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Por que não fica?

Em tudo o que vivemos, em tudo o que fazemos, em


cada lugar que habitamos, em cada pessoa que amamos, por cada filme
ou livro que choramos, deixamos uma parte de nós. Despedir-se desta
parte é como perder um dedo ou um braço, ou quem sabe, um pedaço do
coração ou do fígado ou dos pulmões. E deixar para trás é sempre
doloroso. Porque esta parte nossa, nunca mais a reencontramos. Aquele
lugar ficará vazio para sempre. Só que para existir poesia é preciso haver
vazios; é preciso o silêncio e a ausência para brotar o novo.
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Publicado em03/04/2017AutorAna LauraCategoriasTextos literários da autora1
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A borboleta

A borboleta se debatia contra o vidro e pequenas


gotículas de sangue já escorriam de suas delicadas asas. A cena feriu seu
coração. Ela precisava salvar a pobre borboleta. E foi então que começou
a luta. Seus dedos finos e longos percorriam as asas da borboleta que
fugia, assustadíssima, para o outro lado. A luta foi se intensificando até
se transformar em um corpo-a-corpo. Ela suava, angustiadíssima. Será
que ela não quer ser salva? Será que ser salvo não é bom? Talvez a
borboleta esbelta estivesse exatamente fugindo da liberdade e por isso se
trancafiara olhando o lindo jardim colorido através do vidro.
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Publicado em01/03/2016AutorAna LauraCategoriasTextos literários da autoraTagstexto
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A lua e o mar
É com uma dor aguda que deixo ir tudo o que de belo
um dia esteve em mim. A praia enternecida em seus tons crepusculares
de pérola; o choro da criança amada que, como uma sinfonia límpida,
regam o ar com seu desamparo de rosas; a paisagem luminosa que vai
ficando para trás enquanto caminho a passos rápidos para que a
despedida não me despedace; os sons agudos do pássaro cantante na
manhã em que se anuncia a aurora milagrosa; o olhar fugidio do ser
humano que quase se deixou capturar. É com pesar inelutável que deixo
cada uma das conchas que tocaram os meus pés e que me lembram que
estarei morto tão logo minha consciência venha despertar do grande sono
que é a vida.
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Publicado em03/01/2016AutorAna LauraCategoriasTextos literários da autoraTagstexto
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Prazer consumado

Na noite em que Helena soube da terrível notícia foi


como se um vento frio e fúnebre percorresse toda a sua espinha dorsal.
Naquele exato instante, ela sentiu-se desfalecer. Um ar gelado e inóspito
sombreou sua alma, estado que perdurou durante todo o final de semana.
Enquanto Pedro se debatia confusamente frente à notícia, pois tinha
dificuldade enorme para se decidir se aquilo era bom ou ruim, motivo de
alegria ou de imensa preocupação, Helena pôs-se a pensar de forma
compenetrada porque reagira daquela maneira inesperada. Primeiro
tentou dizer a si mesma que, afinal de contas, um bebê é sempre algo
bom. Lembra esperança e renovação. Mas como sua alma não era afeita
a romantismos, logo em seguida pensou consigo mesma, um pouco irada
com sua tentativa de ser ingênua – coisa que nunca lhe caia muito bem –
que bebês crescem e que coisas trágicas podem acontecer na vida de um
infante sem que ninguém se aperceba disso. Decididamente, Helena não
conseguia dar a si mesma pequenas e ilusórias alegrias mundanas que
outras criaturas facilmente o faziam. Sua personalidade não deixava
barato e isso lhe era mais um fardo do que uma dádiva: ela não se
permitia não ir ao fundo de cada coisa.
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Publicado em30/11/2015AutorAna LauraCategoriasTextos literários da autoraTagstexto
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A mesma hora

Um tédio imenso encheu o peito de Frida. É que ela


havia percebido, pela primeira vez, que a passagem do tempo é
inexorável. Tudo isso ela enxergou de uma só vez, no exato instante em
que carregava a sacola de compras com dez batatas e um maço de
rabanetes que iria usar logo mais para preparar o jantar, exatamente
como fazia há trinta anos.
Depois da descoberta colossal, Frida passou a caminhar com passos
duros pela rua. O inverno se extinguia e um princípio de explosão de
vida começava a ensaiar seus primeiros movimentos.

Diante da flor amarela, Frida fechou os olhos. Estava horrorizada.

Olhava a convulsão das folhas secas que caiam uma a uma pelo chão,
deixando a rua suja como um museu. O mesmo museu que preservara
por tantos anos em sua alma com seus sonhos perdidos de infância, os
suspiros que nunca deu, o sorriso que morreu antes de nascer.

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Publicado em25/10/2015AutorAna LauraCategoriasTextos literários da autoraTagstexto
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Sobre abutres e água de alfazema


Caio não nasceu, rebentou. Era uma criança tão
desajeitada que seu pai queria amá-lo, mas não conseguiu. Tudo nele era
parvo. Seu ser fazia-se estabanado; tinha ares de estupidez branca, mas
não porque fosse limitado ou incapaz. Era por desarvoramento de alma
que ele não conseguia pensar com lucidez. Os seus dois únicos fracos
sentidos na vida eram comer e dormir. Neste quesito era mais como os
gatos, os cachorros, os tigres e os elefantes.
Selvagem, o pai de Caio havia esperado outro filho; alguém mais pronto,
acabado como ele próprio julgava ser. Em sua lógica só o perfeito
merecia ser salvo; o torto devia ser deixado aos abutres.

Acontece que na torta vida humana faltam abutres para devorar os tortos,
os mal acabados, os nunca nascidos, os carentes de espírito. Na vida
humana a lei implacável da sobrevivência dos mais fortes não é um fato
consumado. Sempre há um gesto de amor que adota e muda o curso.

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Publicado em14/10/2015AutorAna LauraCategoriasTextos literários da autoraTagstexto
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Felicidade roubada

O mar brilhante chamava o menino com


seus braços verde-esmeralda. Era manhã de um domingo quente e o
menino via o mar pela primeira vez. Fora o avô, seu avô duro e bom, que
lhe proporcionara o encontro tão aguardado. Fugidos como duas
pequenas lesmas, lá foram eles, como ladrões em busca de um quinhão
de prazer: o avô guiando o caminhão enorme e o menino com seus
pequenos olhos transpassando o limite das ferragens, com uma fome que
pretendia engolir tudo de uma vez.

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