar a receber até

uma dezena delas por noite, resultando em eventos nos quais é possível que aconteça até perto

de uma centena de incorporações distintas nas casas com maior número de adeptos. De todo

modo, e em muitos aspectos até de forma mais importante, foi igualmente fundamental

acompanhar os adeptos em seu cotidiano fora das ocasiões rituais, tanto nos momentos

próximos como nos mais distantes dos jarês. Muito do que pude aprender a respeito da vida

tanto no culto como fora dele se deveu a compartilhar com os lençoenses seu dia a dia

tipicamente sossegado.

A formação geológica que recebeu o nome de Chapada Diamantina apresenta-se como

um planalto extenso de altitudes médias variando entre 800 e 1.000 metros, pontuada por

picos que ultrapassam os 2.000 metros. É parte da Cadeia do Espinhaço, constituindo

igualmente um divisor de águas entre a bacia do São Francisco e os rios que se dirigem
13

diretamente para o Atlântico, estendendo-se ela própria pelas bacias dos rios Paraguaçu e

Jacuípe. Como unidade geomórfica, abrange aproximadamente 38 mil quilômetros quadrados,

no centro do estado da Bahia, representando 7% de sua área total. De modo geral, quando

mencionam a Chapada Diamantina, muitos de seus habitantes e visitantes referem-se mais

diretamente a sua porção centro-leste, área que efetivamente é somente a da chamada Serra do

Sincorá, igualmente onde se encontram as Lavras Diamantinas que emprestam nome ao

conjunto da formação. Na Serra do Sincorá existe um encontro de transição ecológica entre

três tipos de vegetação distintos, reunindo florestas de planície a leste, caatinga a oeste e

vegetação de altitude nas serras. A área das Lavras Diamantinas especificamente pode ser

marcada pelo território que se espalha por um quadrângulo cujos vértices seriam as cidades de

Lençóis, Andaraí, Palmeiras e Mucugê. É praticamente essa mesma área que marca os limites

do Parque Nacional da Chapada Diamantina, que por sua vez representa menos de 4% da área

total das serras da Chapada, e cujo processo de surgimento será descrito posteriormente

(Funch 2007: 11-13, 176).

Diferentemente das demais áreas da Chapada, em geral bem mais secas, a Serra do

Sincorá recebe chuvas abundantes em determinados períodos do ano, a estação das águas

tendo início frequentemente em novembro e podendo se estender até fevereiro ou março. Em

junho ou julho costuma haver uma breve seca, e o índice pluviométrico anual varia entre

1.000 e 2.200 milímetros por ano. Há considerável variação diurna de temperatura, com

baixas à noite proporcionando aumento da umidade do ar, e as chuvas fortes de regime

considerado tropical geram vegetação abundante e com variado número de espécies

endêmicas, apesar da baixa capacidade do solo de reter água. Superpõem-se na região dois

sistemas de circulação de ar que dominam o regime de chuvas, um continental, responsável

pelas precipitações no verão, e um litorâneo, fortalecido pela altitude, provocando chuvas

orográficas. As temperaturas médias são influenciadas pelo efeito atenuador da altitude, com
14

médias maiores no sopé da serra, a 400 metros acima do nível do mar, em torno de 23ºC, e

mais baixas, de 19ºC, acima dos 1.000 metros de altitude. As temperaturas mínimas anuais

ficam em média em torno dos 15ºC, e as máximas por volta de 32ºC. Os rios da Serra do

Sincorá mostram regime torrencial em função dos solos rochosos, arenosos e rasos,

características em grande parte também ampliadas pela atividade garimpeira (Moraes 1963:

26; Gonçalves 1984: 20-21; Funch 2007: 13, 170-171).

A cidade de Lençóis, especificamente, que serviu de base para a realização do trabalho

de campo a respeito do jarê, situa-se no nordeste da Serra do Sincorá, num vale 400 metros

acima do nível do mar. Os dados disponíveis a respeito do número de habitantes do

município, apresentados aqui de forma abreviada, passam de estimados 30 mil quando de seu

surgimento a computados 23 mil em 1872 (incluídos 1.858 escravos), passando por períodos

de oscilação e decréscimo ainda mais acentuado, com 13 mil em 1900, 8 mil em 1920, 11 mil

em 1940, 10 mil em 1950, 8 mil em 1960, 5 mil em 1970, 6 mil em 1980, 7 mil em 1990, 9

mil em 2000 até os atuais 10.368 computados em 2010. Ao longo do século XXI, pela

primeira vez desde que o dado encontra-se disponível, registra-se maioria acentuada

habitando a área urbana de Lençóis, estimando-se em torno de 6 mil os moradores da sede do

município atualmente. Como será visto à frente, a marcada variação na população de Lençóis

deveu-se menos às alterações de seus limites, que foram transformados ao longo do tempo em

função de alguns desmembramentos, do que aos bastante intensos ciclos de evasão

incentivados pelo declínio da produção diamantífera. A atual configuração racial da

população de Lençóis confirma a nítida maioria de negros, que compõem quase 85% dos

habitantes7 (Acauã 1847: 229; Pereira 1910: 53, 87; Moraes 1963: 26, 35, 182; Gonçalves

1984: 27-28; Funch 2007: 75; Ganem 2001: 18; Araújo, Neves & Senna 2002: 137 nota 29,

IBGE 2010; IBGE 2011: 194).

7
Somando-se as classificações de cor preta (2.123 habitantes) e parda (6.630) utilizadas pelo censo. A mesma
pesquisa indica a existência de 1.417 recenseados de cor branca, 148 amarela e 50 indígena (IBGE 2010).
15

Lençóis terá sua história descrita no corpo da tese, tanto a mais tradicionalmente

recolhida pela historiografia como aquela contada por seus habitantes até os dias de hoje. A

respeito de sua história recente, especificamente, uma pesquisadora ex-aluna da Escola de

Folclore, de São Paulo, realizou um estudo amplo e bastante detalhado, com dados recolhidos

em repetidas viagens feitas entre os anos de 1976 e 1979 (Gonçalves 1984: 7). Existem

também diversos romances feitos sobre cidades da Chapada Diamantina, especialmente

envolvendo sua população garimpeira, escritos por importantes autores da literatura regional e

nacional, entre eles Lindolfo Rocha, Herberto Sales, Urbano Duarte e Afrânio Peixoto, os dois

últimos tendo sido membros da Academia Brasileira de Letras. Parte da literatura acadêmica

disponível sugere sua utilização como fonte de acesso às realidades passadas com as quais o

presente da Chapada Diamantina pode ser igualmente comparado, algo que já foi inclusive

feito por outros pesquisadores (Pina 1997; Araújo, Neves & Senna 2002: 149 nota 69; Neves

2002: 36-37). Sua apreciação, contudo, ficou para além dos limites propostos pela presente

tese.

Na realização do trabalho de campo, optei por não conceder qualquer primazia aos

discursos dos líderes religiosos, procurando levar em consideração a maior gama possível de

posições a respeito do culto. Dessa forma, a tese busca apresentar as interlocuções

estabelecidas com os mais variados adeptos do jarê, definidos como quaisquer pessoas que

gravitam em torno de uma casa de culto, desde os filhos-de-santo mais fervorosos aos

frequentadores menos habituais mas que ainda assim podem ser considerados como parte

desse coletivo – até porque são poucas as ocasiões nas quais os adeptos realizam distinções de

pertencimento entre si. Nenhum nome próprio foi alterado, o que não impediu que por vezes,
16

quando necessário, a identificação de pessoas específicas fosse dificultada, tema que de todo

modo receberá tratamento detalhado no corpo da tese. Os honoríficos foram grafados em

maiúsculas pois na região são praticamente parte dos nomes próprios de algumas pessoas. Ao

longo dos capítulos, preferi manter todas as referências bibliográficas em notas de rodapé,

como comentários apostos ao texto principal, tendo igualmente realizado todas as traduções

para o português de citações em língua estrangeira. Muitas vezes, em toda a extensão da tese,

preferi aglutinar ao final de um parágrafo todas as referências à literatura mobilizadas no

decurso do mesmo, excetuando-se as ocasiões nas quais seria difícil proceder ao seu

desmembramento. Os anos de publicação das referências citadas ao longo do texto sempre

indicam o ano do surgimento da edição original, quando conhecida, estando entre colchetes na

bibliografia a data da edição efetivamente consultada, quando diferente da primeira. Sempre

que um texto puder ser encontrado gratuitamente na internet, seu endereço é indicado. Aspas

duplas foram sempre utilizadas para transcrições bibliográficas e para elocuções nativas,

ficando as aspas simples reservadas para relativização de alguma ideia ou para citações feitas

no interior de outras.

Apesar de não haver dúvidas sobre a possibilidade de definir o jarê como uma religião,

como inclusive indica o subtítulo do trabalho, optei por denominá-lo, no corpo dos capítulos,

preferencialmente por “culto”. A decisão foi feita por dois motivos principais, em certa

medida compartilhados com os outros grandes estudos já realizados a respeito do jarê 8. Em

primeiro lugar, porque o termo culto remete imediatamente a uma das características centrais

do jarê que é sua ênfase na veneração das entidades que chegam ao espaço ritual. Em segundo

lugar, porque o termo religião é dedicado pelos adeptos do jarê especificamente a tradições

cristãs – em Lençóis, tanto à católica como às evangélicas –, fato ligado também, como

8
De um lado, Senna (1998: 35 e nota 1) indica a preferência pelo uso da definição “seita” em oposição à de
“Igreja”, enquanto Rabelo (1990: 383), apesar de usar o termo religião também com alguma frequência, lembra
que os adeptos reservam-no exclusivamente ao catolicismo.
17

afirmam, à rigidez dos preceitos destas e, sobretudo, de sua atitude exclusivista em relação a

outros pertencimentos religiosos. Não ignoro de modo algum a importância dos usos –

especialmente os políticos – que a caracterização do jarê enquanto religião pode possuir,

inclusive para sua agregação no rol de religiões de matriz africana que se desenvolveram no

Brasil, conjunto ao qual ele, como todas as demais, tem bastante a acrescentar. De toda forma,

essa utilização ficará em suspenso no corpo dos capítulos da tese, que é eminentemente

etnográfica, para ser retomada em desenvolvimentos futuros.

Tratando de sua estilística, essa tese foi escrita como um dispositivo que proporciona

uma jornada – ou mesmo uma peregrinação –9, comportando distintas polifonias orientadas, a

cada capítulo, por guias específicos. A narrativa de cada capítulo é guiada por um interlocutor

distinto, cuja escolha se deu menos em função de sua história pessoal ou de qualquer suposta

representatividade do que como um meio de amalgamar seus próprios estilos pessoais aos

argumentos mobilizados pela tese. O recurso a esses guias busca igualmente produzir um

efeito específico de evadir qualquer grande divisão entre individual, de um lado, e social ou

cultural, de outro, fazendo com que as falas, histórias, hipóteses e análises oferecidas

correspondam mais a agenciamentos coletivos de enunciação. Esse segmento horizontal dos

agenciamentos refere-se à mobilização de um conjunto de transformações incorpóreas de atos

e de enunciados, proposto para escapar às ideias de enunciação individual e de sujeito da

enunciação que assim não seriam senão casos particulares por vezes exigidos pelo

agenciamento coletivo (Deleuze & Guattari 1980: 17-18, 29).

Os interlocutores mobilizados agem aqui mais como relés, dispositivos de

retransmissão que amplificam ou comutam um circuito não só de informações como de

forças. Dessa forma, são apresentados como mediadores contínuos e não como

9
De modo a que o leitor possa, por meio dela, tornar-se ele também um viajante, e não um turista, distinção feita
em função do grau de exaustão imaginativa do turista, interessado antes de tudo em consumir diferença: “O
turismo é a apoteose e a quintessência do ‘fetichismo da mercadoria’” (Bey 1994: 8).
18

intermediários, ou seja, são mecanismos que transformam os sentidos e forças que carregam

consigo em vez de transportá-los sem que sofram qualquer alteração, daí sendo preciso

considerar sua especificidade a cada vez que são mobilizados (Latour 2005: 38-40). Um dos

corolários dessa utilização envolve admitir que o mesmo se processa com o próprio etnógrafo,

que atua enquanto um mediador transformando determinada experiência ao transmiti-la

(Goldman 2011: 425). Similarmente, o privilégio do discurso indireto deveu-se tanto pela

opção de evitar o uso de gravadores e entrevistas estruturadas, como será visto, quanto como

um meio de transmitir um conjunto de impressões e sensações recebidas e experimentadas no

trabalho de campo de forma a suscitar no leitor outras equivalentes, favorecendo os

agenciamentos coletivos (Deleuze & Guattari 1980: 18).

O capítulo 1 fala a respeito da história e das histórias de Lençóis, passando pelo

coronelismo muito tempo reinante de modo explícito na cidade e pelo garimpo de diamantes

por meio do qual a região se constituiu e chegou a ser o que é hoje. Trata, em seguida, da

atual configuração econômica da cidade, voltada para o ecoturismo, apresentando as

transformações pelas quais tem passado em função do novo quadro. O capítulo aponta ainda

algumas das alternativas encontradas pelos lençoenses para os problemas contemporâneos

com os quais se defrontam, indicando também o humor e a criatividade como armas em suas

lutas cotidianas – sem que com isso ambos deixem de constituir formas de arte próprias.

Igualmente, fala de forma breve sobre as participações políticas em Lençóis, tanto nos

períodos eleitorais como fora deles. O capítulo conclui com considerações sobre alguns dos

festejos locais não necessariamente ligados ao jarê, além de uma interpretação a respeito de
19

disposições específicas dos lençoenses diante de situações de falta e de abundância. Ao longo

de todo o capítulo são oferecidos detalhes sobre o período inicial do trabalho de campo.

O capítulo 2 tem início com a descrição dos muitos significados e consequências

ligados a ser – e a se dizer – negro em Lençóis, chamando atenção para o surgimento de uma

historiografia distinta quando se evoca o protagonismo da população escrava nos eventos

passados, incluindo, por exemplo, quilombolas, seus remanescentes e outros líderes

comunitários e religiosos. O capítulo prossegue tratando das formas como pesquisadores são

encarados na região, bem como registrando alguns dos aprendizados que culminaram tanto na

forma de se conduzir a pesquisa como na de escrever a tese. Prossegue com a apresentação

das conexões que se estabelecem entre o jarê e outras religiões na cidade, incluindo uma

exposição dos rituais tradicionais realizados em domínios associados ao catolicismo,

enfatizando tanto sua inventividade quanto, em certos casos, o caráter burlesco que

compartilham com outras práticas. Surge aqui mais diretamente o jarê, sendo detalhados os

espaços nos quais o culto se desenrola, a estrutura de suas cerimônias, bem como suas

aproximações e diferenças em relação ao modelo litorâneo de candomblé. O capítulo chega ao

fim com a descrição dos principais rituais realizados no jarê, salientando a importância das

formas de parentesco que – tanto o culto como outras práticas – encetam, passando por

considerações a respeito do papel que possuem a terra e o solo para o bom andamento das

cerimônias.

O capítulo 3 principia com uma exposição a respeito do histórico associativismo local

e como ele e o jarê se ligam na contemporaneidade, passando pelas formas de organização

material e logística envolvidas na realização das celebrações e chegando a recentes tentativas

de patrimonialização. Na sequência, traça os contornos da participação masculina no culto,

em geral conectada à percussão dos instrumentos musicais mas não limitada a ela,

culminando na apresentação de um etos de vigor e resistência que, se por vezes beira o


20

exibicionismo, é continuamente matizado pelo valor da circunspecção e da austeridade. O

capítulo prossegue com considerações a respeito de diferentes práticas de registro empregadas

em torno do jarê, de entrevistas e filmagens aos registros escritos e fotográficos, tanto os que

sempre foram feitos pelos adeptos como os realizados no trabalho de campo, frequentemente

a seu pedido. A partir daí, trata da história específica de um dos maiores mestres do jarê de

que a memória de Lençóis guarda lembrança, transcrevendo sua trajetória do modo como foi

contada por aqueles que lhe eram próximos, em sua maioria filhos-de-santo da principal casa

de culto da região, por eles mantida viva de maneira orgulhosa. O capítulo termina

apresentando trajetórias de iniciação comuns pelas quais passam os líderes do jarê, contendo

um apreço das formas de transmissão de conhecimento e de manutenção dos segredos do

culto – indicando igualmente o início de um enredo que culminaria nas configurações de

liderança que encontrei ao chegar em Lençóis.

O capítulo 4 começa a partir dos desfechos da trama com a qual o anterior finaliza,

apresentando uma nova história ligada aos rumos contemporâneos das casas de culto de

Lençóis, plena de intrigas e reconciliações, especulações e alianças, que pude acompanhar

pessoalmente e nas quais fui sendo também inevitavelmente enredado. Continua, em seguida,

descrevendo as disposições dos adeptos do jarê em relação às ideias de crença e memória,

bem como fala a respeito das distintas eficácias que possuem fala e escrita nessa religião. A

seguir, aborda as diferentes entidades que se manifestam durante os cultos, além dos

processos pelos quais os frequentadores são tomados por elas e os meios pelos quais ambos

passam a existir como composições específicas, tanto nas cerimônias como fora das mesmas.

O capítulo se encerra com um exame das diversas forças em ação no jarê, sua configuração e

os modos pelos quais são habilmente manejadas pelos líderes das casas de culto para

promover curas e iniciações, numa terapêutica complexa da qual sempre podem fazer parte

efeitos inesperados.
21

A conclusão da tese conta com indicações para a realização de pesquisas futuras

inspiradas pelo que foi aprendido junto ao jarê, tanto no mesmo campo de investigação como

em outros próximos. Sintetiza então as principais contribuições oferecidas pela tese para o

estudo das religiões de matriz africana no Brasil, bem como explicita algumas das influências

que a vivência no campo transmitiu para as formas de organização que esse texto terminou

por assumir. A título de arremate, finaliza com um último dado etnográfico que

simultaneamente resume e ultrapassa ligeiramente o argumento apresentado ao longo da tese,

motivo pelo qual foi igualmente deixado para depois do corpo dos capítulos. A conclusão é

seguida por um índice remissivo e quatro anexos, contendo o primeiro deles uma lista de

perfis que descreve brevemente alguns dos principais interlocutores que surgem por mais de

uma vez no corpo do texto – para ser consultada de modo a facilitar a rememoração das

histórias que apresentam –, o segundo mapas da região onde foi feito o estudo, o terceiro

fotografias às quais o texto fará referência e o quarto, por fim, uma coletânea de letras de

cantigas – da qual foram escolhidas aquelas usadas como epígrafes aos capítulos –

acompanhada por um disco contendo a gravação sonora de algumas delas.


22

Capítulo 1 – Pisar

Ô, abre as estradas, Ogum


A porta, Baluaê
Oxalá é quem manda
Santa Bárbara vem trazer

1.1 Lençóis

“Moço, se eu lhe disser, você não acredita...” Muitas das minhas conversas com Seu

Gilson começaram com ele dizendo essa frase, com um sorriso estampado no rosto, para logo

em seguida me falar demoradamente sobre alguma peculiaridade da cidade de Lençóis, de sua

história ou de seus habitantes. Com ele pude aprender muito, especialmente nos primeiros

meses do trabalho de campo, disposto que estava a compartilhar comigo a perspicácia

costumeira de alguém que havia nascido, como ele gostava sempre de frisar, 53 anos atrás,

bem como se criado naquela que era informalmente considerada a capital da região conhecida

como Chapada Diamantina. Seu Gilson trabalhava havia já muitos anos como servente no

único banco da cidade, tendo deixado de lado a atividade de garimpeiro à qual tanto seu pai

quanto seu avô haviam dedicado suas vidas inteiras. Gostava de comentar orgulhoso sobre a

estabilidade que encontrara em sua posição, sendo ele um dos funcionários mais antigos do

estabelecimento, ao contrário dos escriturários e principalmente gerentes que costumavam não

ficar por mais que alguns anos no exercício de suas funções. Em nossas caminhadas pela

cidade, era frequente algum conhecido se referir ao local onde ele trabalhava como o “Banco

do Gilson”, arrancando risos do antigo garimpeiro.


23

Fui apresentado a Seu Gilson logo em meu primeiro dia na cidade, por meio de um

dos contatos feitos por telefone e correio eletrônico com pessoas que poderiam me ajudar a

me estabelecer por um tempo em Lençóis. A pessoa que nos apresentou me informou que eu

conheceria um senhor que, se fosse com a minha cara, seria como um pai para mim. Pouco

tempo depois me encontrava caminhando com Seu Gilson pelas ruas da cidade, tendo um

primeiro contato com sua geografia e com seus habitantes, bem como me acostumando à

rotina pacata dos lençoenses. Seu Gilson me ajudou a localizar algumas das outras pessoas

com quem havia me correspondido antes de chegar à cidade, auxiliando-me em seguida a

encontrar um local para ficar. Depois de visitar várias das pousadas da cidade, acabei optando

por ficar na única cujos donos eram naturais da Chapada, e por sinal amigos de Seu Gilson.

Ali residi durante os três primeiros meses do trabalho de campo, conhecendo pouco a pouco a

cidade de Lençóis, seus habitantes e sua história, contada mais adiante.

A primeira e mais frequente impressão que os lençoenses transmitem a respeito de sua

cidade é o grande amor que sentem por ela, bem como a saudade que lhes assoma caso por

um motivo qualquer precisem ausentar-se dela. “Quem bebe da água do Rio Lençóis sempre

volta”, me diziam. O rio em questão, que corta a cidade bem como a abastece de água ao

longo de todo ano (hoje em dia encanada e tratada pela companhia estadual de saneamento), e

também chamado de Rio Serrano, é visitado diariamente por grande parte da população, que

ali lava suas roupas e se refresca. Em sua margem norte localizam-se os bairros atualmente

conhecidos como do Cajueiro, do Tomba e, um pouco afastada do centro do município, a Vila

São José, mais conhecida por seus próprios habitantes como o Sem-Teto, local de

assentamento em condições precárias de uma parcela da população. Ao sul do Rio Lençóis

concentra-se a maior parte da cidade, composta pelo Centro Histórico e os bairros do

Lavrado, Alto da Estrela e Caminho do Ribeirão10. Dona Juanita, proprietária da pousada

10
Além do mapa da cidade contido no anexo II, ver fotos 1, 2 e 3 no anexo III.
24

onde me hospedei, localizada no bairro do Cajueiro, gostava de dizer que Lençóis era um

nome muito apropriado para uma cidade sossegada, como ela parecia ser na maior parte do

tempo. A tranquilidade que Dona Juanita atribuía à cidade, contudo, parecia ser tanto uma

primeira impressão da qual muitos visitantes inicialmente também compartilhavam quanto um

desejo de que fosse mais profunda, como eu viria a descobrir. Depois de conhecer um pouco

melhor alguns de seus moradores, não eram poucos a me dizer que, apesar de adorarem sua

cidade, resumiam Lençóis com a abreviação “PGC”: pequenina, gostosa e complicada.

Uma das principais atividades a que se dedicam muitos lençoenses, conforme dizia

Seu Gilson, é inteirar-se da vida alheia, algo favorecido pela própria arquitetura das casas

mais antigas, com grandes portas ou janelas quase atingindo os tetos das fachadas, que

costumam ficar abertos a maior parte do dia11, excetuando-se o horário das refeições

principais. Ao andar pelas ruas da cidade, em geral bastante íngremes, já que Lençóis situa-se

num vale, é hábito dirigir o olhar para o interior das residências para cumprimentar seus

moradores bem como ficar a par de eventuais visitas e encontros que estejam acontecendo. A

sala é via de regra o primeiro cômodo, normalmente voltado para a rua, e a casa costuma

crescer em profundidade, com um corredor comprido ao longo do qual se distribuem quartos e

banheiro, terminando na cozinha em geral aberta para um quintal nos fundos. Se por vezes

expressam algum ressentimento por terem suas vidas em revista contínua, reclamando da falta

de privacidade que igualmente experimentam por serem obrigados a ficar sabendo de

acontecimentos que por vezes preferiam ignorar, muitos dos habitantes de Lençóis igualmente

afirmam que preferem ter suas vidas em constante escrutínio a viver no anonimato das

grandes cidades. Na Chapada, dizem, mesmo que você viva sozinho jamais ficará

desamparado se por acaso vier a enfrentar uma situação difícil.

11
Ver foto 4 no anexo III.
25

As notícias de fato correm em grande velocidade pela cidade, da mesma forma como

os sons se espalham pelas serras, sua propagação facilitada pela ausência de carros e do

barulho dos grandes centros urbanos. Comentar a respeito de suas intenções na cidade, sejam

as de um visitante à procura de uma casa, sejam as de um antropólogo interessado em estudar

mais sobre a vida e história locais – uma das primeiras traduções que arrisquei para justificar

minha intenção de realizar uma pesquisa em Lençóis –, significa multiplicar ao menos por dez

o número de pessoas a quem se confia uma informação. Não era incomum me encontrar com

Seu Gilson à tarde e este fazer referência a uma conversa que eu tivera com outra pessoa pela

manhã do mesmo dia, mesmo que eu não houvesse feito qualquer menção ao acontecido.

Demorei um pouco a me acostumar com a abordagem bastante calorosa de pessoas que eu não

conhecia mas que já tinham ouvido falar a meu respeito por meio dos amigos que começava a

fazer. Somente mais tarde eu perceberia estar sendo habilmente testado pelos lençoenses a fim

de determinar como eu participaria de uma das mais importantes divisões da cidade: os

naturais de Lençóis e os “de fora”.

Ainda que, contemporaneamente, Lençóis tenha nas atividades ligadas ao turismo a

base de sua economia, o trato com pessoas de fora, sejam da cidade, da região, do estado ou

mesmo do país, não é algo novo no cotidiano de sua população, pois há muito lida com a

chegada de distintos contingentes populacionais envolvidos no garimpo de diamantes12. Por

ora basta mencionar que, com o passar dos anos, os nativos da cidade se acostumaram a não

esperar ver retornada a amabilidade e simpatia com que tratam aqueles que acolheram. Ao

contrário, os forasteiros que passam a morar em Lençóis são vistos como pessoas eternamente

insatisfeitas e exigentes, prontas a oferecer críticas ao passo que nem sempre dispostas a ouvi-

las. Enquadrar alguém como forasteiro leva em conta mais do que somente seu lugar de

origem ou nascimento, mas igualmente a cor de sua pele, seu modo de falar, a condição

12
Pontos aos quais retornarei posteriormente, nas seções 1.2 e ainda 1.1, mais abaixo, respectivamente.
26

econômica que aparenta, o tempo há que reside na cidade e a atividade econômica que nela

exerce. Algo que costumava irritar particularmente os muitos “gringos” que haviam se

mudado há algum tempo (ou consideravam a possibilidade de se mudar) para Lençóis era o

fato de continuarem a ser, em muitas ocasiões, considerados entre os “de fora”. Acredito que

um dos motivos para tanto reside também no fato de que entre aqueles continuamente

considerados forasteiros encontram-se as pessoas que menos sabem ou procuram saber a

respeito da história e das histórias de Lençóis. Como procurei desde o início deixar claro não

figurarem entre os motivos de ter vindo morar em Lençóis nem as belezas puramente naturais

da Chapada Diamantina, nem oportunidades de negócios na cidade – como é de se esperar dos

visitantes que optam por passar a morar na cidade – fui sendo associado a outro conjunto de

forasteiros, o de pesquisadores13. Antes de retornar às histórias que aprendi com os

lençoenses, exponho a seguir um resumo da historiografia existente sobre a região, de modo a

disponibilizar as interpretações que de saída me informavam e que foram sendo transformadas

ao longo do trabalho de campo em decorrência do contato com as primeiras.

Os muitos pesquisadores, tanto acadêmicos quanto diletantes, que já transitaram pela

região legaram uma quantidade considerável de registros históricos a respeito do moderno

povoamento da região da Chapada Diamantina e da cidade de Lençóis em particular14. Após

as primeiras passagens de bandeirantes e sertanistas, no século XVII15, há notícias de

aglomerações de pioneiros ligados à pecuária formando pequenos núcleos populacionais ao

longo do século XVIII16. Nesse mesmo século, a descoberta de pedras preciosas na região do

Tejuco (atual Diamantina, em Minas Gerais) estimulou a exploração rumo ao norte e ao

13
Tema que terá maior desenvolvimento no capítulo 2, na seção 2.2.
14
A possível presença de indígenas na região será considerada no capítulo 4, na seção 4.3.
15
São citados “Fernão Dias Pais, Belchior Dias Moreira, Gabriel Soares, entre outros” (Moraes 1963: 30).
16
Incluindo o povoado de Santa Isabel do Paraguaçu, ocupando área onde à época em que escreve o cronista
distribuem-se os municípios de Lençóis, Andaraí, Palmeiras e Seabra (Moraes 1963: 32).
27

nordeste através do vale do Jequitinhonha até a região de Grão-Mogol, e daí pela Serra do

Espinhaço e vale do São Francisco, penetrando então a parte meridional da Chapada

Diamantina17. Ao que tudo indica, a descoberta de diamantes na região ocorre, contudo,

somente no início do século XIX, na área conhecida como Chapada Velha, onde

contemporaneamente localizam-se municípios como Gentio do Ouro e Brotas de Macaúbas.

Os naturalistas bávaros Spix e Martius estiveram na Chapada em 1818 e relataram notícia de

achados vestigiais de diamantes, informação possivelmente repassada às autoridades bem

antes da publicação do monumental Viagem pelo Brasil18. Na região que viria a ser

caracterizada como Lavras Diamantinas, na Serra do Sincorá, em cujo território distribuem-se

hoje principalmente os municípios de Lençóis, Andaraí, Mucugê e Palmeiras, as descobertas

significativas e que dariam início ao primeiro ciclo intensivo de exploração do diamante

datam somente da metade do século XIX19.

O povoado de Lençóis, provavelmente ainda sem esse nome, começou a tomar forma

no final do século XVIII, com população esparsa advinda de locais próximos nos quais

existiam lavoura e pecuária de subsistência20. É só na década de 1840, entretanto, que

acontecerá ali um maior adensamento populacional21, após a descoberta de quantidades muito

significativas de diamantes nos rios da região, fato que atrairá para lá em muito pouco tempo

grandes contingentes populacionais, majoritariamente de duas procedências. Do noroeste,

17
Desdobramentos acompanhados com interesse e celebrados à distância pela corte de Dom João V, em
Portugal, que em pouco tempo tomaria as medidas necessárias à cobrança do quinto sobre as pedras encontradas
(Moraes 1963: 30).
18
É o que se infere das muitas fontes (Pereira 1910: 71; Moraes 1963: 33, 65; Gonçalves 1984: 18; Araújo,
Neves & Senna 2002: 134 nota 12, 142-143 notas 43 e 44) que fazem referência a estes episódios.
19
Entre os anos de 1839 e 1844, pelo que se consta, fato que teve repercussões imediatas nos centros de poder do
Brasil e de diversos países da Europa (Leal 1846: 430-431; Acauã 1847: 249-250; Moraes 1963: 31).
20
É o que indicam documentos de posse de terras, inventários de arquivos públicos e depoimentos locais (Senna
1996: 18; Pina 2001: 182; R. Senna 2002: 230).
21
No caso de Lençóis esta concentração populacional inicial parece ter se dado no ano de 1844 (Senna 1996: 50)
ou 1845 (Pereira 1910: 46; Pereira 1937: 56-57).
28

seguindo pela Serra do Espinhaço, assomam os garimpeiros anteriormente vindos de Minas

Gerais pelo São Francisco, já acostumados ao trabalho com ouro e mesmo com pedras

preciosas, bem como grandes comerciantes proprietários de escravos. Do litoral,

acompanhando o Paraguaçu, vieram pioneiros, aventureiros e senhores de terras baianos com

hostes de escravos que exerceriam ocupações inúmeras22 na Chapada, somando-se aos que ali

já se encontravam23.

Há duas possíveis origens para o nome dado à cidade, ambas registradas na literatura e

contadas pelos moradores até os dias de hoje. De um lado, menciona-se o espetáculo formado

pelo conjunto de centenas de lençóis brancos que serviam como cobertura para as tendas

feitas nos acampamentos à margem do rio, quando dessa primeira corrida garimpeira. De

outro, especula-se que o nome se refira ao aspecto leitoso de determinados trechos do mesmo

curso de águas graças a seus muitos acidentes naturais ou ainda a uma de suas cachoeiras 24.

Lençóis cresceu em ambas as margens do rio com que divide seu nome, em forma de concha

aos pés de um dos contrafortes da Serra do Sincorá, e se consolida pela persistência da

mineração. Torna-se distrito policial de Santa Isabel do Paraguaçu em 185225 e é em pouco

tempo elevada à categoria de vila com o nome de “Commercial Villa dos Lençoes”, no ano de

185626.

Lençóis passou então a ser palco de diversos ciclos de grande produção e declínio da

cata de diamantes, bem como atravessou períodos de secas consideráveis que trouxeram fome

22
Entre elas as de vaqueiro, garimpeiro, armeiro, pedreiro, doméstico, lavoura, ferreiro (Pina 2001: 182-184).
23
O abastecimento de escravos continuou a ser feito a partir dos mesmos estados dos quais provinha o restante
dos contingentes populacionais que exploraram a Chapada Diamantina, Minas Gerais e Bahia (Pereira 1910: 69;
Pereira 1937: 46-47; Senna 1996: 18, 24, 51; Pina 2001: 197; Araújo 2002: 169).
24
Ambas as versões registradas desde bastante cedo e reafirmadas desde então (Pereira 1910: 83; Moraes 1963:
40 nota 4; Gonçalves 1984: 22; Senna 1996: 56; Araújo, Neves & Senna 2002: 134 nota 11).
25
Já com o topônimo “Lençóis” (Senna 1996: 50).
26
Após tornar-se vila (Pereira 1910: 47; Araújo, Neves & Senna 2002: 136 notas 17 e 18) o tipo de crescimento
não planejado rapidamente experimentado por Lençóis continua ao longo de sua história (Araújo, Neves &
Senna 2002: 134 nota 11; Gonçalves 1984: 23).
29

e doenças à região, ou enchentes catastróficas que destruíram parte considerável de seu

patrimônio, fazendo com que sua população variasse significativamente na segunda metade

do século XIX e ao longo de quase todo século XX27. Não obstante estes reveses, a cidade

passou a ser informalmente considerada desde cedo a “capital das Lavras Diamantinas” 28, e

cresceu em importância econômica e política no cenário nacional. Organizou-se uma

aristocracia do diamante, liderada pelos coronéis proprietários de escravos e arrendatários das

serras, conjunto que se dividia conforme sua procedência entre os chamados “serranos”,

oriundos de Minas Gerais, e “baianos”, vindos do litoral da Bahia e arredores. Os grupos se

aliaram politicamente com os partidos do Império a partir de 1860: os serranos, oriundos do

planalto central brasileiro, do sertão alto, de Caetité, Riacho de Santana, Monte Alto e outras

zonas da chapada ou do rio São Francisco, aos liberais; os baianos, provenientes de

Cachoeira, São Félix, Feira de Santana, Santo Amaro, Nazaré das Farinhas, Salvador, aos

conservadores29. Os liberais foram jocosamente apelidados de pinguelas, mosquitos ou

mocozeiros, enquanto os conservadores eram chamados de mandiocas, função da cultura da

mandioca do Recôncavo. A aristocracia do diamante disputava influência política para

obtenção de posições públicas que desembocavam no domínio da terra, garantia de seu poder

econômico na região30.

27
A lavoura existente nas cidades da Chapada Diamantina jamais foi suficiente para abastecer adequadamente
sua população, que variou em número significativamente (Pereira 1910: 93, 122; Toledo 2008: 58-59). As
alterações no solo provocadas pela ação do homem também geravam enchentes que acabavam por destruir
plantações feitas próximas às margens dos rios, em solo em princípio mais fértil (Funch 2007: 27-28).
28
O título deriva da centralidade que adquire Lençóis tanto pela abundância de sua produção diamantífera como
por sua localização geográfica estratégica na Chapada, vindo a substituir Rio de Contas como principal
entreposto comercial da região (Pereira 1910: 44, 57, 75; Moraes 1963: 34; Senna 1996: 55).
29
Os primeiros eram chefiados pelo coronel Felisberto Augusto de Sá, natural de Tejuco (atual Diamantina),
enquanto os segundos pelo coronel Antônio Gomes Calmon, natural do Recôncavo (Moraes 1963: 43).
30
As duas agremiações refestelavam-se em se distinguir uma da outra, portando cores e distintivos específicos e
financiando filarmônicas próprias – a Oito de Dezembro, sob invocação de Nossa Senhora da Conceição, dos
liberais, que trajavam verde, e a Dois de Fevereiro, sob os auspícios de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos, dos
conservadores, que vestiam vermelho (Pereira 1910: 97; Moraes 1963: 43-45, 46 nota 6; Gonçalves 1984: 26;
Senna 1996: 55).
30

As gemas encontradas nas serras e leitos dos rios pelos garimpeiros, fossem eles

escravos ou trabalhadores livres, enriqueciam antes de tudo, direta ou indiretamente, os donos

das serras. Bem próximo a eles estabeleceu-se um conjunto de compradores de diamantes,

chamados de capangueiros, capaz de atravessá-los para mercados externos ou revendê-los

para lapidadores que nem sempre negociavam com os garimpeiros sem o agenciamento de um

intermediário, e os mais bem-sucedidos entre estes capangueiros, com o tempo, tornaram-se

negociantes de gabinete, os chamados pedristas, categoria que, somada à dos grandes

proprietários de escravos, compunha a aristocracia do diamante31. Datam já dessa época as

construções das duas igrejas da cidade, nos anos 1850, bem como o lançamento das bases

para construção da igreja matriz dedicada a Nossa Senhora da Conceição, padroeira de

Lençóis, substituindo sua capela32, além da ponte que, mais tarde reformada com arcos

romanos, faria a ligação até os dias de hoje das duas margens do rio que corta a cidade33.

Os primeiros e mais importantes ciclos de exploração do diamante fizeram com que

Lençóis entrasse no século XX como uma cidade marcada por um tipo de opulência

dificilmente encontrado no sertão. O casario colonial completava-se com grandes sobrados

nos quais havia pianos de cauda importados, nas lojas da cidade eram vendidas mercadorias

vindas da Europa e não era raro ouvir-se o francês nas ruas, idioma ensinado nas escolas

primárias municipais – bem como retórica, filosofia e caligrafia gótica. A França chega

31
O passar dos anos faz com que seja cada vez mais difícil mesmo para os capangueiros bem-sucedidos
tornarem-se verdadeiros pedristas, grupo fechado que domina um mercado específico e bem estabelecido ao qual
só passa a ser possível ingressar por herança, casamento ou, em menor grau, certas relações de parentesco e
compadrio (Senna 1996: 20, 23, 55)
32
A igreja de Senhor dos Passos recebeu uma gigantesca imagem vinda de Portugal, encomendada pelos irmãos
portugueses José e Joaquim Tojal, encaixotada de Salvador para Cachoeira, e de Cachoeira pelos rios Paraguaçu
e Santo Antônio, de balsa para o Porto, a 12km de Lençóis, e de lá para a cidade, em procissão. A igreja do
Rosário, que funciona hoje como matriz, é a maior do sertão baiano (Ganem 2001: 21-22). A dedicada a
Conceição nunca subiu além de seus ambiciosos alicerces, a construção da catedral abandonada com a queda da
produção de diamantes no fim do século XIX. Funciona hoje como teatro de arena, tendo sua base estrutural sido
elevada para o propósito (Araújo, Neves & Senna 2002: 136-137 nota 25).
33
Registra-se que seu nome seja Ponte dos Suspiros (Senna 1996: 66; Araújo, Neves & Senna 2002: 135 nota
14).
31

mesmo a instalar um subconsulado na cidade, facilitando as negociações diretamente com

Paris34. Instalam-se jornais semanais editados na própria cidade, que se somam aos já

costumeiramente trazidos de Salvador, além do serviço de telégrafo e de cinemas, a princípio

itinerantes e, posteriormente, permanentes35.

É neste cenário que se desenvolveu, durante a República Velha, o coronelismo nas

Lavras Diamantinas, local onde as figuras do senhor rural e do coronel do sertão se

confundem. Apesar de terem sido desvendadas novas minas de diamantes no Brasil e no

mundo, notícia que poderia representar um baque para a economia garimpeira de Lençóis, a

descoberta dos usos industriais do carbonado, variante negra do diamante encontrada em

poucos lugares no mundo, conferiu sobrevida significativa para a prospecção na Chapada 36. O

maior expoente desse momento histórico, posteriormente conhecido como um dos principais

nomes do coronelismo no país, foi Horácio de Mattos.

O coronel Horácio de Mattos, figura praticamente lendária na Chapada Diamantina, e

especialmente na cidade de Lençóis, de onde governou boa parte do sertão baiano, foi o

responsável por unificar politicamente as famílias em guerra constante nas Lavras,

subjugando-as ao longo de diversas batalhas, liderando tropas de jagunços até mesmo no

combate corpo-a-corpo. Horácio e seus homens tomaram a cidade de Lençóis ao avançar

rumo à capital baiana para impedir que seus adversários políticos se perpetuassem no governo

34
Fatos indicados por depoimentos pessoais e documentos históricos (Moraes 1963: 38; Gonçalves 1984: 26;
Ganem 2001: 18, 80)
35
Entre os jornais editados na cidade figuraram O diamantino, O lavrista, O correio das lavras e o humorístico
O peixe, além de O sertão, mais importante e duradouro, publicado toda semana aos domingos entre 1920 e 1951
(Pereira 1910: 113, 122-123; Moraes 1963: 166-167; Ganem 2001: 90-91; Araújo, Neves & Senna 2002: 147
nota 59). As projeções itinerantes do início do século XX deram lugar à sucessão de dois cinemas permanentes
no prédio do mercado municipal, até o estabelecimento do Cine Teatro Rex em 1938, com filmes falados e em
seguida a cores, desativado apenas quando a televisão começou a predominar na segunda metade do século XX
(Ganem 2001: 73-74).
36
No mercado mundial, passam a competir com o diamante que antes só era encontrado na Chapada Diamantina
e na Índia o encontrado na região do Salobro, no sul da Bahia – área hoje localizada no município de Santa
Luzia, à época parte de Canavieiras – e o escavado nas minas da África do Sul, extraído em imensas quantidades
(Pereira 1937: 59; Moraes 1963: 37, 48-49).
32

do estado, que por sua vez ofereceria ao coronel regalias políticas para dissuadi-lo de sua

campanha paramilitar, incluindo a possibilidade de nomear deputados e um senador estaduais,

tendo se tornando ele mesmo senador e delegado da região centro-oeste da Bahia37. Contudo,

essa negociação, que recebeu o nome de Convênio dos Lençóis, não garantiu a paz duradoura,

já que Horácio resistia às inevitáveis tentativas de seus desafetos políticos retornarem ao

poder, com novos episódios de luta armada e mesmo cerco à capital das Lavras38.

O apoio decisivo do governo estadual, contudo, se deu quando da passagem da Coluna

Prestes pelo interior da Bahia. As lideranças instituídas, temerosas dos efeitos que o

movimento tenentista poderia ter no sertão, negociaram com Horácio a criação de um pelotão

de jagunços, o Batalhão Patriótico das Lavras Diamantinas, com fardamento e material bélico

enviados pelo Ministério da Guerra. Horácio liderou a campanha sertaneja durante parte de

sua perseguição à Coluna Prestes até a fronteira com a Bolívia, retornando a Lençóis no ano

de 1927, quando obteve do governo o cargo de intendente da cidade. A Revolução de 1930,

contudo, obrigou Horácio de Mattos, e com ele os demais coronéis do sertão, a se desarmar.

Horácio foi preso e levado para Salvador, tendo obtido em seguida liberdade condicional para

aguardar um julgamento que não chegou a acontecer: ele é assassinado nas ruas da capital a

mando de seus adversários políticos39.

O meado do século XX configura-se fase crítica para a economia de Lençóis, já

combalida pelas campanhas militares de que acabara de sair. O garimpo passa por novo ciclo

de declínio, a população volta-se na medida do possível para a agricultura sempre debilitada

pelo solo impróprio, o êxodo para as grandes cidades do país aumenta, estimulado pela

37
Já tendo conseguido indicar diversos deputados federais ligados a si (Moraes 1963: 132).
38
Os episódios nos quais Horácio sobreviveu a combates corporais e tiros praticamente à queima-roupa
consagraram-no como possuindo proteção mística, “corpo fechado”, algo que se dizia igualmente de muitos de
seus jagunços, acostumados a serem vistos levando ao peito patuás e correntes (Moraes 1963: 138, 178, 180 nota
13).
39
Sua morte é vista pelos revolucionários como decisiva na luta contra o coronelismo na Bahia (Moraes 1963:
103, 133, 166, 173-174, 176; Pang 1978: 216; Gonçalves 1984: 26).
33

crescente industrialização do Brasil após a II Guerra Mundial. O medo de que Lençóis se

torne uma cidade-fantasma, destino de que muitas outras localidades da Chapada Diamantina

davam doloroso testemunho, leva seus moradores a se organizarem com objetivo de encontrar

uma alternativa para a cidade não mergulhar na pobreza40. Almejando recuperar e conservar o

legado material construído em seus dias de glória, e vendo nessa ação o germe de um ramo de

atividade econômica ligada ao turismo, o Movimento de Criatividade Comunitária formado

por diversos lençoenses – capitaneados por um voluntário do Peace Corps norte-americano

baseado na cidade nos primeiros anos da década de 197041 – obtém junto ao Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional o tombamento do conjunto arquitetônico e

paisagístico da cidade, registrado no final do ano de 1973.

As fachadas das casas e sobrados da época formam um agrupamento heterogêneo que

desde então deve obrigatoriamente ter suas características inalteradas, ainda que seus

interiores possam ser, nos dias de hoje, por vezes extensamente remodelados para usos

diversos. No período posterior ao tombamento, ainda havia diversas casas com paredes de

pau-a-pique, adobe ou barro, enquanto as construções de maior porte haviam sido erguidas

com pedra e barro. Enquanto as residências dos garimpeiros eram construídas sem alicerces

muito fundos, contando com paredes de adobe ou enchimento, autoportantes, os edifícios

maiores de dois ou três andares eram mantidos com estruturas independentes de madeira,

vedadas com taipa42. Sobrados importantes para a história local já haviam sido demolidos à

40
As impressões iniciais de quem chegou nessa época pela primeira vez a Lençóis são marcantes (Funch 2007:
16-17, 22; Gonçalves 1984: 20-21).
41
O fotógrafo e designer gráfico Steve Horman (Brito 2005: 121-122; Araújo 2002: 183). Ainda no início dos
anos 1960, o prefeito Olímpio Barbosa havia inscrito Lençóis como destino para voluntários do programa norte-
americano (Brito 2005: 117-118).
42
Todos esses tipos de construção podem ser encontrados hoje em dia na cidade, e as moradias continuam
obedecendo o mesmo estilo interno de disposição do espaço, conforme se constata comparando-as com plantas
baixas feitas à época (Gonçalves 1984: 23, 41, 48; Senna 1996: 51)
34

época do tombamento43, com edificações de características mais modernas erigidas em seu

lugar. Outras construções haviam passado por reformas ainda no final do século XIX e início

do XX, passando a incluir elementos como a platibanda ou decorações em estilo art nouveau,

dividindo espaço com os mais caracteristicamente neoclássicos44.

O governo da Bahia, a partir dos anos 1970, passou a participar mais ativamente na

promoção do turismo no interior do estado, enviando uma equipe técnica para municípios da

Chapada Diamantina para levantar seu potencial de atração de visitantes. O relatório então

produzido tornou-se uma peça fundamental na aquisição pelo poder público de um casarão no

qual, em 1979, é estabelecida a Pousada de Lençóis, que se tornaria futuramente o Hotel de

Lençóis, equipando a cidade para receber mais turistas e estimulando o aumento de seu tempo

de permanência na cidade, especialmente depois da abertura da BR-242, ligando o oeste da

Bahia a Brasília e à região Centro-Oeste45. O início da atividade turística mais regular não foi

encarado com bons olhos por parte da elite local, que viu na chegada de uma atividade

econômica alternativa à tradicional garimpagem uma possível ameaça ao seu predomínio

político46.

A oposição à implantação e ao estímulo do turismo na região não foram fortes o

bastante para impedir que outro atrativo da Chapada Diamantina fosse então mobilizado para

43
Como a casa do Conselho Municipal, o prédio que sediava o jornal O sertão e aquele no qual funcionava a
Loja Magnólia (Senna 1996: 51).
44
Os anos em que estas reformas ocorreram ficaram inscritos em muitas das fachadas, com grande incidência
para os anos de 1920, também havendo registros anteriores (até 1880) e posteriores (Gonçalves 1984: 23; Senna
1996: 51).
45
A equipe técnica pertencia à Coordenação de Fomento ao Turismo, ligada à Empresa de Turismo da Bahia
(Bahiatursa), entidade de economia mista (Brito 2005: 124, 126-127).
46
O Movimento de Criatividade Comunitária foi perseguido e caracterizado como esquerdista, e Steve Horman
foi acusado de ser um subversivo comunista – algo um pouco paradoxal para um membro do Peace Corps –, por
estimular o tombamento da cidade e atrair o turismo para Lençóis. A mesma elite descontente tentou sabotar a
compra do imóvel que se transformaria na Pousada de Lençóis, seus membros queixando-se ainda, depois ddo
fracasso de sua tentativa, que ela jamais se justificaria numa cidade com tão pouco movimento como aquela
(Brito 2005: 122-123, 126). É possível que essas ações fossem motivadas não só por determinado reacionarismo
mas, igualmente, por uma disputa, entre os grupos que se alternavam politicamente no poder, pelos louros do
crescimento que a inovação do turismo traria.
35

essa atividade: seu estoque de belezas naturais. As inúmeras cachoeiras, grutas, lagos

subterrâneos, rios e serras, bem como sua vegetação característica e sua fauna indômita,

sempre chamavam a atenção dos visitantes que passavam pela Chapada. Porém, estava longe

de ser óbvio para a população da região, acostumada a lutar contra esse ambiente e a

transformá-lo continuamente, que esses acidentes geográficos pudessem interessar a turistas.

Foram as ações de outro voluntário do Peace Corps recém-chegado a Lençóis, o bioquímico

especialista em fitofisiologia Roy Funch, conectado aos movimentos ambientalistas da década

de 1980, que culminaram na criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, por decreto

federal, no ano de 198547. Essa espécie de tombamento do seu patrimônio natural foi o último

acontecimento necessário à explosão do turismo na região, com grande exposição midiática

de seus encantos naturais nos anos seguintes. A cidade de Lençóis configurou-se como portal

de entrada para os visitantes da Chapada, tanto por sua localização geográfica quanto por sua

trajetória histórica, e passou a desfrutar indiretamente também dos rendimentos gerados por

atrações localizadas nos territórios dos municípios próximos48.

Por inegáveis que sejam as transformações recentes e contemporâneas pelas quais a

região, e a cidade de Lençóis em particular, têm passado, não é o caso de imaginar nenhum

tipo de ruptura brusca trazida por um suposto advento de uma globalização cosmopolizante e

moderna a um local anteriormente dominado por provincianismo49. Como visto, desde

bastante cedo em sua formação Lençóis contava com a presença de inúmeros estrangeiros

entre seus visitantes e habitantes, incluindo, a título de exemplo, árabes, judeus, franceses e

47
Conhecido pelos lençoenses como Rui Americano, Roy Funch foi o terceiro voluntário do Peace Corps a ficar
baseado na cidade de Lençóis, tendo chegado em 1978 e lá morando até hoje. Antes do já mencionado Steve
Horman, tido por Estevão na região, cuja estadia deu-se entre 1970 e 1973, por ali passara também David
Blackburn, o Davi, entre 1965 e 1968. Todos conheciam o modelo dos parques nacionais dos Estados Unidos, de
preservação ambiental sem habitação humana (Brito 2005: 16, 120-123, 129-130).
48
A Chapada Diamantina foi divulgada em inúmeras reportagens de jornais, revistas especializadas e programas
televisivos, servindo mais tarde de cenário à novela televisiva Pedra sobre pedra (Brito 2005: 130).
49
Percepção que é explicitamente elaborada pelos residentes da Chapada e trabalhada na literatura (Brito 2005:
10; Banaggia 2010: 10).
36

sobretudo, africanos, trazidos como escravos, conectando-se a diversos outros países do

mundo em função principalmente do comércio internacional de diamantes 50. Similarmente, é

também constante na história da cidade ao menos um ligeiro grau de desconfiança com

forasteiros, em especial aqueles que eventualmente decidem se fixar na cidade e ali exercer

algum tipo de atividade econômica, em oposição aos nativos da Chapada Diamantina51.

O passado de Lençóis mantém-se vivo e em constante atualização no cotidiano de seus

habitantes, por mais que surjam novidades oriundas do reordenamento da população em

função da economia agora alavancada pelo turismo. Em suas caminhadas pelas serras, os

lençoenses cruzam com ruínas deixadas pelos grandes garimpos de outrora, bem como

observam outras sendo restauradas em sua cidade, transformando-se internamente ao passo

que suas fachadas mantêm viva a memória de outros tempos. Suas ruas e praças passam a

receber novos nomes, em geral muito pouco assimilados pela população local, numa atitude

possivelmente proposital. Em vez de referirem-se, por exemplo, à Avenida General Viveiros,

continuam dizendo Rua do Tomba Surrão. No lugar de prestar homenagem a um coronel

falando da Praça Aureliano Sá, preferem lembrar lutas passadas mantendo seu nome de Praça

das Nagôs (termo cuja importância será retomada adiante). Poucos saberão informar onde fica

a Rua Miguel Calmon, mas não há quem deixe de recomendar um restaurante na mesma Rua

da Baderna. Não deixam de continuar existindo as ruas Sete de Setembro, Voluntários da

Pátria e Almirante Barroso, no Centro Histórico, mas a vida local fervilha mesmo é nas vielas

50
Numa convergência que contribui para a experiência dos lençoenses em lidar com estrangeiros sem muito
embaraço, quando necessário (Pereira 1910: 55, 59 nota **; Senna 1996: 18; Araújo 2002: 169; O. Senna 2002:
12; Brito 2005: 15).
51
Sejam brasileiros ou estrangeiros (Moraes 1963: 43-44; Gonçalves 1984: 233; Senna 1996: 58), incluindo em
menor grau moradores mais temporários da região, como estudantes, pesquisadores, técnicos governamentais e
pessoas em busca de estilos de vida alternativos, que privilegiam tanto Lençóis como o Vale do Capão, no
município de Palmeiras (Brito 2005: 128). “Nativos da Chapada” é, literalmente, o modo como aqueles que
nasceram na região costumam se referir a si próprios, em geral quando desejam marcar alguma distinção em
relação aos “de fora”.
37

da Rua do Curral, da Rua dos Papagaios e da Rua dos Negros – que se recusam a chamar de

Rua São Benedito52.

Se os lençoenses por vezes gostam de lembrar sua história, inscrita que se encontra no

próprio espaço arquitetônico de Lençóis, falam com mais gosto ainda a respeito de suas

histórias. Os contos e causos passados na cidade são lembrados com alegria, repetidos para as

crianças e curiosos, e por mais de uma vez pediram-me que registrasse uma história, tirasse

uma fotografia de uma ruína ou fizesse uma gravação de uma música, bem como me

mostraram certas vezes cadernos antigos, álbuns de fotos e registros em fitas cassete

guardadas sem que tivessem nem mesmo rádios que as reproduzissem. Pouco deve haver que

exerça tanto fascínio nos habitantes da cidade quanto uma história bem contada53, e se reunir

para ouvir e relatar causos é um dos passatempos prediletos dos lençoenses, como Seu Gilson,

o ex-garimpeiro apresentado no início do capítulo54.

Seu Gilson contou-me certa vez como, quando tinha ido ajudar sua mulher a limpar a

imagem de Nosso Senhor dos Passos, tivera uma estranha sensação ao passar um pano na face

da estátua, uma pesada escultura em tamanho natural mostrando a segunda estação da Via

Crúcis, com Jesus carregando a cruz onde iria ser crucificado. O grau de realidade da imagem,

Seu Gilson dizia, era ainda mais ampliado pelas longas madeixas que a adornavam – “cabelo

de gente mesmo”, havia quem afirmasse –, e a importância de Senhor dos Passos para os

garimpeiros de Lençóis, de quem era o padroeiro, era indiscutível 55, a ponto de muitos

considerarem-no efetivamente padroeiro da cidade como um todo, a despeito das autoridades

52
Tudo indica que essas sejam práticas antigas (Pereira 1910: 113 nota **; Gonçalves 1984: 32; Ganem 2001:
125-126).
53
Há esforços que se empenharam no sentido de registrá-las de forma mais abrangente, seja do ponto de vista
em geral das poderosas famílias da cidade (Ganem 1984; 2001), seja daquelas mais ligadas ao trabalho no
garimpo propriamente dito (Brasil 2009: 16-33).
54
Ver fotos 5 e 6 no anexo III.
55
Para grande parte da população de Lençóis, não há aí nenhum grau de representação: Senhor dos Passos é
literalmente a estátua que reside em sua capela, capaz de grandes feitos por uma potência que lhe é própria
(Gonçalves 1984: 136-137). Ver foto 7 no anexo III.
38

locais que se compraziam de lembrá-los que a padroeira oficial de Lençóis era Nossa Senhora

da Conceição.

A admiração de Seu Gilson pela escultura se deve ao fato de ele também ter sido

garimpeiro durante grande parte de sua vida, enquanto seu pai e seu avô haviam-no sido

praticamente até o fim de seus dias. Seu Gilson costumava lembrar com um misto de orgulho

e pesar dos tempos do garimpo que ele ainda alcançara, bem como das histórias das pessoas

de sua família que haviam trabalhado com essa lida. Como muitos outros garimpeiros, seu

avô falecera num acidente no garimpo, atingido em cheio por uma pedra que rolou do alto da

serra, logo após ter encontrado um diamante de 30 quilates (consideráveis seis gramas), sem

ter podido usufruir de seu achado. Acidentes como estes, bem como soterramentos em

estreitas cavidades subterrâneas perfuradas sob os leitos dos rios, as chamadas grunas, e

afogamentos por enchentes repentinas, as trombas-d’água, eram sabidamente comuns na

rotina garimpeira, e ainda hoje muitos dos senhores mais velhos que sobreviveram a eventos

como esses mostravam sequelas duradouras, em especial no caminhar.

As agruras do trabalho no garimpo exigiam privilegiada constituição física dos

homens que se aventuravam nas serras, aliadas às técnicas de extração passadas de geração

em geração. Os primeiros trabalhadores da região já se dividiam entre livres e escravos, mão-

de-obra esta que foi predominante no primeiro e mais importante ciclo do diamante na

região56. Havia uma diferença entre os chamados “mineradores”, ligados ao Império e

realizando a atividade com autorização real nas serras arrendadas aos senhores pela Coroa, e

os “garimpeiros” – entre os quais se podiam contar ex-escravos – que trabalhavam muitas

vezes de forma clandestina57. A passagem gradativa de todo o contingente populacional ao

56
Segundo indicam as escrituras de compras de escravos pelas companhias de mineração (Pina 2001: 182).
57
Os conflitos por vezes sangrentos entre todos os envolvidos no início do processo extrativo do diamante,
fossem mineradores, fossem garimpeiros, levaram, por exemplo, à alteração do nome do Poço Rico, local de
Lençóis onde inúmeras pedras foram descobertas em pouco tempo, para Poço das Mortes (Pereira 1910: 86;
Gonçalves 1984: 19). Até hoje se menciona como os garimpeiros conheciam formas especiais de agitar suas
bateias (recipientes nos quais o cascalho é revolvido em busca dos minérios) de modo a esconder diamantes ali
39

trabalho livre, mas não assalariado, marcou o apagamento dessa distinção, unindo todos os

trabalhadores sob a mesma alcunha de “garimpeiros”, sendo um dos motivos pelo qual o tema

da escravidão de uma quantidade considerável de seus ascendentes seja tratado pelos

lençoenses contemporâneos com algum receio e sem grande aprofundamento58.

Os garimpeiros trabalhavam em sua luta diária à procura do bambúrrio, o achado de

um diamante de valor excepcional que lhes permitiria gozar de alguns dias de esbanjamento59.

Seu Gilson me falou que ele, como praticamente todos os garimpeiros, já tivera essa sorte

algumas vezes em sua juventude, podendo ficar por uma ou outra semana sem trabalhar,

pagando bebidas aos amigos, dando presentes caros às mulheres-damas e promovendo festas

com comida da melhor qualidade. Já se sugeriu que tal atitude caracterizaria uma crença no

enriquecimento fácil derivado do achado de uma grande pedra, busca eterna que não faria

senão alimentar sonhos impossíveis de escapar de sua condição de garimpeiros fadados ao

trabalho duro nas serras ao longo dos anos60. Contudo, se é verdade que a busca pelas pedras

de grande valor por vezes se encontra no horizonte do trabalho dos garimpeiros, e que quando

achados desse porte acontecem em geral acabam por financiar momentos intensificados de

consumo – raramente sem algum componente coletivo, frise-se –, essa parece estar longe de

existentes dos olhos de quem quer que fosse. O contrabando de pedras, em geral para evitar os tributos devidos,
fossem eles ao governo ou aos donos das serras, era possivelmente também uma forma dos escravos tentarem
juntar a quantia necessária à compra da alforria por meio de terceiros de sua confiança.
58
O “tempo dos antigos” é marcado como aquele do qual não se sabe muito a respeito, ainda que se trate de um
passado relativamente recente (Toledo 2001: 82-83).
59
Contemporaneamente, a agência da loteria federal na cidade adotou o nome de “Bambúrrio”. A palavra pode
igualmente ser usada como verbo – como em “um garimpeiro bamburrou recentemente”.
60
Segundo esse ponto de vista, os garimpeiros formariam uma “imensa massa humana trabalhadora e
imprevidente, ambiciosa, inquieta, nômade e aventureira, mas quase sem ideal nenhum. É a gente garimpeira,
ignorante e inculta – conquanto mais honesta, mais ousada e mais her[o]ica do que qualquer outra espécie de
trabalhador – que se embrenha pelas grupiaras, que desbrava as serras alcantiladas, que penetra nas noites
eternas das grunas profundas e perigosas, que mergulha nos poços dos rios traiçoeiros e violentos do planalto,
arriscando, a todo instante, a vida, em holocausto à sorte e que, se bamburra, desce loucamente à cidade para a
vendagem das gemas e, de possa da dinheirama que, talvez, nunca vira antes, se entrega imediatamente a todos
os tipos de ostentação e de prazeres, nas casas de jogo, nos botequins, nos cabarés; adquire nas lojas toda espécie
de mercadorias que se lhe apresentem – necessárias ou supérfluas – e, nesse diapasão, depois do esbanjamento,
dentro de poucos dias retorna ao garimpo reduzido à mesma condição de pária, entre resignado e esperançoso de
uma nova topada com a fortuna” (Moraes 1963: 42-43).
40

se configurar como a motivação diária desses trabalhadores. Investir nessa caracterização não

faz senão apresentar uma imagem literal e figurativamente empobrecedora dos garimpeiros,

considerando-os apenas e essencialmente como ‘inaptos à acumulação capitalista’61. Essa

forma de ver e de falar a respeito dos garimpeiros acaba traindo mais um anseio próprio aos

grandes exploradores e àqueles desejosos em alavancar o ‘desenvolvimento’ do país a

qualquer custo62.

Atendo-nos, contudo, a uma determinada visão garimpeira de seu trabalho, vê-se como

ao longo do tempo esses homens esforçaram-se em dirimir a imagem de clandestinidade e

aventureirismo, à qual, se de fato chegaram a fazer jus no passado, definitivamente não guiava

sua labuta diária. Como Seu Gilson e outros antigos garimpeiros afirmavam, os trabalhadores

das serras estimavam sobretudo sua independência, fazendo todo possível para não terem de

trabalhar como “meia-praça”, o que significava ter um patrão ou fornecedor que lhe provia

meios de subsistência em troca do direito de receber metade do valor pelo qual fosse vendido

qualquer diamante que o garimpeiro viesse a encontrar, depois de subtraídos os tributos

devidos (ao governo e ao dono da serra). Não precisar trabalhar como meia-praça conferia ao

garimpeiro autonomia para ditar seu próprio ritmo e local de trabalho, bem como lhe garantia

rendimento consideravelmente mais significativo para o sustento de si e sua família –

liberdade que muitos não só aspiravam como obtinham, comprovando a capacidade

administrativa que priorizavam. Por mais que o trabalho se mostrasse uma constante em suas

vidas, já que muitos dos garimpeiros tinham a certeza de que praticamente nenhum achado

seria grande o bastante para não mais trabalhar pelo resto de suas vidas, tratava-se de um

61
Retornarei a este ponto no fim do capítulo, na seção 1.5.
62
Há quem tenha sugerido que a questão da exploração dessa riqueza mineral devesse efetivamente ser uma das
maiores prioridades do Estado, alavancando o país como potência industrial não importando qual seja o custo
ambiental desse processo, num marco de assumido ufanismo (Peixoto 1946: 3).
41

trabalho que lhes garantia o exercício do arbítrio de uma forma que seus ascendentes

provavelmente nunca desfrutaram: tornaram-se senhores de si mesmos63.

Os garimpeiros respeitavam igualmente tempo e condições próprios ao garimpar,

segundo critérios tradicionais que incluíam todo um conhecimento ligado às grandes

variações volumétricas dos rios – em geral provocadas por mudanças climáticas pequenas –, à

separação dos inúmeros tipos de rochas e cascalhos, ao manejo dos instrumentos de trabalho,

além de um saber conectado ao reconhecimento dos sinais da sorte. Um dos principais

eventos que podia levar um garimpeiro a interromper seu dia imediatamente era a descoberta

de uma pedra de raio, também chamada na região de “pedra de corisco” ou de “machadinha

de índio”. Encontrar uma dessas pedras – normalmente muito achatadas e arredondas, cuja

origem era atribuída ou ao impacto de um raio, ou à queda de um meteorito – significava que

sua frente de trabalho estava “fechada”, nenhum diamante seria encontrado naquele dia, então

nada lhe restava senão voltar para casa64.

Deparar-se com uma dessas pedras parecia levar uma pessoa a um estado menos

intenso da condição que os garimpeiros mais temiam lhes acometer: a de “infusado” ou

“bojado”65. Infusar ou bojar é algo que podia acontecer a um garimpeiro por motivos diversos

e de formas misteriosas, cuja principal consequência era ficar longo período de tempo sem

encontrar um único diamante sequer, mesmo trabalhando arduamente ao lado de colegas que

63
Essa outra imagem dos garimpeiros é compartilhada em especial pelas pesquisas que se basearam em trabalho
de campo de longa duração junto a estes próprios trabalhadores (Gonçalves 1984: 43, 216-219; Guanaes 2001:
59-103; Toledo 2001: 49-53, 111-112).
64
A pedra era geralmente apanhada com grande reverência pelo garimpeiro, que a guardava em casa para que
com isto sua morada ficasse protegida (“fechada”, igualmente) contra raios durante as pesadas chuvas e
tempestades que acometiam as cidades das Lavras Diamantinas (Gonçalves 1984: 133, 141, 221). Afirma-se
também que pedras como essas podem ser guardadas por sete anos e posteriormente colocadas em cozimento,
tornando-se então aptas a serem penetradas pelas entidades nas quais serão transmutadas (Senna 1998: 103).
65
Tanto infusar como bojar são verbos cujos sentidos compreendem ações ligadas a espraiamento, seja o
derramar ou espalhar do primeiro, seja o aumentar o volume de um corpo (de modo a fazer bojo) do segundo. É
possível conectá-los, por um lado, à ideia que mencionam os garimpeiros dos diamantes que se esvaem pelas
bateias cheias de água durante a lavagem do cascalho, quando não são devidamente reconhecidos; por outro, a
um efeito da aversão ao excesso que será discutida na seção 1.5.
42

continuavam encontrando pedras com a frequência costumeira. O azar que acompanhava o

garimpeiro infusado podia diminuir sua vontade de trabalhar, e eram seus amigos que

deveriam lhe ajudar e lhe fornecer meios de sobreviver e de retornar ao trabalho para que o

tempo se encarregasse de lhe mostrar uma alteração em sua sorte. Havia, entretanto, um meio

mais rápido e mais garantido de lidar com o infuso, ao qual muitos garimpeiros afirmaram já

ter recorrido: rogar pela ação mística das forças ligadas ao jarê, o culto de matriz africana

característico da região.

Tanto os líderes religiosos como os próprios espíritos mobilizados em sua prática

podiam ser diretamente acionados pelos garimpeiros. Os pedidos para uns e outros eram feitos

tanto por aqueles que procuravam deixar de estar infusados quanto por garimpeiros que

desejavam encontrar diamantes com auxílio das entidades, sabendo com isso que poderiam

ficar, ao menos em parte, em dívida com as mesmas. Os procedimentos rituais realizados

pelos curadores de jarê, como também são chamados seus líderes, raramente eram descritos

pelos garimpeiros de forma detalhada, mas envolviam o recurso a um espírito e alguma

adscrição do trabalhador da serra à entidade que havia lhe favorecido – bem como ao pai-de-

santo que a havia mobilizado em seu favor, caso houvesse seu intermédio. Conta-se que as

entidades podiam prever os locais onde diamantes seriam encontrados, o espaço de tempo que

seria preciso esperar pela descoberta seguinte ou ainda as técnicas de garimpagem necessárias

ao achado das pedras preciosas. Ignorar os conselhos vindos dos espíritos, ou deixar de honrar

os compromissos de retorno assumidos quando da obtenção de suas indicações – que

variavam desde ajuda financeira às casas de culto ao simples reconhecimento de que a

interferência mística fora crucial para a descoberta do diamante – significava correr o risco de

atrair para si o revés do infuso.

A partir desse ponto de vista, o garimpo configura-se menos numa coleta do que numa

espécie de caça, pois o que se afirma é que os diamantes possuem uma vida própria, são
43

capazes de se movimentar de acordo com uma vontade particular, bem como de fornecer

indícios de sua localização por meio de fenômenos luminosos nos rios e nas serras, sons e

vozes ou mesmo aparições visuais chamadas de “livusias”66. Seu Gilson me falava a respeito

de como o diamante podia ficar um bom tempo “fervendo”, rolando no interior de poços

naturais escavados no leito dos rios, e de como também podia crescer e ficar mais velho com

o passar do tempo, ambas situações que poderiam alterar seu temperamento e comportamento,

tornando-se mais arredio ou mais incauto. Todo velho garimpeiro já ouviu e fala a respeito

dos três “D” que regem a descoberta bem-sucedida de uma pedra, indicando as primeiras

letras da confluência do diamante com seu dono num certo dia67.

Os garimpeiros tinham o domínio da pedra encontrada em seu estado natural, chamada

de diamante bruto, que era então vendida aos capangueiros e pedristas para ser em seguida

lapidada, seja em Lençóis, na época em que ali funcionavam casas de lapidação, seja em

grandes centros urbanos onde seria revendida, tornando-se assim um brilhante68. Até hoje não

é incomum que visitantes caminhando pela cidade sejam abordados por algum de seus

moradores que teria guardado uma ou outra pedra bruta na esperança de encontrar um bom

revendedor para ela – afinal de contas, dizem, talvez um dos muitos gringos que por lá

passam seja como os estrangeiros de antigamente, que poderiam disputar a compra dos

diamantes mais valiosos para levá-los para seus países.

Não só da extração dos diamantes que seriam transformados em brilhantes e

adornariam joias por todo o mundo vivia o garimpo de Lençóis. Desde cedo foi encontrado ali

66
Corruptela de “aleivosia”, mais um dos sinais da volição das pedras (Gonçalves 1984: 132, 220).
67
A conjunção desses três fatores (Gonçalves 1984: 132; Ganem 2001: 138) pode acontecer mesmo bem depois
do trabalho do garimpeiro ter sido realizado, como exemplifica a atitude dos moradores mais velhos da região
que ainda abrem rotineiramente a moela da galinha caipira antes de cozinhá-la, ou olham bem o chão depois de
uma chuva forte, à procura de algum diamante perdido, hábito atribuído à abundância das pedras no início da
exploração (Funch 2007: 151).
68
Segundo capangueiros e lapidários de Lençóis, o valor dos brilhantes resultantes dos diamantes encontrados
nos últimos tempos da exploração costumava variar entre US$ 500,00 (para uma pedra de meio quilate) e US$
10.000,00 (para uma pedra de dois quilates) (Funch 2007: 167).
44

o carbonado, comumente conhecido como “diamante negro”, chamado na região de

“carbonato”. Inicialmente desprestigiado por não poder ser usado como ornamento, já que não

é translúcido como o diamante – o que fazia com que os primeiros garimpeiros se livrassem

dele em grandes quantidades –, a descoberta dos usos industriais do carbonado fez com que

seu preço em pouco tempo se equiparasse ao da variante clara do diamante, salvando a

economia das Lavras Diamantinas quando a mercadoria costumeira diminuiu de valor

internacionalmente69. Quando Seu Gilson me falou a respeito do carbonado, a única outra

substância capaz de cortar um diamante tradicional que não ele próprio, foi com algum deleite

na voz que me disse como era o diamante negro e impuro que era capaz de quebrar o

diamante branco e imáculo.

O carbonado encontrado na Chapada Diamantina teve seus usos industriais

descobertos ainda no século XIX, e em função de sua dureza demonstrou-se especialmente

adequado para a perfuração de rochas e abertura de túneis, chegando a ser usado

posteriormente para prospecção petrolífera em áreas rochosas. Os lençoenses ouviam como o

diamante negro que era dali exportado foi utilizado em grandes empreendimentos ao longo do

século XX ao redor do mundo, das escavações para linhas do metrô de Londres à abertura do

Canal do Panamá, passando pelo Túnel de São Gotardo na Suíça e pela principal fábrica de

automóveis da Ford nos Estados Unidos. Até hoje há garimpeiros e moradores da cidade que

recordam a importância que a produção de Lençóis teve para essas atividades industriais,

ainda que nem sempre sejam tão específicos quanto aos detalhes de seus acontecimentos70.

Os garimpeiros também costumavam dizer que para cada estrela no céu há um

diamante na terra, e vice-versa. A aproximação entre esses brilhantes celestes e as pedras

69
Em função, como mencionado, da descoberta de outras fontes de fornecimento (Praguer 1899: 58, 66; Moraes
1963: 37).
70
As referências na literatura são muitas, ainda que as fontes primárias para embasá-las sejam mais escassas
(Pereira 1910: 108; Peixoto 1946: 3; Moraes 1963: 38; Gonçalves 1984: 26; Mattos Jr. 1997: 16; Ganem 2001:
61, 67; Araújo, Neves & Senna 2002: 135 nota 15; Funch 2007: 16, 163).
45

encontradas nas serras se dava não só pela luminosidade que ambos podiam produzir ou

refletir, mas igualmente em função de uma das possíveis origens de certo tipo de diamantes,

similar a uma das pensadas pelos garimpeiros para as pedras de raio, tendo surgido do

impacto de objetos extraterrestres. O carbonado, como mencionado, só é encontrado em

poucos lugares no mundo, com as reservas mais significativas localizando-se na Chapada

Diamantina e na República Centro-Africana (antiga colônia de Ubangui-Chari),

possivelmente oriundas do impacto de um asteroide há pelo menos duzentos milhões de anos,

antes da separação dos continentes que compunham a Pangeia71. Os diamantes continuam a

fazer parte do cotidiano dos lençoenses de formas diversas, ainda que muitas vezes somente

em lembranças ou metáforas. Uma amiga, de sobrenome justamente Diamantino, gostava em

especial de fazer troça lembrando-nos dele constantemente e se comparando a um rico

brilhante em meio a um mar de carbonados: brincadeira que não passava pela cor das pessoas,

já que ela era tão ou mais negra que aqueles de quem gostava de dizer “não terem quilate”72.

Ao longo da história de Lençóis, seguindo os ciclos do diamante, era muito comum

haver garimpeiros exercendo outras profissões simultaneamente ao trabalho nas serras.

Chamados de faiscadores, esses garimpeiros contentavam-se em trabalhar somente no pé da

serra e próximo aos leitos dos rios, especialmente durante os fins de semana, como tinha sido

o caso de Seu Gilson. Ele me dizia como ter sua profissão garantida durante a semana o

ajudava a pagar as contas ao fim do mês sem precisar depender da sorte do garimpo, que

entretanto lhe servira de renda suplementar quando fazia algum achado73. Com a idade,

71
Outros locais onde foram encontrados carbonados são Minas Gerais e Mato Grosso, no Brasil, bem como na
Venezuela, além de uma variante menos similar na Sibéria. A origem exclusivamente interestelar dos
carbonados é uma possibilidade sobre a qual não há consenso científico (Garai et al. 2006: L156; McCall 2009:
90), contudo é interessante notar essa aproximação mineralógica entre o que viriam a se tornar Brasil e África,
num outro tipo de reencontro tardio.
72
Essas ocasiões me faziam recordar constantemente a etimologia da palavra, que significa tanto “inquebrável” e
“inflexível”, como, mais simbolicamente, “selvagem”, “resistente”, “aquele que não pode ser domado”.
73
Há ligeira discordância quanto ao significado do termo “faiscadores”, que podia também ser usado para
designar membros de uma classe média incipiente que teve início na compra da “fazenda fina”, os diamantes de
46

igualmente, ele ponderava que realizar sua busca lavando cascalho já devidamente trabalhado

era menos penoso, posto que, diferentemente de muitos de seus amigos garimpeiros, não fazia

planos de investir numa roça nas cercanias de cidade, preferindo a vida na sede de Lençóis.

As Lavras Diamantinas eram abastecidas por gêneros alimentícios vindos de fora da

região, já que sua produção interna, principalmente de outras cidades da Chapada, sempre foi

bastante limitada, concentrando-se em povoados de acesso mais difícil mas com melhores

condições para a agricultura, como os vales do Capão Grande, em Palmeiras, e do Paty, em

Andaraí, produzindo arroz, feijão, café, farinha, bananas, laranjas e outras frutas. As roças no

entorno de Lençóis costumam ser voltadas somente à produção de subsistência dos antigos

garimpeiros, muitos dos quais decidiam passar cada vez mais tempo afastados da sede do

município devido às fases de declínio e escassez do diamante74. A dieta dos habitantes da

Chapada Diamantina sofreu alterações significativas nas últimas décadas, especialmente em

sua composição proteica, em função não só do crescente número de produtos industrializados

então disponíveis como das restrições à caça e à pesca estabelecidas com a criação do Parque

Nacional, bem como com o esgotamento das próprias espécies após a intensificação da

exploração decorrente dos últimos surtos do garimpo e do avanço do turismo75. Enquanto a

base da alimentação diária continua similar (composta de arroz e feijão – tanto o comum

como o andu –, batata-da-serra, abóbora, aipim, chuchu, mamão verde, fruta-pão, carne-de-

menor peso, o que não exclui certa convergência com a ideia de garimpeiro ocasional (Moraes 1963: 42;
Gonçalves 1984: 28, 217; Funch 2007: 14).
74
As avaliações da importância da lavoura de subsistência para o garimpo afirmam que enquanto a roça oferece
segurança, o garimpo oferece esperança. Na área do município de Lençóis propriamente, o solo costuma ser
muito ácido e pobre em nutrientes, além de pouco profundo, apropriado para pouco mais que mandioca, abacaxi
e andu (Pereira 1937: 59; Funch 2007: 15, 78).
75
Todos estão bastante cientes da atuação do Ibama e da configuração de crime ambiental que agora constituem
determinadas atividades extrativistas no interior da área do Parque Nacional (Senna 1996: 59). Entre os animais
caçados na região no início do século XX encontravam-se “anta, veado mateiro, catingueiro, porco queixada,
caititu, onça preta e su[ç]uarana, gatos do mato, pacas, cotias, raposas, guarás” (Pereira 1937: 17) e, mais
recentemente “paca, teiú, jacaré, capivara, cotia, tatu, raposa, rato do mato [o chamado mocó]” (Gonçalves 1984:
86-89). Entre os peixes, obtidos principalmente pelos moradores da vila do Remanso, havia “traíra, piranha,
curimutá, umbá, tuiuiú, jundiá, tucunaré, apari e corro” (Gonçalves 1984: 89).
47

sol), a criação de animais domésticos tornou-se mais comum nas roças do entorno da cidade –

em especial galinhas e em menor escala porcos, substituindo as carnes de caça e o pescado

outrora abundantes – complementando plantações de mandioca, feijões, milho e abóbora,

além de frutas, menos frequentes, como banana, maracujá, e em especial abacaxi, que não

encontram tanta dificuldade quanto as demais de vicejar no solo ácido da região.

O surgimento do Parque Nacional em 1985 marcou o início do fim do último ciclo de

exploração da pedra, intensivo e baseado em maquinário pesado. O chamado garimpo de

draga teve início em 1980 quando a região é praticamente invadida por um novo tipo de

minerador empregando possantes bombas d’água para explorar as jazidas restantes nos

aluviões no pé da serra. Em seu auge, cinco anos depois, havia entre 100 e 150 dessas dragas

em funcionamento, retirando quantidades significativas de diamante da Serra do Sincorá,

empregando e sendo comandadas majoritariamente por pessoas de fora da Chapada. O

trabalho nas dragas atrai principalmente os homens mais jovens, por prescindir do domínio da

técnica dos garimpeiros tradicionais e possibilitar retorno mais imediato, o que no decorrer de

alguns anos deixou efeitos devastadores na paisagem local. A despeito da proibição formal da

atividade desde o decretamento do Parque Nacional, é somente em 1996 que, pressionados

pelo crescimento constante da indústria do turismo, agentes dos órgãos ambientais do estado e

da União efetuam batidas sistemáticas levando ao fechamento das operações com draga76.

Apesar de não ter se envolvido com os mineradores de draga, Seu Gilson continuava

seu trabalho esporádico nas serras, assim como o faziam muitos dos garimpeiros mais velhos,

utilizando as técnicas artesanais de garimpagem. Porém, até mesmo esse garimpo teve sua

proibição igualmente forçada no final do ano de 1998, consolidando o turismo como principal

atividade econômica em Lençóis. No que pesem os danos consideravelmente marcantes

76
Os dados disponíveis apontam que em 1994 ainda havia 52 dragas em operação, e que o fechamento ocorreu
em março de 1996. Apesar do nome incorreto para os motores-bomba a óleo diesel, a época do garimpo de
dragas ficou marcada dessa forma vividamente pelos lençoenses (Senna 1996: 107; Funch 2007: 14, 158).
48

causados ao ambiente pelo garimpo, em especial o mecanizado, reside em muitos dos

lençoenses mais velhos a ideia de que, além da preservação ambiental, influenciaram também

na decisão governamental a ameaça contínua de contrabando e a dificuldade de se cobrar os

impostos devidos sobre as muitas etapas produtivas da extração e do comércio das pedras

preciosas. Os garimpeiros mais antigos da região, que se viram definitivamente privados de

suas formas de trabalho e que agora em geral sobrevivem graças a aposentadorias ligadas ao

trabalho no campo, defendem a liberação do garimpo tradicional de pequena escala,

sustentando seu menor impacto sobre o meio ambiente77. Agora, contudo, precisam disputar

esse entendimento não só com o governo como com os empresários da mais recente indústria

da Chapada Diamantina.

1.2 Excursos

O tipo de turismo que começou a se estabelecer na Chapada Diamantina, tendo

Lençóis como base de operações por contar com os principais hotéis, pousadas e agências de

passeios, foi primariamente o chamado ecoturismo de aventura. Aqueles que trabalham nesse

ramo afirmam que os atrativos naturais da região podem ser aproveitados de forma

ambientalmente consciente e não predatória, diferentemente do que acontecia com o garimpo

mais intensivo. Essa espécie de turismo atrai principalmente jovens, tanto do Brasil como do

exterior, e mochileiros, muitos dos quais ainda compõem o principal contingente de visitantes

da cidade, interessados em realizar trilhas pelas serras, tomar banhos nas cachoeiras isoladas e

conhecer as grutas e a vegetação típica da Chapada. Surge assim a necessidade de guias para

77
Mesmo após terminada a tolerância legal com todo tipo de garimpo (Araújo 2002: 178), o diagnóstico feito
acerca de uma das cidades-fantasma produzida pelos ciclos do diamante é igualmente válido para a Lençóis dos
garimpeiros, e em seu duplo sentido: “O garimpo praticamente acabou na região, mas jamais se achará o último
diamante” (Funch 2007: 103).
49

levar os visitantes por longas caminhadas nas quais é normal pernoitar por alguns dias na

serra, seja na casa de moradores mais isolados, seja nas grutas que acomodavam os

garimpeiros, seja acampando ao ar livre. Em pouco tempo ficou claro para a população que

para a função não havia ninguém melhor que os próprios garimpeiros, que já conheciam as

trilhas e segredos dos platôs diamantinos, assim como em seguida os filhos destes.

Esse era o caso de um dos filhos de Seu Gilson, que se tornou guia esporádico e me

levou em alguns dos passeios mais simples no entorno de Lençóis. Se virtualmente todo

homem em Lençóis com idade para trabalhar era um garimpeiro antigamente, hoje em dia não

há quem não possa atuar como guia turístico nos passeios mais próximos à cidade, como subir

o Rio Serrano até os Salões de Areia e a Cachoeira da Primavera, ou caminhar até o Ribeirão

do Meio e a Cachoeira do Sossego. Enquanto os passeios mais distantes e que exigem

pernoites nas serras continuam a favorecer guias mais experientes e qualificados, que arriscam

o uso de um inglês utilitário e estabelecem vínculos com agências de passeio para obtenção de

transporte pelas estradas acidentadas da região, o influxo de turistas com perfil distinto

daquele dos aventureiros mais diligentes garante trabalho para muitos dos guias ocasionais.

Nos últimos anos, Lençóis viu ser ampliada sua rede de hotéis luxuosos e restaurantes

sofisticados, e chegou a ter por algum tempo três linhas aéreas diferentes operando a rota

direta Salvador-Lençóis simultaneamente, contando hoje em dia apenas com uma companhia

realizando voos semanais da capital até o aeroporto de Tanquinho, um dos distritos da cidade.

Na prática, Lençóis era a única cidade baiana fora do litoral que, no início do século XXI,

possuía infraestrutura turística significativa. Mesmo com as dificuldades de locomoção

impostas a pedestres pelo desenho acidentado de seu terreno, suas ladeiras e calçamentos

irregulares, a cidade passou a ser também destino que atraía visitantes de idade mais avançada

em busca de alternativas mais tranquilas para férias e feriados, incluindo aí os chamados


50

turistas “empacotados”, aqueles que viajam comprando um pacote completo com roteiros

preestabelecidos78.

O desenvolvimento da indústria do turismo em Lençóis fez com que muitos dos

forasteiros que tinham se mudado para lá no passado investissem nessa atividade, bem como

continuou a atrair pessoas interessadas nas oportunidades que o ramo inaugurava. Em geral

tendo maior conhecimento de línguas estrangeiras e habilidades de administração e

organização empresarial, bem como aportando um capital inicial considerável ou conseguindo

incentivos governamentais para o estabelecimento de negócios próprios, esses forasteiros

dominaram boa parte do mercado turístico e das posições estratégicas dentro dele, como as de

donos de agências de passeios, pousadas e restaurantes. Ainda que também haja nativos no

comando de alguns desses negócios (e, entre esses, há mesmo alguns poucos não ligados às

famílias tradicionais da região), em números tanto proporcionais como absolutos o

desemprego é muito maior entre os lençoenses, que costumam igualmente ocupar as posições

mais mal remuneradas do setor, como garçons, faxineiras e guias de passeios próximos79. A

maior parte da população aufere assim muito pouco dos rendimentos gerados pelo turismo,

que de todo modo ainda se insinua como o único caminho a ser trilhado para o

desenvolvimento da economia da cidade80: “Melhor pingando, que seco”, me diziam.

Os lençoenses constatam que a estruturação da atividade turística na Lençóis de hoje

guarda muitas semelhanças com as formas de organização do garimpo de outrora. De certa

forma, os donos das serras que cobravam para que nelas se garimpasse e os atravessadores

78
Esses fatores tornaram Lençóis uma cidade propícia também ao turismo familiar (Senna 1996: 62; R. Senna
2002: 248; Brito 2005: 17 nota 1; Funch 2007: 9).
79
Essa constatação é consensual na literatura (Senna 1996: 55; Lima & Nolasco 1997: 19; O. Senna 2002: 13). A
frase de um dos moradores a respeito dos novos patrões da cidade é plena de ironia, e tão forte quanto exata:
“[E]les hoje são empresários, querem lucro e silêncio” (Brito 2005: 129).
80
Um dos dirigentes de uma das escolas locais me disse que havia recusado a implementação de cursos
profissionalizantes na instituição em que lecionava já que o único que lhes seria oferecido era o voltado
diretamente para turismo, enquanto os outros solicitados, voltados para formação de carpinteiros, eletricistas e
técnicos de informática, fariam muito mais diferença na vida dos alunos e os colocariam em condições de
exercer uma profissão que lhes daria maior autonomia no mercado local.
51

dos diamantes equivalem hoje aos donos das agências de turismo e meios de transporte que

fazem a mediação dos visitantes. Os garimpeiros que no passado procuravam a sorte do

bambúrrio foram substituídos pelos guias que disputam os turistas que melhor pagam pelos

passeios, “caçando-os”, como dizem, do mesmo modo como faziam com as pedras preciosas.

Os surtos de crescimento e declínio dos ciclos do diamante ao longo dos anos foram

substituídos pela sazonalidade anual dos meses de férias e feriados importantes, e a cidade

continua em boa medida à mercê das flutuações econômicas do resto do mundo81. Da mesma

forma que o governo local se queixava das dificuldades de controlar a tributação devida pelo

comércio das pedras preciosas82, a prefeitura hoje faz todo o possível para regulamentar a

arrecadação devida pelo rendimento dos guias e das agências de turismo, que muitas vezes

trabalham informalmente e sem registros escritos83.

Outra conexão entre o garimpo e o turismo, não tão óbvia e em especial mobilizada

pelos garimpeiros mais velhos, é o fato de aquelas serras terem sido, sob determinados

aspectos, desbravadas e mantidas por eles ao longo de mais de um século. Por mais que os

impactos ambientais da atividade garimpeira estejam longe de ser desconsideráveis –

especialmente os do período das dragas –, esses idosos senhores lembram-se como sempre

custodiaram a Chapada contra incêndios – naturais ou não84 – e como foram somente sua

tenacidade e sua vontade de permanecer habitando a região do Sincorá que possibilitaram que

81
A crise econômica mundial que aconteceu durante o período em que realizei trabalho de campo era
frequentemente citada pelos lençoenses que trabalhavam mais ligados ao turismo como motivo para a
diminuição do fluxo de estrangeiros naqueles anos.
82
Problema registrado desde bastante cedo (Pereira 1910: 116).
83
Essa atitude pode ser compartilhada tanto pelas elites econômicas e políticas como, consequentemente, pelo
poder público, relacionando-se como o turismo da mesma forma extrativista e predatória como se relacionavam
com o garimpo (O. Senna 2002: 13).
84
Embora as características de Lençóis especificamente, com seu solo fraco e relevo montanhoso, não a
tornassem propícia à agricultura ou pecuária, muitos dos territórios nos quais hoje se encontram atrações
turísticas da Chapada Diamantina foram ocupados por gado e agricultura que promoviam grandes queimadas nas
matas da região, até a proibição definitiva desse recurso pelo Ibama em 2003 (R. Senna 2002: 249; Funch 2007:
14, 24).
52

suas maravilhas naturais fossem descobertas e posteriormente tornadas disponíveis para

visitação por pessoas do mundo todo: algo que talvez nunca viesse a acontecer caso Lençóis

tivesse sido abandonada em definitivo durante alguma das piores fases de escassez do

diamante, como de fato veio a ocorrer com outras povoações cujas ruínas hoje oferecem

testemunho85.

Descartar o argumento dos garimpeiros mais antigos como simples fruto de

saudosismo significaria ignorar tanto sua reatualização construtiva do passado como uma de

suas formas de continuar a expressar seu sentimento de conexão profunda com a cidade. Não

só os habitantes mais antigos como praticamente todo lençoense faz questão de exibir o

orgulho de ser um nativo da Chapada. Seria exagero dizer que esse entusiasmo é somente

fruto de uma valorização recente de suas belezas naturais em função da expansão do turismo

na região, posto que a vaidade demonstrada ao marcarem o fato de serem lençoenses – mesmo

em contraposição a outras cidades da Chapada Diamantina – existia mesmo antes do advento

dessa indústria e beira mesmo a soberba, ainda que matizada por bom humor, quando

afirmam que nenhuma outra cidade brilha tanto quanto Lençóis86.

De todo modo, especialmente entre os habitantes mais jovens de Lençóis, existem

aqueles que demonstram um fascínio especial pelos turistas naquilo que representam de

distinto de sua realidade. Por um lado, há o caso dos que buscam, na medida de suas

possibilidades, emular a vida dos turistas que passam alguns dias na cidade, juntando dinheiro

seja para almoçar em algum dos melhores restaurantes – que costumam lhes oferecer

85
Ver fotos 7 e 8 no anexo III.
86
Há hoje, contudo, muitos incêndios provocados propositalmente por moradores da zona rural tanto a serviço
de pecuaristas como de forma a marcar sua insatisfação com a perda de seus meios de existência tradicionais,
impedidos que ficam de garimpar ou ter suas roças na área do Parque Nacional. Um membro de um órgão
ambientalista que atua na cidade me disse ter ouvido de um desses habitantes, dando-lhe a entender que não via
grande problema nas queimadas: “Essa beleza toda que dizem que tem aí, moço? Não vejo, não”. Críticos locais
consideram que ter o passado como referência constante e ver o presente como profunda lamentação impregnada
do sentido de perda, bem como viver com a ausência de perspectivas para o futuro, não são necessariamente
marcas novas na região (Senna 1996: 16-17; O. Senna 2002: 12).
53

descontos –, seja para se tornarem eles também turistas viajando para outros destinos por

alguns dias – o mais comum deles sendo Salvador durante as férias –, seja ainda demitindo-se

de seus empregos para aproveitar alguns dias de festa na própria Lençóis. Por outro, existem

as histórias daqueles que realmente não desejam mais morar na cidade e querem conhecer

uma realidade completamente distinta da sua, desejo alimentado pelas histórias que ouvem a

respeito de outros lugares, em especial do exterior, em função do contato mais intenso que

agora passam a ter com estrangeiros87.

O exemplo prototípico dessa situação é provavelmente o do forasteiro, branco, que se

apaixona por uma nativa e se casa com ela, levando-a para seu lugar de origem e com ela

criando uma família – história que realmente chega a acontecer com uma ou outra pessoa.

Esse sonho de arrebatamento também não é novidade entre os lençoenses, sendo mote do

romance que serviu de inspiração ao roteiro do filme mais importante já produzido na

região88. De certo modo, essa ocorrência se repete em uma versão menor nos breves romances

que se multiplicam especialmente entre gringos e nativos de ambos os sexos. Apesar de

raramente terem consequências mais duradouras, esses casos permitem que ambos os lados

vivenciem por alguns dias o desejo de se aproximarem das realidades um do outro. Ainda que

não se deva descartar a possibilidade de que haja relações de compra e venda de favores

sexuais propriamente, dificilmente havendo explicitação do que alhures se consideraria

meretrício – do mesmo modo como acontecia na época do garimpo. O mais comum é que

jovens, de ambos os sexos, disputem a atenção de gringos que passarão a lhes fazer

companhia enquanto os levam para passeios e restaurantes, sem compensação monetária por,

e sem garantia de que haverá, qualquer envolvimento mais íntimo – ainda que alguns se

87
Daí o receio de que, na visão de um crítico local, agora que um novo horizonte para o futuro de Lençóis se
descortina, os habitantes da cidade troquem sua atração pelo passado por uma igualmente danosa obstinação pelo
futuro (O. Senna 2002: 12-14), algo que não se entrevia na época em que na cidade também não havia grande
penetração de meios de comunicação de massa, por exemplo (Gonçalves 1984: 53).
88
Como será visto no capítulo 3, seção 3.3.
54

refiram a essa procura, sempre de maneira jocosa e somente entre amigos bastante próximos,

como “fazer a prostituição”89.

Apesar de existir alguma agricultura no município, sendo inclusive atividade primária

nos distritos e povoados da zona rural localizados fora da área do Parque Nacional, ela não se

configura numa verdadeira alternativa ao turismo90. Os auxílios governamentais dirigidos à

região sempre se concentraram no estímulo à indústria turística, mesmo quando tangenciando

outras atrações que não as visitas aos pontos de interesse natural, tais como incentivos ao

turismo de base comunitária ou cultural. A ação do governo municipal também faz pouco para

alterar essa situação, e a quantidade de recursos básicos recebidos que depende do número de

habitantes do município não leva em conta o número flutuante porém significativo de turistas

que por ali passam e permanecem minimamente por alguns dias. Ainda que por vezes esse

pareça ser um destino distinto daquele que prefeririam ter para si mesmos, muitos lençoenses

se consideram fadados a trabalhar conectados ao turismo, ainda que ao menos indiretamente.

As oportunidades de trabalho para a maior parte dos lençoenses, mesmo ligadas à nova

economia da cidade, não são, todavia, abundantes. Ser contratado com carteira assinada

recebendo “um salário” (como se referem ao salário mínimo) é destino reservado a uma

minoria de certa forma mais bem qualificada, estando entre os empregos mais bem pagos de

Lençóis, dúbio título que disputam com as ocupações derivadas de cargos de confiança

apontados pela prefeitura. Enquanto também há aqueles contratados por um salário mensal

combinado informalmente, a relação de trabalho à qual a maior parte da população está mais

acostumada é a de “dar diárias” em determinados estabelecimentos, pelo que uma pessoa

89
Trata-se, efetivamente, muito mais de uma forma de turismo romântico do que de turismo sexual (Pruitt &
LaFont 1995: 422), ainda que em Lençóis, diferentemente do contexto com base no qual o termo foi concebido,
a ideia de romance se aplique tanto aos encontros com homens quanto aos com mulheres na cidade.
90
Há quem defenda que seria possível retomar a atividade do garimpo manual em consonância com o turismo e
a manutenção sustentável das serras e rios da Chapada, aliando a essas atividades mais investimentos na
agricultura que sempre acompanhou à distância o resto da vida econômica do município (Gonçalves 1984: 22;
Senna 1996: 41, 56, 80; Seabra 1998: 215-219; O. Senna 2002: 13; R. Senna 2002: 246; Funch 2007: 13-15).
55

pode receber normalmente entre R$ 20,00 e R$ 50,00 por dia de trabalho, em geral não mais

que três dias por semana. As diárias também permitem aos donos de hotéis, pousadas,

restaurantes e agências de passeios aumentarem seus efetivos durante os momentos de alta

temporada e diminuí-los na baixa, quando há estabelecimentos que permanecem fechados

durante meses seguidos caso seus proprietários possuam outras fontes de renda (em geral em

Salvador ou no exterior).

O alto grau de variabilidade de seus vencimentos ao longo do ano faz com que seja

preciso poupar em certos meses para que não se passe outros desprovido, algo que nem todos

os lençoenses sabem – ou estão dispostos a – fazer. Seu Gilson sempre me dizia como seu

salário de servente do banco, assim como seu ganho ocasional realizando dedetizações na

cidade, era dinheiro do trabalho suado e cotidiano, que não era feito para se esvair em festas e

bebidas como seriam os proventos do garimpo. Dona Juanita, hoje proprietária de uma

pousada – onde eu me hospedei –, comentava como foi o dinheiro ganhado lavando roupas

para um dos maiores hotéis da cidade que nunca tinha lhe faltado em épocas de dificuldade. O

dinheiro que vinha já do berço, muitos diziam, não conferia a seu possuidor a mesma

percepção de sua importância quanto as reservas obtidas pouco a pouco, a partir de

praticamente nada. Os líderes religiosos do jarê, ciosos da importância do trabalho tanto em

suas casas de culto como fora delas, afirmavam como precisavam ser mais lenientes quanto ao

comparecimento de seus filhos-de-santo nas cerimônias durante as épocas em que havia mais

trabalho disponível na cidade.

Os nativos da Chapada, de todo modo, estão longe de ser – e de quererem ser –

grandes acumuladores. A medida do trabalho e do investimento de tempo e energia pessoal,

especialmente em se tratando de empregos prestando serviços, ou seja, quase a totalidade das

ocupações disponíveis na cidade, raramente vai além do necessário para o sustento familiar.

Enquanto conversávamos a esse respeito, um amigo disse, sem grande preocupação, entender
56

os motivos que levavam à caracterização de preguiçosos conferida aos baianos. Sem colocar o

grau de premeditação dessas atividades em jogo, investe-se, de certa forma, nesse estilo de

(‘falta de’) receptividade e profissionalismo com os turistas, gerando uma espécie de relação

de trabalho que não se dobra ao capitalismo a qualquer preço: as pessoas preferem não abrir

seus estabelecimentos durante o horário do almoço, não fazem questão de aparentar

devotamento absoluto aos fregueses – o que leva certos turistas e forasteiros com

empreendimentos na cidade ao inevitável comentário de que aquele “tipo de gente parece até

que não quer ganhar dinheiro”. Mais que outra coisa, impera muitas vezes uma ética do

trabalho pautada por um ideal de suficiência91.

Tão ou mais importante que o tempo dedicado ao trabalho, então, é o tempo que se

destina ao lazer. Como dissera um de meus amigos que trabalhara algum tempo em São

Paulo, ele jamais desejaria levar o tipo de vida que seus colegas de lá tinham, saindo muito

cedo e chegando muito tarde em casa, sem tempo para nada, perdendo horas no trânsito ou

com burocracia. Em nítida contraposição à “vida de paulistano”, ele me dizia, nada poderia se

igualar aos banhos de rio no fim da tarde que ele podia tomar em Lençóis, mesmo estando

empregado num dos grandes hotéis da cidade. Quando não vão tirar o dia para pescar ou

caçar, outras formas de lazer rotineiro incluem reunir-se para conversar, beber ou jogar

dominó, três dos passatempos favoritos dos lençoenses e que muitas vezes eram desfrutados

simultaneamente92.

91
Como já se escreveu sobre o tema, falando da uma Lençóis de outra época: “Nenhum trabalho, nenhuma
obrigação, nem o trabalho das mulheres em casa, exigem tudo ou quase tudo das pessoas. O trabalho não
enriquece ninguém, nem mesmo o garimpo; dá o necessário, mas também não exige demais, nem em esforço,
nem em tempo consumido. O tempo não tem pressa, passa bem devagar” (Gonçalves 1984: 57, itálico no
original).
92
Caça e pesca ali se configuram muito mais como opções de lazer do que atividades econômicas, empreendidas
hoje normalmente aos finais de semana e somente fora das áreas protegidas do Parque Nacional. Mesmo
podendo voltar por vezes de mãos abanando, a alegria desses eventos era recontada diversas vezes: “De fato,
brincar e vadiar são sinônimos, indicando a ação que se pratica pelo prazer da ação em si, pela alegria que ela
pode dar ao corpo e ao espírito do homem. [...] O tempo que podem dedicar a isto é tão ou mais importante que
aquele dedicado ao trabalho” (Gonçalves 1984: 169, itálico removido).
57

Os amigos que fiz em Lençóis, em especial os que tinham empregos ligados ao

turismo, costumavam usar uma expressão específica quando falavam acerca da necessidade

de trabalhar durante quase todos os dias e por vezes por longos períodos de tempo. Tinham de

se contentar com esse destino porque, afinal de contas, “não tinham estudo”. Se é verdade que

por vezes se referiam, com essa forma de falar, a seu sentido literal, aludindo com isso à

possibilidade de obter alguns dos empregos menos mal pagos disponíveis na cidade – e em

geral eram todos bastante conscientes da quantidade de anos que cada um havia dedicado à

escola –, limitar-se a ele deixa escapar um significado mais sutil que conferem à frase.

Quando passei a ouvir a mesma expressão sendo utilizada em situações um pouco mais

inusitadas, contudo, ela foi se revelando mais rica do que à primeira vista parecia.

Mesmo as pessoas que durante mais tempo haviam estudado, chegando a terminar

seus cursos de graduação – à distância ou presenciais, comumente no campus da Universidade

Estadual da Bahia localizado em Itaberaba, cidade à beira da BR-242, a mais de 130

quilômetros de Lençóis –, podiam dizer em determinadas ocasiões que “não tinham estudo”.

Quando uma professora que havia cursado pedagogia comentou que dois jovens franceses

podiam aproveitar a vida viajando pelo Brasil pelo fato de “terem estudo”, eu lhe disse que a

julgar pela idade deles, era bem provável que ela tivesse mais estudo que qualquer um dos

dois, ao que ela respondeu com ligeiro escárnio: “ter estudo não significa ter estudado”. Falar

sobre ter ou não ter estudo era um meio de se referir indiretamente e de modo mais amplo à

condição econômica de uma pessoa e de como ela adviria, ou justamente como não adviria,

dos anos escolares acumulados. Com o uso dessa expressão, meus amigos faziam também

certa crítica à ideia de que bastava estudar muito para ter sucesso e uma boa remuneração,

algo que a história de sua cidade tanto no passado como no presente mostrava não

corresponder necessariamente à verdade93. Talvez em função dessa constatação, eram muitos

93
Também não descartei de antemão a possibilidade de que a expressão surgisse ao menos em parte em função
da interlocução comigo, já que em pouco tempo pediam-me para falar mais do meu próprio trabalho como um
58

os que não concluíam os estudos, passando a trabalhar desde cedo e raramente voltando à

escola, ainda que recentemente parecesse estar crescendo o número de adultos que estudavam

à noite para terminar o ensino fundamental94.

O considerável fluxo de dinheiro circulando pela cidade, de todo modo, faz com que

as disparidades econômicas entre os lençoenses, por um lado, e os visitantes da região e os

forasteiros que para lá se mudam, por outro, tornem-se mais óbvias. Ainda que virtualmente

não exista população de rua em Lençóis, e a mendicância seja um fenômeno bastante raro e

limitado, não são incomuns os pedidos de pequenos empréstimos a pessoas cujas fontes de

renda não estão diretamente ligadas à economia da cidade, sejam moradores recentes ou

turistas que ali fiquem algum tempo e com quem o estabelecimento de uma breve amizade

permite essa liberdade. Esses empréstimos, normalmente entre R$ 10,00 e R$ 50,00,

dificilmente serão pagos, fato que em pouco tempo torna-se conhecido por ambas as partes,

ainda que o devedor certifique-se de mencionar sua dívida de tempos em tempos antes que a

passagem de alguns meses faça com que ela caia num esquecimento premeditado,

inaugurando a possibilidade de um novo pedido95.

De modo similar, espera-se de todos aqueles que frequentam as festas nas casas de

culto de jarê que auxiliem de alguma forma, as contribuições monetárias figurando como uma

dessas possibilidades, jamais explicitamente solicitadas mas sempre bem-vindas e recebidas

com agradecimentos e invocações de bênçãos. Faz-se necessário obter fundos com as pessoas

estudante de doutorado já tendo concluído a faculdade há um tempo considerável. Não conferi grande peso a
essa hipótese, de toda forma, já que presenciei o uso da expressão diversas vezes para falarem sobre muitas
outras pessoas e também em situações nas quais eu não estava diretamente ligado à conversa.
94
Vez ou outra, entretanto, alguém falava sobre um aluno que estudara sua vida toda nas escolas públicas de
Lençóis e com muita luta tinha passado no vestibular da Universidade Federal da Bahia para o curso de Direito,
o que me motivou a realizar uma palestra para os alunos cursando o último ano do Ensino Médio para lhes dar
detalhes a respeito de ações afirmativas existentes nas universidades da Bahia.
95
Esses empréstimos foram bastante comuns ao longo do meu trabalho de campo, especialmente pedidos por, e
feitos a, meus principais interlocutores na pesquisa. A prática, contudo, é bem mais ampla, não se restringindo
aos pesquisadores, e possivelmente possibilitada e consolidada dessa forma depois do advento do turismo em
Lençóis (Senna 1996: 38).
59

ligadas aos terreiros – aí incluídos os pesquisadores que por lá andassem – para financiar

diversos aspectos das cerimônias, fosse o pagamento de parte do transporte para os volumes

mais pesados até casas distantes, a compra de algum animal a ser utilizado numa cerimônia, a

aquisição de ornamentos ou gêneros alimentícios. Nenhum tipo de cobrança surge caso um

auxílio não possa ser disponibilizado numa ocasião qualquer, mas se uma promessa é feita é

possível que perguntem, à boca pequena, se o “faz-me rir” havia sido conseguido.

Se é verdade que o dinheiro pode ser um importante componente nas relações

estabelecidas entre os membros da religião e as demais pessoas que vão às casas de culto com

menor frequência – sejam pesquisadores, turistas, curiosos ou pessoas que desejam solicitar a

realização de algum procedimento místico –, tornando-se responsável pela aquisição de uma

informação, uma graça, um serviço ritual, não é o dinheiro de qualquer pessoa, e tampouco o

mobilizado de qualquer forma, que entrará nesse circuito. Estabelece-se uma relação

específica que conecta o dispêndio e seu realizador à comunidade da casa de culto, por mais

momentaneamente que seja, dificilmente funcionando como substituto às relações

interpessoais ali encetadas. Por mais que saibam precisamente o custo monetário envolvido na

realização de uma operação ritual, os membros do jarê resumem esse quadro ao não deixarem

de afirmar: “Dinheiro não conversa”. Ao mesmo tempo, por mais de uma vez contaram-me

histórias nas quais o pagamento relativo a um ritual foi integralmente devolvido a quem o

solicitara, a mando, por exemplo, de uma das entidades envolvidas no ato místico – para

descontentamento dos adeptos, como eles mesmos acrescentavam –, bem como casos nos

quais os espíritos diziam que guardariam para um momento posterior a indicação da

localização de mais diamantes para um garimpeiro, logo depois de lhes ter proporcionado um

achado confirmado.

O fato de que se comenta bem menos a respeito daqueles que fizeram fortuna com o

garimpo se deve a algumas razões distintas. Apesar de serem relativamente escassas, as


60

referências na literatura dão nota de vários garimpeiros e capangueiros que conseguiram

juntar grande quantidade de dinheiro ao encontrar diamantes de tamanho significativo e que

não gastaram de maneira extravagante tudo que ganharam. Como mencionado, a insistência

em caracterizá-los como esbanjadores tolos parece redobrar um sentimento compartilhado

muito mais pelos grandes pedristas, donos de serra, coronéis do diamante e seus descendentes

do que um lamento a respeito do passado, posto que alguns garimpeiros que vivenciaram

momentos de fortuna ontem e hoje ao longo de suas vidas afirmam: dada a chance, muitos

deles fariam de novo exatamente tudo aquilo que fizeram, proporcionando momentos, por

fugidios que fossem, de grande conforto e festejo para si e para os seus96.

Ao longo da história de Lençóis, se foi gasta maior quantidade de dinheiro com algo

que não tenha sido a companhia das mulheres-dama da cidade, é bem provável que tenha sido

com bebidas alcoólicas. O consumo de diversos tipos de bebidas é um dos passatempos

prediletos dos lençoenses, que cultivam certa predileção pela aguardente de cana97. É bastante

comum que todos tenham em suas casas ao menos uma “meiota”, correspondente a meio litro

de pinga – comumente aromatizada por revendedores locais e guardada em garrafas plásticas

originalmente usadas para água mineral –, e que a degustem diariamente. O hábito bastante

disseminado não se confunde, entretanto, com o problema do alcoolismo, que os lençoenses

reconhecem abater-se sobre algumas pessoas. Assim como nas épocas de declínio da

produção diamantífera, há alguns homens e umas poucas mulheres – incluindo alguns de

idade já mais avançada – que passam seus dias praticamente inteiros a beber, esvanecendo-se

96
Vários dos garimpeiros conhecidos que de fato fizeram fortuna mantiveram-na por terem deixado tudo para
trás e se mudado para bem longe (Ganem 2001: 71, 137). Constata-se que a atitude perdulária imputada aos
garimpeiros das serras afina-se mais com a disposição propalada pelos donos de garimpo (e seus biógrafos), ou
ao menos dificilmente parece ter sido exclusiva dos primeiros (Pereira 1910: 66; Moraes 1963: 36; Gonçalves
1984: 23; Ganem 2001: 85-87, 139).
97
Ocorrência atribuída ao caráter fronteiriço de comunidades como a garimpeira (Gonçalves 1984: 23), sendo
que em Lençóis é bem provável que aquilo que se escreveu sobre o uso de bebidas num estudo feito numa
comunidade rural de outro município da Chapada seja igualmente válido, a saber, que “quem não bebe[,] já
bebeu” (Brantes 2007: 35).
61

quaisquer economias e saúde que ainda cultivem, normalmente aglomerando-se nos, e diante

dos, armazéns nos quais podem encontrar um passante, conhecido ou não, que lhes pague

mais uma dose98.

Essa costuma ser uma situação que incomoda tanto os visitantes da cidade como seus

moradores, visto que se corre o risco de não se distinguir as pessoas que de fato apresentam

um problema com a bebida daquelas que a apreciam de maneira mais comedida – até porque é

frequente todas beberem juntas sem grandes problemas. O fato de que uma pessoa possa

verdadeiramente transitar entre os dois grupos também preocupa particularmente àqueles

interessados em lidar com o problema do alcoolismo na cidade, ao tentar evitar que ele

acometa especialmente os mais jovens – ainda que seja praticamente consensual o diagnóstico

de todos os envolvidos de que sua incidência se relaciona com uma determinada falta de

perspectiva de futuro que se agravou com o crescimento da economia do turismo, mas que

pode ser igualmente resolvida tanto com a participação adequada de toda a população em seus

frutos como por meio da influência familiar. Certa vez, enquanto caminhávamos de manhã

bem cedo pela cidade, Seu Gilson e eu fomos surpreendidos por uma algazarra feita por dois

jovens bastante novos que haviam bebido consideravelmente na madrugada anterior e ainda

não tinham voltado para suas casas. Quando o avistaram, os jovens recobraram a compostura

que foi possível e o cumprimentaram polidamente, ao que foram gentilmente aconselhados a

irem para suas casas. Seu Gilson logo em seguida me disse que já tivera de conversar com a

polícia em outra ocasião para que eles não fossem presos, prometendo às autoridades que os

meninos ficariam sob seus cuidados, passando-lhes em seguida um bom sermão para que

tomassem mais jeito – e terminou o relato fazendo questão de se certificar se eu havia notado

a maneira respeitosa como o haviam tratado.

98
Uma forma comum de se dizer, em geral de modo espirituoso, que sua situação financeira não anda muito bem
é afirmar que não se possui dinheiro nem para comprar cachaça.
62

Muitas pessoas bebem por gosto, mas aquelas que rotineiramente cometem excessos

podem fazê-lo por diferentes motivos, aí incluídos tanto a “falta de vergonha na cara” como

problemas de ordem mística, caso daqueles que “bebem forçado”. Se alguém, mesmo depois

de diversas medidas levadas a cabo por seus amigos e familiares, e mesmo depois de

empreender esforço pessoal genuíno para tanto, não consegue livrar-se do álcool, é grande a

possibilidade de que a presença de algum tipo de espírito seja responsável pelo vício.

Configura-se dessa forma um problema a ser apresentado a, e talvez resolvido por, líderes

religiosos do jarê, que podem prescrever diversas formas de tratamento para os aflitos, desde

remédios naturais, banhos e garrafadas, até rituais mais complexos a serem realizados ao

longo de diversos dias nas casas de culto – e que podem chegar a custar bastante caro –,

conforme cada caso. Todas estas medidas, que por ora não serão descritas em detalhes, irão

conectar em graus distintos os novos adeptos a seus curadores e casas de culto, consistindo

numa das principais formas de agregação aos membros do jarê99.

Nunca ouvi ninguém, contudo, acionar razões de ordem espiritual para justificar o uso

excessivo de drogas, problema considerado bastante grave pela maioria das pessoas da cidade.

Ao contrário, meus amigos ligados ao jarê diziam que um curador tomava especial cuidado

quando era procurado por alguém que buscasse atrelar a dependência química dessas

substâncias a qualquer razão mística, orientando-o em vez disso a procurar tratamento clínico

ou acompanhamento psicológico – mesmo porque arriscar-se a prometer a cura para algo que

poderia ser um vício pessoal ou uma “doença de médico” provavelmente não traria senão

maus resultados para o líder de uma casa de culto.

Não foi o turismo que trouxe por completo as drogas para a cidade, mas é bem

possível que tenha sido um dos responsáveis por ampliar a presença de algumas dessas

substâncias entre os lençoenses, alguns dos quais teriam contato pela primeira vez com a

99
O tema da bebida alcoólica, em especial a cachaça, igualmente retornará sob diferentes ângulos em todos os
demais capítulos da tese, nas seções 2.1, 3.2 e 4.4.
63

heroína, por exemplo. A maior parte dos turistas que vieram morar na região em busca de

estilos de vida alternativos, contudo, preferia o uso da maconha, costume que passou a ser

compartilhado por alguns dos nativos, em especial os mais jovens. Sua utilização em si não

gera maiores inquietações para muitos dos habitantes Lençóis, e a grande demanda por guias

que acompanhem o ritmo dos usuários – desejosos de fumar a erva envoltos pelas paisagens

naturais deslumbrantes da Chapada – fez com que muitos dos nativos também passassem a

cultivar o hábito. Os lençoenses que se envolvem com esse lado do turismo preocupam-se

mais com o fato de a produção e o comércio da erva serem ilegais e ocasionalmente

reprimidos pela polícia, o que faz com que ampliem o cuidado ao plantá-la e vendê-la, não

sendo, contudo, incomum ouvir falar de amigos e parentes que se encontram na cadeia, em

Salvador, por posse de quantidades significativas da droga.

O mesmo não pode ser dito, todavia, sobre a percepção que impera a respeito das

drogas que acabaram acompanhando o comércio da maconha, em especial o crack,

completando um mercado minimamente lucrativo e no qual em especial os moradores das

áreas mais empobrecidas e periféricas da cidade encontraram possibilidade de inserção. O uso

dessas pedras derivadas da cocaína é amplamente reconhecido pelos moradores da cidade

como representando um grave problema, e muitas são as histórias de pessoas que já tiveram

suas vidas arruinadas pela droga – ou de jovens que há pouco tempo ingressaram no mesmo

caminho. Os pontos de tráfico se distribuem nos bairros menos próximos do centro da cidade,

de acesso ainda relativamente fácil, e onde mora a maior quantidade dos seus usuários. É

comum que as pessoas na rua comentem, ao ouvirem rojões disparados fora de épocas

festivas, que aquele é um sinal de que um carregamento de drogas acaba de ser entregue

nesses bairros. Ainda que eu não tenha sido capaz de descobrir a exatidão dessa assertiva, em

geral feita acompanhada de um riso ligeiramente nervoso, é certo que a distribuição local do
64

tráfico cria também disputas territoriais entre os chefes das bocas de fumo, que podem

culminar em disputas letais.

Todavia, episódios públicos de violência não são muito comuns no cotidiano da

cidade, mostrando-se bastante chocantes quando acontecem. É possível caminhar pelas ruas

de Lençóis a qualquer hora do dia e da noite, valendo contudo alguma precaução especial por

parte de mulheres desacompanhadas que habitem a uma distância mais considerável da sede e

que precisem se distanciar das vias iluminadas para chegarem a suas casas. Pessoas que

venham de fora da cidade, em especial se forem brancas e aparentarem possuir dinheiro,

dificilmente serão alvo de qualquer tipo de violência, já que há certo receio de que eventos do

tipo possam prejudicar a reputação turística da cidade, o que colocaria em jogo sua fonte

quase exclusiva de renda. O único caso de que fiquei sabendo enquanto eu morava em

Lençóis havia sido protagonizado por um homem armado à faca que havia interceptado

grupos de turistas que percorriam uma trilha próxima. Conforme relataram, o assaltante

abordava todas as suas vítimas com um pedido de desculpas e justificava seu ato dizendo que

precisava de dinheiro para manter sua casa e sustentar seu vício em drogas, apertando-lhes as

mãos depois que os frutos do roubo lhe eram entregues.

Cria-se dessa forma um quadro no qual os principais alvos dos episódios de violência

que acontecem na cidade são seus próprios habitantes. Exemplifica-o o caso de um

assassinato que acontecera, certa noite, momentos antes de eu chegar a um dos bairros

periféricos de Lençóis, a caminho de um jarê numa casa mais afastada da cidade. Percebendo

que eu notara a comoção que se organizara no entorno, amigos que encontrei no local me

informaram que um senhor bastante idoso acabara de ser morto a tiros por alguns jovens que

haviam assaltado seu domicílio, sabendo que ali estavam guardadas suas economias –

estimadas em R$ 4.000,00, posto que ele recebera por muitos anos uma aposentadoria do

governo e gastava muito pouco em vida.


65

Houve uma espécie de onda de medo que se espalhou pela cidade quando a esses

eventos somaram-se o sequestro de uma menina de nove anos – filha de uma dona de pousada

na cidade, devolvida em troca de resgate –, bem como o estupro de um senhor também mais

velho residente de um povoado distante alguns quilômetros da sede do município. Por mais

que o surto tenha sido contido com ação policial, por vezes resultando em mortes dos

envolvidos, sua repercussão deixou a população temerosa tanto por sua segurança como pelos

efeitos que podia ter em sua economia, e é significativo o comentário que partiu de alguns

guias turísticos numa conversa da qual eu participava. Segundo eles, caso encontrassem com

algum desses criminosos sozinhos em meio a alguma trilha pela Chapada – posto que são

usadas por aqueles que as conhecem bem tanto para se chegar a esconderijos quanto como

rotas de fuga longe da observação– não hesitariam em lhes “passar o facão na garganta ali

mesmo”, dizendo que em seguida alegariam terem agido em legítima defesa para não irem

para a cadeia. Os guias avocam a si, de certa forma, o mesmo papel que tinham no passado os

garimpeiros que precisavam fazer justiça com as próprias mãos, considerando inclusive o

recurso a procedimentos místicos para não serem encontrados após o feito, caso isso fosse

necessário, remontando a episódios violentos da época do início do povoamento da região

bem como à atividade dos jagunços quando reinava o coronelismo.

1.3 Caminhos

A despeito dessas dificuldades, os habitantes de Lençóis normalmente levam vidas

bastante felizes e tranquilas, sem ignorar os obstáculos que lhes são apresentados, mas

fazendo todo possível para encontrar alternativas para lidar com eles. Possuem diversas

opções de lazer que cultivam com grande empenho e interesse, das mais rotineiras como
66

pequenos encontros para se jogar conversa fora às mais eventuais como festas e outros

eventos comemorativos. As crianças e os mais jovens mostram especial predileção por brincar

nas ruas e praticar esportes, especialmente o futebol, que mais costuma fazer sucesso, não

sendo incomum que torçam por times tanto de seu estado como para os de outros, como os do

Rio de Janeiro ou por vezes os de São Paulo. O campeonato anual entre os times locais dos

diferentes bairros e povoados da cidade é um evento de grande importância, durante o qual os

nativos se reúnem para torcer por seus favoritos.

Nessa chave, entretanto, a atividade mais praticada pelos jovens lençoenses, e uma de

suas mais importantes formas de socialização, é a capoeira. A academia de capoeira local

oferece aulas gratuitas para as crianças e jovens pertencentes à comunidade, e cobra

mensalidades dos demais alunos que porventura queiram se matricular, como turistas ou

forasteiros morando há pouco tempo na cidade. O mestre e os professores procuram atrelar o

ensino da arte e da luta ao incentivo de uma conduta moral que desestimule o consumo de

bebida alcoólica e que não oferece nenhuma tolerância ao uso de drogas por parte dos alunos.

Os professores de capoeira configuram para seus alunos a imagem de profissionais bem-

sucedidos, que participam de eventos importantes no país e fora dele, cuja postura exemplar

de disciplina e perseverança deve ser seguida tanto no mundo do esporte como fora dele.

A academia de capoeira funciona contando também com doações e auxílios

governamentais, obtidos com a ajuda de eventos promovidos regularmente na cidade e fora

dela. Os capoeiristas em geral realizam uma roda pública toda semana no prédio do Mercado

Cultural, localizado no Centro Histórico da cidade, aberta à participação da audiência e

contando com apresentação de lutas e encenação de números artísticos como o maculelê,

exibido ou com clavas de madeira ou com facões, quando estão envolvidos somente os atletas

mais experientes. Pouco antes do término desses eventos um dos representantes da academia

costuma tomar a palavra para falar um pouco do trabalho realizado pelos professores, indicar
67

aos presentes que ali se encontram todos os alunos que quiseram participar, não tendo sido

separados apenas os melhores para a garantia de um espetáculo público qualquer, e indicar

uma caixinha para recebimento de doações para a manutenção da academia e compra de

uniformes novos para seus alunos – enfatizando que os capoeiristas são pessoas pobres e

descendentes dos garimpeiros da região –, que em geral nunca deixa de receber contribuições

dos turistas presentes no local.

As rodas de capoeira constituem uma cena muito atraente tanto para os visitantes

como para os moradores da cidade, em especial em eventos maiores como encontros de

capoeiristas vindos de outras regiões ou batizados, nos quais os alunos receberão cordas

indicando sua passagem a um grau mais elevado, lotando o prédio do Mercado Cultural com

pais orgulhosos e espectadores entusiasmados. A academia Corda Bamba, ligada ao Grupo

Esquiva de capoeira, não se centra em um estilo regional ou angola de jogo, ensinando que os

capoeiristas devem dominar ambas as formas e suas técnicas. As rodas apresentam um

crescente de velocidade nos golpes, começando sempre com toques lentos e movimentos

bastante próximos do chão e terminando com lutas bastante velozes e acrobacias aéreas

executadas de modo desafiador, para deleite da plateia.

Somente dois lutadores ocupam o centro da roda durante cada embate, os demais

ficando posicionados sentados num círculo em torno deles e acompanhando os instrumentos

com canto e palmas, respondendo às músicas puxadas por um solista localizado junto aos

atabaques, pandeiros e berimbaus. Cada dupla luta por alguns instantes e deve se despedir

amigavelmente antes que se suceda a seguinte, que deve lhes indicar com um gesto seu desejo

de substituí-la – podendo ou não ser atendida de imediato. É possível que um lutador

intercepte a entrada da dupla seguinte caso deseje travar um embate com um dos capoeiristas

que já se encontra na roda, fazendo com que determinados atletas tenham muito mais tempo

de exposição que outros – que podem, por sua vez, mostrar-se frustrados ou resignados com o
68

fato de passar ainda mais tempo sentados na roda. Os organizadores do evento, em geral os

mestres de cada academia, fazem o possível para controlar esses excessos, ainda que haja

mais leniência com os capoeiristas mais hábeis, que oferecem apresentações mais ostentosas.

Existe igualmente a possibilidade de que um dos membros da dupla em destaque

indique, oferecendo sua mão para ser cumprimentado, que almeja encerrar o confronto e ceder

espaço aos próximos capoeiristas. Somente os atletas menos graduados e experientes ignoram

o fato de que essa é em geral uma manobra que pode se voltar contra ele, já que o primeiro

capoeirista pode estar apenas blefando com sua oferta de trégua e pode aproveitar a

oportunidade de ter seu adversário com a guarda baixa para lhe aplicar um golpe certeiro.

Ainda que em geral nas rodas de capoeira todos os golpes sejam desferidos sem objetivo de

que ocorra contato físico entre os lutadores – as pequenas vitórias lembrando muito mais os

ligeiros toques da esgrima ou mesmo só o reconhecimento mútuo de que uma pancada

poderia ter acontecido, atestando o desempenho superior de um dos atletas –, é possível que

choques sejam efetivamente desfechados, acidental ou propositalmente. Esse segundo caso é

mais comum entre capoeiristas de grande intimidade e habilidade similar, entre rivais que

encenam seus desentendimentos na roda ou, por fim e excepcionalmente, durante os

batizados, entre atletas com cordas de diferentes gradações que costumam aplicar quedas

controladas mas raramente executadas nos treinos, marcando a diminuição da ingenuidade

que se espera haver na passagem do aluno ao próximo grau.

As rodas de capoeira são também e sobretudo momentos de diversão para todos os

envolvidos, e após o último cumprimento coletivo ela cede lugar a uma roda de samba com os

praticantes. Inicialmente o mesmo esquema circular permanece, agora com todos levantados e

convidando os membros da audiência que desejarem participar a se unirem a eles. Ocupam o

centro, ainda se revezando, sempre um homem e uma mulher, encenando os passos de um

galantear. Enquanto ambos dançam e a moça costuma ignorar solenemente os cortejos do que
69

faz papel de pretendente, outro rapaz deve se intrometer e se colocar no lugar do primeiro

para dar continuidade à tentativa. O mesmo pode ser feito por outra mulher que substitua a

primeira, e as crianças são encorajadas a participar tomando o lugar de seus professores: nesse

momento ambos podem estar em pé de igualdade, até que um homem mais velho rompa o

meio do círculo e carregue o pequeno de modo cômico de volta para a beira da roda.

A importância concedida na capoeira – cuja escola na cidade leva o nome justamente

de Corda Bamba – à execução precisa de golpes e passos cadenciados ganha na região um

sentido adicional se conectada à estima que os lençoenses, acostumados a trilhar as serras

tanto no passado como nos dias de hoje, nutrem para com a atividade de caminhar, em suas

mais distintas faces. Enquanto os homens andam por longos trechos em seu trabalho diário, as

mulheres também se locomovem consideravelmente em seu cotidiano, seja para pescar, lavar

roupas ou buscar lenha. O mesmo pode ser pensado a respeito dos ditados, expressões e

considerações existenciais relacionados à ação de caminhar frequentemente escutadas entre os

lençoenses. É comum dizer de alguém confiável que se trata de uma pessoa que “pisa seguro”

ou possui “pé firme”, e para falar sobre a exemplaridade da conduta de uma pessoa basta dizer

que se “pisaria onde ela pisar”. Reproduzir as ações de alguém é querer “trilhar seu caminho”,

aproximar-se de alguém é “andar junto”, e obter vantagem às custas de uma pessoa é

“derrubá-lo”. Elogiar um comportamento comedido ou reprovar um afobado envolve lembrar

que “quem corre cansa e quem anda alcança”, e são muitas as referências que fazem para falar

de problemas na vida como obstáculos a serem transpostos num trajeto. Ao se deparar com

alguma dificuldade que poderia desanimá-lo, um amigo adorava dizer: “isso não é muro alto

que não dê para pular, nem rio fundo que não dê para atravessar”100.

100
A literatura registra de modo similar, entre outras expressões, por exemplo a que diz que “pé que não anda,
não leva topada” (Gonçalves 1984: 115), que é entendida na região como um incentivo a caminhar apesar das
adversidades.
70

A própria topografia da cidade tem nos inúmeros acidentes naturais uma marca

distintiva, acompanhando a geografia da Chapada. Localizada num vale no contraforte de

uma serra, Lençóis se formou e tem crescido espraiando-se por ladeiras rochosas que fazem

com que a locomoção diária por ela e seus arredores envolva quase verdadeiras escaladas. O

calçamento das ruas é no melhor dos casos feito com paralelepípedos – nos trechos em que

veículos mais pesados podem trafegar, como no que vai da entrada da cidade até a rodoviária

–, com um arranjo de pedras dos mais variados tamanhos101 – na maior parte da cidade,

incluindo o centro histórico, e dessa forma parte do conjunto tombado como patrimônio –, ou

ainda de terra batida ou mesmo do próprio afloramento da rocha – caso mais frequente na

periferia da cidade. Essas configurações tornam o chão das ruas consideravelmente

manipulável, não sendo incomum que moradores arranquem pedras do calçamento seja para

fincar algo na terra, por exemplo um mastro da bandeira durante épocas festivas, seja para

lhes conferir outro propósito temporário, como servir de calço ou degrau. Além desse hábito,

o próprio desgaste natural do calçamento e o estouro frequente de canos próximos à superfície

fazem com que se deparar com um funcionário da prefeitura encarregado de consertá-lo seja

evento corriqueiro.

O cuidado ao se caminhar por Lençóis e suas cercanias envolve prestar atenção não só

ao relevo como à presença de animais perigosos que ali vicejam, fortalecendo uma sensação

de instabilidade inerente ao percorrer suas vias e trilhas. Histórias de onças na região não são

tão comuns, ainda que longe de inexistentes, avistadas em geral depois de grandes incêndios

na Chapada. Encontros com ameaças peçonhentas, contudo, constituíam relatos habituais dos

nativos, que faziam todo possível para se livrarem de escorpiões muitas vezes encontrados em

suas casas. Há também insetos cuja ação nociva é muito temida, como o potó, que aparentam

ser pequenas formigas aladas que secretam uma substância cáustica que causa dolorosas

101
Cujo nome registra-se ser “espinha de peixe” (Ganem 2001: 99) ou ainda “cabeça de nego”, como me
disseram.
71

queimaduras, ou o cavalo-do-cão, grande vespa que se alimenta de aranhas maiores que ela

paralisando-as com um veneno que causa dor muito intensa em seres humanos102. Nenhum

animal é responsável por maior número de desventuras, todavia, do que as cobras que se

movimentam pelo território. Ainda que haja muitas espécies que não possuam veneno, ali

habitam, entre outras, exemplares das temíveis coral-verdadeira e cabeça-de-capanga103,

responsáveis por diversos acidentes e óbitos. Sempre que possível, quando se deparam com

uma dessas serpentes, os habitantes da região preferem matá-la para evitar a incidência de

mais ofensas, já que elas podem ser encontradas tanto nas trilhas turísticas como nas próprias

casas dos moradores, em especial as menos próximas do centro da cidade. Sua presença é um

motivo adicional para que a atenção que dão ao chão seja redobrada cotidianamente.

Tanto o padroeiro dos garimpeiros – cujo nome Senhor dos Passos ganha aqui um

sentido adicional –, como um ofídio figuram como protagonistas de uma das muitas histórias

contadas em Lençóis. Segundo uma de suas versões, conta-se que, ainda no início do

povoamento da cidade, um senhor português muito rico, de sobrenome Carvalho, proprietário

de grande parte das terras da região, doou para a Igreja o terreno no qual foi erguida a capela

de Senhor dos Passos, solicitando, contudo, que esta fosse construída com a frente voltada

para seu casarão. Como atender a seu desejo faria com que a capela ficasse de costas para

todo o restante da cidade, acharam por bem construí-la da forma como se mantém até hoje,

voltada para o Rio Lençóis e para a maior parte da cidade. Carvalho, enfurecido, evitou até o

fim de seus dias passar diante da capela, e morreu desgostoso, deixando sua única filha,

Ricardina, como herdeira. Quando, anos mais tarde, por motivos sobre os quais há

divergências, a sepultura do falecido foi aberta, em vez de encontraram ali seus restos mortais,

102
No primeiro caso, o Paederus irritans. No segundo, diversas vespas do gênero Pepsis.
103
Provavelmente Micrurus corallinus e Bothrops leucurus, respectivamente. A distinção correta da coral-
verdadeira para suas congêneres não venenosas só é possível de distâncias bem próximas, o que faz com que as
demais sejam igualmente evitadas.
72

os responsáveis se depararam com uma grande cobra – gerando um alvoroço posteriormente

acobertado por membros da Igreja. Essa cobra, prossegue a história, passou então a habitar

sob a Ponte dos Suspiros, ali se ocultando e ameaçando destruir toda a cidade num rompante

de fúria, algo que é impedida de fazer somente graças às duas passagens anuais do Senhor dos

Passos em procissão pela cidade – sendo fundamental que ele pise em sua cabeça ao cruzar o

rio. Ricardina viria a falecer bastante velha e sem muita lucidez, tendo se embrenhado por

uma trilha sem seu corpo nunca ter sido encontrado104.

Certo dia, Seu Gilson me disse que não estava andando com sua agilidade costumeira,

pois havia ferido o pé numa trilha no final de semana. Ainda que eu mal tivesse percebido a

diminuição no ritmo de seu passo, já que ele continuava a se locomover com muito mais

velocidade que eu pelas ruas da cidade, esse foi mais um momento em que constatei a grande

preocupação dos lençoenses com o chão e o caminhar, e que se traduz também numa atenção

aos pés e aos calçados, em particular. A maior parte das pessoas da cidade anda sempre

descalça ou com sandálias de borracha105, hábitos que adquiri depois que uma criança que já

tinha alguma intimidade comigo me perguntou se afinal de contas eu havia “nascido de tênis”.

As sandálias costumam ser retiradas quando se entra na casa de alguém e deixadas junto à

porta para que não se leve terra para os cômodos no seu interior, e repousadas com sua frente

apontando para o lado de fora. Não se deve, tampouco, deixá-las em nenhuma ocasião com as

solas voltadas para cima, como eu aprendi depois de ter tentado proteger do sol o calçado de

um amigo, sob risco de fazer mal à mãe de seu proprietário. Do mesmo modo, como me

disseram algumas pessoas, não é saudável dormir com os pés voltados para a porta de saída de

104
Essa é uma síntese baseada nas versões que ouvi e nas que estão disponíveis na literatura (Ganem 2001: 21-
24, 75-78; Brasil 2009: 27-32). Do solar que pertencera à família restavam hoje apenas ruínas, que fotografei a
pedido de um dos meus amigos que muito se interessava pela história, visto que em breve seriam demolidas de
vez para dar lugar a uma nova construção. Ver foto 10 no anexo III.
105
Ainda que a maioria possua também tênis e sapatos, estes guardados para os dias de festa na cidade e aqueles
sendo usados pelos guias em seu trabalho, diferentemente dos garimpeiros que preferiam sandálias de couro
(Gonçalves 1984: 55).
73

casa, assim como é ainda pior se as mãos forem deixadas cruzadas sob o peito, já que essa é a

posição que devem ficar os mortos.

Os nativos da Chapada costumavam fazer graça de figuras que trabalhavam em certos

órgãos públicos por costumarem andar somente de carro numa cidade tão pequena como

Lençóis. O próprio hábito de caminhar é por eles valorizado como algo que ajuda a lhes dar

saúde e lhes conferir grande longevidade, da qual se orgulham particularmente106.

Ultimamente professores de educação física têm investido no grande talento que demonstram

as crianças da cidade para a corrida, aproveitando a única parte relativamente plana e com boa

pavimentação da cidade – o calçadão da balaustrada na margem do rio que corta a cidade, de

piso recentemente reformado – para treinar ao longo do dia, em geral sob um sol escaldante,

resultando em sua participação em disputas até mesmo fora da região. Muitos são os

moradores que contam em torno de um século de vida, e há vários idosos que procuram

manter o hábito de caminhar pelas serras. Contaram-me certa vez a respeito de uma senhora

que, de idade já bastante avançada e sem nenhuma condição de caminhar, pôs-se um dia de pé

e insistiu em caminhar sem ajuda até o rio para lavar roupas – algo que ninguém acreditou que

seria capaz de fazer. Finda a atividade, que provavelmente exigiu todas as suas forças, deitou-

se ali e não mais levantou, enfim descansando, plácida107.

A caminhada provavelmente mais esperada pelos habitantes da cidade é a que

acontece rumo à feira da cidade todas as segundas, ainda que mais recentemente aconteça

uma versão menor às sextas108. Antigamente hospedada no grande galpão vazado que hoje

106
Ainda que as idades que apresentam (Ganem 2001: 33, 58, 61, 64, 76, 93) possam nem sempre corresponder a
uma contagem de anos precisa, já que é comum oferecerem datas aproximadas para seus anos de nascimento, a
valorização da longevidade é uma constante na percepção dos próprios lençoenses, atribuída também a uma
alimentação saudável e à participação contínua na vida da comunidade (Gonçalves 1984: 98, 222).
107
As considerações aqui tecidas a respeito do caminhar reaparecerão em conexão com o jarê na seção 4.4.
108
Desde que se tem registro, a feira em Lençóis acontece às segundas (Pereira 1910: 47; Moraes 1963: 156).
Disseram-me que esse dia foi escolhido para se adequar às feiras que já aconteciam em outros dias da semana
nas cidades próximas, Lençóis tendo se integrado ao circuito preexistente.
74

abriga o chamado Mercado Cultural, a feira de Lençóis foi movida para uma área

consideravelmente mais distante do centro histórico, no qual a infraestrutura turística da

cidade se concentra cada vez mais. Se essa modificação foi vista com maus olhos por grande

parte da população, a ida à feira não deixou de ser o principal evento semanal no qual todos se

encontram, fazem compras, conversam e bebem por longas horas, quando o tempo e os

compromissos da semana assim o permitem. A feira se distribui pelo novo prédio construído

para ser o Mercado Municipal – no interior do qual há também pequenos bares explorados por

moradores – e principalmente por uma área ao ar livre ao redor dele. Ali são vendidos não só

diversos gêneros alimentícios como utensílios domésticos, calçados, vestimentas, discos

compactos e digitais, com filmes e músicas.

Todos se dirigem à feira carregando sacolas de palha chamadas de mocós ou bocapios,

usadas por homens e mulheres nas mais diversas ocasiões e para carregar todo tipo de objeto.

Não é comum haver preços dispostos nos produtos à venda, o que faz com que possam flutuar

de acordo com a disponibilidade, a época, o horário em que a compra é feita e a relação

pessoal estabelecida entre vendedores e compradores, que em geral se conhecem há muitos

anos. Tanto os preços como as pesagens das quantidades compradas podem ser barganhadas,

e eu comecei a entender melhor esse funcionamento quando passei a acompanhar a

proprietária da pousada onde inicialmente me hospedei em suas idas semanais à feira. Dona

Juanita circulava por um bom tempo pelas diversas barracas, comprava os mesmos produtos

com diferentes feirantes no mesmo dia, ia e voltava de vendedor em vendedor. Aí estão

envolvidos não só a procura por melhores preço e qualidade dos alimentos, mas também um

investimento nas relações mantidas com as pessoas. Comprar com os amigos pode importar

tanto quanto – ou até mais que – o valor da compra em si, já que não é qualquer um que faz

por merecer o dinheiro de uma pessoa.


75

A única atividade provavelmente tão importante na feira quanto fazer as compras

semanais é se atualizar a respeito das novidades. A fofoca é uma arte bastante estimada em

Lençóis, continuamente exercitada e envolta numa série de diretrizes de adequação, sendo a

primeira e mais comum delas afirmar que qualquer comentário feito sobre alguém não tem

por objetivo denegrir a pessoa. “Eu não estou falando mal de ninguém, mas dizem que...”109, é

a fórmula que antecede todo comentário que poderia soar como uma injúria. Nem toda

conversa gira em torno de fofocas, mas a predileção por repassar histórias menos usuais

ouvidas de terceiros caracteriza a atividade de “dar sotaque” ou “fazer fuxico” que, de todo

modo, é sempre ouvida com uma dose de cuidado110. Estando a própria acuidade dos fatos em

suspensão contínua – sempre se comentava como era difícil ter certeza de até que ponto um

causo esbarrava no exagero –, é também raro que os fuxicos gerem grandes desentendimentos

entre os envolvidos – até porque cortar relações com alguém bloqueia ainda mais o acesso à

opinião da pessoa em questão, o que a deixaria ainda mais livre para falar todo tipo de

inverdade111.

A fofoca também funciona como uma forma de se transmitir informações de maneira

indireta a alguém, já que não é sempre que uma pessoa deseja assumir o ônus de ser taxada de

“sotaqueira” ou “prosa ruim”. Um amigo certa vez veio me contar uma fofoca que havia sido

feita a meu respeito, que chegara a seus ouvidos contada por outro amigo em comum. O

primeiro justificou a necessidade de me transmitir o que se passara dizendo que, sabendo de

nossa proximidade, o outro amigo jamais teria lhe contado a fofoca se não quisesse que ela

chegasse aos meus ouvidos. Com o tempo muitas pessoas se acostumam a ser alvo de fuxicos

109
A construção efetivamente enunciada possui a forma “diz-se que” ou “diz’que”, identificada em – e seguindo
a grafia proposta pela – pesquisa realizada no município de Chapada Gaúcha, interior de Minas Gerais, que faz
limite com o estado da Bahia (Carneiro 2010: 23-24).
110
As ligações entre essa atividade e sua correspondente mística no jarê serão exploradas no capítulo 4, na seção
4.1.
111
Como já se disse uma vez em outro contexto, no candomblé “as pessoas não cortam relações. Continuam se
visitando e difamando umas às outras” (Fichte 1987: 56).
76

e comentários dos mais variados tipos – e até também a fazê-los na mesma medida –, o que

levou uma brilhante senhora, de quem falarei mais detidamente no próximo capítulo, a cunhar

um bordão repetido por muitos na cidade. Sempre que perguntavam como ela estava

passando, respondia sem titubear: “Vou bem, meu filho. Estou na paz de Deus e na língua do

povo”.

Fazer fofoca de maneira compulsiva e indiscriminada, contudo, arrisca ir além do

aceitável entre os lençoenses. Quando se referem à discrição que se fazia por vezes necessária

para o bom convívio, costumam usar o ditado sintético: “Olho viu, boca: pio”, cuja

sonoridade é também uma brincadeira com o nome das sacolas anteriormente mencionadas. O

fato de morarem numa cidade bastante pequena também leva algumas pessoas, especialmente

os mais jovens, a recorrerem a códigos e linguagens cifradas para falar a respeito de pessoas

que podem estar próximas o suficiente – caminhando numa praça, no banco ao lado ou ainda

numa mesa adjacente no mesmo bar – para que ouçam o que está sendo dito sem que se deem

conta de que é delas que se está falando. Essa parece uma versão da prática bastante difundida

entre os mais velhos de falar acerca de pessoas e situações caracterizando os envolvidos

sempre de maneira bastante indireta: “aí ela chegou lá – aquela, você sabe, né?”; “quando ele

apareceu aqui – aquele do irmão que esteve aqui esses dias, entendeu, né?”; “disseram que ela

foi sozinha até lá – lá onde a gente passou aquela vez, lembra?”. Ao fazê-lo, entretanto, via de

regra o falante procura se certificar de que seu interlocutor está seguindo as referências

indiretas que faz, ainda que a confirmação nem sempre seja assegurada e possa gerar novas

versões do que se ouviu. De todo modo, essa é uma maneira que encontram para limitar a

capacidade de proliferação das histórias por outras pessoas, já que somente de posse das

referências que permitem o preenchimento das lacunas propositais é que se é capaz de

identificar com precisão os envolvidos112.

112
Os efeitos dessa forma descritiva para a escrita etnográfica serão abordados no próximo capítulo, na seção
2.2.
77

Há também, é claro e de qualquer forma, pessoas que, a depender da situação, não têm

receio de dizer o que pensam, o que não significa que estejam com isso falando qualquer coisa

que dê na telha. Um grande amigo, famoso por gostar de fofoca – não coincidentemente um

dos meus mais importantes interlocutores no trabalho de campo –, costumava dizer a respeito

do assunto: “Minha missa é de corpo presente”. Com isso, queria dizer que não hesitava em

fazer um comentário a respeito de alguém na frente da própria pessoa. Para ser mais preciso,

isso não significava tanto que ele não falasse de ninguém a não ser que a pessoa em questão

estivesse presente, mas que, fosse o caso de falar abertamente com alguém sobre algo que

essa pessoa pode não gostar (como uma crítica feita a ela), ele não teria receios de fazê-lo –

algo que de fato eu pude constatar algumas vezes.

Conversar, de maneira geral, é uma prática à qual os nativos dedicam boa parte de seu

tempo livre e sua atenção. Em qualquer reunião, se permanecerem todos em silêncio por mais

que alguns segundos, gera-se visível apreensão, a quietude em último caso pode ser quebrada

com uma exortação dirigida a alguém ou ao grupo de modo geral: “Conversa, gente!”. Ao

caminhar pelas ruas da cidade espera-se que os amigos parem para conversar sempre que

possível, no mínimo oferecendo seus cumprimentos de passagem – mesmo que isso signifique

somente dar um grito rumo ao interior da casa de um conhecido quando se passa diante dela,

sem precisar esperar resposta. Quando há tempo para uma conversa mais detida, nas quais

podem contar seus causos com mais calma, os lençoenses demonstram não gostar de

sofreguidão, algo que fica patente em seu estilo de falar bastante cadenciado. Se um ouvinte

busca apressá-los, arriscando palpites sobre o desenrolar de uma história que está sendo

contada, riem e acrescentam sempre: “Assunta”. Costumam dar preferência a histórias

inusitadas e com desfechos engraçados, felizes em arrancar gargalhadas de sua plateia, por

sua vez motivada a contar novos causos enquanto houver tempo e disposição para que sejam

ouvidos.
78

1.4 Criatividades

Os lençoenses possuem um senso de humor bastante aguçado, que gostam de

empregar especialmente em jogos de palavras, brincadeiras com a sonoridade – seja por

aproximações fonéticas entre palavras distintas, seja pela entonação que dão ao falar e ao

empregar interjeições – e especialmente com expressões de duplo sentido que possuam cunho

sexual. Até um simples “vai na frente, que eu vou atrás” durante uma caminhada pode ser

interpretado como provocação amistosa, tanto mais engraçada quanto o alvo da brincadeira ou

não se dê conta dela ou, ao contrário, lhe dê importância demasiada e passe a resmungar ao

longo do trajeto. O desenlace mais almejado, entretanto, se dá quando o alvo reconhece a

pilhéria e retruca com uma própria, dando continuidade à graça. O Iphan e o Ibama, para dar

outro exemplo, são apelidados de modo jocoso de Infame e Imbroma (ou Ibrahma)113.

Especialmente entre as pessoas mais jovens e com maior contato com os turistas, é comum

brincar trocando os nomes de determinados locais e ocupações para lhes conferir, de modo

propositalmente irônico, um ar de sofisticação. Em vez de fazerem feira, dizem que “vão ao

shopping”; no lugar de passarem o fim de semana na roça, se divertem dizendo que irão “se

retirar para o sítio”; em vez de dizerem que moram na periferia da cidade, falam sobre seus

“condomínios fechados” afastados do centro; no lugar de comerciantes, apresentam-se como

“empresários”.

Se essas são gozações feitas mais frequentemente entre amigos, há aquelas encenadas

sobretudo diante de turistas, diante dos quais há entre os nativos um pacto informal de não

delação. Quando se aproximam de turistas que se mostram amistosos, os jovens nativos

gostam de criar outras histórias de vida para si, e testar quão consistentes podem fazê-las

113
Piada atribuída à antipatia da população diante da ação fiscalizadora dessas entidades (Brito 2005: 225), outra
amostra do humor que é há muito atribuído aos habitantes da região (Moraes 1963: 68 nota **; Senna 1998:
202).
79

parecer sob o escrutínio de estranhos. Assim é que podem mudar seus nomes e sobrenomes,

dizer que nasceram em outros estados ou países tendo depois se mudado para Lençóis,

afirmarem que são artistas locais ou donos de estabelecimentos comerciais, fazerem

aniversários em datas coincidentemente próximas ao dia presente. As alterações dificilmente

são monumentais, fornecendo nomes próximos dos seus, dizendo-se originários de países nos

quais sua cor de pele não causaria estranhamento (uma moça dizia ter nascido no México mas

vindo muito nova para o Brasil e tendo sido aqui adotada, daí não ter um bom espanhol; um

rapaz costumava dizer que era descendente de italianos – mas da Calábria, o que justificava

sua pele morena). Só depois de algum tempo fui descobrir, por exemplo, quando ele me

contou, que um desses jovens ainda cursava sua graduação em pedagogia, e não a pós-

graduação a que tinha feito referência assim que fomos apresentados, depois de ter descoberto

minha escolaridade.

Uma dimensão importante desse tipo de ação realizada por jovens lençoenses seria

perdida caso eu as apresentasse aqui como uma mera forma fantasiosa e compensatória de

invenção, que seria colocada em marcha para que eles tentassem atingir um mundo fora de

seu alcance efetivo, trazido cotidianamente para suas memórias e imaginações não só pelos

meios de comunicação como pelo próprio contato com turistas de diversas partes de globo.

Em lugar disso, prefiro conferir aqui ênfase à potencialidade criativa que demonstram ao fazê-

lo, vendo nas ações de elaborar, contar e testar os limites dessas histórias a possibilidade de

vivenciar uma realidade distinta da sua, por mais que o façam de maneira parcial, artificial e

temporária, sem falsear a alegria e a diversão que elas efetivamente lhes proporcionam. Nada

garante que essa predisposição autofarsesca, além disso, não faça parte de um conjunto de

medidas de criação de uma história pessoal da qual podem passar a se orgulhar, e que ela não

seja igualmente reversível, como bem exemplifica o que se passou com um desses meus

amigos. Desde bastante novo ele havia optado por mudar informalmente seu sobrenome, já
80

que ele é negro e o compartilhava com a família tradicional de maior reputação escravocrata

na região. Essa medida foi, contudo, repensada quando outro jovem, capoeirista, com o

mesmo sobrenome que ele tinha anteriormente, tornou-se protagonista de um filme lançado

em todo o país e que chegou a receber prêmios internacionais114.

Quase todas as pessoas na cidade têm ou já tiveram algum apelido, e muitas delas

passam a ser conhecidas quase que exclusivamente por eles. Eles costumam derivar ou de

algum evento ocorrido quando se era mais novo, ou de alguma peculiaridade em sua

aparência, ou ainda de algum traço de sua personalidade. Os forasteiros que passam a habitar

na cidade também costumam recebê-los, bem como os visitantes que passam mais tempo em

Lençóis. Um dos meus preferidos foi o que conferiram à promotora pública, uma moça de

aparência asiática vinda de São Paulo e conhecida por seu temperamento invocado apesar da

baixa estatura: em pouco tempo ficou conhecida como “Tsunami”. Não demorou para que

também me dessem alguns, o principal deles e que facilitava meu reconhecimento e atribuição

a um lugar de origem distinto da Chapada foi o de “Carioca”, mas as pessoas com quem

passei a ter mais intimidade preferiam chamar-me mesmo pelo nome ou por alguma variação

afetuosa dele.

Qualquer pessoa, seja homem ou mulher, e qualquer seja sua idade, pode ser chamada

de forma indistinta de “moço”, da mesma forma como em outras partes do país se usa “cara”.

A alcunha pejorativa mais ouvida cotidianamente é a de “xibungo”, que em princípio designa

o homossexual do sexo masculino mas na prática é muito mais usado de forma jocosa entre

amigos próximos ou mesmo provocativa de pais para filhos – mas dificilmente no sentido

inverso. Pais e mães costumam chamar seus filhos pelos termos de parentesco pelos quais eles

próprios devem ser chamados, independentemente do sexo da criança. Assim, um pai pode

chamar seu filho ou filha de “pai” e uma mãe pode chamar seu filho ou filha de “mãe”, o

114
O longa-metragem Besouro, superprodução dirigida pelo publicitário João Daniel Tikhomiroff, sobre o qual
falarei um pouco mais no capítulo 3, seção 3.3.
81

mesmo se estendendo aos tios e avós, mas todo esse procedimento só costuma acontecer

quando estão se dirigindo a crianças, o que evidencia nele certo caráter pedagógico. O mesmo

acontece entre os membros de um casal assim que passam a ter filhos, o marido podendo

chamar a esposa por “pai” e esta o chamando por “mãe”, especialmente diante dos próprios

rebentos.

O falar local é colorido por uma série de interjeições usadas com grande frequência

para indicar espanto, surpresa, ironia, aborrecimento, repulsão ou menosprezo. Entre essas se

encontram muitas que remetem ao catolicismo popular, muitas vezes ditas em tom de

deboche, como “Ave, Maria...”, “Maria, valei-me...”, “Deus é mais...”, “vixe...”. Outras

usadas com os mesmos sentidos mas que não derivam do universo religioso são “qual...”, “lá,

ele...” e “ôxe”, por vezes empregadas sozinhas como resposta seca a uma pergunta

considerada tola ou a uma provocação qualquer. Nenhuma dessas é tão corriqueira e

importante no processo comunicacional, contudo, quanto as interjeições praticamente não

vocabulares que servem de comentário a qualquer enunciado – são espécies de ‘sintomas

atitudinais’115 –, podendo ser grafadas como “hum-hum-hum”, emitidas em glissandos

crescentes para demonstrar inquietação e decrescentes no caso de reprovação. O uso correto e

frequente dessas interjeições caracteriza o início da aquisição da capacidade linguística local

pelos forasteiros, mesmo porque elas parecem sintetizar um estilo mais circunspecto e conciso

preferido pelos nativos ao lidar com gente de fora.

Há outras expressões utilizadas regionalmente que evidenciam o fato de Lençóis ser

uma cidade povoada por contingentes populacionais oriundos tanto do litoral da Bahia como

do interior de Minas Gerais. Levar a cabo uma ação apesar do cansaço, ou sendo obrigado a

tanto, é fazê-lo “a pulso”, enquanto empreender uma atividade com gosto e de maneira

115
Evidenciam um “estrato puramente emotivo da linguagem” e “diferem dos procedimentos da linguagem
referencial” por “sua configuração sonora” específica, contendo sons que podem não ser encontrados alhures na
mesma língua (Jakobson 1960: 122-124).
82

copiosa é fazê-lo “lerdo”. Esperar por muito tempo é mencionar que já se está num local “da

hora”, enquanto dar uma resposta negativa é feito em geral partindo da hipótese contrária sem

precisar completar o raciocínio. Justifica-se o não comparecimento a uma festa, por exemplo,

dizendo-se: “Se eu não fui convidado...”. De alguém que se mostra obstinado com um assunto

qualquer diz-se que está “incutido”, enquanto uma pessoa que bebeu demais fica “travada” –

forma especialmente interessante de se referir ao ébrio, enfatizando sua dificuldade de

locomoção. O substantivo vicário por excelência é o “trem”, e fazer algo a mando de outrem é

agir de modo “teleguiado”.

O comportamento dos teleguiados salta aos olhos durante os períodos eleitorais, que

são chamados, literalmente, de o “tempo da política”. É esperado que nessa época as

rivalidades aflorem e as pessoas tenham discussões acaloradas, do mesmo modo como se

pressupõe que estas – ou ao menos sua face pública – sejam menos enfatizadas após o término

das eleições, para a manutenção do bom convívio. Seria um engano pensar a partir dessa

constatação que a maior parte dos lençoenses não se interessa pelos rumos políticos que seus

representantes eleitos buscam conferir à cidade, sendo costume citarem com orgulho o fato de

já terem feito uma denúncia de impedimento que resultou na destituição do prefeito Otaviano

Alves Filho, em 1996, no último ano de seu mandato. Uma amiga disse, por exemplo, ficar

colérica – ainda que jamais o demonstrasse no momento em questão – quando supunham que

o povo da cidade poderia ser facilmente manipulável no tempo da política, e que essa atitude

era certeira para se perder uma eleição. Se nem sempre têm estômago para discutir posições

políticas e candidatos de sua preferência, ainda mais fora de anos eleitorais e com pessoas

com quem não possuam intimidade116 –, todos podem recitar os candidatos em quem votaram

116
Por vezes é só depois de muitos anos de convivência que se descobrem preferências eleitorais, já que elas
podem permanecer propositalmente fora das conversas de modo a não se tornarem motivo de conflito –
especialmente quando as posições políticas do interlocutor são desconhecidas (Goldman 2006: 127).
83

para cada um dos cargos de cada pleito, e não é incomum o hábito de, ao se lembrarem de

eventos passados, contarem o tempo de frente para trás listando seus governantes.

Mesmo fora do tempo da política, não é incomum que as pessoas façam referência a

seus representantes e os interpelem cotidianamente, afinal de contas geralmente todos se

conhecem em pessoa, ainda que por vezes só minimamente. Da mesma forma, se interessam a

respeito dos rumos das decisões estaduais e nacionais que sobre eles podem por vezes possuir

impactos bastante diretos, em especial as que envolvem programas de redistribuição de renda,

fomento à cultura e preservação do patrimônio, motivos pelos quais o governo Lula da época

era constantemente elogiado e o municipal colocado em dúvida, já que o prefeito Marcos

Airton, conhecido como Marcão, sempre citava a demora do repasse das verbas devidas pela

União e pelo estado quando questionado sobre problemas na infraestrutura da cidade –

especialmente no tocante à saúde.

Como mencionado, a prefeitura é uma das principais geradoras de empregos,

comparativamente bastante estáveis, na cidade, dispondo de cargos de confiança e posições

nomeadas disputados pelos possíveis apoiadores da campanha, bem como verba a ser

empregada para eventos de lazer e fomento de atividades culturais. Os representantes de

diversas manifestações artísticas e folclóricas da cidade estão acostumados a solicitar

financiamento para realização de encontros e apresentações, dinheiro que de todo modo

afirmam dever ser destinado a eles – seja em função das políticas governamentais, seja como

retorno pelo voto e pelo apoio concedido nas eleições. O problema da arrecadação de

impostos agrava-se graças ao sentimento bastante difundido entre a população de que o seu

dinheiro passa pelas mãos do poder público apenas para que este retenha dele uma

porcentagem. O marido de Dona Juanita, Seu Joaquim, igualmente proprietário da pousada na

qual eu me hospedara e dono de uma pequena venda no centro da cidade, me dizia ser muito

danoso o fato de o resultado das eleições ser divulgado três meses antes da posse do novo
84

prefeito, já que caso fosse eleito um partido da oposição, a administração atual ainda disporia

de muito tempo para esvaziar os cofres públicos antes de chegar a termo: “E noventa dias

roubando da manhã até a noite dá o mesmo que cento e oitenta dias normais, praticamente

meio ano roubando”, me dizia ele com seu gosto por sempre quantificar as avaliações que

fornecia.

Muitos dos habitantes de Lençóis estavam já um pouco acostumados, o que não

significa dizer resignados, com a relativa escassez de investimentos públicos nos anos em que

não havia eleições. Como comentavam, a deterioração de ruas e estradas tornava-se mais

visível, aconteciam menos contratações, os salários podiam atrasar. Ao perguntar a um amigo

por que a nova estação rodoviária ainda não havia sido inaugurada, já que eu acompanhara o

final das obras ao longo de alguns meses e ela finalmente parecia estar completamente pronta,

ele me respondeu – depois de ter zombado da minha ingenuidade – que ainda não tínhamos

chegado no tempo da política, mas que a inauguração não passaria do ano seguinte, quando

haveria eleições. Em função desses hiatos, a ênfase reinante não recai sobre a obrigação de o

prefeito eleito governar para toda a população e ao longo de todo mandato: considera-se que

aqueles que o elegeram é que são tanto os maiores beneficiados pelas benesses da

administração como os maiores responsáveis por suas falhas.

A realização de festas e eventos de boa qualidade era, para muitos lençoenses, um dos

mais importantes quesitos na avaliação do desempenho da administração pública. Esses

eventos eram igualmente ocasiões nas quais o prefeito e seus correligionários aproveitavam

para fazerem discursos e se promoverem, bem como prestarem contas diante da população a

respeito de eventuais deficiências que saltassem aos olhos. Havia uma verdadeira carreira a

ser seguida na função de apresentador de festas e eventos, ocupada sempre por homens que

tivessem uma pronúncia clara e cuja voz amplificada pela incontornável aparelhagem de som

não fosse desagradável aos ouvidos. Sua habilidade em listar patrocinadores de modo quase
85

infindável e bajular os membros do poder público antes de lhes passar a palavra só não era

superada pela irrelevância à qual grande parte da população parecia já os ter confinado,

exercendo uma audição seletiva para ficarem atentos a qualquer novidade.

Ao longo de meu trabalho de campo pude acompanhar as reações de alguns de meus

amigos sobre os primeiros dois anos da administração do prefeito Marcão, que um deles me

disse poder ser resumida pela sigla FFF: “Faixa, festa e foguete”. Segundo eles, a ação da

prefeitura se resumia a realizar festas esporádicas para tentar, sem sucesso, distrair a atenção

da população para longe das situações críticas da saúde e da educação no município; a

alardear com comemorações a realização de inaugurações e eventos que não eram senão parte

de sua obrigação; a propagandear de modo enganoso os feitos do governo. Duas faixas, por

exemplo, foram alvo de inúmeras piadas. A primeira, erguida próximo a um dos postos de

saúde da cidade, dizia “A população de Lençóis agradece à Prefeitura pelos avanços na

Saúde”, enquanto se comentava que era sabido que os investimentos na área de saúde tinham

diminuído, médicos e profissionais da área demitidos, e que havia sido o próprio poder

público que se tinha arrogado a missão de se elogiar. A segunda, erguida logo no início de

uma obra que só viria a ser concluída anos mais tarde e com outra função, rezava: “O sonho

dos lençoenses tornou-se realidade: banheiros públicos em Lençóis”, o que os levou a

ridicularizar a tentativa de dar por pronta uma obra que mal tinha saído do papel. Os dizeres

nessa faixa forneceram por bastante tempo munição para ridicularizar a prefeitura,

mencionando ironicamente que a população não sonhava com mais saúde e educação, e que

se sua aspiração era ter banheiros públicos, o prefeito devia achar que “o sonho dos

lençoenses era mesmo uma merda”. Em novembro de 2010, Marcos Airton Alves de Araújo,

o prefeito Marcão, foi preso pela Polícia Federal na chamada Operação Carcará, deflagrada na

Bahia contra o desvio de verbas federais e fraudes em licitações. Sem saber se teria sua

candidatura impugnada ou não, Marcão concorreu à reeleição em 2012, perdendo o pleito


86

para sua adversária Moema, cuja vitória significou, de todo modo, um retorno das famílias

tradicionais ao poder, já que ela é esposa de um ex-prefeito de Lençóis.

1.5 Profusões

O cenário da vida em Lençóis foi-se descortinando ao meu redor de forma lenta, e não

foi senão depois de alguns meses morando na cidade que pude ter certeza que seria capaz de

ali desenvolver o trabalho de campo necessário. Como forma de começar a estabelecer laços e

entabular alguma rotina diária pela cidade, assim que cheguei entrei em contato com Olivia

Taylor. Conheci essa inglesa – já há 15 anos habitando em Lençóis, e uma das muitas

forasteiras que tinha decidido se mudar para a cidade – por meio de uma indicação de uma

amiga do doutorado, que tinha ouvido falar do trabalho social voltado às crianças da região

que Olivia incentivava. Dona de uma pousada localizada num bairro periférico da cidade,

Olivia começara a dar reforço escolar a algumas crianças do bairro Alto da Estrela, numa ação

que se ampliou com a compra de uma casa aos fundos de sua pousada onde passara a

hospedar e oferecer refeições gratuitamente a voluntários – muitos deles estrangeiros com

algum conhecimento de português – que se ocupassem em fornecer reforço escolar e noções

de sociabilidade às crianças nos períodos em que estas não estivessem na escola.

Assim tiveram início as atividades da Casa Grande, nome escolhido por Olivia para o

local, e cuja inadequação, por fazer referência às antigas moradas senhoriais, ao menos de

início lhe escapava – como depois viriam a me dizer alguns amigos. Enquanto a maior parte

dos voluntários morava na casa e preparava atividades para os turnos da manhã e da tarde –

desde listas de exercícios a jogos e recreação –, optei por me vincular só parcialmente ao

funcionamento da Casa Grande de modo a ter tempo para realização da pesquisa, dando aulas
87

somente no período da tarde e ao longo dos seis primeiros meses da minha estadia em

Lençóis. Fazê-lo me ajudou não só a manter uma rotina ao longo das primeiras semanas117

como, percebi posteriormente, contribuiu para diminuir nos moradores do local o

estranhamento inicial com a minha presença, permitindo que eu circulasse por uma região da

cidade à qual eu dificilmente teria acesso sem suscitar indagações – mais tarde me diriam que

à primeira vista imaginavam que eu era um médico, em função não apenas dos óculos como

da cor da minha pele, comentário feito sem que se alongassem no assunto.

As caminhadas que fazia pelo Alto da Estrela logo passaram a ser interceptadas pelas

crianças que sempre cumprimentavam o “professor”, ou “prô”, diante de outros membros de

suas famílias, muitos dos quais eu passaria a conhecer com o tempo. O fato de finalmente

haver outro brasileiro dando aulas na Casa Grande era visto por eles com certa satisfação,

ainda que alguns também se ressentissem ao ver que muitas das lições aprendidas por seus

filhos, sobrinhos e netos acabavam por afastá-los da experiência comum na qual vinham

sendo criados – já que Olivia fazia questão de incentivar o uso correto da língua e estimular

determinadas noções de higiene pessoal e cortesia que muitas vezes conflitavam com a

realidade que vivenciavam em seus próprios lares.

Alguns episódios que vivi com as crianças da Casa Grande vieram a adquirir um outro

sentido depois de uma maior convivência com seus pais e os demais habitantes da cidade.

Chamava atenção o modo como por vezes se comportavam diante de situações nas quais

experimentavam certos quadros de abundância, como podia acontecer, por exemplo, quando

era possível proporcionar merendas em dias excepcionais – já que o orçamento flutuante das

doações das quais o local dependia não permitia sua oferta cotidiana – ou mesmo brindes ou

outros objetos em quantidade significativa. No gosto com que as crianças vivenciavam um

momento de fartura havia mais do que o prazer de o fazerem longe do olhar controlador dos

117
Esse constitui um dos primeiros passos no trabalho de campo, parte necessária dos processos etnográficos de
invenção e contrainvenção (Wagner 1975: 17-20).
88

pais – que constantemente nos lembravam que, apesar de pobres, ali não havia miseráveis. Se

as ideias de fome e carência não devem ser de todo descartadas, tampouco pareciam

responsáveis pela atitude exibida pelas crianças nessas ocasiões, quando o mais comum era se

abarrotarem rapidamente dos itens disponíveis para em seguida se deleitarem com a sensação

de estarem fartos. Nas raríssimas vezes em que algum aluno dizia estar com fome, fazia-o

muito mais como quem pede um agrado, além da atenção dos voluntários, logo abandonando

o assunto, ao ser lembrado que mais tarde lancharia em sua casa, e voltando a brincar.

Não custa recordar a já mencionada ética da suficiência por meio da qual os

garimpeiros são aqui caracterizados como alternativa à interpretação dos donos das serras,

para quem os trabalhadores não teriam a competência necessária para poupar e enriquecer.

Não é que os nativos não sejam capazes de poupar: ao contrário, muitos de meus amigos

trabalhavam e juntavam dinheiro de forma lenta, durante meses ou anos a fio – ainda que seu

objetivo possa ser o de gastar em muito pouco tempo tudo que juntaram, com festas, viagens

ou períodos maiores sem trabalhar. Muitos lençoenses afirmam que serem capazes de

experimentar de modo temporário situações de fartura, seja por surtos de enriquecimento

repentino, seja por acumulação vagarosa, faz com que possam se empenhar em suas

atividades cotidianas com a perseverança que lhes é característica118. Penso que não seria ir

longe demais dizer que, ao agirem dessa forma, os descendentes dos garimpeiros continuam a

exercitar uma aversão específica aos efeitos danosos que possuem as diversas formas de

excessos tão prezadas pelos pedristas e coronéis do passado e pelos empresários ambiciosos

do presente. Recordam-se de modo bastante vivo os conflitos e mortes geradas pela

exploração desmedida do diamante, e comentam constantemente a respeito das falhas de

118
Parece-me emblemático o que disse um garimpeiro que havia enriquecido e depois perdido praticamente tudo,
ao ser entrevistado por um dos cronistas da cidade que lhe perguntou o que faria caso encontrasse um novo
tesouro: “Respondeu sobranceiro que faria o mesmo, sem tirar nem pôr, e que não tinha arrependimento, pois,
embora passageiramente, havia proporcionado todo conforto e felicidade à família” (Ganem 2001: 139, ênfases
adicionadas).
89

caráter impressas nas pessoas criadas “tendo tudo do melhor (e mais caro) quando o bom já

bastaria”, e jamais sendo contrariadas: tornam-se egoístas, mesquinhas, caprichosas,

presunçosas.

As festas são ocasiões privilegiadas para que se perceba o modo como o equilíbrio

entre a abundância e a parcimônia deve ser experimentado, especialmente pelas crianças em

momentos específicos – por exemplo, diante de mesas cuidadosamente arrumadas com

comidas e bebidas. Trata-se, assim, de momentos igualmente pedagógicos, nos quais não só

têm contato com a possibilidade de se portarem com voracidade como, justamente por isso,

devem praticar comedimento e temperança, ao menos transitoriamente. Um dos principais

temores dos pais é que seus filhos sejam propensos a “dar calundu” – quando, em função de

vontades incontidas, fazem pirraça, gritam e se recusam a obedecer e a se comportar –, ao que

costumam ser rigorosa e exemplarmente castigados.

Uma das festividades mais importantes do ano em Lençóis é o São João, celebrado no

dia 24 de junho – ainda que comemorado desde bem antes, cujos preparativos estavam em

pleno vapor assim que cheguei à cidade, no final de maio. Para a maior parte da população,

ainda que o valor religioso da festa seja grande, ele em parte empalidece diante das

comemorações seculares, com dias dedicados a espetáculos musicais, barracas de comidas e

bebidas típicas (especialmente o quentão, feito tanto com vinho como com cachaça),

fogueiras acesas nas ruas diante das casas – que funcionam como ponto de encontro para

enfrentar o frio que nesses meses relembra a altitude da cidade –, brincadeiras tradicionais –

como o pau-de-fita, o pau-de-sebo, o casamento na roça e a quebra do pote –, além da

incontável miríade de foguetes, bombinhas e estalinhos estourados em grandes quantidades a

qualquer hora do dia ao longo das semanas que antecedem a comemoração.

Nenhuma dessas atividades, contudo, é tão esperada quanto as apresentações das

quadrilhas, que acontecem à noite nos dias que antecedem o Dia de São João. Lençóis abriga
90

diversas quadrilhas, em geral organizadas de acordo com os bairros de residência de seus

moradores – ainda que haja exceções, como a quadrilha composta somente por mulheres

casadas ou a reservada apenas para homens que se vestem como mulheres para dançar, cujos

membros em geral pertencem também às quadrilhas dos bairros. Os ensaios das quadrilhas

aconteciam semanas antes de suas apresentações, coordenados pelos puxadores de cada uma,

e em geral em lugares fechados ou remotos, longe dos olhos dos conjuntos rivais, já que a

maior parte se inscreve numa competição organizada pela prefeitura para premiar a melhor

apresentação, fazendo com que os passos ensaiados e sua sequência sejam segredo ciosamente

guardado. Além de um prêmio monetário, em geral revertido pela quadrilha vencedora na

realização de uma festa em seu bairro-sede, uma quadrilha costumava ser convidada para

repetir sua apresentação em distritos ou mesmo em outras cidades próximas, e todos se

lembravam da ocasião na qual uma quadrilha havia sido agraciada com uma viagem para

Salvador para lá reproduzir seu espetáculo.

O estardalhaço noturno causado pelos ensaios das quadrilhas chamou minha atenção,

levando-me a perguntar a Seu Gilson e a Seu Joaquim se haveria alguma possibilidade de

participar de uma delas – sem saber muito, à época, sobre sua relevância considerável para os

nativos. No sábado seguinte Seu Joaquim me levou à casa de Carminha, organizadora daquela

que provavelmente era – eu descobriria mais tarde – a mais importante quadrilha da cidade,

que havia passado a se apresentar sem participar da competição de conjuntos por tê-la vencido

já por vezes demais. Seu Joaquim me apresentou e perguntou se havia alguma vaga em seu

grupo, frisando que se ela pudesse me aceitar isso consistiria um favor pessoal a ele – algo

que um lençoense não diz de forma frívola. Carminha, mais conhecida nessa época do ano

como Xuxa Preta, deixou claro, ainda que de forma gentil, que a quadrilha era uma dança

muito difícil e importante, e que não sabia se meu desempenho estaria à altura do de seu

pessoal. Ela não pareceu muito tranquilizada quando eu lhe disse que já havia participado de
91

quadrilhas em minha época de escola, mas permitiu que eu comparecesse aos primeiros

ensaios depois que sugeri que ela poderia me retirar do grupo se eu não conseguisse

acompanhar os movimentos.

Foi durante os ensaios diários dessa quadrilha que conheci muitas das pessoas que

viriam a estar entre meus melhores amigos em Lençóis. A quadrilha de Carminha, chamada

Bicho-do-Mato, ensaiava quase todas as noites ao longo de algumas semanas antes do São

João, e seus membros eram em geral moradores do Alto da Estrela, coincidentemente o

mesmo bairro no qual se localizava a Casa Grande. Minhas tentativas de aproximação com os

integrantes da quadrilha, sempre bastante tímidas no início, surtiam pouco efeito, e vários

eram os indícios de que muitas das pessoas ali reunidas não tinham por mim qualquer

simpatia, para dizer o mínimo. O fato de eu ser um branco e forasteiro – em ambos os casos, o

único no grupo –, que conseguiu obter um lugar na mais disputada quadrilha local, pesava

contra mim quase tanto quanto a possibilidade de que meu desempenho em público fosse

pífio e desgraçasse a ilibada reputação da Bicho-do-Mato – e à noite eu era assombrado pela

dificuldade dos passos que me eram apresentados, em especial o complexo “transmichê”.

Os ensaios eram conduzidos de modo bastante rigoroso pela puxadora, e frequentados

de modo inconstante por diversos de seus participantes, até porque muitos trabalhavam ou

estudavam à noite. O clima de expectativa diante da apresentação que se aproximava

aumentava a cada dia, especialmente depois que Carminha anunciou que gostaria de fazer

desta uma execução particularmente memorável já que na ocasião ela completaria 25 anos à

frente da quadrilha, tendo começado como sua puxadora quando tinha apenas 17. Os

membros do conjunto acompanharam também as dificuldades enfrentadas na confecção das

roupas uniformizadas, que só ficaram prontas minutos antes da concentração final, bem como

as constantes alterações na seleção e ordem dos passos a serem efetivamente realizados

durante a apresentação – escritos e reescritos por Carminha muitas vezes ao longo dos dias –,
92

já que ela não tinha certeza se deveria arriscar a execução de algumas das transposições mais

complexas e demoradas, simultaneamente frisando a importância de não deixar de lado os

passos que simulam o trabalho no garimpo – já que sem ele nada daquilo existiria hoje em

dia119.

Só mesmo no dia de nossa apresentação fui capaz de acertar todos os passos que

haviam sido ensaiados, mas igualmente fundamental foi o fato de não haver esmorecido

durante a exaustiva rotina de movimentos, que começava com uma longa caminhada por toda

a cidade, desde a academia de capoeira localizada no Alto da Estrela até o Teatro de Arena,

onde dançaram as quadrilhas. Ao final do espetáculo, que teve grande sucesso, o conjunto foi

convidado para comer e beber na casa do prefeito, e durante essa confraternização é que pela

primeira vez meus colegas perguntaram meu nome, já que até então eu era conhecido somente

por “Carioca”, assegurando-me, sem fazer questão de esconder sua surpresa, que eu havia

“jogado duro”. Os membros da Bicho-do-Mato mostravam-se intrigados para saber não só a

história de como eu ingressara na quadrilha, mas um pouco mais a respeito do motivo que

tinha me levado até Lençóis, o que me deixou mais confortável para mencionar pela primeira

vez de modo mais direto meu interesse em conhecer o jarê.

Os contatos que estabeleci a partir de então, somados à convivência com outros

moradores do Alto da Estrela em função do trabalho na Casa Grande, levaram-me a procurar

morar num local mais próximo dos amigos que começava a fazer. Seu Gilson me certificou

que o mais natural seria alugar uma casa naquele bairro, dizendo-me que lá moravam também

muitos de seus parentes e que se tratava de uma vizinhança bastante amistosa. Após três

meses despedi-me da pousada na qual estivera hospedado até então e me mudei para a casa na

119
O “caminho do garimpo” consistia num passo em que os homens simulavam a subida às serras – carregando
consigo apetrechos de garimpeiros, em especial a peneira –, a lavagem do cascalho, a descoberta do diamante e o
retorno para a casa. O passo equivalente realizado em seguida pelas mulheres consistia em sua ida ao rio para
lavar roupa, repetido diversas vezes já que esqueciam o sabão, peças de roupa ou o lixo a ser recolhido.
Movimentos como esse, que faziam graça das atividades cotidianas empreendidas pela população da Chapada,
aconteceram nas apresentações de quase todas as demais quadrilhas.
93

qual permaneci pelos nove seguintes, depois de ter sido tranquilizado a respeito de Seu Gilson

sobre sua localização – já que ela ficava praticamente ao lado do principal ponto de tráfico de

drogas da cidade, o que, como era esperado, de fato não resultou em nenhum grande

incidente.

O Alto da Estrela localiza-se na encosta de uma serra, ao longo de uma das

extremidades da sede do município de Lençóis, configurando-se numa região dificilmente

visitada pelos turistas, de parca infraestrutura – só algumas de suas ruas são calçadas,

raramente são limpas por varredores da prefeitura e a coleta de lixo só atende um ponto do

bairro –, ainda que possua saneamento básico, por mais que precário, e iluminação pública e

abastecimento de água adequados. É eminentemente residencial, contando com pequenos

comércios locais e uma quadra normalmente usada pelos jovens para jogar futebol. Ao longo

do dia crianças dominam as ruas, brincando e soltando pipas, aproveitando ser aquele um dos

pontos mais altos da cidade120. Alguns de seus moradores também se referiam ao bairro como

“Alto das Estrelas”, por vezes emendando um comentário a respeito do brilho pessoal dos que

lá haviam nascido e se criado – seu estrelismo redobrando aquele característico dos

orgulhosos nativos de Lençóis. É também ali que se localiza a academia de capoeira Corda

Bamba, que foi selecionada como Ponto de Cultura e funciona como centro de reuniões

comunitárias. O Alto da Estrela é, por fim, local de moradia e ponto de encontro de diversas

das pessoas envolvidas com o jarê, cujas histórias serão apresentadas ao longo dos próximos

capítulos.

120
O nome do bairro parece derivar da serra na qual ele cresceu, chamada, de acordo com a literatura, de “Alto
da Estrela do Céu” (Pereira 1910: 55), em função de, nas primeiras horas da noite, ser ali que o sol se põe e surge
Vênus, lembrando um “brilhante engastado no topo escuro das rochas” (Moraes 1963: 122, 126 nota 2). Como
outros bairros periféricos da cidade, sofreu movimento pendular de crescimento e quase desaparição ao longo
das décadas, acompanhando a demografia de Lençóis (Senna 1996: 55). Ver fotos 11 e 12 no anexo III.
94

Capítulo 2 – Dançar

Não tenho pai, não tenho mãe


Lá na mata eu me criei
Com a idade de doze anos
Meu pai era africano
Que sina trouxe eu

2.1 Negritudes

“Elias? Esse aí, quando morrer, o corpo vai numa caixinha de fósforos, porque na

carreta vai a língua de mais de metro...” A fama de conversador que o precedia foi só um dos

muitos motivos que levaram a minha proximidade com Elias, esse jovem lençoense que em

pouco tempo se tornou um de meus melhores amigos na cidade. Nos conhecemos,

coincidentemente, em meu primeiro dia em Lençóis, uma sexta-feira na qual ele trajava

branco e portava dois colares de contas dessa mesma cor – algo que devia ser feito no dia da

semana dedicado a Oxalá, ele me informou. Meses depois, quando estávamos mais chegados,

ele me diria que só tinha se dignado a me responder naquele dia por ter ficado intrigado com o

rapaz tímido que parecia a toda hora “pedir desculpas só por abrir a boca”. Elias jamais se

envergonhou de ter atitudes que muitas vezes escandalizavam os estratos mais conservadores

da cidade: sempre foi um sujeito debochado, de humor por vezes sardônico, sem medo de

dizer o que pensa a quem quer que seja. Simultaneamente, Elias guarda um respeito que beira

a devoção pelas pessoas mais velhas da cidade, demonstrando pelos seus conterrâneos

interesse e paciência exemplares.

Elias é um dos filhos mais novos de João da Jia, conhecido garimpeiro, falecido vítima

de um câncer, cujo apelido deriva dos filhotes de rã que costumava caçar para vender. João da
95

Jia e sua esposa Niraci tiveram ao todo quinze filhos, sendo apenas onze os que sobreviveram

à primeira infância. Seu pai desejava que os três filhos homens não se tornassem garimpeiros

como ele, tendo feito todo possível para estimular sua permanência e aplicação na escola, para

que chegassem um dia a cursar a faculdade e se tornassem professores. Enquanto um seguiu a

mesma carreira que tinham seu pai e seu avô, os outros dois conseguiram se formar no Ensino

Médio, um feito considerável e comemorado na realidade da cidade. Entre estes estava Elias,

que como muitos de seus irmãos e irmãs foi batizado com um nome bíblico – sua família

praticamente toda com o tempo tendo se tornado evangélica. Elias sempre foi muito próximo

de uma de suas tias, chamada Alba, que considerava como sua segunda mãe, entre outros

motivos pelo fato de ela ser a única pessoa fora seu pai que não havia se convertido e que

continuava, como ele, a se interessar pelas práticas tradicionais e histórias da cidade,

principalmente as que envolviam a herança mística do jarê.

Quando cheguei a Lençóis, Elias contava 28 anos, e residia junto de sua companheira

no bairro do Lavrado, apesar de ter morado por quase toda vida no Alto da Estrela, onde podia

ser comumente encontrado ao longo do dia por ali continuarem a viver muitos dos membros

de sua família, bem como muitas de suas amigas e comadres. Passamos muitas tardes

conversando sentados à sombra de um pé de mulungu diante da casa de sua mãe, e fui me

acostumando com seu jeito característico. Sempre falador, inteirado das novidades e

conhecedor das histórias e ligações entre as pessoas que eu mal começava a conhecer, Elias

ironicamente gostava de comentar como “quem conversa muito dá bom dia a cavalo”. Por

vezes mencionava, algo resignado, sobre como sofria certa discriminação na cidade – que,

segundo ele, já havia deliberado e decidido a respeito de sua orientação sexual, pois, ele dizia,

desde muito novo sempre possuíra um tom de voz mais agudo e nasalado, uma risada alta e

contagiante, e jamais fizera questão de se comportar como se supõe deva ser o exemplo da

masculinidade. Apesar de morar já há alguns anos com uma amiga de longa data e a quem se
96

referia – em tom sempre mais sério do que a ocasião requeria – como sua namorada ou

esposa, justificava o fato de ainda não terem filhos exemplificando a mudança repentina – e

para pior – na vida de muitos dos seus amigos e amigas depois que tiveram filhos ainda muito

jovens e sem qualquer segurança financeira, e lembrava, fazendo sempre enrubescerem alguns

dos presentes, que a Secretaria de Saúde distribuía camisinhas gratuitamente a quem quisesse.

Quando era mais novo, Elias havia participado do Movimento Avante Lençóis, um

coletivo formado em 1995 para acompanhar e dar publicidade à denúncia popular que

culminou no impedimento do prefeito da cidade, Otaviano Alves, no ano seguinte. O Avante

(“que significa ‘para frente’”, Elias sempre emendava) nasceu com objetivo de reivindicar

melhorias nas condições de vida dos habitantes de Lençóis, promovendo reuniões

comunitárias e publicando com alguma periodicidade um jornal homônimo com ampla

circulação pelo município, incluindo a zona rural. As edições do jornal Avante geravam

grande repercussão e participação popular, suas reportagens e entrevistas sendo feitas pelos,

com e para os próprios moradores da cidade, e no dia em que eram lançadas corriam por

várias casas nas quais eram lidas avidamente pelos lençoenses. Assim como o movimento, o

periódico não era visto com a mesma simpatia pelo poder constituído, já que com o tempo

tinha se tornado foco privilegiado para manifestação das insatisfações dos moradores com as

deficiências da administração pública por eles percebidas – e se imaginava que os

representantes eleitos levavam em conta que o que havia acontecido com o prefeito anterior

poderia em último caso se repetir.

Elias era um dos jovens que assinava artigos no jornal Avante, revisados pela

jornalista responsável que supervisionava sua edição. Recebia, pelo trabalho mensal, uma

ajuda de custo no valor de R$ 60,00, gastos quase todos com material de cuidado pessoal com

seu pai, a essa altura já bastante debilitado e acamado pela progressão de sua doença. Mesmo

assim, João da Jia não se mostrava contente com a participação do filho no movimento, já que
97

tinha ligações com pessoas por vezes criticadas pelo Avante. De qualquer modo, Elias não foi

dissuadido de continuar a escrever textos que apontavam os muitos problemas pelos quais a

cidade sem dúvida passava, mesmo sabendo que em função disso poderia vir a sofrer sérias

represálias das figuras importantes da política local. Temendo por sua segurança, a jornalista

então responsável pelo Avante decidiu, para enorme contragosto de Elias, afastá-lo do jornal,

fazendo com que o movimento se enfraquecesse ao perder um de seus mais corajosos e

notórios articulistas.

Algum tempo depois, contudo, os textos que havia assinado para o jornal chamariam a

atenção de alguém próximo de seu pai mas de quem Elias ainda não era tão íntimo. Carlos de

Almeida Toledo, chamado por Elias e sua família invariavelmente de Carlão, visitava Lençóis

por longos períodos desde o início do ano de 1998, sua vivência na cidade servindo

igualmente de base para a realização de um detalhado trabalho acadêmico na área de

Geografia Humana pela Universidade de São Paulo121. Carlão se tornara um amigo próximo

de João da Jia, o importante garimpeiro vindo a ser um de seus principais interlocutores na

pesquisa a respeito do trabalho nas assim caracterizadas Lavras Baianas. Quando seu pai veio

a falecer, Elias encontrou forças após um período de luto para finalmente vir a aceitar o

convite que vinham lhe fazendo Carlão e a companheira deste, Tati, para ir morar com os dois

em São Paulo e investir nos estudos, para tentar passar num vestibular e ingressar numa

faculdade – o curso de História sempre tendo exercido sobre ele algum fascínio –, de modo a

concretizar assim o sonho que seu pai nutrira em relação a ele, de que um dia se tornasse

professor.

Elias morou em São Paulo na casa de Carlão e Tati junto com três outros jovens de

Lençóis que também eram próximos do casal e haviam igualmente aceitado a mesma oferta,

ainda que em pouco tempo um deles acabasse por preferir começar a trabalhar em vez de se

121
Resultando em especial em suas excelentes dissertação de mestrado (Toledo 2001) e tese de doutorado
(Toledo 2008).
98

dedicar aos estudos. Enquanto as duas moças foram aprovadas em faculdades particulares e

realizaram seus cursos com ajuda de empréstimos e financiamentos, Elias estava decidido a

ingressar numa universidade pública – principalmente por não desejar onerar ainda mais seus

anfitriões, que já lhe proporcionavam aulas particulares para suplementar o preparo do curso

pré-vestibular que frequentava. Depois de diversas tentativas, contudo, Elias não teve êxito

em nenhum dos vestibulares em que se inscreveu ao longo de dois anos, mas pretendia

continuar tentando apesar das dificuldades do cotidiano – como a separação de Carlão e Tati –

que se impunham. A notícia da morte repentina de sua tia Alba, contudo, fez com que ele

decidisse retornar para Lençóis para estar junto de sua família. De sua experiência morando

numa metrópole Elias guarda muitas histórias, tendo frequentado alguns candomblés paulistas

e cursos sobre religiões afro-brasileiras e história do continente africano na Casa das Áfricas e

como ouvinte na Universidade de São Paulo. Repetia assim uma experiência similar que

tivera em Salvador, quando lá morou por alguns meses acompanhando um tratamento de

saúde de sua companheira, tendo conhecido algumas das casas de culto da capital.

Ao retornar para Lençóis, Elias se mostrou inconsolável com o falecimento da tia que

também havia lhe criado e que era a última pessoa de sua família que ainda compartilhava de

interesses similares aos seus. Lamentando o fato de não ter podido estar com ela há bastante

tempo, bem como sua desaparição tão súbita, vítima de um ataque cardíaco fulminante

quando parecia gozar de boa saúde, Elias mergulhou em sua mágoa e passou por um período

de muitas atribulações, do qual prefere não lembrar. Quando enfim procurou retornar ao

cotidiano e seguir em frente com sua vida, encontrou nos amigos e na família o apoio

necessário para tornar a se habituar ao cotidiano da cidade e buscar trilhar um caminho

diferente daquele que levava tantos jovens lençoenses a desperdiçar seu potencial em meio às

dificuldades às quais estavam todos sujeitos.


99

Apesar de trabalhar ocasionalmente em funções ligadas à economia do turismo na

cidade, dando diárias como garçom, ajudante de cozinha (sendo ele mesmo um ótimo

cozinheiro) ou jardineiro, Elias é mais conhecido pelos habitantes da cidade como um jovem

contador de histórias e pesquisador informal do passado não escrito de Lençóis, autodidata e

diletante – no sentido, principalmente, de apaixonado por aquilo que faz. Desde bem novo ele

se dedica a (e se fascina em) conhecer a fundo e conversar demoradamente com os moradores

mais antigos da cidade, tendo ao longo dos anos reunido inúmeros relatos que ocasionalmente

anota de forma pouco sistemática mas que conserva na memória de maneira tão afetiva

quanto prodigiosa. Por vezes é chamado por algum professor da rede local para proferir falas

em suas aulas, especialmente após a aprovação da lei de ensino de história da África.

As atividades desenvolvidas pelo Movimento Avante, do qual Elias fez parte, não se

limitaram à mobilização pela moralização da vida política da cidade. Além do jornal que

durante muito tempo foi seu carro-chefe, de início mimeografado e depois passou com

edições diagramadas com relativa regularidade122, em 1997 foi criada a rádio comunitária

Laúza – remetendo-se em especial ao sentido de “barulho” que a palavra carrega, ainda que

seu significado de “algazarra” e “desordem” usado cotidianamente esteja presente –,

possibilitada pela transformação do Avante numa associação civil estruturada. A Laúza teve

seu funcionamento interrompido inúmeras vezes por órgãos governamentais que alegavam

falta de concessão adequada, obtida em definitivo no ano de 2000. Até os dias de hoje, a rádio

comunitária continua sendo o único meio de comunicação de massa regular da região de

Lençóis e adjacências completamente produzido localmente.

No interior do Avante – que em geral continua a ser referido como um substantivo

masculino por ter surgido e continuar a defender sua caracterização como um “movimento” –

estruturaram-se também diversos outros projetos de dimensões variadas, e houve alguma

122
O jornal Avante foi publicado a partir de 1995 ao longo de quase dez anos, com periodicidade próxima a
bimestral, totalizando 51 edições, algumas delas com tiragens de até 1.500 exemplares.
100

profissionalização das atividades que deixaram de ser feitas inteiramente por voluntários

quando foi possível remunerar de alguma forma as pessoas que a ele se dedicavam

diariamente e em muitos casos de forma exclusiva. A obtenção de mais recursos, possibilitada

pela transformação em associação, permitiu também a compra de um terreno no qual foi

erguida uma sede própria chamada Canto do Povo, no bairro do Tomba, construída em

mutirão por seus habitantes e garantindo a concentração das atividades, antes espalhadas pela

cidade em imóveis alugados ou emprestados. Apesar de a publicação do jornal ter sido

suspensa em 2005 por falta de maneiras de custeá-lo, além da rádio funcionam hoje no espaço

do Avante diversos cursos e oficinas de capacitação, bem como uma biblioteca comunitária e

um laboratório de computadores com acesso à internet disponível à população. O Canto do

Povo funciona igualmente como centro de estímulo à organização comunitária, tendo

impulsionado a mobilização dos habitantes do bairro que resultou em melhorias na

urbanização do entorno, sua iluminação, distribuição de água, saneamento e calçamento.

Entre os anos de 1999 e 2001, contudo, foi tomando forma uma divergência entre

pessoas que formavam o núcleo deliberativo do Avante, relacionada tanto às formas de

financiamento disponíveis para a instituição quanto aos rumos de sua atuação política. Alguns

deles desejavam expandir as possibilidades de obtenção de recursos para a associação,

ansiando, por exemplo, pleitear para ela o título de Organização da Sociedade Civil de

Interesse Público, fornecido pelo Ministério da Justiça, que auxiliaria a participação do

Avante em editais públicos e lhe abriria novas oportunidades de conexão junto ao governo –

algo que se coadunava com as propostas igualmente defendidas pelo mesmo conjunto de

pessoas de deixar de ter uma posição marcadamente crítica diante da atuação do poder

público na cidade e de trocar o nome da associação, considerado desgastado. Os outros

membros ligados à coordenação do Avante, ao contrário, não desejavam ter de submeter seus

projetos à deliberação daqueles que justamente estavam empenhados em combater,


101

defendendo que se manterem independentes em relação ao governo era fundamental para

desempenharem os objetivos basais do movimento – continuando a alinhar a intervenção

comunitária representada pelos projetos à reivindicação política da qual ele tinha se originado.

Sem a existência de um consenso que permitisse atender às expectativas do primeiro

conjunto de pessoas, do qual a companheira de Elias fazia parte – ainda que não numa função

de liderança –, estas resolveram se separar da associação Avante Lençóis e constituir uma

pessoa jurídica distinta com base em dois projetos que, somados, deram o nome que a nova

organização possui até hoje: Grãos de Luz e Griô. De um lado, a iniciativa Grãos de Luz

surgiu com a distribuição de uma sopa comunitária no bairro do Alto da Estrela,

posteriormente acrescentando a seu rol de atividades o reforço escolar e oficinas de

artesanato, como um todo precedendo e vindo a ser encampada pela nova organização. Já o

Projeto Griô surgiu desde o começo no interior do Avante, vindo a ser capitaneado por um

casal de forasteiros que se estabelecera na cidade, Lílian Pacheco e Márcio Caires, inspirados

no nome francês “griot” dado à figura do sábio africano, que lhes foi apresentada pelo

etnólogo austríaco Christian Ardaga Widor, participante do projeto123.

A imagem do griô foi fruto de elaboração contínua pelos participantes do projeto,

passando a ser definido como um mediador do diálogo entre o ensino formal e o informal

recebido em comunidades tradicionais, reverberando com um ar de familiaridade em

ambientes nos quais mães e pais-de-santo, mestres de capoeira ou rezadeiras, por exemplo,

recebiam destaque enquanto guardiões e transmissores de um saber oral mantido ao longo de

muitas gerações. O Grãos de Luz e Griô, mais conhecido na cidade simplesmente por

“Grãos”, passou a contar com diversas fontes de financiamento, muitas oriundas de editais

governamentais, vindo a se tornar primeiro Ponto de Cultura (um espaço de articulação das

ações do Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura) e posteriormente Pontão

123
Como informa a tese de doutorado dedicada ao estudo da associação daí surgida, que de outro modo silencia a
respeito de praticamente toda a história de sua constituição (Barzano 2008: 52).
102

(articulando Pontos de Cultura em âmbito nacional). No início de minha pesquisa era comum

que mencionassem ou me dirigissem à sede do Grãos no Centro Histórico de Lençóis, onde

alguns dos mães e pais da cidade deixavam seus filhos alguns dias por semana para

participarem de suas atividades regulares, e cheguei a visitá-la algumas vezes, antes de vir a

saber que o sucesso do Grãos está longe de ser uma unanimidade – por mais que o trabalho lá

realizado seja bastante sério124.

Tanto Elias quanto sua companheira, bem como outros amigos que vim a fazer,

haviam se dedicado a trabalhar na nova associação quando os projetos foram desmembrados

do Avante, mas com o passar do tempo e seu crescimento progressivo foram vendo

concretizados alguns dos receios que seus antigos colegas haviam esboçado para justificar sua

discordância quanto às mudanças de rumo da associação. O Grãos foi se burocratizando e se

tornando centralizador na mesma medida em que via serem aprovadas suas participações em

editais e crescer seu orçamento, resultado direto da habilidade de Lílian, a quem muitas

pessoas se referiam como uma “projetista”. Do núcleo que a havia acompanhado na saída do

Avante, metade das pessoas abandonou a nova associação depois de algum tempo, sentindo-

se cada vez mais alijados dos processos decisórios e desgostosos com as direções que o Grãos

tomava, capitulando cada vez mais diante da lógica que domina os editais públicos de

financiamento, regida pela apresentação de produtos e quantificação de resultados, algo cada

vez mais distante, segundo a visão dessas pessoas, do ideal de transformação local com o qual

os projetos tinham sido inicialmente desenvolvidos. De acordo com uma dessas pessoas,

apesar de não ter sido afastado do Grãos por decisão da coordenação, esse conjunto foi se

sentindo “moralmente coagido” a abandoná-lo.

Apesar de seus líderes enfatizarem a importância que essa associação adquiriu em

âmbito nacional, segundo os habitantes da cidade em Lençóis o Grãos continua a ser apenas

124
As ações realizadas por pessoas ligadas ao jarê em conjunto com o Grãos serão alvo de menção mais detida
no início do capítulo 3, na seção 3.1.
103

mais uma entre muitas iniciativas que procuram causar algum tipo de diferença na vida dos

lençoenses, em especial daqueles que foram mais impactados pelas recentes mudanças pelas

quais a cidade continua a passar, com destaque para ações feitas com crianças. Entre essas

iniciativas encontra-se a configuração atual da “marujada”, uma representação teatralizada

com homens vestidos de marinheiros e oficiais que costuma se apresentar durante as festas e

eventos populares na cidade, trazida do distrito de Igatu, na cidade de Andaraí, para Lençóis

no início do século XX pelo avô paterno de Elias, o renomado Mestre Ceciliano. Antes

formada quase que inteiramente por adultos, a versão atual da marujada de Lençóis recruta em

sua maior parte crianças e jovens para o conjunto, mantendo da formação inicial as

vestimentas características, uso de armas decorativas e execução de canções acompanhadas de

instrumentos e marcha em procissão pelas ruas da cidade125.

A organização e o comando da marujada costumavam ser passados de pais para filhos,

algo que não se procedeu, contudo, após o falecimento de João da Jia, já que por motivos

diversos nem Elias nem seus irmãos demonstravam ter o perfil ou o interesse em exercer a

função que antes fora do pai e do avô. Por ser de todo modo o mais próximo da tradição, Elias

orgulhava-se de por vezes ser lembrado como o guardião de direito da marujada pelo seu atual

líder, um capoeirista da cidade, que buscava fazer dela uma forma de trabalho social

transmitindo às crianças que agora a compunham noções de música, disciplina, assiduidade e

boa convivência. Enquanto antigamente um festeiro era responsável por comprar as roupas e

instrumentos utilizados pela marujada quando se fizesse necessário, nos dias atuais os

envolvidos com ela buscavam cada vez mais o apoio da prefeitura do município para a

aquisição desses itens, guardando-os e os renovando quando não se fazia possível adquirir

novos.

125
A forma de fandango conhecida como marujada é bastante disseminada no Brasil e recebe muitos nomes,
como barca, fragata, barquinha, Nau-Caterineta, chegança de marujos. Registra-se que tenha sido trazida para a
cidade de Lençóis no ano de 1914 (Gonçalves 1984: 176-177; Senna 2002: 219). Ver fotos 13 e 14 no anexo III.
104

Seria um engano pensar que Elias não se dedicava à marujada por falta de

comprometimento ou responsabilidade, ainda que essas características por vezes lhe fossem

imputadas – em geral de forma séria por quem não o conhecia intimamente e de modo jocoso

por seus amigos próximos –, muito em função de seu gosto pela bebida. Ele se mostrava

genuinamente entristecido, em ambos os casos, quando alguém mencionava, por exemplo,

que um esquecimento qualquer de sua parte se devia à cachaça – mesmo porque sua memória

via de regra é excelente –, fazendo notar que lapsos até mais frequentes de outras pessoas não

eram repreendidos da mesma forma. Enquanto amigos em comum comentavam com o próprio

Elias que ele parecia já estar perenemente acompanhado pelo cheiro do álcool, sua opinião

permanecia firme a respeito da importância do consumo da bebida, que para ser devidamente

compreendida deve ser acompanhada da descrição que dela fazem os nativos que a apreciam.

O hábito de consumir bebidas alcoólicas pode ser adquirido desde bastante cedo em

pequenas quantidades, normalmente misturadas a outros líquidos mais leves, dadas a crianças

e jovens, que não as consomem, contudo, durante o cotidiano. A cachaça, bebida por

excelência na região, pode também ser administrada como remédio, e muitos são os senhores

e senhoras de idade mais avançada que a bebem ao longo de toda vida sem efeitos adversos –

ainda que também seja comum que comecem a substituí-la, quando mais velhos, por bebidas

mais leves chamadas de “vinhos”, feitos com catuaba, jurubeba, gengibre ou ainda por batidas

de coco. A respeito da aguardente de cana, comenta-se: “Cachaça não faz mal, não. Se

cachaça matasse, não sobrava um vivo na Chapada”. Beber, dizem, não é problema em si, a

não ser que uma pessoa por outros motivos já esteja sem rumo na vida, quando então pode vir

a tomar atitudes reprováveis quando bêbado.

O gosto pela cachaça é transmitido entre gerações, estando ela presente nas mais

diversas ocasiões, como festas, batizados, velórios, encontros informais. A expressão mais

utilizada para a ação de ingerir bebidas alcoólicas é “comer água”, enunciada sempre de modo
105

entusiasmado e tendo se tornado o bordão de um dos habitantes da cidade, bradado em alto e

bom som, incitando os demais a lhe acompanharem. A predileção pela atividade de beber

compartilha espaço com um sentimento conexo, tão ou mais prazeroso, que é o de ver os

outros beberem, o valor de ambas as predisposições só podendo ser devidamente percebido ao

se acompanhar os nativos no empreendimento – o que faz com que na maior parte das casas

seja considerada indispensável ao menos uma meiota (meio litro) de cachaça para oferecer um

gole às visitas. Comer água também pode ser considerada uma forma de se alimentar tanto

fisicamente como espiritualmente, conferindo ânimo renovado quando se está cansado e

auxiliando as funções motoras quando há um trabalho a ser feito126. Uma senhora certa vez

me contou como, para conseguir obter o ponto perfeito da massa e da cobertura de um bolo

sem o qual uma festa de jarê não teria início – depois de suas colegas terem falhado em

múltiplas tentativas – solicitou uma dose de cachaça, bebida que de outro modo ela

especificamente não apreciava, antes de dar início ao trabalho, no qual teve êxito.

A companheira de Elias não gostava que ele bebesse, este sendo um de seus

incômodos com a presença do mesmo nos jarês, considerando que se afastar da bebida e ter

uma postura de sobriedade e reserva seriam também modos de evitar ser alvo de mais formas

de preconceito, posto que já tinham de lidar com o já sofrido pela população negra da cidade

em geral. A ligação entre sua cor de pele e a ascendência africana que possuíam muitos dos

cidadãos de Lençóis não era um assunto por eles rotineiramente abordado, o mesmo não

podendo ser dito a respeito da conexão bastante direta que atualizavam ao falar a respeito da

escravidão a que foram submetidos seus antepassados em território nacional, bem como as

inúmeras sequelas desse processo, tema que costumam evitar ao lidarem diretamente com

turistas, mas que trazem à baila quando se encontram cercados de pessoas mais próximas.

126
Como já informava o excelente artigo a respeito do reisado da comunidade do Mulungu, num estudo
realizado no município de Boninal, na parte oeste da Chapada Diamantina (Brantes 2007: 34-35).
106

A presença significativa da população escrava trazida para trabalhar na cata do

diamante deixou diversas histórias marcadas na memória dos nativos da Chapada, que

costumam ser contadas pelos mais velhos a quem decide se debruçar sobre o assunto, como

sempre foi o caso de Elias. Assim é que ele me narrou casos como o da escrava que teve seus

dentes, muito alvos e apreciados por seu senhor, todos arrancados a mando da esposa deste,

que os transformou num colar para seu uso e enviou a escrava para ser seviciada no tronco

para que deixasse de ser enxerida quando lhes servisse à mesa. Em outro caso, conta-se que

escravos que haviam conseguido tudo que lhes era necessário para obter a alforria diante de

seus proprietários, alguns anos antes da abolição, viam seus esforços serem anulados por

medidas protelatórias postas em marcha pelo juiz municipal para que continuassem por mais

tempo no cativeiro.

O fato de o garimpo também ser trabalhado por mão-de-obra escrava conferia a essa

última um caráter distinto daquele que tinha em outras partes do país, posto que o grande

valor e a alta transportabilidade dos diamantes poderiam render ao escravo meios de obter a

liberdade, desde que se utilizasse de uma rede informal de comércio que os donos dos

garimpos faziam de tudo para inibir. Essa possibilidade relativamente concreta atraiu para a

Chapada um grande número de escravos alforriados interessados na possibilidade de

conseguir recursos para comprar a liberdade de parentes e amigos, que poderiam ser obtidos

tanto na procura de diamantes como com a prestação de serviços urbanos. Os alforriados se

somaram à população negra que era levada à força para a região pelo comércio interno de

escravos, que passa a ser uma atividade econômica quase tão rentável quanto o próprio

garimpo e que é intensificada na segunda metade do século XIX após o fim do tráfico

negreiro. Com a abolição houve mesmo a possibilidade de antigos escravos utilizarem suas

economias para promover ascensão econômica a seus filhos, registrando-se o caso de um filho

de escravo que pode estudar Direito em Salvador e se tornou desembargador do Tribunal de


107

Justiça da Bahia. É igualmente certo, de todo modo, que a maior parte dos recém-libertos

continuou a trabalhar em condições precárias para os donos das serras, ainda que as senzalas

propriamente ditas tenham desaparecido com o passar do tempo, restando ainda hoje algumas

de suas ruínas no município de Lençóis127.

A escravidão, nos dias de hoje, aparece como uma referência constante e só

parcialmente jocosa no falar dos lençoenses, usada em especial para falar sobre suas

condições de trabalho, independentemente de suas ocupações. “Sou preto, mas não sou

escravo, não”, era uma réplica comum quando se julgava que uma solicitação de trabalho

adicional era excessiva (fosse ela muito laboriosa ou mal remunerada). Num tom de

brincadeira, que não empalidecia mesmo quando também transmitia ligeira melancolia, meus

amigos em funções mais ligadas à indústria do turismo na cidade costumavam dar ao verbo

“escravizar” o sentido de “trabalhar”, podendo dizer, por exemplo: “já vou embora que hoje

ainda preciso escravizar”, ou “não pude ir porque fiquei escravizando até tarde”. Com o

tempo disseram-me também que não só pela cor reconheciam as pessoas cujas famílias

haviam sido escravas no passado, mas igualmente seus sobrenomes podiam denotar essa

marca, chegando mesmo em alguns casos a ser possível saber quais eram as famílias

específicas que haviam possuído seus antepassados como escravos128. Como uma amiga

costumava dizer: “A Princesa Isabel não assinou a Lei Áurea a caneta, e sim a grafite, que em

pouco tempo se apaga”.

A cor da pele é também fruto de considerações estéticas das mais variadas. Elias, por

exemplo, me dizia como tinha ficado muito contente por ter escurecido depois de ter nascido

127
Por muito tempo ignorados pela historiografia local, se não mencionados apenas de passagem, relatos como
esses e outros similares só vieram a ser registrados há pouco tempo na literatura a respeito da região, que
passaria a dar conta da presença marcante dos escravos (Moraes 1963: 38, 46 nota 7; Toledo 2001: 22-24, 82-83;
Ganem 2001: 33-37, 141; Pina 2000: 78-97; Pina 2001: 179-182, 190-192; O. Senna 2002: 11-12; Funch 2007:
49, 56-57, 65-67, 143; Toledo 2008: 94-106).
128
Como no episódio relatado no capítulo 1, seção 1.4. Já a ligação feita no jarê entre a escravidão e os exus será
abordada no capítulo 4, seção 4.3.
108

com uma cor mais clara, já que se orgulhava de sua origem e não se imaginava namorando

com uma pessoa de pele mais clara que a dele129. Pessoas de pele mais clara que a de Elias

costumam ser chamados por seus amigos de pele mais escura de “desbotados”, em especial

quando estas tentam dar a entender numa situação qualquer que não seriam negras. Nos casos

mais extremos nos quais se continua a dar a entender que uma pessoa é não branca, é costume

chamarem-na de “galega”, que seria uma pessoa bastante clara mas cujas tonalidade da pele e

demais características físicas marcam como negra. Diversas vezes presenciei pessoas,

especialmente homens jovens, em situações nas quais faziam questão de dizer e demonstrar o

quanto se orgulhavam não só de sua cor como de suas origens, exaltando características

derivadas de sua constituição física, fosse sua potência sexual ou, em outros exemplos, sua

capacidade de resistir à dor ou ao frio130.

Muitas das pessoas negras de Lençóis já foram, de toda forma, alvo de racismo,

assunto sobre o qual só falam em circunstâncias bastante específicas e com aqueles de quem

são mais próximos. Apesar de a população negra ser expressiva maioria na cidade 131, existem

também diversos brancos pobres com os quais por vezes alguma discussão pode degringolar

em injúrias raciais, especialmente entre crianças. Também não é incomum que brincadeiras

entre pessoas de pele parda e as de pele mais escura possam envolver distinções de raça às

quais as pessoas mais negras dificilmente dão muito crédito. Em sua visão, entretanto,

nenhuma dessas situações é equiparável tanto ao preconceito que se origina da população

branca que constitui a elite da cidade – sejam eles os membros das reduzidas famílias

tradicionais antes ligadas ao diamante, sejam os forasteiros que hoje controlam grande parte

129
Ao afirmá-lo, Elias mencionou se achar por isso preconceituoso, e eu lhe disse que acreditava que havia
formas piores de preconceito.
130
Essas formas de autovalorização do homem negro também se relacionam à ética masculina do exibicionismo
que será apresentada no capítulo 3, seção 3.2.
131
Autoconstatação que, além de cotidiana, é igualmente registrada nos dados do Censo, como visto na
Introdução.
109

dos negócios turísticos de Lençóis –, como àquele vindo dos próprios turistas – sendo os

brancos oriundos do nordeste do país e em especial de Salvador considerados por eles os mais

virulentos.

Há lençoenses que procuram ocasionalmente fazer parte do novo circuito econômico

da cidade como clientes, seja frequentando bares e restaurantes de maior apelo turístico, seja

realizando passeios em grupo – posto que especialmente as mulheres conhecem muito pouco

ou mesmo nada dos atrativos naturais das quais passaram indiretamente a depender (via de

regra aqueles que, para serem alcançados, dependem do aluguel de veículos para

deslocamentos mais distantes). Ressentiam-se de serem rotineiramente confundidos pelos

demais clientes com empregados dos estabelecimentos que tentavam frequentar, respondendo

nessas ocasiões de forma resignada ou altiva, fazendo questão que as desculpas que acabavam

lhes oferecendo não se alongassem. Por vezes encontram, todavia, resistência por parte de

seus próprios conterrâneos, que não lhes prestam serviço da mesma forma que o fazem para

os visitantes, demorando a atender, por exemplo, uma “mesa afro”, como já ouvi sendo dito, e

dando prioridade a turistas, mesmo quando valor idêntico será pago. A propensão de alguns

nativos a se dedicarem exclusivamente a obter a atenção dos turistas, e dos estrangeiros em

particular, me foi exemplificada de outra forma por um professor da rede pública da cidade.

Ele comentou como passara a notar que jovens moças negras acostumadas a alisar os cabelos

só deixavam de querer fazê-lo na idade em que se davam conta de que penteados afro

costumavam ser muito mais atraentes para gringos em busca de um padrão de beleza

característico. Essas jovens iam assim, de certa forma, ao encontro do discurso também

presente na cidade entre os raros ativistas diretos pela valorização de uma beleza

propriamente negra, ainda que, na avaliação deste professor, por péssimos motivos.

Uma de minhas amigas, orgulhosa professora da rede pública e dona de comentários

tão sutis quanto ferinos, dizia que havia ações muito mais significativas na luta cotidiana
110

contra o racismo do que deixar ou não de alisar os cabelos, chamando minha atenção para as

muitas formas por meio das quais o preconceito que a população negra sofria era combatido.

Ela trabalhou por um tempo junto ao poder público buscando divulgar pelas escolas da região

iniciativas espontâneas de valorização cultural da população negra de Lençóis e sua história,

tendo contado certa vez que nutria especial admiração, no jarê – que, de outro modo, só

frequentara com alguma regularidade quando criança –, pelo brio das entidades que

conseguiam suscitar respeito e obediência por parte dos presentes132. Na mesma chave

encontra-se o enredo escolhido pela quadrilha vencedora da parte competitiva do São João

que presenciei, e que narrava a história de um escravo que tinha obtido sua alforria, cuja

importância educativa havia sido frisada no discurso de agradecimento de sua puxadora. Na

academia de capoeira, por sua vez, os professores do esporte explicavam aos seus alunos os

motivos pelos quais tinham escolhido ordenar as cordas de progressão de modo a conectá-las

com a trajetória da escravidão dos negros no Brasil133. Um de seus professores, que havia se

tornado ainda mais famoso depois de ser escolhido para protagonizar o filme Besouro,

contou-me como uma de suas maiores motivações para fazer parte do elenco era seu desejo de

mostrar a sua mãe na televisão um negro fazendo papel de capoeirista, posto que tinha ficado

132
Algo presente também numa companhia que funcionou por alguns anos na cidade chamada Grupo Teatral
Praça das Nagôs, empenhada em combater o racismo e defender o jarê contra a discriminação (Araújo 2002:
183).
133
Possibilidade aberta em função de cada academia ser livre para determinar a sequência das cores de suas
cordas. No caso da academia Corda Bamba, como me explicaram, a primeira corda era azul pois os escravos
tinham sido trazidos do mar. A segunda era marrom, representando a nova terra na qual foram obrigados a
aportar. A terceira era verde, ligada à natureza que desbravavam e na qual exerciam seu trabalho. A quarta era
amarela, indicativa da riqueza que produziram e do ouro que mineraram. A quinta era roxa, representativa da
raiva e indignação que os negros sentiam por serem escravizados. A sexta era vermelha, cor do sangue
derramado nas lutas contra a escravidão. A sétima e última era a branca, cor da liberdade por eles conquistada e
que é direito, acrescentavam, de todo ser humano. Uma aluna portuguesa, que já tinha alguma intimidade com o
professor de capoeira que me fazia essa preleção, perguntou-lhe com ar de brincadeira se eles não viam
problema em ter escolhido justamente a cor branca para a melhor corda, já que esta era a cor dos senhores de
escravos – provavelmente como réplica ao comentário igualmente jovial que ele havia feito sobre como iria
derrubá-la uma vez na roda por terem sido os portugueses os responsáveis pela escravidão no Brasil. A resposta
magnânima do professor deu a entender que se recusavam a conferir aos brancos o monopólio da cor que, ele
disse, era antes de tudo a cor da paz, acrescentando: “Além disso, eu não tenho nenhum preconceito contra gente
branca...”
111

indignado ao assistir, quando criança, a um filme de ficção que tinha a capoeira como

elemento fundamental mas com um branco no papel principal134.

Meu amigo Elias gostava de comparar as atitudes das pessoas que lutavam contra o

preconceito racial com as de figuras emblemáticas desse movimento, dizendo que enquanto

alguns de seus antigos companheiros do Avante se aproximavam mais de Malcolm X, ele

próprio buscava se inspirar mais em Gandhi e Martin Luther King. Ainda que concordasse

que havia lugar para o embate mais direto do primeiro, tinha receios quanto aos perigos da

supremacia negra, preferindo formas de enfrentamento mais pacíficas esposadas pelos

últimos135. Elias também se orgulhava de ter feito, ainda na escola, um trabalho a respeito do

abolicionista Luís Gama, e tinha profunda admiração pela história da escrava Anastácia, alvo

de sua devoção e na qual reconhecia a capacidade de conferir forças para lutar

permanentemente contra a escravidão. Sempre que em nossas conversas falava a respeito do

idioma iorubá, Elias lembrava que se tratava de uma língua, e não um dialeto, pois chamá-lo

dessa forma era também uma forma de preconceito. Quando ele me apresentou a um senhor,

pai de um dos professores da academia de capoeira, e lhe explicou o motivo de minha estada

em Lençóis, esse senhor nos disse que ficava muito feliz em ver pesquisadores interessados na

realidade das cidades do interior: isso era bom não só para nossos currículos, continuou, como

para a própria cidade, já que meu trabalho também poderia oferecer uma contribuição contra o

racismo local, que ainda era bastante forte.

De qualquer forma, combater o preconceito contra negros também dependia bastante,

diziam alguns de meus amigos, de mudanças de atitude por parte deles próprios. Pouco

adiantaria, por exemplo, se contentar apenas com mudanças derivadas do policiamento do

134
Trata-se, provavelmente, do filme de 1993 chamado Only the strong (traduzido no Brasil com o duvidoso
título Esporte sangrento), estrelado por Mark Dacascos no papel de um ex-boina-verde que serviu no Brasil onde
se tornou mestre de capoeira. Esse é o único filme produzido em Hollywood no qual a capoeira é parte integrante
do roteiro do início ao fim.
135
Quando usava a internet, Elias gostava de deixar marcada uma frase, atribuída a um buda: “Seja como o
sândalo, que perfuma o machado que o fere”.
112

politicamente correto (como, por exemplo, evitar o uso de certas formas de tratamento) se as

mesmas formas de discriminação continuassem operando – tomar algum tipo de atitude era

uma posição defendida diante da postura mais passiva e de evitação de confrontos com a qual

muitos dos nativos haviam se acostumado. Nessa chave encontravam-se algumas das ações

feitas durante a Semana da Consciência Negra realizada em novembro na cidade,

especialmente nas apresentações escolares feitas no Mercado Cultural no próprio dia 20.

Depois de uma introdução com leitura de poemas – atividade bastante comum em qualquer

evento público em Lençóis, nos quais via de regra há declamação de composições sobre

negritude na Chapada, sempre recebidas com muitos aplausos e entusiasmo –, conjuntos de

alunos de cada escola do município fizeram atuações diversas. Teve destaque a feita pelos

alunos da escola do povoado do Remanso, uma comunidade de remanescentes de quilombolas

localizada no interior do município a aproximados 25 quilômetros de carro a partir de

Lençóis. Cada aluno recitava um breve texto a respeito de uma personalidade histórica negra e

concluía dizendo bem alto seu nome seguido da frase por todos repetida: “Sou negro e

brasileiro”.

A vila do Remanso é referência constante quando se fala em Lençóis a respeito de

pessoas negras, já que sempre se marcava o fato de que era lá que as pessoas eram “pretas de

verdade”, em referência antes de tudo à tonalidade de pele marcadamente mais escura dos

seus moradores, muitos dos quais haviam com o tempo se mudado para a sede do município.

A companheira de Elias e sua família eram nativos do Remanso, comunidade que este me

contou ter surgido a partir de descendentes de quilombolas que estabeleceram seu enclave

anterior numa região próxima, por sua vez surgido, conta-se até hoje, a partir da união de uma

escrava fugida com um “índio”, ou “homem do mato”, que por lá habitava 136. Dos habitantes

136
Houve diversos quilombos, durando períodos variados, espalhados pela Chapada Diamantina, tendo ficado
mais conhecidos os que se fixaram na área que hoje é o município de Andaraí, com especial menção à ocupação
da chamada Mata dos Orobós. Os habitantes desses enclaves trabalhavam a terra, caçavam e pescavam, fazendo
parte da economia local por meio de trocas e chegando mesmo a acompanhar parte da exploração diamantífera
113

do Remanso diz-se que cultivam o hábito de casar somente entre si mesmos, sendo invariável

ouvir, quando em Lençóis se comenta a respeito da vila, o fato de que lá “são todos

parentes”137. Elias, por sua vez, e mesmo não sendo oriundo do Remanso, por vezes referia-se

a si mesmo como “afro-indígena”, fazendo menção a um tipo específico de miscigenação

implicada tanto pela cor de sua pele que, para seu desgosto, não era tão escura quanto a de sua

companheira, como pelo seu cabelo que, apesar de encaracolado, possui textura mais lisa e

lembra “cabelo de índio”138. Entre outros motivos, o fato de usá-lo com comprimento

considerável levava um importante pai-de-santo da região a lhe chamar pelo apelido de

“Odé”, entidade que no jarê é uma versão infantil de Oxóssi, orixá ligado às matas.

Esse pai-de-santo, cuja história será detalhada no próximo capítulo, havia sido

aprendiz do avô materno da companheira de Elias, e importante figura religiosa do Remanso,

mais conhecido pelo nome de Manezinho Bumba, há muito falecido, e que não deve ser

confundido com seu xará, mais novo, que atendia por Manezinho do Remanso, líder

comunitário que também tinha conexões com o jarê. O falecimento desse último há alguns

anos e a posterior conversão de muitos dos habitantes da vila, que passaram a ser evangélicos,

diminuiu a presença do jarê no Remanso, que procura ser de todo modo estimulado por um

dos muitos filhos carnais deixados por esse último Manezinho. O Remanso também se insere

no circuito turístico no qual Lençóis agora investe, havendo ali incursões de turismo

comunitário incentivadas pelo Grãos de Luz e Griô, que também atua com o conhecimento

tradicional de seus habitantes, bem como, em maior escala, passeios de canoa pelos

(Rabelo 1990: 54; Toledo 2001: 102-103; Senna 2002: 235; Funch 2007: 83, 114; Toledo 2008: 69-70, 72-73,
76). A presença especificamente indígena na região será discutida no capítulo 4, seção 4.3.
137
Algo bastante similar ao que se diz na já mencionada comunidade do Mulungu, em Boninal, oeste da
Chapada Diamantina, afirmando-se lá que “é tudo uma família sozinha” e “todo mundo é primo” (Brantes 2007:
31).
138
O jarê já foi chamado de uma religião resultante de “sincretismo afro-ameríndio” (Senna 1998: 73), e os
habitantes da Chapada como de origem “afro-indígena” (Rabelo 1990: 372).
114

marimbus, áreas alagadiças conhecidas por representarem um “pequeno Pantanal” na

Chapada139.

A referência aos antepassados africanos, se não é sempre tão explicitada em momentos

nos quais os lençoenses falam a respeito de sua negritude, pode surgir nos mais diferentes

momentos, como quando alguns amigos compararam sua cor de pele à de turistas angolanos

que conheceram na cidade, ou quando, por eu ter mencionado a monarquia numa conversa a

respeito da proximidade entre o sotaque carioca e o português, me lembraram de modo

contundente que suas famílias também tinham chegado no Brasil junto ou até antes da família

real: só que na condição de seus servidores braçais. Lençóis é também o berço de Cândido da

Fonseca Galvão, mais conhecido como Dom Obá II d’África140. A figura de Dom Obá tornou-

se, por um breve período, emblemática no restante do país ao protagonizar o enredo de uma

importante escola de samba carioca141. Elias mencionava como a própria população de

Lençóis dava pouca atenção à história de Dom Obá antes dela ter sido popularizada com o

139
Ver fotos 15 e 16 no anexo III.
140
Nascido, na Lençóis do século XIX, de um escravo iorubano alforriado, Dom Obá era neto do poderoso
Alafin Abiodun, último soberano a manter unido o império de Oyó, na segunda metade do século XVIII. Ele
deixa a Chapada para lutar na Guerra do Paraguai e retorna de lá com o posto de alferes, estabelecendo
residência na cidade do Rio de Janeiro, onde se torna um expoente na defesa da igualdade de direitos entre
negros e brancos – apesar de monarquista, frequentador assíduo da corte de Pedro II –, publicando artigos
abolicionistas em jornais e sendo reverenciado como um príncipe por muitos negros no país, tanto escravos
como libertos, vindo a falecer pouco depois da queda do Império. Há somente pequenas divergências na história
de Dom Obá entre a versão contada pelo livro que a tornou amplamente conhecida, baseada em pesquisa
arquivística (Silva 1997: 37-38, 120, 219-220) e aquelas oriundas da memória lençoense registrada alhures
(Ganem 2001: 39-43), a respeito da época e local de seu nascimento e o fato de ter ou não sido escravo quando
mais novo.
141
No desfile do ano de 2000 da Estação Primeira de Mangueira, cujo carnavalesco foi Alexandre Louzada.
Apesar de a escola ter ficado em 7o lugar na disputa do Grupo Especial, prejudicada por problemas técnicos com
um dos carros alegóricos, seu enredo obteve notas altas, e o samba-enredo, composto por Marcelo D’Aguiã,
Bizuca, Gilson Bermini e Valter Veneno, e interpretado por Jamelão, recebeu, por sua vez, nota máxima de
todos jurados. A homenagem da Mangueira parece ainda mais significativa por ter sido Dom Obá importante
intercessor junto ao Imperador para que fornecesse auxílio à população empobrecida que havia sido instalada nas
proximidades da Quinta da Boa Vista e do Morro dos Telégrafos, que viria a ser o Morro da Mangueira (Silva
1997: 118).
115

desfile da Mangueira que o homenageou, e como os esforços pífios surgidos a partir daí

pouco fizeram para mudar esse quadro142.

Nenhuma ligação com suas origens africanas, contudo, era mais significativa para os

lençoenses do que aquela explicitada pela presença das “nagôs”, senhoras africanas vindas

para a cidade ainda na época da escravidão. Mesmo tudo indicando que se tratasse de uma

minoria quantitativa, já que a maior parte dos negros que foram levados e que afluíram

espontaneamente para a Chapada possivelmente era oriunda da Costa do Ouro, essas senhoras

falantes de iorubá e vindas da região do Golfo do Benim tiveram papel de destaque enquanto

líderes de comunidades negras em Lençóis, de modo similar ao que se processou em

Salvador143. Quando se menciona seu conjunto, às nagôs do passado refere-se sempre no

feminino, comentando-se também como eram as mulheres que chefiavam as casas, sendo

invariavelmente seus nomes precedidos do honorífico “Sá”, da mesma forma que algumas de

suas mais notórias descendentes que Elias conheceu ainda em vida, como Sá Iria ou Sá

Miliana144. Muitas dessas senhoras haviam anteriormente se estabelecido ou ao menos tido

passagem pela cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, na cabeceira do Rio Paraguaçu, à

época navegável deste ponto até bem próximo de Lençóis, cujas proximidades podiam ser

também atingidas durante determinada época por uma importante ferrovia, além das trilhas e

estradas pelas quais animais de carga cortavam as serras145. A cidade de Cachoeira continua a

142
De um lado, o Grãos de Luz e Griô fez um carimbo com o qual marcava parte de sua produção e não muito
mais que isso; de outro, a prefeitura batizou um arquivo público municipal de “Arquivo Dom Obá”, que esteve
ao longo de toda a duração do meu trabalho de campo interditado por ter sido alvo de uma infestação de pombos.
143
A maior parte da população escrava da Chapada Diamantina era composta por negros já nascidos em
território nacional. A documentação disponível, por exígua que seja, permite de todo modo à literatura identificar
ao menos minimamente as origens tanto dos africanos trazidos para a região como dos antepassados dos
escravos brasileiros (Neves 1998: 262-271 apud Pina 2001: 198; Pina 2001: 185, 187; Senna 2002: 229).
144
A preferência pelo uso do etnônimo coletivizado no feminino se conecta, entre outros motivos, à
matrifocalidade das famílias (Senna 1998: 70). Em outras partes do Brasil, existem até os dias de hoje em
desfiles de blocos carnavalescos os “blocos de nagô” (Mello 1994: 34 apud Barbosa Neto 2012: 5 nota 7; Mello
2010: 79, 265).
145
As diversas formas de se chegar até a Chapada sofreram desgastes contínuos ao longo dos anos, sendo
renovadas ou abandonadas ao declínio conforme os ciclos de produção do diamante, o Paraguaçu perdendo
116

ser até hoje um referencial para os habitantes da Chapada Diamantina no que se refere à

religiosidade de matriz africana, e muitos objetos rituais considerados insubstituíveis por seus

utilizadores no jarê são ditos proceder daquela região, trazidos de lá no passado pelas

nagôs146.

Como em outras partes do país, os africanos trazidos à força para a Chapada aportaram

trazendo também suas divindades e práticas tradicionais, posteriormente adaptadas à nova

realidade à qual foram submetidos tanto eles como seus descendentes. Na região das Lavras,

tudo indica que tenha acontecido inicialmente processo similar àquele que teve início na

capital baiana, onde o candomblé de modelo jeje-nagô surgiu e se consolidou após ter

plasmado os cultos domésticos e cabulas ou calundus de fundamento congo-angola já

existentes, dando origem às casas de culto organizadas, que possibilitavam que diversas

divindades africanas distintas fossem reverenciadas num mesmo espaço ritual147. Quer tenha

se desenvolvido de modo parecido diretamente na Chapada, quer tenha sido trazido pelas

africanas e suas descendentes vindas de Cachoeira e alhures148, o “candomblé de nagô” que

imperou principalmente nas cidades de Lençóis e Andaraí em algum tempo se transformaria

novamente, diante de outros encontros com a realidade local, vindo a originar o jarê como é

navegabilidade e a Ferrovia Central da Bahia tendo seu trajeto inicialmente planejado alterado rumo ao sul. A
conexão com Cachoeira, importante centro comercial do Recôncavo, sempre esteve no horizonte (Acauã 1847:
244; Pereira 1910: 56; Moraes 1963: 37, 195; Ganem 2001: 123; Araújo, Neves & Senna 2002: 138 nota 33;
Zorzo 2002: 64-67).
146
Já se estudou a fundo o papel da cidade de Cachoeira enquanto exportadora não só de saberes como de
objetos rituais para as cidades do sertão baiano – com menção explícita, entre outra, a Lençóis –, num
movimento contíguo ao da empreitada dos tropeiros que circulavam pelas estradas e ferrovias reais (Brazeal
2007: 21, 40, 176).
147
Não resta dúvida a respeito da importância da consideração histórica adequada desse processo, deixada de
lado na produção do final do século XX quando foi feita a crítica da suposta superioridade jeje-nagô (Bastide
1960: 67-71; Serra 1995: 32-33, 45-46; Castro 1998: 25; Senna 1998: 65, 68; Silveira 2005: 20-23; Senna 2002:
224, 234-235; Souty 2007: 234-235). O primeiro registro documental encontrado na literatura a respeito de
encontros de negros na Serra do Sincorá para a realização de batuques e danças com possível cunho religioso
data de 1856: trata-se de uma proibição nas posturas municipais do município de Santa Isabel do Paraguaçu para
impedir encontros do tipo por perturbarem a ordem pública (Pina 2001: 188).
148
Num movimento contínuo e também reverso, com a ida de habitantes nascidos no sertão para Cachoeira e
além (Brazeal 2007: 41).
117

conhecido hoje, sendo as nagôs da Chapada Diamantina consideradas portadoras do primeiro

e inventoras propriamente do segundo, como me afirmaram.

Segundo relatos orais transmitidos por alguns dos mais antigos habitantes da cidade,

que os ouviram de seus ascendentes, as nagôs e suas primeiras descendentes realizavam suas

festas e cerimônias no interior de suas casas, “falando cortado”, ou seja, em iorubá, não sendo

entendidas por aqueles que não falavam sua língua ou, como me foi dito, de modo a que “só

entendesse quem tinha que entender”. Além dos salões nos quais aconteciam os toques e

danças, suas casas possuíam dois compartimentos distintos para o acondicionamento de seus

objetos rituais e estatuetas, sendo uma dedicada aos mais diretamente africanos e a outra aos

demais149. Ao mesmo tempo, contudo, as nagôs se viram na responsabilidade de prestar culto

a entidades que deviam ser reverenciadas na parte de fora de suas casas, ainda que não a céu

aberto: os caboclos, espíritos ligados aos indígenas150. Para tanto, mandavam erguer estruturas

temporárias cobertas com folhas de árvores e palha seca, sob as quais conduziam uma parte

distinta de suas celebrações, destinada aos caboclos, e cuja liturgia era praticada em idioma

vernáculo. Diferentemente das cerimônias realizadas no interior das casas, cuja participação

era em princípio reservada somente às próprias nagôs, seus familiares diretos e convidados

especiais, o culto aos caboclos feito em português do lado de fora era aberto a qualquer pessoa

que dele quisesse participar. A hipótese aqui esboçada é a de que com o passar do tempo as

duas cerimônias distintas amalgamaram-se e deram origem ao jarê como é conhecido nos dias

149
Esses aposentos me foram descritos, por exemplo, por Elias, que visitou a casa de uma dessas senhoras,
descendente das nagôs, que há muito não mais realizava cerimônias. Ele foi chamado para auxiliá-la, junto de
diversas outras pessoas, a despachar seus objetos rituais antes de sua morte, que ela sabia ser iminente. Elias
ficou responsável, numa missão que o encheu de orgulho, pelos itens ligados a Xangô, entidade da qual é
especialmente próximo.
150
Por vezes afirma-se que a adoração dos caboclos nos terreiros das nagôs, possivelmente ocorrida no início do
século XX, se deveu à ação de um único líder religioso, chamado Alfredo Araçás, filho de escravos alforriados
provenientes de Minas Gerais. Cada comunidade de culto costuma ser capaz de indicar uma pessoa específica
responsável por essa inovação na história de sua casa (Senna 1998: 72, 77).
118

de hoje, no qual todas as entidades passaram a ser reverenciadas no mesmo espaço interno –

que por sua vez deixa de ser etnicamente exclusivo151.

É comum que os habitantes de Lençóis se lembrem das nagôs durante as noites em que

há tempestades com raios, bastante temidas na Chapada, cujas serras fazem ressoar trovoadas

tão magníficas quanto assustadoras. Em ocasiões como essas, as nagôs costumavam sair de

suas casas em meio à tormenta tocando seus agogôs, instrumentos compostos por duas

campânulas de ferro percutidas por varetas metálicas, com objetivo de aplacar a insatisfação

dos orixás responsáveis por esses fenômenos climáticos, Iansã e Xangô. Conta-se que, certa

vez, uma mulher resolveu zombar da prática das nagôs, dizendo que iria tocar agogô para

afastar a tempestade que crescia. Algum tempo depois, e mesmo estando dentro de casa, a

escarnecedora foi atingida por um raio que a matou na hora, deixando contudo só metade do

seu corpo carbonizado, enquanto a outra metade permaneceu intacta. No local atingido

encontraram posteriormente uma pedra de raio, materialização da vontade das entidades e

indício suplementar de que o evento não foi nenhuma coincidência152. Até hoje, em especial

as pessoas ligadas ao jarê mostram grande temor e reverência diante das chuvas

acompanhadas de relâmpagos e trovões, e em noites nas quais estas persistem, a realização

das cerimônias precisa aguardar a proximidade da estiagem, sob pena de se haverem com a

fúria das entidades.

As nagôs foram em determinada época alvo de perseguição religiosa, e do período

recordam-se histórias envolvendo Horácio de Mattos, o coronel-mor de Lençóis. Diz-se que,

certa feita, Horácio enviou jagunços para acabar com o bater de tambores que rompia a noite e

incomodava alguns moradores. Chegando às cerimônias em questão, a essa época já

conhecidas como jarês, seus jagunços foram tratados de forma tão carinhosa e afável que não

151
Daí também fazer sentido considerar o jarê, que será detalhado mais adiante nesse capítulo, na seção 2.4, uma
espécie de candomblé de caboclos.
152
Essas pedras foram apresentadas no capítulo anterior, na seção 1.1, e reaparecerão nos próximos.
119

conseguiram executar a missão para a qual tinham sido enviados. Depois de três pares de seus

homens terem retornado sem obter sucesso, o próprio coronel vai até o jarê das nagôs e, sendo

tratado da mesma forma, desiste por fim da empreitada153. Outro episódio, também contado

com bastante gosto, que ilustra a relação das nagôs com Horácio de Mattos, ocorreu num local

que até hoje continua a ser chamado pelo nome que o conecta a essas senhoras. Na Praça das

Nagôs, durante um evento público que reunia grande parte dos habitantes de Lençóis, um

rapaz negro teve a ousadia, na visão do coronel, de flertar com uma moça branca “da

sociedade”, sendo por isso chicoteado por Horácio. Em revanche, uma das nagôs ali presentes

usou um instrumento ritual para fazer com que o coronel começasse a sambar e chicoteasse a

si próprio involuntariamente154. Consta que o coronel e as nagôs chegaram por fim a uma

trégua (ou talvez aliança), segundo a qual o primeiro concordava em abandonar a perseguição

aos cultos das últimas desde que estas procurassem diminuir a visibilidade das oferendas que

deixavam em locais públicos155.

As nagôs eram reconhecidas de longe por suas vestes, quase sempre de notável alvura,

em geral compridas saias e blusas com golas ornadas. Andavam, como muitas das mulheres

da cidade, com as cabeças cobertas, mas variando entre os lenços dobrados em triângulo

153
Uma história similar me foi contada por uma senhora bastante idosa, que a testemunhou quando ainda era
criança. Ela disse que os policiais que costumavam frequentar os jarês (para manutenção da ordem evitando
brigas, explicava) eram muito bem recebidos, a ponto de ter visto um deles participando diretamente da
cerimônia, ao ser tomado por uma entidade e adornado com vestimentas brancas pelas nagôs que o permitiram
dançar, exigindo dos presentes o devido respeito ao visitante, agora duplo.
154
Elias, um dos que me transmitiu essa história, me disse que ouvira o objeto, que podia ser também uma
espécie de chicote ou espanta-moscas, ser chamado de “orobô”, nome em outros lugares reservado à noz-de-cola
ou à coleira, árvore de onde provém (e na mesma região da Chapada registra-se a existência da Mata dos Orobós,
na qual no passado parece ter havido um quilombo). No candomblé, esse mesmo instrumento, feito com cauda
de bois, é a ferramenta usada por Iansã para afastar os mortos, normalmente recebendo o nome de “iruquerê”.
Ainda na chave do episódio do coronel que se açoitou, há menção a uma construção teatral realizada por
garimpeiros da região chamada “brincadeira do coronel”, na qual o ator que protagonizava o caudilho era
chicoteado de forma simulada (Senna 1998: 71; Senna 2002: 218-219).
155
Esses eventos parecem ser inversões locais, mas que mantêm o efeito esperado, do que se conta com bastante
frequência ter acontecido em casas de candomblé litorâneas, quando agentes repressivos, em geral do Estado,
veem frustrada sua intervenção ao serem tomados por entidades do culto e acabam eles próprios sofrendo a
violência que iriam exercer, sendo levados, por exemplo, a rolar no chão incontrolavelmente. A resistência pela
ternura, exemplificada pelas práticas das nagôs de Lençóis, pode ser também conectada com a disposição
subversiva de que se falará adiante nesse capítulo, na seção 2.3.
120

usados na região e os turbantes típicos de Salvador. Distinguiam-se por não ter cabelos na

cabeça, os relatos divergindo sobre a prática de serem raspados ou, como muitos afirmavam,

não chegarem nem mais a crescer. A menção aos pés permanentemente voltados para fora só

não é mais constante que a referência aos narizes achatados e lábios protuberantes, sinais

físicos que as distinguiriam dos demais negros da cidade e que legaram a seus descendentes,

homens e mulheres até hoje abertamente reconhecidos enquanto tais em Lençóis. Ainda que

seja possível que seus primeiros filhos e filhas fossem também chamados de nagôs, o

etnônimo não é senão raramente utilizado para caracterizar alguém na contemporaneidade,

sendo mais comum se referir a “descendentes de nagô” – ou simplesmente “descendência”

como dizem os que afirmam que nagôs propriamente já não há mais na Chapada156.

Quando contam histórias a respeito das nagôs, os habitantes mais velhos da cidade

invariavelmente comparam as celebrações por elas organizadas ao jarê que existe nos dias de

hoje, fazendo questão de marcar como este empalidece diante daquelas. No que pese a

saudade de um tempo passado e idealizado que, afirmam, não terá retorno, seus comentários

me fizeram pensar em como as nagôs deviam conceber em seus cultos seu próprio passado,

extraídas que foram de sua terra natal. Se hoje se diz que “jarê bom mesmo era jarê de nagô”,

talvez outrora as nagôs não deixassem de considerar que aquilo que faziam no novo território

para o qual tinham sido trazidas não passava de uma improvisação possível e enfraquecida

diante das práticas realizadas em África. Se não há motivo lógico para que esse raciocínio seja

interrompido nesse ponto – pois é possível que seus antepassados sentissem saudades ainda

outras –, a frase a princípio irônica segundo a qual “a nostalgia já não é mais o que era

antes”157 pode chamar atenção para uma diferença marcante entre esses sentimentos, quando

156
A expressão “jornal de nagô”, de uso raro presentemente, refere-se a boatos e informações passados
oralmente, registrando-se seu uso também em Salvador (Moraes 1963: 106 e nota *), onde sua versão mais
comum é conhecida pelo termo “correio nagô” (Risério 1981: 107; Johnson 2002: 185).
157
A frase dá título às memórias da atriz francesa Simone Signoret (1976), e parece ter sido popularizada pelo
escritor americano Peter de Vries.
121

nutridos por distintos conjuntos de pessoas em situações específicas. A nostalgia estrutural158

que parece permear e conferir sabor característico às tradições de matriz africana no Brasil

tem marcos constitutivos nas experiências de desterritorialização brutal e posterior sujeição às

quais os negros foram submetidos, exemplificando-o uma cantiga que no jarê serve a

entidades que se despedem após uma manifestação. A primeira vez que a ouvi foi interpretada

por Elias e sua companheira, numa apresentação que fizeram para alunos da cidade sobre uma

importante senhora negra que gostava de contar histórias, e que guardara atrás de sua porta

um chicote, para se lembrar dos relatos que sua mãe lhe fizera a respeito das surras que já

tinha levado do feitor. Sua letra diz:

Ó, mãe, quando for, a senhora me leva


Me leva pro lado da tua aldeia
Ó, mãe, sou seu filho e estou cansado
Cansado de viver na terra alheia

2.2 Pesquisas

É difícil dizer se a atividade preferida de Elias era a de ouvir ou a de contar histórias,

tamanha sua dedicação a se inteirar a respeito dos causos de Lençóis e a disseminá-los entre

os que estivessem dispostos a escutá-lo. Suas amigas mais ligadas aos sistemas formais de

educação buscavam incentivá-lo nessa empreitada, fazendo notar que tanto ele como sua

companheira diferiam de professores que apareciam na cidade e que se diziam contadores de

histórias por terem feito cursos nesse sentido, enquanto eles tinham adquirido seu saber de

maneira orgânica, vivenciando as situações sobre as quais discorriam ou tendo escutado seus

158
O termo “nostalgia estrutural” (Herzfeld 1997: 147), parece ser perfeitamente adequado ao estilo de
reativação constante do passado como referência fundamentadora no jarê e alhures.
122

relatos cercados de circunstâncias específicas, sendo nativos da região. Elias contava, por

exemplo, como tinha durante muitos anos “recebido ensinamento” da saudosa Senhorinha,

que por sua vez o recebera de Sá Miliana, descendente de nagôs que fora filha-de-santo de Zé

Rodrigues, o líder religioso de jarê mais importante do passado de Lençóis de que ainda se

guarda memória. Elias enfatizava a importância de receber o ensinamento estando bem

próximo das senhoras que o transmitiam, num processo demorado que podia levar horas a fio

a cada dia da semana, tempo que passava auxiliando-as em alguma tarefa doméstica, como

cortar chuchu ou mamão verde, enquanto as escutava. Ele também se lembra que, ao longo do

processo, suas interlocutoras lhe perguntavam continuamente se havia entendido o que

acabavam de dizer, certificando-se de que compreendera os detalhes corretamente, algo que

não podia ser feito por livros, mudos que eram.

Com o tempo Elias se deu a missão de ouvir e registrar da melhor forma possível as

histórias que lhe contavam as pessoas mais idosas de Lençóis, que visitava com gosto e com

as quais forjou fortes laços de amizade. Passou a ter o hábito de andar com um pequeno

caderno de notas em seu mocó, no qual fazia registros pontuais se algo lhe viesse à mente

durante uma caminhada pela cidade, bem como escrevia resumos das conversas e entrevistas

que realizava com esses senhores e senhoras, porventura depois digitados e armazenados em

seu correio eletrônico. Elias não costumava recorrer ao material que acumulara ao longo dos

anos, tanto por este se encontrar bastante desorganizado como por nunca ser tão completo

quanto o registro que mantinha em sua memória. Ele tinha também suas próprias

interpretações a respeito de algumas das histórias fantásticas que escutava, elaboradas junto

de seus amigos mais próximos em encontros sempre alegres e que davam testemunho de seu

raciocínio vertiginoso, mobilizando sem interrupção, por exemplo, elucubrações mitológicas,

estratégias eclesiásticas, consequências políticas, geologia pré-histórica159.

159
Como quando debatia com um amigo sobre os eventos em torno da história da serpente que habitava sob a
Ponte dos Suspiros, relatada no capítulo 1, seção 1.3.
123

De certa forma, como ele mesmo afirmava, Elias se contrapunha aos muitos

pesquisadores que, como eu, visitavam a Chapada por algum tempo com um objetivo

institucionalmente orientado e que mais cedo ou mais tarde deixariam Lençóis para dar

continuidade a seus trabalhos. Os habitantes da cidade de modo geral já estavam inclusive

acostumados aos muitos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento que passavam

períodos de tempo variáveis na região – cientistas da saúde, biólogos, geólogos, geógrafos,

arqueólogos ou antropólogos, por exemplo. Alguns lençoenses mostravam interesse pelos

resultados concretos que teriam as pesquisas, mais ainda se pudessem vir a ser por eles usados

para algum papel transformador da realidade local, algo mais esperado no caso das ciências

humanas. Muitos dos pesquisadores que por lá passavam não davam nenhum tipo de retorno

para seus interlocutores depois de deixarem a cidade, fato que costumava entristecer

grandemente os envolvidos e deixá-los receosos de participar de empreitadas similares no

futuro. No tocante às pessoas que mais se envolveram com minha pesquisa, Elias me fazia

notar constantemente a importância de “dar notícia” após o término do trabalho de campo.

Essa necessidade tinha pouco a ver com qualquer vontade, que poderia ser inicialmente

suposta, de auferir frutos diretos resultantes do trabalho em questão (fosse prestígio, fosse

qualquer retorno financeiro), já que os envolvidos deixavam clara a convicção de que todo

tipo de trabalho – por mais estranho que ele seja – deve ser remunerado da forma que lhe seja

adequada. As notícias às quais sim desejavam ter acesso eram, de um lado, a respeito do bem-

estar do pesquisador agora distante e da data de sua próxima vinda a Lençóis, em função da

amizade cultivada e, de outro lado, confirmações sobre a utilidade e correção das informações

que lhe haviam transmitido – queriam saber se os encontros que ocorreram foram mutuamente

proveitosos160.

160
Mais de uma senhora me disse, de forma bastante explícita, que se de um lado havia o trabalho que eu estava
fazendo e que levaria de lá, de outro eu deixava lembranças e agradecimentos que ficariam com eles em Lençóis,
em operações de troca equivalentes.
124

A companheira de Elias costumava lhe dizer que ele deveria tentar ser ao menos um

pouco mais seletivo quanto às iniciativas que decidia ajudar, fossem de pesquisadores de fora

da cidade, fossem de nativos que esperavam que ele não recebesse nada em troca por seu

trabalho, às vezes nem mesmo o reconhecimento de tê-lo feito. Ambos haviam sido marcados

pelas já mencionadas experiências bastante negativas junto à associação Grãos de Luz e Griô,

que se somaram a uma decepção já nutrida por Elias em relação ao sistema educacional

institucionalizado, exemplificada por um episódio que certa vez me narrou. Um professor

vindo de Minas Gerais que ofereceu aulas de informática para Elias e alguns amigos, depois

que todos já haviam concluído o Ensino Médio, fez menção a um episódio da ditadura militar,

somente para descobrir que nenhum dos jovens jamais tinha ouvido falar a respeito da

imposição desse regime no país ao longo de toda sua trajetória estudantil 161. Elias passou a ter

grande interesse em saber mais sobre um período que havia sido suprimido de seu currículo

escolar, vendo aí, acredito, simultaneamente renovado seu gosto por mergulhar justamente

nos acontecimentos que não tinham feito parte das aulas de História que tivera – aqueles que

para ele constituíam um espécie de história menor, como os que acompanhara com

entusiasmo desde mais novo.

Com o tempo, e depois de suas tentativas em ser aprovado num vestibular para uma

universidade pública, Elias se desiludiu com a academia e desistiu, talvez ao menos por

enquanto, de continuar seus estudos formalmente. Ele afirmava, categórico, que o sistema

universitário (e em especial suas formas de ingresso) de maneira geral não demonstrava

interesse no tipo de saber que ele possuía, exigindo – e dando ênfase demasiada para –

correção linguística normativa e uma capacidade de expressão escrita que ele não possuía e

não mais desejava gastar tempo tentando adquirir. Contudo, não é nenhum exagero dizer que

Elias tornou-se um intelectual não acadêmico, e por vezes anti-acadêmico, e que continua a se

161
Tampouco estudaram textos de Machado de Assis ou Castro Alves, Elias acrescentou significativamente, o
ensino da cidade dando preferência a autores locais como Afrânio Peixoto e Urbano Duarte.
125

aprimorar enquanto tal, fatos que me saltaram aos olhos de maneira crescente conforme nosso

tempo de convívio foi-se acumulando, e possivelmente em função da afinidade entre o

conhecimento que ele já possuía e aquele que eu começava a delinear e que viria a resultar

nessa tese162.

As disposições de Elias diante do conhecimento acadêmico de certo modo refratavam

as formas que ele considerava adequadas para lidar com o saber tradicional que acumulara,

ficando dividido entre as alternativas de transmitir ou não as histórias que ouvira.

Diferentemente de pessoas que consideravam que seu registro e futura publicação eram

suficientes para justificar a realização de uma pesquisa a respeito dos eventos transcorridos

em Lençóis, Elias levava sempre em conta os destinos que seu relato poderia ter, bem como

perguntava e imaginava as motivações dos senhores e senhoras que lhes haviam transmitido

causos e ensinamento, que variavam entre tê-lo feito para que ele as preservasse ou só para

passar o tempo, devendo depois cair no esquecimento. Muitas das histórias que lhe haviam

sido contadas poderiam se perder para sempre caso ele não lhes conferisse algum destino

público; ao mesmo tempo, com inúmeras delas isso já havia acontecido, e muitas vezes de

modo absolutamente premeditado: havia histórias que lhe eram contadas sob condição de não

serem repetidas, outras às quais se fazia alusão mas nunca eram inteiramente enunciadas,

outras que ele tinha certeza serem segredo absoluto. Elias lembrava-se bastante nesses

momentos também das nagôs, e de como seus cultos de certo modo se extinguiram, muito de

seu saber perecendo com elas. Não havia resposta simples nem única para esse exercício de

pensar e exercitar os limites da finitude, que por vezes chegava a ser paralisante, ainda que só

momentaneamente. Escrever e transmitir o que havia recebido poderia significar que no


162
Certa vez, enquanto conversávamos pela internet, e numa época em que eu ainda tentava, como outros de
seus amigos acadêmicos, estimulá-lo a voltar a investir em sua educação formal, Elias me interrompeu para
perguntar como se escreviam os nomes “Sorbonne” e “Pierre Verger”. Em seguida, retrucou indiretamente – de
modo lacônico como costumava fazer quando sabia que teria a última palavra – que aquela prestigiosa
universidade havia concedido, em caráter extraordinário, a esse pesquisador francês (que ele muito admirava) o
título de doutor por sua contribuição acadêmica, mesmo tendo Verger abandonado a escola ainda jovem. Não
pude senão deixar de tentar dissuadi-lo.
126

futuro outras pessoas experimentariam o mesmo tipo de alegria que ele viveu ao tomar ciência

desses eventos; ao mesmo tempo, Lençóis agora era outra e é possível que deva – ou mereça –

também lidar com certos esquecimentos163.

Elias me diria, meses após termos nos conhecido, que o motivo pelo qual não recusara

se aproximar de um acadêmico interessado no jarê fora a cautela que eu demonstrara ao tentar

começar contatos com as pessoas de Lençóis, enfatizando a importância de pretender se

estabelecer por um período de tempo considerável na cidade e de se mostrar digno da

confiança conquistada ao longo do tempo mantendo-se sempre humilde164. A meu favor

também muito pesou a intimidade que ele havia estabelecido com outra antropóloga, Marta –

que se tornara companheira de Carlão após a separação deste –, que havia feito trabalho de

campo na África e passara a visitar Lençóis com alguma frequência, lá cultivando amizades

sem ligação com qualquer pesquisa165. Elias dizia que, como ela, eu aos poucos conseguira

“fazer a cama” e firmar laços de confiança com as pessoas ligadas ao jarê, o que me permitiria

“deitar nela” e conduzir minha pesquisa de forma tranquila. Não há dúvida de que muito

desse resultado foi devido ao próprio Elias, que em algum tempo tornou-se não só meu

assistente de pesquisa – seria mais exato dizer um copesquisador no campo – como um de

meus melhores amigos em Lençóis166.

163
O fato de que ele tenha compartilhado algumas dessas histórias comigo, ciente de que elas poderiam vir a
fazer parte desse texto, parece indicativo de uma concessão ao primeiro desses ânimos – sendo preciso notar que
essa tese não se confunde com e nem jamais poderá substituir o destino que o próprio Elias dará ao material que
recolheu. Acredito, de qualquer maneira, que há histórias a respeito de nós mesmos que nos são tão caras que,
algo paradoxalmente, só podem ser contadas por outrem.
164
Em larga medida, a riqueza dos resultados obtidos pelo pesquisador é função da qualidade das relações
humanas estabelecidas no campo (Souty 2007: 85).
165
Marta realizou trabalho de campo em Moçambique para sua tese de doutorado em Ciências Sociais, defendida
na Universidade Estadual de Campinas (Jardim 2006). Segundo Elias, além da disposição para “fazer amigos e
cativar pessoas” que ambos demonstrávamos, e que ele disse que agora passava a considerar um traço típico dos
antropólogos, nos unia também certa fixação por genealogias, equivalente à que os historiadores demonstravam
por documentos.
166
Ver fotos 17 e 18 no anexo III.
127

Minha rotina diária passou a envolver acompanhar Elias por suas andanças e

conversas com os habitantes mais antigos da cidade, aos quais ele aos poucos me apresentava.

Havia certa afinidade eletiva entre o tipo de pesquisa que envolvia escutar por longas horas as

histórias que os mais velhos tinham para contar e seu desejo de compartilhá-las, muitas vezes

explicitada por eles ao comentarem que hoje em dia as pessoas mais novas raramente se

dispunham a ouvi-los com a necessária calma. Faziam referência com alguma saudade às

histórias de um período que muitas vezes eles tampouco tinham alcançado, causos que tinham

ouvido de seus pais e avós a respeito do “tempo dos antigos” e de uma época na qual a

oralidade tinha importância muito maior, um tempo “quando as coisas não eram escritas”.

Após esses encontros, depois de nos despedirmos dos senhores e senhoras que visitávamos,

Elias costumava repassar comigo o que havia sido dito para se certificar que eu havia

entendido tudo corretamente, comentando que eu devia também preparar a casa que alugara

para receber visitas, bem como conhecer importantes marcos na cidade aos quais as histórias

faziam referência (como o cemitério, determinados rios e lagoas, montes e cruzeiros nos quais

se fazia devoção etc.).

A presença constante de Elias abria também possibilidades de interlocução às quais eu

dificilmente teria acesso – ou pelo menos não em tão pouco tempo – já que os senhores e

senhoras com quem conversávamos se sentiam muito mais confortáveis ao falar com ele do

que em responder qualquer curiosidade que tivesse o rapaz branco vindo de fora que

conheciam há pouco tempo – o que fazia com que eu participasse bem mais como um ouvinte

interessado, porém tímido, que de início não oferecia senão poucas perguntas e comentários.

O próprio Elias viria a elogiar essa conduta, comentando em separado comigo como eu fazia

bem em permanecer humilde e circunspecto, decidindo concomitantemente passar a fazer

troça, de modo proposital, da afeição que começava a surgir entre os senhores e senhoras que

ele conhecia há tanto tempo e o antropólogo que lentamente ia começando a fazer parte de
128

suas vidas, de modo a estreitar nossos vínculos. Para tanto, Elias assumiu comigo uma postura

jocosa – possibilitada por nossa proximidade e bastante comum em Lençóis entre amigos do

sexo masculino e idade aproximada – segundo a qual ele rotineiramente me tratava de modo

desdenhoso diante de pessoas de quem eu já começava a ser próximo.

Eram três as principais formas de caçoar que Elias usava nesse sentido: dizer que eu

não era uma pessoa “de confiança”, algo que quando afirmado de forma séria constitui grave

ofensa na região167; chamar-me pelo apelido que ele havia me conferido – “Amarelo”,

enfatizando minha compleição que denotava eu não ser negro168; dizer que ninguém deveria

se apegar a mim porque eu não estava morando de forma permanente na Chapada e mais cedo

ou mais tarde iria deixá-los. A zombaria de Elias acabava tendo efeito oposto quando, por

vezes diante da minha ausência de réplica, inevitavelmente nossos amigos lhe admoestavam e

indicavam – ou, ainda, a partir daí justamente passavam a cultivar – certa simpatia pelo alvo

da troça169. Seria então possível dizer que a atitude galhofeira de Elias teve exatamente o

efeito que ele esperava, nutrindo – e simultaneamente me fazendo perceber quando já existia

– determinada intimidade entre todos os presentes. Durante os últimos meses de minha estadia

em Lençóis, quando já havíamos nos tornado próximos o bastante, eu procurava responder às

provocações de Elias na mesma moeda, provocando risos de aprovação da parte de nossos

amigos em comum e uma resposta tão jocosa quanto buliçosa do próprio, como por exemplo:

“Se você faz isso com vara verde, imagina com a seca...”

167
A questão fundamental de se ser ou não alguém “de confiança”, bem como suas repercussões no âmbito da
vida mística do jarê, receberão desenvolvimento detalhado no capítulo 4, na seção 4.2.
168
Elias achou o apelido ainda mais engraçado quando descobri e lhe mostrei que essa era a mesma forma pela
qual os inimigos do coronel Horácio de Mattos se dirigiam a ele, função de seu tom de pele “hepático” (Moraes
1963: 104, 110 nota 1).
169
Certa vez cansada pelo uso repetido que Elias fazia do epíteto que me reservara, já decorridos alguns meses
de trabalho de campo, uma senhora por quem ele tinha grande admiração, e de pele mais clara que a dele, certa
vez lhe disse: “Não chama ele mais disso, não, Elias. Ele é negro igual eu e você somos”.
129

Permanecer por tempo suficiente na Chapada era uma demanda premente das pessoas

com quem realizava minha pesquisa, bem como se fazia necessária ao menos a indicação de

quando meu trabalho acadêmico seria concluído para que pudesse retornar a Lençóis – e

quem sabe me estabelecer por lá definitivamente, muitos sugeriam. A decisão de realizar o

trabalho de campo continuamente ao longo de doze meses também decorreu das distintas,

porém interconectadas, sazonalidades às quais as vidas dos habitantes da cidade encontram-se

submetidas. A primeira delas refere-se às variações em torno do fluxo turístico de visitantes,

que movimenta consideravelmente a economia local e depende não só do clima como dos

meses em que era mais comum se tirar férias, com altas principalmente no início e final de

ano. A segunda sazonalidade está ligada ao calendário de festas públicas locais, religiosas ou

não. De forma mais diretamente ligada à pesquisa, acompanhar ao longo de um ano a rotina

dos lençoenses permitiu imiscuir-me de forma mais abonada nos eventos comuns, já que

meus amigos comentavam como no passado outros pesquisadores haviam lhes pedido, para

citar um caso, que encenassem rituais fora de suas épocas corretas, o que não podia ser feito

em função das consequências místicas possíveis com as quais teriam de se haver.

“Labutar com gente”, dizia-se às vezes por lá, “é uma arte”. Essa arte, do ponto de

vista de minha pesquisa, me foi sendo apresentada e transmitida, entre outros, por Elias, que

dominava de forma invejável a habilidade de conversar. Tudo se passava como se Elias já

tivesse desenvolvido um método próprio para que os senhores e senhoras com quem gostava

de prosear acabassem falando a respeito dos assuntos que o antropólogo no campo procura

entender. Fazia-o de formas inclusive muito sutis, evitando perguntas diretas, falando só o

mínimo necessário, por vezes apenas esbarrando nos tópicos, deixando escorregar ideias,

temas, histórias, lembranças. O próprio Elias percebia como eu, especialmente nos primeiros

meses em Lençóis, frequentemente cometia algum deslize, algo que por vezes o frustrava um

pouco: “Afinal de contas, estuda-se tanto para isso?”, alfinetava rindo. Apesar disso, ele
130

costumava ser bastante tolerante e tentava me ensinar da melhor forma possível a falar e a

ouvir a respeito da vida dessas pessoas – até porque era também a reputação dele que estava

em jogo quando me apresentava a esses senhores e senhoras, posto que não o fazia

indiscriminadamente.

Via de regra, jamais realizei anotações diante de meus interlocutores, recorrendo por

vezes a um gravador portátil após nos despedirmos para deixar notas pessoais que

posteriormente resultariam em entradas escritas no caderno de campo170. Elias, depois de

alguns meses, constituiu-se entretanto numa exceção, já que passei a ter o hábito de confirmar

com ele informações que escrevia no dia anterior – sempre confiando em sua memória

prodigiosa para os detalhes que eu acabava esquecendo –, bem como de por vezes ler para ele

trechos que eu havia escrito para obter suas impressões a respeito do andamento de minha

pesquisa, trabalhar conjuntamente alguma ideia ou percepção, testar argumentos e

proposições e ouvir suas sugestões a respeito de lacunas que precisavam ser supridas. Elias

mencionava também a importância de escutar as pessoas em ocasiões nas quais ele não

estivesse presente, tanto para que eu mantivesse o hábito como para registrar versões distintas

que poderiam ser contadas em sua ausência – ou até mesmo em função dela. Nos dias que

antecediam as saídas para os muitos jarês que frequentei sem ele, Elias sempre me

aconselhava a acompanhar este ou aquele grupo de pessoas com quem imaginava me daria

melhor a cada vez.

Uma das preocupações que Elias costumava externar a respeito da escrita da minha

tese tinha a ver com as possíveis repercussões que haveria ao registrar e tornar públicos

170
Foi da mesma forma mínima a realização de entrevistas, feitas somente pouco antes do término do trabalho de
campo e a pedido dos próprios interlocutores, num processo descrito no capítulo 3, seção 3.3. O pouco
rendimento de entrevistas estruturadas já fora notado antes do início do trabalho, com exemplos de pesquisas na
Chapada e alhures que igualmente as desaconselhavam de forma expressa (Rabelo 1990: 103; Goldman 2006:
24; Brantes 2007: 30, 34). A genuína receptividade pela qual os habitantes do interior da Bahia são conhecidos
não significa que determinados tipos de informação serão necessariamente disponibilizados de forma rápida ou
ingênua, podendo gerar situações das quais tanto o pesquisador como seus interlocutores posteriormente farão
graça (Rabelo 1990: 153).
131

determinados acontecimentos e histórias, bem como fazê-lo identificando seus participantes.

A esse respeito, costumava tecer sempre dois comentários, em primeiro lugar lembrando-me

que, por mais que eu por vezes buscasse ter uma postura conciliadora e evitar conflitos, era

impossível agradar a todos o tempo todo (“Nem Jesus conseguiu isso”, ele disse mais de uma

vez); em segundo lugar, enfatizava como eu, por ser um pesquisador com determinada

formação e de fora da cidade, estava comparativamente mais livre – do que ele, por exemplo

– para obter e transmitir certas informações. Desse modo, a maneira como essa etnografia foi

escrita leva em consideração essas ponderações, optando por transitar entre uma forma

narrativa mais direta e um discurso mais oblíquo, como o que era muitas vezes empregado por

meus amigos de Lençóis171.

Especialmente utilizada para se falar de assuntos mais delicados, boatos não

confirmados ou comentários potencialmente ofensivos, essa narrativa mais tortuosa ou

enviesada refere-se de modo indireto a pessoas e eventos, prefere os pronomes aos nomes

próprios, e deixa que o contexto da enunciação e o conhecimento pregresso que se supõe ter o

ouvinte preencham as lacunas. Perdi a conta do número das vezes em que longas conversas

entre meus amigos transcorriam diante de mim sem que eu pudesse ter certeza (ou às vezes

sequer fazer ideia) a respeito de quem falavam, de quando e onde os episódios tinham se

passado, ou mesmo do que precisamente havia acontecido. Em parte essa dificuldade advinha,

como era de se esperar, do desconhecimento das histórias conexas transcorridas no passado,

dos sujeitos aos quais os apelidos se referiam, dos elementos para comparação aos quais

faziam menção. Contudo, tanto não fazia sentido interromper as narrativas para inquirir a

respeito dos detalhes de que eu não dispunha como, percebi progressivamente, acompanhar o

fluxo das histórias mesmo sem ter plena segurança sobre seu conteúdo podia ser prática usual

dos próprios ouvintes, que posteriormente viriam a confirmá-lo em momentos mais

171
Apresentado no capítulo 1, seção 1.3 e expandido a seguir.
132

reservados ou, ainda mais comumente, justaporiam diversas histórias que passariam a

preencher os detalhes umas das outras simultaneamente.

Assim é que procurei, ao longo da escrita da tese, reproduzir certas histórias, mesmo

as que presenciei em primeira mão, de modo parecido com aquele por meio do qual elas

poderiam ser relatadas para alguém que não as tenha vivenciado. Com isso, preferi evitar o

uso de recursos narrativos tais como pseudônimos, que em geral são empregados mais para

proteger a reputação – ou mesmo abreviar o trabalho – do próprio antropólogo do que

daqueles com quem conviveu. Se o uso dos nomes próprios de meus interlocutores abre a

possibilidade de que eles sejam prontamente identificados numa cidade pequena como

Lençóis, o mesmo poderia acontecer caso decidisse caracterizá-los de outra forma mas

mantivesse explicitadas suas participações e conexões em episódios mais controversos – dos

quais de outro modo teria de abrir mão para salvaguardar sua privacidade, o que por vezes foi,

de todo modo, feito. Contudo, o uso dessa narrativa oblíqua simultaneamente permite que, por

um lado, mesmo leitores que desejem proceder a essas identificações só possam fazê-lo caso

se dediquem a obter o conhecimento contextual que as completa – e que segundo essa retórica

só se pode adquirir no convívio entabulado, enquanto, por outro lado, abre a possibilidade

para que aqueles de quem falo reconheçam a si mesmos e aos seus nessas linhas. Ou, para

dizê-lo de outro modo, e parafraseando as nagôs, para que só entenda quem tem que

entender172.

O trato pessoal com aqueles que vieram a ser meus amigos em Lençóis, especialmente

no início de nossa interação, era marcado por um grau considerável de formalidade. Em

pouco tempo aprendi que praticamente toda pessoa que já possui idade suficiente para que

pudesse ser seu pai ou mãe pode – ou deve, a depender da situação – ser chamado por

172
Esse é também um dos motivos pelos quais esse texto assim se organiza, o jarê surgindo somente depois da
metade desse capítulo para que o leitor não só tenha acesso às demais histórias com as quais ele se combina
como saiba por quais meios elas foram adquiridas, a própria textura narrativa da tese apresentando
transformações ao longo de seu desenvolvimento.
133

“senhor” ou “senhora” e seu nome antecedido por “Seu” ou “Dona”. Essa medida de respeito

é bastante apreciada pelos cidadãos mais velhos e explicitamente exigida, ainda que de forma

branda, das crianças, às quais é ensinada desde cedo. A boa educação quase excessiva podia

ser também uma medida de distanciamento que eu posteriormente perceberia ser quase

imediatamente acionada nas primeiras interações dos nativos com pessoas brancas173, apesar

de minha tentativa de oferecer sua recíproca costumasse, Elias me diria, gerar ligeira e

positiva surpresa.

Por um tempo considerável, inclusive, uma polidez provavelmente exagerada

constituía muito do pouco de que eu dispunha para que minha presença fosse, pelas pessoas

que eu começava a conhecer, ao menos tolerada – não raras vezes com um pouco de

condescendência da parte deles. Era comum, especialmente nos primeiros meses do trabalho

de campo, que os senhores e senhoras que eu visitava ocasionalmente me olhassem com um

misto de simpatia e enternecimento em função das minhas concomitantes ignorância para e

desejo de ver, ouvir e aprender a respeito do que tinham a contar. Um episódio significativo

aconteceu quando Elias me levou na casa de uma senhora que também morava no Alto da

Estrela para que eu fosse rezado, sem me explicitar seu motivo, ainda que eu o desconfiasse.

A antiga rezadeira, que era bastante requisitada, me colocou sentado numa cadeira voltada

para a porta, aberta, sem meus óculos, que fez questão de retirar, e com os pés descalços e

bastante juntos. Ela pediu que Elias lhe pegasse três ramos de uma planta próxima – que ele

depois me diria serem de arruda e terem murchado após absorverem as influências nocivas

que me acompanhavam –, que passou diversas vezes em torno da minha cabeça e sobre os

ombros e braços, varrendo-me sempre do centro para fora enquanto pronunciava rezas em voz

bem baixa. Terminado o processo, eu lhe disse um “obrigado” que foi recebido com um riso

complacente acompanhado do comentário para meu amigo: “Vê só, Elias, ele diz ‘obrigado’

173
Como já escrito a respeito de outra parte da Chapada (Brantes 2007: 28).
134

depois de ser rezado...” Fui então instruído a jamais dizer “obrigado” após receber uma reza, o

correto sendo “Deus lhe pague”, que repeti a seguir, me desculpando. Como já me haviam

dito, a reza constituía uma obrigação para aqueles que possuem a capacidade de fazê-la, que

jamais devem receber nada em troca por elas. Assim, como eu passaria a entender

posteriormente, dizer “obrigado” enfatizava uma posição de dívida do recebedor da graça que

diminuía a importância do compromisso do rezador, cujo cumprimento da sina é

complementado quando se sublinha seu caráter obrigatório e unilateral.

Enfatizo aqui a importância de se considerar as formas de polidez e deferência em

diversas situações não só por elas serem importantes para possibilitar a pesquisa como por se

mostrarem igualmente substância dela. Muito do que aprendi e que era transmitido mais

explicitamente teve a ver com as maneiras de se portar, as formas de se ouvir e falar, os

modos de se demonstrar o respeito devido. A partir desse ponto de vista, essa tese poderia ser

lida como fruto de um guia de etiqueta ou um manual de protocolo – para não dizer um

tratado sobre ética – que me foi passado pelos lençoenses mais velhos, especialmente aqueles

ligados ao jarê, já que há diversos procedimentos cerimoniais aos quais se deve prestar

atenção, dos constantes pedidos de bênção às posturas corporais, passando pelos ritos de

chegada, oferecimento de presentes e de ablução, por exemplo. Elias costumava ser

extremamente cioso com os comportamentos formais de praxe – em geral até mais do que as

pessoas mais velhas, de quem se poderia esperar tal diligência –, mas suponho que ao menos

em parte seu zelo fosse também ampliado didaticamente em função da minha presença. De

toda forma, ao acompanhá-lo eu acabava por aprender como me portar, com base não só em

seu exemplo como nas reações que a ele eram dirigidas ao me ensinar. Certa vez entreguei a

Elias um pacote de velas que trouxera de presente para o dono da casa na qual nos

encontrávamos – hábito comum quando se visita uma casa na qual se bate jarê –, para que ele

o repassasse por estar sentado mais próximo desse senhor. Quando Elias o entregou usando a
135

mão esquerda, os presentes foram rápidos em corrigir seu lapso, rindo e lhe lembrando que

toda oferenda devia ser apresentada com a mão direita, algo que talvez teriam deixado de

fazer caso fosse o forasteiro a cometer o deslize.

As visitas que fazíamos aos moradores de Lençóis costumavam se desenrolar na maior

parte das vezes nas salas das casas, primeiro cômodo ao qual se chega ao entrar, podendo

passar para a cozinha ou o quintal na parte posterior das construções no caso de pessoas com

quem Elias possuía maior intimidade. Na sala costumam estar sempre presentes os altares

domésticos que são alvo de constantes cuidados por seus mantenedores. São em geral

estruturas de madeira – normalmente um móvel ou prateleira presa na parede –, cobertas por

toalhas, nas quais ficam dispostos inúmeros objetos, sendo mais proeminentes os quadros e

estatuetas com imagens de santos. A composição de cada altar varia enormemente de acordo

com seus donos, que podem neles manter também copos com bebidas diversas, moedas,

chaves, velas, figas, colares, anéis, instrumentos musicais, conchas, flores, perfumes,

inúmeros berloques (de pinguins de geladeira a budas orientais), pratos, bacias e quartinhas, e

pedras variadas, incluindo as de raio. Nos altares domésticos das pessoas mais ligadas ao jarê

– que costumam ser mais similares aos altares cerimoniais das casas de culto, descritos

posteriormente – é comum que haja também imagens de orixás, caboclos e pretos-velhos, bem

como pedras que simultaneamente são e pertencem a essas entidades. A senhora que havia me

rezado me mostrou certa vez em seu altar uma pedra comprida e ovalada, cor de telha, que me

disse ser o Xangô de Elias. Ela se referia à pedra com a mesma afetuosidade que reservava

para seus outros santos, indicando-me: “Olha ele ali”, “Bonito ele, não?” Passei então a

observar a presença dessas pedras nos demais altares, em geral ocultas atrás ou mesmo

debaixo de outros objetos, existências preciosas reveladas somente aos mais íntimos.

Os altares domésticos, de toda forma, eram em si bastante acessíveis e causadores de

grande orgulho aos donos da casa quando alguém lhes pedia para observá-los mais de
136

perto174. Próximo às festas de fim de ano os altares recebiam a companhia dos presépios,

chamados mais comumente de lapinhas, erguidos com grande esmero no mesmo cômodo dos

primeiros e com alguns objetos em comum. Os presépios de Lençóis, contudo, eram armados

com uma gama ainda mais variada de itens, em geral remetendo à infância, em conexão com a

história do Deus Menino, que influencia alterações feitas nos presépios ao longo dos últimos e

primeiros dias do ano. As lapinhas costumam também ser adornadas com flores e plantas,

naturais ou artificiais, e dispostas sob um cenário imitando uma formação rochosa, feito com

pano ou papelão, e por vezes lembrando mesmo uma cachoeira175. A coexistência de traços

ligados a distintos referenciais religiosos era uma marca que não ficava, de todo modo, restrita

a esses altares, como será visto a seguir.

2.3 Subversões

As pessoas com quem convivi em Lençóis não tinham grande ligação com a Igreja

Católica em sua face mais institucionalizada, não frequentando os templos localizados na

cidade senão em ocasiões bem específicas – em geral batizados. Raramente se identificavam

174
Algo que acontecia igualmente com os altares rituais das casas de jarê, e o pedido para vê-los mais
demoradamente era sempre recebido com entusiasmo. Provavelmente eu teria demorado mais a fazer essa
solicitação, imaginando que fossem, como nas casas de candomblé litorâneo, envoltos em segredo e não tão
acessíveis de antemão, não fosse pelo conselho de que os altares pareciam constituir uma excelente porta de
entrada no início da pesquisa (Rabelo 1990: 164 e comunicação pessoal).
175
A montagem das lapinhas em outro município da Chapada foi descrita de forma bastante precisa como uma
“composição eternamente inacabada feita de partes independentes e recombináveis [na qual o]bjetos cotidianos
deslocados do seu contexto utilitário são associados ao nascimento de Jesus”. A descrição, que poderia
igualmente se referir a Lençóis, prossegue: “Loção cremosa, perfumes, sabonetes, esmalte de unhas, e tudo que
exala algum cheiro é relacionado ao incenso oferecido pelos Reis Magos a Jesus. Lâmpadas, farol de carro,
velas, e tudo que ilumina mostra a chegada da luz no mundo. Os bonecos e os brinquedos simbolizam tanto a
criança nascida como os presentes que lhe são oferecidos. Os bichos de plástico, louça, barro, ou qualquer
material, remetem ao lugar que Jesus nasceu e à criação de animais (porco, galinha, boi) no cotidiano da vida
local. Os calendários e relógios são associados ao começo dos tempos, simbolizado na passagem cotidiana dos
dias e das horas. Além destes elementos[,] que podem ser combinados com outros, como conchas, pedras,
desenhos, objetos pessoais, fotografias de pessoas da família, do Papa, do padre Marcelo Rossi, cartazes de
propaganda política etc., a presença das imagens de Santos é recorrente em todas as Lapinhas” (Brantes 2007:
38-39). Ver fotos 19 e 20 no anexo III.
137

também como católicos, questão que de todo modo praticamente nunca lhes surgia no seu

cotidiano. Quando o assunto surgia numa conversa qualquer, frequentemente, e com saudade,

lembravam-se de um dos párocos que Lençóis tivera anos atrás e que mantinha com todos

uma relação de amizade, deixando os membros do jarê à vontade para conversar em seus

próprios termos sobre suas práticas e dilemas, apoiando e participando de manifestações

populares tradicionais que não faziam parte da liturgia católica, por vezes bebendo com os

habitantes da cidade e chegando mesmo a convidar um padre negro para celebrar uma missa

conga, paramentado com vestimentas africanas, como me contou Elias176. Já o pároco atual,

por sua vez, mais conservador, não era visto com grande apreço por aqueles que admiravam o

estilo mais ecumênico do primeiro. Nos dias de hoje era comum que muitos dos lençoenses

mantivessem, de toda forma, uma relação devocional bastante próxima com santos

específicos, bem como participassem ativamente de eventos públicos como procissões e

comemorações conectáveis a esse catolicismo popular, pouco romanizado.

Há uma pequena procissão feita todo oito de dezembro, dia da padroeira oficial de

Lençóis, Nossa Senhora da Conceição. Essa marcha, contudo, empalidece diante da realizada

ao final da novena de Senhor dos Passos, no dia dois de fevereiro de todo ano, mobilizando

virtualmente todos os habitantes da cidade. Seu Gilson me chamava atenção para o caráter

revelador que tinha a ordenação dos diferentes setores na caminhada, organizada e liderada

pelos membros ligados à Igreja Católica, acompanhados pelos devotos carregando os santos

homenageados, bem como por alas nas quais se dispunham filarmônicas da região,

garimpeiros ilustres, tocadores de reisado e baianas paramentadas, por fim seguidas pelo

restante da população circundando o centro histórico da sede do município. A possibilidade

176
Numa atitude bastante parecida com a que tinha o pároco do distrito de Nova Redenção, na cidade vizinha de
Andaraí, provavelmente na mesma época, atribuída ao reformismo católico posterior ao Concílio Vaticano II
(Rabelo 1990: 58-59, 119, 310-312).
138

de participar no corpo de frente da procissão e, especialmente, a chance de carregar as

imagens dos santos são consideradas grandes honras.

Os tocadores de reisado saem em festa pela cidade no início de janeiro, próximo do

Dia de Reis, trajando roupas coloridas e cantando músicas animadas de casa em casa, nas

quais podem ser recebidos com comida e bebida em troca da alegria que proporcionam. A

principal responsável pelo reisado em Lençóis, Dona Domingas, uma senhora de 68 anos e

que o comemorava desde que tinha 27, herdou essa obrigação de sua mãe, que a herdara de

sua avó. A mãe de Domingas havia feito uma promessa no nome da filha quando esta,

grávida, fora atingida por uma bala perdida numa troca de disparos entre dois homens que

discutiam por um motivo frívolo. Sua mãe pedira que ela ficasse viva para poder criar os dois

filhos que já tinha, garantindo que em troca Domingas daria continuidade à tradição de visitar

as lapinhas e organizar o reisado, o que foi feito após ela ter sobrevivido, ainda que perdendo

o filho que carregava. Para ela, manter viva essa festa é ao mesmo tempo uma honra e uma

obrigação, uma recompensa e um fardo que carrega com brio. Em uma de nossas visitas, Elias

lhe perguntou se havia alguma ligação do reisado com o jarê, levando Dona Domingas a

responder inicialmente de modo negativo, para depois mencionar o Rei de Congo como

exceção. Elias me explicou que este era um dos três reis magos, o único negro e africano, que

podia incorporar nos tocadores do reisado após as rezas que lhe precedem. Quem o recebia

era normalmente o marido de Dona Domingas, podendo se comunicar numa língua

incompreensível aos presentes, e que Elias suspeitava poder ser alguma forma de iorubá177.

Ao final de janeiro, o início dos dez dias da festa dedicada a Senhor dos Passos é

marcado por uma tradição trazida de Salvador e adaptada localmente, a lavagem da igreja. A
177
Ver fotos 21 e 22 no anexo III. As pessoas envolvidas com o reisado costumavam indicar as dificuldades
financeiras que tinham para manter viva sua tradição (Senna 2002: 219), reclamando também da recusa de uma
associação local em ajudá-los financeiramente, ignorando os dias de trabalho que muitos perdiam para organizar
o reisado e realizar apresentações em outras épocas do ano, como por vezes lhes solicitavam. O fato de sua
imagem também já ter sido veiculada em diversos produtos dessa associação sem que seu conjunto tivesse
recebido o crédito e a remuneração equivalentes só aumentava sua desconfiança e insatisfação com a parceria
estabelecida no passado com essa associação.
139

prática inspira-se na Lavagem do Bonfim, realizada na capital baiana, transmitida aos

lençoenses por um filho-de-santo já falecido, o saudoso Fernandinho, figura que Elias muito

admirava apesar de não ter chegado a ser próximo em vida. Sua organização passou em

seguida para as mulheres de uma família local que a mantinham agora ao longo de duas

gerações, sob a liderança de Dona Vâny, buscando a cada ano que se fazia necessário a

obtenção de adereços e roupas típicas de baianas, bem como os instrumentos para a lavagem

da capela. A maior parte das baianas era composta por filhas-de-santo de jarê, acompanhadas

por quaisquer outras pessoas que quisessem auxiliá-las no processo da lavagem.

Diferentemente do que acontecia em Salvador, gostavam de lembrar, em Lençóis a lavagem

não se limitava à escadaria e ao adro da igreja, sendo igualmente importante a limpeza do

interior da construção178.

Outro ritual tradicional, igualmente sensível por também envolver em sua conclusão a

ocupação do espaço interno da igreja, é o da lamentação das almas. Feita ao longo de vários

dias, ela tem seu término na noite da Sexta-Feira da Paixão, dia no qual não se deve comer

carne vermelha e se aconselha cumprimentar os mais velhos com saudações específicas à

data. A lamentação é, da mesma forma, organizada por um conjunto de pessoas ligadas ao

jarê – distinto do responsável pela lavagem da igreja, ainda que com algumas sobreposições e

composto na maioria por mulheres – que se cobrem com lençóis ou outros panos brancos e

caminham durante algumas horas por trajetos previamente combinados entoando rezas

acompanhadas pelo som de uma ou duas matracas de madeira. As matracas são guardadas

com grande zelo ao longo de todo ano, com suas partes separadas, só sendo montadas na

época da lamentação, as cordas que unem suas partes nunca podendo ser cortadas, somente

desatadas.

178
Ver fotos 23 e 24 no anexo III.
140

A lamentação é feita em paradas sucessivas, chamadas “estações”, que devem ser

sempre em número ímpar – em geral três, cinco ou sete –, fazendo com que ao final do

processo todos os cantos da cidade tenham recebido as rezas. As almas dos mortos são

simultaneamente apaziguadas e nutridas por essas rezas e pela luz das velas que são acesas e

deixadas em cada estação179, sendo as mais importantes delas as que envolvem paradas diante

e no interior do cemitério da cidade. Lá, as lamentadoras prestam especial atenção aos

túmulos de seu pai-de-santo e da mãe deste. Fazem o possível, contudo, para não se comover

no processo, tanto no cemitério como fora dele, já que os excessos emocionais atraem a

atenção das almas de modo indevido e possivelmente com consequências nefastas – mesmo

motivo pelo qual não se deve rir e se evita qualquer tipo de gracejo durante essas noites,

momentos de rara sisudez se comparados aos outros nos quais as mesmas pessoas se reúnem.

Da mesma forma, deve-se evitar ficar diante das matracas que conduzem o cortejo, espaço no

qual se concentram energias potencialmente danosas e onde é mais comum que aparições –

que devem ser prontamente ignoradas – sejam avistadas. Além das coberturas corporais que

utilizam, evitar falar os nomes dos mortos é outra medida utilizada para não provocar seu

interesse pelos vivos. Elias me disse que as almas encontravam-se especialmente inquietas na

Quaresma, período no qual não eram devidamente cultuadas em função dos terreiros estarem

fechados180. A última estação do dia derradeiro da lamentação acontece justamente no interior

da igreja, com as lamentadoras sentando-se na nave principal e sendo observadas pela

assistência, que permanece no local ao final da missa. Os ecos provocados pelas matracas na

179
Motivos pelos quais o ritual também pode ser chamado de alimentação ou encomendação das almas, formas
distintas sendo preferidas em diferentes cidades da Chapada (Bandeira 1995: 205 nota *). A prática, de forma
quase idêntica, já foi descrita na literatura sobre a região, sua menção mais antiga em Lençóis remetendo à
década de 1920 (Moraes 1963: 136 e nota *; Gonçalves 1984: 139-140). Ver fotos 25 e 26 no anexo III.
180
Elias também creditava à perseguição da Igreja Católica, que fora muito mais acentuada no passado, o fato de
os terreiros encerrarem suas atividades durante a Quaresma, numa proibição que com o passar do tempo
acostumou as almas dos mortos a ficarem especialmente arredias nessa época do ano.
141

capela soavam quase tão lúgubres quanto as batidas secas que produziam no cemitério,

desamparadas por suas paredes baixas, deixando-se perder noite adentro.

Junto de outros acontecimentos, os rituais da lavagem da igreja e da lamentação das

almas despertaram minha atenção para uma das relações específicas estabelecidas entre as

religiões de matriz africana no Brasil e o catolicismo, se entendidos enquanto sistemas

relativamente autônomos. Uma interpretação, suas variações em geral abrigadas sob o nome

de “sincretismo”, costuma dar ênfase ao surgimento de uma síntese equilibrada, uma forma

que reconhece interpenetrações e alterações pelas quais a religião em foco passa diante do

contato181. O sincretismo pode surgir tanto como o reconhecimento de uma estratégia de

resistência como uma de subordinação, quer se refira, por exemplo, à capacidade de uma

religião de matriz africana de se mesclar com e aproveitar afinidades potenciais do

catolicismo com objetivo de manter vivas suas práticas, quer se centre nas capitulações

resultantes do jugo ao catolicismo. Doutrinas elaboradas com o propósito expresso de

sintetizar diversas – senão mesmo todas as – religiões podem ser entendidas como animadas

por um “ecletismo”, expressão máxima da primeira leitura. Outra interpretação, por fim, seria

a do “pluralismo”, enfatizando a justaposição de estruturas distintas que podem conviver com

certo grau de independência182. O pluralismo procura salvaguardar uma separação

fundamental entre o catolicismo e as religiões de matriz africana, apontando para

possibilidades de um princípio de coexistência. Se é verdade que tanto o jarê como os rituais

anteriormente descritos podem ser proficuamente compreendidos segundo essas chaves de

análise, há uma forma adicional de pensá-los que ilumina uma dimensão suplementar de seus

fenômenos de amalgamação: poderia ser chamada de “subversividade”. Da perspectiva

181
Leitura que por vezes corre o risco de apresentar um quadro extremamente simplificado dos fenômenos de
contato, cujos exemplos (Prandi 2012: 90-96) esvaziam sua sofisticação.
182
O proponente dos dois últimos termos os exemplifica em especial fazendo recurso à umbanda e ao omolocô,
para o primeiro, e o candomblé litorâneo, para o segundo (Serra 1995: 14-15).
142

subversiva, o catolicismo serviria como fonte de abastecimento para as religiões de matriz

africana que encontrariam, no processo possivelmente premeditado de perturbação contínua

do primeiro, recursos não só para sua sobrevivência, mas para sua transformação183.

Antes da lavagem da igreja pelas baianas que eu acompanhei, por exemplo, surgiu um

boato que dizia que o padre considerava impedir a lavagem do interior da construção,

querendo limitar sua ação às partes externas. As baianas reunidas achavam muita graça nesse

rumor, não hesitando em dizer que se o padre esboçasse alguma reação nesse sentido lhe

dariam um banho enquanto continuariam a lavar também a parte interna da capela, como

faziam todo ano. As baianas saíram em cortejo da casa da associação dos garimpeiros e se

dirigiram à capela de Senhor dos Passos, no interior da qual um dos pais-de-santo do jarê de

Lençóis as aguardava, descalço, trajado com suas vestimentas cerimoniais e já tendo

habilmente se apossado da única mangueira disponível, tornando-se central ao desenrolar do

ritual para fornecer água às baianas. O padre guardou certa distância do grupo, e quando a

lavagem finalmente teve início se retirou rapidamente, frustrando a possibilidade de lhe darem

um banho, para a infelicidade das baianas que comentavam como adorariam protagonizar essa

cena.

Apesar de as baianas estarem munidas de vassouras, baldes e sabão, e serem

acompanhadas na lavagem tanto por outros habitantes da cidade que queriam fazer parte do

momento como das carolas que procuravam zelar pelo andamento do processo, a limpeza

propriamente dita do local – ainda que tenha sido perfeitamente efetuada – parecia ser

prioridade apenas dessas últimas. Para mim pareceu cada vez mais claro que a muitas das

baianas interessava bem mais a irrupção conjunta na capela depois de terem subido,

183
A discussão aqui apresentada deriva de maneira integral da concepção de “iconoclastia” nas religiões da
matriz africana como uma forma de “corrosão cosmológica” potencializante, como proposta por seu principal
autor (Anjos 2009: 24). Conforme explicita, não se trata de afirmar que o regime de enunciação dessas religiões
seja antes de tudo iconoclasta, mas de notar que sua iconoclastia é capaz de reverberar nos potenciais de outras –
como a católica (Anjos 2009: 21; Oro & Anjos 2009: 112). A ideia do caráter subversivo do jarê aparece
também em alguns trechos da principal etnografia existente sobre o culto (Rabelo 1990: 7, 10, 23, 296).
143

imponentes, suas escadarias, a apropriação do espaço interno da construção, e a possibilidade

de ali realizarem uma atividade alegre e descontraída, como acabou sendo a lavagem. O pai-

de-santo concentrava-se tanto em fornecer água para a limpeza como em molhar os pés de

todos os que os acompanhavam, parte igualmente importante do ritual de lavagem. Alguns

dias depois, durante a festa para Senhor dos Passos, encontrava-me junto dele, de uma carola

da igreja e de Carminha, a puxadora da quadrilha Bicho-do-Mato. A carola comentava como

achava que o padre estava correto em não querer permitir a lavagem do interior da igreja, já

que o chão molhado, por exemplo, poderia danificar os bancos quando fossem recolocados

em seu interior, posto que as baianas cuidavam só de lavar e não de enxugar o espaço184.

Ambos comentaram com ela que já realizavam a lavagem dessa forma há muitos anos, e que o

enxugamento nunca fizera parte dessa tradição. Carminha se virou de lado e comentou

comigo em voz baixa e de forma sucinta: “É uma guerra, viu...”

Essa guerra veria outro combate ser travado ao final do ritual de lamentação das

almas, na estação na qual as rezas são entoadas dentro da igreja. As senhoras responsáveis

pela manutenção da tradição já haviam comentado como certa vez, anos antes, o padre

reclamara de ter sido obrigado a esperar a execução de todas as etapas da lamentação,

querendo determinar um horário específico para sua conclusão e finalmente chegando a

fechar as portas da igreja por ter se cansado de esperá-las. As lamentadores ficaram bastante

ofendidas de terem que rezar a última estação somente do lado de fora da construção,

comentando que o padre achava que a igreja era dele, quando se sabia que a igreja era de

todos. No ano em que estive em Lençóis e pude acompanhar a última e mais importante noite

da lamentação das almas, o conjunto havia se reunido para decidir quais estações seriam

184
A literatura escrita a partir do ponto de vista da elite local sugere que “as representações pagãs” eram
toleradas pelo catolicismo por “se mostrarem imbuídas de espírito cristão” (Ganem 2001: 51). A disposição
subversiva dos adeptos do jarê, ao contrário, pode ser entendida também como um modo de resistência contra a
romanização do catolicismo que começou a ser estimulada justamente na metade do século XIX no país (Rabelo
1990: 69-70).
144

mantidas no percurso, já que chovia consideravelmente. Um dos senhores que acompanhava o

grupo disse que o padre havia comentara não ter nada a ver com as almas, dando a entender

mais uma vez que não esperaria as lamentadoras por muito tempo. O senhor, levantando os

ânimos do grupo, lembrou de modo arguto que o padre de fato não tinha nada a ver com as

almas e sim com a igreja, e que eles, por sua vez, tinham tudo a ver com as almas, e nada a

ver com o padre, num ligeiro e preciso deslocamento da primeira formulação.

Nessa mesma ocasião, quando o conjunto das lamentadoras finalmente chegou à

capela, indignou-se com a atitude do padre, já que ele havia deixado as lâmpadas apagadas e

provavelmente não as acenderia quando elas entrassem, dificultando a leitura que fariam das

rezas por não terem todas memorizadas. A líder do coletivo, possuidora de uma casa distante

da cidade na qual se bate jarê, exclamou em tom desafiador: “Se não tiver luz acesa a gente lê

na luz de velas!”, algo que foi dito e feito. Uma senhora posteriormente me explicou que a

falta de iluminação da igreja representava não só um problema operacional ao dificultar a

leitura das rezas como também uma desconsideração com as próprias almas, que do local

receberiam escuridão em vez de luz, fazendo-me lembrar que sempre tinham em mente as

entidades que as acompanhavam e que haviam trazido em grande concentração desde o

cemitério, conglomerando-as no espaço da igreja. Em outra ocasião, a atual organizadora da

lamentação me informou que no passado havia um passo suplementar no ritual que tivera de

ser abandonado por não haver mais quem conhecesse as rezas “em língua”, que Elias me dizia

ser iorubá. Em cada estação próxima dos limites da cidade, uma única mulher se separava das

demais e se dirigia para pontos específicos no interior da mata fechada, realizando uma reza

equivalente à feita pelas demais, porém em língua. Era fundamental, continuava, que suas

ações fossem sincronizadas, para que retornasse da brenha no exato instante em que suas

companheiras terminassem as rezas em português.


145

Outros episódios podem ser arrolados para exemplificar a atitude de subversão que

esposam os membros do jarê diante do catolicismo. Durante a procissão de Senhor dos

Passos, correu o boato de que, em vez de ser tradicionalmente levada nos ombros dos

habitantes da cidade, o padre solicitaria que a imagem fosse colocada sobre um carro do corpo

de bombeiros regional. Fazendo graça, o pai-de-santo já mencionado, que havia trajado um

terno impecável para ser um dos principais carregadores do santo, comentou que os

bombeiros não seriam necessários, já que não haveria ali nenhum incêndio, e que ele

continuaria na comissão de frente como já se acostumara a fazer desde muitos anos, o que de

fato aconteceu. Falava-se também com bastante gosto sobre as ocasiões nas quais o jarê se

imiscuía na própria liturgia católica, como podia acontecer no caso de batizados. Uma

senhora, que apesar de ser ligada ao jarê jamais foi iniciada, me contou como havia se tornado

ainda mais próxima do mais importante pai-de-santo de que se lembra a memória local

recente quando o convidou a ser padrinho de uma de suas filhas. Ela disse que à ocasião

outras pessoas lhe apresentaram objeções, dizendo-lhe que “esse povo não pode batizar”, ao

que ela respondeu, algo indignada, que não via motivo para que não pudesse. Concluiu a

história acrescentando, com um ligeiro sorriso de satisfação, que na hora exata do batizado

quem estivera presente fora não o pai-de-santo, mas a principal entidade espiritual dele, não

sendo poucos os afilhados que tinham como padrinhos guias místicos do jarê185.

Os episódios de violência religiosamente motivada protagonizados pelos católicos da

cidade com as pessoas mais próximas ao jarê em parte diferiam daqueles realizados pelos

185
O batismo na igreja tendo como padrinho ou madrinha uma entidade de terreiro é o principal tema de O
compadre de Ogum, história de Jorge Amado originalmente publicada como parte do livro Os pastores da noite,
e cuja leitura Elias me recomendou enfaticamente. Os exageros narrativos em relação ao ineditismo dessa
espécie de acontecimento (Amado 1964: 38-39, 67, 86) em nada diminuem a grandeza da prosa, obra-prima do
autor no que se refere à apresentação literária do universo do candomblé de Salvador. Entre as muitas
similaridades que o batuque de Belém guarda com o jarê, inclui-se o batismo de crianças tendo por padrinhos
espíritos incorporados em adeptos, que nesse outro campo etnográfico ocorre tanto na igreja como nos terreiros
(Leacock & Leacock 1972: 84, 298). Um grande cruzeiro fincado à entrada de um terreiro de jarê em Nova
Redenção, em vez de apenas um símbolo cristão, significativamente revelou-se morada de uma entidade do jarê,
assento de um dos principais caboclos dessa casa de culto (Rabelo 1990: 159).
146

evangélicos de Lençóis, que são hoje em dia parte significativa de sua população,

especialmente entre os mais jovens, distribuindo-se em cinco pequenas igrejas de algumas

denominações – bem como um templo de Testemunhas de Jeová. Da mesma forma que

ocorria com os católicos, de todo modo, esses acontecimentos dificilmente resultavam em

altercações maiores, mesmo porque não era improvável que pessoas no interior de uma

mesma família fossem ligadas a religiões distintas, bem como que uma mesma pessoa

transitasse por diferentes igrejas e casas de culto. De fato, o mais comum era que a

convivência das pessoas só fosse impactada de forma ocasional e muitas vezes despretensiosa,

como quando lembravam, por exemplo, que o sino da igreja católica, que soava com

badaladas características ao anunciar um falecimento na cidade, não era tocado no caso da

partida de um evangélico. Similarmente, após a morte de um crente, seus familiares – mesmo

se forem eles próprios ligados por exemplo ao jarê – irão solicitar que não lhe sejam ofertadas

rezas católicas, pedindo a um pastor que conduza o funeral.

Essa postura mais ecumênica era esposada, até onde sei, de forma unânime por meus

amigos frequentadores dos jarês, que em princípio não viam problema em múltiplos

pertencimentos que outras pessoas considerariam ‘religiosos’, sem deixar de notar, contudo,

que na prática eles pareciam mais insustentáveis em função do ponto de vista dos evangélicos,

que pregavam a necessidade da conversão e da apostasia. “Entrar para a lei de crente”, que era

a forma como se referiam meus amigos do jarê a esse processo, era algo que muitos deles já

haviam feito em algum momento de suas vidas, pelas mais diversas razões, alguns de forma

mais definitiva e muitos outros de modo transitório. Bem mais do que o catolicismo

institucionalizado, a lei de crente figurava como alternativa bastante direta à presença nos

jarês, meio por vezes eficaz de se lidar com as entidades que os acompanhavam. Os que

retornavam costumavam comentar as similaridades entre as práticas evangélicas e as do jarê,

como a existência de muita fofoca e a necessidade de dispêndio – com as obrigações rituais,


147

de um lado, e com o dízimo recolhido no “coador de café gigante”, no outro. Quando me

surpreendi com a recente aproximação de uma jovem, que todos esperavam que em pouco

tempo seria iniciada no jarê, a uma igreja evangélica, Elias ponderou que essa era uma forma

dela obter mais algum tempo para pensar e simultaneamente deixar de ser aliciada pelos dois

pais-de-santo que disputavam sua lealdade186.

Meus amigos costumavam dizer, falando a respeito de casos como esses, que optar, na

medida do possível, pela maior proximidade a uma casa jarê, a uma igreja evangélica, ou

ainda a qualquer outra religião, era algo que dependia da “natureza” de cada pessoa. Segundo

eles, não fazia muito sentido nenhum tipo de discurso que pregasse uma verdade absoluta

necessariamente legada para toda e qualquer pessoa de modo indiferenciado, sem levar em

conta sua natureza específica, que é o conjunto de sua história pessoal, seu temperamento, sua

vontade e as demais vontades que podem habitar sua pessoa e fazer parte dessa composição –

o exemplo mais comum sendo o das entidades místicas com as quais o jarê está acostumado a

lidar. Ir contra sua própria natureza pode acarretar sérias consequências para uma pessoa,

muitas vezes como forma de alerta para que retome o caminho que deveria seguir, em outras,

mais raras, como forma de vingança pela desobediência à sabedoria dos demais entes que

podem participar de sua composição. Uma senhora muito importante no jarê me contou como

tentou uma vez abandoná-lo e frequentar uma igreja evangélica, ficando sem conseguir

dormir durante a noite após voltar dos cultos, não sendo necessárias mais que algumas noites

em claro para que mudasse de ideia e voltasse para o jarê. Um pai-de-santo da cidade se

convertera em certa época a uma igreja evangélica, como forma de conter um de seus

espíritos que andava particularmente violento – enquanto outros na cidade comentavam que

ele pensava mesmo era em se tornar pastor para ter ganhos financeiros. Quaisquer tenham

186
Num candomblé em São Paulo registra-se um episódio similar, no qual uma filha-de-santo passa a frequentar
uma igreja evangélica e lá aprende fórmulas que a auxiliam na tentativa de não ser tomada por seu orixá quando
assim o deseja, do mesmo modo aviltando-o para que não se manifeste nela (Opipari 2004: 214-216).
148

sido seus motivos, é certo que não obteve êxito e teve de reiniciar seu trabalho no jarê

praticamente do zero, erguendo uma nova casa após, supostamente, ter-se desfeito de todos os

seus bens espirituais – punição que somente se somou a outras mais severas causadas por suas

entidades, comentava-se.

A referência mais comum que meus amigos faziam à participação em igrejas

evangélicas tinha caráter jocoso, quando diziam de alguém – por vezes falando mesmo de si

próprios – já bastante ligado ao jarê que largaria aquela vida para entrar para a lei de crente,

comentário invariavelmente seguido de muitas risadas. As piadas e brincadeiras feitas

rotineiramente pelos membros do jarê envolviam também muitos outros temas, mas nenhum

era tão frequente quanto o próprio jarê, provavelmente sendo tão comuns os comentários dos

membros de uma casa de culto em relação a outra quanto os que faziam graça dos eventos em

seu próprio terreiro. Algumas das senhoras de quem fiquei mais próximo, donas de um senso

de humor extremamente aguçado, não deixavam de arrancar gargalhadas com observações

que podiam ser simultaneamente ferinas e despretensiosas, sempre ditas num tom calmo e

muitas vezes ensimesmado, o que só aumentava sua graça. Uma delas comentou certa vez

como, por grande parte de sua vida no jarê, sua relação com seu primeiro pai-de-santo, hoje

falecido, parecia uma grande brincadeira entre duas crianças que jamais se cansavam de fazer

troça uma da outra.

Crianças, por sua vez, acostumavam-se a ir aos jarês desde bem novas, junto dos

outros membros de sua família próxima, caso estes também os frequentassem, ou levados por

outros amigos e parentes – preferencialmente com a aprovação de seus responsáveis – caso

manifestassem o desejo de se aproximarem desse mundo. Para muitas dessas crianças e

adolescentes, o jarê exercia um fascínio tão grande que um de seus passatempos favoritos era

o de planejar “jarês de brincadeira”, empreitadas que, por vários motivos, raras vezes se

concretizavam. Quando efetivamente conseguiam se organizar, preparavam comidas para o


149

evento (como uma feijoada ou bolos confeitados), improvisavam tambores com baldes

virados de ponta-cabeça, reuniam-se com um ou outro adulto sob a supervisão de quem

prometiam ficar, e se punham a bater palmas e cantar cantigas de jarê, dançando e fingindo

manifestarem as entidades que conheciam por observarem os mais velhos187. Elias foi por

algum tempo um de seus principais cúmplices – adorado pelas crianças, que o chamavam pelo

apelido de “Bilico” –, até ter tido sua atenção chamada, de forma bastante branda, por alguns

dos líderes do culto, fazendo com que a frequência dessas brincadeiras diminuísse.

Os adultos ocasionalmente comentavam que a realização de um jarê era algo sério e

que não devia ser feito de modo displicente, posto que podia ter consequências bastante reais.

Mencionavam em especial o perigo atrelado ao fato de que as crianças costumavam fazer os

jarês de brincadeira “no tempo”, ou seja, a céu aberto, o que as deixava particularmente

vulneráveis à ação das entidades. Caso uma incorporação real acabasse acontecendo,

continuavam, as crianças não teriam por perto nenhum pai-de-santo para lidar com ela, o que

poderia ter resultados imprevisíveis. Uma senhora, já com muito tempo no jarê, comentou

certa vez, falando de uma adolescente que brincava inocentemente com as demais crianças,

que quando ela finalmente recebesse um espírito – algo que ela dava por inevitável e que,

julgava, aconteceria mais cedo do que a jovem imaginava, em função de sua idade –, desejaria

jamais tê-lo recebido. Ambientes de jarê improvisados podem também irromper de forma

inesperada quando surge um motivo repentino para comemoração, como na ocasião em que a

filha de um senhor acabara de nascer e ele resolvera convidar todos os que se encontravam

diante de sua casa para comer e beber. Os jovens ali reunidos puseram-se a batucar e cantar

músicas de jarê, antes de serem repreendidos por uma das mais importantes líderes do culto

187
Ver fotos 27 e 28 no anexo III. Essas ocasiões haviam sido igualmente recorrentes e elucidativas em Nova
Redenção (Rabelo 1990: 107). Brincadeiras como essas são tema do filme Bárbara e seus amigos no país do
candomblé, de Carmen Opipari e Sylvie Timbert, de 1997, igualmente relatadas na literatura (Opipari 2004: 205-
212).
150

que chegou no local instantes depois – perguntaram-se mais tarde se coincidentemente ou

não.

A vontade das crianças e adolescentes de se envolverem ativamente com os jarês lhes

rendia momentos de participação nas cerimônias organizadas pelos adultos, que se

orgulhavam bastante em vê-los querendo se aproximar ainda mais da tradição. Os mais novos

recebiam instruções específicas a respeito dos instantes em que lhes seria permitido dançar no

salão – normalmente nos intervalos em que não havia seres místicos manifestados – ou fazer

parte das cerimônias de outras maneiras, como oferecendo presentes às entidades do jarê,

trocando saudações rituais com as mesmas ou recebendo suas bênçãos – transmitidas, por

exemplo, quando os espíritos levantavam uma criança do chão, seguravam-na no colo, ou

ainda levavam as cabeças de ambos a se encostarem188. As crianças menores dificilmente

conseguiam ficar acordadas ao longo de toda a duração de um jarê, sendo igualmente levadas

para outros aposentos, ou tendo seus olhares desviados, pelos adultos que as haviam trazido,

durante a realização de sacrifícios rituais, ainda que não lhes ocultassem informações a

respeito do que se passava, acrescentando que não se preocupassem com o ocorrido. Houve

mesmo um evento a que fui, numa casa distante da cidade, na qual costumava haver

cerimônias, que começou sendo organizado como um jarê de brincadeira pelas crianças e

adolescentes, mas que acabou atraindo muitos adultos e se tornando um jarê de verdade,

contando com a presença tanto de alguns dos mais importantes líderes da religião como de

suas entidades. Essa ocasião inicialmente informal atestou a capacidade dos mais novos de

efetivamente reproduzirem a organização e o princípio de um jarê, para sua grande felicidade

e ligeiro assombro.

188
Ver foto 29 no anexo III.
151

2.4 Jarês

Os jarês são, antes de mais nada, festas. Podem ser celebrados em qualquer ocasião

que peça uma comemoração, como um aniversário, antes de uma despedida de alguém que irá

se mudar para longe, ou pode mesmo irromper sem maior planejamento a partir de outros

festejos. Como tal, costumam ser abertos ao público em geral, alguns de seus frequentadores

tomando parte da festividade sem maiores ligações com sua face ritual, de todo modo nem

sempre atualizada. A realização de um jarê configura-se, especialmente para pessoas que

moram a uma distância maior da sede do município, numa oportunidade para socializarem,

encontrarem-se com parentes e amigos, flertarem. É comum que muitas pessoas passem a

noite inteira na área externa das casas de culto – onde muitos dos frequentadores armam

barracas de acampamento para pernoitar –, conversando, bebendo, fumando e realizando

outras atividades recreativas. Nas manhãs e tardes que precedem ou nas que se seguem à

festa, amigos passeiam pelos arredores, tomam banhos de rio e de cachoeira, brincam, jogam

jogos e se preparam para o evento que acontecerá à noite ou para o retorno para suas casas no

entardecer, aproveitando seu tempo juntos num espaço de maior permissividade. Como em

qualquer festa, seus participantes procuram estar arrumados, as mulheres especialmente se

aprontando com bastante esmero, trajando roupas adequadas à ocasião (vestidos ou saias e

blusas no caso das mulheres, calças compridas e camisas preferencialmente no caso dos

homens), por vezes feitas exclusivamente para a festividade189.

Os jarês costumam ser planejados para acontecer sempre aos sábados, à noite,

podendo sua duração se estender por mais dias, excetuando-se sextas-feiras, dia da semana

perigoso pois propício à atuação de entidades perniciosas, aí só sendo possível fazer jarês

189
Ver foto 30 no anexo III.
152

mediante uma série de procedimentos rituais e permissões místicas190. A realização da maior

parte dos jarês espalha-se ao longo do ano de acordo com um calendário tradicional seguido

pelas casas de culto, ainda que possa haver festas em praticamente qualquer período, e por

motivos diversos. Pode-se considerar que o calendário litúrgico tem início com as cerimônias

de abertura dos terreiros, inativos por mais de um mês durante a Quaresma, e se encerra com

as cerimônias de fechamento das casas, na Quarta-feira de Cinzas ou próximo dessa data.

Ambas as ocasiões rituais costumam ser, de todo modo, consideradas conjuntamente, tanto

por acontecerem em espaço de tempo relativamente curto, como por gerarem grande

expectativa, a “fechada” sempre prefigurando a “aberta” que lhe sobrevirá. Uma espécie

similar de intervalo acontece entre todos os demais ciclos rituais de festas do jarê, seus

frequentadores sempre mencionando e aguardando ansiosos o próximo conjunto de

festividades.

Enquanto o primeiro ciclo de festas costuma acontecer entre fevereiro e abril, com

algumas variações anuais, e algumas cerimônias menores possam ser feitas por ocasião do

São João, o segundo principal ciclo de realização de jarês estende-se entre os meses de agosto

e outubro, em torno das celebrações para Cosme e Damião. Nesses meses, em especial nos

dois primeiros, ocorre o maior número de festas de jarê do ano, incluindo aquelas em

homenagem a Oxalá, no final de agosto. O terceiro e último grande ciclo de festas tem lugar

entre os meses de dezembro e janeiro, em geral começando com festas dedicadas a Iansã, no

início de dezembro, e terminando com celebrações no início do ano, no mesmo período em

que os reisados saem às ruas. No interior dos três ciclos, os jarês costumam acontecer perto de

datas comemorativas do calendário católico, não sendo totalmente incomum haver semanas e

190
Em ocasiões nas quais é preciso aproveitar um final de semana para realização de vários dias de festa, os
líderes do jarê iniciam seus trabalhos na madrugada de sábado, lembrando-se que quando chega a meia-noite já
não é mais sexta-feira. A meia-noite é, contudo, um horário especialmente propício para a convocação de
entidades perigosas, o que faz com que, por via das dúvidas e sempre que possível, se evite dar início à festa
logo nas primeiras horas da madrugada.
153

mesmo dias nos quais mais de um jarê aconteça simultaneamente – fenômeno que, me

explicaram, acontecia com mais frequência e com maior intensidade no passado recente,

quando as casas de jarê em funcionamento em Lençóis contavam número bem superior às de

hoje. Muitos se lembram com saudade de uma época, distante em torno de quarenta anos, na

qual nos meses de agosto e setembro realizavam-se num mesmo final de semana jarês em uma

meia dúzia de casas diferentes na sede da cidade, alguns de seus frequentadores circulando

entre elas por toda noite. Contemporaneamente, alguma sobreposição continuava a ocorrer,

por vezes estimulada por líderes rivais, que dela costumavam tirar proveito para testar a

lealdade dos frequentadores de suas casas. De todo modo, comentavam os adeptos mais

antigos, líderes de casas mais novas deviam esperar que os terreiros nos quais haviam sido

iniciados realizassem os festejos equivalentes antes de marcar os seus próprios, em especial

quando se tratava das cerimônias de aberta e fechada das casas de culto.

De um ponto de vista acadêmico, o jarê possui muitas similaridades com o candomblé,

podendo ser considerado uma espécie de candomblé de caboclo191. Ao mesmo tempo, guarda

particularidades que o distinguem em especial do modelo dos candomblés litorâneos da

Bahia, distinções por vezes trazidas à tona por seus frequentadores. Em Lençóis, há casas nas

quais se comemoram jarês sem que haja rituais de iniciação, sua manutenção em geral

decorrendo de alguma promessa feita pelo dono ou dona da casa às entidades, eles mesmos

sendo filhos-de-santo ligados a outros templos. Da mesma forma, e também diferentemente

do que costuma acontecer no candomblé, a maior parte dos frequentadores dos jarês

dificilmente se limita a visitar uma única casa de culto, mesmo depois de iniciados. Nos

primeiros meses de meu trabalho de campo deparei-me com uma dificuldade que

191
Construção que é igualmente um modelo, no sentido não de um protótipo ou arquétipo mas de “uma
abstração que se reporta a correspondências inferidas comparativamente entre formas institucionais,
procedimentos e esquemas simbólicos”, indicando não a invariância dos processos e formas dos diferentes
cultos, mas a existência de “um padrão que [o]s correlaciona e que permite referi-l[o]s a uma matriz comum”
(Serra 1995: 40).
154

posteriormente perceberia ser falsa: a de eleger uma casa de jarê em particular como unidade

de análise para a pesquisa. Com o tempo e a convivência, notando a grande circulação das

mesmas pessoas entre muitas casas diferentes e sendo convidado para diversas festas, percebi

que minha etnografia poderia seguir a mesma distribuição dos frequentadores do jarê,

tomando por tema de investigação muito mais uma comunidade mística específica que se

espraia por várias casas, ainda que concentrada em torno de três delas, como se verá adiante.

Ainda que ocasionalmente também utilizassem a palavra candomblé para se referirem

ao que faziam, seja falando do culto de forma geral (“no candomblé é assim que a gente faz”),

seja no sentido de uma ocasião festiva em particular (“sábado vai ter um candomblé lá em

casa”), o uso principal do termo feito por meus amigos de Lençóis acontecia quando

diferenciavam o jarê do candomblé. De acordo com eles, as principais distinções entre as

práticas tinham a ver com os toques dos atabaques, as cantigas, as danças e as manifestações

das entidades. No jarê, informavam, os tambores são sempre percutidos diretamente com as

mãos e nunca com varetas, além de seus toques terem ritmos específicos, em geral

considerados mais velozes nos jarês. As cantigas são quase sempre em português, enquanto

nos candomblés a maior parte é cantada em línguas de origem africana. Nos jarês, as danças

são mais exaltadas e o samba tem preferência, enquanto nos candomblés as danças são mais

contidas, os passos possuem coreografia ritual mais cadenciada e há mais ênfase em giros.

Finalmente, consideram que nos jarês as incorporações têm início de forma mais intensa e

acontecem em maior número ao longo da noite.

As diferenças que os adeptos do jarê elencam quando falam do candomblé não

impedem de modo algum o reconhecimento de inúmeras proximidades, bem como não

excluem as relações que podem estabelecer com membros destes. Ao contrário, ficam

bastante felizes quando porventura recebem em seus terreiros alguém ligado a um candomblé,

fazendo todo possível para estender a seus visitantes tanto sua cortesia habitual como a
155

possibilidade de participarem dos momentos rituais, tocarem os atabaques, puxarem cantigas

– que fazem o possível para acompanhar ainda que seja difícil fazê-lo com as mais

complexas, caso estejam sendo escutadas pela primeira vez – e receberem suas entidades, algo

que deixa os membros dos jarês bastante felizes e satisfeitos. De certo modo, a própria

arquitetura dos salões do jarê é propícia a essas interações, já que a audiência fica disposta no

seu entorno, em bancos de concreto construídos junto às quatro paredes – diferentemente do

que eu presenciara nos candomblés que conhecera, nos quais a audiência no interior do salão

concentrava-se em assentos dispostos num único lado. Ainda que isso não impeça a

participação no culto daqueles que assistem à cerimônia, no jarê audiência e congregação

mística são ainda mais indistintos, todos se sentando juntos em qualquer momento da festa.

O jarê é considerado por seus frequentadores um culto característico e exclusivo da

Chapada Diamantina, sua criação e desenvolvimento estando intimamente ligados à história

da região. Seu surgimento reputa-se ter acontecido nas cidades de Lençóis e de Andaraí, tendo

em seguida se espalhado para as zonas rurais desses municípios e de outros circunvizinhos, aí

adquirindo algumas particularidades. As casas dedicadas ao jarê que existem

contemporaneamente na área de Lençóis localizam-se, majoritariamente, distantes alguns

quilômetros da sede do município, em geral próximas a áreas nas quais no passado houve

pequenos núcleos habitacionais voltados ao garimpo, tendo-se diminuído consideravelmente

nos últimos anos o número de casas na cidade que realizam jarês 192. Contudo, praticamente

toda a população nativa já teve algum contato com o jarê – assim como muitos dos forasteiros

que se estabeleceram há alguns anos na região –, tendo assistido a diversas cerimônias, em

especial quando ainda crianças, no caso de jovens adultos, ocasionalmente lembrando-se

192
Em diversos locais da Chapada, no passado, era bastante comum que líderes do jarê tivessem duas casas de
culto, uma na sede do município em que residiam e outra afastada, por vezes mesmo em um distrito deste (Senna
1998: 85).
156

mesmo de letras de cantigas e acontecimentos marcantes que tiverem lugar durante os cultos,

e comentando como nos dias de hoje não mais aconteciam tantos jarês nos limites da cidade.

Jarês podem ser realizados tanto em casas de culto dedicadas exclusivamente a esse

propósito, como era o caso daqueles feitos nos locais distantes da sede do município, como

nas salas das casas nas quais seus moradores habitualmente residem, na cidade. Nem toda

casa na qual se bate jarê configura um terreiro, termo normalmente reservado para sítios nos

quais há presença de um líder que realiza rituais de iniciação. Tanto num caso como no outro,

as festas costumam ser preparadas com antecedência de algumas semanas, ao longo das quais

se reúne dinheiro para comprar, ou se obtêm na forma de doações, a comida que será servida e

os objetos rituais que se farão necessários, bem como são chamados os convidados. Os

preparativos do dia da festa, assim como o desenrolar da mesma, são um esforço conjunto da

comunidade que se estrutura em torno da casa e seu chefe, seja ela composta por uma família

biológica e seus amigos, seja por uma família-de-santo. Espera-se que todos, incluindo

frequentadores eventuais que possuam alguma proximidade com os membros da casa, com

provável exceção de forasteiros recentemente conhecendo o local, contribuam de alguma

forma para a execução da festa, sendo criticados aqueles que vêm para jarês apenas para pedir

comida e bebida, servidas ao longo da noite pelos anfitriões para aqueles que participam da

festividade. Sobre essa troca de prestações, meus amigos comentavam explicitamente: “Se

uma pessoa não vem para o jarê nem para cantar, nem para tocar, nem para dançar, nem para

bater palmas, pelo menos, vem então para quê?”

Os preparativos para uma festa começam cedo, é preciso fazer a comida que será

distribuída, varrer e decorar a propriedade, depositar oferendas, cortar lenha, aprontar os

animais, trazer baldes d’água de algum rio próximo para cozinhar e para beber, realizar

procedimentos rituais que tentarão garantir o bom andamento da cerimônia. Auxiliar um pai-

de-santo em todas essas atividades, bem como as que serão feitas durante o jarê, é atribuição
157

de seus filhos-de-santo e de qualquer pessoa que deseje cair em suas graças: por vezes uma

forma de obter o custeio de seu processo de iniciação para aqueles que desejam se ligar à casa

sem possuir os meios monetários para tanto. Essas atividades costumam ser feitas com calma

e ao longo de todo o dia, havendo sempre algum tempo para descansar, jogar conversa fora,

disputar partidas de dominó, tomar banhos de rio ou cachoeira. Quando anoitece, homens e

mulheres devem, em grupos separados, lavar-se em preparação para o início do jarê, que

deverá durar durante toda a noite e se adentrar pela madrugada, constituindo sinal muito

positivo caso termine somente após o nascer do sol do dia seguinte.

Os chefes de casas nas quais se bate jarê que não são pais e mães-de-santo costumam

realizar suas festividades em decorrência de uma promessa a alguma entidade como forma de

pagamento por alguma graça obtida, mas também podem fazê-lo caso sejam adeptos de algum

terreiro e desejem simplesmente realizar um jarê como forma de comemoração, como por um

aniversário. Os chefes de terreiros, por sua vez, realizam jarês em homenagem aos espíritos

mobilizados em suas casas e fazem rituais de iniciação que são potencial e simultaneamente

procedimentos de cura. Os filhos-de-santo mais próximos e de maior confiança de um curador

são chamados de “ogãs” – quer sejam homens, quer sejam mulheres –, e são habituados a

auxiliá-lo de maneira mais direta em suas muitas atribuições rituais. Quando um destes passa

a ser treinado de forma um pouco menos implícita pelo curador, pode passar a ser considerado

um curador secundário ou “aprendiz de curador”. Um curador que tenha iniciado muitos

filhos, alguns destes vindo a se tornar também curadores, é chamado de “mestre”. O termo

curador, se indubitavelmente refere-se antes de tudo à ação terapêutica desses pais e mães-de-

santo, poderia ser, numa extrapolação linguística, parcialmente ligado a uma função de

curadoria ou curatela por eles exercida, enquanto guardiões tanto de sua casa como das

entidades, pessoas e energias que por ali circulam, aproximando-se o título daquele dos

“zeladores-de-santo” do candomblé.
158

A realização ou não de iniciações numa casa de jarê também define a presença ou

ausência de sacrifícios rituais no local, um dos traços que meu amigo Elias colocava em

destaque para justificar o fato de evitar ir a terreiros – seu pavor em ver sangue, ele mesmo

dizia, era compreensível em função de sua proximidade pessoal com Xangô, entidade que

teme e evita o contato com a morte. Esse era o mesmo motivo pelo qual ele me dizia que

jamais seria iniciado em jarê algum, a não ser que uma pessoa muito especial em quem

confiava bastante decidisse se tornar uma mãe-de-santo e utilizasse alguma alternativa ritual

ao derramamento de sangue para iniciá-lo, opção que algumas das senhoras de quem era

amigo lhe disseram ter sido acionada em suas iniciações. A “matança”, que precisa ser

empreendida nos rituais iniciáticos dos terreiros, é um assunto sobre o qual a maior parte dos

adeptos do jarê lida com desembaraço, ainda que seja um tópico evitado com aqueles com

quem não se possui intimidade: só depois de muitos meses, por exemplo, é que um senhor me

disse que seu pai fora o “dono da faca” – o principal auxiliar durante os sacrifícios – de um

dos curadores mais importantes de sua época em Lençóis193.

O fenômeno considerado mais característico dos jarês é a manifestação, nos corpos

dos presentes, das entidades místicas que permeiam o universo, chamadas – nem sempre de

modo completamente intercambiável – de santos, orixás, guias, encantados ou, aquela que é

sua designação mais comum, caboclos194. Seria possível mesmo pensar que, enquanto nos

candomblés litorâneos os caboclos foram sendo agregados aos demais espíritos e de algum

modo subordinados aos orixás – os candomblés de caboclo propriamente ditos, em função

disso, atrofiando-se –, no jarê parece ter ocorrido o contrário: todas as entidades foram sendo,

193
Retornarei ao tema do sacrifício no jarê no capítulo 4, seção 4.5.
194
Creio nunca ter ouvido o termo “possessão” (ou “possuído”) utilizado pelos nativos da Chapada, que
inclusive me olhavam com alguma desconfiança quando eu o deixava escapar: possivelmente seu uso traía as
maneiras pelas quais membros de igrejas – sobretudo as evangélicas, mas também a católica – falavam a respeito
do fenômeno que atribuíam à ação de forças infernais e que exige algum tipo de esconjuro. Ao longo da tese,
preferi as formas “manifestação” e “incorporação”, utilizadas pelos adeptos do jarê com grande frequência, bem
como outras construções que indicam algum grau de participação mais marcado entre pessoa e entidade, como
quando se diz que alguém está “de caboclo”, “com caboclo” ou “dando caboclo”, por exemplo.
159

com o passar do tempo e ao menos parcialmente, subsumidas enquanto caboclos, algo que,

como será visto posteriormente, terá diversas consequências rituais para o jarê195. Produzir um

espaço apropriado para esses espíritos incorporarem é possivelmente o objetivo principal das

festividades, já que eles precisam estar presentes com alguma frequência no mundo terreno,

em contato com o solo, para ser reverenciados e alimentados, dançar, cantar suas cantigas,

transmitir suas mensagens, ouvir pedidos, realizar curas196.

A vida de uma casa de jarê conecta-se intimamente à de seu líder, suas histórias

entremeando-se e a robustez de ambos estando em estreita relação. Uma casa começar a

definhar e vir a morrer conforme seu líder envelhece e enfraquece é a norma, da mesma forma

que, reciprocamente, o estado de saúde e a disposição do curador derivam da manutenção de

seu templo religioso e da realização contínua de festas em adoração às entidades. Certa vez,

falando a respeito da morte de um importante curador e o destino reservado a sua casa, Seu

Gilson me apontou o telhado de uma construção qualquer em ruína na cidade, dizendo:

“Quando a cumeeira cai...” Continuamos andando enquanto ressoava o final da frase que ele

deixara implícito: “...o resto da casa desaba”. Por mais que sejam raras as casas que

sobrevivem, em geral por meio de sucessão, ao falecimento de seus líderes, a desaparição das

que não terão continuidade não ocorre sem que seus membros compartilhem a perda e se

solidarizem diante dela, realizando um luto que pode vir a durar anos, em geral terminando

com a própria estrutura física da casa abandonada e em ruínas. Uma casa de jarê apresenta

declínio quando suas festas não são mais celebradas como de costume: a sequência esperada

de incorporações rituais se dá só de forma perfunctória, quando não é mesmo ignorada por

completo; os presentes não demonstram a alegria que se espera diante da ocasião; a festa é

encurtada e termina ainda cedo na madrugada, bem longe do nascer do sol.

195
Movimento para o qual foi sugerida a designação de “caboclarização” dos espíritos (Senna 1998: 116).
196
Tanto as entidades do jarê como o fenômeno de sua incorporação serão mais detalhados no capítulo 4, seção
4.3.
160

Presenciei alguns jarês assim, o primeiro deles deixando para mim muito marcada a

importância das bases material e humana necessárias à realização das festas. Ao término desse

jarê, uma das entidades da dona da casa, uma senhora já de idade avançada, anunciou

amargamente que jamais voltaria a pisar no local. Junto de algumas outras, essa ocasião foi

também significativa como contraponto aos demais jarês que frequentei, fornecendo a medida

sempre presente da incerteza quanto ao cumprimento das condições de felicidade do evento,

no duplo sentido tanto de seu sucesso como da exultação que deve gerar. Por mais que haja

medidas para garantir a integridade e bom andamento da festa, nada confere certeza plena de

que uma cerimônia transcorrerá inteiramente a contento, e a possibilidade de que algo saia

errado está sempre presente até nas casas mais bem estabelecidas: as incorporações podem

não ocorrer, os caboclos podem deixar mensagens indicando maus agouros, um ritual pode

não ter os efeitos desejados – tanto por razões místicas como por erros humanos. Ao longo da

noite em que transcorreu esse jarê que malogrou, houve diversos sinais que simultaneamente

pressagiaram e foram efeito dos reveses que se acumularam e resultaram no fiasco: o

assassinato que ocorrera no bairro próximo mais cedo no mesmo dia, desavenças e discussões

entre alguns dos frequentadores da casa, a danificação de um dos tambores durante a festa, a

presença de duas mulheres sabidamente em seus períodos menstruais197, a queda, por fim, de

um pedaço do revestimento do teto do salão que por pouco não atingiu um dos presentes.

Alguns desses vestígios foram bastante comentados pelos amigos que acompanhei depois de

nos despedirmos ao fim da festa, em especial o último, que mais diretamente ligava o estado

de conservação físico da casa ao vigor de seus donos e seu jarê de modo geral.

É indubitável que o número de casas de culto da cidade diminuiu consideravelmente

nos últimos anos, e outras atuais ainda parecem estar lentamente caminhando para a

desaparição, mas seria exagero afirmar que o jarê de Lençóis está em vias de extinção. Da

197
Tema que será retomado e melhor detalhado no capítulo 4, seção 4.5.
161

mesma forma que muitas casas acabaram, diversas outras encontraram nos anos recentes seu

início: se a maior parte das casas de jarê raramente tem sobrevida, muitas outras continuam a

nascer, e se não existem diversas remanescentes, que dão testemunho direto da longevidade

da religião, todas podem ser consideradas, de uma maneira ou de outra, ressurgentes – termo

que se refere a um rio que em certa parte de seu curso desaparece sob a rocha para mais

adiante voltar a brotar sobre o solo. A maior parte das casas de jarê de Lençóis de hoje em dia

é liderada por filhos-de-santo iniciados num mesmo terreiro, cujo curador, falecido há alguns

anos, é visto como o último grande mestre que a cidade teve nas décadas recentes – sua casa

sendo a única que se manteve de pé até o presente, a despeito dos conflitos sucessórios que a

envolveram.

Entre outros, o fato de essas casas descenderem de uma raiz comum faz com que

muitos de seus membros costumem expressar o desejo de que eles mesmos fossem –

especialmente seus líderes – mais unidos entre si, indicando que dessa forma poderiam

fortalecer o jarê de maneira geral. Os curadores e chefes das casas, por sua vez, quando

compartilham dessa ideia, costumam acrescentar que, se não há muita união entre todos os

adeptos das diferentes casas dos jarês, é também por incapacidade e impossibilidade de se

confiar nos outros líderes, o que os leva a desaconselhar ou por vezes proibir expressamente o

comparecimento dos membros de suas casas às festividades alheias. Observadores argutos

comentam que as rivalidades e disputas, por vezes veladas, entre os pais-de-santo são em

alguma medida inelutáveis, desejosos que são de se tornarem uns mais fortes que os outros.

Todos costumam falar a respeito da sonhada união com um tom de voz que deixa claro que se

trata de uma aspiração que permanecerá somente enquanto um ideal. Isso não significa,

contudo, que muitos dos membros de uma casa não compareçam às demais, especialmente

quando relações de amizade ou parentesco os levam a tanto. Mesmo os chefes das casas, se

evitam comparecer aos festejos dos rivais, costumam se encontrar ocasionalmente nas casas
162

que não possuem curadores mas celebram jarês, cujas cerimônias funcionam assim como

espécie de terreno neutro. Forma-se desse modo uma comunidade mística específica, cuja

circulação pelas casas procurei igualmente acompanhar.

Ao longo da pesquisa, visitei perto de uma quinzena de casas de culto diferentes,

algumas delas constituídas em terreiros liderados por curadores, outras somente chefiadas por

filhos-de-santo que não realizam iniciações. A maior parte delas localiza-se no município de

Lençóis; as demais, nas quais as visitas foram mais breves, situadas em Andaraí. O

desenvolvimento da pesquisa, bem como o amadurecimento das amizades que efetuava, fez

com que me dedicasse a três dessas casas em especial, nas quais se concentrou a maior parte

das festas de que participei diretamente, no total somando por volta de três dezenas de

ocasiões em que estive em festejos de jarê, celebrados ao longo de um ano. Igualmente, era

junto dos membros e frequentadores dessas casas que passava meus dias na cidade, com o

tempo vindo a saber da existência de algumas outras das quais eles preferiam – e me

aconselhavam a – manter distância.

A principal casa de jarê do município de Lençóis, de grande importância histórica por

ter sido o local onde reinou o mais influente curador que a região teve nas últimas décadas,

chamado Pedro de Laura, recebe o nome de Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, e está

localizada numa propriedade distante pouco menos de dez quilômetros da sede do município,

ao longo de um caminho que no passado era a via primária de acesso entre as cidades de

Lençóis e Andaraí. Hoje o Palácio está sob a responsabilidade espiritual do penúltimo filho-

de-santo iniciado por Pedro de Laura, um curador conhecido por todos por seu apelido,

Mussum – também morador do Alto da Estrela e irmão biológico de Carminha, puxadora da

quadrilha Bicho do Mato, bem como membro da mesma. Ao longo de meu trabalho de

campo, acompanhei também o início do estabelecimento do terreiro de Mussum, numa casa

que começava a ser erguida em local próximo ao Palácio de Ogum e na qual ele poderia
163

realizar rituais de iniciação, algo que não era possível na casa da qual tinha ficado

responsável198. Os líderes do Palácio costumavam falar com orgulho a respeito do tamanho da

construção (uma casa que no momento contabilizava em torno de 20 cômodos, de tamanhos

diversos), da disponibilidade de água em suas próprias dependências (trazida do rio próximo

por meio de canalização subterrânea feita com mangueiras, implementada pelos próprios

filhos-de-santo), bem como de possuir o maior salão de jarê das redondezas. As casas de jarê

costumam ser chamadas também por associação ao nome de seu chefe ou ao de marcos

geográficos próximos199, motivos pelos quais o Palácio de Ogum é tão ou mais

frequentemente chamado de “casa de Pedro de Laura” ou de “casa da Capivara” (ou ainda

simplesmente “a Capivara”, para encurtar), em alusão ao Rio Capivara, que se localiza no

entorno da propriedade. Da mesma forma, os membros do jarê que se consideram parte do

legado místico do falecido curador que ergueu o Palácio dizem-se igualmente os “filhos de

Pedro” ou “filhos da Capivara”, e são responsáveis pela maior parte das casas de jarê

existentes em Lençóis nos dias de hoje200.

A primeira festa de jarê que frequentei em meu trabalho de campo – bem como a

derradeira, como gostavam sempre de lembrar – aconteceu numa dessas casas, a Águas de

Iemanjá, liderada por uma das mais importantes filhas da Capivara, chamada Valdelice.

Valdelice era apoiada por membros de sua família carnal, em especial seu marido, apelidado

Corró, que atualmente trabalhava na guarda municipal de Lençóis, por sua vez chefiada por

Mussum. Valdelice e Corró também moravam na sede da cidade, ocasionalmente deslocando-

se para essa “casa de temporada”, como uma amiga a caracterizou, em especial nos finais de

semana em que ali celebravam jarês. Poucos conheciam a casa Águas de Iemanjá por esse

198
Os motivos para tanto, bem como o restante da história do Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, serão
apresentados em diversos momentos ao longo do restante da tese, em especial no capítulo 3, seção 3.4.
199
Diferentemente do que costuma acontecer nos candomblés (Senna 1998: 96).
200
Ver fotos 31, 32, 33 e 34 no anexo III.
164

nome, estando mais acostumados a chamá-la geralmente de “casa de jarê de Valdelice” ou de

“casa do Baixio”, em referência à região próxima que havia sido, no passado, garimpada à

exaustão e se tornado um grande banco de areia. A casa de Valdelice se localiza na mesma

estrada que leva ao Palácio de Ogum (situando-se alguns poucos quilômetros antes desse,

partindo de Lençóis), ao longo da qual muitos desses bancos de areia, os chamados “areiões”,

podem ser encontrados. O riacho no qual os adeptos se banhavam antes da festividade e no

qual se buscava água para usos diversos é o Córrego dos Cachorrinhos, já que ali um sistema

de canalização similar ao da Capivara ainda estava em vias de implementação. A casa do

Baixio não realiza iniciações de nenhum tipo, sua chefe tendo preferido não se tornar uma

curadora, mesmo tendo tido oportunidade para tanto, preferindo fazer jarês centrados nas

manifestações das entidades como forma de cumprir uma promessa feita a elas201.

Por sua vez, a casa de Daso, último filho-de-santo feito por Pedro de Laura, era

conhecida tanto pela espetacularidade de seus rituais como por seu grande número de

iniciandos. Localizada no recém-criado Terreiro Pai Gil de Ogum (nomeado em referência ao

próprio curador, cujo primeiro nome é Gildásio, conhecido por todos como Daso), essa casa

de jarê também está situada a uma caminhada considerável da sede da cidade, mas dessa vez

em direção à rodovia estadual que liga a cidade de Lençóis à estrada federal Bahia-Brasília.

Mesmo partindo da estrada, chegar ao terreiro de Daso envolve uma caminhada considerável

por uma trilha em meio à mata fechada, até atingir o Rio das Toalhas – que também nomeia

ocasionalmente a construção, chamada de “casa das Toalhas” –, no qual acontecem algumas

etapas dos rituais iniciáticos da casa e de onde se obtém a água usada para vários fins no

terreiro202. Muitos dos iniciados e demais frequentadores de cada uma dessas três localidades

(considerando a nova casa de Mussum como parte do complexo da Capivara) costumavam ir

201
Ver fotos 35, 36, 37 e 38 no anexo III.
202
Ver fotos 39, 40, 41 e 42 no anexo III.
165

aos jarês de ao menos uma das outras, bem como aos celebrados nas demais casas em que se

tocava jarê na cidade de Lençóis, em seus distritos e zona rural, às quais eu também

costumava ser convidado.

Como mencionado, casas de jarê podem ter tamanhos muito diferentes, indo daquelas

construídas em amplos terreiros às que só existem de maneira mais concreta durante alguns

dias ao ano, quando da transformação da sala da casa que uma pessoa habita em um espaço

dedicado à incorporação das entidades. Ao longo desse gradiente encontram-se casas que

foram erguidas em espaços afastados da cidade mas que não constituem terreiros – por não

serem chefiadas por curadores que realizem iniciações, e dessa forma não possuírem certos

aposentos com funções rituais específicas –, bem como casas que no passado eram terreiros

completos mas que hoje mantinham só algumas de suas obrigações místicas, como o caso do

Palácio de Ogum. Na descrição geral da disposição espacial e constituição das construções de

um terreiro e de uma casa de jarê feita a seguir serão indicados os elementos que não se fazem

necessários conforme a casa de jarê assuma uma escala menor nesse gradiente, ressaltando-se

que ele não configura (senão, suponho, muito raramente) uma sequência de desenvolvimento:

uma pessoa dá início a uma casa de jarê com uma dessas formas específicas de acordo com os

motivos que a levam a celebrar as festas. Um aspirante a curador comumente permanecerá na

casa de seu pai-de-santo até que deseje – e possua os meios para – dar início ao seu próprio

terreiro. Filhos-de-santo que promovam jarês em suas casas fazem-no ao mesmo tempo em

que continuam a comparecer nas festas de seus pais-de-santo, que por sua vez ocasionalmente

frequentam as festas nas casas de seus iniciados.

Antes mesmo de se chegar a um terreiro há medidas que devem ser tomadas: não se

deve falar de forma exaltada, e após a travessia do curso de água mais próximo é ideal que

qualquer conversa cesse e se permaneça em silêncio até que se preste reverência às entidades
166

da casa203. Costuma haver cordas amarradas em árvores para ajudar a atravessar os rios em

época de cheia, se o nível da água se encontra em torno dos joelhos ou até mais acima.

Ornamentos cabalísticos nas proximidades, tais como panos coloridos amarrados em torno

dos troncos de determinadas árvores ou pentagramas pintados nelas ou em pedras indicam a

chegada a um terreiro e protegem o local e seus frequentadores contra influências perniciosas.

Ao se entrar no terreiro propriamente dito, normalmente delimitado por um cercado em meio

à mata, o visitante deve se dirigir para perto da morada dos exus – um caramanchão

(pronunciado “carramanchão”, na região) característico, erguido separado da construção

principal, e com inscrições em sua parte externa –, cuja porta está sempre fechada, só sendo

acessada pelo curador e alguns ajudantes, todos do sexo masculino, em momentos específicos.

Todo visitante deve tomar o cuidado de passar por trás dessa construção, parando em seguida

junto a sua entrada e ali bater um dos pés no chão por três vezes, em saudação a esse conjunto

de entidades que também é chamado de “povo da porta”. Ato contínuo, segue até o interior do

salão no qual acontecem os jarês, coloca-se diante da porta que dá para o quarto de santo e

bate o pé da mesma forma, dessa vez preferencialmente descalço, cumprimentando as demais

entidades da casa. A partir daí está livre para tornar a conversar e circular pelo terreiro. Essas

medidas são repetidas, na ordem inversa, quando se vai embora do terreiro, nenhuma delas,

contudo, precisando ser feita em casas de jarê que não iniciem filhos-de-santo, nas quais não

existe caramanchão204, ou no período da Quaresma, depois do fechamento da casa.

No interior e nas cercanias de um terreiro existem e são cultivadas árvores e plantas

que possuem funções rituais nos jarês, bem como por vezes cria-se uma pequena horta para

203
Ver fotos 43, 44, 45 e 46 no anexo III. Além disso, no caso do Palácio de Ogum, os visitantes pegam um
ramo, que esteja verde, de uma árvore qualquer no caminho, depositando-o num amontoado alguns metros antes
de se cruzar o Rio Capivara, num local que marca ter havido no passado um cemitério indígena nas
proximidades, conforme contam.
204
Pude ver o interior de um caramanchão e fotografá-lo a pedido de seu curador, sob condição de não descrevê-
lo e nem reproduzir sua imagem (a não ser para meu arquivo pessoal, ele especificou), motivo pelo qual esse
espaço não será detalhado na tese.
167

gêneros alimentícios. Certa feita, depois de um evento público em Lençóis, uma visitante que

já conhecia a cidade conversava pela primeira vez com um curador sem saber da ligação dele

com o jarê – a senhora que os apresentou tendo dito à jovem que ele possuía uma roça

afastada da sede do município. Com genuíno interesse, a visitante perguntou ao homem que

acabara de conhecer se em sua roça ele fazia farinha – algo comum em muitas das pequenas

propriedades rurais situadas no entorno da cidade. O curador lhe respondeu, sem titubear e

com algum gosto: “Não faço farinha, não. Eu faço filhos-de-santo”. Roça é de fato um outro

nome para os terreiros nos quais os filhos-de-santo são iniciados, feitos, como disse o curador,

e “plantar a roça” é outra forma de se referir ao ato ritual necessário à inauguração de um

terreiro, descrito posteriormente. Entre as plantas cultivadas no espaço próximo a uma casa de

jarê costuma haver uma variedade considerável de ervas medicinais, de uso doméstico e

ritual, bem como ao menos uma árvore da qual se recolhe a seiva utilizada na defumação de

todo salão de jarê, o almíscar (que na região se pronuncia “alméscar”) 205. O espaço externo de

uma casa deve igualmente possuir um local adequado à instalação de uma fogueira, cujo papel

é não só o de espantar o frio das madrugadas (especialmente acentuado no inverno de altitude

da Chapada) como o de fornecer brasas para alimentar o defumador e para atender aos desejos

de algumas das entidades do jarê, bem como archotes para iluminação e ignição de pólvora

durante determinados rituais. Manter a fogueira sempre acesa costuma ser atribuição dos

auxiliares do curador, conhecedores dos diversos tipos de madeira que devem ser usados em

função da forma como cada uma queima. A área externa pode conter também, por fim, locais

destinados à criação e guarda de animais, que podem porventura vir a ser parte dos sacrifícios

feitos nos rituais da casa. Terreiros ativos possuem também uma bandeira branca erguida num

poste próximo a sua entrada, e o caminho que leva até a casa de jarê – bem como o restante do

205
Provavelmente a Styrax glabratum.
168

da parte ao ar livre da propriedade – costuma ser guarnecido com oferendas rituais às

entidades que protegem suas fronteiras.

As casas propriamente ditas são construídas de adobe ou, quando isso não é possível,

taipa. Edifícios desse tipo sobreviverem intactos à época das chuvas é considerado um sinal

de bom presságio para uma casa de jarê em seu início, e muitas delas precisam ser

reconstruídas até por inteiro até chegarem a uma configuração segura o bastante para uso.

Idealmente, uma casa de jarê possui ao menos dois cômodos separados destinados ao pernoite

e guarda dos pertences dos homens e das mulheres. Quando há mais quartos disponíveis,

costumam ser usados por núcleos familiares compostos por diversas gerações,

preferencialmente dormindo juntos avós, suas filhas e netos. O chefe da casa costuma ter

também um quarto no qual repousam ele e sua família carnal, normalmente mais próximo da

cozinha, na qual são preparadas as refeições diárias, que por sua vez dá acesso aos fundos da

casa, onde em geral há o quintal. Não é comum que em nenhum desses espaços aconteça

qualquer momento ritual durante as festividades de jarê, e nas casas localizadas na sede da

cidade nas quais cerimônias são realizadas anualmente são os cômodos de uso comum que

têm seu uso temporariamente voltado para a celebração. Espectadores de uma festa, contudo,

são impedidos de adentrar o espaço além do salão, constituindo um sinal marcante de

intimidade ser convidado a permanecer na cozinha ou no quintal de uma casa.

O maior cômodo de uma casa de jarê é, via de regra, o salão, local onde transcorre a

maior parte da festa e que também recebe o nome de “pagodô”. As paredes opostas

longitudinalmente dão acesso uma ao lado de fora da casa e a outra ao quarto de santo, com

portas que permanecem sempre abertas durante uma cerimônia de jarê. Ao lado da passagem

para o quarto de santo localiza-se a cadeira do chefe da casa, seja ele um curador ou não,

enquanto ao lado da porta voltada para o exterior do salão costumam ficar dispostos os

atabaques e seus tocadores. É comum que haja estreitos bancos de cimento, construídos junto
169

a todas as paredes, nos quais se sentam os frequentadores da casa quando não estão por

qualquer motivo em pé no restante do salão ou em trânsito por outros locais da casa. Homens

e mulheres são orientados a se sentarem em lados opostos do pagodô, estas do lado direito e

aqueles do lado esquerdo, do ponto de vista de quem adentra o salão pelo lado de fora da casa.

Homens e mulheres dispõem-se também mais próximos ou do quarto de santo e do chefe da

casa, ou dos tocadores de atabaque e da saída do pagodô, em geral conforme suas relações de

amizade e proximidade com a liturgia da casa206. Essa ordenação de espectadores e

participantes em torno do salão, cuja configuração lembra mais um teatro de arena do que um

palco italiano, favorece a transmudação de uns em outros conforme o desenrolar da

cerimônia, nunca se tendo certeza de quem será a próxima pessoa a se dirigir ao centro do

pagodô, seu proscênio. O chão do salão, por sua vez, é feito preferencialmente de terra batida

e não de concreto rígido, tanto para amenizar o impacto que sofrem as pessoas quando caem

bruscamente (ao estarem incorporadas) como por motivos rituais mencionados mais adiante.

O teto de toda a construção pode ser coberto com telhas de cerâmica ou, bem mais

comumente, chapas de fibrocimento, que não contribuem muito para sua ventilação interna,

raramente provida por janelas.

As paredes internas do pagodô costumam ser decoradas com quadros de santos e

outros retratos de entidades do jarê, como orixás e caboclos mais indígenas, bem como figuras

representando Jesus ou o Espírito Santo. Em muitos salões há também fotografias, seja de

pessoas importantes à casa e sua história, seja de momentos rituais de festividades passadas,

privilegiadas por exemplo em um terreiro que criava grandes murais com elas. Outros objetos

podem adornar as paredes do salão, de acordo com o gosto pessoal de seu chefe, tais como

206
Por vários motivos, habituei-me a permanecer junto dos tocadores, muitos dos quais estavam entre meus
melhores amigos e que podiam circular consideravelmente entre casas de jarê distintas. Mulheres que
procuravam não protagonizar incorporações das entidades buscavam se sentar perto da saída do pagodô,
eventualmente correndo para o lado de fora da casa no intuito de evitar a manifestação, ainda que raras vezes
com sucesso: comumente acabavam sendo trazidas de volta pela ação de seus próprios espíritos.
170

estatuetas e enfeites diversos ou panos com mensagens listando e louvando as entidades da

casa. O teto e as janelas costumam receber bandeirolas e picotes coloridos, enquanto o chão é

coberto com pequenas folhas, como as de pitangueiras, antes do início de um jarê. Ali são

também postas velas, no meio e por vezes nos cantos do salão, podendo ser circundadas por

pipocas. Em casas nas quais não são feitos rituais de iniciação, costuma haver no interior do

salão, em um de seus cantos, um altar que substitui o quarto de santo. O pagodô de um

terreiro, por sua vez, possui enterrado em seu centro um conjunto de objetos cuja composição

específica consiste no principal segredo da casa, zelosamente guardado pelos curadores. Esse

cerne de todo terreiro recebe o nome de “otim”207, e o ritual de plantar a roça para dar início a

uma dessas casas de culto culmina com a instalação dessa parafernália mística sob o centro do

salão. A região do otim não deve ser perturbada com movimentação cotidiana – como

afirmam os curadores: “casa de obrigação não pode ter muito piseiro” –, outro motivo que os

leva a preferir abrir seus terreiros em locais afastados da sede do município e morarem ao

longo da semana em residências na cidade de Lençóis.

Os altares domésticos presentes na maior parte das casas da região são como versões

em escala reduzida dos altares presentes nos quartos de santo, estes chamados de “pejis”,

nome que também pode ser estendido para o cômodo que os abriga208. A arrumação dos pejis

é feita de forma bastante ciosa pelos chefes das casas, que se orgulham em exibi-los aos

visitantes, solicitando-lhes apenas que antes de ingressar no quarto de santo retirem seus

calçados, algo que todos os frequentadores da casa se acostumam a fazer quando ali entram. O

número de objetos dispostos num peji sinaliza o poder místico de um curador, já que se

207
Palavra que costuma ser de conhecimento apenas dos líderes das casas de culto, em geral pouco utilizada e
para a qual não ouvi ser conferido nenhum outro sentido. O principal dicionário de termos ligados aos cultos
afro-brasileiros existente registra dois termos de origem iorubá cujos sentidos é interessante marcar: oti ou otim
= “aguardente, cachaça” e Otin = “um tipo de Oxóssi que veste azul, usa capanga e lança e vive no mato, a caçar,
sendo muito amigo de Ogun” (Cacciatore 1977: 210).
208
Com base no principal dicionário de cultos afro-brasileiros, a literatura registra na etimologia do iorubá que
dá origem à palavra peji os componentes pé = reunir ou pè = chamar, convidar e ji = dar presente (Cacciatore
1977: 220-221; Gonçalves 1984: 107).
171

afirma que para aumentar sua quantidade não basta simplesmente querer: é preciso ter

capacidade para tanto. Dispor objetos num peji é parte do duplo processo de reconhecer sua

subjetividade e subjetivá-los: ao ser exibidos, cada um deles demonstra um – e vê ampliado

seu – potencial de canalizar as vontades das entidades que povoam o mundo do jarê. Quanto

maior seu número e mais fortes suas presenças, maior o risco para um curador de não ser

capaz de lidar a contento com seus desejos e demandas; simultaneamente, maiores também

são as recompensas que deles será capaz de obter. No centro do peji, junto ao chão, encontra-

se a pia batismal, utilizada num dos rituais de iniciação para lavagem da cabeça dos filhos-de-

santo. O fato de todos, em princípio, passarem por uma etapa ritual no próprio quarto de santo

é mais um dos motivos que conecta os filhos-de-santo de um mesmo terreiro entre si, como

dizem: “A pia que lavou a minha cabeça é a mesma que lavou a de todos os outros”.

No peji encontram-se dispostos os mesmos objetos descritos anteriormente no caso

dos altares domésticos de pessoas ligadas ao jarê, na época das festas acrescidos de alimentos

em oferenda às entidades, tais como pipoca, arroz, feijão, amendoim, bolinhos de acarajé,

vatapá, assim como partes dos animais abatidos sacrificialmente, em especial as vísceras,

patas e cabeça. Os quartos de santo guardam também objetos que possuem uso ritual, como a

campa, velas, perfumes, talco, pó de pemba, pólvora, mel, dendê, cachaça, água trazida do

mar, facas, tesouras, colares, cruzes, vergueiros, cordões, linhas, fitas, panos, pregos,

ferramentas metálicas. As diversas estatuetas e pedras que compõem o peji idealmente não

devem nunca ser compradas pelo chefe de uma casa, devendo ser encontradas

espontaneamente na natureza ou recebidas de presente, e devidamente preparadas antes de

fazer parte do altar. Do mesmo modo, há medidas de precaução que se deve tomar para se

desfazer delas – quando se quebram acidentalmente, por exemplo – que ao fim envolvem

despachá-las em água corrente ou depositá-las aos pés de algum cruzeiro. Contíguo ao quarto

de santo costuma existir uma alcova para armazenar as roupas das entidades,
172

preferencialmente também recebidas como presentes ou em cumprimento de promessas (por

vezes assumidas pelos próprios curadores a mando de seus espíritos), igualmente utilizada

para troca de vestimentas ao longo das festas209.

Os últimos dois aposentos de uma casa de jarê, existentes apenas nos terreiros, são o

quarto dos búzios e o quarto de reclusão. No primeiro se encontra uma mesa larga na qual

repousam muitos objetos similares aos encontrados no peji, porém emoldurando os apetrechos

do jogo divinatório. O centro da mesa é coberto por panos coloridos e rendas, no centro dos

quais há diagramas desenhados, cuja periferia é composta simultaneamente por grossos

colares de contas e um cordão no qual há preso um crucifixo, envolvendo um número

considerável de búzios (16 ou 17, a depender da casa) com cortes produzidos nos lados

opostos aos de suas aberturas naturais. Por sua vez, o quarto de reclusão, também chamado

de “roncó”, fica próximo ao pagodô, e é onde ficam retirados os iniciandos após a realização

de determinadas etapas rituais, devendo permanecer junto ao solo a maior parte do tempo,

deitados no chão nu ou em folhas de bananeira – ou ainda em esteiras de palha, se um curador

encontra-se especialmente benevolente. Alguns amigos, cujos rituais de iniciação pude

acompanhar, mencionavam o fato de ficarem primeiro evidenciados e depois relativamente

confinados comparando-o de modo risonho ao que acontecia com participantes de programas

televisivos de simulação de realidade – nessas ocasiões desviando-se temporariamente da

diretriz aplicada pelo curador segundo a qual deviam evitar momentos de maior exaltação.

Festas de jarê podem acontecer com um número bastante variável de pessoas, desde

eventos mais reservados com suas duas dezenas de pessoas até as principais festas anuais de

uma casa (um dos líderes do Palácio de Ogum estimou em torno de 200 o número de

participantes de uma ocasião particularmente marcante, “contando as crianças”, ele

acrescentou). A adequação entre o tamanho da casa e número de participantes num festejo é

209
Ver fotos 47 e 48 no anexo III.
173

um dos fatores fundamentais quando se considera o sucesso de um festejo. Casas muito

pequenas em que os frequentadores precisam se amontoar para assistir à celebração não

garantem o espaço necessário à dança dos adeptos incorporados, objetivo perene de todo jarê,

impedimento comum quando transcorrem nas salas das casas na sede de Lençóis em que

regularmente habitam. Casas amplas ou abertas demais produzem separação excessiva dos

presentes, caso por exemplo de uma casa de jarê que, por estar ainda germinando, não possuía

um pagodô devidamente construído, tendo se passado sob uma estrutura improvisada (uma

latada erguida com barrotes e revestida com chapas metálicas, lonas plásticas e cobertura

vegetal). Nessa ocasião, muitos de meus amigos comentaram, os frequentadores não só

estiveram ao menos parcialmente expostos aos elementos – perigo agravado no jarê, como já

se mencionou – como o som dos atabaques ficou impossibilitado de reverberar corretamente,

as batidas propagando-se e se perdendo mata e noite adentro. Contribuiu igualmente o fato de

o altar principal do local ainda não ter sido devidamente estabelecido: “não tem assentado

nem sequer uma única imagem”, me diziam.

Os responsáveis por uma casa de jarê costumam levar consigo diversos gêneros

alimentícios quando realizam festejos em locais distantes da sede do município. Os alimentos

são preparados ao longo do dia para a festa que acontecerá à noite, quando em diversos

momentos serão oferecidos aos presentes. Há uma vigilância constante para se saber quem

está comendo e o quanto, sendo sempre ideal o jarê no qual a comida sobre de modo farto e

possa complementar as refeições do dia seguinte. Tem-se o cuidado, simultaneamente, de se

fornecer as maiores porções para as pessoas que efetivamente farão parte da festa, ainda que

só como parte da assistência. Os responsáveis por uma casa preocupam-se constantemente em

servir bem os convidados que não costumam frequentar jarês, olhando no mínimo com

desconfiança para forasteiros que vêm observar o jarê mas não aceitam comer – uma recusa
174

direta podendo mesmo consistir grave ofensa210. Ao longo do dia era comum que fossem

feitas poucas e fartas refeições, que em geral contavam com arroz, feijão, macarrão, farinha,

frango e pimenta, com a ocasional salada de vegetais. A mesma refeição era repetida no

almoço, na janta, e por vezes durante a madrugada, em algum momento do jarê, feita em

grupos pequenos, a depender do número de presentes. Constituía uma das atribuições e

habilidades do chefe da casa escolher o melhor momento para as refeições noturnas, de modo

a fortalecer os presentes para o prolongamento da festa. O café costuma acompanhar todas as

refeições, e se escasseasse constituía um dos mais fortes indicadores da fragilidade econômica

de uma casa, conforme comentavam.

Sendo primariamente ocasiões festivas, praticamente todo jarê conta também com

comidas adequadas a uma comemoração, como bolos, salgadinhos, docinhos, balas, pipocas,

refrigerantes e bebidas alcoólicas (depois das cachaças, as mais comuns eram cervejas, vinhos

e licores, todas consumidas preferencialmente ao longo dos jarês). A arrumação de mesas nas

quais essas comidas ficam dispostas antes do início dos jarês propriamente é feita com

bastante esmero pelas mulheres da casa, e todos comentam sobre a beleza de sua composição,

seus enfeites, confeitos e decoração do bolo, e a fartura dos alimentos. Entre elas sempre

existem cozinheiras de grande habilidade, a qualidade de seus pratos sendo defendida de

maneira ciosa pelos demais membros da casa, amigos e parentes, enquanto as próprias

dificilmente se gabam dela – pelo contrário211. Pelos motivos descritos, além de outros

ligados às já mencionadas disposições dos lençoenses em relação à abundância, as posturas

mais reprováveis na iminência de se servirem as refeições nos jarês são a impaciência e a

210
A intimidade conquistada numa casa corresponde diretamente ao quanto seus membros esperam que os
visitantes comam e bebam, e se por vezes meus amigos diziam que eu não precisava ser tão tímido ao pedir para
repetir um prato ou tomar mais café, isso constituía um sinal positivo que me deixava progressivamente mais à
vontade durante as refeições.
211
Sobre os visitantes que constatam e enaltecem os dotes culinários dessas senhoras, não há descrição mais
certeira: “O reconhecimento desses méritos provoca discreto orgulho. Quando o elogio é pessoal e direto,
ocasiona uma negativa acanhada” (Gonçalves 1984: 105).
175

glutonaria. Comenta-se com frequência a respeito de episódios protagonizados por um dos

mais importantes curadores da região, nos quais imensas quantidades de comida eram jogadas

fora, despachadas depois de prontas nas águas do rio próximo à casa, enquanto seus

frequentadores a aguardavam com fome. Alguns dos membros da casa diziam que o curador

agira por maldade, outros afirmavam que deveria estar bêbado, outros ainda vislumbravam a

possibilidade de que ele tivesse ainda outros motivos, que desconheciam. Em caso inverso,

para dar uma lição a uma filha-de-santo que dissera que a comida havia terminado – tendo ela

própria ocultado certa quantidade sob a desculpa de que o guardara para outra pessoa –, o

mesmo curador ao descobrir a refeição escondida mandou salgá-la até ficar intragável.

Quando a filha-de-santo provou-a, veio furiosa consultar uma das entidades do curador para

descobrir quem fora o responsável pela perversidade. Tudo que obteve foi uma áspera

reprimenda...

Muitos dos pratos preparados ou servidos num jarê possuem também ligação mais

direta com sua liturgia, sua composição por vezes variando de acordo com as entidades a

serem homenageadas em casa ocasião. Acarajés e vatapás (prato feito com farinha, peixes,

camarões e temperos) – bem como abarás, no passado – costumam ser servidos nas festas da

segunda metade do ano, sejam as de Cosme e Damião, sejam as de Iansã. Nas primeiras o

prato principal é o caruru (sendo a pronúncia “cariru” mais frequente na região), iguaria a

base de quiabos. As festas dedicadas a Oxalá contam com feijoada e uma canjica de milho

branco, de nome mucunzá. Pratos de farofas de diversos tipos, chamados “fufus”, são

preparados tanto como oferenda aos espíritos como para acompanhar as refeições, muitos

deles sendo combinados com o restante da comida e, especialmente no caso das pessoas mais

velhas, apreciados sem talheres, degustados em pequenos bolinhos feitos com as mãos no

próprio prato, e oferecidos dessa forma às crianças. Comer, e dar de comer, diretamente com

as mãos são atividades que renovam e transmitem a força pessoal de alguém, em função
176

também do contato com a saliva dos comensais – substância corporal que, como será descrito

adiante, possui também um uso ritual específico212. Alguns dos filhos-de-santo mais antigos

do Palácio de Ogum se lembram com saudade de um ritual no qual uma das primeiras

iniciadas da casa, vestida inteiramente de branco, dançava girando no centro do salão

enquanto equilibrava sobre a cabeça uma gamela cheia de um mingau branco, dedicado a

Oxalá ou a Abaluaê, chamado amalá. O mingau ia aos poucos se derramando no corpo da

dançarina, devendo ser então diretamente lambido pelos adeptos da casa, instruídos em

seguida a enxugarem seus rostos ritualmente no vestido da filha-de-santo.

Comer pode ser, ao contrário, também um meio de se ser afetado prejudicialmente,

contando como principal o receio de se ser enfeitiçado pela via alimentar, já que ingerir um

objeto que porte um feitiço é considerada uma das formas mais inescapáveis de sofrer seus

efeitos. Em menor grau, os alimentos servidos num terreiro são sempre em alguma medida

portadores da força do curador de uma casa, seu consumo podendo trazer consigo

consequências distintas. Quando sabem que algum de seus filhos-de-santo irá a uma

cerimônia num terreiro alheio, curadores lhes aconselham a saírem de casa já alimentados,

levarem sua própria comida – quando for possível e não insultuoso –, ou ainda se limitarem às

refeições oferecidas antes do início do jarê. Avisos fornecidos pelos curadores – e tanto a

respeito desse assunto como de muitos outros – são, via de regra, muito menos ditames do que

recomendações, alertas, pareceres. Certa vez, um de meus amigos, em fase de iniciação no

terreiro em que estávamos, disse ao curador da casa que queria comer uma uva de um belo

cacho que era parte de uma grande oferenda disposta no centro do salão, numa cerimônia

doméstica. O curador retorquiu de forma lacônica e com tom de voz irônico, perguntando-lhe

somente: “Quer mesmo?” Ignorando a reprovação, meu amigo veio a se arrepender

amargamente quando, mais tarde no mesmo dia, foi acometido por uma diarreia que, ele tinha

212
Tema a ser retomado no capítulo 4, seção 4.4.
177

certeza, havia sido causada pela ingestão daquela única uva, contrariando a recomendação de

seu pai-de-santo.

Após tornar-se membro definitivo do terreiro em questão, meu amigo teve de se haver

com as proscrições comportamentais às quais ficam sujeitos os recém-iniciados, todas elas

possuindo o mesmo caráter de contraindicações para que se proceda a uma recuperação e um

fortalecimento pessoal satisfatórios213. Muitas dessas interdições são alimentares, algumas

delas emulando às da Semana Santa, como a de não comer carne, outras ligadas a itens como

o coentro e outros vegetais similares que tornam o corpo do iniciado mais vulnerável à ação

de forças nocivas. Um curador pode tanto transmitir essas proscrições oralmente como

fornecê-las por escrito aos filhos-de-santo mais jovens que não possuem conhecimento dos

meandros do culto, auxiliando-os e os monitorando quando sob sua guarda, mas os deixando

de todo modo e em última medida responsáveis por observarem as próprias interdições, passo

importante na vida de um adepto do jarê.

2.5 Telurismos

A família biológica, ou carnal, como preferem dizer as pessoas ligadas ao jarê, possui

papel importante em muitos dos aspectos da vida mística de seus integrantes. Em função de

sua hereditariedade, filhos e netos podem receber de seus pais e avós desde obrigações rituais

e estilos de dança à capacidade de incorporar entidades específicas que permanecem ao longo

dos anos ligadas aos membros de uma mesma família. Pode-se ter de realizar jarês em função

de uma promessa assumida por um antepassado ou em benefício de um descendente, ou

213
O resguardo a ser mantido possui caráter perene, as proibições podendo ser continuamente abrandadas com o
passar do tempo e o restabelecimento da força pessoal. Mantê-lo é igualmente um meio do iniciado se tornar
responsável por sua própria saúde, bem como de se dar conta de sua fragilidade, já que é sempre possível que
seja acometido por determinado mal (Rabelo 1990: 217-221).
178

mesmo assumir uma sina reservada a um parente próximo (como um irmão), como a de se

tornar um curador, de modo a livrá-lo da obrigação e aplacar os espíritos que demandam ser

reverenciados. Do mesmo modo, pais e mães em especial estão sujeitos a parcialmente

sentirem em seus corpos efeitos que sejam direcionados a seus filhos, derivados seja de um

ritual iniciático, seja de um feitiço.

Mesmo as pessoas que não são ligadas ao jarê, e portanto não compartilham da mesma

ampliação familiar causada pela agregação dos demais membros de uma família-de-santo à

biológica, veem suas famílias tornarem-se mais extensas graças às muitas versões do

compadrio existentes na região214. De diversas formas, pais e mães aproximam outras pessoas

de seu núcleo familiar tornando-as seus compadres e comadres ao apadrinharem seus filhos.

De um ponto de vista cronológico, a primeira dessas formas é tradicionalmente exclusiva a

madrinhas, por ser reservada à parteira que traz um recém-nascido ao mundo – que “pega a

criança” ao nascer, como dizem –, primeira pessoa que virá a ser considerada como uma

segunda mãe pela criança e a quem terá de se acostumar a fazer o pedido de bênção. São raras

as pessoas na cidade que precisam recorrer a médicos e ao hospital para a realização de

partos, sendo abundante o número de parteiras detentoras de saberes tradicionais que as

tornam conhecidas, queridas e requisitadas por todos – oferecendo conselhos sobre os

procedimentos do resguardo posterior ao parto, bem como indicações de preparados para

males específicos que podem se abater sobre grávidas, bebês e crianças. Toda pessoa sabe

quem foi a parteira que lhe “levantou” e a quem deve o mesmo tipo de respeito concedido a

suas demais madrinhas e seus padrinhos.

O principal compadrio é aquele estabelecido por ocasião do batizado de uma criança

na igreja, seja ela católica ou evangélica, e que costuma acontecer até os três anos de idade.

Não é incomum que uma criança mais nova permaneça sem nome depois de nascer e até que

214
Há ligações históricas do compadrio também com as formas de relação entre santos e seus protegidos no
catolicismo popular (Monteiro 1974: 59-60 apud Rabelo 1990: 61-63).
179

seja efetivamente batizada na igreja, e a escolha dos padrinhos para seu filho envolve grande

consideração por parte dos pais. Em geral, o padrinho e a madrinha são escolhidos entre os

amigos próximos dos pais da criança, não havendo necessidade de que sejam um casal,

tornando-se todos compadres e comadres uns dos outros e ficando entendido que os padrinhos

passam a ser, a partir daquele momento, corresponsáveis pela criação do infante. Ao mesmo

tempo, uma terceira mulher pode ser convidada para carregar a criança no momento do

batismo, sendo ela também considerada uma madrinha, chamada de “madrinha de carrego”215.

Como mencionado anteriormente, entidades espirituais do jarê podem se incorporar durante o

batismo na igreja e acabarem por ser elas mesmas padrinhos ou madrinhas da criança, por

vezes em concretização a uma promessa. Similarmente, existem pessoas que passam a chamar

amigos que ainda não possuem filhos pelos termos compadre ou comadre, estabelecendo de

forma antecipada uma relação que poderá ser plenamente atualizada quando do nascimento de

uma criança.

Em geral, depois de já se ter procedido ao batismo na igreja, realiza-se no mês de

junho seguinte um outro batismo durante o São João, normalmente chamado de batismo de

fogueira. Nele, a criança poderá receber um novo padrinho, que pulará uma das muitas

fogueiras acesas pelas ruas da cidade carregando o afilhado no colo e recitando uma reza

adequada à ocasião. Processo similar pode acontecer depois que uma criança realiza sua

crisma na igreja, havendo a crisma de fogueira. Ainda que por vezes haja repetições, nada

impede que em cada uma dessas ocasiões uma pessoa diferente seja escolhida para ser o

padrinho de uma mesma criança, seus pais adquirindo dessa forma um número cada vez maior

de compadres e comadres. A todos esses podem se somar os padrinhos de iniciação num jarê,

no caso das pessoas que se tornam filhos-de-santo de algum terreiro.

215
No restante do Brasil também são registradas as construções madrinha de apresentação, de representação, de
bandeja ou de jirau (Gonçalves 1984: 78).
180

Os rituais que ligam adeptos do jarê a uma casa de culto, descritos adiante em detalhe,

exigem o acompanhamento de ao menos um padrinho e uma madrinha chamados “de

obrigação”, em geral escolhidos pelos próprios iniciandos, com sugestões e anuência do

curador do terreiro, entre pessoas que já sejam elas mesmas iniciadas – não raro entre outros

filhos-de-santo da mesma casa. Idealmente, ao menos até que se tenha bastante idade, tempo

de iniciação e confiança em sua força pessoal, um membro de uma casa de culto deverá

sempre possuir padrinhos de obrigação, devendo realizar rituais para apontar novas pessoas

para a posição caso os seus venham a falecer – num processo muito similar ao que ocorre caso

seu pai-de-santo pereça. Como nos outros casos, também no jarê podem ser tanto a própria

pessoa como alguma de suas entidades a responsável por apadrinhar um iniciando, este vindo

a se tornar afilhado ou do carnal, ou de um de seus espíritos. Diferentemente do que ocorre

nas outras formas de apadrinhamento, contudo, não há estabelecimento de compadrio entre o

pai-de-santo responsável pela iniciação e o padrinho e a madrinha de obrigação.

Essa ampla gama de apadrinhamentos e compadrios possíveis, cuja apreensão por um

bom tempo me desnorteou consideravelmente, é posta em ação constantemente ao longo do

cotidiano dos nativos da Chapada, e ainda mais no caso dos adeptos do jarê. Um afilhado

deve respeito e consideração a seus padrinhos, qualquer tenha sido a razão do

apadrinhamento, sendo instruído desde bem cedo a lhes pedir bênção na primeira vez que se

encontrem num dia qualquer. Se, instruindo as crianças, os adultos por vezes lhes incitam a

“tomar a bênção a” seus padrinhos, a forma mais comum de dizê-lo é com a construção “dar a

benção a”, evidenciando o direcionamento da deferência que os afilhados devem a seus

padrinhos e madrinhas, da mesma forma como se solicita a bênção dos parentes mais velhos

(em geral pais e mães, tios e tias, avôs e avós) ou de seu pai-de-santo. Dar a bênção a uma

dessas pessoas pode ser feito de forma mais breve e somente de maneira verbal (pedindo:

“Bença, tia”) ou de modo mais detido oferecendo sua mão direita estendida próximo ao nível
181

do rosto enquanto diz as mesmas palavras. O responsável por conceder a bênção une sua mão

direita à do afilhado e a oferece para que seja beijada no dorso, podendo a seguir retribuir a

ação. A resposta ritualizada que conclui o oferecimento da bênção em geral é “Deus te

abençoe”, podendo haver bastante variação na substituição de Deus por Jesus, Senhor dos

Passos, ou uma das muitas entidades do jarê, predominando Oxalá.

Um afilhado deve fazer tudo que estiver a seu alcance caso um de seus padrinhos lhe

faça um pedido, especialmente no caso de solicitações mais sérias e no auxílio de trabalhos

coletivos (como reformas em casas, colheitas de roças ou realização de mutirões). Os

padrinhos e madrinhas, por sua vez, zelam pelo bem e pela felicidade de seus afilhados,

dando-lhes conselhos, presentes e se preocupando com as obrigações que esses assumem. Nos

jarês, além de terem outras funções rituais mais explícitas, são também os padrinhos –

especialmente as madrinhas – as pessoas responsáveis pelo acompanhamento de um afilhado

que esteja incorporando uma entidade, tendo preferência na execução da tarefa as madrinhas

de obrigação, mas cabendo àquelas que sejam madrinhas por outras razões responsabilidade

praticamente idêntica216. Os inúmeros cumprimentos e trocas de bênção entre parentes

carnais, afins, parentes de jarê, compadres, comadres, padrinhos, madrinhas e afilhados geram

um quadro bastante vertiginoso de cortesias (e possíveis faltas de consideração) a princípio

bastante difícil de acompanhar. Se, de qualquer modo, não costuma haver na prática muita

diferença nas demonstrações de polidez mais protocolares esperadas entre as pessoas segundo

as distintas formas de parentesco, bastando ter em mente a quem demonstrar e de quem se

espera receber deferência, ao mesmo tempo distinções mais finas podem ser acionadas – por

exemplo quando se quer exacerbar as consequências de um deslize. Muito mais

216
As madrinhas, e por vezes os padrinhos, de obrigação assumem assim o papel que nos candomblés litorâneos
cabe às equedes, ajudando os afilhados a, por exemplo, colocarem suas vestimentas rituais e os amparando
durante as manifestações das entidades. Nas ocasiões em que as madrinhas de uma pessoa não estejam presentes,
seus irmãos-de-santo mais próximos, demais parentes ou amigos se responsabilizam por esse acompanhamento,
de todo modo podendo também auxiliar as madrinhas nas demais vezes conquanto não mostrem estarem com
isso tomando seu lugar.
182

frequentemente, todavia, tais distinções são feitas em situações com desfechos cômicos dos

quais todos os envolvidos irão rir com satisfação.

Além do apadrinhamento, os rituais de iniciação no jarê geram outras fundamentais

formas de parentesco ritual que unem entre si os membros de um mesmo terreiro,

estabelecendo laços tanto entre os filhos e seus pais ou mães-de-santo como entre os irmãos-

de-santo que compõem uma casa de culto. Os adeptos afirmam que se tornar um filho-de-

santo raramente é uma escolha pessoal, do mesmo modo como a definição da casa de culto à

qual irão pertencer muitas vezes escapa ao domínio da volição217. Depois que a iniciação de

uma pessoa fica decidida, ela se dedica a juntar dinheiro para obtenção dos itens necessários à

condução dos rituais bem como para remuneração do curador responsável218. Em ambas as

tarefas, ela pode ser ajudada por amigos e parentes, bem como contar com o auxílio

esporádico das próprias entidades envolvidas no processo, por vezes acontecendo de um pai-

de-santo devolver, parcial ou integralmente – a mando de algum de seus espíritos –, a quantia

que recebe como pagamento pela condução do processo, ao término do mesmo. A iniciação

no jarê envolve dois rituais subsequentes, realizados em ocasiões diferentes: a “limpeza” e o

“batizado”, cada um deles podendo ser também chamado indistintamente de um “trabalho”.

O ritual de limpeza, chamado também e de forma bem menos frequente de “lavagem

da cabeça” ou de “bori”, costuma acontecer durante uma festa de jarê, em geral algumas horas

após seu início e algumas horas antes de seu término. Em determinado momento, o curador

interrompe a sequência habitual de incorporações e silencia os tambores, e tanto ele como

seus auxiliares preparam, no centro do salão, os objetos necessários à realização do ritual,

217
O processo divinatório que comumente antecede a aproximação de uma pessoa a um terreiro será descrito no
capítulo 3, seção 3.4. Já os motivos que levam um iniciado em potencial a se tornar filho-de-santo serão mais
detalhados no capítulo 4, em especial na seção 4.5.
218
Os valores de trabalhos de iniciação, bem como a composição exata de itens a serem obtidos, variam bastante
de acordo com a pessoa a ser iniciada e as orientações dadas ao curador por suas entidades. A quantia que um
iniciando precisa despender em um rito, usada pelo curador também para a compra de objetos e alimentos para o
jarê, além de sua manutenção pessoal, costuma variar entre algumas centenas até dois milhares de reais.
183

geralmente em múltiplos de três ou de sete, que podem compreender alimentos diversos em

pratos, bebidas, charutos, pregos, velas, ramos de plantas, panos e fitas coloridos

(prevalecendo a combinação de cores preto, branco e vermelho, mas com muitas variantes

possíveis), dispostos de maneira circular219. Estando todos devidamente colocados no chão, o

curador retoma o jarê com uma sequência de cantigas próprias ao trabalho em questão,

conclamando à incorporação aquele entre os seus espíritos que será responsável pela

condução do ritual – sendo mais comuns Ogum, Iansã ou um dos caboclos ligados às matas,

já que todos estes, afirmam, não temem lidar com a morte. Já manifestada, a entidade indica

que os auxiliares da casa devem trazer o iniciando, que até o momento aguardava no interior

do quarto de reclusão, para se sentar num banco no centro do salão, voltado de costas para o

peji e de frente para a saída do pagodô, e ser acompanhado por seus padrinhos. O iniciando

encontra-se nesse momento descalço e já vestido de forma apropriada, com as roupas em

geral cobertas por um tecido branco e portando colares de contas e braceletes de palha

trançada, bem como vendado por um pano branco que cobre seu rosto por inteiro.

Ao longo do trabalho de limpeza, que continua ao som dos atabaques, o oficiante

procura afetar o iniciando com objetivo de afastar espíritos danosos responsáveis por

infortúnios que sobre ele estejam se abatendo, como indicado tanto pelo processo divinatório

quanto pelo conhecimento do pai-de-santo e suas entidades. Estabelece-se um conflito entre,

de um lado, o curador e seus espíritos – em especial aquele que realiza o trabalho – e, de

outro, o iniciando e as próprias entidades que o circundam e acompanham, algumas das quais

terão sua conexão com o filho-de-santo enfraquecida a ponto mesmo de dele se apartarem

definitivamente, caso a limpeza seja bem-sucedida. Primeiramente, o corpo do iniciando é

tornado suscetível, “aberto”, à ação do ritual, recebendo sobre si o conteúdo de pratos de

alimentos e a influência de outros objetos, lançados pelo oficiante, de composição geralmente

219
Ver foto 49 no anexo III.
184

granular: farinhas, feijões, pipocas, milhos, saladas de folhas picotadas e talco, bem como a

luz e calor de velas. Em seguida, ele recebe substâncias mais líquidas equacionadas à força

vital: bebidas alcoólicas, mel, dendê, claras e gemas de ovos quebrados sobre sua cabeça, e o

sangue sacrificial de um galo ou galinha abatido pela entidade do curador, em geral com uma

faca dedicada especificamente a esse propósito, após o animal haver bicado três goles da

cachaça disposta para o ritual – algo feito de preferência sem que seja preciso conduzi-lo

demasiadamente a tanto. O galináceo pode ter sua cabeça cortada, suas extremidades

removidas e estufadas no próprio corpo, que é posto em contato com o corpo do iniciando e

depois depositado no centro do salão onde se acumula uma quantidade de itens rituais já

utilizados. Em algum momento próximo dessa etapa do ritual, espera-se que ao menos uma

das entidades que atormenta o iniciando se manifeste nele, sendo então repelida pelo espírito

incorporado no curador com o auxílio dos padrinhos, que ao longo de todo ritual permanecem

posicionados de pé atrás do filho-de-santo cada um com uma de suas mãos sobre os ombros

do afilhado, o padrinho postando-se do lado direito e a madrinha do esquerdo, amparando-o.

Continuando a entoar as cantigas necessárias, repetidas pela assistência presente, o

oficiante da limpeza gesticula em direção ao lado de fora da casa, expulsando do aposento os

espíritos perniciosos ligados ao iniciando. Procede-se em seguida à restauração da integridade

do iniciando, por meio de uma série de operações feitas com as fitas coloridas que de início

haviam cada uma tido uma de suas pontas amarrada ao redor da testa do filho-de-santo

(completando e duplicando o círculo que delimita a área ritual), bem como com o cordão de

São Francisco, instrumento essencial para todo curador, igualmente manejado próximo às

cabeças dos envolvidos no ritual, conectando-as. O corpo do iniciando fica assim preparado

na direção de seu restabelecimento e do retorno a uma condição íntegra, “fechado”. Todos os

objetos utilizados no ritual são reunidos e envoltos pelos panos que permaneceram no chão –

o preto constituindo a camada mais externa –, os auxiliares rituais devendo tomar cuidado
185

para que nenhum escape à coleta, sendo o conjunto todo amarrado pelas fitas e tendo fincado

em seu centro a faca utilizada para o sacrifício. O iniciando, por sua vez e já bastante

exaurido, tem o corpo circundado pelo cordão e é coberto por um novo pano branco que o

encobre da cabeça aos pés. Com pólvora, o oficiante desenha no chão, no centro do salão, um

símbolo cabalístico (cujo formato pode lembrar, por exemplo, simultaneamente uma cruz e

um tridente, as extremidades apontadas para os principais lados opostos do pagodô), ficando

todos os presentes preparados para sua ignição. Assim que a marca é acesa, um auxiliar da

casa trata de levar velozmente o conjunto de objetos gastos, no qual estão concentradas as

energias nocivas manejadas no ritual, para o lado de fora do terreiro para ser despachado.

Precisamente ao mesmo tempo, no instante marcado pelo surgimento do clarão provocado

pela pólvora, os padrinhos sem hesitar conduzem o iniciando para o quarto de reclusão, onde

terá início seu resguardo. O auxiliar, retornando ao salão, é recebido com fumigação de

incenso pelo oficiante, que em seguida se retira para o peji, onde o curador voltará a si.

Concluído o trabalho de limpeza, uma pessoa já pode ser considerada um filho-de-

santo da casa de culto, e muitos dos frequentadores dos jarês, especialmente os mais

ocasionais, não realizam o ritual subsequente. Aqueles que se tornam membros mais efetivos

de um terreiro, contudo, continuam em sua trajetória com a realização do trabalho de

batizado, nunca feito antes da realização do primeiro. Inclusive, se um iniciado deixa

transcorrer um intervalo de tempo consideravelmente grande entre a realização do primeiro e

do segundo, pode ser necessário realizar uma nova limpeza para torná-lo outra vez propício ao

recebimento do batizado. Os trabalhos de batizado ocorrem igualmente no decorrer de uma

festa de jarê, normalmente após a realização de quaisquer limpezas feitas para outros

iniciandos. Da mesma forma que ocorre nestas, também são sempre realizadas pessoa a

pessoa, porém têm início com o filho-de-santo dançando no centro do salão e recebendo uma

de suas entidades, acompanhado como de costume por música e cantigas. Após a


186

incorporação, o iniciando é levado pelos padrinhos e demais adeptos da casa até o interior do

peji, onde o curador o aguarda, sendo colocado sentado diante da pia batismal. Não costuma

haver espaço para todos os frequentadores acompanharem o batizado no interior do quarto de

santo, ficando o restante da assistência no pagodô repetindo as cantigas rituais específicas que

serão agora puxadas pelo pai-de-santo sentado ao lado do iniciando.

O curador procede ao batizado retirando uma pequena mecha de cabelo do alto da

cabeça do iniciando, em geral num ponto próximo ao centro da abóbada craniana, com uma

faca ou tesoura específica para a tarefa220. Ato contínuo, unge a cabeça do filho-de-santo com

um preparado aromático armazenado na pia batismal, aplicando-o múltiplas vezes e podendo

acrescentar ao processo outros itens como talco. Na mesma substância aquosa são banhados

colares multicoloridos de contas que são em seguida colocados no pescoço do iniciando221.

Enquanto faz isso, o curador entoa cantigas específicas tanto para as entidades que já são

próximas do seu filho-de-santo, como para aquelas cujo grau de participação ele deseja

aumentar, podendo igualmente terminar a enumeração com um apelo a todos os espíritos que

porventura venham a se manifestar no iniciando. Ao elencá-las, o curador costuma apontar

para as diversas imagens localizadas em seu peji, simultaneamente conclamando-as a se

conectar ao iniciando e indicando aos demais filhos presentes os nomes de cada uma delas –

algo que os mais perceptivos costumam caracterizar como uma ação pedagógica. Algumas

das imagens são também erguidas e postas em contato direto com a cabeça do iniciando, que

ao longo de todo esse processo manifesta seus espíritos em rápida sucessão de acordo com as

cantigas anunciadas por seu pai-de-santo. Lançando saliva em sua própria mão, o curador

aplica a substância na cabeça do filho-de-santo, no local de onde o cabelo foi retirado.

220
No jarê não há prática de se raspar o couro cabeludo dos iniciados, o que consiste em outro ponto de
aproximação de seu ritual com o do o candomblé dito de nação nagô de Cachoeira, para o qual a ausência da
raspagem é considerada um traço distintivo de sua liturgia em relação a outros candomblés (Brazeal 2007:
82,88).
221
Ver foto 50 no anexo III.
187

Após a última das entidades ter deixado o corpo do filho-de-santo, ele se recupera por

alguns instantes e é levado de volta para o pagodô, onde se sentará novamente num banco ao

lado do curador. Dispostos no centro do salão encontram-se alguns outros objetos rituais, o

principal deles sendo um recipiente, em geral uma bacia, no qual há um preparado cuja

composição, variável, normalmente conta com dendê, mel, bebidas alcoólicas e sumos de

determinadas plantas. Nesse instante o curador é tomado por aquele entre seus caboclos que

será o responsável pela condução da próxima parte do ritual, que envolve o sacrifício de um

animal de quatro patas, via de regra um bode ou carneiro, por vezes enfeitado com fitas,

trazido de fora até o centro do pagodô pelos auxiliares rituais sem estar amarrado e tendo

recebido, mais cedo no mesmo dia, um cuidadoso banho ministrado pelo filho-de-santo por

quem será imolado. Da mesma forma que com os galos e galinhas sacrificados no trabalho de

limpeza, considera-se um bom presságio quando os animais não esperneiam, não se debatem e

nem hesitam muito ao adentrar o salão, sendo particularmente fortunosas as ocasiões em que

o fazem de modo praticamente espontâneo, sem que seja preciso segurá-los à força. Quando o

animal entra no salão, o iniciando já se encontra novamente tomado por uma de suas

entidades, sendo despejado sobre as cabeças de ambos um pouco do conteúdo do recipiente ao

centro do salão. A entidade que preside o ritual procede ao sacrifício, derramando um pouco

do sangue no preparado líquido e erguendo o animal, com a ajuda de outros membros da casa,

sobre o iniciando, que será banhado pelo sangue remanescente na criatura, amparado por seus

padrinhos e ao som continuado das cantigas apropriadas ao momento. O curador oferece

então com uma pequena concha alguns goles do preparado, misturado agora com o sangue

sacrificial, para que o iniciando o beba, procedendo ao desmembramento das extremidades do

animal (patas, rabo e cabeça), sendo esta repousada ligeiramente sobre a cabeça do próprio
188

filho-de-santo antes de ser colocada, com as outras partes, no interior do recipiente ao centro

do salão222.

Ao término do ritual, a carcaça do animal será separada para que sua carne seja

preparada e oferecida aos frequentadores do terreiro nas refeições do dia posterior. Suas

demais partes, por sua vez, servirão de alimento a algumas das entidades cultuadas na casa,

depositadas em locais específicos após a “matança”, para que ali sejam consumidas pelos

espíritos (seu apodrecimento sendo o sinal de que estão sendo devidamente apreciadas pelos

caboclos). O iniciando é levado para o quarto de resguardo e o oficiante retorna para o peji,

onde a entidade deixará o pai-de-santo. Enquanto isso, os demais membros da casa trazem

bacias com terra para o centro do salão, a essa altura bastante avermelhado pelo sangue que se

espalhou por sobre o otim, espalhando-a com as mãos até que ela absorva a substância e o

chão comece a retornar a sua coloração terrosa habitual223. De uma pessoa que concluiu o

ritual de batizado, diz-se que agora é “pronta”, ou “feita”. Ao longo do ritual, as entidades que

lhe são próximas passam por um processo de cristalização – seria talvez até mais preciso dizer

condensação ou sedimentação – em sua cabeça. Como afirmam, seus espíritos tornam-se mais

fortes, sua vinda em seus corpos mais constante e segura, suas incorporações mais frequentes.

Comparando suas experiências nos dois procedimentos iniciáticos, meus amigos diziam que,

apesar de ambos serem bastante intensos, a limpeza era mais “pesada”, exigia mais deles

corporalmente, enquanto o batizado era mais “tranquilo”, mesmo porque era a última etapa da

iniciação. Alguns comentavam também a respeito de variações dos mesmos rituais, por

exemplo aqueles feitos do lado de fora dos terreiros, em rios, quando havia indicação de que

sobre o iniciando não se deveria derramar sangue sacrificial, ou aqueles nos quais se

acrescentavam pequenos cortes corporais feitos nos ombros dos filhos-de-santo.

222
Maiores considerações a respeito do sacrifício ritual serão oferecidas no capítulo 4, seção 4.5.
223
Ver foto 51 no anexo III.
189

Na manhã seguinte aos rituais de iniciação, tanto no caso da limpeza como no batismo,

os iniciados são levados – após terem passado o restante da madrugada no quarto de reclusão

–, ainda com as roupas que trajavam durante os trabalhos, até um rio próximo ao terreiro para

serem banhados. Os iniciados se unem ao seu pai-de-santo em meio às águas e são

mergulhados por ele sete vezes, em seguida recebendo de cada um de seus padrinhos e

madrinhas de obrigação por sete vezes o conteúdo de uma bacia cheia d’água sobre a cabeça,

bem como lhes são entregues seus colares, devidamente lavados. Retornam a partir daí para

seus resguardos, que podem durar muitos dias, alguns passados ainda no terreiro, outros após

terem retornado a suas vidas cotidianas. As proscrições do resguardo envolvem tanto as já

mencionadas restrições dietéticas como outras comportamentais (no começo os recém-

iniciados não devendo nem mesmo ser tocados por qualquer pessoa), como evitar passar por

cercas de arame farpado, não deixar a cabeça descoberta sob o sol do meio-dia, não ter

relações sexuais em determinados dias da semana (mais invariavelmente nas sextas-feiras) –

por muitos considerada a mais difícil de não quebrar –, algumas delas devendo ser mantidas

por dias, semanas, meses, anos, ou mesmo para toda vida. As evitações prescritas no

resguardo costumam todas ter o mesmo objetivo: impedir que os filhos-de-santo tenham seus

corpos novamente fragilizados, abertos a influências perniciosas, sendo importantes tendo em

vista a proximidade do estado de maior susceptibilidade pelo qual passaram nos trabalhos.

Algumas filhas-de-santo de mais idade, que faziam rituais para se ligarem a um novo pai-de-

santo após o falecimento do seu, comentavam como elas não estavam sujeitas às proscrições

do resguardo com a mesma intensidade dos mais jovens, que realizavam sua primeira

iniciação.

Nos casos em que uma pessoa já foi iniciada por um pai-de-santo que veio a perecer,

uma outra etapa ritual costuma ser acrescentada, em geral no início de um trabalho de

limpeza, caso ela venha a se ligar a outro terreiro, ou mesmo somente como forma de romper
190

sua conexão com o falecido, num procedimento chamado “tirar a mão do morto”. Nele, o

filho-de-santo é colocado, no meio do pagodô, no interior de um círculo feito por velas,

pólvora e o cordão de São Francisco. O curador que realiza o ritual provoca uma incorporação

no filho-de-santo e, em meio a cantigas específicas, acende o círculo de pólvora, devendo os

auxiliares rituais remover o iniciando de seu centro somente após sua ignição completa,

levando-o para o quarto de santo. Como de costume, seus padrinhos de obrigação

permanecem ao seu lado, amparando o afilhado e simultaneamente lhe fornecendo parte de

sua força pessoal para enfrentar as agruras do trabalho a ser realizado, algo que igualmente

fazem nas outras ocasiões, podendo eles também manifestar alguma de suas entidades, de

maneira parcial ou completa224.

Os rituais iniciáticos estão entre os considerados como alguns dos mais difíceis feitos

por um curador, sua capacidade de realizá-los a contento sendo sinal não só de sua habilidade

litúrgica como de sua força pessoal. Conheci curadores que se esmeravam em detalhes

milimétricos ao conduzir a arrumação dos itens rituais a serem usados nos trabalhos,

comumente debochando, de maneira brincalhona, das dificuldades que seus auxiliares rituais

– alguns deles futuros curadores em potencial – exibiam ao nunca acertarem o

posicionamento adequado dos objetos. Da mesma forma, são vistas como marcas de um bom

curador, por exemplo, sua capacidade de provocar a incorporação em outras pessoas, o

número e qualidade das entidades próprias que é capaz de mobilizar, seu pendor para lidar

com situações inesperadas e improvisar diante de circunstâncias adversas que possam surgir

no decorrer dos rituais. Só depois de passados muitos meses de trabalho de campo é que pude

começar a perceber detalhes rituais mais intrincados, muito em função dos comentários que

meus amigos faziam quando visitavam jarês que aconteciam em casas diferentes daquelas nas

quais eram iniciados. Curadores com menos habilidade, me diziam, não adaptavam o

224
Como melhor detalhado no capítulo 4, seção 4.3.
191

andamento da festa às necessidades do ritual, deixavam com que a sequência de cantigas lhes

escapasse (tendo por vezes que consultá-las em anotações em vez de puxá-las da memória ou

improvisá-las de forma bem-sucedida). Não possuíam a destreza, especialmente a manual,

para controlar os objetos a contento, por exemplo acendendo a pólvora em momento errado e

causando pequenos abrasamentos, tentando rasgar panos sem sucesso, interrompendo um

trabalho por não ter um objeto à mão, causando nós em fitas e cordões. Tudo se passava como

se os próprios objetos se recusassem a ser manejados, o que levava meus amigos a

comentarem como um bom curador não podia ser alguém “atrapalhado”. Após uma limpeza a

que assistimos, comentou-se exaustivamente como fora um absurdo a filha-de-santo não ter

incorporado uma única vez ao longo do ritual, chegando mesmo a falar e indicar objetos para

ajudar no desenrolar do trabalho. Mais escandaloso ainda fora o fato de a própria inicianda ter

assistido à matança que era realizada em seu benefício, misturando-se seu olhar no meio do

fluxo das atenções que devem ser dirigidas de maneira cautelosa pelo curador nesse

momento225. Como disse certa vez um filho-de-santo bastante antigo, em outra ocasião mas na

mesma chave, a respeito de como sua própria iniciação havia sido correta: “Eu vi a hora em

que o trabalho começou, mas não vi a hora em que terminou”. De modo parecido, um curador

não deve permitir que suas entidades se incorporem nele de forma muito intensa quando

realiza um trabalho, já que assim arrisca não ser capaz de controlar as demais forças

envolvidas no ritual, pelo próprio excesso da força pessoal mobilizada pelo pai-de-santo –

cuja entidade, nesses casos, inadequadamente manifesta-se “turrando”, ou seja, emitindo os

sons graves que são mais adequados aos momentos de dança.

Estar atento às críticas e comentários que frequentadores de casas de culto faziam a

respeito dos líderes dos jarês (por vezes até dos seus próprios iniciadores), foi uma forma de

aprender mais a respeito de detalhes muitas vezes deixados propositalmente vagos no decorrer

225
Fenômeno que será descrito de forma mais extensa no capítulo 4, seção 4.2.
192

dos rituais. Como já mencionado, as pessoas ligadas ao jarê utilizam com bastante recorrência

enunciados que, ao mesmo tempo em que transmitem determinadas informações, explicitam a

ocultação de outras, seja por desconhecimento, seja quando se está diante de pessoas menos

próximas, ou ainda mesmo quando não se deve trair um segredo do culto. Quando se escuta a

descrição de uma sequência ritual posteriormente a sua realização, inúmeras vezes se ouve:

“Aí, ele foi lá e fez o que tinha que fazer”, que é somente uma dessas muitas formas de

dissimulação – muitas outras das quais são utilizadas, como já mencionado, ao longo do texto

da tese. Esse era o caso de outros dos rituais mais importantes de serem realizados numa casa

de culto: o de plantar a roça para inauguração de um terreiro e os propiciatórios executados

antes da realização de cada jarê. Apesar de não ter presenciado diretamente nenhum deles,

pelo que se comenta o primeiro é feito com uma série de sacrifícios às entidades principais

que irão proteger o terreiro, acompanhados da entoação de rezas e cantigas específicas para o

momento, bem como da instalação de um conjunto de objetos de importância ritual enterrados

no centro do salão, constituindo o otim. Ao menos parte da composição desse conjunto era de

conhecimento dos filhos-de-santo mais antigos do jarê, já que o espaço precisava ser

periodicamente escavado para que o conjunto fosse alvo de procedimentos que renovariam a

energia ali depositada – a parte principal permanecendo sempre oculta de todos, à exceção

somente da pessoa de maior confiança do curador. Já os ritos propiciatórios – que pude

acompanhar à distância quando eram realizados pelos chefes dos jarês, de participação

estritamente masculina e reservada somente a homens já iniciados – envolvem a alimentação

do povo da porta, os exus e demais espíritos que habitam tanto o caramanchão como o

entorno das casas de culto, sob os auspícios dos quais toda festa é realizada. Oferendas de

velas, cachaças e pratos com farinhas são nesses casos as mais comuns, às quais são

acrescentadas partes dos animais sacrificados nas matanças rituais, quando acontecem.
193

Os rituais de fechada e aberta de um terreiro, para interrupção de suas atividades

durante a Quaresma, são bastante similares, com algumas sequências diretamente invertidas.

A fechada acontece ao término do último jarê do período, acompanhada de cantigas

específicas à ocasião. O chefe da casa senta-se num banco no centro do pagodô, diante do

qual há uma bacia com um preparado similar ao utilizado no ritual de batismo, acrescido de

uma ferramenta metálica e um ramo de folhas verdes. Diante dele, os filhos-de-santo

perfilam-se e, um a um, ajoelham-se para terem seus corpos fechados de modo a desestimular

a manifestação das entidades durante o período. O chefe da casa molha os dedos no preparado

e pinta com ele três pequenas cruzes no corpo dos membros da casa: uma em cada pulso e

outra no pescoço, na altura aproximada do pomo-de-adão226. Em seguida, o filho se abaixa,

apoiando-se nos quatro membros, para receber o preparado embebido no ramo que é batido

em suas costas por três vezes, bem como recebe palavras do oficiante ritual. Após o último

filho-de-santo passar pelo procedimento, e recolhidos os apetrechos utilizados, os presentes

recebem velas acesas e se colocam de pé no salão formando uma roda e girando em sentido

anti-horário, depositando-as um de cada vez no centro do salão. Por fim, os atabaques são

colocados no mesmo local e cobertos por um pano branco, fechando a casa.

O ritual de aberta, por sua vez, precede o primeiro jarê que terá lugar após a

Quaresma, havendo inclusive um intervalo para que os presentes tomem banhos de

purificação (muitas vezes acompanhados de preparados de ervas feitos pelo curador) e se

arrumem para a festa. Na aberta, todos os presentes se sentam no chão do pagodô, ao redor de

uma vela acesa circundada por um colar adornado com um rabo de boi ou um chicote, um

copo com cachaça e uma faca cravada verticalmente no centro do salão – de certo modo

abrindo seu solo. Oferendas para as entidades podem ser dispostas tanto no meio do salão

como próximo a sua porta de saída. O entorno da vela é aspergido com a bebida e com dendê,

226
Não incidentalmente, como será visto no capítulo 4, seção 4.5, locais de grande concentração da força
pessoal, com potencial de sangramento profuso.
194

e o chefe da casa desenha um símbolo com pólvora no chão, que será em seguida aceso.

Embalados pelo toque dos atabaques já descobertos, os filhos-de-santo são conclamados a

dançar em roda pelo salão, em sentido anti-horário, sendo em seguida chamados um a um

para terem seus corpos abertos e, junto dos demais frequentadores, receberem a bênção do

curador. Ao som de cantigas específicas para a ocasião, todos se ajoelham diante do chefe da

casa, que toca as costas dos presentes com uma ferramenta ritual e declara a casa aberta, em

seguida incensando o pagodô e cômodos adjacentes por inteiro. Tanto as cerimônias de

fechada como as de aberta de um terreiro podem ter etapas abreviadas ou serem realizadas de

forma inteiramente resumida com a entoação de algumas frases específicas pronunciadas pelo

chefe da casa, quando se diz que foram procedimentos feitos somente “em palavra”, por

motivos distintos (caso o chefe da casa precise se ausentar em pouco tempo ou não haja

recursos para a realização de um jarê, por exemplo). Próximos das datas em questão, meus

amigos sempre se indagavam a respeito dessa possibilidade, mostrando de modo incontido

seu desejo de que sempre fossem feitos jarês por inteiro nessas ocasiões.

Existe, por fim, uma grande quantidade de microrrituais realizados ao longo de uma

cerimônia de jarê, praticamente todos podendo ser considerados variações de formas de

reverência aos espíritos, intensificados seja nas festas dedicadas a entidades específicas, seja

como homenagem às mais importantes de um curador, seja ainda para se aproximar ou render

tributo àquelas com as quais se tem uma relação mais pessoal. Nesses momentos, as entidades

manifestadas nos filhos-de-santo recebem tanto oferendas (na forma de presentes, promessas,

cantigas, adoração) como pedidos (de cura, proteção, alteração da sorte). Praticamente todas

as entidades podem aproveitar essas oportunidades não só para dançar e, muito

ocasionalmente, beber, como para transmitir mensagens tanto para os demais presentes como

para o próprio carnal em que habita, e oferecer tanto conselhos como bênçãos. Similarmente,

os mesmos presentes que são entregues às entidades incorporadas (como vestimentas,


195

perfumes, frutas, bebidas) podem ser oferecidos em outros momentos nos demais locais em

que elas habitam, como o peji, o caramanchão e as matas.

Muitos dos procedimentos realizados nos rituais do jarê, somados a outros percebidos

no convívio cotidiano com os habitantes de Lençóis e detalhados no capítulo anterior227,

evidenciam uma série de disposições em relação ao chão e à terra que seria possível

caracterizar como parte de uma metafísica telúrica228 que – se não é de modo algum, no

universo das tradições de matriz africana no Brasil, exclusiva ao jarê – encontra na Chapada

Diamantina um solo particularmente apropriado para elaboração. O telurismo místico do jarê

pode ser de saída entrevisto na ação das entidades mais velhas, explicitamente ligadas à terra,

como Nanã Borocô e Abaluaê, que quando incorporam imediatamente caem prostrados ao

chão. É costume, quando se começar a cantar para esses espíritos, que todos os frequentadores

de jarê levem ao menos os dedos de uma das mãos ao chão, mantendo contato com o solo.

Quando chegam no pagodô, essas entidades se dirigem, engatinhando, até próximo dos

atabaques, despejando-se diante delas água e dendê, que misturam com a terra batida que

constitui o chão do salão, dando origem a uma lama que as próprias entidades manejam e

espalham sobre seus corpos, especialmente nas costas das mãos e braços. Esse fenômeno

amplia um que é minimamente reproduzido ao longo de todo jarê, quando a dança dos

presentes descalços no chão de terra às vezes molhado (por água ou suor) o desgasta

parcialmente, havendo cuidado para mantê-lo seco para evitar derrapagens. Assim como o

derretimento progressivo das velas – objetos eminentemente verticais que parecem se tornar

cada vez mais próximos do chão, sendo tragados por ele – transmite a ideia da permeabilidade

do solo, muitas das substâncias utilizadas e produzidas nos rituais terminam sendo vertidas

227
No capítulo 1, seção 1.3.
228
O termo é aqui proposto como uma forma de transformar o uso que um dos principais cronistas da região faz
da expressão “democracia telúrica” (Moraes 1983: 19). Por mais que minha descrição enfatize os aspectos
cosmológicos do termo, esse telurismo pode muitas vezes se conectar com uma questão literalmente fundiária,
como a que foi vivida pelos habitantes de Nova Redenção (Rabelo 1990: 129).
196

sobre a terra do pagodô e a ela assimiladas, sobretudo o sangue mas igualmente o dendê, a

aguardente, o mel, a água, o suor. A energia mobilizada nos e pelos rituais, que

simultaneamente se constitui de e é transmitida por essas diversas substâncias229, penetra no

solo da casa de culto e passa a fazer parte dele, sendo continuamente revolvida e

readministrada por e em outras ações rituais, como no exemplo da lama230.

Do mesmo modo, os filhos-de-santo jamais permanecem calçados depois de serem

tomados por qualquer de suas entidades, por mais que as mulheres muitas vezes prefiram vir

com calçados bastante ornamentados para a festa. Ao contrário dos sapatos fechados e dos

tênis, as sandálias podem ser facilmente retiradas pelos demais filhos-de-santo quando se

processa uma incorporação em um de seus irmãos, amigos ou afilhados. Meus amigos

comentavam como se tratava de um sinal certeiro de falsa manifestação caso uma pessoa

dançasse sem se incomodar em permanecer calçada, já que os espíritos incorporados se

recusavam a dar qualquer passo caso seus pés não estivessem em contato direto com o solo231.

Certa vez, falando a respeito da grande força possuída por um curador, bem como elogiando

sua habilidade litúrgica, uma amiga exclamou simplesmente: “Ah, esse pisa no chão!”

Existem mesmo momentos, observados com bastante gosto e atenção, em que as entidades

incorporadas num jarê abandonam momentaneamente sua conexão com o solo, ou fazem com

que outras pessoas a percam. Ainda que geralmente sua coreografia seja executada quase que

exclusivamente bastante próxima do chão, alguns homens em particular, quando

manifestando seus espíritos, acrescentam a ela pequenos saltos, por vezes tirando ambos os

229
Como será melhor detalhado posteriormente, no capítulo 4, seção 4.4.
230
Ver foto 52 no anexo III.
231
Por sugestão de Elias, depois de algum tempo abandonei por completo o uso dos tênis que ainda mantinha nas
caminhadas para os jarês. Ele me disse que ficar descalço era uma forma importante de poder estar em contato
com o “abajé”, o axé da terra que é, por excelência, feminino. Quando conversávamos sobre o assunto, ele
confirmou a suspeita de que a conexão privilegiada das mulheres com a força do solo tinha ligação tanto com o
fato de possuírem vagina, por esta constituir um receptáculo com abertura voltada para o chão, como por
menstruarem. Essas considerações receberão tratamento mais detalhado nos capítulos 3 e 4, seções 3.2 e 4.5.
197

pés do chão ao mesmo tempo em que dobram os joelhos. Esses passos são recebidos pela

assistência com bastante alegria, considerados divertidos e belos. Imagino que essa avaliação

se deva também ao risco que se aceita correr, não só de cair como de abandonar o chão por

alguns instantes. De modo similar, uma saudação feita com muito gosto por determinados

caboclos envolve tirar uma pessoa do chão com um forte abraço, dobrando o próprio corpo

para trás enquanto a levanta, em geral reservada a crianças mas não limitada a elas. Os

adeptos do jarê comentam que essa é uma forma de transmitir saúde à pessoa cumprimentada,

me parecendo enfatizar uma determinada possibilidade de canalização que ocorre quando o

seu próprio contato com o chão passa a depender de, e ser feito por, uma entidade. Numa

inversão dessa configuração, lembram que se deve evitar pular por cima de uma pessoa

qualquer quando esta se encontra deitada no chão, especialmente no período do resguardo,

sob pena de abrir o corpo dela a influências danosas.

Já se mencionou como os filhos-de-santo devem ficar em contato direto com o solo

após a realização das iniciações232. O mesmo é igualmente importante antes e durante o

próprio processo ritual. Em determinada ocasião, um senhor de idade avançada havia pedido

para permanecer com os pés protegidos ao longo do dia em que seu trabalho seria realizado, já

que sem os calçados ele caminhava com dificuldade, solicitação negada por seu curador, que

lhe falou explicitamente sobre a importância de pisar descalço no chão e de repousar sentido

seu corpo sobre a terra. Um amigo que auxiliara nesse ritual comentou como o pai-de-santo

lhe havia instruído a não carregar para o interior do salão os animais a serem sacrificados,

especialmente bodes a carneiros, conduzindo-os, ao contrário, com suas patas sempre tocando

o chão, tanto nessa como nas demais ocasiões rituais da casa. A maior parte das entidades

incorporadas sempre solicita que objetos a serem utilizados no ritual ou presentes que se lhes

esteja ofertando sejam erguidos do chão e entregues em suas mãos, as mesmas nunca se

232
Em outra tradição de matriz africana, das casas de religião da cidade de Pelotas, o próprio processo iniciático
pode ser chamado literalmente de “ir ao chão” (Barbosa Neto 2012: 88, 105, 224).
198

abaixando para pegar nada. Além disso, todo filho-de-santo aprende rapidamente que, ao

fazê-lo, deve antes e de modo bastante ligeiro retornar o objeto em questão para o solo por

duas vezes, para só na terceira levantada entregá-lo ao caboclo, como numa espécie de pedido

de licença à terra. A prática me deu a nítida impressão de que, ao levantar e retornar o item

por algumas vezes apenas poucos centímetros do solo e de forma breve, tudo se passa como

se parte da energia contida no local, da força da qual aquele objeto é depositário e

transmissor, se desgrudasse do chão nesse momento, esparramando-se ao contrário e se

concentrando no artefato.

As considerações que ofereço a respeito dessa metafísica telúrica foram tecidas dando

ouvidos a uma pessoa em especial, uma das grandes sábias de Lençóis cuja apresentação

marcará o fim desse capítulo. Amplamente conhecida na cidade como Valdelice de Caxixão,

em função do apelido de seu marido, habituei-me a chamá-la simplesmente de Dona

Valdelice233. Dona Valdelice se dizia, ela mesma, uma pessoa muito cismada e desbocada,

sendo tão temida quanto adorada pelos lençoenses. Autora de bordões célebres reproduzidos

com gosto pelos habitantes da cidade (alguns dos quais mencionados anteriormente), Dona

Valdelice me disse mais de uma vez, quando falava a respeito da configuração das potências

do mundo com as quais os seres precisavam se haver, que pessoa alguma devia imaginar que

era menos importante que outra, completando: “Grande mesmo, nesse mundo, só três coisas:

Deus, a morte, e a terra”. Dona Valdelice passava seus dias habitualmente sentada em dois ou

três lugares pela cidade, acompanhando a vida de seus amigos, vizinhos, e familiares,

especialmente os inúmeros afilhados, que a interpelavam com contínuos pedidos de bênção.

Gostava mesmo, contudo, era de fazer longas caminhadas pelas cercanias da cidade,

acompanhada de alguma de suas amigas, relembrando os trajetos nos quais, e os tempos em

233
Também me referia a ela como Valdelice do Alto da Estrela quando, geralmente em conversa com Elias, seu
bom amigo, não queria dar margem a confundi-la com Valdelice do Baixio, dona da já mencionada casa de jarê
no caminho para o Palácio de Ogum.
199

que, cortava e vendia lenha para sustentar sua família, atividade que tivera feito praticamente

sozinha e que lhe dava muito orgulho. Eu e Elias por vezes nos oferecíamos para acompanhá-

las nesses passeios, cujo número havia diminuído nos últimos tempos mas que continuavam a

lhe dar grande satisfação. Antes de empreender uma dessas saídas mais longas, rogava a Deus

e aos caboclos por um clima favorável, e nos oferecia incenso, esquentado com brasa de seu

fogão a lenha, para que saíssemos cedo com o corpo protegido.

Dona Valdelice aproveitava as caminhadas pelas serras do entorno de Lençóis também

para recolher plantas com usos variados, ensinando a Elias, que já as conhecia mais

razoavelmente, seus nomes, aplicações e formas de uso, em geral na forma de chás ou

remédios após acréscimo de alguma bebida, bem como xaropes caseiros como um que me

auxiliou a enfrentar o inverno da Chapada. Grande conhecedora de rezas contra ofensa de

cobra e cortes de todo tipo, Dona Valdelice era grande amiga da tia de Elias, tendo esta

falecido nos braços da primeira. Seu conhecimento dos meandros do jarê era também sem par,

mesmo tendo deixado de frequentar o Palácio de Ogum há aproximados 30 anos, antes ainda

do falecimento do curador que o inaugurou e de quem era grande amiga e comadre, já que

havia lhe dado uma de suas filhas para batizar na igreja, episódio ao qual já aludi. A

aproximação entre os dois não deve ter sido fortuita, contudo: desde criança, dizia-se que ela

era detentora de uma força pessoal inigualável, razão pela qual, seu grande amigo e curador

lhe diria, jamais poderia ser iniciada234. Isso que não significava, contudo, que ela não

pudesse manifestar entidades e frequentar jarês, o que fazia com muito gosto, sendo inclusive

convidada para realizar tarefas rituais na casa de seu compadre, que lhe afirmava

explicitamente que o poder de sua casa crescia em função da mera presença de Dona

Valdelice nas festas: “Quem faz graça, merece graça”, afirmava ela, em mais de um sentido.

234
Retornarei a esse paradoxo aparente a seguir e também no capítulo 4, na seção 4.4.
200

Muitas das pessoas que frequentavam os jarês de hoje em dia lembram-se da época em

que Dona Valdelice ia ao Palácio de Ogum, suas entidades merecendo saudações rituais que

levavam mesmo os que hoje são os mais fortes filhos-de-santo a se portarem de forma

humilde. Dona Valdelice conhecia segredos da mata e auxiliava curadores com quem

simpatizava em suas obrigações, chegando a ser por muito tempo a única pessoa a quem o

chefe do Palácio de Ogum confiava a renovação dos três objetos sagrados, que ela chamava

de a “ciência” da casa, centrais à composição do otim. O mais importante deles,

provavelmente trazido de Cachoeira ainda pelas nagôs, ela dizia, era um objeto que se movia

como se possuísse vida própria, e que fazia com que ela avistasse luzes coloridas ao ser

lavado no rio próximo ao terreiro. Elias, que já ouvira muitas descrições de antigos filhos da

Capivara do item que tornava a ser enterrado a cada vez no centro do salão, o apelidara de

“aborto”, já que devia ser um pedaço de carne detentor de algum movimento próprio, dizia. O

objeto fora removido do local em definitivo pelo curador do Palácio, que dele deu cabo antes

de falecer: “Tudo tem seu fim”, afirmava, triste, porém resoluta, Dona Valdelice. Tudo tem

seu fim, inclusive os jarês, dava a entender.

Em nossas caminhadas, por vezes Dona Valdelice fazia uma pausa repentina e depois

nos explicava que, naquele instante, ou naquele local em outra oportunidade numa caminhada

anterior, tinha avistado um espírito. Suas visões, que tinham lugar em sua mente, ela

explicava, eram mais frequentes quando estava próxima de algum marco no qual havia

acontecido muito sofrimento ou mesmo mortes, como uma antiga senzala na qual escravos

foram torturados, ou o Campo da Batalha, terreno no qual foram travados alguns dos

combates no cerco que no passado se fez à cidade de Lençóis. Em ocasiões particularmente

dramáticas, ela dizia, chegava a ouvir gritos, tiros e o galope de cavalos, estando ciente de que

vivenciava no presente, de maneira parcial, eventos que tinham deixado como que impressas

no território as marcas que via como espíritos – pessoas exatamente como nós, com a sutil
201

diferença de que, por poucos centímetros, seus pés nunca tocavam o chão. Junto dos espíritos

de pessoas falecidas, dizia Dona Valdelice, ela via também espíritos que eram as entidades

cultuadas no jarê, da mesma forma como as vira quando da morte da tia de Elias. Seres

trajando roupas em geral brancas ou verdes, esses outros espíritos podiam ser vistos por

pessoas com determinado dom (como era, em menor grau, o caso de Elias, ela acrescentava),

por ela possuído desde o nascimento. A forma como ela o justificava – bem como o motivo de

possuir sua considerável força pessoal – era ainda mais significativa quando lembro que nela

faz uso de um nome igualmente dado a qualquer entidade do jarê: “Sou igual a um caboclo.

Tenho capacidade”. Sua afirmação certamente ia além de seu temperamento e de sua

compleição, reconhecida como de descendente indígena, mas sem deixar de passar por

ambos235. O grande curador, seu compadre, de todo modo já a prevenira: ela havia nascido

feita.

235
Ver fotos 53 e 54 no anexo III.
202

Capítulo 3 – Tombar

Sou eu, pai Ogum


Sou filho que não tem medo
Eu não tropeço no caminho
E também não escorrego no lajedo

3.1 Associações

“Não chorem, meus filhos, pois eu sou a rainha da morte”. Essas estiveram entre as

últimas palavras ouvidas por aqueles que acompanharam os instantes derradeiros de um dos

maiores pais-de-santo que já houve na Chapada Diamantina, o já mencionado Pedro de Laura,

chefe do terreiro nomeado Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, presenciadas tanto por

muitos de seus iniciados como por seu único filho, Sandoval, que veio a se tornar um de meus

grandes amigos em Lençóis. À época em que cheguei à cidade ele contava 33 anos, tendo sido

adotado por Pedro e criado por ele e por Dona Laura, mãe deste, desde bastante novo.

Sandoval dizia que hoje ele era uma pessoa muito diferente do jovem tímido e reservado que

fora quando mais novo, já tendo também agora alguns filhos (incluindo uma menina chamada

Laura, em homenagem à avó de criação), tanto de sua esposa atual como de um

relacionamento anterior. Apesar de trabalhar há algum tempo como preparador de drinques

num dos hotéis da cidade, Sandoval dedicava grande parte de seu tempo ao legado deixado

por seu pai que, no leito de morte, pediu aos presentes que não deixassem a casa da Capivara

ruir, continuando a realizar suas principais festas anuais, dedicadas a Oxalá e a Iansã, sendo

essa última uma das mais reconhecidas entidades do curador, e autora da frase que abre esse

capítulo.
203

Diferentemente do que acontece com a maior parte dos frequentadores dos jarês, que

recebem caboclos, Sandoval jamais manifesta entidades, exceção que, de toda forma, ocorre

mais comumente com homens, em especial os mais jovens e que não passaram por nenhuma

iniciação. Esse era seu caso também porque um curador não pode fazer trabalhos de limpeza

ou batizado para seus próprios filhos carnais, modo como Sandoval sempre foi considerado

por Pedro. Sendo seu último familiar em Lençóis, Sandoval tornou-se herdeiro dos bens

materiais deixados por Pedro de Laura, que incluíam o terreno e a casa da Capivara. Assim

como os filhos-de-santo remanescentes, ele próprio reconhece que seu pai nunca deixou

apontada uma pessoa como seu sucessor espiritual para liderar o Palácio de Ogum, o pedido

para que a mantivessem viva, em funcionamento, tendo sido feito a todos conjuntamente.

Passados alguns anos, após ter ficado fechada para um período de luto e ter sido reaberta

experimentalmente, a casa de culto que é hoje a mais importante da Chapada Diamantina

prosseguia sua existência tendo, à época em que cheguei a Lençóis, como curador Pai

Mussum, auxiliado pela tia de Sandoval, mãe-pequena do Palácio e irmã de sua mãe

biológica. O próprio Sandoval continuava a ser um dos principais promotores das festas da

Capivara, sendo o maior responsável pela organização logística dos eventos – os três, em

geral e conjuntamente, dividindo entre si a maior parte dos custos financeiros envolvidos na

realização dos jarês.

Apesar de já tê-lo visto algumas vezes, Sandoval me foi formalmente apresentado

durante a comemoração posterior à apresentação da quadrilha Bicho-do-Mato, da qual ele era

integrante havia muitos anos. Contente em poder conversar num momento de maior

descontração com meus colegas, que indagavam afinal de contas o que eu tinha vindo fazer

em Lençóis, nesse momento eu lhes disse, provavelmente pela primeira vez de maneira mais

direta, que gostaria de conhecer mais a respeito do jarê, para realização de uma pesquisa

acadêmica. Fui quase que imediatamente direcionado a Sandoval, que todos os demais
204

indicavam ser o filho do maior curador que a região teve nos últimos tempos, o renomado

Pedro de Laura. A Sandoval pareceu difícil esconder um pouco de orgulho, especialmente

quando ele disse que era o idealizador e atual presidente da Associação do jarê da cidade. De

modo a promover a união dos filhos da Capivara entre si, entre os quais houve relativa

dispersão até que as atividades do Palácio de Ogum fossem adequadamente retomadas,

Sandoval liderou a criação, no ano de 2005, de uma associação que congregasse tanto os

antigos frequentadores do terreiro como as novas pessoas que se aproximavam da casa, como

eu ficaria sabendo posteriormente236.

Muitos dos habitantes de Lençóis costumam reconhecer em si mesmos uma propensão

ao associativismo, inclinação cujo surgimento atribuem à necessidade de se agruparem diante

de momentos difíceis em sua história, em geral citando as grandes enchentes que muitas vezes

devastavam a cidade, os períodos de seca, fome e alastramento de doenças que caminhavam

conjuntamente, bem como as épocas nas quais o diamante escasseava, resultando em diversas

sociedades de beneficência e socorro mútuo237. O caráter desse tipo de associação continua

muito similar mesmo em muitas das novas organizações que não são diretamente ligadas ao

trabalho, como o caso da Associação do jarê, que em seu estatuto prevê, por exemplo e entre

outras atividades, o amparo a membros adoentados. A associação mais famosa e mais antiga

ainda existente nos dias de hoje na cidade é a Sociedade União dos Mineiros (SUM), cuja

fundação data da década de 1920, dedicada no presente majoritariamente à defesa dos direitos

dos garimpeiros já aposentados mas tendo também grande influência na organização de

eventos públicos em Lençóis. Como era de se esperar, nos últimos anos vem crescendo em

importância a associação equivalente na qual se reúnem os guias de turismo da cidade, a

236
Ver fotos 55 e 56 no anexo III.
237
Há registros de associações praticamente desde a fundação da cidade de Lençóis, bem como de sua
importância ao longo do tempo até os dias de hoje (Moraes 1963: 106; Senna 1996: 91; Ganem 2001: 19, 50;
Araújo 2002: 179; O. Senna 2002: 12).
205

Associação de Condutores de Visitantes de Lençóis (ACVL)238. Há conjuntos de pessoas

dedicadas a uma atividade que desejam fundar associações, como o caso dos organizadores

atuais da marujada, bem como outros que, por motivos diversos, não veem necessidade ou

preferem passar longe de qualquer formalização de suas atividades, como os membros do

reisado local, das quadrilhas, de outras casas de culto de jarê. Muitos dos homens que

trabalham como guias na cidade consideram que as taxas de associação e participação não

justificam seu credenciamento junto à ACVL, preferindo trabalhar de modo autônomo.

Toda associação costuma ser conhecida pela figura de seu presidente, e estes estão

rotineiramente atarefados não só com a organização das associações de que fazem parte como

com a participação em inúmeras reuniões promovidas pelo poder público, às quais são

frequentemente convidados a comparecer enquanto “representantes da sociedade civil”. Uma

das principais razões que levou à configuração atual das associações de Lençóis tem a ver

com um dos objetivos primários dessa forma de organização, na visão de seus presidentes: a

concorrência em editais públicos de financiamento. Os presidentes das associações comentam

como se organizar em uma associação é não só uma exigência governamental como também

uma forma de se fortalecer diante do poder público, apresentando-se de forma unida em torno

de uma causa. Em determinada ocasião, na qual alguns desses presidentes encontravam-se

reunidos, um deles chegou a esboçar a ideia de que poderia ser criada mesmo uma associação

das associações de Lençóis, para que suas demandas fossem consideradas conjuntamente,

apesar de não ter obtido grande apoio para essa possível iniciativa – talvez, inclusive, por ser

o presidente de uma das associações que, pela natureza mesma de sua atividade, os demais

consideravam ter poucas chances de angariar financiamentos.

238
Outras organizações comunitárias anteriormente mencionadas também constituem associações devidamente
registradas, como o Movimento Avante Lençóis, atuante na capacitação dos moradores do Tomba, a Casa
Grande e a Academia de Capoeira Corda Bamba, voltadas à educação de crianças no Alto da Estrela, o Grãos de
Luz e Griô, centrada na promoção da cultura, arte e pedagogia locais, o Grupo Ambientalista de Lençóis (GAL),
promovendo a proteção e educação ecológicas, e a Filarmônica Lira Popular de Lençóis, responsável pela
manutenção da orquestra.
206

Por meio da Associação dos Filhos-de-Santo do Palácio de Ogum e Caboclo Sete-

Serra, como é o nome formal da agremiação, Sandoval buscava manter unidos os adeptos da

Capivara que haviam sido reunidos por seu pai, bem como promover o jarê de maneira geral

na cidade de Lençóis e alhures, para cumprir a tarefa que Pedro de Laura deixara aos seus. Se

é verdade que a aproximação entre Sandoval e outras pessoas interessadas no jarê que vinham

para a região por qualquer período de tempo, como era o meu caso, era também uma forma de

ele buscar fortalecer o culto – que se encontrava relativamente combalido desde o falecimento

de seu pai –, este se mostrava um expediente explicitamente subordinado à manutenção do

legado espiritual do Palácio de Ogum, como ele próprio viria a me dizer. Sem ser um

possuidor aparente da capacidade mística que permite entrar em contato mais direto com as

entidades do jarê, e sem ter tido desejo de se tornar um líder religioso para que viesse a

desenvolvê-la, Sandoval afirmava que empreendia a luta para valorização do jarê – e do

Palácio de Ogum, em particular – da melhor forma que lhe era disponível, ou seja, como

herdeiro material de Pedro de Laura e presidente da associação de seus filhos-de-santo,

função que ocupava também por haver tido como concluir seus estudos, como afirmava com

orgulho, formando-se no Ensino Médio de Lençóis239.

Sandoval cuidava com bastante zelo da logística envolvida na realização das festas na

Capivara, ocupando-se não só de grande parte da compra de gêneros alimentícios e objetos

necessários às cerimônias, como da arrecadação de contribuições dos filhos-de-santo e

doações dos amigos da casa, fazendo uso de um conjunto de relações estabelecidas seja por já

ter trabalhado em diversos locais na cidade, seja por ser presidente de uma das associações de

Lençóis, seja ainda por meio da manutenção das conexões cultivadas em função da memória

de seu pai. Tão importante quanto essas funções era a questão do transporte dos objetos e

239
Nosso amigo em comum Elias veio a se tornar presidente da Associação ao final de meu trabalho de campo,
numa articulação promovida, entre outros, por Sandoval, já que o próprio não poderia concorrer a mais uma
reeleição, de acordo com os termos do estatuto. Após o término do mandato de Elias – que ambos consideraram
não ter sido experiência das mais afortunadas –, Sandoval retornou à presidência da Associação.
207

pessoas até a casa de jarê, provavelmente a mais distante da sede do município ainda

frequentada com regularidade por seus moradores. Sandoval se encarregava de convidar os

habitantes da cidade para as festas, divulgando-as de casa em casa e buscando formas de

garantir que os filhos-de-santo mais antigos pudessem continuar a frequentar a Capivara.

Normalmente o caminho até a casa de culto tinha de ser transcorrido a pé, num trajeto

inclusive intransponível para carros de passeio por se tratar de estrada bastante acidentada e

haver necessidade de cruzar rios cuja intensidade da correnteza podia variar

consideravelmente. Quando possível, os líderes do Palácio de Ogum fretavam transporte para

as pesadas cargas necessárias à realização dos festejos, feito por caminhonetes cuja tração era

capaz de vencer as agruras do trajeto – e no interior das quais se costumava reservar lugar

para que os filhos-de-santo mais antigos não precisassem vencer a pé um caminho que fariam

em não menos de quatro horas de caminhada caso tivessem de andar. Por sua vez, os chefes

de casas de jarê um pouco menos distantes, mas ainda longe da sede, costumavam contratar os

serviços de mototáxis ou mesmo jovens com carrinhos de mão para levarem para as festas

comida, bebida ou – excepcionalmente, no caso dos últimos – pessoas240.

Sandoval contava que muito do que por vezes era feito hoje em dia se tratava de

transformações acarretadas pela necessidade de manter o culto vivo diante de um cenário

bastante peculiar não só na cidade de Lençóis como no interior do próprio Palácio de Ogum.

Concessões como participar de eventos públicos a pedido da prefeitura, incentivar a visita de

turistas para conhecer o cotidiano do jarê, fazer apresentações de música e dança, eram

experiências que, se no passado talvez não fossem vistas com bons olhos, configuravam-se na

contemporaneidade como modos de revitalizar o culto – acabando por simultaneamente

permitir uma maior aproximação de pesquisadores diversos, nos quais eu me incluía, dos

meandros de seu cotidiano. Elias, defensor contumaz de uma determinada concepção de

240
Os preços pagos pelos serviços costumavam ser de até R$ 5,00 para carrinhos de mão, R$ 15,00 para
motocicletas, e R$ 100,00 para caminhonetes, por viagem.
208

tradição do jarê, e verbalizando a posição de muitos dos filhos-de-santo mais antigos da casa,

costumava lembrar a Sandoval que era importante distinguir, ao menos no interior dessas

iniciativas, aquelas que poderiam acabar comprometendo a integridade do legado das casas –

via de regra por estarem mais interessadas em promover a si mesmas do que se colocar a

serviço dos próprios jarês. Os dois se lembravam de um projeto em especial, promovido por

uma organização não governamental em parceria com o Grãos de Luz e Griô, que por um

período realizou excursões de turismo comunitário que incluíam uma visita ao Palácio de

Ogum. Apesar de ter gerado alguma renda para a casa da Capivara, desentendimentos entre as

associações envolvidas em pouco tempo levaram à interrupção da iniciativa. Depois de

divulgados os trâmites e consequências do processo, enquanto alguns dos líderes de jarê de

Lençóis ainda mantiveram ligações com o Grãos, outros se afastaram definitivamente, dando

razão àqueles que, por sua vez e por diversos motivos, sempre haviam mantido distância dele.

Em certa ocasião, Elias comentou comigo como sua reserva em relação ao que ele chamava

de “espetacularização” do jarê promovida por associações como o Grãos tinha muito a ver

com a autopromoção da instituição e consequente falta de reconhecimento do protagonismo

dos próprios adeptos do culto, em especial quando insistiam no discurso do resgate cultural:

“Resgate, resgate... Falam tanto em resgate que parece até que estamos todos morrendo

afogados”, comentava ele com seu sarcasmo habitual.

Da forma como lhe era possível, contudo, Sandoval continuava a buscar meios de

fazer parte do circuito de editais de incentivo à cultura para os quais ele via associações como

o Grãos, que tinham experiência prévia com – e pessoal dedicado à – elaboração de projetos,

serem selecionadas241. Paralelamente, a Associação do jarê havia iniciado junto ao Iphan um

processo para tentar tombar o patrimônio material do Palácio de Ogum, medida tomada no

241
A seu pedido, eu e outras pessoas procurávamos nos inteirar a respeito de editais nos quais fosse possível
inscrever a associação do Palácio de Ogum, selecionando projetos que resultassem na obtenção de recursos que
lhes permitissem reformar a casa e empreender outras atividades com vistas ao desenvolvimento do jarê em
Lençóis, nenhum deles tendo contudo se concretizado durante meu trabalho de campo.
209

ano de 2007 no escritório regional que a instituição mantém na própria Lençóis. Junto de

alguns dos filhos-de-santo da casa, Sandoval havia tido a ideia de tentar tornar a casa da

Capivara um patrimônio de reconhecimento governamental, de maneira similar à que sabiam

ter sido tombado o conjunto arquitetônico da cidade anos antes. O processo junto ao Iphan

correu por algum tempo, tendo o Palácio de Ogum inclusive recebido visitas de técnicos

responsáveis pela elaboração de um dossiê para o órgão, até ser interrompido por não ser

considerado prioritário diante das demais demandas recebidas pela instituição até aquele

momento242. O tratamento que o processo de tombamento recebeu até então parece ecoar o

que Elias considerava funcionar para o patrimônio da própria cidade em Lençóis, segundo o

qual as normas de adequação e priorização acabavam sendo aplicadas diferencialmente de

acordo com a posição econômica dos proponentes, o suposto valor cultural que os bens dos

interessados teriam derivando dessa243.

3.2 Resiliências

Apesar de não incorporar as entidades do jarê, a participação de Sandoval nas festas

não se limitava a seu preparo, já que ele frequentemente se unia aos demais homens na

percussão dos instrumentos utilizados no culto, os principais sendo os atabaques, atividade

242
Fato que só consegui descobrir em visita pessoal à 7a Superintendência Regional do Iphan, em Salvador, a
pedido da Associação do jarê. Também não me foi concedido acesso ao conteúdo já produzido para o dossiê do
processo, que se encontra registrado no órgão sob o número 01502/000323/2007. Os responsáveis pelo processo
recomendaram que a associação buscasse, concomitantemente, o tombamento do Palácio de Ogum em nível
estadual junto ao Ipac, órgão responsável pelo patrimônio artístico e cultural da Bahia.
243
Similarmente, havia já em 1994 menção a uma iniciativa de interesse local favorável à criação de um museu
do jarê que tampouco saiu do papel (Senna 1996: 73, 76). O tombamento do jarê acaba dificultado por uma
concepção “acrítica e limitada” a respeito do que seja um monumento, que leva a “uma paralisia dogmática”:
para essa perspectiva, o valor de monumentalidade de um marco acaba equacionado a sua suntuosidade, à
grandeza de suas proporções e ao valor material das matérias-primas utilizadas em sua construção, mais do que
aos “processos de investimento simbólico e de instituição social dos monumentos” (Serra 2005: 201-202 nota
52).
210

eminentemente masculina. Nas casas de jarê contemporâneas é comum que sejam tocados três

atabaques durante as festas, sendo possível, apesar de pouco frequente, celebrá-las também

com dois ou quatro. Filhos-de-santo mais antigos se recordam de já terem presenciado

ocasiões no passado nas quais esse número foi bastante ampliado, chegando mesmo a nove

tambores tocados simultaneamente244. Os três tambores comumente utilizados podem ser

todos de tamanhos distintos ou dois similares em altura com um terceiro mais alto ou mais

baixo que os dois demais. Raramente, mencionam-se para os atabaques os nomes “trongo”,

“retrongo” e “tritongo”, do maior para o menor, preferindo-se chamar a todos de maneira

mais indistinta de “couros”. Já de modo mais rotineiro, referem-se aos tambores pela posição

que ocupam na harmonia, ficando um dos maiores (e mais graves) responsável pela

“marcação” e os demais (em geral mais agudos) pelo “repique”.

Os atabaques costumam ter altura variando em torno dos 90 centímetros e diâmetro

por volta de 30 centímetros em sua parte mais larga. Tradicionalmente, são feitos com uma

técnica que chamam de “tronco cavado”, na qual parte do tronco de uma árvore tem seu

interior removido e é utilizado integralmente, a “bomba” compondo o corpo do tambor.

Preferencialmente deve-se utilizar inclusive uma árvore que tenha tombado por meios

naturais, aquelas que já foram atingidas por raios resultando em peças extremamente propícias

à mobilização das forças do jarê. Quando troncos inteiros não se encontram disponíveis, os

chefes das casas recorrem aos tambores de “barrica”, cuja bomba é formada por tábuas,

vindas por vezes de muitas árvores diferentes, unidas entre si. A árvore mais comumente

utilizada para a construção dos atabaques é o chamado pau-d’arco, e o couro que os recobre

costuma ser de animais de caça, em geral caititus (mais rígido e pesado, como diziam) ou

veados (mais leve e maleável), ainda que também tenham mencionado ser possível utilizar

244
Informação similar à registrada em estudo conduzido cerca de quatro décadas atrás (Gonçalves 1984: 135-
136).
211

couro de bodes ou carneiros245. O couro é preso à parte superior da bomba por meio de um aro

de ferro que a circunda, ao redor do qual estão presos anéis ou amarras feitos com o mesmo

metal246. Desses anéis partem cordas que se entrelaçam em ziguezague por outro aro metálico

de tamanho próximo ao primeiro, posicionado pouco abaixo da metade da altura da bomba.

Entre esse aro inferior e a bomba, paralelamente à extensão dessa, são colocadas diversas

estacas de madeira apontando para baixo, que produzem a afinação do instrumento. Quanto

mais as estacas são empurradas para baixo, com um martelo ou ferramenta similar, mais o aro

inferior se retesa, por sua vez levando o aro superior a apertar as laterais do couro, esticando-

o. O barulho de batidas contra as estacas de madeira é rotineiro ao longo dos jarês, já que a

percussão contínua faz com que o couro abandone sua tensão ideal – que varia também de

acordo com cada tocador – diversas vezes noite adentro. Alternativamente, alguns tambores

possuem como método de afinação o uso de parafusos e tarraxas metálicas, preterido pelos

filhos-de-santo que por vezes podem nelas se cortar ao serem tomados por entidades que os

levem ao chão próximo dos tambores, acontecimento bastante corriqueiro.

Os atabaques podem ser adornados em ocasiões especiais, em geral com faixas de

pano amarradas em seu entorno, do mesmo modo como são por vezes amarradas no torso dos

filhos-de-santo manifestados durante as cerimônias. Na manhã que precede um jarê, são

postos pelo chefe da casa, ou a seu mando, para tomar sol, tendo-se espalhado uma pequena

quantidade de azeite de dendê sobre seu couro, com objetivo de amolecê-lo e deixá-lo

propício à cerimônia. Da mesma forma, ao longo dos toques, aqueles que os percutem podem

aplicar o dendê nas próprias mãos, esfregando-as uma na outra e fazendo com que fiquem

ligeiramente dormentes, como dizem. Essas medidas contribuem para que o couro não

245
A remoção de árvores para se fazer atabaques se tornou um problema nos dias de hoje pelo maior número dos
espécimes adequados se encontrar no interior da área do Parque Nacional, constituindo crime ambiental
fiscalizado pelo Ibama, que os membros dos jarês preferem evitar. O aumento do desmatamento que rareou os
exemplares mais próximos às áreas das cidades, externas ao traçado do Parque, foi outro dos motivos que parece
ter levado à maior utilização das bombas de barrica, conforme explicou Ronaldo Senna (comunicação pessoal).
246
Ver fotos 57 e 58 no anexo III.
212

arrisque romper ao longo do toque, algo que constitui um dos piores portentos que pode

acontecer num jarê. Quando não estão sendo utilizados, os atabaques são cobertos com panos

brancos, e não devem ser removidos de suas casas senão por motivos especiais e mediante

entoação de rezas específicas, pronunciadas ao levantá-los do chão. Os atabaques tampouco

devem ser percutidos em dias nos quais jarês não serão celebrados, chegando a haver

curadores que possuem instrumentos específicos destinados a ocasiões em que participavam

de algum acontecimento público (o “tambor de eventos”, como dizia Elias, algo que faria os

pais-de-santo de antigamente se revirarem em seus túmulos, ele acrescentava).

Outros instrumentos são geralmente utilizados no acompanhamento dos atabaques, a

maioria também manejada na maior parte das vezes pelos homens, como o triângulo, o agogô

e o xequerê, também chamado de afoxé, uma grande cabaça recoberta por uma malha de

contas similares às utilizadas para fazer os colares dos filhos-de-santo247. Já os caxixis e

cabaças pequenas que funcionam como chocalhos são percutidos de forma mais indistinta

tanto por homens quanto por mulheres. Meus amigos disseram já ter visto ou ouvido falar de

jarês, no passado e alhures, acompanhados por maracaxás (chocalhos cujo formato lembra um

losango, conforme descreveram), ou mesmo por violas e acordeões, a presença dessas últimas

uma peculiaridade do jarê do Remanso. Todos os frequentadores dos jarês também são

encorajados a participar batendo palmas no ritmo dos toques, e acompanhando com breves

salvas de palmas o rufar dos tambores que acontece sempre que uma entidade, em geral assim

que incorpora em um dos filhos-de-santo, agradece pela “caridade” que o conjunto da

assistência demonstra ao prestigiá-la. As palmas com que se acompanha o som dos atabaques

costumam ser de um tipo específico, batidas com as mãos bem abertas e espalmadas uma

contra a outra, favorecendo a maior área de contato possível, resultando num som bem curto,

247
Ver fotos 59 e 60 no anexo III.
213

seco, mas que deve ser preferencialmente o mais intenso possível, e produzido sempre que

possível próximo aos espíritos manifestados no salão.

Os tocadores de atabaque podem ser chamados de alabês ou de curimbas, ou ainda

simplesmente de batedores de couro. Ainda que todo homem seja um tocador em potencial,

há alguns que são reconhecidamente mais aptos para a atividade, seja por dominarem os

ritmos, seja por possuírem o vigor necessário para tocar por toda madrugada, seja por terem a

experiência que os torna capazes de reconhecer os sinais a serem observados enquanto se está

sentado ao couro – dos homens que pouco tocam, por falta de habilidade com os atabaques,

diz-se que são “gagos”. Idealmente deve haver sempre mais de três batedores para que se

revezem enquanto os demais descansam, sendo comum que se permaneça junto ao tambor até

que se esteja praticamente esgotado – o calor dos salões e da própria ação fazendo com que

prefiram tocar sem camisas, que de outro modo podem ficar encharcadas pela transpiração.

Os batedores exibem uma aura característica ao tocar, não só de cansaço como de grande

satisfação, divertindo-se enormemente no andamento das festas. Os demais membros das

casas de culto gostam de comentar a respeito dos maneirismos tanto comuns aos tocadores

(como gestos específicos, viradas de cabeça, expressões faciais) como aqueles pelos quais

distinguem uns dos outros, em especial sutilezas nos toques produzidos por cada um. Mais de

uma vez, enquanto conversávamos em um outro cômodo, os presentes identificavam quais

batedores estavam, naquele instante, sentados ao couro no salão ao lado somente por suas

batidas, estas sendo por vezes atribuídas ao formato de suas mãos, aos tocadores que lhes

ensinaram a bater, ou mesmo a suas personalidades, gerando estilos pessoais de toque.

Sandoval reconhecia não ser dos melhores batedores, como era o caso por exemplo

dos seus dois irmãos mais novos que, diferentemente dele, haviam sido criados por sua mãe

biológica, e que também se tornaram meus bons amigos. Os irmãos de Sandoval

encontravam-se entre os tocadores mais requisitados dos jarês da cidade, principalmente por
214

não se cansarem facilmente e serem capazes de bater os atabaques por horas a fio, “segurando

o couro”, como se diz – especialmente nos momentos em que há entidades dançando no salão

ou em vias de se manifestar nos filhos-de-santo, quando a música deve ser contínua.

Lembrando-se de quando era moço, um senhor considerado dos maiores batedores de Lençóis

contava como ficava depois de passar a madrugada inteira no couro: “Nunca senti tanto tempo

caminhando em mim”. Ainda que impressionassem por sua resistência à fadiga, qualidade

bastante apreciada nos grandes batedores, todos afirmavam que nenhum dos jovens de hoje se

igualava em capacidade técnica aos tocadores mais antigos. Os mais velhos se recordam

como, no passado, as muitas entidades tinham de ser reverenciadas com toques bastante

distintos, ritmos específicos que nos jarês atuais acabavam sendo pouco reproduzidos,

limitados agora a algumas variações melódicas, muitas vezes somente mudanças na

velocidade dos toques (como quando determinados caboclos dançavam ao som ou do couro

mais solto, rápido, avexado, ou do couro mais amarrado, mais lento, caso dos espíritos mais

velhos). A marca final de um grande batedor, que em geral acompanhava seu conhecimento

dos diversos toques, era a capacidade de estar constantemente atento ao desenrolar do jarê,

adequando seu ritmo aos acontecimentos da festa.

Os tocadores de atabaque costumam se deixar mergulhar num estado de concentração

próprio enquanto tocam, podendo fechar os olhos, virar as cabeças para o lado ou para cima

ou dirigir seus olhares e ouvidos para seus companheiros de couro e para os instrumentos

desses, entretendo-se uns aos outros numa conversa musical. Os melhores entre eles, contudo,

são capazes de fazer isso sem nunca perder de vista os efeitos que os toques dos tambores têm

sobre os filhos-de-santo no salão, sendo responsáveis por estimular e acompanhar as

incorporações. Os batedores costumam obedecer aos sinais do chefe da casa – em geral

acenos de mão, que podem ser retransmitidos pelos outros presentes para vencer a distância

que os separa no interior salão ou superar a desatenção de um tocador – para dar início ou
215

interromper determinadas canções, indicações que podem também ser feitas pelos demais

membros e frequentadores da casa, com anuência do primeiro, ou pelas próprias entidades

manifestadas. Os grandes batedores sabem, contudo, que não devem corresponder a essas

orientações de maneira irrefletida, caso, por algum deslize, por exemplo, sejam feitas em meio

a uma incorporação que esteja tendo início ou fim, pois esse processo bastante árduo só é

propriamente levado a cabo, e de forma menos desgastante, ao som da música apropriada.

Em outros momentos, tocadores e filhos-de-santo, manifestados ou não, nutrem com

afinco uma agonística própria entre si. Os primeiros sentem-se realizados ao provocar, com o

toque dos atabaques, incorporações nos membros dos terreiros, especialmente se um deles

afirma categoricamente que suas entidades não irão se manifestar. Para citar um caso, quando

uma filha-de-santo disse que seus caboclos estavam amarrados, um dos irmãos de Sandoval

respondeu, ato contínuo: “Caboclo amarrado, eu desamarro”, seu chiste vindo acompanhado

por duas curtas batidas no tambor. Do mesmo modo, os batedores comprazem-se em tocar de

forma veloz apenas o suficiente para que um dançarino não consiga acompanhá-lo, apesar do

músico acenar com a possibilidade. Os filhos-de-santo, por sua vez, orgulham-se quando se

mostram capazes de dançar nesses ritmos liminares, e mais ainda quando levam os tocadores

à exaustão enquanto os dançarinos encontram-se ainda de pé, ou quando os conduzem a um

deslize caso acabem se atrapalhando com algum toque, mostrando-se incapazes de

acompanhar a vivacidade dos movimentos no centro do salão. Em desafio, as entidades

podem clamar por novos tocadores, descansados para substituir os sem vigor, ou mais

habilidosos no lugar dos inaptos. Quase invariavelmente, de todo modo, essa agonística traz

consigo um ar de jovialidade, tocadores e dançarinos alegrando-se com suas disputas,

recheando-as com provocações e brincadeiras.

Apesar de ser uma posição eminentemente masculina, também é possível que certas

mulheres toquem os atabaques, havendo algumas que se notabilizam por sua habilidade, como
216

era o caso da filha de um grande batedor que os irmãos de Sandoval costumavam chamar de

“professora” – título que a mesma negava por dizer que não ensinava nada a ninguém. Ao

afirmá-lo, essa tocadora aproximava-se ainda mais da atitude que cultivavam os grandes

batedores, que diziam que, afinal de contas, saber tocar dependia menos de alguém que fosse

bom em ensinar do que de alguém que soubesse aprender: a compreensão menos importante

sendo a que acontece de forma explícita. As mulheres que efetivamente aprendiam e se

dispunham a bater couro desde saída descobriam que não deviam fazê-lo exatamente da forma

como fazem os homens, em especial no tocante à maneira como deviam aproximar os

atabaques de si. Enquanto os homens os seguram entre as duas pernas, firmando-os contra o

chão inclinados ligeiramente para frente, mulheres os apoiam de maneira lateral, passando

ambas as pernas pelo mesmo lado do tambor (de modo similar ao que ocorre no estilo de

equitação chamado “à amazona”). Um grande tocador de atabaque comentou como essa

posição devia ser assumida pelas mulheres ao segurarem o couro não só por decoro como

porque de outro modo exporiam o tambor a uma região perigosa, por ser canal do fluxo

menstrual. Parece-me que, dessa forma, evita-se também colocar em contato mais direto duas

caixas de ressonância capazes de mobilizar forças distintas e que podem entrar em conflito,

como será visto posteriormente248.

Seja homem ou mulher, todo batedor deve seguir determinado protocolo litúrgico ao

lidar com os atabaques. Quando assume posição junto aos demais tocadores, uma pessoa deve

proceder a uma ligeira persignação demonstrando deferência, ato igualmente repetido ao

deixar o couro – ato que pode ser sempre abreviado ou realizado somente em pensamento,

opção contudo menos frequente caso se esteja no início de um jarê. A batedora mencionada

dizia como, por preferir não permanecer no atabaque durante a realização de matanças,

escusava-se antes de se levantar erguendo ligeiramente o tambor do chão por três vezes, de

248
Em dois momentos no capítulo 4, seções 4.4 e 4.5.
217

maneira similar à referida quando um filho-de-santo retira um objeto ritual do chão durante os

trabalhos, e possivelmente tendo aqui o mesmo sentido suplementar249. A função dos

batedores é comumente acompanhada por algum tipo de remuneração, sendo a diretamente

monetária a menos comum250. Mais costumeiramente, os tocadores recebem comida e

especialmente bebida alcoólica em abundância durante as festas, sendo as doses de cachaça as

mais comuns enquanto se põem a tocar madrugada adentro. Os chefes das casas de culto

fazem o possível para agradar e cativar os melhores tocadores, já que deles depende em

grande medida o sucesso dos festejos do jarê. Por todas essas mesmas razões, batedores

costumam ser as pessoas que circulam mais livremente entre diversas casas de jarê, algo que

eu, por acabar tendo me tornado amigo próximo de muitos deles, em grande medida também

pude fazer.

Os atabaques são bastante atrativos para crianças que frequentam as casas de culto,

que se arriscam a tocá-los em determinadas ocasiões mesmo sabendo que serão em seguida

admoestadas pelos adultos, que por sua vez não o fazem de imediato tanto para conferir até

que ponto elas decidirão se arriscar como para lhes permitir algum treino com os

instrumentos, imagino. De maneira geral, as crianças de Lençóis acostumam-se desde cedo a

realizar experimentações musicais, sobretudo com percussão, que pode ser improvisada com

latas, garrafas e baldes. O gosto lhes acompanha na idade adulta, os homens principalmente

sendo responsáveis por animar qualquer reunião ou encontro mais festivo com alguma

batucada, tanto com instrumentos musicais propriamente ditos como com caixotes ou tampos

de mesa, acompanhados também por violões ou outros instrumentos de corda ou sopro,

quando há presente algum membro da orquestra da cidade. Meus amigos mais ligados ao jarê,

249
Como visto no capítulo 2, seção 2.5.
250
De toda forma, meus amigos de Lençóis comentavam um pouco desejosos como batedores de um distrito
próximo costumavam ser pagos em dinheiro por seus serviços nos jarês, recebendo até R$ 10,00 por noite de
festa.
218

em ocasiões nas quais não era possível por qualquer motivo realizar essas cerimônias,

demonstravam predileção por cantoria em torno da fogueira, muitos deles exibindo

conhecimento de um vasto repertório de chulas e sambas, alguns inclusive improvisados no

momento, de modo similar a repentes. Já nas festas das casas de culto, alguns dos batedores

diziam mesmo que só eram capazes de tocar os atabaques depois de haver ingerido alguma

quantidade de bebida alcoólica, que os ajudava a acertar o ritmo.

O consumo de bebidas, em especial da cachaça, mas também de vinhos, licores e

cervejas, costuma ser essencial à atividade dos tocadores. Quando há bebida alcoólica

suficiente, pode-se beber ao longo do dia – no caminho para e em preparação ao jarê –, mas o

mais comum é que os batedores recebam do chefe da casa copos e garrafas com cachaça

enquanto estão sentados ao couro. Se ela acaba, são rápidos em solicitar sua reposição,

intercalando o acompanhamento dos toques bradando pedidos indiretos (“Ó o gole!”) que o

dono da casa muitas vezes faz questão de ignorar, quando se mostram muito insistentes. Meus

amigos comentavam explicitamente que bater os deixava “com fome”, mas que se tratava de

uma fome que não podia ser saciada por comida, apenas por bebidas: mais especificamente,

por “comer água”, que é, como dito, outra forma de se dizer “beber cachaça”. Comer água

repunha suas forças, permitindo que continuassem a tocar, sendo essa energia, penso, a partir

daí também redistribuída por meio das vibrações dos tambores para os demais presentes,

notadamente para os filhos-de-santo que dançam no meio do salão e manifestam suas

entidades, assim indiretamente nutridas pela cachaça, que em outras ocasiões também lhes

abastece251. De forma mais direta, contudo, beber cachaça é uma atividade empreendida

eminentemente pelos homens, a capacidade de suportar os efeitos álcool, ou de tentar fazê-lo,

sendo considerada uma virtude específica e bastante valorizada, muitas vezes indicativa da

251
Os tocadores se inserem assim nessa economia de trocas energéticas, gastando sua energia tocando, fazendo
os tambores vibrarem, o que faz com que os caboclos balancem – o que por sua vez faz com que a casa como um
todo pulse. Esses temas serão retomados no capítulo 4, seção 4.4.
219

força pessoal que é constantemente manejada no jarê. Diversas vezes me indicaram como

grandes curadores, como o pai de Sandoval, podiam beber por meses a fio sem que com isso

ficassem comprometidos, abandonando o consumo de álcool e rapidamente retornando a si

como se jamais tivessem bebido, e permanecendo períodos de tempo ainda maiores sem

beber.

Meu convívio com Sandoval e seus irmãos, bem como com outros filhos-de-santo e

seus amigos, me ensinou muito a respeito do etos masculino da Chapada. Se a masculinidade

dos lençoenses costuma ser explicitada a todo momento, é igualmente verdadeiro que

demonstrações de imposição física e violência tampouco são indicações do comportamento

que se espera de um homem – e os casos de agressão a mulheres ou crianças, se existentes,

são restritos ao domínio doméstico e vistos justamente como ações de covardes, daqueles que

justamente “não são homens de verdade”. Em Lençóis, os homens afirmam a própria

masculinidade também com sua conduta, mas principalmente por meio de suas falas,

gabando-se constantemente de suas proezas sexuais (ainda que nem sempre dando nomes aos

envolvidos), tanto com mulheres quanto ocasionalmente com outros homens – desde que se

certificando o falante de com esses ter assumido somente a posição ativa. Mesmo casados,

supõem e esperam que a possibilidade de manter relações sexuais com outras mulheres

permaneça aberta, desde que jamais deixem de fornecer o sustento para seu lar. Entre si, os

homens brincam constantemente a respeito da sexualidade um do outro, colocando-a em

questão por meio de piadas, jogos de palavras, e mesmo propostas para encontros na mata

(tentativas que podem mesmo, por vezes, resultar em intercurso). Nessa chave, o maior elogio

que se pode fazer a um homem é chamá-lo de “reprodutor”, título reservado não só àqueles

que exibem uma linhagem longa como aos quais se reconhece o potencial de tê-la, e em geral

reservado somente a homens de pele mais escura. De forma oposta, de um homem já casado
220

que não tem filhos ou que gera apenas descendentes do sexo feminino diz-se, à boca pequena,

possuir “gala rala”.

Aqueles que viajam para outras cidades podem cultivar relações mais duradouras em

paralelo a sua vida matrimonial, e os que conhecem capitais e outros países, especialmente,

gabam-se de conquistar mulheres brancas que são sempre atraídas por sua cor. Por

frequentemente também serem alvo de ações violentas racialmente motivadas, alguns homens

afirmam explicitamente que devem buscar não ser (ou ao menos devem tentar não se portar

como) homossexuais, posto que assim duplicariam os motivos para serem alvo de

preconceito. Com exceção dos curadores, normalmente é um pouco menos comum encontrar

nos jarês homens que incorporem entidades, especialmente as femininas. Elias dizia que

muitos homossexuais acabavam com receio de fazer parte dos jarês para não ficarem

marcados pela pecha que carregavam os assumidos, o que o levava a ter reserva quanto a

alguns pais e filhos-de-santo de quem já ouvira comentários preconceituosos, já que ele

mesmo considerava que um dos traços que diferenciava o jarê, como o candomblé, de outras

religiões era o fato de não discriminar homossexuais em seu meio. Com isso Elias me

indicava mais um motivo por meio do qual, afinal de contas, em sua visão e em muitos

sentidos distintos, o jarê se tratava de um culto de resistência e luta.

Uma das capacidades mais estimadas por meus amigos do jarê era o que eu chamaria

de resiliência, característica fundamental para a afirmação do valor de alguém, qualidade

palpável de algum modo intrínseca a determinadas pessoas, função de sua constituição, tanto

física como espiritual. Não esmorecer diante do cansaço, não dormir mesmo durante

cerimônias longas que varam a madrugada, manter-se firme em uma função mesmo estando

com fome ou com sede, todas eram formas de se cultivar e demonstrar uma das facetas da
221

força pessoal que mobiliza alguém252. A expressão mais comum utilizada para elogiar o

comportamento de uma pessoa que vence esses obstáculos, mencionada anteriormente, é

“jogar duro”. Pode-se jogar duro ao aguentar os passos de uma dança cansativa até o final, ao

caminhar por horas a fio sem perder o ânimo, ao cantar e bater palmas de maneira vivaz por

toda noite, ao acertar o ponto de uma receita difícil que outros errariam, ao não capitular

diante de uma investida autoritária253. Essa tenacidade é igualmente reverenciada ao longo de

todo andamento das cerimônias de jarê, nas quais os batedores são instados a não parar de

tocar, continuar a “segurar o couro”, mantendo a vivacidade da festa e estimulando os filhos-

de-santo manifestados a se manter no centro do salão. Caminhar em direção à extenuação de

todos os presentes é mesmo uma prescrição ritual, especialmente evidenciada no tratamento

dado às entidades presentes quando essas anunciam sua partida. Quase sem exceção, os

frequentadores dos jarês se dirigem aos espíritos incorporados pedindo-lhes que fiquem por

mais tempo (ou por vezes mesmo lhes compelindo a tanto), numa série de enunciações que

por vezes podem se tornar até mesmo somente protocolares, mas em geral sendo feitas com

espontaneidade e regozijo: “Ainda está cedo”, “não vai embora ainda, não”, “fica mais um

pouco”, “dança mais uma, caboclo”, “alguém tira outra cantiga”... Quanto mais a dança da

entidade é considerada bela e traz alegria para os presentes, mais se procura fazê-la ficar, os

tocadores podendo mesmo interromper com o rufar dos tambores as tentativas da própria de

se despedir adequadamente, medida sem a qual não poderá deixar o corpo do filho-de-santo.

Quando conversávamos sobre o assunto, um de meus amigos, requisitado batedor, em

determinado momento resumiu o que considerava ser a essência do culto: “Jarê é isso. Jarê é

entusiasmo”.

252
Não sucumbir diante do cansaço, mostrar-se firme e resoluto, é tão importante no jarê quanto no reisado,
prática na qual são qualidades necessárias para se ser respeitado enquanto pessoa forte e que merece
consideração, especialmente sendo forasteiro (Brantes 2007: 29-30).
253
A expressão parece-me também especialmente adequada para traduzir para o português, sem perder muitas de
suas nuanças, o título da principal etnografia já escrita a respeito do jarê, Play and struggle (Rabelo 1990).
222

3.3 Registros

Passados alguns meses do início do meu trabalho de campo, quando Sandoval, entre

outros, já estava mais bem inteirado a respeito do que eu me propunha a fazer e dos possíveis

frutos que teria minha estadia em Lençóis – a maior parte deles mais diretamente acadêmicos

–, ele me perguntou se seria possível realizar algum tipo de registro das histórias a respeito de

seu pai e do Palácio de Ogum que os filhos-de-santo mais antigos da Capivara estariam

dispostos a contar, já que ele temia que após o falecimento dessas pessoas – muitas outras já

tendo partido – não restaria ninguém que detivesse esse conhecimento. Depois de lhe expor

que os resultados textuais da minha incursão contemplariam ao menos parcialmente essa

demanda, acertei com ele que tentaria realizar também gravações audiovisuais com

depoimentos dos que frequentavam a casa há mais tempo e das demais pessoas que haviam

sido importantes na vida de Pedro de Laura. Com essa solicitação, Sandoval desejava

expandir o material que já juntava há algum tempo a respeito da história de seu pai e da casa

de culto na qual ele próprio crescera, como fotografias, cadernos de anotações e documentos

diversos.

Dessa forma, nos últimos três meses do trabalho de campo, realizei conversas

gravadas com as pessoas que haviam sido mais próximas do pai de Sandoval, com objetivo de

posteriormente disponibilizar cópias desses registros para os próprios envolvidos bem como

transformá-los num documentário para a Associação do jarê. A gravação audiovisual desses

momentos foi igualmente possibilitada por uma série de motivos: por ter me tornado próximo

de muitos dos filhos-de-santo da Capivara, por elas serem feitas a pedido de Sandoval e da

Associação, além de por contarem em sua execução com a presença quase constante de Elias,

que conhecia bastante bem os envolvidos – muitos dos quais já haviam conversado com ele

sobre esses mesmos assuntos diversas vezes. Elias também auxiliou na elaboração de um
223

roteiro para a condução dos diálogos, modificado continuamente entre uma gravação e outra

em função do acréscimo de assuntos que surgiam de forma espontânea e supressão daqueles

que não despertavam grande interesse254. Outros membros da Associação se dispuseram a

contribuir na gravação de cenas adicionais para a construção do documentário, aos quais

aproveito para estender, junto dos já mencionados, meus agradecimentos.

Envolver-se de diversas formas com a realização de filmes e documentários é uma

realidade que alguns dos participantes dessas conversas e várias outras pessoas da cidade já

conheciam bastante bem, Lençóis e outros locais da Chapada Diamantina já tendo sido palco

da gravação de novelas e filmes, ficcionais e documentários. Em algumas dessas ocasiões,

filhos-de-santo concordaram em ser filmados durante jarês ou em organizarem representações

do culto que pudessem ser registradas, sempre se lembrando dos participantes que tiveram

suas imagens gravadas e que podem ser vistos bem mais novos nas obras em questão255. Os

registros audiovisuais feitos na região apresentam a realidade local e são motivo de grande

orgulho para a população, que sabe que por meio deles seu ambiente e seus modos de vida se

tornarão conhecidos até em locais muitos distantes, incluindo mesmo outros países, algo que

consideram mais do que esperado por ser uma forma de disseminar em lugares longínquos a

admiração que sentem pelo local onde moram – atraindo também mais visitantes para a

Chapada. A participação em filmes também concedeu a alguns dos nativos que neles atuaram

a possibilidade de viajar e conhecer pessoas de outros países com quem por vezes acabaram

254
Foi igualmente fundamental a participação de Danilo, um jovem operador de câmera que trabalhava na
Secretaria de Cultura – órgão também responsável pelo empréstimo de parte do equipamento utilizado – e que
também tinha relações de parentesco com alguns dos entrevistados. Ver foto 61 no anexo III.
255
Entre algumas das produções cinematográficas realizadas na região foram lançados os filmes Diamante bruto,
de Orlando Senna, em 1977; A lenda do Pai Inácio, de Pola Ribeiro, em 1987; Cascalho, de Tuna Espinheira,
em 2004; Brilhante, de Conceição Senna, em 2005; Besouro, de João Daniel Tikhomiroff, em 2009. A cidade de
Lençóis e sua história serviram de inspiração para a novela Pedra sobre pedra, em 1992, de autoria de
Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, com parte de suas cenas gravada efetivamente na
Chapada.
224

estabelecendo famílias256. Alguns dos habitantes de Lençóis possuem cópias desses filmes em

suas casas, que circulam para serem ocasionalmente assistidos pelos demais.

De forma mais corriqueira, documentários de menor porte costumam ser vez ou outra

filmados na cidade, e sua produção é encarada com desembaraço pelos habitantes. Muitos

deles são realizados por alguma instituição local, seja uma associação, empresa ou a própria

prefeitura, quando dispõem de equipamento e ilhas de edição, caso mais comum entre as que

são Ponto de Cultura257. Os próprios envolvidos com o jarê dificilmente têm acesso direto a

meios de produção audiovisual, sendo via de regra encarados somente como objeto de

representação. Eu compartilhava com meus amigos do jarê algumas de minhas preocupações,

às quais Elias igualmente chamava atenção, a respeito dos usos públicos que teriam as

imagens obtidas junto aos filhos-de-santo, o tipo de retorno (financeiro ou de outra espécie)

que os envolvidos poderiam esperar por sua participação (minimamente com a

disponibilização de cópias para uso próprio), bem como o grau de decisão que teriam ou não

no processo criativo – lembrando-lhes igualmente que nada isentava de saída o trabalho que

eu mesmo fazia e que podia ser alvo das mesmas inquietações. De todo modo, o

consentimento expresso dos envolvidos nas filmagens não deixava de lado uma atitude

específica que as pessoas adotam ao saberem que estão sendo filmadas, e que não faz sentido

interpretar em qualquer chave que oponha artificialidade e naturalidade258. Postura similar

fazia parte dos muitos momentos em que os filhos-de-santo se deixavam fotografar pelos

256
Sendo o mais emblemático o caso da protagonista do filme Diamante bruto: tendo interpretado uma
personagem que se apaixona por um membro da elite branca que retorna à cidade após tê-la deixado na infância,
a atriz termina realizando o sonho de se casar com um europeu, como conta no documentário Brilhante.
257
Entre os exemplos recentes encontram-se Jardim de plástico, de Delmar Araújo, em 2008, e Curandeiros do
jarê, de Marcelo Abreu Góis, em 2010.
258
Aquilo que na fotografia de Pierre Verger só por vezes é possível entrever, em outras situações pode se tornar
bastante explícito (Souty 2007: 69). Qualquer seja sua intensidade, essa atitude de “profilmia” pode permitir o
desencadeamento de determinados acontecimentos no trabalho de campo, devendo igualmente ser integrada
como mais um dos dados da observação (Opipari 2004: 23-24).
225

próprios amigos ou por visitantes de suas casas – mais ainda quando pediam, eles próprios,

para que fossem retratados pelas câmeras, evento recorrente.

Apesar de muitos dos filhos-de-santo possuírem em suas residências fotos de

cerimônias do jarê, algumas casas de culto chegando a expô-las em seus próprios salões,

como já foi mencionado, a captação de imagens por visitantes é sempre uma questão

inicialmente em aberto. Há chefes de casas que condicionam a participação de visitantes a não

fotografarem nenhum momento da festa, outros que restringem somente alguns instantes de

serem registrados. Os frequentadores mais antigos costumam comentar como no passado os

grandes curadores só muito raramente permitiam que fossem tiradas fotos durante a realização

dos jarês, simultaneamente afirmando que acreditam viver hoje num mundo que permite e

conclama às maiores fixação e disseminação de imagens. São poucos os filhos-de-santo que

possuem câmeras fotográficas digitais, apesar disso utilizadas com bastante frequência nas

ocasiões festivas de suas próprias casas, seguindo a diretriz geral segundo a qual a

possibilidade de se tirar fotografias depende antes de tudo da relação pessoal que se tem com

os membros de uma casa de culto, especialmente com sua liderança. Nos primeiros jarês aos

quais pude comparecer, fui instruído a não levar nenhum aparelho fotográfico.

Posteriormente, os filhos-de-santo me indicavam locais e momentos específicos que podiam

ser fotografados. O aumento do convívio, com o tempo, fez com que eu pudesse retratar

praticamente qualquer ocasião pela câmera, cuja presença passou a ser, nos últimos meses do

trabalho de campo, praticamente demandada em toda cerimônia, terminando por ser

emprestada com regularidade aos meus amigos ligados às casas de culto para que os próprios

tirassem fotografias da melhor forma que lhes aprouvesse.

A progressão da permissividade para realização de registros imagéticos ocorrida com

o tempo deveu-se também tanto às utilizações que teriam no futuro como à possibilidade de

compartilhá-las muito imediatamente com os próprios envolvidos. Habituei-me a fazer


226

compilações das fotografias que tirava durante um jarê e entregá-las gravadas em formato

digital ao dono da casa em que haviam sido tiradas. Além disso, foi possível imprimir cópias

das melhores fotos e entregá-las aos retratados em inúmeras ocasiões após as festas259. As

visitas motivadas pela entrega das fotografias após um jarê passaram a ser rotineiras e sempre

se configuravam em momentos propícios à retomada de conversas e impressões a respeito da

festa, oferecidas nessas ocasiões num ambiente distinto e duplamente afastado daquele das

casas de culto, tanto espacial quanto liturgicamente. Em suas próprias residências, os

frequentadores que haviam sido fotografados nos jarês em geral comentavam com maior

desenvoltura a respeito da cerimônia, indicando-me, por exemplo, detalhes que eu havia

ignorado ou fornecendo opiniões mais pessoais acerca de procedimentos e posturas sobre os

quais, por razões diversas, não haviam se pronunciado260. As fotografias também ofereciam

aos filhos-de-santo a possibilidade ímpar de se verem incorporados por suas entidades, em

situações que geravam reações das mais diversas, da alegria ao pesar, passando quase

invariavelmente pela surpresa. Observando essas fotografias, os membros dos jarês faziam

notar como seus corpos sofriam alterações visíveis quando manifestavam os espíritos, não só

no semblante como em sua própria constituição: podiam se reconhecer mais fortes e robustos,

mais lépidos e sinuosos, mais esplêndidos ou abomináveis, mais másculos ou delicados, de

acordo com a entidade que na ocasião incorporavam.

Assim como nas demais atividades da pesquisa, o estabelecimento da prática rotineira

de fotografar e entregar cópias das imagens aos filhos-de-santo não se deu sem que os

259
A impressão das cópias em papel fotográfico só foi possível graças ao trabalho de Calil Neto, fotógrafo
paulista que visitou a Chapada Diamantina com regularidade durante muitos anos antes de decidir morar em
Lençóis, onde permaneceu por 18 anos, tendo estabelecido um laboratório na cidade. Calil é igualmente o autor
de muitas das fotos que se encontram no anexo III, cultivando há algum tempo o hábito de fotografar cerimônias
de jarê com a permissão dos filhos-de-santo da região com quem já firmara amizade, tendo igualmente se
tornado membro da Associação do jarê.
260
De modo similar ao que ocorreu na pesquisa feita em Nova Redenção com os comentários oferecidos
mediante a reprodução pela pesquisadora das gravações sonoras dos rituais que havia efetivado (Rabelo 1990:
104). O hábito de compartilhar fotografias com os retratados contribui para a geração compartilhada de um saber
etnográfico (Souty 2007: 73-75, 125-126).
227

envolvidos a acompanhassem e opinassem a respeito de sua condução, exercendo sobre ela

determinados efeitos. A diretriz de somente entregar as fotos impressas para os próprios

fotografados, por exemplo, foi elaborada após eu ter sido explicitamente indicado a não

entregar imagens de determinada pessoa para outra que as havia solicitado, já que em função

de desavenças passadas o objeto poderia ser utilizado para fins sinistros. Já sabedora dessa

orientação, a primeira pessoa passou além disso a evitar estar posicionada próximo à segunda

durante as festas, pedindo-me que evitasse os cliques nos momentos em que não fosse

possível manter essa distância – como pode acontecer, por exemplo, no caso de uma saudação

ritualmente prescrita. As fotografias que eu entregava podiam acabar servindo de decoração

nos lares dos filhos-de-santo, acrescidas às por eles já possuídas, de todo modo sendo

ciosamente vigiadas, em especial se exibiam entidades manifestadas, consideradas detentoras

de uma qualidade especial ligada à própria força do espírito retratado. Observar as fotografias

que podiam ser tiradas nos mais diferentes momentos, mas principalmente durante os jarês,

funcionava também como um auxílio mnemônico à reconstrução dos eventos transcorridos,

instrumento do qual os registros no caderno de campo puderem se beneficiar261. Ao receber as

imagens, muitos dos filhos-de-santo enunciavam fórmulas de agradecimento, várias vezes

querendo também se certificar, em seguida, que eu havia guardado cópias para uso em meu

trabalho. Explicitamente, meus amigos contavam tanto com a prudência de não tornar

públicas representações que, descontextualizadas, poderiam servir à manutenção de

determinados estereótipos, como com a relevância de disseminar imagens que fortaleceriam a

independência e o valor do jarê262.

261
Prática comum no universo das religiões de matriz africana (Souty 2007: 109, 124).
262
Além das imagens que se encontram no anexo III, expus algumas das fotografias que fiz em Lençóis na 27 a
Reunião Brasileira de Antropologia, o conjunto tendo recebido o 1 o lugar no V Prêmio Pierre Verger de Ensaio
Fotográfico, na modalidade de júri dos pares.
228

Sandoval se interessava igualmente por incentivar a elaboração de registros escritos da

história do jarê, especialmente no tocante ao Palácio de Ogum. Além de guardar diversos

documentos ligados de alguma maneira à existência da casa, procurava dar continuidade a

uma prática à qual seu pai dera início, anotando num caderno os nomes das pessoas que

visitavam o local e as que ali realizavam algum trabalho ritual, lamentando não ter encontrado

os alfarrábios anteriores, possivelmente perdidos ou ocultados em poder de algum dos filhos-

de-santo da Capivara. Os próprios curadores da atualidade por vezes mantinham hábito

parecido, além de se interessarem por todo tipo de registro que fosse feito em suas casas.

Alguns deles se acostumaram a revisar as cerimônias que tinham acontecido em seus terreiros

por meio principalmente das fotos e vídeos que lá eram por vezes realizados, bem como

demonstrando alguma curiosidade por livros que descreviam detalhes dos jarês de

antigamente. Alguns dos filhos-de-santo de quem fiquei mais próximo mencionaram também

que, por não terem sido alfabetizados – “não terem letra”, como dizem –, não puderam

registrar eles próprios informações preciosas em sua vivência nos cultos, lamentando

notadamente o fato de não poderem ter anotado letras de cantigas que por vezes gostariam de

ter mantido vivas. Comentários como esse serviram para alavancar a iniciativa, que já se

esboçava, de me reunir com amigos para elaborar uma pequena coletânea com letras de

cantigas de jarê.

O conhecimento de cantigas usadas em situações as mais diversas é bastante difundido

entre os nativos da Chapada, seja nos reisados, em brincadeiras de roda, festas com sambas e

chulas, momentos de devoção a santos. Ainda que algumas das cantigas ouvidas nessas

ocasiões sejam cantadas durante os jarês, existem muitas específicas a essas festividades e que

nem sempre serão cantadas longe da realização de uma cerimônia ou por pessoas que não

possuam conexão com uma casa de culto263. Alguns dos filhos-de-santo possuíam gravações

263
Não parece ter havido entre os garimpeiros da região o hábito de cantar canções específicas de trabalho, como
os chamados “visungos” existentes no garimpo de Minas Gerais (Toledo 2001: 22-23). Um antigo garimpeiro
229

em fitas cassete feitas em jarês no passado, que guardavam com muita estima mesmo por

vezes sem possuir qualquer meio de reproduzi-las. Sandoval havia certa vez mobilizado a

Associação da Capivara para registrar cantigas de jarê, resultando em um disco compacto

gravado em ótima qualidade264. Apesar de eu ter utilizado um gravador digital para gravar o

ambiente sonoro ao longo de uma ou outra festa, com consentimento de seus frequentadores,

a elaboração da coletânea de letras das cantigas de jarê foi um trabalho conjunto realizado

durante algumas semanas junto com os filhos-de-santo. Além de Elias, outros de meus amigos

mais próximos contribuíram com as letras para uma primeira versão, que foi em seguida

impressa e levada para os chefes das casas para que conferissem sua correção e indicassem

acréscimos (ou supressões) desejados. De modo a delimitar o escopo da coletânea, que de

outro modo poderia se estender ainda mais, optou-se por imaginar uma sequência de cantigas

que seria ouvida num dos festejos anuais do Palácio de Ogum, eventualmente somadas a

outras de interesse dos que auxiliaram na empreitada. Ficaram de fora, propositalmente,

cantigas das cerimônias de aberta e fechada da casa, bem como o dorosã, cantiga própria da

Capivara265.

Por vezes também os filhos-de-santo escrevem cantigas quando querem se lembrar de

suas letras ou transmiti-las a outrem, ainda que elas não sejam cantadas displicentemente.

Mesmo fora de ocasiões rituais, as cantigas raramente são enunciadas sem que sejam

cantadas, e na íntegra, o que inclui repeti-las algumas vezes, do mesmo modo como se faz

bastante ligado ao jarê contou-me certa vez, depois de já termos nos tornado próximos, a respeito de um episódio
no qual ele e outros amigos chamaram, não intencionalmente, um encantado para uma frente de trabalho ao
cantarem cantigas de jarê de modo displicente. A entidade foi devidamente apaziguada, perdoou-os pela
indiscrição e terminou por lhes indicar que em pouco tempo encontrariam um diamante no local, o que de fato se
confirmou.
264
A iniciativa foi feita em conjunto com a fotógrafa Marisa Vianna, que se encontrava na cidade de Lençóis e
tirou fotografias no Palácio de Ogum. Para a gravação do disco ela convidou o conceituado produtor musical
Roberto Santana, responsável por discos de diversos artistas de renome. Uma cópia desse disco encontra-se ao
final do anexo IV.
265
Depois de terminada, a coletânea foi impressa e cópias foram entregues a todas as pessoas que ajudaram em
sua elaboração. Uma versão atualizada pode ser encontrada igualmente no anexo IV.
230

num jarê. Essa atividade é sempre cercada de cuidados determinados, função da hora do dia

em que são cantadas (evitando-se o meio-dia e a meia-noite), da época do ano em que se

encontra (não sendo propício cantá-las após as fechadas dos terreiros), das pessoas que estão

próximas. Não se arrisca cantar determinadas cantigas fora da ocasião ritual adequada, em

geral as propiciatórias – sejam as destinadas aos trabalhos de limpeza e batizado, sejam as

cantadas para o início de um jarê. Entoar cantigas também gera, via de regra, algum tipo de

conversa em torno das mesmas, seja sobre seu significado, seja sobre memórias que

despertam, seja sobre os efeitos que elas têm sobre outras pessoas. A discussão em torno das

cantigas suscita diversos sentimentos e emoções, já que elas podem fazer vibrar ressonâncias

afetivas específicas de acordo, me diziam, com a natureza de cada um.

Em primeiro lugar, existem muitas cantigas que despertam determinadas lembranças

nos filhos-de-santo, podendo fazer com que fiquem emocionados, recordem-se de certos

momentos, pessoas ou entidades. O ato de cantá-las por inteiro e repetidas vezes não só

auxilia didaticamente sua memorização como leva os ouvintes a acessar estados nos quais

lembranças e sensações específicas são suscitadas, motivo pelo qual as cantigas são também –

e, durante as festas, acima de tudo – fundamentais nos momentos de incorporação das

entidades nos filhos-de-santo, podendo ser consideradas a contrapartida eminentemente

feminina da música emitida pelos atabaques. A memória é ativada igualmente durante as

cerimônias para o encadeamento adequado das cantigas uma após a outra, processo chamado

de “tirar” ou “puxar cantigas”, que deve servir à continuidade das danças e manifestações dos

espíritos. Entretanto, os estados afetivos que os frequentadores dos jarês assumem diante das

cantigas não se devem somente à evocação de um sentimento ou vivência anterior, não têm a

ver somente com uma rememoração: as pessoas são afetadas diferencialmente pelas cantigas

por elas mobilizarem (e de certa maneira também serem) forças específicas ligadas às

entidades, energias que reverberam nos filhos-de-santo. Meus amigos comentavam as formas
231

pelas quais, quando uma cantiga específica é cantada para um caboclo, pessoas que possuam

uma conexão maior com o caboclo pressentem-na, mesmo que não a estejam ouvindo.

Contaram-me a respeito de uma jovem que nem sempre ia aos jarês, mas que invariavelmente

acordava à noite em sua residência, a quilômetros de distância da casa de culto, no exato

instante em que se cantava para a entidade que nela podia se incorporar. Falavam também a

respeito de como, caso estivessem em alguma viagem em outra cidade, costumavam ser

lembrados de datas comemorativas porque antes mesmo de olhar num calendário as cantigas

próprias à ocasião surgiam espontaneamente em suas mentes.

Há certas cantigas, diziam meus amigos, que exercem sobre cada um considerável

influência, podendo não ter qualquer efeito perceptível sobre outras pessoas, de acordo com o

grau de participação que músicas e filhos-de-santo compartilham. Essa proximidade pode ser

uma característica inata a uma pessoa, sendo comum que se comente como uma cantiga

específica ou um conjunto de cantigas dedicadas a uma mesma entidade afeta de maneira

similar os membros de uma mesma família carnal. Essa intimidade pode ser também

adquirida por meio da aproximação de um filho-de-santo a uma casa de culto e seus membros,

o iniciado tornando-se mais sensível à ação de cantigas ligadas ao chefe da casa e seus

padrinhos, tanto os de obrigação como os demais. Com o passar dos anos, determinadas

cantigas e pessoas podem acabar se justapondo de forma a se tornarem cada vez mais

indissociáveis, evocando-se umas às outras não só na memória como efetivamente durante os

rituais. Quando cantigas dessa sorte são entoadas, pode-se perceber como os olhares já se

voltam para o filho-de-santo em questão, sua manifestação sendo – e com isso também se

tornando – iminente. Inversamente, quando um frequentador do jarê está em vias de

incorporar um espírito mas o início do processo demonstra-se difícil e se estende por mais

tempo do que esperado, pode-se recorrer a cantigas consideradas infalíveis para que aquela

pessoa em específico seja tomada por aquela entidade. De muitas formas distintas, pode-se
232

então dizer que as cantigas fazem parte também da composição das pessoas. Enquanto

listávamos e cantávamos as cantigas para a organização da coletânea, era comum que se

dissesse: “Essa cantiga é a cara de fulano...”, “Essa música é todinha beltrano...”, “Essa outra

tem sicrano de cima a baixo...”

Se é correto dizer que as cantigas podem compor os filhos-de-santo, modulando as

relações entre as pessoas e entre elas e suas entidades, em outro sentido é bem provável que

tenham sido também compostas, concebidas, por eles. Elias gostava de insistir comigo numa

distinção que fazia quando eu me referia de maneira geral às canções entoadas nos jarês como

“músicas”, dizendo que era mais adequado chamá-las sempre de “cantigas”, evidenciando a

importância de suas letras serem possivelmente inteligíveis266, e separando-as dos “toques”,

que de acordo com ele seria a melhor designação para as canções cujas letras não eram em

português, algumas podendo ser em iorubá, ele arriscava. De toda forma, as similaridades

rítmicas entre algumas cantigas e alguns toques, bem como as proximidades fonéticas e

transformações pelas quais parecem ter passado267, somam-se a outro fato que permite

levantar uma hipótese a respeito do desenvolvimento histórico dessas composições, aliado ao

processo do qual o próprio jarê parece ter procedido. Por mais de uma vez, presenciei cantigas

que tiveram suas letras improvisadas no próprio momento de sua execução, mais comumente

quando quem a cantava – em geral uma entidade manifestada, mas podendo também ser um

chefe de casa de culto – queria com ela passar uma mensagem, que poderia ser mais direta ou

indireta, na forma dos já mencionados sotaques. Ainda que esse primeiro fosse o caso mais

frequente, era também possível que surgisse uma cantiga original como forma de adoração

266
Salvo em raras ocasiões nas quais se deseja transmitir uma mensagem de maneira muito clara, a
inteligibilidade ainda assim não é, de todo modo, tão importante para a execução das cantigas quanto a força
com que se canta e os efeitos que se espera obter com elas.
267
Reconhece-se particular pendor para o improviso musical nos garimpeiros ao menos já desde o início do
século XX (Moraes 1963: 126-127 nota 5), acompanhado por um gosto pelos jogos de palavras e pelas
transformações por proximidades fonéticas (Senna 1998: 120-121; 130). Igualmente, menciona-se que eventos
históricos foram amalgamados pelas chulas e cantigas de jarê, que os absorveram e transfiguraram (Senna 2002:
242).
233

aos espíritos incorporados ou em homenagem a alguma pessoa presente na casa. Em ambos os

casos, o cantor que puxava a nova cantiga fazia questão de caprichar em sua pronúncia de

modo a ensiná-la aos presentes, que iriam repeti-la tanto no momento em questão como

possivelmente em outros jarês que frequentassem futuramente. Ouvindo-as nos dias de hoje,

alguns filhos-de-santo cogitavam que algumas dessas cantigas tivessem surgido como

adaptações ou mesmo traduções possíveis dos antigos toques em iorubá trazidos pelas nagôs,

na mesma chave das conformações do culto que resultaram no jarê como existente hoje268.

As cantigas no jarê são assim, em mais de um sentido, constantemente dialógicas. Em

sua estrutura de execução, nunca devem ser entoadas apenas uma única vez, devendo ser, via

de regra, cantadas três, cinco ou sete vezes, como afirmam os filhos-de-santo, na prática

sendo repetidas até o momento em que quem as puxou indique com um gesto o silenciar dos

atabaques. As cantigas são quase sempre iniciadas por um solista, ocasionalmente

acompanhado por mais uma única outra pessoa, para serem em seguida repetidas – ou

continuadas, no caso das músicas mais extensas – pelo restante da audiência, que pode a partir

daí se dividir e se revezar na cantoria. Quando não há entidades manifestadas no salão,

espera-se que o chefe da casa tire as cantigas a serem reproduzidas, especialmente por ser ele

o responsável pela definição da sequência dos caboclos a serem louvados pelas músicas, que

poderá variar de acordo com cada casa e cada ocasião ritual. Outras pessoas podem também

dar início a uma cantiga, desde que elas sejam dedicadas à mesma entidade para a qual se está

cantando naquele momento específico. Quando uma entidade se encontra incorporada, é

comum que ela própria puxe suas cantigas antes de começar a dançar, a audiência então

assumindo o restante da música e novamente se dividindo em dois coros. Somente a própria

entidade ou o dono da casa – ou alguém que aja a pedido deles – deve puxar as chamadas

268
Como sugerido no capítulo 2, seção 2.1.
234

cantigas de despedida269, que irão marcar a preparação para o fim de uma incorporação. Após

todos os caboclos terem se despedido, é novamente o chefe da casa ou alguém por ele

instruído que irá tirar uma cantiga de chamada, incentivando a incorporação de novas

entidades, distintas das anteriores.

Nem toda cantiga é aceita do mesmo modo pelos presentes, algumas podendo ser

recusadas pelas entidades ou pelos tocadores, caso não aprovem seus ritmos ou suas letras, no

caso de cantigas que considerem ofensivas ou que não sejam de seu conhecimento, quando se

pede então que outra, de seu agrado, seja tirada. Cantigas para entidades distintas jamais

devem ser intercaladas enquanto houver filhos-de-santo incorporados, sendo rapidamente

interrompidas caso alguém puxe uma que não se insira na sequência em execução, processo

que de toda forma se dá sem grande comoção ou repreensão a quem houver se equivocado.

Existem cantigas reservadas a trabalhos rituais, outras destinadas a entidades específicas,

outras ainda que podem ser cantadas indistintamente para qualquer espírito. Há cantigas que

podem ser tiradas como forma de se fazer uma promessa a uma entidade, e outras para se

realizar solicitações, ambos procedimentos também feitos de maneira mais reservada ao pé do

ouvido do filho-de-santo manifestado. Existem também cantigas para disputas ou conflitos,

em geral estabelecendo um desafio ou provação às entidades presentes que atestará a

qualidade da incorporação ou a conduta adequada do iniciado, as mais comuns sendo as que

solicitam que se espalhem brasas no salão sobre as quais os caboclos irão dançar até que

apaguem270.

Certas cantigas podem ainda ser cantaroladas durante a realização de tarefas do

cotidiano, como preparar o alimento ou lavar roupas, ou em caminhadas longas para passar o

tempo. Especialmente nessas ocasiões, os filhos-de-santo aproveitam para conversar uns com

269
Equivalentes aos “cânticos de aunló”, como são chamados no candomblé (Bastide 1958: 39).
270
Como será descrito no capítulo 4, seção 4.3.
235

os outros a respeito delas, seus significados quando usadas como mensagens e seus efeitos

possíveis, voltando-se para os mais antigos quando esses se encontram dispostos a

compartilhar seu conhecimento. Conhecer um grande número de cantigas, bem como suas

aplicações, e ser capaz de mobilizá-las com os efeitos desejados durante os jarês, são

capacidades que caracterizam os iniciados considerados como detentores de grande força

pessoal, da qual de todo modo essas qualidades derivam. As cantigas também são alvo de

considerações estéticas, muitas delas sendo estimadas particularmente belas, avaliações que

também se ligam à chamada natureza de cada pessoa. A execução das cantigas em coro

também podia ser pensada como uma atividade especialmente admirável, a qualidade de sua

harmonia dependendo menos da falta de dissonâncias entre as vozes do que de um

desempenho contínuo e, fundamentalmente, animado271. Como será visto mais adiante, uma

última fonte apontada pelos membros dos jarês da qual podem surgir cantigas novas – já que

se trata de um processo criativo infindável –, ligada também em múltiplos sentidos à

composição pessoal, e que possivelmente abriga a maior quantidade das canções que se

perdem com o tempo por às vezes nunca chegarem a ser executadas uma segunda vez, só é

acessível quando não se está acordado.

271
A apreciação da harmonia das cantigas do jarê se mostrou bastante similar à que é feita no reisado em outra
parte da Chapada Diamantina (Brantes 2007: 36). Ainda que as mulheres fossem as principais responsáveis pela
entoação das cantigas, não era incomum que os homens também participassem, por mais que, quase
ordinariamente, o timbre das vozes mais graves acabasse sendo ofuscado pelo das mais agudas. A capacidade de,
e o gosto por, acompanhar muitas das cantigas que eu com o tempo acabei demonstrando geravam bastante
admiração e satisfação por parte de alguns filhos-de-santo – de modo similar ao que ocorreu com outro
pesquisador que se dedicou aos cultos de matriz africana no interior da Bahia (Brazeal 2007: 7). As
características que eu cultivara por ter alguma formação em canto orfeônico podiam, de acordo com meus
amigos, indicar uma proximidade com as entidades das águas, das quais fazia parte a Sereia, tendo também me
rendido ocasionalmente como apelido o nome de um cantor brasileiro bastante conhecido.
236

3.4 Sonhos

Festas que no futuro serão motivo de novas lembranças continuam a ser realizadas

naquela que é a mais antiga casa de jarê ainda em funcionamento de que se tem notícia na

Chapada Diamantina, o Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, exceção entre as demais por

ter sobrevivido longamente ao falecimento de seu criador. Como mencionado, sua estrutura

localiza-se num terreno afastado alguns quilômetros da sede do município de Lençóis, ao

longo de um caminho que liga essa cidade à de Andaraí, ao lado do Rio Capivara, que

igualmente empresta seu nome à casa de culto no dizer rotineiro de seus frequentadores.

Historicamente, a estrada ligando as duas cidades foi por um período em torno de um século a

única forma de conexão de Lençóis com o resto do estado e o litoral, tendo caído em desuso

com o surgimento do traçado de rodovias federais que interligavam Brasília às demais

capitais. O caminho entre Lençóis e Andaraí chegou a ser alvo de alguma manutenção na

década de 1980, impulsionada pelo garimpo de dragas e posteriormente rarefeita quando de

sua proibição na metade dos anos 1990. O trecho de pouco menos de dez quilômetros da sede

do município até o Palácio de Ogum não tem grande interesse turístico, feito ao pé da serra,

com paisagem sem grandes alterações de relevo e sem vistas amplas, sendo de todo modo

utilizado ocasionalmente por grupos de visitantes272. Assim como o de muitos outros, o

potencial diamantífero do Rio Capivara foi reconhecido desde bastante cedo pelos

exploradores da região, no local tendo-se estabelecido pequenos povoamentos e diversos

garimpos ao longo dos anos, estando hoje todos praticamente desertos273.

272
O Rio Capivara é um dos tributários do São José e alimentado pela Cachoeira da Fumaça, uma das atrações
turísticas visualmente mais impressionantes da Chapada Diamantina, segunda mais alta queda d’água do Brasil
(Funch 2007: 84, 136 nota *, 139, 142-143).
273
À exceção de algumas construções na área da Estiva, que se consolidou como distrito de Lençóis, e na
Capivara, dos demais povoamentos nos quais havia garimpo restaram apenas ruínas (Acauã 1847: 252; Pereira
1910: 51; Ganem 2001: 46; Araújo, Neves & Senna 2002: 136 nota 24, 146-147 nota 57).
237

O entorno do terreno no qual se localiza o Palácio de Ogum é, na contemporaneidade,

cercado também por grandes bancos de areia, resultado direto da exploração diamantífera ao

longo dos anos e drasticamente acentuado no período do garimpo mecanizado. Os filhos-de-

santo da Capivara contam que, em determinada época, garimpeiros chegaram a aproximar

suas escavações da área do terreiro, não tendo ali encontrado senão carvão e pedras sem valor,

além de atraírem para si uma série de infortúnios. Achando por bem não arriscarem a ira de

Pedro de Laura, o curador do Palácio de Ogum, abandonaram prontamente suas tentativas,

muitos deles tendo inclusive posteriormente se tornado iniciados da casa e encontrado sorte

garimpando em outros lugares. Em função disso, a área próxima à casa de culto encontra-se

com vegetação mais preservada se comparada a suas redondezas, os muitos pés de manga que

a compõem emprestando ao local um perfume característico quando vicejam. O terreno da

casa é margeado por uma cerca de arame que mais serve para demarcar seus limites do que

para impedir qualquer forma de ingresso: para tanto são empregadas outras formas de

proteção. Na área próxima à entrada espalham-se assentamentos dedicados ao povo da porta,

os exus e demais espíritos que habitam tanto o caramanchão como as áreas abertas em volta

da casa de culto, aos quais se deve saudar ao adentrar o terreno. Em seguida, todos os

visitantes da Capivara são também recebidos, na escada do lado de fora da casa e de costas

para sua porta, por um dos membros da comunidade de culto, que encosta sobre suas cabeças

uma caneca com água, pronunciando palavras específicas, jogando em seguida o líquido por

cima deles em direção à estrada. Conclui-se o protocolo de chegada com a saudação às

entidades diante do quarto de santo, após a qual uma pessoa pode se calçar e voltar a

conversar normalmente.

Os frequentadores do Palácio de Ogum gostavam de se lembrar como a casa hoje era

muito diferente da que Pedro de Laura havia inicialmente encontrado, ao comprar o terreno de

seu antigo proprietário. Inicialmente uma casa com poucos aposentos e com cobertura de
238

palha, às ampliações que o curador fez somaram-se outras nos anos recentes, resultando numa

construção que hoje conta com mais de 20 cômodos, como gostavam de lembrar, e com

fornecimento de água trazida do Capivara por meio de canalização subterrânea através de

mangueiras implementada pelos próprios filhos-de-santo. Como em toda casa mais afastada

da sede do município, não há eletricidade disponível e a iluminação à noite é feita por velas e

lampiões a querosene. Sandoval procurava se informar junto ao poder público sobre as

possibilidades de obter alguma forma de geração de energia elétrica que pudesse alimentar a

casa, inspirando-se nos painéis solares que alguns hotéis de Lençóis possuíam, acabando

contudo desestimulado pelos valores elevados e pela extensa burocracia envolvida na remota

possibilidade de um custeio governamental. Do lado de fora da casa, na parede externa do

pagodô, ao lado do principal acesso à casa, encontra-se escrito, da mesma forma como deixou

Pedro de Laura, “Terreiro-umbanda-Palácio-de-Iougum-com-todos-orixás”. Em uma das

paredes da copa, pendurado em meio a fotos do curador, há um certificado, emitido pela

Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro e assinado por Esmeraldo Emetério de Santana em

1991, concedendo diploma ao chefe do “Centro do caboclo 7 Serra”.

Mesmo a dimensão considerável da casa construída no terreiro não comporta a

quantidade dos frequentadores da Capivara nos dias de seus principais festejos, sendo muito

comum que os visitantes armem barracas de acampamento na propriedade para pernoitar

quando há jarês. Apesar das dificuldades e percalços desde o falecimento do mais famoso

curador lembrado em Lençóis, hoje em dia o Palácio de Ogum mantém a realização de quatro

grandes festas anuais, honrando o pedido feito por uma das entidades de Pedro de Laura antes

de sua morte. Como mencionado anteriormente, a liderança da casa ao longo de meu trabalho

de campo consistia numa espécie de delicado triunvirato, do qual faziam parte o curador então

responsável pela casa, que atende por Pai Mussum, o proprietário material do terreno e

presidente da Associação do jarê, Sandoval, bem como, por fim, sua tia materna, uma das
239

mais renomadas filhas-de-santo da Capivara, de quem o próximo capítulo tratará mais

extensivamente. Mussum se encontrava igualmente em vias de construir sua própria casa de

culto, já que se havia acordado que mais nenhum sacrifício, ou “corte”, como costumam

dizer, seria realizado nos limites do terreiro que pertencera a Pedro de Laura274. Por ser o

zelador místico da importante casa e uma pessoa bem quista por muitos dos habitantes da

cidade ligados ao jarê, Mussum começara a ver surgirem filhos-de-santo em potencial que

precisariam ser iniciados com os devidos procedimentos, estimulando o estabelecimento de

um terreiro próprio num local distante menos de um quilômetro do Palácio de Ogum, subindo

a serra.

Todas as festas realizadas na Capivara inevitavelmente remetem à comunidade criada

por Pedro de Laura, no dizer de um de seus filhos-de-santo um verdadeiro “papa” daquela que

até hoje continua a servir de testemunho como “a catedral do jarê”. Comenta-se

constantemente como os jarês celebrados na contemporaneidade empalidecem diante dos que

o pai de Sandoval celebrava, muitas vezes com toques ao longo de diversos dias seguidos. Se

atualmente ainda havia alguma expectativa sobre a possibilidade de um jarê se estender por

dois ou mais dias, a esperança sempre vinha acompanhada da lembrança do tempo de Pedro,

no qual por vezes se chegava mesmo a nove noites consecutivas de festas em louvor às

entidades. As cerimônias de Pedro de Laura eram consideradas tão imperdíveis que mesmo

mulheres em gravidez avançada empreendiam a longa caminhada até a Capivara, algumas

tendo chegado a dar à luz no próprio terreiro. A memória do curador falecido ainda permeia

as cerimônias da casa em muitos momentos, levando os filhos-de-santo a se emocionarem,

seja com a lembrança de sua voz ao ouvirem a cantiga-emblema do Palácio – o chamado

dorosã –, seja com a visão da cadeira na qual ele se sentava e da qual conduzia os jarês, seja

274
Por motivos que serão detalhados posteriormente nesse capítulo, na seção 3.5.
240

ainda com os primeiros raios da manhã ao invadirem o salão através dos cobogós que o

próprio Pedro erigiu na parede externa do pagodô.

As histórias da vida de Pedro de Laura aqui registradas foram contadas, de diversas

formas, por muitas das pessoas que lhe foram mais próximas em vida, narradas tanto de

maneira espontânea como fazendo parte das conversas filmadas que realizei a pedido de

Sandoval. Nascido na Vila de Santo Inácio, distrito do município de Gentio do Ouro, no

extremo oeste da Chapada Diamantina, em 16 de abril de 1928, Pedro Florêncio Bastos desde

pequeno era conhecido como Pedro “de Laura”, por ser este o nome de sua mãe, que o criou

sozinha depois de terem se mudado para Lençóis. Alguns de seus filhos-de-santo disseram

que desde muito novo Pedro já exibia sinais de que nascera com um dom especial que o

qualificava sobremaneira para se tornar um curador, uma capacidade pessoal que além de

tudo foi ampliada não só pelo passar do tempo como pela trajetória que acabou trilhando.

Longe de configurar uma opção pessoal, contudo, afirma-se que Pedro, mesmo reconhecendo

seu potencial, jamais desejou se tornar um pai-de-santo. Poucos sabem como se deu

efetivamente sua iniciação – se é que ela se fez –, sendo por vezes mencionado o nome de

uma possível mãe-de-santo, Maria dos Mabaços, do povoado de Santa Luzia das Gamelas, no

município de Andaraí, para a qual Pedro poderia ter sido levado para ser curado de uma

enfermidade quando ainda criança.

É ponto pacífico entre aqueles que o conheceram que o aprendizado de Pedro de Laura

se processou em sua maior parte enquanto frequentava a casa do já mencionado Manezinho

Bumba – avô materno da companheira de Elias. Líder e fundador da atual Vila do Remanso,

comunidade de remanescentes de quilombolas localizada a aproximadamente 25 quilômetros

da sede do município, Manezinho Bumba havia sido iniciado por Zé Rodrigues, curador de

Lençóis considerado o maior mestre do jarê que já existiu na Chapada Diamantina, numa

linhagem da qual Pedro de Laura de certo modo passou a fazer parte ao frequentar a casa do
241

Remanso ainda muito jovem275. Passados alguns anos, contam as descendentes de Manezinho

Bumba, durante uma viagem para a cidade de Andaraí, este cometeu o erro de se deitar com

uma mulher, algo que sua sina de curador o impedia de fazer mesmo com a própria esposa.

Durante a viagem de volta, metade de seu corpo ficou marcada por terríveis chagas cutâneas,

que se alastraram da mesma forma pela metade equivalente do burro de carga em que vinha

montado. Passados pouco mais de 20 dias do ocorrido, ambos vieram a falecer. Após ser

cumprido o período de luto, a viúva de Manezinho Bumba passou o comando da casa para

Pedro de Laura, que sempre se destacara enquanto um de seus frequentadores. Ainda muito

jovem, Pedro fez seus primeiros filhos-de-santo no Remanso, alguns dos quais conheci

morando na cidade de Lençóis. Uma das provas marcantes de que Pedro se tornaria um pai-

de-santo de grande renome, atestando o desenvolvimento da força pessoal com a qual havia

sido agraciado ao nascer, foi dada sete anos após a morte de Manezinho Bumba, quando

realizava o sirrum deste, a cerimônia de encomendação definitiva do espírito de um

curador276. Os parentes carnais de Manezinho Bumba foram convocados para atestar sua

última aparição e confirmar que de fato se tratava do falecido, que se apresentou diante deles

como se ainda estivesse vivo, excetuando-se o fato de seus pés não tocarem o chão277. A

aparição ocorreu junto ao cruzeiro do lado de fora do terreiro, explicaram aos presentes, já

que Manezinho Bumba não mais poderia adentrar o salão de sua casa por terem sido ali

realizados trabalhos para entidades da esquerda, uma linha com a qual ele próprio não lidava

em vida.

Concomitantemente aos trabalhos que realizava no Remanso, Pedro de Laura fazia

consultas em sua residência na cidade de Lençóis, além de sessões que alguns dos seus filhos-

275
Provavelmente desde os 14 anos, disseram alguns de seus filhos-de-santo, outros arriscando a idade de 17.
276
Cuja pronúncia na região pode ser também “serrum”. O ritual em si será mais detalhado no capítulo 4, seção
4.5.
277
Característica comumente associada à morte e aos mortos no jarê (Senna 1998: 227).
242

de-santo caracterizavam como de “mesa branca”. No mesmo local ele jogava búzios – técnica

que para ser adquirida necessitou da realização de uma penosa obrigação ao longo de dias

recluso, diz-se que com os olhos vendados, sem comer, beber ou dormir – que podiam indicar

a uma pessoa a necessidade de realizar algum trabalho mais elaborado, ou ainda prescrevia

remédios naturais feitos com ervas medicinais em misturas específicas. Ao mesmo tempo,

Pedro continuava a exercer o ofício de pedreiro que havia aprendido do mestre Miguel

Ângelo Guerreiro, vindo com o tempo a se tornar mestre-de-obras e, por sua grande destreza,

o profissional mais recomendado para realização de trabalhos que exigissem acabamentos

delicados. Com o tempo, Pedro de Laura passaria adiante a técnica que havia aprendido e

refinado, sendo responsável pelo ensinamento de alguns dos melhores pedreiros até hoje em

atividade na cidade. Muitos entre aqueles com quem trabalhava viriam a se tornar também

seus filhos-de-santo, e o considerável número de pessoas que reunia em torno de si, aliado ao

encerramento das atividades na casa do Remanso, fizeram com que Pedro procurasse um

terreno para fundar uma casa de culto, dessa vez observando seus procedimentos de abertura

desde o início, plantando sua própria roça. A possibilidade de comprar o terreno próximo ao

Rio Capivara, no qual hoje se encontra sua casa, o Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra,

surgiu com o falecimento do antigo proprietário do local, Arão, ainda próximo do ano de

1950, segundo consta278.

Ao longo das décadas seguintes, os inúmeros filhos-de-santo feitos por Pedro de Laura

comporiam em torno dele uma extensa família mística. Imaginando que seria possível criar

um quadro genealógico de seus iniciados, me reuni com Sandoval, sua tia e outros filhos-de-

santo da Capivara, apenas para descobrir que se tratava de uma tarefa inglória, pois descobri

278
Apesar de ser difícil precisar uma data exata, um de seus filhos-de-santo possuidor de ótima memória afirma
que Pedro já realizava jarês na Capivara no ano de 1955. Os que arriscam a antiguidade ainda maior da casa
mencionam o ano de 1949 para o falecimento de Arão – que alguns dizem também poder ter sido um curador,
tendo erguido no local uma casa de apenas um cômodo na qual trabalhava – e o início do reinado de Pedro de
Laura.
243

então que todas as pessoas para quem um curador havia realizado alguma forma de ritual

podiam ser consideradas filhos-de-santo dele, totalizando mais de 200, conforme estimaram.

Disseram-me que muitos dos habitantes de Lençóis já haviam recorrido a Pedro para

realização de trabalhos iniciáticos, ainda que provavelmente nem todos que o fizeram

desejariam ser identificados, motivo que levou a confidenciarem alguns nomes sob a condição

de que não fossem registrados publicamente. Praticamente todos os líderes das casas de culto

hoje em funcionamento em Lençóis foram iniciados na Capivara, o restante ligando-se a um

curador chamado Zeca do Barbosa, do município de Itaetê, no leste da Chapada, que se tornou

também pai-de-santo de alguns dos filhos de Pedro após o falecimento deste. Muitos dos

filhos carnais de pessoas iniciadas por Pedro de Laura foram acostumados a lhe chamar de

avô, instruídas por seus pais, amalgamando e ampliando a família que ele cultivava com base

na Capivara. Também há notícia de filhos-de-santo seus vivendo em muitos outros estados do

país, alguns tendo sido iniciados quando de passagem por Lençóis, outros ainda em suas

próprias cidades. Pedro era capaz de mobilizar determinadas entidades para produzir efeitos

por vezes a distâncias de milhares de quilômetros, em geral por meio de fotos daqueles que se

beneficiariam dos trabalhos rituais, uma das muitas capacidades pelas quais seus filhos o

consideravam um curador inigualável.

Seus filhos-de-santo contam que Pedro de Laura tinha uma voz aguda, com a qual

puxava as cantigas na condução dos jarês, e que sobressaía ainda mais quando dava alguma

gargalhada. Elias, que compartilhava de um tom de voz parecido e da similar “gaitada”, como

são chamadas as risadas com esse estilo estridente em falsete, me disse que se lembra bem do

modo como Pedro ria, algo que ocorria com grande frequência em função de seu bom humor

e propensão a travessuras279. Mais ainda do que sua voz, os iniciados da Capivara se lembram

279
A gaitada é igualmente uma característica distintiva dos raros homossexuais assumidos da cidade, parte
também de uma postura de altivez e ousadia que cultivam para combater o preconceito de que inevitavelmente
são vítimas.
244

da grande aptidão que Pedro exibia para a dança, especialmente quando manifestava uma de

suas entidades femininas, provocando a inveja das filhas-de-santo e a admiração dos homens,

conforme estes me diziam, embevecidos: “Parecia uma mulher mesmo dançando”. As pessoas

mais próximas a Pedro comentaram, com a mesma sobriedade com a qual ele parece ter

sempre lidado com o assunto, a respeito de sua preferência por se deitar com homens, ainda

que alguns afirmassem que não era impossível que também tivesse dormido com mulheres.

De qualquer forma, mantinha uma postura reservada que transmitia a suas filhas-de-santo a

segurança de que não se aproximaria delas sexualmente, receio que paira sobre praticamente

qualquer curador do sexo masculino, mesmo que seja casado280. Por ser homem, de todo

modo, a ele estava garantida a qualidade necessária para lidar satisfatoriamente com aspectos

rituais com os quais as mulheres não devem se haver, como sacrifícios e a alimentação do

povo da porta. O fato de jamais ter se casado era igualmente festejado por suas filhas-de-

santo, que diziam que curadores com esposas podiam se tornar sobremaneira sujeitos a elas e

a sua família carnal, enquanto Pedro era constantemente dependente de suas filhas-de-santo,

que assim amenizavam, com uma liberdade maior, a obrigação de servir a seu pai – algo que

de toda forma costumavam fazer com gosto. De todo jeito, Pedro de Laura acabou por deixar

um herdeiro material, ao “pegar para criar”, ou seja, adotar informalmente o filho biológico de

uma de suas filhas-de-santo que não apresentava condições de sustentá-lo281.

Sandoval foi criado por Pedro, assim como por Dona Laura, que passou a considerar

como avó, desde muito novo, não tendo senão ouvido falar a respeito de muitas das maiores

façanhas protagonizadas por seu pai no passado, em seus tempos áureos de curador. Os mais

antigos filhos-de-santo da Capivara, conjunto que incluía muitos daqueles que Pedro iniciara

ainda no Remanso e que o acompanharam na nova casa, sempre falam a respeito das proezas

280
O assunto será aprofundado no capítulo 4, seção 4.1.
281
Ver foto 62 no anexo III.
245

de que só o criador do Palácio de Ogum era capaz. Tais feitos iam muito além dos rituais

terapêuticos que se espera que todo curador realize, ainda que sua habilidade para lidar com

males diversos fosse também bastante celebrada – aí incluída a capacidade de distinguir

quando uma doença deveria ser tratada não por meios tradicionais mas por especialistas

médicos, os chamados “homens de branco”282. Entre as façanhas espetaculares de que Pedro

de Laura era capaz, ligadas a uma capacidade de efetuar movimentações desimpedidas, os

frequentadores da Capivara mencionam em primeiro lugar o modo como, manifestando sua

Iansã, ele atravessava a fogueira do terreiro sem se queimar. Conta-se como a entidade

incorporada, trajando sua roupa cerimonial, repetia o feito ano após ano na festa em sua

homenagem, para a qual era acesa uma fogueira com lenha de murici, madeira escolhida

especificamente por produzir chamas muito ardentes. No ritual, Iansã chegava ao requinte de

deixar cair sua coroa em meio às brasas, abaixar-se calmamente para pegá-la e colocá-la de

novo na cabeça antes de sair do fogo, sem que um fio de cabelo sequer de Pedro de Laura

saísse chamuscado. No mesmo registro de poder se movimentar desconsiderando obstáculos,

comenta-se como, nas raras épocas de cheia torrencial do Rio Capivara (que pode subir mais

de um metro acima do volume habitual), o chefe do Palácio de Ogum acompanhava seus

filhos até a margem mais próxima e os atravessava, conduzindo-os pelas mãos dois a dois,

caminhando como se flutuasse sobre as águas, já que de outro modo o rio caudaloso não

poderia ser transposto. Similarmente, os filhos-de-santo mencionavam como, ao realizar

trabalhos no Poção do Capivara, parte mais funda do rio na qual eram feitos alguns rituais,

Pedro era capaz de prender a respiração por um tempo inacreditável, bem como, ao realizar

matanças submersas, concentrar o sangue do animal sacrificado numa cuia e erguê-la para a

superfície sem que seu conteúdo se misturasse com as águas do rio.

282
O tema da cura será abordado de forma mais detida no capítulo 4, seção 4.5.
246

Inversamente, também abundam os relatos de feitos nos quais o desempenho de Pedro

de Laura foi direcionado para impedir ou dificultar movimentações, fossem de corpos, fossem

de olhares, saberes e fluxos de atenções. É emblemática uma história contada a respeito de um

fugitivo que buscara refúgio na Capivara por ter um assassino em seu encalço. Pedindo

proteção a Pedro, este disse que não se preocupasse, permanecesse sentado imóvel junto dos

demais homens na assistência do jarê e pronunciasse algumas palavras conforme lhe

instruiria. Pouco tempo depois um jagunço chegou ao Palácio de Ogum, pediu desculpas por

interromper a festa e acrescentou que lamentaria muito ter que derramar sangue na casa do

pai-de-santo, caso encontrasse ali o homem que procurava. As pessoas que testemunharam o

ocorrido contaram que o evento transcorreu no amplo pagodô da casa, e que o tempo todo o

homem marcado para morrer estava plenamente à vista do mercenário e era seu conhecido,

sendo impossível que não o tivesse reconhecido – não fosse pela ação mística de Pedro de

Laura. O matador se despediu dizendo que continuaria sua busca, enquanto sua vítima

permaneceu até o final do jarê e perguntou ao curador o que deveria fazer para escapar de seu

perseguidor. Pedro o acompanhou na direção do caminho para Lençóis e o instruiu a

pronunciar novo conjunto de palavras e não se deter na volta, não olhar para trás e não se

dirigir a ninguém que encontrasse no caminho, confundindo assim o homem que ainda

deveria estar em seu encalço pela trilha. Os filhos da Capivara disseram que o homem

perseguido chegou são e salvo na cidade e tomou o primeiro ônibus saindo da Chapada, para

nunca mais voltar.

Pedro também era capaz de proteger ou penitenciar os iniciados com ações parecidas.

Um de seus filhos-de-santo mais antigos me contou como, certo dia, antes de ir para o jarê,

logo após acordar se assustara ao se deparar com uma cobra no interior de sua casa, que em

seguida conseguiu matar. Chegando no Palácio de Ogum mais tarde, foi recebido por Pedro

que lhe disse que o havia protegido a noite toda. O iniciado não tinha comentado com
247

ninguém a respeito do animal e fora um dos primeiros a chegar na Capivara, creditando à ação

de seu curador o fato de não ter sido ofendido pela cobra que provavelmente tivera muitas

oportunidades para fazê-lo enquanto dormia. Outro de seus filhos-de-santo, famoso tocador de

atabaque, narrou um episódio no qual estava fazendo troça de Pedro, de quem era bem

próximo, imitando-o. Para lhe dar uma lição, e sabendo do gosto do batedor por caçadas, o

curador lhe disse que dali para frente o iniciado só mataria mais quatro cotias, e a partir daí

nunca alvejaria mais nenhuma. Após abater o número de animais que o curador mencionara,

os animais passaram a eludi-lo constantemente, suas empreitadas mostrando-se infrutíferas,

até que abandonou por completo o hábito de caçar.

No mesmo registro, Pedro de Laura era capaz de produzir outras formas de ocultação

para a defesa de sua casa e punição de desafetos. Seus filhos-de-santo lembram-se de uma

ocasião na qual uma turma de habitantes do Remanso, que incluía o líder comunitário que

sucedeu Manezinho Bumba e que também celebrava jarês, veio visitar a Capivara com o

intuito de causar alvoroço e interromper o bom andamento do festejo. Pedro não se deixou

abalar e recebeu os hóspedes com toda honraria, oferecendo-lhes comida e bebida farta,

recomendando-lhes que aguardassem o início do jarê sentados à sombra de uma mangueira. O

conjunto pôs-se a cantar animadamente ao longo do dia, mas se viram acometidos por um

cansaço extremo e repentino ao cair da noite, caindo num sono profundo que não foi quebrado

nem pelo toque incessante dos atabaques madrugada adentro. Quando acordaram, na manhã

seguinte, estavam desorientados e levaram algum tempo até entender que a festa já havia

transcorrido sem que tivessem tido chance de frustrá-la. Outros casos como esse poderiam ser

até mais comuns se não fossem as medidas preventivas que Pedro tomava e que faziam com

que pessoas se perdessem na brenha a caminho do Palácio de Ogum caso estivessem mal-

intencionadas – da mesma forma como uma família perdeu o rumo do cemitério ao levar o

corpo de um de seus membros, que havia se desentendido com Pedro, para ser enterrado, indo
248

parar no meio da mata. Era como se os desorientados estivessem pisando “em outro mundo”,

ficassem “fora do mapa”, como me disseram os filhos-de-santo, assegurando-me que não

havia outra explicação possível senão o efeito das forças mobilizadas pelo curador para que

pessoas que conheciam tão bem determinados trajetos – e que além de tudo eram caminhos

amplos e bem mantidos – subitamente se confundissem a ponto de as vias lhes escaparem.

Todos os filhos-de-santo reconheciam que Pedro de Laura era não apenas um curador

de capacidade ímpar como uma pessoa absolutamente intempestiva, podendo ser tão

atemorizante quanto obsequioso. Exigia dos frequentadores de sua casa obediência obstinada,

sob risco de atraírem para si consequências sinistras, em geral em seus próprios corpos, de

inchaços a doenças, que só passavam quando o agravo era desculpado. O símbolo máximo de

autoridade no auge de sua época de supremacia na Capivara era o chicote ritual de tiras de

couro que carregava consigo, chamado Sete-Perna, que muitos filhos-de-santo descobriam

não ser meramente simbólico. O próprio Pedro podia ser alvo do açoite, como num ritual no

qual uma de suas entidades entregava o objeto aos filhos-de-santo para que golpeassem o

corpo do curador, com as costas nuas. Um de seus filhos-de-santo mais antigos, que o

acompanhou vindo do Remanso, ao narrar essa história, disse que os iniciados que na ocasião

não o golpeavam com a devida força – como era o caso de muitas das filhas-de-santo, com

pena do curador – acabavam eles mesmos sendo exemplados, por desobedecerem à entidade.

Sabendo disso, esse senhor disse ter caprichado quando chegou sua vez de manejar o

instrumento, mesmo porque ele próprio já sentira na pele o efeito do Sete-Perna e essa seria

sua oportunidade de ir à forra. Desferidos os golpes, recebidos pela entidade com aprovação,

o filho-de-santo constatou com surpresa que, diferentemente do que acontecera no caso dele,

nas costas do curador não ficou marca alguma.

Não foi somente uma única pessoa que se indispôs com Pedro de Laura que acabou

tendo um destino funesto, como atestam histórias conhecidas ou mesmo presenciadas por
249

muitos dos habitantes da cidade. Por motivos que só é possível supor, um rapaz certa vez

resolveu aplicar publicamente no curador uma surra com vara verde, no meio da rua,

deixando sua camisa ensanguentada. Ao ser acudido por suas filhas-de-santo e levado para

sua residência para se limpar e fazer curativos, ele lhes instruiu a não lavarem a camisa branca

que vestia. Não se sabe se ele realizou algum procedimento com o objeto, mas o que todos

notaram é que dentro de algum tempo o rapaz que o atacara começou a emagrecer de forma

alarmante e sem motivo aparente, definhando progressivamente até morrer. No dia do enterro

desse seu agressor, diz-se que Pedro saiu caminhando pelas ruas de Lençóis vestindo a mesma

camisa, ainda manchada com sangue, agora seco. Em outra ocasião, um jovem decidiu ignorar

os avisos que lhe tinham sido dados e comeu o alimento que compunha um despacho feito por

Pedro deixado próximo ao cemitério, vindo a perecer após ter evacuado areia por dias a fio.

Outro episódio nefasto, fruto direto de um de seus rompantes de austeridade excessiva,

acabaria tendo consequências trágicas para o próprio Pedro de Laura. Uma das frequentadoras

da Capivara, após ter sido duramente exemplada por ele com o Sete-Perna, veio a falecer

alguns dias depois, alguns dizem que em decorrência dos ferimentos. Ela era irmã de uma

líder de jarê que possuía sua casa de culto em Lençóis, e que jurou vingança contra Pedro.

Para tanto, mancomunou com uma colega de Pedro, uma das muitas mulheres que no passado

haviam sido damas-da-roda para os garimpeiros da cidade e com quem o curador costumava

passar muitos dias bebendo. Certo dia, depois de se encontrarem consideravelmente

embriagados, a ex-meretriz, enquanto estava em seu período, aproveitou-se da fragilidade do

pai-de-santo para esfregar sua vulva na cabeça dele. Em seguida, deu-lhe de comer um peixe

lambuzado com o mesmo sangue menstrual, fazendo com que a substância, provavelmente a

mais danosa que existe para um curador283, não só entrasse em contato direto com sua cabeça,

local de maior concentração da força pessoal, como fosse por ele ingerida, método

283
Como será visto no capítulo 4, na seção 4.5.
250

considerado infalível para a transmissão de feitiços. Pedro ficou temporariamente atrapalhado

após o evento e, mesmo depois de ter se recuperado, desse dia em diante nunca mais foi o

mesmo: continuou a ser um curador de grande renome, mas ficaram para trás os dias em que

realizava muitas das façanhas pelas quais até hoje é lembrado. Sua comadre, mencionada no

capítulo anterior, Dona Valdelice do Alto da Estrela, comentou que essa história não teve um

desfecho satisfatório para nenhuma das partes envolvidas: as demais pessoas da família da

falecida foram morrendo uma a uma, e a casa de jarê que mantinham em Lençóis interrompeu

seu funcionamento, encontrando-se desativada até hoje.

Seu Gilson comentou certa vez como figuras de grande força e magnetismo pessoais,

como era o caso de Pedro de Laura, atraíam em torno de si diversos simpatizantes, muitos

deles levando em conta o fato de por meio dessa proximidade obterem defesa contra

adversidades, fossem de origem mística, fossem temporais – prefigurando assim a Associação

que hoje Sandoval liderava, Seu Gilson acrescentou –, já que a fama do grande curador de

Lençóis lhes garantia também algum acesso às instâncias do poder constituído. Uma de suas

filhas-de-santo mais antigas, temendo ser presa por ferir gravemente outra iniciada da casa ao

revidar agressões físicas que sofrera no próprio Palácio de Ogum, contou como Pedro havia

lhe tranquilizado dizendo que falaria pessoalmente com o delegado e esclareceria que havia se

tratado de legítima defesa, e que se alguém teria de dormir na cadeia seria ele por ter

permitido que a briga acontecesse em sua propriedade. Após ter me contado que finalmente

ninguém foi encarcerado, a senhora acrescentou que a proteção de Pedro, quando ele o

desejava, podia se estender mesmo a pessoas que haviam derramado sangue e buscavam

refúgio das forças da lei: se alguém era abrigado na Capivara, caso se tratasse de um de seus

filhos-de-santo mais estimados, os policiais, como sabiam o que era melhor para eles, nunca

ousavam ir até lá para procurá-lo – até porque, ainda que decidissem fazê-lo, tampouco

encontrariam o caminho.
251

Desavenças entre os frequentadores do Palácio de Ogum não eram incomuns, mesmo

porque diversas famílias carnais diferentes se congregavam no terreiro. As disputas podiam

ser mesmo, como visto, entre os próprios filhos-de-santo, por vezes ao imaginarem ser

possível obter o favoritismo do curador. Em função disso, e com o passar dos anos, Pedro de

Laura resolveu extinguir o tradicional cargo de mãe-pequena da Capivara, também chamado

de “ogã”, desestimulando a competição entre os iniciados e recorrendo, de modo mais

indistinto, aos membros de um conjunto variado de pessoas mais próximas de si para auxiliá-

lo nas atribuições rituais. Não coincidentemente, todos os atuais líderes de jarê da cidade de

Lençóis faziam parte desse coletivo mais restrito, ainda que fosse consenso que nenhum deles,

ao menos até o momento, tivesse demonstrado os mesmos carisma e capacidade de

mobilização de filhos-de-santo que Pedro de Laura exibiu durante seu reinado no Palácio de

Ogum. Durante as conversas com os frequentadores da Capivara que eram mais próximos do

curador, muitos enfatizavam sua amizade com Pedro de modo ainda mais marcado do que sua

relação de parentesco ritual, por mais que essa também se mostrasse das mais constitutivas e

que ele fosse considerado um pai, em muitos sentidos, insubstituível. Vários deles

transmitiam a certeza de serem os filhos-de-santo prediletos de Pedro de Laura, o que me

parecia ser testemunho menos de qualquer suposta tentativa de autopromoção dos iniciados

do que da personalidade magnética do chefe da Capivara284.

Uma das tradições que continua a ser mantida no Palácio de Ogum é a realização da

fogueira de Odé – nome do caboclo que é uma versão infantil do orixá Oxóssi –, que acontece

em dezembro no dia em que se comemora a festa para Iansã. Os membros da casa de culto

284
Ver fotos 63 e 64 no anexo III. Certa vez comentei com Elias a respeito duas formas distintas de carisma, uma
cujo portador é considerado uma pessoa excepcional em si, outra cujo portador é considerado excepcional por
sua capacidade de fazer seus seguidores se sentirem pessoas especiais. Elias concordou com o fato de que,
embora Pedro fosse sem dúvida portador de ambos os tipos de carisma, fica na memória de muitas de suas
filhas-de-santo a confiança que depositava nelas, o modo como fazia com que se sentissem especiais, únicas,
bem como seu grande apreço por elas. Muitas das filhas-de-santo mencionam como seus trabalhos de iniciação
foram singulares, como ele lhes abria precedentes que não concedia às demais, como só elas eram escolhidas
para realização de certas tarefas rituais etc.
252

derrubam uma árvore jovem, alta e preferencialmente de tronco fino, numa área externa mas

próxima ao terreno da casa de culto, e amarram em seus galhos diversos presentes, incluindo

brinquedos, perfumes, sabonetes, frutas, biscoitos, balas, chocolates e outros doces. Depois,

voltam a erguê-la, fincando-a no chão e amparando-a com pedaços de madeira lenhosa que à

noite serão conflagrados para dar origem à fogueira. Os frequentadores da casa aguardam

ansiosos que o tronco da árvore seja consumido para que ela caia e tenha início uma corrida

desenfreada para se obter o maior número de presentes possível, da qual crianças e jovens

participam com grande entusiasmo285. A direção e o sentido, em relação ao Palácio, que a

árvore assume ao tombar encerram em si presságios para a existência futura da casa: cair em

sentido oposto ao terreno é indicativo de que o ano vindouro trará acontecimentos favoráveis

à Capivara e aos seus; cair voltada para a construção é sinal de que haverá tribulações e

adversidades no caminho da catedral do jarê. No final do ano de 1997, a árvore erguida para a

fogueira de Odé tombou apontando exatamente a entrada do terreiro, precisamente aos pés da

cadeira na qual estava sentado Pedro de Laura.

Pedro não viveria para ver a fogueira de Odé seguinte, algo de que ele próprio tinha

certeza, como os filhos-de-santo da Capivara foram se dando conta. Como me disseram, eles

descobriram que um grande curador é capaz de pressentir com alguma antecedência o

momento de sua morte, tomando medidas para que o pior não aconteça a sua casa. Antes de

morrer, Pedro de Laura removeu grande parte dos objetos assentados em seu peji e os

despachou no Poção do Capivara, tendo ocultado ainda outros para que não pudessem ser

utilizados por pessoas que não possuíssem a capacidade necessária. Muito do que ele deixou

disponível, segundo Elias, ficou na forma de versões menos potentes dos instrumentos que o

curador e suas entidades manejavam, como “ilusão”, nas palavras de meu amigo. Se é

possível que a atitude de Pedro configure, por um lado, um expediente de solução de

285
Ver fotos 65 e 66 no anexo III.
253

continuidade, desfazendo-se adequadamente de forças que não podem permanecer atuantes

sem sua presença, por outro lado constitui também uma forma de não transmitir essas

potências gratuitamente, impedindo que sejam legadas a alguém que não possa – ou não deva

– recebê-las: é preciso empenho para se erguer uma casa de culto, e é ao longo da própria

empreitada de criá-la e fazê-la crescer que se adquire ao menos parte do conhecimento

necessário ao cuidado das forças envolvidas no processo – como ele próprio havia feito ao vir

do Remanso para a Capivara. Com suas últimas ações, Pedro de Laura apresentava a seus

filhos-de-santo uma concepção bastante singular de destino.

No fim da vida, Pedro se encontrava acometido por graves problemas de coluna que o

impediam de se movimentar como outrora, e quando alguma de suas entidades incorporava

tinha de dançar de maneira mais cuidadosa, mas ainda muito bela, com auxílio dos filhos-de-

santo. Seu estado de saúde, porém, se agravou em definitivo ao lutar contra um câncer que

terminaria por vencê-lo. Pedro foi tratado em cidades da própria Chapada, recusando-se a ir

para Salvador mesmo diante da insistência de todos que lhe eram próximos – aí incluídos

alguns de seus próprios espíritos que, quando nele se manifestavam, rogavam aos filhos-de-

santo que acompanhassem o curador para locais nos quais poderia receber cuidados médicos

mais intensos. Apesar de não faltarem voluntários para a tarefa, como disseram, foi o próprio

Pedro de Laura que não aceitou ser transportado para muito longe da região na qual nascera,

crescera e se criara; na qual preferia também morrer. Alguns dias antes de seu falecimento,

mandou reunir as pessoas de quem era mais chegado para transmitir algumas últimas

mensagens, quando foi enunciada a frase escolhida para dar início a este capítulo, contendo a

mensagem de Iansã. Ainda que estivesse mais próximo de determinadas pessoas em seus

últimos anos de vida, chegando mesmo a treinar de forma mais direta alguns curadores em

potencial, Pedro não apontou uma pessoa em específico para assumir a condução do Palácio

de Ogum, ponto que, por diferentes motivos, todos os presentes naquele momento frisam ter
254

ficado claro. Aos ali reunidos ele pediu, de toda forma, para que não deixassem sua casa cair

após sua morte. E é isso que os filhos da Capivara têm procurado fazer até então.

A morte de Pedro de Laura esteve longe de significar o fim de sua presença nas vidas

daqueles de quem era próximo, e o curador continuava a habitar não somente suas lembranças

como seus sonhos. O próprio Sandoval – que, por não incorporar os espíritos, só tinha contato

mais pessoal com as entidades da Capivara por meio de visões e sensações enquanto dormia –

me disse que havia reencontrado o pai num sonho algum tempo após a morte deste, num

momento em que ele apontava para o filho, destacando-o entre um conjunto de pessoas.

Sandoval afirmou que entendeu o sonho que teve como uma mensagem de seu pai para que

ele se colocasse à frente do Palácio de Ogum e liderasse a realização de seus festejos, motivo

pelo qual ele passou a lutar contra a própria timidez e procurar ser um expoente na defesa do

jarê como um todo – e da casa de Pedro em particular. Vários dos filhos-de-santo de Pedro de

Laura já sonharam em alguma ocasião com o curador após seu falecimento, algo que passou a

ocorrer com menos frequência, disseram, com aqueles que haviam buscado para si um novo

pai-de-santo, especificamente após terem realizado o ritual já mencionado de tirar a mão do

morto de suas cabeças. Mais de uma filha-de-santo contou como, antes de se iniciar em outro

terreiro, teve um último sonho no qual Pedro se despedia dela e fornecia um sinal que era

interpretado como indicação e aprovação a respeito da nova casa à qual ela deveria se

conectar.

Os sonhos dos filhos-de-santo com Pedro de Laura são bastante variados, mas

praticamente todos acabam gerando repercussões bem diretas em seu cotidiano. Além de

transmitir mensagens e fornecer presságios a respeito de acontecimentos futuros, há casos em

que o curador os encontra para lhes ensinar novas cantigas que serão então reproduzidas nas

cerimônias de jarê, transmitir procedimentos e fórmulas para realização de trabalhos rituais

específicos, cobrar dívidas pendentes que aquele que sonha procura quitar imediatamente, ou
255

para realizar ele próprio algum tipo de ação. Uma senhora contou como, muitos anos após o

falecimento de Pedro, ele a visitou durante o sono, num período de sua vida pelo qual ela

passava por uma grande aflição – cuja causa escapava a todos os profissionais de saúde que

consultava –, oferecendo-lhe um preparo medicinal num copo de formato idêntico ao que ela

sabia existir na Capivara, fazendo com que ficasse curada de uma vez por todas da

enfermidade que a assolava. Assim como fizeram vários dos filhos-de-santo da casa ao narrar

situações similares, enquanto comentava a respeito do assunto essa senhora se perguntava se

fora o próprio Pedro de Laura que ela havia encontrado em seu sonho, chegando à hipótese de

que fora afinal visitada por uma das entidades do curador, sob a feição deste. Afinal, alguns

sustentavam, enquanto a matéria apodrece e tem seu fim definitivo, as entidades ligadas a

uma pessoa podem continuar a existir de modos distintos e em locais específicos. Se só os

mais antigos e corajosos entre os adeptos da Capivara escolhiam não realizar iniciações em

outros terreiros, tanto estes como os que se sujeitavam a novos rituais mantinham em comum

o fato de permanecerem – se não exatamente filhos-de-santo de Pedro de Laura – conectados

ao Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, especialmente por meio das duas entidades que lhe

emprestavam nome.

3.5 Propagações

“O jarê”, um filho-de-santo propenso a elucubrações certa vez sintetizou, “o jarê é

uma pergunta sem resposta”. Conversávamos a respeito do papel do segredo no culto e sobre

a existência de informações que não podiam ser divulgadas, tanto aquelas que deviam ser

mantidas ocultas em função de um pedido explícito de seu detentor como as que, se fossem

reveladas, acarretariam consequências indesejáveis para os envolvidos, pelos mais diversos

motivos. O conhecimento de determinadas fórmulas, procedimentos, locais, substâncias, é


256

parte do patrimônio de uma casa de culto e de seu chefe, é sua “ciência”, como dizem

frequentemente. A manutenção da ciência do jarê nas mãos somente daqueles que estão aptos

a utilizá-la é condição para a felicidade das cerimônias, princípio que acaba entrando em

conflito com a prática de treinar possíveis novos curadores, à qual todo pai-de-santo tem de

inevitavelmente fazer recurso para dispor de auxiliares rituais devidamente qualificados. De

maneira explícita, os curadores afirmam que nunca ensinam nada a quem quer que seja,

repreendendo especialmente os filhos-de-santo que comunicam o desejo de aprender a

respeito da arte que é o ofício do curador. A recusa aparente em passar adiante o

conhecimento adquirido, também exemplificada pela atitude anteriormente mencionada da

hábil batedora que dizia não ser professora dos irmãos de Sandoval, está longe de se limitar

aos jarês, tendo-me chamado atenção ao ouvir uma história contada por uma filha-de-santo a

respeito de como aprendera a tecer.

Quando era jovem, ela narrou aos presentes, separara alguns dias para deixar sua roça

e visitar uma senhora conhecida como competente tecedora, com o intuito de aprender a

técnica. Passara horas a fio sem dizer nada, só observando-a atentamente manejar a agulha e o

fio, até que a senhora lhe perguntou se estava ali para aprender a tecer. A jovem lhe disse que

sim, mas que resolvera não pedir para que lhe ensinasse e nem oferecera dinheiro algum à

senhora, pois sabia que se fizesse qualquer das duas coisas sua demanda seria negada. A outra

assentiu e continuou a tecer, e a aprendiz concluiu sua história dizendo com orgulho que tinha

aprendido os movimentos até em menos tempo do que imaginara, não sendo contudo capaz de

dar alguns pontos só com os dedos – como as mais habilidosas eram capazes de fazer – tendo

por isso de recorrer à agulha – objeto que, por sinal, viera pedir emprestado à dona da casa em

que nos encontrávamos, em função da sua ter acabado de quebrar. Em outro episódio, quando

caminhávamos nos arredores da cidade, Dona Valdelice reprovara os curadores da atualidade

por sua falta de conhecimento das tradições, acrescentando que ela não passaria o saber que
257

tinha adquirido para ninguém. Eu e Elias encontramos uma forma de sugerir a Dona Valdelice

que ele próprio já havia aprendido muito com ela, algo que ela negou peremptoriamente,

dizendo que não tinha ensinado nada a esse respeito nem às próprias filhas, quanto mais a

Elias. Ato contínuo, pôs-se a caminhar e cantar cantigas de jarê como muitas das que já lhe

havia transmitido, entremeando-as com comentários a respeito das plantas medicinais que

encontrava pelo caminho, enumerando seus nomes e usos.

Ainda que seja uma possibilidade, recusar-se a assumir a posição de ensinador nem

sempre resulta no impedimento da transmissão da ciência, dos saberes, segredos. Tampouco

representa univocamente, ou principalmente, um meio de agregar valor ao conhecimento

esotérico por sua própria ocultação286. Rejeitar explicitamente a transmissão do saber é antes

de tudo um meio de limitar sua aquisição por transferência explícita, similarmente ao que

ocorre quando um curador assume a liderança de uma casa de culto que era de outra pessoa:

não é algo que possa, ou deva, acontecer sem que haja trabalho envolvido, sem que o próprio

interessado despenda parte de sua energia pessoal na empreitada. Além disso, evitar a posição

de instrutor é uma maneira de ensinar outra lição valiosa: a de que a ciência do jarê encerra

em si de forma indissociável um potencial de utilização que deve ser corretamente apreendido

(nos dois sentidos, tanto de assimilado como de encerrado; compreendido) para que não

produza efeitos perniciosos, cuja acumulação por si só já pode suscitar287. Nesse sentido,

como será visto a seguir, não há aprendizado inocente, até porque não existe acúmulo sem

286
Em última instância o segredo seria assim, sugerem alguns, um mero dispositivo de dissimulação de relações
de poder esvaziado e ressignificado em face de transformações históricas, como evidencia a preferência pelo
termo “secretismo”, um recurso entre outros mobilizado pela busca e manutenção de prestígio (Jamin 1977: 124-
127; Johnson 2002: 187-188).
287
Alguns dos frequentadores menos habituais das cerimônias, ao se depararem com minha curiosidade a
respeito do culto, quando passaram a ter maior intimidade comigo me perguntaram se eu pretendia dar início a
uma casa de jarê quando voltasse ao Rio de Janeiro – algo que os adeptos de maior conhecimento consideravam,
ao contrário, absolutamente impensável. Uns e outros, de toda forma, concordavam a respeito das possibilidades
que meu trabalho tinha de registrar e passar adiante ao menos parte do saber envolvido na ciência do jarê.
258

uma correspondente escassez288. Dessa forma, por fim, limitar a aquisição do conhecimento é

uma forma de protegê-los, de blindar a ciência do jarê daqueles que não estariam prontos para

mobilizá-la, inclusive por não terem “precisão” para tanto, termo que os filhos-de-santo usam

com frequência, provavelmente tendo em mente suas duas acepções: tanto, por um lado,

utilidade e necessidade como, por outro, exatidão, rigor na execução289.

Pais e filhos-de-santo podem discutir abertamente acerca da transmissão do saber em

ocasiões afastadas da concretização das cerimônias, estes tentando, em geral sem sucesso,

convencer os primeiros a compartilhar detalhes e informações sobre eventos que

presenciaram, enquanto aqueles frisam o quanto tiveram de batalhar, de forma árdua e com

muita perseverança, para conquistar o conhecimento que haviam obtido. Um curador, por

exemplo, gostava de fazer troça com seus iniciados, dizendo-lhes que muitos deles já haviam

acompanhado a realização dos mesmos procedimentos inúmeras vezes, e que àquela altura já

deveriam ter aprendido tudo que havia para ser ensinado. Os mais perspicazes e que

retrucavam com igual irreverência diziam saber que havia sempre alguma alteração que

suplementava as ações rituais, fosse uma palavra a ser dita no momento de colher uma erva,

um ajuste na posição de um objeto na organização de um trabalho iniciático, uma cantiga a ser

inserida fora da ordem habitual alterando a sequência de incorporações numa cerimônia:

acréscimos ou supressões que contribuíam para a realização apropriada dos rituais290. Assim,

não só suas formas de transmissão, mas a própria substância da ciência do jarê envolve

igualmente movimentos de facilitação e interrupção de fluxos, uma perícia para canalizações

288
Como visto no capítulo 1, seção 1.5. Os corolários dessa constatação para a força pessoal dos envolvidos
serão descritos no capítulo 4, seção 4.4. Não há motivo para não estranhar a noção de que seria possível realizar
uma transmissão de conhecimento sem que a fonte do qual ele se origina sofra com isso algum esvaziamento
(Goldman 2005: 108).
289
Pierre Verger comentara sobre as limitações das formas de ensino didáticas no aprendizado para se tornar
adivinho, que mesmo após a iniciação é feito muito mais por observação (Souty 2007: 47).
290
Já se notou a aproximação, feita em grande parte da obra de Roger Bastide, entre as curvas e torções
adicionais do barroco e as do candomblé, especialmente quando o primeiro é pensado, inspirando-se em
Deleuze, não só como um conjunto de traços estilísticos mas como uma operação do olhar e do pensamento,
ancorada em movimentos permanentes de diferenciação (Peixoto 2011: 395-397).
259

específicas cuja aquisição diferencia os pais-de-santo dos iniciados, e cuja maestria distingue

os melhores curadores dos demais.

Parte do saber do culto é transmitida para aqueles interessados e preparados para

recebê-lo, cultivando a atitude que Elias apropriadamente chamava de “tomar ensinamento”,

frisando também a importância da proximidade pessoal com os mais antigos para que, ao

longo do cotidiano e com o tempo, estes lhes passassem as histórias e orientações que

desejassem manter vivas. Em parte também o conhecimento de detalhes e procedimentos

alternativos podia ser adquirido de fontes diversas, incluindo mesmo livros e revistas que os

curadores liam de maneira bastante seletiva, dando muito mais atenção a descrições e

experimentos de personagens do que a qualquer autoridade que adviria de sua autoria ou

possível inserção em ambientes acadêmicos. Além disso, alguns pais-de-santo comentavam

ter o hábito de fazer suas próprias anotações em cadernos destinados ao propósito de registrar

vivências e resultados obtidos em seus rituais e nos de outrem, guardados com muito zelo.

Todos esses procedimentos indicam uma disposição específica em se aproveitar informações

de forma parcelar e pô-las à prova, a confirmação de sua validade para eles sendo ratificada

pela obtenção de efeitos específicos291. De todo modo, a maior fonte tanto de obtenção e

aprimoramento da ciência do jarê quanto de confirmação de sua adequação para um curador

continua a ser a experiência pessoal mediada pelas entidades místicas.

O próprio Pedro de Laura, segundo seus filhos-de-santo, gostava de enfatizar que ele

mesmo pouco sabia, o conhecimento que mobilizava nas cerimônias de jarê sendo predicado

dos espíritos que era capaz de mobilizar. Ele afirmava que os iniciados deviam prestar sempre

muita atenção ao que seus caboclos faziam e diziam quando nele incorporados, já que assim

poderiam lhe transmitir informações e mensagens deixadas por eles – e mesmo aprenderem

291
No candomblé esse processo tentativo pode receber o nome de “catar folha”, em referência, entre outras, à
ação de reunir pacientemente determinadas ervas – e saberes – ao longo do tempo, com auxílio da experiência, e
em função dos sucessos e malogros acumulados com a prática (Goldman 2005: 107-109; 2006: 24; 2011: 423-
424).
260

eles próprios algo do que esses seres grandiosos estivessem dispostos a lhes legar. Mussum,

que se tornara um dos responsáveis pela condução dos jarês na Capivara, costumava comentar

como as entidades que recebera de família – de sua mãe e de sua avó – haviam lhe transmitido

saberes que ambas cultivaram em vida, por terem sido grandes parteiras e conhecedoras de

diversas ervas e seus usos medicinais, tendo vivido numa época em que os preparos da

medicina eram ainda menos disponíveis na região. As entidades que acompanham uma pessoa

também podem se manifestar de formas mais indiretas e que permitem o estabelecimento de

canais de comunicação com os iniciados, seja nos sonhos, como já mencionado, seja no

próprio terreiro por meio de simulacros visuais que tomam a forma de pessoas, as chamadas

“sombras”, e que nem todos os presentes têm capacidade de enxergar, seja ainda somente por

suas vozes, escutadas pelos curadores durante a condução de rituais específicos para que

saibam como melhor atender aos anseios dos espíritos.

Por motivos diversos, muito da ciência do jarê existe sob a forma de segredos que,

inevitavelmente entrelaçados, compõem uma sigética sacramental particular, uma economia

de silêncios que não se dão todos pelos mesmos motivos, e que tampouco é possível controlar

perfeitamente mas que se pode manejar de modo a ser pressentida – de modo parecido com o

que se pode fazer num texto a respeito dela292. Os processos de treinamento e iniciação de um

novo curador, momentos particularmente delicados para a transmissão de conhecimento,

encontram-se repletos de exemplos das diferentes formas dessa sigética, como os pais-de-

santo que falavam a respeito dela davam a entender. Há silêncios que são mantidos para que

292
Esse trecho é inspirado no procedimento promovido por uma passagem a respeito do tema da extravagância
que evoca em sua narrativa um estilo desconcertante que se assemelha ao objeto de que fala, passagem que
igualmente encerra a mais brilhante resposta que conheço contra quaisquer acusações de ‘exotização’ que se
poderia dirigir à antropologia (Serra 1995: 175-180). O termo heideggeriano “sigética”, por sua vez, foi
apropriado dos usos que lhe deu o mesmo autor em contexto distinto, sendo aqui utilizado no mesmo espírito
comparativo por ele proposto (Serra 2008; Serra 2009: 84-85 nota 65). O tema aqui, de todo modo, é o do
mistério, que possui em si uma dimensão sacramental (Bateson 1972: 36-37), face esta que pode ser redobrada
nas religiões de matriz africana (Banaggia 2008: 8-9). Nelas, existe um silêncio voluntário e pleno de sentido que
abre o caminho a outras formas de comunicação, sobre as quais já se escreveu de modo formidável (Souty 2007:
48, 385-401).
261

determinadas informações não sejam transmitidas a pessoas que dela farão mau uso, e

abundam histórias sobre relações conflituosas entre pais e filhos-de-santo quando estes

desejam se tornar mais poderosos que aqueles, em geral resultando no infortúnio dos iniciados

– mas nem sempre. A respeito desse processo, quando comentava sobre o que transmitia para

um filho-de-santo que desejava se tornar curador, um pai-de-santo certa vez me disse: “Você

pode ensinar a ele dez pulos, mas o pulo número 11 você não pode ensinar, que ele vai querer

ser mais sábio que você e vai querer talvez até lhe derrubar”. Manter a posse exclusiva de

uma quantidade suplementar de conhecimento, arduamente adquirido ao longo de sua

trajetória mística, era um meio do pai-de-santo se resguardar contra possíveis investidas de

iniciados ambiciosos. Arremetidas assim podiam acontecer justamente por se ignorar as

razões que envolviam uma segunda forma de segredo no jarê, que recobre de silêncio

determinadas informações cujo ato mesmo de enunciação acarreta efeitos nefastos para os

envolvidos. Como disse um curador, usando uma expressão que me pareceu particularmente

apropriada por poder ser igualmente metafórica, ao falar de filhos-de-santo

desmesuradamente cobiçosos, existem aqueles que simplesmente querem desrespeitar “a lei

da gravidade”. Somados a esses, há ainda o silêncio que decorre do segredo que não há como

ser expresso, cuja natureza mesma o torna possível somente de ser experimentado: o inefável.

Se o esoterismo da ciência do jarê em algum grau também pode motivar a falta de

continuidade geral de grandes casas de culto na região, e por mais que seu número absoluto

tenha diminuído nos últimos anos, conforme avaliam os filhos-de-santo, o jarê continua vivo,

e novos templos têm sido erguidos, como em certa medida sempre se fez, em função da

importância de um curador plantar sua própria roça e dar início a sua própria casa,

desenvolvendo com o local uma ligação característica e ao menos parcialmente insubstituível.

Parece ser invariável a constatação de que todo curador jamais desejou para si tornar-se um

chefe de uma casa de culto, ou ao menos que nunca imaginou que sua vida tomaria esse rumo.
262

Quando falam sobre a função, é comum que as pessoas se refiram a ela em termos de uma

necessidade – similar à que faz com que um alguém seja iniciado numa casa de culto, mas

ainda mais premente: diz-se que todo curador o é por precisar cumprir uma “sina”, uma

“obrigação”, uma “sentença”, lidar com um “peso” – seja seu, seja em lugar de alguém

próximo, como um membro de sua família que por algum motivo não possa assumir essa

responsabilidade. Parte da trajetória inicial de um pai-de-santo envolve justamente acostumar-

se à ideia de sê-lo, o que também estimulará o desenvolvimento de sua mediunidade, sendo o

primeiro processo, de modo reverso, auxiliado pelo segundo.

Antes de se tornar capaz de plantar sua roça, abrir seu próprio terreiro, um curador em

potencial precisará passar por alguma forma de preparo específica à assunção da posição.

Alguns líderes do culto disseram que, já no momento em que foram feitos seus trabalhos

iniciáticos, seus pais-de-santo perceberam no jogo divinatório ou no decorrer do próprio ritual

de iniciação ser o iniciado detentor da qualidade que o habilitaria a se tornar ele próprio um

iniciador, acrescentando procedimentos rituais que abririam seus caminhos para tanto. Nesse

momento, uma pessoa pode se manifestar de forma mais contundente caso efetivamente

deseje não se tornar um chefe de terreiro, como uma filha-de-santo contou ter acontecido com

ela ao receber nova iniciação após o falecimento de Pedro de Laura. No ritual em que se

ligava a uma outra casa, a mãe-de-santo que retirava a mão do morto de sua cabeça – ela

sendo também filha da Capivara –, manifestando uma de suas entidades, disse-lhe ter

reconhecido sua força pessoal e oferecido a possibilidade de que ela se tornasse também uma

curadora. A inicianda recusou a oferta, preferindo manter-se somente como filha-de-santo e

realizando jarês em sua casa de culto sem que ali fossem feitas iniciações. O preparo para se

tornar um curador pode também envolver a harmonização com espíritos de quem o iniciado

não era próximo anteriormente, que podem proceder tanto de pessoas que lhe são íntimas, em

geral membros de sua família carnal, como, mais raramente, de determinados locais, como
263

grandes árvores em porções específicas da mata, ou ainda lagos ou grutas. De modo parecido,

a empreitada para se tornar um curador pode requerer o achado ou aquisição de itens místicos

– tais como as já mencionadas pedras de raio, estatuetas dos santos, vestimentas e objetos

pessoais pertencentes a outros pais-de-santo –, ou ser motivada por eles.

Aqueles que se tornam curadores também enfatizam o rigor de seus resguardos após

seu trabalho de iniciação, mantidos com muito mais diligência e por muito mais tempo do que

o que se espera dos demais filhos-de-santo. O zelo assim demonstrado será um sinal da

postura idêntica que o curador irá cultivar por toda vida ao se tornar um “guardião do segredo

dos orixás”, como me disse certa vez um deles ao explicar o que significava o título de pai-de-

santo. Muitos potenciais curadores podem até nunca vir a formar suas próprias casas,

dedicando-se a atuar enquanto curadores secundários – sendo considerado o principal entre os

ogãs, os auxiliares rituais, de uma casa – nos terreiros de seus pais-de-santo, possivelmente

dando suas obrigações por cumpridas após a morte do líder da casa de culto. Pode acontecer,

entretanto, de um curador decidir tornar-se chefe de uma casa de culto ainda em vida daquele

que o iniciou, preferencialmente contando com sua bênção. De acordo com pais-de-santo que

seguiram esse caminho, no ritual de se plantar a roça para a criação de um novo terreiro há

determinados procedimentos rituais, especialmente aqueles envolvendo a preparação do

caramanchão, que nunca podem ser efetuados pelo próprio dono da casa, já que cabem ao pai-

de-santo que lhe iniciou ou, na falta dele, a algum curador mais antigo, provavelmente a quem

irá se solicitar primeiramente a realização do ritual de tirar a mão do morto de sua cabeça,

sendo esse o caso. Estabelecido o terreiro, o novo curador dará início a suas atividades,

podendo contar com a visita de seu pai-de-santo em sua casa recém-inaugurada e continuando

a frequentar o terreiro onde foi iniciado, caso permaneçam em bons termos. Após passar a

oficiar ele mesmo iniciações e ter seus filhos-de-santo, o novo curador será prova de que seu
264

pai-de-santo passa a fazer jus ao título de mestre do jarê, ambos dando prosseguimento à

tarefa de “dar qualidade” às pessoas, entidades e rituais feitos em seus terreiros.

Uma das experiências que pode servir como demonstrativo da necessidade de que uma

pessoa deve ser iniciada num terreiro é ainda mais significativa para aqueles que se tornarão

curadores em potencial: a de enlouquecer. A maior parte dos pais-de-santo é rondada por

histórias dos períodos em que ficaram loucos, alguns levados à força, amarrados com cordas,

até as casas de culto nas quais seriam simultaneamente tratados e iniciados, livrando-se a

partir daí dos ataques de insanidade. A loucura que assola os membros do jarê antes de serem

apresentados ao culto é de uma espécie bastante característica, em geral rapidamente

identificada por “entendidos” – que é como se chama qualquer pessoa que tenha algum

conhecimento da ciência do jarê – como um sintoma que só poderá ser tratado por um

curador. Essas crises podem ser desencadeadas tanto por acontecimentos seculares, como uma

doença física ou uma desilusão amorosa, quanto por eventos místicos, quando em geral não se

consegue atribuir nenhuma outra causa possível que não a ação direta das entidades

espirituais, que de toda forma também podem figurar como copartícipes nos primeiros casos.

Quaisquer que sejam seus motivos, a loucura tratada no jarê assume formas ligadas a

concepções de selvageria, remetendo-se ou a uma conduta considerada raivosa, que pode

incluir rompantes de fúria que terminam com objetos quebrados ou pessoas feridas, ou a um

comportamento apático, no qual o enlouquecido não dispõe de interesse para nenhuma

atividade e pode eventualmente se isolar da convivência com seus pares, indo para locais

ermos e preferindo ficar e por vezes dormir em matas ou grutas afastadas da cidade293.

293
O assunto é bastante delicado e, como outros, só começou a ser discutido comigo de forma mais aberta após
muitos meses de convivência com os adeptos. Além das muitas histórias e depoimentos que acabei por escutar,
houve uma única vez em que presenciei um desses ataques, quando cruzei certa noite por um jovem do Remanso
– cujas falas e ações indicavam estar seguindo os passos do pai, um líder comunitário já falecido – esbravejando
sozinho na rua contra uma das associações da cidade por ter se aproveitado dos remanescentes de quilombolas
sem lhes proporcionar o retorno adequado.
265

Tanto num caso como no outro, parte do tratamento junto a um curador envolvia

métodos de domesticação dos envolvidos, fosse das entidades do aflito, do próprio louco, ou

ainda do conjunto desses. Enquanto as primeiras tornam-se alvo de ações rituais por parte do

pai-de-santo, feitas em sua maioria no interior do peji, o segundo passará a residir no próprio

terreiro e será gradativamente amansado pela realização de tarefas manuais, como carregar

água, catar e cortar lenha, varrer a propriedade. O futuro iniciado passará a ser alimentado

pelo curador e entre eles se estabelecerá uma conexão que virá a ser fortalecida quando for

possível realizar seu trabalho iniciático. Ao final dessa etapa, o filho-de-santo se encontra

definitivamente curado e volta a sua vida cotidiana, retornando ao trabalho e ao convívio com

seus amigos e parentes, sendo agora também membro de uma família conectada

espiritualmente. Para aqueles que um dia se tornarão eles próprios curadores, o duplo acesso –

já que ela se trata tanto de um ataque repentino como de uma via de aproximação – que essa

loucura constitui é ao mesmo tempo indicativo e estimulador de sua permeabilidade à ação

das entidades. Torna-se louco aquele que de algum modo já é mais suscetível às influências

dos espíritos; simultânea e complementarmente, os filhos-de-santo explicam, ser alvo das

ações desses seres faz daquele que experimenta o enlouquecimento ainda mais apto a

reconhecê-las e porventura manejá-las294.

A maior parte dos chefes das casas de culto da atualidade em Lençóis é composta por

membros das últimas gerações de filhos-de-santo iniciados por Pedro de Laura. Apesar de

muitos deles permanecerem inextrincavelmente conectados à Capivara e desejosos de honrar

o pedido feito por seu pai-de-santo de manter viva sua casa, o fato de Pedro não ter apontado

294
É bastante disseminada a ideia de que um enfeitiçado adquire o potencial de manipular as energias que o
enfeitiçaram, tornando-se capaz de se tornar um desenfeitiçador, bem como um xamã se torne capaz de produzir
uma cura por já ter ficado ele próprio sob ação da doença (Lévi-Strauss 1949: 195). De modo geral, nas religiões
de matriz africana, a iniciação é um ritual que contém o princípio de sua própria repetição e que se completa
propriamente nessa (Souty 2007: 362). A respeito dos curadores do jarê de quem não se tem certeza se passaram
por um período de loucura similar, como era o caso de Pedro de Laura, comenta-se o mesmo que se falava de
Dona Valdelice, sua comadre: era possível que já tivesse nascido feito. Esses temas serão elaborados no capítulo
4, seção 4.4.
266

um sucessor direto – bem como de não ter deixado membros de sua família não mística com

experiência e conhecimento da ciência do jarê – fez com que o Palácio de Ogum passasse por

momentos conturbados após seu falecimento. Inicialmente, e após o cumprimento do período

obrigatório de luto no qual na casa não deve ser feita nenhuma atividade, o conjunto dos

filhos-de-santo da Capivara experimentou conceder a um dos iniciados menos recentes de

Pedro de Laura a possibilidade de realizar rituais no terreiro, por já ter experiência na

condução de jarês realizados em outras casas em Lençóis e em candomblés em São Paulo.

Esse curador possuía a fama de ter sido “pai-de-santo do Corinthians”, por já ter diversas

vezes atuado como consultor espiritual do time paulista, constando inclusive ao longo de

muitos anos na folha de pagamento da equipe, registrado com outra função295. Os filhos-de-

santo contam que o período em que ele atuou como pai-de-santo na Capivara mostrou-se

muito conturbado, gerando desavenças e tendo consequências graves até hoje para algumas

das pessoas para as quais ele realizou trabalhos rituais, fatos que levaram Sandoval e os

demais membros da casa a efetuarem seu afastamento e decidirem, coletivamente, que o

Palácio de Ogum se tornaria uma casa de culto na qual haveria apenas a celebração dos

festejos de jarê solicitados por Pedro e não seria local de realização de mais nenhum novo

sacrifício ritual para iniciações: não haveria novos filhos-de-santo da Capivara296.

De todo modo, restava a questão crucial de quem seria o curador responsável pela

manutenção das obrigações espirituais devidas na casa, necessárias à realização das festas

anuais que honrariam o pedido de Pedro de Laura, bem como pela condução das mesmas. As

295
A primeira visita do futuro pai-de-santo ao estádio do time parece ter ocorrido ainda em 1976, tendo sido
contratado de 1982 a 2000 e depois convocado esporadicamente com o passar do tempo até bem recentemente.
Ao longo dos anos, após ter estabelecido um terreiro de candomblé em São Paulo, esse pai-de-santo continuou a
visitar Lençóis, sua cidade natal, continuamente. Alguns daqueles que o mencionaram ou entrevistaram
costumaram notar certa coincidência entre seus afastamentos do time e alguns dos piores resultados obtidos pelo
futebol do Corinthians (Placar 2000: 62; Bellos 2003: 173-175; Terra 2007; Couto 2009: D3).
296
Em função dos desentendimentos ainda presentes entre esse curador e meus amigos ligados à Capivara, ainda
que ele tivesse estado por alguns períodos em Lençóis durante a realização do meu trabalho de campo, não tive
contato com ele e tampouco compareci aos poucos jarês que ele oficiou na casa de um filho-de-santo que mora
no entorno da sede do município.
267

atenções se voltaram para os dois últimos filhos-de-santo que Pedro havia iniciado e que de

certo modo começara a treinar para o desempenho da função, José Henrique, conhecido por

todos como Mussum, e Gildásio, apelidado Daso. Inicialmente, Mussum pareceu a Sandoval a

melhor opção, tanto por ele ter sido apontado por Pedro ainda em vida como responsável pela

realização dos rituais para o povo da porta – ligados ao caramanchão, do qual Mussum

detinha a chave –, como por ter sido iniciado algum tempo antes de Daso, de quem Mussum

fora inclusive padrinho de obrigação, ainda que ambos tivessem aproximadamente a mesma

idade.

À época, frequentavam a Capivara diversos filhos-de-santo entre aqueles que, na

atualidade, se tornaram líderes de suas próprias casas de culto. Quando cheguei em Lençóis,

contudo, muitos deles haviam deixado de prestigiar os eventos no Palácio de Ogum, alguns

por estarem agora já muito idosos e não poderem empreender a longa caminhada até o local,

mas outros em função de um evento que contribuiria para estabelecer a configuração recente

da liderança da casa. Anos atrás, numa noite fatídica, conforme rezam as muitas versões da

história que me foi contada, a incorporação de uma das pessoas presentes na festa parecia não

ter tido término adequado, e seus parentes e amigos mostraram-se muito preocupados com a

situação que poderia ter um desfecho sinistro, caso o indivíduo desacordado não voltasse a si.

Ainda que posteriormente a pessoa afetada tenha voltado a si, os presentes trocaram entre si

mais do que só olhares desconfiados e farpas: insinuou-se que podia ter havido um feitiço

envolvido, feito com a conivência ou mesmo pelo próprio curador que agora respondia pela

Capivara. Os filhos-de-santo se mostraram divididos, e tanto Sandoval como sua tia materna,

figura de destaque na casa, saíram em defesa de Mussum, afirmando sua inocência.

Contrários a eles, estavam outros proeminentes filhos-de-santo da Capivara: Daso, Valdelice

– que, apesar de compartilhar o nome com a comadre de Pedro, não se trata da mesma pessoa

– e Dinha, mãe biológica de Sandoval e que tinha encontrado os meios de criar seus dois
268

irmãos mais novos após deixá-lo com o chefe do Palácio de Ogum. Não vendo outro meio de

terminar com o impasse, que se tornava cada vez mais acalorado, Sandoval arrogou a si a

prerrogativa de dono material da propriedade, dando a entender que aqueles que

questionavam a idoneidade de Mussum não eram mais bem-vindos na Capivara.

Profundamente ofendidos, os dissidentes se afastaram da convivência com a nova

liderança estabelecida do Palácio de Ogum e cimentaram o cisma ao se dedicarem, com o

tempo, a casas de culto próprias. Daso continuou a realizar jarês em seu domicílio,

experimentou um interlúdio malsucedido enquanto pastor evangélico e, após ser trazido à

razão pela ação de suas entidades, conforme dizem, retomou praticamente do zero sua

trajetória de pai-de-santo, estabelecendo sua casa de culto junto ao Rio das Toalhas,

mencionada no capítulo anterior. Valdelice, por sua vez, fez jarês na já referida casa de culto

no Baixio, onde não há iniciações, contando com a presença de sua família, amigos e muitos

dos filhos-de-santo da Capivara com quem ainda mantinha boas relações, como a mãe

biológica de Sandoval. Já Dinha, ainda que continuasse a frequentar tanto os jarês de

Valdelice como os da curadora que se tornou mãe-de-santo de ambas, num terreiro num dos

distritos de Lençóis, apenas recentemente hospedou um primeiro jarê em sua própria

residência, nos limites da sede do município, no período em que eu já me encontrava na

cidade e ao qual eu pude comparecer. Elias comentou comigo como achava uma pena ter

acontecido a separação de parte importante dos filhos da Capivara, motivada pela ação

indireta – tanto ele como outras pessoas concordavam – do mal-intencionado curador que ali

reinara temporariamente, que de certa forma podia ter arquitetado a desavença ao ser afastado

do Palácio – ou ao menos se comprazia em dizer que o fizera, como relatavam aqueles que o

ouviram comemorar publicamente o racha entre os membros da casa.

A liderança da Capivara, como dito anteriormente, se estabilizou numa espécie de

triunvirato, do qual faziam parte Mussum enquanto curador e condutor dos festejos, Sandoval
269

enquanto presidente da associação que reunia os membros da casa e proprietário material do

Palácio de Ogum, e sua tia materna, irmã de Dinha, sobre quem falarei de maneira mais detida

no próximo capítulo. Depois de já termos nos tornado amigos, Sandoval me diria como ele

havia agora amadurecido e de certa forma lamentava o rumo que os mais importantes e ativos

filhos-de-santo da Capivara haviam tomado em função dos acontecimentos passados, e como

gostaria de poder reuni-los novamente na casa de seu pai. Todas essas pessoas continuavam a

se encontrar ocasionalmente pela cidade, variando o grau de proximidade que ainda

mantinham conforme se sentissem mais ou menos aviltadas e diretamente afetadas pelos

eventos que tiveram lugar após a morte de Pedro de Laura. Além disso, havia ocasiões nas

quais todos compareciam a um mesmo jarê, como os que eram celebrados numa casa

considerada neutra por ser comandada por alguém que não fosse filho da Capivara e por isso

não estando diretamente envolvido com sua política interna. Nesses eventos, por mais que as

pessoas preferissem manter alguma distância entre si, quando eram tomadas por suas

entidades podiam cumprimentar de forma muito respeitosa ou até efusiva uns aos outros,

mostrando deferência e matando saudades já que, como me diria uma delas, “caboclo não tem

má querência”, ou seja, não toma para si ressentimentos que aqueles que os incorporam

podem nutrir em relação a outrem297.

Sandoval sempre estimulou minha ida a outras casas de jarê além do Palácio de Ogum,

mesmo aquelas que eram chefiadas por pessoas que não haviam sido feitas na Capivara, para

que meu trabalho a respeito do jarê, ele dizia, pudesse ser o mais abrangente possível. Como

me disse, ele tinha também certeza de que quanto mais festas de jarê comandadas por pessoas

diferentes eu conhecesse, mais eu poderia confirmar sua avaliação de que nenhum local se

igualava à casa de seu pai, que de fato merecia ser mantida em funcionamento e

preferencialmente reconhecida pelo governo para se tornar um patrimônio a ser preservado.

297
Ver fotos 67 e 68 no anexo III.
270

Procurando desenvolver uma veia mais diplomática, Sandoval algumas vezes me acompanhou

a jarês realizados nas casas de pessoas de quem ele havia se distanciado, valendo-se das

amizades que eu havia estabelecido com os demais filhos-de-santo da Capivara e que

tornavam minha presença nos festejos praticamente obrigatória. Após um desses eventos,

Elias quis se certificar de que eu percebera que Sandoval buscava ao menos retomar contato

com aquelas pessoas por meio das relações que haviam estabelecido comigo. Foi ficando

claro que nenhum dos envolvidos ignorava as motivações dos demais, e os chefes das outras

casas por vezes me utilizavam para indiretamente enviar recados para Sandoval, querendo se

assegurar de que ele sabia que nunca seria destratado enquanto os visitasse – diferentemente

do que ele próprio havia feito com eles no passado, era o complemento nunca dito mas

sempre subentendido. Apesar de afirmarem explicitamente que a possibilidade de um retorno

à Capivara era praticamente inexistente, pairava de modo constante nas falas desses filhos-de-

santo a mais ínfima das brechas. Ainda que sem dúvida fossem sentimentos que devessem ser

levados em conta, não se tratava apenas de uma questão de orgulho ferido ou de altivez:

quanto maior e mais significativa é uma mágoa, quanto mais longo o tempo durante o qual se

é afetado por ela, mais magnânima torna-se a pessoa que um dia decide perdoá-la.

Seria muito improvável que não se suspeitasse da existência de um feitiço envolvido

no episódio, algo bastante comum nas desavenças pessoais entre filhos-de-santo, já tendo sido

mencionadas algumas das formas pelas quais determinados sortilégios podem ser postos em

prática. No jarê, feitiços se encontram entre as ações possíveis de serem efetivadas à distância,

em geral por meio de algum objeto preparado especificamente para transportar influências

perniciosas a seus destinatários, tanto por contato direto como por semelhança. No primeiro

caso encontram-se, por exemplo, feitiços transmitidos por ingestão de alimentos e

proximidade com pó de pemba ou com certos despachos, chamados de “bozós”. No segundo,

a ação feiticeira encontra seu alvo viajando por meio de fotos que exibam a pessoa a ser
271

enfeitiçada ou pelo nome da vítima escrito num pedaço de papel e sujeito a procedimentos

específicos. Entre as formas de se combater a ação dos feitiços figuram métodos que dialogam

com o mesmo repertório envolvido em sua criação, mas que objetivam impedir a chegada da

ação feiticeira ou, ainda, desviá-la de seu curso original, podendo mesmo ser redirecionada

para o próprio feiticeiro ou para quem quer que tenha encomendado sua realização. Objetos

sob os quais recai a suspeita de serem transmissores de feitiços podem ser lavados, varridos,

deslocados de formas ritualmente prescritas para que não tenham o efeito desejado. O uso de

certas plantas, em geral transformadas em remédios, é também recomendado para tratar os

sintomas do enfeitiçado e mesmo combater o próprio feitiço, favorecendo-se certas ervas

consideradas especialmente “debatentes” – termo que na região carrega um duplo sentido

envolvendo tanto propensão a discutir como capacidade de se chocar contra algo, colidir. As

casas de culto em si são espaços que contam com proteção contra os efeitos adversos

envolvidos em ações como as de feitiçaria, quando possuem origem externa a sua

comunidade, tanto em função da vigilância do povo da porta como de medidas

complementares como a colocação de fitas coloridas e oferendas em certos marcos na

propriedade para defender não só seus frequentadores ocasionais como seus habitantes

cotidianos, especialmente plantas e animais298.

É possível realizar também no jarê uma distinção entre feitiçaria e bruxaria, de acordo

com o grau de intencionalidade das ações realizadas, ainda que ela não altere as formas de

combater seus efeitos299. Além da possibilidade de sentimentos como a inveja e a cobiça

acarretarem, sem o conhecimento ou premeditação daquele que os nutre, consequências

nocivas para os que deles são alvo – o chamado “olhado” –, é ainda mais comum a menção à

298
Ver fotos 69 e 70 no anexo III.
299
Diferentemente, contudo, do que ocorre entre no contexto etnográfico onde a distinção foi proposta (Evans-
Pritchard 1937: 33-34, 230), no jarê não há separação clara entre feiticeiros e bruxos senão pelas ações que
empregam, tampouco havendo uma substância-bruxaria específica com existência material no corpo dos bruxos,
como será visto a seguir.
272

ação direta, sem que uma pessoa se dê conta, das entidades que a circundam. Os filhos-de-

santo explicavam como os espíritos ligados a um iniciado, quando se trata de alguém que

possui grande força pessoal – caso que não é limitado aos curadores –, podem ser propensos a

tomar providências contra pessoas que se coloquem no caminho de seu protegido, quer

estejam mancomunando diretamente contra ele, quer estejam simplesmente ignorando seus

pedidos ou recomendações. Por mais que um curador possa ter uma índole calma, brincalhona

ou apaziguadora, estilo que varia bastante dependendo do caráter pessoal de cada um, ainda

assim nunca é boa ideia desobedecer a uma de suas orientações, sob pena de se encontrar

vítima da ação de seus caboclos – algo que pode acontecer independentemente da vontade do

pai-de-santo, ou mesmo contra ela. Por vezes é a própria capacidade energética de uma pessoa

que acaba por protegê-la contra possíveis ataques feiticeiros e desemboca num contra-ataque

na chave da bruxaria, tudo podendo se passar sem o conhecimento da potencial vítima inicial.

Os curadores mais experientes terminam sendo capazes de reconhecer esses acontecimentos,

quer ocorram com eles próprios, quer com pessoas de quem sejam próximos, tornando-se

cada vez mais aptos a controlar os rompantes aos quais de outro modo as entidades estariam

predispostas.

O fenômeno de reflexo da ação feiticeira, qualquer que seja a origem da mesma, é um

dos motivos que leva à existência, na cidade de Lençóis, de uma impressão algo generalizada,

tanto entre as pessoas menos ligadas ao jarê como entre muitos dos entendidos, de que todo

curador atua, ao menos parcialmente, também com o intuito de produzir efeitos perniciosos

para outrem. A maior parte dos curadores nega a pecha de feiticeiro, ainda que, quando falem

mais abertamente sobre o tema, dificilmente neguem o potencial para tanto, já que o

conhecimento da ciência do jarê e o próprio acúmulo de energia em seus terreiros os tornam

capazes de empreender ações feiticeiras ou de ao menos fazer deles focos para sua

procedência. O que impede que efetivamente o sejam – ou ao menos o sejam de forma


273

indiscriminada –, argumentam os curadores, é o fato de estarem eles próprios, mais que

ninguém, sujeitos a essas ações, inclusive as oriundas de suas próprias entidades, que os

motivam constantemente a atuar de modo caridoso e realizar somente ações rituais que

tenham efeitos benéficos para os envolvidos, sob risco de eles próprios sofrerem a ira dos

espíritos que a todo instante mobilizam.

Por fim, há também feitiços que são disparados entre os mais entendidos, mesmo

curadores e até de pai para filho-de-santo, e que funcionam como testes, provações para se

asseverar a superioridade de um em relação ao outro. Os frequentadores da Capivara contam

diversas histórias a respeito de feitiços enviados contra Pedro de Laura – em geral oriundos de

pessoas que lhe eram bastante próximas e com quem ele mantinha relações de amizade

aparente, como rege a etiqueta do jarê, acrescentam –, sem jamais deixar de lado o potencial

destrutivo que essas ações poderiam ter. Os curadores, dizem os filhos-de-santo, estavam

acostumados a ficar sempre “um experimentando o outro”, como “cobra engolindo cobra”:

levando feitiços pessoalmente ou enviando-os por outros meios para os terreiros uns dos

outros, os curadores se colocavam constantemente à prova. Os pais-de-santo ao mesmo tempo

afirmavam que essa era uma forma de se cimentar relações de confiança, já que, ao serem

capazes de lidar satisfatoriamente com os feitiços um do outro, ficava demonstrada a

incapacidade de se causar efeitos danosos aos terreiros que visitavam, continuando a ser bem-

vindos quando quisessem comparecer aos jarês que lhes acolhessem.

Pedro de Laura era envolto por inúmeras histórias que atestavam sua capacidade de

lidar com as tentativas de outros iniciados de sabotá-lo, algumas vindas de filhos-de-santo que

ele mesmo havia batizado no culto. Diante dos frequentadores de uma festa, o líder da

Capivara dava indicações a seus iniciados para que encontrassem objetos que haviam sido

trazidos por terceiros para prejudicar o andamento de uma cerimônia, podendo ele mesmo por

vezes revelar a existência dos transmissores de feitiços e apontar publicamente os


274

responsáveis pela tentativa de derrubá-lo em sua própria casa, sem que isso gerasse qualquer

impedimento para que continuassem a frequentar o terreiro. Em outros momentos, longe dos

dias de festejo, suas entidades podiam avisá-lo de feitiços encaminhados pelas matas em

direção ao Palácio de Ogum, normalmente por meio de espíritos que viajavam na forma de

animais, como pássaros, peixes ou varas de caititus, e que Pedro redirecionava para que

carregassem seus efeitos para outros locais – em geral de volta aos que os haviam enviado.

Por vezes mesmo, como me contou um de seus filhos-de-santo, Pedro agia no sentido de

interceptar um feitiço em pleno envio, mandando ele próprio um preparado equivalente para

que o efeito de ambos fosse neutralizado, uma espécie de “antimíssil”, nas palavras do

iniciado, normalmente encaminhado pelas águas dos rios que inevitavelmente conectavam

distintas casas de jarê. A genialidade de Pedro de Laura, que o tornava alvo de inveja por

parte de muitos, foi somente uma das qualidades que fez dele um dos maiores mestres do jarê

que a Chapada Diamantina já viu, e ainda que alguns de seus filhos-de-santo cogitem a

possibilidade de que venha a nascer outro que possa superá-lo, muitos dos que o conheceram

são da opinião de que em muitos sentidos ele continuará inigualável.


275

Capítulo 4 – Levantar

É ouro, Santa Bárbara, é ouro


É ouro, eu cheguei de mina
É ouro, Santa Bárbara, é ouro
Eu vivo na macumba pra cumprir a minha sina

4.1 Tramas

“Não tem cantiga mais certa que essa, no jarê”. Quando disse essas palavras, logo após

terminar de cantar, Áurea tinha a voz embargada e os olhos ligeiramente marejados. Tanto a

música quanto a letra haviam-lhe suscitado emoções que em geral preferia deixar dormentes,

mesmo sabedora de que não era possível ignorar a inevitabilidade de grande parte de seu

destino junto ao culto. Mais de uma vez, ela disse, pensara em desistir e jogar tudo para o alto,

acrescentando que ninguém sabia ao certo o tamanho do sofrimento que pessoas com essa

sina tinham de suportar. Na ocasião, estávamos sentados no chão, diante da casa de uma das

comadres de Elias, conversando sobre cantigas de jarê, até então de forma bastante

descontraída. Áurea comentou que houve uma época em que tentou abandonar o culto e

chegou mesmo a ir umas poucas vezes a uma igreja evangélica, não conseguindo, contudo,

pregar os olhos depois de voltar do local. As noites que passava em claro aumentavam a

certeza de que em larga medida não havia alternativa: sua vida, toda ela, era e permaneceria

inextrincavelmente ligada às realidades do jarê. Áurea não se deixou abater, finda a breve

confidência aos presentes: em pouco tempo se recompôs e emendou em outras cantigas, com

sua alegria costumeira, não permitindo que a resignação de que era testemunha lhe impedisse

de alcançar a felicidade que era possível.


276

Conheci Maria Áurea na primeira reunião da Associação do jarê para a qual fui

convidado por Sandoval, seu sobrinho. Passado algum tempo tomei para mim o hábito de

chamá-la de Tia Áurea, a exemplo do que fazem tanto Elias como várias outras pessoas da

cidade, especialmente as que haviam conhecido o pequeno restaurante ao qual ela se dedicara

durante alguns anos e que levava esse mesmo nome. Renomada cozinheira, Áurea trabalhava

agora no setor de alimentação do hospital municipal de Lençóis, já tendo sido no passado

vereadora na cidade, na época em que a posição ainda não era remunerada. Áurea era

igualmente uma das grandes parteiras que a região conhecia, já tendo perdido a conta do

número de crianças que ajudara a trazer ao mundo e das quais por consequência era madrinha:

não menos que uma centena, estimava-se. O acúmulo de seus feitos era ainda mais

impressionante em função de sua pouca idade, já que Áurea tinha pouco mais de 50 anos à

época em que fui para a Chapada. De todo modo, sua maior fama era sem sombra de dúvida a

de ser, nos dias atuais, se não a maior, uma das principais responsáveis pela manutenção do

jarê em Lençóis, especialmente o da Capivara.

Desde criança Áurea gostava de frequentar os muitos jarês da cidade, mesmo contra a

vontade de sua família. Ela se lembra com gosto da época em que, nos meses festivos, uma

pessoa podia pular de casa em casa, numa mesma noite, indo a diversas celebrações e tendo

contato com inúmeras pessoas e entidades distintas. Áurea conta como esperava todos em sua

casa irem dormir antes de sair de fininho para varar a madrugada, tendo por vezes de pular

muros protegidos com cacos de vidro para não ser percebida. Ela sabia que na manhã seguinte

acabaria sendo castigada pelos pais caso descobrissem por onde havia andado, algo que

inevitavelmente acabava acontecendo. As surras que tomava ainda assim não a dissuadiam,

seu fascínio pelo jarê mostrando-se duradouro. Áurea se recorda nitidamente da primeira vez

em que foi até o Palácio de Ogum, quando não tinha nem dez anos, levada por Dona

Valdelice, a já mencionada comadre de Pedro de Laura. Os rios que tiveram de atravessar


277

estavam com água acima da cintura de um adulto, o que fez com que ela tivesse de ser

carregada nas costas enquanto o transpunham. Algum tempo depois, quando já contava 12

anos, Áurea foi tomada por uma entidade durante uma pescaria à qual fora acompanhando

uma senhora. Ela não possui nenhuma lembrança do que se passou a partir daí, senão após ter

recobrado a consciência, quando percebeu que se encontrava na Capivara, no dia seguinte.

Por terem lhe contado posteriormente, Áurea ficou sabendo que tivera de ser trazida amarrada

com cordas para ser tratada por Pedro de Laura, que algum tempo depois viria a se tornar seu

pai-de-santo.

A partir daí o jarê se constituiu numa parte significativa da vida de Áurea, que chegou

a ser ogã do chefe da Capivara antes de ele ter decidido extinguir o posto para evitar

desentendimentos entre seus filhos-de-santo, como já indicado. De todo modo, Áurea sempre

fez parte de um núcleo de iniciados que Pedro de Laura mantinha bem próximo de si, uma

geração mais jovem que faria todo possível para levar adiante o legado do Palácio de Ogum

após o falecimento de seu criador. Entre outros, desse conjunto também participavam Dinha –

irmã carnal de Áurea e mãe de Sandoval –, Valdelice do Baixio – que não se deve confundir

com a comadre de Pedro, que deixara de frequentar a Capivara –, Mussum e Daso – esses

últimos ambos tendo se tornado curadores, cada um a seu tempo. Em função dos

acontecimentos detalhados no capítulo anterior, o Palácio de Ogum acabou sob a liderança de

pessoas ligadas a esse núcleo; contudo, ainda que tanto Sandoval como Mussum fossem

figuras centrais para a continuidade do jarê da Capivara, o nome considerado por todos como

absolutamente indispensável à realização das cerimônias era o de Áurea. Mesmo não sendo

uma mãe-de-santo, destino que – ela sempre lembrava – fazia de tudo para evitar, os

frequentadores do Palácio jamais se cansavam de fazer notar como, sem ela, não se poderia

realizar um jarê na Capivara, até porque Áurea era a indiscutível possuidora tanto da maior
278

ciência como da maior força pessoal entre aqueles que agora estavam à frente da casa300. Por

todos esses motivos foi ainda mais preocupante quando, ao final da primeira cerimônia a que

eu assisti no Palácio, Áurea caiu ao chão – e pareceu não mais se mexer.

Em eventualidades do tipo, a pessoa afetada deve ser trazida de volta à consciência

pelo curador presente na casa, o que no caso em questão ocorreu quando Mussum foi

chamado e soou a campa da Capivara ao lado da cabeça de Áurea, junto ao chão. Ela ficou

visivelmente abatida e se retirou para tentar descansar como faziam os demais, pois a

madrugada fora longa e cansativa com a realização do jarê para Oxalá, que contara com um

ritual de reverência no qual a entidade de Áurea desempenhara papel central. Todos traziam à

mente o episódio quando, ao longo dos meses seguintes, os caboclos manifestados em Áurea

mostraram-se, de novas formas, vacilantes: suas incorporações – que antes eram seguras e

precisas – demoravam mais do que o comum para acontecer, seus passos de dança estavam

mais cambaleantes e incertos do que o esperado, a ligação com os espíritos que a

acompanhavam indicava que eles se encontravam enfraquecidos, “esgotados”, como ela

própria afirmou. Áurea informou aos frequentadores mais recentes da Capivara algo que os

mais antigos já sabiam: quando seu ritual de iniciação fora realizado, muitos anos atrás, não

houvera dinheiro bastante para a aquisição de um animal de quatro patas, em geral necessário

ao batizado, e Pedro de Laura dera sequência ao trabalho substituindo-o por um galináceo e

procedendo a algumas alterações litúrgicas. À época, Pedro lhe avisara que aquela solução

provisória não deveria durar mais do que sete anos, sendo então necessária a realização de um

sacrifício adequado, que não chegou a ser feito. Desde então, “foram muitos sete anos”, disse

Áurea, afirmando que parecia ter chegado a hora de realizar um trabalho de reforço para

firmar suas entidades de uma vez por todas. O que levantava uma questão crítica: quem seria

o responsável a fazê-lo?

300
Ver fotos 71 e 72 no anexo III.
279

O processo para se decidir o curador que realizaria o trabalho de Áurea mobilizou

inúmeras das pessoas ligadas ao jarê de Lençóis, ainda que a escolha em última instância

recaísse sobre ela própria, aconselhada também por suas entidades, como frisava. De modo a

incorporar as divergentes opiniões daqueles de quem era próxima e contemplar o maior

número de possibilidades antes de tomar sua decisão, ao longo de algumas semanas Áurea

teve longas conversas com amigos e parentes, reunindo alternativas. Uma delas seria realizar

seu reforço com um curador que possuísse um terreiro em outro município, para com isso não

correr o risco de se indispor com ninguém de Lençóis. Contrários a essa opção pesavam o fato

de ser mais difícil encontrar à distância um pai-de-santo confiável e capaz de realizar o ritual

de maneira adequada, bem como o valor cobrado que poderia ser alto demais por não haver

qualquer relação prévia com o novo iniciador. A opção de ter o trabalho feito na própria

cidade, por sua vez, envolvia escolher entre um dos poucos curadores em atividade (lista

ainda mais reduzida em função de algumas indisposições que não valia a pena reativar), bem

decidir o local da cerimônia. Sandoval cogitou com sua tia a possibilidade de abrirem uma

exceção a respeito da deliberação de não mais realizar rituais com sacrifício no Palácio de

Ogum, não sem deixar de mencionar que sabia que outras pessoas tentariam considerar o

evento um precedente, e caberia a eles serem firmes para não repeti-lo. Com isso, Sandoval se

unia aos filhos-de-santo que consideravam ser o próprio Mussum a pessoa mais indicada para

a tarefa, conjunto que polarizava com aqueles iniciados por Daso em seu terreiro no Rio das

Toalhas. Na visão desses últimos, que acabou prevalecendo, a habilidade ritual de seu pai-de-

santo, bem como o fato de sua casa de jarê já estar mais bem estabelecida, eram fatores

decisivos para dirimir a dúvida de Áurea. Ela acabou optando por tomar a decisão por meio de

uma votação da qual participariam os seus afilhados, medida que Elias comentou comigo ser

mais uma demonstração da habilidade diplomática de Tia Áurea.


280

Com o passar do tempo, foi ficando cada vez mais claro que estava envolvido, na

realização do trabalho de reforço de Áurea, igualmente em grande parte o destino do Palácio

de Ogum, já que ela era hoje em muitos aspectos sua figura central. O curador que oficiasse o

ritual de Áurea passaria a contar com uma boa dose da deferência prescrita na relação entre

filho e pai-de-santo, bem como se tornaria conectado misticamente a uma pessoa não só

detentora de grande força pessoal como pivô de mobilização de outras. A decisão de Áurea

poderia ter uma gama de resultados distintos, desde a chancela de um novo curador para o

Palácio de Ogum, até sua própria transformação em mãe-de-santo e reativação do terreiro

enquanto tal, nenhum dos extremos tendo contudo se concretizado, não sendo o trono da

Capivara ocupado por vivente algum. Os detalhes sobre a execução da obrigação de Áurea –

que é outra forma de se falar a respeito do trabalho ritual que deveria fazer, como já

mencionado – geravam outras perguntas, já que as pessoas envolvidas se indagavam se ela

deixaria de ser filha-de-santo de Pedro de Laura e se seria preciso tirar a mão do morto de sua

cabeça301. Após o reforço ter sido feito, com procedimentos rituais que em muito se

aproximavam de uma nova iniciação302, com algumas adaptações feitas para a ocasião, a

própria Áurea indicava que continuava a ser filha-de-santo de Sete-Serra, o mais bravio dos

caboclos de Pedro, mas que agora era também, simultaneamente, filha-de-santo do Eru de

Daso, entidade que também podia demonstrar renomada selvageria303. O fato de Daso ter sido

o último iniciado da Capivara também foi fundamental para que, na realização do trabalho,

ele fosse capaz de reproduzir parcialmente as condições da primeira iniciação de Áurea,

mesmo sem tê-la presenciado em pessoa. Conforme ambos disseram, as próprias entidades

que no passado haviam participado do ritual foram capazes de transmitir para o curador o

301
Ritual já descrito no capítulo 2, seção 2.5, e que será retomado abaixo, na seção 4.3.
302
Episódios como esse de reforço da iniciação podem ser considerados característicos dos candomblés de rito
angola, aí empregados durante a própria iniciação ou mesmo também, a exemplo do caso aqui relatado, após esta
(Serra 1978: 337).
303
Ver foto 73 no anexo III.
281

conhecimento da disposição dos objetos, das cantigas e sequências litúrgicas que permitiram

que os dois processos em muito se assemelhassem, garantindo sua continuidade.

O reforço de Áurea foi um episódio marcante que se inscreveu em, e ao mesmo tempo

constituiu um, cenário específico para o desenvolvimento contemporâneo das casas de jarê de

Lençóis, de certa forma dando continuidade às tramas – principalmente, mas não só, no

sentido de enredos304 – postas em marcha desde o falecimento de Pedro de Laura. O núcleo

dos mais importantes filhos-de-santo da Capivara, em torno do qual essa pesquisa acabou se

concentrando, continuava a ter no legado de seu pai-de-santo grande parte das motivações que

os levavam, nos dias de hoje, a se aproximar ou se afastar daquele que fora seu primeiro

terreiro e onde tinham se tornado irmãos-de-santo. Na trajetória dessa família, o instante que

pude acompanhar de perto exibia de forma bastante evidente as cisões e reaproximações que

pareciam ser parte constitutiva da história do jarê, os esforços para manter a tão desejada – e

sabidamente inevitavelmente provisória – união de todos sendo contrapostos às vicissitudes

da vida. De um modo ou de outro, esses filhos-de-santo estavam hoje ligados a casas de culto

próprias e possuíam suas avaliações pessoais a respeito das melhores formas de se conduzir as

cerimônias e orientar os rumos do jarê, aplacar as entidades e festejar as bem-aventuranças

que lhes eram proporcionadas. Ao mesmo tempo, todos compartilhavam histórias num

mesmo local que, diferentemente do que costuma acontecer na maior parte dos casos, não

havia desaparecido por completo após o falecimento de seu criador. Membros das novas

gerações começavam agora também a conhecer o jarê e a ser iniciados em seus segredos,

jovens que estariam conectados por laços de outras dimensões, proporções distintas, que lhes

304
“Trama” em minha opinião é a melhor forma de traduzir para o português a “network” proposta pela Actor-
Network-Theory, que não por acaso é definida por seu principal autor no capítulo que dedica à análise da própria
produção textual científica. Um bom registro acadêmico, para essa visão, é aquele que “delineia uma trama”
(“traces a network”). Nesse sentido, vale marcar, uma trama não se confunde com aquilo que é descrito, trata-se
mais especificamente de um indicador de qualidade, um conceito utilizado para “conferir quanta energia,
movimento e especificidade” um registro – entremeado, portanto – é capaz de apresentar (Latour 2005: 128-
131). Até mais do que “enredo”, a ideia de trama chama atenção também para o ambiente do romance policial:
cheio de detalhes aos quais o leitor deve prestar atenção, cativante de modo a despertar sua curiosidade e
tentativamente surpreendente por suas reviravoltas.
282

deixariam entremeados de formas novas, mobilizando-os a protagonizarem diferentes

conexões e afastamentos.

O relato precedente a respeito das alterações na configuração contemporânea dos jarês

de Lençóis suscitadas pelo trabalho de reforço empreendido para Áurea precisou ser tão

abreviado quanto se mostrou um tema delicado para todos os envolvidos, e minha principal

preocupação ao tecê-lo possui dois aspectos ligados ao caráter contingente dos

acontecimentos. Seria reduzir demasiadamente a complexidade dos eventos partir da

suposição de que os envolvidos desde o princípio tinham em mente realizar determinadas

ações (como abrir suas próprias casas, aproximar-se ou afastar-se de certas pessoas, ser ou

não ser iniciado por alguém, tornar-se ou não um curador) com o objetivo único de produzir

os efeitos que acabaram tendo lugar, como se todas as suas motivações derivassem de juízos

mecânicos. Ao mesmo tempo, ignorar que determinadas pessoas terminam por ser brilhantes

leitoras dos acontecimentos e procuram influenciar suas consequências seria não só

ingenuidade como esvaziaria o mérito dos lances mais hábeis e não permitiria a adequada

apreensão dos riscos que foram tomados em cada decisão. Como será visto adiante305, o jarê

ensina que uma certa medida de ousadia é necessária para se produzir os efeitos mais

significativos: enquanto a indiferença que beira a apatia estimula a estagnação e angaria

quando muito a comiseração alheia, por sua vez a ambição desmesurada acaba por acarretar a

ruína daquele que vai longe demais. As irreduções306 almejadas para a elaboração desse relato

não derivam unicamente nem de haver encontrado uma situação de particular instabilidade

que se prestaria ao princípio descritivo, nem tampouco da inevitável parcialidade do trabalho

de campo que tem seu início e seu término em meio a histórias que o ultrapassam em ambos

305
Nesse mesmo capítulo, seção 4.2.
306
Mais do que se postular a irredutibilidade de determinados fenômenos, o princípio de irredução ao qual faço
referência pode ser melhor definido como uma alternativa ao recurso à transcendência, sugerindo “um recuo
frente a essa pretensão de saber e de julgar”: o princípio de irredução é assim duplo, já que pode recusar o
automatismo tanto das redutibilidades ligeiras como das impossibilidades de comparação, das tentativas de
reduzir dois termos à incomensurabilidade (Stengers 1993: 26-27; Serra 1995: 85; Latour 2005: 107, 137).
283

os sentidos. Mais que isso, elas são tanto fruto de uma opção analítica e textual como uma

maneira de transpor para o trabalho acadêmico aquela que é, paradoxalmente, talvez a

sensação mais incontornável e mais desestabilizante compartilhada por todos que assistem a

uma festa de jarê: a de que nada está garantido. A todo momento existe apreensão, já que as

manifestações podem não se processar a contento e uma entidade nova pode surgir a qualquer

instante, um objeto ritual pode faltar e outro pode ter de ser acrescentado, uma cantiga ou

sequência litúrgica pode ser esquecida ou suprimida enquanto outras podem ser improvisadas

e criadas na hora.

O trabalho de reforço feito para Áurea teve alguns efeitos praticamente imediatos,

observáveis já no segundo dia do grande jarê celebrado na ocasião no terreiro de Daso, que

contou com diversos participantes e a realização de várias iniciações. Os caboclos que ela

manifestava agora pisavam com muito mais segurança e propriedade, tinham vitalidade

renovada, lembrando a todos dos belos movimentos que faziam quando Áurea era bastante

jovem, como os que haviam ficado registrados no filme Diamante Bruto, como me disse

Elias, no qual bem moça ela pode ser vista dançando durante as cenas em que foi registrada a

realização de um jarê em Lençóis. Suas entidades deixaram também algumas mensagens para

os presentes e para a própria Áurea, dizendo que agora sua carnal não iria tolerar ser posta

para trás na Capivara, dando a entender que ela deveria a partir de então ser considerada,

ainda mais indiscutivelmente do que antes, a verdadeira chefe da casa. De fato, no ritual que

aconteceu alguns meses depois para a aberta do Palácio de Ogum – ao qual Daso, com seus

filhos-de-santo, compareceu, algo que há muito não fazia –, um Ogum tomou Áurea durante o

momento ritual inicial e anunciou que nos anos seguintes poderiam convocar sua Iansã para

realizar aquela etapa tão fundamental. Houve quem suspeitasse que quem falava no momento

era uma das entidades do próprio Pedro de Laura, enquanto outros imaginavam que era um

dos caboclos da própria Áurea, já que até então ninguém jamais tinha sido capaz de receber
284

diretamente num jarê um dos espíritos deixados pelo próprio Pedro – um feito considerável

até mesmo para alguém da estatura mística dela307.

A última reunião da Associação do jarê a que eu compareci, pouco tempo antes de

terminar o trabalho de campo, contou com a presença de uma quantidade considerável de

pessoas ligadas à Capivara, bastante maior que a primeira, na qual eu fora apresentado a

Áurea. Apesar de ser inegável a existência de alguma tensão entre Mussum e Daso,

provavelmente amplificada ainda mais nos filhos-de-santo de cada um deles cujo vínculo

inclui em alguma medida tomar para si as posições daqueles que os iniciaram, o encontro

transcorreu de forma tranquila e desembaraçada. Mussum comentou que assim como Daso era

bem-vindo na Capivara e em sua própria casa, ele sabia que se quisesse visitar o outro pai-de-

santo seria igualmente bem recebido, lembrando que ambos se conheciam desde que eram

crianças – “de bater baba na rua”, acrescentou, usando uma expressão que na região significa

participar de um jogo informal de futebol mas cujo duplo sentido não deixou de provocar uma

das típicas gaitadas de Elias. Da nova chapa eleita na ocasião, de que Elias se tornou

presidente, faziam parte pessoas ligadas a praticamente todas as casas de jarê de Lençóis, com

destacada participação de jovens que começavam a se interessar cada vez mais pelo culto.

Uma das jovens encerrou a reunião com um pronunciamento, lembrando aos presentes que

eram todos filhos e netos da Capivara, e como tal deviam fazer o possível para que o jarê

continuasse a existir – e talvez voltasse a florescer como outrora – tanto em sua cidade como

em outros locais da Chapada Diamantina.

Em outras oportunidades, Áurea comentou a respeito de mais uma transformação que

seu trabalho de reforço havia acarretado, bem como uma mudança de comportamento que ela

esperava que se processasse em função dessa alteração. Elias havia mencionado, certa feita, a

307
Tema bastante disseminado nas religiões de matriz africana, dom e iniciação parecem não ser nem
exatamente uma oposição, nem esgotar sozinhos o tema das qualidades que podem fazer parte da composição de
uma pessoa em sua trajetória mística (Goldman 2012: 277-279).
285

respeito das entidades místicas do candomblé sobre as quais ele havia aprendido em Salvador,

no caso especificamente sobre Oxumarê, dizendo que se tratava de um espírito que passava

seis meses ao ano sendo do sexo masculino e seis meses do feminino. Áurea, que possui uma

forte ligação com Oxum, entidade que no jarê também pode ser chamada de Oxumarê, disse

que por vezes ela se sentia dessa forma, já que ao menos durante metade do ano não queria

saber de homem algum em sua cama. Logo em seguida, emendou dizendo que a partir de

agora jamais voltaria a ser subjugada por homem algum, pois agora ela estava se tornando

uma líder do jarê. Áurea é mãe de duas filhas de seu primeiro casamento, mas como deu a

entender ela tinha em mente seu companheiro atual, que estava em detenção em Salvador e

deveria visitar Lençóis durante a Semana Santa em liberdade temporária. A atitude de Áurea

se inscrevia em duas importantes disposições de certo modo prescritas no jarê em relação ao

cônjuge de uma pessoa. A primeira, liturgicamente marcada, envolvia a separação,

especialmente prezada no caso dos curadores, de seus afazeres rituais na casa de culto e sua

convivência conjugal, principalmente no tocante às relações sexuais308. Um curador, diz-se, se

for casado, deve manter afastadas de seu terreiro quaisquer questões e influências domésticas,

igualmente evitando ter relações sexuais em determinados dias, próximo de cerimônias,

prevenindo igualmente seus filhos-de-santo de que não deviam mantê-las nessas ocasiões. A

segunda disposição, mais informal, tem a ver especificamente com a liberdade prezada pelas

mulheres casadas de frequentarem jarês se assim o desejarem, algo que nem sempre é visto

com bons olhos por seus maridos.

Sob determinado ponto de vista, ao menos parte da força pessoal de um curador

simultaneamente deriva de e se traduz em sua potência sexual, especialmente no caso dos

homens, que como visto costumam compor a maioria dos quadros de liderança das casas de

308
Remeto aqui, por exemplo, ao episódio já descrito protagonizado pelo líder do Remanso cujo terreiro foi
herdado por Pedro de Laura, envolvendo as consequências de ter abandonado sua abstinência, narrado no
capítulo 3, seção 3.4.
286

culto. A comunicação entre essas duas energias dava a praticamente todos os curadores a

pecha de terem – ou desejarem ter – diversos parceiros sexuais, mesmo quando casados. Em

função desse pendor, cabia ao próprio curador frear seus impulsos mais libidinosos e canalizá-

los para as funções litúrgicas que exercia, aumentando assim sua força pessoal que acabaria

por ser mobilizada nas cerimônias de jarê. Também em função desse atributo, os curadores

acabavam por ser reconhecidos como importantes detentores de formas de se tratar

adversidades de natureza não só conjugal como também puramente sexual, curando homens e,

menos frequentemente, mulheres que lhes procuravam com dificuldades de manter relações

utilizando-se de banhos com ervas, remédios naturais, procedimentos rituais ou outros

métodos. Por esses motivos, não era incomum surgirem boatos a respeito da consumação de

relações sexuais entre curadores e seus filhos ou filhas-de-santo, muitas vezes espalhados não

só por pessoas não ligadas ao jarê como mesmo no próprio seio de uma casa de culto,

encarados por seus membros com bastante lástima e seriedade309. Fossem somente rumores ou

mesmo eventos concretos, cônjuges ciosos procuravam impedir sua profusão das mais

diversas formas, muitas vezes tentando proibir seus companheiros de frequentar os jarês,

empreitada que raramente tinha sucesso310.

Usando um tom que indicava claramente que só em parte estavam brincando, as

mulheres que iam aos jarês diziam que se tivessem de escolher entre permanecer ou casadas

ou no culto, se separariam num piscar de olhos. Se nem sempre podem exercer funções de

liderança direta, especialmente porque algumas atribuições rituais como a manutenção do

309
Histórias desse tipo são recorrentes nos meios das religiões de matriz africana, de certo modo ligadas a uma
simbologia erótica que não necessariamente reflete uma licenciosidade por suposto aí presente (Serra 1978: 183).
310
Certa vez, durante uma reunião informal dos filhos-de-santo de uma casa de culto com seu curador, o tema foi
abertamente discutido para que se encontrassem formas de ao menos limitar o surgimento de boatos envolvendo
os membros daquela comunidade mística. Um dos principais pontos acordados, arguta sugestão do marido de
uma das filhas-de-santo da casa e também iniciado do local, foi o de que se evitasse a presença de filhas-de-santo
sozinhas com o curador no terreiro, algo até então feito de forma corriqueira para que ajudassem nas tarefas
semanais como cozinhar ou varrer o terreno. Apesar de ter plena confiança tanto na esposa como em seu
curador, disse o iniciado, o fato de haver sempre mais de uma filha-de-santo no local inibiria a geração de
fuxicos por pessoas mal intencionadas.
287

caramanchão só podem ser realizadas por homens, as mulheres costumam ter de todo modo

papel central no desenrolar das cerimônias, ocupando o posto de ogãs nas casas de culto e

sendo de modo geral valorizadas muito mais que os homens durante as incorporações de suas

entidades. Existem também mulheres que se tornam curadoras, fazendo uso de arranjos

específicos que permitem que auxiliares litúrgicos lidem em seu nome com o povo da porta,

elas próprias continuando responsáveis por todas as demais operações que um curador do

sexo masculino faria. De certo modo, na constituição do universo do jarê a independência

feminina era não só prezada como estimulada, ao mesmo tempo função e fundamento da

presença de mulheres que trabalhavam e obtinham seu próprio sustento independentemente de

serem ou não casadas. No presente, o exercício de ocupações pagas por grande parte da

população feminina de Lençóis tornava-se cada vez mais comum, absorvidas pela economia

turística para trabalhos que os homens em geral não realizavam – como cozinhar, limpar e

lavar, anteriormente consideradas só tarefas domésticas e como tais não remuneradas. Ao

mesmo tempo, no passado, o jarê já costumava congregar mulheres independentes que

possuíam fonte de renda própria, como exemplificado anteriormente – por mais que também

dependessem, como todos os demais, dos resultados da economia garimpeira –, vendendo

seus serviços aos trabalhadores da cidade. Entre esses serviços podiam estar incluídos os

sexuais, como Elias gostava sempre de lembrar por considerar que as senhoras que outrora

haviam sido mulheres-damas invariavelmente figuravam entre aquelas que – como todas

prezavam – jamais se deixavam dominar por homem algum311.

Com distintos graus de conformação, todas as pessoas ligadas ao jarê concordavam

que intriga e fuxico eram em alguma medida inevitáveis ao culto – havendo mesmo quem os

311
Entre os fatores que podem ter influenciado a incompletude da ascensão feminina à liderança no jarê pode-se
elencar a não ocorrência em Lençóis do mesmo êxodo que teve lugar em diversas outras cidades da Chapada
entre as décadas de 1950 e 1980 para grandes centros urbanos do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro e
posteriormente Brasília. De todo modo, a expressão presente por exemplo na comunidade do Mulungu, no
município de Boninal, também na Chapada Diamantina, segundo a qual “mulher casada é mulher governada”
(Brantes 2007: 28, grifo suprimido), se adequaria perfeitamente à realidade dos jarês de Lençóis.
288

considerasse integralmente necessários. Os membros das casas de culto que menos tinham

medo de dizer abertamente aquilo que pensavam – os chamados “baforentos”, por gostarem

de “bafôs”, confusões e desordens – costumavam acabar no centro dos eventos mais

conhecidos e que seriam comentados por anos a fio, a serem lembrados fosse como

possuidores de personalidades marcantes e inspiradoras, fosse como disseminadores da

discórdia e da inimizade. Dessas tramas não faziam parte somente as pessoas, como

igualmente suas entidades, algumas das quais obtinham fama de serem especialmente

“sotaqueiras”, propensas aos sotaques, que são mensagens normalmente cifradas dadas na

forma de cantigas ou avisos aos presentes, a ausentes ou mesmo ao próprio carnal que as

manifesta. Não se segue necessariamente que os caboclos de uma pessoa que possua fama de

fazer “resenhas”, disseminar relatos dos acontecimentos com ou sem intenções malfazejas,

sejam eles próprios também particularmente faladores, e vice-versa, muitas vezes

acontecendo o contrário. Mais uma vez, de qualquer forma, os melhores entre os curadores

costumam ser considerados aqueles que dominam sobremaneira a arte do fuxico, capacidade

compartilhada por seus espíritos, e que podem se ver envoltos durante a realização de jarê em

disputas de sotaque, nas quais trocam cantigas com uma entidade manifestada de maneira

crescente até que alguém se dê por vencido – em geral o desafiante. De todo modo, fazer

fuxicos e intrigas de qualquer tipo não é uma atividade a que alguém se dedique

levianamente, já que as repercussões, sobretudo as místicas, podem ser bastante graves312.

Quanto mais importante uma pessoa é, maior a chance de ela se tornar alvo de fofocas,

algo de que Áurea tinha plena consciência e pelo quê não se deixava abalar. Ao contrário, de

certa maneira, tornar-se alvo de suposições por parte de outrem servia apenas para tornar

patente o fato de que ela era uma pessoa invejável – e como tal devia logicamente se importar

com esse sentimento somente na medida em que era preciso se proteger contra alguns de seus

312
A expressão que o resume de maneira sintética não deixa dúvidas sobre o canal de seus efeitos: “a língua fala,
o corpo paga” (Gonçalves 1984: 114).
289

efeitos possíveis, alguns dos quais podiam acontecer mesmo à revelia daqueles que lhe

invejavam. Depois de ter feito seu trabalho de reforço, Áurea descansava ainda mais segura

por contar com o amparo de suas entidades revitalizadas, especialmente daquela que era sua

entidade mais bela e cobiçada, cujas cores principais a adornar suas roupas eram o amarelo e

o dourado. Apesar de ser bastante morena e possuir compridos cabelos escuros, Áurea fora

apelidada desde nova de “Loira”, forma pela qual tanto Pedro de Laura como a comadre dele,

Dona Valdelice, a chamavam – ocasionalmente até hoje, no caso da última. Certa vez,

enquanto conversávamos, acompanhados por Elias, diante do hospital onde Áurea trabalhava,

sentados de frente para o Rio Lençóis, com suas águas cúpreas reluzindo ao sol, eu lhe disse

que achava seu nome especialmente bonito e apropriado já que ele próprio remetia ao ouro.

Áurea sorriu e me respondeu, sua voz terna: “Eu sei, meu filho. Eu sei...”

4.2 Confidências

As pessoas ligadas ao jarê, em especial, costumam tomar bastante cuidado com aquilo

que dizem, não só por preferirem evitar a fama de faladores como por terem aguda noção das

repercussões que podem estar envolvidas no próprio ato de falar, aí incluídas as

consequências místicas. Em muitos sentidos, a voz é um poderoso instrumento no jarê, não só

para a liturgia como para o manejo de determinadas entidades e energias que podem ser

colocadas em movimento ao serem conclamadas ou simplesmente mencionadas – tanto de

forma deliberada como não intencionalmente. Um curador mencionou certa vez como era

praticamente tão significativo que, ao se aproximar de sua morte e finalmente falecer, uma

pessoa parasse de se mexer como perdesse sua voz. A voz de alguém, ele deu a entender a

seguir, ao mesmo tempo conectava uma pessoa a seus espíritos como era fruto dessa própria
290

ligação, sendo um dos meios por excelência de colocá-los em marcha. O cotidiano de uma

pessoa é cercado de fórmulas e enunciações que a conectam às entidades que lhe são

próximas, em geral rogando sua proteção contra males e perigos ou mobilizando-as para que

concedam suas bênçãos àqueles que lhe são caros. Impressionou-me o fato de que mesmo as

conversas mais informais, nas quais os envolvidos encontravam-se em uma postura de escuta

aparentemente displicente – muitas vezes com diversos falantes interrompendo-se e

entabulando diálogos paralelos simultaneamente –, os interlocutores demonstravam sempre

estarem atentos aos assuntos mencionados por todos. Essa capacidade de atenção difusa, para

mim ainda mais abstrusa antes de me acostumar ao sotaque e ao estilo do falar local 313, não

era acompanhada necessariamente por uma diminuição na acuidade da atenção às falas

individuais, e em geral mesmo comentários feitos em voz baixa e em meio a conversas

paralelas são sempre ouvidos e devidamente respondidos por aqueles a quem o tópico

concerne. Além disso, é quase com o mesmo tipo de postura corporal e tom de voz que se

discutem trivialidades e assuntos bastante graves, e garantias e promessas feitas são sempre

lembradas posteriormente e levadas a sério, mesmo que feitas de modo aparentemente

desinteressado – sem que haja muito contato dos olhos, em momentos descontraídos ou

incluídos em comentários aparentemente acessórios.

Uma das fórmulas que passei a entender como um meio de se resguardar contra a ação

indesejada de forças místicas, geralmente empregada por pessoas que em sua trajetória

haviam tido contato bem próximo com entidades do jarê e depois dele se afastado

parcialmente, envolvia afirmar em alto e bom som que não se acreditava naquele tipo de

coisa. Afirmações dessa espécie – mais de descrédito do que de descrença, como será visto a

seguir – costumavam ser empregadas logo após se haver descrito uma situação

particularmente perigosa, em geral envolvendo entidades de reputação nefasta, ou ainda ao se

313
Já caracterizado como “um falar com ritmo próprio, rápido, frases curtas, bem marcadas, com razoável
variedade de inflexões” (Gonçalves 1984: 111).
291

relatar um evento especialmente marcante que poderia conectar o falante às potências místicas

às quais se referia, pois o próprio ato de narrá-lo poderia significar o reconhecimento de sua

grandeza. Descrever essa medida como uma forma de proteção é de saída uma forma algo

desleal de encará-la, não por se tratar de uma interpretação falsa, mas por se tratar, ainda que

obliquamente, de uma maneira de privá-la de parte de sua eficácia. Dito de outro modo,

enfatizar o objetivo defensivo que a afirmação possui pode acabar por inverter seu efeito

esperado, colocando o falante justamente à mercê de forças com as quais ele não deseja se

haver de modo algum. Um amigo frequentemente comentava comigo que jamais diria às

senhoras com quem conversava que ele próprio não acreditava, por exemplo, em lobisomens e

outras figuras míticas que lhe diziam ter visto com os próprios olhos, e me aconselhava a

fazer o mesmo: “Iriam desatar em choro, além de acharem que eu as considero mentirosas”,

ele dizia. Se recorro agora a expediente semelhante – e aqui sim o empreendo de modo

análogo ao de meus amigos quando oferecem afirmações de descrédito –, o faço pois ele me

permite lidar de maneira frutífera com outra questão, a da falta de sentido da investigação

acerca da natureza da crença.

Contrariamente a um paradigma da suspeita, que parte da inexistência de determinados

fenômenos, considerados místicos se não tiverem seus meandros devidamente explicitados, o

jarê com seu já mencionado ideal de suficiência parte da plenitude das formas de

existência314: o que se precisa postular é a descrença, quando se deseja, excepcionalmente,

extrair a si mesmo da ação das forças abundantes no mundo. Tampouco se trata, na maior

parte dos casos, de um contraste absoluto entre extremos, como se bastasse uma única

comprovação ou desilusão para que uma pessoa se tornasse plenamente crédula ou cética –

como aconteceria no primeiro paradigma. Ou, como me disse certa vez um senhor que

frequentava um dos terreiros a que passei a ir com maior frequência, e que Elias me diria ser

314
Um curador de Nova Redenção disse explicitamente: “O mundo é uma despensa, tudo que você procurar
dentro dele, você encontra” (Rabelo 1990: 139).
292

um dos últimos descendentes reconhecidos das nagôs de outrora: “Já vi muita coisa que me

faria duvidar, e muita coisa mais que me faz acreditar”. Nesse jogo que não precisa ser de

soma zero, torna-se muito mais contundente o acúmulo da experiência – e dos experimentos –

para se formar a si mesmo e ao mundo em que se habita, do que a eliminação das supostas

contradições e incongruências às quais se estaria submetido. Como outro senhor fez questão

que eu entendesse bem claramente, para existirem, os próprios entes que constituem o mundo

precisam da devida atenção, interesse e reverência, num processo que nada tem de meramente

simbólico. Além disso, não se trata de meramente existirem ou não existirem, mas de se

existir com mais ou menos intensidade, num gradiente que vai das forças mais potentes e

perenes às que terminam por desaparecer, quiçá por completo315.

Em maior ou menor grau, o jarê pode ser visto como um dispositivo de orientação de

microcrenças316, de fluxos de intencionalidades e atenções, voltadas para o estabelecimento

não só de canais comunicacionais como de vasos comunicantes que alimentam e mantêm

vivos os entes do mundo – cujos graus de existência são continuamente variáveis –, incluídos

nesse conjunto, ainda que possivelmente longe de serem sua parte mais fundamental, as

pessoas que frequentam uma casa. Desse ponto de vista, os membros dos terreiros

funcionariam antes de tudo como espécies de rebites, por sua capacidade de redirecionar,

literalmente através de suas ações, determinados fluxos capazes de enfraquecer ou revitalizar

certos entes do mundo, como aconteceu, por exemplo, no trabalho de reforço de Áurea e seus

caboclos. Em várias outras situações ficou claro como a mera ação de direcionar a atenção

para uma entidade determinada poderia ser o bastante para fortalecê-la ou esmorecê-la, por

315
A concepção africana da pessoa aproxima-se assim mais da filosofia medieval do que da kantiana, para a qual
não há intermediários possíveis: existe toda “uma escala de graus do Ser. Existe-se mais ou menos” (Bastide
1953: 371).
316
Nesse sentido, a crença sendo concebida como um dos principais elementos que fazem parte da composição
das mônadas abertas de que fala Gabriel Tarde (1895: 67, 90-91, 93), o mesmo valendo para o desejo.
293

vezes com consequências terríveis para os envolvidos317. É por esse motivo que um iniciando

precisa, por exemplo, permanecer com os olhos cobertos durante seu trabalho de limpeza, ou

que não se deve chorar na presença de um espírito ligado a mortos, como é o caso de muitos

exus no jarê. Em mais uma de suas pérolas, Dona Valdelice disse certa vez a Elias – quando

este buscava bajulá-la elogiando seu vasto conhecimento da ciência do jarê a ponto de deixá-

la irritada – que “só quem sabe tudo é Deus e os orixás”, e acrescentou, mais serena: “A gente

só escolhe é em quem confiar”. Por meio de sua máxima, ela revelava com muita propriedade

que no jarê a crença não passa do grau máximo da confiança, essa sim verdadeiramente

fundamental. Perguntar se alguém acredita ou não no jarê ou em uma de suas entidades pode

ser algo sem sentido ou mesmo ofensivo: a boa pergunta equivalente envolveria a questão do

quanto uma pessoa confia ou não no culto e em seus participantes, tanto humanos como

espirituais.

Como mencionado anteriormente, ser ou não ser “de confiança” é um dos principais

comentários que se pode fazer a respeito do valor de uma pessoa, e amigos próximos

costumam, em meio a brincadeiras, dizer uns dos outros que não são de confiança, afirmação

que de outro modo poderia constituir ofensa grave. “Ficar dando confiança” a quem não se

deve é uma maneira infalível de atrair para si infortúnios, assim como o é escolher deixar de

confiar em alguém de reputação ilibada quando a oportunidade se apresenta. Escolher em

quem confiar significa bem mais do que acreditar ou não no conhecimento ou na palavra de

uma pessoa, mas igualmente cultivar sua amizade e valorizar a capacidade daquele a quem se

confere crédito de, por sua vez, confiar em outros que também lhe queiram bem – aí incluídas

todas as entidades que circundam e podem habitar os envolvidos. As pessoas ligadas ao jarê

317
Daí não me parecer exato afirmar que predomina um sentimento de vergonha derivado do significado
marginal que as incorporações rituais teriam em função da “condição marginal do culto na sociedade mais
ampla” (Rabelo 1990: 265-266). Ainda que se sentir acanhado por ter para si direcionados muitos olhares
também possa ser um motivo para fazê-lo (Rabelo 1990: 229), é também provável que alguns dos adeptos
cubram seus rostos ao começarem a ser tomados por suas entidades para tentarem não ser afetados pelas
atenções dos presentes.
294

depositam sua confiança não como se confia num banco, esperando retorno, mas como se

confia a alguém a chave de sua casa, como se confidencia a alguém um segredo: esperando

que o depositário tenha em mente seu bem, não importe o que aconteça, e sabendo que confiar

em alguém é igualmente uma maneira de se tornar confiável para aquela pessoa. A expressão

da confiança absoluta é a fé, que os filhos-de-santo afirmam ser indispensável à obtenção de

inúmeros dos efeitos desejados no jarê, tanto durante seus rituais como em seu cotidiano. Diz-

se, por exemplo, que tomar um remédio natural prescrito por um curador de nada adiantará se

a pessoa não tiver fé tanto nas ervas selecionadas como naquele que as preparou e em suas

entidades. Só um incauto, contudo, distribui sua fé indiscriminadamente, como me ensinou

certa vez a líder das baianas de Lençóis: “Respeitar, eu respeito todo mundo. Agora, botar fé,

não é em todo mundo que eu boto, não”.

Se a questão de ter de escolher em quem confiar e em quem não confiar pode ser

considerada um ponto pacífico entre os frequentadores do jarê, o mesmo não pode ser dito a

respeito da decisão de a quem e quando vale a pena desobedecer, deixar de confiar por mais

momentaneamente que seja – ainda que para tanto uma pessoa vá confiar antes de tudo em si

mesma ou em suas entidades. Ousadia só não é o termo mais adequado para falar da qualidade

que possuem aqueles que arriscam desobedecer às orientações que recebem por ser

geralmente reservado à designação da conduta sexualmente imprópria, em geral esposada por

homens jovens e pela qual são quase invariavelmente criticados ou mesmo punidos. Há, de

todo modo, uma aproximação possível entre algo dessa atitude e o destemor tão prezado pelos

grandes nomes do jarê, a coragem, audácia ou intrepidez necessárias àqueles que desejam

testar os limites do que é possível realizar. Saber quando desobedecer às orientações de seu

pai-de-santo, suprimir ou acrescentar objetos ou sequências à fórmula tradicional de um ritual,

ignorar os avisos de cautela de uma entidade, é algo que distingue os iniciados que obtêm os

efeitos mais impressionantes e duradouros daqueles que se contentam em seguir os preceitos


295

estabelecidos, suas restrições e decorrentes limitações. A capacidade de agir de modo

destemido varia não só de acordo com a personalidade e a força pessoal de cada um, mas

igualmente tende a se ampliar com o passar do tempo e o acúmulo de experiência, tanto

dentro do culto como na vida de forma geral. A dimensão dos riscos que se corre ao abusar da

sorte, de todo jeito, costuma ser proporcional à grandeza dos resultados ímpares que se pode

obter, sejam eles os esperados, sejam eles imprevistos, já que nada garante que um arrojo seja

necessariamente bem-sucedido.

A habilidade para realização de adaptações rituais costuma ser auxiliada por outra

qualidade de que dispunham aqueles considerados como os melhores curadores da região, a

saber, uma ótima memória318. No jarê, esse atributo costuma ser considerado ao mesmo

tempo um derivado e um facilitador da ampliação da força pessoal de alguém, bem como

função da maior proximidade com – e capacidade de acessar – as entidades que circundam

uma pessoa, como era o caso de Áurea, apesar da relativa pouca idade. Os maiores detentores

da ciência do jarê encontram-se entre aqueles que possuem memorizados não só eventos

específicos do passado como uma vasta quantidade de cantigas, sequências rituais e nomes e

efeitos de plantas, que são capazes de mobilizar quando as condições se mostram adequadas.

A memória pode ela também ser treinada e aprimorada, atividade a que os curadores

costumam se dedicar já que a capacidade de se lembrar com exatidão de histórias e detalhes

passados concede a alguém a possibilidade de impulsionar transformações no presente de

maneira cada vez mais confiável, se assim o desejar. Um pai-de-santo mencionou certa vez

como considerava a mente algo muito parecido com um computador, instrumento que ele

próprio jamais tinha utilizado, por reconhecer no aparelho a capacidade não só de processar

318
Em diversas ocasiões os lençoenses chamavam atenção para a prodigiosa memória de alguns dos mais antigos
habitantes da cidade, em especial as senhoras centenárias que haviam diretamente vivenciado ou ouvido relatos
em primeira mão sobre toda a história da região (Ganem 2001: 21, 76). Na novela Pedra sobre pedra, inspirada
na realidade de Lençóis, essas senhoras forem representadas pela figura de Dona Quirina, que se lembrava
vivamente do passado apesar de ela mesma já possuir 120 anos de idade.
296

informações, computá-las, como principalmente de armazenar uma imensa quantidade delas e

possibilitar acesso rápido às mesmas319. De certo modo, seria possível dizer que do ponto de

vista do jarê as pessoas que possuem uma memória invejável são consideradas as mais

inteligentes de todas, sendo a capacidade pura de armazenamento sempre mais importante

nessa avaliação do que a disposição para fornecer comentários sobre elas – inclusive porque

deixar de fazê-lo pode contar em geral como sinal de que àquela inteligência se alia uma

grande sabedoria320.

Mesmo algumas das pessoas que detêm as melhores memórias também podem sem

qualquer embaraço se dedicar ao registro escrito de cantigas, eventos e fórmulas místicas,

sendo muito comum que os líderes das casas de culto possuam cadernos guardados de

maneira bastante ciosa nos quais detalham parte de seu conhecimento tradicional. O acesso a

esses cadernos costuma ser bastante restrito, confiado apenas às pessoas mais próximas do

chefe de uma casa, e a autorização para que sejam realizadas cópias dos mesmos são ainda

mais raras. Os cadernos costumam conter listas de visitantes da casa, datas de realização de

cerimônias de jarê e iniciações, letras de cantigas e rezas, nomes e funções de ervas

medicinais e modos de prepará-las. Não há problema algum em se recorrer a um desses

cadernos ou outros aparatos escritos para se recordar, por exemplo, da letra de uma cantiga

que só é cantada em determinadas ocasiões menos comuns, já que seu conteúdo funciona

muito mais como um auxílio mnemônico do que como uma forma de se adquirir um

conhecimento que previamente não se possuía. De todo modo, mais de uma vez os filhos-de-

santo indicaram que o simples fato de se ter acesso ao que havia escrito em cadernos como

319
Outro curador, de Nova Redenção, disse: “Nunca tive estudo nenhum. Meu único estudo foi minha ideia, a
memória que Jesus me deu em meu pensamento” (Rabelo 1990: 117, cf. tmb. 132).
320
A aproximação direta entre memória e inteligência já fora feita para as tradições religiosas iorubá (Verger &
Anthony 1996: 174 apud Souty 2007: 267).
297

esses, bem como em livros, nunca era suficiente para que alguém se tornasse um curador de

verdade.

4.3 Caboclos

Um dos motivos adicionais que contribuía para Áurea se emocionar com a cantiga

transcrita no início desse capítulo era o fato de ela ser dedicada a Santa Bárbara, que é outro

nome dado a Iansã, aquela que era sua entidade mais famosa, batizada em sua cabeça por

Pedro de Laura. Iansã, inclusive, é provavelmente o espírito que recebe a maior gama de

nomes diferentes no jarê, evidenciando também uma conjugação de entidades que no

candomblé são consideradas distintas. Conversando com Áurea certa vez, Elias lhe perguntou

qual era, afinal de contas, a entidade principal dela, se Iansã, Oyá, Oxum ou Oxumarê, já que

no jarê cantigas que se referem a esses quatro nomes (além de Santa Bárbara, nome em geral

considerado o maior sinônimo de Iansã) são evocadas em momentos rituais nos quais só se

deve reverenciar uma única entidade por vez. Áurea respondeu que a confusão de meu amigo

era justificável, tanto por no jarê esses nomes efetivamente tratarem de um mesmo espírito

como por sua entidade de frente ser uma variação específica chamada Iansã Tempo. Áurea,

como muitos outros filhos-de-santo, tinha grande orgulho de suas entidades, especialmente,

em seu caso, da Santa Bárbara que lhe acompanhava havia tanto tempo e que já conquistara

grande reconhecimento por parte dos frequentadores do jarê, a ponto de se tornar uma

presença obrigatória em praticamente qualquer celebração nas casas de culto. Áurea era

propensa a falar com os amigos sobre suas entidades, e podia se mostrar genuinamente

aborrecida caso fosse feita alguma comparação desfavorável entre sua Iansã e qualquer outro
298

espírito, como quando alguém comentou que ela era muito enigmática: “Falem o que

quiserem de mim, mas não falem mal dos meus caboclos”, afirmava.

Os adeptos do jarê realizam – e operam com – distinções entre as entidades

mobilizadas no culto que poderiam ser descritas por meio de três diferentes eixos, utilizando

em todos os casos metáforas ópticas, especialmente adequadas não só por fazerem referência

a domínios contínuos como por serem parte de uma das formas explicitamente utilizadas pelas

pessoas que lidam com elas para diferenciá-las ou as aproximar umas das outras321. O

primeiro eixo, de especiação das entidades, poderia ser imaginado como uma escala cromática

de tonalidades, na qual cada matiz ou conjunto de matizes faria referência a um espírito

determinado. Os frequentadores do jarê muito frequentemente reconhecem e fazem

reconhecer entidades que se manifestam nas casas de culto em função das cores das roupas

que empregam e que são aceitas pelos caboclos – como amarelo ou vermelho para Iansã, azul

escuro para Ogum, verde para Sultão das Matas –, bem como graças aos objetos e adereços

que empunham e sobre os quais exercem sua influência, em geral da mesma cor de suas

vestimentas. A escala de tonalidades denota igualmente um dos critérios de averiguação das

proximidades que podem existir entre entidades distintas, exemplificada pela vizinhança e

passagem gradativa de cores lado a lado umas das outras: diferentes tons de verde indicam

caboclos ligados às matas, mais próximos entre si do que das entidades pertencentes às águas,

por exemplo, que vestem matizes de azul. Por mais que a escala de tonalidades funcione nesse

momento antes de tudo como um instrumento retórico (por exemplo, apesar de poderem vestir

o mesmo tom de azul, Ogum e as entidades das águas não são considerados próximos), muitas

vezes ela pode corresponder de maneira bastante direta às conexões entre espíritos distintos,
321
Essas distinções são igualmente realizadas, com algumas flutuações específicas a cada caso, nas demais
religiões de matriz africana. Não é nenhum exagero conectar esse sistema a uma determinada ontologia
cromática que parte de um monismo energético de base (Goldman 2005: 116), por sua vez apenas “a resultante
de uma multiplicidade intensiva de linhas de força e vetores” (Goldman 2012: 277-278). Um curador de Nova
Redenção assim o exemplificou: “Um pai tem dez, doze filhos. Eles não podem ser todos exatamente iguais uns
aos outros, certo? Bem, é assim com os encantados...” (Rabelo 1990: 129). A discussão a seguir poderá ser mais
proveitosamente acompanhada junto do gráfico presente na próxima página.
299

igualmente entrevistas pela posição relativa que ocupam nas sequências de incorporações

rituais seguidas nos jarês, como será visto mais adiante.

Especiação
– Densidade +
Singularização

Generalização

Exemplo de área
de existência
pouco intensiva,
em baixa saturação

Gráfico 1 – Eixos de diferenciação e aproximação das entidades

O segundo eixo de diferenciação das entidades refere-se ao grau de generalidade das

mesmas, já que praticamente todas podem, num extremo, existir enquanto forças muito

abrangentes – em geral ligadas a fenômenos climáticos (como tempestades), ambientes

ecológicos (rios, matas, serras) ou ocupações (mineração, pecuária) – ou, no outro extremo,

mostrarem-se instanciações singulares que cada pessoa pode manifestar. A maior parte das

interações dos membros dos jarês com as entidades se dá quando elas existem dessa forma,

habitando o corpo de um adepto e assumindo características particulares ligadas a ele, como

algo de sua voz, maneirismos, estilo de dança. Os espíritos em sua face mais geral costumam

ser lembrados quando são homenageados em festas específicas ou quando são invocados para

conceder bênçãos a alguém322. Ainda que, por exemplo, muitas pessoas possam comparecer a

uma festa para assistir à manifestação de uma das entidades de Áurea, um jarê dedicado a

Iansã prestará homenagem a todas as Iansãs que se incorporarem nos filhos-de-santo

322
Nos jarês de nagô de antigamente, usava-se a palavra “calundu” para designar a entidade abrangente, o
“encantado genérico”, sendo a origem quimbunda do termo apontada como mais uma evidência do fundamento
banto do jarê (Senna 1998: 71 nota 42).
300

presentes, no momento ritual específico destinado a sua chegada. Disposto verticalmente

numa tela, esse eixo poderia ser entendido como um de densidade ou nitidez da imagem, no

qual a seção superior seria preenchida por um contínuo espraiado – representando a divindade

em toda abrangência de sua alçada – enquanto a inferior seria ocupada por pontos cada vez

mais esparsos – indicando cada uma das entidades incorporada num adepto específico e

assumindo sua roupagem particular.

A terceira distinção possível de ser pensada envolveria o já mencionado grau de

intensidade da existência da entidade, sem ignorar o fato de que um espírito que exista de

maneira mais intensa que outros em geral acaba tornando-se também mais diferenciado que os

demais a ele semelhantes. Quanto mais uma entidade é mencionada e reverenciada, quanto

mais rituais são feitos por ela e em homenagem a ela, há quanto mais tempo ela costuma

visitar rotineiramente um mesmo terreiro, maior será sua força pessoal e de modo mais

determinante ela existirá em meio aos adeptos do jarê. Inversamente, espíritos que passam a

ser ignorados, que deixam de ser devidamente alimentados e honrados com os procedimentos

adequados, cujas incorporações são colocadas em dúvida ou deixadas de lado e rotineiramente

suprimidas da sequência litúrgica habitual, acabam vendo diminuída sua relevância para o

culto e, simultaneamente, sua própria capacidade de continuar existindo323. Justapondo-se aos

dois eixos anteriores, esse terceiro poderia ser assemelhado ao grau de saturação das cores de

uma imagem, tornando determinadas porções mais vívidas ou mais pálidas conforme a

existência das entidades se mostrasse mais ou menos intensa.

O fato de que os frequentadores dos jarês usam habitualmente os mesmos termos –

entidades, caboclos, orixás, santos – de modo indiferenciado para falar a respeito de uma

gama de seres místicos em suas variadas formas de existência não significa que não realizem

com variável regularidade as distinções aqui propostas. Contudo, ao contrário e

323
A respeito desse fenômeno, no universo do candomblé já se ouviu a adequada expressão “orixá em vias de
extinção” (Patricia de Aquino, comunicação pessoal apud Latour 1984: 21 e nota 4).
301

provavelmente de maneira ainda mais importante, essa indiferenciação potencial aponta para

uma das características mais fundamentais do sistema, que é sua capacidade transformacional.

Mais do que servir ao estabelecimento da identidade de uma entidade, esses eixos permitem

pensar tanto seus cruzamentos como as movimentações que, entre outras, a própria atividade

de caracterização dos espíritos enceta. Constantemente os adeptos podem se encontrar diante

da questão não tanto de descobrir a identidade de uma entidade mas de saber com quais ela se

assemelha: é em função da proximidade ou da distância estabelecida em relação às demais

que ela será, novamente, nem tanto reconhecida como configurada, sendo mesmo possível

que um pai-de-santo estimule ou desencoraje o aparecimento e a consolidação de um caboclo

específico numa pessoa, pelos mais diferentes motivos. Por sua vez, se as atualizações

particulares das entidades manifestando-se nos corpos dos iniciados derivam de um

movimento propulsionado por suas versões mais abrangentes, inversamente é a densidade das

incorporações de um grande número de adeptos recebendo instanciações de um mesmo

espírito que (re)produz ritualmente a presença nítida da divindade no espaço sagrado.

Finalmente, é no curso dos acontecimentos tanto rituais como cotidianos que a potência das

entidades é posta à prova, podendo ser ampliada se estável, ou se mostrando exaurida,

precisando de renovação, como ocorreu no trabalho feito para Áurea.

Além das incorporações, quando passam a coexistir de forma bastante intensa

habitando os corpos dos iniciados, costuma-se conviver com as entidades de maneiras mais

sutis, mais comumente por meio de manifestações ou puramente visuais ou puramente

auditivas, que podem ter lugar tanto durante sonhos como em vigília324. A capacidade de se

manifestarem dessas maneiras também é acompanhada pelas faculdades de ver e ouvir, ainda

que muitas vezes não simultaneamente: ainda que não componham sua totalidade, estão longe

de ser exceção tanto as vezes em que uma pessoa ouve uma voz que atribui a uma entidade

324
O nome dado às aparições puramente visuais das entidades, aleivosia, na região é por vezes pronunciado
igualmente “livusia” (O. Senna 2002: 12).
302

sem ter visto sua imagem, como aquelas nas quais alguém vê uma figura de aparência humana

(em geral na mata) e se dirige a ela verbalmente sem obter qualquer resposta de volta. De todo

modo, como mencionado, as entidades que circundam uma pessoa costumam estar

constantemente atentas àquilo que se passa em seu redor, sendo propensas a agir sem que seja

necessário instá-las a tanto. Como uma filha-de-santo certa vez afirmou enfaticamente: “Diz-

se que santo não é cego e, além disso, tem ouvido!” Os espíritos podem deixar também outras

formas de rastros, como borrões luminosos em vídeos e fotografias, alguns dos quais podem

ser distinguidos apenas pelos maiores entendidos do jarê, como os grandes curadores. Espera-

se que todo curador tenha conhecimento e seja capaz de reconhecer um grande número de

entidades místicas, aprimorando-se ao longo de sua carreira em manejá-las corretamente. Diz-

se mesmo que os maiores entre os curadores terminam por ser capazes de lidar de maneira

muito direta literalmente com todos os espíritos do jarê, sua alçada abrangendo idealmente

todo o espectro de variações que o conjunto das entidades compõe.

A incorporação das entidades pelos iniciados nas cerimônias de jarê, num processo

que será mais bem detalhado adiante, costuma acontecer de acordo com sequências

tradicionalmente estabelecidas em cada casa de culto e de acordo com cada celebração,

podendo de todo modo sofrer alterações repentinas, feitas sempre que possível com orientação

do líder responsável pela festa325. Quando uma entidade se manifesta num iniciado, fica

estabelecido um ambiente no salão destinado à reverência somente de outras instanciações

daquela mesma entidade: quando Áurea incorpora sua Iansã, espera-se que outras pessoas

presentes recebam também suas próprias Iansãs e dancem todas juntas no pagodô. Caso

aconteça de uma pessoa ser tomada por outro espírito que não seja uma Iansã, por exemplo

um Oxóssi, os presentes tentarão dialogar com a entidade indiscreta e convencê-la a deixar

325
No candomblé essa ordenação da sequência de incorporações recebe o nome de “xirê”. No jarê, entretanto,
não existe jamais nada parecido com o “adarrum” do candomblé, o toque que estimula a vinda, num mesmo
momento, de inúmeras divindades distintas (Bastide 1958: 36).
303

por ora a pessoa na qual se encontra e aguardar o momento posterior no qual outras similares

a ela serão veneradas. Esses eventos são relativamente esparsos, quando muito limitando-se a

uma ou duas entre as dezenas de incorporações que acontecem ao longo de uma cerimônia de

jarê, sendo igualmente, e em grande parte, resolvidos a contento. Além disso, as

manifestações que acontecem fora da ordem esperada são também percebidas como comuns

tanto pelas entidades serem consideradas seres caprichosos quanto em função das

mencionadas proximidades que entretêm, dividindo-se também, de acordo com suas

características e afinidades, em alguns grandes conjuntos. As sequências a seguir, listadas por

Áurea, acompanham de modo geral o ordenamento dos caboclos reverenciados nas festas na

Capivara, habitualmente seguido pelas outras casas de jarê de Lençóis. De todo modo, sempre

que é feita uma festa em homenagem a um espírito específico ele costuma preceder todos os

demais da sequência tradicional.

As primeiras entidades para quem se canta no pagodô fazem parte de um conjunto

chamado de “caboclos de frente”, seres aos quais a designação “orixá” costuma também ser

aplicada com maior frequência. Os caboclos de frente são liderados por Ogum, entidade

combativa que veste tons próximos do azul escuro e que é também renomada por sua

capacidade de oficiar trabalhos rituais. Após a despedida de Ogum as atenções se voltam para

Iansã, também chamada quase indistintamente de Santa Bárbara e ocasionalmente de Oyá,

Oxum ou Oxumarê, esta última considerada por alguns uma versão masculina da mesma

entidade. Iansã costuma vestir tons de amarelo ou vermelho, é uma das entidades femininas

por excelência do jarê, possui domínio sobre a morte e os mortos e – assim como Xangô,

entidade que lhe sucede na sequência – sobre os raios, trovões e tempestades de maneira

geral. Da mesma forma que ela, Xangô, que traja exclusivamente o vermelho, é também um

orixá ligado à vaidade, tendo ele, contudo, especial aversão à morte e aos mortos, ao contrário

da primeira. Elias certa vez sintetizou uma hipótese transformacional esboçada por algumas
304

outras pessoas ligadas ao culto, segundo a qual alguns entre os orixás existentes nos cultos de

matriz africana em seu princípio foram, durante a formação do jarê, transpostos para os outros

conjuntos de entidades. Apropriadamente, entidades como Oxóssi, Iemanjá, Baluaê, Nanã e

Oxalá aparecem, por vezes ligeiramente modificadas, na sequência ritual dos jarês, próximos

não dos demais espíritos de frente, aqui descritos, mas dos demais caboclos separados nos

conjuntos que são ocasionalmente chamados de forma geral de “linhagens”326.

Após as incorporações sequenciadas dos três caboclos de frente, procede-se à visita

das entidades pertencentes à “aldeia d’água”, numa fase cujo início é marcado por cantigas

específicas saudando os espíritos dos domínios aquáticos presentes na linhagem. A aldeia

d’água é “puxada”, chega ao salão, pela ação de Marinheiro, entidade que veste diferentes

tons de azul e mais ligada às águas salgadas dos mares. Em ordem, ele costuma ser sucedido

por Mãe d’Água, Sereia e Janaína327 – essa última uma versão infantil da entidade Iemanjá –,

todas trajando, além dos tons de azul característicos de toda entidade da aldeia d’água,

variações de rosa e amarelo claro. Essas entidades femininas são consideradas ligadas às

águas doces dos rios e das lagoas, suas instanciações muitas vezes habitando marcos

geográficos determinados na região da Chapada Diamantina e do município de Lençóis, sendo

a mais famosa delas a Lagoa Encantada, formada pela junção dos rios Utinga e Santo

Antônio328. Os espíritos ligados à aldeia d’água são quase invariavelmente vistos como

bastante calmos e dóceis, em comparação tanto com os orixás de frente que lhes precederam

quanto com os caboclos que imediatamente lhes sucedem na sequência e aos quais costumam

ser postos em oposição. Sua forma de dançar pode ser igualmente descrita pelos iniciados

326
Esse processo de transposição das entidades, que recebe alhures o nome de “caboclarização” (Senna 1998:
116), é um dos motivos que leva todos os espíritos a poderem ser chamados indistintamente de caboclos. Por sua
vez, os conjuntos de entidades também podem ser considerados determinados espaços, “sítios” nos quais o
“território sagrado” pode ser repartido (Senna 1998: 115).
327
Para a qual se registra também o nome de Inapiucina (Senna 1998: 133).
328
Menção que também é feita na literatura regional (Pereira 1910: 57; Moraes 1963: 136-137, 139 nota 2).
305

como tendo passos mais suaves que os demais espíritos incorporados, ainda que a diferença

possa parecer por demais sutil ao observador casual.

A chegada dos caboclos da “força da mata” marca uma das etapas mais movimentadas

do jarê, não somente por contar com as entidades consideradas mais bravias e selvagens do

culto como por ser também próximo a ela que se costuma haver a interrupção do fluxo de

habitual de incorporações, necessária à realização de iniciações rituais. Os caboclos da força

da mata, todos em geral vestindo tons de verde, costumam ser liderados por Sultão das Matas,

ao qual se seguem incorporações das entidades Eru, Gentio, Índio (também chamado de

Tupinambá) e Oxóssi – ou sua versão infantil, de nome Odé. As entidades que compõem a

força da mata costumam ser de algum modo associadas à população indígena que deve ter no

passado habitado a, ou viajado pela, Chapada, fossem espíritos de indígenas que faleceram ou

se encantaram, fossem espíritos cultuados pelos próprios. Elias me lembrava que os caboclos

da força da mata eram os “donos da terra”, que ele gostava de chamar de “caboclos da Terra

de Vera Cruz”, e como tal seriam para sempre dignos de homenagem por parte daqueles que

agora habitavam um território que por direito seria de outrem, num compromisso estabelecido

pelas nagôs de antigamente329. Os caboclos dessa linhagem são considerados corajosos,

bravos e teimosos, e tanto sua fala como sua dança são ditos “avexados”, ligeiros, exercendo

em suas incorporações um movimento veloz que é inibido no mundo que agora habitam,

chamado Aruanda330, associado às matas e a árvores específicas que lhes servem de morada.

329
Há registros sobre a ocupação, mais duradoura ou mais transitória, de diferentes etnias indígenas no território
que é hoje denominado de Chapada Diamantina, incluindo maracás, paiaiás, paiaiazes, maracanasus, cariris,
tapuias. Às línguas faladas por esses dois últimos – igualmente mencionados em algumas cantigas de jarê –
atribuem-se termos e nomes muito usados na região, como orobó, assuruá, jequié, cincurá, catulé, mucugê, entre
outros (Pereira 1910: 69 nota **; Pereira 1937: 42-43; Tavares 1959: 17-20; Siqueira 1978: 37-43, 111; Bandeira
1995: 13, 15; Araújo, Neves & Senna 2002: 148 nota 64). Um curador do Remanso, povoado de remanescentes
de quilombolas, evidenciava em sua comunidade a defesa de um ideal de vida considerado indígena, afirmando
que as agruras que grande parte da população nacional vivia haviam começado com a expulsão dos povos
ameríndios de suas terras. De acordo com sua visão, constitutiva em algum grau de todos os jarês, quando forem
vitoriosos na luta espiritual que agora travam, os caboclos obterão como consequência o retorno das populações
indígenas às terras que são suas por direito (Senna 1998: 97-98).
330
No anexo IV, na seção destinada a cantigas oferecidas indistintamente a qualquer caboclo, ver a que começa
com “E olha a palha do coqueiro”.
306

A linhagem seguinte, dos “espíritos de luz”, costuma contar com entidades

reconhecidas mais por sua ocupação que por qualquer cor específica de vestimenta, muitas

delas podendo inclusive preferir, quando incorporadas em iniciados do sexo masculino,

dançar sem camisas. Os espíritos dessa linhagem encontram-se entre aqueles que os iniciados

consideram mais prováveis de terem sido pessoas determinadas que viveram entre seus

antepassados, a história de muitos deles remetendo à época da escravidão. Entre eles, na

ordem em que costumam chegar nos salões durante as festas, estão Mineiro, Tomba-Morro,

Preto Velho, Jericó e Vaqueiro. Jericó, em particular, contam tanto os adeptos como as letras

das cantigas em sua homenagem, foi um escravo que trabalhava tomando conta de gado e

tinha especial predileção pela luz da lua, até ter sido cegado por seu proprietário por um grave

deslize que teria cometido. As melodias de suas cantigas são tão lúgubres quanto belas,

contrapondo-se à animação característica que acompanha em seguida as músicas cantadas

para Vaqueiro, entidade que incorporada costuma fazer questão de simular uma vaquejada,

usando uma tira de pano no lugar do laço e lutando contra um dos presentes que se dispõe a

participar no papel de um dos membros mais irrequietos do rebanho.

A última linhagem que comparece a uma festa de jarê é a do “povo velho”, que

costuma se vestir com roupas brancas e realizar um ritual específico junto aos tambores.

Liderada por Oxalá ou por Baluaê, a chegada dessas entidades é precedida por cantigas

específicas cuja execução é acompanhada pelo gesto ritual, empreendido por todos os

presentes, de levar uma das mãos ao chão, mantendo-a ali durante alguns instantes, seguindo a

iniciativa do chefe da casa. Entre os membros do povo velho costumam estar também Nanã e

Nagô, entidades femininas ligadas à lama, substância que elas recriam num dos confins do

salão por meio da fricção constante e cadenciada de uma quantidade considerável de azeite de

dendê, derramado pelo dono da casa, no chão de terra batida do salão. Como mencionado

anteriormente, os iniciados que incorporam espíritos do povo velho costumam ir


307

imediatamente ao chão e se locomover com muito custo, apenas engatinhando, bem como não

serem capazes senão de balbuciar suas cantigas, em geral reconhecidas mais por sua melodia

e ritmo do que pela letra, que articulam com dificuldade.

Todo jarê costuma ser encerrado com incorporações a uma entidade que parece ser,

contudo, o oposto das demais do povo velho, por sua jovialidade e vivacidade. Trata-se de

Cosme e Damião – dupla à qual se refere também em conjunto sem o artigo ou somente pelo

nome do primeiro –, uma das mais importantes entidades do jarê, motivo pelo qual a maior

parte das festas costuma acontecer no mês de setembro, no qual é comemorado o dia em

homenagem a esses santos gêmeos, de acordo com o calendário católico. Muitas festas

dedicadas a Cosme são realizadas em Lençóis, algumas delas podendo mesmo acabar

resultando em pequenos jarês caso a entidade decida incorporar em algum dos presentes.

Quando se manifesta, em um ou mais de um dos iniciados num jarê, Cosme Damião assume

comportamento infantil, com voz aguda e cometendo erros, especialmente trocas fonéticas, ao

falar, de uma maneira que lembra o processo de aquisição da língua pelo qual passam as

crianças. Ele se mostra dono de um senso de humor incomparável, estando sempre disposto a

traquinagens e solicitando presentes e dinheiro (se satisfazendo imensamente com moedas de

valor irrisório) dos frequentadores da casa que ainda se encontram acordados após muitas

horas de celebração. Àqueles que procuram satisfazer os desejos da entidade, recomenda-se

entregar qualquer tipo de objeto sempre em múltiplos de dois, número-chave para Cosme, a

todo momento lembrado em suas cantigas. Cosme Damião também se compraz em entregar

balas, sempre duas a duas, a todos aqueles que se encontram no local lhe prestigiando, dando

especial atenção às crianças – e mais ainda no caso de gêmeos – que faz questão de tirar do

chão, abraçar e abençoar. Cosme em geral finaliza sua participação, e com ela o jarê como um

todo, lambuzando os participantes da festa, que devem em seguida lamberem-se para se

limparem, com mel ou dendê. Se alguém não deseja sujar suas mãos e suas roupas, pode
308

tentar evadir-se da entidade, o que por vezes gera perseguições cômicas. Voltarei à

importância de Cosme para o jarê no final da conclusão da tese.

Além das entidades mencionadas, existe um outro grande conjunto de espíritos ditos

“da esquerda”, o já mencionado “povo da porta” – que só raramente comparece diretamente

no salão de uma casa de culto – composto pelos exus. No dia da realização de um jarê, na

prática os exus são as primeiras entidades a serem reverenciadas, com obrigações rituais e

cantigas feitas no entorno das propriedades e junto ao caramanchão, executadas somente por

homens, quase sempre acompanhados de perto pelo curador da casa. Apesar de também ser

possível reconhecer exus específicos que se anunciam quando se manifestam de algum modo

num adepto – como Zé Pelintra, Tranca-Rua, Pomba-Gira –, a maior parte desses espíritos

existe e atua acoplada aos caboclos, às entidades “da direita”. Assim, os exus são chamados

igualmente de “escravos” e “mensageiros” das demais entidades, por serem responsáveis pela

realização de tarefas, envio de recados e colocação em movimento de forma geral das forças

envolvidas no jarê. Apesar de não terem roupas de tons específicos, por dificilmente se

incorporarem nos adeptos, as cores preto e vermelho são a eles associadas, sendo escolhidas

para adornar suas moradas e utilizadas nos trabalhos rituais que eles facilitam. Suas oferendas

são geralmente deixadas em encruzilhadas, cruzamentos dos caminhos, sendo toda forma de

passagem tema sobre o qual exercem sua influência. Daso, o curador que acabou sendo o

responsável pelo trabalho de reforço de Áurea, era bastante propenso a elucubrações a

respeito dos exus, comentando com seus filhos-de-santo como eram poucos os capazes de ver

que sempre que um caboclo chegava no salão para se manifestar numa pessoa, o exu que lhe

trouxera ficava do lado de fora aguardando o término da incorporação para levar o outro

espírito de volta à morada de onde viera. Aconteceu certa vez do Zé Pelintra de Daso se

manifestar após um ritual e reclamar da importância excessiva que parecia estar sendo

concedida ao Eru do curador, que acabara de deixá-los, lembrando aos presentes que sem a
309

ação do exu o caboclo não teria como chegar ao pagodô. Os exus são volúveis por excelência,

capazes tanto de unir como de separar, explicava Daso, ambas as ações referindo-se não

somente a pessoas como a outras forças e entidades, objetos, operações, desejos331.

Todas as entidades podem, de um modo ou de outro, transmitir mensagens e avisos,

bem como realizar ou ter a si direcionados pedidos e promessas. As festas de jarê são

momentos propícios à comunicação mais direta de pessoas com as entidades de outrem,

durante as incorporações, não sendo incomum ver um dos frequentadores da casa chamando

de lado um caboclo manifestado para trocarem palavras ao pé do ouvido. As entidades por

vezes aproveitam a ocasião para deixar os mais diversos recados para seus próprios aparelhos,

termo por vezes usado para se referir às pessoas que as incorporam, de orientações dietéticas a

advertências comportamentais mais graves. Compromissos assumidos por pessoas com os

espíritos são, via de regra, encarados com grande seriedade, da mesma forma como se confia

no empenho e no resultado vindouro das promessas feitas pelos caboclos – diferentemente das

promessas feitas por “carne podre”, como ocasionalmente são chamados os seres humanos em

contraste com os espirituais. Há quem arrisque a ira das entidades ao adiar a execução de

obrigações com elas admitidas em troca da obtenção de determinados efeitos, ancorando-se,

para justificar a procrastinação, seja em contratempos súbitos, seja na enunciação de uma

promessa assumida com termos vagos, seja ainda em sua própria força pessoal. Mesmo os

mais audaciosos não duvidam da possibilidade de que venham a ser castigados pelas

entidades, por mais que a punição possa vir muito tempo depois do que se imaginaria.

Até mais do que a realização dos trabalhos rituais que podem acontecer nas cerimônias

de jarê, os principais motivos que trazem as entidades aos salões estão ligados às diferentes

formas de serem reverenciados pelos frequentadores das casas de culto. Como constantemente

331
A respeito de seu papel nas religiões de matriz africana, fala-se do “princípio dinâmico” atribuído a essas
entidades e pelo qual são responsáveis, agindo enquanto “centro[s] de comunicação” aos quais se atribui o
equilíbrio dos elementos do cosmos (Elbein dos Santos 1975: 169-170, 180).
310

lembram os adeptos, os jarês são festas em homenagem aos espíritos, que se manifestam nos

iniciados para que possam ser devidamente adorados e presenteados, bem como para terem

oportunidade de dançar e conferir bênçãos àqueles que presenciam suas vindas. As chegadas

das entidades são sempre acompanhadas por saudações, em geral tanto palmas como abraços

rituais, estes oferecidos a alguns ou mesmo a todos os presentes, cumprimentados um a um.

No abraço em si o espírito manifestado estende sua mão para alguém que a recebe e,

mantendo o aperto, ambos aproximam-se enquanto erguem as mãos unidas entre seus corpos

até um pouco acima da cabeça. Ato contínuo, soltam-se as mãos que são passadas por cima

dos ombros um do outro, iniciando o abraço – normalmente primeiro levando-se a cabeça

para a direita e depois para a esquerda. Certas vezes a saudação ritual pode ser incrementada

quando a entidade se ajoelha antes de estender a mão para uma pessoa, que a levanta quando

aceita o gesto; noutras vezes é a pessoa que pode se ajoelhar antes de ser cumprimentada:

ambos os gestos são denotações de respeito, ainda mais marcados e demorados quando

envolvem aqueles entre os quais há relações de parentesco, em especial as de

apadrinhamento332. O mesmo costuma acontecer com as conversas e trocas de presentes, e

muitas das entidades fazem questão de serem reverenciadas com fumigação de incenso ou

ainda com fogos de artifício – dificilmente ausentes nos jarês e usados igualmente no início de

toda cerimônia –, além dos diversos objetos que lhes são eventualmente prometidos e

entregados.

Ao falar das manifestações das entidades durante os jarês, procurei manter recorrente

uma indistinção a respeito da agência dos envolvidos. Frequentemente, ao falar sobre o

fenômeno, as pessoas que vão aos jarês são não exatamente ambíguas, mas ambivalentes:

enfatizam por vezes a ação da pessoa que incorpora, manifesta um espírito, noutras a da

entidade que se incorpora, se manifesta nos corpos dos adeptos. Da composição da qual

332
Ver foto 74 no anexo III.
311

participam, em diferentes graus, seres humanos e espirituais, diz-se que se trata de alguém que

se encontra “atuado”, uma pessoa cujas ações são motivadas por vontades múltiplas

sobrepostas. A chamada “natureza” de cada pessoa é formada por um conjunto variável de

volições que ocasionalmente coabitam um mesmo corpo, aproximando-se e afastando-se dele

conforme cada momento. Ao nascer, estabelece-se um temperamento determinado à natureza

da pessoa, um somatório de forças que indicará se ela será ou não alguém suscetível à maior

ação das entidades, se carregará ou não consigo a sina de poder ser tomado por elas durante os

jarês. Enquanto as mulheres, de maneira geral, nascem mais recorrentemente com uma

natureza cuja configuração lhes torna mais aptas a receberem as entidades, há alguns homens

que compartilham destino semelhante, entre os quais estão os mais capazes para se tornarem

curadores. A maior parte dos homens, de todo modo, costuma ser, por sua natureza, infensa às

incorporações. Os adeptos, especialmente aqueles que recebem os espíritos, costumam se

perguntar sobre os motivos dessa ausência, alguns sugerindo – não sem alguma apreensão –

ser possível que existam pessoas que simplesmente não têm entidades. Há outras hipóteses

para a ausência das incorporações, como me disse, por exemplo, certa vez uma senhora, me

tranquilizando a respeito do fato de eu não sentir nada “de diferente” durante os toques, pois

havia pessoas cujos caboclos podiam estar por demais ocupados batalhando espiritualmente

pelo bem de seu carnal para nele se manifestarem. A natureza pessoal não é, contudo,

imutável, podendo ser em alguma medida modulada de acordo com o passar do tempo:

pessoas que jamais incorporaram entidades podem passar a fazê-lo, pelos mais diferentes

motivos – passar a frequentar mais cerimônias de jarê, herdar entidades deixadas por seus

antepassados quando estes falecem, passar por um trabalho de iniciação.

Incorporar uma entidade durante um jarê é uma forma de prestar deferência à casa de

culto onde acontece a festa. Enquanto pessoas mais jovens ou com menos tempo de iniciação

costumam ter mais dificuldades em tentar conter as manifestações dos próprios caboclos,
312

sendo até por isso desencorajadas por seus pais-de-santo a frequentarem celebrações em

outras casas de culto, as mais antigas e com maior força pessoal são capazes de desestimular a

incorporação de suas entidades quando assim o desejam. Nos momentos em que não há

espíritos manifestados no salão, sempre marcados por alguma apreensão, entoam-se cantigas

que convidam uma determinada entidade a comparecer ao pagodô, e os presentes trocam

olhares e dirigem suas atenções àqueles entre eles que sabidamente costumam incorporar o

caboclo em questão, estimulando-o a vir. Há muitas outras maneiras de induzir a chegada das

entidades, seja recorrendo a cantigas específicas caras a algum dos presentes, seja pelo uso de

objetos rituais – como a campa –, seja ainda pela ação de caboclos já incorporados se

dirigindo a outros adeptos – cumprimentando-os com abraços, apertos de mão ou pela união

de suas cabeças. O início da incorporação de uma entidade numa pessoa é assinalado por

espasmos de arrebatamento e manifestações vocais curtas, marcadas e compassadas, uns e

outras ocorrendo com brevíssimos intervalos entre si. As primeiras costumam acontecer com

maior ênfase no caso das mulheres, as segundas nas incorporações que ocorrem em homens,

via de regra marcadas por uma maior sobriedade. Normalmente, em poucos instantes a

incorporação se concretiza, tendo por resultado a chegada da entidade que se coloca de pé,

quase sempre com os olhos fechados (total ou parcialmente), e se dirige aos tambores por cujo

rufar de boas-vindas é atraída. Caso o iniciado atuado esteja trajando peças de vestuário ou

ornamentos que impeçam a movimentação considerada adequada pela entidade, os itens serão

removidos pelos adeptos que se encontrarem perto dela, o mesmo tratamento sendo

dispensado a quaisquer objetos que se julgue poderem machucar a pessoa. Desse modo, são

removidos calçados, relógios, anéis e por vezes brincos e pulseiras, ocasionalmente com

indicações da entidade mas sem que ela própria jamais os remova. Somente os colares de

contas costumam ser mantidos, por vezes também resultando em seu rompimento no decorrer

da incorporação – encarado ou somente como mau portento, ou como evidência de proteção


313

contra uma ação perniciosa malograda enviada contra o adepto. A maior parte das entidades,

ao chegar, procede a um ou mais cumprimentos rituais aos presentes (em geral com a

fórmula: “Deus lhes pague, a caridade de vocês!”), bem como, no caso de algumas das mais

importantes ligadas à casa em questão, oferece saudações aos tambores e às portas e

extremidades do salão, dirigindo-se ao chão num mergulho repentino e lá encostando sua

cabeça.

Os frequentadores dos jarês mencionam com alguma frequência o quão penoso e

desgastante é receber uma entidade, algo também evidenciado pelas muitas tentativas feitas de

impedir sua vinda, sendo raro o jarê em que não aconteçam ao menos algumas. Para não

“tombar no santo”, que é outra maneira de falarem sobre o processo de incorporação, há

pessoas que podem tentar literalmente sair correndo do salão no momento em que começam a

pressentir a chegada de suas entidades, por mais que as fugas quase inevitavelmente acabem

por se demonstrar inúteis: diversas vezes as pessoas são tomadas e, cambaleantes, trazidas de

volta ao salão por suas próprias entidades. Algumas crianças que frequentam os terreiros se

animam diante da possibilidade de, no futuro, virem a ser elas também tomadas por caboclos

– sentimento por cuja demonstração são admoestadas pelos adultos, que lhes afirmam

peremptoriamente que o jarê não é algo com que se deva brincar e que a aflição inerente às

incorporações é algo que faz com que não sejam desejadas. Uma minoria entre as crianças

desde cedo se ressente de ver os adultos, especialmente seus familiares, atuados, desejando

jamais ter de passar pelo mesmo destino. Esse foi o caso de uma das comadres de Elias

quando era jovem, como ela nos contou, tendo chegado a comentar em voz alta, na época, que

nunca viria a compartilhar da sina de sua mãe, chegando a desafiar os adeptos do jarê a fazê-

la dançar e ser tomada pelas entidades. Como estes predisseram, continuou ela, a jovem

pagaria caro pela provocação, e alguns anos depois seus caboclos começaram a se manifestar,

fazendo com que hoje ela tivesse se tornado, assim como sua mãe, uma filha-de-santo,
314

frequentando alguns dos jarês de Lençóis com grande assiduidade – “e com muito gosto”,

completou faceira.

Quando incorporam suas entidades, os frequentadores dos jarês passam por uma

transformação sensível, comumente acompanhada por uma alteração de sua postura,

semblante e tom de voz – por vezes acompanhada por uma de dicção. Caso falem sobre seus

carnais, enquanto incorporados, os caboclos se dirigem a eles usando a terceira pessoa, já que

não estão falando de si mesmos. Ao dançarem e realizarem rituais nos pagodôs, os adeptos

atuados exibem uma vitalidade impressionante, que muitas vezes se esvai quase

completamente quando são deixados por suas entidades, ocasião a partir da qual costumam

precisar ser amparados pelos presentes, que os dirigem a um local para se sentar e recuperar

as forças. O momento no qual um espírito deixa seu aparelho, que ocorre em meio a canções

de despedida para a entidade em questão, costuma ser igualmente acompanhado por uma série

de arroubos, mais curta em sua totalidade do que os que ocorrem em sua chegada, e

terminando num longo suspiro acompanhado pela abertura dos olhos do adepto. Nos terreiros,

a despedida dos iniciados do local se dá junto ao seu pai-de-santo, mormente levando a

cabeça a seu colo ou a sua mão, ou ainda no decorrer de um abraço ritual. Por sua vez, no

caso das despedidas de visitantes que tenham sido iniciados por outra pessoa, ocorre o mesmo

que se processa em casas de culto sem curadores: alguns dos presentes – em geral incluindo

padrinhos e madrinhas do carnal, se estiverem presentes – se dispõem num círculo em torno

da pessoa para ampará-la quando a entidade a deixar. Terminada a manifestação do caboclo, o

adepto encontra-se sempre num estado de estupefação, seu olhar perdido avaliando o local

onde se encontra, sem dúvida distinto daquele no qual estava quando foi tomado por sua

entidade e do qual sua última recordação sente falta, como será visto adiante. A despedida das

entidades do líder de uma casa de culto em seu próprio templo ocorre de maneira ligeiramente

diversa, já que ele se dirige, incorporado, para o quarto de santo, onde será acudido por um ou
315

mais de seus auxiliares rituais e onde por vezes trocará de vestimenta. No caso de uma

incorporação por um exu, em vez de se dirigir para o quarto de santo a entidade levará o

curador na direção oposta, para o lado de fora do pagodô. Em ambos os casos, deixa-se o

salão passando pelos portais andando sempre de costas, sua atenção continuamente voltada

para o centro do pagodô.

Ainda mais do que ocorre durante as chegadas, nem todas as despedidas dos caboclos

se processam plenamente a contento. Por vezes pode acontecer, por exemplo, de caboclos não

desejarem ir embora, expressando com gestos e palavras sua vontade de continuarem sendo

venerados no salão para além do período que o líder da casa julga adequado. Pode ser o caso

de um capricho da entidade, pode ser que ela deseje punir seu aparelho por alguma

impropriedade cometida, para tanto forçando-o a hospedá-la por tanto tempo que quando

finalmente deixá-lo este se encontrará a ponto de desmaiar. Assim como quando os tocadores

e demais presentes estimulam um caboclo a permanecer muito mais tempo do que o

recomendável, é comum ouvir nessas ocasiões os filhos-de-santo comentarem, após o término

da incorporação – e não inteiramente desprovidos de seriedade – que parece que estavam

tentando lhe matar de tanto dançar. Os casos mais dramáticos são os similares ao

exemplificado por Áurea, no qual ela ficou desacordada após o último caboclo da noite tê-la

deixado, e que vi acontecer com ao menos uma outra pessoa, além de terem me contado sobre

episódios com outros adeptos. Em ocasiões como essas, nas quais a pessoa precisa ser

levantada, os envolvidos por vezes se perguntam o que exatamente terá acontecido para que a

pessoa não volte a si: enquanto uns defendem que se trata de uma espécie de atraso no retorno

do adepto em si, outros cogitam a possibilidade de que uma outra entidade tenha tomado o

lugar da primeira com intuitos nada louváveis. De todo modo, finda uma incorporação, o

filho-de-santo não guarda recordação do que se passou enquanto estava habitado pela

entidade.
316

Não ter qualquer lembrança ou memória daquilo que aconteceu durante a manifestação

de uma de suas entidades é exatamente a forma como os frequentadores dos jarês falam

acerca dos momentos em que passam atuados. Quando uma pessoa volta a si, após a

despedida de um espírito, sua expressão facial e os comentários que faz indicam o quão

atônita e perplexa ela se encontra, também em função de ter passado, sem ter memória do

processo, de uma posição de participante espectador, sentada junto aos demais frequentadores

da casa, a uma de participante avistado. Já se mencionou como os fluxos de atenções têm

efeitos sobre aqueles a quem são dirigidos, de certa forma penetrando os iniciados e os

tornando mais propícios às incorporações. Ao manifestarem suas entidades, os adeptos

passam a ocupar o proscênio de uma festa de jarê, o centro do salão da casa onde a cerimônia

se desenrola333. Durante a incorporação, ao contrário de quando estão “sãos”, como falam a

respeito das pessoas quando não estão manifestando suas entidades, não é possível ter

controle de suas ações, que passam ao domínio do espírito que naquele instante lhe habita.

Ainda que alguns iniciados deem a entender que uma pessoa ao incorporar um caboclo passa

a não ter consciência de nada do que acontece a partir da chegada do espírito, há quem prefira

enfatizar somente o fato de não se ter controle e lembrança a respeito das ações então

tomadas, cogitando, numa fina distinção, a possibilidade de que de maneira bastante tênue o

iniciado em si possa continuar presente durante a manifestação, um pouco ao modo como as

próprias entidades dele se acercam continuamente mesmo quando não está atuado.

Por mais que todos concordem que as entidades, com a possível exceção dos exus, não

guardam mágoas com os seres humanos, elas podem ser por vezes mobilizadas em função de

disputas pessoais, e é comum que se diga que filhos-de-santo que costumam incorporar as

mesmas entidades – especialmente caso se trate de seu caboclo mais importante – tendem a

333
Ao longo de uma cerimônia, os adeptos do jarê se movimentam entre locais de observação e se alternam na
experimentação de perspectivas subjetivantes e objetivantes, participantes diretos no centro do salão tornam-se
espectadores rotineiros sentados nos bancos em seu entorno e vice-versa (Rabelo 1990: 272).
317

não se dar muito bem. Como os espíritos fazem o possível para proteger os seus, inimizades

podem acabar tomando a forma de disputas entre os santos, especialmente pelo fato de no jarê

as incorporações de pessoas diferentes com uma mesma entidade acontecerem

simultaneamente. Um dos eventos mais impressionantes de uma cerimônia, que pode

acontecer tanto no âmbito de uma altercação entre caboclos quanto como maneira de

comprovação da genuinidade das incorporações e da força pessoal dos envolvidos, é o ritual

de pisotear brasas ardentes, chamado nas letras das cantigas e pelos próprios caboclos de

“pisar no ouro”. Quando deseja realizá-lo, um caboclo puxa uma das cantigas específicas

ligadas ao ritual, sendo em geral acompanhado pelos presentes a não ser que o chefe da casa

sinalize contrariamente. Uma pessoa é instada a se dirigir à fogueira que deve permanecer

acesa do lado de fora da casa em todo jarê, recolher com uma pá alguns punhados de brasas

vermelhas – tomando cuidado, me disseram, para não carregar com elas muitas cinzas, que

fazem acumular ainda mais calor no conjunto – e depositá-las no centro do salão. Em seguida,

o caboclo que deu início ao ritual e os demais iniciados que estiverem incorporados, todos

descalços como de costume, pisoteiam o apanhado velozmente até que não reste nenhuma

brasa acesa. Depois que as entidades se despedem, seus pés não ficam com marca alguma e os

adeptos não sentem dor, a não ser que um deles estivesse apenas representando sua

incorporação ou que o ritual tenha sido motivado com desejo de causar mal a um dos

envolvidos, caso no qual o caboclo que o desencadeou não protege seu carnal das

queimaduras. Além desse ritual de disputa, que presenciei diversas vezes, os filhos-de-santo

mais antigos mencionaram outro, o de “comer bolas de fogo”, que envolvia a ingestão de

alguma espécie de bolinho – possivelmente um acarajé – que devia ser apanhado pelas

entidades diretamente com as mãos do interior de um tacho com azeite de dendê fervente.

Nem toda incorporação se concretiza plenamente, sendo muitos os possíveis graus em

que, e circunstâncias nas quais, elas acontecem. Diversas vezes, durante a chegada dos
318

espíritos, as manifestações das entidades parecem encontrar dificuldade em se consolidar,

podendo ser estimuladas ou suprimidas pelas ações dos presentes, em geral do líder da casa,

mas não somente. Nesses casos, em que acontecem as “irradiações” ou “seguimentos”, os

adeptos mais antigos buscam controlar as incorporações parciais, que em geral acometem as

pessoas mais jovens ou com pouco tempo de iniciação, já que se considera que seus caboclos

ainda são jovens, inexperientes, brutos – também no sentido de violentos, porém,

principalmente, no de não trabalhados, não lapidados, como são chamados os diamantes que

ainda não foram transformados em brilhantes334. Quando deseja estabilizar uma incorporação,

um curador costuma abraçar ou levar sua mão à cabeça do iniciado manifestado, que é

orientado pelos demais até seu pai-de-santo para que não se dirija erroneamente para outras

pessoas – caso no qual se diz com graça que se trata de um caboclo “extraviado”. Quando

alguém deseja por qualquer motivo interromper uma incorporação em vias de se concretizar,

pode tentar fazê-lo oferecendo a si próprio para receber a entidade, capaz de ser transmitida

por meio de contato corporal, seja com um aperto de mão firme, um abraço ou mesmo com a

aproximação e o toque das cabeças dos envolvidos. O processo pode ser iniciado pela própria

pessoa, aos primeiros sinais da manifestação da entidade, expediente ao qual Elias, por

exemplo, recorria frequentemente, sendo amparado por uma de suas madrinhas que

ocasionalmente recebia entidades em seu lugar.

A transferência de caboclos em via de incorporação é uma das muitas maneiras pelas

quais alguém pode manifestar uma entidade que não seja sua, algo que também pode

acontecer mesmo sem a presença do adepto que ela costuma habitar, por vontade da própria

entidade. Em ambos os casos, o espírito manifestado pode ser reconhecido por uma forma

característica de dançar ou mesmo por meio de uma afirmação verbal própria comunicando

aos presentes, muitas vezes de modo críptico, de quem se trata. Os muitos momentos de

334
Como já se sugeriu anteriormente (Goldman 2009: 127).
319

contato entre os iniciados, que evidenciam uma considerável permeabilidade dos corpos dos

frequentadores dos jarês à ação das entidades, nem sempre têm como desfecho a transferência

direta de uma entidade de uma pessoa para outra. Até mais frequentemente, pode acontecer de

a proximidade servir de estímulo para que ambos terminem incorporando suas versões da

entidade cultuada no momento, forma pela qual é possível também despertar numa pessoa que

jamais tenha dançado determinada entidade sua primeira incorporação da mesma, como foi o

caso quando a cobiçada Iansã de Áurea provocou uma manifestação em uma de suas

afilhadas. Mais cedo, no mesmo dia, e só parcialmente de brincadeira, a afilhada comentara

com Áurea sua vontade de um dia, se possível, poder receber uma entidade tão gloriosa

quanto a que acompanhava sua madrinha. O elogio a sensibilizou, e ela disse à afilhada que

não descartava a possibilidade, tendo ficado sugerido que Áurea era capaz de exercer

influência sobre a ação de sua entidade, e que poderia tentar convencê-la a transitar se assim o

desejasse – indicando com isso também que a jovem seria uma candidata a, no futuro, receber

o espírito como herança. A terceira possibilidade de transferência, na qual não ocorre nem

uma passagem direta, nem uma incorporação simultânea, envolve uma transmissão

energética, por meio da qual um iniciado deixa de, no momento, receber sua entidade e a

pessoa que o auxilia passa a receber a sua própria, ou seja, aquela que já está habituada a se

manifestar nele, e não a do primeiro.

A grande permeabilidade dos corpos dos adeptos, da qual a ação das entidades toma

proveito para que elas se multipliquem nas casas de culto, é mais um dos motivos que leva à

admirável quantidade de incorporações que costuma ter lugar durante os jarês. Não é

incomum que, ao longo de uma única noite, uma mesma pessoa manifeste quase uma dezena

de entidades distintas, especialmente no caso das mulheres e dos líderes das casas. Um bom

amigo comentou certa vez como, ao constatar a propensão de uma antiga filha-de-santo a

receber com relativa facilidade uma vasta quantidade de entidades, decidira somar quantas
320

incorporações ela protagonizaria numa festa particularmente prolífera: sem esconder um tom

de voz ligeiramente jocoso, disse-me que foram não menos de 18. Em outra ocasião, Áurea

fez menção de começar a fazer troça da facilidade com que essa senhora incorporava os

espíritos, já que bastava um olhar do pai-de-santo para que ela fosse tomada por suas

entidades. Áurea, contudo, rapidamente se censurou, lembrando que da última vez que, ao

passar por ela na rua, a caminho de um jarê ao qual essa senhora nem compareceu, caçoara

dessa sua inclinação, terminou sendo tomada pelas entidades da mesma a noite toda, numa

vingança poética que, ela disse, ao mesmo tempo a forçava a reconhecer a realidade daquelas

incorporações e não voltar a fazer troça da senhora. Episódio similar ocorreu quando conheci,

na cidade de Andaraí, uma das mais antigas filhas-de-santo de Pedro de Laura, que por anos

ficou responsável por cuidar da manutenção cotidiana do Palácio de Ogum. Muitos dos

adeptos ali presentes que a visitavam queriam ouvir suas histórias e anotar letras de cantigas,

e ninguém estranhou muito quando a anciã foi subitamente tomada por uma de suas entidades

ao ouvir músicas de jarê que haviam sido gravadas pelos presentes. Enquanto em outra

situação o acontecimento levantaria suspeitas, os presentes enunciaram três motivos que

haviam culminado na manifestação: a qualidade do som da gravação estava impecável; a

senhora ficara muitos anos sem receber suas entidades; e, como Áurea lembrou por fim,

estávamos na Quaresma, época na qual os iniciados que não haviam participado de

cerimônias de fechada num terreiro ficavam especialmente suscetíveis à ação dos espíritos.

O jarê oferece um modelo de relação entre seres humanos e suas entidades que

prioriza menos o entendimento dessas últimas como partes constitutivas dos primeiros, como

se costumou entender para o candomblé, do que sua concepção enquanto dons espirituais,

dádivas que possuem, entretanto, a capacidade de agir sobre seus detentores tanto quanto

podem ser por eles mobilizados335. Só muito raramente costuma-se fazer menção aos adeptos

335
Apontando assim para um entendimento da sociedade concebida como a possessão – em português talvez
seria possível dizer mesmo “tenência” – recíproca, sob formas extremamente variadas, de todos por cada um,
321

apondo-lhes o nome de uma de suas entidades: dificilmente se ouve alguém falar de Áurea de

Iansã, enquanto às vezes é possível distinguir claramente quando se trata da Iansã de Áurea,

mesmo que ela se manifeste em outra pessoa. Não se diz recorrentemente que as pessoas

“são” das entidades, mas que elas as “têm”, que elas são capazes de recebê-las. As

incorporações no jarê parecem evidenciar menos a existência contínua das entidades nos

corpos dos adeptos – que seriam ativadas quase como um revés da pessoa durante as

manifestações –, do que seus devires nos humanos, que funcionam justamente como

aparelhos a captar determinadas frequências, sintonizar forças específicas – sejam aquelas

com as quais está habituado, sejam as de outrem que se coloquem em seu caminho – por meio

da ação dos toques, das cantigas, dos rituais336. Além desses, há outro facilitador igualmente

importante para que um iniciado se torne apto a receber as entidades em seu corpo, ao qual já

se aludiu, a saber, as vestimentas que utiliza numa festa e as que lhe são oferecidas no curso

das incorporações.

O tratamento concedido a grande parte da indumentária usada pelos adeptos do jarê

também se conecta à relativa transmissibilidade das entidades. Ainda que existam conjuntos

pertencentes a determinadas pessoas e suas entidades, feitos muitas vezes com grande esmero

e consistindo num dos maiores presentes que alguém pode oferecer a um adepto, não há jarê

que aconteça sem a presença de determinadas peças de vestuário que podem ser usadas por

qualquer um dos frequentadores ao manifestar um caboclo, principalmente saias mas também

como no caso das mônadas que se interpenetram reciprocamente (Tarde 1895: 79-81, 112, 115). Preferindo
traduzir o francês “avoir” por “haver” chega-se, por consequência, à substituição da ideia de existência pela de
“havência”, “a potência do evento, a preensibilidade do que ocorre” (Viveiros de Castro 2005: 11), indicando um
conjunto muito mais rico do que aquele que o verbo “ser” delimita (Latour 2005: 217). A opção é feita inclusive
em detrimento do verbo “ter”, que “conserva o aspecto tranquilizante e sólido de uma posse”, já que o haver
“envolve a ideia de eclosão, de evasão e de flexibilidade” (Santoro 2005: 543-544 apud Vargas 2007: 43).
336
Trata-se, antes de tudo, de uma questão de ênfase: no jarê, as incorporações evidenciam as formas de
convivência, coabitação e povoamento das entidades com os seres humanos, que podem, como que por
antiguidade, desembocar na composição das pessoas quando estas cultivam o hábito de recebê-las e mesmo
transmiti-las entre si. Em outro campo etnográfico, a inspiradora composição entre pessoas e espíritos por vezes
evidencia também relações como as de captura como um modo integral de constituição de seres (Siqueira 2012:
31, 34, 67, 111, 181).
322

torsos e outros itens. Diversas são as pessoas que podem comparecer aos jarês com calças

compridas, curtas ou vestidos inteiriços, até mesmo para desencorajar a ação dos próprios

espíritos a tomá-los durante as cerimônias. Quando, de todo modo, quase inevitavelmente

esses adeptos acabam recebendo entidades, estas se recusam a começar a dançar até estarem

vestidas minimamente a contento, o que costuma incluir saias no caso das mulheres e das

entidades femininas e a remoção da camisa no caso de homens recebendo entidades

masculinas. Os demais presentes ficam responsáveis por lidar com as demandas da entidade

ou de negociar com ela e convencê-la a dançar com o vestuário disponível, quando este não se

mostra plenamente satisfatório. Entre os iniciados, existem aqueles que preferem permanecer

com turbantes, seus caboclos interrompendo os passos de dança caso sua cabeça venha a ficar

descoberta, enquanto há outros que invariavelmente perdem suas coberturas e mesmo

preferem permanecer incorporados com os cabelos soltos e em movimento, motivo de orgulho

para muitas das mulheres mais jovens que os cultivam longos.

A maior parte dos iniciados usa um único traje ao longo de uma festa de jarê, seja um

conjunto mais simples ou uma roupa específica preparada para ser usada no culto, também

raramente havendo orientação para que os presentes se vistam com cores relacionadas às

entidades celebradas em festas determinadas, salvo o branco na festa de Oxalá – e mesmo

assim se trata de uma sugestão que, como afirmam, não traz repercussões se não puder ser

seguida. No jarê não é comum a utilização de uma ampla gama de adereços distintos de

acordo com cada entidade, bem como o estilo das vestimentas costuma variar bastante pouco,

ficando a ênfase mais nas suas cores do que necessariamente em seu formato ou em objetos

que as complementem, ainda que haja exceções. De toda forma, as roupas e ornamentos

usados durante uma incorporação também podem ser fruto de, e servir de estímulo a,

determinadas predisposições do temperamento da entidade. Os filhos-de-santo antigos da

Capivara se lembram da apreensão que envolvia a chegada do temido caboclo Sete-Serra,


323

uma das mais importantes entidades de Pedro de Laura, que visitava o pagodô em duas

versões distintas. Sempre que chegava ao salão, para cobrir a cabeça o espírito exigia ou seu

penacho, ou seu chapéu de couro: enquanto o primeiro indicava uma postura apaziguadora e

afável da entidade, tranquilizando seus filhos-de-santo, a utilização do segundo era

acompanhada por uma atitude mordaz e impiedosa, diante da qual os presentes se

acabrunhavam por recearem ser exemplados ao menor deslize. Áurea se recorda que, quando

vinha realizar um trabalho ritual, Sete-Serra – que fora responsável pela iniciação dela e de

quem, disse, sempre continuaria a se considerar filha-de-santo – invariavelmente chegava em

sua versão ríspida.

Conforme comentam os iniciados, as roupas e ornamentos não são apenas formas que

servem ao auxílio do reconhecimento das entidades, mas objetos que em si ocasionam

transformações e carregam algo da força pessoal de seu proprietário e de seus espíritos. Até

por isso, as roupas de um curador, que podem mesmo chegar a muitas dezenas, são

cuidadosamente descosturadas durante o sirrum, o ritual funerário feito após sua morte, no

qual seus pertences são destruídos e despachados. Ainda que essa medida tenha sido

parcialmente tomada com muitos dos bens de Pedro de Laura, seus filhos-de-santo acabaram

guardando muitas de suas roupas no Palácio de Ogum, mantidas até hoje num grande baú e

periodicamente limpas, mas jamais retiradas da Capivara. Os trajes de um curador, em

especial, são, em certa medida, não só formas de intensificar sua proximidade com seus

espíritos: configuram materializações de parte dessa conexão e das forças envolvidas no

processo de incorporá-los. Como me contaram certa vez, depois que determinado pai-de-santo

decidiu abandonar sua sina e realizar, ainda em vida, seu próprio sirrum, desfazendo-se de

suas vestimentas rituais, uma das consequências menos graves que resultou do processo foi

ele ter – mesmo após ter retornado ao jarê – perdido contato absolutamente com uma de suas
324

entidades, que jamais veio a nele se manifestar novamente337. Em outro caso, um jovem e

ambicioso curador de Lençóis, que teve acesso às vestes cerimoniais de um grande pai-de-

santo já falecido da cidade de Andaraí, experimentou vesti-las e acabou enlouquecendo por

um tempo considerável, conforme disseram os filhos-de-santo, como consequência. O

resultado foi não só um castigo pela atitude desmedidamente audaciosa do jovem: tratou-se de

um efeito bastante direto da desproporção entre sua força pessoal e aquela pertencente ao

curador falecido, de certo modo presente em – ou acessível por meio de – seus indumentos.

4.4 Forças

Espirituoso como de costume, Daso, o curador que acabou responsável pelo trabalho

de reforço de Áurea, comentou certa vez como nele só duas coisas não prestavam: a cabeça e

os pés. Igualmente vivaz, Áurea respondeu de bate-pronto: “Então não presta é nada”,

arrancando risos de todos os presentes. Ainda mais que a agilidade dos seres humanos para

realizar os movimentos no jarê, chamada sua “pisada”, a das entidades recebia especial

atenção por parte dos adeptos, que dedicam diversas cantigas para falar a respeito da

integridade do caminhar, da importância de não escorregar ou cair, da beleza de, mesmo

diante das dificuldades, manter o equilíbrio e dançar de forma bela338. Seja realizando os

passos de dança, pisoteando as brasas ou caminhando sobre resíduos que se acumulam no

salão após os trabalhos rituais, todas ações feitas sempre com os pés descalços, as pisadas dos

337
Num episódio com o qual é possível estabelecer uma conexão, um dos caboclos de uma adepta do jarê em
Nova Redenção fez com que ela ateasse fogo a todas as suas roupas – provavelmente as não rituais – por ela se
teimar a reverenciar suas entidades (Rabelo 1990: 175). Também no candomblé se reconhece a ligação entre
uma pessoa e suas roupas rituais, bem como os efeitos que danos a estas podem causar à primeira, já que “as
roupas de uma pessoa, destruídas durante o rito, podem levá-la à morte: em verdade, destruir as vestes é já, de
certo modo, matar” (Serra 1978: 344).
338
Ver, por exemplo, algumas das cantigas dedicadas a Jurema, Mineiro, Nanã, Odé, Ogum, São Sebastião, Sete-
Serra, Sultão das Matas e Xangô, bem como as destinadas a qualquer caboclo, no anexo IV.
325

caboclos se encontram sob escrutínio permanente dos presentes. Os filhos-de-santo da

Capivara me contaram que, quando tomaram coragem para perguntar a uma das entidades de

Pedro de Laura a respeito dos seus passos de dança característicos, ela lhes disse que eles, que

antes haviam reparado no “olho da falsidade” de Sete-Serra, agora haviam se dado conta do

“pé da manobra” de Xangô. De modo geral, sempre que se manifestam nos salões, os

caboclos se mantêm num estado de agitação contínuo, caminhando de um lado para o outro

ou, no mínimo, cambaleando ligeiramente, quando não estão dançando. Entre as muitas

enfermidades trazidas para serem tratadas pelas entidades, como será visto adiante, recebem

especial destaque as formas de impedimento à locomoção, seja por inchaços nos pés e pernas,

problemas nas articulações dos membros inferiores, recorrência de tombos e quedas339. Pude

assistir, por exemplo, a um processo de cura de uma menina que mal conseguia caminhar e

teve de ser trazida carregada num carrinho de mão até o terreiro no qual realizaria seu

trabalho. Afirmava-se que “a entrevada” já tinha buscado diversas formas de tratamento sem

sucesso – seus pais eram pessoas com situação econômica acima da média para a região,

proprietários de um imóvel de uso comercial na sede do município. Após um longo ritual de

limpeza, no dia seguinte a jovem já andava sem precisar de nenhum apoio, e chegou mesmo a

nadar no rio em que a cerimônia foi concluída, para alegria de todos. A notícia de sua cura,

cuja descrição sempre enfatizava a recuperação de sua capacidade de se mover sozinha e

voltar a caminhar, espalhou-se pela cidade nos dias seguintes.

Já se comentou como as entidades podem fazer os adeptos caírem, sendo todo tombo

no jarê um motivo de preocupação adicional. Como também já foi visto, determinados

espíritos são capazes de fazer com que as pessoas se percam em trajetos que lhes são de outro

modo bastante familiares, quando se diz que ficam “fora do mapa”. As metáforas ligadas à

localização parecem extremamente apropriadas para a vivência com as entidades, que estão

339
O mesmo se passava em Nova Redenção, sendo recorrentes os tratamentos de problemas de mobilidade nos
adeptos (Rabelo 1990: 119).
326

elas também em movimento constante: chegam, dançam, se vão; de um lado, habitam suas

moradas num mundo ao menos parcialmente distinto do dos seres humanos, de outro, passam

a habitar os seres humanos em diferentes graus quando neles se incorporam340. Além de

outros temas, esses costumavam ser recorrentes nas longas caminhadas empreendidas

rotineiramente pelos habitantes da cidade, especialmente quando se deslocavam para ir aos

jarês. Muitos dos filhos-de-santo se lembram de como no passado chegavam a caminhar por

três dias consecutivos para ir a jarês em outros municípios, em jornadas praticamente tão

memoráveis quanto as próprias festas às quais compareciam. Elias foi quem primeiro me

indicou a importância fundamental de se ir caminhando junto com os filhos-de-santo mais

antigos para os jarês, já que durante as caminhadas de ida e volta pelas trilhas aconteciam

conversas e eram oferecidos comentários a respeito da cerimônia próxima que dificilmente se

repetiam em outra ocasião. Essas caminhadas se revelaram momentos verdadeiramente

peripatéticos, tanto para mim quanto para os demais jovens presentes, que aproveitavam o

trajeto para fazer perguntas e tirar dúvidas com os mais velhos a respeito dos segredos do jarê.

Estes, por sua vez, preenchiam as caminhadas com ensinamentos dos mais diversos, de nomes

e usos de plantas medicinais e rituais a cantigas cujo som se perdia pelas serras,

invariavelmente passando por histórias e rumores tanto sobre o passado como sobre o

presente.

Muitas vezes, o peripatetismo dessas caminhadas tinha caráter recursivo, já que um

dos temas mais caros ao jarê é justamente o do movimento341. De forma mais generalizada,

inúmeros dos fenômenos que podem ser conectados ao cotidiano dos adeptos do jarê

costumam ser chamados de “movimentos”, caracterizando ora doenças, alterações de

340
Daí também a riqueza e a beleza da noção de “povoamento” explorada em outro domínio etnográfico de
modo a dar conta das múltiplas composições que formam pessoas (Siqueira 2012: 92-95, 108-111).
341
O próprio tempo pode ser considerado como uma medida de distâncias geográficas, sua passagem sendo
aproximada a um deslocamento espacial. Nas movimentações que ocorrem no – e que são trabalhadas pelo – jarê
é igualmente importante a dos corpos nos espaços das casas de culto, sem que o conjunto se limite a essas:
movem-se as entidades, as narrativas, os olhares (Rabelo 1990: 129, 280-281, 302 nota 7).
327

temperatura, ações das entidades, ora locomoções propriamente ditas, mudanças de local de

moradia, passos de dança. O ritual de plantar a roça para dar início a um terreiro também pode

ser chamado de “assentar seu movimento”, conferindo-lhe uma paragem específica em torno

da qual o movimento passará então a acontecer: ele deixa de ser itinerante para se tornar

giratório, inaugurando certas possibilidades não tanto de acúmulo quanto de concentração. A

diretriz segundo a qual um curador deve evitar ao máximo se mudar após ter estabelecido sua

casa de culto não deve ser confundida com um elogio à imobilidade, muito pelo contrário: em

vez de abandonar o movimento, passa-se a se mover no mesmo lugar, sem deixar de se

transformar e operar transformações. Ou, como afirmava Seu Gilson numa versão bastante

característica do ditado popular: “Pedra que muda não cria limo”. Os movimentos

característicos à natureza de cada pessoa podem então atraí-las para a casa de culto, onde

passarão a ser tratadas e terão seu movimento pessoal acrescentado ao da comunidade em

formação. O próprio jarê é considerado fruto de um movimento possível – e ele próprio um

movimento específico – resultante da vinda de populações africanas para o Brasil, ficando

claras as aproximações que se pode estabelecer entre o culto e outras das produções

decorrentes da desterritorialização que sofreram. Como certa vez me disse Mussum, quando

falava a respeito de seu filho, o renomado capoeirista, a capoeira e o jarê se assemelhavam

por terem um mesmo enraizamento, sendo a África, além de tudo, o local “onde nasceu todo

movimento”.

Outro modo de falar a respeito desses movimentos, ainda mais recorrente no jarê,

envolve pensá-los a partir daquilo que os suscita, que os motiva, posto que resultam da ação

de forças, sendo esse o tema sobre o qual os adeptos do culto provavelmente se debruçam

mais meticulosamente. A “força” de que se fala no jarê se assemelha à energia que no

candomblé recebe o nome de “axé”, palavra esta que ouvi poucas vezes em Lençóis, em

contextos distintos da vivência do culto, empregada para desejar boa sorte e vigor físico aos
328

participantes de uma atividade qualquer (como as apresentações das quadrilhas). No jarê, ao

contrário, força é possivelmente um dos termos mais utilizados para se falar a respeito de

inúmeras realidades, sendo simultaneamente um elemento constitutivo dos seres – sejam eles

humanos, entidades, animais, plantas, determinados objetos e substâncias, e mesmo certos

gestos, frases e cantigas – e uma de suas propriedades, responsável por dar origem (ou

término) a movimentos e transformações. A força é uma virtude que, por mais que se possa

anunciar possuir ou não, se reconhece por meio de seus efeitos, tanto em ato como pelos já

concretizados, que deixam rastros. Ser capaz de manifestar um grande número de espíritos,

realizar procedimentos rituais com sucesso, não ser afetado por feitiços, todos são indícios de

que se possui força em quantidade considerável. Há, dessa forma, uma relação proporcional e

recíproca entre, por um lado, a intensidade das forças que constituem um ser e, por outro, sua

capacidade de colocá-las em ação para obter determinados efeitos. Quanto mais forte é um

curador, por exemplo, maior sua capacidade de realizar iniciações; reciprocamente, quanto

mais trabalhos rituais realiza, maior se torna sua força pessoal. O mesmo pode ocorrer com

objetos: quanto mais força existe numa pedra de raio, maior é sua capacidade de agir sobre o

mundo, por exemplo atraindo humanos.

Assim, vê-se como, em determinada medida, para o jarê todos os seres são resultado

da aplicação de forças específicas, do empreendimento de alguma espécie de trabalho por

parte de seres que, eles próprios, são também forças. O mundo natural, segundo os adeptos do

culto, é constituído por excelência de seres criados pelas entidades, pelos caboclos, sendo as

plantas, animais e objetos ao mesmo tempo formados por essas forças e repositórios delas:

são simultaneamente frutos e veículos da ação dos espíritos. Os homens também são parte do

mundo natural, bem como suas criações, ainda que estas muitas vezes se encontrem num grau

de pertencimento mais afastado da ação originária dos caboclos, em geral possuindo menos

força do que os objetos criados diretamente pelas entidades. Do ponto de vista dos seres
329

humanos, de toda forma, nem toda criação do mundo natural encontra-se devidamente pronta

para ser utilizada, podendo – ou devendo –, portanto, ser concluída, ou melhor: aprontada342.

É o que ocorre com as pessoas iniciadas no jarê, das quais se diz também após o processo

ritual que foram “feitas”, passando então a ser capazes de ver harmonizarem-se as forças que

as constituem, podendo estas ser mobilizadas para a produção de efeitos visando ao bem dos

iniciados. Sob mais de um aspecto, a iniciação no jarê é uma maneira de aproximar os seres

humanos dos caboclos, também por serem estes últimos duplamente responsáveis por sua

composição, por meio de uma transformação que passa a ser necessária conforme se

constatem na vida de uma pessoa sinais específicos. A aproximação é feita justamente com

um ritual denominado “trabalho”, já que é preciso dispêndio de energia para a obtenção da

transformação. Quando concluída, a qualidade da feitura irá variar na proporção inversa à

evidência de sua realização, posto que os adeptos afirmam de maneira bastante generalizada

que obras realmente bem acabadas são aquelas que melhor ocultam sua artificialidade 343. Ou,

como afirma um dos ditados preferidos de Elias: “Cabo bem botado, parece que foi nascido”.

Ainda que qualquer pessoa possa, teoricamente, vir a ser iniciada no jarê, este não é

um destino reservado a toda pessoa, pelos mais diferentes motivos, conforme dizem. Entre

eles figuram tanto um afastamento muito amplo das entidades – que, como visto, leva os

adeptos a conjecturarem se é possível que, no extremo, existam pessoas que não tenham

caboclos – como uma proximidade já de saída muito excessiva. Desvenda-se assim a aparente

contradição de uma pessoa já ter, como era o caso de Dona Valdelice, nascido feita: o

trabalho minucioso que sua grande força pessoal incontestavelmente denotava não poderia ser

feito por curador algum pois ele já havia sido empreendido antes mesmo dela nascer – e

342
Como diz a expressão local: “a cabaça é obra que Deus fez, mas é o homem que termina, que ele é que faz o
furo” (Gonçalves 1984: 114).
343
Daí também as aproximações possíveis com o estilo barroco, mencionadas no capítulo 3, seção 3.5, cujos
rebuscamento da forma e torções adicionais evidenciam sempre um trabalho copioso resultando em formas belas
que subvertem o despojamento do modernismo arquitetônico e seu caráter ascético (Peixoto 2011: 387-388).
330

diretamente por uma entidade. Como será visto adiante, arriscar fazer um trabalho ritual para

alguém que já nasceu feito significa afirmar que se possui uma força superior à de quem

realizou o primeiro trabalho; no caso, significa dizer que um humano pode ser mais forte do

que uma entidade: pior ainda, significa desejar medir forças com ela. Não que se descobrir

mais forte que um espírito seja, de modo ao menos hipotético, necessariamente uma

impossibilidade, porém poucos são aqueles que demonstram a audácia que tal processo requer

– mesmo por serem graves as sequelas conhecidas ou preditas para os que venham a tentar.

De toda forma, não só nas situações de embate, fica claro que, ao menos sob certo prisma, os

seres que habitam o mundo, especialmente os humanos e as entidades, podem ser pensados

menos como entes distintos com relações ligando-os entre si do que como resultantes, ou seja,

somas de forças que atuam também como forças e sobre forças344. No sistema de forças do

jarê, diferentes combinações de vetores podem existir ora como motivadores, ora como

receptores das ações, como ocorre, por exemplo, com os iniciados que simultaneamente

incorporam e são incorporados por suas entidades.

Os filhos-de-santo comentam como é fundamental desenvolver a habilidade de

controlar as forças envolvidas nos rituais do jarê, sabendo quando devem ser contidas e

quando devem ser impulsionadas – ou, ainda, quando devem ser deixadas em paz, já que nem

todo fluxo deve ser canalizado para se transformar em energia, como me fizeram

compreender. Idealmente, de qualquer forma, um curador deve fazer todo o possível para

concentrar em torno de sua casa o maior número de forças de que for capaz, tanto de modo

mais direto por meio das iniciações como por relações como as de amizade ou compadrio,

como visto. Como mencionado, mais do que um modo de acúmulo propriamente, trata-se de

um processo de convergência de forças seguido por sua redistribuição constante, já que elas

344
Como já se escreveu, num registro similar: “O aspecto propriamente artesanal, ou artístico, dessas religiões
consiste em saber usar essas forças para fazer e desfazer formas, como, por exemplo, casas, corpos e, no limite, a
própria vida. [...] [O] trabalho ritual é uma ação sobre a ação dos inúmeros seres sobrenaturais que povoam o
mundo e que são como cristalizações do axé” (Barbosa Neto 2012: 265-266, grifo no original).
331

só existem efetivamente se mantidas em movimento. Ademais, quando postas em marcha, as

forças de que se fala no jarê demonstram certa propriedade ‘gravitacional’, passando a atrair

sempre mais forças. A realização do trabalho de reforço de Áurea, por exemplo, serviu de

estímulo para que muitas outras pessoas se iniciassem no mesmo dia, um motivo que elas

próprias gostavam de frisar, gerando um evento que, por sua vez, concentrava mais pessoas,

entidades e procedimentos rituais no terreiro de Daso. O curador, de sua parte, como

comentou, considerava a vinda dos novos adeptos tanto um reconhecimento da força de sua

casa e da qualidade de seus trabalhos como a pedra fundamental que estimularia ainda mais

crescimento, previsão que se mostrou acertada, ao menos imediatamente. Ter força, enfim, é

necessário para manejar forças: a roça precisa ser plantada, as entidades alimentadas, os

filhos-de-santo tornados prontos, para que essas forças possam ser devidamente postas em

movimento, para que se atualizem.

As forças no jarê, como visto e como exemplificado sobretudo pelas incorporações,

são eminentemente transmissíveis, sendo um dos principais motivos da vinda dos caboclos às

casas de culto propagá-las na direção dos presentes. O rodopiar das saias usadas pelas

entidades evidencia a distribuição das forças concentradas e postas em suspensão nos salões,

por vezes na forma de diversas substâncias viscosas ou nubíferas que são ofertadas aos

caboclos e por eles espalhadas. Além do mel e do dendê já mencionados, ligados a Cosme e

ao povo velho, respectivamente, as entidades são presenteadas com perfumes (sobretudo

alfazema), fumaça de incenso, de charutos e dos fogos de artifício, talcos, picotes de papel

brilhante, pipocas. Ao receberem ritualmente estes objetos, os caboclos os disseminam entre

os presentes, seja de maneira indireta, com suas danças, seja de forma bastante direta,

oferecendo-os ou espalhando-os nos frequentadores de uma festa, muitas vezes um por um.

De certo modo, também a luz das velas que são acesas para alimentar as entidades, inclusive

no salão, se comporta similarmente, preenchendo espaços e conectando aqueles que são por
332

ela iluminados ao mesmo tempo. Entre as substâncias utilizadas – à exceção do sangue

sacrificial, que corporifica por excelência a força do jarê e que será alvo de considerações

mais detidas adiante – provavelmente a mais importante para o bom andamento de uma festa

é o álcool, que funciona não só para dar energia aos batedores, como mencionado

anteriormente, mas igualmente pode ser solicitado por algumas das entidades ao se

manifestarem.

O oferecimento de bebidas alcoólicas às entidades é uma prática cercada de cuidados

da parte dos líderes das casas, já que é sabido que existem muitas pessoas que frequentam os

jarês com o intuito de se embebedarem, algo que, dizem os adeptos, foge aos objetivos da

festa. De todo modo, aqueles que fingem incorporarem entidades acabam sendo castigados

por suas ações, já que podem ser posteriormente cobrados por seus próprios espíritos ou pelos

de outrem. Quando efetivamente manifestam caboclos, os adeptos que consomem as bebidas

alcoólicas ritualmente não ficam ébrios, o que possibilita outra forma de punição – da qual

Pedro de Laura era bastante afeito, como já mencionado – quando um curador orienta seus

auxiliares a fornecerem cachaça de maneira desmesurada a um frequentador que solicite a

bebida, levando-o a passar mal e demonstrando assim seu embuste. Quando se encontram

efetivamente incorporados pelas entidades, ao contrário, os adeptos podem ingerir grandes

quantidades de cachaça, que é chamada de “jurema” e cujo consumo é acompanhado de

cantigas específicas, sem sofrer seus efeitos inebriantes345. Um motivo adicional que

proscreve a ingestão de bebidas alcoólicas pelos adeptos propensos a receber entidades

conecta-se ao seu efeito inibidor para as incorporações, possivelmente outro motivo pelo qual

são, ao contrário, tomadas em grande quantidade pelos tocadores de atabaque. De qualquer

modo, a capacidade que uma pessoa demonstra em consumir bebida alcoólica em quantidade

345
Apesar de usarem o nome jurema, no jarê não há utilização da bebida feita com a raiz da acácia dessa espécie
e que igualmente empresta seu nome a diversos cultos no Nordeste (Brandão & Rios 2004: 180; Assunção 2010:
112-122).
333

sem sofrer os efeitos da embriaguez é também, dizem os filhos-de-santo, demonstrativa de

grande força pessoal, sendo a tendência ao alcoolismo, inversamente, um dos principais males

tratados no jarê346.

Fora o sangue, existem dois outros fluidos corporais bastante significativos para a

transmissão de energia entre os participantes de um jarê: o suor e a saliva. Ficar responsável

por enxugar o suor das entidades incorporadas é uma honra que costuma caber aos afilhados

das mesmas, que carregam panos destinados à tarefa mas que por vezes são preteridos pelas

entidades em favor das saias dos adeptos próximos. O contato dos frequentadores da casa com

o resultado da transpiração dos iniciados manifestando seus caboclos, que também se dá de

modo farto durante os abraços rituais, é considerado por muitos uma das maneiras de se

aproximar da força dos espíritos, cuja evidenciação na forma do suor atesta novamente o

trabalho despendido – no caso, principalmente durante a dança – na vinda das entidades. O

papel da saliva, por sua vez, é exercido em rituais alimentares de transmissão de força, como

o anteriormente mencionado mingau branco derramado sobre e lambido diretamente do

vestido de uma filha-de-santo347. Quando possível, antes de uma festa, os iniciados mais

antigos da Capivara gostam de fazer suas refeições de forma vagarosa, comendo dos pratos

diretamente com as mãos, sem usar talheres, e compartilhando seu alimento com as crianças

quando lhes dão de comer. A prática, dizem os mais antigos, não só proporciona um sabor

distinto à comida como favorece a saúde daqueles que recebem o alimento de suas mãos. A

saliva, por fim, como visto anteriormente, também é utilizada pelo curador ao final de uma

das etapas do ritual de batizado, sendo depositada em sua própria mão e levada à cabeça do

346
Como detalhado adiante, na seção 4.5.
347
Como visto no capítulo 2, seção 2.4.
334

iniciando, selando simbolicamente, com sua viscosidade característica, a abertura feita para as

entidades, e unindo o filho-de-santo ao seu iniciador348.

Além das muitas substâncias, como visto, envolvidas nos processos de redistribuição

energética numa cerimônia de jarê, há também inúmeras formas de realizá-los por meio de

operações rituais que envolvem as cantigas, os gestos e a fala. Oferecer uma música a um

caboclo ou acompanhá-lo enquanto ele puxa uma cantiga, seja com a voz, seja somente com

palmas; abraçar e receber os abraços das entidades, ocasionalmente acompanhados do toque

das cabeças; saudá-las e ser por elas saudado; dirigir-lhes pedidos e promessas e escutar

avisos e compromissos: todas são maneiras de participar das transferências de força que têm

lugar nas casas de culto durante os jarês. Até a simples participação nas festas é um meio de

se imiscuir nos fluxos energéticos em questão, como evidenciava, por exemplo, um senhor ao

dizer que, mesmo sem nunca ter passado por um trabalho de iniciação propriamente dito, se

considerava filho-de-santo da Capivara como os demais, por ter frequentado a casa desde

muito jovem e ter reverenciado os espíritos da casa como faziam todos os outros. Esse senhor

comentou também como, certa vez, decidiu pisar ele mesmo sobre as brasas, como faziam os

adeptos manifestando suas entidades, ainda que ele próprio jamais recebesse caboclo algum.

Pedro de Laura, provavelmente incorporando um de seus santos, pegou-o pelo braço e, sem

soltá-lo, conduziu-o no pisoteio das brasas, sem que a ação resultasse em queimaduras para o

adepto. Contaram-me muitos casos também nos quais uma pessoa acabava recebendo e

zelando por entidades em nome de outras pessoas, quando estas não se demonstravam capazes

ou interessadas em fazê-lo. Já de modo mais direto, alguns frequentadores de jarê, ao

descobrirem que Áurea teria seu trabalho realizado no terreiro de Daso, resolveram, como

mencionado, “pongar” no evento, pegando carona em sua iniciativa, pois sabiam que, desse

348
A transmissão de energia por meio desse procedimento é bastante comum no candomblé. Em outro episódio
narrado numa das mais notáveis etnografias já escritas a respeito do candomblé, vê-se como um conjunto de
entidades infantis busca justamente reanimar uma pessoa desacordada ao lambuzá-la com saliva (Serra 1978:
112, 259-264).
335

modo, poderiam aproveitar parte da força de Áurea na realização de suas próprias iniciações,

disseram explicitamente349.

Depois que se transmite parte de sua força, especialmente no caso dos seres humanos,

é possível que existam sequelas mais ou menos duradouras, tanto na forma de doenças ou

complicações de locomoção, como já mencionado, quanto na de fraquezas generalizadas ou

alterações no apetite – resultando em geral em sua falta. Em larga medida, a força pessoal de

alguém se equaciona a sua energia vital, e quanto mais ela é mobilizada e dela se exige,

maiores as chances de a pessoa responsável por seu manejo ficar debilitada, ainda que

dificilmente de modo permanente. Quando uma pessoa cai desacordada por ação de suas

entidades, como foi o caso por exemplo com Áurea, ela precisa ser literalmente reanimada, já

que se encontra, por mais transitório que seja o período, momentaneamente despojada de

grande parte de sua força vital, daquilo que a põe em movimento, que a anima. Nos casos em

que falam a respeito de grandes e definitivas transferências de força entre pessoas, como pode

raramente ocorrer quando um curador mais idoso confia seu legado espiritual diretamente a

um sucessor, como me contaram em determinado caso ocorrido fora de Lençóis, aquele que

abdica de sua força pessoal pode terminar falecendo, enquanto seu receptor terá vigor

renovado, por mais que possa ter de início dificuldade em lidar com sua nova força e em se

tornar capaz de manejá-la a contento, processo tão demorado quanto esperado. De todo modo,

as forças postas em marcha no jarê possuem também uma propriedade entrópica, podendo

acontecer de sua potência ser diminuída com o passar do tempo – especialmente se não for

rotineiramente colocada em movimento, das formas descritas. A ação de manter sua força

pessoal, e a de sua casa de culto, tanto em constante agitação, circulação, como em contínua

349
Como mencionado, o episódio guarda semelhanças com outros do candomblé angola; também nesses, a seu
modo, objetiva-se uma concentração de tensão que será transformada em ampliação de um poder, passível então
de ser mobilizado pelos presentes – redistribuído, no caso do jarê (Serra 1978: 301-302, 308-312, 341-345). Há
igualmente uma ligação expressa entre o poder selvagem e não domesticado dos caboclos e a localização das
casas de culto longe das sedes dos distritos e municípios, que não pode ser reduzida a sua função – de toda forma
relevante – de afastamento dos poderes constituídos (Rabelo 1990: 156).
336

concentração – numa direção de amplificação possível –, é um modo de lutar contra sua

inevitável dissipação, tarefa que ocupa os adeptos do jarê durante as cerimônias.

Ainda que por vezes os adeptos do jarê também falem a respeito de forças

distinguindo-as entre dois tipos opostos, comentam essa distinção usando igualmente as ideias

de “lados” ou “partes” opostas, chamadas seja de esquerda e direita, seja – com frequência um

pouco menor – de lado branco e lado negro do jarê. Enquanto o lado direito é o das entidades

que comumente se incorporam nos filhos-de-santo durante as cerimônias, o lado esquerdo

configura o domínio dos exus, entidades que, diferentemente das primeiras, dificilmente são

consideradas caboclos ou santos, como aquelas podem ser chamadas de forma praticamente

indistinta. Como mencionado, os exus são entidades simultaneamente acessórias e essenciais

a todo tipo de movimentação, inclusive à colocação dos caboclos em marcha para visitarem as

casas de jarê e trabalharem. De forma geral, os adeptos do jarê tanto reconhecem como

costumam repudiar aproximações feitas entre as entidades da esquerda e os demônios do

cristianismo, oferecendo como provas, por exemplo, as diversas benesses e curas feitas pelos

caboclos mas possibilitadas pelos exus. Por mais que existam também pessoas que afirmem

que trabalham apenas com um dos lados das potências envolvidas no jarê, grande parte dos

iniciados reputa ser impossível o manejo de uma parcela das entidades sem que se esteja ao

menos minimamente sujeito à ação das da outra metade. Ao falar sobre a simplificação que

pessoas não entendidas costumavam fazer a respeito da suposta exclusividade da realização

de medidas benéficas ou daninhas que teriam, respectivamente, as forças da direita ou da

esquerda, um jovem curador me explicou: “A rua é uma só, mas são duas mãos, é de mão

dupla. Há dois sentidos, mas a energia que faz o bem e a que faz o mal, elas são uma só”350.

Desse modo, mais precisamente, o que parece estar em jogo nas operações que

competem a um pai-de-santo é a orientação do sentido dessa força, sendo que quando ela é

350
Ver igualmente, no início do anexo IV, a letra de uma das cantigas usadas na abertura de qualquer cerimônia
de jarê, conclamando Baluaê.
337

encaminhada para um lado, ela é literalmente transportada, levada a deixar sua posição atual

na qual se produzirá necessariamente uma espécie de vácuo. Mais do que lados, para as forças

do jarê esquerda e direita seriam assim antes de tudo sentidos, sendo possível entendê-los

enquanto orientados seja para o esvaziamento, seja para a plenitude. Todo processo de

transferência, entretanto, envolve passagens, gerando tanto espaços mais esvaziados como

mais preenchidos. O surgimento desses esvaziamentos energéticos gera enfraquecimento e, no

caso dos humanos, doenças, cabendo ao curador o restabelecimento de uma situação menos

deficitária, por mais que todo equilíbrio atingido seja inevitavelmente provisório. Como

voltará a ser visto adiante, uma das principais formas de se corrigir essas insuficiências

energéticas é por meio do estabelecimento do contato entre as forças do pai-de-santo e do

enfermo, em geral durante o processo iniciático, já que o estabelecimento dessa comunicação

possibilita o surgimento de diferenças de potencial entre elas. A citada propriedade entrópica

da força faz com que ela tenda a fluir dos locais onde é mais abundante para onde é mais

escassa, nesse caso, via de regra, do curador para seus filhos-de-santo, mas igualmente das

entidades de maneira geral para os seres humanos. Ainda assim, não é o caso de se descartar

por completo a existência de uma força efetivamente negativa, uma ‘antiforça’ – no sentido

que possui o termo ‘antimatéria’ – responsável não por esvaziamentos mas pela verdadeira

aniquilação da energia. Essa antiforça, contudo, parece ser domínio exclusivo de entidades

muito perigosas e com as quais pouco diálogo é possível, a exemplo das sombras de mortos,

das quais se deve procurar sempre manter distância absoluta351.

A configuração tensiva do processo de transferência de energia, descrita acima, auxilia

a compreensão dos motivos que desaconselham a realização de trabalhos rituais para pessoas
351
Pouca negociação parece ser possível com estes espíritos, que também podem ser responsáveis por
adoecimentos (Rabelo 1990: 205). Este parece ser um dos principais pontos de distinção entre os jarês e outros
cultos das zonas mais rurais aparentados a eles, já que os curadores dos primeiros, afirma-se de modo categórico,
“não trabalha[m] com mortos” (Senna 1998: 79, 184). Num outro campo etnográfico de matriz africana, as casas
de religião da cidade de Pelotas, pode-se usar a expressão “axé de miséria” ou o termo “inxé” para se referir ao
simétrico inverso do axé, que guarda claras semelhanças com a antiforça aqui exposta (Barbosa Neto 2012: 95-
98, 106, 226 nota 200, 274).
338

que, como Dona Valdelice, já nasceram feitas. Os rituais que um curador empreende são

realizados partindo da pressuposição de que ele irá corrigir uma deficiência energética por

meio da abundância de sua força pessoal, aí incluídas as potências de suas entidades, e para

tanto ele realiza medidas litúrgicas que irão auxiliá-lo em sua tarefa de transferir seu excesso

de energia no sentido do iniciando352. Caso um pai-de-santo efetue os procedimentos

costumeiros mas se depare com uma pessoa que, ao contrário do esperado, apresente ainda

mais força do que ele, os resultados podem ser desastrosos: estabelece-se uma espécie de

‘curto-circuito por sobrecarga’, no qual a transferência de força ocorre de maneira desmedida,

podendo deixar o curador, no mínimo, consideravelmente debilitado 353. Ao contrário do que

ocorre com a maior parte dos iniciandos, como será detalhado mais adiante, nesses casos a

aflição que pode levar uma pessoa a procurar – ou ser levada para – um curador deriva não de

uma debilidade mas de uma superabundância energética, que é justamente uma das principais

geradoras das loucuras que caracterizam o comportamento de muitos daqueles destinados a se

tornarem, eles próprios, curadores354.

As entidades mobilizadas no jarê, em especial as que se incorporam nos filhos-de-

santo, sob determinado ponto de vista podem ser pensadas enquanto forças em estado

concentrado, capazes de participar no cotidiano dos seres humanos, entre várias outras

formas, por meio de manifestações em seus corpos. Com o passar do tempo, com o cultivo do

hábito de recebê-las nas casas de culto, com o surgimento da intimidade entre adeptos e seus

espíritos, as forças – que as entidades simultaneamente são e têm – vão sendo como que

352
Ao final da bela etnografia a respeito da feitiçaria na região do Bocage ocidental francês (Favret-Saada 1977:
250-281) há uma série de esquemas que em tudo lembram as trocas de força aqui mencionadas. A ação dos
curadores voltada para a eliminação das insuficiências energéticas no jarê é semelhante à dos desenfeitiçadores
que buscam restituir a sorte e a saúde de seus clientes. Enquanto no jarê as formas de combate contra a feitiçaria
também podem envolver procedimentos parecidos, uma diferença significativa se dá pela existência de
determinadas entidades enquanto geradoras dos desequilíbrios nas forças pessoais.
353
Uma adepta, por exemplo, informa, de modo aparentemente despretensioso, como todas as pessoas que
tentaram realizar algum tipo de cura em benefício dela acabaram mortas pouco tempo depois (Rabelo 1990: 178-
179). Em Lençóis, mais de uma vez ouvi falar de casos similares ou idênticos.
354
Como visto no capítulo 3, seção 3.5.
339

decantadas nos corpos dos iniciados, condensadas neles: os caboclos que os filhos-de-santo

manifestam são como ‘precipitados’ pessoais dos espíritos-força mais abrangentes. Como foi

dito, também mais entes do mundo, como os outros animais, as plantas e determinados

objetos, a exemplo de pedras específicas, existem enquanto produtos de certa ‘destilação’ das

forças abrangentes com as quais os humanos travam contato, assumindo muitas vezes

formatos e consistências determinadas que favorecem sua interação. Os rituais do jarê

favorecem a utilização de inúmeras substâncias literalmente fluidas – e entre essas há especial

atenção às viscosas e às nubíferas –, como os perfumes, a cachaça, o vinho, a água, o suor, a

saliva, o sangue, o dendê, o mel, comidas como o vatapá e o caruru, o talco, o pó de pemba, as

cinzas, a pólvora, o enxofre dos foguetes, o incenso, e mesmo o hálito – da palavra, das

cantigas e do arfar que evidencia o esforço em perseverar contra o cansaço355. Todas essas

formas que as forças do jarê podem adquirir para serem postas em circulação e transmitidas

são capazes de serem espalhadas nos presentes, seja melando-os ou lambuzando-os, seja

aspergindo-os ou pulverizando-os356. Por outro lado, outras substâncias também granulares

cujas partículas não ficam em suspensão – como as farinhas, milhos e feijões – são reservadas

à alimentação das entidades não incorporadas e também aos rituais de iniciação, tornando os

corpos dos adeptos abertos, mais porosos às transferências, até que sejam fechados e

protegidos pelas primeiras.

355
Já se fez notar como nas trocas envolvidas na iniciação a energia mística é transmitida também pela voz, pelo
hálito e pela saliva (Souty 2007: 455).
356
Em resposta a um comentário que fiz sobre a adequação de termos oriundos da mecânica dos fluidos para a
consideração dessas forças de aspecto hidráulico presentes nas religiões de matriz africana, Martin Holbraad
(comunicação pessoal) sugeriu que os pós – como o de pemba – figuram como uma espécie de substância
particularmente propícia às transferências por serem, de certo modo, sólidos que se comportam como líquidos,
podendo, por exemplo, se espalhar ou serem condensados.
340

4.5 Vidas

Não foi uma única vez que Áurea comentou que jamais desejaria para si a sina de se

tornar curadora e ter de realizar iniciações. Por mais que seja possível tomar determinadas

medidas que estimulem ou desencorajem um destino determinado, ao qual se estaria

predisposto por sua natureza pessoal, em última instância a vontade das entidades costuma ser

soberana, ou pelo menos tende a cobrar um preço bastante caro para ser continuamente

contornada. Diferentemente dela, entretanto, alguns outros habitantes de Lençóis acabaram

por ceder ao chamado dos espíritos e se tornar pais e mães-de-santo, zelando, entre outros

temas, pela saúde daqueles que frequentam suas casas de culto. Por mais que as curas não

sejam o principal motivo das festas de jarê da cidade, ao contrário do que acontece nas regiões

da Chapada mais distantes dos centros populacionais, voltadas à produção agrícola357, elas

também se encontram presentes, especialmente nos terreiros que realizam iniciações enquanto

principais mobilizadores da adscrição a uma casa. Seus estados de saúde configuram tema

corriqueiro entre os lençoenses e, como muitos outros, um assunto consideravelmente

público, sendo habitual quando se encontram cotidianamente pelas ruas da cidade perguntar a

respeito da progressão de enfermidades e desejar a pronta recuperação dos membros das

famílias uns dos outros que se sabe estarem doentes.

Muitas das curas para enfermidades as mais diversas são realizadas por meio de chás,

xaropes caseiros, infusões e garrafadas, preparados que podem ser prescritos para banhos ou

para ingestão. O conhecimento necessário ao preparo desses compostos não é exclusividade

dos curadores, ainda que seja comum que o possuam: também rezadeiras, benzedeiras e

outros entendidos podem ser capazes de recomendá-los e prepará-los, e muitas das pessoas

mais antigas da cidade possuem memorizadas inúmeras receitas ou indicações de usos das

357
Como indica a bibliografia disponível sobre os cultos realizados nesses locais (Rabelo 1990: 1, 212-215, 277;
Senna 1998: 36, 41, 49).
341

ervas encontradas na região358. Uma característica fundamental das curas realizadas com

ajuda de ervas medicinais operadas pelos líderes do jarê, contudo, costumava escapar àqueles

que se dedicavam a catalogar seus nomes e usos, como faziam, por exemplo, ambientalistas

ligados a uma associação ecológica em funcionamento na cidade. Além do receio de falarem a

respeito de muitas das utilizações tradicionais das plantas – algumas das quais fazem parte da

ciência do jarê e que, até mesmo por isso, não devem ser divulgadas de maneira indistinta –,

os adeptos mencionavam frequentemente, ao longo de entrevistas realizadas pelos

ambientalistas e que acompanhei assim que cheguei a Lençóis, a importância da fé para a

realização da cura com as ervas. Menos do que o fato um pouco mais banal, porém

igualmente concreto, de que era preciso, ao menos em parte, acreditar na potência dos

curadores para que se produzissem os efeitos terapêuticos desejados, a fé de que falavam os

adeptos, fui perceber muito tempo depois, tinha a ver com a forma específica de confiança

que se devia depositar nas pessoas e entidades do culto359.

As ervas utilizadas nas curas realizadas nos jarês passam a ser, desse modo, elas

também veículos das forças a serem mobilizadas pelos pais-de-santo na direção de seus filhos,

sendo que sempre se comenta como os males tratados pelos curadores diferem das

enfermidades que devem ser tratadas pela medicina. Enquanto algumas são mais facilmente

distinguíveis de acordo com seus sintomas – já que nenhum líder de casa de culto deve

afirmar, nisso os adeptos são categóricos, que pode curar, a título de exemplo, um tumor –,

existem outras doenças cujas causas devem ser atacadas com ação ritual, cuja aparência nem

sempre o indica. Para tanto, um curador recorre a uma revista, nome do já mencionado

processo divinatório que irá revelar se aflições como certas formas de loucura ou de

alcoolismo – para ficar nos exemplos mais recorrentes, seguidos dos problemas de locomoção

358
Muitas já foram compiladas, por vezes de maneira bastante minuciosa, em estudos sobre as tradições
populares de Lençóis (Gonçalves 1984: 74-76, 145-167; Senna 1996: 25).
359
Como mencionado acima na seção 4.2.
342

– possuem origem mística360. Uma revista pode mesmo indicar que o mal em questão não

possui nenhum componente espiritual, o curador comunicando então ao enfermo que este

deve se tratar com profissionais da medicina. É mesmo possível que se detecte uma doença

que possua um misto de componentes espirituais e não espirituais, cabendo então ao pai-de-

santo uma parcela da cura, seja por sua ação direta, seja em rituais que mobilizem as

entidades envolvidas de modo a auxiliar a cura a ser feita por médicos – por exemplo abrindo

os caminhos destes, caso se encontrem obstruídos, de modo a facilitar o tratamento361.

A principal forma de tratamento empreendida pelos curadores, de todo modo, é a que

envolve diretamente o sacrifício ritual durante o processo de iniciação de um adepto.

Idealmente, os trabalhos de limpeza contam com a matança de um galináceo e os de batizado

com o oferecimento da vida de um animal de quatro patas, geralmente um caprino. Os

animais sacrificados costumam ser do mesmo sexo do iniciando, e se evita escolher, nos

batizados, animais de pelagem muito escura. Em épocas de dificuldade, como me contaram

alguns dos filhos-de-santo da Capivara, era preciso que um único animal de quatro patas fosse

sacrificado para mais de uma pessoa durante uma iniciação, num procedimento que contava

com adaptações rituais para não comprometer sua integridade. Também podem ser feitos

sacrifícios rituais para alimentação dos espíritos e como forma de homenagem aos caboclos,

normalmente oferecendo-se frangos ou galos, acompanhando o sexo das entidades em

questão. A matança é habitualmente responsabilidade de uma pessoa incorporada,

normalmente o líder da casa, ou feita por um dos auxiliares rituais do local sob orientação

direta de uma entidade manifestada. É comum que existam certos caboclos que sempre se

360
Como aludido no capítulo 3, seção 3.4.
361
Como no caso em que pediram a alguém que levasse velas para um curador para que este rezasse pelo sucesso
de uma operação médica (Rabelo 1990: 189). Em um dos municípios vizinhos, chamado Wagner, para onde
ocasionalmente podem ser levados doentes mais graves por contar com infraestrutura médica de maior
qualidade, especialmente quando comparada à de Lençóis, por vezes ocorre também o inverso, com médicos
que, após realizar anamneses e exames clínicos, terminam por informar a alguns pacientes que seus males
necessitam ser tratados por especialistas de cultos tradicionais, como o jarê (Senna 1998: 211-216 e
comunicação pessoal).
343

encarreguem dos sacrifícios, sendo os mais frequentes Ogum e, em menor grau, Eru.

Estabelece-se uma conexão entre os animais a serem sacrificados e os adeptos em benefício

de quem o ato será feito desde antes do dia de realização da cerimônia: os iniciandos ficam

responsáveis por adquirir os animais e cuidar deles até o momento do trabalho, o que inclui,

no caso dos bodes e carneiros, banhá-los no rio e aprontá-los para o ritual, por vezes

adornando-os com fitas. Mais de uma vez me pediram que tirasse fotografias dos iniciandos

com os caprinos que seriam sacrificados em seus trabalhos, os animais sendo tratados com

muito carinho e consideração, como membros da casa de culto de quem gostariam de guardar

recordações por saberem que em breve não mais estariam com eles.

Ao menos parcialmente a prática de sacrifício envolve um esforço de convencimento

dos animais, que revelam sua disposição – ou indisposição – em ceder suas vidas pelos

adeptos por meio de seu comportamento nos dias que antecedem ao ritual, bem como durante

a realização do mesmo. Animais bravios, que tentem fugir à captura, que emitam muitos sons

ou se debatam ao serem contidos, são sinais de obstáculos adicionais ao trabalho vindouro,

por mais que dificilmente venham a adiá-lo ou a evitar o destino que lhes é reservado – ainda

que haja histórias que testemunhem a exceção. Seres que, por outro lado, indiquem com seu

comportamento que aceitam a sina de darem sua vida por outrem, sendo o exemplo

prototípico o do animal que se dirige espontaneamente para o local onde será abatido – via de

regra o centro do pagodô –, de forma dócil e como que resignada, dão prova da felicidade da

iniciação, sendo encarados com grande consideração e reverência pelos adeptos 362. Contaram-

me certa vez que um carneiro foi poupado por tempo considerável por demonstrar essa

natureza entendida como abnegada, tendo por fim como destino tornar-se oferenda num

sacrifício votivo feito numa grande festa dedicada a Iansã na Capivara. No momento da

362
A atitude de reverência diante dos animais que se entende abrirem mão de suas próprias vidas é um tema
recorrente não só em outras religiões de matriz africana como em diversas tradições ao redor do mundo que
empregam atos sacrificiais (Serra 2009: 225).
344

matança propriamente dita, em algumas casas as crianças presentes são levadas para outros

aposentos para que não presenciem o corte do animal – e para que se diminua o risco de que

sejam, de múltiplas formas, afetadas pelo processo e pelas forças nele mobilizadas. Os filhos-

de-santo falam sobre a importância da firmeza que deve ter o sacrificador ao segurar o animal,

tomando-o pelas patas, no caso das aves, ou pela cabeça e chifres, no caso dos caprinos, sem

que suas mãos se cruzem diante do crânio da criatura. O corte principal deve ser fundo e

certeiro, de modo a diminuir o sofrimento do animal enquanto seu sangue se esvai sobre o

iniciando, e também para que não se debata demasiadamente.

Como mencionado anteriormente, o sangue, sobretudo o sacrificial, é uma das

principais substâncias responsáveis pela transmissão da força que o jarê mobiliza, sendo

também sua forma concreta por excelência, justamente por ser, por definição, o fluido vital

primeiro. O sangue que é derramado sobre os adeptos e que é oferecido às entidades

simultaneamente é e carrega consigo as forças que o curador coloca em marcha para realizar

curas, para conectar ou separar pessoas e espíritos. Comenta-se como é fundamental que, após

o ritual de iniciação, os novos membros da casa de culto durmam ainda uma noite com seus

corpos e vestimentas marcados pelo sangue coagulado proveniente das oferendas, sendo

removido na manhã seguinte com os banhos que encerram os trabalhos. O sangue residual que

é derramado no centro dos salões de jarê ao final dos rituais iniciáticos é espalhado e coberto

com terra, até que faça parte, literalmente, da força que se encontra depositada sob o chão do

terreiro363. Em algumas casas, o sangue sacrificial é também consumido diretamente pelos

frequentadores do jarê durante as cerimônias em homenagem a entidades caras ao líder do

local, sendo derramado durante a matança numa bacia específica e misturado com alguma

bebida, em geral cachaça, e mel364. O preparado, que é imediatamente oferecido aos presentes

363
Como visto no capítulo 2, na seção 2.5.
364
Há também registro do uso de cravo, canela, vinho e pimenta da costa na mistura (Gonçalves 1984: 135).
345

em pequenos copos para que bebam alguns goles – sendo alertados de que devem fazê-lo com

reverência –, recebe o nome de “sangue real”. Vê-se como o sangue sacrificial que idealmente

precisa ser vertido nos rituais sintetiza muitas das modulações que as forças podem adquirir

ao ser manipuladas: é uma substância fluida, transferível, transpositora, diluível, condensável,

sápida.

Inversamente, o sangue pode ser também uma substância utilizada com grande

propriedade em procedimentos místicos que tenham fins contrários à vida, como no caso do

sangue resultante de atos de violência365. De qualquer forma, a situação mais comum em que

o sangue figura como uma espécie de força oposta à das entidades reverenciadas nas festas

pode ser percebida no tabu da presença de mulheres menstruadas nas cerimônias. Os adeptos

comentam como mulheres que estejam em seus períodos devem evitar frequentar as festas de

jarê, já que a mera proximidade dos caboclos com alguém que possa menstruar por vezes é o

bastante para drená-los de sua energia, fazendo com que aqueles que os incorporam tombem

ao chão desacordados – tendo sido inclusive essa uma das suposições aventadas ao final da

festa em que Áurea caiu pela primeira vez e que foi um sinal agudo de seu enfraquecimento.

Numa ocasião em que, após ter passado por seu trabalho de reforço, Áurea comandava o

início de uma cerimônia na Capivara, sua Iansã se manifestou e solicitou que qualquer mulher

que estivesse em seu período menstrual se retirasse do salão, podendo no máximo

acompanhar a festa à distância. A entidade acrescentou que ela própria não tinha problema em

se encontrar naquele momento no pagodô, mas que outros espíritos provavelmente não seriam

capazes de fazê-lo – indicando tanto seu vigor renovado como a capacidade de Iansã,

especificamente, de lidar com forças ligadas à morte. Com o tempo, passei a saber que muitas

jovens, desejosas de não perder nenhum jarê, alteravam a frequência de ingestão de pílulas

365
Como exemplificado pelo evento da vingança de Pedro de Laura contra seu agressor, relatado no capítulo 3,
seção 3.4.
346

anticoncepcionais de modo a fazer com que seus períodos não coincidissem com as datas das

festas, prática que era, de todo jeito, vista pelos mais cautelosos com boa dose de reprovação.

Não é incomum que por vezes se diga de mulheres menstruadas, com algum

eufemismo por se considerar um tema delicado, que se encontram “doentes”, ou ainda que

estão de “corpo sujo”. Essa última designação também se aplica a quaisquer pessoas que

tenham feito sexo recentemente, devendo passar pelos banhos propiciatórios anteriores à festa

para que seu estado não seja nocivo às entidades. Em comum com o primeiro caso, no

segundo os corpos dos adeptos passam a ser considerados “abertos”, especialmente sujeitos às

influências de forças perniciosas, em função da proximidade que se estabelece com o canal

vaginal. Como afirmam os adeptos, mesmo quando não menstruadas as mulheres possuem

maior propensão e capacidade de fragilizar as entidades por possuírem em seus corpos um

canal pelo qual há, de modo intermitente, passagem de sangue. O sangue menstrual é

considerado substância especialmente adequada à realização e à quebra de feitiços, sua óbvia

conexão com a morte – ou, para dizer mais precisamente, com uma não vida – qualificando-o

para agir enquanto uma força contrária de considerável intensidade, duplamente abortiva366.

Por compartilhar com esse sangue uma mesma via de passagem, a urina feminina, ao

contrário da masculina, possui um similar potencial de neutralização energética, ao menos no

que tange a sua aplicação contra feitiços, como me explicaram. Elias foi a única pessoa que

me sugeriu um nome para essa força oposta à dos caboclos, chamando-a de “abajé”, termo

que se estende igualmente à mulher que se encontre em seu período menstrual. Conforme ele

me disse, essa força eminentemente feminina é capaz de derrubar as entidades nos salões de

366
Conta-se que a bala responsável por matar Horácio de Mattos, o último grande coronel do sertão baiano –
cuja história foi resumida no capítulo 1, seção 1.1 – foi levada a uma mãe-de-santo de candomblé, em Salvador,
para que a deixasse em contato com sua vagina e a tornasse capaz de penetrar os encantamentos que protegiam o
coronel (Moraes 1963: 178), e que lhe teriam sido concedidos por uma de suas tias, ligada ao jarê, conforme me
disseram em Lençóis.
347

jarê justamente por seu excesso, de modo ao menos parcialmente similar ao processo de

sobrecarga descrito acima em relação às pessoas que já nasceram feitas.


348

Conclusão – Voltar

Afinal, o que pode uma tese? Seria esperar demais que um texto na prática escrito por

uma única pessoa fosse capaz de sequer se aproximar dos avanços científicos produzidos nos

grandes laboratórios por equipes compostas por hostes de profissionais orientados para se

atingir inovações significativas para um campo do saber367. Entretanto, angustiar-se a respeito

da eficácia de um trabalho científico demonstra ou falta de ambição ou falta de modéstia,

ambas atitudes que aqui procurei evitar, entre outros motivos também porque, em mais de um

sentido, seria possível dizer que esse trabalho não possui um único autor. Assim, se acredito

ter aqui realizado alguma contribuição ao estudo não só do jarê como das demais religiões de

matriz africana, ela terá sido fruto da tentativa de transmitir inovações, conceitos e

experimentações que só podem existir hoje graças aos conjuntos de pessoas que, ao longo do

tempo, mantiveram essas práticas vivas e em constante transformação – muitas vezes a

despeito das violências brutais às quais foram submetidos. Se o jarê pode, desse modo, ser

pensado como um laboratório ímpar, a equipe que nele atua e ali realiza seus experimentos e

descobertas é composta antes de tudo por seus próprios adeptos, um coletivo que também

conta com sábios, inventores e polímatas, e a cujas elaborações as desse trabalho procuram

fazer jus.

É desse modo que eu destacaria, do capítulo 1, uma versão original da história e das

histórias que envolvem a cidade de Lençóis, propondo também a consideração de uma visão

367
De qualquer modo é precisamente assim que caminha o saber científico, e querer que um texto seja muito
mais do que uma módica contribuição a determinado estado da ciência frequentemente significa acabar por se
contentar com registros ainda mais gerais e supérfluos do que as descrições singulares que podem ser capazes de
colaborar para inovações no conhecimento (Latour 2005: 123, 140, 148-149, 152, 155).
349

garimpeira do trabalho e da imagem desses homens não como aventureiros cobiçosos e

inconsequentes mas como senhores de si e provedores de suas famílias, mestres de uma arte

que afigura menos uma coleta do que uma caça e uma negociação. Contra a visão de que o

garimpeiro seria um perdulário, incapaz de se capitalizar, proponho levar em conta a ética da

suficiência que eles apresentam e esposam, afastando o dinheiro da função de equivalente

universal e exibindo uma aversão específica aos efeitos danosos que possuem as diversas

formas de se experimentar certos excessos. Para minimizá-los, os garimpeiros pregam a

manutenção de um equilíbrio entre a abundância e a parcimônia, mediada por uma série de

potencialidades criativas.

Do capítulo 2, por sua vez, realço as hipóteses históricas a respeito do surgimento do

jarê, indicando diferentes modulações para a nostalgia estrutural que parece caracterizar as

tradições de matriz africana – lembrando que, se as saudades que se sente podem ser outras

ainda, no território nacional elas se encontram profundamente marcadas pela experiência de

desterritorialização sofrida pelas populações escravizadas. Do mesmo modo, as formas como

o método de pesquisa foi alterado pela vivência no campo, da qual derivaram igualmente

certas opções narrativas oblíquas em função das lições sobre como conversar, o que dizer e

quando calar, parte de um aprendizado a respeito das formas de polidez e deferência que

levam essa tese a parecer menos um código normativo do que ora um manual de protocolo,

ora um guia de etiqueta, ora ainda um tratado de ética. Do mesmo capítulo, singularizo uma

disposição de subversão potencializante existente da ligação do jarê com outras religiões, em

especial o catolicismo, bem como a existência de uma incerteza incontornável que leva a

atentar para as condições de felicidade das cerimônias, com o termo referindo-se tanto a

alegria como a sucesso. Do mesmo capítulo destaco ainda a vitalidade que o jarê de Lençóis

demonstra e elabora, bem como sua ressurgência, termo que também se refere a um rio que se
350

esconde sob a terra e adiante volta a nascer – terra que é, igualmente, o principal tema do que

chamei de metafísica telúrica desenvolvida no culto.

Das contribuições do capítulo 3 realço as adaptações que os jarês contemporâneos têm

encetado, além da descrição da logística envolvida na realização das cerimônias e os usos que

recebem as bebidas alcoólicas, que agem como muito mais do que inebriantes, sendo

alimentos espirituais que se inserem numa lógica de trocas energéticas. Já a ideia de

resiliência serve para conectar o não esmorecimento ritual a práticas de resistência que

permeiam e transbordam o universo do jarê. Friso em seguida as ressonâncias afetivas que

conectam pessoas a determinadas cantigas, bem como a ação dos curadores voltada para a

alteração de capacidades de movimentação, favorecendo-as ou dificultando-as. Ressalto

também como a recusa da posição de instrutor não significa o impedimento da transmissão do

conhecimento, da qual inevitavelmente faz parte uma sigética sacramental, uma economia de

silêncios promovidos por motivos diversos. Do final do capítulo, sinalizo a percepção da

loucura como um indicador de permeabilidade que constitui um duplo acesso, termo

escolhido por designar simultaneamente um ataque e uma via de comunicação.

Finalmente, das proposições do capítulo 4 destaco em primeiro lugar a falta de sentido

da investigação sobre a natureza da crença e sua alternativa em função da plenitude das

formas de existência: o recurso à postulação da descrença que é feito somente quando alguém

deseja afastar a si mesmo da ação das forças abundantes no mundo. Aponto igualmente as

ideias consequentes de existência intensiva e da importância da confiança, bem como da fé

que é seu grau máximo, para lidar com as entidades do jarê, para as quais são apontadas

formas de diferenciação e transformação. Evidencio aqui também os modos de relação entre

pessoas e entidades, que se associam em composições que remetem muito mais a uma

química do que a uma mecânica de manifestações, das quais fazem parte um conjunto de

permeabilidades e passagens, exibindo uma transmissibilidade entrevista, entre outros


351

motivos, nas vestimentas cerimoniais. O peripatetismo dos adeptos aparece como pista para

introduzir o tema da movimentação e seus ímpetos, desembocando numa ontologia de forças

segundo a qual todo ente pode existir e funcionar simultaneamente como repositórios e

veículos energéticos: podem ser encarados como resultantes, compostos de forças que agem

como forças e sobre forças. Esses feixes de forças continuamente moduladas que constituem a

matéria-prima do jarê são postos em movimento no ritual visando a uma terapêutica que

inevitavelmente envolve sacrifícios rituais voltados para um enfrentamento de forças que

coloca em questão vida e morte, assunto que será retomado ao final da conclusão.

Provavelmente se terá percebido que, em relação a sua narrativa, essa etnografia foi

concebida para ser não um retrato direto dos acontecimentos no campo, mas estruturada de

modo a transmitir ao leitor – e incitar nele – um processo de convivência e aprendizado cujas

etapas se assemelham às vivenciadas durante a pesquisa. O jarê propriamente só foi

apresentado após já se ter garantido acesso às histórias com as quais ele se combina, bem

como já se ter descortinado as maneiras pelas quais fui sendo aproximado desse universo. De

certo modo, a forma da tese se assemelha a uma andança, que para os habitantes de Lençóis

costuma ser muito mais do que um evento de deslocamento espacial, já que se configura

igualmente numa ocasião didática e possui caráter cosmológico: como procurei evidenciar

pelos títulos dos capítulos, uma tese que fala sobre o jarê é inevitavelmente uma tese que

caminha pelo jarê, que o percorre e por meio da qual ele próprio pode passar a caminhar mais

longe, literalmente viajando além dos limites da Chapada Diamantina. Caminhar significa

também traçar caminhos e mapeá-los, a tese sendo assim também uma cartografia de recusa

de atalhos. Numa comparação mineralógica com os distintos tipos de garimpo, trata-se menos
352

de uma investigação genética – que procura se aprofundar em origens para exaurir veios – do

que uma prospecção aluviônica – que acompanha as movimentações fluidas das pedras pelos

rios e serras.

Em função disso, tentei aproximar a composição da tese à estrutura de um altar de

jarê, uma construção da qual fazem parte elementos a princípio díspares mas que acabam

sendo postos em contato de forma criativa e com determinados objetivos. Em diversos

momentos, as diferentes seções do texto remetem umas às outras, os argumentos podendo ser

revisitados e ampliados em função tanto de sua disposição como do redirecionamento do

olhar efetuado pelo leitor. Procurei aqui emular a inventividade dos líderes religiosos que

potencializam os objetos aos quais fazem recurso por meio de procedimentos de afastamento

e aproximação, tanto espacial quanto conceitual. Por esse motivo, ao longo do texto busquei

oferecer desenvolvimentos paralelos, que a princípio poderiam parecer conclusões ligeiras,

para que o leitor pudesse estar preparado e fosse capaz de remeter a elas quando

reaparecessem num momento posterior do argumento. Sempre que possível, e sem prejuízo da

orientação etnográfica que privilegia os dados de campo, a composição do texto explorou

também algumas conexões e variações que o jarê apresenta com outras religiões de matriz

africana, trabalho que certamente encontra-se só no começo.

As pessoas escolhidas como guias para orientar cada capítulo não o foram por

qualquer suposta representatividade de um tipo médio ou ideal que exemplificariam. Ao

contrário, até, cada uma delas demonstra em sua trajetória deslocamentos específicos por

meio dos quais oferecem determinados pontos de vista ligeiramente deslizados dos que na

própria região seriam considerados mais generalizáveis. Seu Gilson trabalhou mais como um

faiscador do que como um garimpeiro em tempo integral, conciliando a cata das pedras com

um emprego na cidade e não frequentando jarês com a mesma frequência que seu pai antes

dele. Elias é um jovem que se dirige para o passado de Lençóis, recolhendo e contando
353

histórias de um tempo em que gostaria de ter vivido, ao menos parcialmente atualizando-o ao

fazê-lo. Sandoval é o filho de um dos maiores expoentes do jarê que já existiu em toda a

Chapada Diamantina, tendo de lidar da melhor maneira possível com o legado material e

espiritual de seu pai, ainda que, diferentemente dele, ele próprio não incorpore as entidades e

tenha recorrido a uma associação para tentar manter unidos os filhos-de-santo do Palácio de

Ogum. Áurea, por fim, é considerada a principal responsável pela continuidade das

cerimônias da Capivara, indispensável para a realização dos jarês nessa casa e convidada de

honra em outras, por mais que ela própria não seja – nem tampouco deseje se tornar – uma

mãe-de-santo propriamente.

Não há dúvida de que fui obrigado a deixar de lado uma série de aspectos que

surgiram na pesquisa e que podem ser retomados de modo mais detalhado em investigações

futuras. O Movimento Avante conta com uma rica história e atuação junto a uma parte da

cidade à qual eu pouco pude me dedicar, o bairro do Tomba, principalmente por ser

considerada, muitas vezes de modo apenas jocoso, como rival à área do Alto da Estrela. A

vila de remanescentes de quilombolas do Remanso é um local consideravelmente próximo a

Lençóis e com muitas conexões diretas com a cidade, sendo de interesse pesquisar não

somente seu turismo de base comunitária, sua organização em torno de algumas famílias

tradicionais e sua luta por titulação como o jarê que parece estar ressurgindo nos últimos anos

após um hiato. Além desse, o estudo de outros jarês não só dos distritos pertencentes ao

município de Lençóis como de outras cidades da Chapada Diamantina enriqueceria o

conhecimento das configurações contemporâneas do culto, especialmente os pertencentes às

áreas agrícolas da região, que devem ter passado por alterações distintas às dos locais que se
354

voltaram para o ecoturismo. A continuidade da pesquisa junto aos jarês de Lençóis já

estudados também se apresenta promissora, não só por seu protagonismo na revitalização do

culto como pelos processos recentes que têm posto em marcha, como as tentativas de

tombamento de seu patrimônio material e imaterial e as novas disposições dos líderes

tradicionais em função não só dessa como de outras inovações.

Dentre os aspectos da tese que não se conectam diretamente e apenas com os jarês,

aquele que é possivelmente o mais frutífero se reporta às elaborações singulares apresentadas

pelo culto enquanto uma das muitas versões das religiões de matriz africana que tomaram

forma após a diáspora. Assim como as demais, o jarê se afigura um caso privilegiado para o

estudo de determinadas atualizações de virtualidades em detrimento de outras, que de todo

modo podem nele continuar atuando de modos específicos. Assim é que o jarê apresenta

certas variações para temas como as linhas de força que percorrem e separam os potenciais

masculino e feminino, a distinção gradativa entre adeptos que são ou não tomados pelas

entidades e as especificidades de suas manifestações, a falta de memória ou consciência do

iniciado quando incorporado por um espírito, a vida dos objetos utilizados no culto, a relação

do jarê com outras religiões, a ligação das práticas com o solo e a terra, as formas de

realização dos sacrifícios, bem como as intercessões e passagens tanto entre vivos e mortos

como entre humanos e caboclos que serão retomadas abaixo uma última vez. Espero que essa

etnografia a respeito do jarê possa tanto se prestar à desestabilização de determinados

conceitos368 quanto contribuir para a elaboração do conclamado novo quadro sinóptico das

religiões de matriz africana, já que algo como as “Ritológicas” ainda está para ser escrito369.

368
Estendendo-os com “imaginação social”, tarefa para a qual faz-se necessário tanto “perceber como são postos
para funcionar no seu contexto indígena” como indicar “como poderiam funcionar num contexto exógeno”
(Strathern 1996: 521 apud Goldman 2009: 119).
369
Musicalmente, talvez se inspirando para sua organização e composição não tanto nas formas da música
clássica que guiaram as Mitológicas de Lévi-Strauss (1964: 33-38) mas sim na música eletrônica.
355

A morte é um tema que no jarê costuma receber muito menos elaboração do que a vida

e os vivos. Até por isso, não seria exato considerar a morte como o contrário da vida, já que

não passa de parte de seu término, do mesmo modo como o nascimento é seu começo, esse

sim possivelmente oposto ao fim que a morte pode denotar370. Costuma-se, inclusive,

comentar que no jarê “tem jeito para tudo, menos para a morte”, considerada o momento

derradeiro da existência para os seres humanos – ou ao menos para a maior parte deles. A

morte, que é ocasionalmente ligada ao mar – “porque o mar é infinito”, explicam371 –, carrega

consigo uma grande medida de inevitabilidade, ao mesmo tempo em que suscita um conjunto

de conjecturas a respeito do que pode acontecer a uma pessoa depois de seu falecimento.

Enquanto alguns dos adeptos consideram que as almas de todos os seres humanos podem

viver eternamente num outro domínio da existência, a maior parte deles afirma de modo

categórico que para os humanos não há nada depois da morte, motivo pelo qual não há razão

para se ter medo do cemitério, como me disse Áurea – acrescentando que o mesmo não podia

ser dito a respeito da igreja, esse sim um local atemorizante. Como mencionado

anteriormente, é aí que ocorre o ritual de lamentação das almas372, por meio do qual os

espíritos dos mortos são apaziguados. Vê-se assim que, se a alma de uma pessoa não constitui

sua essência, que sobreviveria intacta após a morte, ela é um resquício possível que pode

370
É o que igualmente se depreende do fato de que os curadores, se podem por vezes invocar e talvez mesmo
receber espíritos dos mortos, jamais o fazem durante as cerimônias de jarê, culto cuja “religiosidade está voltada
pra o mundo dos vivos” (Gonçalves 1984: 131, 134).
371
A associação entre o mar e a morte parece ser recorrente nos candomblés angola e em outras religiões de
matriz africana, em tudo lembrando, por exemplo, a “Kalunga” do palo cubano, inclusive no modo como falam a
respeito dela, equacionada como mar: trata-se de um plano de imanência do qual sujeitos e objetos emergem ao
sabor das flutuações, das marés (Ochoa 2004: 42-53; 2007: 482). O termo foi escolhido para fazer parte do nome
de uma obra que reúne imagens produzidas ao longo de três séculos a respeito dos negros no Brasil (Moura
2000: 15).
372
Descrito no capítulo 2, seção 2.3.
356

habitar no mundo por algum tempo, e que não é necessariamente deixado por toda pessoa ao

falecer, ou “desencarnar”, como também se diz. Na linguagem mais usada no âmbito do jarê,

trata-se da “sombra”, que aqui pode ser definida como um amálgama da pessoa que se foi

somada a algo das entidades que lhe acompanharam em vida373.

Uma pessoa após morrer pode ou não deixar no mundo dos vivos uma parcela de si à

qual os viventes poderão ter acesso caso possuam a capacidade de lidar com esses seres, em

geral chamada de “mediunidade”, que pode ser desenvolvida também nas cerimônias de jarê e

cuja posse costuma ser indicativa da sina de se tornar um líder de casa de culto. Além de

pessoas que falecem em acidentes naturais ou tragédias – o que costuma ser o caso das

entidades da linha dos já mencionados “espíritos de luz” –, os humanos que em vida

demonstraram possuir grande força pessoal e que a mobilizaram continuamente tendem a

deixar para trás sua sombra, de algum modo sobrevivendo, parcialmente, a sua morte. Nem

toda pessoa, então, irá necessariamente continuar a existir no além, local onde os espíritos dos

mortos, por vezes chamados de “eguns”, habitam e de onde podem ocasionalmente partir para

vir visitar os viventes, com resultados diversos. Os adeptos comentam que não é

recomendável conceder muita atenção aos mortos, já que eles podem se nutrir desses fluxos

de intencionalidades que são capazes, eles também, de veicular energia, gerando deficiências

que podem ocasionar males a serem curados no jarê. Em função disso, os líderes das casas

instruem os frequentadores das cerimônias a ignorarem seres estranhos que porventura

pressintam ou detectem, a fim de que não corram o risco de fortalecer um espírito de morto e

estimulá-lo a permanecer junto aos vivos.

As entidades que são próximas de uma pessoa, e de certo modo também podem passar

a fazer parte de sua composição, têm a mesma capacidade de sobreviver à morte de um

iniciado, possivelmente num grau ainda mais pronunciado. Os filhos-de-santo de Pedro de

373
Acrescentando uma definição alternativa à oferecida anteriormente, no capítulo 3, seção 3.5.
357

Laura eram unânimes em afirmar que, por mais que “a matéria” houvesse lhes deixado, os

caboclos dele jamais iriam morrer, motivo pelo qual muitos adeptos, em especial os mais

antigos frequentadores da Capivara, afirmavam não ver necessidade de recorrer a outro pai-

de-santo. Ao contrário dos humanos, eles diziam, os santos não morrem, por mais que possam

com o tempo desaparecer caso deixem de ser cultuados, como mencionado anteriormente. A

possibilidade de não morrerem é uma das características que distingue essas entidades da

maior parte dos humanos, à exceção daqueles que haviam deixado o mundo dos vivos sem

morrer, ao se “encantarem”. Ao se tornarem habitantes desse outro mundo, esses humanos,

por não terem tido de enfrentar a morte, sofrem uma transformação peculiar e passam a ter

uma constituição que os aproxima das entidades cultuadas no jarê, muitas das quais podem ser

chamadas de maneira intercambiável de “encantados”. Pessoas que encantam, geralmente

desaparecendo nas serras ou matas, e cujos corpos jamais são encontrados, indicam um

fenômeno que pode ser pensado como inverso ao do já nascer feito: trata-se de pessoas que

não serão desfeitas pela morte374. Tanto essas como as pessoas que figuram entre os grandes

nomes do jarê exibem também uma característica que mostra o cromatismo entre seres

humanos, entidades do jarê e espíritos de mortos, já que – em função de sua considerável

força pessoal – tanto aqueles que já nasceram feitos como os que ao longo da vida se tornaram

prontos de forma muito intensa são particularmente propensos a se tornarem eles próprios

entidades a serem cultuadas – do mesmo modo como no passado pode ter acontecido tanto

com nativos do continente africano como com indígenas em território nacional, conforme

conjecturam alguns adeptos375. Assim como os guiavam em vida, após abandonarem sua

374
No candomblé, crianças que são reclamadas para morrer antes mesmo de nascer, ditas abiku, têm sua
existência na terra condicionada a uma negociação com as entidades, não devendo por isso ser iniciadas: como aí
iniciação replica uma morte, às quais essas crianças são cotidianamente extraídas, não suportariam sofrer uma
permeabilização ainda maior a seus efeitos (Augras 1994: 77-78 apud Barbosa Neto 2012: 28 nota 20). Apesar
do termo não ser utilizado no jarê, o episódio que será narrado abaixo consistiria um exemplo bastante próximo a
esse fenômeno, cujo desenrolar dramático se processou inteiramente diante dos viventes.
375
Menos do que divindades absolutas, muitas entidades podem assim ter se originado de seres humanos
extraordinários (Senna 1998: 205).
358

existência material essas pessoas podem continuar a prestar auxílio aos adeptos do jarê, de

modo possivelmente não limitado à ação das entidades que deixam para trás e que podem

continuar a existir.

O processo mais elaborado de decomposição da pessoa é destinado aos grandes

curadores, aos quais deve ser direcionado o ritual funerário já mencionado chamado de

sirrum, em geral feito alguns anos após seu falecimento, passado um período de luto. O

sirrum costuma ser oficiado por outro pai-de-santo, muitas vezes resultando na desativação

completa da casa de culto do primeiro. Conforme os adeptos contam, nessas cerimônias não

há toques dos tambores, que permanecem cobertos com panos brancos, sendo a destruição ou

dissolução dos bens do falecido a principal atividade do ritual. Muitos dos pertences pessoais

e objetos rituais do morto são quebrados no salão da casa de culto, o couro dos atabaques é

rasgado e suas roupas cuidadosamente descosturadas. Torna-se difícil para os frequentadores

da casa conter as lágrimas, ainda que devam tentar fazê-lo, sendo igualmente instruídos pelo

oficiante a não dar grande atenção a quaisquer visões que possam ter durante o ritual, em

geral do próprio falecido. Conta-se que o morto se manifesta também por meio do assento que

costumava ocupar em vida, no qual ninguém mais se senta, podendo o objeto se agitar

sozinho. Ao final do ritual, os objetos desfeitos são despachados nas águas, despejados no rio

mais próximo para que possam seguir seu caminho e levar consigo grande parte da influência

que o curador era capaz de exercer em vida. Os filhos-de-santo da Capivara dizem que não

realizaram um sirrum para Pedro de Laura, optando ao contrário por manter intacta uma

parcela considerável de seus bens pessoais, especialmente suas roupas, até hoje guardadas de

maneira zelosa. Do ponto de vista de alguns iniciados, o egum do incomparável curador

continua a proteger sua antiga casa, mantendo-a paradoxalmente viva e de certa forma

congelada, já que é sua presença que impede a realização de novas iniciações no Palácio de

Ogum.
359

O fato de que nem toda dissolução da pessoa precisa ser necessariamente completa é

mais um dos exemplos que aponta para uma continuidade possível entre vivos e mortos,

humanos e entidades, podendo ser estas também responsáveis pela realização de passagens,

atualizando conexões bastante diretas com o domínio dos mortos376. Esse foi o caso de uma

criança recém-nascida, filha de uma mulher que deu à luz no próprio terreiro da Capivara na

época de Pedro de Laura. Uma entidade, Odé, manifestou-se no curador e veio saudar a

pequenina, perguntando à mãe da criança, em tom de aparente brincadeira, se ela não lhe

daria o bebê. Achando alguma graça na situação, e ignorando as consequências de suas

palavras – como frisou a senhora que me contou essa história –, a mãe disse sim à entidade,

que ficara fascinada com a beleza da recém-nascida. Pouco tempo depois a criança deixou de

se mover, abandonando os viventes, e não ficou dúvida entre os que acompanharam a situação

que ela fora levada pela entidade. Ela descansaria a partir daí na “Cidade de Pé-Junto”, que é

como Dona Valdelice, comadre de Pedro, com grande propriedade se refere ao cemitério, bela

morada na qual todos os vivos repousarão um dia, como ela diz. Os pés juntos de que fala

Dona Valdelice não se referem apenas ao modo como os mortos são depositados em seus

caixões, mas chamam atenção igualmente para a principal característica de quem não está

mais vivo, a saber a imobilidade dos pés que não mais sobem e descem as serras, não mais

cruzam os rios e matas, não mais caminham nem dançam377.

Todo jarê termina com uma homenagem a Cosme Damião, entidade da gemelaridade e

em cujo mês de setembro costuma se concentrar o maior número de cerimônias das mais

diversas casas de culto de Lençóis. Enquanto conversava um dia com Elias a respeito dos

motivos que levam à centralidade de Cosme para o jarê, ele me presenteou com um mito que

376
A essas transformações se dedica o belo epílogo com que se conclui a magnífica tese de Barbosa Neto (2012:
361-363).
377
Recorde-se aqui o episódio da senhora que recuperou sua mobilidade e fez seu habitual trajeto até o rio para
lavar roupas antes de falecer, conforme visto no capítulo 1, seção 1.3.
360

ouvira de uma das senhoras de quem tomara ensinamento, traçando sua origem às nagôs da

cidade. Ao narrar esse mito, Elias aproximou Cosme dos Ibêji, orixá duplo africano ligado

igualmente aos gêmeos. Segundo o mito, muito tempo atrás havia num reino africano um par

de irmãos absolutamente idênticos, já por isso considerados muito especiais. Certo dia,

durante uma celebração às entidades, a Morte chegou ao reino dizendo que iria levar consigo

todos os seus habitantes, assim que o couro dos atabaques parasse de soar. Diante da sina

nefasta, os irmãos tiveram uma ideia e decidiram se revezar nos atabaques, de modo que um

pudesse descansar enquanto o outro mantinha a música viva, estendendo indefinidamente a

duração da festa. Como eram idênticos e trocavam de lugar quando a Morte estava distraída,

ela não foi capaz de distingui-los e imaginou que se tratava de uma mesma pessoa tocando

ininterruptamente. Cansando-se de esperar, ela finalmente desistiu de seu intento e deixou o

reino sem levar nenhum de seus habitantes. Os gêmeos foram saudados como heróis, tendo

vindo eles próprios, posteriormente, a se tornarem divindades.

De certo modo, todo jarê realizado até os dias de hoje pode ser pensado como uma

reatualização desse embate, e desse ardil. Como os gêmeos do mito, os tocadores de atabaque

são responsáveis por manter a festa sempre em curso, instando, junto dos demais presentes, os

iniciados a continuarem dançando, as entidades a não deixarem o salão, apesar do

esgotamento a que todos estão inevitavelmente sujeitos. Bater jarês é uma forma de fazer com

que a vida, em sua plenitude, prossiga, e até por isso as cerimônias são voltadas para a cura e

a reabilitação dos adeptos, para a mobilização das entidades e das forças que compõem e são

compostas por ambos, para o afastamento progressivo dos mortos e suas influências

perturbadoras. Bater jarês é sobretudo um meio de manter viva uma festa sem fim, uma festa

que não pode acabar sem que se corra o risco de seu término significar também o término da

vida como a conhecemos. De todo modo, uma festa é – e precisa ser – também uma ocasião

feliz, animada, muito embora as circunstâncias nem sempre favoreçam a alegria. Mesmo
361

diante de uma série de obstáculos, e convivendo com a possibilidade de que o jarê venha a

desaparecer caso seu empenho não se renove, seus adeptos optam por uma existência plena de

vivacidade. Dão testemunho, assim, não só durante as cerimônias como fora delas, das

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362

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Índice remissivo

abundância e falta 52-53, 87-89, 174-175, Chapada Diamantina 3, 6, 12-14, 155


257-258, 291 povoamento da 27
água 23, 41,163, 165, 189, 245, 276-277, Parque Nacional da 13, 35, 46-47, 54,
304 56
álcool 60-62, 66, 82, 98, 104-105 confiança 282, 293-295, 341
no jarê 62, 218-219, 332-333 cor e raça 14, 87, 91, 105, 107-115, 120,
alimentos 128, 219-220
no cotidiano 46-47 Cosme 152, 307-308, 359-360
no jarê 171, 173-176, 188, 207 crença 290-293
altares crianças 87-89, 148-150, 217, 313, 336,
domésticos 135-136 343-344
pejis 170-172 criatividade 2, 5, 79, 352
Alto da Estrela 86, 91, 93 cura 7, 9, 62, 245, 265, 325, 333, 337, 340
Andaraí 6, 12, 155, 162, 236 curador 157, 272-273, 328
apelidos 80, 94, 128 Daso 164-165, 267-268, 279-280, 284, 331
associações 204-206, 276, 284 diamantes 27, 31, 42-45, 59
atabaques 173, 210-212 dinheiro 55, 58-60, 64
batedores de 209-210, 213-218, 360 divinação 7, 172, 252, 341-342
e outros instrumentos musicais 212-213 drogas 62-64, 66, 93, 98
Áurea 203, 238-239, 267-269, 275-289, Elias 94-99, 102-105, 107-108, 111, 121-
297-298, 331, 340, 353, 355 131, 134-135, 149, 158, 207-208, 284,
Avante Lençóis, Movimento 96-97, 99- 352-353
102, 353 entrevistas 18, 122, 222-223
caboclos 117, 158-159, 188, 194, 269, 283, ervas 167, 187, 199, 271, 340-341
297-309, 320-321, 325, 336, 338, 356- escravidão 6, 14, 28-30, 36, 38-39, 80,
360 105-107, 110-111, 114, 121, 200, 306
Cachoeira (município) 30, 115-116 escrita 228-230, 296-297
Calendário 129 etiqueta 61, 132-135, 216, 310
litúrgico do jarê 151-153, 166, 175, 251 evangélicos 16, 145-148, 275
de festas populares 89, 136-139 exus 166, 192, 293, 308-309, 315, 336
caminhar e pisar 17, 38, 69-73, 324-326, fala 81-82, 129-132, 165-166, 289-290,
351, 359 334
candomblé 98, 116-118, 153-158, 220, feitiçaria 176, 248-250, 267, 270-274
266, 297, 327 felicidade, condições de 10, 160
cantigas 228-235, 283, 312-314, 334 festas 84-85, 89, 151, 156-157, 174
Capivara, casa de Pedro 162-163, 165, filmes 53, 80, 110-111, 223-224
222, 236-239, 242, 266-269, 279-280, fofoca e sotaque 24, 75-77, 131, 287-288
358 forasteiros 25-26, 35-36, 43, 50, 53, 56, 58,
capoeira 66-69, 93, 110-111 66, 81, 86, 91
Casa Grande, Associação 86-87 força 7, 17-18, 252-253, 292, 300, 323-
casas de jarê 156-157, 159-161, 165-173 324, 327-339, 341, 344-347, 356
catolicismo 8, 16, 136-146 fotografias 224-227, 343
382

garimpo 25, 27, 30, 38-48, 50-52, 59-60, pseudônimos 15-16, 132
92, 97, 106, 236-237, 351-352 quadrilha 89-92, 110, 203
Gilson, Seu 22-25, 37-39, 44-49, 55, 61, reisado 138
250, 352 relações sexuais no jarê 285-286
Grãos de Luz e Griô 101-103, 124, 208 religião 16-17
Horácio de Mattos 31-32, 118-119 Remanso 112-114, 240-241, 353
humor 45, 57, 78, 128 resistência 214, 220-221
incorporação 7, 9, 158, 191, 301-302, 309- rituais 9, 129, 133-134, 157, 193-196, 251-
321, 326, 331-332 252, 280, 283, 317
independência feminina 286-287 roupas 151, 312, 321-324, 358
indígenas 112-113, 201, 305, 357 sacrifício 158, 167, 184, 187-188, 278,
iniciação 342-344
de adeptos 62, 156-157, 171-172, 176- saliva 175-176, 333-334, 339
177, 180, 182-191, 278-279, 329 Sandoval 202-204, 206-210, 213, 222, 238,
de curadores 157, 167, 192, 240, 261- 244, 254, 267-270, 276, 279, 353
262-264 sangue 188, 216, 249-250, 339, 344-347
jarê 5-11, 42, 110, 115-120, 132, 151-162, São João 89-90
255, 282, 354, 360-361 segredo 125, 191-192, 255-256, 260-261,
de brincadeira 148-150 263
e religiões cristãs 146-148 Senhor dos Passos 30, 37-38, 71, 137, 145
lamentação das almas 139-140, 143-144 sexualidade 80, 220, 244
lavagem da igreja 138-139, 142-143 Sincorá, Serra do 13-14, 27, 47, 51-52
Lençóis 6, 10, 14, 23-37, 43, 70, 155, 162, sonhos 254-255, 301
236 subversividade 8, 141-145
loucura 264-265, 338 suficiência, ética da 39-40, 55-56, 88-89
marujada 103 terra, importância no jarê 159, 170, 188,
masculinidade 95, 219 195-198, 306-307
memória 6, 9, 99, 104, 122, 130, 191, 230, terreiros 156-157, 166-167
235, 295-296, 316 tombamento
mito 354 de Lençóis 33
morte 73, 140, 189-190, 202, 248-250, do jarê 208-209, 354
252, 293, 337, 345-347, 355-360 trabalho 50, 54-55, 83
movimento 7, 245-246, 258-259, 292-293, de campo 12, 15, 92, 127-130, 351
301, 318, 325-327, 330-331, 335-336 ética do 40-42, 55-56
musicalidade 217-218 trama 4, 281
Mussum 162-163, 238-239, 267, 279, 284 transformação 3-5, 207, 300-301, 352, 354
nagôs 6, 115-120, 125 transmissão de conhecimento 125-126,
natureza pessoal 147, 230, 235, 311 256-260
objetos rituais 183-185, 191, 194-195, 283, transporte 49-50, 59
331, 339, 358 até os jarês 206-207
ogã 157, 251, 263, 277 turismo 17-18, 25, 34-35, 46-54, 63-64,
parentesco 80-81, 177-182, 243, 279 78-79, 107, 113-114, 129
pedra de raio 41, 118, 328, 339 união 161-162, 267-268, 281
Pedro de Laura 113, 161-162, 202-203, Valdelice do Alto da Estrela, Dona 198-
239-255, 259-260, 265-266, 273-274, 201, 276, 293
356-358 Valdelice do Baixio 163-164, 267-268
pesquisadores 26, 58-59, 99, 122-127, 207 violência 64-65, 250
política 82-86
383

Anexo I – Perfis

Nesse anexo encontram-se breves perfis das pessoas mencionadas com maior
regularidade ao longo da tese para referência durante a leitura. Ainda que estas sem dúvida
façam parte do conjunto dos principais interlocutores com quem a pesquisa foi desenvolvida,
certamente não o esgotam. A totalidade dos nomes pode ser conferida na seção de
Agradecimentos no início do texto.

Áurea Principal filha-de-santo do Palácio de Ogum, localizado próximo ao Rio


Capivara, e tia materna de Sandoval, irmã de Dinha. Renomada parteira.

Carminha Puxadora da quadrilha Bicho-do-Mato e irmã de Mussum, durante o São João a


animada Carminha também respondia pelo apelido de Xuxa Preta.

Daso Apelido pelo qual é conhecido Gildásio, último filho-de-santo feito por Pedro
de Laura e curador do terreiro Pai Gil de Ogum, junto ao Rio das Toalhas.

Dinha Mãe biológica de Sandoval e irmã de Áurea, realizou um jarê em sua casa
localizada nos arredores da sede de Lençóis.

Elias Pesquisador diletante apaixonado pelas tradições de Lençóis e contador de


histórias locais, já tendo escrito para o jornal Avante.

Gilson Ex-garimpeiro e contínuo do único banco da cidade de Lençóis, seu pai foi um
dos sacrificadores rituais do Palácio de Ogum.

Joaquim Dono da Pousada Violeiro, possui igualmente uma pequena venda no Centro
de Lençóis. Marido de Dona Juanita.
384

Juanita Dona da Pousada Violeiro, já tendo trabalhado em diversos estabelecimentos


na cidade. Esposa de Seu Joaquim.

Mussum Curador responsável pela condução de certas atividades rituais no Palácio de


Ogum, começando também casa de culto própria. Irmão de Carminha.

Pedro Maior curador de que tem notícia a memória recente de Lençóis e um dos
de Laura grandes mestres do jarê da Chapada Diamantina. Pai adotivo de Sandoval e
compadre de Valdelice do Alto da Estrela.

Sandoval Filho biológico de Dinha e sobrinho de Áurea, adotado por Pedro de Laura.
Presidente recorrente da Associação do jarê e promotor das festas na Capivara.

Valdelice Sábia autora de máximas apreciadas e repetidas pelos habitantes de Lençóis.


do Alto da Comadre de Pedro de Laura e madrinha de inúmeros lençoenses.
Estrela

Valdelice Líder da casa de culto Águas de Iemanjá, localizada no Baixio, e atual


do Baixio responsável pelo ritual de lamentação das almas em Lençóis.
385

Anexo II – Mapas

1. Localização da Chapada Diamantina. O Parque Nacional da Chapada Diamantina


acompanha de modo bastante próximo os limites da Serra do Sincorá378.

378
Reproduzido de http://pousadaribeirao.blogspot.com.br/. A fonte indicada no local onde a imagem foi
encontrada foi contatada e indicou que a imagem é de autoria desconhecida.
386

2. Geografia da Chapada Diamantina no entorno da cidade de Lençóis. Horizontalmente, o rio


localizado mais ao sul ainda presente na imagem é o Rio Capivara, às margens do qual se
localiza o Palácio de Ogum. No caminho da cidade até ele, passa-se necessariamente pela
casa Águas de Iemanjá, no Baixio, próximo ao Córrego dos Cachorrinhos. O rio mais ao norte
na imagem é o Rio das Toalhas, às margens do qual se localiza o terreiro Pai Gil de Ogum.
Todos os rios mencionados são tributários do Rio São José, que corta a imagem
verticalmente379.

379
Fonte do mapa: Google Earth.
387

3. A cidade de Lençóis. Para se chegar ao Palácio de Ogum saindo da cidade toma-se a trilha
marcada com a direção “Ribeirão de Baixo”, na parte esquerda do mapa380.

380
Fonte do mapa: Guia Lençóis (http://www.guialencois.com.br/arquivo/pdf/mapa_lencois.pdf), reproduzido
com autorização.
388

Anexo III – Fotografias

Esse anexo contém as fotografias às quais o texto da tese faz referência,


acompanhadas de uma breve descrição. Não há certeza quanto aos nomes dos autores das
fotos pertencentes ao acervo da Associação dos Filhos-de-Santo do Palácio de Ogum e
Caboclo Sete-Serra aqui reproduzidas e indicadas na lista abaixo. A seguir encontram-se os
nomes dos autores de todas as demais:

Associação do jarê
Fotos 62, 63, 64.

Calil Neto
Fotos 2, 3, 4, 8, 9, 13, 14, 15, 16, 29, 30, 31, 32, 34, 35, 39, 40, 42, 45, 47, 55, 59, 60,
65, 66, 67, 68, 74.

Gabriel Banaggia
Fotos 1, 7, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 33, 36, 37, 38, 41,
43, 44, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 56, 57, 58, 61, 69, 70, 71, 72, 73.

Tiãozinho
Fotos 5, 6.
389

1. A cidade de Lençóis e suas serras.

2. Anoitecer em Lençóis.
390

3. Vista aérea do Centro Histórico de Lençóis.

4. Exemplos das fachadas das construções de Lençóis. As portas e janelas de muitas das
edificações de menor porte seguem o mesmo estilo.
391

5. Seu Gilson, simulando uma garimpagem.

6. Seu Gilson simula o peneirar do cascalho feito pelos garimpeiros.


392

7. Detalhe da imagem de Senhor dos Passos em Lençóis.

8. Ruínas na vila do Barro Branco, no município de Lençóis.


393

9. Ruínas de Igatu, distrito do município de Andaraí, outrora um grande centro de garimpo.

10. Ruínas da fundação do Solar de Ricardina, na cidade de Lençóis.


394

11. Rua do Alto da Estrela, com suas formações rochosas características.

12. Amanhecer observado de casa no Alto da Estrela.


395

13. Atual configuração da marujada de Lençóis.

14. Marujada em formação se apresenta pelas ruas da cidade.


396

15. A vila de remanescentes de quilombolas do Remanso.

16. Os marimbus próximos à vila do Remanso, que são visitados em canoas.


397

17. Elias anota a letra de uma cantiga a pedido de Dona Eva.

18. Elias ajeita objetos de uma oferenda ritual para ser fotografada.
398

19. Altar doméstico na casa de Sílvio, um filho-de-santo de jarê.

20. Detalhe da lapinha de Dona Domingas com seus inúmeros objetos.


399

21. Reisado de Lençóis antes do início de uma procissão, com Dona Domingas ao centro.

22. Detalhe dos chapéus usados no reisado.


400

23. Dona Vâny, ao centro, na preparação da saída das baianas para lavagem da igreja.

24. Baianas em cortejo pelas ruas de Lençóis se dirigem à igreja.


401

25. Sob chuva, lamentadoras de almas rezam a última estação antes de entrar na igreja.

26. Dentro da igreja, lamentadoras lideram a entoação das últimas rezas às almas.
402

27. Crianças improvisam instrumentos para um jarê de brincadeira no bairro do Lavrado.

28. Crianças e jovens simulam receber entidades num jarê de brincadeira.


403

29. União das cabeças protagonizada por uma adepta incorporada, no centro, e uma jovem.

30. Repasto que costuma anteceder as festas de jarê na principal casa de culto de Lençóis.
404

31. Fachada do Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, onde reinou Pedro de Laura.

32. Entorno do Palácio de Ogum, próximo a um banco de areia resultante do garimpo.


405

33. Mussum prepara um dos tambores da Capivara.

34. Um dos caboclos de Mussum incorporado no pai-de-santo.


406

35. Para se chegar às casas de culto deve-se tomar trilhas similares a essa saindo de Lençóis.
Só uma pequena parte, contudo, encontra-se conservada como a retratada.

36. Salão da casa Águas de Iemanjá em festa.


407

37. O antropólogo retratado com Valdelice, Corró e uma de suas filhas, Daiane.

38. Um dos caboclos de Valdelice incorporado na chefe da casa de culto.


408

39. O terreiro Pai Gil de Ogum à noite.

40. Daso no Rio das Toalhas, ao lado do terreiro.


409

41. Daso com alguns dos frequentadores de seu terreiro, incluindo seus filhos-de-santo.

42. Um dos caboclos de Daso incorporado no curador.


410

43. Morada de Exu protegendo a entrada de um terreiro.

44. Caramanchão ao qual os frequentadores do terreiro se dirigem nas chegadas e partidas.


411

45. Mussum orienta um aprendiz no preparo das oferendas na entrada do Palácio de Ogum.

46. Árvore ornamentada antes de uma cerimônia no terreiro de Daso.


412

47. Peji do Palácio de Ogum, diligentemente conservado pelos adeptos da casa.

48. Parte da parafernália ritual do quarto de santo do terreiro das Toalhas.


413

49. Exemplo da disposição de objetos rituais para um trabalho de iniciação.

50. Dois conjuntos de colares após terem sido lavados pertencentes a iniciandos.
414

51. Adeptos espalham terra no centro do salão, mesclando o sangue sacrificial ao chão.

52. Caboclos prostrados ao pé dos atabaques dando origem a uma lama ritual.
415

53. Dona Valdelice, em um passeio nas cercanias de Lençóis para recolher ervas.

54. Dona Valdelice retratada a seu pedido diante do cemitério da cidade.


416

55. Sandoval posa junto de crianças ligadas ao Palácio de Ogum antes de uma festa.

56. Reunião da associação do jarê, à época presidida por Sandoval, à direita.


417

57. Um dos atabaques do Palácio de Ogum feito com a técnica do tronco cavado.

58. Detalhe das estacas usadas para afinação dos atabaques.


418

59. Tocadores de atabaque com expressões faciais características à função.

60. Outros instrumentos usados no jarê: o xequerê em primeiro plano e o agogô ao fundo
419

61. Gravação de entrevista nas proximidades do Palácio de Ogum, no Poção do Rio Capivara.

62. À esquerda, Pedro de Laura com seu filho, Sandoval, ainda criança.
420

63. Pedro de Laura, um dos maiores mestres do jarê da Chapada Diamantina.

64. Cerimônia na Capivara em foto na qual podem ser vistos muitos dos principais líderes do
jarê da contemporaneidade.
421

65. Árvore preparada com presentes fincada no meio da fogueira de Odé.

66. Momento da queda da árvore consumida pela fogueira e corrida para pegar os presentes.
422

67. Alguns dos frequentadores e iniciados da Capivara, hoje também ligados a casas diversas.

68. Caboclos de Daso e Mussum se cumprimentam ritualmente durante um jarê na Capivara.


423

69. Fitas em árvores e moradas das entidades protegem as mesmas e estas ao terreiro.

70. Detalhe de árvore que serve de morada a um Exu no terreiro Pai Gil de Ogum.
424

71. Maria Áurea, uma das mais importantes filhas-de-santo do Palácio de Ogum.

72. A Iansã, também chamada de Santa Bárbara, de Maria Áurea dança no salão da Capivara.
425

73. Árvore onde mora um Eru, localizada na mata nas proximidades de um terreiro.

74. Adepta se abaixa em deferência antes de saudar a Iansã de Áurea, que retribui o gesto.
426

Anexo IV – Cantigas

Esse anexo reúne letras de diversas cantigas de jarê da forma como me foram cantadas
pelos filhos-de-santo de Lençóis para serem registradas. A maior parte delas provém do
Palácio de Ogum e seus iniciados, tendo sido compiladas e disponibilizadas por escrito em
cópias para os amigos que me auxiliaram mais diretamente na empreitada. Uma coletânea
como essa dificilmente pode ser completa, em especial por três motivos. Em primeiro lugar,
porque existem algumas cantigas que são envoltas em segredo, as quais me pediram
especificamente que não divulgasse. Em segundo lugar, porque o repertório das cantigas é
muito extenso e é difícil até para os filhos-de-santo de melhor memória lembrar todas elas
quando não se está numa cerimônia de jarê. Em terceiro lugar, porque muitas cantigas
desaparecem com o tempo enquanto outras são criadas e improvisadas, fazendo com que o
repertório esteja em fluxo constante.
A ordem das cantigas aqui registrada procurou seguir, grosso modo, a sequência das
entidades que seriam cultuadas durante uma festa para Iansã no Palácio de Ogum. De todo
modo, estão presentes também cantigas elaboradas em outros terreiros e, especialmente nas
últimas partes do anexo, outras executadas para fins diversos então indicados. Ao final
encontra-se uma cópia do disco gravado pelos membros da Associação do jarê mencionado no
capítulo 3.

Exu

Vem cá Exu, vem me dizer Exu, Exu, Exu vai pro caminho
O que é que tem aqui Exu das sete encruzilhadas
Vem cá Exu, vem me dizer Exu vence por mim
O que é que tem ao redor do peji
Cachorro late na rua
Exu da meia-noite Galo canta no muro
Exu da encruzilhada Ô, salve, Exu
Exu da meia-noite Exu Tranca-Rua
Exu da encruzilhada
Fala o povo de umbanda
Sem Exu não se faz nada
427

O sino na igrejinha faz belém-bedan Olha o catacatá


O sino na igrejinha faz belém-bedan Exu loquê
É meia noite o galo já cantou Ô lokã
Seu Tranca-Rua que é dono da gira De canjerê
Vem correr gira que Ogum mandou
Sai-te daqui Exu Mulambo
Exu olha a babô-iá Irmão de Exu-Mulambinho
Exu olha a babô-iá Vai ficar na encruzilhada
Exu olha a babô-iá Onde passa quem fala de mim
Faz Exu baboiá
Pombogira menina
Marabô, eloguebô Pombogira mulher
Xoxô adé Pombogira menina
Marabô, eleguebô Rainha de candomblé
Ai, meu Deus
Xoxô adé
Abertura de Sete-Serra
Olha, olha catira de umbanda
Espia, espia quem vem lá Esse caboclo é bom
É o chefe, rei de quimbanda É bom pra guerrear
Chefe por chefe ele é o maioral No terreiro de Ogum
Todo povo tá nos saravando Quando a aldeia precisar
Papai de quimbanda mandou lhe chamar
Ô que caboclo é esse
Itália, Itália Que chegou até aqui
Ô leva é no seró Caboclo da mata bruta
Itália, Itália Da mata do cangoji
Ô leva é no seró
Ogum mandou Exu levar Tava na aldeia de jacuritá
Ô leva é no seró Tava na aldeia de jacuritá
Pra que meu Deus, pra que meu Deus
Pombogira já comandou Pra que mandou me chamar
Rá rá ê Eu vinha de jacuritamba
Pombogira já comandou Passei pelo jacuritá
Ô rá rá ê Chamei três curimbeiros
Que eu vinha aqui sambar
Raio de fogo, Ogum mandou Segura o samba meus curimba
Tupinambá vai levar Segura o samba que eu vim sambar
Vai levar esse despacho
Pros contrários não entrar

Só queima a pólvora
Pra quem sabe queimar
Meu ponto é seguro
Meu pai é Oxalá
Povo de umbanda
Olha os filhos seus
Defuma os seus filhos
Nas horas de Deus
428

Abertura Ô vamo incensar essa casa


Que o dono dela chegou
Ogum das águas claras Ô vamo incensar essa casa
É vem acolá Que Ogum é curador
Vem abrindo as estradas
Com seu batalhão real
Iansã / Santa Bárbara
Que barco é aquele
Ô que ê vem beirando o mar Oxumarê é luz
Mas é o barco de Ogum É luz, é luz, é luz do mar
Carregado de orixá Oxumarê é luz
É luz, é luz, é luz do mar
Quem sabe se Ogum foi pro debate
Quem sabe se Ogum foi guerrear Oxumarê, mora no mar
Me dê notícia de Sete-Serra, Jericó Ela vem nos ares
O que é que houve lá na aldeia Cetroá Quando o arco-íris
Bebe água aqui na baixa
Portas abertas, casa incensada
Ogum de Lê, é coroado Oxumarê felocã
É babá é felocã
Ó Deus, ó salve, Virgem Oxumarê felocã
Rainha da vitória É babá é felocã
Ó Deus, ó salve, aldeia
Aonde os caboclo mora Flores e mais flores
Sou eu, rainha das flores
Essa casa tem quatro cantos Flores e mais flores
Em cada canto uma janela Sou eu, rainha das flores
O Divino Espírito Santo
É quem toma conta dela Iansã de Deus
Iansã Oiá
Quando eu andava, em um caminho Iansã de Deus
Eu só chamava por meu Deus Rainha do mar
E tanto eu chamei por ele
Até que ele me valeu Santa Bárbara Virgem
Ela mora no Mar de Sé
Nada mais do que Deus, meu Deus Ela é mãe da pobreza
Só mesmo Deus, meus Deus É dona de candomblé
Seja por mim, meu Deus Santa Bárbara Virgem
Ajude eu, meu Deus Ôiôê
Santa Bárbara Virgem
Dê força, meu pai, dê força Rainha de candomblé
Dê força aos filhos teus
Dê força, meu pai, dê força Amirô, amiroé
Cumprir a sina que Deus me deu Santa Bárbara Virgem
Rainha de candomblé
Baluaê toma conta da porta
Ô toma conta meu pai Oxalá
Baluaê toma conta das estradas
Para os contrários não passar
429

Santa Bárbara é mãe, minha mãe Santa Bárbara mora no céu


É luz do mar, minha mãe Janaína mora no mar
Chega no terreiro, minha mãe A coroa de Santa Bárbara
Pra vadiar Clareia o mundo geral
Ai, ai, meu Deus
Santa Bárbara de Xangô Mas a dona do mar sou eu
Que acompanha São Domingos Ai, ai, meu Deus
São Domingos é um nagô Mas a dona do mar sou eu
É um nagô tão ligeiro
Que do ribeirão chegou Santa Bárbara desceu do céu
Com o cálice e a espada na mão
Sou eu, princesa Debatendo com os inimigos, Santa Bárbara
Sou eu, Oiá Vós não tens medo não
Sou eu, princesa Vós não tens medo não, Santa Bárbara
Sou dona de canzuá Vós não tens medo não

Sou eu, princesa Eu tava na ponta da pedra


Chegou a baronesa Bebendo água e aparando trovão
Sou eu, princesa Clareou, clareou, Santa Bárbara clareou
Vamos saudar o nosso Deus de grandeza
Água na ladeira, sem poder descer
Chegou minha Santa Bárbara Santa Bárbara Virgem, ô venha me valer
De Oiá, aê
Chegou minha Santa Bárbara Eu vi Santa Bárbara na boca da mata
De Ogum Dererê Vestida de branco, coroa de prata

Santa Bárbara é rainha Santa Bárbara é zona


Rainha dos orixás É zona, é zona
Valei-me minha Santa Bárbara Ela é zona de braço forte
Aqui hoje e em todo lugar É zona

É ouro Santa Bárbara, é ouro Santa Bárbara Virgem


É ouro, eu cheguei de mina Rainha do mar
É ouro Santa Bárbara, é ouro Ela é dona do tesouro
Eu vivo na macumba Ela é dona do altar
Pra cumprir a minha sina Ele é curadeira
Ela vem curar
Chegou Santa Bárbara
De mina, mineira Chegou Oiá de Deus, orobó bocumbalê
Me dê minha saia Oiá de Deus, orobó edê iabá boco bolê
Que eu sou curandeira
É loira, é loira
Eu sou Santa Bárbara Santa Bárbara é loira
Eu só ando é só Quando eu vim de Aruanda
Chegou Santa Bárbara Santa Bárbara é loira
Relâmpago é de caracol
É ô lelelê, elu
Se no mar tem água, elu
Eu tô com meu braço forte, elu
Eu quero nadar, elu
430

Iansã é uma moça bonita Ogum no seu cavalo branco


Ela é dona de seu jacutá E com a sua espada de luz
Iansã é uma moça bonita Ogum, Ogum meu pai
Ela é dona de seu jacutá Cubra teus filhos com o manto de Jesus
Hepa-hê, hepa-hê, hepa-hê Ogum de Lê, meu pai
Ela é mãe de Aruanda
Segura a umbanda, que eu quero ver Ô narê, fala Ogum que é de Lê, leguedê
Hepa-hê Fala Ogum que é de Lê, camurajô
Fala Ogum que é de Lê, leguedê
Por cima de uma pedra
No tombar de uma cachoeira Seu Ogum Beira-Mar
Desci com mamãe Iansã O que é que trouxe de lá
Pra ver a falsidade Seu Ogum Beira-Mar
No pé de uma pedreira O que é que trouxe de lá
Mas ele veio, ele veio beirando a aldeia
Italiana, italiana Ele traz contigo o retrato de mamãe Sereia
Italiana é mamãe Santa Bárbara
Italiana, italiana Da torre da igreja, Ogum assobiou
Ela chegou na maleta d’água Ogum abençoado, foi Jesus que abençoou

Santa Bárbara é de fogo, é de fogo, é Ogum, Ogum, ê Ogum nunca faltou


Procura Santa Bárbara se é, se é Ogum foi dos primeiros que nessa casa
chegou
Iansã tem um leque de pena
Pra se abanar nos dias de calor Senhor Ogum foi pra Itália
Iansã mora na pedreira E Oxalá deu carta branca
Eu quero ver meu pai Xangô Senhor Ogum foi para guerra
Senhor Ogum foi vencer demanda
Santa Bárbara vai embora
Ô pro reinado eu sei que vou Ô vamos bater palma na coroa de Ogum
Mas eu vou pra três colunas Ogum venceu a guerra
Eu vou pra aldeia pro redevô Vamos todos, saravá

Quando a princesa for Eu sou Ogum


Lá pras ondas do mar Não bebo nada
Meus filhos estão dizendo Só bebo água de sereno
Lá vai mamãe Iansã, Oiá Quando eu achava

Quem mexer com os filhos de Ogum


Ogum Morreu, morreu, morreu
Quem mexer com os filhos de Ogum
Senhor Ogum, vem cá, vem cá Morreu, morreu, perdeu
Tá lhe chamando lá na aldeia Cetroá
Eu tenho minhas sete espadas
Fala Ogum, fala Ogum-ê Pra me defender
Fala Ogum, seu Ogum tá no jarê Eu tenho Ogum na minha companhia
Ogum-ê, meu pai
Ogum-ê, meu guia
Ogum-ê, meu pai
Ogum abençoado o filho da Virgem Maria
431

Aonde está, senhor Ogum Ogum-inho veio, Ogum já veio do mar


Aonde está que não me responde Ogum-inho veio, Ogum, do pé da serra
Ele está em alta aldeia
Aonde mora o rei de congue Olha pro céu, filho
Que Deus é um bom pai
Ô, abre as estradas Ogum Quem é filho de Ogum
A porta, Baluaê Ê, balança mas não cai
Oxalá é quem manda
Santa Bárbara vem trazer Ô, gira-ê, giranda
Corta a língua desse povo falador
Ô meu senhor, Ogum Na minha espada eu não tenho embaraço
Ô meu senhor, Ogum de Lê Me chamo Ogum de Lê
A estrela que mais brilha E o meu peito é de aço
Em Aruanda, aê
Saravá, saravá
Ô méje méje, de Ogum mejê-eá Ô viva, meu pai Oxalá
Ogum mejê-eá Saravá, saravá
Ô viva Ogum, que ele veio vadiar
Ogum das sete espadas
Das sete espadas, meu Deus Ogum de Lê
Valei-me senhor Ogum Qué, qué, qué, cereuá
Valei-me Ogum, meu Deus Ogum de Lê
Qué, qué, qué, maiongá
Ô xá, de xaraxaxá
Ogum ê, Ogum á Ogum pisou na pedra
Ô xá, de xaraxaxá A pedra balanceou
Senhor Ogum já veio do mar O mundo tava virado
Santo Antônio endireitou
Só Deus, só Deus
Só mesmo Deus Ogum correu da cutela caiu na curela
Com os filhos de Ogum Ogum de Lê
Só quem pode é Deus Ogum correu da cutela caiu na curela
Ogum de Lê
Ogum debateu, debateu, debateu
Meu Deus, Ogum debateu Ogum é rei dos ares
Ogum nunca tremeu, meu Deus Ele é iolodê
Ogum é rei dos ares
Esse caboclo é bom Ele é iolodê
É bom pra guerrear
No terreiro de Ogum Ogum já vai embora, ô gente
Quando a aldeia precisar Vai no balanço do vento, ô gente

Ogum menino, Caiçara no lajedo Caboclo já vai embora


Aê, aê, Caiçara no lajedo Já vai pra pedra do ouro
Vai buscar o caboclo
Sou eu, pai Ogum Que não engole desaforo
Sou filho que não tenho medo
Eu não tropeço no caminho
Mas também não escorrego no lajedo
432

Aldeia d’Água Quem nunca viu venha ver


Marinheiro pisar no ouro
Louvores a Deus, ô viva Nossa Senhora Marinheiro pisar no ouro
Ô viva, a nossa Aldeia d’Água Marinheiro pisar no ouro

Puxa a linha Marinheiro Eu também sei nadar


Marinheiro marinho Eu também sei nadar no mar
Puxa a linha Marinheiro Eu também sei, também sei
Marinheiro marinho Também sei nadar

Puxa a linha Marinheiro Ligeiro Marinheiro, ligeiro nadador


Marinheiro marinho Ligeiro Marinheiro, sua aldeia embalançou
Essa corrente é pesada
É do caboclo marinho Seu Marinheiro, não me faz assim
Ô embalança o mar, ô traz o Rei Marinho
Eu sou Marinheiro, meu pai eu sei nadar
Eu vou buscar meu barco no lado de lá Eu tava na beira do rio
Eu vi a Sete-Estrela passar
Eu sou Marinheiro Ô morê, morê, ô morê morá
Eu tenho meu braço forte Ô morê, morê, morá
Eu sou Marinheiro
Do Rio Grande do Norte Seu Marinheiro, é hora
É hora de nós viajar
Marinheiro da Vila Velha É no céu, é mar, é terra
Eu vi sofrer Seu Marinheiro olha o balanço do mar
Marinheiro da Vila Velha
Eu vi sofrer Seu Marinheiro, é hora
Se não fosse Marinheiro É hora de nós viajar
Que seria de você É nas águas, ó que beleza
Dona Sereia mandou me chamar
Ô Santa Rita Pescadeira
Tomaram meu anzol Eu vou vestir de branco
Tomaram meu anzol Uma calça de funil?
Eu vou pescar no mar Eu vou pegar meu peixe
É no balanço do navio
Oê lagoa, pra quê encheu agora
Pra quê encheu agora, oê lagoa
Mãe d’Água
Puxa a corrente do mar, Marinheiro
Puxa a corrente do mar, Marinheiro Ô Mãe d’Água sai do poço
Marinheiro, Marinheiro Ô Mãe d’Água orixá
Eu vim vadiar no terreiro Essa Mãe d’Água é de ouro
Ela só vem vadiar
Marinheiro, Marinheiro
Marinheiro que balança o mar Chegou a Mãe d’Água, chegou
Marinheiro que balança o mar Chegou a Mãe d’Água, Sereia
Marinheiro, Marinheiro Chegou a Mãe d’Água, chegou
Quem te deu esse navio Mais o Peixe Marinho, é Baleia
Ó foi meu pai Ogum, ô lá na beira do rio A Mãe d’Água tem, tem sua morada
A morada dela é nos olhos d’água
433

Ô Mãe d’Água, ô Mãe d’Água Eu sou Sereia, Sereia


Mãe d’Água cabelo louro Ô minha gente venha ver, a Sereia a vadiar
Ô Mãe d’Água, ô Mãe d’Água
Saia do mar, minha Sereia
Ô Mãe d’Águinha do forte do mar Saia do mar, vem brincar na areia
Puxa areia, puxa areia
Quando eu saí do meu mar
A Mãe d’Água tem, a Mãe d’Água me dá Eu louvei Maria
Um laço de fita pra eu vadiar Louvei meu pai Sete-Serra
E Nossa Senhora da Guia
Tomara que chova logo
Tomara que não deixe de chover Por cima do mar azul, eu avistei uma sereia
Para chover água de cheiro Por cima do mar azul, eu avistei uma sereia
Nos pés de meu pai Baluaê Eu avistei a Janaína
Mãe d’Água é rica, é rica Dos milagres das candeias
Mãe d’Água tem cabedá Ê, ê, á, sereia no mar, Sereia
Mãe d’Água paga dinheiro
Para ver Dois Dois vadiar Ô, rê, rê, bate couro na aldeia
Ô, rê, rê, bate palma pra Sereia
Ô brinca Mãe d’Água vadeia Sereia
Chegou os caboclos de aldeia Bate palma pra Sereia que ela veio do mar
Ô brinca Mãe d’Água vadeia Sereia Ela veio de longe, ela veio saravá
Chegou os caboclos de aldeia
No fundo do mar
Ô Mãe d’Água Eu tenho uma pedra
Ô princesa do mar Quem fizer mal pra mim
Solta seus cabelos Eu tenho meu pai Sete-Serra
Deixa o barco navegar
Eu sou Sereia
Eu já vou embora eu não posso demorar Moro na pedra redonda
Deixei minha vela acesa na praia do mar Cheguei agora que mandaram me chamar
Ó filho, venha receber
A tua herança que mandaram te entregar
Sereia Mas ela já se foi
Até um dia quando eu encontrar
Eu estava no meio do mar Ó filho, venha receber
Quando ouvi uma voz me chamar A tua herança que mandaram te entregar
Eu estava sentado em uma pedra
Ouvi a voz do caboclo Sete-Serra Ô, eu já vou, já vou, já
Vou-me embora pro lado de lá
Eu sou Sereia minha mãe passeia Vou-me embora pro lado de lá
Vivo navegando pelas ondas do mar Senhor do Bonfim é quem vai me levar
Eu sou Sereia
Vivo navegando pelas ondas do mar

Mamãe serei-ci, mamãe Sereia


Ai, ai, meu Deus, mamãe Sereia do mar
Ô, Sereia, você hoje cai n’água
Você tem Baluaê, você tem Mãe d’Água
434

Tupi-Mergulhão Ô meu pai


O que é que houve na aldeia
Arrodeia a serra do rio ribeirão E ô meu pai
Arrodeia a serra do rio ribeirão Por que tá mandando me chamar
Caboclo d’água é Tupi-Mergulhão
Quem quiser ver Iemanjá
Quem quiser ver Iemanjá
Janaína Joga flor n’água amanhã
Joga flor n’água amanhã
Trovão roncou no mar
Relâmpago clareou Mas eu tava na beira do rio
Caô, meu pai Xangô Quando minha joia perdeu
Ô você traz Dona Janaína Eu vou buscar a minha joia
Que Peixe Dourado me deu
Branca de Neve, cadê Janaína
Mas ela é rainha do mar Ô, Dona Janaína
Cadê aquela menina Princesa do mar
Ô, quem governa as águas
Sou eu, princesa, chegou a baronesa É caboclo de amaiçá
Sou eu, princês
Vamos saudar nosso Deus de grandeza E olha, olha alu belô
E olha, olha alu belô
Chapéu de couro, meu Deus, abençoado
Me dê licença eu entrar nesse reinado Quando eu entrei nas águas
Minha pedra rolou
Iemanjá é minha mãe Quando eu entrei nas águas
É mãe jarê Meu Deus olha alu Belô
Mora lá no poço fundo
É mãe jarê
São Sebastião
Eu tava na beira do rio
Eu vi a Sete-Estrela passar Ó meu São Sebastião
É Janaína do mar Espanha Sua espada está no mar
Ela é princesa dos orixás Tá cravada numa pedra
Só Jesus para arrancar
Ô Ína, Jocina, ô Ína Marajô Ô meu pai, ô minha mãe
Ô Ína, Jocina Sou eu, São Sebastião
Meu relâmpago é na lua Não deixa eu cair no chão

Ô Ína vem me ver São Sebastião é d’água


Jocina vem olhar Ele é d’água, ele é d’água
Odé de Lê manda recado
Reparrê, sou Iemanjá São Jorge na porta bateu
São Jorge na porta bateu
Iemanjá, é coroada Passei a mão na fenda para ver quem é
É coroada, Iemanjá É São Sebastião, guerreiro de umbanda
É coroada Ele é rei, é rei
435

Xangô Xangô de ouro, Xangô de prata


Aqui chegou Xangô, meu Deus
Gritou lá na mata De madrugada
Pra quem é de Xangô
A machada tem dois cortes Xangô não é meu, é de Oiá
Pra quem é de Xangô Eu mandei pra Bahia, assentar
A bando-ê, a bando-á Eu mandei pagodô pra levantar
Filho de umbanda não cai Mas Xangô não é meu, é de Oiá
Para quem é filho de Xangô
Xangô é meu, Xangô
Trovão roncou no mar Xangô é Baluaê
Relâmpago clareou Xangô também veio do mar
Caô, meu pai Xangô Xangô também veio valer
Força de Deus aqui chegou
Orerê, orerê, orerê oê nagô
Trovão roncou no mar Relâmpago é pra Iansã
Relâmpago clareou Trovão é pra mim Xangô
Chegou senhor Xangô
Foi Santa Bárbara quem mandou Ai, ai, ai, meu Xangô é de pena, meu Deus
Ai, ai, ai, meu Xangô é de pena, meu Deus
Eu ia passando
Eu não ia chegar Ai, ai, ai, meu Xangô é de fogo, meu Deus
Eu ouvi a voz foi de Iansã Ai, ai, ai, meu Xangô é de fogo, meu Deus
Rompe Xangô você é o rei dos orixás
Xangô está na hora, que o vapor assobiou
Eu sou rei dos ares Xangô está na hora, que o vapor assobiou
O meu nome é São Jerônimo Você não conhece a chamada de xangotô
Eu sou rei dos trovões, eiá
Meu nome é Xangô Deí Quando Oiá falou
Ô Deí, ô Deí Que Xangô gemeu
Xangô Deí O povo desta casa, Oiá, Oiá
Todo se tremeu
Caminhei, caminharei Oiá, Oiá
Caminhei, caminhará Oiá de Deus
Caminhei sessenta léguas
Pra chegar no canzuá Xangô já vai embora
O senhor parece escouro Vai pra sua cidade lá no juremá
Que o Expedito ê vem aí Um abraço para os que aqui deixa
O Expedito vem cantando Embora com saudade ele vai orar
Caô cabileci Adeus, adeus, até um dia quando ele voltar

Ô caô, caô, caô, ô meu senhor


Louvado seja, meu senhor
Senhor Xangô
Nesse terreiro chegou

Ô, lá no alto daquela pedreira


Eu vi o grito de Ari Xangô
Caô, caô, caô, cabiecilê
436

Sete-Serra A galha do pau caiu


Com o peso dos orixás
Ô meus caboclos veio Tenha fé em Deus, orixá
Veio, veio, veio Caiu, torna a levantar
Ô meus caboclos veio
Comer fruta no Pará-ê Onde está seu Sete Serra
Sou eu, Sete Serra Aê abaeçá
Eu tiro pemba em aroeira Eu tava no caminho da jutaia
Sou eu meu pai Esperando rei de Ogum passar
Minha morada é em cachoeira
Meu povo, adeus
Passeando pela mata da macumba Que eu vou de mundo afora
Como vai, como passou, seu moço Vou ver Ogum lá em Aruanda
Deus que lhe dê boa noite, seu moço Com Deus e Nossa Senhora
Deus que lhe dê boa noite, camarada Com Deus e Nossa Senhora
Eu vou ver meu pai Ogum
Pegue esse boi, calunga Me dê licença Oxalá
Amarra no mangueiro, calunga Pra visitar dolorum
Tira o couro dele, calunga
Pra fazer pandeiro, calunga Quando os passo canta
Que a manda chora
Você matou seu pai, calunga Quando os passo canta
Mas não mata o meu, calunga É caboclo que já vai embora
Olha lá seus filhos-de-santo, calunga
Pra não se atrapalhar, calunga
Força da mata
Ó o rei, ó o rei, ó o rei de Napoleão
Quem foi que matou a baleia Ô zum, zum, zum, zoou na aldeia
Foi o mesmo que matou o dragão Ô zum, zum, zum
Ô viva, viva o rei, viva o rei de Napoleão Na aldeia de caboclo brabo

Esse caboclo é duque Eu sou um caboclo que moro nas matas


É duque da mata Sou companheiro de sultão das Matas
Esse caboclo é duque, meu Deus
Ele tem penacho Eu já vou embora
Minha morada não é essa
Eu andava em um caminho Eu já vou embora
Encontrei com três judeus Minha morada é na floresta
Meu Jesus que povo é esse
Jesus me arrespondeu
Caboclo duque da mata Índio
São Judas de fariseu
Chefe dos índios chama os índios na aldeia
Deus que lhe dê boa paz Chefe dos índios chama os índios na aldeia
Jesus que me dê boa luz Na aldeia, caboclo, na aldeia
Nós sabemos o dia de hoje, meus irmãos Na aldeia, caboclo, na aldeia
E amanhã só quem sabe é Jesus Ô êra, ô êra, ô êra
Seu rei das flores passou por aqui
Ô êra, ô êra, ô êra
Quem foi que trouxe índio bravo pro peji
437

Chegou Índio da mata dos cangojis Eru turrou na mata, o povo se assustou
Cheguei agora eu vi as penas sacudir Aê, Eru, Eru da mata eu sou
Chegou Índio da mata da juremeira
Eu sou um caboclo Eru, Eru, ô Eru é caboclo bravo
Que só ando é nas carreira Eru não conhece gente
Eru só conhece mato
Ó Índio ê, ó Índio á
Chegou da mata bruta Caboclo Eru, no Brasil ele é guerreiro
Com todos seus orixás Caboclo Eru, no Brasil ele é guerreiro
Ele é malcriado, pra quem bole com ele
Caboclo da mata o que é que come Ele é malcriado, pra quem bole com ele
Folha verde de guiné
Se não achar a folha verde O samba de Eru é pesado
Come a folha que tiver É pesado, é pesado

Tupinambá é índio Ô samba Eru, êá, o samba do mato é bom


Tupinambá não erra
Tupinambá é índio Eu sou caboclo Eru, eu vim obedecer
Ele é vencedor de guerra Eu sou caboclo Eru, eu moro é no massapê

Tupinambá chegou, Tupinambá chegou


Tupinambá chegou da torre de Babilônia Sultão das Matas
Da torre de Babilônia
Auê, auê, Sultão das Matas
Caboclo índio eu sou pelegrino Sultão quem lhe chamou foi eu
Cobra coral, eu sou filho teu A onça só teve de medo
Mas toca fogo na areia do mar Foi do gemido que o Sultão deu
Caboclo índio ele veio vadiar
Aê, boca da mata
Ô uma nuvem roxa Ô deixa os caboclos passar
Derramou água no mar Aê, boca da mata
Ô graças a Deus Pra ele poder saravá
Chegou eu Tupinambá
Quando eu andava em um caminho
Eu encontrei com Nossa Senhora
Eru Aê, pai-de-santo
Sultão das Matas chegou agora
Eru, Eru, ô Eru trabalha bem
Eru trabalha na macumba Caboclo rompe mata
Nas horas de Deus, amém Fura abelha e bebe mé
Pai, divino espírito santo Não mexe com Sultão
Nas horas de Deus amém Quem não sabe ele quem é
Ô deixa eu me benzer primeiro
Pra livrar de algo, porém Eu sou um caboclo que moro nas matas
Ô eu me chamo é Sultão das Matas
Caboclo Eru, olha ele, olha ele Sultão, Sultão
Caboclo Eru olha ele olha lá Mas o rei dos caboclos é Sultão
Com as santas forças Sultão, Sultão
Não tem nó que não desata Não tem medo de pisar no chão
E o nó que eu dei só Jesus pra desatar
438

Sultão da Mata não tem roupa Sou Gentio, sou Gentio, sou Gentio
Sultão da Mata só anda é nu Eu sou Gentio minha mãe vim vadiar
Sultão da Mata não tem panela Eu sou Gentio
Sultão da Mata só come é cru Acompanhado de Alemanha, mamãe
Sou Gentio, sou Gentio, vim vadiar
Sultão ê, meu pai
Sultão veio vadiar Eu vim aqui hoje
Sultão da boca da mata Vim matar minha cegueira
Ele é o rei dos orixás Eu sou caboclo bravo
Sou Gentio de capoeira
Sultão da Mata matou um passo de pena
Sultão da Mata matou um passo de pena No fundo do mar
Ê, ê, ê, lá na aldeia da jurema Tem uma fonte bela
Ê, ê, ê, lá na aldeia da jurema Aonde o rei Gentio
Bebe água nela
Na minha aldeia tem cobra preta
Na minha aldeia tem jaracuçu Gentio, meu irmão
Eu botei o meu joelho no chão Camarada meu
Dei um grito bem alto na chegada de Sai da tua aldeia
Sultão E vem brincar mais eu
Eu sou um caboclo de opinião
Na minha aldeia tem cobra preta Eu sou Gentio guerreiro
Na minha aldeia tem jaracuçu De bom coração
Ajoelhei, botei meu ouvido no chão
Dei um grito e um assovio na chegada de
Sultão Jurema

Sultão da mata verde Ê, juremeira, ê, juremá


Ê, ê, ê, ê, ê, á A folha caiu serena, Jurema
Sultão da mata verde Dentro desse congá
Ê, ê, ê, reparrê mata pesada
Ô, Jurema de cá, Ô, Jurema de lá
É, Juremeira, é Juremeira
Gentio
Eu vou beber minha jurema, dê no que der
Gentio da minha aldeia Lá no pé da juremeira, dê no que der
Vem brincar mais eu A jurema é boa, dê no que der
Nas horas de Deus Eu vou beber minha jurema, dê no que der
Quem chamou Gentio foi eu
A galha do pau caiu
E ô, Gentio Com o peso dos orixás
Tanto que eu te chamo que demora é essa Tenha fé em Deus, orixá
Ô, meu pai Caiu, torna a levantar
Mas eu tava no mato jogando flecha
Meu irmão, vou lhe pedir
Sou Gentio, sou gentiler Vós queirais me perdoar
Sou Gentio, sou gentiler A jurema do peji, ô meu irmão
Ai, ai, ai Vós dais um pouco esse orixá
Sou Gentio da manda chora
Sou Gentio da manda chora
439

Caboclo bebeu jurema Ô pedra, ô pedra, ô pedra


Caboclo se embriagou Aquela pedra ela é meu guia
Com a folha do mesmo pau Ô pedra, ô pedra, ô pedra
Caboclo se levantou Aquela pedra que o Mineiro queria

Ê Jurema, é o pau que não bambeia Ô pedra, ô pedra, ô pedra


É o pau que não bambeia, Jurema Aquela pedra é pra nós curá
Aqui nessa aldeia Ô pedra, ô pedra, ô pedra
Aquela pedra é de Oxalá
Ô flor, que tanto cheira
Mas é a flor, meu Deus, da juremeira Eu sou Mineiro
Eu sou de luz
Seu Juremeira, aonde vai Eu vim da Lapa
Eu vou pra minha terra De bom Jesus
Seu Juremeira, espera eu Ô, Mineiro, ô, Mineiro
Que eu vou vencer a guerra Ô Mineiro paragadá
Sou caboclo, sou Mineiro
Ô Mineiro paragadá
Turco Leão
Olha onde você pisa, caboclo
Leão, é turco Olha sua pisada, caboclo
Leão é vencedor Deus guia seus passos pra frente, caboclo
Leão é rei das feras Olha sua pisada, caboclo
Mora no jardim das flor
Ô Mineiro tremeu, tremeu
Puxa na linha do Turco Leão Ô Mineiro tremeu, meu Deus
Ê, vem, ê, vem Ô Mineiro tremeu, tremeu
Puxa na linha do Turco Leão Chegou nas horas de Deus
Ê, vem, ê, vem
Eu sou de mina
Ô Leão, ô Leão Eu sou de mina
Meu pai é rei Leão Eu sou de mina
E você, Rei dos Leão De Minas Gerais
Eu sou de mina

Mineiro Mineiro estava na serra


O barranco desmoronou
Quando a aldeia mineira chegar Mineiro chama seu povo
Ai, ai, meu Deus Que mineiro é curador
Ai, ai, meu Deus
Quando a aldeia mineira chegar A aldeia me chama não posso faltar
Cadê meu pai-de-santo nesse canzuá
Ô, Mineirinho, ô, mineirá Eu vou furar meu peito com a lança fina
Eu venho de longe terra E aparar meu sangue com a mão divina
Da aldeia do lajeá

Ô Mineiro, ô, Mineiro
Ô Mineiro da lavra sou eu
Ô Mineiro, ô, Mineiro
Ô Mineiro da lavra chegou eu
440

Oxóssi Jericó

Ê vem Oxóssi, com seu cavalo Eu passeava em tão bela aldeia


Com sua lança e a sua espada na mão Eu passeava em tão bela rua
Com seu penacho, deixa correr Ó, que beleza
Vamos saravá Ogum de Lê Seu Jericó no clarão da lua

Oxóssi foi pra mata Ô, lua


A mata embalanceia Que noite bela
Oxóssi volta alegre Eu só queria
Quando a capanga vem cheia Conversar com ela

Oxóssi é, Oxóssi é o que Ô, lua, eu vi a lua


Oxóssi é, Oxóssi é o que Ô, que moça bela
Salve a lua nova Ô, lua, eu vi a lua
Salve o arerê Eu conversei com ela
Salve a lua nova
Salve o arerê Jericó velho, boiadeiro
Meu pai tenha pena de mim
Senhor Oxóssi eu atirei na areia Mas eu vim pela mata de flor
Senhor Oxóssi eu atirei na areia Ô, valei-me, Senhor do Bonfim
Atirei na areia, atirei na areia
Que povo é esse
Atira, atira, atira Ô, que mandaram me chamar
Eu atirei pro ar Mas é o povo dessa casa
Atira, atira, atira É o meus irmãos
Eu atirei pro ar Meus amigos leá
Eu atirei senhor Oxóssi
Mas não foi para matar
Tomba-Morro
Ô lico tico, lico tico, lico tico é
Quem quiser pegar caça Eu me chamo é Tomba-Morro
Vai armar mundé Eu não sou de brincadeira
Eu vou tombar as minhas pedras
Quem manda no mato é Oxóssi Lá no pé da cachoeira
Oxossi é caçador, Oxóssi é caçador
Eu vi meu pai assoviar Meu pai eu vou te pedir
Eu mandei chamar Com a dor no coração
É em Aruanda, ê, é em Aruanda, á Tomba-Morro ê vem aí
Sou pena verde da umbanda Eu não quero ele aqui não
É em Aruanda
A cancela bateu, quem vem lá
Não toca fogo na mata É Tomba-Morro, meu Deus
Na mata tem morador A cancela bateu, quem vem lá
De lá da mata chegou É Tomba-Morro, valha-me Deus
Oxóssi velho curador
Tomba-Morro mora, no pé da serra
Ê Oxóssi onde é sua morada No pé da serra, meu Deus
Eu moro é na mata bruta Tomba-Morro mora
Naquela mata fechada
441

Ô, vamos tombar o morro Preto Velho, Preto Velho


Ô, vamos tombar o morro Preto Velho curador
De cabeça para baixo Comigo ninguém topa
As água levam Comigo ninguém topou

Eu já tombei, mandei tombar Passei na porta de um bar


As pedras finas no meio do mar Me chamaram de cachaceiro
Eu já tombei, mandei tombar ‘Sê besta, moleque ousado
As pedras finas no meio do mar Se eu bebo é com meu dinheiro

Tomba-Morro onde você mora Meu pai ê vem o velho


Eu moro é no pé da serra O velho vem do mar
Ô quando precisar de mim me chama O velho de tão velho
Que eu venho vencer a guerra Que não pode mais andar

Por cima daquele morro Meu pai ê vem o velho


Só vejo pedra rolar O velho ê vem de aldeia
Debaixo daquele morro O cabelo do velho
Só vejo cobra piar De tão alvo que alumeia

Deus lhe dê boa viagem Mamãe Catarina


Deus lhe dê boa viagem Balaio de fulô
Nas ondas do mar sagrado Balaio de fulô
Eu não digo o meu nome Balaio de fulô
Eu só ando é calado
Eu me chamo é Tomba-Morro
E o que eu tombei está tombado Nagô

Ô Nagô Ína orixá


Preto Velho Nagô rerê
Ô Nagô Ína orixá
Chapéu de couro, por Deus abençoado Nagô rerê
Me dá licença pra eu entrar nesse reinado
Chegou Nagô, bandeira
É meia-noite quando o galo cantou Chegou Nagô velho, curandeira
É de manhã o dia já amanheceu
Seu Preto Velho pegou sua espada Lá no cacho do dendê
Para debater com seus inimigos Eu vi Nagô gemer
Eu vi Nagô gemer
Olhei pro céu, vi a estrela correr
Olhei pra baixo, vi a pedreira rebolar Nagô, Nagô, Nagozága
Seu Preto Velho pegou sua espada Nagozága de nagô
E a Sereia cantou no meio do mar Rainha da costa d’água
Meu Deus para onde eu vou
Preto Velho, Preto Velho
Preto Velho do canjarê Nagô trabalha com dendê, farofa e vatapá
Comigo é na macumba Na linhagem de nagô
No azeite de dendê Nunca puderam derrubar
442

Ê cum, ê cum aê Baluaê veio de aldeia


Nagô trabalha é com dendê Ele veio com seus orixás
Ê cum, ê cum aê Ô viva Deus, viva todo o santo Lemos
Nagô trabalha é com dendê Ô viva nossa aldeia real

Nagõ velho, jarê Baluaê tem seu dia


O que é que veio fazer Nana-ê tem seu dia
Mas eu vim vadiar no terreiro Baluaê tem seu dia
Valei-me, minha mãe, valei-me Nana-ê tem seu dia

Eu venho de beira-mar
Eu venho jogar meus búzios Nanã
Eu venho de beira-mar
Nagô trabalha é no seguro Ô Nanã borocô, quem tremer, cai, cai
Quem tremer, cai, cai
Quem tremer, cai, cai
Oxalá
Ô Nanã no-ê
Oxalá, Oxalá, Oxalá Ô Nanã no-á
Ele é de Oiá Ô Nanã no-ê
Oxum já veio do mar
Oxalá, tintin Ela traz consigo
Oxalá meu alamim Três pedras de ouro
Para repartir, ô
Oxalá, meu pai Com seus filhos todos
Tem pena de mim, tenha dó Ô Nanã ê
A volta do mundo é grande Nanã ê
Os poderes de Deus, o seu é maior Nanã ê totô
Nanã ê totô
Nanã ê totô
Baluaê
Nanã quando despede
Perdoa Baluaê, com todos os orixás Despede com alegria
Perdoa Baluaê Adeus santo terreiro
Pelo amor de Nossa Senhora Adeus até um dia

Abaluaê, Abalorixá-ê Quem passeia na varanda


Ouça meus pedidos, Obá É o senhor Baluá
Nas ondas do mar, ê Quem passeia na varanda
É o senhor Baluá
Baluaê, atotô Mas quem passeia na varanda
Baluaê, arê-ô É o senhor Baluaê
Baluaê, atotô
Baluaê, arê-ô

Meu pai, ê vem o velho


O velho vem do mar
O velho de tão velho
Que não pode mais andar
443

Boiadeiro Você me chama Boiadeiro


Eu não sou Boiadeiro não
O dia já amanheceu Eu sou tocador de gado
Tá na hora Boiadeiro é meu patrão
Tá na hora do gado chegar
Ô, tá na hora Eu sou Boiadeiro
De lá de cima desceu uma boiada Eu gosto de vaquejar
Uma boiada que Odé mandou Eu sou Boiadeiro
Senhor Odé é um bom patrão Gosto de negociar
Senhor Odé é um bom senhor
Em cima do morro, queu, queu
Seu Boiadeiro, catingueiro Que a onça pegou meu cachorro
E não deixa o gado passar Quero couro de jaleco
Sou filho de mamãe da lua Pra vender meu jaleco de couro
Sou neto de Oxalá
Seu Vaqueirinho do norte Cetroá, cetroá
Eu vim boiar A minha corda é de laçar
Eu vim boiar meu gado Cetroá, cetroá
Eu vim boiar A corda de laçar meu boi

Boiadeiro não é meu Ô na minha boiada


Boiadeiro é de alguém Me falta um boi
Quem falar de Boiadeiro Eu não sei se é um
Falou de mim também Eu não sei se é dois

Vaqueiro, Boiadeiro, oê Vaqueiro, quando o dia amanhece


Vaqueiro, Boiadeiro, oeá É hora de Vaqueiro trabalhar
Vaqueiro, chama seu bando
Quando eu vim de Minas Que a bezerrada vai logo chamar
De Minas para o sertão
Comida de Boiadeiro Vaqueiro vai embora
É coalhada com requeijão Que o dia já amanheceu
Fugiu uma novilha
Vaqueiro velho E a novilha que o patrão lhe deu
Ensina vaqueirinho
Tem paciência com ele E ô Hilário, cadê meu gado
Que ele é pequenininho E ô Hilário, meu gado não está
Patrão, seu gado fugiu
Seu Boiadeiro lá na mata choveu Hilário veio me avisar
Choveu, que abarrotou Na hora de eu viajar
Foi tanta água que meu boi bebeu
Seu Boiadeiro Olha a estrela, olha a estrela
Foi tanta água que meu boi nadou Olha a estrela matutina
Boiadeiro olha a estrela
Olha a ponta do laço, Vaqueiro
Boi vai pegar
Boi vai pegar
Na porteira do curral
444

Odé Deú não é menino


Que se engana com tostão
Cadê Odé, meu pai Deú não é menino
Cadê Odé Que se engana com tostão
Nós estamos batendo couro, meu Deus Só lembra de Deú na hora da precisão
Cadê Odé Só lembra de Deú na hora da precisão

Odé de Lê Dois-Dois não é meu


Pisa na ponta do pé Dois-Dois é de titia
Pisa na ponta do pé Dois-Dois não é meu
Odé de Lê, de Badé Dois-Dois é de titia
É pra pagar a língua dela
Odé, Odé, Odé mim tatá Que falava todo dia
Odé, Odé, Odé mim tatá
Odé mim tatá, Odé São Dois viajeiro
Odé, mim tatá Que viaja no mar
São Dois viajeiro
Que viaja no mar
Italiano A barca virou, pesou
Dois-Dois quer nadar
Italiano da Itália A barca virou, pesou
Sabe ler, sabe escrever Dois-Dois quer nadar
Sabe ler, sabe escrever
Sabe ler Dois, Dois, Dois, ‘Taliano
Italiano, Italiano É Dois, é Dois, é Dois, ‘Taliano
Italiano e mamãe Santa Bárbara
Italiano, Italiano Dois-Dois não brinca
Ele chegou na maleta d’água Dois-Dois não erra
Só entra no terreiro
Italiano não une com inglês Com seu batalhão de guerra
Italiano não une com Japão
Italiano só acredita A pancada do tambor
Naquilo que tá na mão Abalou meu coração
Abala mas não abala
Viva Cosme Damião
Cosme
Ô Cosme Damião, mas cadê Deú
Ô, Viva, ô, viva Cosme Damião com todos seus orixás
Ô viva Cosme Damião Ô Cosme Damião, ô viajou por água
Ô Viva No som dessa corneta, todos dois, nadava

Cosme Damião meu pai Dois-Dois é rosa


Vós me deis licença É sucena, é sucena
A casa pode, meu pai É a flor cheirosa
O terreiro aguenta seus filhos
445

Cosme Damião Ê vem Cosme, ê vem Damião


A sua casa cheira Ê vem ele com a bandeira na mão
Cheira a cravo e rosa
Cheira à flor da laranjeira Cadê a galinha de Dois-Dois
Ô Cosme, ô Cosme Tá na cozinha cozinhando
Ô Damião mandou chamar Dois-Dois é meu leá
Ô chama ele Tá comendo a galinha e não me dá
Na carreira
Pra vir brincar com Iemanjá Cosme Damião, a sua casa cheira
Cheira a cravo e rosa
São Cosme, São Damião Cheira à flor da laranjeira
Vieram de beira mar
Ajuda o dono da casa em primeiro lugar São Cosme, São Damião
Ajuda eu, São Cosme Que vieram de beira mar
Ajuda eu, sambar Ajuda o dono da casa em primeiro lugar
Ajuda eu, São Cosme, ajuda eu, sambar
Cosme veste verde
Damião veste azul Viva Cosme Damião
Santa Bárbara veste branco Viva Cosme Damião
Na hora do cariru Viva com muita alegria
Viva com muita alegria
E a barquinha de Dois-Dois remou Ajudai nós alcançar
E a barquinha de Dois-Dois remar Ajudai nós alcançar
E a barquinha de Dois-Dois remou O outro ano neste dia
E a barquinha de Dois-Dois remou no mar O outro ano neste dia
Ô, Cosme, ô, Cosme
Ê, Cosme Damião chegou Vamos pro lajedo
Ê, Cosme Damião chegou Ô, o lajedo é frio
Cosme bate caixa, Damião bate tambor Mas pra Cosme não faz medo
Cosme dá remédio, Damião é curador
Ô meu mano adeuzim
Dois-Dois neném de ouro Ô meu mano adeuzá
Ele é pai coroa-ê Eu vou embora
Dois-Dois neném de ouro Pro meu canzuá
Ele é pai coroa-ê
Até amanhã, se Deus quiser
Cadê meu anel de ouro Até outra hora, se eu aqui vier
Que eu perdi no mar azul
Quem achou foi Deú
Tapuia
Mãe d’Água é rica, é rica
Mãe d’Água tem cabedá Tapuinha veio, veio vadiar
Mãe d’Água paga dinheiro Tapuinha veio, veio vadiar
Para ver Dois-Dois vadiar Ô ela só deve vir
Tapuia do forte do mar
Italiano da Itália Ô ela só deve vir
Sabe ler, sabe ler, sabe escrever Tapuia do forte do mar
Sabe ler, sabe ler
Tapuinha menina, tá de viagem
Tá de viagem, vai viajar
446

Cantigas para qualquer caboclo E olha a palha do coqueiro, olha lá


Se meu caboclo for embora eu vou buscar
Sou filho da macumba Olha aê, olha lá
Não posso negar Se meu caboclo for embora eu vou buscar
Sou filho da macumba Eu sou um caboclo de Minas
Não nego meu naturá Eu venho de Minas Gerais
Aqui não é terra de Aruanda
Sou filho da macumba Em Aruanda só se anda devagar
Sou filho de macumbebê
Sou filho da macumba Ô, mãe, eu vou para a mata
Sou neto do jarê Vou à procura de uma moita de espim
Ô mãe, me ajuda a me esconder
De quem é, de quem é Minha mãe
De quem é que eu vou ter medo Tem feiticeiro procurando por mim
Mas se eu sou feito da macumba Joguei minha flecha para cima
De quem é que eu vou ter medo Não sei onde ela foi cair
Ela caiu numa aldeia tão longe, minha mãe
Eu estava no meio do mar Aldeia longe, aldeia dos cariri
Mas quando ouvi uma voz me chamar
Eu estava sentado em uma pedra Nunca atirei a minha flecha
Ouvi a voz do caboclo Sete-Serra Nunca atirei pra não ver cair
Eu joguei minha flecha pra cima
Pisa no chão devagar E acertei uma juriti
Você pisa no chão devagarinho
Pisa no chão devagar Ogum é meu, Ogum é meu
Você pisa no chão devagarinho Ogum é meu, foi meu pai que me deu
Ogum é meu
Não tenho pai, não tenho mãe
Mas o que é que eu vou fazer Eu bem disse camarada, que eu vinha
Só tenho por mim Jesus Na sua aldeia, camarada, um dia
E o velho Baluaê
Eu já vou embora
Não tenho pai, não tenho mãe Lá pra marojia
Ê, lá nas matas eu me criei Meu pai Sete Serra
Com a idade de doze anos Segura na sua filha
Meu pai era africano
Que sina trouxe eu Adeus, surpresa
Rainha das Flor
Ele é o caboclo da macumba Quando você for
Ele é o caboclo macumbeiro Me leva que eu também vou
Ele sabe a macumba onde está, ê
Se me pagar a macumba eu vou buscar Xangô já vai-se embora
Vai pra sua cidade lá no juremá
Ô mãe onde é que eu me escondo Um abraço para os que aqui deixa
Ô mãe, o que é que eu vou fazer Embora com saudade, ele vai orar
Ô mãe, cadê minha samambaia, minha mãe Adeus, adeus, até um dia quando ele voltar
Para me esconder para a onça não me ver
447

Ô, eu já vou, já vou já Pisa caboclo, não me atrapalha


Vou embora pro lado de lá Deixa eu comer
Vou embora pro lado de lá Deixa eu beber minha sapucaia
Senhor do Bonfim é quem vai me levar Minha sapucaia é de Aruanda
Não tem mestre que não coma
Adeus, adeus, adeus pátria, adeus Que não beba e que não caia
O céu é luz, adeus pátria, adeus
Sou eu que me deito tarde
Eu já me embora, eu não posso demorar Sou eu que acordo cedo
Meu pai tá me chamando Sou eu que ando jurado
Ô lá no forte do mar De jura eu não tenho medo

Na pancada do couro, eu vim Deú não é menino


Na pancada do couro, eu vou embora Que se engana com tostão
Deú não é menino
Eu já vou embora Que se engana com tostão
Minha morada não é aqui Só lembra de Deú na hora da precisão
Eu já vou embora Só lembra de Deú na hora da precisão
Minha morada é no peji
Dois-Dois não é meu
Ô mãe, quando for a senhora me leva Dois-Dois é de titia
Me leva, minha mãe, pra sua aldeia Dois-Dois não é meu
Ô mãe sou seu filho e estou cansado Dois-Dois é de titia
Ô mãe, de viver na terra alheia É pra pagar a língua dela
Que falava todo dia
Passa a nuvem
Torna a passar
Clareia as estradas Cantigas de trabalho ritual
Que é hora de eu viajar
Ô meu Jesus de Nazaré, olha ele
Olha ele meu pai Oxalá
Cantigas de sotaque Com as santas forças
Não tem nó que não desata
Pisa no leguedê, escorrega E o nó que eu dei só Jesus pra desatar
Quem não sabe andar escorrega
Oxóssi matou um boi
Pisa no massapê, escorrega Na porteira do curral
Quem não sabe andar escorrega Olha lá, venha ver
Venha ver meus orixás
Ô quebra cabaça, machuca semente
Chegou o povo que fala da gente Ora viva aí, reviva João
A língua que fala o que não vê Viva e reviva João
Merece fritar no dendê Viva São Cosme, São Damião
A língua que fala o que não é Viva São Cosme, São Damião
Merece cortar pelo pé O galo já cantou Damião
O galo já cantou Damião
Pisa, caboclo, que eu gostei de ver pisar É hora de oração, Damião
A pisada do caboclo faz a areia esparramar É hora de oração, Damião
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O galo já cantou Ô é de um a um
Eu não sei que horas são É de dois a dois
Vamos fazer a matança Ô Cosme Damião
Para são Cosme Damião Ele é Dois Dois

Ô idedé conecô ibunecô Cosme Damião


Idedé conecô ibunecô A sua casa cheira
Catuléça Tirará mucunã Cheira a cravo e rosa
Ô idedé conecô ibunecô Cheira à flor da laranjeira

Cocorocô, o galo já cantou São Cosme, São Damião


Cocorocô, o galo já cantou Que vieram de beira mar
Ô dentro desta casa Ajuda o dono da casa em primeiro lugar
Vai chegar dois curador Ajuda eu, São Cosme
É dois curador, não é dois feiticeiro Ajuda eu, sambar
São dois raizeiros que chegou pra trabalhar

Cantigas de mesa e de reza para Cosme

Viva Cosme Damião


Viva Cosme Damião
Viva com muita alegria
Viva com muita alegria
Ajudai nós alcançar
Ajudai nós alcançar
O outro ano neste dia
O outro ano neste dia

Cosme Damião
Vem comer seu cariru
É de todo ano
Fazer cariru pra tu
Vinte e sete de setembro
Cosme Damião e Deú
Até os peixe das água
Comeu o seu caruru

Ô vamos levantar o cruzeiro de Jesus


No céu, no céu, no céu da santa cruz

Cadê a galinha de Dois Dois


Tá na cozinha cozinhando
Dois Dois é meu leá
Tá comendo a galinha e não me dá

Ô Cosme Damião
Eu já comi seu vatapá
Quero que me dê
O salão pra vadiar
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(item não disponível na versão eletrônica da tese,


podendo ser encontrado junto à cópia depositada
na biblioteca do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social do Museu Nacional)

Disco com cantigas de jarê gravado pelos membros da Associação dos Filhos-de-Santo do
Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, reproduzido com sua autorização.

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